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Universidade federal do rio grande do norte
Centro de ciências Sociais Aplicadas
Programa de Pós-graduação em Educação
Ana Cleide Silva de Souza
Corpo e Escrita:
Linhas e Entrelinhas da Produção de Conhecimento em Sala de Aula
Natal- RN
2008
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Ana Cleide Silva de Souza
Corpo e Escrita:
Linhas e entrelinhas da produção de conhecimento em sala de aula
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Educação.
Orientador:
Prof. Dr. José Pereira de Melo
Natal-RN
2008
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Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Divisão de Serviços Técnicos
Souza, Ana Cleide Silva de.
Corpo e escrita: linhas e entrelinhas da produção de conhecimento em sala de aula / Ana Cleide Silva de
Souza. – Natal, 2008.
151 f.
Orientador: Prof. Dr. José Pereira de Melo.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Sociais Aplicadas. Programa de Pós-Graduação em Educação.
1. Educação - Tese. 2. Corpo - Tese. 3. Escrita - Tese. I. Melo, José Pereira de. II. Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 37 (81) (043.3)
Ana Cleide Silva de Souza
Corpo e Escrita:
Linhas e entrelinhas da produção de conhecimento em sala de aula
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Educação.
Aprovada em__/__/__
Banca Examinadora
Professor Dr. José Pereira de Melo – UFRN (orientador)
Professora Dra. Terezinha Petrúcia da Nóbrega – UFRN
Professora Dra. Maria Isabel Brandão de Souza Mendes – CEFET-RN
Professor Dra. Karenine de Oliveira Porpino- UFRN (suplente)
Dedicatória
Aos alunos(as) que compartilharam comigo de
suas experiências durante toda a trajetória
profissional, inspirando-me a seguir em frente,
(des)construindo certezas e tecendo novos
encontros.
Agradecimentos
momentos em que olhar para trás se faz essencial para que tenhamos uma noção
mais exata do percurso percorrido. Nesse olhar mais cuidadoso percebemos que caminhar
com os próprios pés implica em reconhecer, ao longo do caminho galgado, vestígios de
pegadas que uniram-se às nossas nesse caminhar. Umas ainda nítidas em nossa memória pela
frescura do tempo ou pelas marcas ainda impressas em nosso corpo; outras esmaecidas pela
poeira do tempo e algumas invisíveis, inalcançáveis aos olhos biológicos. Porém, cada uma
delas, fora, ao seu momento, fundamental para a concretização do caminho trilhado.
Neste momento, não poderia deixar de agradecer a todos aqueles cujos vestígios
encontram-se impregnados em meu corpo como marcas de mais um sonho que realizo.
Primeiramente a Deus, esta força que se materializa em cada ato da minha existência;
Aos meus pais, Belarmino Gomes da Silva (in memorian) e Maria das Graças Lima da
Silva, meus primeiros mestres da escola da vida, pelo amor e apoio incondicional, pelas
adversidades corajosamente enfrentadas para garantir cada dia em que estivemos, eu e meu
irmãos, presentes na escola;
Aos meus irmãos, por acreditarem numa capacidade que busco corresponder;
Aos três homens da minha vida, José Maria, Bruno Henrique e Ricardo Luan, a quem
tenho sacrificado com minha ausência, para dar conta dos compromissos acadêmicos.
Agradeço o carinho, a confiança, a compreensão pelos inúmeros momentos em que
compartilhamos, não só das alegrias, mas, acima de tudo, das explosões emocionais, que só os
mais íntimos são capazes de compreender;
Aos companheiros educadores, em especial os da Escola Amadeu Araújo, junto aos
quais tenho provado dos sabores e dissabores dessa profissão tão desafiadora quanto
apaixonante;
A todos os professores presentes em minha formação, cuja presença foi imprescindível
para dar sentido ao meu fazer;
Aos educadores da Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, por compartilhar dos seus saberes, em especial á Terezinha Petrúcia da
Nóbrega e José Pereira de Melo, meus orientadores da Especialização e do Mestrado, e os
leitores que estiveram comigo durante o processo de construção desse trabalho: Marly
Amarilha e Karenine Porpino, aos quais aprendi a admirar. A vocês, gostaria de expressar
todo carinho e respeito enquanto profissionais e seres humanos, pela coragem de compartilhar
conosco de suas potencialidades, mas também seus limites; pela capacidade de incluir a
diversidade, transformando em ato o que, na maioria das vezes, é feito em discurso e ainda
pelo testemunho de que é possível fazer ciência sem deixar de ser gente ou de demonstrar
sensibilidade. Agradeço pela oportunidade de fazer parte do GEPEC Grupo de Estudos e
Pesquisa Corpo e Cultura do Movimento e pela rica experiência vivenciada através do Núcleo
de Formação Continuada para Professores de Artes e Educação Física – PAIDÉIA.
Meus agradecimentos aos companheiros de Curso, em especial Pádua, Everaldo e
Edna, pelo apoio mútuo e Hostina, Paula e Ana Ferreira, pelo companheirismo e os momentos
de trocas que, não se limitaram aos assuntos acadêmicos.
Enfim aos alunos que se fizeram presentes em minha trajetória profissional, junto aos
quais teci construções e desconstruções que me fizeram enveredar pelos caminhos que hoje
percorro.
A todos que citei ou deixei de citar, o meu muito obrigado.
Somos muitos milhões
de homens comuns
E podemos formar uma muralha
Com nossos corpos de sonhos
E margaridas
Ferreira Goulart
Resumo
“CORPO E ESCRITA: Linhas e entrelinhas da produção de conhecimento em sala de aula”
trata-se de uma investigação etnográfica, com base em experiência vivenciada enquanto
educadora da Escola Municipal Professor Amadeu Araújo, localizada na periferia do
município de Natal-RN, a partir da qual são tecidas reflexões acerca dos textos escritos por
alunos que apresentam distorção idade/nível de ensino, em processo de alfabetização.
Apresentamos como objetivo inicial: discutir a produção escrita dos alunos como um processo
corporal, considerando-se o registro das experiências vividas bem como as impressões por
eles apresentadas, durante o processo pedagógico. Optamos inicialmente por uma concepção
fenomenológica, com base em Merleau-Ponty e por uma compreensão de cognição
corporalizada, por compreender o corpo em sua complexidade, como fenômeno que se
concretiza a partir da sua relação com o mundo e com o Outro. Os registros analisados foram
produzidos entre o ano de 2000 e 2005 envolvendo escritos de 106 alunos, constituindo um
universo de 136 textos, a partir do qual, delimitamos um corpus de 27 textos. A relevância
com relação à temática e a recorrência em que foram detectados constituíram-se em elementos
que possibilitaram uma sistematização metodológica, definindo-se as seguintes unidades de
análise: Corpo, escrita e cotidiano; corpo, escrita e sexualidade; corpo, escrita e fruição
poética; corpo, escrita e outras histórias. Utilizamos como técnicas de pesquisa, a observação
participante, com base nas ações e interações corporais manifestadas durante a experiência; a
análise de documentos que consistiram nos textos dos alunos e em fontes secundárias, dentre
estas, os registros dos diários de classe, relatórios e projetos desenvolvidos, bem como relatos
da minha prática pedagógica, enquanto pesquisadora inserida no processo investigativo. A
experiência desenvolvida evidenciou uma escrita escolar capaz de expressar nuances da
complexidade humana, demonstrando que a aprendizagem se concretiza na ação corporal,
transversalizada pelas diversas formas de linguagem e apontando para a relevância de um
trabalho pedagógico capaz de articular o diálogo entre a escrita e as inscrições corporais dos
alunos, enquanto sujeitos de aprendizagem.
Palavras-chave: Corpo- escrita- educação
Abstract
“Body and writing: Lines and between-lines of production of knowledge in the classroom” it
is an ethnographic research, longitudinal character, based on experience while experienced
educator of the Escola Municipal Professor Amadeu Araújo, located in the city of Natal-RN,
from which are made reflections about texts written by students who have distorted age /
education level, in the process of literacy. Here as initial goal: to discuss the production of
students writing as a process body, considering the record of experiences and the impressions
they have made during the teaching process. We initially by a conception of
phenomenological body, by understanding it in its complexity, a phenomenon that is made
from its relationship with the world and with the Other. The records examined were produced
between the year 2000 and 2005 involving writings of 106 students, constituting a universe of
136 texts, from which, delimited a corpus of 27 texts. The relevance with respect to the theme
and recurrence in which they were detected, were up to elements that allowed a
systematization methodology, defining the following units of analysis: Body, written in
everyday; body, written and sexuality; body, written and enjoyment poetics; body, writing
and other stories. We used the techniques of search, participant observation, based on the
actions and interactions body expressed during the experiment and the analysis of documents
that consisted of students in the texts and secondary sources, among them, the records of daily
class, reports and projects developed, as well as reports of my pedagogical practice, as a
researcher inserted in the investigative process. The experience developed, showed a writing
school able to express nuances of human complexity, showing that learning is made in the
action body, crossed by various forms of language and pointing to the relevance of a
pedagogical work able to articulate the dialogue between the written and registrations body of
the students, as subjects of learning.
Keywords: Body-writing-education
Lista de imagens
Figura 1- Leitura (Óleo sobre Tela) de Antônio Hélio Cabral...............................................11
Figura 2- Pintura produzida pela aluna Renatinha.................................................................27
Figura 3- Personagens do programa Vila Sésamo, em sua versão original...........................32
Figura 4- A professora Ana Maria com Gugu, outro personagem do Programa...................33
Figura 5- Pintura produzida pela aluna Janaína.....................................................................63
Figura 6- Ilustração do texto: “Depoimento de um aluno trabalhador”.................................72
Figura 7- Ilustração deA calcinha de pressão”, realizada por um aluno da turma..............89
Figura 8- Ilustração do texto “A primeira vez” realizada pela aluna Fafá.............................91
Figura 9- Largo do Pelourinho, em Salvador- Bahia...........................................................105
Figura 10-Ilustração realizada pelo aluno Sandro, de uma estrofe referente ao poema....107
Figura 11- Ilustração realizada por um aluno......................................................................107
Figura 12- Desenho produzido pelo aluno Adailton............................................................112
Figura 13- Ilustração do verso: “Pés de coco namorando”,.................................................126
Figura 14- momento do recital em Extremóz-RN...............................................................129
Figura 15- momento do recital em Extremóz-RN...............................................................129
SUMÁRIO
I- REGISTROS NO/DO CORPO: APROXIMAÇÕES COM O TEMA _____________________ 11
II- REVISITANDO O CORPO E REINVENTANDO TRAJETÓRIAS _______________________ 27
PRIMEIROS PASSOS COMO EDUCADORA ______________________________________________________ 44
III- REENCONTRANDO O CORPO ATRAVÉS DA ESCRITA ____________________________ 63
CORPO, ESCRITA E COTIDIANO _____________________________________________________________ 65
CORPO ESCRITA E SEXUALIDADE ___________________________________________________________ 96
IV- REENCANTANDO O CORPO ATRAVÉS DA ESCRITA _____________________________ 112
CORPO, ESCRITA E FRUIÇÃO POÉTICA_______________________________________________________ 113
CORPO, ESCRITA E OUTRAS HISTÓRIAS______________________________________________________ 130
CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________________________ 142
REFERÊNCIAS ______________________________________________________________________ 146
I- REGISTROS NO/DO CORPO:
APROXIMAÇÕES COM O TEMA
A palavra está sempre carregada de
um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial, é assim que
compreendemos as palavras e
reagimos àquelas que despertam em
nós, ressonâncias ideológicas ou
concernentes á vida.
Bakhtin
Figura 1- Leitura (Óleo sobre Tela) de Antônio Hélio Cabral
12
I- REGISTROS NO/DO CORPO: APROXIMAÇÕES COM O TEMA
A linguagem é inerente a todas as formas de expressão humana. Considerando-se o
corpo como condição primeira de vida e de aprendizagem, poderíamos afirmar que toda
linguagem, seja ela oral, escrita, artística ou gestual, é corporal, pois o corpo, na sua
complexidade, é capaz de produzir e utilizar-se desse conhecimento em benefício próprio e
dos outros corpos, enquanto sua extensão.
Porém, o século XXI, marcado pelos avanços do mundo globalizado, pela evolução
técnico-científica, desencadeando conquistas espetaculares, em direção ao micro e ao macro,
evidencia, ao mesmo tempo, as marcas de uma sociedade permeada pela desigualdade e pela
fragmentação do conhecimento, refletindo-se também, numa concepção fragmentada de
corpo.
Constatamos que a evolução científica e os conhecimentos atuais não representam a
garantia de qualidade de vida, haja vista que grande parte da humanidade não tem acesso aos
meios capazes de satisfazer suas necessidades básicas como saúde, segurança e educação
(DELORS, 2001). Nesse panorama contraditório, chamamos a atenção para o contexto
educacional, centrando nosso foco de investigação para o acesso à linguagem escrita
considerando-se que todas as conquistas alcançadas pela humanidade não foram capazes de
apagar sua relevância, de forma que “ser um usuário competente da escrita é cada vez mais,
condição para a efetiva participação social” (BRASIL, 1997, p.22).
A compreensão de escrita que apresento delineia-se enquanto representação das
relações estabelecidas entre o humano e o mundo, enquanto possibilidade que ultrapassa sua
forma institucionalizada. Lembrando que a institucionalização da linguagem, apesar de
necessária, revela-se, algumas vezes, como uma ameaça, no sentido de destituir o corpo de
sua corporeidade, conforme alerta Baitelo Júnior (2001).
Refiro-me à linguagem como possibilidade de um reencontro com a história de nossos
próprios corpos, estabelecendo uma relação entre o ontem e o hoje, como síntese inacabada de
nossa existência. Neste contexto, a escrita imprime marcas profundamente significativas,
manifestando-se enquanto registros do corpo e estabelecendo-se enquanto marco que situa a
História da Humanidade em antes e depois da sua criação.
Para Paulo Freire (1996), a história da humanidade confunde-se com história da
linguagem, esclarecendo-nos que, ao inventar a existência com os materiais que a vida lhes
13
oferece, homens e mulheres inventaram ou descobriram a possibilidade que representa
necessariamente a liberdade, e que tudo isso foi possível através da linguagem. Segundo o
autor, a construção social da linguagem se constitui a partir do momento em que homens e
mulheres com as mãos soltas, libertadas, trabalhando instrumentos para a caça, utilizavam o
corpo e aumentavam assim, seu campo de ação, remetendo-nos a compreensão de que a
linguagem se materializa por meio da ação corporal.
Nesta perspectiva, a linguagem escrita não surge na história como um conjunto de
sinais prontos e acabados, mas como uma necessidade social, vinculada diretamente à história
dos corpos, como meio para registrar suas crenças, seus valores, sua religiosidade, a produção
de seus alimentos e de outras formas de sobrevivência, enfim, como registro das formas de ser
no mundo.
Segundo Giovanne e Junqueira (1996), o sistema de escrita vai sendo aperfeiçoado na
medida em que as relações sociais vão tornando-se cada vez mais complexas. Refletindo
acerca desse processo de construção, no qual o corpo e linguagem se confundem, onde ambos
seguem juntos, revelando e sendo revelados, podemos considerar que corpo e escrita
assumem as condições de sujeitos e objetos, onde criador e criatura influenciam-se
mutuamente. Ou seja, se por um lado a escrita dependeu da ação humana para ser criada, por
outro, é capaz de contribuir para a conquista de mudanças sociais e pessoais em benefício do
seu criador, proporcionando caminhos para sua participação ativa. Delineando-se enquanto
representação simbólica das relações desse corpo polissêmico no mundo, pode desencadear
experiências sensíveis, que revelam, criam e recriam sentimentos, desejos, emoções e formas
de agir e de viver.
A palavra, seja ela oral ou escrita marca definitivamente o encontro entre os corpos
enquanto humanos, pois:
Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da
palavra defino-me em relação ao outro. Isto é, em última análise, em relação
à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim, numa extremidade, na outra apóia-se
sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor com o
interlocutor (BAKHTIN, 1997, p. 113).
O corpo é linguagem e produtor de linguagem e nessa articulação entre o ser e o fazer,
transforma, transformando-se. Uma vez registrada em nosso corpo, a linguagem, assim como
nosso comportamento, nossos valores, nossa forma de andar, de vestir, de pensar, não mais se
desvincula de uma dimensão social.
14
Compartilho com Melo (2005), a compreensão de que o corpo é o registro vivo de
nossa história, enquanto humanos. E que essa história encontra-se impregnada das relações
sociais, influenciando fortemente o nosso modo de ser e agir no mundo, desde nossos
primeiros movimentos.
Remetendo-me a história, recorro a Soares (2001), que revela os diversos
mecanismos utilizados como forma de modelar os corpos, procurando conformá-los aos
padrões lineares, de acordo com cada sociedade, subestimando sua capacidade criadora.
Incluo nesse contexto, práticas educacionais que têm negligenciado um aprendizado da escrita
com base na ação corporal dos alunos, acerca do que nos lembra Maturana (2001), com base
em estudos desenvolvidos sobre o cérebro, ao afirmar que “nossa dinâmica neuronal e nossa
corporeidade são subutilizadas pelas lógicas lineares” desenvolvidas ainda na escola.
“Corpo e escrita: linhas e entrelinhas da produção de conhecimento em sala de aula”
trata-se de uma pesquisa etnográfica, de caráter longitudinal que apresenta como objeto de
estudo a relação corpo e escrita no contexto escolar, evidenciada a partir de registros
produzidos pelos alunos de uma escola pública de Natal-RN.
Procuro, dessa forma, contribuir para a compreensão de uma construção escrita em
função do corpo. Compreendendo-o, não como instrumento, mas como condição essencial de
conhecimento e de vida, convidando o leitor para juntos dialogarmos com os interlocutores
que dão sustentação teórica a temática, apontando a escrita como uma linguagem corporal,
capaz de “ultrapassar o enunciado em direção ao que ele significa” (MERLEAU-PONTY,
2002, p. 132).
Remeto-me a um corpo polissêmico que, lembrando uma tela viva, revela-se entre a
presença e a ausência de suas cores, como algo sempre inédito, inspirando tantas
possibilidades quanto o que possa emergir do diálogo entre seus próprios inscritos e a
inscrição corporal de quem o aprecia.
Outro dia, lendo “A colcha de retalhos”, uma obra literária de Nye e Conceil Silva
(1995), na qual os personagens revivem momentos de suas vidas a partir dos retalhos que
constituem o todo, onde cada um deles remete a uma lembrança, pude refletir sobre esse
corpo. Compará-lo também a uma grande colcha. De retalhos pequenos e grandes; pretos,
brancos; coloridos e desbotados; com flores ou listras; de diversas texturas e tamanhos;
guardiões de segredos e histórias, tecidas no tempo, pela linha da vida, onde o ontem e o hoje
se complementam na possibilidade de um amanhã. Uma colcha, cujos sentidos vão além das
aparências.
15
O corpo e suas linguagens, como fonte de inspiração é capaz de afetar outros corpos,
assim é comparado por Merleau-Ponty (2002) a uma obra de arte, que se revela entre o dito e
não dito, o visível e o invisível. Tal qual um quadro, onde o artista ao dominar as cores e o
pincel, ora se deixa levar por eles, em cada gesto, em cada ritmo, que jamais será repetido na
mesma seqüência, ou na mesma combinação.
Trata-se de um corpo, cuja ação no mundo e junto ao outro, se faz fundamental para
sua realização. Um corpo cujo olhar reflete cheiros, texturas e sentimentos e que, em sua
totalidade está sempre em busca de um sentido pleno. Porém, ambiguamente, assim como na
escrita, o encontro com a plenitude o condenaria ao próprio fim (MERLEAU-PONTY, 2002).
Em sua relação com a linguagem, o corpo pode ser compreendido enquanto mídia
primária, conforme sugere Baitelo Júnior (2001), com base em Harry Pross, considerando-se
que o processo comunicativo implica na presença de um corpo no início e outro no final.
Nessa perspectiva o corpo é linguagem, ao mesmo tempo em que produz as inúmeras
linguagens com as quais se aproxima de outros seres humanos. Esse processo tem início
mesmo antes do nascimento quando o feto reage à voz da mãe e, logo em seguida, produzindo
sinais e indícios para interagir com o mundo, seja através do choro, mudando o ritmo da
respiração, sugando, etc.
As linguagens dos sinais e dos indícios se transformam em complexas
linguagens de gestos, micro e macrogestos, elaboração e encadeamento de
sons, em linguagem verbal, em complexos dialetos posturais e
comportamentais, em símbolos e complexos simbólicos, que por sua vez, se
ordenam em grandes complexos culturais (BAITELO JÚNIOR, 2001, p. 9-
10).
Dentre estas complexas linguagens, insere-se a escrita, linguagem corporal que não se
resume ao processo de codificação. Enquanto elemento simbólico, e, portanto, vinculado aos
processos sócio-culturais, a escrita pode representar um instrumento de libertação ou
aprisionamento do corpo. No contexto escolar, o processo de alfabetização tem se constituído
em um desafio gigantesco, especialmente quando consideramos a ampliação do processo de
aprendizagem de ler e escrever (alfabetização), para o uso desse conhecimento nas diferentes
situações sociais, o que implica num processo de letramento.
A esse respeito podemos recorrer a Magna Soares (2004) para esclarecer algumas
diferenças básicas entre o que se considera enquanto uma pessoa alfabetizada e uma letrada.
Por alfabetizado entende-se aquele que aprendeu a ler e escrever independente do uso social
16
que faz deste aprendizado e letrado refere-se àquele que faz uso desse conhecimento em
práticas sociais. Ou seja, por letramento podemos compreender:
O estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura
e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com as
diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham em nossa vida.
Enfim, letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas
numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita (SOARES,
2004, p. 44).
É bem verdade que este conceito varia de acordo com o contexto social, político e
cultural, conforme defende a autora, mas, ainda corroborando com a mesma, faz-se relevante
ressaltar, que independente do contexto, o letramento, que não acontece fora da ação corporal,
que por sua vez encontra-se vinculada a uma dimensão social, é compreendido enquanto um
direito humano.
Contextualizada a relação corpo e escrita, objeto de estudo dessa dissertação, passo a
compartilhar um pouco das inquietações que me trouxeram até aqui, partindo do contexto em
que foi gestada.
As histórias, repletas de sentidos, inscritas em meu próprio corpo vivido, como aluna,
na experiência profissional, enquanto educadora e, acima de tudo, ser humano, contribuíram,
de forma relevante, para a escolha do objeto estudado.
Tenho constatado nessa trajetória profissional, iniciada oficialmente no ano de 1997,
uma carência de sensibilidade com relação aos corpos dos alunos cujas experiências
vivenciadas ao longo da vida têm sido negligenciada, quando representam uma riqueza de
possibilidades para a prática pedagógica do educador, para o campo da pesquisa educacional
e, principalmente, para eles próprios, enquanto sujeitos de aprendizagem e seres humanos.
Entenda-se humano no sentido de identificação, não pelos fatores biogenéticos, mas, como
seres sociais, inseridos num contexto histórico, conforme sugere Resende (1990). E educação
como um fenômeno da aprendizagem humano-significativa da cultura, considerada pelo
mesmo autor, como aquela que busca o sentido que se articula no símbolo, procurando
apreendê-lo através das diversas relações semânticas que se estabelecem na estrutura
simbólica e a partir dela.
A escrita enquanto linguagem corporal tem me suscitando questionamentos e reflexões
sobre minha própria prática educativa em sala de aula. No início da carreira contentava-me ao
ver os alunos decodificando os signos, mas logo percebi as limitações desse processo. Tenho
17
tentado superar minhas próprias limitações, enquanto educadora, procurando proporcionar um
encontro entre corpo e escrita, contribuindo para que o aluno possa apropriar-se dos signos,
códigos e normas gramaticais, como instrumento capaz de ampliar seu campo de ação e suas
interpretações, numa relação que considere o corpo como condição.
Tal preocupação possibilitou o exercício de uma prática pedagógica que venho
desenvolvendo na Escola Municipal Professor Amadeu Araújo, campo empírico dessa
investigação, desde o ano de 1989. Trata-se de um trabalho pedagógico voltado para o
desenvolvimento da leitura e da escrita, orientando a produção de textos pelos alunos das
séries iniciais do Ensino Fundamental e Salas de Aceleração.
As turmas de Aceleração foram criadas, amparadas pelo artigo 16, da Resolução de
número 001/2001CME/SME (Secretaria Municipal de Natal-RN), para atender as
necessidades dos alunos do ensino fundamental, que apresentam defasagem entre sua faixa
etária e o nível de ensino correspondente. Neste sentido, a Aceleração constitui-se enquanto
uma modalidade do ensino fundamental, envolvendo alunos das séries iniciais com faixa
etária compreendida entre onze e catorze anos de idade, que podem retornar, após um, ou dois
anos (excepcionalmente), à escolarização regular.
Independentemente da implantação das salas de Aceleração, tenho organizado, junto
aos alunos, nas últimas décadas, uma coletânea de registros, cujos textos são testemunhos de
histórias vividas, envolvendo diferentes gêneros textuais, destacando-se os textos
autobiográficos, as narrativas de vida, os poemas, dentre outros.
Cada exemplar destes registros guarda memórias de um longo processo de
construção coletiva. Uma trajetória revestida de sonhos, angústias, ansiedades, de avanços e
retrocessos, envolvendo relações de afetividade, que se estabelecem entre o corpo e suas
linguagens e entre os sujeitos envolvidos, incluindo o encontro entre professor e alunos. A
esse respeito, remeto-me a Resende (1990, p. 14), compartilhando com ele, a afirmação de
que “a intenção pedagógica pode ser vivida como uma experiência de encontro entre o
educador e o educando”.
É considerando essa possibilidade de encontro, seja entre os sujeitos da ação ou entre
estes e seus escritos, que desenvolvemos esse processo. Cada livro é produzido por uma turma
diferente, no decorrer de um ano letivo, porém os textos remetem a histórias que ultrapassam
este tempo cronológico, representando o registro de um tempo histórico que revela corpos
inseridos num contexto real. Cada evento de lançamento culmina com apresentações culturais
desenvolvidas pelos próprios autores e com alguns poucos convidados (alguns pais e
18
comunidade escolar), evidenciando que a linguagem escrita, assim como as demais
linguagens, se entrelaça na realidade corporal, não admitindo fragmentação entre elas.
Após o lançamento, com poucos exemplares, organizados com recursos próprios e da
Escola, os escritos são socializados para outros alunos como referências e incentivo para
novos trabalhos.
Na busca de uma melhor compreensão e de fundamentação para a ação pedagógica,
ingressei, no ano de 2002, numa pós-graduação no Curso de Pedagogia do Movimento,
oferecido pelo Departamento de Educação Física da Universidade do Rio Grande do Norte,
em nível de Especialização, que suscitou novos investimentos na temática.
O Curso contribuiu, de forma relevante, na construção de uma ação reflexiva. De
forma que, nos últimos anos a produção dos alunos tem sido respaldada teoricamente,
apontando como principal foco de preocupação a relação entre os registros do corpo e suas
experiências vividas, buscando construir um elo de identidade entre corpo e escrita. Dessa
forma, procura-se, não apenas registrar a escrita desses corpos, mas também ouvir sua fala.
O diálogo com os diversos interlocutores que abordam a temática, o contato com os
professores, articulados às minhas preocupações pedagógicas em torno de uma aprendizagem
capaz de considerar o aluno enquanto corpo, tendo em vista sua capacidade de criar e recriar o
mundo, na sua relação com a representação simbólica do mesmo, conforme defende Nóbrega
(2005), constituíram-se num campo fértil para os primeiros investimentos.
Durante o Curso de Especialização em Pedagogia do Movimento, desenvolvi “A
escrita dos corpos”, uma investigação com base em experiência desenvolvida numa sala de
Aceleração, apontando a produção escrita dos alunos e minha própria prática pedagógica,
como objeto de estudo.
Destaco a contribuição dos professores Terezinha Petrúcia da Nóbrega, (orientadora
da monografia) e José Pereira de Melo (orientador dessa dissertação e membro da banca
examinadora da monografia), que, em contato com o repertório escrito pelos alunos, ao longo
da minha experiência, incentivaram-me a dar continuidade à investigação, desta vez, com
base nesses registros.
Ressalto ainda o GEPEC, (Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento) do
Departamento de Educação Física da UFRN, que desenvolve estudos científicos, no campo
da epistemologia, da ão pedagógica e da estética, como referencial relevante para a
realização desta pesquisa. Pois, esse grupo possibilitou o encontro com diversos autores, que
dialogam entre diferentes áreas do conhecimento, defendendo uma compreensão de corpo em
sua complexidade e subjetividade.
19
Nesta dissertação apresento reflexões sobre a produção escrita dos alunos, com os
quais tive a oportunidade de conviver entre os anos de 2000 e 2005. Apontando os registros
do corpo como elemento desencadeador de leituras de mundo.
Os alunos-autores são, em sua maioria, adolescentes entre 11 e até 19 anos de idade,
cuja trajetória escolar é marcada por uma seqüência de “reprovações”, trazendo em seus
corpos as marcas da exclusão social, bem como uma rica experiência de vida, que quase
sempre é excluída na ação pedagógica.
No caso dos sujeitos desta investigação, podemos destacar alunos que migraram do
interior do estado com suas famílias em busca de melhores condições de vida, sendo filhos de
pais desempregados ou que trabalham na informalidade, observando-se entre eles, um baixo
nível de escolaridade.
Alguns desses alunos desenvolvem atividades remuneradas para contribuir no
orçamento familiar, chegando, alguns deles, a abandonar a escola durante o processo letivo.
Em sua maioria conta apenas com a presença de um dos pais, geralmente a mãe, e reside em
loteamentos de origem irregular, localizados nos arredores do Conjunto Habitacional Nova
Natal, zona Norte do Município de Natal-RN.
Um grupo significativo desses alunos depende dos programas assistencialistas do
governo federal e da precária estrutura dos serviços públicos para atender suas necessidades
básicas como, saúde, transporte, segurança e educação. É comum nos depararmos com
carroças, burros e bicicletas que transportam alguns alunos para a escola. Enquanto outros
precisam percorrer, diariamente, a pé, um percurso longo, como os que residem no município
de Extremóz, que faz divisa com Natal.
Ler e escrever, para esses alunos, representa um dos muitos desafios que precisam
enfrentar, dependendo da escola como um dos poucos lugares onde têm acesso ao
aprendizado da leitura e da escrita. Neste sentido, remeto-me a Guedes e Souza (2003, p. 137)
ao afirmarem que “ensinar a ler e escrever é levar o aluno a reconhecer a necessidade de
aprender a ler tudo que foi escrito” desde o seu contexto imediato (letreiros de ruas, nomes
de lojas, itinerário de ônibus...) às diversas modalidades textuais. Porém esse desejo,
geralmente permanece adormecido, frente às práticas pedagógicas que não acreditam na
escrita como elemento cultural e de produção de conhecimento, limitando-se a fazer do
espaço escolar um reprodutor de padrões sistematizados, com referência numa minoria
distante da realidade vivenciada pelos alunos. Observa-se assim uma grande preocupação com
a técnica e pouco com o que pode ser vivido a partir dela.
20
Através dessa pesquisa, procuro desvelar nuances desses corpos e histórias que ecoam
através dos seus escritos, estabelecendo as relações que se manifestam entre registros no
corpo (experiências vividas) e os registros do corpo (textos dos alunos), tecendo reflexões
acerca do tema.
Nesta busca reflexiva transito entre diversas áreas do conhecimento, considerando
estudos desenvolvidos pela pedagogia, filosofia, psicologia, neurobiologia, Educação Física,
literatura, dentre outras, buscando um diálogo entre elas, considerando-se que o ser humano
não se constitui de fragmentos que se justapõem, mas como uma totalidade, cujos sentidos
dependem um olhar tátil, de reflexões entremeadas de cheiros, de cores, de sonhos, desejos,
de dor... enfim, do encontro que se estabelece entre o corpo e o mundo, presente nos diversos
conhecimentos, delineando-se, assim, um caráter transdisciplinar de investigação.
Em levantamento bibliográfico acerca da temática pude registrar inúmeras obras e
estudos que abordam o corpo, estabelecendo relações com o processo de
ensino/aprendizagem, embora o sentido de aprendizagem varie de acordo com cada
abordagem. Nossa intenção não está direcionada a uma pesquisa bibliográfica, porém fica
evidente que a temática não se constitui numa preocupação recente, considerando-se que a
mesma foi foco de reflexão em séculos passados a exemplo do pensador humanista
renascentista, Erasmo de Roterdão, que viveu entre os séculos XV e XVI e criticava a
dualidade entre a ação pedagógica e a vida real, ou seja, a distância que separa a escola e o
mundo vivido pela criança, sugerindo uma relação dialógica entre educador e educando, em
lugar do castigo que, segundo o autor, é a prova da incapacidade do professor (ERASMO,
1996).
Montaigne, no século XVI, tece críticas acerca de uma educação puramente livresca
e defende um processo de aprendizagem que envolva a convivência em diferentes contextos
sociais, argumentando que cada um, a sua maneira, pode ensinar coisas interessantes.
Podemos perceber a relevância destinada à experiência vivida, principalmente ao defender
que é observando e convivendo com os outros que o aluno pode escolher para si o que julgar
melhor. “Que apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ela (a criança) escolha se
puder. E se não puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião”
(MONTAIGNE, 2000, p.152). O autor critica uma aprendizagem autoritária que pode ser
resumida na seguinte afirmação: “Tanto nos oprimiram com as andadeiras que não temos
movimentos livres” (MONTAIGNE, 2000, p.152).
No século XVII podemos destacar o pensamento filosófico do holandês, Espinosa,
retomado hoje por Antônio Damásio, neurocientista que desenvolve pesquisas, estabelecendo
21
relações com o pensamento espinosiano. Citado por Damásio (2004, p. 224-227), Espinosa,
afirma que “o objeto da idéia que constitui a mente humana é o corpo [...] A mente humana é
capaz de perceber um grande número de coisas, e fá-lo, na proporção em que o seu corpo é
capaz de receber um grande número de informações”.
Porém é no século XX, que vamos encontrar em Merleau-Ponty, a mais expressiva
contribuição epistemológica, fundamentando investigações voltadas para “novos olhares
sobre o corpo e o fazer humano” (NÓBREGA, 2000, p. 97). No conjunto de suas obras este
filósofo procura unificar corpo e espírito, apontando o corpo como campo de todas as
significações e a presença do outro e do mundo como constituição do mesmo, de modo que
todo corpo é compreendido enquanto uma construção social, mas repleta de subjetividade.
Nesta relação com o mundo ou com as coisas, cada corpo é ao mesmo tempo sujeito e objeto
de aprendizagem de forma que
Nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada uma fala ao
nosso corpo e a nossa vida, elas estão revestidas de características humanas
(dóceis, doces, hostis, resistentes) e, inversamente, vivem em nós como
tantos emblemas das condutas que amamos ou que detestamos...
(MERLEAU-PONTY, 2004, p.24).
Segundo a professora Terezinha Petrúcia da Nóbrega, que se dedica, alguns anos,
ao estudo do pensamento do autor
a trajetória de Merleau-Ponty é uma reabilitação do sensível na definição da
ontologia do ser humano e no campo epistemológico, por isso a sua
atualidade em vários domínios do pensamento humano, como nas Ciências
Cognitivas, na Sociologia, na Epistemologia, na Educação, entre outras
áreas do conhecimento. Merleau-Ponty busca o olhar expressivo no campo
da estética, compreendendo como esfera do sensível e coextensivo ao
corpo” , (NÓBREGA, 2000, P.97).
Apesar de não ter desenvolvido estudos específicos sobre a relação corpo e escrita no
contexto escolar, Merleau-Ponty abre possibilidade para se pensar a escrita como
representação corporal, atribuindo à linguagem escrita um valor que ultrapassa sua dimensão
de códigos, para dar-nos acesso além das palavras, buscando um olhar expressivo com relação
ao sensível.
Remetendo ao campo educacional, o autor oferece valiosas contribuições ao priorizar
o mundo das experiências vividas como a base do conhecimento e a linguagem como meio de
22
apreensão do mundo. Oferece assim um referencial que contribui para uma compreensão, no
que se refere à produção escrita como registro do corpo, objeto ainda pouco discutido.
Na busca por artigos referentes à relação corpo e escrita, através da internet,
realizada através do portal da CAPES, entre as teses de doutorado publicadas entre os anos de
1987 à 2004, pude localizar um artigo de Conceição Aparecida Bento do Curso de Psicologia
da USP São Paulo, escrito em 2002 sob o título de “A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de
Lacan”. O mesmo aponta a relação corpo escrita estabelecendo um diálogo com Lacan, com
base numa abordagem psicanalítica. O artigo remete à condição do homem enquanto sujeito e
aponta a linguagem enquanto inscrição do outro nesse sujeito. Aborda alguns conceitos como
significante e significado e a repetição como cerne da busca constante que nos submete à
condição de incompletude.
Segundo o artigo citado, na tentativa de repetir o que foi construído culturalmente,
sempre nos escapa algo que nos mobiliza a uma busca contínua, caracterizando-nos enquanto
seres incompletos. Nesse contexto a escrita representaria o traço que diferencia o homem dos
outros animais. Chamando a atenção que a escrita, segundo o artigo citado, ultrapassa sua
forma convencional, estendendo-se a todas as marcas inscritas pelo homem como forma de
linguagem, como algo significante.
A referência de corpo apresentada no artigo escrito por Conceição Bento enfatiza seu
caráter de incompletude. Nesse ponto, diverge dos autores que respaldam esta pesquisa, que
defendem o corpo numa totalidade construída nas relações sócio-culturais, sem negar nessa
totalidade todas as ambigüidades, contradições e complexidade, bem como sua capacidade de
auto-poiésis que se caracteriza pela sua capacidade de um contínuo reconstruir-se. Neste
sentido, com base em Maturana e Varela (2001), através de um acoplamento estrutural, o
processo do conhecer humano envolve um trabalho conjunto entre o organismo do
conhecedor e o entorno, sendo este conhecer uma ação interpretativa que depende dos
processos históricos recorrentes. Nesta concepção todo corpo refere-se a uma síntese
inacabada conforme defende Merleau-Ponty. Portanto o espaço aberto às novas possibilidades
faz parte dessa totalidade, não permitindo a concepção de um corpo fragmentado ou
incompleto.
Trata-se de um artigo instigante cujas reflexões remetem à temática corpo e escrita,
apontando, porém uma abordagem psicanalítica, ao passo que, nesta dissertação, a relação
corpo/escrita é focalizada no campo pedagógico, tratando-se de uma temática atual, frente às
dificuldades enfrentadas pela escola em garantir o acesso à escrita á grande parte da
população, incluindo aqueles que encontram-se inseridos no sistema de ensino. Segundo
23
dados do SAEB (Sistema de Avaliação do Ensino sico) dos últimos anos, o Rio Grande do
Norte apresenta um dos mais baixos índices de rendimento, no que se refere ao
desenvolvimento da leitura e da escrita, problema que se estende a quase todos os estados do
Brasil, evidenciando-se como um dos maiores desafios educacionais.
Conforme explicitado, esta investigação caracteriza-se como uma etnografia
pedagógica. Lembrando que etnografia é um termo derivado da antropologia, traduzindo-se
etimologicamente como estudo das etnias e significa uma análise do modo de vida de uma
raça ou de um grupo de indivíduos, mediante a descrição e a observação, considerando os
mais diversos aspectos do grupo. Como investigação pedagógica é marcada pelo seu caráter
social tendo a educação como objeto de estudo e o educador como principal pesquisador
inserido no contexto da pesquisa (ANDRÉ, 2000).
A opção por uma pesquisa do tipo etnográfica justifica-se pela minha inserção,
enquanto investigadora, no contexto empírico da mesma, tratando-se de um estudo sobre a
produção escrita pelos educandos, a partir de uma prática pedagógica, por mim desenvolvida,
junto a estes alunos, sujeitos de investigação, que apresentam distorção idade/nível de ensino.
Apresento como objetivo inicial: Discutir a produção escrita dos alunos como um
processo corporal, considerando-se o registro da experiência vivida bem como as impressões
por eles apresentadas, apontando caminhos que evidenciem o corpo como condição de escrita.
As interpretações apresentadas são frutos das reflexões sobre o fenômeno (relação
corpo/escrita) norteadas a partir das seguintes questões de estudo:
· Quais são os elementos presentes nos textos dos alunos que nos permitem afirmar a
relação entre corpo e escrita?
