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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Valéria Zanetti de Almeida
Cidade e Identidade: São José dos Campos, do
peito e dos ares
Doutorado em História
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Valéria Zanetti de Almeida
Cidade e Identidade: São José dos Campos, do
peito e dos ares
Doutorado em História
Texto apresentado à Banca de
Qualificação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em
História, sob a orientação da Profa
Dra Estefânia Knotz C. Fraga
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Valéria Zanetti de Almeida
Cidade e Identidade: São José dos Campos, do
peito e dos ares
Doutorado em História
Banca Examinadora
Presidente e Orientadora: Profª Drª. Estenia Knotz Canguçu Fraga
Prof. Dr. ____________________________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________
Prof. Dr._____________________________________________________
Prof. Dr._____________________________________________________
São Paulo, de de 2008.
DEDICATÓRIA
Aos meus amigos do peito
AGRADECIMENTOS
A elaboração da pesquisa acaba marcando passagens e trajetórias. Por meio
dela contabilizamos tempo de amizades, momentos fortes de solidariedades e de
intensa cumplicidade. Realmente esse período constitui um marco na vida de quem
faz e de quem, por contingências históricas, compartilha o processo de pesquisa.
Agradeço imensamente à professora Dra Estefânia K. Fraga, interlocutora
paciente e generosa, pela disposição em oferecer estímulos e compartilhar saberes,
tão preciosos para o encaminhamento de entendimentos e reflexões.
Agradeço igualmente às Professoras Dras Simone Narciso Lessa e Márcia
D’Aléssio, competentes historiadoras, pelas importantes e precisas observações
durante o exame de qualificação.
Creio que seria difícil caminhar sozinha sem o apoio intelectual e afetivo
das minhas queridas e sábias colegas Maria Aparecida Papali e Maria José Acedo
Del Olmo. Ficarei eternamente grata pela força que recebi diariamente da Papali
que, mesmo atarefada com os afazeres acadêmicos, reservava sempre um tempinho
pra ouvir minhas descobertas, compartilhar do meu entusiasmo, das minhas
frustações e dos meus momentos de incertezas. Maria José foi mplice desde o
início. A partir de suas conversas, começamos a gestar questões e problemáticas,
sempre alinhavadas com indicações de leituras pontuais. Inspiro-me em vocês!
À Marilene Brito, Celenroze Zaroni e Carla Fróes, dedicadas secretárias,
sou grata pelos pensamentos positivos e, principalmente, pela ajuda incondicional. À
diretora da Faculdade de Educação, professora Valdelis, agradeço a amizade e
compreensão.
Não poderia deixar de agradecer aos estagiários do Pró-Memória pela
convivência diária de forte amizade: Alessandro, Solange, Tathiana, Leo e, em
especial, ao Anderson Rameira, pelo apoio técnico nos momentos em que as novas
tecnologias resolviam conspirar.
Aproveito para estender os agradecimentos aos meus queridos aluno(a)s do
curso de História da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), assim como para
os meus estagiários, competentes escribas que me municiaram com ricas coletas
documentais: Andressa Capucci, Tahiana Beltrão, Marina e Luciano.
Gabriela e Pedro, meus queridos filhos, espero que entendam, algum dia, o
sentido da minha ausência. Aos meus Pais, Maria Luiza e José Zanetti por uma
imensidão de ajuda.
Agradeço imensamente à Professora Fátima Manfredini, nossa leal
escudeira, defensora da História e das coisas da cidade pela cordialidade das fontes.
À Diva Pimentel fico grata pelo apoio espiritual, pela amizade.
Aos amigos do curso de Planejamento Urbano da UNIVAP, Professores
doutores Marco Antônio Neder, Antônio Carlos Guimarães e Professora Maria
Tereza Dejuste de Paula, fica o meu agradecimento pelas idéias e debates
compartilhados. Agradeço também ao Veriano Miúra pelo acervo de fotografia
fornecido.
Às minhas companheiras Lourdes e D. Maria, por me ampararem nas tarefas
domésticas e pelos infinitos rosários.
Sou grata à Zuleika Sabino Roque pela organização e método ao registrar
momentos importantes da qualificação.
Agradeço a todos os professores do Programa de Pós-Graduação da PUCSP
pela agradável convivência durante o curso, assim como à Betinha, pela gentileza
com que me recebia na secretaria.
À CAPES pelo financiamento da pesquisa.
Ao Daniel, pela força.
Valéria Zanetti
Valéria Zanetti de Almeida
Cidade e Identidade: São José dos Campos, do
peito e dos ares
RESUMO
Palavras-chave: identidade, cidade, História, São José dos Campos, discurso,
tuberculose
O presente trabalho procurou entender um discurso comum aos moradores de
São José dos Campos: a falta de identidade da cidade. Como o discurso é algo
construído social e historicamente, o entendimento exige obrigatoriamente uma
análise do passado da cidade. Tratou-se de buscar no tempo os dispositivos que
supostamente teriam abalado os suportes de identificação dos habitantes. Partimos
do princípio que, se o discurso enseja uma produção de enunciado, a cidade
comporta o espaço dessa produção. Propomos, portanto, ler os discursos que a
cidade produziu historicamente para sustentar identidades. Lemos seus espaços, seus
símbolos e signos, sua arquitetura, suas fotografias, suas fontes impressas, formas
utilizadas para endossar representações. Evidenciamos um texto comportando uma
linguagem redundante. Embora os joseenses tenham dificuldade em identificar
marcas ligadas a memória da cidade, o espaço criou condições para que o joseense
se certificasse da vocação industrial da cidade. A força dessa referência vai
apagando aos poucos, na paisagem urbana, os elementos de alusões passadas, mais
precisamente de um tempo em que a economia de São Jo dos Campos esteve
vinculada a um passado sanatorial. O apagamento das marcas de identificação
ligadas ao passado, enfraqueceu a memória e mutilou a identidade. O fato é que não
se constrói identidades sem memória.
Valéria Zanetti de Almeida
City and Identity: São José dos Campos, from the heart
and Skies
ABSTRACT
Key words: identity, city, History, São José dos Campos, speech, tuberculosis
The present work has tried to tackle a common speech among São José dos
Campos' s residents: the city's lack of identity. As the speech is something that is
culturally and historically built, the understanding strictly demands an analysis of
the past of the city. The mechanisms that had supposedly affected the identification
supports of the residents were researched. The first idea was that if the speech wants
a production of proposition, the city is able to hold the space of such production.
Therefore, we have proposed to read the speeches that the city produced historically
in order to sustain identities. We read about its spaces, its symbols and signs, its
architecture, its photographs, printed sources and forms used to endorse
representations. We have evidenced a text with a redundant language. Even though
São José dos Campos's residents think it is difficult to identify marks linked to the
city's memory, the space has created conditions for the residents to certify their
industrial vocation. The power of this reference slowly erases, amidst the urban
scenery, the elements of past references, more precisely of a time when São José dos
Campos's economy was linked to a sanative past. The fading of the identification
marks connected to the past has weakend the memory and mutilated the identity.
The fact is that identities are not built without memories.
SUMÁRIO
Introdução..................................................................................................................01
Capítulo I: São José dos Campos, cidade hospedeira da tuberculose
...................................................................................................................................27
Capítulo II: Médicos e doentes na cidade que salva: o mito de
Babel.......................................................................................................................110
Capítulo III: Identidade Sanatorial: Os silêncios da
memória...................................................................................................................170
Considerações Finais...............................................................................................226
Fontes e Bibliografia................................................................................................231
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Almanaque de São José dos Campos (1905).......................................p.59
Figura 02: “A fraqueza da Incredulidade” por Elisário Bonilha...........................p.55
Figura 03: Decreto-Lei que orça despesa da Estância Hidromineral....................p.67
Figura 04: Caixas de Captação d’Água..................................................................p.68
Figura 05: Igreja Matriz..........................................................................................p.71
Figura 06: Ampliação de Serviço de Águas...........................................................p.73
Figura 07: Carroça-tanque......................................................................................p.74
Figura 08: Rua XV de Novembro...........................................................................p.75
Figura 09: Fachada do Centro de Saúde.................................................................p.80
Figura 10: Brasão da cidade....................................................................................p.83
Figura 11: Sanatório Vicentina Aranha (1920).....................................................p.103
Figura 12: Obras de saneamento Básico na cidade (1930-40)..............................p.104
Figura 13: Consultório do Dr Ruy Dória..............................................................p.116
Figura 14: Propaganda de Sanatório.....................................................................p.117
Figura 15: Pensões................................................................................................p.120
Figura 16: Mapa de localização das pensões e sanatórios....................................p.121
Figura17: Sala de entrada do Sanatório V. Aranha..............................................p.122
Figura 18: Área externa do Sanatório V. Aranha.................................................p.123
Figura 19: Quarto de pacientes no Sanatório Ezra...............................................p.124
Figura 20: Sanatório Adhemar de Barros.............................................................p.125
Figura 21: Galeria de cura do V. Aranha (Ala Masculina)...................................p.129
Figura 22: Sanatório V. Aranha............................................................................p.130
Figura 23: Sala dos Médicos................................................................................p.132
Figura 24: Pavilhão Cia Paulista de Estrada de Ferro..........................................p.133
Figura 25: Placa de Identificação do Município...................................................p.136
Figura 26: Tapera..................................................................................................p.139
Figura 27: Planta da cidade com divisões de zonas..............................................p.140
Figura 28: Entrada a cidade em 1930...................................................................p.145
Figura 29: Propaganda de compostos farmacêuticos............................................p.149
Figura 30: Pharmácia São José.............................................................................p.150
Figura 31:Propaganda de restaurante que seleciona clientes................................p.154
Figura 32: Propaganda de salão de barbeiro.........................................................p.154
Figura 33: “Poeira, um perigo para a Saúde Pública”..........................................p.159
Figura 34: Mercado de São José dos Campos......................................................p.159
Figura 35: Escarradeira.........................................................................................p.166
Figura 36: Vista aérea da geometrização do espaço que segregou doentes e sãos em
São José dos Campos............................................................................................p.167
Figura 37: Casas em estilo moderno.....................................................................p.168
Figura 38:Sanatório V. Aranha.............................................................................p.183
Figura 39: Bandeira de São José dos Campos......................................................p.205
Figura 40: Réplica do avião Bandeirantes / Parque Santos Dumond..................p. 211
Figura 41: Maquete da Família Sonda..................................................................p.212
Figura 42: Maquete do 14 Bis / Parque Santos Dumond......................................p.213
Figura 43: Pórtico de entrada do Parque S. Dumond...........................................p.214
Figura 44: Arco Japonês na Praça Afonso Pena...................................................p.215
Figura 45: Jardim japonês no espaço da Câmara Municipal de São José dos
Campos.................................................................................................................p.216
Figura 46: Um dos jardins japoneses do Parque Santos Dumond........................p.216
Figura 47: Logotipo da cidade, 2004....................................................................p.217
Figura 48: Sanatório Vicentina Aranha................................................................p.219
Figura 49: Busto do tisiólogo Nélson D’Ávila ofuscado por banca de revista.....p.222
LISTA DE TABELAS
Tabela 01: Leitos hospitalares para tuberculosos no Estado de São Paulo ..........p.64
Tabela 02: Distribuição da população economicamente ativa (PEA) do município de
São José dos Campos de 1920-70...........................................................................p.87
Tabela 03: População rural e urbana e taxa de urbanização para a região do Vale do
Paraíba e cidade de São José dos campos (1934-1960)........................................p.114
Tabela 04: Variação percentual da população urbana, São José dos Campos, Vale do
Paraíba (1934-1964).............................................................................................p.187
Tabela 05: Incremento censitário / cidade de São José dos Campos, 1950-80..p.191
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 01: Faixa etária dos joseenses em 2002...................................................p.190
Gráfico 02: Tempo residência dos não joseenses na cidade.................................p.190
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho enveredou pelos caminhos da história de São José dos Campos
para entender um discurso propagado por seus moradores: o da falta de identidade
da cidade. A idéia surgiu quando, numa agradável conversa entre amigos, o rumo da
prosa foi encaminhando uma discussão um tanto familiar para os habitantes da
avançada e tecnológica São José dos Campos. Discutíamos justamente essa questão:
a identidade da cidade. Para a maioria dos debatedores, São José não tinha
identidade. Esse grupo de pessoas não conseguia identificar marcas referenciais da
cultura joseense. Aquela discussão tomou uma dimensão tão grande que os novos
amigos que se juntavam ao grupo eram inquiridos pela inquietante proposição.
Esse assunto acabou me despertando a atenção. Sempre que podia levantava
a questão e me deliciava com as respostas. Nas conversas informais ia montando um
acervo de informações. Do arsenal de questões que vinham à tona surgiu a
possibilidade de encaminhar uma pesquisa acerca do tema. Foi-se percebendo, em
conversas, que essa questão era, não só recorrente, como também se pronunciava
como um discurso gerado pelo senso comum, a ponto de se tornar tema de manchete
do jornal Valeparaibano numa edição comemorativa do aniversário da cidade, em 27
de julho de 2004. Tendo essas formulações e a demanda do assunto como princípio
é que se pensou em buscar entender o discurso que problematiza a identidade
joseense.
Teria a cidade uma identidade? O que é identidade? Que fase histórica
ajudou na caracterização identitária formulada pela composição social joseense? O
passado sanatorial teria vínculos com a caracterização da identidade local? Tratamos
de buscar, historicamente no tempo, os dispositivos que teriam supostamente
2
destruído os liames de identificação dos habitantes, desfazendo os suportes
subjetivos da memória da população local e da identidade coletiva dessa cidade.
São Jodos Campos é hoje um ambiente de fluxos e ritmos acelerados, de
transformações constantes, cuja característica principal reside no crescimento do
setor da produção industrial, de serviços especializados e de produção tecnológica. É
considerada capital do Vale do Paraíba, por abrigar grandes indústrias de base e de
ponta. Essa cidade, atualmente tão promissora, viveu, até o Império, mantendo uma
economia acanhada em torno das pequenas e médias propriedades policultoras, que
viviam, constantemente em crise (Papali, 1996). São Jo dos Campos não
comportou os afamados barões de café do Vale do Paraíba. Constantes momentos de
crise foram denunciados pelas atas da mara de início do culo XX, que
evidenciavam sérios problemas com dívidas, falta de estradas, saneamento básico e
proliferação de doenças.
Nesse período, fortes mudanças ocorriam em algumas cidades brasileiras.
Elas passavam a se modernizar esteticamente realizando grandes reformas urbanas.
Longe de oferecer um quadro homogêneo, o processo de modernização das diversas
regiões brasileiras compõe-se de histórias semelhantes, mas com profundas
particularidades. A euforia modernizante do início do século XX fazia as cidades,
inclusive as mais prósperas, se preocuparem com ataques periódicos das epidemias
que dominavam toda a Europa. Em razão disso, a insalubridade se constituiu no
principal problema urbano a ser enfrentado pelo Poder Público na Europa no
transcorrer do século XIX, período em que a situação de fato se agravou.
Nesse momento, a política sanitária tornou-se o mais eficaz elemento
ideológico capaz de motivar e justificar as reformas modernizadoras que
transformariam a paisagem urbana de várias cidades em todo o mundo. Descobriu-se
que as causas das precárias condições sanitárias estavam inseparavelmente ligadas
3
ao espaço construído. Por conta disso foram criadas leis sanitárias no sentido de
tratar a questão da higienização da cidade abarcando também outras necessidades da
época como o embelezamento e a racionalização do espaço urbano (Pechman &
Fritsch, 1985).
A descoberta de que a insalubridade estava por detrás da crise que se
desenhava nas cidades em franco processo de crescimento levou à fundação da
urbanística moderna. O poder público, juntamente com o Estado, tentava livrar as
grandes cidades do fantasma das doenças apoiando-se nos ideais modernizadores de
higienização, embelezamento e racionalização, empresa que transcendia a
competência do médico sanitarista. Tratava-se, em verdade, de planejar as cidades,
de escorá-las em novos fundamentos, de submetê-las a novas formas de
organização.
Inscrita em realidade histórica diversa, a modernização urbana de São José
dos Campos, ao contrário das demais cidades que tentavam afastar as doenças do
século, com o fim de tornar os espaços salubres, estava intimamente ligada ao bacilo
de Koch. Prometia-se a cura dos doentes, atraídos pela forte propaganda sanatorial.
Este espaço onde o doente devia ser ‘tratado’ precisava, a partir desse momento,
também ser um local higienizado. Um local que, principalmente no caso da
tuberculose
1
, se apoiaria nos preceitos da higiene e da climaterapia.
Seguindo a tendência de medicalização e conseqüente modernização dos
espaços, que vinha crescendo desde o séc. XVIII, na primeira metade do séc. XX
1
A tuberculose é uma doença infecto contagiosa causada pelo bacilo de Koch - nome este
em homenagem ao descobridor do seu agente causal - que ataca tanto o homem como os
animais. Sua forma de transmissão é através de gotas de saliva. Os bacilos inoculados são
conduzidos pelos vasos linfáticos até os gânglios linfáticos. A afecção pode ser apenas
aparente lesionando o gânglio pulmonar ou pode atingir vários órgãos, entre os quais o
pulmão é o mais freqüente. Seus aspectos anatômicos são variados: dores toráxicas, tosse,
febre, emagrecimento, suores,etc. (Larrousse Cultural, V.23, p.5782, item: tuberculose).
4
teve início a fase Sanatorial em São José. Este período marcou tanto a organização
espacial quanto a estrutura social do município com a introdução de novas
profilaxias e meios de tratamento dos doentes tuberculosos.
A salubridade do clima e a exposição do doente a uma região de ar puro,
tendo a higiene - do local e do paciente - como a principal aliada, passou a ser vista
como a forma de se conseguir os melhores resultados no tratamento da tuberculose.
O novo conceito profilático fez surgir a instituição sanatorial, pensada como o
recurso mais moderno para tratar do bacilo de Koch. Na esteira desta empreitada, o
espaço joseense foi se modernizando.
No início do século XX a cidade se caracterizou por um grande fluxo
migratório de tuberculosos vindos de cidades como São Paulo, Santos e Rio de
Janeiro, esta última, capital federal na época. Os tísicos se dirigiam para São José
dos Campos devido, principalmente, à crença do poder afamado do clima da cidade
que curava. Amparada na doença, a cidade passou a ser conhecida como Cidade
Esperança”. Esta crença era principalmente fundamentada em uma idéia muito
difundida pela medicina do culo XIX que acreditava nos efeitos terapêuticos do
clima sobre algumas doenças.
Como compreender a vocação sanatorial de São José dos Campos? Como
entender o título conferido à cidade de Estância Climática, que alojava, na
contramão da história, os tuberculosos que as outras cidades não queriam por perto?
Como entender as relações de convívio social numa sociedade composta
maciçamente por tuberculosos?
Ao mesmo tempo em que São José se tornava sede sanatorial recebendo, em
1935 o título de Estância Climatérica e pólo secundário de cura da tuberculose,
surgiam grandes impasses para o poder local administrar: como adotar medidas
5
sanatoriais e higienistas, tão propagadas no momento, sem, contudo, eliminar
definitivamente a engrenagem que viria abastecer essa grande indústria tipicamente
joseense, o doente tísico, sabendo-se, inclusive, que a cura da doença abalaria as
bases do projeto econômico idealizado? Como estimular demandas de trabalho em
território altamente contagioso? Como estabelecer vivência com pessoas vetores de
contaminação? Como manter uma imagem da cidade desvinculada da doença, após
o boom sanatorial? Como eliminar da memória a identidade que estigmatizou os
espaços da cidade e a vida dos seus moradores?
Para entender a todas essas questões temos que vasculhar a história do
município. Sabe-se que o projeto sanatorial joseense foi elaborado forjando
condições do clima e potencialidades naturais da cidade. Essa história se inscreve
num cenário que sustenta os limites da aproximação e da distância. Num primeiro
momento, quando a perspectiva sanatorial se configurava nos parcos horizontes da
cidade, estabelece-se uma associação. De um lado, o poder local, alicerçado no
projeto sanatorial - que viria resolver em parte o problema da crise financeira do
município -, daria força aos representantes da municipalidade no momento,
sobretudo aos comerciantes. Os médicos sanitaristas, por meio da composição de um
grande laboratório humano, aliados à causa pública, teriam, em São José dos
Campos, um inesgotável campo de trabalho. De outro, os doentes se configuravam
como os agentes dinamizadores da proposta e antídotos da crise joseense. Nessa
composição, os moradores da cidade se apresentaram ora a favor da proposta, ora
contra ela.
A fase industrial, que se engendra em pleno contexto de fim da fase
sanatorial, se fortaleceu, a partir de 1950, com a inauguração da rodovia Presidente
Dutra que interligou os dinâmicos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. A embraer,
o CTA e o INPE vieram confirmar a vocação esboçada em 1950. Os novos planos
urbanísticos da cidade passaram a ter como princípio o acolhimento não mais de
6
doentes, mas de indústrias e empresários a fim de investir no município. Atendendo
às demandas desse novo empreendimento, a paisagem joseense se remodelou para
adequar a cidade às novas iniciativas. A partir de 1960, o conceito da cidade que
vivia da doença passou a mudar. Esquecer o passado sanatorial e apagá-lo no
desenho da cidade passou a fazer parte da política municipal.
Tomando como base o processo histórico de São José dos Campos, entende-
se que o conceito que os habitantes têm da falta de identidade da cidade
possivelmente esteja fundamentado no período de passagem da cidade sanatorial
para a cidade industrial. Nosso recorte temporal situa-se, portanto, na transição da
fase sanatorial para a fase industrial, correspondendo o período que vai de 1900 a
1960. Essa delimitação, a priori, não nos impede de transitar além da demarcação
temporal, que foi o presente que nos forneceu subsídios para entender as marcas
que o passado deixou no conceito que os moradores têm da cidade.
Com relação à condução da questão, é bom deixar claro que, como
forasteira que sou tento refletir, socialmente posicionada, sobre o discurso da falta
de identidade da cidade. Logicamente, como estou inserida na dinâmica histórica,
essa percepção se a partir de problemas colocados pela minha própria vivência,
carregada, inerentemente, de subjetividade. Mas, nem por isso, esse entendimento
deixa de ter validade. Simplesmente diz respeito a uma forma de encarar o problema
e buscar entendê-lo.
Quando cheguei a São José dos Campos, em 1996, compartilhava da mesma
idéia quase unânime dos imigrantes recém chegados à cidade. Senti algo diferente
no ar; sensação que acreditava ser comum a todos migrantes recém-chegados. Tudo
na cidade me parecia impessoal, sem história, quase que montado. Como
historiadora, me incomodava não enxergar rastros do seu passado em seu desenho
urbano. Tentava justificar aquele incômodo como algo particular. Talvez fosse
7
problema de adaptação, tentava explicar! Aquela minha impressão foi sendo
endossada pelos amigos, quando a conversa enveredava pelo tema da identidade da
cidade. Percebi que a questão causava efusivas discussões.
Fui percebendo que as tentativas de explicação eram sustentadas por
múltiplas idéias de identidade. Essa constatação levou em consideração o axioma
que concebe a sociedade inseparável do indivíduo. Cremos que seria uma tarefa
quase sobre-humana tratar da questão sem essa cumplicidade com o tempo e
sociedade a que o sujeito compartilha.
A própria subjetividade é esclarecida na medida em que desempenha um
certo papel na estrutura social. O sentido, reforça Manuel Castells, “só tem sentido
fora de si mesmo. Mas, este ‘fora’ pode ser a produção de um efeito socialmente
identificável e, portanto, inserido num quadro pré-definido” (Castells, 1983: página).
Foi em função desse entendimento que pude inferir sobre a minha percepção. Ela era
o produto de um processo de desconstrução da identidade de um indivíduo da pós-
modernidade (Hall, 2003, Harvey 1992), da alta-modernidade como sugerem outros
autores (Giddens, 2001) ou da modernidade líquida (Bauman, 2003), amplamente
traduzido, carregando conceitos fixos e imutáveis de uma sociedade que tende
rotular e enquadrar comportamentos.
Todos os autores citados no parágrafo anterior, apesar das formas
particulares de entendimento, trataram as mudanças ocorridas a partir da segunda
metade do século XX, tendo como princípio o fenômeno da “globalização”. O
sujeito centrado e unificado da modernidade está sendo descontinuado e
desencaixado, rompido e fragmentado e encontra-se cada vez mais fluido. O
processo de globalização, que atua em escala mundial, transpõe fronteiras regionais,
integrando e conectando comunidades em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo cada vez mais interconectado (hall, 1997). A condição pós-
8
moderna coloca em questão uma pluralidade de estilos, de crenças, de
pertencimentos e de caracterização cultural, colocando em permanente
questionamentos as forças da tradição (Giddens, 2002).
Entendi esse fenômeno quando transpus as minhas fronteiras culturais que
me asseguravam, no espaço da minha cidade de origem, aos elementos referenciais
da minha identidade. Essa clareza, obviamente, só foi permitida, à luz do meu
contato com a pluralidade. Viver em São José dos Campos me possibilitou transpor
limites e ampliar conhecimentos e dimensões de uma perspectiva particular. Pelas
leituras de Hall, ficou nítida a historicização do conceito de identidade. Giddens
mostrou-nos o comportamento reflexivo do sujeito da modernidade. Bauman nos fez
entender a inconstância das identidades modernas e Taylor mostrou-nos como as
identidades se constróem cotidianamente.
De fato, à medida que fui conhecendo a história da cidade, suas ruas, seus
moradores, surgia a suspeita de que ali havia algo de inconfundível, de raro, talvez
até de magnífico; senti o desejo de revistá-la. Percebi que ela possuía um carregado
invólucro de símbolos, que só o conhecimento sobre ela permitiria saber o que
contém e o que esconde. Como sugeriu Ítalo Calvino, "de uma cidade, não
aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que às
nossas perguntas" (
Calvino,1990: 44).
Quando formalizei o estudo e o apresentei como tese ao programa de Pós
Graduação em História da PUCSP, preocupava-me em não conseguir literatura
suficiente para fundamentar minha proposta teórico-metodológica. O ingresso ao
curso de doutorado me fez entrar em contato com leituras que propunham discutir
problemáticas levantadas no desenrolar da investigação. Temia me aventurar em
novos territórios disciplinares e teóricos e ser traída pelo próprio cerne do sistema de
pensamento. Resolvi arriscar! Tal foi minha surpresa ao perceber que tudo aquilo
9
que elaborava, na minha visão, de forma arriscada, era justamente objeto de análise
de vários estudiosos. Constatei a existência de uma epistemologia estética
sistematizando o olhar sobre o urbano.
Num intercâmbio de idéias e linguagens fui me inteirando das discussões.
Entendi que meu estudo estava ligado a uma hermenêutica urbana. Pretendia ver a
cidade tangível e intangível, interpretar os modos de pensar, de sentir e de agir;
entender as paisagens reais e virtuais do espaço urbano. Procuramos, neste olhar,
entender o discurso de falta de identidade da cidade de São José dos Campos. No
nosso entendimento, encontraríamos, na história da cidade o significado desse eco
no passado joseense.
Tentamos entender como se processou a elaboração de dois enunciados, em
específico. O primeiro refere-se àquele que preparava São Jodos Campos para se
tornar uma grande referência no tratamento da tuberculose, a partir das últimas
décadas do século XIX e primeiras do XX (até 1940), período que corresponde ao
auge da fase sanatorial. A outra dimensão do discurso, que vai de 1950 aos dias
atuais, explica a cidade a partir da evidência do presente.
O primeiro enunciado inscreve-se num momento em que o Estado se
amparava num discurso de proteção do espaço, eliminando doenças. A saúde
interveio de forma concreta nas cidades que se forjavam e cresciam através do
discurso e das práticas urbanísticas. A política sanitarista, que passou a dominar
grande parte do debate urbanístico internacional no final do século XIX, se inseriu
num momento de surgimento da grande cidade, marcada em seus primórdios por
precárias condições de saneamento e assolada sistematicamente por epidemias.
Nossa discussão baseou-se no entendimento do processo de produção de um
discurso buscando a questão da representação simbólica e da forma como ele se
10
materializou na construção dos espaços sociais especificamente percebidos na
cidade. Como se trata de investigar um enunciado, buscamos entender como
funciona a estrutura de um discurso e como ele se perpetua na sociedade, baseando-
nos em estudiosos da questão. É importante esclarecer que não pretendemos
conduzir o tema a partir do referencial teórico metodológico da Análise de Discurso
(AD). No entanto, em alguns momentos nos apropriaremos da estrutura do discurso
apenas como forma de entender o funcionamento da linguagem em que o discurso se
estruturou.
A nossa preocupação consiste, sobretudo, em entender a produção de um
discurso, em particular, o que problematiza a identidade da cidade de São José dos
Campos. Para refletirmos acerca da produção desse discurso, foram importantes as
teorias de estudiosos como Pêcheux, Foucault, Bollème, Orlandi e outros. Apesar da
heterogeneidade de análise desses autores, uma noção lhes congrega: o discurso
regrado pelas questões de espaço e tempo. Os autores entendem que os efeitos
materiais da língua estão circunscritos na história. Por conta disso, estabelecemos
algumas articulações entre eles respeitando, ao mesmo tempo as particularidades de
cada um.
Foucault, por exemplo, não tem como propósito discutir a materialidade
lingüística. O discurso, para o autor, não é visto como conjunto de signos que
remetem a conteúdos ou representações, mas como práticas que cria essas coisas. O
discurso é um conjunto de enunciados que designam e produzem as coisas. O
conceito foucaultiano de discurso, como observou Gregolin, “pressupõe,
necessariamente, a idéia de prática discursiva” (Gregolin, 2004:94). Práticas
discursivas, segundo Foucault, são “regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que determinam numa dada época e para uma
determinada época, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função
enunciativa” (Foucault, 1986:133). Foucault considera o lingüístico como uma
11
articulação entre o poder e o saber, inserindo o discurso no interior de uma “ordem”
(Sargentini, 2006).
Para Pêcheux, fundador da Análise de Discurso, as condições de produção
distinguem o texto do discurso. O discurso, sendo expressão da relação
língua/ideologia, explicita as relações entre sujeito, linguagem e história (Gregolin,
2005). A linguagem, segundo o autor, está materializada na ideologia e esta se
manifesta na linguagem. Pêcheux concebe o discurso enquanto efeito de sentidos,
em que o enunciado oferece lugar à interpretação (Lima, 2004).
Em Foucault, o enunciado também não é equivalente à frase, à proposição
ou ao ato de fala. O enunciado é uma função de existência que pertence aos signos,
mas não, necessariamente, aos signos lingüísticos. o enunciado em Pêcheux é
qualquer unidade descritível passível de interpretação. Bollème acrescenta que
discurso é um argumento político particular, de grupos, categorias ou classes sociais,
modelado retoricamente sobre o povo e para o povo, adquirindo, conforme seu
poder de convencimento, um caráter popular (Bollème, 1988:30).
Para Orlandi, o discurso é o momento, instância de produção e explicitação
da linguagem, a qual é social. O discurso é efeito de sentidos possíveis que se
constrói(em) na vida de relação (no embate, na troca, na apropriação entre
interlocutores). Concordando com Pêcheux, Orlandi reforça que o discurso é
produção de sentido em sua materialidade, confrontando o lingüístico, o histórico e
o ideológico (Orlandi, 1983). Resumindo, podemos dizer que, para Orlandi e
Pêcheux, o caráter ideológico do discurso é fundamental. Para Foucault, poderíamos
dizer que o ideológico é transcendental (Lima, 2004).
Embora não nos apoiemos no instrumental teórico da Análise de Discurso, o
entendimento dessa dimensão nos permitiu apreender as diferentes formas de dizer,
12
de fazer sentido ou de enunciar. Tentamos entender a produção de discursos nas
relações de troca, na apropriação ou no embate entre os interlocutores da cidade de
São José dos Campos. Como o discurso não é apenas expresso na sua forma
lingüística, investigamos outras maneiras de evidenciar a materialidade desses
discursos. Entrelaçando as diferentes formas de enunciação, a paisagem da cidade
passou a fazer sentido, assim como as falas oficiais ficaram mais inteligíveis. As
fotografias
2
revelaram dizeres e até mesmo o silêncio se pronunciou. Procuramos,
enfim, evidências de tempos passados e vividos inscritos nos vários espaços que a
cidade comporta: sociais, lingüísticos e políticos.
O discurso que propomos analisar está inscrito num tempo (início do século
XX) e num espaço (o da cidade de São José dos Campos) definidos, uma vez que o
discurso, para poder existir, deve estar ligado a uma função enunciativa e esta
função tem, intrinsecamente, relação com o tempo da fala. Isso quer dizer que deve
ser produzido em um lugar institucional, determinado por regras históricas que
definem e possibilitem que ele seja enunciado. Entende-se como discurso as
diferentes formas de enunciação que vão além do texto escrito ou da fala. O discurso
que vamos perseguir abarca o conceito de enunciado na acepção de um conjunto de
signos em função enunciativa e será desta forma que iremos desenvolver a análise
(Gregolin apud. Sargentini e Barbosa, 2004: 26).
Objetivamos estudar a fase sanatorial buscando as relações da cidade com
seus habitantes (médicos, doentes, população da cidade). Essa relação nos permitiu
entender o campo de conflito identitário que se estabeleceu no alvorecer da cidade
industrial. Perscrutamos a produção de discurso em torno da doença utilizado por
diversos interlocutores: pelo Estado, pela cidade de São José dos Campos, pelos
médicos, pelos doentes e pelos moradores da cidade.
2
As fotografias foram utilizadas no capítulo IV apenas como recurso complementar à
análise e não como fonte iconográfica.
13
Como investigamos esse universo instrumentalizado pela questão da
identidade, tentamos nos familiarizar com a historiografia que trata do tema. Foi
importante entender, por exemplo, o que é identidade? Existe identidade fixa? Quem
formula as identidades? Quem diz o que sou e o que não sou? Essas são algumas das
questões prementes da atualidade. Vários termos surgiram com significados
particulares para conceituar identidade. Pela sua própria natureza intangível e
ambivalente, a identidade está sendo amplamente discutida. O conceito iluminista de
identidade, que reforça a estabilidade e segurança identitária do indivíduo, é
atualmente reformulado.
Zygmunt Bauman (2005) fala em Modernidade Líquida, projetando-nos
num mundo em que tudo é ilusório, onde a angústia, a dor e a insegurança causadas
pela “vida em sociedade” exigem uma análise paciente e contínua da realidade e do
modo como os indivíduos são nela inseridos. Por conta da inconstância do viver em
condição moderna, temos a sensação de desorientação.
Charles Taylor (1997: prefácio) entende por identidade moderna o conjunto
de compreensões (sobremodo articuladas) do que é um ser humano. Consideram-se
os sentidos de interioridade, liberdade, individualidade, tão familiares ao Ocidente
moderno. A identidade, que tem a ver com a individualidade, com questões acerca
do que torna a nossa vida significativa ou satisfatória, leva-nos às questões morais,
padrões rígidos de enquadramentos exigidos pelas sociedades humanas. Isso quer
dizer que a identidade e a moralidade são coisas relacionadas e que “é praticamente
impossível à pessoa humana prescindir das configurações” (Taylor, 1997: 43). É
nesse sentido que Taylor define o ser humano como sendo um self que se move num
certo espaço de indagações, em busca de uma orientação. O self é em parte
constituído por suas auto-interpretações que, por sua vez, não são totalmente
explícitas.
14
Se a nossa identidade tem vínculo com a configuração, uma parte da
resposta à nossa interrogação de quem sou eu” tem orientação histórica. A
identidade assumiu orientação complexa e multifacetada. Cada um responde à
pergunta “quem sou eu” a partir da posição em que se encontra o interlocutor,
emaranhado em orientações sociais e morais. A identidade nos orientação, nos dá
sentido às coisas, e nos permite definir o que é e o que o é importante para nós. É
dessa forma que entendemos a identidade como um discurso da sociedade que se
define a partir da demanda da re-construção. Em função dessa demanda de constante
re-construção, a cidade de São José se fez sanatorial e, da mesma forma, se tornou
industrial. O sentido dessas identidades ou dessas narrativas da sociedade joseense
só pode ser conferido pela história dessa cidade.
Como a memória social tem direta implicação com a formulação das
identidades, a questão da memória passou a ter importância para as nossas
formulações. Memória e identidade são dois dos termos mais freqüentes no discurso
público contemporâneo. A noção de identidade não faz sentido sem a idéia de
memória e ambas associam-se à inserção dos indivíduos na sociedade, bem como as
suas reivindicações específicos e particulares. Identidade e memória são termos que
compreendemos associados ao tempo e ao espaço das sociedades propiciando bases
históricas e territoriais específicas.
Para a compreensão de memória, utilizamos algumas das contribuições
deixadas por Halbwachs em sua análise sobre memórias coletivas. Halbwachs
afirmou o caráter social da memória quando argumentou que, quaisquer que sejam
as lembranças do passado que possamos ter, elas só podem existir a partir dos
quadros sociais da memória (Halbwachs, 1990). Segundo o autor, indivíduos não se
lembram por eles mesmos. Para lembrarem, eles necessitam da lembrança de outros
indivíduos, para confirmarem ou negarem suas lembranças, que por sua vez estão
localizadas em algum lugar específico no tempo e no espaço.
15
Como seu conceito de representação coletiva tem inspiração em Durkheim,
ele pensa a memória a partir de um somatório de representações sociais e não de
representações individuais. O trabalho de Halbwachs nos permite compreender que
os lugares da memória podem estar fixos em pedras, monumentos e construções
arquitetônicas, mas também presentes em rituais e comemorações. A memória é
adquirida à medida que o indivíduo toma como sua as lembranças do grupo com o
qual se relaciona: um processo de apropriação de representações coletivas por
parte do indivíduo em interação com outros indivíduos (Halbwachs, 1990). Assim
como Nietzsche, Halbwachs concebe a memória a partir do processo de lembranças
e esquecimentos. Para os dois, o passado é sempre reconstruído de acordo com
tensões, normas e situações do presente.
Os dois autores acreditavam que a construção e manutenção da identidade
baseiam-se na memória e no esquecimento. O esquecimento, na teoria de Halbwachs
e Nietzsche, é visto de forma positiva como prática da construção das identidades
pela memória. Não se constrói identidades sem memória. A memória pode ratificar
ou retificar uma identidade. Sem memória de si, a identidade não tem fundamentos
para se comportar no grupo. Sem memória de si, não é possível identificar nem tão
pouco diferenciar. Isso significa que a memória não é um atributo ou capacidade
isolada de um indivíduo, mas uma construção social (Nietzsche, 2005).
Como vamos discutir identidades, da cidade e da contemporaneidade,
Antony Giddens nos deu suporte teórico para entender a complexidade da vida pós-
moderna. De acordo com Giddens, "cada um de nós não apenas 'tem', mas vive uma
biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e
psicológicas sobre possíveis modos de vida" (Giddens, 2002:26). Foram também de
igual valor as leituras de Stuart Hall e Zigymunt Bauman, que nos forneceram
fundamentos teóricos para argumentar em torno das mudanças pelas quais o sujeito
e a identidade o conceptualizados no pensamento moderno. A leitura de Hall se
16
mostrou imprescindível para se compreender que a crise da identidade moderna, tão
falada e professada, inclusive por grande parte da população joseense, não passa do
resultado da substituição das velhas identidades por novas identidades.
Foi inclusive através de sua leitura que comecei a reformular as idéias e
construir novos saberes sobre as marcas de identificação. Minha primeira impressão
sobre a cidade de São José era, para mim, justificável! Até então, tinha em mente o
conceito de identidades antigas, estagnadas. Como observou Hall, as antigas
identidades deram espaço a novas identidades, fragmentando o indivíduo moderno.
Ou seja, "as idéias modernas estão sendo desconcentradas, isto é, deslocadas ou
fragmentadas" (Hall, 1985: 7-8).
No momento em que percebia a dialética do local, constatava a evidência da
autodescoberta. Senti o quanto era importante rever meus conceitos sobre
identidade. Giddens me esclareceu que a relação entre a modernidade e a dúvida
radical é uma questão que, uma vez exposta, não é inquietante apenas para os
filósofos, mas é existencialmente perturbadora para os indivíduos comuns.
3
Como historiadora, senti necessidade de investigar o passado dessa cidade e
as razões históricas da suposta falta de formas identitárias explicadas através da
dinâmica pela qual São José se organizou, certa de que "a cidade não conta o seu
passado, ela o contém" (Calvino, 1999:14-15). Propus-me a interpretar a cidade indo
além dos simples lugares comuns e das generalidades. Iniciei a investigação a partir
de suas origens, valendo-me da sua história e de seus habitantes. Ver a cidade, viver
na cidade e viver a cidade se tornava, essencialmente, um problema de relações. A
cidade se constitui um paradigma cultural. Não se trata apenas de lugares habitados
3
A crise nos anos 70 foi acompanhada por grande movimentação intelectual no terreno das
ciências sociais, quando novos paradigmas apareceram como sintomas e resultantes das
transformações na economia mundial. O mundo pós-moderno é palco de alguns dilemas,
originados do próprio processo de globalização.
17
e edificados, com formas, ocupação, técnicas, monumentos que representam a sua
memória histórica. A cidade é um complexo cultural que revela os seus habitantes,
os seus problemas, a sua mentalidade e suas expectativas coletivas.
Concluímos que São José dos Campos se constituiu como uma cidade de
forasteiros. Essa é a sua identificação. O projeto hegemônico se baseou justamente
na atração dos forasteiros. A primeira intenção foi a de atrair os doentes da
tuberculose; entretanto, a maioria desses cidadãos em potencial foi eliminada pela
pequena porcentagem de cura. Outros tantos, curados, retornaram para suas cidades
de origem. Uma pequena parcela, estabilizada, manteve-se fiel à cidade que a
acolheu. A segunda tentativa foi com a gestão do projeto industrial que, entretanto,
pelas leis do mercado, dinamizava uma renovação de pessoal, reforçando o caráter
transitório e flutuante dos habitantes, impedindo, mais uma vez, a sólida fixação da
população local.
Nosso assunto tem como pano de fundo a doença. A “doença”, à luz das
Ciências Sociais, tornou-se um importante campo de pesquisa, enfocada a partir de
múltiplas abordagens analíticas. A tuberculose, em particular, transformou-se num
importante objeto de investigação para se entender, por exemplo, não a história
da saúde e da doença, como também as intervenções do Estado no espaço a partir
das medidas de controle epidemiológico e as representações do doente e da doença
no imaginário social. No nosso caso, analisaremos a doença a partir de suas
implicações nas relações sociais já que foi através dela que as identidades foram
marcadas.
Propor uma discussão sobre a questão da representação social e da forma
como se materializou na construção dos espaços sociais especificamente construídos
na cidade são objetivos a serem perseguidos. A discussão em torno da representação
social diz respeito à prática que produz cultura, que gera significado. De acordo com
18
Hall, o significado não se encontra nas coisas propriamente ditas, mas nas práticas e
processos simbólicos através do qual a representação, o significado e a linguagem
operam.
Também nos apoiamos na noção de representação de Marcel Roncayolo,
que deixa claro os limites dessa desta proposta. Para o autor, não se trata de um puro
reflexo do substrato econômico e social. A representação é ativa e não apenas "diz"
a cidade, como "faz" a cidade. Trata-se de uma complexa elaboração simbólica,
onde urbanismo e arquitetura podem ser pensados como parte de uma História da
Cultura, entre o material e o simbólico.
A busca dos diferentes espaços e papéis dos sujeitos historicamente
construídos conduziu a investigação, propondo-se uma discussão sobre a invenção
da sociedade joseense. À primeira vista, essa proposta pode causar uma inquietação
ao leitor. Robert Moses Pechman prontamente esclarece o que seria inventar a
cidade”:
dizer do amontoado de casas, templos, monumentos, fortalezas, que são uma
cidade, dar-lhe um sentido, traçar-lhe um destino. Trata-se de dar a essas formas
físicas um enquadramento numa teia discursiva, de maneira tal, que a dureza da
pedra não se reconheça mais na alma mineral, mas somente na fluidez do discurso.
Injetar alma significados na cidade é transformá-la em objeto, é possibilitar
o processo de invenção social, é abrir um sulco para o trabalho do historiador
(Pechman, 1997: 101-107).
O autor pistas de como pode o historiador se relacionar com essa
invenção para construir a cidade em objeto de sua reflexão. A concretude da cidade
é resposta das ações políticas e sociais, dos discursos que sobre ela vão se
constituindo. A cidade, portanto, suporte à legitimidade dessas práticas. Quando
buscamos entender a cidade o nos referimos apenas ao lugar físico, mas ao lugar
do entrecruzamento dos discursos.
Estudar a(s) cidade(s) implica estabelecer conexões de tipo variado com a
própria experiência de viver em cidades. Conexões objetivas de moradia e trabalho
19
nos ligam às dimensões subjetivas. Laços afetivos tecem espaços, nos quais as
lembranças compõem um acervo especial. O interesse pelo estudo da(s) cidade(s)
procede com certeza de questões colocadas no presente.
Tentamos compreender as ações políticas adotadas como estratégia pelos
grupos dominantes locais para se estruturarem economicamente e se manterem no
poder, no início da primeira República. Busca-se entender os argumentos que
justificavam a vocação sanatorial da cidade e entender, de que forma, a política
sanitarista, que tendia conter o contágio da tuberculose no Brasil, convivia, ao
mesmo tempo, com a política de manutenção da sua "indústria de doentes".
Baseamos nossa pesquisa em diferentes tipos de fontes. Cada grupo de fonte
pesquisado foi cuidadosamente tratado, atentando-se para as particularidades dos
discursos e enunciados que traziam. As Atas da Câmara Municipal de 1909 a 1922
nos deram informações sobre projetos esboçados e planos urbanísticos pensados
como forma de viabilizar as demandas econômicas e condições de produção da
cidade.
A coleção de periódicos existentes na cidade enriqueceu a discussão. O
Correio Joseense é o jornal mais antigo e mais completo até então existente na
cidade. Seus exemplares correspondem ao período de 1920 a 1964, com uma lacuna
no período de 1928, quando o diretor do jornal mudou-se temporariamente para a
cidade de São Paulo. O jornal trouxe informações do cotidiano da cidade e dos seus
moradores denunciando ações, comportamentos, criando valores. Entre 1905 a 1916
circulava, em São José dos Campos, o periódico A Caridade. De tendência
filantrópica, o jornal, de edição limitada, convidava e persuadia os joseenses a
abraçarem a causa da filantropia e da caridade cristã visando reunir forças para a
captação de recursos para a criação de um hospital na cidade e para atrair
empresários vinculados ao ramo da indústria.
