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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
As mulheres do filme As Horas – tessituras
do âmbito feminino no processo de recepção
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Paulista – UNIP para a
Obtenção do título de mestre em
Comunicação.
ROSANA FULVIA ZOMIGNANI
SÃO PAULO
2008
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Zomignani, Rosana Fulvia.
As mulheres do filme As Horas : tessituras do âmbito feminino no
processo de recepção / Rosana Fulvia Zomignani. São Paulo, 2008.
232 f. : il. ; color.
Dissertação (mestrado)Apresentada ao Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Paulista, o Paulo, 2008.
Área de Concentração: Comunicação e cultura midiática.
Orientação: Prof. Dr. Juan Guillermo Droguett”
1. Cinema. 2. Literatura. 3. Mulheres. I. Zomignani, Rosana Fulvia.
II. Título.
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Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Juan
Droguett, por ter me guiado, durante esses nossos
anos de convivência acadêmica, pelos árduos, mas
prazeirosos, caminhos rumo ao conhecimento, visto
que ele é uma pessoa portadora de cultura e
sabedoria singulares e, portanto, capaz de motivar
e ao mesmo tempo exigir o melhor que podemos
oferecer em termos de produção.
RESUMO
As mulheres do filme As Horas tessituras do âmbito
feminino no processo de recepção - é uma dissertação que visa demonstrar a
influência decisiva da obra–prima Mrs. Dalloway de Virginia Woolf (1925) na
adaptação do romance As Horas de Michel Cunningham (1998) e no filme de
Stephen Daldry que leva o mesmo nome, sendo esta obra cinematográfica o
principal suporte metodológico na caracterização de três personagens
femininas e sua projeção no processo receptivo do gênero.
Esta parte da problematização, relacionando-a com o percurso
da obra literária até chegar ao dispositivo fílmico no qual são representados os
desejos e as angústias de três mulheres – uma real e as outras duas ficcionais.
A primeira é a própria autora do livro que se transforma no tempo de As Horas
em personagem. A segunda, uma produção literária da primeira, que vive no
eixo temporal da trama os conflitos do amor e do abandono. A terceira, uma
criação contemporânea, debatendo-se o tempo todo com o passado, com os
“restos” que ficaram da segunda, assumindo assim o papel de amante fiel,
objeto de desejo masculino. Embora a complexidade das personagens apareça
no filme de modo indicial, o problema está na decifração e na interpretação da
subjetividade feminina, a partir da qual a mulher determina seus
comportamentos na vida real, embora na trama ficcional nem sempre esses
modelos identificatórios que se oferecem correspondem às expectativas das
espectadoras, em função de si mesmas ou do gênero ao qual pertencem.
Por esta razão, considera-se relevante, como justificativa deste
trabalho, oferecer a leitura pormenorizada da versão original do livro Mrs.
Dalloway e As Horas, assim como a decupagem narrativa do filme, seguindo
as pautas da produção e da linguagem cinematográfica. A partir deste quesito
de enunciação, desenvolve-se a caracterização de cada uma das protagonistas
e seus traços distintivos, aqueles que as projetam na tela, adquirindo
personalidade ou caráter, conforme o mérito de suas ações. São sugeridas
possibilidades identificatórias das espectadoras de acordo com as
personagens, suas ações e responsabilidades sociais na construção de uma
cultura receptiva para com o gênero.
Os procedimentos metodológicos que pautaram esta pesquisa
teórico-bibliográfica, enquanto fundamentação literária, partiram justamente da
leitura, da análise e da interpretação da obra original e de sua adaptação. O
lado prático da pesquisa consistiu na aplicação das categorias estéticas da
recepção: poiesis ou tech, aisthesis e catarse em cenas escolhidas do filme
As Horas, nas quais o protagonismo das três mulheres resulta crucial para
entender a origem sensível de suas ações, na seqüência narrativa em que se
define o caráter de cada uma delas, e o desenlace no qual se projeta o destino
das representações do gênero.
Em relação aos referenciais teóricos, buscou-se apoio em
fontes primárias que incluíram as obras literárias mencionadas. Procurou-se
destacar no trabalho, os episódios que envolviam a sociedade inglesa no
contexto literário do modernismo, assim como o pós-modernismo da adaptação
à luz da obra de Anthony Burgess, A literatura inglesa (2006) e a de David
Harvey Condição pós-moderna (2005). A obra de Marcel Martin, A
linguagem cinematográfica (2003) serviu para fundamentar os aspectos da
produção que reforçam os efeitos receptivos do filme em geral, e de cada uma
das cenas em particular. Do ponto de vista temático, foram consultadas as
obras de Gilles Deleuze, Imagem–Movimento (2005), Imagem–Tempo (2005)
e a de Andrei Tarkovski Esculpir o Tempo (2002), na qual tempo e espaço se
fusionam a favor do surgimento de uma poética da imagem. Para tratar das
mulheres e do universo social feminino, buscou-se especialmente Maud
Mannoni em Elas não sabem o que dizem Virginia Woolf, as mulheres e a
psicanálise (1999), com o intuito de saber como estas amam e se comportam
de acordo com as características típicas de seu gênero.
A estrutura da dissertação contempla, no capítulo primeiro, o
modernismo inglês, no qual surge a obra literária Mrs. Dalloway, que influencia
o romance As Horas, de Cunningham, e a posterior adaptação para o cinema
do filme homônimo de Stephen Daldry. O capítulo segundo aborda a linguagem
audiovisual para ilustrar os motivos mais relevantes do filme e a aplicação das
categorias da estética receptiva a fim de estabelecer a imagem das três
mulheres protagonistas. O capítulo terceiro apresenta uma interpretação dos
principais motivos das mulheres para se identificar, no filme As Horas, com as
situações nele vividas ou com as projeções que este suscita quanto às
reivindicações sociais do gênero.
Não se pretende tornar esta dissertação exaustiva sobre
nenhum dos variados temas que apresenta. Contudo, o que interessa salientar
nela, refere-se às mediações audiovisuais da linguagem cinematográfica que
interferem no processo de recepção, tanto pelo viés da crítica, quanto pelo viés
da identificação dos gêneros. O fim, neste caso, consiste em reconhecer a
imagem da mulher artista e criadora, esposa e mãe, amiga e amante, de
qualquer ponto de vista sexual, para a projeção do gênero feminino no contexto
de suas ações na sociedade contemporânea.
Palavras–chave: Cinema Literatura Recepção Mulheres Gênero
Feminino.
ABSTRACT
The women in the film The Hours interweaving of the
feminine scope in the reception process - is a dissertation that aims at
demonstrating the decisive influence of the masterpiece Mrs. Dalloway (1925)
by Virginia Woolf in the adaptation of the novel The Hours (1998) by Michael
Cunningham and in the film by Stephen Daldry that bears the same name
(2002), for this cinematographic piece is the main methodological support for
the characterization of three female characters and their projection in the genre
receptive process.
It starts with a problematization, relating it to the path the
literary works goes through until it achieves the motion picture in which the
desires and anguish of three women – one of them being real and the other two
fictional are represented. The first one is the author of the book herself, who
becomes a character in the time of The Hours. The second one is a literary
production of the first who lives the conflicts of love and abandonment in the
temporal axis of the plot. The third one is a contemporary creation who fights
with the past most of the time, with the “remains” that the second character has
left, thus assuming the role of the faithful lover, object of the male desire.
Although the characters’ complexity appears as an indexical way in the film, the
problems lies on deciphering and interpreting the feminine subjectivity from
which the woman determines her behaviors in real life, although in the fictional
plot these identificatory models that are offered not always correspond to the
expectations of the female spectators, in terms of themselves or of the genre to
which they belong.
Thus, it may be considered relevant as a justification to offer an
accurate reading of the original version of the books Mrs. Dalloway and The
Hours, as well as the film narrative shooting script, following the production and
cinematographic language rules. Each of the leading actresses and their
distinguishing features are characterized through this enunciation issue, this is,
the ones that project them on the screen, therefore acquiring personality or
quality according to the merit of their actions. Female spectators’ possibilities
are suggested according to the characters, their actions and social
responsibilities in the building of a receptive culture towards genre.
The methodological procedures that guided this theoretical-
bibliographic research, as its literary background, start from the reading,
analysis and interpretation of the original literary work and its further adaptation.
The practical side of this research lies on the application of the reception
aesthetic categories: poiesis or techné, aesthesis and catharsis in some scenes
chosen from the film The Hours where the three women leadership is vital to
understand their actions sensitive origin in the narrative sequence in which each
one of their personal traits are defined and the outcome where genre
representations fate is projected.
As far as theoretical referential is concerned, it is based on
primary sources which include the already mentioned literary works. This word
intends to highlight the episodes that involve the English society in the literary
context of modernism, as well as the adaptation of post-modernism from
Anthony Burgess’s book The English Literature (2006) and from David Harvey
in The Condition of Postmodernity An Enquiry into the Origins of
Cultural Change (2005). We also consulted the work by Marcel Martin, The
Cinematographic Language (2003) in order to fundament the production
aspects that reinforce the film receptive effects in general and in selected
scenes. From the thematic point of view, the books by Gilles Deleuze,
Movement-Image (2005) and The Time-Image (2005) and the literary work by
Andrei Tarkovsky, Sculpting in Time (2002), where time and space are fused
in favor of the appearance of an image poetics were consulted. To talk about
women and the feminine social universe we searched through the work by
Maud Mannoni, They Don’t Know What They Say (1998), with the aim of
getting to know how women love and behave, according to typical
characteristics of their genre.
Therefore, the dissertation structure contemplates chapter one
that deals with the English modernism, when the literary masterpiece Mrs.
Dalloway appears, which influences the novel The Hours by Cunningham and
its further adaptation to the homonymous movie by Stephen Daldry. The second
chapter makes use of the audiovisual language in order to illustrate the film’s
most relevant motives and the application of receptive aesthetic categories to
establish the image of the three main actresses. And finally, the third chapter
interprets the main reasons women may have so as to identify themselves with
the movie The Hours, with the situations lived in it or with the projections the
film makes from genre social claims.
The dissertation does not intend to be exhaustive about any of
the several themes it presents at any moment. However, what we would like to
highlight about it concerns to the cinematographic language audiovisual
mediations that interfere with the reception process, not only through the
reviewers’ point of view but also through the genre identification viewpoint. The
purpose, in this case, consists of recognizing the woman’s image as artist and
creator, wife and mother and friend and lover, from any sexual viewpoint, for the
projection of the feminine genre in the context of its actions in contemporary
society.
Keywords: Cinema – Literature – Reception – Women – Feminine Genre.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 001
Capítulo I – Da literature de Mrs. Dalloway de Virginia Woolf para o cinema
de Stephen Daldry no filme As Horas 004
1. O contexto do modernismo literário inglês 005
2. Mrs. Dalloway de Virginia Woolf 016
3. As Horas de Michael Cunningham 028
4. Transposição e adaptação da literatura para o cinema 040
5. O filme As Horas 049
Capítulo II – O filme As Horas 068
1. Ficha técnica e dados de produção do filme As Horas 069
2. Imagem da personagem Virginia Woolf 086
3. Imagem de Laura Brown 095
4. Imagem de Clarissa Vaughan 103
5. Crítica e receptividade do filme As Horas 113
Capítulo III – A ordem feminina nos processos identificatórios propostos
no filme As Horas 129
1. Identidade feminina 137
2. Virginia – o tempo de errância da mulher 151
3. Laura - abandono, culpa e ressentimento 170
4. Clarissa – o olhar amoroso da amiga e da amante 183
5. Adaptação, transposição e atualidade do tempo ficcional literário no cinema 198
CONSIDERAÇÕES FINAIS 213
BIBLIOGRAFIA 228
22
INTRODUÇÃO
As mulheres do filme As Horas tessituras do âmbito
feminino no processo de recepção é o título desta dissertação que tem como
objetivo principal mostrar a influência da obra–prima Mrs. Dalloway (1925), de
Virginia Woolf, na adaptação do romance de Michael Cunningham, As Horas
(1998), e no filme do mesmo nome dirigido por Stephen Daldry (2002), sendo
este uma alusão ao tempo ficcional da obra literária que serve para caracterizar
as três protagonistas mulheres do filme e visualizá-las como modelos
identificatórios do gênero feminino.
Com este propósito, estabelecemos os passos metodológicos a
seguir: realização de uma pesquisa bibliográfica sobre o contexto histórico-
situacional-literário no qual surge a obra da escritora inglesa. Seleção dos
principais episódios da versão original, denominados de tessituras, por se tratar
da escrita feminina, entendida como a trama na qual o protagonismo da mulher
representa o ponto chave da comunicação. Comparação desta criação com o
livro As Horas (1998) que serviu de referência para a adaptação do filme.
Escolha e decupagem das principais cenas que ilustram os pressupostos da
produção, começando pelos significantes da morte, do amor-abandono e da
angústia, focados, tratados e projetados na linguagem cinematográfica utilizada
no filme As Horas. Reconstrução da imagem de Virginia, a autora real
transformada em protagonista na trama ficcional, de Laura Brown e de Clarissa
Vaughan, também protagonistas, que fruto da imaginação da escritora.
Aplicamos nessas cenas protagônicas as categorias receptivas de: poiesis ou
tech, aisthesis e catarse. Optamos pela crítica erudita de Harold Bloom,
22
referência da mídia norte-americana para falar da originalidade literária de
Virginia Woolf e a matéria do jornalista Stephen Holden, “Quem tem medo
como Virginia Woolf?” (2002), veiculada pelo New York Times, na época do
lançamento do filme, bem como uma crítica da Folha de São Paulo escrita por
Pedro Butcher.
Desta maneira, no capítulo primeiro estabelecemos os
princípios literários do modernismo inglês nos quais nasce Mrs.. Dalloway, a
passagem para As Horas de Cunningham e as estratégias de transposição e
adaptação para o cinema, em particular as do filme As Horas de Stephen
Daldry.
No capítulo segundo, definimos os meios específicos que
utiliza a linguagem audiovisual nos filmes, ilustrando-os com as passagens
mais relevantes de As Horas. Também aplicamos as categorias da estética
receptiva, mencionadas, para a reconstrução da imagem das três mulheres
protagonistas. Formulamos o pressuposto da crítica como recepção no esteio
das representações que o cinema realiza do gênero feminino nas suas
produções.
No capítulo terceiro interpretamos os principais motivos pelos
quais as mulheres podem se reconhecer nas personagens do filme As Horas,
nas situações nele vividas e nas projeções que a ficção cinematográfica realiza
a respeito do gênero.
Esta dissertação insere-se na área de concentração
“Comunicação e Cultura Midiática”, do Programa de Mestrado em
Comunicação da Universidade Paulista - UNIP, ao sustentar que os
pressupostos da mediação audiovisual do cinema podem ser encontrados no
22
suporte fílmico As Horas de Stephen Daldry. Na linha de pesquisa
“Contribuição da Mídia para a Interação entre Grupos Sociais”, pela confluência
entre literatura e cinema, a partir da qual as estratégias de adaptação dos
suportes midiáticos no plano das artes - marcam um traço distintivo deste
processo de comunicação, produzindo a experiência estética de recepção. O
Grupo Social de referência, destinado para usufruir tal situação, são as
mulheres, representadas principalmente por Virginia, Laura e Clarissa,
protagonistas do gênero feminino na ficção, que se projetam na realidade
social, assim como a realidade social se projeta nelas.
22
Capítulo I – Da literatura de Mrs. Dalloway de Virginia Woolf para o cinema
de Stephen Daldry no filme As Horas
Neste capítulo inicial procuraremos traçar a trajetória que, a
partir de Mrs. Dalloway, obra original de Virginia Woolf, escrita em 1925 na
Inglaterra, inspirou Michael Cunningham a escrever o livro As Horas, em 1998
nos Estados Unidos, e o filme do mesmo nome, lançado em 2002, dirigido por
Stephen Daldry, no qual se fundamenta a proposta desta dissertação.
Para tanto, adentraremos no contexto histórico-social-literário
do modernismo inglês, a fim de descobrir as razões pelas quais a Primeira
Guerra Mundial, a repressão moralista vitoriana e o desejo de liberdade da
burguesia aparecem na obra de Virginia Woolf, divulgada graças ao impulso da
Revolução Industrial da imprensa que possibilitou o pioneirismo desta
escritora inglesa.
Destacamos os principais episódios da obra literária Mrs..
Dalloway (1925), situando-a no tempo e no espaço ficcional, caracterizando as
personagens principais que aparecem no filme As Horas, com outros nomes e
em outras circunstâncias.
Nesse mesmo sentido, introduzimos o pós-modernismo como a
tendência mais atual de um estilo complexo, possível e contingente, assumindo
com isto o romance de Michael Cunningham (1998) como uma versão
adaptada da obra prima na contemporaneidade.
Por fim, assinalamos a adaptação e a transposição
cinematográfica de Stephen Daldry (2002) como ponto de chegada da literatura
no registro audiovisual do filme, fazendo referência às transformações nele
produzidas com o passar do tempo e com a mudança de registro.
22
1. O contexto do modernismo literário inglês
Para entender o contexto do modernismo literário inglês faz-se
necessário partir da dicotomia homem versus máquina, do período pós
Revolução Industrial na Inglaterra, que trouxe a necessidade de se entender as
novas formas de produção, assim como de aprender a utilizá-las a favor do
trabalhador, de modo a superar a brecha que os separava. Entretanto, o
equilíbrio entre o desenvolvimento técnico e o intelectual foi rompido por uma
crise ideológica. A partir daí, a novelística inglesa passa a se dirigir a um
público mais heterogêneo e a se expressar em uma linguagem mais colorida e
menos exigente. O romance continua essencialmente baseado nos interesses
da elite e da média burguesia, fornecendo uma saída para os conflitos morais
em que estão envolvidos os vencedores da luta de classes (HARVEY, 2005: 21
44). Nesse contexto histórico situa-se a obra de Virginia Woolf, que abre um
grande precedente sobre o fenômeno do modernismo na literatura.
O modernismo literário inglês caracteriza-se por quatro fases. A
primeira é a fase de um “realismo” e “perspectivismo”, em que o romance é
definido como uma expressão total e absoluta da consciência do indivíduo,
especialmente em relação ao mundo objetivo, chamada de fase impressionista.
Nessa fase o romance é definido como a expressão do todo ou da consciência
absoluta do indivíduo, principalmente em relação ao seu relacionamento com o
mundo objetivo. Os maiores destaques dessa época foram os poemas de D. H.
Lawrence e Dubliners (1914) de James Joyce.