· Que corpo (s) se evidencia(m) com base nos elementos identificados nos textos dos
alunos?
· É possível desenvolver um trabalho pedagógico considerando-se os registros do
corpo e suas experiências, como condição básica para a aprendizagem da escrita?
Para tal, aponto como referencial uma cognição corporalizada, o que tem sido um dos
maiores desafios postos pela ciência cognitiva, segundo a qual “o sujeito conhecedor e o
objeto conhecido, a mente e o mundo, estão em relação um com o outro por meio de uma
especificação mútua ou co-originação dependente”, (VARELA, 2001). Nesta concepção a
cognição, conforme ressalta Varela (2003), não refere-se à representação de um mundo
(pré)determinado a partir de uma mente (pré)concebida, mas, ao contrário, trata-se da atuação
mútua de um mundo e uma mente, com base numa história da diversidade de ações
desempenhadas por um ser no mundo. Neste sentido, o fenômeno do conhecer é
24
compreendido enquanto um todo integrado, não cabendo descontinuidade entre o social, o
humano e suas raízes biológicas, conforme apontam Maturana e Varela (2003). A partir dessa
compreensão podemos afirmar que a aprendizagem diz respeito “à apreensão deste mundo
cultural transformado a partir da relação com o homem, através da vivência corporal deste
homem com o mundo de possibilidade que o cerca”, (ARAÚJO, 2005). No caso desta
investigação, apontaremos a ação pedagógica, atada à história vivida dos alunos, enquanto
uma dessas possibilidades.
Como referencial teórico filosófico, busco respaldo em concepções fenomenológicas,
através de um diálogo com Merleau-Ponty, Nóbrega, Assmann, bem como em educadores
como José Pereira de Melo, Rezende, Paulo Freire, dentre outros que dão sustentação ao
tema. Considerando a escrita enquanto linguagem corporal e o corpo em sua complexidade,
como condição essencial de ser no/com o mundo, ao analisar a produção dos sujeitos dessa
investigação, dialogo com diferentes áreas do conhecimento como a neuro-biologia, a
comunicação, a Educação-Física, a História, a sociologia, dentre outras, que surgem ao longo
das reflexões tecidas.
Para chegar às interpretações tecidas nesta investigação trilhei um caminho
metodológico que foi delineando-se durante o processo, exigindo muitas reflexões, recortes e
opções. Os textos foram produzidos no decorrer da minha trajetória docente, como professora
das séries iniciais e de Salas de Aceleração
1
na Escola Municipal Professor Amadeu Araújo,
portanto os projetos pedagógicos desenvolvidos e que deram origem aos mesmos, não
apresentam vínculo específico com relação à Secretaria Municipal de Ensino de Natal-RN,
nem com a implantação das Salas de Aceleração mas com a prática cotidiana em sala de aula.
Diante a grande quantidade de registros escritos dos alunos, optei pelo universo de
quatro volumes produzidos entre os anos de 2000 e 2005, envolvendo escritos de 106 alunos,
constituídos de 136 textos, incluindo uma variedade de gêneros como poemas, propagandas,
receitas, textos autobiográficos, narrativas reais e ficcionais.
O principal critério para este recorte longitudinal refere-se ao fato de os textos
produzidos a partir do ano 2000, esboçarem, como pano de fundo, uma maior preocupação
pedagógica com relação à história vivida dos alunos.
A partir de uma leitura minuciosa desses textos, procurei identificar elementos
relacionados à variável corpo/escrita, surgindo a necessidade de uma organização didático-
1
Modalidade do Ensino Fundamental, implantada pela Secretaria Municipal de Educação de Natal para atender
alunos com distorção idade/nível de ensino, nas séries iniciais.
25
metodológica que contribuísse para a delimitação do objeto, haja vista a amplitude da
temática para as possíveis interpretações.
A relevância com relação à temática e a recorrência em que foram detectados a partir
das primeiras leituras, constituíram-se em elementos que possibilitaram uma sistematização
metodológica definindo-se as seguintes unidades de análise: Corpo, escrita e cotidiano; corpo,
escrita e sexualidade; corpo, escrita e fruição poética; corpo, escrita e outras histórias.
Definidas as unidades, foi selecionado, do universo de 166 produções, um corpus de
27 textos, considerando-se elementos relacionados à pertinência com cada unidade, a estrutura
textual, o contexto pedagógico em que foram produzidos, a evidência de experiências
estéticas e a identificação de elementos capazes de validar as possíveis interpretações e
reflexões relacionadas à temática. Ressaltando que tais unidades encontram-se definidas
enquanto organização didático-metodológica, considerando-se, pois, que é impossível, na
prática, a fragmentação das mesmas, em se tratando de registros do corpo. Dessa forma alguns
elementos são comuns nas análises das produções que compõem as diferentes unidades.
Foram utilizadas como técnicas de pesquisa, além dos registros escritos dos alunos, a
observação participante, com base nas ações e interações corporais manifestadas durante a
experiência; a análise de documentos como os registros dos diários de classe, relatórios e
projetos desenvolvidos, bem como as memórias da minha prática pedagógica, enquanto
professora pesquisadora, durante o processo de construção dos textos.
O trabalho etnográfico, segundo Cao (1997), caracteriza-se como uma investigação
qualitativa, em que são consideradas as relações subjetivas dos indivíduos e os diversos
aspectos ou fatores relacionados ao contexto educacional, capazes de fundamentar as
interpretações investigativas. Para tal requer uma elaboração teórica e uma análise de
conceitos que ajudem a elucidar a realidade, sendo seu enfoque de acordo com o fundamento
teórico e filosófico assumido pelo investigador, possibilitando a compreensão da realidade
sob diferentes perspectivas.
Assim, as interpretações expostas nessa dissertação evidenciam-se enquanto uma das
diversas possibilidades de se interpretar o fenômeno estudado, sem pretensão de se criar
verdades nem tampouco de esgotar a compreensão defendida, considerando-se as relações
inerentes aos sujeitos da pesquisa no contexto vivenciado.
Neste contexto, as reflexões tecidas revelam-se, sobretudo, a partir das interpretações
dos elementos analisados, com base numa compreensão fenomenológica de corpo e suas
interfaces com o contexto pedagógico, incluindo minhas próprias inscrições corporais,
evidenciando-se assim, na situação estudada, uma estreita relação entre as experiências
26
vividas e o objeto de estudo, conforme se caracteriza este tipo de pesquisa. Nesse sentido a
memória se constitui num elemento cuja presença marca as nuances deste trabalho, pois,
apesar dos registros documentados, muitos dos fatos narrados emergiram a partir de uma
ressignificação de fatos vividos. O que me remete a Clementino de Souza, (2006, p. 101), ao
afirmar que
Diversos questionamentos surgem na dialética entre o pensamento, a
memória e a escrita, os quais estão relacionados à arte de evocar, ao sentido
estabelecido, à investigação sobre si mesmo, construídos pelo sujeito como
um investimento sobre sua história, para ampliar o seu processo de
conhecimento e formação a partir das experiências.
Destaco entre estas experiências, o diálogo (ou monólogo) com meus primeiros
professores e colegas, passeando pelas brincadeiras da infância, incluindo o brincar de ensinar
e revelando um pouco do meu mundo vivido, que se confunde a esta investigação, pois a ação
pedagógica envolve uma relação entre professor e aluno na qual ambos aprendem e ensinam,
na mesma proporção.
O texto dissertativo encontra-se organizado em quatro capítulos. O primeiro,
“Registros no/do corpo: aproximações com o tema”, situa o leitor, introduzindo o contexto da
pesquisa, o objeto de estudo, a caracterização dos sujeitos, as questões norteadoras, os
objetivos, a metodologia e relevância da temática. No segundo capítulo, “Revisitando o corpo
e reinventando trajetórias” discorro sobre minha história enquanto investigadora, tecendo,
através de reencontros com minhas próprias inscrições corporais, nós de significações que se
evidenciam como relevantes, para a compreensão do meu processo de apropriação da escrita.
Em “Reencontrando o corpo através da escrita”, o terceiro capítulo, os textos dos alunos são
analisados com base nas duas primeiras unidades delineadas, sendo elas “Corpo, escrita e
cotidiano” e “Corpo, escrita e sexualidade”. O quarto capítulo: “Reencantando o corpo através
da escrita” as reflexões abordadas referem-se às unidades: “Corpo, escrita e fruição poética” e
“Corpo, escrita e outras histórias”, seguidas das “Considerações finais”, onde procuro amarrar
as interpretações apresentadas, apontando para as intenções futuras, acerca dos novos
investimentos acadêmicos.
Trilhando estes caminhos procuro construir um diálogo significativo, suscitando
novas reflexões no campo educacional, apostando numa possibilidade de construção do
processo de leitura e escrita que permeie as relações existentes no espaço escolar, refletindo a
história de nossos próprios corpos, eternos aprendizes.
27
II- REVISITANDO O CORPO E REINVENTANDO
TRAJETÓRIAS
Lá vou eu pela estrada
Lá vou eu pela estrada
Passa carro e cachorrada
Passa fogo e fumaçada
Passa peixe e peixarada
Passa moto com zuada
Piuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Jana
(aluna da Escola P. Amadeu
Araújo)
Figura 2- Pintura produzida pela aluna Renatinha
28
II- REVISITANDO O CORPO E REINVENTANDO TRAJETÓRIAS
O corpo floresce de mil formas, se desdobra em mil linguagens
simultâneas, diz uma sinfonia de mensagens em cada atitude. E constrói
uma história que não é apenas a história da espécie- mas a engloba-, que
não é apenas a história de seu tempo- mas a abrange, - que não é apenas a
história de seu percurso individual de vida-, mas também a retrata-. Uma
história que não é apenas a memória de um passado, mas também o
espelho de um futuro, com seus sonhos, projetos, utopias, planos, desejos e
aspirações.
(Baitelo Júnior)
Baitelo Júnior (2001) apresenta-nos um corpo que, como condição para ser no
mundo, insere-se a ele. Um corpo que, segundo Merleau-Ponty (1999), encontra-se atado ao
mundo em que vive e que guarda em sua subjetividade, outros tempos e muitas histórias.
Trilhar os caminhos do meu próprio corpo, nesse momento, delineia-se enquanto uma
forma de buscar nos registros inscritos, vestígios da relação corpo/escrita, recuperando
elementos que apontem para a subjetividade humana que emerge entre a diversidade e as
adversidades vividas nos diferentes papéis sociais.
Nessa perspectiva, procuro refletir sobre as diferentes falas que ecoam a partir da
minha própria experiência, das minhas relações com outros, tentando recuperar histórias que,
nessa caminhada, entrelaçam-se a minha, evidenciando o meu papel, enquanto pesquisadora
inserida no contexto de uma investigação etnográfica. Retomando a compreensão de
Clementino de Souza (2006) podemos ressaltar que o tempo instala-se nas vivências
circunscritas em momentos, de forma que tempo é memória e a memória inscreve-se
enquanto uma construção social e coletiva entremeada de representações que emergem da
inserção do sujeito no meio. Neste sentido, ao citar Lorrosa, Souza, (2006, p. 104) afirma que
recordar “não é apenas a presença do passado. Não é uma pista ou um rastro, que podemos
olhar e ordenar como se observa um álbum de fotos. A recordação implica em imaginação e
composição, implica um certo sentido do que somos, implica habilidade narrativa.” Assim
sendo, a narrativa autobiográfica é escrita num tempo que permite deslocamento e conexões,
possibilitando ao sujeito a mobilização de uma tomada de consciência que emerge do
conhecimento de si e das dimensões intuitivas, pessoais, políticas, impostas pelo mergulho
interior, remetendo-o a constantes desafios em relação às suas experiências e às posições
tomadas.
29
Adentrar na relação corpo/escrita (objeto dessa dissertação), procurando compreender
os sentidos da ação pedagógica, considerando os humanos nela envolvidos, implica também
em tentar desvelar alguns momentos da minha própria história vivida. Pois, como não poderia
deixar de ser, esta investigação emerge entre conflitos e inquietações inscritos no meu próprio
corpo e gestados nas/das experiências vividas entre a condição de aluna, educadora e ser
humano, cuja complexidade não se esgota no papel de pesquisadora.
Assim considerado, remexer no meu baú de recordações e reinventar minha própria
trajetória representa um exercício significativo. Recorro a Manoel de Barros (2003, p.41), em
sua obra “o guardador de águas”, para ressaltar que “uma árvore bem gorjeada, com poucos
segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam”, assim sendo, como corpo inserido
no mundo, entre o papel de árvore e de pássaro, ao revisitar meu corpo, busco identificar
fragmentos dessa relação, considerados relevantes para ressignificar esta pesquisa e construir
novos sentidos.
Recuperar situações por mim vivenciadas e refletir sobre elas não representa acreditar
que a história vivida determina o futuro, mas, uma aposta de que, inseridos no/com o mundo,
somos capazes de enveredar por diferentes caminhos, nos quais se entrecruzam outras
histórias que juntam-se à nossa, influenciando nossos rumos, mas nem sempre determinando-
o, pois sempre novas possibilidades, novas trilhas a serem seguidas e muitas delas
dependem de nossas próprias mãos para serem abertas.
Ao revisitar minha trajetória, reconheço que o guardo em meu corpo as marcas
físicas da palmatória. Carrego nele, algumas cicatrizes pelo constrangimento de ver e
conviver com colegas que eram agredidas pela régua da professora para aprender a ler e a
escrever.
E essas marcas que não atingiram minha pele, mas, afetaram meu corpo por inteiro,
quebraram um pouco do encantamento que tinha pela escola, porém não me fizeram desistir,
nem perder a esperança de um dia poder testemunhar encontros mais prazerosos entre o corpo
e sua escrita, principalmente entre aqueles, que mesmo tendo passado por experiências
desencantadoras, o se deixaram vencer, na tentativa fazer do espaço escolar, uma
possibilidade de reencanto e reencontro com seu próprio corpo.
Acerca dos castigos a que o corpo vem sendo submetido, podemos dialogar com um
grupo significativo de estudiosos, a exemplo de Soares (2001) que trata das formas lineares a
que eram e ainda são submetidos os corpos, em conformidade com cada contexto; de Conrad
Vilanou (2000), com a trajetória do corpo nos diferentes períodos históricos; ou de
Gonçalves(1994), que nos remete a uma aprendizagem sem corpo, considerando-se o estado
30
de imobilidade em que este tem que permanecer na sala de aula; Paulo Freire, (1996), ao
criticar, o que ele denomina de “Educação bancária” remetendo-se à falta de diálogo e à
forma autoritária com que permeia a relação professor/aluno ou Nóbrega (2005) que nos
remete à trajetória do corpo entre sua condição de objeto e de sujeito. Porém, considerando a
relevância desse e de outros autores, tão conhecidos, junto à temática do corpo na
educação, nesse momento, detenho-me a ilustrar a disciplina direcionada ao corpo, a partir de
um trecho que relata muito bem esta realidade:
todos os sentidos eram treinados, fazendo com que cada um e cada uma
conhecesse os sons, os cheiros, e os sabores “bons” e decentes, e rejeitasse
os indecentes; aprendesse o que, a quem, e como tocar (ou na maior parte
das vezes não tocar); fazendo com que tivéssemos algumas habilidades e
não outras...(Fontana, 2001, p.43).
Este era o panorama que marcava meus primeiros anos de escolarização, no início da
década de 1970, inicialmente em Goianinha-RN, onde iniciei meu processo de alfabetização e
logo após no Município de Ceará-Mirim, onde ingressei no primeiro Grupo Escolar.
No contexto educacional, esse “treinamento” ao qual se refere Fontana, era
acompanhado por alguns recursos repressivos ou de controle, como o uso da palmatória (ou a
régua), ou de situações constrangedoras a que éramos submetidos. Dentre estes, cheguei a
presenciar algumas ações como: obrigar o aluno a grafar, dezenas ou centenas de vezes, uma
palavra ou texto escrito, cuja ortografia não estivesse correta; manter o aluno imobilizado por
determinado tempo em lugar estratégico da sala, exposto de forma constrangedora diante da
turma, ou segregado do grupo, caso o comportamento ou habilidades não correspondessem
aos padrões pré-estabelecidos; colocar orelhas de burro (confeccionadas com papel) na cabeça
do aluno que errasse a resposta esperada pela professora. Lembrando que além das orelhas a
“vitima” também era homenageada com um coral, em cujos versinhos era reforçada sua
condição de “burro”. Não consigo lembrar exatamente dos versos que acompanhavam a
“macabra” melodia, mas existe uma versão mais atualizada dos mesmos, ainda presente em
algumas situações escolares, onde o aluno é ridicularizado pelos colegas e pela professora,
numa abordagem mais próxima da ludicidade. A estrofe é a seguinte: “Não sabe, não sabe!/
Vai ter que aprender/ Orelhas de burro/ Cabeça de ET.
Ainda lembro do olhar aterrorizado de uma das minhas irmãs, ao relatar que na sua
escola, localizada em Ceará-Mirim-RN, havia um quarto escuro para onde os alunos eram
ameaçados a ser encaminhados, caso não obedecesse às regras de disciplina. Não bastasse a
31
escuridão, os alunos “condenados” ainda contariam com a companhia de uma caveira. Na
verdade, a fonte de pavor tratava-se ou deveria tratar-se de um esqueleto humano, ou seja, de
um material didático, cuja finalidade fora redirecionada. Ainda lá, nessa mesma escola, na
qual cheguei a trabalhar anos depois, havia a figura de um dentista, cujo atendimento, em
nada delicado, permeava o pesadelo dos alunos “desobedientes”, que não raramente, eram
ameaçados de receberem o bizarro tratamento dentário. Dizem que sua fama espalhou-se após
ter provocado o deslocamento da mandíbula de um aluno, forçando-o a abrir a boca, durante
um tratamento dentário. Eu mesma tive a oportunidade de sentar em sua famosa cadeira,
quando criança, mas consegui abrir, “espontaneamente” a boca, evitando maiores
constrangimentos.
Nos meus primeiros anos de escolaridade poderíamos até mesmo ser banido do
contexto escolar, pois poderíamos freqüentar a mesma série (nível de ensino), por, no
máximo, dois anos, numa mesma instituição, o que era regularizado legalmente.
A alfabetização seguia um ritual, através do qual se memorizava uma letra de cada
vez. A mesma lógica referia-se às sílabas, às palavras, aos cálculos, sempre de forma linear e
cumulativa. A fragmentação e a forma mecanizada que caracterizava o ensino da escrita e dos
demais conteúdos escolares, estendia-se ao tratamento relacionado ao corpo, refletindo o
contexto social, político e econômico que marcava o desenvolvimento industrial e o Regime
militar, vividos naquele momento histórico.
Entretanto, ressignificando os caminhos e descaminhos traçados pela história do meu
corpo, posso afirmar que maiores que a cicatrizes registradas, que me fizeram sofrer junto aos
meus companheiros, são as doces lembranças que hoje tenho oportunidade de reviver,
atribuindo-lhes novos significados.
Refiro-me aos momentos em que, ainda criança, entre o quintal da minha casa, sobre
as árvores ou embaixo delas; pelejando entre a fumaça e a chama da lamparina; ou ainda sob a
luz de um poste, récem-instalado próximo à casa onde morava, em Ceará-Mirim/RN, me
pegava na desafiadora tarefa de decodificar as letras, interpretar as palavras, decifrar seus
segredos. Pouco a pouco podia misturar-me a elas, transformá-las em texto, reinventar a vida.
Viajava a cada descoberta. A cada novo significado forjava-se entre nós, uma relação
de afetividade, como se tivesse recriado um novo brinquedo, repleto de enigmas a serem
decifrados. Logo já estaria devorando os livros didáticos, pois não tinha acesso a outros
32
suportes, ao contrário de hoje, quando o dilema é escolher qual ler primeiro. A partir deles
pude reencontrar os personagens de “Vila Sésamo
2
”.
Figura 3- Personagens do programa Vila Sésamo, em sua versão original
Fonte: Memory Chips
Este Programa Infantil foi ao ar entre os anos de 1972 e 1977 e meu primeiro contato
com o mesmo se deu através da TV do vizinho. O programa encantava a garotada que tinha
acesso a TV, o que já excluía um expressivo contingente de crianças.
Dentre seus personagens, moradores de uma Vila, me encantava com Garibaldo, um
pássaro que era amigo da turma e que vivia se metendo em confusões e Gugu, personagem
mal-humorado, que morava num barril e vivia implicando com a garotada.
Lembro que o sonho de Garibaldo era aprender a voar. E era ele que aparecia logo na
capa da Cartilha. Um outro personagem que me encantava era o da professora Ana Maria,
representado pela atriz Sônia Braga, cuja beleza e simpatia conquistavam a meninada. Ana
Maria traduzia-se no sonho de uma educação permeada pela afetividade, alimentando o
imaginário de muitas crianças. Coincidentemente minha primeira professora do grupo escolar,
Escola Isolada de Passa e Fica, localizada no município de Ceará-Mirim-RN, também
chamava-se Ana e tinha cabelos longos como os da personagem. Todos os dias ela passava na
2
Programa Infantil, apresentado pela TV Cultura/TVE e em seguida pela TV Globo. O Programa era versão do
Programa Americano Sesame Street da CTW (Childen’s Television Workshop) e foi ao ar na década de 1970
quando era exibido diariamente. Mostrava o cotidiano dos moradores de uma vila, evidenciando personagens
reais e ficccionais, destacando-se a presença de Garibaldo, um pássaro gigante e brincalhão que era amigo dos
moradores; Gugu, um ser que vivia dentro de um barril e estava sempre zangado; a professora Ana Maria, as
crianças, a mãe das crianças, dentre outros.
33
minha rua e no seu percurso até a Escola ia sendo acompanhada pelos alunos que a esperavam
pelo meio do caminho. Um ritual diário que se iniciava aos primeiros raios de sol e culminava
com a chegada de toda a turma, por volta das sete horas, tal qual uma procissão àquele lugar
quase sagrado, onde a professora traduzia-se numa espécie de deusa, passível de ira, de
castigos, mas também de milagres.
Algumas vezes, preferia quando “D. Ana” (como nos referíamos a ela) era apenas
humana, apenas uma “Ana Maria”, na qual me inspirava para recriar minha professora.
Figura 4-A professora Ana Maria com Gugu, outro personagem do Programa.
Fonte: Memory Chips
Para mim, encontrar aqueles personagens na Escola representava uma oportunidade
única, de tocar e de ser tocada por eles.
Ler a “Cartilha Vila Sésamo” era como ser convidada para uma grande festa, cuja
senha de entrada consistia em decifrar aqueles signos, repletos de mistérios, que pouco a
pouco me abriam novas portas, permitindo-me uma grande intimidade com os protagonistas.
Essa relação pode ser melhor esclarecida ao compreendermos que:
No ato de ler o indivíduo projeta sobre o texto seu conhecimento de mundo
e sua capacidade de recombiná-lo, mental e imaginativamente. O resultado
é uma elaboração tão ficcional quanto o texto de onde partimos, daí a
34
evidência do papel do leitor como parte constitutiva do texto e de seu
sentido (AMARILHA, 2006, p. 75).
O contato prévio com os personagens, através da TV, ou seja, o fato de estarem
presentes enquanto marca inscrita no meu corpo, contribuiu para desencadear um processo
comunicativo. Segundo Marly Amarilha (2006, p. 75), pesquisadora que se dedica a estudos
relacionados à formação do leitor, esse processo se realiza a partir da “catarse, que, é o
envolvimento emocional e intelectual pelo qual se concretiza a identificação do leitor com a
trama ficcional”.
Muito embora a Cartilha não se constituísse exatamente num texto literário, sua
relação com o Programa de TV contribuiu para alimentar meu imaginário permitindo-me
experimentar novas situações. Essas experiências me colocam numa situação privilegiada
naquele contexto, considerando-se que a maioria das cartilhas evidenciava situações muito
distantes da realidade vivida pelos seus leitores. E mesmo entre meus colegas de sala, o fato
desta, em especial, estar relacionada a um programa infantil, apresentado diariamente pela
TV, não se fazia tão relevante, considerando-se que nem todos tinham acesso a esta
tecnologia, pois eram raras as residências que dispunham de energia elétrica em nossa
comunidade.
Além dessa cartilha, ainda recordo com carinho de uma história infantil que falava de
Três Carneiros: Bidu, Fofinho e Zecão. Trata-se da primeira obra literária a que tive acesso.
Não recordo quem era o autor, no entanto, não esqueço o fato dos personagens tentarem,
durante toda a trama, livrar-se de uma onça muito e de que “Fofinho era fofo, muito fofo”
e “Zecão era forte, muito forte.” Estes textos marcam as memórias da primeira série, aos seis
anos de idade, quando lia e relia as cartilhas e livros repetidas vezes. Freqüentemente a leitura
atraía a meninada que se juntava em torno de mim para ouvir estas histórias.
Meus pais não tinham recursos financeiros para comprar livros, mas sempre me
incentivaram a estudar. Meu pai contava com orgulho, os desafios enfrentados, quando
criança, para freqüentar a escola. Tinha que atravessar, diariamente, um riacho que ficava no
meio do longo percurso que era trilhado a pé. Minha mãe lamentava o fato de ter sido
obrigada a enfrentar o próprio pai, matriculando-se às escondidas numa escola pública e
depois ter que abandoná-la, ao concluir o Ensino Primário (séries iniciais do Ensino
Fundamental). Pois, o nível seguinte seria oferecido no turno noturno e na concepção do meu
avô, a noite não fora feita para meninas.
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Eles, meus primeiros mestres da escola da vida, contribuíram para mudanças
significativas durante meu processo de aprendizagem. Em Pedagogia da Automia, Paulo
Freire (1996) afirma que a partir do momento em que, diminuindo a distância que me separa
das condições negativas de vida, na medida em que ajudo a aprender, e não importa que
saber- o do torneiro ou o do cirurgião- com vistas à mudança do mundo, à superança das
injustiça do mundo, jamais com vistas a sua imobilização, estou contribuindo para mudanças.
Assim entre os conflitos familiares, que não foram poucos, e os cuidados a mim direcionados,
pude construir minhas primeiras reflexões, construções e desconstruções.
Minha mãe ajudou-me a ler as primeiras palavras, o que na verdade me livrou de ser
agredida pela régua da professora, no período de alfabetização, tarefa realizada comumente
por professoras leigas, em suas próprias casas, no meu caso, a Professora “Bebé”, que se
divertia ao agredir suas alunas.
Desde muito cedo meus pais me contavam histórias com base no imaginário popular e
a diferença de idade entre eles, que era de trinta anos, possibilitou-me o contato com gerações
diferentes. Mas foi Damiana, uma afrodescendente e esposa do “tio Bastião”, que conseguiu
me fazer suportar o cheiro horrível do seu cachimbo, e ainda o odor do óleo de coco, azedado,
do seu cabelo para transportar-me a outros mundos, através das histórias que narrava. Em
troca, eu, quase que montada em suas costas gordas, tinha que dar cafuné na sua cabeça. E,
entre uma “prendida” de respiração e outra, podia viver a experiência de ser princesa ou
feiticeira; fada ou bruxa; rainha ou escrava; enveredar por trilhas jamais percorridas para
realizar os mais secretos dos desejos, às vezes numa mesma história.
Em busca dessa aventura, fugia de casa e lá, na casa de Damiana, juntava-me a
meninada, a maioria, meus primos. E, sentados no chão, feito uma roda, se ouvia a voz da
contadora de histórias, pois a cada um de nós, ouvintes, restava a tarefa de vivê-la, cada uma
delas, intensamente, embalados entre o silêncio e a palavra. A pouca iluminação dava mais
colorido às nossas viagens.
Eram os sentidos dessas histórias orais que procurava encontrar nos livros. Sei que
jamais poderei viver no meu corpo aqueles momentos, exatamente da mesma forma que os
vivi. Pois, nada substitui as coisas mesmas (MERLEAU-PONTY, 1999), mas eles
permanecem vivos, muito embora as sensações corporais sejam de outra ordem,
considerando-se que nossa relação com o mundo é contínua.
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Revisitando o corpo, pude estabelecer algumas reflexões acerca de fatos que foram
relevantes para o que hoje sou. Reconheço que ouvir as histórias de “Trancoso”
3
contribuiu
para que eu despertasse o desejo pela leitura. Com base em Marly Amarilha (2006),
compreendemos que a oralização proporciona um enriquecimento da bagagem antecipatória
do leitor. Ouvir histórias, lidas ou contadas, contribui para um encontro do ouvinte com as
estratégias da narrativa e com as convenções da língua escrita, atraindo seu interesse para
conhecer, através da escrita, as mesmas histórias e possibilitando o contato com outras. Neste
sentido, muitos dos textos que vim a conhecer posteriormente, traziam as marcas dessas
primeiras narrativas, já inscritas em mim.
Além das narrativas de Damiana, também não posso deixar de registrar os cordéis
cantados e recitados por alguns vizinhos, aumentando meu desejo de poder decifrar os
segredos e alcançar os sentidos daqueles traços gráficos registrados nos folhetos, como eram
conhecidos os suportes literários deste gênero textual.
Em pesquisa realizada na Fundação Joaquim Nabuco, através da internet, podemos
identificar o cordel como um gênero literário popular de tradição européia, desde o século
XVIII. Segundo Ariano Suassuna, estudioso das tradições populares, citado na pesquisa, o
cordel aborda os mais variados temas, podendo ser classificado nos seguintes ciclos: o
heróico, o maravilhoso, o religioso ou moral, o satírico e o histórico. Os cordéis, folhetos
originalmente xilografados, são vendidos tradicionalmente nas feiras, onde ficam expostos
dependurados em barbantes, ou cordões, de onde se origina sua denominação. No Brasil tem
origem na região Nordeste, onde se identifica uma maior expressividade, mas é válido
lembrar que na década de 1950, na ocasião da morte de Getúlio Vargas, registrou-se a venda
de mais de dois milhões de folhetos, entre 60 títulos.
A musicalidade e as rimas dos cordéis me encantavam tanto quanto as astúcias dos
personagens envolvidos nas aventuras e desde cedo criava pequenos versos, junto aos meus
irmãos, ora para insultá-los, ora, simplesmente pelo prazer de brincar com as palavras.
Costumávamos criar paródias e improvisá-las. Certa vez escrevi uns versos que ainda hoje
meus irmãos cantam quando estamos recordando nossas travessuras, ou como diria Manoel de
Barros, nossas “origens crianceiras”, infelizmente não reconhecia ainda o valor do registro
escrito e não recordo a letra na íntegra.
3
Trancoso faz referência ao que se considera o primeiro escritor a publicar textos de ficção. Este, de origem
portuguesa, narrava aventuras extraordinárias, motivo pelo qual o termo “Trancoso” ser comumente utilizado
para designar histórias que não são reais.
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Os enredos dos cordéis que contavam as aventuras de personagens lendários e míticos
me proporcionavam a possibilidade de viver as mais diversas emoções, bem como de
enfrentar conflitos que me colocavam, ora contra, ora a favor dos atos realizados em diversas
situações, que podiam ser relacionadas à realidade. Tratava-se de outras formas de contar
nossa história, por sinal, muito encantadora. Os valores religiosos e morais permeavam estas
narrativas e lembro que as situações de sofrimento eram quase sempre atribuídas como
castigo a quem sofria e levadas à sério por leitores mais crédulos. Contudo, também podíamos
presenciar situações em que a esperteza e a criatividade valia como degrau fundamental para
que os personagens vivessem papéis de heróis. A ludicidade era expressa através das rimas e
do ritmo, elementos característicos desse gênero textual. A verossimelhança aproximava-nos
do drama enfrentado pelos personagens, nos permitindo compartilhar das situações por eles
vividas. Ambiguamente, ficção e realidade misturavam-se nos enredos, pois o imaginário
popular recriava os personagens históricos reais, atribuindo-lhe características que
acentuavam os seus papéis de bandidos ou de heróis ou fazendo-os transitar entre os dois
extremos. Assim como na vida.
Os conflitos desencadeados a partir desses textos, certamente contribuíram para a
formação da minha personalidade e de autonomia, frente a situações de conflito vivenciadas
no cotidiano. Lembrando que, segundo inúmeros estudiosos, dentre eles, Merleau-Ponty
(2006), o conflito é essencial na formação humana.
Além dos gêneros textuais mencionados, ressalto também meu encontro com as
Histórias em Quadrinhos. Somente por volta dos 10 anos de idade pude ler gibis pela primeira
vez. Por falar em gibi é pertinente registrar que esta palavra significa “moleque” e que este
tipo de publicação recebeu esse nome em homenagem a uma revista publicada entre as
décadas de 1930 e 1940 que se chamava Gibi. (BRASIL, 2002).
Ganhei meus primeiros gibis de um irmão que os trouxe de São Paulo, onde morava.
Certamente ele nunca imaginou a felicidade que pode me proporcionar com aquele presente.
Não é difícil avaliar o que significou para mim, receber um pacote com cerca de uma dúzia de
gibis, considerando-se a inacessibilidade que tinha, até mesmo em relação à literatura de
cordel, suporte impresso de menor custo, na época.
Passava horas e horas lendo as histórias. Aí as sensações eram de outra ordem.
Linguagens escrita e gráfica, complementavam-se para dar sentido ao texto. Frente à presença
dos novos elementos, como as imagens, os balões de fala, de pensamento, as onomatopéias...
não havia mais espaço para tanta imaginação, porém, podia rir, torcer e ficava encantada
com as expressões corporais, a idéia de movimentos, representando uma nova forma de
38
narrativa. Através das Histórias em Quadrinhos, podia dialogar com outros interlocutores e
compreender melhor o uso dos sinais de pontuação e interjeições, tornando esse aprendizado
mais significativo para mim. A imagem como elemento estruturador dessa narrativa,
sugerindo movimento e sucessão de fatos, contribuiu para ampliar meus conhecimentos sobre
as narrativas, despertando o interesse pelo desenho.
A leitura das Histórias em Quadrinhos ampliou minhas possibilidades de
representação simbólica do mundo. Enquanto mídia primária, conforme defende Baitelo
Júnior, nosso corpo é produtor das diversas linguagens, e, ao contrário do que tem
privilegiado o conhecimento científico, estas linguagens não se realizam de forma
fragmentada, mas articuladas na totalidade corporal. Leitura, escrita, desenho, cotidiano e
ludicidade, confundiam-se nos meus movimentos. Tentava representar as expressões faciais
de raiva, surpresa, tristeza... Riscava o chão do quintal com gravetos, ou as paredes da casa e
do banheiro (construído no quintal), com pedaços de carvão e “cacos” de telha, passando o
costume para o resto dos irmãos.
Minha mãe, muito coruja, não impedia, admirando o talento dos filhos, até que um dia,
uma das minhas irmãs inventou de desenhar a figura de uma mulher nua, na parede do
banheiro. A partir deste episódio minha mãe passou a achar que parede não era lugar para se
rabiscar, “onde se viu?” Ao invés de ajudarmos a manter a casa limpa, ajudávamos a sujar
tudo de carvão e de telha! “Nunca vi meninas mais relaxadas!”. E assim passamos a ter mais
cuidado ao demonstrar nossas habilidades e como estratégia passamos a utilizar com mais
freqüência, a “técnica” do graveto no chão, pois em situação de “perigo” era mais fácil
apagar, sem deixar os vestígios da subversão.
De volta aos gibis, percebia, através dos personagens, formas diferentes de se
expressar, pois, diferentemente dos cordéis, retratavam contextos das grandes cidades, como
as do sudeste do Brasil.
Eu sabia que as histórias e os personagens eram ficcionais, porém mais do que isto,
sabia que não podia duvidar nunca da palavra do professor. E com estas duas convicções,
acabei entrando numa situação curiosa. Estava bastante satisfeita com minhas revistas, até que
numa bela tarde, meu professor de inglês, da série, ao falar de um texto que trazia um
mapa, localizou nele, o espaço onde ficava a Disneylândia, afirmando que se tratava do lugar
onde viviam o Mickey, o Pateta, o Tio Patinhas... Foi o suficiente para que eu mergulhasse
num conflito entre a minha convicção e a palavra do professor, autoridade máxima da escola.
Durante alguns anos carreguei o peso dessa angústia. Tinha vergonha de dialogar com os
colegas, pois imaginava que iriam rir de mim. E, apesar de não acreditar na existência daquela
39
espécie, não podia duvidar da afirmação do professor. Nunca revelei meu drama para
ninguém e com o tempo fui descobrindo que se tratava apenas de uma forma de expressão.
Posso considerar que minhas primeira relações com a língua escrita foram marcadas
pelo diálogo entre diferentes saberes, que misturavam-se ao meu corpo. A escrita, em sua
forma mais rígida e institucionalizada era entremeada pela leveza das histórias de Trancoso,
dos cordéis cantados, dos programas de TV, das brincadeiras que vivenciava, constituindo-se
num lastro complexo de significações presentes na minha história.
E foi assim, num contexto entremeado por situações, ambiguamente, adversas e
complementares, que fui construindo meus primeiros repertórios de escrita.
Neste sentido, Conceição Almeida (2001) alerta para a necessidade do diálogo entre os
diferentes saberes, sugerindo uma maior flexibilidade do conhecimento científico, como um
dos caminhos para um novo paradigma de mundo e de sociedade. Segundo a autora, no
progressivo caminho do distanciamento entre os diversos conhecimentos, a ciência criou
canais, institucionalizou relações, delimitou espaços, porém a autora admite que “é possível
optar por uma postura científica flexível e aberta que permita a comunicação entre os vários
saberes” (ALMEIDA, 2001, 108). Entre estes saberes situam-se aqueles relacionados às
práticas socioculturais, negligenciadas, muitas vezes, pela escola e demais esferas
institucionalizadas.
Conforme venho narrando até aqui, não enfrentei muitas dificuldades durante o
processo de aprendizagem da leitura e escrita. Vivi algumas situações de conflitos ao deparar-
me com algumas sílabas mais complexas, onde se observa uma maior arbitrariedade entre
fonema e grafema, dilema de muitos alunos.
Com base em Cagliari, (2000), ler, constitui-se numa tarefa extremamente complexa,
envolvendo problemas não semânticos, culturais, ideológicos, filosóficos, mas também
fonéticos. É válido salientar que estes problemas acentuam-se quando nos referimos a um país
na dimensão do nosso, cujas raízes culturais encontram-se entrelaçadas por uma mistura de
diferentes línguas e dialetos, emergindo daí uma grande variação lingüística que pouco é
manifestada na forma como escrevemos.
Guedes e Souza (2003) chamam a atenção para a necessidade de sensibilidade dos
educadores ao tratar da língua portuguesa no contexto escolar. Os autores alertam para o
contexto histórico em que esta língua chegou ao Brasil, afirmando que, originalmente a
Língua Portuguesa refere-se ao
40
[...] conjunto dos recursos expressivos, historicamente construídos por
escritores portugueses para expressar, por escrito, o dialeto de sua língua
que se constituiu como a língua mais adequada para encaminhar as relações
de poder dentro do nascente estado nacional português e que acabou sendo
imposta às colônias portuguesas do ultramar (GUEDES E SOUZA, 2003,
p. 140).
Tal conceito reflete a forma violenta com que a língua portuguesa foi imposta no
Brasil. Conceito que se torna muito restrito, considerando-se a realidade atual. Diante desta
situação, defende-se hoje que a escola estabeleça um diálogo entre a língua portuguesa e a
falada no Brasil, permitindo a contextualização da mesma com base na contemporaneidade.
Marcos Bagno (2006) oferece uma leitura instigante acerca dessa temática, abordando
elementos que justificam o prestígio de uma variedade lingüística sobre as demais e tecendo
críticas relevantes acerca de práticas educacionais que reforçam o mito de uma unidade
lingüística no Brasil, acentuando os preconceitos e as discriminações sofridos por grupos
sociais que não atendem ao modelo determinado. Segundo o autor, o prestígio econômico,
político e cultural do Rio de Janeiro, durante o século XVIII, ligado a sua condição de área
portuária para o transporte do ouro de Minas Gerais, contribuiu para que o português formal
empregado pelas classes sociais privilegiadas residentes no triângulo entre os estados de São
Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte começasse a ser considerado o modelo, a norma a ser
seguida, como fora anteriormente com a região nordeste. Bagno (2006) chama a atenção sobre
o perigo de uma prática pedagógica pautada na crença de uma unidade da língua portuguesa
no Brasil, bem como com relação à ideologia de se dar ao aluno, aquilo que ele não tem, ou
seja, uma ngua. “Essa pedagogia paternalista e autoritária faz tábua rasa da bagagem
lingüística da criança, e trata-a como se seu primeiro dia na escola fosse também seu primeiro
dia de vida, trata-se de querer ‘ensinar’
4
, ao invés de educar
5
(BAGNO, 2006, p. 62). Ao
considerarmos as conseqüências de uma prática como esta, com relação às crianças, o que
diríamos com relação aos jovens e adultos cujas experiências não são respeitadas?