20
Os Planos Preliminares e Diretores de Desenvolvimento Integrado de São
José dos Campos são leituras obrigatórias por tratarem dos discursos e das efetivas
ações da política pública tentando concretizar idéias, fomentando e mobilizando
possibilidades. Os Anuários estatísticos do Brasil, contendo Censos demográficos de
diferentes regiões brasileiras, em diferentes épocas são importantes documentos para
análise da situação sócio-econômica joseense e da sua condição no cenário nacional.
A voz da cidade foi emitida pelos seis almanaques de São José dos Campos
(1905, 1922, 1935, 1945, 1951 e 1954). Por meio deles pudemos observar uma
cidade sendo formada, vimos projetos sendo pensados, assim como percebemos as
condutas valorizadas de seus moradores. Os almanaques nos forneceram uma
semiologia do tempo e guias necessários para entendermos a vida cotidiana dos
moradores de São José dos Campos.
Valemo-nos também do material produzido pela Secretaria da Agricultura,
Indústria e comércio do Estado de São Paulo, em 1940, sobre os “Aspectos do Vale
do Paraíba e do seu reerguimento no governo Adhemar de Barros”, organizado por
Caio Dias Baptista, chefe do serviço de melhoramentos do Vale do Paraíba. Essa
fonte traz dados importantíssimos sobre os aspectos demográficos e econômicos,
assim como sicos da bacia do Vale do Paraíba. Registra também as possibilidades
agrícolas da região e a ação do governo Adhemar de Barros em face dos problemas
locais. Contém um estudo sobre o rio Paraíba, da sua condição de navegação e do
seu aproveitamento hidroelétrico.
O material produzido pelos memorialistas contribuiu sobremaneira para o
descortinar de um período que, a primeira vista, parece nebuloso, mas que, aos olhos
do leitor atento, embora envolvido passionalmente com o registro de suas vivências,
abre frestas de uma história possível. Esses contemporâneos contaram histórias,
relataram estórias, deixaram indícios de um discurso indireto, percebido pelo olhar
emocionalmente envolvido, embora cuidadoso do observador. Viajantes, joseenses
21
de corpo e alma, carregando valores, hábitos e costumes de uma época, são
representantes do seu momento, sujeitos do seu tempo. Suas impressões, apesar de
totalmente parciais, são retratos imortalizados de seu tempo, envolvidos com sua
origem, sua forma de encarar a realidade vivida, portanto, grandes coadjuvantes de
uma cena passada.
Além dessas fontes, contamos com uma relevante bibliografia editada sobre
a história da cidade, contemplando as diferentes áreas inter-relacionadas ao projeto,
tais como as produções dos médicos. As fontes de época ligadas à questão das
condições sanitárias, da higienização e da tuberculose na cidade foram fundamentais
pra se entender a situação de São José dos Campos nas primeiras décadas do século
XX. O Boletim Médico, editado entre 1933-35 e a tese de 1930 do estudante de
medicina, João Ferraz do Amaral, que tratou da Inspecção Sanitária de São José dos
Campos em 1930. Este trabalho foi apresentado como exigência da cadeira de
Hygiene da referida universidade, e traz sistematizadas informações sobre as
condições sanitárias da cidade.
Buscamos analisar a cidade a partir de seus significados históricos e
políticos, pois se concebe a cidade como relação aberta entre espaço construído e
organização política. Eis, portanto, o que a etimologia polis desejava exprimir.
Richard Morse considera as cidades como "arenas culturais", que constituem um
campo de significações, um contexto semântico que são, ao mesmo tempo, produto
e produtor da ação dos sujeitos urbanos (Morse, 1970). Morse chega a uma noção de
"contexto como consenso fundado pela atividade discursiva dos atores, em sua
permanente atividade de significar as experiências de que participam. A cidade é,
por isso, um campo privilegiado de observação desse diálogo, uma arena" (Idem).
O olhar que percorre as ruas de uma cidade visualiza páginas escritas: a
cidade diz tudo o que deve pensar, faz repetir o discurso, e enquanto se acredita
22
visitar uma cidade, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define
a si própria e todas as suas partes. Tive, quando cheguei em São José dos Campos,
em 1994, as mesmas emoções reveladas por Marco Pólo, contadas por Ítalo Calvino
em As cidades invisíveis. Diz assim o autor, sobre uma determinada cidade sem
nome nem lugar,
repito a razão pela qual quis descrevê-la: das inúmeras cidades imagináveis,
devem-se excluir aquelas em que os elementos se juntam sem um fio condutor,
sem um código interno, uma perspectiva, um discurso. É uma cidade igual a um
sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais
inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu
oposto, um medo. As cidades como os sonhos, são constituídas por desejos e
medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras
sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam
uma outra coisa (Idem: 44).
Assim como a cidade imaginada por Marco Pólo, São José me parecia, à
primeira vista, uma cidade apagada, sem personalidade, colocada ali quase por
acaso, sem marca, sem nome, sem identificação. À medida que fui conhecendo sua
história, suas ruas, surgia a suspeita de que ali havia algo de inconfundível, de raro,
talvez até de magnífico; senti o desejo de revistá-la, assim como Marco Pólo sentiu,
ao conhecer Aglaura. Percebi que ela possuía um carregado invólucro de símbolos,
que o conhecimento sobre ela permitiria saber o que contém e o que esconde.
Nessa investida, seguiremos o conselho de Marco Pólo ao poderoso Kublai Khan:
"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a
resposta que dá às nossas perguntas" (Idem, Ibidem).
As questões sanitaristas são imprescindíveis para o entendimento do
pensamento médico do momento, influenciando as políticas públicas, servindo como
argumento para criar condições para que a sociedade recebesse a influência dos
valores externos, relacionados às novas condições progressistas e modernas do
momento.
23
Além dos discursos, as imagens, os bustos, a arquitetura, elementos
constitutivos dos discursos materializados, forneceram subsídios para o
encaminhamento do quarto capítulo. Essas fontes nos deram o suporte visual da
simbologia historicamente construída ao longo dos anos na cidade. Esses recursos
monumentais imortalizaram a idéia do que se queria construir. Os diversos bustos e
sinais, alguns bastante discretos, criados na cidade de São José dos Campos,
remontam às diferentes fases históricas passadas pela cidade.
Verificamos como o passado deixa significativas marcas no presente, a
ponto de o identificarmos, mesmo quando se quer rejeitá-lo. Tentamos entender
como a próspera cidade de São José dos Campos, situada na região do Vale do
Paraíba Paulista lida com seu passado. Para essa cidade, moderna, industrializada, o
presente ofusca, e até mesmo nega um passado histórico marcado pela doença.
Atualmente, muitas são as produções acerca da cidade de São Jo dos
Campos. Objeto de análise de alunos de graduação e de pós-graduação, a história de
São José tem chamado atenção dos pesquisadores de diferentes áreas. Historiadores,
geógrafos, economistas, urbanistas, arquitetos são alguns dos especialistas que
tiveram a cidade como foco de estudos. No entanto, a questão da identidade, salvo
engano, não foi sistematicamente um objeto de interesse dos estudiosos. Embora
bastante falada e comentada, a identidade da cidade reclamava um estudo mais
aprofundado. Foi o que tentamos fazer.
Estruturamos o trabalho em três capítulos. Como a questão da identidade de
São José dos Campos a partir da problemática levantada tem implicação com a
doença, em particular com a tuberculose, sentimos necessidade de introduzir a
questão a partir desse enfoque. O capítulo inicial, São José dos Campos, a
hospedeira da tuberculose, traz uma discussão sobre a relação da doença com os
24
projetos sociais e políticos praticados pelo Estado no início do século XX. Visando
controlar doenças, as políticas sanitárias nacionais acabavam controlando os
indivíduos, considerados supostos agentes transmissores de doenças. Para os
médicos sanitaristas, a causa da doença encontrava-se não nas limitações do próprio
corpo doente do indivíduo, mas nos lugares e ambientes que ele circulava.
Dados médicos indicavam uma maior incidência de doenças infecto-
contagiosas junto às classes populares. Essa evidência assegurou ao Estado
providenciar a imediata cura dos espaços, estabelecendo a segregação dos doentes.
Promoveu-se, com esse intuito, um amplo projeto intervencionista. A racionalização
e remodelação do espaço pensada seguem os princípios de uma política
modernizadora. A medicina, a engenharia e o Estado unem-se em prol do espaço
saudável, moderno e funcional.
Estudos no Brasil revelaram mudanças significativas nos grandes centros
urbanos nesse momento, dinamizando setores ligados aos serviços, à produção, à
circulação de bens e, conseqüentemente, um considerável crescimento demográfico.
O projeto planejou a modernização do espaço efetuado nas cidades portuárias e nos
centros de produção de café também foram objetos de detida análise. O processo de
modernização de cidades situadas fora do eixo de circulação e da produção, como o
caso de São José dos Campos, não recebeu igual atenção dos historiadores.
A análise das representações sociais nos conduziu ao estudo da cidade como
objeto de conhecimento histórico. Entendendo a representação como uma
elaboração alegórica, que relaciona o material e o simbólico, não tem como pensar a
cidade senão a partir da sua história.
No segundo capítulo, Médicos e doentes na cidade que salva: o mito de
Babel percebemos o José virando um tubo de ensaio contendo diferentes
25
fórmulas. Muitos médicos, em função de sua importância no controle da moléstia,
tornaram-se fortes políticos ocupando a prefeitura municipal por longo tempo. A
cidade de São José foi palco de agudas divergências políticas e médicas, estampadas
no Boletim Médico, periódico que representava a categoria, de ampla divulgação
nacional.
Buscando curar doentes e principalmente a cidade, que ainda persistia com
suas fortes características provinciais, os médicos procuravam, sem grandes
sucessos, novos métodos profiláticos. Adaptar a cidade aos preceitos médicos,
ditados pelas novas tendências de modernização era a grande meta higienista. Essas
medidas impunham, antes da cura do doente, o tratamento dos ambientes e lugares
sujeitos à infecção. O debate médico apresenta algumas controvérsias sobre a
influência do clima no tratamento, mas era unânime com relação às idéias sobre as
condições de higiene e salubridade do espaço. Atendendo aos interesses do contexto,
a política pública resolveu empreender a racionalização dos espaços e assegurar aos
médicos meios para curar a cidade.
A cidade que antes acolhia” o doente conviveu, depois de se tornar
Estância, com o paradoxo da aproximação e da distância. Apesar de o doente
movimentar a economia da cidade, sua existência no espaço central incomodava à
população, gerando uma forte política segregacionista. A segregação denunciava,
sobretudo, a fragilidade da política sanitarista local. O medo dos moradores era
decorrente, em grande parte, da incúria das autoridades.
As prometidas medidas profiláticas que tranqüilizavam a população quando
da reivindicação do tulo de Estância, não passavam de um engodo. A ineficiência
das autoridades sanitárias e a inobservância dos preceitos higiênicos e profiláticos
deixavam a população desamparada. Se o discurso anterior das autoridades locais
tentava atrair doentes e mostrá-los que a cidade de São José dos Campos era mais
26
indicada para o tratamento, agora o discurso é outro. Em fins da década de 40,
alguns setores da sociedade se manifestaram declaradamente contra o projeto
sanatorial. Alegava-se que o projeto tinha posto a cidade em perigo atentando contra
á vida dos cidadãos joseenses. Enquanto a modernidade se instalava a cidade se
dividia entre sãos e doentes.
No terceiro capítulo, Identidade sanatorial: os silêncios da memória,
tentamos dar conta das problemáticas em torno do conceito de identidade. A análise
fundamenta-se no conceito de Memória como atributo social. A memória social é
um constructo que tem como base referências fixadas pela própria sociedade.
Estudando trechos de discursos, material de propagandas produzidos pela
municipalidade e a própria paisagem da cidade, percebeu-se uma tentativa de
produzir uma memória que promoveu o apagamento da fase sanatorial e realçou a
presente fase, industrial e aeronáutica. A cidade polifônica exibe dimensões visíveis,
tangíveis e ocultas, construindo-se a partir do que quer ser.
Por contingências da nova ressignificação do espaço e desconstrução da
idéia ligada a um passado sanatorial, antigos bens arquitetônicos, artísticos e
ambientais de uma época são apagados. Esse apagamento torna a memória coletiva
opaca. Talvez essa questão responda, em parte, ao discurso da perda da identidade
joseense. Talvez esses discursos, produzidos por sujeitos que vivem uma biografia
reflexivamente organizada, seja resultante de estratégias interpretativas da própria
existência humana em contexto pós-moderno.
CAPÍTULO I
São José dos Campos:
Cidade hospedeira da tuberculose
A cidade, em primeiro lugar, é feita de pedra e de cimento, ou
seja, dispõe de uma materialidade, constitui uma forma que se
estende no espaço. Assim, o que vale para a sociedade (a cidade
é um lugar onde as diferenciações se encontram ampliadas) vale
também para o espaço: a cidade é um local de contraste e de
disposição valorativa dos homens e das coisas. Em segundo
lugar, as questões urbanas de hoje são também questões de
organização do território social (Le Petit, 2001:74).
A história mostra-nos que a saúde pública sempre ocupou lugar secundário
na política brasileira. De modo geral, os problemas de saúde tornam-se foco de
atenção quando se apresentam como epidemias. Se essa é uma constatação da
realidade atual, mais grave ainda era a situação no passado. Reportando-nos ao
início do século XX, podemos, de fato, argumentar que as grandes cidades
brasileiras, ao mesmo tempo em que se embebiam das novas tendências, deixavam
transparecer um caótico quadro sanitário. A presença de doenças graves acometia
constantemente a população, como a varíola, a malária, a febre amarela e a
tuberculose, mais conhecida como peste branca. A Belle epóque brasileira, no
quesito saúde pública, de bela não tinha nada.
Estudos recentes indicam que os dados estatísticos de início do século XX
denunciavam uma grave epidemia de tuberculose no Brasil, evidenciando o descaso
das autoridades (Ruffino-Netto e Pereira, 1981). As medidas de contenção das
doenças, até então, ficavam restritas às ões dos médicos. Teorias como as do
contágio e da infecção dividiam as posições médicas. Para os “contagionistas”, a
infecção de doenças epidêmicas se dava pelo contato físico direto entre pessoas ou
28
por toque em objetos contaminados pelos doentes ou da respiração do ar que os
circundava (Chalhoub, 1996). Os médicos contagionistas recomendavam o
isolamento dos doentes em hospitais estabelecidos em locais distantes da área
central das cidades, evitando assim a propagação da doença.
Já os “infeccionistas” acreditavam que as doenças epidêmicas estavam
ligadas aos miasmas mórbidos” no ar ambiente, substâncias emanadas de águas
estagnadas e de animais e vegetais em putrefação. De acordo com essa vertente
médica, era remota a propagação da doença de pessoa a pessoa, pois a doença não
ocorria propriamente por contágio. A abordagem infeccionista defendia que o
indivíduo agia sobre o são ao alterar o ar ambiente que os circundava (Idem). Esses
médicos “defendiam a eliminação das condições locais responsáveis pela produção
das ‘emanações miasmáticas’ nas cidades por meio das intervenções saneadoras no
meio urbano” (Follis, 2004: 65). Foram esses médicos, os “infeccionistas”, que
“produziram o arcabouço ideológico básico norteador das reformas urbanas” (Idem,
Ibidem).
Certos de que os micróbios é que eram os agentes causadores das doenças e
não os homens, os infeccionistas colocaram todo o ambiente urbano e as classes
perigosas nele presentes sob suspeita e constante inspeção (Chalhoub, 1996: 170).
O Estado somente entra em cena quando as doenças infecto-contagiosas passaram a
ser consideradas um grande "perigo social", e quando constataram que sua
propagação estava diretamente ligada à salubridade do espaço.
A partir de então, o Estado se viu na contingência de utilizar meios que
possibilitassem um controle maior das epidemias, embora o foco da atenção fosse
os doentes, muito mais do que a própria doença (Berlinguer, 1988: 82). A luta
contra as moléstias promovia a criação de centros de pesquisas para identificar
29
causas e estabelecer profilaxias. Com os trabalhos do Departamento Nacional de
Saúde Pública (DNSP) e com a ação da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose,
criados em 1920, passava-se a adotar medidas profiláticas, assim como a
notificação da doença, o isolamento e a desinfecção. Baseando-se em técnicas
coercitivas, a saúde passava a ser um dos mais eficaz aparato burocrático,
personificado através das delegacias, inspectorias e postos de saúde. O Estado
inaugurou, a partir daí, uma fase de maior intervenção no combate à tuberculose,
contando com a diligente parceria de entidades filantrópicas.
É importante ressaltar que “a política de saúde não surgiu do sentimento
humanitário ou da consciência social: a legislação sobre saúde e saneamento
resultou de forças existentes na ordem econômica e social, no espaço urbano”
(Vianna, 2004: 24). O espaço passou a ser tratado como determinante das
condições saúde/doença. A saúde tornou-se, por sua vez, “prioridade a partir do
momento em que se estabelece uma correlação inversa entre saúde e
desenvolvimento econômico da nação” (Idem: 30-31).
Devemos entender que as políticas sanitárias no Brasil foram fruto das
necessidades econômicas das classes dirigentes nacionais e do desenvolvimento do
capitalismo internacional. Essa tese, no entanto, é vista de outra forma por alguns
estudiosos. Uns acreditam que a saúde pública no Brasil não foi o dispositivo
fundamental para reprodução de força de trabalho, dadas as características do Brasil
à época. Outros situam as políticas de saúde como elementos cruciais para a
expansão da presença do Estado na sociedade e no território brasileiro.
1
A descoberta do bacilo de Koch, em 1882, relacionava a contaminação da
tuberculose a uma série de associações, tais como o clima, a higiene, a alimentação,
1
Verificar essa discussão em: Vianna, Paula C. op. cit. p. 30-31.
30
o trabalho, os ares úmidos, as condições de moradia, a aglomeração de pessoas em
um mesmo local. O controle da doença ligava-se ao controle do indivíduo, pois era
ele o agente hospedeiro e transmissor da tuberculose. O indivíduo era acusado de
passar adiante a doença, pois era ele o suposto portador do bacilo, no entanto, a
causa da doença encontrava-se não nas limitações do próprio corpo doente do
indivíduo, mas nos lugares e ambientes que ele circulava.
Tratado como um organismo, o espaço da cidade sofria as intervenções
segundo os preceitos médicos. A intervenção dos médicos na vida urbana foi tão
significativa que deixou marcas no vocabulário das cidades. Palavras ligadas ao
corpo se inscrevem no vocabulário da cidade, tais como “inchar”, “coração da
cidade”, “vias de circulação”, “trânsito congestionado”, “desafogar”, etc.
Nota-se que o discurso de contenção das doenças propagadas pelo Estado
tinha um sentido que ia além das preocupações com a saúde blica. O início do
século inspirava e, sofregamente respirava, a política de modernização que os
ventos traziam da Europa. O crescimento das cidades, neste período, estava
associado às transformações do país independente que procurava se inserir nos
marcos internacionais do desenvolvimento do capitalismo tanto do ponto de vista
das relações econômicas quanto pela incorporação de doutrinas, valores e modos de
vida.
A transformação das relações de trabalho escravo em livre incrementou a
expansão das cidades que necessitavam de crescente e complexa rede de atividades
de comercialização e exportação, todas de caráter urbano. A construção e expansão
de uma malha ferroviária tornava possível a interiorização da ocupação do
território. Concomitantemente, ocorria uma expansão da demanda por bens de
consumo e equipamentos. Tudo isso implementou uma rede de serviços e
31
melhoramentos urbanos. Ainda que a população permanecesse predominantemente
rural, "foi a partir de então que as cidades começaram a funcionar como pólos de
atração de mão-de-obra, das elites e de investimentos” (Lanna, 1996: 15).
A atmosfera capitalista conduzia melhoramentos geograficamente situados
nos centros das grandes cidades. Água encanada, iluminação elétrica, rede de
esgotos, sistema de telefonia, ampliação e limpeza das vias de circulação passaram
a entrar no rol das emergentes polícias públicas. Estavam dadas, porém, as
“condições de exercício da função enunciativa”. A enunciação era clara: o espaço,
agora moderno, deveria ser limpo, belo, salubre, dinâmico e eficiente para abrigar a
produção da modernidade.
Adotando as tendências do momento, o país modernizava-se. As
tecnologias utilizadas transformaram com rapidez a paisagem. Novas construções
urbanas, serviços coletivos e uma organização maior do trânsito anunciavam
mudanças no espaço. Sem que, contudo, houvesse transformações na organização
econômica e cultural.
Ao mesmo tempo em que a cidade se enlevava dos princípios
modernizadores trazidos da Europa, os dados médicos indicavam, de forma
incontestável, uma clara evidência que contrariava os princípios da nossa
modernidade: a maior incidência de doenças epidêmicas junto às classes populares.
Nossas cidades apareciam nos relatórios médicos como um organismo enfermo que
precisava de tratamento, tais como a limpeza, a ordem e a disciplina (Follis, 2004:
22-23). A cura foi prontamente providenciada. Os números da doença reforçavam o
discurso médico que, por sua vez, respaldava o discurso do Estado, pronto para
justificar suas ações intervencionistas.
32
O discurso esclarece o enunciado, revelando os sujeitos (Estado / pobres) e
os espaços (público / privado) da linguagem dominadora. A produção do discurso
gerador de poder é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por
procedimentos que visam a conjurar toda e qualquer ameaça a esse poder. O modo
de viver e as precárias condições de vida da população pobre tornavam-na suspeita.
Em contexto capitalista, esse discurso fazia sentido. Em verdade, “o indivíduo que
não consegue acumular, que vive na pobreza, torna-se imediatamente suspeito de
não ser um bom trabalhador” (Chalhoub, 1996: 22). Essa idéia encontra
ressonância num contexto brasileiro de crescente processo de industrialização e de
crescimento demográfico (Rolnik, 1997: 158-62). Estava ligado, portanto, a uma
iniciativa de adequação do Brasil às novas demandas do momento.
A nova ordem social impunha um espaço racionalizado, remodelado
segundo os modernizadores princípios liberais. O espaço público, antes de ser
bonito, tinha que ser salubre, permitir a livre e organizada circulação de pessoas e
mercadorias. Argumentavam os higienizadores da época que a doença poderia
destruir as bases dessa organização. As políticas de saúde adotadas visavam
proteger os locais da ameaça representada pelas moléstias contagiosas. Várias
foram as reformas urbanísticas realizadas com o intuito de deixar saudável o espaço
social. Com esses propósitos, encontrava-se o motivo para afastar do centro das
cidades os miseráveis e indigentes moradores que se alojavam em pobres casebres.
Não é por acaso que os verdadeiros diagnósticos do espaço urbano
propunham intervenções cirúrgicas na paisagem, como a derrubada de casebres
para favorecer a aeração e a eliminação dos miasmas, bem como a abertura de vias
públicas. Nasce d a busca de uma credibilidade científica para embasar a
transformação da cidade. Neste sentido, todo o equipamento mental de uma época
foi mobilizado para renovar os conceitos e modelar a ação sobre a cidade insalubre
33
que se queria transformar. Conforme notou Margarida de Souza Neves, “a
‘condenação’ das casas era, naturalmente, a condenação de seus habitantes,
também identificados com o atraso, a sujeira, a doença, a feiúra, a barbárie”
(Neves, 1994: 143).
A distribuição de renda e a "pobreza" se mostravam como reflexos do
capitalismo em pleno crescimento. A tuberculose, considerada doença dos pobres e
operários, era também chamada de doença da civilização, pelo processo de
crescimento desordenado e discriminatório (Apud. Gonçalves, 2000). As indústrias
brasileiras, de modo geral, requisitavam mão-de-obra barata, que se acumulava em
moradias insalubres nas periferias das grandes cidades (Almeida, 1994). Estes
espaços, por sua vez, expressão da modernização, passavam a dinamizar a
economia gerando novas atividades e, com elas, diferentes grupos sociais. As
camadas médias, oriundas dos setores ferroviário, da construção civil e dos serviços
urbanos, como empresas de energia, transporte, água, telefone, comércio
importador, disputavam os espaços urbanos com os imigrantes, os empregados do
comércio e os operários.
João Flório, médico responsável pelo relatório de inspeção sanitária do
Estado de São Paulo, em 1944, registrava o número de estabelecimentos industriais
em São José dos Campos. A construção civil aparece em primeiro lugar, seguido do
setor de alfaiataria, olaria, oficinas de consertos e padarias (Flório, 1944: 26).
Adequadas às novas exigências da modernização, as cidades recebiam mudanças
segundo pressupostos ideológicos do momento, ligados, logicamente, aos interesses
burgueses. O espaço urbano, agora dos negócios, que gerava, fazia circular e
concentrar as riquezas, era também entendido como palco da circulação e
proliferação das doenças.
34
A população nascente que se avolumava nas cidades e compunha um fluxo
infindável de pessoas caminhando soltas pelas ruas causava pânico nas autoridades.
Esse impacto visual, anunciador de uma nova cena urbana, punha em alerta a
administração local, preocupada com a manutenção da ordem e com os efeitos
desse expressivo trânsito populacional nos seus modernos centros urbanos.
Maria Stella M. Bresciani, tratando da difícil realidade dos bairros
operários de Londres e Paris no século XIX, retrata, através de depoimentos
literários, o inquietante movimento das multidões nas ruas destas grandes cidades e
o “espanto, indignação, fascínio, medo” que essas populações causavam. A autora
narra alguns momentos dessa cena:
milhares de pessoas deslocando-se para o desempenho do ato cotidiano da vida
nas grandes cidades compõem um espetáculo que, na época, incitou ao fascínio e
ao terror. Gestos automáticos e reações instintivas em obediência a um poder
invisível modelam o fervilhante desfile de homens e mulheres e conferem à
paisagem urbana uma imagem freqüentemente associada às idéias de caos, de
turbilhão, de ondas, metáforas inspiradas nas forças incontroláveis para além de
sua forma exterior (Bresciani, 2004: 09).
Na incursão que Bresciani faz das múltiplas imagens da sociedade
elaboradas pelos homens do século XIX, um fato chamou a atenção: o espanto,
indignação, medo e a geral preocupação ante a pobreza que a multidão nas ruas
revelava de maneira insofismável. Reações que apontaram para estratégias de
controle dessa presença desconcertante (Bresciani, 2004: 09).
O mesmo medo assolou o território brasileiro. O Estado, assessorado às
determinações da saúde pública, que associava a doença à condição pouco
higiênica das classes populares, voltava seu olhar para o pobre, considerado o
principal vetor das doenças infecto-contagiosas. o só por carregar consigo
enfermidades, mas pela ausência de cuidados e, principalmente, por não ser
35
inserido na orla do trabalho. Era o que pensava Manuel de Abreu, o inventor da
abreugrafia, em 1948. Dizia o médico que as causas da elevada incidência da
tuberculose no Brasil são: baixo nível de vida, ausência de educação sanitária e de
profilaxia adequada” (Correio Joseense, 03/10/1948).
Por outro lado, os números também esclareciam que a tuberculose não
escolhia classe. Distintos representantes dos segmentos das alas mais favorecidas
também foram contaminados pelo bacilo. No entanto, dentro das condições
impostas pela dinâmica capitalista de produção, o doente o tinha funções. Capaz
de disseminar a doença pelas precárias condições de vida e higiene, os enfermos
pobres tornaram-se perigosos e contagiosos para a sociedade saudável (Guillaume,
1988). Essa associação trouxe à tona a diferenciação e o repúdio social deste
segmento. Rotulados como responsáveis por um tipo de mal social, eram obrigados
a seguir as orientações profiláticas e abrir espaços para manter o bom estado de
saúde da população.
2
Quase providenciais, as descobertas médicas relacionadas à profilaxia de
doenças infecto-contagiosas vinham de encontro com as necessidades da
administração pública. Os idealizados projetos de modernização das cidades
aumentavam ainda mais o controle e a manipulação do Estado sobre as camadas
menos favorecidas da sociedade através, principalmente, das políticas sanitárias
(Apud. Gonçalves, 2000). Os planos de transformação urbanística tentavam conter
alguns males inerentes ao processo de modernização, tais como as moradias
2
Em condições capitalistas, a medicina individualista do passado cedeu lugar às
dimensões coletivas da atividade dica. O corpo, agora socializado enquanto força de
produção, força de trabalho, fez com que o Estado adotasse procedimentos para melhor
assegurar seu funcionamento. O Estado se apropriou da saúde para dominar os corpos. A
condição da população que viria a se tornar força ativa da produção, preocupava o Estado.
Zelando pela saúde e bem-estar físico da população, cuidava-se para manter reservas
imperativas do trabalho, criando maneiras de elevar o nível de saúde do corpo social em
seu conjunto (Foucault, 1986: 196).
36
insalubres, as construções que evitavam a livre circulação do ar, a perambulação de
vadios e de mendigos (Follis, 2004: 30). Tentando curar os patológicos centros
urbanos, os administradores das cidades modernas esboçaram uma autoritária
política de higienização, embelezamento e racionalização dos lugares.
Essa política acolhia projetos de diferentes especialistas, tais como de
arquitetos, de engenheiros civis e de médicos, desde que amparados aos preceitos
racionais modernos. Juntas, essas categorias organizaram e trataram o espaço como
determinantes das condições de saúde / doença (Vianna, 2004: 24). Foram essas
categorias que deram à cidade a receita necessária para curá-la. Nessa empreitada, a
responsabilidade do médico acabou por se estender além dos domínios da
medicina. Era incorporado na sua competência o papel político-administrativo
como forma de organizar medidas de controle da cidade.
Não se pretende aqui condenar a ação pública e seu projeto profilático.
Cabe-nos apenas entender que essa política de higienização, embelezamento e
racionalização dos lugares apenas atendia interesses demarcados pelas fronteiras do
núcleo central das cidades e tinha como foco de atenção as camadas mais baixas da
população. A intervenção municipal impunha um limite de ação que não permitia
contemplar os outros lugares, mais especificamente, aqueles localizados na
periferia do núcleo urbano em formação.
O poder público, atrelado à medicina, mesclava “o saber analisador e poder
fiscalizador para intervir sobre o espaço social de modo a destruir ou transformar
tudo o que, no meio urbano, é considerado causa de doença” (Apud. Vianna, 2004:
46). Políticas de saúde foram modificadas e a medicina passava a ser a grande
aliada do Estado moderno, conferindo poderes e responsabilidades cada vez mais
abrangentes. Neste contexto, vislumbrava-se a organização de uma política da
37
saúde. A doença, antes ligada ao âmbito médico, passava a ser considerada um
problema político e econômico. Como enfatiza Foucault,
(...) o surgimento progressivo da grande medicina do século XIX não pode ser
dissociado da organização, na mesma época, de uma política da saúde e de uma
consideração das doenças como problema político e econômico, que se coloca às
coletividades e que elas devem tentar resolver ao nível de suas decisões de
conjunto (Foucault, 1986: 194).
A medicina, aliada às novas determinações do estado moderno, legislava
em favor do bem social, controlando a infecciosidade e, conseqüente disseminação
das doenças. Como não se dispunha de um medicamento específico para a cura da
tuberculose, as terapias climáticas e o repouso absoluto eram os recursos mais
utilizados. Os estudos reafirmavam: as más condições de moradia, a alimentação
precária e o local inadequado de trabalho eram fatores importantes para a exposição
ao bacilo de Koch e para o crescente adoecimento da população. Através de uma
associação gica, os menos favorecidos economicamente tinham maiores chances
de contrair a enfermidade por viverem em condições precárias. Por esta associação,
pobres e trabalhadores passaram a serem vistos como os principais agentes que
contraíam e disseminavam as doenças.
Uma vez detectadas as grandes “chagas” que atormentavam o espaço
moderno, as discussões no âmbito da medicina política deixavam claro que a
educação higiênica era uma das soluções para a cura e profilaxia do organismo
social e que a estrutura urbana, da forma como estava configurada, favorecia a
disseminação da doença. De acordo com essas recomendações, não adiantava
retirar o pobre do centro e deslocá-lo para a periferia, sem que tratasse de melhorar
o nível de vida da população, que estimulasse a educação sanitária ou que desse
condições para uma profilaxia adequada. A desorganização urbano-social, um dos
grandes males da modernidade, era percebida como a grande causadora de doenças
38
e, portanto, devia ser combatida.
Nesta época, a saúde ou a falta dela, estampada na aparência do indivíduo,
estigmatizava o corpo. O estado corporal aparentemente magro, fraco, pálido,
"tuberculoso", denunciava a condição social de pobreza e de descuido, portanto,
susceptível à doença. Paradoxalmente, o corpo frágil, exposto às doenças, fortalecia
ainda mais as políticas de saúde e dava ânimo ao Estado a empreender com afinco
políticas profiláticas de “cura” e de racionalização do espaço. A política sanitária,
de tendência pedagógica, anunciava a imposição da saúde como um dever de cada
um e como objetivo geral. O Estado moderno, responsável pelo crescimento
canalizado das riquezas, também respondeu pela manutenção da saúde; em geral,
visando, necessariamente, a saúde da força de trabalho (Foucault, 1986: 197). Com
este intuito, foram criadas Posturas Municipais e normas de comportamento
urbanas para disciplinar as populações crescentes. Tudo, logicamente, em prol do
bem estar social.
Em nome desse atributo, legalizava-se não sobre a vigilância dos
indivíduos perigosos, mas caçavam-se os vagabundos e mendigos e condenavam-se
os que não respeitavam as regras gerais de higiene. Neste contexto, a medicina
adquiriu uma importância vital para a cura do organismo social. Imbuída dos
princípios liberais, passou a se associar às leis do mercado na tentativa de organizar
o corpo urbano, visivelmente adoentado. As políticas adotadas acabaram
legitimando e justificando um gasto público que tendia a valorizar o interesse
privado (Apud. Vianna, 2004: 65), acentuando o nítido contraste entre as
desigualdades sociais urbanas (Wissenbach, 2001: 49).
A idéia propagada de que o espaço urbano podia provocar doença, formar e
difundir fenômenos epidêmicos respaldou o Estado das primeiras grandes
39
emigrações dos moradores insalubres para a periferia da cidade. A crença de que o
ar tinha uma influência direta sobre o organismo, por veicular miasmas e ser
considerado um dos grandes fatores patogênicos, estimulou a ação pública no
sentido de manter a sua qualidade. Fazer o ar circular e eliminar tudo o que o
cercasse era, neste momento, o grande empreendimento do Estado. Visando a saúde
do organismo social, o poder público não se coibiu frente à propriedade privada.
Sentindo a necessidade de abrir longas avenidas, destruiu casas que barravam a
circulação do ar e que retinham o ar úmido, dando abertura para a atmosfera da
modernidade.
Para a medicina da época, o ambiente úmido, pouco iluminado e mal
arejado propiciava a disseminação e a contaminação da tuberculose e de outras
doenças. Estes locais e as pessoas que ali moravam eram vistos com descrédito, por
constituírem focos de doenças. Nos ambientes de trabalho populosos, mal arejados
e com pouca luminosidade, o operário era concebido como o receptáculo da doença
causada, por sua vez, pelas péssimas condições do local. Os locais (de trabalho, de
moradia), os objetos (maquinaria industrial) e o ar eram considerados tão
pestilentos quanto a própria doença.
Os doentes, culpados e responsabilizados socialmente pelo modo de vida
que levavam, principalmente por não adotarem os costumes de higiene e de
alimentação preconizados pela medicina, eram justificadamente expulsos dos
grandes centros urbanos. No entanto, nada foi feito para melhorar esse triste
quadro. Na verdade, antes de conter a doença, o propósito era expulsar a população
“ameaçadora”. Não ter condições adequadas de vida, morar nas periferias, nos
cortiços e estar muito perto das doenças desprezadas e estigmatizadas, como a
sífilis e a lepra responsabilizava os doentes pela saúde dos outros (Apud.
Gonçalves, 2000).
40
O Estado era, portanto, salvaguardado pela medicina social urbana. Essa
parceria amparou a administração local que se na competência de utilizar meios
que possibilitassem um controle maior sobre os doentes, muito mais do que sobre a
própria doença (Berlinguer, 1988: 82). Acudido pelo discurso médico, o Estado se
sentiu respaldado para organizar os espaços, fiscalizar as pessoas e construir a
norma familiar (Apud. Gonçalves, 2000). De fato,
a medicina urbana não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e
organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos;
uma medicina das condições de vida e do meio de existência (...) A medicina
passou da análise do meio à dos efeitos do meio sobre o organismo e finalmente à
análise do próprio organismo (Foucault, 1986: 92).
Apoiada à noção de salubridade, surgiu a noção de higiene pública, cnica
de controle político científico do meio (Foucault, 1986: 93). Medidas sanitárias
visando o controle médico da população foram adotadas em prol da coletividade.
Respondendo a essa campanha de prevenção de doenças, a população reagiu. A
reação à imposição da vacinação obrigatória no início do século XX, no Rio de
Janeiro, foi um dos efeitos dessa medicina social.
A medicina, atrelada a uma proposta higiênica e social de modificação dos
costumes das classes populares acreditava poder combater os modos de agir e
pensar frente à moral e à higiene. Aplicadamente "social", a medicina também
tendia ser mais policiadora e normativa. Sua preocupação: intervir socialmente para
o bem-estar geral, ditando modos e maneiras de vida saudável. À medicina era dada
a competência e legitimidade de tratar a parte da cidade “adoecida”.
As metrópoles transformavam-se ao mesmo tempo num espaço convidativo
e ameaçador. O grande crescimento demográfico urbano levou à conseqüente
41
“necessidade de coordená-lo e de integrá-lo ao desenvolvimento do aparelho de
produção, a urgência de controlá-lo por mecanismos de poder mais adequados e
mais rigorosos” (Foucault, 1986: 198). A manutenção da saúde dessa população
passou a se tornar pertinente como forma de assegurar a sujeição e utilidade da sua
força de trabalho. As novas reformulações do espaço urbano trouxeram como
justificativa a garantia da saúde do corpo social. Delineia-se, assim, toda uma
decomposição utilitária da pobreza, onde começa a aparecer o problema específico
da doença dos pobres em sua relação com os imperativos do trabalho e a
necessidade da produção” (Foucault, 1986: 196).
Nessa época, o ar era considerado um dos grandes responsáveis pelas
doenças, daí a preocupação dos médicos com o arejamento da cidade. Projetos
providenciais promoviam o alargamento das ruas e tentavam acabar com as
possíveis fontes de contaminação do ar e da água. Outro objetivo da medicina
urbana era reservar, no espaço urbano, uma área para praças, mercados, circulação
dos transportes e animais, bem como locais para despejo dos dejetos humanos e
lavagem de roupa, preocupando-se para que a água da fonte não fosse contaminada.
No Rio de Janeiro, o médico sanitarista Oswaldo Cruz, à época diretor-
geral de Saúde Pública do governo de Pereira Passos, propôs uma reestruturação da
cidade do Rio de Janeiro visando o combate a doenças epidêmicas e lançou
campanhas sanitárias com repercussão nacional. A tuberculose, até então, não era
uma preocupação estatal, ainda que, em meios não-governamentais, se colocasse a
discussão se era realmente uma doença social e qual o melhor modo de combatê-la.
Entretanto, o Estado, em vista do processo de industrialização, preocupava-se com
a situação sanitária do Rio de Janeiro, sede da capital federal, freqüentemente
atingido por surtos de febre amarela, tuberculose, varíola e de peste. Enquanto as
discussões giravam em torno de quem deveria adotar estas responsabilidades, foi a
42
elite médica que assumiu o papel, depois remetido ao Estado.
A cidade do Rio de Janeiro tornava-se um modelo de cidade moderna para
o Brasil, assim como a cidade de São Paulo, uma referência nacional. A
modernização da estrutura sanitária da cidade de São Paulo, executada pelo prefeito
Antônio Prado e dirigida pelo dr. Emílio Ribas, objetivava efetuar o
embelezamento e racionalização da cidade que foi transformada no principal centro
articulador técnico, financeiro e mercantil do café. Os espaços públicos da
metrópole do café foram modificados para se inserirem num contexto de
funcionalidade relacionado com o modo de produção vigente. Suas transformações
denunciam as classes que foram privilegiadas pelas mudanças, esboçando uma
clara diferenciação social e uma evidente segregação urbana, como enfatiza Raquel
Rolnik:
explosão demográfica do período, fruto principalmente da imigração estrangeira,
por si só não explica a transformação da cidade: mais do que crescer e aumentar a
complexidade de sua administração, São Paulo se redefiniu territorialmente. A
emergência da segregação como elemento estruturador da cidade foi uma das
principais mudanças que ocorreram no período. A partir daí, a segregação urbana
seria determinante para a fixação de valores no mercado imobiliário e para a
expressão política da disputa do espaço pelos grupos sociais (Rolnik, 1997: 28).
O espaço público paulista - agora iluminado a gás pela recém-instalada
iluminação urbana, redesenhado com uma regularidade das fachadas e
transformado em espaço de circulação exclusiva - foi redimensionado pela
sociedade do café. Conforme observou Rolnik, “trata-se, porém, de um novo
espaço público, limpo, exclusivo e onde impera a respeitabilidade burguesa. A
partir deste momento seria uma das metas essenciais da política urbanística
expressa na legislação” (Rolnik, 1997: 34).
Colocada em prática a política de limpeza social das ruas preservava-se a
43
saúde do espaço, protegia-se o mundo do trabalho e assegurava-se a manutenção da
ordem social. Na carona da manutenção da saúde do trabalhador moderno e do
próprio sistema gerado, o espaço foi sendo tratado e os moradores insalubres
expulsos. Dessa forma, tratava-se parte da cidade adoecida. Tentando controlar a
dinâmica do novo espaço que vai se configurando nas cidades, várias foram as
propostas de intervenção escolhidas e executadas pela iniciativa privada e pelos
poderes públicos.
Como vimos, o discurso da medicina, mais especificamente o da higiene e
da saúde pública, se concretizaram como saberes urbanos típicos que discursaram
sobre o corpo da cidade desde o século XIX. Conforme observou Giuliano Della
Pergola, as cidades modernas
foram construídas tendo como base os paradigmas estéticos. Tinha-se a impressão
de que a beleza da cidade, obrigatoriamente, tinha de passar também para seus
habitantes. Os habitantes de uma cidade bonita não poderiam ser senão bonitos
eles mesmos (Della Pergola, 2000: 83).
Não se pode esquecer que as intervenções urbanas estiveram ligadas ao
processo de industrialização e à existência de uma economia forte de mercado. Os
estudos geralmente revelam mudanças significativas ocorridas nos grandes centros
urbanos, que dinamizaram setores ligados aos serviços, à produção e à circulação
de mercadorias, estimulando, por sua vez, um considerável crescimento
populacional. O mesmo processo é percebido pelos estudiosos ao tratarem as
cidades portuárias e os grandes centros urbanos do Oeste Paulista, que
concentraram e orientaram sua economia para a produção de café, principal produto
brasileiro de exportação da época” (Follis, 2004:27).
É considerável a produção historiográfica acerca do remodelamento
44
ocorrido nas grandes metrópoles brasileiras no início do século. Por outro lado, a
produção acadêmica pouco se deteve sobre o mesmo contexto das cidades situadas
fora do eixo de circulação e da produção, como o caso da cidade de São José dos
Campos, localizada no Vale do Paraíba paulista. Como pensar o mesmo contexto
tendo como foco história de cidades periféricas, pequenos núcleos distantes dos
centros dinâmicos de produção cafeeira?
Antes, porém, de iniciarmos a nossa discussão, faz-se necessário alguns
esclarecimentos. m-se como objeto de estudo as representações sociais em torno
da identidade de São José dos Campos. Trata-se, portanto, do estudo da cidade. No
século XIX, a cidade foi uma protagonista decisiva no processo de construção do
Estado Imperial e se constituiu no alvo preferencial das idealizações e ações que
tentavam atualizá-la tanto do ponto de vista funcional como estético (Marques dos
Santos, 2000: 149-174). Embora muitos desses planos permanecessem no papel,
neste momento se constituíram as bases, no campo das idéias, para as
transformações radicais que só viriam nas primeiras décadas republicanas.
Justamente em função desse pressuposto, delimitamos nosso período de
análise às primeiras décadas do século XX quando se delineavam projetos de uma
sociedade moderna idealizada na mentalidade da população. No imaginário
coletivo, a cidade era definida tal como deveria existir (Roncayolo, 2001: 268-69).
O interesse de estudar a cidade também do ponto de vista da sua construção
imaginária nos possibilita identificar as representações do espaço urbano real ou
desejado. Seguindo as instruções de Marcel Roncayolo, não entendemos
representações apenas como puro reflexo do substrato econômico e social. Trata-se
de uma complexa elaboração simbólica, onde urbanismo e arquitetura também
podem ser pensados como parte de uma História da Cultura, entre o material e o
simbólico.
45
Tal perspectiva nos leva a pensar que a cidade, ela mesma e não apenas a
sua história, é um lugar de intervenção plural, onde a racionalidade técnica e
científica precisa estar acompanhada da sensibilidade dos artistas, da erudição dos
pesquisadores e, principalmente, do desejo dos seus cidadãos (Kessel, 2001: 126).
Procuramos entender a cidade a partir da produção dos discursos. Discurso, cidade
e sujeitos, implicando histórias, constituindo significação. É esse o nosso foco para
reflexão. Entendemos cidade como uma localização territorial que comporta um
corpo social gerido por um aglomerado de instituições políticas e administrativas
especiais.
O estudo da cidade nos leva ao estudo da sociedade, de sua história e de
sua cultura. A materialidade do discurso mantém relação com a materialidade da
história para fazer sentido. Se vamos ler a cidade como um texto, devemos buscar o
sentido da cidade na própria materialidade do texto, ou seja, nos seus espaços, que
nos dão oportunidade de compreender a produção de sentidos, sua estrutura,
funcionamento e processos de significação.
Busca-se mostrar os mecanismos de significação que prendem a
textualização de processos discursivos em São José dos Campos, em dois
momentos específicos: o momento sanatorial (1900 - 1954) e o momento industrial
que iniciou em 1950. Nosso objetivo é descrever as montagens discursivas desses
dois períodos que, aparentemente sem ligação, são resultados da produção da
historicidade. Para tanto, é preciso conhecer a cidade que iremos perscrutar.
São José dos Campos é conhecida nacionalmente por ser considerada uma
cidade promissora, eldorado particular dos mineiros e, em geral, dos brasileiros da
década de 40 a 70. Seu parque industrial é composto por poderosas indústrias. O
ITA, Instituto Tecnológico de Aeronáutica, é famoso por seus cursos de engenharia
que selecionam os vestibulandos mais preparados do Brasil. O CTA, Centro
46
Técnico Aeroespacial, lançou recentemente São Jona mídia, como responsável
pela morte de 21 funcionários, incinerados na explosão da base de lançamento do
foguete VLS (Veículo Lançador de Satélite), em agosto de 2003, em Alcântara.