Na segunda fase encontra-se a independência urbana e a
indeterminação em que os objetivos narrativos são teoricamente articulados
22
através da criação das chamadas “Pequenas Publicações” e da profusão de
manifestos que, posteriormente, racionalizaram a prática literária de seus
membros. Desta forma, a fundação da revista Criterior’s, cujo editor era T. S.
Elliot, e o caráter canônico que a revista alcançou com sua inclusão no
stablishment instituição foram os precursores da primeira vanguarda social
do movimento e o degrau para o conservadorismo literário de Elliot em seu
trabalho Quatro Quartetos (1936). Os escritores modernistas acreditavam que
era necessário modelar o público leitor para que fosse possível articular um
espaço mínimo de receptividade para suas propostas poéticas inovadoras.
Na terceira fase dois movimentos sucessivos que são o
“imaginismo”, suave, simbólico e impressionista, no qual a subjetividade e o
indivíduo são de suma importância, e o “vorticismo”, mais duro, objetivo,
clássico, cubista, abstrato e reacionário.
A quarta fase caracteriza-se, no campo narrativo, pela quebra
da tradição autóctone inglesa. Seus maiores expoentes foram J. Joyce, K.
Mansfield, D. H. Lawrence e Virginia Woolf, que trazem em sua narrativa o
“negativismo”, como a deformação, a despersonização e a desumanização.
Estes conceitos estão associados à alienação e à desintegração universal da
percepção familiar. Elliot chamou essa etapa de “dissonância da imaginação
destrutiva”.
Contudo, o marco mais eminente dessa fase do modernismo
inglês é a linguagem, com a introdução do “fluxo da consciência”, em que os
pensamentos são colocados da maneira como se apresentam em nossa
mente, sem necessidade de continuidade ou de precisão gramatical, marcando
um novo estilo de expressar a realidade, o que torna mais difícil sua
22
compreensão. A linguagem é simples, mas para que o leitor consiga seguir os
rumos do pensamento do autor ou da personagem, é necessário que ele tenha
uma percepção mais aguçada. A ênfase é dada às formas fragmentadas, às
narrativas descontínuas e às colagens aleatórias de diferentes materiais.
A alienação e desintegração universal da percepção familiar
são marcas do modernismo e de Virginia Woolf. O movimento modernista
rejeita limites entre a arte culta e a popular e não faz distinções rígidas de
gênero. Destaca o papel da mulher na sociedade. Neste sentido, o uso de
palavras simples, que ilustram o cotidiano das pessoas em geral e das
mulheres em particular, faz parte do universo de Mrs. Dalloway. Virginia Woolf
acreditava que a literatura não deveria ser somente a descrição de fatos ou
personagens heróicos, mas que deveria tratar também de temas e pessoas
banais, como o cotidiano das mulheres, expondo seus sentimentos e
questionamentos a respeito da vida.
Outra característica da última fase do modernismo, no qual se
insere a obra da autora, é um sentimento de perda das bases ontológicas,
daquilo que certeza ao ser humano de ser ele mesmo, uma perda de
confiança em seu valor e identidade. Vários fatores contribuíram para isso,
como os desafios da ciência no século XX, a industrialização e o deslocamento
de pessoas de suas bases físicas e psicológicas, a associação do cristianismo
com o capitalismo e com um moralismo opressivo, expresso pela “era vitoriana”
na Inglaterra, uma crescente conscientização da variedade de culturas com
pontos de vista divergentes, porém racionais, e mudanças no pensamento
filosófico com a sugestão de que a realidade é interna e mutável, não mais um
conceito externo (CEVASCO e SIQUEIRA, 1993: 73 - 79).
22
A revolução industrial, no século XIX, teve como berço a
Inglaterra e ocasionou a mudança do trabalho manual por aquele dominado
pela indústria, principalmente têxtil e de máquinas, com a invenção da máquina
a vapor. Embora as condições de trabalho fossem precárias e cruéis, com
longas jornadas determinadas pelo ritmo das máquinas, os trabalhadores
comuns encontraram oportunidades de emprego em novas fábricas,
desbancando o poder estabelecido anteriormente pelos nobres. Homens,
mulheres e crianças deixavam suas casas rumo à faina diária, o que contribuiu
para a desconstrução da família, e deparavam-se com condições de trabalho
extremamente hostis e competitivas, piorando também o relacionamento entre
as pessoas, como afirma Anthony Burgess em seu livro A Literatura Inglesa
(2006).
O modernismo causa uma sensação de que a cultura perdeu
seus rumos, que não mais centro nem valor, mas um colapso e quebra de
valores e paradigmas em que o universo de causa e efeito do século XIX se
torna relativo, cambiante e estranho. O julgamento sai do consenso da
autoridade social, indo para a experiência individual, assim como a obra de
Virginia Woolf. O desenvolvimento de estudos e idéias que são focados na
natureza e funcionamento do indivíduo, tais como a psicologia, psicoterapia,
democratização na política e estética literária, e em processos de percepção
sugeridos pelo cubismo, impressionismo e surrealismo também são marcantes
no modernismo. Esses três movimentos, cubismo, impressionismo e
surrealismo, nascem com o manifesto surrealista de André Breton de 1924, que
mais tarde Buñuel, na Espanha, vai utilizar para aliá-lo ao cinema. Esse
movimento trouxe para o mundo um novo modo de encarar a arte, o chamado
22
“fluir do inconsciente” ou “estado puro”, mediante o qual se propunha transmitir
o funcionamento do pensamento, sem qualquer controle exercido pela razão,
alheio a qualquer preocupação estética ou moral.
Nessa quarta fase do modernismo literário inglês ocorre
também a descoberta de que as forças que governam o comportamento estão
ocultas, tanto no âmbito da psicologia como no da economia e política. Como
exemplo podemos citar as idéias de Karl Marx (1818-1883), Sigmund Freud
(1856-1939) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), provocadores de mudanças a
respeito do pensamento e das atitudes humanas. O romance Mrs. Dalloway é
um contraponto ao pensamento de Sigmund Freud, que revolucionou o novo
campo da psicologia com a divulgação de seus primeiros trabalhos. A família
Woolf tinha familiaridade com a obra de Freud, pois Leonard e Virginia
publicaram as traduções inglesas de seus escritos.
Em alguns momentos dessa quarta fase do modernismo inglês
ocorre a mudança para o místico e simbólico como meio de reaver o senso do
sagrado na experiência e de se recriar graus ontológicos sustentáveis, em que
os seres humanos são estudados metafisicamente a partir de suas
propriedades transcendentais. Contribuíram para esses estudos: Karl Jung
(1875-1961) com o conceito dos arquétipos universais, William Butler Yeats
(1865-1939) com o desenvolvimento do pensamento simbólico, D. H. Lawrence
(1885-1930) com suas noções de mistério criativo, Helena Blavatsky
(1831-1891) com a sociedade teosófica, entre outros (BURGESS, 2006: 244 -
252).
Virginia Woolf é uma escritora que faz parte desta fase do
modernismo inglês, dispensa a trama e, às vezes, até a caracterização; prefere
22
analisar detalhadamente uma atmosfera ou um pensamento tal qual se
apresenta em um determinado momento do tempo. Utiliza o procedimento do
monólogo interior para captar o fluxo da consciência, em inglês stream of
conciousness, de suas personagens. Sua prosa é elaborada e leve, o que a
aproxima da poesia pelo seu poder de evocar a atmosfera e a sensação. As
obras que mais expressam essas características são Mrs.. Dalloway (1925),
Rumo ao Farol (1927), Orlando (1928) e As Ondas (1931). Em Orlando, por
exemplo, os dons literários mais brilhantes de Virginia Woolf podem ser
observados através de uma personagem quase imortal que traça um painel da
história inglesa desde o Renascimento até a Época Moderna, passando de
herói a heroína ao longo de sua trajetória (IBIDEM: 259 - 260).
O mundo moderno de Mrs.. Dalloway é dualista e contém,
portanto, dois espaços opostos. Embora Londres esteja calma, aquecida pela
luz do verão e pela paz, depois de terminada a Primeira Guerra Mundial, o
leitor participa da luta interior das personagens que estão repletas de
contradições e infelicidades. A guerra é real, uma presença tangível no
romance. As memórias ainda estão presentes nos comentários sobre filhos e
maridos que foram mortos. Como exemplo do legado da guerra podemos citar
o personagem Septimus Warren Smith, um soldado traumatizado pela violência
que foi obrigado a testemunhar. Na época em que Virginia Woolf escreveu Mrs.
Dalloway, as vítimas do estresse pós-guerra eram chamadas de shellshocked
e suas condições mentais e psicológicas eram mal interpretadas, de acordo
com a autora no decurso de sua narrativa. Essa denominação era uma alusão
ao “ostracismo”, ao sujeito fechado em si mesmo, segundo as constatações
22
feitas por Winnicott (1896 1971) e Klein (1882 1960), precursores da
psicanálise na Inglaterra.
Mrs. Dalloway ocupa um espo importante na literatura
inglesa moderna, pois situa a ação do romance na vida mental de suas
personagens. O fato de Mrs. Dalloway se passar em um único dia nos traz
comparações com a obra de James Joyce, Ulisses (1922), uma alise épica
de um dia na vida de três cidadãos de Dublin, na Irlanda. Woolf declarou não
ter gostado desse romance, mas é provável que ele tenha influenciado o
enredo, a sensibilidade e a caracterização de suas personagens.
Para melhor compreender a obra de Virginia Woolf e sua
inserção no contexto do modernismo, particularmente em Mrs. Dalloway,
definimos o “fluxo da consciência” que Virginia coloca na mente de Clarissa
Dalloway e das demais personagens, visto que se constitui em um dos eixos da
trama ficcional da obra e de seus desdobramentos.
O termo stream of consciousness ou fluxo da consciência
também é chamado por alguns autores de “monólogo interior”. A princípio o
termo fluxo da consciência se aplicou a processos mentais para evoluir a um
conceito retórico que contém duas palavras significativas: fluxo e consciência,
que correspondem à apresentação dos aspectos psicológicos em uma
personagem de ficção. Podemos dizer, portanto, que o romance de fluxo da
consciência se identifica com aquilo que descreve, a consciência, mais do que
com a técnica ou os propósitos que contém, o que faz com que a consciência
seja o pano de fundo no qual se desenvolve a ação nessas obras literárias
(OLIVEIRA, 1979: 56).
22
Cabe salientar aqui a importância do fluxo da consciência em
seu contexto evolutivo da retórica, uma vez que interessa destacá-lo como um
recurso da antiga técnica da palavra em ato, como o perfil mais indicado para
examinar as vinculações, em primeiro lugar, da literatura, que é imagem feita
palavra e a seguir do cinema, que é imagem em movimento. Existe uma
dualidade de enfoques firmemente assentada na reflexão contemporânea
sobre a retórica, dualidade que repercute diretamente sobre a possibilidade e o
modo de sua conexão com a teoria e a prática da interpretação. Tal técnica da
palavra em ato equivale à “arte do discurso”. Seja qual for a formulação desse
conceito, existe uma característica definitória e definitiva do que é retórica: sua
distintiva e decisiva consciência de que a obra opus se consagra na palavra
oratio, cobra vida e recebe seus traços essenciais a partir de sua inserção
natural e em uma situação sócio-comunicativa na qual funciona como um fluxo
de influências de todos os fatores implicados: orador, público e contexto,
principalmente uma dualidade entre a linguagem ou discurso e a interpretação
da obra.
Isso constitui o ponto de partida do processo de recepção que
procuramos explorar a partir do próprio romance, de seu destinatário e das
razões contextuais presentes na obra e mais adiante transpostas para o filme
As Horas. Assim, esse conceito retórico do fluxo da consciência servirá como
base para indagar sobre os “processos de subjetivação” que as personagens
de Mrs. Dalloway oferecem como motivos para sua ação narrativa ao longo
desta obra literária.
Por consciência não se deve compreender inteligência ou
memória, que são mais restritivos, visto que a consciência implica uma atenção
22
mental desde a pré-consciência até os níveis da mente que incluem a
consciência da racionalidade e da comunicação e, em vista disto, a
comunicação consciente é o centro da ação comunicativa (ROUDINESCO e
PLON, 1998:131-132). O fluxo da consciência não é censurado, controlado
racionalmente ou logicamente ordenado, visto que subjaz à superfície da
personagem e explora os níveis de consciência com o propósito de revelar o
ser psíquico da mesma, como fez Virginia Woolf em sua obra.
O “fluxo da consciência” é a expressão direta dos estados
mentais, mas desarticulada, em que se perde a seqüência lógica e onde
parece manifestar-se diretamente o inconsciente
1
. Trata-se de um desenrolar
ininterrupto dos pensamentos ou do narrador (LEITE, 2002: 68). Esta técnica
apresenta similaridade com a livre associação de idéias da psicanálise
(CARVALHO, 1981:62) e também com a técnica cinematográfica moderna do
flashback. A livre associação proporciona também ao leitor a faculdade de
participar efetivamente de seu conflito (OLIVEIRA, 1979: 23-24). O flashback
ou retorno ao passado é uma técnica literária e cinematográfica na qual somos
remetidos ao passado de uma determinada personagem através de suas
lembranças e pensamentos. É a interrupção de uma seqüência cronológica
narrativa pela interpolação dos eventos ocorridos anteriormente, ou uma
mudança de plano temporal que apresenta alguma relevância quanto ao
conteúdo daquilo que está acontecendo.
Um exemplo de flashback no filme As Horas é a cena em que
Richard contempla a fotografia de uma mulher com vestido de noiva e relembra
1
Em psicanálise o inconsciente é um lugar desconhecido pela consciência: uma “outra cena”.
Trata-se de uma instância ou de um sistema constituído por conteúdos recalcados que escapam
às outras instâncias, o pré-consciente e o consciente (ROUDINESCO e PLON, 1998: 375).
22
os momentos de terror pelos quais passou em sua infância quando pressentiu
que sua mãe o abandonaria. É o instante em que descobrimos que Laura é sua
mãe e o quanto ele sentiu sua falta durante toda a vida.
Virginia Woolf descobriu essa voz própria na criação de suas
personagens por meio do desenvolvimento da forma narrativa que lhe permitiu
representar a interioridade de cada uma delas pelo desvendamento de suas
consciências; ela descobriu um universo de sutilezas e imprecisões que não
tinham voz nas narrativas tradicionais. Cabe salientar aqui que é no embate
com seu próprio inconsciente que a autora descobre e legitima as vozes da
consciência. O uso do fluxo da consciência por meio de um narrador
onisciente, das fantasias das personagens ou do discurso indireto livre faz com
que o leitor entre em sintonia com as personagens e se sinta cúmplice das
mesmas, fazendo, ele também, suas associações livres.
Nesse sentido, as fantasias advêm à consciência de modo
inusitado, motivadas pelos desejos insatisfeitos e toda fantasia é a realização
de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória (FREUD, 1996: 137,
vol. IX).
O discurso indireto livre se caracteriza por uma espécie híbrida
na qual se funde a terceira pessoa, usada pelo ficcionista para narrar a história,
e a primeira pessoa, com a qual a personagem exprime seus pensamentos de
maneira autônoma, em que a fala de determinada personagem ou fragmentos
dela inserem-se discretamente no discurso e através deste recurso o autor
relata os fatos (MOISÉS, 1974: 144).
A autora inglesa, ao trabalhar na produção da linguagem
literária com tempo e espaço subjetivos das personagens, manifesta o
22
interesse explícito de se aprofundar na alma das mesmas com o intuito de
mostrar os motivos que as levam a internalizar os sentimentos humanos.
Aproxima a linguagem literária da cinematográfica, em que o tempo e o espaço
são subjetivos, estão interiorizados nas personagens e se manifestam no
discurso das mesmas. Para ela, aspectos como probabilidade e coerência são
muletas da narrativa convencional que fazem pelo leitor o trabalho criativo que
ele deveria fazer por si só, que é imaginar (VIRGINIA WOOLF’S DIARY IN:
orlando.jp.org / wwwarc / datvwdiary.html).
Em Mrs. Dalloway todas as personagens têm um momento de
clareza e revelação, momentos em que todas as coisas se juntam e são
repletos de percepção, de visão e de sentidos. Woolf mergulha na interioridade
dos sujeitos usando técnicas como o discurso indireto livre, a livre associação
de idéias e uma prosa metafórica, nas quais as alegorias presidem a
linguagem, dando-lhe carga semântica ou conotativa (MOISËS, op.cit.:420).
Mrs. Dalloway é uma mulher que submerge em coisas
materiais e superficiais para evitar o confronto com suas emoções. O fluxo da
consciência é utilizado por Virginia Woolf para capturar os pensamentos e
sentimentos das personagens no romance e para mostrar a vida inteira de
algumas delas, seu passado, presente e até futuro, em um único dia,
alcançando grande sinergia entre elas e o enredo em que duas figuras centrais
se entrelaçam: Clarissa Dalloway, que luta contra demônios submersos na
aparência perfeita, ou seja, sente a obrigatoriedade de agir e pensar de acordo
com os padrões éticos e morais vigentes na época, enquanto, em algum outro
lugar de Londres, Septimus Smith é atormentado pelos seus demônios que se
caracterizam principalmente pela sua incapacidade de ter sentimentos. Este
22
personagem, como metáfora das lutas na mente de Clarissa, nos faz refletir, ao
mesmo tempo em que nos mostra uma divisão de classes e falsas aparências,
trazendo à tona uma das características fundamentais do modernismo inglês
que encontra em Mrs. Dalloway um alto grau de expressão literária.
2. Mrs. Dalloway de Virginia Woolf
Capas inglesas do livro Mrs. Dalloway
A partir desse contexto geral, a obra Mrs. Dalloway, cujas
personagens principais são Clarissa Dalloway e Septimus Warren Smith, será
relatada, começando-se pela análise do espaço na produção ficcional Mrs.
Dalloway. O espaço físico é Londres, passando por algumas de suas ruas e
parques e a casa de Clarissa, seu “santuário”. O santuário de uma mulher é o
espaço que ela mesma constrói ligado à tradição matricial inglesa, que advém
desde a época dos celtas. O espaço psicológico do romance dá-se em
Bourton, cidade onde Clarissa morou na infância e juventude; na Índia, onde
Peter Walsh passou vários anos; na casa de Sally Seton, em Manchester; no
front de guerra no qual Septimus lutou e na Itália, onde ele conheceu sua
esposa Lucrezia, além dos locais por onde as personagens transitaram. O que
predomina, entretanto, é a alma da cidade de Londres, sua vitalidade capaz de
proporcionar ao romance uma firme espinha dorsal. É a força viva de Londres
que cria a atmosfera de intimidade, de proximidade e de realidade.