Considerando-se que a escola é um lugar privilegiado para se aprender a ler e escrever,
apesar de ser o único, o se pode negar o direito de uma linguagem culta ou padrão, como
direito humano. Porém faz-se relevante esclarecer o que se entende por uma linguagem
padrão. Recorrendo a Possenti (1996) entende-se por legítima ou padrão aquela língua falada,
viva socialmente, pois não existem línguas imutáveis nem uniformes e o domínio de uma
4
A expressão ensinar vem do latim in + signa que quer dizer: por um sinal em, implicando numa relação que
vem de dentro para fora(BAGNO, 2006).
5
Educar, do latim ex + duco significa: trazer para fora, tirar de, dar a luz, evocando um movimento inverso
que se faz na direção oposta à de ensinar (BAGNO, 2006).
41
língua é resultado de práticas efetivas, significativas e contextualizadas. Desconsiderar essa
mobilidade que se articula na ação dos humanos atravessados pelos aspectos sociais,
históricos e culturais é reduzir as práticas de leitura e escrita aos seus fatores internos, quais
sejam aqueles voltados especificamente às implicações gramaticais.
A complexidade inerente à língua escrita e especialmente à língua portuguesa requer
estratégias de pensamento que ultrapassem o nível da pura codificação, exigindo ações
pedagógicas que possibilitem encontros entre as palavras como fonte de significação.
Acerca dessa complexidade, lembro-me que a primeira vez que li a palavra “quintal”,
perdi tanto tempo tentando decodificar a sílaba “quin”, que mesmo no contexto do enunciado,
não conseguia relacionar seu sentido. O trecho era o seguinte: “Fernando brinca no quintal”.
Faz-se relevante relembrar que as cartilhas, em sua maioria, traziam temas e situações bem
diferentes do vivido pela maioria dos seus possíveis leitores, de forma a não causar
estranhamento que, na minha percepção a palavra “quintal” pudesse referir-se a algo
correspondente a um outro contexto.
Naquele momento levantei algumas hipóteses. A princípio imaginei tratar-se de um
brinquedo, depois relacionei o termo ao derivado de “quinto”, mas, na verdade não encontrei
sentido para aquele enunciado. O curioso é que apesar de conseguir decodificá-lo com
entonação, recebendo os elogios da professora, alguns dias depois, deparei-me,
surpreendentemente, por meio de releituras, com o sentido da palavra naquele contexto.
Sentia-me como quem acabara de descobrir um grande mistério.
Podemos inferir a partir deste fato que, apesar de poder decodificar, em muitas
situações de “leitura” e “escrita” o encontro entre o texto escrito e o texto corporal não se
estabelece. É o que acontece quando se prioriza apenas os exercícios de cópia e memorização,
tão comuns que marcaram a pedagogia tradicional. Não podemos omitir a relevância da
memória para a aprendizagem, porém nos restringir a mesma é subestimar as potencialidades
humanas.
Apesar da complexidade e das arbitrariedades relacionadas à língua portuguesa,
investigações atuais apontam para o fato de que este aprendizado não supõe nenhum talento
especial por parte do aprendiz. Juvêncio Barbosa (1994) indica que, a partir do momento em
que a criança é colocada numa situação de leitura, ela inicia o desenvolvimento dessa
aprendizagem. O leitor vai sendo transformado, refinado, e vai aperfeiçoando suas estratégias,
conforme as solicitações externas.
Durante muito tempo acreditou-se que a percepção era uma capacidade imediata e
direta, dependendo apenas dos órgãos dos sentidos. Dentro dessa visão, para aprender a ler e
42
escrever a criança deveria incorporar um objeto exterior- a língua escrita- utilizando para isso
os órgãos da percepção: para a forma das letras, os olhos, para o som da letra, os ouvidos.
Porém, uma nova visão da percepção como aprendizagem dirige nossa atenção para as
vivências prévias da criança, suas experiências de vida. Assim, o processo de aprendizagem é
composto, além de tudo, de momentos de experiência ou familiarização, intercalados por
momentos de sistematização. O papel do professor nos primeiros momentos da aprendizagem
é de criar situações significativas que dêem condições de se apropriar de um conhecimento ou
de uma prática (Barbosa, 1994).
A partir das reflexões apresentadas, com base em Barbosa, é possível compreender
que, enquanto forma de representação criada pela humanidade, assim como a fala, ler e
escrever depende de uma relação recíproca entre sujeito e objeto, entre o vivido e o ensinado,
entre os registros no corpo e os registros do corpo, o que inclui um exercício de práticas
sociais significativas, convívio com uma cultura letrada. No meu caso, o desejo foi despertado
a partir das relações mediadas pela minha mãe, pela curiosidade em conhecer outras histórias,
conforme anunciei, mas também pela ação pedagógica de alguns educadores, contribuindo
para que esse processo se evidenciasse como uma aprendizagem enraizada na ação corporal.
Ainda na série a professora, D. Ana, confiava a mim a tarefa de ficar lendo para a
turma, o texto escrito no quadro, enquanto fazia a merenda. No pequeno grupo escolar onde
estudei, muitas lembranças passaram, mas, como revela seu próprio nome, Escola Isolada de
Passa e Fica, algumas, realmente ficaram registradas.
Ressalto que esta Escola não dispunha de merendeira e era comum nossa professora
orientar-nos a ajudá-la na preparação do lanche. Embora não estabelecendo nenhuma
preocupação didática em relacionar os aprendizados, sem dúvida, contribuir no preparo da
merenda nos enchia de orgulho, todos queriam participar desse momento que se constituía em
um incentivo para freqüentarmos às aulas.
Eu, especialmente, me sentia muito importante ao desempenhar os papéis de
merendeira e de professora. Enquanto cozinheira podia pular a cerca da escola e colher
gravetos para fazer o fogo de carvão, vencendo a tentação de subir nas inúmeras mangueiras
existentes nos arredores. E a leitura oral para o grupo, acalentava o sonho de um dia ser
educadora.
Para mim, o espaço privado do qual retirava os gravetos para acender o fogo que iria
aquecer nosso alimento, aquecia também minha memória afetiva. Era como uma extensão do
meu próprio quintal, onde meu corpo também se alimentava, através dos brinquedos e
brincadeiras que inventava, junto aos meus irmãos. O espaço da Escola não representava,
43
assim, uma cisão entre a vida dentro e fora dela. Nos dois espaços era desafiada entre as
diferentes tarefas de cozinhar, brincar, cuidar de outras crianças e, acima de tudo, aprender a
enfrentar os diferentes conflitos desencadeados a partir dessas ações. Portanto a Escola, ao me
propor diferentes aprendizados, representava algo significativo para mim, independente da
intenção pedagógica.
Em casa, ficava, horas, refugiada entre os galhos das árvores, lendo, vivendo, criando
e recriando estas e outras histórias. Meu quintal configurava-se como um espaço mágico,
palco das mais diversas estratégias, que se delineavam a partir do meu corpo em movimento
no/com um mundo de gestos e poesias. Lá, até a dor que resultava das tentativas “fracassadas”
ao enfrentar os desafios criados, tinha sabor diferente, pois ainda não se havia “inventado” os
traumas e os fantasmas se revestiam de um assombroso prazer.
Ressignificar estas memórias me levam ao encontro de Paula Cencig (2007, p. 7),
pesquisadora das “origens crianceiras” conforme prefere remeter-se ao tratar das brincadeiras
que encantaram e ainda encantam crianças no mundo inteiro, ao afirmar que:
Seja nos banhos de rio, de chuva, de esguicho, de mar; na construção de
casinhas e fazendinhas de graveto, de pedras, de papelão, de vento [...] na
descoberta de plantas que se fecham com um simples toque; nas corridas de
barquinho, nas enxurradas [...] nos piques, esconde-esconde [...], nas rodas
de cantiga, nas “Cinco Marias”, belisca, pedrinhas, amarelinha, queimada,
rouba bandeira; nas bonecas de pedra, de milho, de pano, de plástico; nos
desenhos das nuvens, das estrelas, das poças d’água; nas bolinhas de sabão,
ou em muitas outras manifestações do brincar, as crianças [...] encontram
uma forma de conhecer o mundo. Através dos diversos sinais, através da
poesia dos seus gestos, da sua fala e de seus silêncios, é possível entrever
estratégias do pensamento pautadas por uma outra ordem de ordenar as
coisas do mundo, bem distintas do pensamento cartesiano, da
racionalização.
Ao mesmo tempo em que reflete uma história que não é minha, as palavras de
Paula revelam muito do que vivi entre mangueiras, coqueiros, bananeiras...
Havia, no quintal da minha casa, dois cajueiros. Um que dava cajus vermelhos e o
outro, amarelos. O primeiro era meu companheiro de brincadeiras e o segundo, meu ambiente
de estudo preferido. Seu caule vertical dificultava a subida da meninada. Eu conseguia escalá-
lo, e com a ajuda de alguns lençóis, transformava o oco de um grosso galho decepado, numa
aconchegante poltrona, de forma que podia estudar sem ser incomodada. Assim, a falta de um
ambiente convencionalmente adequado para estudo, me proporcionou vivenciar esta
excêntrica experiência, aproximando corpo, escrita e aprendizagem, de forma prazerosa,
44
expressando-se numa bela ilustração de que entre corpo, natureza e cultura, não fronteiras
delineadas.
Estas lembranças remetem-me também às “Memórias inventadas” de Manoel de
Barros, pois como ele também
acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente
descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas
há de ser medido pelo tamanho da intimidade que temos com as coisas. de
ser o que acontece com o amor (BARROS, 2003, p. 12).
Pude vivenciar muitos momentos de uma aprendizagem que ultrapassava os limites da
audição e da visão. As experiências do corpo, que estendia-se pelas dimensões do quintal, que
por sua vez era maior do que a cidade, e o convívio com situações reais de leitura e escrita,
me colocam numa situação muito especial. Além de tudo, meus pais eram alfabetizados e
sempre apostaram na minha capacidade. Muito cedo, me confiavam à leitura das cartas que
chegavam dos familiares. E ainda muito jovem, eu lia, ouvia e recontava histórias, fazia da
leitura e escrita uma brincadeira do tamanho da intimidade entre meu corpo e o mundo, que
cabia no meu quintal.
Primeiros passos como educadora
Apesar dos pontos positivos narrados até aqui, não fiquei isenta de ter vivenciado uma
educação pautada numa concepção tradicional, caracterizada pelos exercícios repetitivos, pela
dicotomia, corpo/mente e até ter presenciado agressões físicas de alguns colegas, conforme
narrei. Não posso deixar passar despercebidos, os inúmeros colegas de escola que não
conseguiram ultrapassar tais desafios. Para muitos deles, o papel da escola tem se resumido a
um atestado oficial de sua incompetência.
Nesse sentido, tenho percebido uma trajetória inversa do caminho criticado por
Rousseau, ainda no século XVIII, ao denunciar que a criança não era um adulto em miniatura.
Consolidada, historicamente, uma nova concepção de criança, observa-se alguns
investimentos educacionais ao que se refere à infância. Principalmente a partir do movimento
escolanovista que “realizou uma reviravolta radical na educação, colocando no centro a
criança, as suas necessidades e as suas capacidades” (Cambi, 1999, p.513). Os avanços em
diversas áreas do conhecimento, em especial a psicologia, tem contribuído para a
45
disseminação de uma vasta literatura e pesquisas voltadas à educação e à aprendizagem da
criança. Em contrapartida, a educação dos jovens que apresentam distorção idade/nível de
aprendizagem, tem sido marcada pela utilização de materiais didáticos, metodologias e
conteúdos produzidos para as crianças, não desmerecendo algumas experiências relevantes,
como a da “Campanha de no chão” e estudos mais recentes sobre a Educação de Jovens e
Adultos.
Nesse caso, ao invés de um adulto em miniatura, constatam-se, inversamente,
adolescentes sendo tratados como crianças, cujo corpo desenvolveu-se em detrimento dos
processos mentais, contradizendo os estudos atuais da neurociência. Fundamentado nestes
estudos, o professor Clézio Gonçalves (2003) critica a escola como lugar privilegiado para o
desenvolvimento das capacidades mentais, principalmente ao que se refere à aprendizagem da
leitura e da escrita, afirmando que:
Ao deixarmos o movimento corporal fora das estratégias de aprendizagem e
desenvolvimento na escola, estamos mutilando a natureza filogenética das
crianças que, feridas em sua ontogenia, tornar-se-ão futuros adultos
mutilados (GONÇALVES, C. 2003, p. 55).
Essa forma de mutilação reside na fronteira criada entre mente e corpo, ainda
presenciada nas práticas educacionais, apesar de ter sido vencida por algumas áreas do
conhecimento, em especial a neurociência. Segundo Damásio (2006), o cérebro está em
constante interação com as estruturas do organismo, que lhe oferecem informações vitais,
possibilitando um desenvolvimento significativo.
Esta relação de co-originação dependente me remete ao neurologista Oliver Sacks
(2003), na sua obra “com uma perna só”, onde ele próprio protagoniza o drama vivido após
um acidente que comprometeu seriamente sua perna esquerda e sua imagem corporal.
Terminado o processo cirúrgico, o jovem neurologista narra a estranha e bizarra sensação
mediante daquele objeto envolto de gesso que apesar de objetivar-se diante dos seus olhos
como continuidade concreta do seu corpo, de forma inexplicável, representava a
descontinuidade, configurava-se como uma espécie de não-espaço, não-eu, de irrealidade,
matéria do irrefletível, a inexistência cuja memória era a memória do vazio, do nada. A
simples presença de sua perna esquerda diante dos seus olhos não garantia sua existência
enquanto unidade corporal, enquanto subjetividade, pois o corpo é muito mais complexo do
que o poderia explicar o funcionalismo da neurologia. Imensamente mais complexo do que se
46
poderia explicar através de uma ciência limitada ao mensurável, ao apalpável, ao visível,
conforme previa o pensamento cartesiano.
A experiência vivida e registrada por Oliver Sacks, sua condição de corpo objeto, o
impulsionou a investigar situações vividas por outros pacientes, constatando que estas
ocorriam com mais freqüência do que se poderia imaginar, entre pacientes com traumas
semelhantes ao seu. Viver no corpo a situação de paciente abriu-lhe caminhos para novas
reflexões acerca do fenômeno, passando o neurologista a ouvir e aprender também com seus
pacientes, cujo corpo vivo era anteriormente anulado e resumido a condição de objeto. Oliver
passa a ouvir e registrar os relatos dos pacientes e o registro escrito de sua própria
experiência, incentivada por Luria, seu amigo e professor, legitimou, de certa forma o
fenômeno comumente vivenciado, porém relegado pela ciência da época (1974). Conviver por
semanas com aquele objeto alienígena em que se transformara sua perna, com uma imagem
corporal deturpada, com aquela lesão que não se limitava ao músculo de sua perna, mas
estendia-se ao seu corpo, contribuiu para reconhecer as limitações de uma ciência mentalista
para a qual as funções do corpo eram comandadas por partes determinadas do cérebro. Para
seu desespero, o paciente não podia esperar da ciência e da razão uma explicação “sobre o
nada, o inferno, o limbo [...] para a ausência, a escuridão e a morte” (SACKS, 2003, p. 98),
enfim, para a esmagadora realidade por ele vivenciada naquele período.
As limitações tornaram-se mais evidentes diante do fenômeno da volta repentina das
sensações e da lembrança de saber andar, repentinamente surgida junto à ação de andar
impulsionada por uma música que ouvia, conforme afirma o autor: “E naquele momento,
quando o corpo se tornou ação, a perna, a carne, se tornou ativa e viva, a carne se tornou
música, música sólida, encarnada. Todo meu ser, corpo e alma, tornou-se música naquele
momento” (Sacks, 2003, p.127-128). O fenômeno permitiu ao médico-paciente comparar o
corpo a uma unidade cuja separação da mente seria impossível, pois a mente é impulsionada
pelo movimento corporal, o comparado à música que ouvia. Assim sendo, o corpo se
concretiza como uma melodia, cujo ritmo articula-se formando uma unidade corpo-mente,
através do senso de movimento (cinestesia), ou, segundo prefere Oliver Sakcs (2003), a
“propriocepção”, enquanto capacidade se sentir-se corpo. A partir desta compreensão, corpo e
alma têm sentido quando forem uma coisa só, quando deixam de estar conectados, o
sentido desaparece.
Quase vinte anos depois do seu acidente, o autor encontra nos novos estudos sobre o
cérebro, a explicação para o fenômeno, conforme registra no pósfácio de sua obra,
evidenciando a relação entre a imobilidade e a sensação de alienação, bem como a
47
plasticidade do cérebro que possibilita o desenvolvimento de novas funções mediante a ação
corporal. Esses estudos demonstram que os efeitos de desferentação sensitiva como os
enfaixamentos, engessamentos ou corte dos nervos sensitivos, bem como de amputações
provocam uma diminuição ou extinção de seu mapa cortical com uma pronta reorganização
dos inputs remanescentes, formando-se assim um novo mapa corporal no córtex, que exclui a
parte afetada. Novos estímulos, no entanto, podem possibilitar novas reorganizações destes
mapas, evidenciando-se assim que a imagem corporal não é fixa como suporia uma
neurologia mecânica e estática. Tal dinamicidade permite reorganizações radicais com as
contingências da experiência. Estes estudos estão revolucionando no que diz respeito ao
tratamento de pacientes que enfrentaram experiências semelhantes às vivida por Sacks em
1974.
A experiência de Sacks me remete às diversas situações que permeiam esta
investigação. Primeiramente poderia destacar a relevância de um corpo vivido entre os papéis
de médico e paciente como possibilidade de transformação de sua prática. Muito embora e,
felizmente, não tenha sido preciso um acidente semelhante ao sofrido por Sacks, todos que
somos educadores passamos pela experiência de sermos alunos e estas marcas, quando
levadas a sério, oferece-nos elementos relevantes, abrindo caminho para reflexões acerca de
nossas ações junto aos educandos.
A constatação de uma perna que estava lá, mas não compunha de fato a melodia do
seu corpo, permite refletir sobre a situação dos inúmeros alunos que, na contramão da história
tem se desprezado as experiências, conhecimentos, bem como a diversidade de suas
linguagens corporais, transformando sua escrita numa espécie de apêndice, de escrita do nada,
do lugar nenhum, numa imagem alienada sem subjetividade. Por outro lado, a própria obra de
Sacks representa a magnitude de uma escrita corporalizada, viva, dinâmica, evidenciando seu
valor social, seu poder de transformação pessoal e coletivo e sua articulação com outras
linguagens como a música, os gestos, a poesia, o silêncio e a palavra. A escrita como
expressão de um corpo no/com o mundo, cuja ação lhe confere o papel de objeto, mas
também de sujeito capaz de criar novas possibilidades, de recriar o mundo.
Além de esclarecer da unidade corpo/alma, fundamentando a relevância da ação
corporal e sua conexão com o cérebro, “Com uma perna só” ainda representa uma rica
oportunidade de adentrar, não nas limitações das ciências, mas nas nossas próprias
limitações concernentes, sobretudo, às relações que se estabelecem entre o “eu” e os outros
presentes na sua formação.
48
Desde cedo tenho desempenhando simultaneamente os papéis de aluna e professora.
Enquanto educadora lecionei em turmas do Magistério e em todos os níveis do Ensino
Fundamental, incluindo as modalidades de EJA e Salas de Aceleração.
Minha experiência com alunos que apresentam distorção idade/nível de ensino, inicia-
se aos 13 anos de idade, quando me propus a alfabetizar duas alunas excluídas (expulsas) da
Escola Pública por não terem conseguido acompanhar a 1ª série do Ensino Fundamental (atual
ano de escolaridade), ultrapassando os dois anos a que tinham direito. Assim como a
maioria dos alunos com dificuldades em atender os padrões estabelecidos pelo sistema
educacional, conheciam as marcas da exclusão de uma educação escrita para corpos que
não eram os seus.
Naquela época, início da década de 1980, utilizava-me da “carta de ABC”, como
principal recurso didático e o método era o tradicional, mnemônico
6
.
Este método consistia em “aprender” o alfabeto numa seqüência linear, ou seja, uma
letra de cada vez, depois uma “família” silábica de cada vez, começando pelas simples e em
ordem alfabética, assim como eu também havia aprendido. E quando o aluno esbarrava em
alguma etapa, não podia prosseguir para a seguinte.
Recordo as infinitas vezes em que começava a soletrar sílabas simples (constituídas
de uma consoante e uma vogal) esperando que as alunas respondessem com o som
correspondente à sílaba, e para meu desespero a resposta consistia numa pausada repetição da
pergunta: “u m B c o m A ? ? ?”. Ainda consigo sentir o desconforto que isto me
provocava, levando-me a um estado de nervos que de vez em quando escapava do meu corpo,
por mais que eu tentasse escondê-lo.
Sem me dar conta, na maioria das vezes, reproduzia um sistema do qual elas
haviam sido excluídas. Esta prática é lembrada por Hugo Assmann (2001) que chama a
atenção para o perigo de ações pedagógicas que se limitam em atender um determinado
padrão linear desconsiderando as possibilidades humanas, afirmando que forçar o ser humano
ao puro enquadramento em lógicas rígidas, implica em desqualificar o seu potencial humano”.
Era justamente o que acontecia, a começar pela “Carta de ABC”, recurso didático
utilizado em todo o Brasil, para alfabetizar.
As alunas apresentavam sérias dificuldades de memorização e eu, inexperiente, me
dividia entre a responsabilidade que assumia, enquanto alfabetizadora e o desejo de brincar.
Gradativamente fui desconstruindo algumas certezas sobre aquele método, e sobre minha
6
Método pautado na memorização.
49
própria prática. Aos poucos, fui inserindo jogos com as palavras, agrupava-as de acordo com
o grau de dificuldade, ilustrando com desenhos, na expectativa de tornar a atividade mais
atraente. Na verdade eu estava atendendo também às minhas próprias necessidades, pois
divertia-me ao desenhar e jogar. E considerando-se que “todo hábito entra na vida como uma
grande brincadeira, e que, mesmo nas suas formas mais enrijecidas, sobrevive um pouquinho
de jogo até o final (BENJAMIN, 1984, p. 117), a estratégia acabava contribuindo para a
aprendizagem das meninas, pois era apenas desta forma, que demonstravam algum interesse
pelas atividades.
Quando relacionavam a sílaba a um objeto ou figura, de vez em quando conseguiam
uma resposta mais coerente. As brincadeiras estendiam-se ao espaço do quintal.
Para prestar satisfação às mães das alunas que queriam ver o “dever” de cada dia, eu
acabava estendendo a aula pela manhã inteira. Primeiro a lição, depois... Bom... Depois nos
esbaldávamos no quintal, afinal, como eu estava “trabalhando”, livrava-me também das
atividades domésticas, pelas quais nunca desenvolvi muita afinidade.
Apesar de esta situação ter nos proporcionado muitos momentos de prazer, não
conseguia enxergar uma significativa contribuição do jogo ou da ludicidade para o
desenvolvimento cognitivo das garotas. Atribuía as dificuldades vivenciadas pelas alunas à
estrutura cognitiva das mesmas. Não conseguia perceber, por exemplo, a ausência de um
ambiente letrado significativo em suas vidas, apesar de, intuitivamente tentar estabelecer uma
metodologia que considerasse suas experiências de vida.
As alunas não saíram dominando o alfabeto de forma satisfatória, nem decodificando
todas as palavras. Mas conseguiram, cada uma ao seu ritmo, estabelecer alguma relação entre
fonemas e grafemas, lendo algumas poucas palavras, a custo de muita paciência e de alguns
meses.
Por muito tempo, carreguei em meu corpo a frustração de não ter atingido meus
objetivos de professora leiga. Mas pude construir uma das minhas primeiras “certezas”. A de
que jamais escolheria o magistério como profissão, e vai-se o sonho de criança. A Princesa
vira Gata Borralheira.
No entanto, ao concluir o Ensino Fundamental, fui praticamente obrigada a “optar”
pelo curso do Magistério, pois era o único que me oferecia possibilidades de ingressar no
mercado de trabalho a curto prazo e eu precisava contribuir com a renda familiar, sendo a
primeira, de uma família de oito filhos.
Logo nos primeiros contatos com os professores, com as novas leituras, com os
primeiros alunos, durante o estágio, percebia que o magistério começava a fazer parte da
50
minha vida. Assim, como uma chama que começa lentamente, ora consumindo, ora
iluminando, conforme a dança própria do fogo e a própria dança da vida.
A experiência como educadora me possibilitou desconstruir certezas e criar outras
“verdades”. Ao reingressar a Escola Pública, desta vez como educadora, fui surpreendida ao
reencontrar uma das minhas primeiras alunas, marcando também um reencontro com meu
próprio corpo. Mas, só agora, garimpando na história vivida, momentos relacionados ao
contexto desta investigação, percebo que, apesar das dificuldades enfrentadas inicialmente,
como professora leiga, me inquietava o distanciamento entre os conteúdos escolares e a
história vivida dos alunos. E mesmo sem os conhecimentos que hoje respaldam meu fazer,
aos 13 anos de idade, transgredindo o perfil profissional inerente a um professor da época,
buscava alternativas para levar um pouco de prazer àquelas aulas, driblando as mães das
alunas que me exigiam uma atitude mais rigorosa, na relação professora/alunas e organizando
atividades lúdicas.
Estudos atuais sobre o corpo deixam claro que a aprendizagem, seja da leitura, da
escrita ou dos demais conhecimentos, não se limita às capacidades mentais. Nem que estas
estão destacadas do resto do corpo, conforme previa o pensamento cartesiano. Segundo
Merleau-Ponty (1999), em “Fenomenologia da Percepção”, existe uma unidade implícita e
confusa entre corpo e consciência. O corpo, segundo o filósofo, se constitui enquanto
sexualidade, ao mesmo tempo em que é liberdade e, enraizado na natureza em que transforma
e é transformado pela cultura, é sempre além do que é. Ou seja, encontra-se num contínuo
processo de construção.
Assim considerado, as brincadeiras que se fizeram presentes no início do processo de
alfabetização das primeiras alunas com as quais convivi, certamente, contribuíram de alguma
forma, como estratégias de conhecimentos. Talvez, não diretamente vinculadas ao processo
de decodificação das palavras, mas, fortalecendo as relações de afetividade estabelecidas,
fazendo do ambiente educativo algo que, pelo menos em alguns momentos, ultrapassava uma
aprendizagem marcada pela imobilidade do corpo.
As brincadeiras possibilitam uma aprendizagem por inteiro, onde o brincante é
estimulado a desenvolver diversas estratégias de ações para vencer os desafios gerados no ato
de brincar, que se estendem aos demais momentos de sua vida pessoal e interpessoal. Assim
considerado, é bem possível que esse aprendizado, registrado em seus corpos, tenha
possibilitado uma nova concepção de Escola. Uma concepção menos excludente do que a
vivenciada no período anterior.
51
Não posso avaliar até que ponto eu fui capaz de contribuir, mas o fato é que ao
reencontrar a aluna, esta já encontrava-se na quinta série e, juntas, pudemos relembrar aqueles
momentos.
Dentre as brincadeiras que aconteciam naquele período, destaco os inesquecíveis
cozinhados
7
que realizávamos no quintal, sempre anotando o nome do ingrediente que as
alunas poderiam trazer para o evento, incluindo-o como recurso didático.
Independentemente de uma satisfação, também pessoal, compreendo que, o jogo lúdico
constitui-se em “atividade livre, que prazer e estimula o desenvolvimento físico, cognitivo
e social” (KISHIMOTO, 1993, p. 117). Compartilhar daquelas brincadeiras permitiu também
um encontro com as práticas culturais da época, pouco valorizada no contexto escolar.
Neste sentido, Vago (2006) chama a atenção para a relevância de se reconhecer, nas
práticas educativas, as manifestações culturais inerentes ao corpo, considerando-o enquanto
resultado, tradução e expressão de cultura, ao admitir que
“Nos corpos humanos estão guardadas as histórias de cada um, histórias
partilhadas, histórias de humanidade, histórias da humanidade. O corpo não
é assim algo que possuímos naturalmente. Nem é somente uma construção
pessoal, mas sociocultural: Ele é suporte e expressão máxima de uma dada
cultura (VAGO, 2006, p. 11).
A cultura, segundo Resende (1999) refere-se à existência significativa do homem
através da história e nas brincadeiras que compartilhávamos, delineava-se corporalmente,
nossa história, que também englobava a decifração dos signos lingüísticos, mas não se
limitava a esta.
Pela atual legislação a aluna, com a qual reencontrara, freqüentaria uma Sala de
Aceleração ou a Educação de Jovens e Adultos, modalidades criadas para atender os alunos
que apresentam distorção idade/nível de ensino.
E diante deste contexto podemos constatar que a história dos alunos que freqüentam
tais modalidades, caminha paralela com a da exclusão social, traduzidas na criação de
programas que procuram amenizar as mazelas deixadas pelas políticas educacionais e sociais.
As Salas de Aceleração foram implantadas na última década com o objetivo de
amenizar a distorção idade/nível de aprendizagem nas escolas Municipais de Natal-RN,
7
Brincadeira muito comum na época, em que cada participante contribuía com um ingrediente para o almoço,
cozinhado em fogo de lenha, geralmente no quintal de uma casa, e em seguida compartilhado entre todos os
envolvidos. Entre as crianças era mais simples e entre adolescentes, mais sofisticado, com a introdução de
música, barraca de dança, etc.
52
prevendo ações pedagógicas diferenciadas, para atender as especificidades dessas turmas. A
implantação dessa modalidade, que coincidiu com a obrigatoriedade dos alunos com
deficiência nas salas regulares, fazendo surgir as chamadas salas inclusivas, é acompanhada
por um clima de medo e insegurança entre os professores e comunidade escolar. Inserida no
contexto escolar como professora e Apoio Pedagógico, presenciei as dificuldades enfrentadas
neste sentido.
Nenhum professor se propunha a trabalhar com estes alunos, corpos, estigmatizados
por uma história de fracasso, na maioria das vezes, indisciplinados e sem muito apoio das
famílias.
O medo da própria incapacidade, a falta de experiência e de condições de trabalho
com a nova demanda, um salário incompatível com o visível aumento de atividades previstas,
constituem-se em fatores relacionados a esta recusa. As dificuldades permanecem e são
agravadas pelas políticas públicas. A exemplo da Secretaria Municipal de Educação de Natal
que acaba de aprovar medidas, com base no Plano de Carreira e Estatuto do Magistério.
Dentre estas se destaca a da progressão e promoção na carreira, vinculada critérios de
desempenho e qualificação profissional cuja regulamentação premia o professor que, dentre
outros critérios, atinja altos índices de aprovação em suas turmas.
Tal critério provoca uma rejeição, entre os profissionais, em aceitar as salas de
Aceleração, cuja história revela um baixo desempenho com base nos critérios estabelecidos
pelo Sistema de Avaliação do Ensino Básico. Constata-se, dessa forma uma carência de
sensibilização corporal, envolvendo todo um sistema educacional, (incluindo professores e
alunos) como reflexo de uma ação pedagógica, ainda pautada numa aprendizagem mental.
Apesar das dificuldades apresentadas, optei pelas Salas de Aceleração, como desafio
pessoal e profissional. Junto a estas, tive a oportunidade de aprender muito com as
experiências dos alunos, dos quais nunca mais me afastei. Compartilhar das suas dificuldade e
potencialidade tem possibilitado um vasto repertório de oportunidades nas situações didáticas.
Dessa relação desencadearam-se muitas reflexões e questionamentos que me mobilizaram a
realizar o primeiro trabalho acadêmico, a nível de especialização.
A realidade das Salas de Aceleração, assim como a da EJA é, quase sempre, a prova
da exclusão em mão dupla, de sujeitos oriundos de uma trajetória educacional abortada pelos
mais variados problemas sociais. E que ao apostar mais uma vez na educação correm o risco
de pagarem o alto preço de anular-se, enquanto corpos, ou de serem transformados em corpos
objetos, onde a inscrição mais visível é a de sua própria incapacidade. A vida é repleta de
certezas e incertezas e talvez seja esta uma das certezas relacionadas à exclusão em massa e
53
aos resultados desastrosos comprovados pelo Sistema de Avaliação do Ensino Básico,
anualmente.
Ao chegar à sala de aula, esse aluno carrega em seu corpo todo um repertório de
experiências e potencialidades que podem inspirar belas escritas em forma de textos,
incluindo os variados gêneros. Mas nem sempre conseguimos estabelecer um elo de
identidade entre os conteúdos programados e a vida daqueles que deveriam representar os
sujeitos da aprendizagem.
Apesar de experiências que procuram avançar neste sentido, a linguagem escolar,
quase sempre, procura atingir um modelo padrão, dificultando um encontro com os corpos
dos alunos, mesmo que, às vezes se refiram a uma mesma realidade. O exercício de se colocar
no lugar do outro ou de compreendê-lo como extensão do eu, não tem sido uma tarefa fácil.
Muitas vezes é como se a escola e o aluno usassem duas linguagens dicotômicas para falar
das mesmas coisas.
Neste sentido, mergulhando um pouco mais no meu baú de recordações, remeto-me a
uma experiência que pode ilustrar esta situação. Ainda na década de 70, aos oito anos de
idade, quando cursava a terceira série do antigo Ensino Primário (atual Ensino Fundamental),
lembro o dia em que a professora ministrava mais uma aula expositiva (como quase todos os
dias) sobre nosso Estado. E num determinado momento ela informou e registrou no quadro, a
área do Rio Grande do Norte.
Para a professora aquele pode ter representado um dia como outro qualquer. No
entanto passei meses refletindo, silenciosamente, sobre qual seria a relevância da preocupação
específica em se anotar, falar e registrar apenas a “área” do Estado, quando ela poderia ter
apresentado seu tamanho na totalidade. E ainda, se a área envolvia todos aqueles
algarismos, pontos e zeros... qual seria seu tamanho total? Pode parecer piada, hoje, mas aos
oito, nove anos de idade a referência de área que eu tinha era como cômodo de uma casa,
salientando que fazia parte dos meus sonhos de consumo. E em nenhum momento a
professora preocupou-se em esclarecer o significado de área naquele contexto.
Talvez isto parecesse óbvio para ela. Mas, para o meu desespero, o mesmo não
acontecia entre os alunos, acentuando-se a cisão entre quem ensina e quem aprende,
impedindo uma ação pedagógica pautada no diálogo, conforme sugere Paulo Freire ao
defender encontro entre quem aprende e quem ensina, exigindo do professor uma ação
reflexiva e uma leitura de mundo que se estende ao contexto do aluno.
54
Esta é uma situação bem típica de uma pedagogia Tradicional, que segundo Cambi
(1999) tinha como centro do processo de ensino, o professor, restando ao aluno, o papel de
obedecer.
Mas, não estamos isentos desse descompasso de diálogo. Colocar-se no lugar do
outro, deve constituir-se num exercício diário. Reconheço que também passei por experiência
semelhante, representando o outro lado da moeda.
Certa manhã, enquanto desenvolvia uma atividade na sala de aula, um aluno de 7
anos de idade, no seu segundo ano de escolaridade, chegou sorridente com seu crachá,
afirmando que sabia fazer seu nome. Eu, compartilhando de sua felicidade, perguntei se
conseguia fazer sem ver, recolhendo seu crachá. Neste instante o garotinho mudou de
expressão, afirmando que dessa forma não conseguiria. Fiquei meio confusa. Pois, mais do
que as próprias palavras, a leitura que conseguia fazer de seu corpo, era a de que acabara de
aprender a grafar seu nome sem a ajuda do modelo.
Na época, procurava alfabetizar os alunos a partir das letras do seu próprio nome.
Insisti na pergunta e pedi que tentasse escrever o nome sem ver. Mais uma vez, afirmou que
não. E para provar que era praticamente impossível o que eu lhe sugeria, o menino então
fechou os olhos e tentou escrever seu nome no caderno. E, em não conseguindo, lembro-me
bem das suas palavras: “Ah, professora, assim é muito difícil”.
Bem, é que eu compreendi que não havia sido clara, confundindo a
compreensão do aluno, que em seguida abriu os olhos e grafou seu nome, sem dificuldades,
aposentando o velho crachá. Conforme procurei ilustrar, o exercício de se colocar no lugar do
outro nem sempre é tão fácil quanto parece, constituindo-se num desafio que deve ser
vivenciado continuamente, pois, apesar de constatarmos avanços significativos, com relação
às novas concepções de aprendizagem, “tendemos a viver num mundo de certeza, de solidez
perspectiva não contestada, em que nossas convicções provam que as coisas são somente
como a vemos e não existem alternativas para aquilo que nos parece certo” (Maturana e
Varela, 2001, p. 22).
Porém, remeto-me a Guedes e Souza (2003), acreditando que é o erro que nos leva à
direção do novo. E “ressignificar uma prática é um processo complexo que exige tempo e
disponibilidade. Não basta apenas substituir uma prática por outra, é necessário reinventá-la.
E para reinventar é preciso construir um novo olhar, uma nova forma de conceber aquilo que
desejamos” (SOARES, 2007, p. 25). Compreendo que a chama do educador revela-se na
relação com aluno, conforme seu sucesso ou seu fracasso, implicando na presença e na
relação com o outro, no diálogo com o conhecimento. Nesse movimento construímos nossa
55
história, aprendemos a criar nossa existência a buscar novas possibilidades. Como nos lembra
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, precisamos inventar a existência com os materiais
que a vida nos oferece (FREIRE, 1996). E a vida, construída na experiência junto aos alunos,
têm me oportunizado trocas significativas.
Durante meus primeiros anos de trabalho, exigia dos alunos que produzissem textos
baseados numa realidade abstrata, tendo como referência os conteúdos ministrados em sala de
aula, retirados dos livros didáticos e com os quais eles mantinham relação corporal bastante
restrita, praticamente reduzida à audição e à visão. Ficava deslumbrada ao vê-los
decodificarem com poucos erros ortográficos, mas sempre me inquietou o fato das frases
mecânicas e descontextualizadas, bem como de sua resistência quando se propunha a
produção de texto. Comecei então a colocar-me no lugar daqueles corpos, que, como eu,
pertenciam a um meio social totalmente diferente da realidade retratada através dos livros
didáticos e apresentada pela escola.
Nesta viagem relembrei dos momentos em que meu corpo foi reprimido, por não
haver espaço na escola onde pudesse expressar meu mundo, minhas experiências, meus
desejos.
Recordo que no primeiro dia de aula, ao ingressar na série, a professora de Artes
pediu que cada aluno elaborasse um desenho livre. Imediatamente desenhei o que mais
gostava: Um belo caju vermelho. Identificava-me com esta fruta por existir, no quintal da
minha casa, conforme anunciado, um cajueiro, velho companheiro das brincadeiras, que
era parte da vida da família. Seu caule inclinado estendia-se, rente ao solo, tal qual um convite
para que nele subíssemos (eu e meus irmãos) e brincássemos sobre seus galhos, além de
produzir frutos doces e de uma beleza especial, chamando a atenção de todos que passavam
na rua.
Para mim não foi difícil fazer aquela “obra de arte”. Porém qual não foi minha
decepção ao apresentá-lo a professora, que imediatamente duvidou da minha autoria. Todos
duvidaram. Não pelas nuances de tonalidades que consegui com as cores vermelha e
amarela, conforme meu pai havia me ensinado, como pela rapidez com que concluí o
trabalho.
Além da minha constrangedora exposição diante da turma ainda fui obrigada a
produzir outro desenho e a partir daí, tudo que me pediam pra fazer e que eu tivesse certa
facilidade, esforçava-me a demorar e em não fazer bem feito, pois haviam inscrito em meu
corpo, certa incapacidade, que eu relacionava a minha condição social.
56
Muitas vezes não acreditamos na capacidade dos nossos alunos e pegamo-nos
sempre surpreendidos com essa falsa verdade.
Ao longo desta trajetória tenho constatado que as produções escritas pelos alunos,
nem sempre são realizadas de forma prazerosa ou significativa. Faltam-lhes compreender os
sentidos e atribuir-lhe significados. Aprender também exige sacrifícios, mas este é válido
quando dele emerge algum sentido.