O município de São José dos Campos se destaca no cenário nacional por
sua importância econômica e tecnológica. Em 2001, São José dos Campos era o 37º
município do país em qualidade de vida. Possui o segundo maior PIB industrial
brasileiro e foi responsável por 7% do total das exportações brasileira em 2001
(PMSJC, 2001). É dessa cidade que iremos tratar; mais especificamente,
levantaremos a discussão em torno da busca de alternativas com o fim da
escravidão e começo de uma era dita liberal. Em torno desse período e da relação
deste tempo com seus sujeitos, enfocou-se uma questão para discussão: entender a
formação histórica da cidade de São José dos Campos. Trata-se, portanto, da
construção de um objeto no espaço. A delimitação temporal é justificada pelas
buscas de alternativas para São José, num período bastante tumultuado no Brasil.
De um período anteriormente escravista e instável, mantendo uma
economia acanhada em torno das pequenas e médias propriedades policultoras,
(Papali, 1996) a cidade de São José dos Campos de início do século XX prima pela
ausência de oligopólios remanescentes da economia cafeeira. Ao mesmo tempo,
tem que lidar com um impasse: como manter a produção e a relativa acumulação
interna sem a mão-de-obra escrava já precária e num período de crise econômica
generalizada? Augusto Emílio-Zaluar, que visitou, pela segunda vez a província,
em 1860-61, notou que, "apesar da uberdade do solo e das muitas condições
vantajosas que o lugar oferece a seus moradores, a Vila de S. José do Paraíba está
ainda em notável atraso, e é um centro de pouco movimento, em relação, como
dissemos, aos recursos de que dispõe" (Zaluar, s/d: 108). A falta de mão-de-obra,
de acordo com o viajante, também contribuiu para o estado letárgico do município.
47
A pouca expressão do município chamou a atenção do viajante que assim
se lamentava:
é triste realmente que um povoado tão favorecido pela natureza se veja pobre e
humilhado diante dos outros municípios, e que, tendo proporções para socorrer os
vizinhos, se ache forçado a recorrer a eles!" Potencial natural a cidade tinha. O
que faltava era, sobretudo, na visão do viajante, iniciativa de pessoas interessadas
"em tirar partido das grandes vantagens que promete o município (...) que a
natureza tão generosamente lhes confiou (Zaluar, s/d: 109).
Situada entre as cidades de Jacareí e Taubaté, consideráveis zonas
produtoras de café no passado escravista, São José não teve suas terras definidas
exclusivamente pelo ouro negro, como era chamado. Enquanto as vizinhas cidades
de Jacareí e Taubaté se destacavam como núcleos de grandes barões de café, São
José mostrava timidamente uma população de frágeis produtores. Seu solo
impróprio para o cultivo do grão fazia com que as terras joseenses produzissem
uma cultura diversificada, sem grandes expressões mercantis. No entanto, apesar
das dificuldades de produção, o café, em termos joseenses, era a atividade que
rendia maior dividendo.
Um estudo sobre os produtores de café na região, baseado nos inventários
do ano de 1889, mostrou que os pequenos proprietários detinham, em média,
88,66% total da produção, enquanto os médios produtores ficavam na faixa de 10,
31% e os grandes proprietários 1,03% (Toledo, 1997: 32). Esses números
demonstram que “a quantidade de escravos não era significativa e não havia na
cidade nenhum barão do café. A vida política era tímida em São José dos Campos”
(Lessa, 2001: 31).
A população da cidade, em 1860, compreendia aproximadamente 8.000
almas. Zaluar se admirou ao ser informado que 7.000 pessoas eram consumidores
48
(Idem: 108). Essa constatação foi reforçada pela documentação de início do século
XX, quando o comércio apresentava-se como uma das possibilidades de consolidar
a economia, ajudado pela produção das pequenas indústrias de cerâmica da
companhia Weiss e Bonádio. Neste período, o Correio Joseense registrou a
presença e atuação marcante dos comerciantes, evidenciada pela criação do Jornal
"O Caixeiro". A existência desse grupo, que se destacou na cidade, acabou
incentivando medidas políticas em defesa dos seus interesses comerciais.
Entretanto, a dinâmica econômica não correspondia às expectativas
políticas do grupo que precisava se fortalecer e se tornar, regionalmente, uma força
hegemônica. De acordo com Castells, a política urbana está imbricada com o poder
local, entendido como processo político no âmago de uma comunidade e como
expressão do aparelho de Estado ao nível local” (Castells, 1983: 353). Existem
várias teses sobre a estrutura do poder na cidade. Uma delas, chamada abordagem
reputacional, considera a sociedade como uma pirâmide de poderes em cujo cume
encontramos uma elite, mais freqüentemente formada por homens de negócios da
comunidade, reconhecidos como poderosos pelo conjunto” (Idem: 354).
Outra abordagem, a decisional, diz que
parte da idéia de uma pluralidade política, expressão de interesses divergentes,
mas não forçosamente contraditórios (...), as alianças se fazem e se desfazem
como os sócios mudam, como as estratégias obtém resultados diferentes
conforme o que está em jogo, sendo que o resultado não é absolutamente
determinado previamente e tudo depende do processo de decisão (Idem, Ibidem).
Ao mesmo tempo, se considerarmos que uma estrutura de poder é um
conjunto de pessoas, então o fato de encontrar pessoas diferentes comprometidas
em diferentes questões leva à conclusão de que existe uma estrutura pluralista de
poder. Conforme enfatizou Castells,
49
se uma estrutura de poder é um conjunto de instituições, então é indiferente saber
se os indivíduos que m os recursos e posições institucionais similares agirão
sempre no mesmo sentido. Preferencialmente, os dois aspectos devem ser
considerados separadamente e os recursos não devem ser vistos simplesmente
como atributos dos indivíduos que escolhem agir ou não em vista de certos
objetivos políticos em situações específicas, mas, sobretudo, enquanto
conseqüências sistematicamente atribuídas da estrutura institucional da sociedade
e do sistema político (Idem: 355).
Podemos dizer que em São José dos Campos, no início do século XIX,
havia uma certa ordem urbana, ou seja, um conhecimento do possível entre
diferentes interesses em jogo, com um denominador comum entre os fins
particulares dos atores, uma previsão e vontade de atingir certos objetivos (Idem:
357). De fato, as ações políticas locais mostravam a busca de uma atividade
rentável que dinamizasse a economia regional e permitisse justificar o poder, dando
sustentação à comunidade local. Diante do agravamento da crise da agricultura, a
população joseense passou a buscar alternativas voltadas às atividades urbanas. A
grande transformação, “tanto da forma urbana quanto da vida e economia da
cidade, aconteceu ainda no culo XIX, quando começou a ser propagado o efeito
curativo do seu clima sobre a tuberculose” (Lessa, 2001: 32).
Essa propaganda ganhou fôlego com a publicação dos Almanaques
produzidos sobre a cidade na metade do culo XX. O mais antigo que se tem
notícia data de 1905. Na esteira deste, outros vieram para divulgar a cidade: 1922,
1935, 1945, 1954. Cada um deles com um propósito definido, relacionado às
históricas fases de seu desenvolvimento.
50
Fig. 01: Almanaque de 1905
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
Fonte de valor inestimável, os almanaques são testemunhos de uma época
e de seus indivíduos, extremamente comprometidos com a vida local. Maria Coleta
Oliveira ressaltou a importância dos almanaques para a compreensão das cidades.
51
Os Almanaques, ressaltou Coleta Oliveira, “propunham informar sobre as
características da vida social e econômica das localidades registrando, muitas
vezes, com indisfarçável tom ufanista, o cotidiano das cidades do interior paulista”
(In: Meyer, 2001: 23).
Considerados como uma espécie de guia e semiologia do tempo (Casa
Nova, 1996), os Almanaques nos informam sobre a diversidade das atividades
urbanas, de como a cidade vive e sobrevive, dos serviços e equipamentos de
natureza coletiva disponíveis na cidade, das pessoas ilustres, da produção cultural
do local, enfim, de tudo que a cidade é ou quer vir a ser. Por meio dos Almanaques,
ficou-se sabendo que “as pequenas e médias cidades do interior paulista
experimentaram, no final do século XIX, significativas transformações em sua
paisagem social e urbana” (Idem: 24). Como dizia Machado de Assis, os
Almanaques traziam a língua das cidades e dos campos em que caía (Idem: 26-27).
Os insistentes discursos contidos especificamente nos Almanaques de São
José de 1922 e 1935 deixavam entrever que os argumentos inclinavam para a idéia
que São José dos Campos estava bem situada, possuía uma rica estrutura natural e
que, em 1922, apesar de sua fraca vocação agrícola, dispunha de terra e terra -
segundo Domiciano Pereira, autor de um texto no Almanaque que tem como
finalidade apresentar o Município -
é um meio cheio de vida (...) A terra, como qualquer ser vivente, é uma machina
transformadora e exige como qualquer outra machina viva e motora, a força e
combustível", embora reconheça o autor que "o adubo e o amanho do solo são
elementos indispensáveis à sua fertilidade (Almanaque de 1922: 14).
Aquelas falas, que pareciam sem grande importância, começava a se
projetar como algo realmente revelador, obviamente, depois que se passou a ler o
52
contexto anterior à edição desse Almanaque. Tudo aquilo começava a fazer sentido.
Nesse momento, SJC passava por uma grave crise estrutural. A classe produtiva,
ainda estava, apesar dos pesares, ligada à lavoura, mais precisamente à produção de
café. Uma descrição de um habitante saudoso dos áureos tempos das terras
cafeeiras se recordava tristemente em 1922, da desolação do município, assim se
lamentando:
Nessas terras que o Senhor vê, F. colheu milhares de arrobas de café, e estas
estradas tinham grande movimento. As montanhas, de onde, extrahidos pelas
culturas, ou conduzidos pelas aguas pluviaes os elementos fertilisantes
desapparecera, dando lugar aos mantos de sapeeiros e samambaias, indícios
certos de queimas periódicas e de relativa pobreza do solo, mostram-se hoje
apparentemente empobrecidas, é uma paralysia momentanea que nada mais
significa, senão, um protesto vehemente contra a incúria ou ignorancia daqueles
que os não souberam comprehender (Almanaque de 1922: 18).
No esforço do discurso legitimador de grandes e boas terras para produção,
o contrário foi denunciado. As leituras seguintes e o tom frágil das qualidades
ressaltadas foram desmistificando a linguagem pouco convincente das terras
produtivas de o José. Nos Almanaques, o José dos Campos aparecia como a
cidade que prometia crescimento invejável. A retórica reforçava as suas
características positivas. O discurso inicial, das férteis terras e rico solo evidenciado
pela documentação, foi ponderadamente relativizado.
Nada, no entanto, que pudesse comprometer as eventuais pretensões de
salubridades, cujas condições seriam, por exemplo, a necessidade de fertilização da
terra gasta pelo uso inadequado dos antigos produtores de café (p.21), o que
requeria um investimento grandioso de capitais; "o rebaixamento do Paraíba para
dar sustentação à produção de milho, arroz e outras plantas", o que, pelo pouco
entusiasmo demonstrado pela elite joseense, exigiria apoio externo (p.14). Boas
pastagens também poderiam significar esperanças para a economia joseense,
53
permitindo o desenvolvimento da criação de rebanhos (p.22). Entretanto, "boas
pastagens, é grande problema porque metade da raça (Zebu, kerry) é feita pela
bocca" (Almanaque de 1922).
Outra série de textos curtos fazia propagandas, à primeira vista, sem grande
importância, de médicos e clínicas especialistas em tratamento do aparelho
respiratório. Curioso é que a conduta profissional e moral dos médicos são
positivamente ressaltadas. Também eram registradas as casas comerciais e locais de
prestações de serviços da cidade, com as áreas de maior relevância econômica, o
arrolamento das fazendas, das chácaras e dos sítios com suas marcantes
contribuições produtivas.
No meio dessas informações, vislumbra-se uma São José dos Campos
sendo construída. Pelo material apresentado, o projeto que se percebia girava em
torno da idealização de uma cidade sanatorial e estância climatérica. Esse perfil
ficou claramente nítido a partir dos conteúdos especificamente tratados ao longo do
Almanaque de 1922, que deixou transparecer a sua finalidade aparente, a de
convencimento. O confronto com outras fontes confirmou aquilo que se
desconfiava: Napoleão Monteiro, jornalista, na época futuro vereador e idealizador
dos Almanaques, recebeu da Comissão de Finanças e Justiça, em setembro de
1920, a importância de 500 mil réis para a publicação do material, para o ano
seguinte (Ata da Câmara Municipal 15/07/1920).
Tratava-se de justificar a tão esboçada vocação argumentada em torno da
persuasão. O conteúdo do Almanaque é revelador nesse sentido. Apresenta,
primeiramente, o município de São José dos Campos justificando, repetidamente, a
salubridade de seu clima e solo, privilegiadamente situados numa zona
eminentemente temperada, que tinha, a seu favor, uma localização geográfica
54
estratégica. Talvez esse fosse o seu verdadeiro quinhão. Durante o café, "por causa
da ferrovia, era centro receptor de café de outras cidades como Paraibuna,
Jambeiro, Monteiro Lobato e outras. O café vinha e era beneficiado aqui, seguindo
depois pela estrada de ferro, aos portos de Santos, Rio de Janeiro, etc." (Cabral,
1986: 20). Nas rebarbas dos privilégios da localização, São José foi se fazendo.
Se as condições naturais do município inibiam os interesses dos
agricultores e pecuaristas, a saída foi buscar alternativa econômica que não exigisse
altos investimentos, que o café estava em crise. No contexto dessa incansável
busca de saída, inspirados pela volúpia do crescimento econômico e pela
especulação financeira, os idealizadores da SJC sanatorial, em plena década de 20,
eram regados às teorias européias contemporâneas. Na França, Gustave Le Bon, o
criador da Psicologia social, discutia, entre outras coisas, o papel das mídias para
fabricar o consentimento.
Essa idéia entonava o discurso sanatorial e as ações dos nossos políticos,
amparados por esse eficaz instrumental teórico, permitiu o fenômeno psicológico
do "contágio mental", influenciando grupos e multidões. Como se chegou a essa
conclusão? Particularmente, um texto do Almanaque chamou a nossa atenção. No
texto "A fraqueza da incredulidade", escrito pelo dentista e colaborador do Correio
Joseense, Elisiário de Mello Bonilha, percebe-se o tom da argumentação
convincente. Bonilha inicia uma discussão sobre a ciência e a enunciada a partir
da teoria da crítica da razão prática de Kant.
55
Fig. 02: A Fraqueza da incredulidade: Elisário Bonilha
Fonte: Monteiro, 1922.
Bonilha, cético às explicações científicas, proclamava, no Almanaque de
1922 que, "a ciência, tão prodigiosa em seus detalhes, tão meticulosa em suas
análises, tão exigente em suas particularidades, (...) nada explica da obra
maravilhosa da criação (...). A ciência, para explicar a criação do mundo, vem
apenas com divagações pueris..." (Monteiro, 1922: 62).
Bonilha apresentava os limites da razão, ao mesmo tempo que legitimava
os direitos das emoções. Segundo Bonilha, a fé, ao contrário da razão, insufla
dúvidas no pensamento dos fracos e desperta reforços de energia nos ânimos dos
56
vencidos (...). Como se sabe, a modernidade anunciou o triunfo da razão, idéia
essencial da modernidade que representou a substituição de Deus pela Ciência. As
crenças religiosas foram relegadas à vida privada. A razão fez tábula rasa da
tradição secularmente fundada no predomínio das idéias e dos valores cristão-
medievais que submetiam o destino dos homens e também das formas de
organizações sociais e políticas fundadas na crença e no domínio dos costumes.
Bonilha, sujeito da modernidade, vivia sob o signo de uma era onde
permeia a transitoriedade, a incerteza, o fugidio, ou seja, a angústia da falta de
perspectivas, da insegurança com o amanhã. O medo diante da ciência, da sua
teimosia em desejar substituir o criador; o ceticismo diante do progresso; a
sensação de que perdemos os valores fundamentais que dão coesão à vida em
sociedade, etc., são questões próprias desse homem moderno.
Podemos sugerir que Bonilha na crença uma força se contrapondo à
ciência. Seu artigo faz um apelo aos que acreditam na doença como a cura de São
José dos Campos. D nomear o seu artigo com o tulo: a fraqueza da
incredulidade. Na edição de 1924 do Correio Joseense, o nome de Bonilha aparece
na autoria de alguns versos. O tom das palavras parece-nos desanimador:
Na estrada devagar e a vagos passos
Os annos vêm chegando vingativos
Como as ferrugens vão mordendo os aços
Também os tempos vão gastando os vivos
Ninguém escapa.
Desgraçados braços
Deitam, por terra os ideaes festivos
Quantos amores feitos em pedaços
E mallogrados sonhos fugitivos...
Porque o relógio nossas vidas marcas
57
Vinga-se o tempo em lhe gastar a corda
Como as maretas vão roendo à borda.
Tende cuidado, o grande fuso borda
Com nossa lã, nesse tear da parca,
O eterno sonno de quem nunca acorda.
Elisiário Bonilha (Correio Joseense, 10/08/1924).
A citação do nome de Gustave Le Bon no Almanaque de 1922 é
questionadora. Indagamos sobre sua importância para os joseenses. Investigamos
sobre o gaulês. Em "As opiniões e as crenças", teoria da persuasão, Le Bon, médico
francês, que se situa na extrema direita do pensamento político de início do século
XX, explicou o papel do prazer e da dor, para então avaliar as características do
consciente e inconsciente. Apresentou as várias formas de lógica: biológica,
afetiva, coletiva, mística e racional, asseguradas pela eficiente coordenação das
mídias (desde o sistema escolar até o jornalismo de notícias) para fabricar o
consentimento.
Para Le Bon, a crença e o conhecimento constituem dois modos de
atividades mentais muito distintos e de origem muito diferentes. Uma crença,
segundo Le Bon, é um ato de fé, de origem inconsciente, que nos força a admitir,
sem discussão, uma idéia, uma opinião, uma doutrina. As crenças religiosas e
ideológicas são exemplos permanentes. Na sua concepção, tudo que é aceito com fé
e por fé, pode ser qualificado como crença. Por sua vez, o conhecimento representa
uma aquisição consciente, construída por métodos exclusivamente racionais, como
a experiência, a observação, a prática. A experiência político / administrativa é,
neste caso, uma expressão do conhecimento.
Reveladora a forma como a teoria de Le Bon fundamentou o projeto
sanatorial e esteve presente nas bibliotecas dos intelectuais joseense do início do
século XX. Pode-se aferir que, o que ocorreu em SJC foi o fenômeno psicológico
58
do "contágio mental" que influenciou grupos e multidões, confluindo na lógica
coletiva. Os Almanaques de 1922, 35 e 54 m precisamente, este objetivo: o de
instrumentalizar a propaganda, que, segundo Le Bon, os meios de comunicação
injetam nas pessoas um veneno contra o qual eles não têm defesa." Enquanto isso,
o teatro São José exibia, em 1924, os filmes “O poder da fé”, com Dustin Farnum e
“Os tempos mudam” (Correio Joseense, 29/06/1924).
Comprometida com a lógica formal, a população consentida permitiu a
gestão governamental de opiniões. O projeto só precisaria ser legitimado pela
identificação da população. E isso se deu por meio da formalização e ritualização
caracterizada pela imposição da repetição. Nos almanaques, nos periódicos
semanais e no discurso político, a nica gerava em torno da idéia que se queria
legitimar: a São José Sanatorial.
Apesar de sua frágil economia, a cidade de São José, inscrita em realidade
histórica diferente das grandes cidades brasileiras, também foi palco de operações
urbanísticas. A questão está posta: se as intervenções foram induzidas pelo
desenvolvimento econômico que demandou transformações no espaço da produção
e circulação das mercadorias, como entender as mudanças do espaço joseense
sofridas no início do século XX? A quais interesses estava ligado o projeto
modernizador? De onde vinham os recursos? Que grupos empreenderam as
mudanças? Qual o teor do discurso modernizador? Sua política também estabeleceu
a segregação social?
As respostas a essas questões nos ligam a um perfil da cidade que vai se
esboçando no início do século XX. Pelas características delineadas pela cidade, ela
vai se tornando, ao longo do tempo, um importante centro de tratamento da
tuberculose. Argumentava-se que as adequadas condições climáticas e naturais da
59
cidade eram favoráveis ao tratamento da moléstia. A localização estratégica de São
José permitia que a cidade se aproveitasse das rebarbas de doentes que buscavam
Campos do Jordão, até então, um dos mais importantes pólos de atração para cura
de tuberculosos. O roteiro a Campos incluía, necessariamente, a passagem por São
José.
Atraindo um fluxo de doentes que iam em direção a Serra, São José acabou
encontrando na doença, a possibilidade de reerguimento da sua economia. Em
1922, foi diagnosticado que a causa da paralisação do desenvolvimento da cidade
era
a falta de estabelecimentos industriaes fabris de certo vulto, capazes de crear uma
forte população operária. Outras cidades, mais ou menos nas condições da nossa,
de muito que contam com a existência de taes estabelecimentos, possuem as
suas fábricas em plena actividade, dando trabalho compensador a centenas e
milhares de pessoas (Correio Joseense, 04/06/1922).
Esse discurso desanimador foi substituído, a partir de 1930, por outro, mais
otimista e promissor. Na falta dos estabelecimentos fabris, o doente e a tuberculose
acabaram se tornando um grande negócio, a ponto do prefeito sanitário dr. Jorge
Rui Dória, em 1930, argumentar: "não precisamos de máquinas. Isso é para
Taubaté e Jacareí. Precisamos é de doentes.... Essa é a nossa indústria" (Bondesan,
1996: 31). Indústria que se beneficiava, inclusive, do monopólio da morte. O
projeto de Lei de 18 de março de 1930 concedia exclusividade do serviço funerário
na cidade e município à Santa Casa de Misericórdia de São José dos Campos. Esse
projeto garantia
à Santa Casa o monopólio sobre o comércio da morte. Somente a mesma poderia
fabricar caixões e artigos funerários e vendê-los, estabelecer o serviço de
transporte funerário. A concessionária podia contratar o serviço funerário de
terceiros, mas durante a concessão (período de 30 anos), a Câmara não
concederia licença para a fabricação e comércio de artigos funerários e caixões
60
mortuários, bem como o transporte fúnebre (Ata da Câmara Municipal de São
José dos Campos, 1930: 12).
A vocação sanatorial de São José dos Campos fez surgir um comércio em
torno da morte. Em 1924, ano da inauguração do sanatório Vicentina Aranha, a
Câmara Municipal autorizou o prefeito, pela lei n. 142, a ampliar a área do
cemitério
até o alinhamento das ruas Francisco Raphael e Antônio Saes, aproveitando os
terrenos da praça fronteira a necrópole, promovendo a construcção dos
respectivos muros de fecho, e dividindo o terreno no acrescido com essa
incorporação em quadras para sepulturas de primeira, segunda e terceira classe
(Correio Joseense. 27/01/1924).
A lei municipal número 145, de abril de 1924 isentava do imposto de
indústria e profissão pelo prazo de 10 anos os estabelecimentos funerários que
forem fundados na cidade (Correio Joseense, 27/04/1924). Além da expansão do
cemitério, fábricas de mosaicos e produtos cerâmicos, assim como túmulos de
mármore foram instalados na cidade (Ata da Câmara Municipal de São José dos
Campos, 15/09/1928).
Num artigo publicado no jornal Correio Joseense em 1925, o autor
registrou suas impressões sobre a cidade. Percebe o retardado progresso industrial
da região, comparado com outras cidades paulistas. No entanto, o desenvolvimento
que a cidade estava tendo naquele tempo surpreendia o articulista (Correio
Joseense, 12/03/1925). Vista como uma localidade de recursos indiscutíveis, o
comércio era percebido como fonte de onde emana todo o desenvolvimento e
progresso que o articulista contempla com satisfação. O anônimo joseense,
otimista, projeta o futuro de São José dos Campos:
com tantas condições naturaes de riqueza, imagine-se o que será esta cidade
61
quando o surto industrial fizer a sua entrada triumphal nestas paragens, attraindo
gente ávida de trabalho e que viera contribuir para a expansão da nossa cidade e
para a intensidade do seu movimento social, transformando São José dos Campos
em uma das principais cidades paulista... (Correio Joseense, 12/03/1925).
Essa concepção de progresso do autor estava associada ao comércio
atrelado, por sua vez, à doença e à morte. Muitos agentes ligados a seguradoras de
vida, como a companhia Ítalo-Brasileira de Seguros Geraes, com sede em São
Paulo, buscavam o promissor mercado de São José (Correio Joseense, 09/07/1925).
Num amplo e sistemático relatório sobre as condições da estância climática
e hidromineral produzido pelo Departamento de Saúde Pública do Estado de São
Paulo, as considerações dos especialistas sanitários não eram muito animadoras.
Nas considerações finais do relatório foram registradas as seguintes análises:
Pelo censo procedido durante o mês de julho p. passado e agosto corrente (de
1944) verificamos que São José dos Campos é um foco ativo de tuberculose, pois
que tendo uma população de 12.551 habitantes na sua sede, tem ela 36 casas de
tuberculose pulmonar. Estes casos são genuinamente de indivíduos que em São
José dos Campos adquiriram a doença. A imigração de doentes atacados de
tuberculose pulmonar de outros municípios obrigam os habitantes da sede a viver
em promiscuidade com aludidos doentes, os quais conforme demonstra a planta
que anexamos ao presente trabalho acham-se localizados por toda a cidade
(Flório, 1944: 58).
Fenômeno singular no Brasil, o doente da fase sanatorial joseense vai ser
atraído para o espaço urbano central, espaço que receberá, graças ao capital oriundo
da doença e de seus imigrantes, uma atenção maior do poder público, viabilizando
e sustentando a modernização da cidade. A fase sanatorial joseense privilegiou o
espaço central da cidade, modernizando-o sob os auspícios da doença. Foi
justamente a doença que retirou de São José dos Campos o status de cidade morta.
De acordo com Simone Lessa, as duas ditaduras brasileiras estabeleceram
62
grandes marcos de mudança para São José dos Campos. Para a autora, a
intervenção do Estado na cidade foi aparentemente maior que nas regiões de
Campinas, Baixada Santista e mesmo na capital. Um dos marcos dessa intervenção
foi o período sanatorial, que deixou afluir para a cidade pobres e doentes,
estimulados por uma política do Estado, associado à filantropia. A crise urbana,
oriunda desse fenômeno social, ativou políticas e investimentos públicos e privados
que transformaram a forma urbana e estabeleceram um novo lugar para São José
dos Campos na divisão social e territorial do Trabalho e no processo de
descentralização dos problemas urbanos da capital paulistana” (Lessa, 2001: 18-
19). Os doentes, que as metrópoles temiam e tentavam isolar, foram acolhidos por
São José dos Campos e foi a sua existência em massa no espaço joseense que
possibilitou ao município reivindicar verbas estaduais para empreender as reformas
modernizadoras do espaço urbano.
As metrópoles exercem influência em termos funcionais, econômicas e
sociais, num dado conjunto territorial. Isto implica sua inserção numa rede urbana
em cujo interior ela representa um dos pontos fortes, dominando e gerando outras
unidades e estando ela mesma sob o controle de uma unidade de regulação de nível
superior (Castells, 1983: 58). , na verdade, uma interdependência das atividades,
das funções e dos grupos entre as grandes cidades centrais e o território
circunvizinho.
Com Vargas, São José dos Campos passou a ser Estância Climatérica,
recebendo cada vez mais doentes e, sobretudo, investimentos estatais. A essa
política estratégica governamental, Simone Lessa define como política territorial
desenvolvimentista (Idem: 22). O investimento do Estado na cidade sanatorial
criou as bases da infra-estrutura que viabilizaram a cidade industrial moderna.
63
Os benefícios da construção da Dutra e do Centro Técnico Aeroespacial
deram ânimo à região, sustentada pelo Plano de Reerguimento do Vale do Paraíba
cujo IAC - Instituto Agrônomo de Campinas, a pedido do governador do Estado de
São Paulo. A proposta era desenvolver o progresso industrial e material do país,
formulando políticas setoriais de industrialização. Manejando a política econômica,
o estado brasileiro agia no sentido de institucionalizar e organizar os mercados de
trabalho. (Cano, 1985)
O projeto de industrialização nacional levantou o problema (...) do limite
da capacidade de absorção da metrópole. O planejamento numa relação imbricada
entre união, Estado, municípios, diagnosticaram e apontaram soluções que (...)
redirecionaram os problemas” (Lessa, 2001: 21). Dentro da política
desenvolvimentista, promove-se a descentralização da metrópole paulista. Nesta
política, o Vale do Paraíba adquiriu um papel fundamental, o de se tornar apêndice
do crescimento urbano metropolitano. O papel a ser desempenhado por São José
Campos, estrategicamente colocada no caminho da capital paulistana, será o de
acolher os tuberculosos que excediam na cidade de São Paulo (Idem: 21).
Dessa forma, os doentes foram retirados do principal centro urbano-
industrial do país e alojados no interior, afastando da capital o risco que
representavam. Foi graças a esta dispersão da metrópole que São Jodos Campos
conseguiu investimentos em infra-estruturas a ponto de se tornar uma das mais
importantes cidades sanatoriais do Brasil. Em 1933, falava-se de um projeto que
interligaria a estrada de Campos do Jordão, a São José dos Campos e a
Caraguatatuba, criando três estações de clima: a de grande, a média altitude e uma
futura estação marítima. O primeiro passo, portanto, seria a Prefeitura Sanitária na
cidade, o que veio a acontecer em 1935 (Boletim Médico: outubro de 1933).
64
Antes mesmo de ser decretada Estância, a cidade de São José dos Campos
contava com 360 leitos para tuberculosos, distribuídos em cinco sanatórios. Em
1935, São José dos Campos e Campos do Jordão foram responsáveis por 75,8% dos
leitos para tuberculose no Estado de São Paulo (apud Vianna, 2004:135). Neste
período, das 36 cidades sanatoriais, 18 eram capitais e das 18 restantes, nove
localizavam-se em São Paulo e cinco no Rio de Janeiro. As cidades de o Paulo,
Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Campos do Jordão e São José dos
Campos possuíam 49% dos estabelecimentos e 70% dos leitos do país (Idem).
Tab.01 : Leitos hospitalares para tuberculosos no Estado de São Paulo em 1935
Fonte: Apud. Vianna, 2004:136
Município Hospital Leitos gratuitos Leitos
pensionistas
Total de
leitos
Campos Jordão
Sanatório Santa Cruz 43 34 77
Abrigo S.V.de Paulo 25 - 25
Sanatório São Paulo 53 24 77
Sanatório M.Auxiliadora 29 09 38
Assoc.San. Populares 47 22 69
Sanatório de Santos 48 - 48
Sanatório Ebenezer 22 10 32
Sanatório S. Cristóvão 08 24 32
Pensionato D. Providência 21 24 45
Total Campos de Jordão 296
(66,8%)
147
(33,2%)
443
(100%)
São J Campos
Sanatório Maria Imaculada
22
25
47
Sanatório V. Aranha 80 50 130
Sanatório Ezra (Em construção) 36 - 36
Sanatório Ruy Dória - 88 88
Sanatório Vila Samaritana 39 - 39
Total S José dos Campos 177
( 52,1%)
163
(47,9%)
340
(100%)
Piracicaba
Sanatório S.Luiz (fechado) 20 - 20
Tremembé
Empresa San. Tremembé - 29 29
65
Capital
Hospital S. Luiz Gonzaga 104 - 104
Santos
Pavilhão de Tuberculosos Santa
Casa
97 - 97
Total 694
(67,1%)
339
(32,9%)
1033
(100%)
Em 1938, em decorrência do título que ostentava, São José dos Campos
recebeu do Estado um considerável montante, notadamente depois da promulgação
da Lei de Reerguimento do Vale do Paraíba. Inscrita nos primeiros momentos do
Estado Novo de Vargas, essa política correspondia às promessas de progresso
nacional, o que entusiasmou a população joseense, despojada dos benefícios da
“civilização moderna”.
A expectativa dos saldos positivos advindos do resultado do projeto
ampliava “a legião de simpatizantes da Ditadura alimentando os anseios coletivos e
legitimando as medidas impostas pelo governo golpista” (Bertolli Filho, 1996:13).
Para Simone Lessa, as medidas adotadas após essa lei de 1938 tiveram grande
importância para o processo de transformação de São José em pólo regional. A
municipalidade passou a ter condições para conceder benefícios às indústrias,
cerâmicas e tecelagens e a adotar uma política de ocupação ordenada do território
(Lessa, 2001: 79).
No período da ditadura Militar foi criado o CODIVAP (Consórcio de
Desenvolvimento Integrado do Vale do Paraíba) e o Macro-Eixo, permitindo a
instalação das transnacionais; da indústria bélica e da especulação imobiliária.
Neste período, a cidade se expandiu. Novos bairros, ricos e pobres, foram criados,
para alojar a demanda de força de trabalho na região (Idem: 19).
Foi, portanto, depois de 1935 que São José dos Campos teve melhor
66
condições de administrar sua receita e concretizar o ideário higienista e sanitário do
município, que exigia a limpeza” do espaço urbano. Neste momento, a prefeitura
sanitária, depois de assegurar o título de Estância climática à municipalidade,
passou a receber um crédito especial que
deveria dotar a cidade de hospitais populares, casas de cura e de repouso,
ambulatórios e demais serviços técnicos e especializados. A incumbência do
corpo administrativo ia desde fiscalizar hotéis e casas de pensão, orientar as
novas construções e aparelhá-las com os requisitos modernos de aeração para o
melhor e máximo aproveitamento de suas condições climatéricas (Correio
Joseense: 17/03/1935).
O prefeito passava a ser nomeado pelo interventor federal assumindo
múltiplas atribuições a fim de empreender os projetos de organização e
modernização do espaço. Estavam nas atribuições do prefeito:
A defesa das condições do meio physico e, em especial, das matas e nascentes de
águas potáveis; a organização de um plano geral de urbanização, em que sejam
determinados: o perímetro dentro do qual somente serão proporcionados, pelo
poder público, os serviços de água, esgotos, illuminação e pavimentação; as
zonas ruraes, residenciaes e as destinadas ao commércio e indústria; os espaços
livres destinados a ruas, praças, jardins, bosques, praças de esporte, casinos e
sanatórios; os locais destinados a edifícios para a installação de serviços públicos;
a organização do programma annual de melhoramentos; o incentivo da pequena
agricultura, da pequena indústria e do pequeno commércio necessário ao
abastecimento e apparelhamento da estância (Idem).
A Estância Climática também passou a ser no mesmo ano (1935), Estância
Hidromineral. No entanto, as constantes reclamações da população registradas no
Correio Joseense denunciavam que o se podia contar muito com a ajuda da água,
que deixava, por longos períodos, a cidade na mais completa seca. Para assegurar o
projeto sanatorial, o problema de abastecimento d`água deveria ser sanado.
3
3
Por meio da pesquisa de Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2007), constatamos que o
problema d’água no Brasil era uma característica de grande parte da vida paulistana na
época.
67
Fig. 03: Decreto-Lei que orça despesa da Estância Hidromineral e Climática de São
José dos Campos
Fonte: Flório, 1944
68
A história da água em São José dos Campos passou por caminhos
tortuosos. Tudo começou com o inacabado e deficiente serviço de abastecimento de
água inaugurado em 1909, que captava as elevadas águas da Boa Vista para o
centro da cidade. Em 1927, foi feito um relatório de visita às obras de ampliação do
serviço de água de São José feito por Adhemar Pereira de Barros, interventor
Federal de São Paulo, com fotos registrando o histórico momento em que a cidade
passava a ser abastecida pela água que descia a serra, através do manancial da Boa
Vista.
Fig. 04: Caixas de captação de águas para abastecimento da cidade
Fonte:Amaral, 1930
69
Em 1933, um parecer estabeleceu que “a água do manancial do B. Vista era
de qualidade. O exame bacteriológico feito pelo Laboratório da Repartição das
Águas e Esgotos acusou a presença de 10.000 colis (bacilos) por 100 centímetros
cúbicos, o que a colocou entre as águas de péssima qualidade e (que, segundo
consta), muito deveria ter sido considerada pelas autoridades sanitárias como
imprópria para o consumo” (Correio Joseense, 1933). Além disso, o sistema não
dava conta de abastecer uma população que crescia vertiginosamente, além disso, o
sistema de abastecimento era interrompido com os constantes desabamentos dos
morros que entupiam os canos.
Apesar dos problemas enfrentados, as águas da Boa Vista abasteceram a
população joseense a 1937, quando o processo de saneamento e higienização,
encampado pelo governo do estado, colocou em dúvida a salubridade da água
consumida na cidade, em decorrência do título que a cidade recebeu de Estância
Climatérica. A Comissão de Saneamento, ligada à Secretaria da Agricultura, criada
pelo governo do Estado, ficava responsável pelas obras de canalização de água e
construção de rede de esgotos nos municípios. Foi essa Comissão que condenou as
águas da B. Vista. Pensou-se em captar as águas do Rio Paraíba, tratá-la com cloro,
decantá-la e filtrá-la. Esse projeto gerou uma resistência por parte da população que
recusou as águas do rio por considerá-la “provida de um rio poluído por esgotos de
outras cidades” (Correio Joseense, 06/06/1937).
Num verdadeiro impasse, os órgãos competentes compravam briga com a
população, por estas desenvolverem “um fetichismo pelas águas de fontes
puríssimas” (Idem, Ibidem). A política de modernização empreendida pelo Estado
veio acompanhada de uma forte política sanitarista de intervenção urbana. A
adoção desse despotismo sanitário acabou por limitar os poderes da
municipalidade. É o que se percebe com relação à querela das águas em São José.
70
A urgência dos serviços públicos implicou uma marginalização do poder local e
uma proeminência dos poderes estadual e central. Estes, rapidamente impuseram as
soluções.
A Comissão das Águas alegava que era “um erro abandonar águas
próximas de tratamento fácil para buscar a custa de sacrifícios enormes, águas altas,
de cabeceiras, águas de regimes incertos e quase sempre insuficientes só pela
esperança e sem fundamento de que sejam mais puras que as outras” (Idem).
Mas a população, por sua vez, resistia à modernidade, mantendo-se fiel à captação
das águas da Boa Vista.
Essa peleja se estendeu por um bom tempo. Resolvida, em parte, essa
questão, surgia um novo embate. Agora entre a prefeitura e o Departamento das
municipalidades. Segundo consta, o prefeito sanitário havia embargado as obras
porque o técnico do Departamento das Municipalidades “pretendia construir,
justamente no largo da Matriz, uma torre de 26 metros de altura por 8 metros de
largura, prejudicando não aquela bela praça na sua área como na sua estética”
(Correio Joseense, 09/01/1938).
Os postes de ferro da empresa Força e Luz também sofreram sanções da
população que exigiu a sua substituição pelos postes de madeira. Em 24 de janeiro
de 1924, esta empresa privada tentou instalar sua parafernália elétrica na cidade,
incomodando a população. A modernização implicava modificações importantes no
espaço, trazendo consigo fortes elementos do simbolismo urbano. A importância
dada às torres e a insistência em introduzir visivelmente materiais funcionais, bem
como a ostentação de certas construções “parecem marcar o espaço com uma certa
modernidade tecnocrática, centrada na exibição do desempenho técnico da
construção em altura” (Castells, 1983: 435).
71
Fig. 05: A Igreja Matriz, década de 1930.
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
Giuliano Della Pergola o nome de “decoração urbana” às formas e
elementos de modernização da cidade. Essa expressão, deixa claro o autor, “diz
respeito a cada conjunto que traz conforto, serviços prestados à coletividade e
estratagemas que possibilitam à população adaptar-se melhor à cidade” (Della
Pergola, 2000: 92-3). Assim, fazem parte das ‘decorações urbanas’: as cabinas
72
telefônicas, as lixeiras, as caixas de correio, os serviços de limpeza urbana, postes de
luz elétrica e de iluminação pública, a sinalização do trânsito, etc.
Adverte o autor que “cada serviço público é também um mbolo da
autoridade local, o que encerra uma indireta e implícita exigência de legitimação e
de religitimação” (Idem). Uma coisa é certa: a moderna decoração da cidade,
concentrada no centro urbano de São José dos Campos, não agradava o estilo
provinciano da população. À promessa da modernidade e eficiência dos serviços
estaduais contrapunha-se uma pretensa morosidade colonial” da cidade e de seus
poderes.
Historicamente, a paisagem das cidades brasileiras foi estruturada pela praça
principal, geralmente aquela fronteiriça à Igreja Matriz, grande símbolo da cidade. A
torre da Igreja Matriz, segundo Landim, ainda funciona como um marco referencial
urbano, nos permitindo “uma orientação visual e formal da localização da área
central no skyline da cidade” (Landim, 2004: 71).
Enquanto os serviços não se concluíam, a população ia consumindo a água
do Paraíba “com todas as suas impurezas e aspectos repugnantes” (Correio Joseense,
06/03/1938). A prefeitura defendia que a água fosse retirada do rio Paraíba, em
ponto mais distanciado e livre da boca do esgoto, e. procurando desviar para os
lados dos Pinheiros as instalações para a captação da água, por ser ali o precioso
líquido mais puro, livre de infiltrações a que está sujeita a margem do Paraíba na sua
parte baixa, na margem que circunda Santana (Correio Joseense, 06/06/1937).
Encaminhando o local para a instalação do novo projeto, o prefeito tentava livrar a
Praça da matriz da grande parafernália hídrica que queriam instalar por ali. Em
1944, um novo Projeto foi apresentado ao prefeito para solucionar o abastecimento
de água da cidade.
73
Fig. 06: Ampliação do Serviço de Águas
Fonte: Flório, 1944.
Essas contendas locais nos conduzem aos conflitos da política da época, às
características da administração municipal de então e ao controle dos serviços
públicos por empresas estrangeiras. Como observamos, nos embates entre os
poderes executivo e legislativo, no âmbito municipal, aparecem questões estruturais
da sociedade e do estado no Brasil, onde as heranças arcaicas e as resistências à
mudança permitem identificar as contradições que dificultavam a modernização do
país.
Através delas somos levados a identificar um imaginário burguês de fim de
século, compartilhado pelas elites brasileiras, então voltadas para a implementação
de um novo projeto civilizatório. O projeto republicano emergia marcado pelo velho
desejo de ocidentalização do país e de sua inserção no cenário mundial da
civilização de matriz européia.
A indignação da população com relação ao problema da falta d`água
somava-se à indignação da manutenção do título de estância climática e
hidromineral da cidade. Num artigo publicado no Correio Joseense, o articulista,
revoltado com o insolúvel problema da água”, reclamava enfaticamente: “E ainda
deram a nossa terra o pomposo título de Estância hidromineral! Que heresia!”
74
(Correio Joseense, 06 /03/1938).
Enquanto isso, as carroças com tanques cilíndricos percorriam a cidade
fornecendo “o precioso líquido”, passando, inclusive pelos principais sanatórios. Em
alguns existiam caixa d`água com bombas, que garantiam, a duras penas, o consumo
local. A maioria das casas se virava com as cisternas escavadas nos quintais, latrinas
e fossas que causavam febre tifóide e disenteria na população (Souza & Soares,
2002; Santa’Anna: 2007).
Fig. 07: Carroça-tanque
Fonte: Amaral, 1930
Na falta da água, a “limpeza” acabava se dando de outra forma. Casebres
75
habitados pela população pobre, que representavam perigos à salubridade da
comunidade, foram destruídos para dar lugar às largas avenidas, aos espaços
destinados aos ineficientes e inconclusos projetos de abastecimento d’água, de
esgoto e de iluminação. Aliados da administração local, os médicos, textualmente,
acabavam registrando no Boletim Médico a tese da necessidade de uma cidade
higienizada. Endossavam a salubridade do espaço e os perigos das más construções
para a saúde pública. Apontavam no Boletim, inclusive, os destinos que deveriam
ter os moradores “insalubres”, tudo em defesa dos serviços de higiene e assistência
pública modernizadora.
Fig. 08: Rua XV de Novembro na década de 1940.
Fonte: Arquivo Público do Município
Utilizando-se de ironia, o médico sanitarista definiu o rumo que dariam aos
76
tísicos que não levassem em conta as terapias e receituários médicos. O médico
colaboracionista, num descuido ético, exigindo disciplina, mostrou o ar que o doente
respiraria, caso usasse apenas o pneumotórax como indicação do tratamento
4
:
O pneumothorax vae ainda melhor se o doente mudar de bairro, passar para um
ponto mais alto, de ar mais puro, preferência para certos bairros de clima (Meu
Deus, que dissemos!) (sic.) melhor. Se internar o doente num sanatório, o
pneumothorax será melhor controlado e a disciplina do tratamento importa com
maiores garantias. E se tudo isso for feito em um clima bom, largamente
experimentado no tratamento pulmonar, não serão evidentemente muito maiores as
possibilidades da cura? (Boletim Médico, outubro e novembro / 1935).
No informativo, assegurava-se à população que seriam criados
dispositivos legaes para impedir a construção de casebres, anti-higiênicos e o
aproveitamento de habitações infectas para a hospedagem dos doentes. (Bem
informados, diziam que) Há muito terreno fora da zona sanatorial para essas
construções. Cada um tem o direito de habitar do modo que melhor lhe parecer,
mas não tem o de constituir perigo ou prejuízo para os que não pensam do mesmo
modo (Boletim Médico, 03/06/1933).
“As largas avenidas, bem calçadas, com parques bem tratados”, “a água
abundante e purificada”, “os esgotos eficientes”, eram adjetivos que
potencializavam, além da realidade, os dotes da cidade. A apropriada infra-estrutura
da cidade era imensamente endossada no Boletim, com o propósito de se divulgar as
múltiplas vantagens do clima de São José para cura da tuberculose, em detrimento
de climas de montanha. Na concepção dos médicos de São José dos Campos, o
clima de montanha “não se presta à localização de um sanatório de Associação de
classe”.
5
4
Recomendava-se o clima, ao lado do repouso, da aeração, da colapsotherapia, da disciplina
sanatorial, a aurotherapia, etc. Boletim Médico, N.º 28-29, outubro e novembro de 1935 / Arquivo
Público do Município de SJC- Arquivo nº 4890.
5
Em 1930, havia um movimento das empresas e associações de classe para tratar do problema da
tuberculose criando estabelecimento de cura. O pavilhão para os empregados da Cia Paulista, no
77
O que se recomendava “para a construção dos sanatórios populares das
associações de classe ou beneficência era um clima de média altitude, bem
experimentado, com comunicações ceis, de custo de vida razoável e não distando
do centro que se propõe a servir” (Boletim Médico, 06/1933). São José, portanto,
reunia todas essas condições favoráveis para pleitear a vinda dos tísicos,
principalmente os de baixa renda, aceitos desde que viessem com guia do hospital
central, em São Paulo (Idem).