22
O tempo do romance Mrs. Dalloway é uma quarta-feira no
mês de junho, verão de 1923, quando Clarissa Dalloway dará uma festa formal.
Ela Peter Walsh, seu amigo e antiga paixão, que voltou da Índia, então
colônia inglesa, e vai visitá-la. Este encontro e vários outros momentos no dia
fazem com que Clarissa reflita sobre seu passado e as escolhas que fez na
vida. Seu marido Richard e sua filha Elizabeth estão sempre ocupados e não
podem lhe dedicar muita atenção. Em outra parte de Londres, Septimus
Warren Smith, traumatizado por ter participado da guerra, e sua esposa
Lucrezia lutam contra o crescente desligamento deste com a realidade que os
cerca. Septimus está obcecado com a lembrança de seu amigo Evans que foi
morto na guerra. Ele está convencido de que forças ocultas estão lhe enviando
mensagens. Lucrezia, chamada por ele de Rezia, leva-o a dois médicos, mas
nenhum dos dois consegue curá-lo. Septimus se mata mais tarde, no mesmo
dia, para escapar do controle opressivo de seus médicos porque sente que não
há outra alternativa.
A maioria das personagens tem bastante tempo psicológico
ocioso. Todavia, estão sempre muito ocupadas com a tarefa de viver, o que
inclui questionamentos internos e externos que as tornam infelizes durante
grande parte do dia. Acompanhando o interesse de Virginia Woolf pelo
comportamento humano, principalmente em seu viés afetivo (Virginia Woolf’s
Diary), a sexualidade é um dos temas do romance. Entende-se por
sexualidade o conjunto de características anatômicas, fisiológicas e
psicológicas próprias de cada sexo ou de cada pessoa no que concerne a esta
realidade, que compromete a função dos gêneros, isto é, da natureza
diferenciada da espécie que assimila a diferença sexual entre o feminino e o
22
masculino. Neste sentido, a sexualidade tem a ver com as identidades das
personagens que vão se delineando de acordo com a própria ficção narrativa
da autora, que voz e participação ao sentimento de amor como correlato da
ação. Personagens como Clarissa, Sally e Peter, por exemplo, estão divididas
pelos seus sentimentos a respeito do amor e isto contribui para aguçar o
enredo no qual os protagonistas entram em conflito.
Na juventude Sally Seton foi a melhor amiga de Clarissa e
passou algum tempo com esta em Bourton. Era irreverente e gostava de
causar polêmicas, fumando charutos, andando nua pela casa e causando
confusões que a fizeram ser mal vista pela família de Clarissa, totalmente
conservadora. Ela representa o amor verdadeiro e não preenchido de Clarissa
e foi a primeira pessoa com quem esta compartilhou segredos e afeição.
Talvez seja esta a razão pela qual Clarissa foi fascinada por ela. Sally era tudo
que Clarissa não era. Surpreendentemente, aparece na festa como Lady
Rosseter, uma mulher rica e com uma família de cinco filhos, o que demonstra
que apesar de ter sido rebelde, foi engolida pelo sistema ideológico imperante
na sociedade da época.
Peter é um amigo da família e antigo pretendente de Clarissa
e não a com freqüência depois que ela resolveu se casar com Richard. Ela
não se casou com Peter pelo fato de que este a conhecia muito bem e queria
participar de sua vida física e psicologicamente, de maneira integral, o que fez
com que Clarissa decidisse se afastar dele, pois não suportaria tal invasão em
sua privacidade. Peter mudou-se para a Índia, casou-se, separou-se e
apaixonou-se novamente. No dia da festa de Clarissa ele retorna a Londres e a
visita. Ainda uma grande sinergia entre eles, que sentem que podem
22
adivinhar ou intuir os sentimentos e pensamentos um do outro, ainda que não o
demonstrem e não expressem em palavras. Depois de sair da casa de
Clarissa, Peter revisita na memória os tempos que passaram juntos em
Bourton e decide ir à festa naquela noite, embora odeie este tipo de evento
social. Lá, ele revela a Sally que Clarissa arruinou sua vida quando se recusou
a casar-se com ele. Apesar disso, ele é uma pessoa alegre e vive
intensamente.
Clarissa reflete durante todo o dia sobre seu passado e as
escolhas que fez. Apesar de Richard amá-la, não se sente confortável em
demonstrar seu afeto. Ela se sentiu atraída por ele por suas idéias diretas e
seu comando nas situações. O que ela mais aprecia nesse relacionamento é
que pode manter um abismo entre o casal e viver uma vida sem conflitos
aparentes, onde nenhum dos dois expressa diretamente suas idéias nem seus
sentimentos.
Septimus Warren Smith tem um mau dia, o que também
acontece com sua esposa Lucrezia. Antes da guerra foi poeta inteligente e bem
sucedido. Durante a guerra destacou-se por sua bravura e fez muitas
amizades, mas quando seu melhor amigo, Evans, foi morto na sua frente,
passou a não ter mais sentimentos. Casou-se com Lucrezia na tentativa de se
recuperar, no entanto nunca mais estabeleceu vínculos emocionais com o
mundo. O casal mudou-se da Itália para Londres, onde Septimus retomou seu
trabalho, contudo, aos poucos, adentrou em um processo de abismo interior,
desespero e horror. Ele ouvia vozes, especialmente as de Evans, e tornou-se
excessivamente sensível às cores e à beleza natural. Estava convencido de
que forças ocultas lhe enviavam mensagens. Os médicos da época
22
subestimavam seu problema e incorporaram-se em sua mente como ícones da
sociedade e do mal. Quando Dr Holmes invadiu seu quarto para visitá-lo,
Septimus atirou-se pela janela, cometendo suicídio. Com este ato ele entregou
seu corpo ao médico, mas não sua alma. Ele se matou para preservar, através
da morte, sua intimidade e privacidade. Rezia, sua esposa, era jovem e alegre,
mas sentia-se seriamente humilhada quando Septimus mergulhava na
insanidade. Ela gostaria de ter um casamento normal, com filhos, não um
homem que conversava sozinho. Mesmo assim tentou protegê-lo dos médicos,
porém não conseguiu.
Segundo o livro, na noite da festa, Clarissa está
deslumbrante e realizada por ter conseguido cumprir satisfatoriamente com sua
obrigação de proporcionar uma recepção digna de receber até o primeiro
ministro inglês, que comparece, o que é considerada uma grande honra. Em
meio a seu sucesso como anfitriã, ela ouve Dr Bradshaw comentar sobre a
morte de Septimus e, apesar de nunca tê-lo visto, a notícia faz com que ela se
mova introspectivamente para o centro de seu ser, pensando no sentido da
morte real de Septimus, que rompe com sua realidade e com a realidade das
demais personagens de Mrs. Dalloway. Embora Clarissa não estivesse
obcecada com a festa durante o dia, esta a incomodava. A festa é sua maneira
de expressar-se, de participar do mundo, mas ao mesmo tempo é um risco à
sua auto-estima. A festa é um momento de glória e essa idéia morre
lentamente, enquanto os convidados se retiram e os diálogos se encerram.
Além de Septimus, cuja história é resolvida, uma força impactante do romance
é o legado de Bourton, que não é esclarecido, pois as personagens
continuarão a viver suas vidas comuns compostas de fracassos e triunfos, em
22
que o passado serve para contextualizar o presente e os ajuda a compreender
o dia em suas vidas.
Verifica-se que a seqüência temporal é quebrada, passado e
presente coexistem na consciência das personagens. Virginia Woolf conduz as
mudanças de humor e pensamento de Clarissa fazendo-a, muitas vezes,
esquecer as ditaduras do tempo e obedecer a um sentido de tempo diferente,
aproximando-se do curso inconsciente da mente humana. O livro não se divide
regularmente em capítulos e se parece com a visão cinematográfica, aludindo
às emanações mentais recorrentes das personagens e os elementos que as
integram são a personagem Clarissa Dalloway e as batidas do Big Ben, fato
inferido a partir do título anterior do livro, As Horas (IN: Virginia Woolf’s
Diary, Virginia Woolf Society of Great Britain).
O romance não tem um enredo vívido, pois a realidade é
secundária e as personagens passam muito tempo meditando sobre memórias,
arrependimentos e esperanças. Quase todas as personagens principais
imaginam o que poderia ter acontecido e a história é contada sob o ponto de
vista de um narrador onisciente e invisível, fato incomum até então.
2
Os temas predominantes do romance que estamos analisando
são: a solidão, caracterizada pela não ação das personagens, ou seja, pela
ausência de positivação das ações, visto que elas acontecem na mente das
mesmas; a antevisão da morte, uma sensação da iminência da morte,
entendida como a solução para os problemas da vida, a libertação de todas as
2
O narrador onisciente tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, por trás, para
além dos limites de tempo e espaço, de fora, de frente, ou ainda mudar e adotar sucessivamente
rias posições. Em Mrs. Dalloway o ângulo é central e os canais derivam dos sentimentos,
pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. A narrativa se
identifica principalmente com a mulher, a quem perscruta nos mínimos detalhes e de onde o
mundo é perscrutado (LEITE, 2002: 26 – 55).
22
angústias, repressões e dominações; e a angústia, na qual a filosofia
contemporânea centrou a análise existencial. A angústia é a situação afetiva
fundamental que pode manter aberta a ameaça do ser mais próprio e isolado
da convivência ante a iminência da morte. Na angústia o homem sente-se em
presença do nada, da impossibilidade possível de sua existência
(HEIDEGGER, 2005: 247 – 255, volume I).
Com intuição aflorada nas personagens, Virginia Woolf tenta se
apoderar do instante fugitivo, o instante de identificação com o universo, e,
através de seu “sexto sentido” ou “percepção extra-sensorial” que segundo
as crenças da época referiam este atributo ou virtude à capacidade de sentir o
que se passa ao seu redor ou até mesmo nas mentes dos entes próximos, ou
seja, através da intuição, sem interferência dos sentidos físicos é capaz de
absorver o mundo objetivo e de perceber tanto a pluralidade quanto a unidade
dos seres e das coisas a fim de alcançar sua essência escondida e intangível.
A intuição pode ser compreendida aqui como um processo pelo
qual uma nova crença ou conhecimento surge no mundo do sujeito, sem que
ele possa apresentar provas lógicas em apoio dessa idéia (DORON e PAROT,
1998: 446). Essa capacidade de sentir de Virginia Woolf não necessariamente
pode ser circunscrita aos moldes do “animismo” ou daquilo que o senso comum
conhece como inspiração advinda de uma outra dimensão. O processo de
criação se funda na capacidade do ser humano de sentir intensamente e de se
aplicar na tentativa de dar forma a esse sentimento pela via da expressão, isto
é, pela via da arte.
Não há preocupação com a organização rígida das seqüências
de causa e efeito no texto e, por meio da ironia, este não cai no
22
sentimentalismo. Cabe notar que a ironia é um recurso de linguagem que se
contrapõe à lógica do premeditado e se ancora no inusitado da analogia
advinda à mente cognitiva em forma de insight. Tal processo rompe com o
hábito de uma ação repetitiva do cotidiano, representado no contexto artístico
do modernismo inglês, cuja base pragmática cede, inaugurando o momento da
criação de uma obra literária como Mrs. Dalloway. Assim, o sentimentalismo
ao qual nos referíamos anteriormente é como a realidade: “um engodo”, uma
tentativa de fingir que a realidade é normal, mesmo estando presa às
determinantes do tempo e do espaço social. Na intuição da autora mais
respeito pelos difíceis caminhos a percorrer do que pela exposição dogmática
de idéias.
Em Mrs. Dalloway, por exemplo, é através da intuição de
Septimus e da consternação de sua esposa que a autora nos aproxima do
problema da guerra, em que o homem fica descrente de tudo, até de si próprio;
vislumbra-se o colonialismo britânico a partir do patriotismo filantrópico de Lady
Bruton; toma-se conhecimento do moralismo vitoriano que tem como
características o puritanismo, a intolerância e o moralismo rígido em que o sexo
era tabu e o convencionalismo estava na moda, e nos retrata a classe média
da Inglaterra naquela época. Através do comportamento e atitudes das
personagens daquela Londres intui-se também a opinião da autora sobre os
médicos, pelo comportamento interesseiro de Dr. Bradshaw e de Dr. Holmes.
Mrs. Dalloway nos expõe uma seleção de instantes e serve-se
de monólogos e diálogos para mostrar ao leitor uma linha coerente e inteligível
daquilo que é naturalmente incoerente e sem método, o fluxo da consciência
das personagens. Tece uma rede de coincidências, como, por exemplo, o
22
regresso de Peter Walsh e de Sally Seton a Londres a tempo de poderem
participar da festa de Clarissa. Esta se liga ao mundo superficialmente,
preocupa-se com o aspecto sico das pessoas, com seu vestuário, o que faz
com que acreditemos que a autora tivesse a intenção de usar o romance como
veículo de crítica social, como retrato da burguesia preconceituosa do período
vitoriano; mas ao mesmo tempo em que Clarissa tem consciência de sua
superficialidade, tem a perpétua sensação “de estar fora, longe e sozinha no
meio do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia
que fosse” (WOOLF, 1980: 12).
Clarissa acaba de se recuperar de uma doença e, como ainda
está fragilizada, seu marido Richard tenta protegê-la como de costume. Ambos
são tímidos, não se atrevem a dizer o que sentem nem a expressar seus
sentimentos e, apesar de muitas vezes suas opiniões divergirem, nenhum dos
dois as verbalizam no intuito de não se machucarem. força em seu amor,
porém esta não é composta por cicatrizes acumuladas com o tempo de
convivência, pois nenhum deles jamais feriu seu amor com repentes de raiva
para depois tentar consertá-lo com afeição redobrada.
O amor é um sentimento feliz quando partilhado e infeliz
quando não é recíproco; é dirigido a alguma pessoa determinada e faz com
que desejem receber e proporcionar prazeres (DORON e PAROT, 1998:
54-55). O amor entre Richard e Clarissa os une sem cobranças, embora
também seja uma barreira protetora auto-imposta. A linguagem parece ser o
meio através do qual o amor se expressa e se abre a toda e qualquer
possibilidade de criação. Entretanto, o silêncio convencional destas duas
personagens as faz pensar no sentido deste, que prefigura a repressão ou a
22
incapacidade da linguagem de expressar tudo aquilo que os amantes
necessitam falar na rotina de um relacionamento.
Richard gostaria de viver no campo, de ter cachorros, mas
este ideal está perdido para ele, visto que se sente mais seguro em sua
situação atual, trabalhando para o governo, tendo vida social e uma esposa
dedicada e gentil. Assim como Richard, Clarissa também tem um sonho
perdido: ela gostaria de viver tão intensamente quanto acredita que Peter
Walsh o faça, mas a muito tempo, de acordo com seu conhecimento sobre si
mesma, ela compreendeu que nunca poderia se unir a Peter em sua aventura
pela vida, visto que seus valores eram muito diferentes. Enquanto Peter
pretendia compartilhar a si mesmo, além de suas experiências, Clarissa
acreditava que nunca seria capaz de livrar-se de todos os seus medos a
respeito dos homens, das mulheres e da vida, de tornar-se livre e de ser feliz.
Dava muito valor à sua “alma” para entregá-la a Peter ou à vida. Casou-se com
Richard para que pudesse amar a vida de um modo intenso, porém interior,
seu. Ela é sensível ao momento, à poesia, à existência, mas sua energia não
ultrapassa as fronteiras da expressão. Diferente de Peter, não consegue
compartilhar o momento nem seus sentimentos ou pensamentos interiores.
Septimus é o outro lado da moeda no estudo da sanidade e da
insanidade. Ele foi à guerra, tentou defender seu país e se tornar um homem,
mas não pôde alcançar seu objetivo. Clarissa não lutou, ela se retirou e fez um
casamento seguro com um homem que não se atreveria a exigir dela mais do
que ela tivesse condições de oferecer. Ela acreditava que se tivesse casado
com Peter ambos teriam sido destruídos. Pensou nas conseqüências;
Septimus não. As reações de Clarissa são similares às de Septimus, embora
22
as dele sejam mais intensas. Tanto um quanto o outro sentem que estão fora
da vida, observando, mas ao mesmo tempo mergulhados nela profundamente.
Eles se posicionam alternadamente muito felizes ou muito aflitos e temerosos,
características da síndrome bipolar que acometia também a autora, fato
constatado a partir do diário testemunhal da mesma.
um momento de terror no coração de Septimus e depois o
relacionamos ao que mais importa a Clarissa. Para ela, o que mais interessa é
o que as pessoas sentem e aquilo que as aterroriza. Septimus não consegue
sentir nem se importar com os sentimentos dos outros. Clarissa é diferente de
Peter, de Sally e de Septimus, pois não tem nem seu abandono nem sua
rebeldia. A característica central em ambos, Clarissa e Septimus, é não deixar
que ninguém exerça poder sobre eles. Septimus nega-se a deixar Dr.
Bradshaw fazer experiência com ele e Clarissa desafia a determinação de Miss
Kilman em dominá-la. Clarissa negou a intimidade de Richard e de Peter por
causa de seu intenso medo de dominação. Neste romance são incluídas falhas
e defeitos nas personagens a fim de que possamos intuir a natureza humana e
não apenas metáforas. Tanto Septimus quanto Clarissa internalizam a
condição do ser abandonado, relembrando a teoria freudiana do “dentro” e do
“fora”, cujo axioma é “quem está dentro está perdido e quem está fora,
abandonado”. Daí, podemos inferir que ambas as personagens estão perdidas
na fantasia ou no desejo do outro, isto é, daquela figura matricial com a qual
teceram o idílio primordial e foram abandonadas à condição humana que a
existência lhes impôs (MANNONI, 1999: 8).
O romance Mrs. Dalloway é abstrato, contém técnicas
narrativas incomuns para a época em que foi escrito e não apresenta ação em
22
forma de aventura, pois se trata de um drama introjetivo. É sutil e complexo,
embora apresente linguagem coloquial, mas o uso do fluxo da consciência faz
com que algumas vezes o leitor se sinta confuso, sem ter certeza para onde a
autora o deseja levar. Virginia Woolf se inspirou em uma viagem ao interior de
sua alma, o que permitiu que ela penetrasse em suas personagens para
explorar sua interioridade, pois, de acordo com ela, a tarefa do escritor é ir
além da linha da frase e mostrar como as pessoas pensam ou sonham em
qualquer lugar em que se encontrem.
O tema da insanidade está muito próximo da autora, tentando
identificar a mente das personagens com os conflitos psicológicos da mesma,
que também sofria da síndrome bipolar, como mencionado, e fora internada
em clínicas psiquiátricas várias vezes. Além de alternar seus humores
intensamente, ouvia vozes que a amedrontavam e sentia terríveis dores de
cabeça, o que torna evidente a semelhança entre Septimus e Virginia Woolf.