A escrita emerge do corpo a partir das experiências vividas, envolvendo práticas
cotidianas que constroem a história corporal de cada um, ampliando horizontes e
possibilidades, independente do nível de ensino ou da idade de quem a desenvolve.
Porém observamos que ao tornar-se universal a escrita não influencia, mas também
sofre influências sócio-culturais e políticas. E reconhecida sua relevância social, é
institucionalizada, padronizada, carregada de regras gramaticais, que, sendo essenciais para
sua prática, não podem se consideradas superiores aos sentidos que emergem das próprias
palavras.
A sistematização da escrita é fundamental para a aprendizagem do aluno, no entanto,
ao se superestimar esta dimensão, que tem como parâmetro uma ideologia dominante, em
muitos casos, esquece-se dos registros inscritos no corpo de quem a produz (ou a
consome), ou seja, o aluno. Precisamos, enquanto educadores, nos permitir ser tocados por
esses corpos e deixar fluir sua linguagem, decifrando seus códigos, sempre inacabados,
sempre passíveis de inspiração, abrindo espaço para novas escritas, onde a história vivida e o
sujeito representem o papel principal desse espetáculo. Lembrando que “nossa relação com as
coisas não é uma relação distante, cada uma, fala ao nosso corpo e à nossa vida”
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 24). E a intensidade dessa fala vai depender da nossa
experiência sensível com o objeto. Assim, se desejamos que os alunos produzam textos
significativos, partir das coisas que lhe falam pode revelar a voz que ecoa do seu corpo, pois
existência é palavra vivida.
É possível constatar no contexto escolar, situações em que a produção escrita dos
alunos é utilizada apenas como um atestado de sua incapacidade, priorizando-se apenas o
produto em detrimento do processo. Nesse caso, a correção ortográfica e os aspectos
gramaticais sobrepõem-se às idéias que o aluno deseja expressar, anulando-se pistas e
vestígios que poderiam possibilitar novas situações didáticas. O tema, sempre escolhido a
partir das necessidades do professor, nem sempre considera as experiências vividas pelos
sujeitos, enquanto corpos que se movimentam de forma inteligente, transformando e sofrendo
transformações em contato com o mundo.
57
Remetendo-me à primeira experiência com Jovens e Adultos de uma Escola Estadual
no município de Ceará-Mirim, onde trabalhei no ano de 1987 e 1989, recordo-me da
felicidade dos alunos quando eram oportunizados a lembrar que tinham um corpo, ou eram
um corpo capaz de dançar, brincar, se emocionar, falar, ou ao simplesmente relatar um pouco
de seu cotidiano como cortadores da cana, domésticas, pegadores de frete nas ruas. Recordo
que na ocasião ousava burlar a rotina cansativa das aulas, de forma clandestina, sob pena de
ser acusada de falta de domínio de classe, caso a diretora percebesse alguma empolgação
maior dos alunos. Tinha que cumprir o conteúdo e para eles era o mesmo do ensino regular.
Eu tinha acabado de ingressar na Escola através de concurso público, e, como estava em
período probatório, corria o risco de ser transferida ou demitida.
O fato de ter aderido a uma greve no início da carreira, já fora suficiente para
conquistar a antipatia da diretora. No entanto, é sempre gratificante lembrar Paulo Freire
(1996, p.60), quando adverte que “minha presença no mundo não é a de quem nele se adapta,
mas a de quem nele se insere” e se é verdade que somos seres culturais e sociais é nessa
relação que construímos nossa subjetividade, fazendo de cada corpo um exemplar único no
mundo, de forma que cada aluno, com o qual tive a oportunidade de compartilhar, imprimiu,
em maior ou menor proporção, as marcas que hoje carrego, enquanto corpo.
Na possibilidade dos registros no corpo serem transformados em registros do corpo, a
sistematização da escrita institucional representa um valioso instrumento para a comunicação
social, diferentemente do caminho inverso mais utilizado, onde as regras são colocadas como
condição e o corpo como instrumento.
Ensinar a escrever requer um olhar para frente e não para a repetição do passado que
nos trouxe à escola que temos hoje. Trabalhar com a escrita implica em trabalhar com a
incerteza e com o erro e não com a resposta certa, porque escrever é produzir e não reproduzir
velhas certezas, pois as certezas nos deixam no mesmo lugar.
A partir de reflexões como esta, comecei a buscar caminhos que aproximassem "a
vida da escola e a escola da vida".
Por muitas vezes fui capaz de ler a vergonha inscrita nos corpos dos alunos por não
dominarem a linguagem escrita. Recentemente convivi com um aluno que aparentava uma
boa auto-estima, demonstrava prazer em exibir seu sucesso com as meninas, considerava-se
um belo rapaz, fazia questão de assumir sua masculinidade e era sempre o primeiro a mostrar
as atividades escritas, quando estas eram desenvolvidas em grupo ou se resumia a reprodução.
Porém, durante as atividades de leitura individual, encontrava sempre um pretexto
para ausentar-se da sala. Fosse para atender a algum chamado, para ir ao banheiro, ou mesmo
58
para ir embora, com a desculpa de resolver algum problema familiar ou pessoal. Não demorou
muito para que eu pudesse associar sua ausência aos momentos em que era solicitado a ler ou
a escrever. Foi, certamente, constrangedor assumir sua dificuldade e a fuga pode ter
representado a única forma encontrada para evitar expor um processo de exclusão tão
marcante em seu corpo.
Aos poucos, fui me aproximando do mesmo e nos diálogos com o grupo, sempre
chamava a atenção para a relevância de um trabalho coletivo, onde todos pudessem trocar
experiências e aprenderem juntos. Organizava trabalhos coletivos e pedia a ajuda de
determinados alunos para auxiliar nas dificuldades dos outros e sempre procurava diversificar
as atividades, de forma que pudesse contemplar potencialidades observadas em cada um.
Este aluno demonstrava facilidade em expressar-se oralmente e era sempre solicitado a
ajudar o grupo, neste sentido. Assim pedia para que acompanhasse um colega tímido na hora
de uma entrevista ou de um convite nas outras turmas. Pedia para que organizasse os times
nos dias em que íamos para a quadra.
Certa vez organizamos um projeto em que a turma iria coordenar determinadas
brincadeiras na hora do intervalo para os alunos menores das outras salas e ele sempre
demonstrava um bom desempenho nessas tarefas. Aos poucos as relações foram se
fortalecendo, na medida em que a turma foi conquistando sua confiança e vice-versa.
Aceitar a colaboração dos colegas e assumir sua dificuldade contribuiu de forma
relevante para seu desenvolvimento cognitivo.
Mediante situações como esta, se evidencia a necessidade de se repensar
intervenções que respeitem as histórias inscritas nesses corpos e o grande desafio implica em
tentar seduzi-los à sala de aula e aos demais espaços da escola, do bairro, do trabalho, da
sociedade, fazendo de suas vidas algo essencial na relação com o mundo. Nesse sentido, o
desenvolvimento da escrita e da leitura pode representar um grande instrumento, a partir do
momento em que o aluno consiga reencantar-se e reencontrar-se com sua própria história de
vida, como sujeito de aprendizagem e a viver o corpo.
Gradativamente fui aprendendo a priorizar as atividades lúdicas, criando espaços onde
o aluno pudesse trazer suas marcas de corpo para a sala de aula por meio de brincadeiras, da
arte, do diálogo, proporcionando novos repertórios de escrita. Porém nessas primeiras
relações traçadas intencionalmente, entre corpo/escrita, procurava priorizar o primeiro como
instrumento para o segundo.
59
A partir de 1993, com a intenção de tornar esta atividade mais sedutora, passei a
organizar um livro da turma, registrando as melhores produções escritas e escolhidas pelos
alunos.
Começava a observar, dessa forma, um maior envolvimento por parte da maioria dos
alunos. O fato de saberem que seus registros ficariam à disposição de diferentes leitores, e de
que seriam, inclusive, utilizados por outros professores em suas salas de aula, contribuiu para
que os alunos-autores passassem gradativamente a perceberem-se enquanto parte viva da
história, evidenciando-se um maior compromisso por parte dos alunos que começavam a se
encontrar através dos próprios textos. Guedes e Souza (2003) alertam para a relevância em se
criar na escola um ambiente capaz de possibilitar situações em que o exercício da escrita pelo
aluno, ultrapasse a reprodução, o resumo, a paráfrase ou a cópia de situações conhecidas,
nas quais a criatividade do aluno é anulada em nome de uma escrita destinada a nenhum
leitor. É preciso criar situações em que escrever constitua-se enquanto uma atividade
intelectual capaz de registrar, comunicar, influir, entender, comover, criar.
O exercício de se colocar no lugar do outro, enquanto leitor, despertava o senso de
responsabilidade em oferecer algo interessante e os “corpos objetos” iam pouco a pouco
dando espaço aos “corpos sujeitos” (NÓBREGA, 2005), ou seja, corpos que agem
inteligentemente, superando a dicotomia corpo/mente, pautada no pensamento cartesiano.
“Afinal não existe outra forma de conhecer o próprio corpo senão vivê-lo” (MERLEAU-
PONTY, 1999).
Na busca por conhecimentos que fundamentassem um trabalho pautado na ação
corporal como condição de aprendizagem, pude contar com algumas contribuições relevantes.
A graduação em Pedagogia, o diálogo constante com as colegas de trabalho e experiências
realizadas por outras escolas, em especial a do NEI (Núcleo de Educação Infantil, da UFRN),
onde meus filhos tiveram a oportunidade de estudar e eu, a de aprender e o Curso de
Especialização em Pedagogia do Movimento, constituiem-se em alguns desses encontros.
Durante a realização do curso de Pedagogia na UFRN (Universidade Federal do Rio
Grande do Norte), tive a oportunidade de conhecer professores inesquecíveis. Compartilhar
momentos de encontro com Dione Violeta, Sandra Borba, Celina Santa Rosa, Giane Bezerra,
João Valença, Isolda Fernandes, Ana Lúcia Aragão, dentre outros educadores, significou para
mim, uma troca, através da qual pude ampliar meu repertório de leitura de mundo,
influenciando num caminhar para ser mais humano.
60
Na UFRN tive também a oportunidade de ser aluna da professora Arisnete, durante a
disciplina, Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem, e como eu, ela também organizava
um livro com textos produzidos pelos alunos, futuros pedagogos.
A obra, “Os leitores” reunia uma coletânea de textos produzidos a partir das
impressões de cada aluno, sobre sua experiência, como leitor. Registrar minhas impressões
possibilitou-me, naquele momento, colocar-me na condição de aluna, vivendo no corpo as
sensações, provavelmente, vividas pelos meus alunos, quando da produção de seus próprios
textos. Sempre me preocupava, em colocar-me na situação dos alunos, mas, nada como viver
as coisas mesmas, como diria Merleau-Ponty. A professora Arisnete nos desafiava ir mais
além e durante o processo de construção, o texto era refeito várias vezes.
Esta caminhada era permeada por vários sentimentos: de ansiedade em terminar, de
alegria e de angústia no reencontro com nosso próprio corpo, de raiva em ter que refazer o
texto, mas, prevalecia o desejo de transformar nossa história em algo capaz de afetar outros
leitores.
Na ocasião, sem os referenciais que tenho hoje, não fui capaz de refletir sobre
situações que ora considero essenciais para minha formação de leitora. Direcionei meu foco
para as obras lidas na adolescência, mais especificamente relacionadas à literatura brasileira,
textos, cujas narrativas me faziam refletir sobre situações mais reais.
O exercício provocado pela ação educativa da professora Arisnete me impulsiona a
refletir acerca da relação professor aluno e reconhecer o quanto o outro se faz presente em
nossa própria história, ou ainda sobre o papel do professor, em poder proporcionar a
oportunidade de crescimento dos alunos, cada um a sua maneira, num universo de
possibilidades.
Ressaltar o papel do educador não implica atribuir-lhe todo fracasso ou sucesso da
educação. Seria ingenuidade ou irresponsabilidade reduzir o fenômeno da educação à ação
pedagógica. Existe todo um contexto que envolve diferentes aspectos e fatores que não podem
ser descartados ao nos referirmos à qualidade do ensino. Porém, é preciso acreditar que este
quadro, ao mesmo tempo em que pode contribuir para um estado de mal-estar relacionado ao
sentimento de incapacidade, também nos move na busca de caminhos que justifiquem nossa
opção pela educação, sob pena de sermos sepultados junto com ela.
Acreditando na segunda possibilidade, retorno a Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, seis anos após a conclusão do Curso de Pedagogia. Não foi possível retornar antes
devido o acúmulo de funções vividos por mim, sobretudo nos papéis de educadora e mãe de
filhos muito pequenos, compromissos dos quais não podia, nem queria, abrir mão.
61
Assim, em 2002, ingresso no Curso de Especialização em Pedagogia do Movimento,
oferecido pelo Departamento de Educação Física da UFRN. A princípio imaginava encontrar
neste Curso, apenas práticas corporais que pudessem ser desenvolvidas na escola, junto aos
alunos. Também buscava superar as limitações do meu próprio corpo, que da liberdade
evidenciada, sobretudo nas brincadeiras e nos desafios de criança, vai gradativamente sendo
moldado, aprisionado, limitando-se aos movimentos básicos exigidos pelos padrões sociais.
Fui surpreendida logo nos primeiros contatos com os professores. Diferentemente do
estereótipo que caracteriza a maioria dos professores de Educação Física, logo percebi que
estes estavam comprometidos com novas estratégias de pensamento e produção de
conhecimentos relacionados ao corpo, em sua complexidade. Este novo contexto me
possibilitou um leque de oportunidades, ampliando minhas expectativas no sentido de um
investimento em investigações voltadas para minha prática pedagógica e para minha vida
pessoal.
Os novos referenciais a que tive acesso contribuíram de forma relevante para
compreender a necessidade de um diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento e suas
implicações, ao se tentar entender um fenômeno. Dialogar com as áreas de Filosofia,
Psicologia, Neurobiologia, Pedagogia, Artes, Educação Física e escolher como foco de
pesquisa a escrita dos alunos em sala de aula, pode indicar a dimensão das possibilidades
desencadeadas a partir das discussões realizadas, junto aos colegas e educadores, durante o
Curso.
Posso afirmar que o diálogo estabelecido através das leituras diversas, proporcionou-
me vivenciar um reencanto e um reencontro com meu próprio corpo, inspirando-me a dar
continuidade a uma prática pedagógica voltada para a produção de textos, enveredando por
caminhos que me trouxeram até o desenvolvimento desta dissertação.
Destaco ainda que minha história, fruto de muitas outras, não seria a mesma sem
contribuição dos professores de “Pedagogia do Movimento”. Especialmente José Pereira de
Melo e Terezinha Petrúcia da Nóbrega, meus orientadores da pós-graduação. As marcas por
eles inscritas podem ser identificadas a partir de diferentes situações. Seus estudos
contribuíram para dar sustentação teórica a este trabalho; a coerência entre a teoria defendida
e a prática; o engajamento de ambos, naquilo que acreditam, fazendo de seus corpos registros
vivos ou testemunhos de suas escritas e a coragem de enfrentar comigo este desafio,
fortaleceu nossa relação, motivo pelo qual sinto por eles um carinho e uma admiração muito
especial. Estes professores são protagonistas de um novo pensar sobre o corpo, sendo
referência para o Curso de Educação Física em nossa região e em nosso país.
62
Enfim, ao revistar meu corpo pude ressignificar minha trajetória. Trilhar o caminho
percorrido, compartilhando um pouco das experiências vividas entre tantas histórias que se
cruzam, reconheço que muitas outras foram omitidas, mas os momentos aqui registrados
permitem-me acreditar que hoje, sou tão eu quanto nós. Pois, foi na relação com tudo e com
todos que estiveram comigo, entre a condição de “árvore gorjeada” e de “pássaro que gorjeia”
que pude recuperar situações capazes de identificar a relação corpo/escrita registradas no meu
próprio corpo.
Diante das reflexões tecidas, creio que não podemos mais calar a escrita repleta de
significações que ecoa dos corpos, sínteses inacabadas dos variados tempos e espaços, que
carregam fragmentos da história e das histórias que deixaram de ser escritas. Corpos, que na
sua subjetividade apresentam formas singulares de ver, sentir e agir num mundo, que nem
sempre foi escrito para eles. Respeitar a dimensão histórica e sócio-cultural que permeia cada
ser é respeitar sua subjetividade e acreditar nas potencialidades tantas vezes anuladas na ação
educacional. Tais reflexões delineiam novas possibilidades que nos mobilizam rumo a um
sentido pleno, “embora saiba que a plenitude do sentido é propriamente inacessível”
(RESENDE, 1990, p. 32).
A partir de agora convido o leitor para um “Reencontro com o corpo através da
escrita”, permeando por caminhos e trilhas possibilitados pelas leituras de seus textos,
evidenciando nuances do seu cotidiano e de sua sexualidade como foco de reflexão para este
momento.
63
III- REENCONTRANDO O CORPO ATRAVÉS DA
ESCRITA
Cada dia é outro dia.
Tem dia de sorrir
E dia de chorar
Tem dia de ganhar
e dia de perder...
(Daniel, aluno da turma de Aceleração, 2004)
Figura 5- Pintura produzida pela aluna Janaina
64
III- REENCONTRANDO O CORPO ATRAVÉS DA ESCRITA
É no limiar entre os “dias de sorrir” e os “de chorar”, entre perdas e ganhos, que
construímos nosso cotidiano, nossa trajetória de vida, uma história pessoal e coletiva, onde o
eu confunde-se com o nós, como regras de um mesmo jogo.
Dessa forma, analisar os textos escritos pelos alunos, procurando identificar encontros
e reencontros com o corpo através da escrita, representa de certa forma, reencontrar neles
minha própria história, envolvida nesse processo de aprendizagem, no qual ambos
desempenhamos, simultaneamente, os papéis de ensinantes e aprendentes.
A partir deste momento faço uma incursão no corpus de 27 produções selecionadas de
um universo de 136 textos escritos por 106 alunos
8
da Escola Municipal Professor Amadeu
Araújo.
Para este capítulo foram consideradas duas unidades de análise: “Corpo, escrita e
cotidiano” e “Corpo, escrita e sexualidade”. Lembrando que a caracterização dos sujeitos
exposta neste capítulo abrange os alunos-autores dos textos apresentados no capítulo que
segue, no qual serão introduzidas mais duas unidades: “Corpo, escrita e fruição poética” e
“Corpo, escrita e outras histórias”. Tal estrutura foi organizada a partir do que foi
evidenciado de forma mais significativa e recorrente nos textos analisados, considerando-se a
pertinência com o objeto de pesquisa (relação corpo/escrita no contexto escolar), a evidência
de experiências estéticas, a estrutura textual, a criatividade e a presença de elementos capazes
de evidenciar a relação proposta. A organização apresentada encontra-se enquanto
necessidade de uma estratégia metodológica, considerando-se que os elementos manifestam-
se na complexidade corporal, não permitindo fragmentação.
Os textos não seguem uma linearidade cronológica, sendo selecionados e organizados
de acordo com a relação entre a temática abordada e as reflexões tecidas, priorizando-se,
dessa forma, o caráter qualitativo observado.
Todos os registros, na íntegra, estão organizados em quatro volumes produzidos por
turmas diferentes, durante os períodos letivos de 2000 e 2005, ressaltando que, por falta de
recurso financeiro nem todos os alunos-autores dispõe de um exemplar dos livros produzidos.
8
Os alunos, sujeitos da pesquisa, são, em sua maioria, pertencentes à famílias de baixo poder aquisitivo e
residentes nos diversos loteamentos criados nas adjacências do Conjunto Habitacional Nova Natal, onde fica
localizada a Escola Municipal Professor Amadeu Araújo, campo empírico da investigação. A faixa etária dos
mesmos, quando da construção dos textos, variavam entre 9 e 19 anos de idade e suas produções remetem a
experiência desenvolvida entre os anos de 2000 e 2005.
65
Os registros ficaram à disposição de cada um, para reprodução, sendo sorteado alguns
exemplares entre eles.
Ao tratar-se de relações humanas, alguns cuidados foram considerados essenciais.
Neste caso, os nomes divulgados são fictícios, pois apesar de se tratarem de textos
publicados para a comunidade escolar, na ocasião, não havíamos previsto uma divulgação
mais abrangente, de forma que, para evitar possíveis constrangimentos, em respeito à
privacidade de cada um, e, assumindo uma postura ética, optei por não revelar os nomes reais
dos autores.
Corpo, escrita e cotidiano
Nenhuma escrita nos falaria tanto se não estivesse, em maior ou menor proporção,
registrada em nosso corpo. Os fenômenos da vida com os quais nos deparamos nos falam de
algo que, de alguma forma, se faz presente em nossa vida, seja através de um contato
direto, epidérmico, ou manifestados nos símbolos culturais, contribuindo para os novos
sentidos que construímos a partir das referências tecidas num mundo de possibilidades. É
assim que saímos do âmbito da hominização, no sentido de simplesmente pertencer à espécie
humana, para adentrar na esfera da humanização propriamente dita, com vistas a construir o
sentido das relações que se estabelecem entre o sujeito e o mundo conforme sugere Resende
(1990). E é assim que se constitui no cotidiano, a experiência simbólica, ressaltando neste
caso, a linguagem escrita.
Neste capítulo proponho-me a enveredar pelos caminhos que levam ao cotidiano dos
alunos-autores, evidenciados através de sua escrita, enquanto linguagem corporal. Dessa
forma, esboço um panorama desses sujeitos, contextualizando-os histórico e culturalmente,
estabelecendo um diálogo com os textos selecionados a partir deste foco. Nesta perspectiva
priorizei como modalidade textual, as narrativas de vida, por reconhecer a riqueza deste
gênero, no sentido de considerar as vozes dos sujeitos como ponto de partida para as reflexões
tecidas. Com base em Baitelo Júnior (2001), o corpo constitui-se de história e histórias, de
vozes do passado e do futuro, de arqueologias oníricas e sonhos arqueológicos. Assim
compreendido, o cotidiano não se limita ao aqui agora, mas aos movimentos delineados pelo
corpo e pelos corpos nos diferentes tempos e espaços, através dos quais estes descrevem sua
trajetória de vida.
66
Ao registrar esta trajetória, ao retomar as experiência de ser no/com o mundo,
reconstruímos, mobilizamos a memória afetiva, as funções cognitivas, a imaginação, por sua
vez, impregnadas de valores e crenças sociais, das vozes do passado e de subjetividade. Nesse
processo, a história pessoal e coletiva, o cultural e o biológico manifestam-se enquanto
unidade corporal, aqui representada, simbolicamente, através da escrita.
“Ao narrar-se, a pessoa parte dos sentidos, significados e representações que são
estabelecidos à experiência” (SOUZA, 2006, p. 104), portanto, optar pelo texto narrativo para
discutir a relação corpo, escrita e cotidiano traduz-se num exercício de aproximar as
interpretações, valorizando o papel da escrita enquanto registro do corpo, respeitando o aluno-
autor em sua dimensão de sujeito.
Compreender o que está escrito, apontando para as linhas e entrelinhas dessas
produções, para além da leitura de palavras, enquanto código, implica em adentrar nas
nuances de cada corpo, cuja fala, muitas vezes é evidenciada pelo que não está escrito, ou
seja, nos espaços existentes entre um registro e outro, abrindo caminhos para diferentes
interpretações. Faz-se pertinente ressaltar que durante a produção das narrativas
autobiográficas os alunos, além de um exercício de memória, foram orientados a recorrer à
família, no sentido de investigar fatos marcantes em suas vidas, de forma que alguns
acontecimentos foram narrados com base nestas fontes. As interpretações aqui apresentadas
são respaldadas pelo referencial até então anunciado, articulado às experiências
compartilhadas junto a estes alunos, evidenciando-se enquanto uma das inúmeras
possibilidades de compreender o fenômeno (corpo/escrita), procurando contribuir para novas
reflexões acerca do tema.
Os trechos citados foram produzidos a partir de situações didático-pedagógicas que
serão apresentadas durante o processo para situar o leitor no contexto da produção. Ressalto,
porém, que o foco desta investigação situa-se na análise das produções, apontando a escrita
como linguagem corporal, buscando elementos capazes de identificar esses corpos que se
evidenciam através dos textos.
No ano de 2003 desenvolvemos, nas séries iniciais do ensino fundamental e Salas de
Aceleração, um projeto coletivo com foco no tema “Identidade”. No momento eu assumia a
coordenação pedagógica do turno matutino e lecionava numa Sala de Aceleração. Na ocasião
cada professor redimensionou o projeto de acordo com as especificidades de suas turmas. Este
projeto teve como objetivo aproximar os alunos da escola, promovendo o sentimento de
pertença dos mesmos, através de situações que evidenciassem relações entre suas experiências
de vida e o contexto escolar, ampliando suas possibilidades de ação no mundo.
67
O grupo com o qual eu trabalhava era constituído de 32 alunos, com idades entre 14 e
17 anos, encontrando-se em diferentes níveis de aprendizagem e com um histórico escolar
marcado pela repetência e exclusão social.
Os procedimentos metodológicos partiram da organização coletiva de um
questionário, a partir do qual os alunos, junto à família, registraram fatos importantes de suas
vidas. Com base nas questões delineadas procuraram investigar informações acerca do local e
data de seu nascimento, das principais travessuras de infância, dos momentos mais
emocionantes (tristes ou felizes) vivenciados, dos lugares onde haviam morado, dos
amigos e de situações que marcaram suas vidas como brincadeiras preferidas, primeiro dia de
aula, primeira paixão, etc.
Os dados registrados foram reescritos, corrigidos coletivamente e os alunos
construíram uma linha de tempo, organizando estes fatos a partir de uma seqüência
cronológica, o que permitiu uma maior compreensão, com relação ao tempo histórico e
cronológico.
O repertório de informações trazidas pelos alunos, com o apoio das famílias, permitiu
a organização contextualizada dos conteúdos e situações didáticas que foram desenvolvidas
durante todo o ano letivo, envolvendo as diferentes disciplinas. Destaco entre estas: o trabalho
com mapas para localização de suas cidades natal, região, país; os cálculos envolvendo
distâncias entre as cidades, utilizando a escala cartográfica; a confecção de gráficos e tabelas
com informações sobre a turma; a discussão e identificação de aspectos históricos e
geográficos contextualizados; uma pesquisa sobre a origem dos nomes dos alunos; trabalhos
com músicas para discutir origem dos nomes, a exemplo de “nome de gente” (Geraldo
Azevedo) e “Gente tem sobrenome” (Chico Buarque); a apreciação de filmes voltados para a
discussão das individualidades e diversidade, como “Mogli, o menino lobo” e “O cão e a
raposa”; seleção e leitura de textos didáticos e literários; registro e desenvolvimento de
brincadeiras e oficinas na própria turma e para as turmas de alunos menores, pelo grupo da
Aceleração; desenvolvimento atividades envolvendo a linguagem plástica, como desenhos e
pinturas; dentre outros.
De posse das informações coletadas e após o processo de reescrita, socialização e
construção de uma linha de tempo, os alunos foram orientados a transformar as informações
em narrativas autobiográficas. Durante o processo observava-se um aumento gradativo na
participação do grupo, bem como no processo de apropriação da linguagem escrita. Muitas
dificuldades também foram enfrentadas, desde a escassez de material, a freqüência irregular
de alguns alunos, que correram no final do ano para que seus registros também fossem
68
publicados. Muitos destes alunos foram sensibilizados durante o processo, outros, ainda
com pouca autonomia, exigiam minha presença o tempo todo junto a eles, quando dos
momentos de produção. A cooperação entre os alunos, o processo de releitura e de reescrita, e
acima de tudo, a relação entre o trabalho em sala de aula e as experiências de vida dos alunos
constituíram-se em fatores primordiais para a realização deste trabalho. O projeto culminou
com o lançamento do livro com os registros escritos.
Conseguimos, por este caminho, romper um pouco do silêncio a que são submetidas às
experiências dos sujeitos mergulhados sob rigidez e a formalidade ainda tão presente em
nossas escolas.
Dentre as linguagens corporais intencionalmente planejadas para o desenvolvimento
do projeto citado, destaco as linguagens escrita e artística. Neste sentido, os alunos tiveram a
oportunidade de apreciar e discutir a temática a partir de filmes e fotografias sobre o assunto.
Também compartilhamos da leitura e recitação do poema “Bandidos e heróis”, do cantor e
compositor potiguar, Babal, inspirado na participação das mulheres no Movimento do
Cangaço e criado especialmente para trilha sonora de um documentário apresentado pela TV
Educativa, cuja temática abordava este momento histórico.
O poema musicado chamou a atenção da turma, inspirando a formação de um grande
coral que se apresentou na culminância do Projeto e por ocasião do lançamento do volume
sete, no ano de 2005.
Analisando as produções escritas dos alunos podemos desvelar pontos significativos
sobre esses corpos, em seu cotidiano, manifestado entre o doce e o amargo das lembranças de
infância, conforme sugerem os textos abaixo:
Texto-1
[...] quando eu fiz um ano, gostava de jogar bola. Depois, quando eu
tinha dois anos eu cantava muito, mas ninguém entendia nada. Eu era um
menino muito bagunceiro. Minha mãe? Era difícil ficar em casa. Eu ficava
mais com minha tia e ia pra casa a noite porque ela chegava às seis
horas, quando eu ia para casa. Voltava no outro dia e assim eu fui
crescendo.
Quando eu tinha cinco anos, ficava com minha irmã que tinha dez.
Ela tinha medo, porque minha mãe saía às quatro da madrugada para ir
trabalhar. Mas quando mãe chegava, eu ia correndo abraçá-la e minha
irmã também [...]
(Valdo, 2004)
69
Texto 2
[...] cada vez que meu pai ficava descontrolado por causa da “cana”
queria bater na minha mãe. Até que um dia se separaram [...] Não tenho
muitas felicidades, fora um pai alcoólatra que nunca me deu nada, mas vou
tocando a vida com a ajuda da minha mãe, que não deixa eu desistir [...]
queria que as frutas fossem doces como antigamente e não queria que a
camada de Ozônio estivesse tão poluída. Sonho em ter uma família unida e
em ser feliz.
(Lippy, 2004)
Valdo, aluno de 13 anos
9
, perdeu seu pai ainda muito pequeno, porém aparentava lidar
bem com esta situação, demonstrando um grande envolvimento durante as atividades
escolares e um bom desempenho com relação à leitura, à escrita, além de um convívio social
marcado pela afetividade. O que não corresponde ao perfil de Lippy. Este, com 14 anos de
idade, apresentava irregularidade na freqüência devido às constantes viagens ao município de
Ceará-Mirim, onde residia seu pai. Não aprendeu a lidar com o sentimento da “perda”
causado pela separação dos pais. Com relação ao domínio da leitura e escrita, ainda não havia
sistematizado estes conhecimentos, implicando num acompanhamento pedagógico mais
individualizado, embora já tenha iniciado o processo de alfabetização, demonstrando uma boa
compreensão durante as discussões orais, emitindo opiniões convictas sobre aquilo que
pensava. Seu relacionamento com os colegas não era dos mais afetuosos.
Os textos 1 e 2 refletem um panorama do cotidiano vivenciado por parte significativa
das crianças e adolescentes que freqüentam a Escola. O reencontro desses alunos com suas
próprias experiências evidenciam corpos inseridos num contexto sócio-histórico e cultural
permeado pelos constantes desafios com os quais se deparam, cotidianamente. Percebemos
através desses escritos, a carência afetiva desses sujeitos, com relação a um adulto que o
acompanhe e o oriente no seu dia-a-dia. Dentre as mazelas que marcam este momento
histórico, merecem destaque os problemas sociais referentes ao alcoolismo, expressos no
texto de Lippy e a exploração infantil, anunciada no texto de Valdo, bem como o papel da
mulher na família e na sociedade, explícito em ambos os textos.
Tudo isto pode nos remeter à história mais específica de uma dada localidade,
considerando-se que, nesta comunidade escolar, dificilmente um aluno, não convive com pelo
menos, uma destas situações. Porém, mais do que isto, essas histórias também refletem um
9
Todas as idades apresentadas remetem ao período da construção do texto.
70
processo histórico mais amplo marcado por continuidades e descontinuidades, imprimindo
contextos de corpos atravessados por uma textura social, mas também individual, na qual os
humanos (se) constituem o mundo entre seu papel de sujeito e de objeto histórico-cultural.
Nesse caso, evidente nos dois relatos que retratam realidades tão semelhantes quanto
diferentes, considerando-se o contexto e as reações vivenciadas pelos dois protagonistas.
Muitas reflexões podem ser desencadeadas a partir das questões abordadas nos
registros desses alunos. Em se tratando de narrativas autobiográficas, retrata-se uma
reconstrução onde o que se diz é sempre uma questão de escolha, assim como o que fica por
se dizer ou fica interdito na simbologia das palavras. A linguagem escrita por Lippy nos
permite enveredar na simbologia de um corpo cuja sensibilidade nos remete às experiências
estéticas por ele vivenciadas, nos aproximando, enquanto humanos. Remetendo-me à Nóbrega
(2003) é possível visualizar na experiência sensível, perspectiva para uma nova racionalidade
a partir da corporeidade que unifica todos os sentidos, expressando a experiência humana de
forma profunda, com suas incertezas, sua imprevisibilidade e abertura a diferentes
interpretações.
Nessa perspectiva, o texto 2 oferece diferentes possibilidades de se pensar este corpo.
O corpo sensível, carente de afetividade, marcado pela ausência física e biológica do pai. Os
corpos mutilados dos pais que, segundo as crenças e valores religiosos, formavam antes uma
carne, uma unidade indivisível que é dilacerada pelo ato da separação. Uma divisão que
capaz de multiplicar a dor que transpassa o nível biológico para atingir a epiderme de um
terceiro corpo, o do filho. Esta dor reflete-se na sua capacidade de sonhar em ser feliz,
apontando como condição, a convivência com um modelo de família ainda permanente no
imaginário social, mesmo em meio às rupturas contrastantes presentes. ainda o corpo
biológico que, ao ser agredido pelo álcool, encaminha-se à degradação física, moral e social.
A complexidade do corpo que envolve a sensibilidade e subjetividade humana é
simbolizada ainda no doce das frutas que permeiam os sonhos de Lippy (texto 2). Um corpo
cujos sentidos se articulam em sua experiência de vida, no qual a doçura, supostamente presa
ao paladar, ultrapassa o nível biológico para dar acesso aos sabores e dissabores
transversalizados pelas sensações de cheiros, cores, sons e sentimentos impregnados em sua
pele, num tempo em que era possível conviver com o prazer de viver, cronologicamente tão
próximo, mas afetivamente, tão longe quanto a distância que separa seus pais. Assim, mesmo
imerso num mesmo “caldo cultural e histórico”, cada ser humano encontra possibilidades
diferentes de acolher e viver situações semelhantes, lembrando a versatilidade plástica do
sistema nervoso defendida por Maturana e Varela (2001), ao apontarem que esta plasticidade
71
não é derivada do fato de que o cérebro armazena representações das coisas do mundo, mas,
de um processo contínuo de transformação que se estabelece a partir da interação entre o ser
humano e o meio, permitindo históricos individuais diferentes de mudança estrutural.
Assim, podemos inferir que quanto mais ricas e diversificadas forem as experiências,
maiores são as possibilidades humanas.
Em “Reflexões sobre o corpo” o professor José Pereira de Melo nos leva a refletir
sobre o processo de distanciamento dessas possibilidades desencadeados por práticas sociais
limitadoras, apontando para a sutileza com que elas se desenvolvem, ao afirmar que o
distanciamento da nossa capacidade “ocorre de forma silenciosa, gerado pelos mecanismos de
controle e disciplinação que emergem de nossas relações sociais com as instituições e com as
outras pessoas” (MELO, 2005, p. 98).
Uma inserção mais sensível, desta vez ao texto de Valdo (1), nos leva a perceber tal
processo de distanciamento quando ele refere-se aos primeiros anos de vida, momento em
que, conforme revela seus escritos, sabia cantar, jogar futebol, além de se considerar uma
criança “muito bagunceira”. Tais registros, inscritos em seu próprio corpo e representado
através da linguagem escrita, também nos permitem afirmar que as linguagens corporais não
se encontram distanciadas uma das outras, mas se concretizam na unidade corporal.
O elemento cultural configura-se enquanto presença marcante na história dos corpos.
Corpo e cultura articulam-se influenciando-se mutuamente e nesse paradoxo, ora uma
influencia mais fortemente, ora é mais influenciada. Assim, com relação ao texto de Valdo, o
corpo cultural que aprendeu a cantar, a ser bagunceiro e a jogar futebol, enrijece alguns dos
seus gestos, desaprendendo a ser bagunceiro, deixando de cantar com a mesma liberdade,
porém continua jogando futebol, atividade inserida na cultura de movimento do seu contexto.
Acerca dessa influência social sobre o corpo, Melo (2005, p. 100) afirma que “a
sociedade [...] conduz cada um de nós a alterar nossa imagem corporal em prol de um modelo
social de corpo, e a nos submeter aos valores morais por ela defendidos” O autor ressalta a
situação de aprisionamento e de controle a que é submetido o corpo, chamando a atenção para
a necessidade e a possibilidade de um processo educacional que estimule uma leitura crítica
das imagens que, aos poucos, vão sendo tatuadas no nosso corpo.
Estas “tatuagens” são forjadas, segundo Melo (2005), pelo poder disciplinar das
instituições, pelos valores morais, pelos vícios de toda ordem, afastando-nos gradualmente da
harmonia corporal que tínhamos quando crianças, conforme pode ser ilustrado a partir do
texto de Valdo, culminando com o padecimento inerente às mais variadas síndromes.
72
O reencontro com o corpo também manifesta a dura rotina diária vivida por muitas
crianças e adolescentes, segundo o que expressam os registros que seguem.
Figura 6- Ilustração do texto: “Depoimento de um aluno trabalhador” realizada pela aluna Fafá
Fonte: Acervo pessoal da professora
Texto 3
[...] tenho 13 anos, comecei a trabalhar com três anos, lá em Campo
Redondo. Eu trabalhava cuidando de animais das fazendas dos vizinhos e
plantava para ajudar meus pais no nosso sustento. Mas depois a seca
chegou, as plantas e animais começaram a morrer. Ficou difícil trabalhar
na terra.
Mudamos para Natal. Em Natal procurei escola e emprego. No início
foi difícil, mas com muita luta, consegui.
Cheguei com dez anos, arranjei trabalho e escola. O trabalho é de
ajudante em um depósito, ganhando R$ 25,00 por semana, aí meu pai
colocou um bar em casa. Eu e minha mãe começamos a trabalhar fora e em
casa. Até hoje trabalho no mesmo depósito. Sempre fui trabalhador, um
lutador pela minha vida e a vida da minha família.
Acordo cedo, faço café e saio para caminhar com minha mãe, quando
chego, acordo meus irmãos e os levo para o colégio. Depois vou trabalhar,
volto em casa, me arrumo e vou para o colégio. De duas e trinta saio do
colégio, vou em casa almoçar. De três horas volto para o trabalho, às seis
horas vou para casa, janto e como o dia foi cheio, vou dormir cedo.
.
(Francisco, 2000).
Francisco, 13 anos, autor do texto 3, nos remete em vários pontos, ao processo de
exclusão social vivido por muitos brasileiros. O êxodo rural provocado, acima de tudo, pela
seca ainda revela-se dentre os muitos problemas sociais marcantes em seu texto. Vale
73
salientar que parte significativa dos alunos da Escola Municipal P. Amadeu Araújo chegaram
à Natal nas últimas décadas, à procura de melhores condições de vida, formando os diversos
loteamentos que se multiplicam sem um planejamento prévio, na zona Norte deste município.
A exploração infantil nos leva, mais uma vez, a refletir sobre a consolidação dos
direitos da criança e do adolescente, que segundo revela o relato deste aluno, é transgredido
em vários momentos, desde o direito à saúde, à educação, ao lazer, dentre outros.
O texto de Francisco foi produzido a partir do projeto “O trabalho infantil e suas
implicações”, desenvolvido numa turma de alunos com distorção idade/nível de ensino, em
processo de alfabetização (Ensino Fundamental), onde lecionei no ano 2000. O projeto, que
teve duração de um semestre, emergiu da constatação de um grande contingente de alunos
inseridos no mercado informal de trabalho, desrespeitando os direitos das crianças e dos
adolescentes. O objetivo deste trabalho consistia em conhecer o contexto social do aluno e, a
partir dele, estabelecer relações com os direitos e deveres voltados para esta fase de vida,
possibilitando uma ampliação no campo de ação destes alunos, concernentes à
conscientização sobre seus direitos, deveres e do seu papel na história.