Embora São José recebesse o título de Estância Climatérica em 12 de março
de 1935, no Boletim Médico, edição mero três, de junho de 1933, já se falava da
condição da cidade como estância climatérica. Os médicos, inclusive, juntamente
com o Diretor do Departamento de Administração Municipal, pleiteavam, por esta
época, a Prefeitura Sanitária. Nesta edição, fica clara a pauta em discussão:
esclarecer à população a respeito do que seria a Prefeitura sanitária. Esclarece o
Boletim que
não se trata absolutamente, como muitos julgam, de uma forma de sobrecarregar a
população com novos impostos acima de sua capacidade contribuente (sic) ou de
forçá-la a despesas incompatíveis com o angustioso momento econômico.
Também não é seu fim, como muitos pensam, entregar a cidade aos tuberculosos
(Boletim Médico, 12 /03/1935).
Transparece, nessa fala, que o discurso não agradava a todos, contrariando,
dessa forma, a fala de defesa da Prefeitura sanitária. Parece-nos que o medo é algo
evidente: medo dos altos impostos e dos doentes que viriam povoar a cidade.
Tentando acalmar os ânimos daqueles que poderiam “jogar areia” no almejado
destino da cidade sanatorial, os médicos trataram logo de explicar que “a presença
Sanatório Vicentina Aranha, foi a primeira realização dessa campanha (B. Médico, 1930, Arquivo.
Nº 4876).
78
de um engenheiro especializado em questões sanitárias, com a assistência médica
indispensável, será a garantia de uma orientação perfeita dos serviços municipaes
(...). Os serviços de higiene e assistência pública serão também ampliados e
aperfeiçoados” (Boletim Médico, 12/03/1935). Deixam claro, portanto, aos
amedrontados, que a cidade não ficaria entregue aos tuberculosos. Grande falácia!
A rede de esgotos e a água encanada, na visão dos médicos do Boletim,
viriam com a Prefeitura sanitária. “Dentro desse regimem administrativo (tratavam
de explicar os médicos), o município verá aplicados, em seu benefício, os recursos
municipaes, accrescidos dos que, no regimen actual, o Estado arrecada, em São Jo
dos Campos” (Boletim Médico, 06/1933). Contava-se com um montante de 800
contos anuais, deduzidos apenas dos vencimentos dos funcionários das várias
repartições da Prefeitura Sanitária, transformados em benefícios que, segundo os
médicos, “só podem recusar os interesseiros e os ignorantes” (Idem).
Embora corajosos na investida de transformar a prefeitura de São José em
condições sanitárias, os médicos temiam que o prefeito sanitário tomasse partido da
posição para criar um esquema de interesses pessoais e políticos:
É preciso, entretanto, reconhecer quão justificado é o temor que muitos têm de que
a Prefeitura Sanitária seja transformada pelo filhotismo e pela falsa noção que
muita gente tem da caridade, em uma espécie de retiro para os que, affectados em
suas saúde, quizerem (sic) repartir os seus padecimentos com o interesse público.
E é também o que tememos... (Boletim Médico, 06/1933).
Se foram os médicos os indivíduos diretamente responsáveis pela promoção
da cidade em Estância, hospedeira da tuberculose” (Boletim Médico, 10/1933), era
justificável a preocupação do segmento com a política da administração sanitária
adotada para o município. Pretendia-se evitar que atropelos ou interesses políticos
do prefeito viesse comprometer o projeto e tornar a ação dos médicos desacreditada
79
perante a população.
Tornava-se, necessário, portanto,
que desde logo sejam incluídos na própria lei de criação de nossa Prefeitura
Sanitária, dispositivos que vedem a admissão, em seus serviços, de pessoas que
não disponham da capacidade de trabalho sufficiente para os respectivos cargos.
esses dispositivos evitarão que esses cargos se transformem em sinecuras. E é,
exactamente, o que é preciso, a todo o transe, evitar para que não permaneçam no
papel, os planos grandiosos que traz em seu bojo a idéia de Prefeitura Sanitária. A
Redacção (Boletim Médico, 06/1933).
Defendem a idéia de que é possível administrar a doença com uma
organização técnica, dirigida por médicos e por engenheiros sanitários (Lopes, 1933.
Edição 3.). Acreditam que a organização sanitária de uma cidade de clima não
seja compatível com a existência de autoridades municipais leigas (Boletim Médico,
10/1933). Numa crítica feroz à política do então prefeito sanitário, que, ao que tudo
parece, não condizia com as necessidades do cargo, os médicos ressentem que a
doença tomasse proporções incontroláveis. Denunciavam que,
as medidas de proteção e higiene vem sendo victimas em S. José dos Campos de
injunções políticas, ou de outras origens, que lhes distroem toda efficiencia. É
facto incontestável que mesmo a simples fiscalisação de gêneros alimentícios,
sofre restrições importantíssimas nas cidades do interior, por conta de questões de
ordem política ou de camaradagem pessoal. Sem uma autoridade techinica, única e
indiscutível, emanada de outro ponto que não o meio local, onde a população e os
homens públicos que ella cria, vivem verdadeiramente à margem desses
problemas, desapercebidos do papel médico-social da cidade, como hospedeira da
tuberculose de todas as procedências, jamais se conseguirá em São José dos
Campos o centro sanitário que o Paulo não pode dispensar (Boletim
Médico,10/1933).
São José, neste momento, tornava-se um forte campo de conflito: a
Prefeitura, os médicos e a população não chegavam a um consenso sobre a dimensão
da vocação sanatorial da cidade. Duvidando da conduta dos administradores locais,
os médicos alfinetavam, denunciando que a falta de conhecimentos especializados e
80
imprescindíveis para a direção de um município de necessidades sanitárias
particulares como é São José dos Campos, trazem constantes embaraços à ação do
higienista e do engenheiro sanitário (Boletim Médico, 10/1933). Mais embaraçados
ficavam quando a sociedade denunciava que a infra-estrutura não condizia com o
defendido título pomposo de Estância Climatérica e Hidromineral, adquirido pela
blasfemada vocação sanatorial da cidade na lida com a tuberculose. (Idem, Ibidem)
Fig. 09 : Fachada do Centro de Saúde
Fonte: Amaral, 1930.
Todo este discurso se inscrevia num contexto em que o meio passou a ser
observado. O alastramento das epidemias levou a medicina a elaborar a teoria do
contágio desenvolvendo a idéia que a propagação das doenças se dava em função da
presença de um meio inadequado. Essa idéia, tão amplamente divulgada, passava,
81
no caso de São José dos Campos, a ser difundida pelos seus almanaques. O relatório
das potencialidades físicas da cidade, como o tipo de solo, a topografia, a direção
dos ventos, a presença de praias, os rios e os pântanos que os almanaques traziam
6
,
estava ligado à investigação das suas reais condições para a produção ou não das
doenças (Rolnik, 1997: 38).
A tese médica em voga considerava o ar e a água os principais veículos da
contaminação. Acreditava-se que os miasmas, emanações fétidas e pútridas, gerados
pela água podre e pelo ar insalubre, eram os responsáveis pela proliferação das
doenças. O espaço passou a ser investigado. Um cuidado maior foi dado aos
pântanos e aos lugares que acumulassem detritos, objetos, insetos e matérias em
decomposição, por serem consideradas fontes produtoras de miasmas (Rolnik,
Ibidem).
A idéia dos médicos, de montar um pólo sanatorial na cidade agradou
sobremaneira a administração pública contribuindo, dessa forma, para fixar a
população em terras joseenses e impedir a emigração da população agrícola para o
Oeste Paulista, que se delineava, na época, como o verdadeiro eldorado de
possibilidades. O teor da ata da sessão ordinária de fevereiro de 1913 revelou essa
preocupação: "em dispensa do interstício regimental foi aprovado nas três
discussões o projeto de lei estabelecendo medidas sobre o aliciamento de camaradas
da lavoura desse município, sendo enviado a promulgação” (Atas da Câmara
Municipal de São José dos Campos, 18/02/1913).
Nota registrada no Correio Joseense em 1920 novamente tratava de conter a
saída dos lavradores do município, o que causava grandes prejuízos à lavoura:
6
Foram produzidos em São Jodos Campos, de 1905 a 1954, cinco almanaques com cobertura
nacional.
82
De diversos pontos do Estado têm vindo a esta cidade, com o propósito de aliciar
empregados para a lavoura, várias pessoas que, não medindo as conseqüências de
seus actos, em desaccordo com as posturas municipaes, põem em execução os seus
planos seduzindo por meio de promessas pomposas os nossos rústicos
trabalhadores da roça, isto com grandes prejuízos para a nossa lavoura e para o
nosso município em geral (Correio Joseense, 08/02/1920: 03).
Novamente o aliciamento de mão-de-obra foi assunto na edição de fevereiro
de 1920:
O Cel João Cursino, prefeito municipal, officiou ao dr delegado de política,
pedindo o auxílio da polícia para a fiel execução da lei municipal N. 44 de 19 de
fevereiro de 1913, que estabelece medidas de defeza agrícola, dispondo contra o
aliciamento de trabalhadores ruraes, que ultimamente está sendo feito
desbragadamente por agenciadores de outros municípios do Oeste do estado.
Cumpre advertir que muitos dos nossos trabalhadores, que são seduzidos e
desviados das nossas lavouras, com promessas de grandes salários, uma vez
collocados na lavoura para onde vão, sugeitos (sic) a regimens a que não estão
habituados, em poucos dias ficam desesperados, e, sem recursos para regressarem
promptamente, por via férrea, seguem uns ae outros ficam a espera de que suas
famílias, seus ex-patrões e seus amigos que ficaram lhes mandem os meios de
poderem regressar (Correio Joseense, 15/02/1920).
A questão era tão grave que, em 1929, a mara Municipal estabelecia
“impostos sobre aqueles que aliciarem ou agenciarem trabalhadores rurais (...) de
modo a impedir que sejam eles conduzidos para fora do município, o que traz
grandes prejuízos e enormes dificuldades aos lavradores” (Ata da Câmara Municipal
de São José dos Campos, 30/07/1929). Um projeto de Lei determinava o valor do
imposto em 2:000$000. A recusa do pagamento implicaria em prisão incontinenti
(Idem).
Por força da determinação, nesta década foi criado o brasão
7
da cidade.
7
O Brasão de Armas de São Jo dos Campos, de autoria de Afonso de Taunay e José Wasth
Rodrigues, foi adotado pela lei municipal 180, de setembro de 1926. Seu desenho foi restaurado
83
Exibindo os supostos atributos dos ares e das terras de São José dos Campos, as
forças políticas joseenses se mergulhavam nas ínfimas condições naturais do
município. Ao mesmo, Cassiano Ricardo, um ilustre filho da terra, pensava em
publicar “A marcha para o Oeste”; versão mítica do Estado Nacional em que se faz
uma analogia entre a organização das bandeiras (século XVI) e a do Estado Novo.
Poucas eram as chances da municipalidade de atrair a força de trabalho para o
campo de São José.
Fig. 11: Brasão da cidade criado em 1926
O lema da cidade Aura terraque generosa”; "Generosos são meus ares e
minha terra" é uma idéia expressa que serve de guia ou de motivação para a cidade.
Os lemas, quando adaptados aos interesses locais, condensam valores que justificam
uma ação comum. Pela fraca força dos atributos naturais, os ares joseenses vão
dando espaço para a doença. A vocação sanatorial viria, portanto, atrair e manter
pela lei 19, de 26 de agosto de 1948, ratificado pela lei 2178 de 1970 e alterado pela lei
5248 de 1998.
84
uma população mais estável, que não via, na decadente produção agrícola, meios de
fixar morada e subsistir. Não se discutia, no momento que, com a criação da
prefeitura sanitária, o município perderia a sua autonomia, passando a ser submetida
à legislação do Estado. Uma vez decretada a prefeitura sanitária, não haveria mais
eleições de mara e o prefeito, agora nomeado, passaria a ter total liberdade para
administrar.
Somente em 1958 é que a cidade deixou de ter o prefeito nomeado, decisão
que foi revogada em 1970. Após o golpe militar, o município, tornado área de
segurança nacional, e ainda legalmente Estância Hidromineral, voltou a ficar sob a
intervenção do Estado sob direção de prefeitos novamente indicados.
Momentos após o decreto que criou a estância, o Correio Joseense de março
de 1935, trazia uma notícia dos setores da sociedade que se mostravam infelizes com
a intervenção política, uma vez que foi negado ao povo de o José dos Campos o
direito de se governar a si mesmo” (Correio Joseense, 24/03/1935). O articulista
deixou claro que não havia nada pessoal contra o prefeito, apenas se manifestou
“como filho desta terra, cumprindo um dever de consciência, defendendo o nosso
ponto de vista e, com elle, a autonomia política e administrativa que nos foi cassada,
em virtude da creação (sic) da Prefeitura sanitária” (Idem). Paradoxalmente, a saída
econômica, sustentada pela doença, implicou na perda de autonomia do município.
São José dos Campos, anônima até primeira década dos novecentos
começou, a partir daí, a ser reconhecida nacional e, inclusive, internacionalmente,
pelos resultados satisfatórios na cura da tuberculose. A busca da cidade pelos seus
ares milagrosos contra o bacilo de Koch, fez de São José dos Campos a cidade do
peito. Na verdade, o grande dote da cidade não estava nos seus campos, mas no seu
clima.
85
Enaltecido aos quatro ventos, as benéficies dos ares joseenses se
espalhavam pelo território nacional. Desde o início de 1900 a cidade era
procurada por pessoas que vinham se beneficiar da “bondade do clima” joseense. O
município tornou-se uma estação de tratamento, com importantes sanatórios,
principalmente entre 1935 e 1950, com coeficiente de mortalidade por tuberculose
atingindo valores de 1.489,31 por 100.000 habitantes, muito superiores aos
encontrados no município de São Paulo, no mesmo período, caracterizando grande
invasão de óbitos no município.
Destes óbitos prevaleceram os doentes do sexo masculino, na sua maioria,
lavradores. A faixa de 20 a 39 anos foi predominante em ambos os sexos. Ocorreu
maior freqüência de óbitos dos naturais do Estado de São Paulo, que também foi
responsável pela maior procedência. Dentre os estrangeiros, destacaram-se os
japoneses e os portugueses (Belculfiné, 2001).
A cidade de São José dos Campos era caracterizada por uma pobreza
crônica. Mesmo com poucos recursos, os forasteiros enfermos contribuíam para a
receita local, possibilitando incentivos econômicos e relativo incremento na renda da
cidade. A doença, tragédia particular para muitas famílias, foi também utilizada
como fator de desenvolvimento, pois lançou, a partir da cidade sanatorial, as bases
para a industrialização. De acordo com Paula Carnevale Vianna,
o planejamento urbano de 1961, realizado em parceria com a Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP considera que o processo de industrialização
tenha se iniciado com a fase sanatorial, tendo ambos convivido com funções
economicamente importantes nas décadas de 1940-50 (Vianna, 2004: 97).
No entanto, essa trajetória foi permeada de percalços. O jornal Correio
Joseense comumente endereçava suas críticas aos capitalistas que não viam na
86
cidade motivos para injetar seus capitais. Pouco atrativa para os empreendedores,
eram registradas denúncias nos jornais a esses “egoístas” homens de negócios.
Vivendo sob regime de pequenas e médias fazendas de café, constantemente em
crise, a São José do período imperial não conseguia reunir energias, políticas
engajadas suficientemente, para se fazer representar junto às forças nacionais, como
foi o caso das cidades vizinhas de Taubaté, Jacareí, Lorena e Bananal, bem
representadas pelos barões de café.
Esse panorama mudou, sobretudo, quando a cidade começou a ser procurada
pelos tuberculosos para tratamento de saúde, na virada do século XIX para o XX. A
idéia dos médicos, de montar um pólo sanatorial na cidade agradou sobremaneira a
administração pública contribuindo, dessa forma, para fixar a população em terras
joseenses e impedir a emigração da população agrícola para o Oeste Paulista. Nesta
época O oeste paulista se delineava como o verdadeiro eldorado de possibilidades
para a população agrícola desempregada de São José dos Campos. Conforme
podemos observar na tabela número 02, a população economicamente ativa do
município estava, majoritariamente, ligada à atividade agropecuária em 1920.
O teor da ata da sessão ordinária de fevereiro de 1913 revelou essa
preocupação: “em dispensa do interstício regimental foi aprovado nas três
discussões o projeto de lei estabelecendo medidas sobre o aliciamento de camaradas
da lavoura desse município, sendo enviada a promulgação. A vocação sanatorial
viria, portanto, atrair e manter uma população mais estável”.
87
Tab. 02: Distribuição da população economicamente ativa (PEA) do município de
São José dos Campos de 1920-70
Fonte: Vianna, 2004:88.
Ano Pop PEA Setor
Agropec. Indúst. Transp
Comum.
Com.
mercadoria
Adm.
pública
Prest.
serviço
Outras
ativs
1920 30.681 7.980 6.427 433 148 356 85 131
24,33 78,69 5,3 1,81 4,36 1,04 1,61
1940 36.279 12.489 7.917 2.195 353 685 391 791
47,3 29,98 8,31 1,34 2,59 3,13 3
1950 44.804 15.868 5.966 5.302 558 871 406 805
35,4 37,48 33,31 3,51 5,57 1,79 5,06
1960 78.994 23.478 5.008 8.105 10.365
30,49 21,33 34,52 44,15
1970 148.33 47.530 4.118 21.093 1.591 3.958 4.063 7.337 2.497
32,00 8,67 44,38 3,35 8,33 8,55 15,23 5,24
Além dos doentes, o projeto requeria mão-de-obra, sobretudo saudável,
embora tivesse se delineado pela pobreza. Ser pobre, mas trabalhador, passou a ser o
discurso legitimador. A riqueza, principalmente a egoísta, passava a ser condenada.
A linguagem do Semanário "A Caridade", jornal de cunho católico que circulava na
cidade em 1916 versava quase que unicamente sobre a valorização e apologia à
pobreza. Explicável, pois o projeto não teria sustentação se não fosse o trabalho dos
desfavorecidos, que se candidatariam às diferentes atividades profissionais
relacionadas à perigosa indústria movida pelos portadores do bacilo Kock. Em troca
do trabalho, arriscava-se a própria vida.
Fomos buscar em Le Bon a formulação teórica para se entender as
diferentes trocas efetuadas no momento de materialização do projeto. De acordo
com Le Bon, o interesse teve grande papel na formação das opiniões formadas. A
88
maior parte das coisas pode ser considerada sob pontos de vista muito diferentes:
interesse geral ou interesse particular, principalmente. O interesse possui, como a
paixão, o poder de transformar em verdade aquilo em que lhe é útil acreditar. O
interesse, segundo Le Bon,
é, pois, freqüentemente, mais útil do que a razão, mesmo em questões em que esta
deveria ser, aparentemente, o guia único. Em economia política, por exemplo, as
convicções são de tal modo inspiradas pelo interesse pessoal que se pode, em
geral, previamente saber, conforme a profissão de um indivíduo, se ele é partidário
ou não do livre câmbio. As variações de opinião obedecem naturalmente, às
variações do interesse. Em matéria política, o interesse pessoal constitui o
principal fator. Um indivíduo que, em certo momento, energicamente combateu o
imposto sobre a renda, com a mesma energia o defenderá mais, se conta ser
ministro. Os socialistas enriquecidos acabam, em geral, conservadores, e os
descontentes de um partido qualquer se transformam facilmente em socialistas.
Elisário Bonilha, dentista renomado na cidade e colaborador dos
almanaques produzidos no município era fiel leitor das idéias de Le Bon. Apostando
na validade do projeto sanatorial para alavancar a economia da cidade, usava d os
argumentos de Le Bon como forma de manifestar seu desabafo contra a inércia dos
políticos e influentes locais que não apostavam no projeto como saída da crise
vivida pela cidade. O desejo de Bonilha, evidenciado no discurso publicado no
Almanaque de 1922, era que a administração pública, pobres e doentes se juntassem
a uma causa comum.
A causa comum resumia-se em efetivar a proposta que reergueria a
economia de São José e a projetaria no cenário nacional. O interesse comum passou
a fundamentar a construção de uma identidade que se queria estabelecer. Essa
coesão "nacional" procurou criar uma idéia de territorialidade acima das diferenças e
das diversidades concretas que constituem essa sociedade. Lembremo-nos de
Hobsbawm, quando diz que "em seu processo de legitimação como forma de
justificar sua autonomia e poder, as nações (territorialidades) recorrem a essas
89
práticas simbólicas, (baseadas na coesão) procurando mostrá-las como algo com
raízes profundas num passado compartilhado por todos de tal forma que elas
apareçam comum ações naturais e sem historicidade" (Hobsbawm, 1984: 12).
Esse "pacto social" abriu o discurso em nome do povo e para o povo, que
caracterizou a política local, ao mesmo tempo comum e contraditória de debates e
ações em torno das disputas do poder. Como a soberania do povo não pode ser
representada, uma vez que alguns homens decidem, pensar, agir pelo povo, a
responsabilidade política vai se limitar inicialmente aos políticos, médicos,
urbanistas e comerciantes, ansiosos pela recuperação econômica joseense em bases
sanatoriais, conclamando doentes, pobres e médicos a participarem do projeto
comum.
Edmund Burke, autor de importantes textos políticos e estéticos, considerou,
no final do século XVIII, que, "no estado de rude natureza não é possível existir um
povo. Faz-se necessária a idéia de corporação, um constructo, portanto algo
totalmente artificial, uma ficção legal, ou seja, o contrato que forma a sociedade
acordado em comum consentimento" (Apud. Brescianni, 1998). A divulgação das
idéias via almanaques, revistas, jornais e vídeos, facilitaram a adesão ao pacto.
Bustos de médicos sanitaristas foram erigidos pela cidade para reverenciar
seus benfeitores e as figuras, relacionadas à área médica, mais precisamente
especialistas do aparelho respiratório, que a cidade tanto se orgulhava. "Os nossos
médicos", artigo do Almanaque de 1922, é contundente em afirmar o valor
inexplicável desses profissionais dentro do contexto da época
8
:
Quando o médico, bem compenetrado da sua elevada missão social, além de
8
Contentemo-nos apenas com uma dessas descrições para ilustrar a idéia, que a "rasgação de
sedas" norteia quase que todo o conteúdo do material.
90
personificar a sciencia, aninha (sic) no seu coração, sentimentos de caridade pelos
que soffrem, então o seu sacerdocio se reveste de uma aureola de luz divina,
espargindo raios de misericórdia christã.
O médico caridoso não é um profissional da arte de curar que faz da sua sciencia
objecto de mercantilidação; elle é um lapidário do bem que espalha a mãos cheias,
no altíssimo ministerio de aliviar as dores e estancar os soffrimentos,
espiritualisando, divinisando mesmo a sua nobre missão sobre a terra.
Deste quilate, dessa nobreza de sentimentos de bondade, de abnegação e de
altruísmo, são os três distintíssimos médicos que São Jo dos Campos, tem a
felicidade de possuir: Drs rio Nunes Galvão, Nelson Silveira D'Ávila e Gaspar
Barbosa de Rezende são tres acatados homens de sciencia, que exercem nesta
cidade o apostolado da medicina com verdadeiro espirito de caridade crhistã.
São bemfeitores da humanidade, phylanthropos na melhor expressão da palavra,
aos quaes o nosso povo deve-lhes os mais valiosos e extraordinarios serviços.
Por isso mesmo, os tres distinctos clinicos são bemquistos do povo, gozam de
geral estima da população e com justiça bem lhes assenta os nomes de grandes
benemeritos do povo.
Enfeixamos aqui o preito da nossa homenagem e da nossa sincera admiração e
amizade, aos tres illustres medicos, dignos pelos seus titulos de benemerencia da
estima e consideração públicas (Monteiro, 1922).
Essa elocubração apologética aos grandes feitos da trindade sanitarista
passaria desapercebida se não nos empenhássemos no cruzamento das fontes
históricas. Em estado de frenesi, foi-se percebendo, na leitura das Atas da Câmara de
1916, que aquela idolatria não era em vão, e que deveria ter algo mais além da
inocente e aparentemente exagerada admiração pelos médicos assistencialistas.
Cada leitura das fontes foi uma descoberta... Por elas, fica claro que a idéia
dos médicos, de montar um pólo sanatorial na cidade agradou sobremaneira a
administração pública contribuindo, dessa forma, para fixar a população em terras
joseenses e impedir a emigração da população agrícola para o Oeste paulista, que se
delineava, na época, como o verdadeiro eldorado de possibilidades. O teor da ata da
sessão ordinária de 18 de fevereiro de 1913 revelou essa preocupação: "em dispensa
do interstício regimental foi approvado nas tres discussões o projecto de lei
estabelecendo medidas sobre o alliciamento de camaradas da lavoura deste
municipio, sendo enviado a promulgação” (Atas da Câmara Municipal de São José
91
dos Campos, 18/02/1913). A vocação sanatorial viria, portanto, atrair e manter uma
população mais estável.
Contestando essa "natural" competência que arquitetaram para a cidade, o
memorialista, médico radiologista, Dr. Rubens Savastano, dizia, em 1998, com
relação ao clima e ao grande projeto sanatorial:
Sempre se falou que o clima favorecia, mas o clima, se você prestar atenção, não
difere das outras cidades do Vale do Paraíba, e não difere grandemente do clima
de São Paulo, de modo que, o mais importante é que aqui se constituiu um centro
de tratamento (...).
São José dos Campos, como um centro de tratamento da tuberculose começou com
um médico que foi o dr Mário Galvão. Ele ficou doente e se tratou em São Paulo
com o médico que era o mais renomado na ocasião, tisiólogo, professor da
Faculdade de Medicina, o dr. Clemente Ferreira, e se curou. Segundo o pessoal
antigo da época, foi ele quem sugeriu ao dr. Mário Galvão iniciar uma clínica para
tuberculosos em São José dos Campos (Dias, 2000: 34).
Mais reveladora foi a forma encontrada pelo competente médico paulista
para convencer o médico mineiro de Ouro Preto, que buscava a cidade, em 1902,
para se tratar da tuberculose. Clemente assim se dirigiu a Jorge Dória:
Você sabe tudo a respeito de tuberculose. Você, acompanhando o seu tratamento,
fez um curso de tuberculose, se especializou, porque, o pessoal para vir para São
Paulo é muito difícil, a vida é cara, não tem onde se alojar, não tem hospitais, não
tem onde pôr esse pessoal. São José dos Campos, que é uma cidade pequena, tem
muito mais possibilidades de acomodar esses pacientes. Você começa uma clínica,
e é evidente que você não vai ter paciente da cidade porque não tem tuberculoso
em São José dos Campos para você montar uma clínica especializada, mas você
vai contar com uma clientela que virá de fora, desde que você crie um centro, e
nós mesmos iremos encaminhar pacientes para vocês (Dias, 2000: 35 - 6).
De fato, o sanatório delineava-se como um negócio promissor. Para vingar a
idéia, era preciso atrair doentes, mas antes, porém, segurar a população no
município, atraída pelas promissoras vantagens de trabalho no Oeste. Ao mesmo
92
tempo era importante assegurar, para as futuras indústrias que se fixarem na região,
um corpo de funcionários relativamente garantidos no emprego. O artigo 3º do
Projeto de Resolução de 1920 estabelecia:
Se o proprietário e uma fábrica de 100 ou mais operários empregar operários desta
cidade e seu município (principalmente mulheres)
9
em número não inferior a um
terço de todo o pessoal, a Câmara lhe fadoação do terreno occupado, logo que
se verificque que os operários do logar se acham satisfeitos e tem garantia de
permanecer em seus empregos (Atas de 15/05/1920).
Se, por um lado, a Câmara assegurava a mão-de-obra para os capitalistas,
deveria, da mesma forma, convencer os futuros operários a se empregarem nas
fábricas. Dessa forma, o discurso da apologia ao trabalho e aos investimentos sociais
por parte da elite capitalizada tornou-se premente nos órgãos de propaganda locais.
Embora longa, a citação a seguir do semanário "A Caridade", de nomenclatura
sugestiva, vale a pena ser lida:
Os ricaços
Muita gente pensa que a felicidade, aqui na terra, consiste em Ter muito dinheiro.
Como fulano é feliz! Elle conseguiu com esforço acumular uma grande fortuna!
Isto ouvimos a toda hora da boca da gente pobre. Puro engano! A felicidade
verdadeira consiste na paz de consciência.
O dinheiro não trouxe felicidade aos grandes ricaços da América do Norte.
Todos os grandes ricos trabalham como burros para se enriquecerem. E que
lucraram?
Pierpont Morgan, o multibilionário, morreu de fome há poucos annos, porque um
cancro no estômago o impedia de alimentar-se.
Philippe Armour, de Chicago, o rei das conservas, foi reduzido ao regimen lacteo
exclusivo por uma dyspepsia cruel.
Rockeffeler, esgotado de forças e sofrendo terrivelmente do estômago, offerece
um milhão a quem lhe fizer um estômago novo.
Pullman, 25 vezes milionário, confessava que nunca fôra mais feliz, do que
9
Coincidentemente, nos Termo de Abertura da Escola Santanense, datado de 1920, registra-se a alta
evasão das mulheres, que abandonam o curso primário e secundário pela metade, o que, pode ser
explicado com a inserção da mulher no mercado de trabalho, retirando-a do espaço escolar. Ou
então, pode-se aferir que a dona de casa, que abandonava o lar em busca do trabalho, deixava, como
responsável pelos serviços domésticos, as suas filhas mais velhas, forçando, dessa forma, para a
evasão escolar.
93
quando era obrigado a trabalhar para comer.
Minha fortuna esmaga-me, escreveu Vanderbilt a um amigo. Não me causa praser
algum, nem me faz bem.
Em que serei mais feliz do que o meu visinho (sic) que vive modestamente? Gosa
mais a vida, sua saude é melhor e sua responsabilidade muitíssimo menos pezada:
há de viver mais do que eu e ao menos pôde fiar-se nos que o rodeiam.
Não é portanto no amontoar muito dinheiro, que consiste a felicidade.
A felicidade verdadeira, como escrevemos no começo deste artigo, consiste na paz
de consciência.
E essa paz de consciência não pode existir sem a virtude da caridade. Quantos
ricos não poderiam Ter suas horas felizes, socorrendo os pobres!
Carnegie, o grande millionário americano, amigo do nosso saudoso Joaquim
Nabuco, Carnegie está empregando grande parte de sua fortuna em obras e
caridade.
Escreveu elle a um amigo, esta phrase:
Todo homem que morre rico morre desonrado (Tudo em letras maiúsculas) (sic.)
Sigamos o evangelho que diz: empregar nossa fortuina em boas obras, é collocá-la
no céu, onde não há ratos nem ladrões (A Caridade, 21/11/1914).
Não convencidos da força do discurso isolado, "A Caridade" lançou, na
edição de sete de outubro do mesmo ano, um outro artigo e, na seqüência, vários
outros. Estas publicações eram direcionadas aos pobres, ao mesmo tempo, segmento
social que se ocuparia das funções geradas pelo projeto que se queria construir para
a cidade e também gerador de renda que dinamizaria a economia local. Através do
uso de metáforas, o teor da argumentação conclamava ricos e pobres a se juntaram a
uma causa comum:
Os pobres
Os pequenos, os miseráveis são tudo na terra.
O insigne poeta Rostand serviu-se de uma feliz imagem para demonstrar a
importância, a magnitude social desses pequenos e miseráveis.
Pegae de um livro, de um jornal. Abri-o, percorrei-lhe as columnas. O que
primeiro vos fere os olhos são os títulos, as epigraphes, os cabeçalhos dos
capitulos, em typos maiúsculos, em grossos caracteres (o poeta refere-se aos
capitalistas e endinheirados homens de negócios) . Mas as letras, os typos
minusculos, os caracteres microscopicos (mais precisamente a massa
descapitalizada) são os que formam o pensamento, traduzem a ideia, encerram a
alma do escriptor.
São a essência, sem elles o livro, o jornal não existiriam. Podeis imprimir os títulos
graúdos, impossível eliminar as letras mínimas (entenda, os pobres). Poderieis
94
dispensar os potentados, impossível passar sem o povo. Passar sem o povo
equivaleria a passar sem alma, isto é, sem vida.
Na epocha actual não se comprehende intelligencia e coração bem formados que
não se dediquem aos interesses do povo. Mas, em tudo, o bom e o mau; o
verdadeiro e o falso amigo.
Os verdadeiros amigos do povo são os que o procuram desinteressadamente, são
os que lhe falam a verdade, por amarga que pareça, são os que lhe dizem: Deveis
trabalhar constantemente, pois o trabalho é a lei providencial da existência;
sem trabalho nada de justo alcança. Quem vos declarar que podeis prosperar
e viver sem trabalho, economia e, disciplina, é o mais vil de vossos contrarios,
um malfeitor, pior que um assassino: envenenando-vos a consciencia (grifos
nossos) (Affonso Celso. "A Caridade", 07/10/ 1916: 01).
Esse processo de convencimento, altamente coercitivo, faz parte das novas
práticas sociais específicas do momento. Se em condições escravistas o trabalho era
condenado como tarefa de classes inferiores, agora, o trabalho, outrora renegado,
tem que ser valorizado, porque assim querem as novas forças capitalistas. O trabalho
passava a ser valorizado e, junto com essa idéia foram criados códigos de posturas
ligados a valores, direitos e obrigações tais como "patriotismo", "lealdade", "dever",
"regras do jogo", "espírito escolar."
10
Analisando as tradições européias inventadas em diferentes momentos
históricos, Hobsbawm argumentou que
os símbolos criados proclamam a identidade e soberania do povo (e que) (...)
apesar de todas as invenções, as novas tradições não preencheram mais do que
uma pequena parte do espaço cedido pela decadência secular das velhas tradições
e antigos costumes; aliás, isso poderia ser esperado em sociedades nas quais o
passado torna-se cada vez menos importante como modelo ou precedente para a
maioria das formas de comportamento humano (Hobsbawm & Ranger, 1984: 19-
20).
10
Nos Termos de Abertura dos Livros da Escola Santanense, de 1920, essa função patriótica e esse
estímulo ao zelo pelos símbolos regionais são bastante destacados. Os Termos de Abertura dos
Livros da Escola Santanense fazem parte de um acervo de documentação inédita, riquíssima em
informações sobre o papel e função da escola no período estudado que se encontra no Arquivo da
Escola.
95
Esse fenômeno foi perfeitamente observado no discurso da época. Café,
mão-de-obra escrava e espaço rural, eram coisas do passado e, como tal, deveriam
ser eliminados da memória popular, mesmo porque; segundo o discurso
hegemônico, São José queria ser projetada e se tornar conhecida nacionalmente. As
cidades vizinhas já tinham sua vocação delineada. São José, no entanto, ainda
procurava saídas. A salubridade do clima era notória, pelo menos do ponto de
vista de seus idealizadores, bastava argumentar melhor as outras qualidades da terra.
Para implementação de qualquer projeto, seriam necessárias medidas de
infra-estrutura, pois São José o pôde se apoiar nos rendimentos da monocultura
como outras cidades valeparaibanas.
11
Fazem-se necessárias, dessa forma,
implementações de uma política urbanística que pudesse solucionar problemas como
os de abastecimento de água, de iluminação pública, de construção de rede de
esgotos, de construção de casas populares e de outros melhoramentos locais.
Essas medidas estavam presentes nas discussões das Atas da Câmara desde
fins do século XIX
12
:
com uma rede de esgotos, necessidade imprescindível para a manutenção do bom
estado sanitário da nossa localidade, e conhecida a sua situação excepcional de
uma verdadeira estação de saúde, procurada como é por numerosas pessoas
enfermas, e havendo sido renovada a autorização orçamentária para o governo
estadual mandar executar os serviços de esgotos de São José dos Campos, indico
que a Câmara Municipal nomeie uma comissão de três vereadores para, em
companhia dos senhores membros do diretório político deste município (...) para
que seja dado cumprimento à resolução legislativa que encerra uma medida de tão
transcendental alcance para o futuro de nossa cidade (Ata da Câmara Municipal de
São José dos Campos, 15/01/1917).
11
Pensou-se, inclusive, em 16 de outubro de 1916, na extinção do imposto sobre cafeeiros, que veio
se realizar em 1918, "em conseqüência de não haver produção (...), por motivos dos estragos
produzidos pelas geadas na lavoura de café. (Ata da Câmara de 1918). Da mesma forma, "os
proprietários de máquinas de beneficiar café solicitam a suspensão da cobrança do imposto de
indústria e profissão e taxa d`água, desses estabelecimentos industriais, sob a alegação de não haver
café para beneficiar" (Ata da Câmara de 15 de fevereiro de 1919).
12
Conferir Atas a partir de novembro de 1895.
96
A possibilidade aventada pela municipalidade de atrair investidores
concedendo incentivos fiscais e mesmo doando terrenos para instalação de indústrias
chamou a atenção dos especuladores. A primeira tentativa de construção de um
hotel-sanatório em São José dos Campos foi de José Bento Monteiro Lobato, por
concessão da Câmara Municipal em 24 de julho de 1911. Após sucessivas
discussões sobre o projeto de Monteiro Lobato e pela demora da execução, a Ata de
16 de março de 1914 declarou caduca a concessão.
Não abandonando definitivamente a idéia de Lobato, os vereadores viram,
nessa iniciativa, a saída para SJC. Propôs-se, portanto, nas sessões seguintes,
angariar fundos para a construção de um sanatório para tuberculosos na cidade,
agora, "projetado pelo benemérito paulista, dr. Olavo Egydio de Souza Aranha e sua
Emª consorte", dona Vicentina de Queiróz Aranha, que,
cheia de virtudes e inflamada do mais ardente zelo de caridade christã pelos que
soffrem os horrores da mais tremenda das moléstias (...) foi a alma mater do
movimento que se iniciou e vem se operando em favor da construcção do
Sanatório. Foi ella que delineou os primeiros planos dessa marcha benemérita dos
cruzados do bem, alcançando as primeiras das brilhantes etapas da gloriosa
jornada da caridade.
Foi ella que angariou a forte somma com que Santa Casa de SP, vae iniciar as
grandes obras.
Portanto, o nome dessa innesquecível senhora de ser relembrado para sempre
no grandioso monumento que a caridade do povo paulista vae levantar.
Para realçar e avivar ainda mais esta lembrança aos vindouros, As gerações do
porvir, nada mais justo, mais condigno e consentaneo do que ser dado o nome da
saudosa extincta ao futuro Sanatório.
(...) Foi ella que delineou os primeiros planos dessa marcha benemérita dos
cruzados do bem, alcançando as primeiras das brilhantes etapas da gloriosa
jornada da caridade (grifos nossos) (A Caridade, 29/11/1917).
13
13
Vicentina Aranha morreu antes de ver erigido o prédio que ajudou a construir. Em homenagem e
reconhecimento, foi decidido que o Sanatório seria batizado com o mesmo nome de sua benfeitora
(Ata de 29 de novembro de 1917).
97
Quando o articulista referiu-se à conquista do terreno e do capital para a
construção do sanatório como "as primeiras das brilhantes etapas da gloriosa jornada
da caridade”, não deixou dúvidas com relação ao próprio objetivo do semanário:
contar, nesse primeiro momento, com as obras de caridade. Pelos discursos do
periódico, percebe-se um grande desinteresse da elite empreendedora local em
empregar capital nos projetos e necessidades da cidade. No momento, parece-nos
que o grande problema da cidade era a demanda imobiliária, mais precisamente a
construção de casas para aluguel, como fica evidente no desabafo a seguir:
(...) Haja boa vontade e amor ao progresso; ponha-se à margem o
carrancismo; combata-se o egoísmo tolo e, infructifero; associem-se os
detentores do capital que até agora tem vivido para si e resolvam esse
problema, está visto que assignaladas vantagens para si, mas também com
benefícios, não serão pequenos para a população em geral, para o progresso e
para o engrandecimento da cidade e do município.
Construam-se casas de aluguéis para todos os preços, facilitem aquelles que as
quizerem construir como se faz nas grandes cidades. Santos, por exemplo,
engrandeceu-se e embellesou-se por meio de associação predial, tendo por fim a
construcção e reconstrucção de prédios em prestações.
Porque não se faz aqui a mesma cousa?
Não faltam homens de capital.
O que falta é somente iniciativa.
Houvesse facilidade nos meios de construcções de casas, que estas surgiriam
diariamente, não só para augmentar e embellezar a cidade, mas também para trazer
economia e conforto a muitas e muitas famílias já aqui residentes e outras que aqui
viriam fixar-se.
Construam por conta própria ou facilitem as construcções para serem pagas em
prestações, que os senhores capitalistas, com isso, sem temor de prejuízos e
com probabilidades de grandes lucros, muitos irão fazer pelo progresso da
nossa bella e aprazível cidade (grifos nossos) (Correio Joseense, 11/01/1920).
O discurso, a partir desse momento, deixou transparecer, claramente, o
enunciado da proposta legítima. Legítima porque, suscetível de conduzir os homens,
os governou e, ao mesmo tempo, os incluiu nesse discurso, que constrói sem
interrupção, sem rupturas, tece tudo junto... a cidade e o povo. Como argumentou
Geneviève Bollème, "o discurso, o saber e o homem não são mais que uma única
98
e mesma função” (Bollème, 1988: 45). Nessa "cumplicidade existencial", os
políticos locais tendiam, através dos seus enunciados, eficazes na arte de dizer e de
persuadir as massas e multidões, "contando fábulas, ao invés de instruí-las"
(Bollème, 1988: 46), procurar satisfazer anseios dos pobres.
As constantes crises da economia cafeeira acabou por estimular
investimentos em imóveis urbanos. Uma espécie de crença comum,na época,
enfatiza Rolnik, atravessava a mentalidade dos grupos sociais. Acreditava-se, no
início do século XX, que “investir em imóvel neste país é o único investimento
verdadeiramente seguro, que jamais, com crise ou plano econômico, vira pó”
(Rolnik, 1997:25).
A validade do projeto sanatorial contou com uma propaganda competente,
sobretudo porque o discurso veio atender as necessidades do doente pobre. Como
ressaltou Geneviève Bollème,
se o saber só existe em vista do bem, se é o bem do povo, então aquele que sabe se
arroga o direito e o dever de falar, é justo que ele fale. O discurso se justifica e
justifica um ensinamento, uma pedagogia, com o único fim de organizar a cidade
(polis); o discurso político se afirma todo-poderoso para assegurar - e efetivamente
assegura - como evidente o bem em nome do qual ele fala. Assim se apresenta, de
certo modo, a ciência política, tal é o poder de uma palavra que é política em todos
os níveis, porque revestida de uma autoridade que o saber, a razão, o bem - tudo
vem a dar no mesmo - lhe dão. Assim pensava Platão (1988: 43).
“Se o saber existe em nome do bem”, e esse bem está ligado ao bem do
povo, de fato, o discurso político foi realmente eficiente. Propor uma economia
calcada no tratamento da temível doença que tomava o país, além de significar a
propagação do possível contágio da população sã, a retórica tinha realmente que se
esmerar na legitimação.
99
Por outro lado, as inúmeras concessões e vantagens oferecidas aos
capitalistas estrangeiros, como doações de terrenos para suas instalações industriais
e isenção ou incentivos fiscais, faziam-nos perceber que o negócio da tuberculose
era algo próspero.
14
Tanto é que "a Sociedade Annonyma Indústrias Reunidas F.
Matarazzo, pede, em 1927, concessão de favores para o estabelecimento nesta
cidade, de uma fábrica para o aproveitamento dos tuberculosos em geral, e
particularmente da raiz da mandioca" (Ata da Câmara Municipal de São José dos
Campos, 15/07/1927). Empresário visionário, com grande tino empresarial, é pouco
provável que Matarazzo tivesse interessado nas pouco férteis terras de São José para
o cultivo de um tubérculo pouco rentável. A justificativa para a aprovação do pedido
acabou comprometendo os objetivos da Câmara argumentando que
o progresso da cidade depende em grande parte do desenvolvimento industrial,
principalmente da instalação de fábricas que venham se utilizar de matérias primas
produzidas no município, vindo trazer também o approveitamento de terras
presentemente incultas e que, cultivadas, trarão um augmento de riqueza publica,
dando, portanto, trabalho não à operários que se localisarão na cidade como à
trabalhadores ruraes, considerando mais que, é de grande vantagem para a cidade o
emprego de grandes capitaes em edificações de valor como projectam os
adeantados directores da requerente, industriaes de comprovada competencia (....)
(Ata da Câmara Municipal de São José dos Campos, Parecer n. 26/1927,
15/08/1927).
Se para os endinheirados prometiam-se incentivos fiscais, à pobreza, foi
reservado o tratamento da tuberculose.
15
O que não se imaginava é que a
mendicância viria com ela. A solução para dar fim a esse "efeito colateral" foi
14
Pela linguagem das fontes, fica nítida que a política de industrialização da cidade se daria
através do capitalista de fora da localidade, com forte espírito empreendedor e aventureiro, uma vez
que a elite local, ainda tacanha, era bastante apegada à tradição, ou seja, à produção latifundiária
tradicional e ao capital mercantil, o se mostrando interessada em investir vultuosos capitais em
indústria, setor que se concebia bastante arriscado no momento. Aliás, é bom lembrar que os
políticos do leste do Vale do Paraíba mantinham uma conduta política bastante conservadora
durante os últimos momentos do império brasileiro, resistindo contra algumas medidas consideradas
"liberalizantes" (Cf. Silva Dias, 1980; Costa, 1980).
15
Como dissemos em outro momento, São José recebia os doentes excedentes de São Paulo e
restante do Brasil, com poucas condições financeiras.
100
amplamente discutida pela mara. Na Ata da sessão ordinária do dia 15 de março
de 1919, a Comissão de Fazenda e Contas, deliberava que "a Câmara deve(ria) ceder
o prédio do hospital de isolamento e terrenos annexos, para a fundação de um asilo
de mendicidade, uma vez ressalvados os direitos de propriedade municipal desses
immoveis, que devem ser cedidos unicamente para aquelle fim" (Ata da Câmara
Municipal de São José dos Campos, 27/02/1919).
Além de doentes, o projeto requeria mão-de-obra, saudável. A nova
organização do trabalho impunha a proteção da saúde, uma vez que “a saúde pública
era inerente à nova civilização industrial” (Vianna, 2004: 23). O processo de
urbanização acelerado, ao ampliar os espaços de desigualdades e pobreza nas
cidades, abriu o campo para reaproximar as questões de saúde e desenvolvimento
urbano” (Idem: 28). Em São José dos Campos, ser pobre, mas trabalhador passou a
ser o discurso legitimador para o processo de urbanização. Entende-se urbanização
como a constituição de formas espaciais específicas das sociedades humanas,
caracterizadas pela concentração significativa das atividades e das populações num
espaço restrito, bem como à existência e à difusão de um sistema cultural específico,
a cultura urbana” (Castells, 1983: 46).