Sua intenção inicial era fazer com que Clarissa morresse ou se suicidasse, nos
mesmos padrões de seu desespero constante, mas depois decidiu que uma
parte mais sombria de Clarissa, ou seja, sua contraparte, executaria essa ação.
A criação de Septimus Warren Smith levou Clarissa à teoria mística da morte
experimentada por outros e da existência compartilhada, para que o romance
não caísse na escuridão. A desassociação da insanidade incapacitante da
personagem Clarissa não salvou Woolf da dor de suas memórias. A memória
diz respeito aos acontecimentos pessoalmente vivenciados por um sujeito,
constituídos de episódios que podem ser localizados graças a suas
coordenadas de tempo e espaço (DORON e PAROT, 1998: 287). O marido de
22
Virginia Woolf e seus amigos compararam seus períodos de insanidade às
crises maníaco-depressivas experimentadas por Septimus.
Como o romance se centrou na personagem Clarissa
Dalloway, Woolf mudou o nome de seu livro As Horas, nome mais abstrato,
para Mrs. Dalloway antes de publicá-lo (Virginia Woolf’s Diary). Lutou para
combinar vários elementos que se chocaram com sua sensibilidade enquanto
escrevia. Ela comentou em seu diário que teve idéias demais neste livro: quis
juntar a vida e a morte, a alegria e a tristeza, a solidão e o contato social, a
sanidade e a loucura e criticar o sistema social imperante com toda
intensidade. Nessa tentativa, Virginia Woolf imortalizou no tempo e no espaço a
narrativa que recuperará seu tulo original no livro de Michael Cunningham,
que virá a se chamar As Horas, e sua posterior transposição para o cinema no
filme homônimo de Stephen Daldry.
3. As Horas de Michael Cunningham
Capas brasileira e americana do livro As Horas
Michael Cunningham escreveu o romance As Horas colocando
a escritora Virginia Woolf como uma de suas três personagens principais, um
22
tributo à escritora que, de acordo com suas próprias declarações, fez com que
ele começasse a apreciar a literatura.
O livro As Horas foi publicado em 1998, inserido no contexto
sócio-cultural contemporâneo denominado pós-modernismo, que é um conceito
frágil e impreciso, pois varia de autor para autor, quanto ao estabelecimento de
uma periodização histórica, uma descrição de traços de estilo ou uma
enumeração de posturas filosóficas e existenciais. Mesmo assim, resulta
interessante a definição do pós-moderno para estabelecer a relação entre Mrs.
Dalloway como uma obra de vanguarda modernista e a obra de Cunningham.
É comum tentar definir ou teorizar a pós-modernidade
designando-a como o estado da cultura depois das transformações que
afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes, a partir do
fim do século XIX, levando-se em conta a hipótese de que o saber muda de
estatuto, ao mesmo tempo em que as sociedades entram na era pós-industrial
e as culturas na era pós-moderna (PERRONE-MOISÉS,1998: 180). Sendo
assim, a passagem da obra Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, para o romance
As Horas, de Michael Cunningham, ilustra de maneira eloqüente a atualidade
da obra literária original, seja em seu conteúdo, seja nas formas de
representação contemporânea que esta adquire do ponto de vista contextual.
Considerada como um movimento estético e filosófico, a pós-
modernidade causa grande divergência entre os estudiosos no que se refere à
data que marca o seu inicio na literatura. Há, no entanto, certo consenso:
começou após a Segunda Guerra Mundial, manifestou-se mais claramente na
literatura e tornou-se dominante nos meios acadêmicos norte-americanos, aos
quais pertence Michael Cunningham. O pós-moderno tem sido visto em obras
22
de Kafka, Borges e Brecht, no “novo romance” francês, em Roland Barthes e,
certamente, na obra de Virginia Woolf interpretada por Cunningham.
As Horas homenageia Mrs. Dalloway na apropriação crítica
de seu material configurado de acordo com uma nova estrutura. Não
ruptura, mas continuidade através de um diálogo afetuoso. A leitura do texto de
Cunningham ilumina e refresca a leitura do texto de Woolf. A transformação ou
avanço do pós-modernismo pode ser visto como uma intensificação seletiva de
certas tendências características do modernismo, como a rejeição da
integridade formal ou da essência como intrínsecas a esse movimento cultural
e o aparecimento do pós-modernismo somente como uma nova fase nesse
processo. A percepção do mundo fragmentário é comum às duas tendências e
está presente nas narrativas de Woolf e Cunningham. A percepção é a mesma,
porém a maneira de lidar com os sentimentos que essa fragmentação desperta
é diferente.
No modernismo o desejo de se manter fiel à incoerência,
mas ao mesmo tempo uma necessidade de transcendê-la. O paradoxo e a
desconexão não são resolvidos, são simplesmente delimitados dentro de uma
moldura estética reconhecível. No pós-modernismo a percepção da incoerência
torna-se mais aguçada e não é mais possível dar conta da fragmentação
através da ordenação estética, que diminui, assim como a intensidade
organizacional. indecisão em relação ao significado das coisas ou da
relação das coisas entre si, também maior aceitação da convivência com essas
incertezas e maior tolerância em relação a um mundo percebido como aleatório
e múltiplo. É através de seu fascínio pela desordem aparente que o pós-
modernismo procura superá-la ou modificá-la, assim como questionar os
22
conceitos estabelecidos pelas sociedades. no modernismo uma valorização
dos momentos atemporais intuitivos e perceptivos da realidade essencial,
momentos em que o tempo revela seu significado justamente ao ser suspenso.
O tempo proposto pela narrativa pós-moderna vai contra essa atemporalidade
repleta de significado ao enfatizar o fluxo da temporalidade, sua
transitoriedade, seu movimento, ao afirmar um tempo que não pode ser detido
e que, portanto, é incapaz de aglutinar e revelar significados escondidos em
sua dispersão. Procura-se o particular e o contingente e não o abstrato e o
eterno. Enquanto a arte modernista celebra a negação e a dissidência e propõe
uma revolução na arte e na vida, a arte pós-moderna parece apreciar o mundo
assim como ele é e coexiste pacificamente com a pluralidade e a diversidade
(HARVEY, 2005: 45 - 65). Todos esses fatores podem ser observados na obra
de Cunningham.
O romance de Michael Cunningham, As Horas insere-se no
pós-modernismo. Tal movimento nasce nos Estados Unidos, na década de
cinqüenta, fruto do avanço tecnológico dos computadores e da vanguarda
arquitetônica que promoveu a apreensão da arte por vias “labirínticas”. O
caráter cético do pós-modernismo colocará em xeque todos os pressupostos e
valores até então cultivados pela sociedade e em particular as idéias do tempo
e do espaço na literatura de ficção. Foi adotado no terreno da logística militar,
da arquitetura e das artes plásticas e passou rapidamente para a teoria
literária, onde ele é muito menos pertinente.
Na vida social do ser humano pós-moderno, em relação ao que
via na modernidade a promessa de felicidade através do progresso da ciência
ou de uma revolução, restou-lhe um vazio a partir do qual emanam suas
22
emoções, principalmente a sua angústia. Na pós-modernidade a perversão e o
estresse são sintomas, resultados da falta de tempo e de perspectiva no futuro,
pois tudo desmoronou, desde o muro de Berlim até a crença nos valores e na
esperança. O mal estar é visível e trivial, expressado na linguagem cotidiana do
trabalho compulsivo, muitas vezes vendido como se fosse lazer ou “ócio
criativo”, que gera depressão, obesidade e tédio.
No romance As Horas esses traços pós-modernos evoluem da
obra original de Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, relacionando-se
fundamentalmente com os comportamentos sociais das protagonistas. O mal
estar do cotidiano do trabalho compulsivo e as ditaduras do relógio são
sintomáticos nas personagens secundárias, como o marido de Laura, Dan. A
própria criação de novas personagens como desdobramentos técnicos e
correlatos de uma personagem original caracteriza o simulacro, avatar do pós-
modernismo.
3
O romance As Horas narra a história de três mulheres em três
períodos diferentes. A primeira é a própria escritora Virginia Woolf, tentando se
recuperar de uma doença no subúrbio londrino após a Primeira Guerra
Mundial; a segunda é Laura Brown, dona de casa grávida do segundo filho,
que vive com a família na Los Angeles de 1949 e procura se enquadrar no
papel que a sociedade lhe atribui; a terceira, editora Clarissa Vaughan, uma
nova-iorquina do final do século XX. Cada capítulo do livro é dedicado a uma
das protagonistas e tem como títulos Mrs. Dalloway, Mrs. Woolf e Mrs. Brown,
porém suas ações de alguma forma estão relacionadas, mesmo ocorrendo em
épocas tão distintas. O que poderia parecer a narrativa de três dias comuns na
3
O simulacro ou doutrina dos ídolos foi exposta primeiramente por Demócrito e, segundo ela, a
sensação e o pensamento são produzidos por imagens corpóreas provenientes de fora
(ABBAGNANO, 2003:533).
22
vida de três mulheres comuns, entretanto, não se realiza, visto que por mais
corriqueiros que possam parecer os acontecimentos narrados, para duas
dessas mulheres esse dia de junho é marcante: Virginia Woolf inicia seu livro
Mrs. Dalloway e Clarissa Vaughan perde seu melhor amigo. De qualquer
modo, Virginia Woolf, a personagem, não passa por mulher comum para
qualquer leitor que tenha uma noção mínima de história da literatura. O projeto
de Cunningham, portanto, se distancia do projeto de Woolf justamente onde à
primeira vista mais se parece.
No prólogo do romance ocorre o suicídio de Virginia Woolf, que
afunda em um rio lamacento chamado Ouse, que sofreu várias drenagens a
partir de 1950, fazendo com que esse mesmo rio apresentado no filme
possuísse águas cristalinas. Mais à frente, em um dos capítulos denominados
Mrs. Woolf, o narrador retomará a vida da escritora e seu relacionamento com
o dedicado marido, Leonard. Uma das grandes dificuldades da protagonista
consiste em dar uma simples ordem a uma criada, apresenta um medo
constante de voltar a sentir as fortes dores de cabeça que a têm atormentado
por toda a vida e sempre prenunciam as vozes que ouve de seu inconsciente,
impedindo-a de produzir, de escrever, pois tudo que deseja é viver
produtivamente, escrevendo o tempo todo, que isto é a sua vida. Quando a
personagem Mrs. Woolf está trabalhando em Mrs. Dalloway, especialmente na
construção da protagonista, Clarissa, esta muda seu modo de agir e pensar
conforme o humor de Virginia.
No início do primeiro dos capítulos intitulados Mrs.. Brown,
Laura desperta; é aniversário de seu marido. Mentalmente ela repassa tudo o
que terá que fazer, coisas simples: arrumar o café, fazer um bolo, cuidar do
22
filho que a venera, Richie de três anos. No entanto, tudo o que deseja é poder
ler o tempo todo, visto que nesse momento está mergulhada na obra de
Virginia Woolf. Laura vive em um lar bem estruturado nos moldes da época,
possui um marido amável e um filho sensível que a ama incondicionalmente.
Realiza um esforço enorme para se enquadrar no papel de dona de casa, mas
fracassa, a tal ponto de sair sozinha e se hospedar no meio da tarde em um
hotel apenas para ler, procurando isolar-se de tudo. Às vezes até consegue
sentir algum prazer em sua rotina diária, pois se empenha para isso e
reconhece, sobretudo, o carinho do filho e do marido.
A outra protagonista apresentada, Clarissa, que aparece nos
capítulos intitulados Mrs. Dalloway, está preparando uma festa em homenagem
ao poeta Richard, o grande amor de sua vida, que é aidético em fase terminal.
Clarissa mora em um apartamento com Sally, sua companheira há muitos anos
e com a filha Julia de dezoito anos, com quem possui uma grande dificuldade
de diálogo. É um dia muito intenso para ela, uma vez que os preparativos para
a festa despertarão diversas lembranças sobre o seu passado e o de Richard,
especialmente com a inesperada visita de Louis, paixão de Richard por muitos
anos, com os quais vivera um triângulo amoroso inesquecível na juventude.
Muito dedicada ao poeta, vai até seu apartamento, em um local decadente de
Nova Iorque, para ajudá-lo a se vestir para a homenagem, mas encontra-o à
beira de saltar pela janela. Travam um diálogo e nele externam o amor que
sentem um pelo outro, o que não consegue impedir que Richard cometa o
suicídio.
No final do romance As Horas há um encontro entre
protagonistas, quando descobrimos que Laura Brown é mãe de Richard, filho
22
abandonado por ela, como toda a família, o que influenciou largamente a vida e
a obra do poeta. É surpreendente a chegada de Laura para o funeral do filho,
uma senhora por volta dos oitenta anos da qual não se faz menção anterior do
parentesco com Richard.
Por fim, observamos que as vidas das personagens são de
uma forma ou de outra influenciadas pelo romance de Virginia Woolf, Mrs.
Dalloway, seja como no caso de Laura, a Mrs. Dalloway da metade do século
XX nos Estados Unidos, que tem a escritora como sua inspiração, seja no caso
de Richard que, é claro, além da influência negativa da mãe, se assemelha
muito com o personagem Septimus do romance de Woolf, principalmente a
maneira em que morre, atirando-se pela janela, ou como Clarissa, a Mrs..
Dalloway da atualidade em Nova Iorque, preparando uma festa, envolvida com
ações triviais que desencadeiam uma grande atividade interior.
No romance de Cunningham a clara delimitação espaço-
temporal impede qualquer tipo de confusão, pelo fato de que o leitor sabe
exatamente onde está e acompanha as manobras narrativas sem nenhuma
dificuldade. Quando o capítulo se intitula Mrs.. Dalloway sabemos que é a
cidade de Nova Iorque no final dos anos 90, não somente porque a narrativa
nos adverte explicitamente, mas porque o clima da cidade cosmopolita com
sua diversidade étnica, cultural e de gênero não deixa qualquer margem de
dúvida. Além disso, a presença constante da AIDS sinaliza uma tragédia
inquestionavelmente contemporânea.
Os capítulos intitulados Mrs.. Woolf carregam características
bem específicas de sua época, a Londres no início da década de 20, e a
descrição do processo criativo de Virginia Woolf reflete a atmosfera de intensa
22
discussão sobre novas possibilidades na vida e na arte em uma metrópole que
fervilha após o final da “terrível guerra”.
Também nos capítulos intitulados Mrs.. Brown vislumbra-se um
período pós-guerra, mas a prosperidade da sociedade de consumo evidencia
uma metrópole americana no final da década de 40. A narrativa circula por
esses espaços e esses tempos com total liberdade sem, no entanto, mesclar
ou fundir uns aos outros. As lembranças são vívidas, mas não deixam, em
momento algum, de ser somente lembranças, claramente sinalizadas pelo uso
de verbos no pretérito. Pode-se voltar a essas memórias sempre que
dificuldades presentes colocam desafios ou conflitos que exigem reflexão.
Contudo, tais lembranças não se fundem com o presente e não são percebidas
como se fossem a própria realidade.
Em Woolf, ao contrário, o passado revisitado é fonte de
angústia e não de consolo, e não o distanciamento necessário ou um limite
claro que preserve o momento presente das influências ainda fortes e
onipresentes do passado. Quando Clarissa pensa “na casa à qual jamais
retornaria”, percebemos uma diferença evidente entre a narrativa de
Cunningham e a de Virginia Woolf. Em Virginia Woolf, Clarissa Dalloway e
Peter Walsh retornam a Bourton a todo momento, a ponto de Bourton tornar-se
um espaço quase tão relevante para a narrativa quanto a cidade de Londres.
No entanto, em Cunningham o espaço de Wellfleet é inserido na narrativa
pontualmente, em devaneios ou recordações sinalizados por verbos no
pretérito que limitam sua expansão.
Para que possamos compreender mais precisamente o tempo
e o espaço no romance As Horas, devemos levar em conta que ele se passa
22
em três momentos distintos, em três lugares e períodos históricos diferentes,
porém de uma forma ou de outra relacionados, como pela influência que a
primeira protagonista, Virginia Woolf, exerce sobre as demais. E a
caracterização, especialmente do ambiente político e socioeconômico, será de
fundamental importância. Temos ainda que atentar para o fato de que o
narrador salta de uma época para outra, sempre que inicia um novo capítulo
tratando da vida de uma das protagonistas.
Assim, quando inicialmente nos é apresentada a primeira
protagonista, Virginia Woolf no romance de Cunningham, estamos em um dia
de junho, no ano de 1941, em Richmond, Inglaterra. Um lugar no subúrbio
londrino, uma espécie de casa de campo da família Woolf. Segue-se uma
caracterização do espaço através da mente de Virginia, quando atravessa uma
floresta para chegar a um riacho onde cometerá o suicídio. Mais à frente,
um flashback, retornamos ao ano de 1923, na mesma cidade, e observamos
mais detalhadamente a casa em que viveu a protagonista, os criados, o local
de trabalho, o jardim, etc. Com isso, podemos deduzir que Leonard e Virginia
estão naquele ambiente tranqüilo para que Virginia possa se recuperar de uma
doença, motivo de sido internada várias vezes e até tentado o suicídio.
Entretanto, em sua mente, sempre vêm as lembranças de Londres, com toda
sua agitação de cidade grande, onde verdadeiramente gostaria de estar. O
clima pós-guerra é freqüentemente citado no romance. Mrs.. Woolf faz um
esforço tremendo para adequar-se ao espaço externo, não revelando o
turbilhão de idéias e sentimentos que experimenta em seu interior. Ela tem na
atividade da escrita um meio de negociação com o mundo que a satisfaz.
22
O ano de 1949 serve para situar no tempo a segunda
protagonista, Laura Brown, que vive com a família em Los Angeles, em uma
residência de classe média, sob um clima de prosperidade econômica do país
que saiu vitorioso da guerra. As ações de Laura se passam em grande parte no
seu convívio dentro do lar, em seu cotidiano de dona de casa, justamente seu
maior conflito. As cenas exteriores ocorrem na casa da vizinha, onde deixa o
filho, e no hotel, quando se isola para ler Mrs. Dalloway. Mas Mrs. Brown
necessita dos espaços atemporais de devaneio que a leitura possibilita e a
própria narrativa, ao ter sua linearidade interrompida, lembra o leitor do prazer
de se refugiar em um outro mundo. Laura, leitora voraz, percebe a leitura como
meio de negociação entre o mundo individual, interno e o externo e, ao invés
de contar as horas, conta as páginas. A narrativa das ações cotidianas de
Laura é interrompida por inserções de trechos do romance lidos anteriormente.