Dentre os principais procedimentos metodológicos, num âmbito mais amplo,
envolvendo a comunidade escolar, destaco a participação dos alunos e professores da Escola
em palestras e debates, junto ao Conselho Tutelar, em parceria com o Departamento de
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estas ações foram
desencadeadas a partir da constatação de atos de violência, principalmente, física, por parte de
alguns alunos, dentro e fora da escola. Porém, mais especificamente com relação à turma, foi
exibido e discutido um Programa do “Globo Repórter” que abordava sobre o trabalho infantil
no Brasil além de filmes e textos sobre o tema (meninos do carvão, Juca das Flores). O
trabalho mais relevante, cuja participação dos alunos se deu de forma mais intensa, constatou-
se durante uma pesquisa pela comunidade escolar e no bairro de Lagoa Azul, onde encontra-
se inserida a Escola Municipal Professor Amadeu Araújo. Através de entrevista e registro
fotográfico os alunos identificaram crianças e adolescentes trabalhadores, dentre eles
carroceiros, vendedores ambulantes, domésticas, babás, os que trabalham em feiras livres,
transportando as compras dos clientes em carrinhos de mão, além daqueles que trabalham
cuidando dos próprios irmãos menores e/ou da casa, enquanto seus pais trabalham fora.
A representação plástica como a confecção de cartazes e maquetes representando os
pequenos trabalhadores em seu contexto, realizando as diferentes atividades pelo país, como
os que atuam na fabricação de carvão e de tijolos, na região sul e os coletores de babaçu, da
região norte, foram marcas de atividades artísticas realizadas. As maquetes confeccionadas
74
em grupos, na quadra da Escola, consistiu num dos momentos mais prazerosos do trabalho,
pois a escassez de material convencional e a variedade de material alternativo contribuíram
para mobilizar a criatividade dos alunos que misturaram diferentes elementos (argila, papel,
papelão, tinta, cola, areia, pó de madeira) alcançando um belo resultado.
Os debates, a produção de diferentes gêneros textuais, como entrevistas, listas de
atividades, a leitura de artigos contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, depoimentos
dos alunos, como o desenvolvido por Francisco, autor do texto 3, mobilizaram o grupo,
favorecendo a ampliação dos seus conhecimentos prévios. Procurou-se, através dessas
situações didáticas, ampliar o campo de conhecimento dos alunos, valorizando seu potencial
criativo, a partir de suas próprias experiências vividas. Pois, respaldada em Sírio Possenti
(1996), acredito que a escola não ensina propriamente uma língua, mas a modalidade escrita
da mesma. Ou seja, os alunos, e em especial os adolescentes chegam à escola com um
repertório lingüístico amplo, cabendo aos educadores criar possibilidades metodológicas
capazes de ampliar este potencial para novas formas de linguagens, como é o caso da escrita.
Ainda segundo este autor reduzir a metodologia aos exercícios repetitivos, reflete uma
concepção de aquisição de conhecimento que não difere, qualitativamente, os homens dos
outros animais.
Contextualizado o projeto que deu origem ao texto 3, voltemos aos registros de
Francisco. De acordo com o artigo 60 do Estatuto da Criança e do adolescente “é proibido
qualquer trabalho a menores de 14 (catorze) anos de idade, salvo na condição de aprendiz”,
distanciando-se da realidade expressa pelo protagonista que deixa transparecer em seu relato,
a impossibilidade de viver momentos específicos de ludicidade, de lazer e de outros direitos
que lhe deveriam ser assegurados, mediante sua dura rotina diária.
Compreendemos que as situações lúdicas resistem às amarras impostas pela sociedade,
de forma que momentos de jogo emergem, mesmo diante as condições mais adversas. Porém
consideramos que a existência de um espaço lúdico se faz essencial como possibilidade de um
encontro com o real, que pode ser vivenciado ao modo de cada sujeito. Alves, citado por
Bruhns (1993) adverte que através do lúdico não está se pretendendo uma evasão da
realidade, mas, ao contrário, procura-se recriá-la, transgredindo uma lógica dominante,
tornado-se criativo. Com base em Huizinga (2001) eu diria que brincar é essencialmente um
ato de ousadia, através do qual o brincante arrisca-se, enfrentando as tensões e as incertezas
que permeiam as situações reais. No caso de Francisco, estes riscos são vividos, em sua
maioria, em situações reais, contribuindo pouco para o desenvolvimento do seu potencial
75
criativo e forjando marcas que se inscrevem em seu corpo, sem o prazer inerente às
brincadeiras.
Remetendo-me a sua forma de agir em sala de aula, recordo que Francisco
demonstrava um comportamento muito sisudo, lembrando o adulto em miniatura, criticado
por Rousseau, no “Emílio”. Algumas vezes, chegava tão cansado que acabava cochilando,
porém nunca perdia um dia de aula. Talvez a escola representasse para ele, o único lugar
no qual seu corpo pudesse, enfim, descansar.
O cotidiano de Francisco ganha leveza na representação gráfica de Fafá (figura 3), que
procura utilizar-se de cores mais suaves, nos permitindo interpretar outras possibilidades
diante da dureza da vida de Francisco que confunde-se ao dia-a-dia vivido por muitas outras
crianças e adolescentes, conforme pode ser representado pela escrita de Lelê:
Texto- 4
[...] quando completei quinze anos eu comecei a trabalhar na feira
vendendo limão. Eu tenho muitos fregueses e todo dia deixo limão para
eles. Eu não perco aula nem um dia, quando chego do colégio, almoço e
vou trabalhar [...] Minha mãe trabalha na feira. Eu e mais três irmãos
ajudamos a ela. Eu tenho muito orgulho do meu trabalho. Meu sonho é ser
jogador de futebol.
(Lelê, 2004)
Lelê, 17 anos, fazia parte de uma família numerosa e mesmo trabalhando como
vendedor de limão nas ruas e em feiras livres, onde também pega fretes
10
, não perdia um
dia de aula, demonstrando sede de aprender e um ótimo relacionamento social. Ele tem muita
experiência a compartilhar com os companheiros. Vinha direto para o colégio após a primeira
jornada de trabalho, retomando à segunda jornada após passar em casa e almoçar. Durante o
processo letivo, observando sua dificuldade em grafar e ler as palavras, o orientamos a
procurar um oftalmologista. Na época sua mãe não conseguiu ser atendida pelo SUS (Sistema
Único de Saúde) e o aluno foi encaminhado pela Escola, durante uma Campanha de
Oftalmologia, detectando-se, dessa forma, que o mesmo sofria de miopia, com uma perda de
acuidade visual correspondente a 7 graus, em cada olho.
Além de uma rotina marcada por uma competição, onde quem está em jogo é a
sobrevivência humana, o texto de Lelê, assim como o de Francisco, nos permite tecer algumas
reflexões sobre um contexto social que se reflete diretamente no contexto educacional,
10
Termo comumente utilizado para designar atividade de transportar mercadoria (s), desenvolvida por
proprietário de algum tipo de transporte. No caso de Lelê, um carrinho de mão.
76
inserido nesta situação. Conforme podemos perceber a necessidade de trabalhar, que
desencadeia polêmicas sobre o trabalho infantil, também afasta muitos alunos da escola,
refletindo-se no índice de evasão, evidenciando um pouco a complexidade da situação
educacional que, embora implique na ação pedagógica, não se resume a ela. A leitura dos
textos mencionados também nos permite vislumbrar a esperança destes alunos, em encontrar
na escola uma possibilidade de mudança pessoal e social.
Podemos vivenciar uma situação caracterizada pela ambigüidade entre os resultados
das avaliações desenvolvidas pelo Sistema de Avaliação Educacional Brasileiro e as
expectativas de parcela significativa dos alunos que procuram a escola. Este fato pode ser
constatado no contato com os próprios alunos. Em um levantamento realizado pela Escola
Professor Amadeu Araújo, com o intuito de atualizar a caracterização da mesma, os alunos
demonstraram acreditar nessa instituição, como possibilidade de ascensão social e/ou pessoal,
reafirmando o resultado de uma pesquisa realizada por Ferreira e Santos (2005) professores de
uma escola Estadual do RN, localizada em Natal, junto a um grupo de 70 alunos da EJA no
ano de 2005.
Esta investigação teve como base, os textos produzidos pelos alunos, permitindo traçar
um perfil sócio-econômico dos mesmos. Dentre outros dados, destaca-se a confirmação de
que os alunos ainda demonstram um crédito na escola como fio de esperança para mudar a
realidade, bem como possibilidade de conquistarem autonomia enquanto sujeitos e cidadãos.
Ainda segundo esta pesquisa, os alunos consideram a leitura e escrita como práticas sociais
indispensáveis para uma sociedade letrada, chamando a atenção para a relação
analfabetismo/exclusão social.
Tal constatação reflete-se nos textos de Francisco e de Lelê, que evidenciam o valor
atribuído à Escola, reafirmado na priorização desse momento em suas vidas, concretizada
através da assiduidade com que freqüentam este ambiente.
Com relação ao sistema de avaliação, vale ressaltar seu distanciamento no que se
refere à história de vida de alunos e professores. Acerca do que critica Demo (2000) ao
referir-se aos padrões internacionais que norteiam esse processo avaliativo em nosso país. O
autor ainda permite refletirmos sobre a ênfase direcionada ao ensino, em detrimento à
aprendizagem, inclusive do educador, afirmando que:
Imagina-se que a aprendizagem melhore apenas por meio de cercos cada
vez mais duros de avaliação, obrigando professores e alunos a atingirem
escores predeterminados, também sob pressão da comparação internacional
(DEMO, 2000, p. 23).
77
Eis o grande desafio de ser educador, aprender a lidar com estes e outros limites para
transformá-los em desafios, e enfrentar os desafios para podermos superar os limites, como
bem nos adverte Demo (2000).
Dentre estes inúmeros desafios enfrentamos o de seduzir os alunos e construir junto a
eles os sentidos inerentes ao espaço escolar. Esse desafio se torna maior quando o direito a ter
acesso aos conhecimentos culturais sistematizados, como são o caso da leitura e da escrita,
disputam lado a lado com o direito a outras necessidades básicas de sobrevivência. Nesse
caso, contar com a esperança dos alunos constitui-se num passo fundamental nessa
caminhada, galgada a passos lentos e constantemente permeada pela coragem de recomeçar.
É preciso relembrar sempre de que o novo surge a partir dos limites, pois aquilo em
hoje acreditamos, teve como base os limites impostos pelas ciências positivistas, cujos
méritos também não podem ser descartados. Estas, por sua vez emergiram dos limites
provocados pelas incontestáveis “verdades” das crenças religiosas, e assim por diante. E mais,
todos esses valores encontram-se presentes no mesmo tempo-espaço, manifestando-se mais,
ou menos, nas ações humanas. Dessa forma, os parâmetros nos quais hoje me fundamento
estão permeados de limitações que fundamentarão outros pontos de vista, outras verdades,
novas interpretações.
Em meio a todo este “caldo cultural” constatamos que os limites inerentes a uma
sociedade excludente, podam muitos alunos de vivenciarem atividades lúdicas como os jogos
e brincadeiras. Reporto-me à professora Lourdes Freitas (2003) para reafirmar que através do
jogo a realidade pode ser transformada em brincadeira e a brincadeira em realidade, numa
cumplicidade, onde ambos realizam-se na ação corporal. Talvez essa tenha sido a forma
encontrada por Nete, cujo texto revela uma forma bem humorada de lidar com o acúmulo de
trabalho doméstico.
Texto 5
Meu dia em casa é muito legal. Eu faço muitas coisas como: varrer casa,
lavar e passar roupa, passar o pano na casa, lavar louça e o que eu mais
gosto é de estudar e de cuidar dos meus primos.
(Nete, 2004)
Nete, autora do texto 5, é uma aluna de 14 anos de idade e no momento vive com a
avó devido às brigas e separações constantes dos pais. Começa a despertar para a
sistematização da linguagem escrita, demonstrando, inicialmente, muita insegurança durante
as atividades e no relacionamento com os colegas, para ela um tanto estranho após conviver
78
três anos seguidos numa turma inclusiva, sem alcançar muito êxito. Conhecendo a situação da
aluna, por assumir a função de Apoio Pedagógico no turno matutino, no qual ela estudava,
conversei com a mesma sobre a possibilidade de mudar de sala e de turno. Após uma
conversa coletiva que envolveu sua família, a professora, o apoio pedagógico e a própria
aluna, a transferimos para o turno intermediário, considerando-se que o convívio com alunos
de faixa etária mais aproximada poderia despertar-lhe maior interesse.
O texto de Nete possibilita uma discussão sobre a compreensão referente ao elemento
lúdico, pois, mesmo que, a primeira vista, possa parecer contraditório, ele encontra-se
atravessado pela ludicidade. Apesar de afirmar que seu dia-a-dia é muito legal, se pensarmos
o lúdico como atividade relacionada ao que se conhece tradicionalmente como jogos e
brincadeiras, nas suas formas padronizadas, não identificaremos, na sua rotina, indícios de
ludicidade, considerando-se as atividades desenvolvidas pela aluna. Este fato, no entanto, não
garante que a ludicidade não permeie as atividades vivenciadas no seu dia-a-dia. Por outro
lado, sua escolha em transformar essa rotina, que para muitos pode representar algo monótono
ou cansativo, numa grande brincadeira, também pode expressar o uso simbólico da linguagem
escrita para ironizar ou esconder seus verdadeiros sentimentos, ou seja, o elemento lúdico
ausente na experiência vivida se evidencia na sua representação escrita.
O jogo lúdico permite uma suspensão da realidade, mobilizando a criatividade a
caminho da realização de desejos impregnados no corpo do sujeito, ultrapassando a
racionalidade e refletindo o imaginário de cada um, atravessado pela cultura. Segundo João
Nunes, (2006), o jogo se realiza no campo do imaginário e sua intencionalidade não se
inscreve numa lógica linear, mas, na racionalidade do sensível, onde o lúdico é sua natureza
epistêmica, sendo este impregnado de desejos individuais e de significações culturais. Assim
retomando o texto 5, não poderíamos apostar numa explicação lógica para afirmar se a
situação lúdica presente no texto de Nete deve-se a uma experiência vivida num contexto
anterior ou a partir do ato da escrita. Diante da complexidade humana, remeto-me a Mendes
(2006, p.125-126), ao lembrar que o corpo é possuidor de zonas de silêncio, sendo, portanto,
impossível conhecê-lo integralmente. “Pois, ao mesmo tempo em que se mostra, o corpo
humano é capaz de esconder-se”. Enfim, o texto escrito se configura como uma recriação da
realidade, não se evidenciando enquanto a própria realidade e seja no uso da escrita para
camuflar uma situação real ou na possibilidade de sua rotina remeter a uma situação de
ludicidade, de jogo, de prazer, o registro escrito da aluna permite afirmar que o mesmo
encontra-se atravessado pelo elemento lúdico.
79
Situação inversa pode ser observada a partir da escrita de Léo, através da qual ele
revela, por meio da linguagem escrita, o que lhe parece quase impossível por meio dos gestos.
Texto-6
Existe uma coisa que marcou minha infância. Um dia minha mãe me deu
um lápis. Eu ainda era pequeno[...] Tinha até um coração na cabeça do
lápis. Por isso eu nunca queria fazer a ponta, com pena do coração, na
cabeça do meu lápis[...] Nunca mais pude ver minha mãe, pois meu pai se
separou dela, mas nunca vou esquecer da lembrança que ela me deu.
(Léo, 2004).
A sensibilidade de Léo, demonstrada através de sua escrita, requer uma leitura muito
além das palavras enquanto código ou simples sinais gráficos. Não é difícil identificar a
experiência estética inscrita em seu corpo, quando se remete à memória afetiva e às
sensações, no encontro com sua mãe e com o lápis, enquanto objeto estético.
Com relação a este encontro vivido por Léo, vale lembrar a compreensão apresentada
pela professora Ana Cristina Araújo, ao referir-se à experiência estética. Segundo a autora, “a
experiência estética nos remete a uma forma de pensar as relações com o mundo, pautada na
estesia, como capacidade de perceber o mundo vivido a partir da sensibilidade do corpo”
(ARAÚJO, 2005, p. 33).
Considerando-se o corpo enquanto guardião de muitos segredos, pois sempre é além
do que se mostra, o encontro corporal com o texto produzido por Léo também me possibilita
vivenciar uma experiência estética, acima de tudo, pelo fato de conhecê-lo e de presenciar
diariamente, em seus gestos e atitudes, uma dureza que contrasta com tamanha sensibilidade
inscrita em seu corpo e expressa em sua escrita.
Tais atitudes me remete novamente ao processo de distanciamento do corpo, tratado
ainda a pouco com base em Melo, sendo também abordado por Maturana, segundo o qual,
“nada humano ocorre fora do entrosamento do linguajar com o emocionar, e, portanto, o
humano vive sempre em um conversar” (MATURANA, 1998, P. 86).
O autor critica o controle e a negação do emocionar pela sociedade que, cada vez mais,
priva o humano de expressar suas emoções, considerando-as como algo não racional.
Maturana afirma que é no conversar que surge o racional.
80
Esta preocupação é também abordada em “A busca da Excitação”, obra de Norbert
Elias, onde este tece reflexões sobre o processo civilizatório. O autor chama a atenção para os
caminhos do controle social. Estes nos tornam tão habituados a não agirmos de acordo com
nossos sentimentos, que esta restrição, freqüentemente, nos parece normal, tornando-se
automática. Dessa forma, muitos adultos, em nossa sociedade,
[...] mesmo que o desejassem não podiam mais abrandar o desenvolvimento
interno do controlo. Esqueceram por completo, como fora difícil para eles,
em tempos, não fazerem aquilo para que sentiam inclinação, como os
adultos se empenhavam, com uma elevação de sobrancelhas, com palavras
duras e doces, e talvez com algo mais que palavras, para que controlassem
as suas ações, até que o domínio, de acordo com o padrão habitual na sua
sociedade, já não exigisse esforço (ELIAS, 1992, p. 166).
Norbert Elias refere-se a uma “segunda natureza”, ao tratar desse autocontrole,
alcançado a partir de um processo que exige um determinado grau ou padrão de “treino”, que
varia entre as diferentes sociedades.
No caso de Léo, esse autocontrole relaciona-se a uma tradição cultural que não
permite, por parte do sexo masculino, atitudes que demonstrem sensibilidade ou afetividade,
fazendo de seu escrito um ato de transgressão e exigindo-lhe, além de coragem, um ambiente
de confiança, onde pudesse expor tais sentimentos sem o perigo de enfrentar situações de
constrangimento frente à turma. Grafar estas palavras e expor tais sentimentos diante do
grupo reflete-se na intensidade de um encontro estético que se estabelece entre o autor e o
leitor, especialmente aquele que o conhecendo pessoalmente como eu, reinventam um Léo,
cuja sensibilidade permanecia, até então, camuflada sob a rigidez de seus gestos.
Enquanto Léo expressa o reencontro com o corpo através da escrita, outros lançam
mão desta forma de linguagem e falam através das palavras não ditas. André, no texto que
segue, nos remete a um silêncio repleto de sentidos.
Texto-7
Minha família é muito grande. Eu tenho dez irmãos. Na minha casa nós
sobrevivemos pegando frete. Por uma parte é muito bom ter muitas pessoas
na família, mas toda família tem dificuldades, é... eu espero que isso mude
para melhor. Eu penso muitas coisas, penso em quase tudo. Mas vocês não
querem saber tudo que eu penso.
(André, 2005)
81
André, 18 anos, é o filho mais velho de uma família constituída por 11 filhos, pela
mãe biológica e pelo padrasto. Por várias vezes precisou abandonar a escola para trabalhar.
Foi meu aluno no ano 2000, quando se evadiu, voltando em 2005, após um histórico escolar
marcado por sucessivas reprovações e abandono. Apesar da freqüência irregular, devido às
atividades que realiza para sobreviver junto à família, André apresentava um bom nível de
compreensão com relação aos conteúdos trabalhados, além de um excelente relacionamento
social. Com relação à leitura e escrita, sua maior dificuldade era na sistematização deste
conhecimento.
Retomar sua narrativa me faz lembrar uma citação de Nóvoa (2001) encontrada como
epígrafe da obra “O conhecimento de si” de Eliseu de Sousa (2006). Ao referir-se ao texto
autobiográfico o autor afirma tratar-se de uma história que nós contamos a nós mesmos, na
qual o que se diz é tão importante quanto o que fica por se dizer. E a forma como se diz,
revela uma escolha, sem inocências, do que se quer falar e do que se quer calar.
Neste sentido, fazendo uma leitura do texto de André, é possível observar uma
intenção implícita de se ilustrar as grandes dificuldades vividas por uma família numerosa e
de baixo poder aquisitivo. Porém quantas reflexões nos permitem ser realizadas através do
não dito, expresso nas reticências? “É...”
André escreve para um leitor implícito do qual não espera uma compreensão ou uma
identificação imediata com sua condição social, pois, mesmo no meio em que vive, suas
marcas corporais são pouco comuns, de forma que refletir sobre sua experiência jamais levará
alguém a sentir no corpo o que o mesmo vivenciou e isto parece está claro para o aluno-autor,
nas palavras: “Eu penso em muitas coisas, penso em quase tudo, mas vocês não querem saber
tudo que eu penso”.
Com base em Cagliari (2000, p. 105), “a leitura não se reduz a um somatório de
significados individuais (letras, palavras, etc.), mas obriga o leitor a enquadrar todos esses
elementos no universo cultural, social, histórico, em que o escritor se baseou para escrever”.
Partindo desta compreensão, somente nesta perspectiva pode-se refletir acerca deste corpo
que fala e que cala.
Os registros até aqui apresentados constituem-se em fragmentos reveladores de corpos
que vivem uma história de exclusão social, econômica e afetiva, em alguns casos. Porém nos
oferece uma leitura de mundo que ultrapassa tais limitações. Para mim suas falas representam
possibilidades de desvelar uma identidade característica de um momento histórico. É uma
forma de anunciar, ou denunciar o cotidiano de uma maioria, quase sempre ocultada pelos
82
discursos veiculados pela mídia. É uma forma de poder falar: “Eu também faço parte da
história”.
Este momento de assunção é parte de um processo que se estabelece nas relações
sócio-afetivas, envolvendo certa cumplicidade entre os sujeitos, onde confiar no outro é um
passo primordial.
Este ambiente de cumplicidade não se constrói automaticamente, mas é lentamente
forjado durante a ação pedagógica permeada pelo respeito ao outro, na assunção dos nossos
limites e, acima de tudo, na capacidade de se acreditar nas potencialidades dos sujeitos. A
cada início de ano letivo, os alunos, quase sempre, demonstram dificuldades em registrar suas
narrativas, pois ouvir a fala dos seus corpos não tem sido um exercício muito comum no
ambiente escolar. A relação professor/aluno, pautada nos parâmetros de uma Pedagogia
Tradicional e os mecanismos de “adestramento” social parecem impregnados em seus corpos,
que, guiados pelo que Elias (1992) refere-se a uma “segunda natureza” sentem dificuldades
em expor suas emoções. Acostumamos-nos a falar sempre dos outros, sejam eles os heróis da
história ou os vilões da ficção. São sempre “eles”, os mesmos “eles” que habitam também a
maioria dos textos acadêmicos.
Paulo Freire, ao referir-se à falta de diálogo característica da Pedagogia Tradicional,
afirma: “Me parece que esta concepção de Educação não capacita, mas apenas adestra. E todo
tipo de adestramento é empecilho à saúde política de seres humanos” (Freire apud Nogueira,
1996 p. 11). Porém, remetendo-nos a Maturana (1998), apesar das regras e dos processos de
disciplina, muitas vezes até necessário, o ser humano dispõe sempre de um potencial criativo
dos movimentos corporais, referente aos processos de autopoiéses. Segundo esse autor, os
processos autopoiéticos referem-se à capacidade humana de estar sempre se renovando, se
autocriando.
Compartilho com a compreensão de que “a prática educativa é afetividade, alegria,
capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou lamentavelmente, da
permanência do hoje” (FREIRE, 1996, p.161). Neste sentido, procurar conhecer os alunos,
enquanto corpos inseridos no mundo, tem representado um encontro significativo,
possibilitando uma prática pedagógica reflexiva.
Assim, costumo iniciar o ano letivo com um longo diálogo sobre suas perspectivas
evidenciando a necessidade de um compartilhar das dificuldades e dos conhecimentos, bem
como ressaltando a relevância do respeito para si mesmo e com relação ao outro.
Recordo que em um desses diálogos iniciais, ao receber a turma do ano de 2005, pedi
para que socializassem oralmente sobre seus sonhos, suas utopias, seus desejos. Percebi,
83
diante de suas falas, que tinham medo ou vergonha de sonhar. Os que conseguiram expressar-
se por meio da oralidade, apontavam como sonhos, a satisfação de necessidades básicas,
como ter uma casa ou uma família. Lippy, adolescente de 15 anos, autor do texto 2 (p. 70),
alegou não ter sonhos. E só após alguns diálogos foi capaz de, com muita dificuldade,
compartilhar com o grupo o sonho de um dia possuir uma casa num sítio para poder trepar nas
árvores, comer frutas saudáveis e tomar banho de rio.
Sua atitude de não querer revela-se era lida por nós, naquele momento, como um
receio mediante uma forma “demasiadamente ousada de sonhar”. Temia a possibilidade de ser
alvo de risos ou chacotas por parte da turma. Parecia ser muito sincero no que afirmava e
tinha receio de não ser respeitado em sua fala.
Passados alguns meses, os alunos conseguiam expressar suas expectativas futuras
com mais naturalidade, na medida em que iam se fortalecendo os laços afetivos, bem como
construindo novos conhecimentos, desencadeando um clima de maior segurança, de acordo
com o ritmo de cada um.
Nesse percurso profissional, pude compartilhar de processos de construção da
linguagem escrita e de registros que me marcaram profundamente, não pela manifestação
dos corpos, mas também pela sua capacidade ou potencial criativo em superar-se
continuamente, considerando-se os novos desafios inerentes ao contexto sócio-cultural que
marcam nosso momento histórico. Estas marcas estão relacionadas ao processo da criação
sucessiva de novas necessidades, características de uma sociedade essencialmente consumista.
Muitos valores ficaram pelo caminho, os sentimentos tornaram-se temas secundários e o
amor, um sentimento descartável.
Segundo Maturana e Varela (1995), educar é desencadear mudanças estruturais,
desencadear perturbações através de coordenações de ações na vivência coletiva, ou seja,
criando espaço de convivência. Acredito que, por convivência, entende-se a inclusão do outro,
com os sentimentos construídos a partir dessas relações, sejam eles de dor ou de alegria.
A partir desta compreensão, arrisco-me em afirmar que o amor e o sentimento de
gratidão constituíram-se em inscrições corporais que contribuíram de forma relevante para a
alfabetização de Ângela, 18 anos de idade, que sempre freqüentou a escola, mesmo sentindo-
se excluída dela.
Nosso primeiro contato deu-se no ano de 2005, quando assumi uma turma de
Aceleração, da qual Ângela fazia parte. Em contato diário com esta aluna, que não perdia um
dia de aula, percebi, além de sua séria dificuldade de aprendizagem, uma imensa vontade
84
de aprender a ler e escrever. Quanto a mim, enquanto educadora, precisava aprender novas
formas de educar para atender as especificidades de Ângela.
Acerca das diversas situações em que somos desafiados no cotidiano educacional,
podemos ressaltar a contribuição de Paulo Freire (1996), em “Pedagogia do Oprimido”
quando o autor refere-se ao ato de educar como uma ação, na qual se ensina ao sujeito,
aprendendo a construir, arriscando-se, aventurando-se a ensinar, aprendendo a aprender. Para
tal é necessário ter esperança, pois sem ela não haveria história, mas o puro determinismo.
Ainda segundo este autor, respeitar a leitura de mundo do educando, significa tomá-la como
ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade de modo geral, e da humana de
modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento.
Garantir o acesso à linguagem escrita para Ângela traduzia-se em mais um destes
inúmeros desafios com os quais nos deparamos, enquanto educador. Precisava aprender a
aprender uma forma de ensinar, movida pela esperança da aluna, refletida na sua insistência
em acreditar, talvez mais na escola, do que na sua própria capacidade.
Acreditando no seu potencial, procurei conversar com colegas, ex-professoras da
aluna, e com ela própria. Nestes diálogos ficava clara, sua profunda tristeza e decepção,
assumida com relação à família, por uma série de motivos que não se faz relevante publicar
neste trabalho. Vale lembrar que, ao propor as produções escritas aos alunos, eu sempre
procurava partir de algum contexto, tomando como base suas experiências vividas, mas
deixando em aberto para que pudessem escolher outros temas mais significativos naquele
momento.
Aos poucos, pude perceber que, nesses momentos, Ângela se detinha a um mesmo
tema. Ou seja, ao sentimento de amor e gratidão a uma certa “Lulu”, cuja presença era
explicitamente significativa em inúmeros momentos da sua vida.
Dessa forma, se o nero textual proposto referia-se a um convite, ela convidava
Lulu; tratando-se de uma carta, era para agradecer a Lulu; no caso de uma narrativa, vinha
uma situação vivenciada com Lulu; Uma poesia, para Lulu. E assim por diante.
No processo do ano letivo fomos construindo laços de afetividade e já me falava com
mais confiança sobre sua vida. Fiquei sabendo que sua musa inspiradora tratava-se de uma
Senhora, amiga da família, que ao sentir-se rejeitada pelos filhos, estabeleceu laços de
afetividade maternal com Ângela e ambas tratavam-se como mãe e filha.
Como em toda relação humana, algumas vezes a aluna chegava decepcionada com a
amiga, mas o sentimento de amor permanecia marcante. Como educadora, arrisquei-me em
sugerir outros temas, mas diante seu entusiasmo com a aprendizagem da linguagem escrita e
85
com a satisfação em falar de Lulu, passei a intervir pedagogicamente no sentido de incentivar
seu contato com a nova forma de linguagem em desenvolvimento, procurando contribuir para
que esta se evidenciasse de forma significativa para ela, e não para mim. Seus textos,
inicialmente, baseavam-se no mesmo repertório, mas, muito lentamente, iam surgindo novos
elementos, enriquecendo o vocabulário e evoluindo gradativamente. Dessa forma, Ângela foi
alfabetizada.
A experiência vivida junto a esta aluna permite-me afirmar que é possível construir-
se no ambiente escolar, uma escrita de “corpo presente”. Termo, nesse caso, relacionado à
presença de um corpo vivo, transversalizado pelas diferentes situações de encontro. Um corpo
com suas nuances culturais, estéticas, políticas, afetivas, lúdicas... Evidenciando-se, dessa
forma, o potencial criativo inerente ao humano.
Durante o ano letivo os textos de Ângela passaram por um processo de revisão, junto
à aluna e os manuscritos iam sendo cuidadosamente guardados pela própria autora, tal qual
um tesouro cujo valor é proporcional à intensidade de encontro que se estabelece entre o
artista e sua obra. Ao final do ano letivo, considerando a singularidade da experiência, acabei
digitando todos eles. E após organizá-los em forma de um pequeno livro, entreguei-os para a
autora.
Selecionei uma seqüência de três textos produzidos por Ângela.
Texto- 8
Lulu, você é uma pessoa muito importante para mim
Você é como uma mãe.
Muito obrigado por ser minha amiga.
Feliz dia das mães.
Texto-9
Lulu. é muito especial para mim.
As filhas não entendem ela e maltratam muito ela.
Eu entendo Lulu e ela me entende, por isso elas ficam com ciúme.
Quero que ela seja muito feliz..
Texto- 10
O meu sonho é ser veterinária para cuidar dos animais, dar vida e carinho.
Tudo começou a partir dos cinco anos. Eu descobri gostar de animais
porque vi um animal doente e fiquei muito triste [..] os animais me fazem
muito feliz.[...] Meu outro sonho é mudar minha família, porque sou muito
infeliz. Eu vejo minha mãe ser muito maltratada e eu fico triste com isso...
(Ângela, 2005)
86
Conforme pode ser observado, o texto 10, o último da seqüência e do ano letivo,
produzido pela aluna, representa um avanço no seu repertório. Nesse momento ela começa
a interessar-se por outras leituras sugeridas, em especial os textos literários, que inicialmente,
tentava ler, apresentando muitas dificuldades, precisando de apoio. Podemos identificar a
partir da seqüência de registros da aluna-autora, um processo em que a escrita ultrapassa sua
dimensão de simples sinais ou mera reprodução de códigos resumidos à relação grafema
fonema. Trata-se, no caso, da assimilação da língua escrita, lembrando o que afirma Bakhtin
(1997, p. 94) ao esclarecer que “a assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é
completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento, pela compreensão”.
Ao contrário de uma aprendizagem pautada a partir de processamentos mentais,
Ângela ilustra uma situação, através da qual se pode reafirmar a compreensão de que não é a
atividade mental que organiza a expressão, mas é a expressão que organiza a atividade
mental. Ou seja, o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social, em
cuja atmosfera se constrói suas motivações, apreciações, etc. (Bakhtin, 1997).
No caso de Ângela, podemos associar sua relação com a amiga, enquanto motivação
para os novos sentidos que a aproximaram da escrita enquanto linguagem corporal, pois é na
relação do corpo no/com o mundo que ambos transformam-se mutuamente.
Não tive a oportunidade de continuar com Ângela no ano seguinte, pois me afastei
das funções pedagógicas para desenvolver esta pesquisa. Em 2006, conversando com sua
então professora, ela falou-me dos progressos da aluna, que no ano de 2007 se encontrava
11
no Nível III da EJA (correspondente ao e ano do Ensino Fundamental), na mesma
Escola.
A experiência de Ângela evidencia a mudança de foco, principal diferencial que
caracteriza a proposta desta investigação, que se situa exatamente em se considerar os
registros no corpo como condição para se alcançar os registros do corpo.
Em reencontro com a aluna-autora, ela falou-me da satisfação em mostrar sua
produção para a amiga, expressando dessa forma, seu sentimento de amor e gratidão, o que
não tinha coragem de declarar oralmente.
Conforme podemos perceber, os sentidos da linguagem escrita são construídos a
partir do encontro entre corpo, linguagem e a função social que realiza, no caso de Ângela,
expressar seus sentimentos, com relação a sua amiga. A experiência nos leva a acreditar que a
11
Segundo informações de ex-alunas, quando do processo final dessa investigação,em 2008, Ângela não vive
mais com seus pais, trabalha e continua estudando.
87
palavra não é apenas um instrumento de comunicação ou um vestuário de idéia; ela é uma
situação vivida, uma vivência, ou uma paisagem de cada pessoa, sendo por isso intransferível,
conforme defende Merleau-Ponty (1999). De forma que o acesso à linguagem escrita de
forma significativa, exige se vivenciar as palavras em sua concretitude.
Retomando as falas dos corpos, expressas através da escrita, parto do pressuposto de
que ler e escrever, para além do domínio dos códigos lingüísticos, implica numa leitura de
mundo, onde o sujeito precisa sentir-se incluído, reconhecendo no outro, sua própria história.
Neste sentido, concordo com a “neutralidade” da palavra apontada por Bakhtin (1997) termo
bastante polêmico, mas que neste contexto define-se pela sua capacidade de preencher
qualquer função ideológica, seja ela estética, científica, moral ou religiosa, sem se prender a
nenhuma delas, especificamente.
Cabe a escola criar situações significativas, considerando o contexto coletivo e
procurando respeitar as subjetividades de cada um, de forma a contribuir para que a
linguagem escrita não seja um privilégio apenas de uns, em detrimento de outros. E mais do
que isto, que a escrita possa revestir-se de significação para aqueles que a ela tem acesso. A
significação, segundo Bakhtin (1997, p. 131), “é um potencial, uma possibilidade de
significar no interior de um tema concreto” cuja estabilidade é mutável e provisória. Ainda
com base neste autor, a multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra, o
que ela é.
Acreditar, ou não, na capacidade do humano, como ser capaz de constante
transformação, apostando no seu poder criativo, reflete-se na ação pedagógica do educador e
na sua relação com os alunos.
Acreditar é um aprendizado que se constrói sob bases política, sócio-culturais,
históricas e afetivas, de acordo com as relações que estabelecemos no entorno e talvez
tenhamos muitos motivos para desacreditar, mas a experiência revela que inúmeros
caminhos a serem percorridos, e mais, que muitos deles dependem da nossa ação para serem
abertos.
Neste trabalho procuro sustentação numa educação pautada na experiência estética
“que considere o conhecer como um processo inerente à vida do conhecedor, no qual todo
organismo participa em congruência com entorno” (MATURANA E VARELA, 2001, p. 156)
e, mais do que instrumento, o corpo e suas linguagens possam se definir como condição de
transformação criadora da realidade e de sua própria existência. Neste sentido, as experiências
vividas se configuram como marcas que permeiam, a todo tempo, o processo educacional.
88
Os jogos dramáticos, as artes visuais (o desenho, a pintura), a música, a dança, o
cinema, constituem-se em linguagens que, sempre que possível, estiveram presentes como
preocupação pedagógica e inspiração para a produção dos textos dos alunos. Neste sentido
destaco mais uma experiência pedagógica que teve como atividade desencadeadora a exibição
do filme iraniano “Os filhos do Paraíso”. Este narra o drama vivido por um menino,
ressaltando-se os valores religiosos, morais e o contexto social como elementos capazes de
acentuar ainda mais a situação dramática enfrentada pelo protagonista. Apesar da evidência
do elemento dramático, o filme possibilitou a produção de textos marcados pela ludicidade.
Em “Os filhos o paraíso”, o protagonista da história enfrenta um drama, após ter
perdido o único par de sapatos da sua irmã. Durante a trama, precisa encontrar estratégias para
continuar a freqüentar a escola, ele e a irmã, com seu, também único, par de tênis, sem que os
pais, conservadores e em situação financeira lastimável, desconfiem do fato. Durante quase
todo o desenrolar da história, o menino corre, desesperadamente, da escola para casa e vice-
versa, para chegar a sua casa com tempo de revezar com a irmã, seu velho par de sapatos, de
forma que nenhum dos dois perca as aulas.
Após assistirem ao filme e de toda uma discussão acerca dos aspectos históricos,
políticos e relações pertinentes àquela cultura, estabelecendo relações com o Brasil e com o
contexto onde vivem, os alunos foram desafiados a registrarem, através da linguagem escrita e
gráfica, uma situação vexatória, vivenciada direta ou indiretamente. Em seguida os textos
foram socializados e os dramas acabaram com tom de comicidade, arrancando boas
gargalhadas entre o grupo e evidenciando seu potencial criativo.
Vejamos o texto seguinte:
Texto 11
A calcinha de pressão
12
Um dia fui fazer compras, entrei na loja, eu olhando as coisas bem
despreocupada, quando de repente, escutei um estalo ao lado.
Quando olhei, minha calcinha tinha desabotoado. Fui direto para o
banheiro. Quando cheguei à porta do banheiro, escutei outro estalo.
minha calcinha caiu. Olhei, ninguém via. Apanhei, botei dentro da bolsa e
fui embora como se nada tivesse acontecido.
(Jarlene, 2000)
12
Refere-se à peça do vestuário feminino (calcinha), muito usada nas décadas de 60 e 70, para modelar corpo,
confeccionadas com tecido de algodão e abotoadas com botões de pressão, sendo possível ajustar seu tamanho,
conforme uma cinta ou espartilho.
89
Figura 7-Ilustração deA calcinha de pressão”, realizada por Manoel, aluno da turma de Aceleração
Fonte: Acervo pessoal da professora.
Jarlene (autora do texto 11), 10 anos, pode ser considerada aquela aluna que não
apresentava problemas com relação à compreensão dos conteúdos, se encontrando
alfabetizada e pertencia a uma família que demonstrava um bom relacionamento afetivo.
Geralmente ajudava aos colegas durante as atividades relacionadas á leitura e escrita. Segundo
a aluna, o texto foi inspirado em uma situação vivida pela sua mãe.
Abordando sobre os elementos referentes ao filme, à princípio, poderíamos
evidenciar apenas a situação embaraçosa vivida pelos dois protagonistas (o do filme e o do
texto da aluna), porém o contexto sócio-cultural evidenciado no texto de Jarlene também
permite que apontemos uma situação de controle social que envolve valores característicos de
nosso contexto, apesar da sutileza com que aparecem.