Dessa forma, compreende-se também o desprezo pela riqueza. Grande parte
do capital conseguido para a construção do sanatório Vicentina Aranha, não veio
dos bolsos dos capitalistas locais, mas da pobreza, do trabalho dos humildes, que,
motivados pelo ideal assistencialista, faziam quermesses para levantar o montante
necessário. Entende-se também a apologia à pobreza e o desabafo contra os políticos
e influentes locais que não apostavam no projeto como a saída da crise vivida pela
cidade.
O surgimento da Liga Brasileira contra a Tuberculose, no Rio de Janeiro,
101
em 4 de agosto de 1900, nos permite refletir sobre a relação entre a filantropia, a
assistência médica e o Estado ao longo deste período. A Liga reunia médicos,
higienistas, intelectuais e membros da alta sociedade carioca que buscavam a cura
desta doença, bem como sua profilaxia. Instituição de caráter filantrópico, a Liga
colocou a serviço da ciência e da sociedade todo um instrumental de combate à
tuberculose (Boletim Médico, 1935).
A filantropia pode ser entendida, grosso modo, como a laicização da
caridade cristã, ocorrida a partir do século XVIII, e que teve nos filósofos das luzes
seus maiores propagandistas. O "fazer o bem", o socorro aos necessitados, deixou de
ser uma virtude cristã para ser uma virtude social; e a generosidade foi entendida
pelos filósofos ilustrados como a virtude do homem bem-nascido, que tem
inclinação para doar, doar largamente, d a forte presença das grandes fortunas
entre os principais filantropos (Nascimento, 2001).
A diferença entre a caridade e a filantropia é que a primeira, por ser obra
piedosa, está circunscrita à esfera da ação cristã, pressupondo, por sua vez, o
anonimato do doador. A filantropia, por ser um gesto de utilidade, tem na
publicidade sua arma: visto que a publicidade provoca a visibilidade da obra e acirra
a rivalidade entre os benfeitores, tendo como incentivadora a ação do Estado (Cf.
Nascimento, 2001). Para a filantropia, os periódicos tornaram-se "bons sócios", ao
divulgarem as ações das diversas sociedades.
O Boletim Médico de 1934 lembrava os dez anos de inauguração do
Vicentina Aranha, fruto da caridosa sociedade paulista, publicando o seguinte
pronunciamento do professor Vergueiro Steidel:
Esta campanha de caridade e paz se celebrizou por uma série ininterrupta de
victorias, pela generosidade que brotará de cada coração, pelas flores postas em
102
contribuição, pela beleza e graça das senhoras paulistas o óbulo, desde o pobre que
freqüentava as quermesses até os milionários que enchiam as listas de subscrição
(Boletim Médico, maio / junho /1934).
O resultado das ações da filantropia e da caridade era o mesmo: ao longo
dos séculos foram construídos hospitais, asilos, orfanatos etc. Em São Jo dos
Campos, O Sanatório Vicentina Aranha, o segundo maior centro de tratamento da
tuberculose na América Latina, foi resultado de obra assistencialista e filantrópica.
Dada a eficiência das Ligas, o Estado acabou deixando, a cargo da filantropia, a
construção de hospitais. Com a ascensão política de Getúlio Vargas, os anos de 1930
foram marcados por uma centralização das ações do Estado, que incluía a saúde
pública. Neste momento, o Estado passou a ser o gestor da saúde pública, se
responsabilizando pela construção dos hospitais diminuindo, por sua vez, a ação da
filantropia.
A inauguração do Sanatório Vicentina Aranha, em São José dos campos,
em 1924, foi resultado da ação assistencialista e filantrópica dos médicos, da
sociedade civil, das irmandades e dos políticos. As quermesses, festas religiosas e
doações realizadas na década de 1920 tinham um destino reservado: a construção do
prédio que alojaria o mais bem estruturado hospital para tratar da tuberculose do
país. Agora, tratava-se de preparar a cidade para a sua vocação sanatorial.
O elemento crucial para a política do convencimento foi a invenção de
sinais que continham toda uma carga simbólica e emocional, ao invés da criação de
estatutos e imposições de objetivos da associação. Dessa forma, fica evidenciada a
proposta e teor dos assuntos, assim como das imagens dispostas nos Almanaques
estudados, que apelavam para a conduta missionária, assistencialista, benevolente e
altamente cristianizada dos médicos, agentes fundadores e condutores da política
103
sanitarista.
16
Fig. 11: Sanatório Vicentina Aranha na década de 1920.
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos campos
As fotos da cidade estampadas nos Almanaques de 1922, 1932, 1945 e 1954
registraram cenas que se queria imortalizar, tais como ruas largas, amplitude, espaço
para circular os miasmas, infra-estrutura a serviço do grande negócio. Idealistas da
modernização, os agentes públicos mostravam o saneamento, a luz elétrica, a água
encanada, e os esgotos, tudo devidamente registrado confirmando a fotografia como
uma "linguagem nova, realista e altamente convincente, que informava visualmente
projetos arquitetônicos e de colonização, realizações industriais e tecnológicas"
(Turazzi, 1995: 145 - 6).
16
No período de 1905 a 1930, dos 35 prefeitos, 29 eram médicos. Isso demonstra a força e
representatividade dessa categoria profissional na cidade, ligada às determinações econômicas e
políticas.
104
Nessa crescente percepção do mundo como imagem e da imagem como
coisa concreta, as fotografias foram redefinindo a própria idéia/concepção de
realidade e de representação, em que as imagens tanto podiam referendar como
transformar essa realidade. Como bem apontou Susan Sontag,
uma sociedade torna-se 'moderna' quando uma de suas principais atividades passa
a ser a produção e o consumo de imagens, quando as imagens que possuem
poderes extraordinários para determinar nossas exigências com respeito à
realidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da experiência autêntica,
tornam-se indispensáveis à boa saúde da economia, à estabilidade política e à
busca da felicidade individual (Sontag, 1981: 147-8).
Fig. 12: Obras de saneamento básico na cidade na década de 30-40.
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
No entanto, apesar da força de persuasão do discurso associativo, vão
aparecendo indícios de que o pacto estava sendo quebrado. Na verdade, também se
excluiu uma parte da comunidade saudável que, apesar de viver dos rendimentos da
doença, temia o contágio, sobretudo porque se percebeu fora do pacto. Eis aqui um
105
grande problema para o poder público administrar: adotar medidas para explorar os
doentes, já que "era essa a indústria da cidade", ao mesmo tempo controlando a
epidemia para evitar contaminações em massa, assumindo políticas urbanísticas, de
saneamento básico e medidas profiláticas. O dr. Camilo de Lellis Ferreira, em artigo
do jornal "O Progresso", de 1902, denunciava a fragilidade da política sanitarista
local:
Os casos de tuberculose aqui adquiridos são devido à incúria das autoridades
sanitárias, não destruindo pela desinfecção rigorosa os focos formados por doentes
desta moléstia que de fora m, como última apelação, para o bom clima desta
cidade, e à inobservância dos preceitos higiênicos e profiláticos que uma moléstia
desta ordem reclama ao redor do paciente.
Antes mesmo do Hospital Vicentina Aranha se instalar na cidade, o Correio
Joseense denunciava o comportamento dos tuberculosos um pouco inescrupulosos,
que agiam deliberadamente, sob os olhos pouco atentos da vigilância pública:
cumprindo o sagrado dever que juramos em nosso primeiro número, em nossa
espontânea profissão de fé, vimos hoje com o único intuito de defeza do povo
desta terra, dirigir um respeitoso apello aos doentes de moléstias contagiosas e,
com especialissimo proposito aos enfermos de tuberculose.
Possa esse modestissimo, porém sincero e desapaixonado
17
appelo, trazer
resultados praticos e, a nossa consciencia se rejubilará, no doce consolo de um
dever cumprido!
Não nos anima outro intuito que não o bem servir à causa publica, defendendo
nossas famílias, a saúde de nossos filhos e, sobretudo, a segurança da colletividade
hoje, à mercê de perigos que por ahi pullulam num vasto marnel de gravidades.
Com o intuito de defender o povo joseense, suas famílias, a saúde dos filhos
e segurança da coletividade, o discurso que, antes tentava incluir o doente, acabou o
excluindo, agora o registrando como portador de alto índice de periculosidade, como
fica evidente na denúncia feita pelo jornal o Correio Joseense, de abril de 1920:
17
A insistência de ressaltar esses propósitos revela um diálogo com outros discursos.
106
São José dos Campos é innegavel, constitue hoje uma conhecidíssima estação de
saúde. É um centro especialíssimo de cura. Quase que, em procura de saúde, aqui
aportam enfermos tuberculosos.
É justamente por isso, também que a nossa situação se reveste de tão alta
excepcional gravidade, infundindo-nos justos receios pelos infinitos perigos que
nos rodeiam. É devido a isso, que clínicos de fora, e de reconhecido valor,
lembram as pessoas sãs que aqui m morar, a conveniência de não residirem
nesta cidade, pois o contágio da tuberculose aqui tende a crescer, a subir de
uma forma tal que os poderes públicos hão de, um dia, providenciar com
medidas enérgicas de segurança geral, muito embora resctritivas da
descabida e até excessiva "liberdade" dos enfermos. Essa liberdade hoje se
converte em verdadeiro attentado à vida dos cidadãos. E nem pode ser por
menos essa licença que os doentes gozam de lançar suas cusparadas nas vias
públicas, sem a menor cerimônia, sem o menor crepusculo, cynicamente, com a
maior malvadez possível, fechando seus corações a todo o sentimento do altruísmo
e da nobreza muito longe do amor ao próximo, da commiseração e da piedade...
Essa licença não pode continuar. Appelamos para a nossa Camara Municipal, onde
tem assento cidadãos diplomados e esclarecidos. Ella pode muito bem legislar a
ventar medidas de higiene municipal. Os habitantes desta terra confiam na
sabedoria dos legisladores. A sciencia caminhou muito. Nós precizamos
também caminhar. Precizamos fazer alguma cousa. Nisto é que não podemos ficar.
Ou agiremos ou renunciaremos o progresso da civilização, as conquistas da
sciencia e os magnificos resultados da profilaxia e da hygiene.
Não estranhamos pois, com o nosso descaso, hajam pessoas em S.Paulo e Rio que
se admirem das famílias sãs aqui residirem, expostas, sem amparo, às vicissitudes
da sorte, sujeitas aos perigos amplíssimos de uma infecção diária e constante, que
nos cercam por toda a parte, como um circo de ferro e de fogo que nos comprime
com seu castigo terrível e seu flagello de morte. Por hoje, pedimos aos doentes que
pensem nisso. Pensem e reflictam. Um escarro no chão pode ser a desgraça de
muitos lares, o infortúnio de muita gente. A consciencia tem uma soberana
grandeza: -enche o coração de tranquilidades. Consciência e nobreza é o que
pedimos por hoje.... (Correio Joseense, 18/04/1920).
O trecho "o contágio da tuberculose aqui tende a crescer a subir de uma
forma tal", denota uma certa preocupação da população em manter o pacto de
associação do plano sanatorial, e, ao mesmo tempo, demonstra inquietação com a
propagação do bacilo, uma vez que aos poderes públicos não interessava
providenciar, com medidas enérgicas, a erradicação da moléstia. Esta atitude
compactua com a "descabida e a excessiva 'liberdade' dos enfermos". Liberdade
essa, que, na visão da população local, "se converte em verdadeiro attentado à vida
107
dos cidadãos".
Não se pode afirmar categoricamente que havia uma política deliberada de
manutenção da doença, apesar da cidade viver dela. No entanto, talvez a ineficiência
e negligência dos agentes sanitários na cidade tenha sentido para os propósitos
sanitários que, sutilmente, proporcionavam aos enfermos uma descabida e
excessiva liberdade”. João Amaral, um estudante de medicina que elaborou uma
monografia para a disciplina de Hygiene da Universidade de São Paulo em 1930,
relatou da seguinte forma as péssimas condições sanitárias da época:
São José dos Campos, sob o ponto de vista sanitário não pode ser equiparado a
uma cidade comum. Estância Climatérica, onde as condições ordinárias de um
centro populoso se complicam com as suas condições peculiares de hospedeira de
tuberculose em busca de allivio, devia ter um apparelhamento sanitário em
proporção com as suas necessidades.
Cidade com uma população de 30.000 habitantes, em cujo seio uma massa de mais
de meio milheiro de tuberculosos se concentra em várias dezenas de casas de
pensão, não dispõe, para todo o serviço de hygiene urbana, de mais do que um
inspector, um guarda e dois ou tres “mata-mosquitos”... Os quaes, como si
demasiados fossem, têm de multiplicar-se ainda para soccorrer à vigilância de
vários outros municípios e districtos.
É de convir que é pouco... é muito pouco mesmo....
Essa escassez de pessoal é uma attenuante para certas irregularidades que se
observam no tocante à vila sanitária da cidade, e mais uma vez vem comprovar a
nossa affirmação de que São José dos Campos innegavelmente fadado a um
grande futuro, dada sua condição de Chanaan dos tuberculosos (sic) – é uma
cidade não apenas descurada, como abandonada pelos poderes públicos.
O enfermo era a peça fundamental que mantinha a indústria sanatorial,
embora constantemente ameaçado pelas "conquistas da sciencia e (d) os magníficos
resultados da profilaxia e da hygiene". Aliás, quando essa eventual possibilidade
tornou-se algo próximo, São José dos Campos já estava engatilhando um outro
projeto; agora, empenharia em trazer "outros tipos de indústrias" para o município e
"criar" um outro tipo de população: a industrial.
108
As freqüentes denúncias nos semanários refletiram a onda de insatisfação da
população local, indignada com as posturas pouco cuidadosas dos agentes
sanitaristas e dos tuberculosos. A população da cidade concebeu o imigrante um
grande vetor de contaminação. Os tuberculosos chegavam de trem e, "dentro do
trem não se sabia se quem estava sentado ao lado era acometido pela 'peste branca',
a não ser que tivesse uma hemoptise.
18
Os passageiros, cujo destino não era São José
dos Campos, quando o trem parava na estação, levavam seus lenços ao nariz"
(Apud. Dias: 77).
Os discursos produzidos em São Jodos Campos no início do culo XX
promoveram memórias. Essa representação coletiva da cidade enalteceu a
segregação e elegeu dentre os elementos constituídos numa determinada
contingência histórica, aquilo que, numa outra conjuntura dada, podia emergir e ser
atualizado, rejeitando o que não devia ser trazido à tona.
Percebendo que a doença seria uma das saídas para tirar a cidade do
marasmo econômico em que se encontrava, políticos locais, médicos e comerciantes
se ampararam na defesa em torná-la um centro referencial de tratamento de
tuberculose. Essa política resultava num grande paradoxo. Enquanto as grandes
cidades planejavam seu espaço moderno usando como argumentos planos sanitários
que excluíam a pobreza e os doentes dos seus centros urbanos, São José, ao
contrário, os acolhia.
Por meio de uma política sanitária a contrapelo, a cidade usava da doença e
do crescimento da população tuberculosa atraída pelo seu clima, como discurso para
modificar seu espaço. Em 1935, o prefeito sanitário dr. Leovigildo Trindade,
buscava o apoio da imprensa para realizar o vasto e complexo problema da
18
Hemorragia do sistema respiratório e que se descarrega pela glote, acompanhada de tosse.
109
remodelação da cidade, que consistia, em princípio, na desapropriação de algumas
casas para prolongamento de ruas e abertura de espaço para circulação dos bons ares
da cidade (Correio Joseense, 24/03/1935). Nas atas de sessão da Câmara de 1914,
1917 e 1919 essa política de desalojamento e desapropriação tinha sido praticada
(Atas da mara Municipal de São José dos Campos, 15/06 e 02/10/1914;
15/02/1917 e 15/10/1919).
110
CAPÍTULO II
Médicos e doentes na cidade que salva: o mito de Babel
Com a dissolvição do Congresso Nacional por Getúlio Vargas em 1937, as
reuniões da mara foram interrompidas, assim como foram paralisados todos os
órgãos do poder legislativo nos estados e municípios. A Constituição outorgada por
Getúlio Vargas acabou com o princípio de harmonia e independência entre os três
poderes. O Executivo foi considerado "órgão supremo do Estado". O presidente
passou a ser a "autoridade suprema" do país, controlando todos os poderes, os
Estados da Federação e nomeando interventores para governá-los. Os partidos
políticos foram extintos e instalou-se o regime corporativista sob autoridade direta
do presidente. Somente em 1945, com o fim da ditadura de Vargas, foi que a
Assembléia Legislativa dos Estados retomou suas atividades.
Escrever a história neste período, portanto, é difícil por não podermos
contar com informações acerca da política blica comumente registrada nas atas
das Câmaras municipais, importante fonte esclarecedora dos problemas da cidade e
das soluções adotadas pela administração local para resolvê-las. Entretanto, no caso
específico de São José, a publicação de “O Boletim Médico” (1930-36) ocupou, em
parte, o vazio deixado pela medida de Getúlio Vargas. Dirigido pelo médico
Nélson D`Ávila, o Boletim retratou a preocupações do setor político local,
expressando a tônica do momento. que se considerar também, como base
documental, as informações contidas nos jornais joseenses que circulavam na
época.
111
Um dos objetivos da publicação do Boletim Médico foi criar condições e,
ao mesmo tempo, enaltecer as potencialidades de São José para que a cidade se
tornasse um respeitado centro de tratamento da tuberculose. Esse perfil da cidade
foi sendo definido logo na primeira década de 1900, quando já se recomendavam os
ares da cidade aos portadores da pulmonar que aqui começavam a chegar em
proporções consideráveis.
1
A partir do início do século, o perfil da cidade agrária
do passado foi se remodelando em moldes modernos, sustentado pela doença.
A vocação da cidade, apoiada nos benefícios de seus ares, animava as
forças locais. Leigos em questões profiláticas, os políticos da cidade buscavam
parcerias. As associações particulares, de tendência filantrópica e beneficente,
tiveram papel fundamental na consolidação do projeto sanatorial. Um exemplo
disso é que, aliada a ação médica, existiam, em 1933, várias associações
particulares e religiosas na cidade.
Entre elas, a Liga contra a Tuberculose, a Associação das Damas de
Caridade, a Fraternidade Operária da Tecelagem Parahyba, a Associação São
Vicente de Paula, a Franciscanos do Sagrado Coração de Jesus e o Instituto das
Pequenas Missionárias de Maria Imaculada. A existência dessa forma de amparo
social em São José fez com que os avaliadores sanitários do Estado registrassem
nos seus relatórios a seguinte observação: a capacidade filantrópica é considerada
boa e (...) bem conduzida, poderá prestar mais serviços à causa da saúde pública”
(Cf. Vianna, 2004: 140).
1
A expressão bondade do clima aparece nas fontes desde 1884 num Almanaque da
cidade, sendo reimpresso de tempos em tempos em outros periódicos locais. (Como
referência, podemos citar, entre outros exemplares, O Progresso de 1902 e o Correio
Joseense de 12/11/1939).
112
No Brasil, “a organização de grupos da sociedade civil se antecipou ao
poder público na busca de soluções e o pressionou para assumir a questão”. Esse é
o caso das Ligas, que carregavam “o mote da modernidade. Formada por uma elite
de médicos e intelectuais, combinavam o pensamento político corrente (a
modernização do país) aos interesses particulares de um grupo (a prática clínica
liberal)” (Vianna, 2004: 56). O sentido da solidariedade das ligas com a proposta
do Estado era “desobrigar os hospitais centrais das grandes cidades do tratamento
desses doentes” (Idem, Ibidem).
Além de estimular a filantropia, era importante atrair o interesse dos
industriais. Para isso, foi criada uma Comissão especial para divulgar as vantagens
que a cidade oferecia para o campo industrial e os favores que a Câmara poderia
conceder. Entre as vantagens, isentava-se do pagamento de imposto predial aos que
construírem prédio na cidade de acordo com a moderna arquitetura Ata da mara
de 15 de março de 1909. Arquivo Público do município de São José dos Campos;
concedem-se terrenos e habitações para os operários e fornece-se água
gratuitamente durante 25 anos (Atas da Câmara Municipal de São Jo dos
Campos, 15/12/1924: 152; 15/01/1925: 152; 15/06/1926: 169).
Respondendo ao apelo de investimento no município foram inúmeros os
pedidos de aforamento de terrenos incultos de domínio municipal para o plantio de
arroz e hortaliças (Ata da Câmara Municipal de São José dos Campos, 15/07/1916);
estabelecimento de indústrias fabris (Ata da Câmara municipal de São José dos
campos, 04/1907; Ata de 29/10/1924: 151; Ata de 15/09/1925: 160; Ata
15/03/1926: 162); de privilégio para o estabelecimento de força e luz elétrica (Ata
de 04/15/1907); de uma linha de automóveis (Ata de 15/08/1911; Ata de
15/09/1925); de uma rede telefônica (Ata de 29/12/1911); de serviços de
conservação de estradas; de uma fábrica de laticínios (Ata de 7/10/1912; Ata de
113
16/11/1923: 143; Ata de 16/06/1924; Ata de 29/10/1924: 151); de construção de
um reservatório e mais serviços complementares ao abastecimento de água (Ata de
8/10/1915); de privilégio para uma estrada de ferro (Ata de 15/04/1919); de um
estabelecimento de congelamento de leite (Ata de 15/04/1919); de uma fábrica de
fecularia (Ata de 15/05/1925); de uma bomba de gasolina (Ata de 15/05/1925); de
uma fábrica de vassouras (Ata de 15/05/1926: 164).
Percebe-se uma movimentação na cidade visando atrair investimentos. No
entanto, cidades atraem indústrias devido a dois fatores essenciais: mão-de-obra e
mercado. Uma vez instaladas, as indústrias, por sua vez, desenvolvem novas
possibilidades de empregos e suscitam novos serviços. A mão-de-obra exigida pela
futura indústria, em São José dos Campos, inviabilizava o projeto. Este foi um dos
grandes problemas do momento. A população que poderia ser aproveitada pela
demanda de trabalho interno migrava para o Oeste paulista e regiões vizinhas, uma
vez que São José dos Campos não oferecia expectativas de trabalho.
O interesse dos doentes tuberculosos e de sua família pela cidade, atraídos
pelo discurso da cura da doença, se vislumbrava como uma possível solução para o
problema da demanda de mão-de-obra que a indústria necessitava. A perspectiva de
cura acabava mantendo uma população fixa e considerável, que poderia ser
amplamente aproveitada pelas exigentes necessidades da indústria nascente. Os
doentes que procuravam o José dos Campos vinham acompanhados, na maioria
das vezes, pelos familiares, conforme registro no Correio Joseense de 1920. A
tabela 03 nos uma idéia do crescimento de São José dos Campos a partir da taxa
de urbanização da região.
114
Tab. 03: População rural e urbana e taxa de urbanização para a região do Vale do
Paraíba e cidade de São José dos campos (1934-1960)
Fonte: Apud. Vianna, 2004: 64
1934 1940 1950 1960
Região SJC Região SJC Região SJC Região SJC
Rural
256.253 20.182 228.767 21.805 257.226 18.204 234.186 20.651
Urbana
123.656 8.659 43.118 14.474 202.498 26.600 345.603 56.882
Total
379.909 28.841 371.885 36.279 449.724 44.804 579.789 77.533
Taxa
urbaniz.
32,5
30,0
38,5
39,9
45,0
59,4
59,5
3,4
Nota-se que a partir da década de 1940 a população de São José tende a
aumentar ultrapassando, inclusive, os índices da região do Vale do Paraíba. A
política de atração de doentes se juntava à política de atração de capital que, dado
ao empenho da administração local, acabou por seduzir alguns investidores. A
enorme quantidade de pedidos de empresários interessados no mercado joseense
fez com que a mara promulgasse, em 02 de março de 1925, um projeto de lei
estipulando as condições para a concessão de favores da municipalidade aos
estabelecimentos industriais fabris que se fundarem no município. Dizia o projeto:
Quando o estabelecimento empregar effectivamente nos seus serviços o mínimo
de dez operários, gosará de isenção do imposto de indústria e profissão, pelo
praso de um anno, bem assim terá gratuitamente o uso de uma pena d’água e uma
ligação de exgottos durante um anno, caso funccione em predio proprio
pertencente ao dono do estabelecimento.
Empregando vinte operários effectivos as concessões serão pelo praso de dois
annos. Empreganddo trinta operários, a isenção será de três annos, e assim
successivamente, de cada dez operários, um anno à maior no praso da concessão,
até o máximo de 100 operários, em que a concessão será por dez annos, não
havendo praso maior e nem prorrogação d’ahi em diante (Ata da Câmara
Municipal de São José dos Campos, 1925:157).
115
Enquanto viabilizam-se medidas para atrair investidores, outras saídas
estavam sendo pensadas pela mara. Os interesses políticos da cidade de São José
dos Campos eram constantemente representados em âmbito estadual. A
administração discutia não os recursos para viabilizar os projetos econômicos
São José dos Campos, como também debatia e reclamava das decisões do governo
estadual. Em ata da sessão extraordinária de 17 de junho de 1929, o médico
vereador Ruy Rodrigues Dória propôs que a câmara criasse uma comissão para
representar os interesses locais contra a decisão do governo do Estado de cortar o
município com uma estrada de rodagem que ligava São Paulo com o Rio de
Janeiro. Julgamos se tratar possivelmente do que viria a ser a rodovia Presidente
Dutra, construída somente em 1950 e que atravessou, a partir daí, a cidade,
trazendo grandes transtornos aos moradores.
Argumentavam os vereadores “ser injusto que esta estrada contorne a nossa
cidade, evitando deliberadamente atravessá-la”. Na mesma sessão, os vereadores
dr. Ruy Rodrigues Dória, o coronel Claudino Prisco da Cunha e Benedicto da Silva
Ramos foram indicados para estudarem o assunto (Ata da mara Municipal de
São José dos Campos. 17/06/1929: 157). Na acta da sessão extraordinária de 17 de
junho de 1929, a questão estava resolvida: o parecer da mara era “para que não
seja feita a representação ao governo do Estado no sentido de ser retificado o
traçado da estrada de rodagem Rio-SP”.
Pelo silêncio em torno da questão e pela presença de um médico na
comissão, é possível inferir que o tão almejado título de estância climatérica entrou
na argumentação da lógica estabelecida. A estância, conseguida em 1935,
possivelmente foi negociada pela estrada de rodagem que tão drasticamente corta a
cidade ao meio, inviabilizando o tráfego em muitos eixos.
116
Ruy Dória, dono de um sanatório que levou o seu nome, ganhou prestígio e
influência suficientes para se tornar líder da política valeparaibana no período
Varguista. Seu sanatório recebia somente pacientes particulares que chegavam de
todo o país. Considerado um dos mais bem estruturados sanatórios da cidade, o
Sanatório Ruy Dória unia “o mais adeantado conhecimento da tuberculose com
princípios modernos e scientíficos de tratamento” (Boletim Médico, 1930-45). Seu
sucesso na cidade tem estreita ligação com seu alinhamento político com Vargas.
Sua política marcou o urbanismo sanatorial de São José dos Campos, criando as
bases infra-estruturais e urbanísticas para a industrialização que veio a seguir.
Fig. 13: Consultório Ruy Dória
Fonte: Acervo Arquivo Público do Município Fundação Cultural Cassiano Ricardo
117
Fig. 15: Propaganda do Sanatório Ruy Dória
Fonte: Acervo Arquivo Público do Município Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Ruy Dória é saudosamente lembrado pelos tísicos que conviveram com
ele. Ruth Carvalho Viola, recorda do médico:
(...) o médico Dr. Ruy Dória era uma pessoa maravilhosa! Um homem
encantador, ele cativava a gente, visitava os quartos todas as manhãs todas
118
manhãs. Quando ele passava, a gente agarrava nos braços dele e ia de quarto em
quarto com ele.
(...) O Dr. Ruy Dória não visava o dinheiro, ele passou por cima de tudo. No
sanatório tinha o gerente, o contador, mas ele era o dono também (...)
(...) Ele não cobrava a consulta de ninguém, para alguém pagar a consulta, meu
marido tinha que segurar a porta, senão ninguém pagava nada. Nunca fez questão
de dinheiro.
(...) não existe homem melhor para atender, ele fez muito por São José, nem sei
como dizer (Apud. Braz, 1996).
Os doentes que saravam acabavam, por consideração, contraindo uma
dívida impagável aos médicos que os tratavam. Estes, por sua vez, através do
exercício médico, acabavam se popularizando no domínio local. A aptidão de São
José firmava-se na conformação de seu espaço. O funcionamento e construção de
sanatórios, pensões, repúblicas e hospitais acompanhava o crescimento da
demanda.
Amaral registrou, com ressalvas, o número de pensões existentes na cidade
em 1930. O estudante de medicina da USP, na época, relatou que o número de
pensões existentes ultrapassava os índices anotados, uma vez que as pessoas viam
na atividade uma vantajosa forma de captar recursos.
Exige o posto sanitário local que a abertura de uma pensão seja precedida de
licença, com fichamento do proprietário e vistoria do prédio. Quase todas as
pensões se acham regularizadas quanto a esta exigência, figurando ellas, a amais,
no cadastro fiscal da prefeitura. Desta obtivemos um rol de taes pensões: são em
número de 23 (dia 5-7-930), conforme vem abaixo especificado:
D. Dulce Rodrigues dos Santos - Praça Affonso Penna
José Castilho - Rua Parahybuna
Clarinda Gonçalves - Rua Sebastião Hummel
Constância Furquim Leite - R. Humaytá
Elvira Ciochi R. - Antônio Saes
Saul Block - R. Rubião Jr.
Olívio Dias - Av. João Guilhermino
Benedicto Antônio de Freitas - R. Parahybuna
João Batista da Cruz - Rua Antônio Saes
119
Odtte Santos - Av. Joaão Guilhermino
Hana Rosensack - Av. Floriano peixoto
Leonor Ribas - R. Humaytá, 21
Emanuel Rosenberg - R. João Guilhermino
João Muzaco - Rua da Fábrica
Menotti Secheto - R. Serimbura
José Gogliano - Av. Floriano Peixoto
Sylvio Polesky - R. Antônio Saes
Cidália Carreira - R. Rubião Jr, 13
Miguel Simões dos Prazeres - R. Atônio Saes
Luiza Soares Cardoso - R. Villaça
Quirino Mezzanotte - R. Villaça
Romão Ovalli - R. Villaça
(Amaral, 1930)
No entanto, as condições sanitárias de algumas pensões deixavam a
desejar, conforme relato Amaral no trecho a seguir:
Seria muito racional que para se abrir uma casa de hospedagem para
tuberculosos, além de se exigir o preenchimento de certas condições quanto ao
prédio, se exigissem também do pretendente condições de idoneidade moral: não
é, por certo, qualquer vendedor de seccos e molhados - cujos conhecimentos se
cifram em saber quantos mil réis ganhou ou perdeu no fim de cada dia - que está
á altura de comprehender o seu papel e a sua responsabilidade como chefe de um
estabelecimento dessa natureza.
E o que observamos em certas pensões (sobretudo de italianos e syrios) nos leva
a concluir que taes casas apresentam um perigo real não para os hospedes,
doentes, como para a população da cidade: vimos em varias dellas doentes
escarrando no chão, com a maior sem-cerimonia (é verdade que no quintal, mas
sempre ao alcance das moscas), a casa ainda desarrumada e suja, transformada
em foco de moscas, em horas nas quaes muito devia estar composta e
limpa: crianças da família do proprietário na mais absoluta communidade com
tuberculosos (jogando com elles dama, vispora, etc.), inscientes do risco que
estão correndo.
Tudo isso por falta dos mais elementares conhecimentos de hygiene individual e
social por parte dos responsáveis (Fonte: Amaral, 1930).
120
Fig. 16: Pensões em São José dos Campos na década de 1930
Fonte: Amaral, 1930
121
Fig. 16: Mapa de localização das pensões e sanatórios de São José dos Campos
Fonte: Bittencourt, 1998: 162-63.
O sanatório Vicentina Aranha, o primeiro do Estado de o Paulo, abriu
espaço, a partir de 1924, para outros tantos que foram construídos no município.
122
Fig. 18: Sala de entrada do Sanatório Vicentina Aranha
Fonte: Arquivo Público do Município
123
Fig 19: Área externa do Sanatório Vicentina Aranha na década de 1920
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
124
Em 1929 foi construído o Sanatório Vila Samaritana, patrocinado pela
Associação Evangélica Beneficente, amparado por igrejas evangélicas. Em 1934
foi construído o Sanatório Ruy Dória. Em 1935, o sanatório Ezra, de propriedade
da Sociedade Israelita, instalava-se no espaço do Parque Santos Dumont para
acolher os doentes da comunidade judaica.
Fig. 19: Quarto de pacientes no sanatório Ezra em SJC/ Parque Santos Dumont
Fonte: Cytrynowicz, 2005.
Em 1938 e 1958 foi construído pela Liga de Assistência Social à tuberculose
o sanatório Adhemar de Barros I, cuja proposta era amparar os doentes pobres e
indigentes com verba pública. Em 1946 passava a funcionar o sanatório São José.
125
Em 1952, o sanatório Antoninho da Rocha Marmo, de origem filantrópica e
paulistana, abrigava as crianças carentes com idade máxima de quinze anos. O
último sanatório a ser construído, mas que nunca chegou a funcionar foi o Adhemar
de Barros II, em 1967, construído na zona rural (Lessa, 2004: 53).
Fig.20: Sanatório Adhemar de Barros
Fonte: Amaral, 1930
126
Percebe-se, na década de 1920, uma política de atração o de
investidores do ramo industrial, como também se buscava parceria de especialistas
no combate ao bacilo, grandes propagadores do discurso do clima adequado.
Propõe-se a requerer principalmente o aval da categoria mais indicada para o
tratamento da doença: os médicos, que passaram a defender a aeração como
condição básica para o tratamento. No Boletim Médico, o entusiasmo pela
condição climática da cidade animava a ação dos médicos e, por sua vez, deu uma
revigorada nos anseios públicos.
No primeiro exemplar do Boletim, datado de 1933, os especialistas
enunciavam: muito, vínhamos sentindo a necessidade de propagar de modo
mais amplo o nosso entusiasmo pelo clima maravilhoso de São José dos Campos,
cujas virtudes operam à nossa vista tantos e reais prodígios” (Boletim Médico,
05/1933). o o Boletim médico enalteceu a potencialidade do clima joseense.
Em diversos documentos relativos à cidade percebemos o discurso que procura
acentuar a bondade da temperatura. Numa edição de 1925 de O Correio Joseense,
lemos:
Embora existam no mundo muitos paizes com clima bom, poucos são os logares
que se destacam por um clima excepcional como Davos e a Ilha da madeira.
No Estado de São Paulo temos Campos de Jordão e São José dos Campos. Pelo
primeiro tem se feito muita propaganda e embora de grande e merecida fama, não
é para todos os doentes, devido a sua altura por ser muito diffícil a viagem e por
falta de recursos. De São José dos Campos nunca foi feito propaganda como
entretanto hoje elle está se impondo é o melhor signal que realmente possue o que
se chama ideal.
dezenas de annos chegam aqui pessoas doentes que voltaram curadas para
seus lares, pessoas que eram dadas como casos perdidos pelos seus médicos e que
chamaram a attenção para São José.
(...) Possue São José todos os recursos e os seus médicos dedicadíssimos gozam
de real fama para doenças pulmonares (...) (O Correio Joseense 18/06/1925).
127
Não é raro encontrar na documentação de época menções sobre a
excelência do clima joseense. A todo o momento nos deparamos com vozes que
insistem em comentar sobre o assunto; vozes essas que ecoam ainda hoje. Embora
fosse um discurso hegemônico local, parece-nos que a condição do clima não era
unanimidade nacional como condição para o tratamento da tísica. Para o contra-
discurso do clima favorável da cidade, os médicos tinham sua defesa
argumentativa: hoje em tisiologia discute-se a questão dos climas e, como reação
ao outro extremo que fazia da estação climatérica condição sine-qua do tratamento,
têm surgido opiniões exageradas que querem negar-lhes todo e qualquer valor (Os
médicos rebatem, denunciando) o absurdo de tais doutrinas” (Boletim Médico,
10/1933).
2
O dr. João Batista de Souza Soares dizia que “o que é essencial, sob o
ponto de vista individual é procurar de preferência um clima realmente
experimentado, com longos anos de observação documentada e não um clima
apontado como tal por um ou mais interessados na sua exploração como estância de
cura” (Boletim Médico, 11/1933). Disso, os joseenses podiam se orgulhar, a cidade
possuía um clima experimentado e satisfatoriamente comprovado para a cura da
tuberculose. A procura do município pelos doentes era uma prova mais que
evidente dessa realidade, assim como a estatística da mortalidade pela tuberculose.
Para a tese contra-argumentativa do clima salubre da cidade, os médicos,
na defensiva, esclareciam que “não é seguro, pois, avaliar qualidade de um clima
pela simples inspeção dos dados meteorológicos. É preciso recorrer à experiência
clínica e daí a vantagem de preferir a climas procurados muitos anos por
2
A terapêutica do clima foi discutida nas reuniões de maio de 1935 na Associação Paulista
de Medicina, negando-se qualquer influência sobre o tratamento da tuberculose. (Boletim
Médico, nº 28 e 29 outubro e novembro de 1935 / Arquivo Público do Município de SJC-
Arquivo nº 4890).
128
grandes quantidades de doentes, com resultados evidentes” (Boletim Médico,
05/1933).
Na contra-mão da defesa do clima como condição para a cura da
tuberculose, a diretriz médica do Estado no final do século XIX, de acordo com o
informe educativo de Victor Godinho e Guilherme Álvaro, dizia que “a tísica pode
ser curada em qualquer altitude, nos climas de montanha como à beira do mar.
Cura-se mais facilmente nos sanatórios. Entretanto, o tísico pode curar-se em sua
casa, desde que a transforme em um pequeno sanatório, ou desde que faça e use
nela tudo o que teria de fazer e usar no sanatório”
(Apud. Vianna, 2004: 116).
Unindo interesses múltiplos, foi-se delineando o papel a ser desempenhado
pela futura São José, baseado no seu clima e na sua infra-estrutura. Médicos,
administradores locais e comerciantes viam, na doença, a cura da cidade terminal.
Não é à toa que a publicação do Boletim Médico de São José dos Campos com o
discurso convincente de transformar a sua administração em prefeitura sanitária
coincide com a criação do Ministério de Educação e Saúde em 1932. Essa
instituição, focada na erradicação da doença, propõe distribuir a vários municípios
paulistas uma cartilha” a ser seguida sobre a organização sanatorial; inclusive
recomendando um modelo de arquitetura.
Jardins, alpendres, janelas amplas assegurando profusa iluminação e
ventilação, diferenciavam os sanatórios não só dos hospitais como também da
própria insalubridade das cidades. Ligada à etiologia da doença, a nova arquitetura
sanatorial garantia o ar, a luz e o espaço. O sanatório representou, partir de 1900, o
novo projeto de tratamento das doenças contagiosas.
129
Fig. 21: Galeria de Cura do Sanatório V. Aranha (Ala Masculina)
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
130
Os sanatórios surgiram na Alemanha em 1854 e, dentro da política de
saúde de Bismarck, ampliaram-se a partir de 1892 com a instalação de uma rede
sanatorial, custeada por fundos trabalhistas (Bertolli Filho, 1993). Até início do
século XX, as instituições que lidavam com a doença eram isoladas no espaço
rural, distantes das cidades, sustentadas pelo poder público. Essas mudanças foram,
em parte, fruto da viagem de Victor Godinho, médico do Serviço Sanitário do
estado de São Paulo, ao sistema de saúde da Alemanha no início do século XX.
Fig. 22: Sanatório Vicentina Aranha
Fonte: Arquivo Público do Município de SJC
131
A visita de Godinho à Europa marcou a construção da rede sanatorial do
país, amparada pelo governo paulista em conjunto com a iniciativa privada, através
das Ligas de combate à tuberculose.
(Vianna, 2004) Tentava-se concretizar a
política estadual de controle da doença, através da construção de sanatórios,
dispensários e preventórios (Bertolli Filho, 1993). Esse projeto se intensifica, neste
momento, em âmbito nacional, particularmente em Campos do Jordão e São José
dos Campos, cidades reconhecidas pela sua estrutura sanatorial.
O Boletim Médico, com publicação mensal e distribuição gratuita em todo
o Estado de São Paulo, Sul de Minas Gerais e Rio de Janeiro, mantém o eixo
norteador da educação catequizadora e da construção de sanatórios. O discurso
médico, legitimado pelo poder público, garantia a segurança e a proteção contra o
risco do contágio nos sanatórios. Ressaltava-se, no entanto, que seria fundamental
que essas unidades fossem bem dirigidas, com rígida disciplina e construídas em
lugares seguros.
3
Servia, também, para informar às pessoas interessadas na cidade
para o tratamento da tuberculose sobre estadia e custo de vida.
Pela grande repercussão que teve, o grupo médico a ele ligado instituiu o
Departamento de Informações do Boletim Médico sobre sanatórios, hotéis,
pensões, médicos, farmácias, etc. (Boletim Médico, 06/1930) Subvencionado pelo
município, o Boletim era considerado de “incontestável valor para o futuro de
nossa pouco conhecida São José dos Campos”
4
; futuro esse reservado à força
3
Relatório da Comissão de Investigação de Paris, 1895; apud (Vianna, Paula V.
Carnevale. Saúde e cidade: uma relação inscrita no espaço e no tempo; a fase sanatorial de
São Jodos Campos (SP) e sua influência sobre os serviços de saúde da década de 1980.
São Paulo: tese de doutorado/ Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
2004.)
4
Na Ata da Câmara de 18 de março de 1930, os proprietários do Boletim Médico
solicitaram uma subvenção destinada a prover parte do custeio da publicação do material.
Na sessão de 15 de maio do mesmo ano, a Comissão de Finanças e Justiça, examinando o
132
médica de torná-la uma Estância climatérica. Além disso, defendia-se, dentre outras
coisas, o estabelecimento de sanatórios populares e a necessidade de uma séria
política sanitária e higienista.
Fig. 23: Sala dos médicos no Sanatório Vicentina Aranha
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
Amaral, em 1930 fazia um relatório sobre as excelentes condições
sanitárias e arquitetônicas do Sanatório Vicentino Aranha explicando as categorias
de doentes que freqüentavam o sanatório:
pedido, destinou um auxílio de 200$000 (duzentos mil réis) para a sua publicação. (Atas
da Câmara de 18 de março de 1930, p. 12/ Arquivo Público do Município de São José dos
Campos.)
133
O sanatório admitte doentes de ambos os sexos e tem duas classes - a dos
pensionistas e a dos gratuitos.
O edifício central é reservado para os pensionistas. Conta três pavimentos: o é
destinado á residência do pessoal do sanatório; o 2º, destinado ás mulheres,
estando localizada no centro deste a capella (provisória ) ; no 1º pavimentos estão
installados o consultório, a sala de pequena cirurgia, curativos, injecções, estc., o
gabinete de Raios X, com câmara escura, o gabinete de oto-rhino-laryngologia, o
laboratório, a pharmácia, a gerencia e a sala dos médicos, além do vestíbulo.
Esta secção comporta 46 pensionistas, divididos em três categorias, conforme os
aposentos que ocupam - A, B e C: os preços.
Das suas pensões são, respectivamente, de 1:200$000, 900$000 e 600$000
(mensalmente), estando já comprehendidos neste preço os serviços médicos.
quatro pavilhões para doentes pobres, sendo dois grandes e dois pequenos,
com capacidade - os grandes para 20, e os pequenos para10 doentes. Cada sexo
occupa um pavilhão grande e um pequeno.
Comporta, pois, o sanatório pouco mais de uma centena de doentes.
A administração interna confiada ás Irmãs de S. José (Amaral, 1930).
Fig. 24: Pavilhão Cia. Paulista Estrada de Ferro
Fonte: Secretaria de Planejamento Urbano - Prefeitura Municipal de SJCampos
134
O pensamento médico da época era reunido no Boletim Médico, um dos
mais importantes documentos acerca do pensamento dos médicos especializados
em tuberculose. Suas páginas deixam transparecer as mais diferentes vertentes
políticas ligadas, inclusive, à expansão urbana da cidade. Servia também como
veículo de propaganda das múltiplas vantagens que a cidade oferecia aos tísicos,
“com suas obras de assistência social, com aspectos de sua topografia encantadora,
seus fartos recursos profissionais e comerciais, etc.” (Boletim Médico, 03/05/1933).
Foi, ao mesmo tempo um eficiente instrumento utilizado pelos médicos
para publicarem os casos mais interessantes de suas clínicas, os frutos de sua
experiência ou de suas pesquisas (Boletim Médico, 05/1933). Trazia, inclusive, o
argumento emocional e apelativo de “mostrar o carinho que nesta terra se dispensa
aos problemas da luta contra o desolador flagelo da raça humana” (Boletim
Médico, 05/1933).
Com a forte vocação sanatorial da cidade, a valorizada atuação profissional
dos médicos fazia-os também despontar para o setor político. Desde o início do
século é possível detectar nas Atas da Câmara Municipal a presença de médicos na
vereança de São José dos Campos, entretanto, somente após a revolução de outubro
de 1930, é que passam a atuar de forma mais incisiva, graças ao novo status que a
cidade recebe, de Estância Climatérica.
5
O projeto dos dicos incluía “a
5
Com o decreto oficial de Estância, instituídas geralmente em cidades aparelhadas para
receber pacientes tuberculosos, medidas fiscalizatórias e ações policiais o imputadas em
todos os espaços públicos, como estações ferroviárias e rodoviárias e privados, como as
pensões e residências. Esses agentes sanitários recebiam notificações de sanatórios,
pensões e hotéis, de acordo com o Código sanitário Estadual (Vianna, Paula V.
Carnevalle. Saúde e cidade: uma relação inscrita no espaço e no tempo; a fase sanatorial
de São José dos Campos (SP) e sua influência sobre os serviços de saúde da década de
1980. São Paulo: tese de doutorado/ Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo, 2004, p. 66-7).
135
organização de cidades sanatórios, com colônias de trabalho, com organização
sanitária modelo. (...)” Deixa claro, sobretudo, que a organização deveria ficar a
cargo de médicos e engenheiros sanitários, e não de interventores leigos (Boletim
médico, 07/1933).
O contexto político de 1933 era caracterizado, segundo o discurso médico,
de intermináveis competições pessoais e partidárias” (Boletim Médico, 10/1933).
Diziam que os doentes dinamizavam a economia, mas não viam os seus interesses
defendidos. Com a transformação em Estância climatérica o prefeito do município
(Prefeito sanitário) passou a ser nomeado pelo Estado; a eleição da Câmara por
voto popular foi mantida e o Município passou a receber verba adicional, através do
Fundo de Melhorias das Estâncias (FUMEST), para aparelhamento. As receitas, a
partir daí, seriam constituídas de impostos e taxas arrecadados no território pela
Prefeitura e pelo Estado, sendo a renda municipal destinada à manutenção da
administração municipal e a renda estadual, aos serviços públicos, a fim de
aprimorar a infra-estrutura urbana da estância
(Vianna, 2004, p. 130-1).