Clarissa, a última protagonista, vive em Nova Iorque, no final
do século XX, em um apartamento que comprova uma boa condição financeira,
apresentando um visual despojado, cuja disposição dos móveis não segue
nenhum padrão. Não existe uma separação clara dos cômodos e estantes
com livros por toda parte. As pessoas que convivem também seguem o
mesmo estilo moderno, bem como em relação à cultura. Observamos também,
quando Clarissa vai às compras, uma boa descrição do comércio da cidade, e
em especial da residência de Richard, um ambiente decadente, para alguns
depressivo, semelhante ao que vive o poeta no estágio final de sua doença. Há
ainda flashbacks, quando Clarissa ou Louis relembram momentos intensos que
vivenciaram em uma casa na praia em um verão, quando eram jovens, com
toda tranqüilidade e belezas naturais. Richard vive um tempo que é atemporal,
22
suspenso, que lhe permite juntar o passado, o presente e o futuro de tal forma
que esses três tempos perdem a distinção, formando um único momento que
engloba tudo. A fusão temporal, entretanto, não é utilizada quando a narrativa
enfoca Clarissa Vaughan, pois a percepção de tempo volta a ser mais
tradicional, mais compartimentada, permitindo que Clarissa se distancie do
passado e perceba a fusão temporal no discurso de Richard como sintoma de
sua precária saúde mental.
Todavia, falta ainda mencionar que ao final, quando se cruzam
definitivamente as histórias de Laura e Clarissa, o narrador, em mais um
flashback, nos relata que no passado (o ano não é mencionado), Laura
abandonara a família e, posteriormente, a filha e o marido morreram. Tudo isso
serve para justificar a personalidade de Richard, sensível, que apesar de amar
e ser amado não conseguiu levar seus relacionamentos adiante e acabava por
ferir aos que o amavam. O espaço do encontro é a residência de Clarissa,
ainda ambientada para a festa que prestaria homenagem ao poeta. Todas as
ações referentes a Clarissa se passam em um único dia de junho.
As respostas de Virginia, Laura e Clarissa são pós-modernas
em relação ao fato de serem mulheres isentas de culpa e com o propósito de
viverem sua feminilidade com o máximo de intenção criativa e em
contrariedade aos preceitos morais traçados pela sociedade em detrimento do
tempo e do espaço da ficção. A mulher é, então, uma figura paradigmática em
relação ao processo de criação pela proximidade que esta apresenta com o
efeito real da vida e da morte na mediação que faz com seus interlocutores.
Como notamos, com muita habilidade e clareza Michael
Cunningham ambienta e situa sua obra no tempo e espaço, tendo em vista que
22
o romance utiliza o artifício de “saltar” no tempo, ora indo para um passado
mais distante, ora para um passado mais recente, ora permanecendo no tempo
presente, desta forma, caracterizando com precisão os aspectos temporal e
espacial em As Horas. É interessante citar que o romance recebeu os prêmios
Pulitzer de Ficção e PEN/Faulkner e foi eleito o melhor livro de 1998 pelos
jornais New York Times, Los Angeles Times, Boston Globe, Chicago Tribune
e Publishers Weekly.
4. Transposição e adaptação da literatura para o cinema
As transposições da obra literária para o cinema, muito comuns
desde a invenção do mesmo, são temas pertinentes para nosso trabalho, uma
vez que lidam com a criação tanto do autor literário, quanto com a do diretor
cinematográfico e nos possibilitam realizar uma análise do processo de
produção dessas duas linguagens, bem como a posterior adaptação do meio
verbal para o audiovisual.
Eduardo Romano diz que “adaptar” uma obra literária para a
tela é descobrir um conjunto de analogias audiovisuais do texto, partindo do
pressuposto de que uma adaptação nunca será uma réplica exaustiva do texto
literário. Ressalta que, por esse motivo, se pode comparar parcialmente o
processo de transposição, pois ao se passar de um código a outro, cometem-
se várias alterações, portanto, não é difícil imaginar o abismo que separa uma
adaptação de um suporte diferente do original. Uma boa adaptação, em sua
opinião, é uma versão que não trai os chamados núcleos significativo-
ideológicos do texto original. Em cada transposição uma opção sobre a re-
22
significação da obra transposta, que oscila entre o privilégio do tema e outros
traços retóricos e de estilo individual da época (ROMANO, 2001: 54).
A análise de uma transposição apresenta a distância que
entre as condições de produção de um texto e as condições de sua recepção,
segundo a análise proposta por Eliseo Verón. Pode-se dizer que é a análise de
um reconhecimento que, por sua vez, é também considerada uma produção,
pois toda transposição é um comentário, ou seja, um texto sobre outro texto.
Grande parte da análise dos gêneros midiáticos em seu caráter de espaços de
circulação discursiva contemporânea se interessa em rastrear modificações na
produção de sentido, resultantes da passagem de distintos produtos para
diferentes meios e linguagens. Essa circulação supõe “equivalências” diretas,
mas também comporta desvios e diferenças (VERÓN, 2001: 55).
A transposição para o cinema do romance As Horas, de
Michael Cunningham, com direção de Stephen Daldry e adaptação de David
Hare, em 2002, demonstra como uma adaptação de uma obra literária pode ser
quase uma transcrição, refazendo-a em uma linguagem diferente, com o
acréscimo do visual.
Entretanto, quando a transposição se efetua, pode-se
processar uma traição, visto que a obra adaptada deixa de ser a original da
qual partiu para se apresentar sob outra forma de expressão, portanto, outra
obra. A obra matriz apenas serve de pretexto ou sugestão para a criação de
uma outra, que com aquela guarda um vago parentesco (MOISÉS,1983:
207-208).
É interessante lembrar que o romance existe mais de dois
séculos, enquanto que o cinema aproximadamente cem anos. O cinema é
22
representação, registro no celulóide da ação, enquanto o romance é narrativo,
analítico. O ritmo do cinema é acelerado por natureza e as cenas possuem
tempo exato de duração. Já o romance, normalmente, é lento e pausado.
Todavia, na transposição é evidente que algumas mudanças
ocorram, pois para passar o que está escrito no livro para a tela é necessário
que haja algumas técnicas, por exemplo: cortar, suprimir, alterar, interpretar,
modificar, etc. O romance, feito para ser lido, transforma-se em filme para ser
visto, o que acaba por modificar radicalmente a substância literária. Desta
forma, ler o romance e posteriormente assistir ao filme comporta, algumas
vezes, uma decepção, pela incapacidade de o cinema abranger tudo que o
romance comunica por meio de palavras, reduzindo, assim, suas
características fundamentais e a larga visão que o romance oferece do mundo.
O filme valoriza precisamente o que na obra não precisa ser colocado em
relevo, retirando o que pode ser visto (IBIDEM: 208).
Ainda de acordo com Massaud Moisés, em A Criação Literária
(1983), o espectador do filme as cenas quando está no cinema , o que é
tudo quanto pode fazer, impossibilitado de voltar atrás, reexaminar uma
passagem ou interromper a observação e qualquer fuga sua para fora da
projeção prejudica o entendimento das imagens que continuam a suceder, em
um andamento que não permite a reflexão simultânea ou a pausa analítica. O
espectador sente o filme e depois pode pensá-lo. O leitor do romance é
obrigado a imaginar, a idealizar, servindo-se dos dados que lhe são fornecidos
pelo ficcionista, como se fossem sinais cujo sentido a intuição desvendasse ou
vislumbrasse ao longo da leitura; sentir e entender podem ser concomitantes
durante a leitura, uma vez que o leitor se faculta o direito de interrompê-la,
22
refazê-la ou adiá-la. A especialidade do romance é do domínio interior, daquilo
que não pode ser apreendido pela câmera. O romance permite invadir o plano
da consciência das personagens e analisar-lhes a mola psicológica das ações:
a palavra alcança representar o acesso ao mundo interior de cada um.
na concepção de Marcel Martin (2003) a linguagem do filme
é em primeiríssima instância de caráter visual, icônico, como aspecto técnico
da imagem projetada, e as categorias para analisar as imagens são: icônicas, a
partir da criação; indiciais, partindo do confronto entre a realidade e a ficção; e
simbólicas, valendo-se da interpretação
4
.
O cinema trabalha com matrizes sonoras, verbais e visuais e
com a mixagem dessas três matrizes. O caráter visual do filme é precedido
pela fotografia, que foi uma tentativa humana de se capturar o tempo e o
espaço. Depois da fotografia vieram o movimento e os efeitos especiais. A
imagem fílmica é dotada de aparências da realidade e o movimento constitui
seu caráter mais específico e importante. Cabe ao diretor colocar em cena a
relação entre as personagens e os objetos, relacionando técnica com intenção
dramática.
A gramática do cinema, com seus signos de pontuação e de
normas ou códigos internos, dá sentido a cada plano e seqüência. A imagem
fílmica sempre se oferece ao presente de nossa percepção e se inscreve no
presente de nossa consciência, sendo transportada para o passado ou futuro
somente pela intervenção do julgamento. Isso permite compreender a
facilidade com que o cinema pode exprimir o sonho, visto que o conteúdo dos
sonhos é primeiramente percebido como presente. Um filme pode, então, ser
4
Quando se interpreta, atribui-se um sentido outro daquele que em princípio se tinha.
22
considerado como alimento para o sonho ou, mais precisamente, para o
“devaneio” acordado (MARTIN, 2003: 21-29).
Em Cinema e Poéticas de Subjetivação, Francisco Elinaldo
Teixeira (Apud: BARTUCCI, 2000: 45 - 69) enfatiza que o movimento de
imagens com impressões visuais, sonoras e proprioceptivas, evocadas a partir
da tela de cinema, acentua a percepção do espectador, dirigindo por algum
tempo sua consciência em uma espécie de sonho, disponibilizando-o a sonhar
o sonho de outro, engendrado no interior da máquina. A imagem e a trama
convocam o espectador a entregar-se a elas com uma mistura de passividade,
fascinação, alienação e curiosidade. O cinema e o sonho encontram um
parentesco indubitável na referência ao campo do imaginário, fato que
aproxima o cinema da psicanálise e também do trabalho de “cineastas-poetas”,
como os surrealistas, ampliando as reflexões sobre o cinema e enfatizando o
caráter subversivo e crítico de sua potência poética. O paradigma do sonho,
utilizado para pensar o próprio sonho do cinema exalta, por um lado, as
relações entre as imagens oníricas e sua condição de realização de anseios
humanos proibidos. Por outro lado, o paradigma do sonho salienta no
espectador a condição propícia para o fascínio e a ilusão; a tendência equívoca
e enganadora das produções imaginárias leva a uma crítica ferrenha a respeito
do cinema narrativo, oferecido pela indústria cinematográfica, pois esta focaliza
sua função social principalmente como “máquina de prazer” e de captura do
sujeito em um imaginário ideologicamente forjado.
No texto supracitado, o autor diz que, para Jean Baudry e
Christian Metz, o prazer proporcionado pelo cinema é originado da ignorância e
da ilusão de que o cinema tradicional de ficção fornece ao espectador uma
22
espécie de espelho enganoso que o reflete como uma alma unitária e
produtora de sentido e que o prazer advém dessa ilusão e ignorância,
principalmente de si próprio. O prazer é, assim, efeito da captura em um
espelho de sonho. Portanto, uma das vocações do cinema de ficção é tornar
viva a dimensão onírica da vida humana e este se torna tanto expressão de um
imaginário coletivo quanto elemento constitutivo dele, através de sua potência
criativa e transformadora.
Outra abordagem sobre a função do cinema, prevista pelo
autor anteriormente citado, coloca-o como busca de expressão fiel da realidade
e seus defensores colocam-no como potente concretização da capacidade
humana de exibir uma representação da vida real. Esta proposta corresponde
ao desejo de se conceber uma possibilidade de representação definitiva da
realidade, que em si mesma é efêmera e instável. Esse desejo move o cinema
e o conduz a apresentar formas de um real possível no domínio da imaginação.
Mas, mesmo um documentário adquire contornos imaginários e ficcionais, pois
todo filme corresponde a uma montagem e cortes em relação à realidade, à
sua morte.
Portanto, de um lado temos a idéia de que o cinema é movido
pelo sonho e pela possibilidade de materializá-lo e, de outro, dizemos que ele é
movido pela possibilidade de perpetuá-lo e de reconhecê-lo como limite
inexorável da experiência. Podemos, então, afirmar que é entre esses dois
pólos que devemos situar o filme As Horas, em sua tentativa de transpor e
adaptar as realidades objetivas e subjetivas de suas personagens que
alternadamente se constituem na narrativa ficcional.
22
No enredo cinematográfico Virginia é escritora, casada e sem
filhos. Laura é uma dona de casa, mãe de um menino de aproximadamente
seis anos e no quinto mês de uma nova gestação. A editora de livros Clarissa
mantém uma relação homossexual muitos anos e tem uma filha
adolescente, cujo pai ela não sabe quem é, visto que foi gerada por
inseminação artificial. Em contextos e épocas diferentes, as três mulheres
vivem angústias semelhantes. Outro elemento comum nas três histórias é a
presença de uma personagem envolvida com pensamentos suicidas e outra
ligada a ela temendo por sua vida.
A angústia e depressão vividas pelas personagens estão muito
bem retratadas pelos atores. A primeira personagem envolvida com
pensamentos suicidas é Virginia. Com duas tentativas prévias de suicídio
mantém Leonard, seu marido, apreensivo e exercendo um controle sufocante
sobre ela. Laura, a segunda personagem, não encontra sentido na vida que
leva, por isso pensa que a saída pode ser o suicídio. Seu filho sente o perigo e,
de certa maneira, também exerce um controle sobre a mãe. As cenas que
mostram seu olhar dirigido à mãe, esperando encontrar respostas para o que a
mantém tão absorvida em si mesma, são as mais dolorosas e angustiantes do
filme. O terceiro personagem absorvido por idéias suicidas é o poeta Richard,
homossexual, acometido pela AIDS e cuidado por Clarissa, a quem denomina
de Mrs. Dalloway.
Em determinado momento, Virgínia verbaliza que uma das
personagens de seu novo romance tem que morrer. Naquele momento pensa
22
na heroína da história, mas, ao longo de sua criação, a opção é pelo poeta que
provavelmente representa sua contraparte, seu duplo.
5
No filme, o poeta é Richard, filho de Laura, detalhe que nos
é revelado no final, o que talvez nos ajude a pensar sobre sua tendência
suicida. Laura é uma mulher melancólica que não consegue vibrar com a vida,
com o filho e com o marido e que desiste de cometer suicídio, mas opta por
abandonar a família. Abandonado pela mãe, Richard se identifica com sua
melancolia. Envolvida demais em seus próprios conflitos e insatisfações, Laura,
durante o período em que conviveu com a família, manteve um contato
emocional precário com o filho, algumas vezes mimando-o e outras o
rejeitando. Para Richard restou apenas a identificação com a mãe triste, o que
acarretou uma perda inevitável em sua auto-estima. Pode-se considerar a
hipótese de que Richard, em sua mente de criança, tenha interpretado o
abandono da mãe como decorrente do fato de ele não corresponder às
expectativas dela. A resultante de tal interpretação seria a estruturação de uma
“representação” desvalorizada de si. Assim, o suicídio aparece como uma
solução para pôr fim a esta tensão.
Em certo momento do filme, quando Virginia e sua sobrinha
estão se despedindo de uma passarinha morta, a garota lhe pergunta o que
acontece quando morremos, ao que a escritora responde: “voltamos para o
lugar de onde viemos. O lugar de onde viemos é o útero de nossa mãe”,
supostamente sem tensões. Este regresso ao útero pode ser uma fantasia de
retorno a um período onde não se fazia necessário lidar com a falta e as
5
O duplo, na teoria psicanalítica, está essencialmente ligado ao efeito do “estranhamento”. Trata-
se de uma forma de negação, de uma estrutura do psiquismo que instaura a oposição e conduz o
indivíduo à perda de seu referencial. É como uma negatividade estética, remetendo o sujeito à
intimidade mais estranha de seu ser. O símbolo de negação estética é uma forma diferenciada
de ão criativa, trazendo à tona o laço perverso, bizarro e grotesco (DROGUETT, 2004: 44).
22
indiferenças, onde não era preciso almejar coisa alguma (MANNONI, 1999:
49-73).
Outra questão que prende a atenção dos espectadores é a
relação que se estabelece entre a personagem suicida e seu objeto de amor,
ou talvez seja mais propício chamá-lo, segundo a trama narrativa do filme, de
“cuidador”, pois as personagens que desempenham este papel assim o
demonstram. Virginia, Laura e Richard têm a seu lado alguém que os vigia,
cuida e sente a angústia de estar envolvido com uma pessoa que a qualquer
momento poderá por fim à vida. O título do filme As Horas pode ser uma
alusão às horas arrastadas e repletas de angústia dessas duplas vivendo
relações ambivalentes.
De um lado, o suicida que, de tão absorvido em si mesmo com
sua libido voltada para dentro, pouca disponibilidade tem para estar atento às
necessidades de quem está tão próximo. De outro lado está a pessoa que
presta cuidados, sentindo-se compelida a esconder a raiva que a situação
desperta. É como se todos se sentissem mutuamente aprisionados.
As Horas é uma densa e complexa união entre o amor e a
morte, representando simultaneamente o anseio pela morte e exaltação da
vida. Sabendo-se da morte sempre à espreita, organizam-se festas de
celebração da vida. O filme começa com o suicídio de Virginia Woolf, em 1941,
e o tema do suicídio ecoará em toda a trama, inclusive no final em que se
produz um momento de ternura e de reconciliação entre Clarissa e Sally, que
selam um pacto de exaltação da vida. Ressoa em Mrs. Brown, em seus
períodos de desrealização e despersonificação, uma personalidade deprimida,
dissociada, com contato superficial e artificial com a família, sempre
22
contemplando a possibilidade de se matar, desejo captado pela intuitiva
criança, seu filho Richie, que a observa com grande paixão. É esse mesmo
filho que acaba por realizar as fantasias da mãe de suicídio, anos mais tarde,
depois de escrever um romance no qual uma personagem, inspirada em sua
mãe, comete suicídio.
Tudo então se torna provisório. Fazer um bolo, preparar uma
festa, comprar flores, convidar os amigos, celebrar um prêmio ou um
aniversário são eventos que sucumbem diante da visão da morte. O tom
terminal de cada vida dita a precariedade do testemunho um único escape
para o desaparecimento total. Um livro, um poema, um filho são pressionados
por essa natureza de extrema fragilidade que a vida ostenta. O pássaro que
tomba, o visionário que se atira, a mãe que abandona os filhos são a prova da
vitória final da morte, da qual nenhuma das personagens do filme As Horas
pode fugir.