Elementos como a preocupação feminina em exibir um corpo, segundo os padrões
clássicos de beleza, bem como um aprisionamento das emoções, lembrando mais uma vez a
“segunda natureza” apontada por Norbert Elias, encontra-se presente na reação do eu
narrador, mediante a constatação referente ao que estava ocorrendo.
O texto gráfico e o escrito permitem leituras instigantes. Podemos inferir a partir dos
mesmos uma situação ambígua e contraditória com relação ao corpo, considerando-se sua
dimensão sócio-cultural. Ou seja, os mesmos mecanismos sociais que ditam o que é e o que
não é permitido, levando os corpos ao constrangimento, também contribuem para o
aprisionamento de suas emoções, impedindo-os de manifestar os sentimentos desencadeados
90
pelas situações criadas. A leitura do texto escrito, bem como da imagem revelam esta situação
na qual a personagem, apesar de constrangida, esforça-se para que suas emoções não sejam
expressas.
O modelo socialmente permitido encontra-se bem ilustrado pela representação
gráfica de Manoel, que coloca em primeiro plano uma figura feminina com uma postura ereta,
padronizada. Porém, um pequeno gesto das mãos pode ser lido como um sinal discreto do seu
constrangimento. O autor da imagem baseou-se num personagem com biótipo característico
de uma mulher que, segundo os padrões vigentes, necessita de alguns ajustes, representado
pela “calcinha de pressão”, uma espécie de cinta modeladora, como forma de aproximar-se do
socialmente permitido. O imaginário de beleza também reflete-se na escolha das cores e nos
acessórios, cuidadosamente expressos na imagem, como cinto, sapato, meias, pulseira, sem
esquecer dos seios volumosos como marca social feminina, além do padrão masculino que
aparece em segundo plano na ilustração. Manoel ainda encontra lugar para um tom de
ludicidade, em meio ao drama, representado pela figura humana, cujo dedo denuncia o
registro da cena.
Assim, inseridos historicamente, corpo e linguagem revelam e são revelados, numa
relação recíproca, onde corpo é linguagem e toda forma de linguagem constitui-se em texto
corporal. Neste sentido, interpretar a escrita dos corpos incorre sempre numa atitude de
ousadia, pois este se constitui numa teia entremeada de elementos, cujas fronteiras entre o feio
e o belo, o doce e o amargo, o velho e novo, o drama e o lúdico encontram-se tão próximas
que no limiar entre um e outro, ambas se misturam.
O texto a seguir revela mais uma situação em que o drama pode desencadear
elementos de ludicidade, reafirmando formas surpreendentes relacionadas à manifestação do
lúdico no cotidiano dos alunos.
Texto-12
A minha primeira vez
Nunca levei uma surra. Mas hoje, vou te contar! Minha mãe estava
assistindo televisão e eu fiquei cantando. Minha mãe dizia: “Caio, caia
fora daqui! Caio, cale a boca!” Eu continuei cantando e ela pedindo
silêncio. [...] Cansou, pegou a chinela, levantou o braço e disse: “Cale a
boca” com tanta força que eu pensei que fosse quebrar meu braço. “Mãe!
Não!”
Mas assim que ela viu que a chinela estava perto do meu braço,
encostou bem devagarzinho e eu fui para o quintal.
Mas me deu uma vontade de fazer xixi direto, de tanto rir. Nunca mais
faço isso. Que susto! Mas foi tão divertido que vale a pena tentar de novo.
(Laine, 2000)
91
Figura 8- Ilustração do texto “A primeira vez” realizada pela aluna Fafá.
Fonte: Acervo pessoal da investigadora
As situações lúdicas podem surgir de onde menos se espera. Para mim, a ludicidade
desencadeada a partir do filme, delineou-se como um fato um tanto surpreendente, mediante o
estava previsto na intenção pedagógica, considerando-se, sobretudo, o caráter dramático,
como marca predominante no filme.
Mesmo de forma lúdica o texto apresenta elementos que permitem afirmar a
presença de corpos, cada vez mais cerceados de expressarem suas linguagens. A situação
exposta pelo protagonista retrata de forma bem humorada o cotidiano de significativa parcela
da população brasileira, marcando a presença da TV como um dos mais acessíveis meios de
entreterimento e de informação, bem como, mais uma vez, a disciplinarização do corpo, que
precisa permanecer em silêncio e sem movimento também no interior das residências.
Dessa vez, coube a figura da mãe, o papel de enquadrar os corpos, que
diferentemente dos mecanismos sociais, assume esse papel claramente. Mas, nesse caso, ao
mesmo tempo em que a disciplina como forma de controle, entra em cena, é possível também
destacar uma relação capaz de criar um espaço onde esses corpos podem expressar suas
emoções, o que fica evidente no ato de transgressão do filho e na atitude da mãe em dirigir-se
a ele, aos gritos. Esta relação pode ser vivenciada como um fato que se desencadeia entre o
jogo lúdico e a situação real. Pois como bem lembra Benjamim (1984, p.75), todo hábito
entra na vida como brincadeira, e mesmo nas suas formas mais enrijecidas sobrevive um
pouquinho de jogo até o final”.
92
E como bem nos lembra João Dias (2006, p. 387),
A criatividade presente no jogo relaciona-se a possibilidade de
flexibilização e manipulação da realidade, não sendo um fenômeno da vida
cotidiana. Todo jogo acontece no campo do imaginário, construindo uma
nova realidade, acessada e compreendida eminentemente pelos sujeitos que
participam da sua ação [...] impregnado de desejos individuais e de
significações culturais, ou seja, coletivas e sociais.
Assim, como caminho para que se possa perceber potencialidades da dimensão
humana da criação, conforme defende o autor, é possível imaginar a possibilidade de uma raiz
lúdica emergindo das mais adversas situações.
Um outro elemento comum entre os textos 11 e 12 que merece ser ressaltado reflete-
se por meio da linguagem gráfica, que juntamente a escrita se concretiza na ação corporal dos
alunos. Salientando que para o momento, estas foram produzidas por um grupo de alunos da
sala eleitos pelos colegas para ilustrar todo o volume produzido no ano de 2000.
A linguagem gráfica assume um papel muito especial como elemento capaz de dar
pistas sobre o contexto em que foi produzida a escrita. E como todo conhecimento depende de
situações de aprendizagem, podemos afirmar que sintetizar elementos de uma narrativa, numa
imagem única requer além de imaginação e criatividade, orientações sobre formas, linhas,
harmonia entre as cores, dentre outros conhecimentos cujo desenvolvimento requer estratégias
e situações pedagógicas.
As linguagens artísticas, e em especial o desenho, constitui-se num aprendizado que
emerge das relações entre o homem e o mundo, cujos vestígios indicam os primeiros atos de
linguagem, que marca a presença humana, através da ação corporal. Conforme define os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, ressaltando que
desde o início da história da humanidade a arte sempre esteve presente em
praticamente todas as formações culturais. O homem que desenhou um
Bisão numa caverna pré-histórica teve que aprender, de algum modo, seu
ofício. E da mesma maneira, ensinou para alguém o que aprendeu.
(BRASIL, 2001.p. 21)
Conforme podemos perceber, o desenho envolve uma aprendizagem que, além da
imitação, exige criação, experimentação, conhecimento, técnica, observação e reprodução.
Com isso, o papel da escola e do professor é criar condições variadas, através das quais, o
aluno possa experimentar e significar os seus desenhos, oportunizando-o a recriar o mundo
que o rodeia. O desenho, assim como outras formas de linguagens, se traduz em possibilidade
93
de contato com um mundo simbólico revestido de significados culturais que evidenciam
elementos inerentes aos modos como os humanos entendem e interpretam a realidade.
Merleau-Ponty (2006) faz uma relação entre as linguagens gráficas e a linguagem
escrita ao afirmar que “o desenho é de alguma maneira, um caso particular de escrita: Assim
como a letra A não se parece com o som A, também não é necessário que o desenho seja
representado pela projeção da coisa no papel”. Neste caso o autor refere-se á relevância do
desenho infantil e da Arte Moderna, assumindo uma crítica acerca da objetividade que marca
o desenho e a pintura clássica, pautados numa perspectiva universal, onde a Arte, assim como
a ciência, tem como objetivo reproduzir a realidade. Visto dessa forma as relações adjacentes
da ação do sujeito com o meio, sua capacidade de recriação da cultura, intermediado pela sua
inserção no próprio contexto cultural e sua subjetividade, constituem-se em aspectos
secundários, tanto na produção quanto na apreciação do objeto estético.
Nas ilustrações produzidas pelos alunos, o desenho, enquanto linguagem gráfica e
artística expressa uma representação particular emergente do diálogo entre as inscrições
corporais do autor do desenho e a linguagem escrita. Porém, sendo o corpo objeto e sujeito
cultural, esta representação é permeada de construções sociais, traduzindo-se numa linguagem
repleta de sentidos, de sujeitos inseridos histórico e culturalmente, portanto uma representação
simbólica tão pessoal quanto social.
O desenho, como linguagem artística, não é cópia pronta e acabada da realidade, mas
também não está isento dela. A imagem que ilustra “A calcinha de pressão” (texto 11)
representa simbolicamente um corpo socialmente condizente com o tema do texto. Além da
preocupação com o cenário, o ilustrador coloca em primeiro plano, a imagem de um corpo
feminino, gordo, que, para se adequar aos padrões socialmente estabelecidos, lança mão do de
um acessório (a calcinha de pressão), a exemplo do espartilho, das dietas, dos exercícios
físicos característicos das academias, dentre outros.
As imagens, assim como os textos escritos, expõem corpos que são construídos
socialmente, adequados a cada situação e que quase sempre nos aparecem como algo natural,
remetendo-nos a uma “segunda natureza”.
Nessa dimensão, os corpos são submetidos aos ditames sociais que decidem o que,
como e quando vestir; indica o que deve ser exposto ou escondido; determina, até certo ponto,
movimentos que o permitidos realizar e, acima de tudo, quais o proibidos; estabelece
parâmetros sobre o que comer e o que beber; o que falar e o que calar; porém a sociedade é
produtora e produto humano e nessa complexidade o corpo não limita-se a sua forma física ou
biológica. Segundo Melo (2006, p. 110-111), “nossa corporeidade é evidenciada nas
94
expressões de sentimentos, sensibilidade, ludicidade e, principalmente motricidade. Somos
seres corpóreos, cuja motricidade nos permite construir e reconstruir mundos”.
Reencontrar o corpo através da escrita é retratar no cotidiano dos alunos, situações
inerentes aos dias de sorrir e de chorar. Assim, a dureza vivida pela maioria dos alunos me faz
lembrar a capacidade humana para superar situações traumatizantes, sem pretensão de afirmar
que tais situações tenham representado para cada um, um trauma. Pois cada ser atribui sentido
a uma determinada situação de acordo com as relações estabelecidas entre esta e seu corpo, ou
com sua subjetividade. Cyrulnyk (2005) em “O murmúrio dos fantasmas” nos fala da
capacidade de resiliência como uma “estratégia de luta contra a infelicidade que permite obter
o prazer de viver, apesar do murmúrio dos fantasmas no fundo da memória” (Cyrulnik, 2005,
p. 6).
O autor nos revela a história vivida por Hans Christian Andersen, escritor e autor do
“Patinho Feio”, obra inspirada na sua própria trajetória de vida. Cyrulnik conta como o
pequeno Hans conseguiu superar uma infância marcada por tragédias e perdas. Antes mesmo
de nascer, a mãe de Hans Christian foi obrigada a se prostituir, por sua própria mãe que a
espancava impondo-lhe clientes. Conseguindo fugir, a garota casou-se com o Sr. Andersen,
soldado de Napoleão e tornou-se lavadeira. Alcoólatra e iletrada, a mãe de Hans Christian
morreu numa crise convulsiva causada pela dependência, enquanto seu pai suicidou-se, num
acesso de loucura.
Desde cedo o garoto começou a trabalhar em fábricas, onde as relações humanas
eram, geralmente, violentas. Por outro lado, sendo criado pela avó paterna, desenvolveu uma
relação afetuosa e, com uma vizinha, aprendeu a ler e a escrever, cercado por um contexto
marcado pela contação de histórias. Foi assim que, entre a “tragédia e a poesia, Hans fugiu do
inferno e retomou o gosto pela vida e [...] inventou os heróis com os quais muitas crianças
feridas, se identificavam” (Cyrulnik, 2005, p. 6).
Assim como Hans, nossos alunos-autores, também revelam uma grande capacidade
de resiliência, conforme expressam seus próprios corpos através dos textos. E isso só é
possível com base nos vínculos afetivos e na medida em que se encontra sentido nas relações
com o outro. Resiliência, com base em Gilson Bezerra (2005) vem do latim, resilientiae, que
quer dizer: recusar vivamente, na língua clássica e se contrapõe à situação de vulnerabilidade
social, quando propõe o desenvolvimento de estados mentais positivos como a auto-
organização, mutabilidade, criatividade, flexibilidade, auto-estima e motivação.
A capacidade de resiliência se constitui num processo inacabado e aberto que,
segundo o pesquisador Gilson Bezerra (2005), vai se desenvolvendo ao longo da vida, sendo
95
facilitado pela educação, experiências pessoais e pelo entorno familiar que o indivíduo
vivencia. Para Cyrulnik (2004, p.207) “trata-se de um processo, de um conjunto de fenômenos
harmonizados em que o sujeito se esgueira para dentro de um contexto afetivo, social e
cultural”. A resiliência, segundo este autor consiste na arte de navegar nas torrentes. Assim, a
vida dura de Lippy (texto 2), não o impedem de sonhar, mesmo que este sonho apareça menor
do que sua capacidade, num primeiro momento. A rotina de Lelê (texto 4), o encoraja a
continuar correndo, futuramente, pelos campos de futebol. Léo (texto 6), procura superar a
tristeza da separação dos pais, se agarrando à doce recordação do gesto da mãe. Nete (texto 5)
descobre uma forma bem humorada de viver seu dia-a-dia e Ângela (textos 8, 9 e 10) busca
no amor ao próximo, o sentido para escola e para a vida.
Entre os altos e baixos que revelam o cotidiano dos alunos através dos seus registros
escritos também espaço para a ludicidade e para a arte. Daniel (citado na epígrafe) nos
remete aos dias de sorrir e aos dias de chorar. Mas também vislumbramos os dias em que riso
e choro misturam-se das formas mais inesperadas. São dias ou momentos em que o choro
pode ser de alegria ou o riso, uma forma de esconder a dor. Estes fenômenos podem
constituir-se em situações reais ou de jogo. Independente da idade, a brincadeira ou a
ludicidade se traduz enquanto manifestação que permeia o humano, transversalizando a
linguagem corporal.
“Corpo, escrita e cotidiano” unidade de análise desenvolvida nesse momento
apontava como finalidade inicial, tecer algumas reflexões, a partir dos registros escritos
produzidos pelos dos alunos, evidenciando sua presença, enquanto corpo no seu dia-a-dia.
Neste reencontro pudemos evidenciar a presença de corpos sócio-histórico e culturais capazes
de, inseridos no mundo, poder recriá-lo, através das diversas linguagens, em especial a escrita.
Nosso próximo encontro abordará sobre, Corpo escrita e sexualidade, tema que
merece uma atenção especial, haja vista os valores, costumes e tabus que permeiam esta
relação, assunto ainda polêmico em alguns contextos.
96
Corpo escrita e sexualidade
Paixão é feito doce na boca
Que se derrete de amor
Que adoça a alma
E envenena o corpo
(texto coletivo- Turma de Aceleração, 2005)
O respeito às individualidades, às diferenças e ao outro, implica também no respeito
ao próprio corpo. Este corpo histórico-social, cultural, biológico é também sexual, capaz de
emocionar-se, de sentir dor e prazer. O corpo não se resume à condição de organismo.
Segundo Pain (1985, p. 86) “o organismo é um sistema de auto-regulação inscrito, ao passo
que o corpo é um mediador e, ao mesmo tempo, um sintetizador dos comportamentos eficazes
para a apropriação do meio por parte do sujeito”. Compreendido dessa forma, não podemos
anulá-lo em sua dimensão sexual, nas práticas pedagógicas. Um trabalho pedagógico de
Orientação Sexual é essencial para que o aluno possa ter acesso às informações que permitam
uma melhor compreensão sobre seu próprio corpo, possibilitando os cuidados necessários
para uma sexualidade prazerosa e responsável.
Porém, além dos conceitos, a preocupação com procedimentos e atitudes de respeito
a si próprio e ao outro, podem contribuir para uma formação mais inclusiva e menos
preconceituosa, na medida em que possa esclarecer e problematizar questões que favoreçam a
reflexão e a ressignificação dos valores sociais recorrentes em seu meio, sabendo-se que a
temática encontra-se permeada de valores morais, crenças e tabus.
A sexualidade tem grande importância no desenvolvimento e na vida psíquica das
pessoas, pois, independentemente da potencialidade reprodutiva, relaciona-se com a busca do
prazer, necessidade fundamental dos humanos (BRASIL, 1990).
Nesta unidade teço algumas reflexões a partir dos textos que foram produzidos com
base em um projeto de orientação sexual, desenvolvido junto a um grupo de 22 alunos de uma
Sala de Aceleração entre os anos de 2004 e 2005.
O gênero textual predominante neste momento refere-se ao poema, enquanto texto
literário, cuja ênfase deve-se a possibilidade de sensibilização, considerando-se a delicadeza
do tema, ambiguamente tão silenciado nas diversas situações sociais e ao mesmo tempo tão
vivenciado, envolvendo sentimentos e emoções como marcas presentes na complexidade
humana.
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O projeto teve duração de um semestre e durante o mesmo, além dos conhecimentos
conceituais, procuramos desenvolver uma prática que considerasse os alunos enquanto
sujeitos humanos, inseridos nas relações afetivas, emocionais e racionais, capazes de criar e se
expressar através das diversas linguagens corporais. Dentre as atividades sugeridas, os alunos
tiveram a oportunidade de conversar com profissionais da área da saúde, no postinho da
comunidade, esclarecendo dúvidas sobre o tema, assistiram a filmes sobre aborto, leram
algumas reportagens, além de muitos momentos de conversa e discussão a partir dos dados
pesquisados.
Levei para a sala de aula alguns poemas, durante os quais discutimos sobre a
linguagem figurada e os sentidos construídos a partir dos mesmos, fazendo relação com suas
próprias experiências. “Terremoto, Furacão” de Roseana Murray constituiu-se num dos
poemas que mais chamou a atenção da turma. Esta obra, direcionada ao público infanto-
juvenil, trata dos sentimentos desencadeados a partir uma paixão de adolescente, suscitando,
entre os alunos, um processo de redescoberta dos seus próprios sentimentos e um maior
interesse pelo gênero textual.
A esse respeito remeto-me a Iser (1996) para enfatizar que o sentido do texto literário
tem o caráter de imagens, ressaltando que estas se encontram impregnadas de aspectos sociais
e pessoais. Segundo o autor, se o sentido tem caráter de imagem, então o sujeito nunca
desaparecerá dessa relação. Ou seja, se a princípio é a imagem que estimula o sentido - e,
considerando-se que o sentido não se encontra mais formulado nas páginas impressas do texto
- essa imagem se mostra como produto que resulta do complexo de signos do texto e da
apreensão do leitor, do encontro entre a obra e o sujeito que a lê.
A leitura da obra citada foi pensada como atividade desencadeadora, devido sua
riqueza simbólica, a partir da qual os alunos foram encorajados a produzirem seus próprios
textos, sendo que um deles, cujos versos encontram-se na epígrafe deste texto, trata-se de um
poema construído coletivamente pela turma.
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Texto-13
Paixão...
É dividir a vida
com a pessoa amada.
É uma ferida no peito
Que sufoca o coração,
Fazendo-o acelerar.
É um vício diferente
Que faz cometer loucuras.
Às vezes é uma onda
Que leva a um mar de doçura
Ou a um furacão de amarguras
É feito doce na boca
Que se derrete de amor.
Que adoça a alma
e envenena o corpo.
(texto coletivo, Turma de Aceleração, 2005)
Após ouvirem a leitura oral do poema (Terremoto furacão) e manusearem o livro,
único exemplar disponível para uma turma, discutimos sobre as impressões e sentidos
construídos com base na leitura. Em seguida, pedi para que socializassem as relações
estabelecidas entre o texto e suas vidas. Esse momento começou timidamente, mas pouco a
pouco, cada um foi expressando sua leitura. A impressão, naquele momento era a de que a
autora teria conseguido, através de uma linguagem figurada, representar sentimentos,
sensações e emoções que não eram estranhas à realidade dos alunos, adolescentes com idades
entre 9 e 19 anos de idade. É como se aquela relação que se estabelecia entre a obra e os
alunos, representasse um encontro com velhos conhecidos que nunca haviam sido
apresentados oficialmente. Assim, como se cada palavra expressa no texto, pudesse
simbolizar experiências vividas por cada um deles, a sua maneira, desvelando segredos, que,
agora compartilhados, os incluía, cada vez mais, na dimensão humana. Pois, apesar da
maneira particular com cada uma acolhia os sentidos daquelas palavras, estas também lhes
permitiam compreender que os sentimentos, as sensações, as emoções que lhes eram
particulares, não distanciava-se daquelas evidenciadas pelos seus semelhantes.
Após a socialização das impressões, pedi para que cada aluno sintetizasse num único
verso, o que para eles representava, naquele momento, uma paixão, através de imagens
simbólicas.
99
Em seguida registramos esses versos no quadro e fomos montando o poema,
reelaborando os que apareciam com sentidos muito semelhantes, organizando as estrofes,
compondo-o, considerando a musicalidade e os sentidos que emergiam de cada combinação.
Resultando no que foi apresentado como texto 13.
Expor os próprios sentimentos não tem sido uma tarefa fácil, não só no espaço
escolar, mas nos diversos contextos sociais. O corpo, reduzido a sua condição de organismo,
tem sido historicamente submetido aos parâmetros rígidos de comportamento, sendo
reprimido sexualmente, com base em crenças, valores e preconceitos, principalmente
religiosos, que mascaram interesses políticos e sociais como forma de manutenção de poder.
No Brasil, a partir dos meados da década de 1980, o crescimento da gravidez
indesejada entre os adolescentes e o risco de contaminação pelo vírus HIV, entre os jovens,
desencadeou-se uma grande preocupação, por parte dos educadores e até da família, em se
tratar o tema no interior da escola (BRASIL, 1990).
Acerca desse distanciamento entre corpo e aprendizagem é válido ressaltar
“Aprendizagem inimiga do corpo” um artigo escrito por Borneman, ao qual refere-se
Gonçalves (1994). Segundo o artigo, o distanciamento entre a aprendizagem da escola e as
experiências sensoriais dos alunos, ou seja, a pouca participação do corpo, gera uma cinética
reprimida e frustrada, o que pode ser evidenciado através dos escritos dos alunos registrados
nas paredes e nas classes da escola, material examinado durante vinte anos de pesquisa por
Borneman, segundo o qual, nos últimos oito anos de sua pesquisa, constatou um aumento no
número de escritos cheios de ódio e impregnados de angústias sexuais. Uma ilustração
concreta dessa realidade pode ser representada também nos registros escritos que encontramos
nas paredes dos banheiros públicos, inclusive das universidades, expressando uma estratégia
de expor publicamente, nuances de corpos que, sendo sexuados, são impedidos de expressar-
se como tal.
Conforme apresentado até agora, o corpo é, a um tempo, palco de dor e prazer, de
ludicidade, de reflexões, de cultura, de emoções, que se manifestam em suas múltiplas
linguagens.
(...) o emocionar, em cuja conservação se constitui o humano ao surgir a
linguagem, se centra no prazer da convivência na aceitação do outro junto a
nós, isto é, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no
qual aceitamos ao outro na proximidade da convivência”. (MATURANA,
1998, p.86/87).
100
O espaço de convivência no qual foi sugerida a produção de um texto narrativo sobre
o tema paixão”, também foi palco de compartilhamento das minhas inquietações e dos meus
próprios desejos com relação à temática, como forma de esclarecer que algumas sensações,
muitas vezes pessoais, são também vividas por outras pessoas, cada uma a sua maneira.
Muitos meninos e meninas escreveram com naturalidade sobre suas paixões, mas,
deixei em aberto para poderem relatar histórias de outros, caso não se sentissem a vontade
para falar de suas próprias experiências.
Assim, reencontrar o corpo através da escrita também nos remete ao cotidiano dos
alunos que não se resume à dureza da vida, à ludicidade, nem às recordações da infância. Seus
escritos também expõem sua sexualidade, desnudando desejos, numa paixão de adolescente,
como nos sugere o texto de Samuca:
Texto-14
...era dia do meu aniversário... fui para a praia onde conheci uma
menina chamada Juliete. Ela é linda, tem os cabelos galegos e os
olhos azuis. A pele branquinha, branquinha. Foi amor à primeira
vista. Hoje sinto saudades dela.
Ai... ai! E se eu for lá de novo?
(Samuca, 2004)
Ou revelando-se através do outro:
Texto-15
...os dois começam a conversar, começam a dar em cima um do
outro. O rapaz pede um beijo. A moça olha para um lado e para o
outro, olha para a frente e os dois começam a se beijar. Assim
começa uma grande paixão... no começo vai tudo bem, até que as
pessoas começam a ficar com inveja. Vão à casa da moça, dizem que
o rapaz é vagabundo e drogado. É tudo mentira, mas um rolo da
bixiga... mas nada separa um casal apaixonado, até que ela descobre
que está levando chifre e acaba tudo.
(Nilson, 2004)
101
Os corpos procuram formas inesperadas de revelar-se. Chamaram-me a atenção, nos
registros de Nilson (texto15), algumas variações lingüísticas, expressões como “dá um rolo da
bixiga” e “levando chifre”, que demonstram a riqueza cultural e lingüística em nosso país,
como algo polissêmico e simbólico.
Em sua obra: “por que (não) ensinar gramática na escola”, Sírio Possenti (1996)
chama a atenção para a constatação do fracasso escolar, apontando como implicações,
questões de ordem metodológicas ou decorrentes de valores sociais complexos. Segundo o
autor, “o prestígio de um dialeto é determinado de acordo com o valor do seu falante na escala
social” (POSSENTI, 1996, P. 28). De fato, esta é uma realidade fortemente marcante em
nossa história e, infelizmente, tem sido perpetuada no interior das escolas, negando-se a
presença das variedades lingüísticas que dão vida às relações sociais existentes em nosso país
e excluindo-se, assim, os grupos menos privilegiados, socialmente. O domínio de uma língua
padrão deve ser garantido como direito à população. Negar sua relevância consistiria numa
ingenuidade. Porém limitar-se a uma única forma de se expressar revela uma postura política
alienante, antiética e excludente, ao passo que condenaria ao silêncio, parcela significativa,
senão a maioria, representada pelos diferentes grupos sociais, cuja diversidade e
peculiaridades são, tantas vezes, banidos dos textos escritos divulgados.
É preciso considerar a mobilidade histórica e lingüística. Quando se procura respeitar
a linguagem capaz de identificar os sujeitos, inseridos num contexto histórico-cultural
próprio, conforme o caso do texto 7 (p.78), escrito por André e fazer ouvir as diferentes
vozes, com seus cantos, encantos e desencantos, abrem-se outras possibilidades.
E mesmo ao que se refere à linguagem padrão, cujo acesso deve ser garantido, não se
configura enquanto uma estrutura mórbida, limitada, linear. O próprio Possenti (1996), ao
defender o acesso a uma língua padrão, a define enquanto uma língua falada, viva
socialmente.
Ainda com relação às variações lingüísticas, enquanto linguagem corporal socialmente
inserida, vale a pena lembrar a sensibilidade expressa por Marcos Bagno (2006), em sua obra
“A língua de Eulália”, uma novela, através da qual o autor tece reflexões relevantes acerca da
língua não-padrão e suas implicações sociolingüísticas. As variedades lingüísticas referem-se
às diferenças fonéticas, sintáticas, lexicais e semânticas e, segundo o autor, variam de acordo
com o sexo, a idade e contexto social do falante.
Bagno (2006) aborda com leveza e profundidade acerca dos mitos, das relações
ideológicas que permeiam as variações lingüísticas, apontando implicações históricas e sócio-
102
culturais que delineiam estas variações, permitindo uma leitura sensível acerca das diferentes
falas que emergem de corpos estigmatizados pelos rígidos padrões socialmente impostos.
A personagem “Eulália” cuja denominação significa “aquela que fala bem”, representa
todos os corpos considerados desprivilegiados socialmente, assim como grande parte dos
alunos que freqüentam a escola pública. Porém, suas potencialidades são evidenciadas e é a
partir de uma cuidadosa análise lingüística da sua forma de expressão, considerada “não
padrão”, que o autor procura esclarecer que o mito da unidade lingüística no Brasil é
prejudicial, pois simplifica a realidade, desconsiderando sua complexidade. Segundo Bagno
(2006), o aluno que fala um português não-padrão é considerado, por esta ótica, um deficiente
lingüístico. O fato de não ser um padrão, ou seja, de não ser um modelo a ser imitado por
quem se considera instruído, não significa que determinada(s) variedade(s) do português,
seja(m) errada(s) ou pobre(s) de recursos. Segundo Bagno (2006), toda variação tem uma
lógica lingüística e regras que são coerentemente obedecidas.
As variações lingüísticas não se encontram isentas das relações ideológicas e de poder
que influenciam no prestígio evidenciado em uma(s) em detrimento de outras, conforme a
história dos corpos que a representam. Porém, muito além de garantir o acesso à linguagem
padrão, cabe à escola respeitar, ouvir e valorizar as variações lingüísticas dos atores que estão
em cena, ou seja, os alunos.
Desconsiderar as variações linguísticas, através da qual a maioria da população se
comunica, seria assassinar a sensibilidade de Graciliano Ramos, a originalidade de Luiz
Gonzaga, a poesia de Patativa do Assaré; representaria emudecer as canções populares, as
cantigas de roda, os versos dos repentistas; implicaria em calar uma legião de “Eulálias” e
“Nilsons” cujas vozes revelam uma história que não é só sua; consistiria em silenciar os
corpos historicamente condenados à clandestinidade, negando-se, enfim, a mobilidade da
história e da vida.
Deixar fluir suas falas, conforme podemos inferir a partir dos textos dos alunos-
autores, consiste em contribuir para que possa emergir corpos que ultrapassam a sua condição
de simples organismos e desencadear espaços para fazer emergir uma linguagem repleta de
sentidos ou, segundo Resende (1990), uma aprendizagem humano-significativa. Aquela capaz
de buscar os sentidos que se articulam na relação entre o sujeito e o símbolo. Lembrando que
na compreensão apontada Resende (1990), o termo sentido envolve suas três dimensões, ou
seja: Sentido como ato de sentir, de captar através dos órgãos dos sentidos; sentido enquanto
significação e sentido enquanto rumo ou direção a ser seguida. Nesse intuito procuro articular
103
a prática pedagógica, buscando contribuir para uma formação capaz de ampliar o papel do
aluno enquanto sujeito de aprendizagem.
Sabemos que sempre mais sentido além do explicitado pelo texto, o que pode ser
ilustrado a partir do valor semântico implícito nas interjeições “Ai... ai!” (texto 14) que deixa
escapar os sentimentos do autor, reacendendo lembranças e sentimentos de nosso próprio
corpo vivido, cujos sentidos dependerão da intensidade do encontro que se estabelece entre
cada um de nós, com nossas referências, leituras de mundo, e o texto.
Tentar interpretar ou sentir a fala de Samuca ( texto 14) ou de Nilson (texto 15) é
galgar juntos este território comum entre escritor e leitor, neste caso, mediado pela ação
pedagógica. Segundo Bakhtin (1997), a enunciação, como produto do ato da fala, não pode
ser considerada como ato individual, a partir das condições psicofisiológicas do sujeito
falante, pois esta é de natureza social. Dessa forma, a palavra se constitui o produto entre
quem fala/escreve, situando-se numa zona fronteiriça entre os dois pólos, aproximando-os.
Nilson, autor do texto 15, que despertava o interesse de muitas meninas, mantendo um
comportamento bem descontraído, surpreendeu-me, ao afirmar que não queria contar sua
própria história. Enquanto Samuca, apesar de tímido, não demonstrou constrangimento em
expressar-se por meio da escrita.
Depois de prontos, os textos eram sempre lidos para o grupo, com a finalidade de
socialização entre os colegas, bem como para compartilhar dúvidas, ouvir sugestões de
reescrita e também como exercício de leitura e escrita.
Durante o processo de releitura e construção do texto, Nilson, autor do texto 15,
denunciava-se, de vez em quando, ao utilizar-se da primeira pessoa em sua narrativa. Enfim,
após a reescrita, acabou assumindo, como sua, a história escrita em terceira pessoa, afirmando
ter ficado envergonhado no início, surpreendendo mais uma vez, além do final inesperado da
sua “grande história de amor”.
Confesso que momentos em que a atividade docente, provoca certo desencanto. As
dificuldades, nossas limitações... Mas, renascemos a cada conquista, junto aos alunos, e não
são raros os momentos que acabam nos surpreendendo com sua capacidade criativa, numa
polissemia que nos remete a Mendes, ao afirmar que
a complexa condição humana alude à descoberta de um corpo que produz
saberes individuais e coletivos, mas que é impossível conhecer
integralmente o sujeito encarnado, pois este possui muitos segredos, é
matéria do irrefletido, do impensado. Ao mesmo tempo em que mostra, o
corpo humano é capaz de esconder-se (MENDES, 2006, P.126).
104
Atribuir ao outro, sua própria identidade, revela uma estratégia encontrada por Nilson,
para representar um momento significativo por ele vivido, sem, no entanto, comprometer-se.
Nos textos literários, a figura do narrador assume este desafio, preservando o escritor, que tem
a liberdade de revelar-se ou esconder-se entre o enredo e os personagens de sua narrativa,
conforme o caso de Andersen, autor do “Patinho feio”, apresentado nesse capítulo.
A complexidade da condição humana é transversalizada pela história e pela cultura,
incluindo-se os diferentes tempos e espaços, possibilitando tantos caminhos quanto a
subjetividade de cada um dos sujeitos envolvidos. Essa capacidade inerente ao ser humano é
que o capacita de dispor sempre de um potencial criativo dos movimentos corporais, apesar
das limitações impostas pelo contexto social.
Historicamente falando, podemos ilustrar esta capacidade remetendo-nos ao “Cavalo
de Tróia” ou à atitude dos escravos africanos, ao atribuir nomes cristãos aos seus deuses,
como estratégia para poder adorá-los no território dos seus opressores; nas letras de músicas,
que driblavam a censura, quando do momento de ditadura militar, no Brasil. Ou mesmo na
experiência que vivi em viagem recente à Salvador-BA.
Experiência estética, por mim vivenciada num encontro inesquecível com o Largo do
Pelourinho, uma tela viva dessas possibilidades. Pelourinho, quadro que pode ser vislumbrado
a olho nu, através de um olhar que envolve todos os sentidos, revelados na combinação entre
a ausência e a síntese de todas as cores (o preto e o branco); entre a pele escondida das
vendedoras de acarajé e os corpos semi-nus dos dançadores de capoeira; entre o profano e o
sagrado; o presente e o passado; Enfim, na polissemia que mistura cores, cheiros e sabores;
que, ao ritmo místico dos tambores, representam a resistência de um povo que sobreviveu
cinco séculos de opressão para mostrar ao mundo que é possível sorrir, assumindo a própria
identidade; anunciando que o espaço, memória das humilhações e das torturas que abriram
feridas no corpo, pode ser o mesmo que permite o convívio com as diferenças, apesar de todas
as contradições implícitas neste cenário ambíguo, permeado de rupturas e continuidades.
105
Figura 9- Largo do Pelourinho, em Salvador- Bahia
Fonte: Acervo pessoal da autora
Pelourinho, um cenário também permeado de estesia e sensualidade.
Durante a experiência com os alunos, nem todos foram capazes de produzir textos
escritos, apesar de terem apresentado desenvolvimento significativo com relação ao tema.
Alguns contaram com a cooperação dos colegas e outros realizaram releituras dos textos
através da linguagem gráfica ou imagética, cuja sintaxe pode ser compreendida no nível da
narratividade, através de uma imagem única.
Segundo Amarilha (2006) a imagem única, fixa, procura extrair de forma imaginária,
o fluxo do tempo, onde a narrativa ganha novos sentidos, ordenando de forma sintética, breve
contundente, toda a potencialidade narracional do momento.
Essa compreensão pode ser ilustrada na releitura do poema “Aborto”, realizada por
alguns alunos através de imagens. Lembrando que a releitura, a qual me refiro, não se limita
ao processo de cópia ou de reprodução, conforme têm-se evidenciado em muitas práticas
educativas. A releitura refere-se às novas criações, com base em elementos presentes numa
obra de referência (seja seu sentido semântico, elementos gráficos, combinação de cores,
temática abordada, etc.), à qual podem ser atribuídos novos sentidos, de acordo com as
experiências vividas e leitura de mundo de cada apreciador, que, por sua vez, pode representá-
la através da linguagem artística original, ou não.
No caso da experiência desenvolvida, após pesquisas sobre riscos de gravidez
indesejada, entrevistas com profissionais da área de saúde, visitas em hospitais, dentre outras
106
atividades, sugeri aos alunos que representassem, através de desenho ou pintura, a releitura de
verso(s) do poema “Aborto”, expressando, cada um, sua relação com a obra que apresento
abaixo:
ABORTO
Irresponsavelmente fui gerado,
numa noite de novembro.
Não pedi para ser feito,
Mas fui.
Fisicamente, era perfeito.
Naturalmente e inocentemente,
briguei entre milhões de seres
iguais a mim,
por um lugar que, para mim,
não estava reservado.
Senti choro... desespero...
Mas não compreendia o porquê.
Eu não pedi para sair.
Entretanto fui arrastado
de suas entranhas,
à pulso!
Numa poça de sangue,
Sofri... Morri.
(Rosilandy Feitosa, professora da Escola M. Professor Amadeu Araújo)
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Figura 10- Ilustração realizada pelo aluno Sandro, de uma estrofe referente ao poema
Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora
Eu não pedi para sair.
Entretanto fui arrastado
de suas entranhas,
à pulso!
Figura 11- Ilustração realizada por um aluno
Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora
Briguei entre milhões de seres
iguais a mim,
por um lugar que, para mim,
não estava reservado.
108
Com base nas ilustrações apresentadas podemos inferir que cada autor expressou,
através da imagem produzida, seus conhecimentos acerca do tema, seu imaginário, suas
emoções, suas relações afetivas com o objeto, proporcionando uma infinidade de
interpretações que pode emergir de acordo com os sentidos atribuídos por cada leitor, mas
com algo em comum para o grupo que participou do processo pedagógico desenvolvido.
Conforme nos lembra Marly Amarilha (2006), com base em Sholes, cada autor age de
forma seletiva, escolhendo o momento e a maneira como aquele evento pode ser mostrado,
embora se saiba que a correspondência entre a intenção autoral e a leitura do interpretante,
nunca será perfeita.
Considerando o corpo como mídia primária, conforme, defende Baitelo Júnior (já
citado anteriormente), entendemos que, seja a linguagem artística ou escrita, é no corpo, por
meio da sua relação com o mundo que encontra um ponto fundante de articulação. Neste
sentido, estas se desenvolvem entremeadas umas com das outras. A ação pedagógica contribui
no sentido de possibilitar o diálogo entre as linguagens, priorizando, em alguns momentos,
algumas, em detrimento de outras. Esta ação, no entanto, pode contribuir indiretamente como
base de sustentação para outras formas de representação, que não aquela pensada durante o
planejamento pedagógico.
No caso da experiência desenvolvida sobre sexualidade, a utilização de recursos como
filmes, poemas, literatura, textos científicos sobre o tema, as entrevistas, junto às experiências
de vida dos alunos, representaram pontos importantes para dar sentido ao poema narrativo,
bem como para a construção de novos elementos presentes nas representações gráficas, como
formas, cores, proporção, etc. Esta nova aprendizagem reflete-se também em novas atitudes
no cotidiano dos alunos, diante do tema.
A articulação entre as diversas linguagens pode ser identificada num texto ficcional
através do qual os alunos puderam experienciar, através do imaginário, a trajetória de um
espermatozóide, durante o processo de fecundação, demonstrando, como nos sugere as
produções de Robin e de Sandro, que a escola também pode e deve se constituir em espaço,
onde o conhecimento pode ser desenvolvido com mais leveza.