A 12 de março de 1935, pelo Decreto 7.007, São José dos Campos
começava a gozar o seu título de Estância climatérica e a 16 de dezembro do
mesmo ano, passava a ser também uma Estância Hidromineral. Essas conquistas
devem, sobretudo, a atuação dos médicos locais, graças a um processo
reconhecidamente forjado, visto que a cidade não dispunha das características
mínimas para tal”
(Idem: 128). A cidade, no momento, não dispunha dos requisitos
mínimos, imprescindíveis para o tulo de Estância Hidromineral. Sabe-se que “a
pequena fonte de água que possibilitou esta conversão, a fonte Canindu, além de
pequena vazão, era imprópria para o consumo” (Idem, Ibidem).
136
Fig. 25: Placa de Identificação do Município
Fonte: Arquivo Público do Município.
À política centralizadora do momento somou-se a atitude dos médicos e
advogados brasileiros com formação influenciada pela doutrina positivista, que
manifestava uma postura intervencionista na vida pessoal e na política de saúde em
que se misturava ciência e moral. A filosofia era que a medicina “curava” todos os
males, inclusive sociais. Aliados à proposta modernizadora, os pareceres médicos
intervinham na vida urbana e social. Eram eles consultados para escolha do melhor
local para edificação de estabelecimentos de cura. Propunham ampliar os espaços
públicos, defendendo a desapropriação e demolição de moradias que impediam a
livre circulação dos ares.
137
No início do século XX, o país passou por uma aceleração no processo de
urbanização e de reformulação das áreas educacionais e culturais. A política de
melhoramento urbano vinha sendo discutida nas Atas da Câmara de São José desde
início do século. Mesmo com a abertura da Câmara, ocorrida após a criação da
Estância
6
, os médicos passaram a marcar presença na Câmara de Vereadores e na
cadeira de chefe do Executivo, influenciando diretamente nas políticas públicas.
Na cidade, os profissionais da saúde possuíam posturas políticas
diferenciadas, mas, ao que parece, nas questões relativas à tuberculose, havia muito
mais consenso que conflito. Entre elas, reforçava-se a necessidade de que os
sanatórios não se afastassem muito do centro, o que inviabilizaria a demanda de
doentes em relação aos custos de manutenção. Atrelada à proposta de fazer de SJC
um centro de tratamento de doenças, a política de melhoramento urbano estava
intrinsecamente ligada aos médicos sanitaristas e aos agentes higienistas.
Apregoavam, dentre outras coisas, a colocação de guias e apedregulhamento das
ruas e praças; o jardinamento e arborização da cidade; o serviço de encanamento; o
abastecimento de água
7
; a iluminação blica por eletricidade, a construção de
fossas cépticas aneróbicas e de rede de esgotos.
8
Estas idéias começaram a ser aplicadas no espaço urbano a partir de 1935,
embora anteriormente existisse menção às mudanças sofridas pela cidade. No
Correio Joseense, lê-se: “a cidade velha, um tanto antihigiênica, está sendo
reformada com casas modernas, a água augmentada, a usina de força e luz
6
Nesta fase, o prefeito era indicado pelo Governador, chamado de Prefeito Engenheiro
Sanitário, subordinado ao Departamento de Administração Municipal.
7
Concluído em 1911, mas não resolvido, uma vez que são freqüentes as reclamações de
falta de água nos jornais da cidade até a década de 1940.
8
O governo do Estado manda construir a rede de esgotos, ficando a municipalidade
obrigada a pagar a importância despendida na construção.
138
grandemente melhorada ”(Correio Joseense, 18/06/1925). Melhoramentos urbanos
foram concentrados na região central da cidade estabelecendo a criação da zona
sanatorial, a construção do Pavilhão da Higiene (1935) e dos Dispensários
9
. A rua
São José foi transformada em avenida, com a demolição das casas do lado par
(1938), entre outros, visando dar subsídios para o futuro da cidade enquanto estação
de cura da tuberculose.
O dr João Flório, do Departamento de Saúde Pública do Estado de o Paulo
foi enviado à cidade na década de 1940 para escrever um relatório de inspeção
Preliminar do município e Estância Hidromineral e Climática. No documento que
elaborou - após o processo de desapropriação empreendida pelo prefeito em 1938 -
consta um quadro pouco animador para os sanitaristas no tocante ao cadastro
predial. Diz o médico sanitário:
Existe grande número de casas de condições condenáveis ocupadas por doentes
atacados de tuberculose pulmonar, os quais vivem em promiscuidade com a
população sã, agravando o problema de ordem sanitária (...) A falta de habitações
na zona sanatorial e as condições pecuniárias destes forasteiros, doentes, faz com
que as aludidas casas, condenadas, estejam ainda ocupadas (Flório, 1944: 32).
O funcionamento do aglomerado através de uma divisão técnica e de uma
diferenciação social do espaço regional se deu,
tanto em termos de atividade e equipamento quanto em termos de população. Por
divisão técnica, entendemos a separação no espaço das diferentes funções de um
conjunto urbano, a saber, as atividades produtivas (industriais), de gestão e de
emissão de informação, de troca de bens e de serviços (comércio e diversões) de
residência e de equipamento, de circulação entre as diferentes esferas
(Castells,1983:65).
9
Trata-se de procedimentos médicos com diagnóstico da tuberculose, bem como o
tratamento em ambulatório dos doentes e o rastreio dos que com eles convivem.
139
Fig. 26: Tapera
Fonte: Flório, 1944.
Antes mesmo de 1935, a criação das quatro zonas territoriais na cidade, em
1932, pelo prefeito José Domingues de Vasconcellos, denotava o cuidado em
dividir os espaços de acordo com as suas potencialidades. Além disso, a medida
visava resguardar a estética da cidade e evitar a promiscuidade entre tuberculosos e
sadios. Retalhada a paisagem, as regiões foram especificadas em zonas comercial,
industrial, residencial e sanatorial.
(Sousa e Soares, 2002)
140
Fig. 27: Planta da cidade com as divisões das zonas sanatorial, residencial e
industrial
Fonte: Amaral, 1930.
A regionalização do espaço joseense foi pioneira no Estado. Baseada no
princípio da cidade racionalista usava a linha reta para demarcar o plano. A linha
reta procurou abolir o acaso, a partir de um ponto fixo, normalmente um centro. Era
central o desejo de segurança, de estabilidade, principalmente quando o cenário
estava sendo composto por segmentos sociais diferenciados. Algumas categorias,
emergidas da nova condição industrial, causavam temor nos administradores, que
tentavam modelar a cidade conforme pressupostos da objetividade. Conforme
141
ressaltou Olgária Matos, “ordenar o espaço e geometrizá-lo são os dois
pressupostos mais significativos da metafísica cartesiana”
(Matos, 1994: 46).
Nota-se, na Figura 28, uma extensão considerável da área destinada ao
campo sanatorial. Essa é a grande especificidade da cidade de São José dos
Campos. Em grande parte das cidades brasileiras, os melhoramentos implicavam a
eliminação de doenças e expulsão de doentes, como forma de reordenação do
espaço, principalmente o relacionado ao perímetro central das cidades brasileiras.
No caso de SJC, as mudanças urbanas concretizariam o projeto sanatorial e, ao
mesmo tempo, atrairiam o doente, que passou a se transformar em uma alternativa
à crise pela qual a cidade atravessava.
10
Nas atas da Câmara de início do século XX foram registrados em várias
sessões os problemas decorrentes da receita do município. Na ata da mara de
25/02/1908, o vice-prefeito em exercício dá conta da exígua arrecadação do
município, que não consegue atingir a cifra de 12 contos de réis por ano. (p. 372).
Na sessão de maio do mesmo ano, o vice-prefeito municipal pediu, inclusive,
autorização à Câmara para publicar a lista dos contribuintes em atraso (Idem, p.
379).
10
Em 1908, o vice-prefeito em exercício comunica à Câmara que “a presente arrecadação
tem sido muito exígua, tendo entrado apenas quantia que não atinge a 12 contos de réis,
sendo necessário tomar providências a respeito”, decidindo-se pela cobrança judicial dos
contribuintes “relapsos” (Ata de 25 de fevereiro de 1908). Em 1918, a arrecadação
diminuiu consideravelmente devido a suspensão da cobrança do imposto sobre cafeeiros
durante os exercícios de 1918 a 20 (Acta de 15 de junho de 1918, p. 83). A crise
continuava nos períodos subseqüentes, forçando a Câmara a adotar medidas para contê-la,
através, inclusive, de arrendamento de terrenos para captar receitas (Acta da Câmara
municipal de 1929, p. 110).
142
Nas atas que sucedem o ano de 1916, várias foram as sessões dedicadas ao
tema referente à arrecadação dos impostos de indústrias e profissões. Por outro
lado, cafeicultores e médicos pedem respectivamente a extinção do imposto sobre o
café. (Ata da sessão extraordinária de 30/08/1916: 59) e redução de impostos sobre
médicos (Ata da sessão ordinária de 16/10/1916: 61). Apesar da crise na receita, os
médicos foram contemplados com a redução pela metade dos impostos sobre a
categoria.
O grande montante de arrecadação do município ficava a cargo do precário
consumo sobre a água, do imposto predial e das casas comerciais (Ata da mara
de São José dos Campos, 18/05/1909). Com o crescimento da cidade e
diversificação da produção, novos impostos de indústria e profissões foram criados
(Ata da sessão ordinária de 16/02/1920: 107). Passam a ser tributados o comércio
ambulante e de venda à prestação (Projeto de Lei n. cinco de 1920, 16/12/1920:
120)
Do outro lado, a produção de café evidenciava os últimos suspiros,
pronunciados nos requerimentos contra a elevação dos impostos de indústria e
profissões a que os proprietários de máquina de beneficiar café estavam ligados
(Câmara Municipal, 1920: p. 145). Reticente, a prefeitura não atende ao pedido dos
proprietários de máquinas, certos de que não havia crise alguma. a tributação
sobre o comércio ambulante era não aplaudido pelos negociantes estabelecidos
na cidade como se solicitava a sua elevação (Câmara Municipal, 1920: 161).
Em 24/10/1927, os comerciantes locais que se sentiam prejudicados pela
concorrência desleal dos mascates” foram agraciados com a elevação do imposto
ambulante (Câmara Municipal de 24/10/1927: 184-185). A partir de 1928, o
imposto de indústria e profissão recaía sobre bancos, casas bancárias e agências de
143
bancos. Em 21/05/1925, a população era avisada que “todas as pessoas physicas ou
jurídicas que exerçam a sua actividade no território nacional, percebendo
rendimento superior a 10:000$ annuais, o contribuintes do imposto sobre a
renda...” (Correio Joseense, Anno VI, 21/05/1925, n. 259).
Será, sobretudo, em função da existência dos doentes que a cidade vai
conseguir se firmar economicamente, não em função da dinamização do
comércio a partir do afluxo de pessoas para o município como também das verbas
recebidas pelo Estado por ostentar o título de Estância. Os recursos oriundos da
doença vão possibilitar não só equilibrar as finanças como também propor as
mudanças modernizadoras exigidas pela própria condição de cidade sanatorial. No
entanto, a atração de doentes vai implicar no reordenamento dos espaços,
segregando os indivíduos.
Entre o que é uma cidade e a forma pela qual é vista e pensada existe um
emaranhado de elaborações e construções sociais. Estudar essas construções é
desvelar histórias da cidade de São José dos Campos. Por conta disso, centramos
atenção na São José dos Campos se constituindo como uma cidade moderna,
sofrendo fortes barreiras na sua trajetória por conta de suas próprias condições
históricas.
Dentro das poucas condições para se adequar às novas exigências do
momento, no início do século XIX, o clima de São José passa a ser proclamado
como uma riqueza natural a ser valorizada. O suposto clima adequado foi utilizado
como argumento para convencer as pessoas a buscar São José dos Campos como
referência no tratamento da tuberculose. A mercantilização do clima trouxe os
doentes, atrás deles, seguiram os médicos e engenheiros. São José passou a ser
considerada um laboratório de experimentos.
144
O projeto de fazer da cidade uma Estância constava nos planos da
municipalidade. O título de Estância daria a SJC a infra-estrutura que precisava
para implementação de estratégias sanitárias para o combate ao resistente bacilo de
Kock. Com o título, obtido em 1935, estava justificado, na cidade, o plano
urbanístico de intervenção do espaço, empreendido pelo estado autoritário de
Vargas.
Em 1938, casebres insalubres foram demolidos, ruas alargadas e
moradores desapropriados, essas foram algumas das propostas do novo perfil do
espaço. O centro moderno de São José, ao contrário do que ocorria nas outras
cidades, delineava-se como o local de concentração da doença. Sanatórios foram
erguidos enquanto uma política de zoneamento dava diferentes funcionalidades aos
espaços.
Registros de Ofícios da mara Municipal de São José dos Campos
indicavam a chegada de pessoas com varíola e gripe espanhola na cidade datados
de 1917 a 1919 (Registro de Ofícios de 3/10/1917; 07/11/1918: 23; 03/02/1919: 27,
Livro 105). Somada a essas epidemias, o registro da tuberculose no município
chegou a preocupar as autoridades. As portas da cidade, limiares de entradas de
doentes, marcam as atitudes de esperança de pessoas em busca de salvação. Alguns
se acomodavam nos sanatórios, nos hospitais, nas pensões e inclusive nas casas de
família disponíveis no espaço. Outros tantos eram descarregados em São José,
inclusive pelos prefeitos das cidades vizinhas.
Em maio de 1924, o Correio Joseense noticiava Um fato gravíssimo:
uma recusa innesplicável”. O jornal trazia o relato do descarregamento de um
homem em estado adiantado da tuberculose na cidade. Visivelmente enfermo, o
homem trazia “estampado no rosto os vincos indeléveis de penosa moléstia,
145
arfando de cansaço e esquelético”. Relata o periódico que a criatura, digna de
compaixão, foi alli deixada na plataforma da central pelo seu condutor, atirada
como se fosse um animal asqueroso” (Correio Joseense, 25/05/1924, n. 212).
Fig. 28: Entrada da cidade em 1930.
Fonte: Amaral, 1930.
O mais grave, enfatiza o autor da notícia, foi que, “segundo dizem, esse
acto de requintada deshumanidade foi praticado por ordem do dr Delegado de
Polícia da adeantada cidade de Lorena, para aqui mandando o desditoso enfermo
acompanhado de uma praça, deixando-o ao desamparo na plataforma da estação
desta cidade”, regressando no comboio que o trouxe. (Idem)
146
As portas da cidade viram de tudo. Doentes afamados
11
, pessoas comuns,
indigentes e desamparados. Doente modesto
ia para as pensões sanatoriais. Os mais pobres formavam repúblicas. As pensões
sanatoriais, assim como os estabelecimentos industriais gozavam de isenção de
impostos e se multiplicaram – havia até de meia centena de leitos. No censo
realizado em 1938, apenas 30% dos doentes em tratamento identificados estavam
nos sanatórios, o restante distribuía-se nas pensões e nas residências particulares,
muitas vezes de propriedade de ex-tuberculosos ou seus familiares (Vianna, 2004:
127).
Da debilidade do doente vinha a proeminência financeira da cidade. A
entrada do tuberculoso na cidade muitas vezes marcava a separação da família,
possibilitando os encontros com os iguais. Relatos de doentes da época sanatorial
de São José confirmam que o mais triste na vida de um tísico é a separação da
família. (Apud: Braz, 1996) Ao mesmo tempo em que a cena triste da separação é
relembrada pelos doentes, recorda-se dos momentos alegres e descontraídos
permitidos pelo sofrimento do isolamento. Ruth Viola relembra:
Eu fiquei no sanatório (Vicentina Aranha). O ambiente era muito alegre, muitas
moças, muita gente. Chorei um pouco no começo, depois fui acostumando, fui
fazendo amizade... Comecei a namorar um rapaz de mesmo, era enfermeiro,
demorei uns seis meses para conhecê-lo. Ele deu em cima de mim. Mandava
doces e recados para mim no quarto, eu relutei para aceitar o namoro. Acabei
aceitando. Eu relutei em aceitar porque fiquei com medo de atrapalhar o repouso,
porque era assim: a gente levantava, ia para o refeitório, almoçava e ficava no
pátio um pouco com os amigos, quando era 13 horas, a gente era obrigado a ir
para a cama deitar e ficar até às 15 horas, sem falar, sem se movimentar, se
possível dormindo, daí levantava, ia para o refeitório, tomava um lanche, voltava
para o repouso. separava de turma quando estava muito mal mesmo, para
morrer (Idem).
Os moradores da cidade conviviam numa relação de aproximação /
11
Há registros de que algumas enfermeiras, aproveitando-se d casavam-se duas ou três
vezes com tuberculosos para se desfrutarem das aposentadorias (Cf. Vianna, 2004: 126-7).
147
distância. Apesar da vida da cidade girar em torno da doença e da existência do
doente, esse era considerado um estranho”, uma anomalia dentro do corpo social.
É o que fica claro no Boletim Médico de outubro de 1933:
A cidade vive duas vidas diferentes que entram em constantes conflitos: a vida
comum de qualquer outra cidade do interior e a da estação climatérica. Os
doentes (hoje os verdadeiros interessados em tudo que se refere a São José dos
campos), como forasteiros que são, passando escasso número de anos entre a
população da cidade, não chegam a criar individualmente raízes profundas a
ponto de ter interesse, pelos poderes públicos, que nesses meios pequenos são
quase sempre influenciados por algumas pessoas e pequenos grupos. Vêem assim
constantemente preteridos os seus interesses mais viscerais.
Para se avaliar o quanto nisso de injusto, basta que se compute, no Banco
Comercial, na repartição dos Correios, em diversas casas de comércio, o quanto
da vida desses “estranhos”. Para 50 ou 700 doentes, das quais a metade se acha
acompanhada da família, morando em casas particulares chegam a São José dos
Campos todos os meses, cerca de 600 contos de réis. Todo esse dinheiro fica na
cidade, pois o único ágio que rende é a saúde que o clima proporciona. E é com
uma credencial desse valor econômico que os doentes afluem a este clima, têm o
direito de erguer a voz estranha na verdade, aos conchavos da política local, mas
representando aspirações muito legítimas (Boletim Médico de 10/1933).
Ao longo da história sanatorial de São José dos Campos vão aparecendo
indícios da exclusão dos doentes. A população, a certa altura, dando conta do
perigo que significava a entrada maciça de tísicos na cidade e o descontrole da
epidemia pela atuação inerte e conivência dos agentes sanitários, resolveu agir em
defesa pública, assumindo a responsabilidade pelo acolhimento dos tuberculosos
em território joseense:
Os doentes aqui são acolhidos até com as maiores facilidades. Encontram franca
entrada em toda a parte e facilidades em alugar casas, commoda entrada nos
hotéis. Tudo aqui é fácil para elles. Não há nenhuma difficuldade. Nenhum
impecilho. É um verdadeiro mar de rosas. Quem são os culpados por isso?
Porventura não somos nós mesmos? (Correio Joseense, 27/04/1921: 01)
Na verdade, também se excluía uma parte da comunidade saudável que,
148
apesar de viver dos rendimentos da doença, temia o contágio. Eis aqui um grande
problema para o poder público administrar: adotar medidas para explorar os
doentes, que “era essa a indústria da cidade”, ao mesmo tempo controlando a
epidemia para evitar contaminações em massa, assumindo políticas urbanísticas, de
saneamento básico e medidas profiláticas. O doutor Camilo de Lellis Ferreira, em
artigo do jornal O Progresso, de 1902, denunciava a fragilidade da política
sanitarista local:
Os casos de tuberculose aqui adquiridos são devido à incúria das autoridades
sanitárias, não destruindo pela desinfecção rigorosa os focos formados por
doentes desta moléstia que de fora vêm, como última apelação, para o bom clima
desta cidade, e à inobservância dos preceitos higiênicos e profiláticos que uma
moléstia desta ordem reclama ao redor do paciente (O progresso, 1902).
O chalatanismo terapêutico foi denunciado num artigo do Boletim Médico
que apontava a enganação dos preparados farmacêuticos que prometiam a cura da
tuberculose. A moléstia, deixavam claro os médicos, é curável, mas não por meios
de especialidades farmacêuticas, muito menos por xaropadas milagrosas que
tinham, inclusive, a aprovação do Departamento Nacional de Saúde Pública.
Esclareciam os médicos sobre as profilaxias: “É passada a época do suco de agrião
e do caldo de bananeira, do creosoto e do sangue de boi aos copos. Estamos na
época do tratamento higiênico-dietético e dos processos cirúrgicos. Chega de
baboseiras e de explorações!” (Boletim Médico, 06/09/1933).
Ao mesmo tempo em que o doente buscava a cidade para se tratar, os
farmacêuticos procuravam descobrir a fórmula mágica e, os médicos, uma
profilaxia baseada na higienização, alimentação adequada e repouso. Enquanto
isso, o mercado da doença constituía-se em importante fonte de renda, permitindo a
capitalização não dos segmentos envolvidos com ela como também se
configurava como potencial alternativa de desenvolvimento urbano.
149
Fig 29: Propaganda de compostos farmacêuticos
Fonte: Monteiro, 1905.
150
Fig. 30: Pharmácia São José
Fonte: Arquivo Público do Município de SJCampos
Em nota publicada em dezembro de 1920, uma indignação tomava conta
da população: “Enquanto no Rio de Janeiro concentram-se forças para combater a
tuberculose, em São José dos Campos, unem-se as forças para facilitar a
propagação de tão horrível moléstia, que neste momento, preocupa o mundo
inteiro. Bello exemplo!!!” (Correio Joseense, 03/12/1920).
Os exemplos de profilaxia sanitária sequer vinham dos agentes da
151
vigilância. Pelo visto, o encarregado do Posto sanitário era o primeiro a desrespeitar
as leis, como denunciou o Correio Joseense em nota do dia 08/11/1920:
Existem nesta cidade, contra as determinações expressas do Código Sanitário
várias casas que recebem doentes de moléstias contagiosas como por exemplo, a
tuberculose.
O que é mais interessante e curioso é o fato do encarregado do Posto sanitário
desta cidade manter uma dessas casas com a denominação pomposa de “sanatório
pensão” em pleno coração da cidade, e muito em contrário com as disposições
sanitárias, a que elle próprio as desrespeita.
Não muito tempo, por determinação do Director Geral do Serviço Sanitário,
nesta zona, foi fechada uma casa dessa espécie, quando funccionava à Avenida
Dr João Guilhermino, nº 2, portanto em logar muito mais retirado da cidade que o
‘sanatório pensão’(...)
Em nome do povo de S. José dos Campos, appellamos para o illustre Dr. Director
Geral do serviço sanitário, certos de que S. Exc. Agirá como de direito e a bem do
público, que se neste momento sem a mínima garantia e exposto a um perigo
eminente (Correio Joseense, 08/11/1920: 2).
Essa denúncia surtiu alguns resultados. Julgada procedente, foram
expedidas intimações aos proprietários da Pensão Central, Hotel São José e Hotel
Rio Branco. Estes estabelecimentos foram, por tempo determinado, obrigados a
procederem a uma reforma geral e proibidos de receberem doentes de moléstias
contagiosas, sob pena de terem cassadas as respectivas licenças e interditas as
estalagens. O sanatório Pensão, foco da denúncia, por motivos óbvios, não foi
interditado. Seu proprietário, o funcionário sanitário responsável pela fiscalização
das condições e funcionamento dos estabelecimentos para recuperação de
tuberculosos, teve sua propriedade poupada, para indignação de alguns joseenses
(Correio Joseense, 12/12/1920: 02).
Constantemente, novas matérias eram publicadas no jornal sobre o perigo
da tuberculose e abusos praticados pelo gerente proprietário do Sanatório Pensão.
Na falta de agentes realmente imbuídos da função higienista e sanitária, o Correio
152
Joseense legislava em defesa da cidade. Apesar dos esforços, pelo que parece, a
política de conscientização sobre profilaxias sanitárias empreendidas pelo periódico
não surtiu muitos efeitos, como mostrou a nota a seguir:
(...) Há quatro annos temos zero no capítulo de hygiene municipal.
Ninguém se encommoda. Ninguém se importa. Parece que a convivência com
tysicos tirou a noção da consciência e extinguiu a consciência do perigo (...)
Flávio de Lorél (Correio Joseense, 01/05/1921:02).
A descrença na atuação dos órgãos de segurança sanitária levou à
“organização de uma Liga para dar combate ao terrível flagelo da tuberculose”
(Correio Joseense, 10/01/1921: 01). Os membros dessa iniciativa deixavam claro:
“é preciso antecipar que essa nobre associação visará combater a tuberculose, e não
os tuberculosos, pois isto, sem motivo justificável, seria condennado, impraticável
por ser deshumano” (Idem, Ibidem).
O impasse da proposta tendo o doente como motor da economia mostrava
seus perigos. Além da ameaça constante que representavam as atentadas cuspidelas
no chão, a cidade estava mal afamada nos discursos dos clínicos de fora que não
recomendavam a cidade para quem quisesse fixar residência. Mesmo porque,
“desde que para aqui vierem são suspeitos e como tal não tem o direito de cuspirem
no chão” (Correio Joseense, 18/04/1920).
Pelo visto, essa fala causou incômodos a alguns joseenses. Na edição de 09
de maio, a primeira página trazia a manchete “Da Cathedra à Palmatória”. Essa
edição trouxe uma resposta à crítica feita por um colunista intitulado Girondino, da
Gazeta do Povo, que dizia traduzir o sentimento unânime da população local,
ofendida pelos impropérios registrados no Correio Joseense. Em sua defesa, o
editor questiona o senhor Girondino:
153
Não tínhamos a intenção de ofender os innocentes e aquelles que
inconscientemente escarram no chão. (...) Use de franqueza ser Girondino:
merece delicadeza o attentado acintoso, provocador, proposital, irritante e
deshumano dos indivíduos que conscientemente desprezam as conveniências da
hygiene e da prophylaxia, o dever de humanidade, de altruímos e de nobreza para
com o seu próximo. (...) Qual de nós estará prestando melhores serviços ao
público, esta folha (Correio Joseense) que se bate pelo bem geral ou o snr.
Girondino que nos ameaça de não ser posto em prática os nossos conselhos pelos
doentes, somente porque a nossa linguagem foi um tanto áspera (Correio
Joseense, 09/05/1920).
Percebe-se uma animosidade por parte da imprensa joseense com relação
às duras palavras de ordem e denúncias registradas no Correio Joseense que
acabava, injustamente, atingindo a população como um todo. Em São José dos
Campos, as chamadas classes perigosas” tiveram sua dimensão ampliada. Alguns
profissionais eram considerados “mais perigosos quanto os tísicos”. Entre, as
diferentes categorias “ameaçadoras”, destacavam-se “os cozinheiros, os serventes
de mesa, os barbeiros, os dentistas e os professores públicos” (Correio Joseense,
20/06/1920).
O espaço disciplinava os corpos. No conceito de espaço disciplinador de
Foucault, o espaço é tido como um continente de poder que oprime e aprisiona
(Foucault, 1987). As propagandas determinavam fronteiras que não podiam ser
transpostas pelos doentes. No entanto, numa cidade de forasteiros, o certo é que,
como bem dizia o próprio editor do Correio Joseense, em São José, “todos são
suspeitos”.
Em anúncios publicados no Correio Joseense sobre prestação de serviços,
percebemos os espaços permitidos e proibidos aos tuberculosos:
154
Fig. 31: Propaganda de Restaurante selecionando clientes
Fonte: Correio Joseense, 1920.
Fig. 32: Propaganda de Barbeiro e cabeleireiro
Fonte: Correio Joseense, 1920
155
A rixa entre os periódicos seguiu por um bom tempo. Em sucessivas
edições, o Correio Joseense registrava esclarecimentos sobre o sentido das
denúncias:
Pelo respeito aos melindres de oito ou dez, silenciemos, mudos e impassíveis;
que pereça uma população toda, que a praga se espalhe, que o luto se
multiplique, que os bacillos proliferem, que o povo padeça, que a miséria invada
os lares, que os cemitérios se povoem, que os hospitaes se regorgitem, que tudo
isso aconteça, e muito mais do que isso, contanto que respeitemos os melindres
virginaes desses doces anjos do céo, immaculados! “Os Girondinos” (Correio
Joseense, 16/05/1920).
Apesar de tal promessa de silêncio, na mesma edição, na matéria Um
gravíssimo perigo”, o jornal mais uma vez denunciava:
Em dias desta semana, o nosso redactor foi chamado quando passava por um
negociante conceituado da rua Direita que indignado e muito nervoso, mostrou-
lhe dois enormes escarros de aspecto repellente, que naquele mesmo momento,
um indivíduo tuberculoso, alli na calçada, junto à parede e à porta do negócio,
lançara, sem a menor cerimônia.
“Veja, exclamou o negociante, neste mundo ainda gente que não gostou da
nobre campanha de seu jornal.
Estamos perdidos dessa forma. E se isto continuar!
“Que garantia temos de vida e de saúde?”
Aos poderes públicos pedimos providências enérgicas porque essa questão é de
uma importância excepcional.
Só os cegos não vêem a gravidade desse perigo.”(Correio Joseense,16/05/1920)
A certa altura da discussão, entre os editores da Gazeta do Povo e do
Correio Joseense, a querela tomou ares de sátira.
156
(Coitados dos doentes que vêm para esta cidade, são barbaramente explorados)
(Girondino, da Gazeta do Povo)
Girondino appareceu
Feito lôco no jorná,
Ameaçando de guspi,
E o chão contaminá!
Seu artigo no jorná
Na Gazeta do Alarico
Tanto ajusta qui parece
Fundo cheio dum pinico
Pro riba, noi sofremo
Verdadeira humilhação
No artigo elle taxou
Nois tudo de ladrão!
Que os doentes são coitados.
Insultados e explorados!
Nóis que temo em perigo
De baccillo ameaçado,
Inda sêmo explorado!
Como corvo na carniça,
A custa delles que comemos
Pastéis, bifes e até lingüiça.
Veja só que desaforo
(muito delles são dotô)
Hospedados em nossa casa.
Nos chamando exploradô!
Sêmos nóis os tais veiácos,
Miseráveis explorado
Elles são os viandantes
Nóis que sêmo os sarteadô!
Vejam só que má acção
Que cambada de patife
Tão morando em nossa casa
Tão chupando nosso bife.
É o mesmo que dizê
Que nóis sêmo uns chupança
Que elles são as vacas magras
Que dão Leite às nossas panças.
Isso tudo elles dizem
Que nóis sêmos gargantudo
Que tamos que é só banha
Que elles estão magro e ossudo.
Sujam o prato que comem
E infecciona nóis sem
Como o peixe come a isca
E pro cima suja o anzô!
Tudo isso elle fala
Na gazeta do Alarico
E nóis temo de agüentá
Os corcovos de burrico!
Tanto foi o seu insurto
Que amassei o tar jorná
Co’a vertige, fiquei ido
Revirei perna p’ro á.
As carcaças tão perdidas,
Só catarro de se enjoá
E guspaiada pr’as ruas
Nem se pode mais pizá.
(Francisquinho do Amará.
Correio Joseense, 16/05/1920)
157
Outros tantos versos foram publicados ironizando a atitude em defesa do
doente pelo Jornal A Gazeta do Povo”. O Correio Joseense divulgou seus
parceiros na campanha que iniciou a respeito da tuberculose. Além do apoio
público, diziam contar com a “valiosa adhesão de um destemido collega, O
Movimento” (Correio Joseense, 23/05/1920).
Diante deste quadro, a população da cidade ficava dividida em sãos e
doentes. Os doentes, que moviam a grande indústria sanatorial, acabavam por se
tornar o primeiro problema propriamente urbano; notadamente os doentes pobres,
culpados por sua conduta pouco civilizada, contaminando os “saudáveis” ares da
cidade. Percebendo o caos urbano provocado pela chegada dos tuberculosos à
cidade, em fevereiro de 1934, os médicos chegaram a fazer um apelo aos colegas
brasileiros para que o enviassem doentes sem recursos e desprovidos de guias
para internação nos sanatórios. Argumentaram sobre a
superlotação de todos os nossos sanatórios e da impossibilidade material de
amparar todos os que vêm para os climas em busca de saúde, sem meios de
tratamento. Esses infelizes continuam a afluir em procissão contínua e
desesperante, mas, por mais que nos mereçam os colegas (...), os sanatórios estão
abarrotados e fora deles, a hospedagem gratuita já esgota todas as possibilidades.
Ficam, pois, esses desgraçados a perambular pelas ruas, quando suas forças ainda
o permitem a mendigar o dinheiro da passagem de volta e a exibir um quadro
tristíssimo de doença e de miséria (Boletim Médico, 02/1934).
Essas concedidas liberdades faziam, implicitamente, parte do projeto;
vinham de encontro às políticas sanitaristas do momento que precisavam se mostrar
aparentes na atuação da política pública, quanto às ampliações dos espaços, a
criação dos postos de saúde, de melhoramentos básicos, etc. Sem, contudo, eliminar
a peça fundamental que mantinha a indústria sanatorial, o enfermo, embora
constantemente ameaçado pelas "conquistas da sciencia e (d) os magníficos
resultados da profilaxia e da hygiene". Aliás, quando essa eventual possibilidade
158
tornou-se algo próximo, São José dos Campos estava engatilhando um outro
projeto; agora, empenharia em trazer "outros tipos de indústrias" para o município e
"criar" o povo industrial.
Uma conversa entre um médico cirurgião de São Paulo e um cliente da
cidade revelava a fama de São José na época e o infeliz destino dos moradores da
cidade:
- Doutor, eu suponho que estou tuberculoso.
- Onde está residindo?
- Em São José dos Campos.
- Mau signal! Mau signal!
Feito o exame, o médico concluiu:
- Por enquanto, o senhor não está tuberculoso. Agora, pretende o senhor residir
por muito tempo n’aquella cidade?
- Eu pretendo residir toda vida lá; o clima é muito bom.
- O clima é muito bom! Nunca ouvi falar que um clima carregado de bacillos
fosse bom, quanto mais “muito bom”! Pois fique sciente: o senhor não está
tuberculoso, mas vae morrer tuberculoso, está ouvindo: tuberculoso.
- Por que?
- Porque o senhor está morando no meio de tuberculosos.
- Mas, na família, não temos ninguém doente, doutor. Com doentes não convivo.
- Mas, na sua terra não escarram os doentes no chão, nos passeios, nos jardins, no
mercado, nos bilhares, nos theatros, nas próprias residências?
- Isso é verdade!
- Pois então, um bello dia, quando o senhor freqüentar qualquer um desses
logares públicos como é fatal, uma vassoura levantará ao seu nariz as poeiras
contaminadas. E o nariz é o caminho dos pulmões.
Não é preciso a vassoura. O vento se incumbirá de carregar dos pulmões os
micróbios da peste. Se o vento não bastar, a sola do seu sapato de trazer
milhões de germens para os esparramar por toda a sua residência.
Fique descansado e seguro a sciência preconiza isso.
E não será na sua terra que a sciência ficará fallida.
Flávio de Lorél (Correio Joseense, 27/04/1921:01).
159
Fig. 33: “Poeira, um perigo para a saúde Pública”
Fonte: Amaral, 1930.
O temor do contágio acabou por difundir na cidade formas de identificar o
doente. Sinais tais como o pijama sob a calça, uma pequena tosse que fosse, a
cabeça ornada por uma boina, o jeito agasalhado de se vestir, a orelha de abano
denunciavam o TB, como eram denominados os tuberculosos (Cf. Vianna, 2004:
114). Se os TB eram discriminados em São José em piores condições ficavam os
que voltavam às cidades de origem. Talvez essa situação tenha feito com que
muitos doentes de fora da cidade, depois da cura, resolvessem permanecer por aqui.
É o que aconteceu com Noemi Ostrom Bagno, que diz o ter voltado para
160
a sua cidade porque seria discriminada como “aquela que ficou doente, que teve
tuberculose. As pessoas doentes, mesmo curadas, tinham esse complexo. Para quê
voltar... Seria sempre uma doente. Aqui (em São José dos Campos), estava em
casa”
(Cf. Vianna, 2004: 114). A tuberculose é uma doença física e moral (Boletim
Médico, 10/ 1934). Uma vez doente do peito, sempre doente do peito. O autor de
um relatório promovido na década de 40 sobre o censo dos tuberculosos na cidade
explicava a inexatidão dos dados:
os 1.024 doentes censitados representam somente aqueles que não escondem a
sua situação, além destes, há uma grande parte que nega o seu estado patológico e
o seu fichamento não foi possível pelo facto de permanecerem ocultos. (Flório,
1944: 60)
A situação dos tuberculosos era biológica e socialmente trágica. Alguns
sentiram em casa a dor da distância. Ruth Viola comentou sobre a forma de
tratamento recebida pelos familiares depois da separação por conta do tratamento
no sanatório Vicentina Aranha:
(...) Minha família vinha pouco me visitar. Na casa de minha família fui uma
vez só. Senti que na casa de meus pais, eu não era aquela de antes, era
separada as minhas coisas, eu era doente, não podia misturar, tinha que ser feito
assim. Aquilo me fazia mal. Não me senti nada bem. Fiquei três meses e não
gostei e comecei a piorar. Meus antigos amigos se afastaram, ninguém foi me
visitar, voltei para casa de d. Cenira (Apud. Braz, 1996).
Susan Sontag tratou da condição metafórica da tuberculose, das
representações sociais da doença. Atrelada à imagem do romantismo e da boemia, a
doença é ao mesmo tempo ligada à morte e ao isolamento. Ora romantizada, ora
demonizada, as representações sociais vão construindo mitos em torno da doença.
Explica a autora que qualquer doença que seja vista como um mistério e seja
profundamente temida será considerada moralmente, se não literalmente
161
contagiosa. E assim, “um número surpreendentemente vasto de pessoas que sofrem
de cancro ver-se-ão rejeitados por parentes e amigos, tornando-se objeto de
medidas de descontaminação pelas pessoas da família” (Sontag, 1984).
Manuel Bandeira, acometido pela doença aos 18 anos, comentou: “adoeci
de tuberculose pulmonar, não foi a maneira romântica, com fastio e rosas face
pálida. A moléstia, que não perdoava, caiu sobre mim com uma machadada de
brucutu. Fiquei, logo, entre a vida e a morte. E fiquei esperando a morte que não
vinha” (www.pulmonar.org.br). O lúcido escritor, proseou sobre a doença:
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(Manuel Bandeira: 1886-1968)
Os mitos criados em torno da doença aumentavam significamente o
sofrimento dos pacientes. As instruções sanitárias indicavam meios de evitar o mal.
O Correio Joseense dava conta de informar à população que “as gotas de saliva que
o tísico espelle quando fala ou tosse contém micróbios e transmite a moléstia até a
distância de mais de um metro. (O alerta deixava claro que) Um beijo amistoso
pode ser causa de tuberculose” (Correio Joseense, 13/06/1920).
Todavia, num artigo publicado no correio Joseense, em 11 de abril de
162
1943, fazia-se menção a uma cidade formada somente por tuberculosos, intitulada
“kochlândia” e que esses habitantes, graças a São José dos Campos, viviam à
vontade sem preconceito que se via em outras cidades e que, principalmente nas
clínicas, podia-se conversar e matar o tempo animadamente contando piadas e fatos
engraçados do cotidiano da cidade (Correio Joseense, 11/04/1943). Ao mesmo
tempo em que se menciona a harmônica convivência dos habitantes da cidade com
os tuberculosos, o autor deixava claro que era, principalmente nas clínicas, que a
conversa se dava de forma descontraída.
O medo do contágio reclama um controle público e real aplicação do
Código Sanitário. Essas reclamações, geradas pela sensação de vulnerabilidade,
eram decorrentes de inúmeros fatores: da ocupação dos doentes em espaços
públicos (mercearias e lojas de gêneros alimentícios), do comportamento pouco
higiênico de escarrar em vias públicas (Matos, 1994:
48). O perigo de contágio no mercado, espaço público de exposição de mercadorias
sujeitas à contaminação pela grande movimentação de doentes foi denunciada em
prosa e versos:
Minha comadre Joaquina
Tou aqui, tou-lhe escrevendo,
E mecê logo vae vendo,
Qual o fim de minha sina
Mal cheguei hontem do matto
Com o meu pé numa afflição,
O mardito do sapato,
Me esfolou todo o dedão.
Conforme sua encommenda,
Não querendo andá p’ra venda,
Fui comprá logo a farinha
No mercado onde é fresquinha
Fui chegando ressabiado
Desconficando do perigo
Que nóis temos é inimigo
Muito dellle intizicado,
A esbarrá no nosso imbigo.
O perigo está por tudo,
É no chão ater pelo á
Si nóis tudo ficá mudo,
Doença acaba com o lugá
No mercado é uma tristeza,
Os doentes estão tussindo,
É no chão até na meza,
Estão cruzando, indo e vindo,
163
É na alface, é na verdura
Tão pegando, tão cheirando,
O toucinho vão furando
E agarrando rapadura.
Tem um cabra que é um colosso
Todos dizem que é um turcão
(E tem mais carne do que osso)
Vae mettendo logo a mão,
Nem mecê não adivinha
Bem no sacco da farinha,
E comendo um punhadão
O restante cahe no sacco,
A maneira de cavaco
Que se atira com o formão
Já provei com testemunha,
Que na própria rapadura,
Para sabê si ella é pura,
Vão cravando logo a unha,
Desse jeito eu acho bão.
É fervê todo o alimento
Nem que seja cem por cento,
Inclusive o requeijão.
É esquentando até a rapadura
Nem que fique sem doçura
É conselho que lhe dá.
Francisquinho do Amará
(CorreioJoseense, 1/11/1920:03).
Fig. 34: Mercado de São José dos Campos, 1930.
Fonte: Amaral, 1930.
164
O objetivo do enunciado era afirmar tacitamente a negação do
comportamento. A metáfora da doença, aqui materializada em verso, caracterizava
ações criando opiniões. A sátira foi um recurso de linguagem bastante utilizado pelo
jornal em forma de zombaria, para depreciar atitudes ou manifestações que deveriam
ser condenadas pelo contexto da contaminação. No intuito de cutucar os doentes,
achincalharam-se atos corriqueiros que boa parte da população praticava. Cuspir e
escarrar na rua, um costume de época, passava a ser um comportamento denunciador
da conduta dos indivíduos. Zombando do doente, a tira cumpria seu processo
comunicativo.
Na década de 1920, o ponto central da política médica foi colocado na
educação sanitária. Procurava-se somar, ao ‘policiamento sanitário’, o método de
persuasão pela palavra buscando a consciência dos indivíduos. Policiar e educar
tornou-se o lema do período. São Paulo viu, por exemplo, o surgimento de várias
inspetorias que tinham como finalidades básicas fiscalizar o estado higiênico dos
diversos espaços que compunham a cidade (a casa, a indústria, o hospital, etc.). As
inspetorias tinham como principal objetivo ‘ajudar’ a população, principalmente os
mais pobres, no processo de conscientização sanitária.Tendo como objetivo a
persuasão, a utilização dos versos no jornal foi um procedimento de estilo que
realizou um julgamento crítico com o propósito de influenciar o interlocutor. Com
um valor argumentativo explícito em potencial, a sátira foi empregada para
denunciar ações e sujeitos das ações.
São José dos Campos sanatorial, a Babel moderna, criada para reunir os
homens doentes, impedindo que se espalhassem por todos os cantos, acabou por
separá-los. O mito da Babel valeparaibana de início do século expressou a luta do
homem doente por seu espaço vital, no momento de descentralização da doença em
São Paulo. São José, espaço favorecido para acolher esses homens, firmou-se como
165
centro de tratamento da doença dividindo irremediavelmente os homens em sãos e
doentes.
A cidade não só alojou como promoveu a doença. No relatório que João
Flório, elaborou na cada de 40, lê-se: “São José dos Campos é um foco ativo de
tuberculose por encontrar número considerável de indivíduos que adquiriram a
doença na cidade” (Flório, 1944: 58-9). Para Flório, as condições pecuniárias dos
tuberculosos, assim como a falta de habitações na zona sanatorial para acomodar a
população forasteira doente “tem obrigado a população a viver em promiscuidade
com as pessoas doentes obrigando-os a um contágio permanente” (Idem, Ibidem).
A mercantilização da doença mudou a paisagem da cidade. Os bancos dos
espaços públicos foram retirados para proteger o saudável convívio social da
população. A retirada dos antigos bancos de descanso da Praça Cônego Lima
anunciada no Correio Joseense foi considerada “uma resolução feliz e acertadíssima,
além de ser altamente humanitária e hygiência”. Justifica o periódico:
Aquelles bancos não eram mais que alçapões que atrahiam os transeuntes e os que
nos momentos de folga por ali passassem.
Bastava um minuto de descanso e eis que, os que alli passassem, seguramente
levariam para suas casas, a fim de distribuir às suas famílias o lodo dos escarros
chumbando à sola dos sapatos.
Os escarros alli, às vezes, assumiam proporções taes que se tornavam verdadeiros
pequenos lagos...
Abençoada hora essa em que os bancos foram retirados daquelle local. essa
victoria deu ao Correio Joseense uma auréola de nobre benemerência.
Aquelles bancos, 4 ou 6 eram sufficientes para a destruição completa da cidade,
para a ruína inexorável, certa, infallível e toda a população...
A nosso ver deveria ser absolutamente prohibida a freqüência dos tuberculosos
naquella praça pública. Flávio de Lorél” (Correio Joseense, 03/04/1921:03).
166
Fig. 35: Escarradeira
Fonte: pulmonar.org.br
167
Essa distância, feita de proximidade, proporcionada pela própria
regionalização da paisagem, se encontra na lógica da construção cartesiana do
sujeito. Conforme enfatiza Olgária Matos, dessa tradição, somos tributários. Somos
fruto, segundo a autora,
da geometrização do espaço, do cálculo numérico da natureza, da separação do
corpo e da alma, do rompimento iluminista com a tradição e a idéia de progresso.
Esta idéia arquiva o passado, para construir um espaço homogêneo, contínuo,
identitário, unidimensional. A noção de progresso faz do presente mera mens
momentânea, carente de recordação (Matos, 1994: 48).
Fig. 36: Vista aérea da geometrização do espaço que segregou doentes e sãos em
São José dos Campos em 1939.
Fonte: Amaral, 1930
168
A doença deixou marcas nas edificações da cidade. Alpendres e varandas
passavam a ser espaços exigidos pelas novas determinações habitacionais. Por meio
desses espaços, o ar e a luz são capazes de chegar às casas. O espaço privado do lar
passou a se constituir em oposição ao espaço da rua. Em São José dos Campos, as
residências modernas do final da década de 1920 e início da década de 1930 ditavam
o novo estilo de morar, re-significando as ruas e privatizando o espaço do lar. A
fachada avarandada e a organização interna da casa imprimem o novo significado
simbólico do jeito de morar.