5. O filme As Horas
Protagonistas de As Horas – capas dos DVDs
O filme As Horas, em sua adaptação para o cinema, apresenta
um enredo muito fiel à sua fonte original, o romance homônimo. Todavia,
22
abordaremos a seguir as pequenas diferenças que notamos, bem como o que
se manteve semelhante na passagem do registro verbal para o audiovisual.
No início do filme, Virginia Woolf caminha para o suicídio de
maneira idêntica à descrita no livro, apenas não temos o fluxo da consciência
da personagem. Laura Brown, que surge a seguir, vive em 1951 e não em
1949, como no romance As Horas, e com isso o diretor destaca os anos
dourados da década de cinqüenta nos Estados Unidos. Laura repousa,
enquanto o enredo volta ao ano de 1923 para mostrar Virginia também deitada,
prestes a levantar, como se repassasse mentalmente o que faria com seu dia,
as horas que teria pela frente. O enredo avança novamente, saltando para
2001 em Nova Iorque, onde encontramos a terceira protagonista também
deitada, sendo acordada pelo despertador.
O trecho acima serve para nos mostrar o fluxo das imagens do
cinema. Se no livro o narrador tenta dar a idéia de simultaneidade no sentir,
pensar e agir, tem uma tarefa mais difícil do que a do diretor do filme.
Enquanto um precisa iniciar e encerrar um capítulo sobre uma das
personagens a partir de algum ponto, utilizando para isso algumas páginas, o
outro consegue fazer com que as ações se separem em fração de segundos,
através de cortes, passando de uma cena à outra, como se estivessem
compartilhando um mesmo espaço-tempo. Talvez nisso consista a grande
diferença entre as obras.
Quando Virginia hesita ao escrever, Laura hesita ao descer as
escadas e encontrar sua família, ou quando Clarissa pára no meio de sua sala,
não temos a noção exata do que estão pensando, apenas intuímos, pois, como
dissemos, não descrição interior das personagens. Todavia, a brilhante
22
atuação das atrizes Maryl Streep, como Clarissa, Julianne Moore no papel de
Laura e Nicole Kidman disfarçando sua beleza para interpretar Virginia Woolf,
se não totalmente, mas em grande parte, transmitem-nos os sentimentos e
emoções interiores das personagens.
A adaptação, pela velocidade que possui o cinema, realiza
melhor as cenas em que Virginia começa a escrever seu romance Mrs..
Dalloway, Laura age influenciada pela obra que e Clarissa parece ser a
própria personagem que Virginia está criando. Tudo fica mais claro nas telas,
não se perde nenhuma informação que teria ficado em páginas anteriores.
Mesmo destacando novamente a interpretação das atrizes de
primeira grandeza, observamos uma Virginia Woolf muito frágil,
demasiadamente insegura, quase incapaz de realizar qualquer tarefa, diferente
da que imaginávamos, pois como sabemos, ela foi uma mulher à frente de seu
tempo, que entre outras ações queria “exterminar a rainha do lar”, um
feminismo incomum para a época. Não podemos crer que a personagem
apresentada no filme fosse capaz de fazer qualquer tipo de revolução.
Outro aspecto que merece destaque é a boa caracterização da
família de Laura Brown, não pela protagonista que se apresenta totalmente
desconfortável em seu próprio lar, como pelo seu filho Richie, que nas telas
mostrava uma grande sensibilidade, e mais tarde justificaria sua profissão.
Sempre quieto e atento, observava todos os passos da mãe, como se esta
fosse uma espécie de deusa. Na cena em que Laura o deixa para ir ao hotel
com a bolsa carregada de medicamentos para suicidar-se, o que não ocorre no
livro, o filho se desespera ao vê-la partir, como se pressentisse que algo iria
acontecer. Toda a dramaticidade leva-nos a crer que ela posteriormente teria
22
cometido o suicídio, o que não acontece, visto que ela diz não conseguir
cometer este ato, e, então, decide abandonar a família.
A pós-moderna Clarissa é idêntica à do romance, apenas seu
relacionamento com a filha é melhor no filme; enquanto Julia, sua filha, no
romance é apresentada como uma jovem rebelde que vive influenciada por
uma amiga desajustada, uma espécie de “punk”, num mundo inacessível para
a mãe, a personagem fílmica é dócil, companheira e até confidente de Clarissa.
Não se veste com botas militares, pelo contrário, seus trajes são comportados
e não diferem daqueles usados por muitas adolescentes americanas
atualmente.
A visita de Louis, que no romance não fora anunciada, no filme
a surpreende apenas pelo fato de ter chegado antes do horário marcado,
porém o diálogo é o mesmo, provocando as mesmas emoções. Chama-nos a
atenção quando Louis, que parece menos dotado intelectualmente que Richard
e Clarissa, mais fútil e imaturo, retira um retrato do poeta da estante de
Clarissa e o esconde no casaco. Fica clara a importância que Richard ainda
tem para ele.
Clarissa e Louis
Sobre a personagem de Virginia falta mencionar que a única
cena que presenciamos alguma força ou emoção mais intensa de sua parte é
quando ela foge para a estação de trem e o dedicado Leonard a encontra. Os
dois discutem com maior intensidade que no livro e pela primeira vez Virginia
22
se altera, sai da sua aparente apatia, o que provoca o choro do marido. Desta
vez, parece ser ele que precisa de Virginia para sobreviver.
O poeta Richard, que não pode ser excluído desta
comparação, demonstra as mesmas emoções do romance, uma vez que não
há no filme onisciência sobre ele, o que temos são seus diálogos com Clarissa.
Entretanto, antes de suicidar-se, existe uma cena que não aparece na obra
literária, quando Richard contempla uma foto da mãe, enigmática, vestida de
noiva, pois até então não sabíamos qual a ligação que tinham. Neste instante,
o personagem recorda momentos de sua infância. No mais, inclusive o último
diálogo com Clarissa, é o mesmo nas duas obras, as declarações e a frase:
“ainda tenho que encarar as horas.”
A aparição de Laura ao final do filme surpreende tanto quanto
no romance, e ouvimos da própria personagem como abandonou a família e o
que aconteceu depois. Contudo, diz não se arrepender, pois não queria ter
aquela vida, foi colocada naquele papel que não conseguiu representar.
O filme termina com uma mensagem inexistente no romance:
“é preciso encarar a vida sempre, (...) amá-la conforme se apresenta para você
e depois descartá-la”. Logo em seguida vemos Virginia afogando-se no rio e
Clarissa, aparentemente mais leve, deitando-se ao lado de Sally.
Nesta comparação fica claro que um jogo de perda e ganho
na transposição da obra literária para o cinema, visto que, se por um lado a
velocidade do meio visual acrescenta dinamismo à obra, por outro, muito da
interioridade descrita através do fluxo da consciência das personagens se
perde nas telas. No entanto, merecem especial destaque todas as cenas que
mostram o processo de criação literária de Virginia Woolf nos diálogos com
22
Leonard, a busca incansável para concluir um romance de qualidade, as
motivações e a angústia sofridas pela autora.
O primeiro equívoco a ser apontado é de natureza estritamente
histórica. Trata-se da associação feita entre a redação do romance Mrs.
Dalloway e o suicídio de Virginia. Mrs. Dalloway foi escrito entre 1923 e 1924
e publicado em 1925. Virginia só se suicidou em 1941, isto é, 16 anos depois.
No filme, contudo, Nicole Kidman sequer "envelhece" entre o momento em que
escreve à pena o romance e aquele em que se prepara para imergir no rio
Ouse. Poderia pelo menos ter-se dado ao trabalho de trocar o vestidinho
florido de 1923 por outra roupa...
O roteiro de David Hare apresenta Virginia, durante a época da
redação de Mrs. Dalloway, como uma mulher arrogante e insensível às
questões alheias. A "Virginia de Hare e Cunninghan" não se importa, por
exemplo, em sobrecarregar Nelly, a cozinheira, enviando-a à cidade, em meio
às tarefas do dia, para atender a um capricho. Tampouco se sensibiliza
com as preocupações de Leonard ou se interessa por suas atividades na
gráfica. De fato, nada no filme leva a crer que aquela Virginia, durante a
redação de Mrs. Dalloway, continuava ativamente envolvida com a Hogarth
Press, a editora independente que ela e o marido haviam fundado e através da
qual haviam lançado obras de James Joyce, Katherine Mansfield e T.S. Elliot,
entre outros escritores modernos.
Nada tampouco sugere que ela continuava assídua a suas
leituras, ao convívio social com amigos e às contribuições para o suplemento
literário do jornal The Times, ao qual esteve ligada por 30 anos. Ou seja, em
nenhum momento, o filme deixa entrever o interesse pelo mundo fora de si
22
mesma, que constituía uma das fontes de matéria-prima de suas criações, ou a
doçura e a afabilidade que animavam o caráter da escritora, nem tampouco
sua participação ativa no Bloomsbury Group, que era um grupo de intelectuais
política e culturalmente diferenciado e com idéias muito à frente de sua época.
6
De fato, sua relação com Leonard aparece fria, distante e
paternalista, mas basta uma rápida consulta a seus diários da época para
perceber o quão forte era o companheirismo no casal, ele nutrindo profunda
admiração pelo trabalho literário da esposa e ela orgulhosa pelas atividades
pacifistas e socialistas do marido. A Virginia de Cunninghan tampouco parece
inspirar amizade, admiração ou respeito em Vanessa Bell, a irmã por quem
Virginia Woolf tinha verdadeira adoração, mas nunca qualquer relação
homossexual.
Quanto aos três sobrinhos, os filhos de Vanessa, o filme não
abre brecha que permita entrever o quanto adoravam a tia. Quentin Bell, que
aparece debochando dela no filme, dedicou anos de sua vida adulta a escrever
a primeira biografia autorizada de Virginia Woolf. Nela, Bell conta com sua
própria memória pessoal, dentre outras fontes, para extrair um minucioso e
comovente relato de 600 páginas, intitulado Virginia Woolf: a biography,
publicado em 1972.
De acordo com o making off do filme, Virginia Woolf passou a
vida toda tentando provar seu valor a seus pais, mesmo depois que estes
faleceram. O livro Mrs. Dalloway apresenta uma cena em que Clarissa
6
Bloomsbury era um grupo literário que se reunia em Bloomsbury desde 1904 até a Segunda
Guerra Mundial. Seus membros eram comprometidos com a rejeição ao que consideravam tabus
e censuras da Era Vitoriana em questões religiosas, artísticas, sociais e sexuais. A reputação do
grupo como um círculo cultural foi plenamente estabelecida na década de 20 e este permaneceu
como um foco de interesse popular e acadêmico devido ao brilho, variedade e produtividade de
seus membros.
22
Dalloway, já adulta, se imagina carregando a própria vida nos braços, como um
bebê, caminha na direção de seus pais já mortos, quando solta esse “pacote”
na frente deles e diz: “Esta é a minha vida. Foi isto que eu realizei”, como se
estivesse tentando provar alguma coisa a eles.
Virginia tentava descrever o relacionamento das pessoas não
da forma como conversavam entre si ou como se comportavam, mas com
aquilo que não diziam uma à outra, o que elas pensavam. Esse método ficou
conhecido como “fluxo da consciência”. Pode-se dizer que é a linguagem
corporal sem a presença do corpo. Em seu diário ela diz: “Um dia após meu
aniversário de 38 anos, sinto-me mais feliz hoje do que ontem, pois esta tarde
pensei em um novo formato para um romance. Percebi que a abordagem será
totalmente diferente, quase nenhuma armação, nenhum tijolo será visto e
nenhuma estrutura externa. Mas o coração, a paixão, o humor, tudo muito
vistoso e exposto. Aprendi a dizer as coisas com minha própria voz.”
Alguns estudiosos acreditam que seus diários têm tanto ou
mais valor que seus romances, visto que apresentam textura e riqueza de
observação. Virginia disse certa vez que gostaria que seus diários fossem algo
solto, mas não desleixado, tão elásticos que pudessem abrigar qualquer coisa
leve ou bela que lhe viesse à mente. Queria que eles se parecessem com uma
escrivaninha, um móvel amplo no qual se tornassem moldes transparentes o
bastante para refletirem a luz da vida e ainda um complexo estável com a
indiferença de uma obra de arte. Ela acreditava que “nada realmente acontece
se não for descrito em palavras”.
Tal descrição em palavras é retomada por Michael
Cunningham, autor do livro As Horas, que acompanhou as filmagens e pôde
22
dar seu parecer a respeito da direção e da fidelidade do filme romance de
Virginia Woolf e à sua correspondente adaptação. Em uma entrevista muito
importante no making off do filme As Horas, temos Cunningham e Daldry em
um diálogo aberto e esclarecedor sobre as dificuldades de adaptar para o
cinema a figura de Virginia Woolf, sobretudo sua obra, pois se trata justamente
de linguagens diferentes. Eles afirmam que um dos grandes problemas que
tiveram foi a fidelidade aos fatos, por se tratar de uma personagem real e
canônica como Virginia Woolf. Para que isso acontecesse, ambos leram
extensivamente e seguiram a biografia da autora escrita por Hermione Lee.
7
Muitas vezes precisaram adaptar os fatos às condições apresentadas, como
por exemplo, o fato de que Virginia se suicidou em março, mas eles
conseguiram fazer as filmagens em junho, época em que a paisagem é muito
diferente.
O curso do rio foi alterado, para que pudessem rodar melhor as
cenas; este deveria fluir da esquerda para a direita e para isso instalaram
máquinas mudando seu curso e refizeram seu leito para que pudessem filmar
as cenas do afogamento. Nicole Kidman recusou-se a empregar dublês, o que
tornou as filmagens mais arriscadas.
As cenas de Laura Brown foram rodadas na Flórida, onde a
equipe de filmagem encontrou uma rua com casas aconchegantes e
suburbanas, que pareciam transpirar desespero, como um gás radioativo,
palavras literais de Stephen Daldry em entrevista no making-off do filme. Em
Richmond, Inglaterra, as locações foram autênticas.
7
Hermione Lee nasceu e cresceu em Londres e foi educada em Oxford. É conhecida como
escritora, crítica e biógrafa. Sua biografia de Virginia Woolf foi publicada em 1996 e foi muito
aclamada nos meios acamicos. Ganhou o prêmio British Academy Rose Mary Crawshay e foi
escolhido pelo New York Times como o melhor Livro do Ano e incluído na lista do National Book
Critics Circle Award na categoria biografia.
22
Foram estabelecidas conexões importantes entre as três
mulheres, como filmá-las na cama, o despertador tocando, elas se levantando
e depois prendendo os cabelos. A estrutura do livro As Horas foi o núcleo em
torno do qual David Hare escreveu o roteiro.
8
O escritor do livro e o diretor do filme concordam que no livro
pode-se entrar na cabeça das personagens, visitar seu passado e voltar ao
presente de maneira que este fica infectado com o passado, ao passo que no
filme, para que se possa voltar ao passado, são utilizados flashbacks.
9
Desta
forma, os pensamentos ganham imagem e alcançam a interioridade das
personagens através da excelente interpretação dos atores, acrescida dos
diálogos. Eles desconstroem em ação. Assim, encontrar a primeira frase escrita
por Virginia Woolf no livro Mrs. Dalloway, “ela disse que ela mesma
compraria as flores”, nos conduz a Laura Brown lendo essa frase na
intimidade de seu quarto e, depois, Clarissa Vaughan indo a uma floricultura,
vivendo dessa forma o enunciado poético da escritora.
Mrs. Dalloway foi o primeiro romance publicado pela própria
Virginia em sua editora, Hogarth Press. Até então seus livros haviam sido
publicados pela Duckworth Ink Company, cujo editor era seu meio irmão
George Duckworth, que a molestara quando ela era criança e adolescente. Ela
8
David Hare nasceu em Sussex, Inglaterra, em 1947. Foi roteirista de teatro e cinema e também
escritor e recebeu vários prêmios por sua obra, tais como: três Tony Awards, três prêmios em
1985 no Berlin International Film Festival, o Evening Standing Award, dois Lawrence Olivier
Theatre Awards e London Critics Circle Film Award, USC Scripter Award, Writers Guild of
America Award, Seatle Film Critics Award, Bafta Film Award, Golden Globe e Discover
Screenwriting Award pelo filme As Horas, por meio do qual também foi indicado ao Oscar de
melhor adaptação.
9
Analepse, que é um termo mais utilizado em literatura, flash-back, flashback, cutback ou
switchback, que são termos mais utilizados no cinema, é a interrupção de uma seqüência
cronológica narrativa pela interpolação de eventos ocorridos anteriormente. É, portanto, uma
forma de anacronia, ou seja, uma mudança de plano temporal.
22
só começou a escrever grandes livros quando passou a publicá-los, livrando-se
da opressão de seu irmão.
Não foi fácil retratar Virginia Woolf na tela, visto que era uma
pessoa perturbada, extremamente difícil de conviver, mas era também a
pessoa mais luminosa, irresistível e fascinante na sala o tempo todo. Sua
Clarissa Dalloway foi transformada em Clarissa Vaughan no cinema, Septimus
foi transposto para Richard, e o sofrimento da Primeira Guerra para a
destruição de uma geração pela Aids. A florista é na vida real uma das maiores
autoridades sobre Virginia Woolf, portanto, seria injusto rodar esse filme sem
ela, de acordo com o diretor. Clarissa Vaughan e a florista discutem sobre o
livro de Richard, quase impossível de ser lido, assim como Virginia considerava
o seu. Louis, o companheiro de Richard, é baseado em Peter Walsh,
considerado o terceiro protagonista de Mrs.. Dalloway, mas no filme ele
aparece uma vez, visitando Clarissa e compartilhando lembranças de suas
vidas. Nessa versão de Mrs.. Dalloway ele vem, diz o que tem a dizer e vai
embora. Laura Brown recebe permissão de Virginia Woolf para morrer, quando
esta diz que alguém tem que morrer para que os outros dêem mais valor à
vida, mas Virginia decide que outra pessoa deve morrer, não sua heroína, e
Laura Brown muda de idéia. A água conecta essas duas mulheres não de
forma literal, mas em termos de fantasia, de forma poética, em um momento
surreal com a água entrando no quarto.
Quando Michael Cunningham pensou em escrever o livro As
Horas idealizou Virginia e Clarissa como suas personagens, depois teve a
idéia de colocar outra personagem entre elas, que foi baseada em sua mãe,
inclusive com o mesmo nome, Laura.