Texto-16
Eu era um pequeno espermatozóide. Estava num lugar muito quente e senti
uma coisa me tocando. Passei pelos canais deferentes e cheguei até a
uretra. Passei pelo pênis e fui, numa viagem para dentro da vagina,
passando pela uretra e chegando até as trompas... Durante nove meses me
formei...
(Robin, 2002)
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Texto-17
Meu nome é Penisvaldo e fui feito nos testículos. Passei pelos canais
deferentes até chegar à próstata, onde dei um mergulho e saí pela uretra
(...) Chegando nas trompas encontrei um óvulo e juntos fomos para o útero
(...) depois de nove meses nasci.
(Dedé, 2002)
Os textos, incluindo-se os poemas e as narrativas revelam de forma mais explícita e,
ao mesmo tempo, metafórica, os sentimentos, as sensações e os conflitos que caracterizam as
primeiras relações do jogo sensual.
Neste momento é possível perceber um desnudamento que, mais uma vez, implica
numa certa cumplicidade e confiança na relação professor/aluno e aluno-aluno. O que não se
constrói de forma irresponsável. Nem tampouco pode ser definitivo, pois alunos e professores
são seres humanos, portanto, imersos na ambigüidade de uma totalidade inconclusa. E a
inconclusão, segundo Freire (1996) implica a inserção do sujeito num permanente processo
social de busca. Nesta busca, ressalto o papel do diálogo, enquanto estratégia relevante. O ato
de ouvir e falar, de mostrar-se humano com nossas qualidades e limitações, contribui para que
o aluno identifique-se como produto do mesmo material, ou seja, para que perceba-se tão
forte e frágil, tão capaz e limitado quanto todos os mortais. Algumas vezes tendemos a achar
que alunos e professores pertencem a mundos tão diferentes quanto à distância existente entre
os conteúdos escolares que desenvolve em sua prática e a realidade em que age e vive o
aluno.
Entre as dificuldades encontradas durante o desenvolvimento deste projeto situa-se a
falta de ações pedagógicas relacionadas às especificidades e diversidades referentes às
diferentes formas de lidar sexualmente com o corpo, pois sendo este uma construção cultural,
reconheço as limitações pedagógicas, no sentido de ter enfatizado as formas tradicionalmente
cristalizadas de relacionamento sexual, qual seja as relações heterossexuais. Na verdade,
atentar para esta diversidade inegável, evidente em nossa sociedade, passou a se constituir
enquanto inquietação maior a partir do ano de 2005, quando recebi na sala um aluno
homossexual. Neste sentido, minha intervenção esteve mais voltada para o diálogo pautado no
respeito às diferenças e individualidades.
Reconheço que minha ação foi limitada. Que sempre novas inquietações e muitos
tabus a serem enfrentados envolvendo o tema. Mas, é girando nessa roda viva, que nos
110
fazemos educadores. É entre a condição de tecelão e de presa, movimentando-nos no
emaranhada dessa teia sócio-cultural, que compomos nossa historia.
Olhar para trás, perceber os vestígios do caminho percorrido e refletir sobre os
registros do corpo, me remete a Marcos Bagno (2006, p. 203), ao afirmar que a escrita é
tentativa de representação da língua falada e nasceu centenas de milhares de anos depois de o
homem ter começado a falar e, portanto, “a língua escrita o deve ser usada como uma
camisa de força para submeter e aprisionar a língua falada” Eu diria que a escrita é uma forma
de guardar, de registrar, de imortalizar as ações corporais, não podendo ser aprisionada no
imobilismo de um modelo linear que não corresponde com a possibilidade de reencontro com
o corpo, enquanto sujeito histórico-cultural.
Na busca de reencontrar o corpo através da escrita, desafio deste capítulo, pude
estabelecer inúmeras relações a partir das reflexões que entremearam o corpo, a escrita, o
cotidiano e a sexualidade dos alunos. Compreendendo o corpo enquanto guardião de história,
das histórias e da História, tive a oportunidade de enveredar por diversos caminhos
possibilitados pela sua escrita, estabelecendo um diálogo transdisciplinar e extrapolando,
assim, alguns limites impostos por uma ciência rígida e compartimentalizada.
A relação corpo escrita, discussão tecida até então, não se limitou ao corpo/escrita de
um grupo definido de alunos, que estes registros, durante o processo de investigação, me
conduziram por caminhos que não se limitam ao aqui, agora, nem ao âmbito individual. As
reflexões tecidas são desveladoras de um momento histórico, implicando numa leitura
ideológica, política, e histórico-cultural que permeia a aprendizagem no âmbito educacional,
enveredando por diversas áreas do conhecimento.
Nesse “reencontro do corpo através da escrita” pude navegar entre o doce e o amargo
das lembranças de infância; mergulhar na forma bem humorada de enfrentar a dureza da vida.
Nesse reencontro pude viajar junto aos alunos, na sensibilidade e sensualidade dos gestos
refletidos nas palavras ou no silêncio de seus escritos; identificar sua dimensão de objeto,
porém, ressaltando sua capacidade de sujeito; Pude, em meio ao cotidiano, enveredar por
caminhos desconhecidos; refletir sobre a ação do educador, reconhecendo suas potencialidade
e limitações; refletir acerca das diversas formas de aprisionamento do corpo e vislumbrar
caminhos que o levam à liberdade; chorar frente às experiências estéticas que marcam o
encontro entre texto e leitor e sorrir diante da presença escrita de corpos que brincam;
aprender com suas histórias de vida, “a arte de navegar entre torrentes”.
Enfim, esta foi a forma mais honesta que encontrei para caracterizar os alunos-autores
nesse momento, considerando suas próprias falas, que, revestidas de signos emergem do
111
corpo, articulando-se num diálogo, onde as palavras ganham vida, evidenciando um
reencontro com o corpo.
112
IV- REENCANTANDO O CORPO ATRAVÉS DA
ESCRITA
No mundo dos sonhos...
Pra entrar lá
É muito fácil:
Basta você fechar os olhos
E imaginar
Tudo que você
Gostaria de realizar...
(Samuca)
Figura 12- Desenho produzido pelo aluno Adailton
113
IV- REENCANTANDO O CORPO ATRAVÉS DA ESCRITA
Neste capítulo, ressalto a relevância das narrativas literárias, dos textos poéticos e das
narrativas populares, destacando sua capacidade de transcendência, de mobilização de
imagens e símbolos, apontando para a possibilidade da escrita, enquanto forma de reencantar
o corpo, considerando-se, conforme aponta Backtin, o poder ideológico e vivencial da
palavra.
Dessa forma, compreendo que o corpo e suas linguagens são como narrativas de um
texto que surpreende a cada capítulo, ultrapassando as “mil e uma noites” e enveredando por
labirintos de outras histórias, ora confundindo-se com elas, sem, no entanto, perder o sentido
próprio de uma subjetividade única que o identifica.
Corpo, escrita e fruição poética
As narrativas literárias se constituem num mundo de possibilidades que contribui, de
forma relevante, para que o leitor ou o ouvinte possa vivenciar, simbolicamente, diferentes
experiências e confrontá-las com as situações reais. Elas possibilitam experimentar variados
sentimentos, emoções, conflitos, prazeres, que variam de acordo com as inscrições corporais
de cada um.
As histórias têm a função de ensinar sobre o mundo, nos mostrando como ele
funciona, nos possibilitando- através dos astratagemas de focalização- ver as
coisas de outros pontos de vista e entender as motivações dos outros, que, em
geral, são opacas para nós, como ele é (CULLER, 1999, p.93).
Além de propiciar o exercício de se colocar no lugar do outro, as situações
vivenciadas, simbolicamente, permitem um contato prévio e seguro com os fatos e
sentimentos, com as quais o leitor ou ouvinte, poderá se deparar em situações reais.
Através das narrativas literárias o imaginário ganha formas, cheiros, cores e sons.
Elas permitem conhecer novos espaços, enfrentar o perigo, agir como príncipe, bandido ou
herói; como bichos, objetos ou plantas, ampliando o campo de conhecimentos e de ação,
despertando emoções tantas vezes adormecidas sob a rigidez dos códigos frios de uma escrita
114
institucionalizada e fragmentada que teima em atestar o fracasso e a incompetência de muitos,
no interior da escola.
Erasmo de Roterdão, no século XVI, abordava acerca desse distanciamento,
defendendo uma educação como meio de formar homens livres e na ação pedagógica de um
profissional capaz de colocar-se no lugar da criança, para melhor compreendê-la, respeitando
suas individualidades e priorizando o elemento lúdico como forma de tornar as aulas mais
atrativas.
Com relação à leitura e à escrita, o autor refere-se especialmente as fábulas como
textos literários mais apropriados para os estudos iniciais, considerando-se a vivência corporal
dos aprendizes, conforme argumenta: “Que de mais ameno que as fábulas dos poetas? Elas
têm o condão de cativar os ouvidos infantis a até mesmo os adultos, não para a posse do
idioma como para o discernimento” (Erasmo, 1996, p. 50).
A preocupação de Erasmo ainda é pertinente nos dias atuais, exigindo um novo olhar
sobre a Escola, que nem sempre atende as necessidades daqueles que a procuram. Esse
distanciamento perpassa por um conjunto de elementos que envolvem aspectos políticos,
estruturais, culturais sociais que se refletem diretamente no processo de ensino e
aprendizagem no contexto escolar.
Em meio a este contexto faz-se relevante destacar o papel do educador, como
mediador sensível às histórias dos alunos, no sentido de possibilitar seu encontro com a
linguagem escrita. Um encontro marcado pela interação, onde ambos sejam ao mesmo tempo
objeto e sujeito de transformação social e pessoal, lembrando que “o interesse também se cria,
se suscita, se educa e que em diversas ocasiões ele depende do entusiasmo e da apresentação
que o professor faz de um determinado texto e das possibilidades que seja capaz de explorar”
(Solé, 1998, p. 43).
Faz-se relevante lembrar que oralidade e escrita não estão desvinculadas das demais
formas de linguagem, pois o corpo constitui-se numa totalidade que não admite fragmentação.
Assim poderíamos afirmar que as diversas linguagens transitam umas pelas outras,
expressando a unidade corporal. Porém, centrando o foco de atenção para a sociedade em que
vivemos, considerando-se os aspectos sócio-culturais, não podemos negar a presença da
escrita e da oralidade, como marcas que permeiam, de forma contundente, as relações
humanas.
Neste sentido, é relevante ressaltar que contar ou ler histórias se constitui numa
estratégia significativa para despertar o interesse pelos textos literários, pela poesia e por
outros gêneros textuais.
115
Segundo a professora Marly Amarilha (1997), a oralização proporciona um
enriquecimento da bagagem antecipatória do leitor. Ouvir histórias, lidas ou contadas,
contribui para um encontro do ouvinte com as estratégias da narrativa e com as convenções da
língua escrita, atraindo seu interesse para conhecer, através da escrita, as mesmas histórias e
possibilitando o contato com outras.
Não podemos esquecer de que enquanto linguagem, a escrita é corporal, portanto,
impregnada de sentidos desencadeados pela ação humana.
Em “variações sobre o corpo”, Michel Serres (2004) narra de forma poética as
sensações e sentimentos do próprio corpo ao escalar uma montanha. Uma aventura
desafiadora, cheia de perigos, prazeres, dores, desejos, ansiedades, luta, êxtase, contemplação.
A metáfora de possuir e de ser possuído durante a escalada, ao ponto de se perder o limite
entre as fronteiras do corpo e montanha; a impossibilidade de definir até onde o corpo se faz
montanha e a montanha se faz corpo, ou em que proporção ambos se transformam, ou são
transformados, pode representar a relação do ser e do estar sujeito na construção social do
corpo e da presença do outro enquanto sua extensão.
Esta ilustração também pode expressar a relação corpo e escrita, considerando-se a
linguagem enquanto expressão humana. Ou seja, suscitar o desejo, a necessidade, o prazer do
encontro entre corpo e escrita se constitui numa atitude tão desafiadora quanto a escalada de
uma montanha e esse desafio pode ser enfrentado de forma desastrosamente dolorosa, dura,
fria ou tão prazerosa quanto à entrega corporal apresentada por Serres. Neste caso, sem negar
as situações de conflitos inerentes a todo e qualquer processo de construção, a literatura pode
se constituir num viés de possibilidades, de encontro entre corpo e escrita, através do qual
pode-se vislumbrar um horizonte menos sombrio.
Merleau-Ponty (2002, p. 33) consegue expressar, de forma envolvente, o
encantamento proporcionado através desse encontro entre corpo e escrita, ao afirmar que:
Assim, ponho-me a ler preguiçosamente, contribuo apenas com algum
pensamento- e de repente algumas palavras me despertam, o fogo pega,
meus pensamentos flamejam, não há mais nada no livro que me deixe
indiferente, o fogo se alimenta de tudo que a leitura lança nele. Recebo e
dou no mesmo gesto. Dei meu conhecimento da língua, contribuí com o que
eu sabia sobre os sentidos dessas palavras, dessas formas, dessa sintaxe. Dei
também toda uma experiência dos outros e dos acontecimentos, todas as
interrogações que ela deixou em mim, as situações ainda abertas, não
liquidadas, e também aquelas cujo modo ordinário de resolução conheço
bem demais. Mas o livro não me interessaria tanto se me falasse apenas do
que conheço. De tudo que sabia, ele serviu-se para atrair-me para mais
além.
116
As palavras acima são reveladoras das relações que permeiam o encontro do leitor
com um texto literário. Demonstrando o poder do contrato ficcional entre texto, leitor/ouvinte
e a linguagem escrita, numa dimensão que ultrapassa o processo de codificação e
decodificação.
Com base nas reflexões tecidas até então e percebendo as grandes dificuldades
enfrentadas por um grupo de alunos, com o qual trabalhei nos ano de 2004 e 2005, com
relação à aprendizagem da leitura e da escrita, procurei desenvolver um trabalho pedagógico
voltado para leitura de textos literários. O grupo era formado por 22 alunos de uma Sala de
Aceleração que iniciavam o processo de alfabetização. Os alunos apresentavam um visível
desinteresse com relação às obras literárias disponíveis na biblioteca da Escola. Ao serem
questionados sobre tal constatação, alegavam que os livros eram muito volumosos e que não
tinham capacidade de lê-los sozinhos.
Com o objetivo de ampliar o repertório de leitura e escrita, suscitando o prazer pela
leitura, compartilhei entre os alunos, a idéia de ler para eles. Os mesmos demonstravam
interesse em ouvir narrativas orais, pois sempre contava histórias na sala.
Assim, elaboramos um cronograma e organizamos um ambiente de leitura, onde
sistematicamente, em sessões semanais com duração entre 30 a 40 minutos, eu iria ler um
capítulo de uma obra e mediar a discussão entre o grupo.
Tratando-se de adolescentes com sérias dificuldades de leitura e escrita e, portanto,
de um contexto específico, pedi ajuda à Flor, bibliotecária da Escola. Ela me indicou a obra
“A casa de Madrinha” de Lígia Bojunga, alegando, com entusiasmo, o grande interesse do seu
filho com relação à leitura deste texto literário.
Fiz uma leitura prévia da obra, que chamou a atenção, não pela identificação com
o contexto dos alunos, mas pela beleza do enredo, a riqueza simbólica, a linguagem acessível,
a presença do elemento lúdico, a sensibilidade e a criatividade da autora. Enfim, a partir dos
sentimentos e emoções que poderia vivenciar através do encontro com o texto, vislumbrava
possibilidades de um grande envolvimento do grupo.
Escolhida a obra, as sessões de leitura foram realizadas num espaço utilizado como
sala de áudio-visual, onde os alunos acomodavam-se da forma mais à vontade “possível”, no
chão ou nas cadeiras, que eram organizadas em forma de círculo. As sessões incluíam o
momento de retrospectiva da sessão anterior, a leitura oral, a socialização acerca das
impressões do capítulo do dia e o levantamento de hipóteses sobre o capítulo seguinte.
Inicialmente apenas eu, lia o texto para o grupo, esclarecendo que não dispúnhamos
de material impresso, contando apenas com um exemplar da obra. Durante o processo alguns
117
alunos também participaram da leitura oral de algumas partes do livro para a turma, a partir de
um convite aberto. Após o primeiro capítulo, os alunos puderam optar por participar das
sessões ou desenvolverem outras atividades na biblioteca, como estratégia para não
interromper o momento da leitura oral. No início, cerca de três alunos chegaram a sair da sala,
alegando não estarem gostando do texto. Em alguns momentos a leitura era interrompida,
devido algumas conversas paralelas, porém durante o processo, o grupo envolvia-se
gradativamente, marcando um verdadeiro encontro entre texto e ouvintes e todos acabaram
optando pelas sessões de leitura. Até os alunos considerados mais inquietos demonstraram um
grande interesse pela obra. O processo de desenvolvimento durou um semestre.
“A casa da madrinha” apresenta o enredo de um menino que vive uma série de
aventuras para alcançar o objetivo de encontrar a casa da sua madrinha, onde teria a
possibilidade de realizar todos os seus sonhos, necessidades e desejos.
Durante as sessões era possível ler o texto corporal dos alunos, visivelmente seduzidos
pela narrativa, firmando um contrato ficcional expresso no olhar e nos gestos. Durante o
processo eram cada vez mais raros os momentos de interrupção da leitura. O grupo
compartilhava das angústias, dos sonhos, dos conflitos e dos prazeres vividos pelos
personagens, de acordo com suas próprias referências.
Ao final de cada capítulo dialogávamos sobre a leitura. Neste momento os alunos
apresentavam suas impressões sobre o texto, falavam dos personagens, faziam previsões e
relações com seu contexto, demonstrando alguns sentimentos despertados a partir da
narrativa.
Em alguns momentos pediam para que fossem lidos mais de um capítulo. Noutros
demonstravam menos interesse e às vezes saiam desapontados com as surpresas dos
acontecimentos. Em determinados desfechos, aplaudiam espontaneamente. Observava-se
certa cumplicidade entre o grupo e o texto.
Terminada a leitura da obra, após a discussão, os alunos foram desafiados a
colocarem-se no lugar do protagonista, no momento em que este consegue, enfim, chegar à
casa da sua madrinha. Os alunos deveriam narrar, através da escrita, o encontro com tudo o
que encontrasse, porém, de acordo com seus próprios sonhos e desejos. As produções
evidenciaram um mundo de fantasias e realidade, conforme as ilustrações que seguem:
118
Texto-18
Quando cheguei à casa da Madrinha eu a abracei. Estava com muita
fome. No início fiquei com vergonha de pedir comida, mas acabei pedindo.
Ela disse que eu podia escolher tudo que eu quisesse. Quando terminei
falou que tinha um presente para me dar e que estava escondido no porão.
Fui correndo até e encontrei uma linda bonequinha. Fiquei muito feliz e
disse: “Eu te amo”.
Minha madrinha ficou emocionada.
(Kaline, 2005)
Texto-19
Quando cheguei à casa da minha madrinha eu vi coisas incríveis
como um macaco que fala e um papagaio que canta. Fiquei admirada com
as coisas que tinha lá.
Comecei a conversar com o macaco e com o papagaio e eles me
convidaram para dar um passeio e falar mais sobre suas vidas. Mais tarde,
muito cansados, voltamos para casa da madrinha. Mas antes de dormir
contei um pouco dos meus sonhos. Que quando crescer quero ter duas
crianças, um menino e uma menina. E que quero casar com um homem bem
bonito e viver com ele ali, na casa da Madrinha.
(Renatinha, 2005)
Conforme demonstram os textos apresentados, as narrativas permitem vivenciar
diferentes contextos e a função poética é revelada no encontro entre autor e leitor, no processo
de criação, transformando palavras em acontecimento. Renatinha, uma menina de 11 anos,
viaja livre e solta entre o real e o imaginário, utilizando-se dessa estratégia para revelar seus
sonhos e fantasias. Sua narrativa aproxima-se das fábulas, ao dar características humanas aos
seus personagens, assim como no texto original. Identificamos a presença de elementos
característicos das narrativas na forma de estruturar e de narrar o texto. Kaline, uma
adolescente de 14 anos, se aproxima mais de situações reais, porém nos dois casos é
possível identificar a presença de elementos mais específicos do grupo, relacionados à ação
pedagógica, na intertextualidade presente com relação à obra “A casa da madrinha”, bem
como com outros encontros textuais, sejam eles escritos orais ou de outra natureza. uma
relação muito particular com a obra ouvida pelos alunos, no que se refere ao elemento
simbólico que caracteriza o texto literário. Assim, não foi por acaso que a aluna Kaline (texto
18) escolheu o porão como cenário para encontrar sua boneca.
Na obra original, rica em linguagem simbólica, o porão representa um lugar mágico,
cheio de mistérios e surpresas. É neste canto da casa que o protagonista realiza os mais
119
significativos reencontros com pessoas e objetos que marcam sua historia, num momento que
os considerava perdidos. Dentre estes reencontros destaca-se o da maleta perdida, utilizada
pela única professora que marcara de forma profundamente afetiva suas memórias escolares e
a “gata da capa” paixão arrebatadora do seu melhor amigo e companheiro de aventuras, o
pavão, que jamais esquecera seu primeiro e único amor.
A reescrita das alunas evidencia o sentido do texto literário que não representa a cópia
do real ou puro exercício da linguagem, nem tampouco mera fantasia que se asilou dos
sentidos, do mundo ou da história do humano. Os textos literários permitem que o plano da
realidade possa ser apropriado e transgredido pelo plano do imaginário como uma instância
concretamente formulada pela mediação dos signos verbais ou não verbais, conforme
sugerem os Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (1997).
Quisera eu poder sentir, ver, transitar entre o imaginário dos alunos, durante a leitura
da obra. Certamente iria deparar-me com um mundo de situações e tantos outros textos
corporais, que a relação que se estabelece no ato da leitura, entre obra e leitor seria capaz
de explicar. Com certeza nem compreenderia muitas das situações vivenciadas, considerando-
se que só cada corpo, em sua subjetividade e com base nas suas próprias experiências de vida,
poderia sentir as mesmas sensações e emoções, de forma única, jamais repetida, nem mesmo
em suas próprias recordações. Pois, ao tentar reviver a mesma situação, o corpo, em sua
complexidade, o faz com base em novos elementos que se articulam às novas experiências,
desencadeando possibilidades diferentes da vivida em momento real.
Os textos produzidos a partir do contato com as narrativas literárias não se limitaram
ao desenvolvimento da linguagem escrita. Pois os gestos, a atenção, a interação, o
envolvimento, as palavras e até mesmo o silêncio, são indícios de articulação entre as diversas
linguagens corporais, possibilitando encontros e reencontros com suas próprias histórias de
vida.
Para deixar mais claro o que pretendo expressar, relatarei um fato ocorrido durante o
desenvolvimento deste trabalho e que pode evidenciar o valor do encontro corporal com a
narrativa literária. Um encontro entre corpo e escrita que lembra mais uma vez a metáfora da
montanha como extensão do corpo, e vice-versa, no momento da escalada, apresentado com
base em Serres. Neste caso trata-se de reinventar a própria trajetória, evidenciando o papel das
narrativas enquanto uma, das infinitas possibilidades de se viver o corpo.
120
Entre os alunos dessa turma, destaco a presença de Nete
13
, uma menina de 14 anos,
cujo comportamento demonstrava insegurança, apresentando sérios problemas emocionais e
uma vida pessoal marcada por conflitos familiares, que se refletiam no desenvolvimento de
sua aprendizagem. A garota vivia sob a responsabilidade da avó, devido as constantes
separações dos pais.
Nete veio para minha sala após freqüentar uma sala inclusiva, convivendo entre
alunos com diferentes deficiências e tendo alcançado pequenos avanços durante alguns anos
junto ao mesmo grupo, conforme já foi anunciado no capítulo anterior.
Observei, durante o processo de leitura da obra, que a aluna demonstrava uma
mudança visível em seu comportamento. Começou a apresentar mais segurança nas atitudes,
envolvimento nas atividades e no relacionamento afetivo, chegando a conquistar novas
amizades.
Em meio a tais mudanças, passou a me falar da pessoa maravilhosa e generosa que
era seu padrinho. Sempre comentava a respeito do carinho com que era recebida por ele,
quando o visitava em uma cidade do interior do Rio Grande do Norte. Chegou a me convidar
para sua festa de quinze anos, que seria organizada por esse padrinho, como presente de
aniversário.
Com o passar do tempo, percebia que os laços de afetividade entre ela e o padrinho
se estreitavam, passando a ser assunto freqüente da aluna em sala de aula. E, na medida em
que a relação se fortalecia, Nete passava a conviver melhor no grupo, a aumentar sua auto-
estima, a conquistar novos espaços. Demonstrava um grande avanço com relação à segurança,
a autonomia, desencadeando-se um processo de desenvolvimento pessoal e coletivo que se
refletia no seu processo de aprendizagem.
Recordo que um dia, Nete me falou que seu padrinho a havia convidado para morar
em sua casa. E, segundo a aluna, havia lá, um quarto bonito e confortável, preparado para
recebê-la. Ela não escondia sua vontade de atender ao convite do padrinho. O que era
compreensível, diante do cuidado e do carinho com que a tratava, segundo o que demonstrava
sua afilhada e frente aos conflitos enfrentados em sua própria casa. Por outro lado, tamanha
afetividade despertou-me algumas preocupações. Inquietava-me aquele relacionamento
repentino e cheguei a compartilhar com algumas colegas de trabalho e com a direção da
escola sobre o assunto. Suspeitava tratar-se de um possível caso de assédio sexual,
13
Aluna-autora do texto 5, citada no capítulo anterior.
121
considerando sua fase de desenvolvimento, bem como sua indiferença em relação à madrinha.
Percebi que se limitava a falar da mesma, se questionada diretamente sobre ela.
Considerando-se os avanços de Nete, com relação à conquista de autonomia, frente
às situações de aprendizagem e de relacionamento, temia que a mudança pudesse interferir
nesse processo e procurava orientá-la a deixar terminar o ano letivo, antes de tomar tal
decisão.
Eu estava entusiasmada diante do seu interesse em ler outras literaturas, outros
gêneros textuais e até em produzir alguns textos poéticos. Conseguia expressar sua
sexualidade, despertando o interesse dos meninos, o que ficava difícil quando do seu
comportamento anterior. Todo esse quadro culminaria com sua promoção para o ensino
fundamental II, sonho da maioria dos alunos que freqüentam as Salas de Aceleração.
De repente, antes de concluir o ano letivo, fui surpreendida pela aluna que me
procurou para dizer que iria mudar-se de vez, para a casa do seu padrinho.
Mediante a preocupação pedagógica voltada para o processo de aprendizagem, bem
como com relação às intenções do padrinho, convidei a avó da aluna para esclarecer a
situação. Pretendia contar com o seu apoio para que, juntas, tentássemos orientar a neta, no
sentido de que a mesma concluísse o ano letivo, antes de se mudar para a casa do padrinho.
Qual não foi minha surpresa ao descobrir que este padrinho jamais existira. Tratava-
se de um personagem imaginário. A aluna descobriu por meio da ficção uma estratégia para
resolver seus problemas reais. Foi capaz de experienciar uma nova situação a partir das
possibilidades que emergiram das relações entre seu corpo e a situação ficcional, atribuindo
novos sentidos a sua própria vida.
Acerca desse fenômeno, busco apoio em Betterlheim (1980) que coloca a
importância da literatura para a personificação dos desejos do leitor a partir da história dos
personagens, exatamente como o que ocorreu na situação narrada. Apesar de se tratar de uma
situação inusitada e de certa forma perigosa, diante a dimensão dos elementos evidenciados,
podemos afirmar que o encontro corporal com os textos literários é capaz de possibilitar uma
experiência estética, no sentido em que esta
é marcada pela transversalidade entre o sujeito e o objeto, o material e o
incorporal, o antes e o depois [...] uma situação complexa dada
imediatamente por uma espécie de “contaminação”, um arrebatamento
capaz de levar o ser humano a territórios ainda não percorridos, de torná-los
instantaneamente diferentes do momento anterior (PORPINO, 2001, p.
105).
122
A literatura pode representar uma dessas possibilidades, considerando-se seu poder
de sedução, sua capacidade de ampliar-se da dimensão de códigos lingüísticos para dar lugar
aos diferentes sentidos, conforme defende Merleau-ponty (2002); de seduzir o humano,
independente da sua idade cronológica, desvelando-se enquanto uma varinha de condão que
abre portas para novos mundos, reencantando o corpo e reinventando trajetórias.
O texto literário, segundo Iser (1996, p. 11), “se origina da reação de um autor ao
mundo e ganha caráter de acontecimento à medida que traz uma perspectiva para o mundo
presente que não está nele contida”. Deste ponto de vista, a experiência vivida por Nete,
ressalta o caráter de acontecimento do texto, refletido na capacidade da aluna em, a partir
dele, recriar sua realidade. Ainda segundo Iser (1996, p. 13), “o texto tem o caráter de
acontecimento, pois, na sua seleção, a referência da realidade se rompe e, na combinação, os
limites dos léxicos são ultrapassados”.
Estas possibilidades são vivenciadas de formas diferentes por cada leitor, que
atualiza os vários sentidos ou a polissemia dos textos com base nas suas referências
individuais e socioculturais, portanto “A casa da madrinha”, enquanto obra literária, não traz
em si uma significação predeterminada, como um segredo a ser desvelado, pois o sentido do
texto literário tem um caráter de imagem, de forma que o sujeito nunca desaparecerá desta
relação.
Se a princípio é a imagem que estimula o sentido que não se encontra
formulado nas páginas impressas do texto, então ela se mostra como o
produto que resulta do complexo de signos do texto e dos atos de apreensão
do leitor. O leitor não consegue mais se distanciar dessa interação. Ao
contrário, ele relaciona o texto a uma situação pela atividade nele
despertada [...], o sentido não é mais algo a ser explicado, mas sim um
efeito a ser experimentado (ISER, 1996, p. 33-34).
Assim compreendido, o efeito estético, a exemplo da situação vivida por Nete,
ultrapassa o nível da explicação. Pois enquanto a explicação se limita à relação entre texto e
realidade dos quadros de referências, nivelando o mundo real e aquele que surge através do
texto, onde o leitor encontra-se atado a uma linguagem referencial, o efeito estético depende
da participação do leitor e sua leitura, mobilizando a imaginação e transformando o ato de
leitura em experiência, em acontecimento. Ou seja, a situação vivenciada por Nete não se
configura como a uma significação referencial, mas resulta do encontro entre o pólo artístico,
qual seja o texto criado pelo autor, e o pólo estético que refere-se a concretização produzida
pela aluna, pois as estruturas são de natureza complexa e preenchem sua função, não no texto,
123
mas a medida que afetam o leitor, modificando sua capacidade emotiva e cognitiva. De forma
que a obra literária só se realiza na convergência do texto com o leitor, conforme defende Iser
(1996).
Ainda com base em Iser (1996), podemos afirmar que a obra literária tem um caráter
virtual que refere-se ao que ainda não se conhece e que se efetiva no encontro entre texto e
leitor, entre o artístico e o estético, no ato da leitura. Assim, podemos apontar a experiência
vivida por Nete, como um momento único que jamais se repetirá, na mesma dimensão. No
entanto, ao considerarmos que toda obra literária prevê a concepção de um leitor implícito
poderíamos explicar sua experiência como “um processo de transferência pelo qual as
estruturas do texto se traduzem nas experiências do leitor através dos atos de imaginação”
(Iser, 1996, p. 79), transformando-se em acontecimento.
O desenvolvimento desse projeto de leitura me proporcionou um grande aprendizado
como educadora, na medida em que a experiência pode contribuir para desencadear encontros
entre texto e leitores, despertando o interesse de muitos alunos por outras obras literárias
existentes dentro e fora da escola. Ao propor o encontro entre corpo e escrita, delineando
situações pedagógicas capazes de proporcionar momentos mais significativos, também passei
a conhecer outras obras de Ligia Bojunga e de outros autores, ampliando também meus
horizontes e minhas experiências estéticas.
Conforme tratei anteriormente, o texto literário é marcado pelo sentido simbólico
que o representa, englobando, além das narrativas, os poemas.
Considerando a poesia como obra de arte, procurei desenvolver um trabalho
pedagógico paralelo, junto a esta mesma turma, com base na proposta triangular defendida
por Ana Mãe Barbosa. Assim organizei uma caixa com diversos poemas, possibilitando o
encontro diário entre os alunos e este gênero literário, criando assim outros encontros, além
dos momentos específicos em que trabalhávamos de forma sistematizada os conhecimentos
relacionados a este gênero.
Ana Mae (1998) considera que o ensino da Arte deve proporcionar momentos de
contextualização, de leitura da obra e de vivência da mesma. Acredito que tal preocupação
atende também às necessidades das demais áreas do conhecimento, no contexto escolar.
Dessa forma procuramos analisar alguns textos poéticos, observando sua estrutura, a presença
de elementos simbólicos, os diversos sentidos despertados por eles, as relações com a
realidade, a presença do elemento lúdico, das emoções despertadas e assim por diante.
Levei também à sala, letras de algumas músicas pouco conhecidas que passaram a
apreciar após refletirem sobre o sentido de alguns termos. Durante o ano letivo foram
124
organizados momentos de recitais na própria sala e em outras turmas, por meio de uma
atividade que chamamos de “assalto poético”, do qual tratarei mais adiante.
Aos poucos, os alunos começavam a se apropriar da linguagem poética, despertando
o desejo de ler outras obras e de produzir seus próprios textos.
No início, os alunos faziam pouco uso da linguagem figurativa, atentando mais para
a ludicidade da rima, refletindo um pouco das minhas próprias limitações, ao começar a
trabalhar com este gênero. Descobrimos juntos os caminhos da linguagem poética. Nesse
processo pude compartilhar de minhas limitações com algumas colegas de trabalho, em
especial Ana Lúcia Ferreira e Sandra Milena, galgando juntas por trilhas pouco percorridas
(por nós), em busca de encontros mais poéticos, entre corpo e escrita poética na escola. A
receptividade das demais colegas de trabalho, disponibilizando suas salas para os recitais, foi
de grande relevância, naquele momento, para que pudessem fluir novos sentidos através da
escrita.
Dentre as atividades relacionadas à produção de textos poéticos, destaco um trabalho
desenvolvido em conjunto com a professora Ana Lúcia com quem dividia o atendimento
realizado em uma Sala de Apoio Pedagógico Específico (SAPES), na própria escola. Esta
Sala, projeto do MEC, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, atendia alunos
com necessidades educacionais específicas, destacando-se crianças e adolescentes com
deficiência mental, auditiva e de aprendizagem, dentre estes alguns alunos das Salas de
Aceleração, que freqüentavam a SAPES em horário adverso ao da sala regular.
Apesar do projeto da SAPES apresentar como proposta, um atendimento
individualizado, considerando-se a demanda da Escola Amadeu Araújo, uma das escolas
municipais de Natal pioneiras no trabalho com inclusão, optamos por trabalhar com pequenos
grupos. Esta opção teve como fundamento a credibilidade na interação entre os alunos, assim,
esta unidade de ensino foi desenvolvida durante cerca de oito encontros com grupos de três ou
quatro alunos, abrangendo uma média de 24 alunos, divididos em dois turnos. Cada momento
teve duração de duas horas. Em alguns momentos juntávamos mais de um grupo. Mais uma
vez priorizamos a articulação entre as diversas linguagens corporais. Partindo dessa
compreensão, e com o objetivo de proporcionar experiências estéticas, apresentamos a música
instrumental “Trem Caipira” de Vila Lobos, como atividade desencadeadora. Em seguida
pedimos para que os alunos relatassem as impressões acerca da música. Sobre as emoções que
esta lhes suscitava, que relações eles faziam da música como seu cotidiano. Esperávamos que
a música inspirada no movimento de um trem, suscitasse a lembrança deste meio de
transporte, que passa diariamente pelo bairro, onde reside a maioria dos alunos envolvidos.
125
Como essa imagem não foi suscitada, começamos apontar algumas pistas. Pedimos
para que tentassem reproduzir o ritmo da música através de movimentos com o próprio corpo,
individualmente ou em grupo. Logo puderam estabelecer relações entre a música e a
intencionalidade do artista.
Em seguida falamos acerca do título da música e contextualizamos a vida do autor,
procurando estabelecer relações com as experiências vivenciadas pelo grupo. Depois dessa
conversa, os alunos foram desfiados a criarem outros títulos para a música e, conforme os
apresentavam, íamos registrando sua escrita no quadro. A partir dos títulos realizamos
algumas atividades de escrita e leitura, como jogos de associação entre os títulos e os autores,
reorganização de enunciados a partir das palavras soltas, criação de novas palavras a partir das
letras presentes nos títulos, e assim por diante.
Num outro momento pedimos para que, deitados no chão, ou sentados
“confortavelmente”, na medida do possível, fechassem os olhos e com as luzes apagadas,
ouvissem novamente a música. Desta vez, deveriam imaginar que estavam no interior do
trem, observando a paisagem, através da janela. Pedimos, logo após, para que socializassem o
que viram durante a viagem.
Após a viagem ficcional, os alunos foram desafiados a representar, através da
linguagem plástica (pintura), o momento mais marcante da viagem. Nessa etapa foram
orientados a utilizarem todo o espaço da tela (papel ofício) com tinta guache, a misturarem as
cores primárias para obter novas cores e tonalidades; a usarem o pincel de forma adequada; a
assinarem as obras, e assim por diante.
Em seguida acrescentaram à obra, o título criado anteriormente e os quadros foram
expostos num grande painel. Após essa etapa, com o apoio das telas e com base nas imagens
vivenciadas durante a viagem ficcional, os alunos foram registrando, através da escrita, o que
representava cada tela. A partir do título geral: “pela janela do trem”, foram desafiados a
formarem um poema, organizando cada resposta registrada. Essa etapa demandou mais de um
encontro com os alunos com mais dificuldade de expressão escrita. Alguns deles
conseguiram construir o poema de forma coletiva com um acompanhamento mais
individualizado, outros a realizaram sem muita intervenção, de forma mais autônoma,
conforme as apresento em seguida:
126
127
Conforme podemos observar a partir das duas produções, percebemos uma estreita
relação entre o contexto sociocultural dos alunos e o que expressam por meio dos seus
poemas. A linguagem figurativa é uma marca presente nas duas produções, considerando-se
expressões como “pés de coco namorando” ou “eu vi muitas coisas que não posso dizer, pois
eu não vi, só senti”. O texto de Midian evidencia um estilo próprio que se evidencia na forma
de finalizar cada estrofe, como uma marca pessoal. A aluna se destacou dentre os colegas,
expressando, além de um grande envolvimento, certa habilidade com relação ao gênero
proposto, suscitando o desejo de criar outros poemas. Em conseqüência dessa atividade ela foi
convidada a recitar, durante um encontro de mães, uma de suas obras, criada especialmente
para a ocasião.
A ilustração do fundo foi produzida por um aluno com múltiplas deficiências,
incluindo a mental. Este não conseguiu, ainda, produzir um texto escrito com autonomia, mas
o desejo de escrever foi suscitado, pois é preciso ter motivos para se aprender a escrever.
Salientando que conseguiu expressar seus conhecimentos por meio da linguagem gráfica e da
oralidade.
Outras produções também foram realizadas, contemplando-se a contextualização, a
leitura e a vivência de obras, como a reescrita de “trem de ferro” de Manoel Bandeira,
produzido por Jana:
Texto-22
O Trem
Lá vou eu pela estrada
Lá vou eu pela estrada
Passa carro e cachorrada
Passa fogo e fumaçada
Passa peixe e peixarada
Passa moto com zuada
Piuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
(Jana, 2005)
Observando a obra é possível perceber a presença do elemento lúdico, especialmente
na relação entre a melodia, as rimas e o ritmo, dando mais graça ao texto e transformando a
produção do poema numa grande brincadeira. Jana, uma garota de 15 anos de idade, ainda não
havia sistematizado os conhecimentos relacionados à leitura e à escrita. Apesar dessas
128
dificuldades, conseguia se envolver nas atividades, demonstrando sua capacidade diante outras
formas de linguagem. A partir de seu texto podemos perceber que ela é capaz de utilizar-se de
elementos da obra de Manoel Bandeira, como ritmo, melodia, observando-se uma
intertextualidade com suas próprias inscrições corporais. Essa intimidade pode ser
compreendida considerando-se sua proximidade afetivo-biológica com trem. O trem que se
concretiza em encontro corporal, tocando sua pele, materializando-se diante dos seus olhos,
invadindo-lhe os sentidos na sonoridade do seu apito, no ritmo do seu movimento, na melodia
que invade becos e ruas das proximidades de seu percurso. O mesmo trem que retrata elementos
inscritos em seu corpo é capaz de fazê-la ir além, conforme se pode inferir a partir do processo
de aprendizagem da linguagem escrita, que lentamente vai sendo tecido em seu cotidiano. Um
processo, cuja transversalização com suas experiências vividas e com as diferentes formas de
linguagens se faz fundamental.