Fig. 37: Casas em estilo moderno.
Fonte: Vianna, 2004:142.
Esse tipo de arquitetura era imposto por volta de 1909, por meio de um
decreto da Câmara. Esse documento diretrizes para os prédios a serem
construídos com alinhamento distante de 20 palmos reservando uma área para
ajardinamento, subordinando as construções às posturas municipais (Ata da Câmara
169
Municipal de 15/03/1909). O hábito de tomar café no bar Paulistano promoveu o
uso reservado das xícaras dos clientes assíduos do bar que não eram doentes.
Marcadas com o nome evitava-se compartilhar da perigosa xícara do tuberculoso
(Apud Vianna, 2004).
Provavelmente, o passado temeroso pelo contágio, expresso também pelas
construções arquitetônicas esteja ainda refletido no comportamento do joseense. As
formações discursivas expressas em falas, gestos, atitudes, olhares e
comportamentos associaram uma memória discursiva. Essa memória tornou possível
a perpetuação do enunciado. Na rede de formulações enunciadas construiu-se uma
memória do passado. A memória supõe o enunciado inscrito na história (Brandão,
2002: 76 - 77).
Especificamente com relação aos discursos produzidos em São José dos
Campos no início da década de 1920, pode-se aferir que promoveram a memória e,
portanto, separaram e elegeram dentre os elementos constituídos numa
determinada contingência histórica, aquilo que, numa outra conjuntura dada, pôde
emergir e ser atualizado, rejeitando o que não deve ser trazido à tona.
170
CAPÍTULO III
Identidade Sanatorial: Os silêncios da Memória
A urgência do pensamento é a resposta
humanamente possível à necessidade de
compreender o que se passa e, posteriomente, à
capacidade de ajuizar os acontecimentos e seus
atores. Pensar é, pois, corresponder aos
desdobramentos do agir que nos atingem como
ruína ou como salvação (Hannah Arendt. A
dignidade da política).
O que é identidade? Existe identidade fixa? Quem formula as identidades?
Quem diz o que sou e o que não sou? Essas são algumas das questões prementes da
atualidade. O conceito de identidade é bastante complexo e está sendo revisitado
pelas Ciências Sociais. Zygmunt Bauman fala em Modernidade Líquida. Esse
conceito projeta-nos num mundo em que tudo é ilusório, onde a angústia, a dor e a
insegurança causadas pela “vida em sociedade” exigem uma análise paciente e
contínua da realidade e do modo como os indivíduos são nela inseridos. Por conta da
inconstância do viver em condição moderna, temos a sensação de desorientação
(Bauman, 2005).
Stuart Hall, em Identidade cultural na Pós-modernidade (1997), em
essência, argumenta sobre essa sensação de desorientação: as velhas identidades -
sustentadas pelo conceito Iluminista de identidade, que por tanto tempo estabilizou o
mundo social - estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada
“crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança,
que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável
171
no mundo social.
Hall nos apresenta três concepções de identidade: a do sujeito do
Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno. O sujeito do
Iluminismo estava baseado numa concepção do indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro"
consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia
e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo -
contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da sua existência. O centro essencial do eu
era a identidade estável da pessoa, concepção "individualista" do sujeito e de sua
identidade (Hall, 1997).
A noção de sujeito sociológico reflete a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito o é autônomo e
auto-suficiente, mas formado na relação com "outras pessoas importantes para ele",
que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos
mundos que ele / ela habitava. De acordo com essa visão, a identidade é formada na
"interação" entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um cleo ou essência
interior que é o "eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo
com os mundos culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem
(Idem).
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o
"interior" e o "exterior" - entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que
projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que
internalizamos seus significados e valores, tornando-os "parte de nós" contribui para
alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no
mundo social e cultural. Essa nova concepção de identidade surge em meio aos
172
movimentos sociais da segunda metade do século XX, quando assistimos uma
movimentação cultural de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade.
Nessa concepção, a identidade costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto
os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificados e previsíveis. Argumenta-se, entretanto, que são
exatamente essas coisas que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido
como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;
composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as
paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
"necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de
mudanças estruturais e institucionais (Idem).
O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em
nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma "celebração
móvel": formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall,
1985).
Como percebemos, a identidade é definida historicamente, e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Carregamos
identidades contraditórias com as quais nos identificamos temporariamente
(Idem:13). Hall explica: “se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós
mesmos ou uma confortante ‘narrativa do eu’” (Hall, 2000).
173
A leitura de Hall foi imprescindível para que pudéssemos compreender que
a crise da identidade moderna, evidenciada pelo discurso da falta de identidade da
cidade, tão falada e professada por grande parte da população joseense, não passa do
resultado da substituição das velhas identidades por novas identidades. Sobretudo
porque,
em toda parte estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que
estão suspensas, em transição, entre diferentes posições, que retiram recursos, ao
mesmo tempo, de diferentes tradições culturais e que são o produto desses
complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num
mundo globalizado (Hall, 1997: 88).
Ao estabelecer residência fixa em São José dos Campos, em pleno
movimento de reconstrução do conceito de identidade no mundo moderno, constatei
o resultado prático desse mundo globalizado
1
e a instabilidade das tradições.
Negociei minha identidade a partir das configurações e sistemas culturais do espaço
joseense. Pela leitura de Charles Taylor (1997: prefácio) refletimos acerca de como
a identidade é negociada a partir das configurações. Para Taylor, é a configuração
que sentido a nossas respostas morais, quando julgamos que dada forma de vida
vale de fato a pena, quando fazemos juízos acerca do que é valioso, quando damos
sentido à vida respondendo às demandas pessoais e enquadramentos morais (Taylor,
1997).
A identidade é definida pelos compromissos e identificações que permitem
identificar o que é bom, ou valioso, ou o que se deveria fazer ou aquilo que se
1
Como argumenta Anthony McGrew (1992), a "globalização" se refere àqueles processos,
atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo,
em realidade e em experiência, mais interconectado. A globalização implica um movimento
de distanciamento da idéia sociológica clássica da "sociedade" como um sistema bem
delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na "forma como a vida
social está ordenada ao longo do tempo e do espaço" (Giddens, 1990: 64).
174
endossa ou o que se opõem. Trata-se, portanto, do horizonte dentro do qual somos
capazes de tomar uma posição (Idem: 27). Esse horizonte, segundo Taylor, fornece
as bases de caráter moral para a reformulação das identidades modernas. Minha
posição, assim como da maioria dos moradores de São José sobre a identidade da
cidade estava carregado de significados morais. Fazemos julgamentos de sistemas
culturais justamente porque precisamos reforçar a identidade que carregamos.
Uma identidade é definida, segundo o autor,
pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte
em cujo âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou o
que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros
termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição.
As pessoas podem ter sua identidade definida e parte por algum compromisso
moral ou espiritual, como católico ou como anarquista, por assim dizer. Ou podem
defini-la em parte pela nação ou tradição a que pertencem, digamos, como armênio
ou um nativo de Quebec. O que as pessoas estão dizendo com isso não é apenas
que estão fortemente ligadas a essa concepção espiritual ou antecedentes, mas que
isso oferece a estrutura dentro da qual podem determinar que posição defendem
em questões sobre o que é bom, ou válido, ou admirável ou de valor (...) estão
dizendo que, caso viessem a perder esse compromisso ou identificação, estariam,
por assim dizer, como náufragas; não mais saberiam, com respeito a uma
importante gama de questões, qual seria para elas a significação das coisas (Idem:
44).
Se a nossa identidade tem vínculo com a configuração, uma parte da
resposta à nossa interrogação de quem sou eu” tem orientação histórica. Nossa
identidade,
definida pelo que quer que nos forneça nossa orientação fundamental, é na verdade
complexa e multifacetada. Somos todos moldados pelo que julgamos
compromissos universalmente válidos (ser católico ou anarquista) (...), bem como
por aquilo que compreendemos como identificações particulares (ser armênio ou
nativo de Quebec) (Taylor, 1997: 44).
se responde à pergunta: “quem sou eu” a partir da posição em que se
encontra o interlocutor, emaranhado em orientações sociais e morais. Perder essa
orientação ou não tê-la encontrado é “não saber quem se é. E essa orientação, uma
175
vez conseguida, define a posição a partir da qual você responde e, portanto, sua
identidade” (Taylor, 1997:46). É através da identidade que nos orientamos, que
damos sentido às coisas, que definimos o que é e o que não é importante para nós. É
nesse sentido que Taylor define o ser humano como sendo um self que se move num
certo espaço de indagações, em busca de uma orientação para o bem. O self é em
parte constituído por suas auto-interpretações que, por sua vez, não o totalmente
explícitas.
Quando se propôs estudar a identidade de São José dos Campos a partir do
processo de produção do discurso da cidade e de seus moradores, é porque
tínhamos a plena convicção que
estudar pessoas é estudar seres que existem em certa linguagem, ou que são
por ela parcialmente constituídos. (...) Uma linguagem existe e é mantida no
âmbito de uma comunidade lingüística. (...) se é um self no meio de outros.
Um self nunca pode ser descrito sem referência aos que o cercam (Idem, 1997:
53).
Isso nos conduziu à questão da interlocução. Por meio da linguagem, nos
ligamos aos parceiros do discurso. Estamos inseridos em redes de interlocução. Se
esse discurso é resultado da configuração e das propostas enunciativas de grupos
hegemônicos, ele vai sendo construído a partir das necessidades estruturais da
sociedade. No caso de São José dos Campos, vimos como o discurso sanatorial foi
ganhando força no final do século XIX e, principalmente, nas primeiras décadas
do século XX.
Esse enunciado ganhou força à medida que passou a constar nos planos de
grupos interessados em promover não só a modernização da cidade, como também
amparar investimentos que pudessem ativar a economia da cidade, bastante
paralisada, na época, em virtude dos parcos rendimentos da economia
agropecuária.
176
A identidade é, sobretudo, um discurso da sociedade que se define a partir
da demanda do self. Em função disso, a cidade de o José se fez sanatorial e, da
mesma forma, se tornou industrial. O sentido dessas identidades ou dessas
narrativas da sociedade joseense pode ser conferido pela história dessa cidade.
Deseja-se que o “futuro ‘redima’ o passado, torne-o parte de uma história de vida
dotada de sentido ou de propósito, incorpore-o a uma unidade significativa” (Idem:
75).
Essa proposição nos remete à questão da memória. Nietzsche dizia que a
construção e manutenção da identidade baseia-se na memória e no esquecimento.
Não se constrói identidades sem memória. A memória pode ratificar ou retificar
uma identidade. Sem memória de si, a identidade não tem fundamentos para se
comportar no grupo. Sem memória de si, não é possível identificar nem tão pouco
diferenciar. Isso significa que a memória não é um atributo ou capacidade isolada
de um indivíduo, mas uma construção social (Nietzsche, 2005). Essa idéia foi
importante para entender como a memória dos joseenses ratificou a identidade
industrial, dentro daquilo que Taylor chamou de orientações do self.
Halbwachs, complementando a idéia de Nietzsche, reforçou a aquisição
social da memória a partir do conceito de memória coletiva. Para o autor,
um homem, para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente necessidade de
fazer apelo à lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que
existem fora dele, e que são fixados pela sociedade (...). O funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são palavras e
idéias que o indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio (Halbwachs,
1990: 35)
A memória coletiva, para Halbwachs, é uma formulação de imagens do
grupo que a mantém. Essas imagens se refazem no tempo, produzidas pelas relações
estabelecidas no locus social. Lembrar não consistiria em reviver, mas refazer,
reconstruir com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória,
para Halbwachs, não consistiria em reprodução do passado, mas a sua reconstrução
177
a partir de experiências coletivas. Lembrar não consistiria em reviver, mas refazer,
reconstruir com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. Logo, a
memória não seria sonho, mas trabalho.
Halbwachs estabeleceu diferenças entre memória coletiva e memória
histórica. A memória coletiva é compreendida pelo autor em seu aspecto dinâmic,
enquanto memória histórica é entendida enquanto demarcada por condições espaço-
temporais. A memória coletiva garante o sentimento de identidade do indivíduo
calcado numa memória compartilhada não só no campo histórico, do real, mas
sobretudo no campo simbólico.
Acredita-se que um dos elementos mais importantes, que afirmam o caráter
social da memória, é a linguagem. As trocas entre os membros de um grupo se
fazem por meio de linguagem. Lembrar e narrar são elementos constituintes da
linguagem. Entende-se por linguagem todas as formas de estabelecer comunicação.
São as variadas formas de se fazer enunciar e referenciar. Os enunciados, que tem
por suporte a memória de grupos, se referenciam também nos espaços habitados por
esses grupos (Halbwachs, 1997: 55).
A memória nada mais é que uma passagem que se nutre na própria dinâmica
de constantes re-construções e re-criações. O indivíduo deixa de ter uma
identidade no momento que possui outra. As pressões sociais inoculam no interior
dos homens a memória social formulada a partir de imagens do grupo que a
mantém.
O movimento de declínio da Estância climatérica como motriz da identidade
da cidade se inicia em 1950, com a instalação do CTA, com a inauguração da Via
Dutra e com a vinda das primeiras indústrias de grande porte “que configurariam o
padrão industrial local característico, voltado para o setor aeroespacial” (Vianna,
2004: 150). Concomitante a essa nova configuração espacial que se considerar a
178
descoberta de drogas para o tratamento da tuberculose, como a BCG e as medidas
preventivas de vacinação de rotina (Idem, Ibidem).
O discurso de um documento referente ao planejamento urbano do
município de São José dos Campos, em 1961, parece esboçar a construção e
manutenção da identidade industrial baseada no esquecimento. Diz o interlocutor, ao
constatar a persistência funcional da estância sanatorial, num momento em que se
vislumbrava um despontar industrial:
os joseenses desejam “esquecer” de modo definitivo esse período (sanatorial),
orgulham-se de ter conseguido expulsar do centro das casas que recebiam doentes,
apreciam afirmar que a cidade se transformou de maneira radical e nada mais
conserva das características anteriores (PMSJC, 1961: II, 7.i, g.n.).
O excesso de memória, como dizia Nietszche, envenena a vida. Daí a ação
de esquecer. Ao esquecer, “torna-se possível a alegria, a jovialidade, a afirmação do
tempo presente” (Apud. Santana, 2005). Processando essa dialética do
esquecimento, a história da cidade sanatorial vai sendo apagada da memória
coletiva. Em 1981, num documento oficial que buscava registrar a história da cidade
(PMSJC, 1981a: 2), a fase sanatorial foi omitida, como observou Paula Carnevale
Vianna:
A cidade que se representa tecnológica e se revela provinciana é fechada sobre si
mesma e sobre a imagem que construiu e que reproduz cotidianamente (...).
Considerada nos textos institucionais e não institucionais, como tendo se
desenvolvido de fato com a industrialização, a cidade tende a negar seu passado
sanatorial ou dele lembrar com pesar ou romantismo (Vianna, 2004: introdução).
A palavra pode ser tanto um escudo quanto uma flecha. Através dela “os
grupos sociais defendem sua memória e fortalecem sua alteridade buscando assim
a mesma energia que lhes dá poder e lhes confere uma identidade”
(Pimenta, 2006).
O esquecimento, segundo Nietzsche, é uma força imprescindível para a existência
saudável e plena em alegrias e afirmações. Para o pensador:
179
não seria a memória a faculdade a ser exaltada, como defende exaustivamente a
tradição de nosso pensamento mas sim o esquecimento. O esquecer, nesse
contexto, é uma força positiva que possibilita uma espécie de “descanso” de
“relaxamento”, de “paz” da consciência; momento através do qual ela libera o que
fora experimentado e vivenciado, permitindo que a novidade, que o fluxo possa
também ser vivido, que possa surgir, por sua vez, o novo
(Apud. Santana,
2005).
Quando repudiamos nossa infância como irredimível provocamos uma
espécie de mutilação na nossa memória. Quando a cidade de São José dos Campos
tenta eliminar de sua paisagem e da memória dos seus moradores os vestígios de
uma vida que a ligava à doença, favorece a mutilação da memória coletiva. Para
Taylor , existe um estreito vínculo entre as diferentes condições de identidade e o
sentido da vida (1997: 76). A vida, como uma narrativa, como uma busca, tem
sentido na história.
O nosso objeto de análise está ligado à questão da cidade e da forma como
ela é representada na memória coletiva, o que define, portanto, a sua identidade. A
pergunta está posta: como então se constrói e legitima a memória urbana? Quem
constrói, guarda e legitima a transmissão da memória da cidade e de seus habitantes?
A partir de que perspectiva social no presente e com que horizonte de futuro se fala
sobre o passado e se constrói a memória da cidade?
No caso específico de São José dos Campos, porque as pessoas costumam
dizer que a cidade não tem identidade? Esse discurso teria sido fundamentado no seu
passado e continua ecoando no presente? O presente industrial da cidade teria
negado o seu passado ligado à doença? Buscam-se elementos para justificar as falas
que manifestam a polifonia da cidade, que evidenciam os traumas causados pela
aceleração do tempo e a ruptura com a experiência social do passado. Falas que,
sobretudo, estabelecem uma ponte com o passado.
Ao problematizar a produção da memória sobre a cidade, inserimos nossa
discussão nos domínios da história urbana, por um lado, e da história da memória,
180
de outro. A cidade é uma realidade física e histórica, ligada às experiências espaciais
e temporais. A cidade contempla as memórias dos sujeitos urbanos e de suas
experiências. Essas diferentes experiências e representações sociais criam um
conjunto de significados que caracterizam a identidade urbana (Apud. Brescianni,
1992: 11 - 25; Freitas, 2000).
Como entendemos cidade como a materialização de sua própria história, não
buscamos, nesta materialização, a verdade da cidade, mas o processo de sua
transformação em objeto do discurso, a partir dos elementos constituintes das suas
formações discursivas. É exatamente nesse momento que a cidade e o discurso que
sobre ela se faz dão suporte à legitimação de certas imagens que por seu turno
deixam de ser imagens
2
e se transformam em práticas, em concretudes da cidade.
É através dessas imagens, que iremos traçar a narrativa da manutenção da
vocação industrial da cidade, o reforço do presente joseense, em detrimento de seu
passado sanatorial discutindo o que se entende por identidade. Sabemos que a cidade
não interage com os indivíduos que nela habitam, mas também os representa em
suas ruas, praças e monumentos. O espaço se transforma em interlocutor que se
comunica mediante suas construções e formas. Se esse espaço acumula as diferentes
representações das várias sociedades que nele se estabeleceram e por ele passaram,
pode-se refletir sobre sua história desvendando seus elementos.
Em toda cidade estão inscritos o seu passado e presente. Dessa forma, o
espaço urbano pode ser visto e pensado como um texto. Pensar a cidade como um
texto é compreendê-la como algo possuidor de signos constitutivos. É pensá-la como
uma imensa rede composta por inúmeras estruturas significativas sobrepostas que
2
Olria Matos esclarece a etimologia da noção de imagem, que se define como a instância
intermediária entre o sensível e o inteligível, é a “imaterialidade material”. In: Matos,
Olgária C.F., O iluminismo visionário: Benjamim leitor de Descartes e Kant. São Paulo:
Brasiliense, 1993, p.75.
181
demandam interpretações. Nesse espaço estão contidas as marcas e características
dos que nele passaram ou viveram.
A cidade, sendo “o livro de registro da sociedade” (Peterle), tem como uma
de suas marcas a transitoriedade. Pensar a cidade como uma rede imbricada de
signos (Canevacci, 1997) significa apreender não o conjunto de elementos que a
compõem e a compuseram como também os seus diversos significados. Nesse
sentido, é necessário instrumentalizar o olhar para perceber e reconhecer os
inúmeros signos impressos nos diferentes espaços da cidade.
As cidades são, antes de tudo, uma experiência visual. Através do olhar,
cenas dos espaços urbanos vão compondo paisagens cheias de traçados, construções,
vazios, templos, pessoas... A essa experiência visual, os sons da urbanicidade fazem-
nos lembrar da sua cansativa movimentação. Os veículos de circulação, equipados
com técnicas da modernidade, cortam o céu e a terra, num vai e vem de pessoas,
atarefadas com a dinâmica da vida moderna.
O espaço moderno é, antes, um espaço das profissões. O olhar permite se
encantar, indignar, revoltar, entristecer, viajar, através dos infinitos cenários
montados cotidianamente na cidade. Por eles, identifica-se a relação perversa de
criação da riqueza, intrínseca à proliferação da miséria. O caminhar pela cidade pode
se transformar em um diálogo enriquecedor, possibilitando a composição de
históricos mapas topográficos. Construções são transfiguradas, marcos e
monumentos passam a representar um outro valor, relatando o presente e a história
de uma grande e complexa rede de organização social.
Através do olhar, desvendam-se possíveis histórias. Elementos incisivos na
paisagem podem nos conduzir a arriscadas teses. Foi justamente em torno da
experiência visual que perscrutei os espaços traçados, becos, cantos e ruas,
monumentos e arquitetura da cidade de São José dos Campos, quando a encontrei.
182
Tímida, como se escondesse algo, mostrava-me apenas seu presente, afirmado pelas
paisagens de aviões e indústrias. Poucos dos elementos que compunha revelavam
seu passado. o a entendia. Talvez não estivesse amparada para compreendê-la!
Certamente não a compreenderia sem descortinar seu passado.
Suas ruas largas avisavam que aquele espaço também havia sofrido
intervenções urbanas, ligadas às teorias de remodelação de início do século XX.
Prédios, estruturas urbanas e bairros planejados pela indústria e pela técnica
apontavam a presença da modernidade. Minhas viagens pela cidade me levavam a
outras aventurosas análises. As largas ruas, documentos históricos de uma sociedade
dividida, possivelmente teriam implementado uma nova sociabilidade burguesa.
Vedadas aos pobres, se concretizaram, possivelmente como espaços modernos,
lugares de exclusão social; aventurava, mais uma vez a uma arriscada explicação.
O acúmulo de avaliações intrincadas e contraditórias realizadas
inicialmente, através da investigação visual, aumentava ainda mais o meu
desconforto. Não conseguia desvendar esse emaranhado de peças de complicado
quebra-cabeça. De fato, a cidade tenta reduzir aquele que a observa à estupefação.
Apresenta-se como um obstáculo ao analista por conta de discursos que ora a vêem
sob o signo da transparência, ora sob um manto opaco indecifrável
(Orlandi, 2001).
Procura-se ver a cidade como uma paisagem contendo uma riqueza de
interpretações, buscadas nas relações de seus moradores, nas impressões de
referências passadas registradas no seu espaço. Essa paisagem nos convida a
desvelar seus segredos, seus rumos, sua história. Da paisagem da cidade, vasculham-
se dimensões visíveis, tangíveis e ocultas, sobretudo porque a paisagem é resultante
dos elementos econômicos, sociais e culturais. Como as paisagens da cidade são
produzidas num determinado tempo histórico, o próprio espaço da cidade se
constitui em fonte que se encarrega de contar histórias. Esforçamo-nos para entender
como a cidade se materializou aqui e ali em sentidos. Procuramos atravessar esse
183
imaginário pelo político e ouvir outros sentidos. Essa formulação baseia-se na
narratividade urbana, na memória, nas lembranças e nos esquecimentos.
O espaço da cidade de São José dos Campos comporta um significativo
elemento do passado que, até pouco tempo incomodava a cidade. Ali, na rua de
mão-única
3
está alojado o sanatório Vicentina Aranha. Neste espaço, notamos a
contramão da história. Essa rua abriga um microcosmo da memória da cidade. As
ruínas desse microcosmo confirmam um sentido único da história. O itinerário dessa
rua leva a quem percorrê-la e mapeá-la, a uma sociedade que se gestou neste espaço
e que estava em vias de se apagar. Nesta rua, um dos mais importantes e um dos
maiores centros de tratamento de tuberculose do Brasil, e talvez da América Latina,
estava até a poucos anos atrás com seus dias contados.
Fig. 38: Sanatório Vicentina Aranha
Fonte: Arquivo Público do Município de São José dos Campos
3
Essa referência diz respeito não só ao sentido do tráfego de veículos na rua como também
está ligado ao conceito de mão única de Walter Benjamin, como lugar de choques e
desencontros, onde o destino dos acontecimentos não está previsto.
184
Como a abordagem que propomos para discutir a questão da identidade diz
respeito ao processo de produção de discursos, entendemos que a paisagem da
cidade produz discursos. Desta forma, a arquitetura da cidade pode se tornar um
importante registro do significado da vida social.
Entende-se que, quando, por contingências da modernidade, antigos bens
arquitetônicos são apagados, a memória coletiva se torna opaca. É certo que, sem
um passado, não há expectativa de presente ou de futuro; nem tampouco lembranças
de uma sociedade. É por isso que somente seremos capazes de realmente
apreender, entender e reconhecer a cidade por meio de sua paisagem se nesta
estiverem presentes elementos remanescentes de outros tempos” (Landim, 2004:
38). Quando estes elementos se apagam nas paisagens, ocorre a perda da identidade
urbana pela destruição de elementos que significaram vivências e relações passadas.
De acordo com Toledo, a perda das manifestações arquitetônicas e
paisagens expressivas impossíveis de serem criadas fora dos quadros que as
geraram, leva à perda justamente dos referenciais que permitem a identificação do
cidadão com sua cidade” (Toledo, 1984: 29). perda da identidade quando o
indivíduo não vê na cidade vestígios de sua própria existência e da produção cultural
de seu grupo social. Em São José dos Campos, os elementos arquitetônicos que
lembravam a fase sanatorial foram apagados para dar vazão às paisagens do novo
contexto industrial.
Os planos de remodelação da paisagem joseense a partir da década de 1950
consistiram em adequá-la às situações do momento. Conforme observou Landim,
a demanda do setor hegemônico é imposta ao restante da sociedade como
adequada e necessária, e por isso, todas as sociedades urbanas aspiram’ a ter as
mesmas condições, o mesmo tipo de organização e de disponibilidades, e não
sentem as mudanças como descaracterização (Landim, 2004: 41).
185
Lembrando-se que a leitura da cidade, a partir da sua paisagem, estimula a
percepção, e que esta, por sua vez, é de natureza subjetiva, a interpretação da
paisagem produz subjetividades ligadas ao universo do observador. As cidades
possuem imagens próprias e os habitantes
criam imagens mentais de suas cidades, imagens que podem ser pesquisadas e
analisadas revelando uma visão pública ou coletiva que, por sua vez, identifica
atributos arquitetônicos positivos ou negativos marcos referenciais para a
coletividade ou paisagens urbanas pobres e sem significado (Leite, 1998: 100).
Portanto, ler as paisagens da cidade de São José dos Campos buscando
entender as dimensões das sociedades passadas reforça a idéia de que a cidade não
tem identidade. No entanto, a problematização da identidade da cidade evidencia um
forte apego daqueles que tentam defini-la à concepção iluminista de identidade. O
caráter transitório da população e a movimentação dessa população ligada às
demandas de trabalho que a cidade oferecia deram à São José dos Campos uma
identidade também fluida e descentrada, difícil de ser mensurada ou destacada.
Também contribui para a sensação de falta de identidade o pouco sentido
que o passado tem para a cidade. Especificamente a um tempo em que a cidade
tinha, na doença, a sua referência. Histórias passadas desta paisagem, ligadas à cura
da tuberculose, foram ocultadas para dar vazão à paisagem industrial. As escritas de
um tempo sanatorial foram apagadas no texto da cidade moderna, tecnológica. As
paisagens modernas “ajudam a criar cidades cuja paisagem torna-se cada vez mais
invisível. Invisível não no sentido de inexistente, mas de não vivenciada, de não-
experimentada, ou não-percebida” (Landim, 2004: 45). Esse caráter invisível da
cidade influencia o processo perceptivo da população, particularmente o visual, o
que possibilita a formação de imagens compartilhadas pela população.
Segundo Bartalini, um dos problemas mais freqüentes que podem ser
186
detectados na paisagem urbana é a falta, ou perda de identidade visual. Os planos
urbanos, preocupados com a infra-estrutura, circulação e localização das funções,
“geralmente minimizam ou ignoram um aspecto fundamental para a qualidade de
vida dos cidadãos: a criação ou valorização de referenciais urbanos, a caracterização
fisionômica das cidades” (Bartalini, 1986).
4
A interação da população com a cidade é necessária, segundo Landim, pois
promove uma educação que não aliena o cidadão do espaço urbano, assim como
dota os elementos físicos do espaço de maior legibilidade ou de uma maior
caracterização e especificidade (Landim, 2004: p. 52). O principal elo entre o
cidadão e o espaço urbano se por intermédio da paisagem, ou seja, no nível de
representação do espaço da cidade. Para tanto, a cidade deve ser legível. Essa
legitimidade é conferida através da evidência de elementos que representam formas
de dizeres das relações de sujeitos passados com o espaço. Os marcos urbanos dizem
a cidade. Pela verificação dos marcos urbanos “é que criamos referências que fazem
que não sintamos perdidos. A verificação desses marcos urbanos não é fruto de
nossa percepção imediata, mas também de nossa percepção passada, de nossa
memória e de nossa inteligência” (Idem: 53).
Tentando ler a cidade de São José dos Campos, podemos identificar
territórios diferenciados: o bairro da Vila Ema emana um clima boêmio; o bairro das
Chácaras Reunidas está se delineando como um bairro de pequenas indústrias; o
jardim satélite caracteriza-se como zona comercial; Santana delineia-se como área
comercial ligada visceralmente à área rural do município; a zona leste é marcada
pelas grandes mansões, circunscritas em espaços fechados dos nobres condomínios;
às margens da Dutra, alojam-se as grandes indústrias, multinacionais que projetam a
4
Pode-se afirmar, segundo Landim, que “cidades desprovidas de elementos marcantes em
sua paisagem estão destinadas a uma o-caracterização e homogeneização de sua
paisagem” (Landim, 2004: 51).
187
vocação industrial da cidade nacionalmente.
A Rodovia Presidente Dutra possibilitou a metropolização de São José dos
Campos e a articulação política que viabilizou a implantação do Centro Técnico
Aeroespacial na cidade. Segundo Vianna, a rodovia inseriu definitivamente (a
cidade) no projeto nacional de desenvolvimento iniciado na década de 1950 e
impulsionado no período da ditadura militar (conforme podemos observar na tabela
04). A via, no entanto, começou a ser construída no início do século XX, assentada
sobre uma doença tornada negócio: a tuberculose.” (Vianna, 2004: 87)
Tabela 04: Variação percentual da população urbana, São José dos Campos, Vale do
Paraíba (1934-1964)
Fonte: Apud. Vianna, 2004.
1934-40 1940-50
1950-60 1960-64 1934-60 1934-64
S.J.Campos
55,8 91,9 113,7 63,6 539,2 695,9
Valedo
Paraíba
15,7 41,4 70,6 72,5 179,4 217,3
Incremento
relativo de
SJC
3,6
2,2
1,6
0,9
3,0
3,2
As atuais aspirações da população incorporam valores que sintetizam
padrões das grandes cidades modernas. A cidade é uma resultante da ação da
sociedade sobre um meio físico. A sociedade, ao produzir e utilizar o espaço urbano
elabora retratos, espelhos nos quais se reflete. Ou seja, a história da cidade, sua
cultura, seu meio de produção, seu estágio técnico e tecnológico, a divisão de
classes, a luta pelo poder, entre outros fatores, estão espelhados na configuração da
cidade. A dialética da sociedade transpõe suas imposições e necessidades para o
188
desenho urbano.
Observadora inexperiente, tinha pretensões de me instrumentalizar para
enxergar além da aparente paisagem que delimitava geograficamente o espaço
daquela cidade. Dúvidas atrozes eram lançadas: estaria certa nas minhas
investigações? O que me revelava a cidade? O que ela escondia? Seria possível
reconhecer na cidade moderna e tecnológica, plenamente integrada ao sistema
mundial algo que remetesse ao seu passado sanatorial? Sondando mais a fundo sua
paisagem, cheguei a notar pontos significativos em seu tecido. Imponentes e
extensos domínios de sanatórios desativados cortam algumas ruas do centro. Outros,
disseram-me, deixaram de existir. Nos espaços destes antigos sanatórios, a moderna
funcionalidade do lugar sequer registrou marcas dessa memória, dificultando a
investida visual do observador contemporâneo.
As pesquisas em torno da história regional, no Brasil, pelos idos da década
de 1990, alçavam alguns vôos significativos. No entanto, no caso de São José dos
Campos, tudo estava para ser feito. Poucas eram as análises que tinham como foco a
história da cidade, muitas delas fruto de memórias locais. Poucas eram as fontes
organizadas e poucas eram as instituições que davam acesso à pesquisa.
De uma coisa estava certa: havia aqui um material abundante para
observação e pesquisa histórica. Os registros feitos pelo olhar inicialmente me
conduziam à busca de amparos conceituais e à conseqüente problematização de
questões a serem investigadas. A experiência visual, que num primeiro momento, foi
fundamental para levantar os questionamentos iniciais; a certa altura, não davam
mais conta de responder às novas inquietações. Meu novo ponto de inflexão era
entender por que os moradores de São José dos Campos afirmavam que a cidade não
tinha identidade?
189
Descobri a subjetividade e o dualismo entre mim e o mundo, o sujeito e o
objeto. Estabeleci relações de identificação com os espaços, que acabavam me
dando as valiosas referências. Mas, como fazer do meu olhar subjetivo sobre a
cidade um olhar científico, legítimo? As respostas acabamos encontrando na
historiografia da cidade, visitando leituras em áreas afins. Geógrafos, arquitetos,
médicos sanitaristas, filósofos e historiadores nos ajudaram nesta expedição.
Vasculhando a história da cidade de São José dos Campos, notou-se um
passado ligado à transitoriedade. Assim como eu recém chegada à cidade, outros
tantos foram embora e novas levas de migrantes lançavam-se, ao mesmo tempo,
sobre a cidade. Na verdade, São José dos Campos se firmava como a cidade de
forasteiros. Essa é a sua identificação. Os diferentes projetos econômicos basearam-
se justamente na atração dos forasteiros.
A primeira intenção foi a de atrair os doentes da tuberculose, entretanto, a
maioria desses cidadãos em potencial era eliminada pela pequena porcentagem de
cura. A segunda tentativa foi com a gestão do projeto industrial que, pelas leis do
mercado, dinamizava uma renovação de pessoal, reforçando o caráter transitório e
flutuante da população, impedindo, mais uma vez, a sólida construção estávelda
identidade local. Uma enquete realizada em 2006 sobre os marcos referenciais da
cidade reforça essa evidência.
190
Gráfico 01: Faixa etária dos joseenses, 2002
Fonte: Miura, 2006.
Gráfico 02: Tempo de residência dos não joseenses na cidade
Fonte: Idem
191
A Tabela 04 também realça dados do crescimento migratório da cidade a
partir de 1950.
Tab. 05: Incremento censitário / cidade de São José dos Campos, 1950-80.
Fonte: FIBGE, Censos Demográficos, extraído de PMSJC, 1994 (apud. Vianna,
2004)
Vegetativo Migratório Ano Total
Habitantes % Habitantes %
1950
2.493 608 24,4 1.885 75,6
1960
5.218 2.637 45,4 2.851 54,6
1970
10.130 3.931 38,8 6.199 61,2
1980
19.598 7.796 39,8 11.802 60,2
Grande parte dos moradores da progressiva cidade de São José dos Campos,
situada na região do Vale do Paraíba paulista, concorda com a falta de identidade da
cidade. Propostas de trabalho que tenham como objetivo identificar marcas da
cidade enfrentam grandes desafios.
Sobre as dificuldades de acesso aos princípios reguladores do corpo social,
Néstor G. Canclini, em Culturas híbridas também verificou essa mesma dificuldade
ao trabalhar com signos representativos da vida e da cultura de Tijuana, pelo seu
intenso fluxo imigratório e pela sua pluralidade cultural (Canclini, 1998: 318). Uma
coisa é certa: a resposta recorrente de grande parte dos joseenses quando
investigados sobre marcas da cidade é incisiva: "São José não tem identidade". A
certeza, fruto de um processo resultante da longa duração amplamente disseminada,
acabou virando senso comum. Essa idéia, o reforçada na memória do joseense
192
apresenta-se, à luz da revisão paradigmática, como um julgamento demasiadamente
equivocado.
Confesso que também incorri neste erro, de acreditar na falta de identidade
de São José dos Campos, quando, precisos treze anos defrontei-me com ela,
evidenciando o choque do primeiro encontro. No momento, impactada pelo
desconforto da minha primeira impressão, não conseguia formular explicações
convincentes do fenômeno que sentia. Como observou o crítico cultural Kobena
Mercer, "a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando
algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da
dúvida e da incerteza" (Mercer, 1990). Comecei, então, a estabelecer fundamentos:
experimentava, parcialmente construída, a resposta vivida por um indivíduo inserido
no mundo da modernidade.
Foi duro aceitar, mas tive que admitir: o conceito de identidade que tinha,
ligado às minhas origens, estava amplamente defasado. Natural da histórica cidade
de Ouro Preto, percebia identidade como algo estável, fixo e acabado. Esta cidade,
de fato, precisa viver do seu passado. Sua economia está inteiramente ligada à
memória que se quer preservar. Seu futuro depende da preservação de seu
patrimônio histórico. Conforme observou Canclini, as hibridações nos levam a
concluir hoje que todas as culturas são de fronteira. Os valores e culturas de um
povo são intercambiados com outros
(Canclini, 1998: 348).
O que podemos inferir de tudo isso é que a identificação das marcas
representativas da cidade de Ouro Preto está diretamente vinculada ao seu passado.
Identidades são criadas, reforçadas ou traduzidas em todos os meios de
representação. As identidades, conforme Hall, podem inventar tradições ligando
passado e presente, em mitos de origem que projetem o presente de volta ao
passado. Se isso era evidente em Ouro Preto, não percebia essa relação em São José.
193
Anthony Giddens argumenta que nas sociedades tradicionais, o passado é
venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de
gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer
atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os
quais, por sua vez, o estruturados por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990:
37- 8).
A cidade, como objeto de análise, pode ser encarada de variadas formas:
como um conjunto de imagens, ou como unidade estatística e espacial” (Landim,
2004: 25). Uma cidade histórica preservada apresenta características que poderiam
ser consideradas obsoletas pelos padrões atuais, mas que representam uma vivência
passada, como é o caso de Ouro Preto. Minha referência visual foi construída tendo
como base a minha cidade de origem. Não se pode falar em paisagem a não ser a
partir da percepção, que é, por natureza, subjetiva. A percepção, segundo Collot,
“não se limita a receber passivamente os dados sensoriais, mas os organiza para lhes
dar um sentido. A paisagem percebida é, já, então construída e simbólica” (Collot,
1990: 21). Isso significa que, ao ler a paisagem, o indivíduo libera emoções,
sentimentos, atitudes e valores. Conforme destaca Landim,
a paisagem urbana representa a cidade, e assim torna-se possível conhecer a
cidade por meio de sua paisagem, pois enquanto a cidade se configura como
linguagem, a paisagem urbana apresenta-se como a sua representação, a
qual torna possível esse conhecimento, estabelecendo relações entre o modo
de representar, no caso, a paisagem urbana, e o objeto a ser representado, no
caso, a cidade (Landim, 2004: 36).
Antes de se configurar por meio do suporte físico, a paisagem urbana é,
acima de tudo, uma imagem, uma criação mental e social: “está na mente das
pessoas, nas relações de uso que se estabelecem entre os cidadãos (...)” (Idem: 29).
Nesse sentido, conforme esclarece Castells, não se pode dissociar a imagem urbana
194
do observador”. Para o autor, existe imagem quando ligada a uma prática
social. o porque ela é produzida socialmente, mas porque não pode existir (...)
a não ser dentro das relações sociais (...)” (Castells, 1983: 305 - 6). Em particular,
deixa claro o autor, a imagem existe a partir das representações que os cidadãos
fazem da sua cidade.
Pode-se dizer, então, que as técnicas, modo de produção, relações sociais e
culturais produzem paisagens urbanas e que estas imagens nada mis o que
produtos das relações sociais. As praças, ruas, casas, jardim e avenidas da cidade são
resultados de um contexto social de apropriação dos espaços construídos. Nesse
sentido, “os elementos que compõem e definem a paisagem urbana se alteram ou
persistem em razão dos usos que lhes são atribuídos” (Landim, 2004: 30).
O produto do espaço que compõe a paisagem urbana é chamado por Castells
por simbólico urbano. O simbólico urbano, segundo Castells, deve sua
especificidade precisamente à articulação das formas culturais do quadro espacial de
vida com o sistema geral das ideologias e, em particular, à sua expressão formal”
(Castells, 1983: 306).
Hall nos lembra que cultura alguma é pura, sendo sua unidade fruto de um
dispositivo discursivo que unifica a diversidade, o que considera como culturas
híbridas. Foi, inclusive, através de sua leitura que comecei a reformular as idéias e
construir novos saberes sobre as marcas de identificação. Minha primeira impressão
sobre a cidade de São José dos Campos era, para mim, justificável, embora
redondamente equivocada. Até então, tinha em mente o conceito de identidades
antigas, estagnadas. Como observou Hall, as antigas identidades deram espaço a
novas identidades, fragmentando o indivíduo moderno. Ou seja, de acordo com Hall,
"as idéias modernas estão sendo desconcentradas, isto é, deslocadas ou
fragmentadas" (Hall, 1985: 7-8).
195
Mudanças estruturais transformam as sociedades modernas, fragmentando
as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnicidade, raça e
nacionalidade que nos deram localizações sólidas como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também modificando nossas identidades pessoais, e
enfraquecendo o próprio sentido de nós mesmos enquanto sujeitos integrados.
Depois das estimulantes e reveladoras leituras, percebi que aquela
concepção de identidade fixa, permanente ou essencial que acreditava existir na
minha cidade de origem, por exemplo, tinha a ver com estágios de desenvolvimento
limitado pelo status de sociedade tradicionalmente histórica. Passei a entender que a
identidade que construí de Ouro Preto era obrigada a transparecer fixa e imutável
para facilitar a minha memorização. Se me sentia uma ouropretana de identidade
unificada, aprendi que foi somente porque construí uma história confortante ou uma
narrativa sobre mim mesma. Assim como eu, os novos joseenses adotados pela
cidade, forasteiros de diferentes naturalidades, dotados de forte identidade
confortante, ajudaram a traduzir a imagem da cidade, impregnada de memórias e
significações.
A tradução se quando formações de identidade atravessam e intersectam
as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de
sua terra natal, mas que, apesar de reterem fortes vínculos com seus lugares de
origem, não tem ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com
as novas culturas em que vivem sem serem assimiladas por elas e sem perder
completamente suas identidades. Elas estão irrevogavelmente traduzidas.
Para o autor, a tradição é o principal aspecto que se conturbado pelos
efeitos da globalização, uma vez que aspectos e conceitos anteriormente
considerados absolutos são questionados e relativizados pela modernidade. Tal
fenômeno é nomeado por Giddens, como "destradicionalização", ou seja, o processo
196
em que as tradições, sejam quais forem, submetem-se à reflexão crítica. Elas não
desaparecem, repetimos, mas são reinterpretadas, reformuladas, submetidas a uma
justificativa.
Giddens fala na crise existencial do homem globalizado, esse fenômeno,
mais que uma perturbação de vida, é um desafio à turbulência da incerteza, do
medo, da perplexidade que o cerca no mundo global. Como destaca Giddens, cada
vez mais o homem é obrigado a abdicar da rigidez das idéias, atitudes e tipos de
comportamentos fundamentados no sistema de valores tradicionais e buscar
respostas nos parâmetros de uma "modernidade reflexiva", que em muitos aspectos
ainda estão para serem formulados.
Assim, a capacidade política do indivíduo exige, fundamentalmente, revisão
de valores, sejam pessoais ou conjunturais, novas concepções do processo cultural
civilizatório em marcha na globalização. Precisa o indivíduo compreender que na
globalização cultural, ao mesmo tempo em que há muita perda, muito ganho. Que
é preciso ter domínio das contradições globais, para viver com as fragmentações e os
antagonismos de uma sociedade que faz dos conflitos a sua base de sustentação.
Entendi que a visão equivocada que tive da ausência de identidade local
estava diretamente ligada a um sistema de representação cultural, mais diretamente,
a um discurso. E que esse discurso e representação tendiam à obtenção de um senso
precoce de segurança ontológica. A confiança, nesse sentido, é fundamental para um
"casulo protetor que monta guarda em torno do eu em suas relações com a realidade
cotidiana” (Giddens, 2002: 12), sintoma das influências globalizantes. Segundo
Giddens, "atitudes de confiança em relação a situações, pessoas ou sistemas
específicos, e também num nível mais geral, estão diretamente ligadas à segurança
psicológica dos indivíduos e grupos. Confiança e segurança, risco e perigo, existem
em conjunções historicamente únicas nas condições da modernidade" (Idem: 25).
197
A formação e a transformação das identidades nacionais dão-se no âmbito
da representação, uma vez que a nação não é apenas uma identidade política, mas
um sistema de representação cultural. A cultura nacional é, portanto, um discurso. A
cultura faz parte de uma realidade em que a mudança é um aspecto fundamental. A
vivência do homem não é pré-determinada, esse adota comportamentos, atitudes e
identidades diferentes. Isso é cultura. Impossível tratar a cultura sem que se discuta
o próprio processo social concreto.
Giddens indica que a modernidade trouxe consigo questionamentos e
posturas que ocasionaram modificações de conduta generalizada e,
conseqüentemente, também na estrutura familiar, na relação de pares, na
sexualidade. uma "destradicionalização" dos valores e costumes, com uma
dissolução das tradições. Isso se dá através de um processo de reflexibilidade, ou
seja, de um processo de reflexão crítica e pessoal radical, que põe à prova os
conceitos e valores de acordo com sua validade social.
Evidentemente, tal processo não significa a destruição das tradições e
instituições, mas uma desconstrução e reformulação dos valores, com a produção de
uma intimidade mais rica e consciente, livre e responsável, em que a pessoa torna-se
mais autêntica consigo mesma. Isso é possível através da promoção das capacidades
de intercâmbio e de flexibilidade adaptativa, que dá às pessoas maiores condições de
enfrentar a labilidade que a realidade moderna traz em si.
As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de
mudança constante, rápida e permanente. Esta é a principal distinção entre as
sociedades "tradicionais" e as "modernas". A sociedade não é, como os sociólogos
pensaram, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade. Ela está
constantemente sendo "descentrada" ou deslocada por forças de si mesma. As
sociedades da modernidade tardia, argumentou Giddens, são caracterizadas pela
198
"diferença"; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que
produzem uma variedade de diferentes "posições de sujeito" - isto é, identidades -
para os indivíduos.