22
Um grande momento de prolongamento e expectativa entre as
três mulheres no filme é quando Virginia, a personagem, tem a idéia de traçar a
vida de uma mulher em um único dia. a estrutura do filme é reafirmada,
mostrando como evoluirá antes de entrarem na primeira cena longa entre
Clarissa e Richard. Tentou-se expor a vida das personagens no espaço em que
habitam, com Virginia na calma desesperante dos subúrbios em Richmond,
Laura angustiada na mediocridade daquele lar “perfeito” em Los Angeles,
Clarissa na efervescente Greenwich Village, em Nova Iorque e Richard em
um antigo loft, em um subúrbio mais sombrio e industrial chamado Meat
Market.
Clarissa foi a personagem mais difícil de criar na tela, de
acordo com o diretor, pois havia um dilema: entre as três mulheres, uma estava
escrevendo uma grande obra e lutando contra a vontade de se matar. A
segunda estava lendo uma grande obra e planejando abandonar a família e a
terceira seria aquela que daria uma festa, problema original de Virginia Woolf.
Richard é um homem complicado e mal humorado, imerso
em sua própria sensação de fracasso. Ele agride Clarissa porque a conhece
muito bem e se irrita quando ela insiste em mantê-lo vivo. Em sua opinião, ela
vive a vida dele, com reminiscências do passado comum a ambos.
Para o escritor, Laura Brown foi a personagem mais difícil de
ser criada, a mãe e dona de casa infeliz no final da década de 40, imagem
muito familiar a todos nós e, portanto, ele teve que resgatá-la dos estereótipos
que a mantinham como uma caricatura. Ela ganhou vida para Cunningham
quando este começou a pensar nela como uma artista, como alguém que tinha
os mesmos ideais de uma perfeição inatingível que guiavam Virginia Woolf,
22
assim sendo, estava sujeita aos mesmos altos e baixos que acometiam
Virginia. Para ambas as Clarissas, arte é dar uma festa, enquanto para Laura é
fazer um bolo.
Foi intencional fazer com que a comida aparecesse da forma
mais grotesca possível para que se pudesse sentir, do ponto de vista de
Virginia, a repugnância a essa visão da mesa da cozinha. Ao longo do filme, a
comida é mostrada de diversas maneiras, geralmente em contexto de repulsa,
não importando que seja o bolo feio de Laura ou o prato de siris, que estavam
se mexendo quando Clarissa começou a prepará-los, jogado fora por ela em
uma das cenas finais. No filme a comida é vista sob a perspectiva de Virginia
Woolf, com indiferença e rejeição.
Virginia acordando
De acordo com Daldry, alguns leitmotivs da produção
perpassam todo o filme, como o robe de Richard, que é do mesmo tecido do
travesseiro e do pijama usados pelo garoto Richie, os despertadores e as três
mulheres se levantando e penteando os cabelos. O quebrar de ovos também
aparece em cenas com as três mulheres, assim como as visitas e os beijos. As
visitas de Vanessa, irmã de Virginia, Kitty, vizinha de Laura e Louis,
companheiro de Richard, acarretam um alto custo para as três protagonistas,
22
devido à intensidade emocional trazida por estas pessoas. Os beijos entre
mulheres nas três histórias não apresentam conotação lésbica, mas um ponto
de comunhão que elas precisam em momentos de profunda vulnerabilidade.
Eles se originam do beijo fundamental que em Mrs. Dalloway, em que a
lembrança mais querida de Clarissa Dalloway é ter beijado sua melhor amiga,
Sally Seton. Podemos dizer também que Virginia, a personagem, tenta sugar a
vida atribulada e cheia de significados de Vanessa através do beijo e Laura
tenta infundir coragem em Kitty. Todavia, o beijo entre Clarissa e Sally é
diferente, pois é um beijo que denota confiança e compreensão.
Virginia e Vanessa Laura e Kitty Clarissa e Sally
Vi Laura Brown (1951) Cl
A música do filme As Horas, composta por Philip Glass,
“protagoniza“ as três histórias, unindo-as, mas expressando, através de sua
própria voz, o clima melancólico que perpassa a narrativa ficcional. A música
presente pode ser comparada à linguagem rebuscada no livro, pois veicula a
história, no entanto apresenta personalidade própria. É como uma linguagem
que tem como fim ligar-se ao inconsciente do espectador, dando outra
dimensão à imagem e não caindo no clichê, visto que não tenta impor o que se
deve sentir, nem quando. A música é uma vaga de pressentimentos e melodias
que ecoam entre si, em um jogo potencialmente infinito com o silêncio da dor e
22
as imagens frágeis da alegria. Através dela contemplamos as cenas íntimas do
filme, redescobrindo a intensidade indizível de cada instante. Ao mesmo tempo
assistimos, segundo o diretor e os realizadores do filme, à serena reinvenção
dos mistérios de uma música tocada para representar o desejo de utopia
aquecido por todas as protagonistas, que não são mais do que um
desdobramento de sua matriz: Virginia Woolf.
10
A cena da estação, com Virginia e Leonard, é uma cena central
para todo o filme e é bem mais detalhada do que no livro. os dois
compreendem qual o custo da decisão de voltarem a Londres. Ambos sabem
que talvez a vida de Virginia seja mais curta na cidade grande, mas certamente
será mais plena. Virginia Woolf terminou de escrever Mrs.. Dalloway depois
que voltou a morar em Londres e escreveu suas melhores obras. Tanto os
livros Mrs.. Dalloway e As Horas quanto o filme As Horas tratam de escolhas
e do quanto é difícil fazer essas escolhas.
Virginia e Leonard na estão
10
O desejo de utopia na ficção literária representa o anseio romântico de fugir às determinantes
do tempo para o sacrificar as potencialidades da alma, sendo que o tempo aprisiona os corpos
em uma visão platônica daquilo que representa o sonho de liberdade que o rontico aquece em
seu interior. No filme As Horas o tom musical segue os compassos do relógio, assinalando
continuidade mas, sobretudo, a ligação do tempo de três mulheres que o vivem intensamente em
função de um outro espaço que não é o do presente, e sim o de um passado relembrado e de um
futuro cheio de incertezas.
22
Ao longo deste capítulo falamos sobre o livro de Virginia Woolf,
Mrs. Dalloway, visto que foi de suma importância para que Michael
Cunningham escrevesse o romance As Horas e que este fosse levado ao
cinema por Stephen Daldry e David Hare, o roteirista. Para que pudéssemos
contextualizar essas obras tratamos do modernismo, considerado um período
de transição, no qual se rompeu com a velha tradição da moral judaico cristã
no ocidente para viver o progresso material advindo da Revolução Industrial, da
aliança entre a técnica e a ciência, que resultou no surgimento da tecnologia e
a inserção na sociedade dos meios de comunicação que provocaram uma
verdadeira revolução estética.
Sublinhamos o modernismo inglês, no qual nasceu a fonte de
inspiração para o filme As Horas, sendo que este movimento significou a
quebra da tradição de uma nação em todos os setores, principalmente o
artístico, que buscou novos horizontes para sua expressão. Nesse sentido,
surgiu a figura de Virginia Woolf como a maior representante da literatura
feminina, valorizando a estratégia comunicativa do fluxo da consciência.
Na visão pós-moderna de Michael Cunningham, a sensação
avassaladora de fragmentação, efemeridade e mudança caótica do
modernismo está presente tanto na obra vanguardista de Virginia Woolf quanto
na sua adaptação e na de Stephen Daldry para o cinema, daí a pertinência
desse movimento artístico. “Seu interesse central era uma experiência distintiva
do tempo, do espaço e da causalidade como coisas transitórias, fugidias,
fortuitas e arbitrárias” (HARVEY, 2005: 21-22).
A imagem da “destruição criativa” presente na obra de Virginia
Woolf e no filme As Horas é importante para a compreensão da modernidade
22
como um período de transição, pois derivou dos dilemas práticos da quebra de
paradigmas dos valores tradicionais e modos de vida costumeiros, como
mencionamos anteriormente, para construir um mundo novo baseado na
capacidade humana de re-inventar sua própria imagem através de veículos que
lhe têm servido como espelho, causando-lhe admiração e, simultaneamente, o
sentimento de estranheza. O modernismo internalizou seu próprio turbilhão de
ambigüidades, contradições e estéticas, ao mesmo tempo em que buscava
afetar a estética da vida diária. O pós-modernismo se abre para outras
possibilidades, sobretudo no campo virtual das representações em que o
cinema encontra sua maior realização.
Em seu livro matricial, Virginia Woolf introduziu uma inovação
no campo estético, o fluxo da consciência, com suas rupturas e arrebates
artísticos que correspondem ao que o cinema atualmente faz com suas
representações. O filme As Horas transformou-se em uma obra reconhecida,
com o mérito de traduzir na imagem aquilo que poeticamente se viu na letra.
Neste filme estamos diante de três histórias paralelas, ligadas
pela referência a Virginia Woolf através de seu romance Mrs.. Dalloway. As
Horas é um labirinto de fatos e emoções em que cada acontecimento de uma
de suas narrativas pode funcionar como eco de outro acontecimento, situado
em outra narrativa e em outro tempo. David Hare, seu roteirista, encontrou uma
lógica específica que nasce da combinação de detalhes realistas com o poder
simbólico das situações.
O segmento dedicado a Virginia Woolf consegue escapar a
todas as formas convencionais de caracterização da “neurose” da escrita.
Estamos perante uma representação da escritora na qual as convulsões do
22
cotidiano e a dor inerente à escrita se entrelaçam, em um jogo de exuberância
e crueldade em que “vida” e “obra” fazem parte da mesma paisagem afetiva.
Na história de Laura Brown, nos anos 50, deparamos com uma
mãe angustiada que programa seu próprio suicídio e emerge como uma
personagem ao mesmo tempo típica e selvagem: típica, pois está enraizada
em um espaço familiar que conhecemos através de regras antigas; selvagem,
porque seu desejo ambivalente de viver lhe confere uma vibração emocional de
grande melancolia, reforçada pela relação ambígua com seu filho Richie.
A contemporânea Clarissa, simbólica e factualmente, junta as
outras histórias, visto que a personagem do poeta com Aids coloca o
espectador face à decomposição física como sinal da morte. A mulher que o
protege é uma personagem realista, no sentido de que o filme a encena sem
subterfúgios dramáticos nem ressonâncias mitológicas. Ela é um pouco como a
primeira espectadora de tudo que acontece: deparando-se com o fator cruel da
morte, celebra a frágil, mas essencial, possibilidade de continuar a viver, com o
sentimento de que nenhum sentido do destino de cada um é suficiente para dar
conta da infinita complexidade de uma vida ou de uma morte representada pela
personagem. Para ela, é preciso alcançar a singularidade do instante para
vislumbrar a capacidade de viver ou a disponibilidade para amar. As horas do
título são acontecimentos de cada instante em seu radicalismo e volatilidade.
Toda a humanidade figurada em cada uma das três personagens é escrava do
tempo e é em seu caráter inexorável que se pode encontrar uma parte de
liberdade, mesmo que seja somente em um instante em que o amor possa se
exprimir.
22
Também colocamos neste primeiro capítulo os conceitos de
adaptação e transposição de uma obra literária para o cinema, pois, via de
regra, existem diferenças substanciais na transposição de uma linguagem a
outra, com tempos diferentes, assim como a interiorização das personagens.
As considerações sobre os livros Mrs.. Dalloway e As Horas e
o filme homônimo foram importantes para que pudéssemos analisar o filme no
próximo capítulo com maior embasamento. Os pequenos “deslizes”
mencionados na transposição do livro para o filme serviram para demonstrar
que não uma obra igual à outra, ela pode ser fiel, como consideramos que
esta foi, mesmo assim existem diferenças entre elas, principalmente por se
tratar de linguagens distintas. O making-off também serviu como mais um
instrumento de construção do filme para nossa pesquisa.
22
Capítulo II – O filme As Horas
Neste segundo capítulo trataremos do filme As Horas (2002)
de Stephen Daldry, no que se refere, principalmente, à sua produção e
recepção no âmbito midiático. Começaremos pela ficha técnica do filme, com o
fim de o situar no contexto do cinema americano contemporâneo e, a seguir,
ofereceremos dados relevantes de sua produção, utilizando como referentes: a
câmera, o enquadramento, planos, ângulos, o próprio movimento da câmera,
iluminação, vestuário, cenografia e atuação, assim como as categorias do
tempo e do espaço na montagem, que são elementos cruciais na trama do
filme. Para maior clareza destes enunciados da produção, os ilustraremos com
cenas do filme As Horas.
Decuparemos as cenas que constroem a imagem da
personagem Virginia Woolf, de Laura Brown e de Clarissa Vaughan; analisá-
las-emos aplicando as categorias estéticas da poiesis, que se refere aos
aspectos produtivos da cena, aisthesis, que se refere à face sensível cognitiva
da recepção e a catarse que conta da fruição sensível e comunicativa da
identificação por parte do espectador.
22
1. Ficha técnica e dados da produção do filme As Horas
Ficha Técnica:
Título Original The Hours
Título em Português As Horas
Gênero Drama
Tempo de Duração 115 minutos
Ano de Lançamento 2002 (EUA); 2003 (Brasil)
Direção Stephen Daldry
Estúdio Scott Rudin Productions
Distribuição Paramount Pictures / Miramax Films /
Buena Vista International / Lumière
Roteiro David Hare baseado no romance
homônimo de Michael Cunningham
Produção Robert Fox e Scott Rudin
Música Philip Glass
Fotografia Seamus McGarvey
Desenho de Produção Maria Djurkovic
Direção de Arte Nick Palmer, Mark Raggett e Judy
Rhee
Figurino Ann Roth
Edição Peter Boyle
Efeitos Especiais Stuart Brisdon, Jim Lillis (Doublé
Negative)
Efeitos Visuais Richard Briscoe, Mathew W. Plummer
Edição de Som Richard Fettes, Stuart Morton
Elenco:
Ator/Atriz Personagem
Nicole Kidman Virginia Woolf
Meryl Streep Clarissa Vaughan
Julianne Moore Laura Brown
Ed Harris Richard (adulto)
Stephen Dillane Leonard Woolf
22
John Reilly Dan Brown
Miranda Richardson Vanessa Bell
George Loftus Quentin Bell
Charley Ramm Julian Bell
Sophie Wyburd Angelica Bell
Claire Danes Julia Vaughan
Jack Rovello Richie (garoto)
Allison Janney Sally Lester
Toni Collette Kitty Barlowe
Jeff Daniels Louis Waters
Eileen Atkins Barbara
Linda Bassett Nelly Boxall
Christian Coulson Ralph Partridge
Lyndsey Marshal Lottie Hope
Margo Martindale Mrs.. Latch
Este filme ganhou ou concorreu aos prêmios mencionados
abaixo.
Oscar 2003 (EUA)
Nicole Kidman recebendo o Oscar
Venceu na categoria de Melhor Atriz (Nicole Kidman)
Indicado em outras oito categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator
Coadjuvante (Ed Harris), Melhor Atriz Coadjuvante (Julianne Moore), Melhor
Figurino, Melhor Edição, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Trilha Sonora.
Globo de Ouro 2003 (EUA)
Venceu nas categorias de Melhor Filme - Drama e Melhor Atriz - Drama
(Nicole Kidman)
22
Indicado em outras oito categorias: Melhor Diretor, Melhor Ator Coadjuvante
(Ed Harris), Melhor Atriz Coadjuvante (Meryl Streep), Melhor Roteiro e Melhor
Trilha Sonora.
BAFTA 2003 (Reino Unido)
Venceu nas categorias de Melhor Atriz (Nicole Kidman) e Melhor Trilha
Sonora.
Indicado em outras nove categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Filme
Britânico, Melhor Atriz (Meryl Streep), Melhor Ator Coadjuvante (Ed Harris),
Melhor Atriz Coadjuvante (Julianne Moore), Melhor Maquiagem, Melhor Edição
e Melhor Roteiro Adaptado.
Grande Prêmio Cinema Brasil (Brasil)
Indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Festival de Berlim 2003 (Alemanha)
Venceu o Urso de Prata (Meryl Steep, Nicole Kidman e Julianne Moore).
Recebeu um prêmio especial do júri.
Indicado ao Urso de Ouro.
Prêmio Bodil 2004 (Dinamarca)
Indicado na categoria de Melhor Filme Estadunidense.
Prêmio César 2004 (França)
Indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Prêmio David di Donatello 2003 (Itália)
Indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
Curiosidades:
22
Apesar do filme estar pronto desde 2001, as distribuidoras Miramax e a
Paramount Pictures decidiram adiar seu lançamento em um ano, por
considerar a disputa ao Oscar muito acirrada naquela ocasião.
Para fazer o papel de Virginia Woolf, Nicole Kidman usou um nariz falso.
Nicole Kidman é canhota e teve que aprender a escrever com a mão direita
porque a escritora Virginia Woolf não era canhota.
Emily Watson e Gwyneth Paltrow estiveram cotadas para o papel de "Laura
Brown".
O segmento do filme com Meryl Streep foi filmado primeiro, depois o de
Julianne Moore, e por último o de Nicole Kidman.
A transformação de Julianne Moore em uma senhora idosa levou seis horas.
Breve sinopse do filme As Horas
Em três períodos diferentes vivem três mulheres ligadas ao
livro Mrs. Dalloway. Em 1923 vive Virginia Woolf, autora do livro, que enfrenta
uma crise de depressão e idéias de suicídio. Em 1950 vive Laura Brown, uma
dona de casa grávida que mora em Los Angeles, planeja uma festa de
aniversário para o marido e não consegue parar de ler o livro. Nos dias atuais
vive Clarissa Vaughan, uma editora de livros que vive em Nova Iorque e
uma festa para Richard, escritor que fora seu amante no passado e hoje está
com AIDS e quase morrendo
11
.
Dados de produção
11
Este tipo de sinopse é comumente encontrado em locais de divulgação como cinemas, vídeo
locadoras, etc.
22
O cinema, como fenômeno óptico, recebe as imagens através
da visão e da persistência retiniana, projetando-se em 24 quadros ou frames
por segundo, para que não haja descontinuidade, lentidão ou aceleração. A
partir da leitura de A Linguagem Cinematográfica (2003) de Marcel Martin,
apresentaremos uma breve sinopse dos principais elementos da gramática do
cinema e tentaremos exemplificá-los com passagens do filme As Horas.