Jana sentido ao seu poema com base em possibilidades que supõe vivenciar
durante uma viagem de trem. Considerando-se o percurso mais comum do trem que atravessa
seu bairro, em direção, tanto ao centro da cidade como ao interior, não foi difícil falar de
animais que fazem parte do seu cotidiano, como o cachorro, moto, fumaça e peixe, que uma
das paisagens mais marcantes durante o passeio de trem refere-se à bela lagoa de Extremóz. Em
contato com outras realidades, seja através de filmes, de conversas, de contos, etc. certamente
irá ampliar seu repertório de conhecimentos e a ação educativa desempenha um relevante papel,
nesse sentido.
O “assalto poético” refere-se a uma atividade em que os alunos da Sala de
Aceleração, após o contato com os inúmeros textos levados à sala de aula, conforme foi
anunciado, tiveram a oportunidade de recitar para outras salas. O convite foi para todos que
quisessem entrar no grupo. Antes, porém teriam que escolher um dos poemas, fazer alguns
ensaios para que pudessem enriquecer as expressões corporais.
No momento combinado com a professora da sala anfitriã, chegariam de cara
pintada ou de máscara, surpreendendo toda a turma, anunciariam o “assalto”: “Não se mexam,
Isso é um assalto! Viemos assaltar seu coração!” Neste momento recitariam, em voz alta, o
poema escolhido para toda a turma. A idéia foi da professora Sandra Milena, que na época
assumia a função de Apoio Pedagógico, junto à professora Lourdes Freitas. As duas
acompanhavam os alunos pelas salas do colégio e até à escola vizinha, conforme foram
convidados, enquanto eu ficava com a outra parte dos alunos em sala de aula. A estréia era
sempre na própria sala, na qual os colegas, após acompanhar o processo, poderiam avaliar o
desempenho e apontar sugestões.
129
Através dessa atividade vivi experiências estéticas inesquecíveis. Alguns alunos
considerados tímidos participaram desses momentos e muitos começaram a olhar os textos
literários de outras formas.
Ressalto, porém, o envolvimento de Francisco, um dos alunos que era conhecido
pelo estigma da indisciplina em anos anteriores. O menino tinha um potencial que fora
desperdiçado durante anos, revelava-o agora, por meio dessa atividade. Quando chegava às
salas, no momento do “assalto” seu corpo inteiro era a própria poesia. Os poemas ganhavam
vida e graça através de sua voz, de seus gestos, de seus movimentos e do seu silêncio. Enfim,
materializavam-se na entrega total do seu corpo, contagiando os outros corpos, que na hora
exata, aplaudiam inebriados pela poesia que fazia dessa atividade, um momento sublime.
Francisco, agora tinha outro motivo para ser reconhecido na comunidade escolar.
Não consigo esquecer o momento em que aquele menino, aparentemente tão insensível, me
falava do seu desejo de possuir um livro de literatura, da sua vontade de ser poeta. Ao vê-lo
contaminado pelo que o encontro com a palavra é capaz de proporcionar, também me sentia
afetada. Era como se fosse transportada a novos territórios que se configuravam num encontro
estético, através do qual podia compreender que estava diante de um corpo, cuja sensibilidade
refletida no brilho de um olhar, estivera até então, encarcerada entre a dureza de seus gestos e a
linearidade do espaço escolar. Francisco era a prova viva de que a poesia não reside na
extremidade do corpo nem na dos códigos, mas na transversalidade entre essas duas dimensões,
marcando um encontro estético do qual emergem signos e símbolos culturais.
O trabalho com textos poéticos culminou, no final do ano letivo (2005) com um
passeio à lagoa de Extremóz-RN, onde organizamos um sarau poético com apresentações
culturais realizadas pelos alunos, conforme o registro fotográfico que segue:
Figura 14- Momento do recital em Extremóz-RN Figura 15- Momento do recital em Extremóz-RN
Fonte: Acervo pessoal da autora Fonte: acervo pessoal da autora
130
Rememorar estas experiências me remete ao encontro com uma obra de Lígia Bojunga
e inspirada na mesma posso pensar o corpo, compará-lo a uma “Bolsa amarela”
14
repleta de
mistérios e segredos que não podem ser revelados, sob a pena de pagar o preço daqueles que
não se enquadram num modelo ideal, onde o real se reveste de ficção para se transformar em
verdade. Uma bolsa que guarda as angústias e o medo, mas também os sonhos e os desejos
mais subversivos, e ao mesmo tempo, tão comuns, que, no entanto, precisam camuflar-se no
amarelo de um velho e desbotado acessório, passível de estourar a qualquer momento,
deixando escapar, entre gestos e palavras, parte do seu misterioso conteúdo. Assim aconteceu
com Francisco, com Nete e com tantos outros, cuja escrita dos corpos permanecerão no
anonimato ou nas entrelinhas de seus registros.
Ao ressignificar essas experiências podemos destacar a relevância da linguagem
literária, dos textos poéticos, como estratégia pedagógica capaz de reencantar o corpo,
propiciando a vivência de experiências estéticas e transformando a relação corpo/escrita em
momentos nos quais as palavras, enquanto símbolo, se revestem de elementos humanos.
Enfim, o encontro possibilitado entre palavras e corpos, intermediado pela escrita, é capaz de
transformar o ato de ler e de escrever numa situação fecunda de mobilização, onde as
diferentes linguagens se articulam na unidade corporal, abrindo caminho para as mais
surpreendentes formas de se de reencantar o corpo e de recriar a realidade.
Corpo, escrita e outras histórias
... e sentados no chão, feito uma roda, se ouvia a voz da contadora de
histórias, pois a nós, ouvintes, restava a tarefa de vivê-las, cada uma delas,
intensamente, embalados entre o silêncio e a palavra.
Ana de Souza
Hoje, em pleno século XXI, convivemos num tempo-espaço permeado pela
diversidade de elementos que caracterizam uma multiplicidade de situações e momentos
históricos. Vivemos a era dos Orkuts e games, da tecnologia que encurta a velocidade entre o
micro e macro, da globalização. Não raramente nos deparamos com afirmações do tipo: “As
crianças não querem saber de tradição, de um passado ultrapassado. A tradição oral é
14
Obra literária de Ligia Bojunga Nunes, onde a bolsa, acessório, utilizado pela protagonista, simboliza o espaço
utilizado para esconder tudo aquilo que não pode emergir de forma visível através do seu corpo, como
sentimentos desejos e emoções reprovados, com base nos padrões sociais vigentes.
131
substituída pela tecnologia de ponta, os velhos livros de história infantil, pelos jogos
eletrônicos. A roda de conversa e as longas narrativas que reuniam gente de todas as idades,
pelo bate-papo através da internet e pelo espaço delimitado das academias”.
Terá sido banido do mundo “globalizado” todo um passado historicamente recente que
marcou boa parte das últimas gerações?
Afinal, de que mundo estamos falando? Tais avanços não fazem parte do dia-a-dia de
muitos brasileiros, nem mesmo de grande parte da população mundial.
Miséria e ostentação são faces de uma mesma moeda e engana-se quem acredita que
as histórias da tradição, o mito e o imaginário não continuam encantando as novas gerações.
Estas histórias nos remetem à história humana e como tal precisam ser ressignificadas,
contextualizadas. Vivemos mergulhados numa realidade permeada de contradições e
ambigüidades, onde a velocidade das informações e o corre-corre do dia-a-dia apontam, cada
vez mais, para a necessidade de se viver o corpo, de despertar para o belo, de vivenciar os
sentidos, os sentimentos, as emoções, de se viver experiências estéticas.
O imaginário emerge do bojo das situações reais, que se estabelecem nas relações
entre o humano e mundo cultural. Inseridos nesse processo contínuo, somos capazes de criar
conhecimento, transformando e transformando-nos. Somos capazes de continuidades e
rupturas, de construções e desconstruções, convivendo com avanços e permanências, seja
marchando a favor dos ventos ou “navegando entre torrentes”.
Nessa perspectiva, não podemos encarar o desenvolvimento como um inimigo, ao
contrário, somos desafiados a usar a criatividade para fazer bom uso da tecnologia em prol de
uma formação mais humana, embora isso possa parecer contraditório.
As raízes que marcam a história da nossa civilização precisam ser ressignificadas e
divulgadas para que possamos nos reconhecer nesse multiculturalismo maravilhoso que, por
séculos, nos foi negado para se atender a um modelo padrão que caracterizou o conhecimento
científico.
A educação é um fenômeno que se caracteriza pela aprendizagem das diversas formas
concretas de relacionamento entre o homem e o mundo, sendo um fenômeno cultural, e
sofrendo condicionamentos históricos. Compreendida desta forma não podemos negar a
influência da ciência e da mídia, na formação do aluno, nem tampouco nos limitar às
informações divulgadas por estes meios.
Cabe à escola, esse espaço privilegiado de se vivenciar a cultura, não sepultar outras
estratégias de pensamento ou de produção de conhecimentos, propiciando uma aprendizagem
pautada no diálogo entre sujeito e objeto de conhecimento e possibilitando diversas
132
interpretações sobre determinados fenômenos, valorizando estas e outras histórias, escritas
ainda, em linhas escassas.
Entre estas, refiro-me aos conhecimentos populares, que têm garantido, ao longo da
história, a sobrevivência de uma significativa parcela da população que não tem acesso às
facilidades oriundas de um mundo marcado pelos avanços tecnológicos.
Avanços que distanciam e aproximam diferentes gerações, considerando-se que as
permanências convivem com as rupturas. Dessa forma, a tecnologia utilizada, quando das
primeiras escritas das cavernas, não se distancia muito do uso de quadro e giz, ainda presente
nas salas de aula. E, que pesem todas as críticas, é dessa forma que parte da humanidade ainda
é alfabetizada, enquanto muitos outros ainda não atingiram tal processo. E assim como as
pinturas rupestres abriram caminhos para a tecnologia a que hoje muitos de nós temos acesso,
os conhecimentos construídos culturalmente, corporalizados pelos alunos que chegam às
nossas escolas, poderão desencadear mudanças em benefício da sociedade, quando
compreendermos que os conhecimentos científicos, sozinhos, nunca foram, nem serão
capazes de solucionar os problemas humanos.
Dentro desta perspectiva, ressalto os saberes dos atores vivos da nossa cultura popular,
que não deixaram morrer a chama, e que, apesar de ser muitas vezes considerados “o filho
bastardo”, mediante da “legitimidade” atribuída ao conhecimento científico, continuam
fazendo história, despertando curiosidade e emoções de muitos que, como eu, tiveram o
privilégio de conviver e compartilhar da sua sabedoria, expressa na simplicidade dos gestos e
na acessibilidade de sua linguagem.
Refiro-me aos contadores de história, às benzedeiras, aos artesãos de brinquedos de
lata e madeira, às “fazedeiras” de bonecas de pano, aos repentistas, aos pescadores, que, como
meu avô, também contam suas histórias; aos artistas populares que encantam, dando vida aos
diversos personagens como os do João-Redondo
15
, do Boi-do-Rei, do pastoril, e assim por
diante. Refiro-me ainda ao “Homem-da-cobra
16
, ao Bicho-papão, à Viúva Machada
17
,
personagens presentes no imaginário da geração a qual pertenço e que correm o risco de
caírem no mundo do esquecimento, por falta de corpos que os dêem vida, que os
ressignifiquem, que deixem seus registros.
15
Conhecido também como “Capitão João Redondo”, personagem folclórico inspirado na história de um
fazendeiro metido a durão que sempre era passado para trás pelo negro “Baltazar”, astucioso personagem que
trabalhava na fazenda, cujas astúcias anima os enredos encenados com a ajuda de bonecos que ganham voz e
movimentos através da ação de artistas populares.
16
Personagem que ganha a vida exibindo uma grande cobra que carrega numa mala, para atrair a atenção
popular e oferecer seus produtos medicinais em feiras livres.
17
Personagem que permeia o imaginário popular baseado na história de uma viúva que para impedir o
crescimento de suas orelhas, precisa alimentar-se de fígado das criancinhas, principalmente das teimosas.
133
Como síntese inacabada de um tempo-espaço que não se resume ao aqui agora, sinto-
me, de certa forma, privilegiada de trazer em meu corpo marcas visíveis de um mundo, cuja
velocidade não foi suficiente para apagar valores que forjaram uma história permeada de
situações ambíguas que se complementam. Mas, preocupa-me o fato de se achar que o novo
descarta o velho, negando-se assim a possibilidade de ressignificação e de recriação cultural,
transformando nossa história em corpos sem memória, sem alicerce, sujeitos à
descartabilidade, apesar da busca desenfreada pela fórmula mágica da eterna juventude.
Para ilustrar o que desejo expressar remeto-me a uma situação vivida, recentemente,
por um velho tio (João Gavião), salientando que em sua juventude ele encantava e encantava-
se dando vida aos personagens do João-Redondo e Boi-do-Rei.
alguns dias atrás, enquanto assistia a um programa de TV, ele foi pego chorando,
deixando toda a família desesperada. Entre soluços, conseguiu pedir que o levassem até a
cama e depois de algumas horas, quando, enfim, conseguiu expressar-se, deixou claro que
suas lágrimas refletiam a dor e a alegria ocasionados por uma apresentação de Boi-do-Rei
exibida num programa de TV.
Em sua vida simples de ex-agricultor, em mais de oito décadas vividas, jamais havia
imaginado, ver, através da TV, único meio de diversão que lhe restara, a brincadeira de
juventude, registrada tão profundamente em seu corpo, recordando momentos de toda uma
geração, perdida no anonimato.
A surpresa experienciada pelo velho João, comprova o descaso ou o processo de
exclusão vivido por alguns grupos sociais, cujos valores são descartados, caracterizando um
país sem memória cultural, cujas referências são negadas. Mas, ao mesmo tempo, remete a
uma possibilidade aberta pela própria tecnologia, de manter viva a memória, o “grito
ancestral” que nos trouxe até aqui.
A oportunidade que surpreendeu o artista popular nos leva a refletir que a globalização
é necessária, o intercâmbio com outras realidades se traduz numa rica experiência, porém
educar ultrapassa o que Paulo Freire, décadas, criticava como uma forma de “educação
bancária”. Não podemos nos limitar a condição de depósito de informações. Assim, enquanto
muitas de nossas escolas festejam de forma alienante e superficial, “o dia das bruxas”, por
exemplo, negligenciamos ou desconhecemos nossos próprios personagens folclóricos.
Corpos, dos quais emergem gestos repletos de sentidos e segredos que precisam ser
desvendados; histórias reveladoras de uma tradição cultural, de um passado que se reflete em
nosso cotidiano, cujo conhecimento se faz essencial para a construção do sentimento de
pertença e para uma melhor compreensão do presente.
134
Abrir mão destes saberes, dos valores que englobam as crenças, a religiosidade, nossa
tradição cultural; negligenciar os conhecimentos relacionados a riqueza multicultural da qual
emergimos, implica em negar nossa própria origem, retirando da escola a possibilidade de
formar produtores de cultura.
Acerca dessa realidade podemos nos apoiar em Paulo Freire, ao criticar a forma
hermética do pensamento científico, alertando para os enganos e tragédias oriundos dessas
“verdades absolutas” e defendendo a necessidade de um paradigma que permita o pensamento
complexo, afirmando que “respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como
ponto de partida para o papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial,
como um dos aparelhos fundantes da produção do conhecimento” (FREIRE, 138-139).
Diante do exposto emerge a necessidade de se estabelecer elos entre
conhecimentos escolares e a vida dos sujeitos da aprendizagem; de respeitar sua história,
como referência para dialogar de forma crítica mediante a diversidade de informações que o
circunda; de oportunizá-lo a manter viva a sua memória, possibilitando uma aprendizagem
humano-significativa.
Considerando-se que a cultura brasileira caracteriza-se como algo ambíguo,
polissêmico, polimorfo e simbólico, conotando, por isso mesmo, diferenças internas, que se
manifestam dialeticamente, na forma de conflitos culturais, conforme refere-se Resende
(1990), aponto algumas reflexões com base na categoria “corpo, escrita e outras histórias”, a
partir dos textos produzidos pelos alunos, durante experiência pedagógica desenvolvida na
Escola Amadeu Araújo, campo empírico desta investigação.
Antes porém é relevante salientar que a referida Escola recebe muitos alunos oriundos
de famílias que migram do interior do Estado, constituindo-se num campo fértil para a
produção de outros conhecimentos que marcam nosso pluralismo cultural.
Um levantamento realizado junto aos alunos e seus familiares acerca das lendas e
histórias orais que permeiam nosso imaginário cultural resultou num rico repertório de textos,
produzidos com entusiasmo na sala de aula.
Estas histórias referem-se a uma diversidade de narrativas que são, em sua maioria,
repassadas de geração em geração pela oralidade, envolvendo uma gama de valores
religiosos, morais, sociais, que dão pistas acerca do contexto histórico em que foram
disseminadas, conforme o texto abaixo:
135
Texto-23
O Haja-pau
Um dia o pai de um menino foi trabalhar na roça e quando chegou a
hora do almoço, sua mãe mandou o filho levar a comida do pai.
No meio do caminho, o menino comeu a comida, levou só os ossos pra
ele e ainda falou: “Pai, mãe mandou eu falar pra você que se quiser mais,
arranje por aí, que ela ficou em casa com outro homem.”
Quando o menino disse isso, o pai voltou para casa ... e começou a
bater na mulher. Ela não sabia de nada. Enquanto isso o menino
dizia:”Haja pau! Haja pau!” De tanto dizer “haja pau”, ele virou um
Haja-pau, que é um pássaro que canta: Haja-pau... haja-pau...
(Josy, 2004)
A narrativa apresentada por Josy, 10 anos, permite tecer algumas reflexões acerca dos
valores que permeiam o imaginário popular a partir da questão moral-religiosa, política e
histórica, nela implícitos. A dimensão do delito atribuído à mulher, ao ser acusada de
adultério, registra-se como um elemento norteador que se insere num contexto histórico,
evidenciando vestígios da presença européia e sua forte influência religiosa em nosso
território. Assim como o castigo atribuído ao menino, justificado pela mentira criada para
acusar a mãe. Salientando-se que, conforme os parâmetros de uma cultura estruturada com
bases nos pilares religiosos cristãos e numa política de cunho patriarcal, o possível adultério
da mulher é considerado mais grave do que o ato de assassinato do pai, o que justifica que o
filho, e não o pai, seja considerado o vilão da história.
A leitura desse texto permite pensarmos que esta forma de narrativa histórica,
impregnada nos corpos humanos e permeada de símbolos, caracteriza-se como produto e
produtora de cultura, permitindo outras estratégias de produção de conhecimentos, que não
descartam o conhecimento científico, mas ampliam as formas de se fazer ciência.
Essa reflexão pode ser melhor compreendida a partir do texto de Ivan, 16 anos:
Texto- 24
A cobra Norato
Norato era uma cobra encantada que vira e desvira ser humano. É
uma cobra muito grande, enorme, bonita e as pessoas tinham medo dela.
Ela morava numa lagoa e toda noite virava humano e ia dançar, beber,
namorar, curtir. Depois voltava de novo para o mesmo canto.
136
Ela procurava ajuda para perder o encanto e virar humano para
sempre. Pedia ajuda a cada pessoa que passava, mas ninguém tinha
coragem de enfrentar a grande cobra.
Até que um dia apareceu um homem corajoso que deu uma facãozada
na sua calda, pingou leite na sua boca e Norato nunca mais virou cobra.
(Ivan, 2004).
Existem inúmeras versões da “Cobra Norato” relatadas pelos próprios alunos da sala.
Inclusive uma relacionada à Lagoa de Extremóz, situada nas proximidades da Escola.
Segundo esta, duas crianças pagãs foram jogadas nas águas da Lagoa, e transformaram-se em
cobras. Uma delas é reconhecida pela mãe ao entrar na igreja durante uma missa. E ao ser
amamentada no seio materno, volta à forma humana, enquanto a outra, gigantesca, continua
nas profundezas da lagoa, assustando moradores, que vez por outra, narram vestígios de sua
presença.
A identificação de elementos como o castigo, a maldição, o poder do batismo, a mãe e
o leite materno como objetos sagrados, são, mais uma vez, evidências dos valores religiosos
que permeiam nossas raízes histórico-culturais implícitos nesta narrativa.
Refletir acerca desses conhecimentos me remete a Carlos Aldemir Farias, pesquisador
da linha de Pesquisa “Estratégias de pensamento e produção de Conhecimento”, da área de
Educação da UFRN, autor de “Alfabetos da alma”, resultado de uma pesquisa que aborda
sobre estas histórias. Compartilho com ele a compreensão de que:
Esse denso corpus literário, criado e ressignificado ao longo da história da
nossa espécie não pode ser visto pela sociedade científica como um
conhecimento balbuciante, inferior e menor, implicando no seu abandono
pela nossa escola (FARIAS, 2006; p. 44).
Ainda segundo Farias (2006), faz-se fundamental lembrar que nem tudo está escrito
nos livros produzidos a partir das pesquisas científicas. O que pode ser ilustrado pela riqueza
em que se constitui o material escrito que sustentação a esta pesquisa, buscando identificar
elementos que indiquem a escrita enquanto linguagem corporalizada.
“O dia salvo”, escrito por Everton, delineia-se como um desses textos corporalizados e
repleto de elementos que se manifestam nas interfaces entre os diversos tempos históricos,
pois “há sempre fragmentos do passado ancestral que habita o homem moderno, cuja
evidência se mostra nessas histórias” (Farias, 2006, p. 33).
137
Texto- 25
O dia salvo
Era uma vez uma tribo que trabalhava de dia e nunca via a noite.
Uma vez um bebê ficou doente e a tribo acordou no meio da noite.
A tribo, vendo a noite escura, pensou: “Cadê o dia?, Vamos atrás do
dia!”
Forma para o leste e chamaram o dia para dentro dos potes e barris.
Levaram os potes e barris para a tribo e começaram a abrí-los, um a um,
bem na hora em que o Sol estava aparecendo e até hoje pensam que
salvaram o dia.
(Everton, 2004)
Assim como as demais narrativas registradas pelos alunos, “O dia salvo” e as
incalculáveis que deixaram de ser escritas representam formas de contar nossa história,
possibilitando reflexões e olhares críticos que não podem ser negligenciado pela escola, em
nome de uma história linear que relata os fatos a partir de único ponto de vista.
Valorizar as inscrições corporais e a memória histórico-cultural não se limita a
reproduzir conhecimentos. Criar situações pedagógicas que permitam a articulação entre os
diversos saberes, significa respeitar o aluno em sua totalidade, possibilitando-o ser um criador
de cultura, enquanto “existência significativa do homem, através da história”.
Conforme defende Nóbrega (2005, p.77), o corpo expressa a história individual e a
história acumulada de uma sociedade”. Inferimos assim, que os conhecimentos relacionados
às nossas raízes culturais, revelados através dos textos dos alunos, não foram criados por
acaso. Eles estão diretamente permeados de práticas e vivências corporais. Manifestam
valores e atitudes inerentes à ação dos corpos no mundo e com o mundo, portanto, remetem às
memórias e às referências humanas.
Farias (2006) relata algumas dessas narrativas, dentre elas me chamou a atenção a que
trata da existência de uma baleia gigante que vive sob a igreja matriz de Nossa senhora da
Conceição, localizada no município de Canguaretama-RN, cuja construção foi realizada sobre
um lençol subterrâneo, conhecido pelos que habitam aquela região como “rio caudaloso”.
Segundo depoimento de D. Maria do Rosário Farias, moradora antiga da cidade, em entrevista
a Carlos Farias, acredita-se que a padroeira protege a cidade, mantendo o animal tranqüilo.
Pois a agitação da tal Baleia provocaria o rompimento do rio e a inundação da cidade.
Essa mesma narrativa coincide com outra, contada pelos moradores mais antigos de
Ceará-Mirim-RN, município em que vivi quase toda minha infância e adolescência, inclusive
sendo também Nossa Senhora da Conceição, sua padroeira. Certa ocasião, em aula-campo
138
com os alunos, ouvimos algumas narrativas que povoam o imaginário daquela cidade,
inclusive essa.
O fato nos leva a refletir sobre a universalidade dessas histórias que, assim como as
brincadeiras, as cantigas de roda e de ninar, alguns costumes e muitas crenças, apresentam
pontos comuns, marcando encontros entre os humanos que habitam os diversos lugares do
mundo, apesar das diferentes nuances em que se manifestam.
A leitura dos textos escritos por Everton (O dia salvo) e Ivan, (A cobra Norato)
apontam elementos que nos remetem à presença das Missões jesuítas às margens da Lagoa de
Extremóz e sua influência junto ao povo indígena dessa região. Um encontro que povoa o
imaginário popular, constituindo-se em fonte de inspiração para estas histórias. Sobre esse
aspecto, podemos consultar a bibliografia histórica do o Rio Grande do Norte, cujo registro
confirma que
Por volta de 1678 foi criada a primeira Missão de Aldeamento de Guagiru
(hoje Extremóz), com invocação á São Miguel, e onde, sob ordem iniciais
dos padres jesuítas [...] construíram-se, até 1759, um templo e um hospício
‘leia-se convento’ (ARAÚJO, 2005, p. 219).
Tal ilustração sustenta a compreensão de que, por mais que nos esforcemos em
recortar um ponto de vista, uma única perspectiva, em se tratando dos corpos e sua história,
estes manifestam-se atrelado a um polimorfismo que jamais se esgotará em nossas intenções.
Trata-se de uma complexidade que só o próprio corpo, é capaz sintetizar.
Segundo Morin (2003) a complexidade envolve elementos diferentes e inseparáveis na
constituição do todo (o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o
mitológico), implicando na existência de um tecido interativo e inter-retroativo entre o objeto
de conhecimento e seu contexto, entre as partes e o todo, o todo e as partes e as parte entre si.
Compreendendo que “complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade” (MORIN,
2003, P. 38) pode-se concluir que o presente e o passado, natureza e cultura são apenas
nuances de uma mesma história que revela-se sob forma de corpos e negar as diferentes
formas de contar suas histórias, significa excluir significativa parcela da humanidade.
É pertinente lembrar a contribuição da Professora Conceição Almeida que busca uma
articulação entre os diferentes saberes, pesquisando sobre os conhecimentos do povo,
ressaltando sua relevância para se compreender a realidade, sem a fragmentação que
caracteriza o pensamento cartesiano. Segundo a autora estes saberes
139
são uma das formas de explicação de fenômenos e fatos da vida social, a
partir da articulação de um conjunto de relações priorizadas, sistematizadas
coerentemente. Mais que isso, as formas de conhecimento não-científicos
são capazes de articular um número maior de relações na direção das
totalizações do que os níveis de especializações temáticas que a ciência
consegue aprender (ALMEIDA, 2001, P. 81).
A história não é inerte e os saberes populares inspiram novos enredos, variam de
acordo com cada contexto, sendo ressignificadas a cada realidade. A esta pluralidade deve-se,
por exemplo, a possibilidade de Boi-do-Rei ser Bumba-meu-boi, Boi-Bumbá ou Boi-Calemba
ou de seus personagens como a “Caterina”, transformar-se em “Nanã”, o “Mateus” em
“Birico”, e assim por diante.
Considerando a aprendizagem como acontecimento do qual emerge os sentidos e a
capacidade criadora dos alunos, após o contato com algumas lendas, pedi para que criassem
um texto ficcional, com base num trecho apresentado. O início do texto encontra-se (abaixo)
em negrito. A partir dessa estratégia pedagógica os alunos tiveram a oportunidade de produzir
os mais inesperados enredos, conforme os dois que destaco em seguida.
Texto- 26
Uma noite de terror
Era noite escura, a lua estava escondida por detrás de uma nuvem
negra. Eu caminhava para casa, de repente a lua iluminou tudo. Foi
que eu quase morri de susto. Quando olhei em direção ao cemitério, eu vi
uma sombra... e comecei a gritar sem parar, pois de repente apareceu um
lobisomem.
Eu desmaiei e quando acordei estava numa caverna muito estranha.
Me arrepiei todinho.
O lobisomem apareceu e eu gritei sem parar, novamente.
Então ele botou a mão na minha boca e disse que só queria ser meu amigo.
(Ailton, 2002)
Texto- 27
Era noite escura, a lua estava escondida por detrás de uma nuvem
negra. Eu caminhava para casa, de repente a lua iluminou tudo. Foi
que eu quase morri de susto. Quando olhei em direção ao cemitério, eu vi
uma linda mulher que estava ali, só. Fui até [...} ela era muito bonita e
tinha lindos olhos que davam um ar de tranqüilidade e de amor.
- Não tens medo de ficar aqui sozinha?
- Não, por quê?
140
- Por está em frente a um cemitério!
- Não acredito em fantasmas.
Sua voz era tão suave que me deu tranqüilidade.
- A noite está linda. Não acha?- Perguntou ela.[..] saiba que um
Deus que está sempre perto de ti e não deixa que nada de mal te aconteça
[...]- Disse ela enquanto entrei no ônibus e sentei-me.
Quando olhei para trás não a vi mais. Tinha desaparecido.
Será que era um anjo??
(Anderson, 2002)
Tão variadas quanto às possibilidades apresentadas pelos alunos, através dos seus
textos, são as interpretações que emergem de cada leitor, ressaltando que “há sempre mais
sentido além de tudo aquilo que podemos dizer.” (RESENDE, 1990, p. 17). Mas, certamente,
permitir o contato com as narrativas populares, como preocupação pedagógica, contribuiu
para ampliar as experiências vividas dos alunos, inspirando-os para ressignificar seus
conhecimentos, ampliando seu repertório de escrita, transformando-os em escritas do corpo.
Voltando à discussão inicial deste capítulo, acredito que o imaginário, o mito, os
conhecimentos populares, permanecem ainda vivos, inspirando novas criações, entre as
diversas áreas do conhecimento, em especial na Arte, conforme podemos ilustrar com os
inúmeros filmes produzidos, a exemplo de “Inteligência Artificial”, filme de ficção científica,
que mistura em seu enredo as facilidades proporcionadas pela tecnologia de ponta e a magia
dos contos de fada, abrindo um canal de reflexão acerca da necessidade humana, com relação
à sensibilidade do corpo e ao resgate de valores, tantas vezes negligenciados em prol de uma
sociedade marcada por uma linearidade científica que, na maioria das situações, descarta a
possibilidade de convivência com a diversidade.
Ouvir histórias, conversar com pessoas mais experientes, enfim, o agir no mundo,
consiste em situações que podem mobilizar o desejo de escrever, assim como o ato de
escrever mobiliza novas ações no mundo, pois “é no acontecimento que o sentido emerge
como fenômeno” (RESENDE, 1990; p.22).
Varela (2001) oferece uma contribuição pertinente neste sentido ao defender a
relação entre conhecimento científico e experiência de vida. O autor defende a articulação
desses elementos, considerando-se uma sociedade pluralista e apontando que, ao negar a
relevância da afetividade da própria experiência humana no estudo científico de nós mesmos
corresponde a transformar este estudo numa investigação sem objeto.
Ao produzir seus textos, os alunos ressignificam a realidade, criando novas
estratégias de produção de conhecimentos. Nesse processo, o imaginário, que se encontra
141
impregnado em seus corpos, a partir de sua ação no mundo, constitui-se em elemento
fundamental para a existência da ficção, sendo esta, por sua vez, capaz de dotar o imaginário
de certa concretude. Pois, conforme esclarece Amarilha (2006, p. 74), “o ato de ficcionalizar
não é o simples transporte de aspectos referentes à realidade para o texto, mas uma seleção
intencional que os transforma em símbolos”.
Como tão belamente afirma Farias, ao defender estes conhecimentos, que
metaforicamente denomina de “alfabetos da alma” não podemos negar que,
[...] essas histórias são importantes porque ensinam; educam; ampliam o
conhecimento; iluminam; provocam reflexões pessoais e coletivas;
despertam sentimentos adormecidos; comovem; proporcionam momentos
de ludicidade; alimentam a cognição, o espírito e a alma; transmitem
valores; recriam a memória; ativam a imaginação [...] Elas permitem, ainda,
extrapolar os limites da compreensão lógica sobre o mundo, rompendo
assim, com o nosso modelo de educação escolar”. (FARIAS, 2006, P. 30).
Enfim, enquanto espaço socialmente criado para sistematizar e dar acesso ao
patrimônio cultural da humanidade, a escola não pode deixar de reconhecer o papel do
conhecimento científico, porém limitar-se a este caminho, implica em condenar ao anonimato
outras possibilidades de se produzir conhecimentos, anulando os corpos, protagonistas de uma
história que deixou de ser escrita.
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegar ao final de uma pesquisa é abrir canais de diálogo com todas as indagações
que foram desencadeando-se durante seu processo de construção.
O exercício discutir as produções escritas dos alunos, enquanto um processo corporal
permitiu-me dialogar com inúmeros interlocutores que contribuíram para ampliar meu campo
de ação, abrindo caminhos para esclarecer algumas dessas indagações e criando outros
questionamentos que, por sua vez, podem enveredar para novas investigações.
As reflexões que apresento, certamente, não serão as únicas nem tampouco as últimas,
mas, aquelas que foram possíveis no momento, com base nas relações que emergiram entre
corpos historicamente inseridos, o referencial teórico apresentado ao longo da pesquisa e as
experiências vividas junto aos sujeitos dessa investigação.
Ao buscar alcançar o objetivo proposto no início deste trabalho, qual seja, discutir a
produção escrita dos alunos como um processo corporal, considerando-se o registro da
experiência vivida bem como as impressões por eles apresentadas e apontando caminhos que
evidenciem o corpo como condição de escrita, deparei-me com situações instigantes e
desafiadoras, expressas pelas inscrições corporais manifestadas em seus escritos.
Ao tentar adentrar nas experiências dos alunos foi possível transitar por nuances que
apontam para a transversalidade destes corpos. Seja no seu cotidiano; na sua sexualidade; no
limiar das fronteiras de um corpo que se manifesta entre a liberdade do poético e o
aprisionamento dos gestos, a escrita revelou-se como linguagem corporalizada, expressando a
relevância da troca que se estabelece entre corpo e linguagem como elemento mobilizador do
processo de aprendizagem.
A partir desta leitura, pode-se afirmar que, no trato pedagógico com relação à
aprendizagem da linguagem escrita, faz-se imprescindível sua articulação com as outras
formas de linguagens, constituindo-se como estratégia de produção de conhecimento que
possibilita a ampliação do campo de ação dos alunos, contribuindo para a concretização de
sua condição de protagonista, nesse processo.
Faz-se relevante, nesse momento, ressaltar que os alunos que compartilharam desta
caminhada, em sua maioria, conseguiram se apropriar da linguagem escrita num período
correspondente a um ou dois anos letivos, passando a freqüentar o ensino fundamental II, (na
143
modalidade EJA, Educação de Jovens e Adultos ou no ensino regular), sonho daqueles, cujos
corpos configuram-se, geralmente, como expressão do estigma de sua incapacidade.
De todos os alunos que participaram do grupo, no decorrer dos últimos cinco anos,
apenas quatro abandonaram a escola no processo letivo, sendo que um deles retornou no ano
seguinte, conseguindo alcançar um desenvolvimento satisfatório com relação à aprendizagem
da modalidade escrita. É válido registrar que junto a este aprendizado foi possível observar
mais autonomia manifestada no desenvolvimento de conceitos, procedimentos e atitudes,
refletindo-se também num significativo aumento da auto-estima e nas relações sociais. O que
pode ser evidenciado, inclusive pelo depoimento de uma professora da Escola vizinha, que, ao
receber uma turma do 5° ano de escolaridade, conseguiu verificar diferenças qualitativas entre
os alunos que haviam participado da experiência, com relação aos demais.
No que se refere às questões investigativas que nortearam esta pesquisa, acredito na
possibilidade de desenvolver um trabalho pedagógico considerando-se os registros do corpo e
suas experiências, como condição de aprendizagem. Pois, embora os resultados apontem
também as limitações, com relação à conquista desse conhecimento historicamente produzido,
foi possível evidenciar que reencontrar e reencantar o corpo através da escrita constitui-se
num exercício desafiador que pode contribuir para um encontro menos doloroso entre o corpo
e suas linguagens. Um encontro no qual as palavras se concretizam em olhares, em gestos e
em movimento humano.
Compreender os alunos enquanto corpos inseridos no/com o mundo, cujas linguagens
remetem a todas as formas de expressão capazes de representar simbolicamente sua existência
consistiu num foco fundamental para as interpretações apresentadas. Essa atitude corroborou
com a compreensão de que aprender a ler e escrever implica na ação de um corpo por inteiro,
de forma que a escrita encontra-se impregnada das outras formas de linguagem, sem perder de
vista a ação pedagógica e o espaço escolar, como elementos fundamentais no processo de
mediação concernente a uma aprendizagem corporalizada.
O encontro com os conhecimentos manifestados em forma de escrita possibilitou a
identificação de uma característica comum entre seus sujeitos. Um elemento tantas vezes
esquecido, mas que os tornam estas inscrições espetaculares. Através dos textos pudemos
identificar que a escola é feita de gente. Seres humanos iguais aos que se encontram fora dos
seus muros. Gente, com seus limites e potencialidades. Corpos, cujas vozes, cheiros, olhares,
poesias e gestos puderam ser lidos e sentidos através de letras e signos corporalizados.
Muitas leituras ainda serão feitas para tentar compreender o fenômeno corpo e escrita,
considerando-se o pouco investimento acadêmico registrado nesta perspectiva.
144
Nesse percurso, muito resta a aprender, pois compreender os segredos da linguagem
escrita implica em habilidades de leitura que vão além das palavras. É preciso mergulhar na
complexidade que permeia o ser humano, tentando decifrar os registros dos corpos,
compreendendo que nenhum texto jamais os desvelarão em sua totalidade, considerando-se o
contínuo devir que o caracteriza e cada experiência humana como única.
Neste sentido, respeitar as inscrições corporais do humano e acreditar também nas
suas potencialidades, configura-se, nesta investigação como elemento relevante que
contribuiu para a apropriação de uma escrita reveladora de corpos que não se limitam a sua
condição de objetos.
Espero poder contribuir com os elementos apontados nessa investigação para as
discussões que permeiam o contexto escolar, apontando as dificuldades inerentes, mas
também as possibilidades que considerem o corpo como sujeito de aprendizagem,
especialmente na Escola Amadeu Araújo bem com o GEPEC, cujas discussões e estudos têm
fundamentado minha prática e reflexões, desencadeando esse processo investigativo.
As perspectivas futuras encaminham-se no sentido de dialogar com um grupo de
alunos-autores dos textos apresentados nesta pesquisa, para investigar acerca das impressões,
do aprendizado e das limitações proporcionados a partir dessa e de outras experiências
vivenciadas, estabelecendo relações pertinentes ao encontro entre corpo e escrita no contexto
escolar, já que neste momento as impressões foram delineadas a partir do meu ponto de vista,
enquanto educadora inserida no contexto investigativo.
Enfim, das experiências vividas durante o processo de construção desse trabalho
guardo as marcas dos muitos encontros que foram desencadeados, ressaltando que os textos
produzidos evidenciaram uma escrita enquanto fenômeno capaz de manifestar o
corpo/linguagem, em cuja complexidade não espaço para finitude nem linearidade.
Enraizado na ação corporal, podemos afirmar que os registros do corpo revelaram-se na sua
capacidade de vivenciar experiências estéticas; de reagir bravamente a uma “segunda
natureza”; de transformar a eternidade em segundos, para apaixonar-se eternamente; de
revoltar-se contra o mundo; de encantar e encantar-se através de poucas palavras que dizem
muito; de comunicar, através de letras e reticências; de carregar as cicatrizes das grandes
perdas e fazer da escuridão, espaço para sonhar; de saborear as doces e amargas lembranças
da meninice; de ousar com humor e irreverência, derrubando paradigmas; de reagir, recriando
formas de sobrevivência ou de anular-se diante do mundo; de corporalizar a leveza da ficção
para enfrentar a dureza da vida; de revelar por palavras, o que lhe é impedido por gestos; de
145
transgredir; de chocar; de arrancar lágrima no riso e no choro; de amar e odiar; de reconstruir-
se a cada dia; de recriar o mundo e ressignificar a vida.
146
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