Baseado em Giddens, pode-se dizer que, com a internacionalização da
economia e a globalização da comunicação, o indivíduo pós-moderno vive com uma
concepção diferente do tempo e do espaço. A globalização supõe mudanças
estruturais que afetam a vida cotidiana em geral, o que influencia a consciência de
cada um ao questionar sobre mudanças de valores. O capitalismo contemporâneo é
visto por Giddens como um novo modelo de integração social, orientado por laços
que se estendem muito além das fronteiras tradicionais das comunidades e das
nações, levando em si um novo sentido de organização social e política que desafia
as atuais gerações a repensarem as raízes da experiência democrática. Este é o
sentido de A terceira via.
5
E também o sentido da teoria social de Giddens.
De acordo com Giddens, "cada um de nós não apenas 'tem', mas vive uma
biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e
psicológicas sobre possíveis modos de vida" (Giddens, 1984: XVI-XVII). No
momento em que percebia a dialética do local constatava a evidência da auto-
descoberta. Senti o quanto era importante rever meus conceitos de identidade.
Entendi que a relação entre a modernidade e a dúvida radical é uma questão que,
uma vez exposta, não é inquietante apenas para os filósofos, mas é existencialmente
perturbadora para os indivíduos comuns (Giddens, 2002: 26).
Entende-se que as cidades são, antes de tudo, uma experiência visual. (...)
E mais, um lugar saturado de significações acumuladas através do tempo, uma
5
A terceira via vem articulada em torno da proposta de uma economia que busca uma nova
relação entre o setor público e o privado servindo-se do mecanismo do mercado, tendo em
mente o interesse público. Estado e sociedade civil, numa parceria, buscam desenvolver
funções sociais.
199
produção social sempre referida a algumas de suas formas de inserção topográficas
ou particularidades arquitetônicas” (Brescianni, 1998: 237). Isso nos fez indagar
sobre o sentido das permanentes formas de manutenção do passado inscritos no
espaço urbano joseense. Da mesma forma, nos levou a questionar o passado,
visivelmente negado através de elementos que compõem o seu cenário urbano.
Foi grande a surpresa ao perceber que a leitura que fazia da cidade de São
José dos Campos não era uma visão isolada. Paula C.Vianna, também forasteira que
chegou a São José dos campos na mesma época, compartilhou da mesma leitura.
Questionava a médica sanitarista ao “viajar” pelos espaços da cidade:
como não reconhecer um passado que está ainda fisicamente incorporado ao
presente da cidade? Que ainda pulsa insistente, e se revela, mesmo ao ser re-
significado? Pistas e fios da meada aparecem, ora encobertos e transformados; as
amplas e arborizadas ruas do “centro nobre” da cidade, a concentração de
equipamentos urbanos nessa mesma região, em particular oito dos dez hospitais,
bem como outros serviços médicos de tecnologia (...) e o abandonado e ainda
imponente Sanatório Vicentina Aranha, que ocupa o espaço concreto com seus
19.033 metros quadrados de edificação murada e o espaço da memória com o
bairro ajardinado ao seu redor, um dia parte do maior sanatório da América Latina
(Vianna, 2002: Introdução)
O período sanatorial joseense foi marcado pela intensa intervenção do
Estado, representado pela prefeitura sanitária, cujo prefeito, normalmente um
político de fora, nomeado diretamente pelo governo estadual. No entanto, apesar da
ingerência administrativa, foi através das políticas e investimentos públicos e
privados do momento que São José dos Campos teve transformada a sua forma
urbana sem, contudo, contar com especialistas nessas questões. Pode-se sugerir que
a negação da fase sanatorial, caracterizada pela intervenção e imposição de vontades
que iam além das realidades da cidade, tenha ligação com a resistência da população
às intervenções públicas em questões locais.
200
A vocação sanatorial de São José exigiu investimentos estatais que, por sua
vez, ampliou a intervenção do Estado na política local. Autoritária, a remodelação
dos espaços joseenses atendia às determinações políticas mais amplas. Tratava-se de
retirar os doentes da capital do estado, afastando-a do risco das epidemias e alojar os
doentes no interior, marcando o projeto de dispersão da metrópole. Foi a partir da
doença que São José dos Campos conseguiu se urbanizar. Diretamente vinculada ao
desenvolvimento urbano,
a tuberculose pairava como uma incômoda necessidade,uma sombra sobre a
cidade de clima e povo abençoados, nascida para o progresso. No momento em
que a possibilidade de industrialização se concretiza, não há possibilidade de
coexistência pacífica entre a cidade sanatorial e a cidade industrial. A
industrialização da cidade irá se refletir no território, que será re-apropriado e
ressignificado (Vianna, 2004: 146).
Outro aspecto a ser considerado é a política intervencionista e autoritária do
Estado na fase sanatorial joseense, que se sobrepunha às políticas locais. A negação
da fase sanatorial, marcada pelo autoritarismo da política governamentista de Vargas
impôs vontades que iam além das realidades e necessidades emergentes da cidade.
Negar a fase sanatorial talvez tenha também a ver com a resistência dos joseenses às
intervenções estatais em questões regionais. Talvez este fato tenha marcado o
inconsciente coletivo, a ponto de negar essa fase em que a cidade não tinha
autonomia política.
Por outro lado, entendemos que as cidades, em sua concretude, simbolizam
os ideais de modernidade e concretizam esses ideais em incessantes rupturas com o
passado. A modernidade permeia os sentidos do efêmero, da fragmentação e da
percepção da descontinuidade da história. O impulso dominante faz do homem
moderno “entrar” em seu presente, vivê-lo plena e imediatamente. Mesmo assim, o
peso do passado viaja com o homem. O passado é um fardo que ele pode não
reconhecer como seu.
201
Por meio da memória, certa dificuldade em se resgatar, na cidade de São
José dos Campos, o lugar da tuberculose no seu passado. Num recente estudo
baseado em entrevistas, importantes memorialistas joseenses deixaram entrever os
reais motivos do apagamento do espaço da doença na memória coletiva. Indagava-se
um dos memorialistas: quem gosta de dizer que a cidade vivia da tuberculose? Não
pega bem...” (Weiss, 2003. Apud: Vianna, 2004).
A própria imagem do meio ambiente pode ser decodificada, fornecendo
pistas sugestivas da vivência do local e denunciando formas ocultas. Segundo
Lynch, "nada se conhece em si próprio, mas em relação ao seu meio ambiente, à
cadeia precedente de acontecimentos, à recordação de experiências passadas"
(Lynch, 1990: 11). De fato, o presente, ligado à tecnologia e industrialização,
nitidamente estampado na paisagem joseense, influenciou a memória.A memória,
ressaltou Halbwachs, não é um atributo ou capacidade isolada de um indivíduo, mas
uma construção social.
Talvez isso responda à dúvida presente em outro discurso de memorialista,
quando este enuncia: parece que essa cidade vivia em função da doença (grifo
nosso)” (Bagno, 2003. Apud. Vianna, 2004). Enquanto a vida paira nas
lembranças, a memória social inocula no interior dos homens as pressões sociais. É
certo que a memória faz parte da vida do homem, mas, o excesso de memória, como
lembra Santana,
envenena a vida. Daí a necessidade de, de tempos em tempos, fecharmos as janelas
da consciência (...). O esquecimento faz parte de uma salutar digestão psíquica. Ao
esquecer, torna-se possível a alegria, a jovialidade, a afirmação do tempo presente
(Santana, 2006).
O “devir” em toda parte frusta o homem do presente. De acordo com
Nietzsche, “o fato de ter memória é a glória e perdição do homem. Portanto, ele tem
202
história queira ou não queira” (Apud Santana, 2006). O esquecimento, portanto, não
é aleatório. O modo como o homem resolve lembrar algo demonstra se sua atitude a
respeito de si mesmo é destrutiva ou construtiva. Lembrou Nietzsche que “um olhar
retrospectivo a seu passado é um modo de definir seu presente e seu futuro (...).
Pode o homem decidir caminhar heroicamente a largos passos para o futuro ou
entrar nele recuando, mas não pode evitá-lo” (Apud. Santana, 2006: 357).
É por isso que Nietzsche dizia que a vida precisa do serviço da história.
Nietzsche dividiu a história em três tipos, de acordo com as necessidades do homem:
monumental, antiquária e crítica. A história monumental, segundo o filósofo, usa o
passado para condenar a mesquinhez do presente. Tende a romantizar o passado,
enaltecendo a estória dos grandes homens, ensinando os homens que as formas de
grandeza foram alcançadas no passado, minando a autoconfiança dos homens do
presente.
A história antiquária impulsiona os homens a fugir do presente
reverenciando o passado, respeitando as origens, a herança, o fruto e a floração de
um passado que não só justifica, mas também coroa o presente”
(Apud. White, 1992:
358). A história crítica, por sua vez, impulsiona demolir o passado e utilizá-lo,
também para viver. Os homens críticos levam o passado ao tribunal, interrogando-o
impiedosamente e, por fim, o condenando. A história crítica contesta os pretensos
direitos do passado sobre o presente. Para Nietzsche, o ideal seria uma síntese de
todas as três formas de uso do passado, e não de escapar do passado, pois, segundo o
autor, “ao passado não se escapa.” Complementa Nietzsche:
na medida em que somos simplesmente a resultante de gerações anteriores, somos
também a resultante de seus erros, paixões e crimes; é impossível
desembaraçarmo-nos dessa cadeia. Embora condenemos os erros e pensemos que
escapamos deles, não podemos escapar do fato de que provimos deles. Quando
muito, daí resulta um conflito entre nossa natureza inata, herdada e nosso
conhecimento (...) (Cf. White, 1992: 358).
203
Nietzsche nos faz entender a dinâmica do vir-a-ser. Numa dialética de
entendimentos, tracei os passados diferentemente usados pelas duas cidades que me
davam referências. Ouro Preto, minha cidade de origem, mantém, no passado, a sua
própria existência. Sua história monumental tende a romantizar o passado, buscando
nele a sua grandeza. Enquanto Ouro Preto cultua o passado, São José dos Campos,
por outro lado, coroa o presente, contestando o passado. Essa idéia não implica em
uma oposição entre a ação humana e o processo do mundo. Não se deve procurar
algum sujeito por trás dos fenômenos, adverte Nietzsche. Os fenômenos são, eles
mesmos, os sujeitos que o historiador procura (...) (White, 1992: 360).
As exposições históricas, segundo Nietzsche, não são simplesmente
expressões de uma intuição, mas expressões de intuições de realidades, ou, para
sermos mais precisos, de realizações. A história “ocupa-se de eventos reais, de fatos,
e não de eventos imaginados”. Portanto, exige uma sintaxe própria para delinear
suas explanações em torno do que os fatos significam. E essa sintaxe não é senão o
conjunto de regras do discurso e prosa corrente da cultura ou civilização a que o
próprio historiador pertence (White, 1992: 399).
Com certeza, as estratégias interpretativas trabalhadas o esgotam as
possibilidades existentes para a representação do fenômeno histórico definido. A
tentativa de entender a identificação do passado da cidade através dos elementos de
preservação de seu passado na paisagem urbano tem a ver com a dialética peculiar
da existência.
Para os gregos, a cidade tinha uma relação muito nítida entre a
materialidade construtiva e a cultura urbana. A cultura tinha necessidade de uma
certa aplicação prática para poder ser legitimada. A cultura urbana grega originava-
se da relação simbólica que unia lugar construído aos seus habitantes e a sua história
204
confundia-se com as vivas memórias coletivas, ilustradas pelos monumentos que
adornavam a cidade” (Della Pergola, 2000: 24).
Da mesma forma, São José dos Campos reproduz, por meio do sistema
urbano, seu horizonte de referências. Seu espaço, assim como de todas as cidades,
está carregado de sentido. Conforme declarou Lévi-Strauss, podemos descobrir a
história de uma sociedade seguindo os traços de suas pedras, (Apud. Castells, 1983:
304), desde que tomemos ciência que a existência dessas pedras tem estrita relação
com as práticas ideológicas e com a cultura urbana.
Quando se propôs fazer uma hermenêutica do espaço joseense tivemos uma
certeza: não deveríamos nos ater apenas a uma simples decifração das formas.
Caracterizar uma cidade por seus monumentos não basta para desvendar sua
estrutura simbólica. Segundo Castells, “é preciso determinar o sentido preciso de
cada monumento, não historicamente, mas na sua transcrição segundo o código de
interações – que organiza efetivamente as relações sociais” (Castells, 1983: 318).
A hermenêutica urbana estuda as mediações expressivas através das quais
se concretizam processos ideológicos produzidos pelas relações sociais numa dada
conjuntura” (Idem: 308). O espaço urbano, deixa claro Castells, não é um texto
escrito, mas uma tela permanentemente reestruturada, por um simbólico que se
modifica à medida da produção de um conteúdo ideológico pelas práticas sociais
que agem na e sobre a unidade urbana” (Idem, Ibidem).
Estamos certos de que as formas urbanas emitem uma multiplicidade de
mensagens. Certos também estamos de que a leitura dessas mensagens tem
imbricada relação de decodificação com o observador, social e subjetivamente
situado dentro desse espaço.
205
Na década de 1970 promovia-se imagens positivas da cidade de São José
dos Campos, “quando se realizou uma intensa campanha para atrair investimentos
privados e blicos para a cidade e, ao mesmo tempo, incutir na população novos
hábitos e conceitos de vida, até então considerados provincianos” (Miura, 2006: 80).
Uma década antes, em pleno florescimento industrial, já se providenciava a bandeira
da cidade, exibindo uma engrenagem sobre fundo azul e branco.
Fig. 39: Bandeira da cidade de São José dos Campos
Vianna explicou os significados dos elementos que compõem a bandeira:
Supostamente um símbolo de integração entre o município e os demais óros
federativos do Estado, a alusão à indústria não poderia ser mais clara: a terra ainda
era considerada generosa, embora não produtiva, e os ares transformaram-se em
pano de fundo para a tecnologia da aeronáutica que se consolidava. O avião torna-
se o símbolo da cidade, que se vangloria por ser ‘o maior pólo de pesquisa e
produção de ciência e tecnologia no país’, possuidor de ‘um moderno complexo
industrial (Vianna, 2004: 97).
Em 1968, o hino endossou o significado dos elementos da bandeira. Os ares
apontados pela neblina e pela proximidade da Mantiqueira reforçam novamente as
condições climáticas e espaciais favoráveis, não mais para atrair tuberculosos, mas
indústrias. A hospitalidade enfatiza a cordialidade da nova demanda: as forças
ligadas à industrialização. Da escola tecnicista à oficina, concluía-se o estágio
exigido pelo novo mercado.
206
Hino de São José dos Campos
Ei-la envolta na neblina
Debruçada na colina,
Sob o olhar da Mantiqueira
São José a hospitaleira
São José bicentenária
Das mãos de Anchieta nascida,
Desta terra legendária
Que alegre vivas unida
No teu trabalho febril
Que o orgulho sejas do Vale
A cidade que mais cresce
Pois o título desvanece
Ei-la envolta na neblina
Debruçada na colina,
Sob o olhar da Mantiqueira
São José a hospitaleira
São José bicentenária
De operário a estudante,
Teu sangue novo estoante
Flui da escola à oficina
E da fé te ilumina,
Unes o livro ao esmeril,
Terra de obreiro e de bardo,
Que tens Cassiano Ricardo
O Poeta do Brasil
A cidade, como lembra Ítalo Calvino, é feita "(...) das relações entre as
medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado (...). A cidade se embebe
como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata." O passado,
contido na cidade, aparece "como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas
grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos
mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes,
esfoladuras" (Calvino, 1990: 14).
207
As diretrizes do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de 1970
(PDDI, 1970: 09) trazem os “Objetivos estratégicos Gerais” do plano; qual seja: “a
capacidade de conveniência de aumentar o número de indústrias e oferta de
empregos”. A estratégia anunciava a educação e a cultura como elementos em
potencial para a promoção da imagem da cidade. Um dos itens tratava da
possibilidade de a cidade vir a reforçar o seu papel de pólo de atração,
especialmente em função educativa, cultural e recreativa, dentro da sucessão de
importantes núcleos urbanos distribuídos no Vale do Paraíba, ao longo da Via
Dutra. É necessário estimular o desenvolvimento sócio-cultural da cidade
reforçando a imagem de São Jo dos Campos como pólo regional no Vale do
Paraíba (PDDI, 1970: 09).
Na verdade, o planejamento estratégico cria as condições de sua instauração
enquanto discurso e projeto de cidade. O plano estratégico fala em nome de uma
cidade idealizada, cuja construção engendra a promoção do pertencimento. O
marketing urbano visava atrair investimentos públicos e privados, através da política
de concessão de benefícios para instalação de novas empresas. Dever-se-ia
promover a imagem positiva da cidade. Para tanto, foram utilizados
programas de rádio nas emissoras locais, veiculação de programas em emissoras
de televisão em rede nacional e outdoors no centro urbano, todas elas veiculando a
imagem de “cidade progresso” associado à imagem dominante do ‘Brasil gigante’
do período do ‘milagre econômico’. Uma das frases utilizadas para simbolizar a
identidade de ‘cidade progresso’, naquele período, era ‘São José dos Campos
acompanha os passos do gigante (Miura, 2006: 80).
A cidade foi administrada como se fosse uma empresa. Ver a cidade como
empresa significa “concebê-la e instaurá-la como agente econômico que atua no
contexto de um mercado e que encontra neste mercado a regra e o modelo do
planejamento e execução de suas ações” (Apud. Miura, 2006: 82). Subordinada à
lógica do mercado, a cidade foi gerenciada segundo os princípios de organização da
produção.
208
Em 1980, o José dos Campos havia consolidado o perfil de pólo regional
proposto na década de 1970. Sua economia, impulsionada pelo setor aeroespacial
com destaque nos setores bélico, de telecomunicações, automobilístico e eletrônico,
classificava a cidade entre as dez maiores potências econômicas do Estado e entre as
20 do país. Era a maior consumidora de energia do Estado e o do município
paulista em arrecadação de imposto de circulação de mercadoria (ICM). O setor
industrial
impulsionava a economia, empregando 50.000 de seus 287.513 habitantes; o setor
de material de transporte liderado pela Embraer empregava 32,6% da mão-de-obra
da indústria, seguido do setor de material elétrico e de telecomunicação (13,1%
dos empregados da indústria). O município crescia a uma taxa cerca de 2,5 vezes
maior do que a média do país. A área urbana correspondia a 143 Km
2
, ou 12,7%
do total do município e abrigava 89,1% da população (Vianna, 2004: 156).
De fato, na década de 1980, não havia dúvida quanto a vocação industrial
da cidade. Apesar da força da representação, alguns marcos referenciais urbanos do
passado sobrevivem, principalmente quando agregam conceito de valor para a
sociedade, ou seja, quando, de alguma forma, foram apropriados e preservados pela
população. A presença, na atualidade, de monumentos históricos na paisagem
urbana representa a sedimentação de processos sociais e ideologias dominantes que
foram significantes na história da cidade. Os marcos referenciais do passado
“perdem a sua função original, mas continuam existindo porque a população lhe
atribui outro valor, seja ele cultural, religioso, funcional ou até sentimental” (Miura,
2006:03).
Na paisagem da cidade de São José dos Campos percebemos acanhadas
marcas de um passado de um tempo em que imperavam as fazendas. Também
encontramos alusões escassas, embora resistentes de sua olvidada fase sanatorial. No
entanto, a paisagem joseense não deixa dúvidas, ela recende uma marca consolidada
pelo setor terciário, que ingressa São José no rol das cidades pós-industriais,
209
conduzindo-a para o meio técnico-científico e informacional (Miura, 2006). A cada
referência espacial dos inúmeros signos reverenciados pela história local pode-se,
através de sua existência, traçar seu grau de importância e atribuição dada pela
cidade.
Nossa análise de processo de produção de discurso tem no espaço a busca
de uma linguagem. Este discurso, segundo Orlandi, “tem uma memória, desenvolve-
se em um espaço próprio, que se constitui por relações que sustentam a própria
existência deste espaço como um espaço vivido / dividido com seus gestos de
significação” (Orlandi, 2004: 26). Na atualidade, é através do marketing urbano que
se produz os marcos referenciais. Se os urbanistas definem como marketing urbano
a produção de materiais de propagandas ideológicas veiculadas pela política pública,
os lingüistas determinam essa produção como discurso social.
Orlandi, citando Angenot (1984), define o discurso social como “tudo o que
se diz, tudo o que se escreve em uma sociedade dada (tudo o que se imprime, tudo o
que se fala hoje na mídia” eletrônica). Tudo o que se narra e se argumenta, o
narrável, o argumentável em uma sociedade dada (...)” (Apud. Orlandi, 2004: 57).
Em 2001, São José dos Campos era o 37º município do país em qualidade
de vida, com considerável índice de desenvolvimento humano (IDH). Responsável
por 7% do total das exportações brasileiras; possuía o segundo maior PIB industrial
brasileiro e assegurava a classificação de município pólo e centro regional do Estado
conferido pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) (Vianna,
2004: 80). Essas informações transcendem os meros e estampam na escrita da
cidade suas formas representativas.
Os marcos referenciais de uma cidade representam a materialidade do
processo de sua historicidade. Ler os marcos referenciais inscritos numa paisagem
210
urbana é entender as tramas do viver social, é desvendar elos de ligação do espaço
com suas relações econômicas, sociais e culturais. Para essa leitura talvez sejam
importantes algumas informações. A cidade de São José dos Campos dos
indicadores econômicos mostra a marcada concentração de renda, uma das maiores
do estado.
À luz dos registros proporcionados pela documentação (Atas, relatórios,
periódicos, almanaques, memórias), procurou-se situar a imagem que fotografias
produzidas da cidade evocavam. Sabendo-se que a linguagem fotográfica é uma
construção, a leitura das imagens permite estabelecer relações, idéias e práticas para
efetivação e consolidação de propostas. As fotografias trazem em si uma construção
e uma representação da realidade "a partir de seus próprios códigos de linguagem,
que remetem para a cnica específica empregada os ângulos, o enquadramento e a
luz escolhidos, entre outros elementos, que constroem, em conjunto, a mensagem
que a foto informa" (Maciel, 1997: 145).
Walter Benjamin salienta que os textos são, na verdade, uma indicação dos
caminhos a seguir para nos aproximarmos das fotografias. São instruções para
contemplá-las e lê-las. A fotografia não permite a contemplação livre; ao
contrário, ela orienta a recepção num sentido como traço distintivo das revistas
ilustradas. Agora são as fotografias que ilustram os textos que apenas confirmam as
imagens (Benjamim, 1994:174-5).
Apresentaremos, a seguir, pontos da paisagem urbana joseense para
entender como o espaço foi configurado e mostrar o sentido que a cidade e
estabelece com o seu passado. Tentaremos desnudar cenas particulares de um viver
coletivo, narrando como parte da paisagem, com o olhar soberbamente envolvido.
As fotografias, utilizadas apenas como recurso de ilustração, registram evidências
das experiências de grupos e de memórias desses grupos.
211
O espaço central que outrora acolhia um dos hospitais da comunidade
israelita foi soterrado pela nova demanda cultural. Em seu lugar, surgiu o parque
Santos Dumont. Sua paisagem, repleta de foguetes, aviões e réplica do 14 Bis,
reforça a identificação que se quer dar à cidade. Na sua configuração, sequer
menção de um tempo ligado à doença e ao hospital israelita.
Fig. 40: Réplica do avião Bandeirantes/Parque Santos Dumont
Fonte: Miura
212
Fig 41: Maquetes da família Sonda/
Parque Santos Dumont
Fonte: Miura
213
Fig 42: maquete do 14 Bis / Parque Santos Dumont
Fonte: Miura
O arco japonês da praça principal da cidade, com os inúmeros jardins
nipônicos, inclusive situados na sede da nova Câmara Municipal, representa o poder
e energia de uma grande potência tecnológica e industrial, um modelo a ser seguido.
214
Fig 43: Pórtico de entrada do Parque Santos Dumont
215
Fig 44: Arco japonês da Praça Afonso Penna
216
Fig 45: Jardim Japonês do espaço da Câmara Municipal
Fig. 46: Um dos jardins japoneses do Parque Santos Dumont
217
Uma propaganda veiculada recentemente sugeriu novamente a simbologia
japonesa. O sol nascente, estilizado, aparece num recente logotipo da cidade. O
material ressalta o processo de verticalização e a dominação do espaço da cidade
pelas aeronaves, enfeitando os ares da pós-modernidade.
Fig. 47: Logotipo da cidade / 2004
Como a cidade deixou de ser apenas um objeto ou um instrumento, o
meio de realizar certas funções vitais; o seu estudo permitiu também um quadro
de relações interconscienciais e de uma atividade que consome sistemas de signos
complexos (Idem, Ibidem). De acordo com Francastel,
as sociedades não criam um e outro ambiente apenas para satisfazer certas
necessidades físicas ou sociais, mas também para projetar num espaço real de vida
algumas das suas ambições, das suas esperanças, das suas utopias. As formas
urbanas são o produto da história. No termo 'cidade', mais do que o rigor dum
conceito acumula-se uma grande soma de experiências históricas (apud..
Roncayolo, 1986: 396 - 7)
Giuliano Della Pergola explica esse comportamento, que é próprio de
algumas sociedades modernas. Segundo o autor,
218
a convicção de que a importação e a utilização das tecnologias possam vir a ser a
fonte de transformação e aumento de riqueza cria elites modernizantes por toda
parte. O seu ponto de referência cultural consiste em um gradual afastamento dos
valores locais para, em seu lugar, introduzir uma cultura internacional. Tais elites
fazem parte de um mundo cultural que tem a sua raiz no coração dos países
industrializados. É o modelo de desenvolvimento desses últimos, o modelo
perseguido na ilusória convicção de que seja o melhor (Della Pergola, 2000: 66).
A sociedade urbana, antropologicamente falando, diz respeito a certo
sistema de valores, normas e relações sociais, possuindo uma especificidade
histórica e uma lógica própria de organização e de transformação (Castells, 1983:
127). Essa concepção explica, em parte, os valores defendidos pela cultura joseense.
As formas espaciais urbanas, com toda sua “nova decoração” tenta apagar da
memória coletiva uma cultura urbana ligada ao “passado doente” da cidade, partindo
da afirmação de um presente que se propõe como modo de vida. Essa postura,
logicamente, tem sentido, uma vez que, conforme observou Castells,
é o habitar, a vida cotidiana, que produz o espaço (...) Ele é a expressão da
iniciativa humana, e esta é então a fonte produtora do espaço e da organização
urbana.(...) o espaço e a estrutura urbana são puras expressões transparentes da
intervenção dos atores sociais. (1983: 150)
A cultura urbana gera um “inconsciente urbano” no plano e organização do
espaço. Ritmos e atividades marcam a comunicação de representações. Isso porque,
“desde que exista a cidade, existe ao concomitante funcionamento urbano uma
linguagem urbana”. (Castells, 1983: 317). Essa linguagem urbana torna-se
homogênea com a materialidade dos símbolos, reforçados nos espaços da paisagem.
Um importante marco simbólico da cidade de São José dos Campos, é o
sanatório Vicentina Aranha, considerado na época um dos maiores e mais bem
equipados sanatórios da América Latina. A edificação, que até há pouco tempo
esteve murada e abandonada, foi o maior e mais bem equipado sanatório da América
Latina. Orgulho da cidade, no passado, quase perdeu sua importância como
219
referência. O tempo, mais poderoso que os homens, foi providenciando o seu
tombamento, à revelia de seus moradores. Entre viver ou morrer, o Vicentina
sobreviveu. Atualmente se constitui num importante espaço da memória.
O Vicentina Aranha, que assistiu São José dos Campos, na primeira
República, se transformar em pólo de tratamento da tuberculose, orgulho da cidade
no passado, perdeu hoje importância como referência. O passado deixou um estilo
pouco atraente de vida para as novas gerações joseenses, orgulhosas do alinhamento
da cidade no mercado globalizado. A memória joseense mutila seu passado. A
memória, enquanto saber discursivo, é afetada pelo esquecimento, constituindo o
interdiscurso, que determina toda e qualquer formulação.
Fig. 48: Vicentina Aranha
Fonte: Miura, 2004.
220
Vicentina Aranha representa marcas importantes do cotidiano e da
representação social vivenciada por grandes contingentes da população no passado.
Sua preservação ativa a memória coletiva permitindo à população o direito à
consciência histórica, favorecendo a população a acumular suas realizações como
cultura. O espaço foi mencionado com carinho pelos vizinhos do Sanatório quando
não se tinha ainda decidido a sua compra pela prefeitura. Uma manchete do jornal
Valeparaibano noticiava em 2004 que os vizinhos do Sanatório Vicentina Aranha
torciam para que a prefeitura efetivasse logo a compra do antigo sanatório e abrisse
o espaço à população, além de transformá-lo em mais uma área de lazer pública.
Nas palavras de uma moradora, uma judiação ver tão lindo espaço
fechado. Acho ótima a decisão da prefeitura de comprar o imóvel e espero que a
área seja transformada em uma casa de cultura" (Luzia Helena Faria, 67 anos). A
luta pela preservação do sanatório possibilitou inclusive a formação de um grupo, o
“Amigos do Vicentina Aranha”. Moradores do entorno do sanatório falam com
entusiasmo sobre a compra do prédio pela prefeitura de São José dos Campos:
"Esperamos por isso há muito tempo. É lastimável ver o sanatório fechado, se
deteriorando", disse Jorge Nunes, 30 anos. Sobre a derrubada do muro que escondia
o Sanatório, Áurea Martins deixa sua impressão: "Vai ser maravilhoso. Sem o muro,
o sanatório terá outro visual e todo mundo vai poder apreciar a beleza do local.”
Conforme Kevin Lynch,
todo cidadão possui numerosas relações com algumas partes da sua cidade e a sua
imagem está impregnada de memórias e significações. Os elementos móveis de
uma cidade, especialmente as pessoas e as suas atividades são tão importantes
como as suas partes físicas e imóveis. Nossa percepção da cidade o é íntegra,
mas parcial e fragmentária" (Lynch, 1990: 12).
Como explicar a compra, preservação e tombamento do espaço do
sanatório, abrindo-o para a comunidade, depois de tantos anos encoberto na
221
paisagem da cidade? Talvez possamos explicar essa questão fundamentados em
Zygmunt Bauman. Bauman ressalta que a idéia de ter uma identidade ocorre
quando as pessoas discutem o pertencimento, ou buscam a sua identidade. O
desconforto que o sujeito da modernidade sente pelas condições da nossa era
líquida, como mostrou Bauman, faz com que se discuta a identidade. A idéia de
identidade, enfatiza Bauman, nasceu da crise do pertencimento.
A identidade industrial e tecnológica de São José foi reforçada quando se
perderam as âncoras sociais. Quando se discutia a compra ou não do Vicentina
Aranha e quando, ao mesmo tempo, surgiram grupos em defesa do sanatório, a
identificação se tornou cada vez mais importante para os indivíduos que buscavam
um “nós” a que pudessem pedir acesso para vivenciarem o pertencimento (Bauman,
2005: 30). A consolidação da identidade industrial, uma vez consolidada, permite
lapsos da memória sanatorial. Lembrar a fase sanatorial preservando o Vicentina não
representa mais um perigo para aquilo que a cidade quer ser.
Enquanto isso, outros marcos da paisagem ligados à fase sanatorial vão
sendo sobrepostos pelo novo arsenal da vida moderna. O busto do dr. Nélson
D’Ávila, um dos ícones da medicina sanatorial do momento foi verticalmente
soterrado pelas chamativas e coloridas propagandas de revistas de uma banca.
Sobre o entendimento das formas urbanas, Castells significativas
contribuições: “(...) have uma multiplicidade de mensagens que, logicamente
devem ser emitidas pelas novas formas urbanas: algumas serão dominantes, por
exemplo, a modernidade técnica, o prestígio social, a comodidade consumista, etc.
(...), (mas) são os indivíduos, e não formas que recebem a mensagem. Isso significa
que as formas se tornam dominantes se existe por trás um discurso legitimador
dessas formas, produzindo efeitos e referências, produzindo mensagens” (Castells,
1983:65).
222
Fig 49: Busto do tisiólogo Nélson D’Ávila ofuscado pelo colorido da banca
O período em que a doença era um grande negócio propiciou a cura da
cidade e preparou São José para receber suas afamadas indústrias, mantendo de
forma estável uma população amplamente aproveitada pelas primeiras fábricas.
Com o declínio da Estância Climática a partir de 1950 e com a inauguração do
CTA, da Dutra e das primeiras indústrias de grande porte, São José se prepara
para entrar na fase industrial e aeroespacial. Os espaços urbanos,
caracterizados até então como espaços de saúde e de doença, são re-apropriados: a
doença não mais iocupar a nobre área central, que se amplia para o território
antes sanatorial; uma vez expulsa, a doença como representação territorial se
223
desloca para permitir que o mote da industrialização se concretize no espaço
(Vianna, 2004:150).
O desenvolvimento, o progresso e o conhecimento estampam na cidade as
marcas ideológicas, erigindo a indústria como a força produtiva de sua própria
existência. Na nova remodelação da cidade, “o passado foi abandonado para ser
reconstruído com o que lhe conferia maior possibilidade econômica, e
posicionamento de destaque no cenário nacional” (Vianna, 2004: 184).
Para entendermos o discurso do joseense a respeito da identidade da cidade,
Orlandi nos dá algumas pistas:
Num espaço (habitado) de memória, de subjetividade, a história se formula na
noção de “eu” urbano. Esse sujeito, por sua vez, como está produzindo sentidos na
cidade – textualizando sua relação com objetos simbólicos nesse mundo particular
do urbano – vai produzir uma realidade que é estruturada de tal maneira que ns vai
dar, enquanto analistas, uma imagem de texto, do acontecimento urbano, que é
histórica e que se apresenta em seus vestígios. Este é nosso material de
observação. Nosso contato com os sentidos da cidade (Orlandi, 2004:29).
O discurso da cidade acolhedora é uma formação discursiva. Esse discurso
pratica os sentidos de convergir, congregar, agregar, globalizar, interagir,
instrumentalizar, mudar, não de acordo com a necessidade histórica, mas às
injunções da normatividade social, ao modelo imaginário responde a da
“narratividade urbana” com a divergência, a discrepância, a briga, a diferença, a
dês-transformação, a instalação, a denúncia (Orlandi, 2004:55).
A cidade de São José dos Campos, assim como as demais cidades modernas
se organizou em função do mercado, em específico, essa cidade tem, na doença, seu
princípio básico. Em função desse mercado, gerou um tipo de estrutura urbana que
reorganizou e redefiniu todo o seu espaço interno. Essa nova organização da cidade
passou a ser marcada pela divisão da sociedade em classes: de um lado os
“engenheiros” sanatoriais (administradores, interventores, médicos, comerciantes);
224
de outro, os doentes, os vendedores de sua força de trabalho, os despossuídos. O
poder centralizado e despótico dos coronéis, seguido da intervenção política do
período Vargas interferiu diretamente na condução da vida cotidiana da população
joseense.
O silêncio faz sentido quando apreendemos o exercício do ser. Somos
nomeadores e diferenciadores das coisas do mundo. Necessitamos socialmente de
reconhecer e pertencer a um espaço, a um tempo, a um grupo ou a uma ação.
Através das “teias” de uma Memória social, vivemos o que fora “capturado” por nós
mesmos ou pelo grupo ao qual pertencemos. O silêncio sanatorial no espaço da
cidade tende a ser, sobretudo, uma composição referente ao meio coletivo. A
identidade diferencia; ela exclui para conglomerar.
Ao falarmos em identidade industrial, devemos atentar para o papel da
memória. Ela pode ratificar ou retificar caminhos traçados. Assim como a memória,
a identidade também é construída e ratificada nas ações do homem. Ela pode ser a
chave para o desenvolvimento das práticas humanas e, ao mesmo tempo concede
energia que lhes poder, lhes conferindo uma identidade. A identidade mostra-se,
assim, intimamente ligada a essa adequação ao espaço e ao grupo que se quer
atingir. A identidade é o conhecimento e a construção de si ou do outro. Nesse
sentido, identidade então é “leitura, interpretação, imagem, aparência, construção;
(pode ser até) obstáculo, proteção ou ‘camuflagem” (...) buscando a si mesmo, o
homem se re-produz no tempo e na significação de si e das coisas (...)” (Pimenta,
2006:6).
Buscar identidade é destruir para construir. A identidade é uma marcação do
que não se quer ser e do que se projeta a ser. Essa implicação faz do esquecimento
uma construção das identidades pela memória. É no esquecimento que a memória
deixa de apenas permear a identidade, passando a direcioná-la, recriando-a. A
225
identidade, como ressaltou Halbwachs, é uma formulação de imagens do grupo que
a mantém. Manter a imagem de uma cidade industrial, tecnológica e espacial é uma
imagem mais confortável que a de uma cidade doente. A identidade é um campo de
conflito em que o esquecimento requer forças muito intensas para sua realização. O
esquecimento pode libertar as amarras que prendem a memória às determinações
negativas. Esquecer, como observou Nietzsche,
não é apenas uma força inercial, como crêem os superficiais, mas uma força
inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso sentido (...). O esquecimento é uma
espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta:
com o que logo se que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança,
orgulho, presente, sem esquecimento (Nietzsche: 2005: 47).
226
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos ler a cidade enveredando-nos por seus caminhos. Alguns deles
nos conduziram além dos seus espaços materializados nas suas formas concretas.
Deparamo-nos com representações simbólicas que nos suscitaram sensações e
percepções. Se representação é a presentificação de um ausente, que é dado a ver
segundo uma imagem, mental ou material, a constatação dessa representação nos
indicou uma relação ambígua entre a ausência e a presença.
Lemos a cidade dos doentes, escovando a história a contrapelo”, como diz
Benjamin, deixando entrever uma cidade esquecida, sobreposta por rígidas e firmes
camadas de uma nova condição, mais confortável e segura. A identidade de São José
dos Campos é afiançada por aquilo que é representada coletivamente: sua marca
identitária está ligada à industrialização. A imagem construída da cidade industrial e
tecnológica configura-se inegavelmente como a sua identidade.
O esquecer tem, por um lado, a afirmação desta determinação: a
manutenção e consolidação da identidade industrial. Por outro, faz aparecer as
descontinuidades que atravessam essa identidade. Não reconhecer as continuidades
nas quais se enraíza nosso presente somente faz repetir o entoado discurso de que
“São José não tem identidade”. O discurso da falta de identidade, pronunciado por
sujeitos com conceitos fixos de identidade, é que evidencia um apagamento de um
momento revelador para a história da cidade que, na doença, se fez industrial.
A questão da identidade nos remete à memória, esta, nos liga à história. A
história é filha da memória; esta célebre frase enuncia que a relação entre história e
memória é intensa e visceral. A memória não pode ser interpretada apenas como um
processo de lembrar fatos passados, ela é uma construção de referenciais sobre o
227
passado dos diferentes grupos sociais que são influenciados pelas mudanças
culturais. A memória é uma construção do presente, a partir das experiências e
vivências do passado. Ela está em constante mudança, sendo aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento. Antes de tudo, a memória é seletiva.
A memória tem fortes implicações com o passado. A história, por sua vez,
esboça relações entre passado, presente e futuro. Todas as sociedades têm passado.
Ser membro de uma comunidade humana, conforme esclareceu Hobsbawm, “é
situar-se em relação ao seu passado (ou da comunidade) ainda que apenas para
rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana,
um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade
humana” (Hobsbawm, 1998:22). O problema imposto para os historiadores, segundo
Hobsbawm, “é analisar a natureza desse ‘sentido do passado’ na sociedade e
localizar suas mudanças e transformações” (Idem. Ibidem).
Tentamos entrever as construções imaginárias dos homens de outrora nessas
muitas cidades que a cidade de São José dos Campos comporta. Percebemos que a
destruição da memória, substituindo o velho” pelo novo uniformizou saberes sobre
a cidade e generalizou o caráter de impessoalidade do contexto urbano. Permitimo-
nos, audaciosamente, uma transcendência do olhar. Imbuímo-nos da difícil tarefa de
um flâneur, que erra pela cidade, dado o complexo emaranhado de significados e
sentidos latentes que o olhar sobre ela nos permite. Tentamos, através da sua leitura,
obter a revelação da coerência de sentidos dos seus diferentes tempos.
Mudanças estruturais transformam as sociedades modernas, fragmentando
as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnicidade, raça e
nacionalidade que nos deram localizações sólidas como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também modificando nossas identidades pessoais,
enfraquecendo o próprio sentido de nós mesmos enquanto sujeitos integrados.
228
Depois das leituras estimulantes e reveladoras, percebi que aquela
concepção de identidade fixa, permanente ou essencial, que eu acreditava existir na
minha cidade de origem, por exemplo, tinha a ver com estágios de desenvolvimento
limitado pelo status de sociedade tradicionalmente histórica. Entendia que a
identidade de Ouro Preto era obrigada a transparecer imóvel e imutável para facilitar
a minha memorização. Se me sentia uma ouropretana de identidade unificada,
aprendi que foi somente porque construí uma história confortante ou uma narrativa
sobre mim mesma.
Num envolvente estudo de identidades, o auto-conhecimento vem se
delineando como um argumento de constatação, onde identidades vão sendo
construídas e socialmente reforçadas por viveres fragmentados. Assim como eu, os
forasteiros de São Jo dos Campos sustentavam sua identidade desconstruindo a
identidade da cidade. No confronto entre essas representações do que sou e do que é
a cidade, o difícil sentimento de pertencimento vai se polemizando com o meu self e
com aquilo que a cidade esconde ter sido.
Hall explica bem este fenômeno da auto-descoberta ao afirmar que, na
verdade, "o sujeito que, anteriormente tinha experiência de uma identidade unificada
e estável, está se tornando fragmentado; composto, não de uma, mas de muitas
identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas (...), resultado de uma
mudança estrutural e institucional" (Hall, 1985: 11). Isso significa que não é a
cidade que não tem identidade. Na verdade, é justamente a multiplicidade de
identidades que torna efêmera a identificação, fragmentando o ser. Os sujeitos pós-
modernos, agoniados com a falta de segurança da sua própria identidade,
transferiram para a cidade o compromisso daquilo que se idealizava ser.
229
As sociedades lidam com o passado de formas diferenciadas. Algumas m
o passado como padrão, como modelo para o presente. Outras redescobrem parte do
passado esquecido ou abandonado. Outras tantas se desligam do passado por
acreditarem que o passado não fornece nenhuma orientação às relações internas do
sistema. Neste caso, o passado deixa de ser padrão do presente quando a mudança
social acelerou ou transformou a sociedade para além de certo ponto. Ponto em que,
segundo esclarece Hobsbawm, o passado já não possa mais ser concretamente
reproduzido ou mesmo restaurado. Nesse momento, o passado fica tão distante da
realidade atual (...) que no final pode se transformar em pouco mais que uma
linguagem para definir em termos históricos certas aspirações de hoje que não são
necessariamente conservadoras” (Hobsbawm, sobre história, 1988: 29).
Rejeita-se o passado quando a inovação é identificada como “inventável” e
desejada socialmente, quando representa progresso”. Principalmente quando está
ligada à inovação, à ciência e à tecnologia, atraindo a sociedade pelas implicações
sociais e humanas da inovação. No entanto, certas inovações requerem legitimação.
E, conforme observou Hobsbawm, quando o passado deixa de fornecer precedentes
às inovações, surgem dificuldade muitas sérias. Elas não se tornam legítimas
(Hobsbawm, p. 30). Isso significa que
paradoxalmente, o passado continua a ser a ferramenta analítica mais útil para
lidar com a mudança constante, mas em uma nova forma. Ele se converte na
descoberta da história como um processo de mudança direcional, de
desenvolvimento ou evolução. A mudança se torna, portanto, sua própria
legitimação, mas com isso ela se ancora em um ‘sentido do passado’ transformado
(Idem. Ibidem).
Quando a previsão especifica um futuro diferente de tudo do passado, “a
história deixa de ser útil no instante mesmo em que mais precisamos dela”
(Hobsbawm, 1988: 31). É a história que lança luz não sobre o sentido do passado
de sociedades anteriores, mas sobre nosso próprio sentido, no qual a hegemonia de
230
uma forma (mudança histórica) não exclui a persistência em diferentes meios e
circunstâncias, de outras formas de sentido do passado. Parafraseando Hobsbawm, é
lícito dizer que “nadamos no passado como peixe na água, e não podemos fugir
disso” (Idem, p. 35).
São José, hoje a mais importante e promissora cidade do Vale do Paraíba,
não consegue viver com seu passado antes, nega-o, para reforçar um presente
vigoroso e progressista. A cidade nega uma das suas identificações e se remodela na
paisagem do progresso, apoiada na saúde e na riqueza. O passado precisa ser
esquecido para validar a fase atual. Agora, o ar poluído, outrora condenado, foi
ressignificado, passou a simbolizar avanço e modernização. Mesmo aparentemente
sem identidade definida, esta é a identidade de São José dos Campos.
Tentamos entender o processo de formação do discurso que nega a
identidade da cidade. Sabemos que é por meio da memória que os sujeitos buscam
salvar o passado do esquecimento edificando o presente e o futuro, colaborando,
dessa forma, para a formação da identidade individual ou coletiva. Ao resgatarmos e
valorizarmos nossas memórias nos reconhecemos como agentes da própria história e
do grupo. No entanto, Se a cidade apaga memórias, vão se formando lacunas que
dificultam o estabelecimento de correlações entre o passado e o presente, necessário
para que se consiga estabelecer o sentimento de pertença.
231
Fontes:
Fontes manuscritas:
Atas da Câmara Municipal de SJC/ 1905-22. Arquivo Público do
Município/SJC/CM-29.
Pareceres da Commissão de Finanças e Justiça. N. 37. Actas das sessões ordinárias
1905- 1922 (AMSJC).
Periódicos:
A Caridade, Orgam Catholico. São José dos Campos: Arquivo Público do
Município, edições de 1905-16.
Boletim Médico (1930-35)
Correio Joseense. 1920-1967.
Fontes Impressas:
Álbum de São José dos Campos, 1935. São Paulo: Organização Cruzeiro do Sul,
1934.
Anuário Estatístico de São José dos Campos apresentado ao Prefeito sanitário
Engenheiro Francisco José Longo. Serviço de Estatística Municipal, 1939.
AMARAL, João Ferraz do. Inspecção Sanitária de São José dos Campos.
Universidade de São Paulo/Faculdade de Medicina, 1930 (Trabalho apresentado
como exigência da cadeira de Hygiene).
CÂMARA, Sebastião Penna da. Almanach de São José dos Campos para 1905.
Jacarehy: Typografia da “Casa Minerva, 1905.
CABRAL, Geraldo Moacir Marcondes (org.). Boletim de História. mara
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