A imagem constitui o elemento de base da linguagem
cinematográfica, sendo considerada matéria prima fílmica de grande
complexidade. Sua gênese resulta da atividade de um aparelho técnico capaz
de reproduzir objetivamente a realidade que lhe é apresentada, mas ao mesmo
tempo essa realidade é orientada de acordo com seu realizador. Portanto, a
imagem pode apresentar uma realidade material com valor figurativo, afirma
Martin categoricamente (IBIDEM).
Assim, o movimento é certamente o caráter mais específico e
importante da imagem fílmica. O som também é um elemento decisivo da
imagem pela dimensão que lhe acrescenta. A imagem fílmica, como fragmento
da realidade exterior, oferece-se ao presente de nossa percepção e se inscreve
no presente de nossa consciência, sendo que a defasagem temporal é feita
através do julgamento, que coloca os acontecimentos como passados ou
determina vários planos temporais na ação do filme. Esta questão temporal
assinalada por Martin é de fundamental importância para a compreensão da
trama narrativa de As Horas, uma vez que o título transforma-se em um
enunciado do objeto-tempo e seus desdobramentos, justaposições e fusões de
cada uma das personagens principais.
22
O cinema, de modo geral, tem grande poder de atração pelo
fato de nos transportar livremente no espaço e no tempo, condensando o
tempo, recriando a duração e permitindo que o filme flua sem descontinuidade
da consciência. A imagem é afetada por um coeficiente sensorial e emotivo que
nasce das próprias condições com que transcreve a realidade, mas sozinha
não nos permite perceber o tempo da ação que transcorre, pois este se
fundamenta nas relações das imagens entre si, isto é, na montagem.
O sentido da imagem é, portanto, função do contexto fílmico
criado pela montagem e também do contexto mental do espectador, que reage
de acordo com seu conhecimento ou percepção de mundo. Assim, a imagem
reproduz o real para em seguida afetar nossos sentimentos e por fim adquirir
uma significação ideológica ou moral
12
. Esse esquema foi definido por
Eisenstein (APUD MARTIN, 2003: 21-29), para quem a imagem nos conduz ao
sentimento e, a partir deste, à idéia.
Entre os elementos de produção considerados para a
montagem do filme, ainda segundo Marcel Martin, podemos destacar a
câmera, que exerce um papel ativo de registro da realidade material e de
criação da realidade fílmica. Um caso particular dos movimentos da câmera é a
mudança de planos. Com o travelling a câmera tornou-se móvel como o olho
humano e a filmadora passou a ser uma criatura móvel e ativa, uma
personagem do drama. Passou também a exprimir pontos de vista cada vez
mais subjetivos através de movimentos progressivamente audaciosos.
No caso do filme As Horas isso pode ser observado na
aproximação da câmera ao rosto da personagem de Virginia Woolf, como se a
12
A imagem reproduz o registro do real, ou seja, do efeito sensorial que esta é capaz de produzir
no espectador.
22
câmera adentrasse na consciência da personagem. Para isso são utilizados
primeiríssimos planos.
Pode-se acompanhar uma personagem ou objeto em
movimento, criar ilusão de movimento de um objeto estático, descrever um
espaço ou uma ação, definir as relações espaciais entre dois elementos da
ação cabe salientar que no filme analisado aparece a relação de três espaços
simultaneamente; realçar o caráter dramático de uma personagem ou objeto,
neste caso de três figuras femininas, significa expressar subjetivamente o
ponto de vista de uma personagem em movimento ou expressar a tensão
mental da mesma, principalmente em se tratando de Virginia Woolf, fonte de
inspiração para o filme As Horas e representada através do movimento da
câmera que parece escrever as oscilações do tempo (MARTIN, OP.CIT.:
44-46).
O fenômeno das imagens em movimento encontra na figura de
Virginia Woolf uma analogia perfeita a respeito do que significa o movimento
criador no chamado “fluxo livre da consciência” que responde, por sua vez, à
passagem do inconsciente para o consciente, da fantasia para a realidade e
vice-versa, é isso o que a câmera e seu movimento inscrevem na tela,
ocultando-se e revelando-se na escrita da ação.
O enquadramento constitui o primeiro aspecto da participação
criadora da câmera no registro que faz da realidade exterior para transformá-la
em matéria artística. É a maneira como o diretor decupa e organiza o
fragmento de realidade apresentado à objetiva, que assim aparecerá na tela. A
escolha da matéria filmada é o estágio elementar do trabalho criador em
cinema e em seguida vem a organização do conteúdo do enquadramento
22
(MARTIN, IBIDEM: 35-36). Um entre tantos outros enquadramentos
significativos no filme As Horas é aquele que nos revela Laura como mãe de
Richard, em que ela aparece em uma foto vestida de noiva, em uma cena
comovente na qual Richard revela toda a angústia causada pelo abandono de
sua mãe. Esse enquadramento do retrato de Laura também tem um caráter
metalingüístico, em que o cinema nos fala através da fotografia, ou seja, o meio
falando de suas origens
13
.
O plano é a unidade cinematográfica constituída por uma série
de fotogramas consecutivos com unidade temporal. Pode ser considerado
como o ponto de vista de uma porção de espaço em um tempo determinado,
sabendo-se que o tempo do filme é sempre diferente do tempo da realidade.
Cada tomada é um fragmento de imagem não interrompido, no qual a imagem
serve para completar a tessitura do texto que está sendo construído.
A primeira característica do plano é o enquadramento do
espaço transversal que envolve o foco da câmera e logo será reproduzido na
tela, enquanto o campo é o espaço longitudinal que é visto, com maior ou
menor profundidade.
O plano detalhe ou primeiríssimo plano aproxima uma parte
do corpo humano ou do objeto com a finalidade de reforçar a intencionalidade
dramática e reforçar algo que é essencial à narração. O efeito é impactante e a
tensão se sobre um fragmento. Podemos observar um primeiríssimo plano
13
Uma das funções da linguagem, a metalinguagem volta-se para seu próprio código. Na
literatura é um recurso capaz de criar distanciamento entre o leitor e a obra e por esse motivo foi
largamente utilizada pelos escritores modernistas, que desejavam despertar no leitor a
consciência de que a arte é um “fazer artístico”. O cinema está intimamente ligado à fotografia,
pois esta não serve como suporte do dispositivo cinematográfico, mas também está inserida
na narrativa ficcional do filme. Entretanto, enquanto a fotografia fala sempre no pretérito, o filme
destrói o cordão que une a fotografia ao referente pela superposição de imagens umas às outras
na construção de um presente ficcional, devido ao movimento, considerando-se o filme como
uma coletânea de fotografias dispostas em seqüência.
22
significativo no filme As Horas quando nos são mostradas as mãos de Virginia
Woolf escrevendo seu bilhete de despedida para o marido Leonard antes de
sair de casa, como aparece registrado no filme As Horas.
O primeiro plano mostra o objeto ou a cabeça humana em
sua totalidade e destaca a impressão do intérprete ou os contornos da figura. É
um plano menos impactante que o anterior e depende da qualidade fotográfica.
Como ilustração temos o rosto de Virginia quando esta entra no rio Ouse com
os bolsos cheios de pedras para afogar-se (TF1:26)
14
.
.
Virginia no rio Ouse
O plano médio mostra a figura humana até a cintura ou do
peito para cima e permite mais de uma figura. O controle dos gestos de mãos e
braços e o saber se colocar em cena são fundamentais: também na cena
anterior, Virginia coloca uma pedra no bolso de seu casaco para conseguir seu
intento, o afogamento (TF 2:60).
O plano americano ou ¾ mostra os sujeitos cortados à altura
dos joelhos e as personagens evoluem por espaços limitados, deslocando-se
até um ponto objetivo: vemos o corpo de Virginia entrando no rio para se afogar
(TF 3:11).
14
A partir deste momento, usaremos a nomenclatura Tempo do Filme As Horas sob a
abreviatura TF para indicar a localização da cena no dispositivo fílmico, seja em hora(s),
minuto(s) ou segundo(s).
22
Os três tipos de planos anteriormente definidos encontram
aplicação na cena inicial do filme, pois mostram a intensidade dramática do
enunciado, o papel da intérprete em sua ação corporal ao lidar com um
elemento da natureza, o rio, que também representa a passagem do tempo nos
distintos planos.
No plano geral inteiro ou de conjunto a figura humana aparece
completa e situada em um espaço aberto, relacionando-se com outros. Pode
ser considerado mais relativo e menos protagônico, pois é descritivo e utilizado
em situações de grupo. Temos vários exemplos na cena da estação, onde
estão Virginia e Leonard (TF 1:19:30; 1:19:57) quando ela pretendia tomar o
trem e ir a Londres sem avisar ninguém, mas foi impedida devido à chegada de
seu marido Leonard. Em um plano geral, os protagonistas desaparecem e
vemos o trem chegando, apitando e soltando fumaça (TF 1:24:51).
O grande plano geral mostra o espaço total no qual se
desenvolve a ação (TF 0:03:29), como quando Virginia está dentro do rio
com a água até o pescoço, prestes a afundar, e o plano seqüência se na
continuidade de espaço temporal captando os movimentos dos intérpretes,
diálogos e tudo mais que apareça no visor da lente. mesmo uma
seqüência de imagens intercaladas em cortes: de Virginia despedindo-se e
adentrando no rio Ouse; e Leonard lendo sua carta e saindo desesperado para
tentar detê-la. Assim, o tempo “real” da morte coincide com o tempo
cinematográfico, que pode ser considerado o tempo da criação mais pura
(MARTIN, op. cit.: 37-40).
Os cortes são fundamentais do ponto de vista técnico e
subjetivo, pois são necessários para produzir transformação. O roteiro deste
22
filme é estruturado em uma seqüência de cortes, especialmente quando se
transporta de uma época para outra, com o fim de descrever outra personagem
ou para inserir os pensamentos ou influência de uma sobre outra. Trata-se de
cenas tri-partidas e justapostas nas quais os cortes operam a alternância do
tempo e a continuidade do diálogo. A alternância de cortes entre as cenas de
Laura no quarto do hotel e as conversas de Virginia com sua irmã e sobrinha,
sobre o destino de sua personagem, permitem entender a intermitência do
pensamento da escritora a respeito de sua personagem.
Angulação é o ponto de vista com relação ao referente ou
personagem ou à câmera. É o ângulo no qual se posiciona o eixo da objetiva
com relação ao objeto ou sujeito que se capta. A angulação pode acentuar o
efeito dramático e a concepção do plano, como também enaltecer e sublinhar
ou minimizar a situação de poder de determinada personagem em um dado
momento. Por exemplo, a angulação contra-plongée, que fotografa de baixo
para cima, dá geralmente uma impressão de superioridade, exultação e triunfo,
enquanto a plongée, filmagem de cima para baixo, tende a diminuir o indivíduo,
a esmagá-lo moralmente, fazendo dele um objeto preso a um determinismo
insuperável, um joguete da fatalidade (IBIDEM: 40-44). Podemos observar
vários posicionamentos de câmera com angulações e movimentos diferentes
ao longo do filme As Horas, reforçando seu caráter dramático, baseado na luta
das personagens contra o advento da angústia e a passagem inexorável do
tempo. Daldry utilizou angulações diferentes para revelar cada uma das três
protagonistas que vivenciam tal drama existencial, próprio da condição
humana.
22
A iluminação constitui um fator decisivo para a criação da
expressividade da imagem e serve para definir e modelar os contornos dos
planos dos objetos, para criar a impressão de profundidade espacial, para
produzir uma atmosfera emocional e também para provocar certos efeitos
dramáticos. Na entrevista feita com o diretor no making-off do filme, em um de
seus comentários, descobrimos que o cenografista teve muito trabalho para
conseguir a iluminação ideal e o brilho correto na cena da morte da passarinha,
especialmente dos olhos desta, para que pudesse conectar os pensamentos de
Virginia com a morte, expressa materialmente ali pela ave (IBIDEM: 56-57).
Virginia e a passarinha morta
Esta cena aparece representada da seguinte forma:
Virginia: Você acha que ela gosta de rosas?
Angelica: É fêmea?
Virginia: Sim, as fêmeas são maiores e menos coloridas.
Angélica: O que acontece quando morremos?
Virgínia: O que acontece? (Fica pensativa e responde)
Retornamos ao lugar de onde viemos.
Angélica: Não me lembro de onde vim.
Virgínia: Nem eu.
22
Angélica: Ela é muito pequena.
Virgínia: É. É uma das coisas que acontecem. Parecemos menores.
Angélica: Mas ela está tão tranqüila...
(TF 0:46:58)
Chegam Vanessa, a irmã de Virginia, e seus sobrinhos e vão
para dentro da casa para tomar chá. Virgínia fica mais um pouco, coloca rosas
em volta da ave morta, deita-se ao seu lado, introspectiva, e a câmera filma
seu rosto em primeiro plano e depois a ave, com um primeiríssimo plano em
seus olhos abertos e sem vida. A luz dos olhos da passarinha e de Virginia
reflete a morte como um mistério ao qual o filme dá essa conotação poética.
O vestuário também faz parte dos meios de expressão
fílmicos, embora não seja um elemento artístico isolado, pois é inerente ao
estilo de direção e serve para por em evidência gestos e atitudes das
personagens, seja pela harmonia ou pelo contraste. Pode desempenhar
também um papel simbólico na ação. Graças à cor, o figurinista pode criar
também efeitos psicológicos significativos (IBIDEM: 60-62). Na visita de
Vanessa a Virginia, as roupas da primeira, consideradas como uma segunda
pele social, demonstram sua condição social elitizada, em contraste à forma
simples de vestir de Virginia, mais austera e minimalista em relação a seus
costumes.
O conceito de cenário compreende tanto as paisagens
naturais quanto as construções humanas e não os cenários interiores, mas
também os exteriores podem ser reais ou construídos em estúdios. Constroem-
se cenários em estúdios por verossimilhança histórica, por questão de
economia ou com o desejo de acentuar o simbolismo, a estilização e a
22
significação (IBIDEM: 62-64). No filme As Horas quase todas as cenas
externas foram locadas e as internas foram rodadas no estúdio, com exceção
das cenas do apartamento de Clarissa e do apartamento de Richard, que
também foram locadas, segundo o making-off que utilizamos como meio de
informação.
A direção dos atores é um dos meios à disposição do cineasta
para criar seu universo fílmico. No cinema, em geral a câmera se encarrega de
evidenciar a expressão gestual e verbal, mostrando-a em primeiro plano e sob
o ângulo mais adequado, realçando as nuances e a interiorização (IBIDEM:
73-74). Em As Horas, Stephen Daldry trabalhou com estrelas de primeira
grandeza não na interpretação de suas protagonistas, mas também das
outras personagens, fato que contribuiu muito para a dramaticidade das cenas
e para o envolvimento dos espectadores. Destacam-se a participação de Nicole
Kidman como Virginia, Julianne Moore como Laura, Meryl Streep como
Clarissa, Ed Harris como Richard, Stephen Dillane como Leonard, entre outros.
Devemos assinalar também o caráter tríplice do tempo no
cinema no que se refere à decupagem e montagem, entendendo-se a
decupagem como uma operação analítica da trama narrativa e a montagem
como uma operação sintética da produção (IBIDEM: 75-76). Temos o tempo da
projeção ou duração do filme, o tempo da ação ou duração diegética da história
contada e o tempo da percepção ou da impressão de duração intuitivamente
sentida pelo espectador, que é arbitrária e subjetiva, assim como a noção de
tédio, sentimento resultante de uma impressão de duração insuportável. No
cinema pode-se dominar o tempo, pois a câmera consegue tanto acelerar
quanto retardar, inverter ou deter o movimento e, conseqüentemente, o tempo.
22
O conceito de tempo implica os conceitos de data e duração.
inúmeros recursos para indicar a data de modo mais preciso ou menos
preciso como, por exemplo, a maneira de vestir pode localizar a ação no
tempo, o que foi muito bem caracterizado no filme As Horas, com vestimentas
típicas das três épocas diferentes abordadas. O conceito de duração pode
indicar tanto o escoamento quanto a permanência do tempo e a duração
intuitivamente vivida reside na montagem, pois esta é o meio mais específico
de se expressar a duração. Nossa apreensão da duração é intuitiva e o que
percebemos conscientemente é apenas o sistema de referência temporal
racionalizado e socializado em que vivemos. Como o espaço e o tempo no
cinema se encontram ligados em um continuum no interior do qual evoluímos,
o tempo se impõe a nós não como uma sucessão de instantes, mas como uma
duração, e o espaço nos é apresentado em blocos, graças aos planos longos.
Com o flashback, o travelling para frente e a fusão podemos ser transportados
para qualquer momento da narrativa. Neste filme, o diretor se utilizou de
flashbacks para evocar o passado e as lembranças das personagens e do
travelling para mostrar, sobretudo, a idéia da circularidade do tempo (IBIDEM:
213-221).
Não podemos falar de um espaço do filme, mas sim de um
espaço no filme, em que se desenrola seu universo dramático. Portanto,
parece claro que o cinema é uma arte do tempo, mas o espaço é um quadro
fixo e objetivo, enquanto objeto de percepção, como um quadro oferecido à
ação, um suporte construído em função das necessidades do mis-em-scène do
conteúdo figurativo. Pode-se dizer que “o cinema tem o privilégio de ser a arte
do tempo que goza inteiramente de um domínio absoluto do espaço”. Assim
22
como a perspectiva é a chave de nossa racionalização do espaço, o tempo
social é o instrumento de nossa racionalização da duração, mas o cinema nos
permite rejeitar essa racionalização, proporcionando à duração a liberdade de
desfrutar nossa consciência profunda (IBIDEM: 196-208).
Como vimos, o cinema dispõe ao mesmo tempo de uma
linguagem sutil e complexa, capaz de transcrever acontecimentos,
comportamentos, sentimentos e idéias. Enquanto o escritor pode dedicar
inúmeras páginas à análise íntima e minuciosa das personagens, o cinema é
obrigado a descrever de fora os efeitos objetivos dos comportamentos
subjetivos, sugerindo os conteúdos mentais mais secretos e as atitudes
psicológicas mais sutis através do simbolismo e do diálogo (IBIDEM: 238-239).
A paritr desses princípios técnicos da produção que trouxemos
para o filme As Horas, analisaremos as três personagens, Virginia, Laura e
Clarissa, de acordo com as categorias da poiesis ou technê, aisthesis e
katarsis ou catarse.
A poiesis ou tech privilegia a dimensão produtiva da
experiência estética. Refere-se aos diferentes recursos utilizados na montagem
que favorecem o reconhecimento conceitual e a prática utilitária da produção
do filme como um produto cultural. No cinema, a poiesis ou technê está
relacionada com esse cunho formal que descreve a estruturação da linguagem
cinematográfica, relacionando o saber técnico envolvido na produção de
formas expressivas.
A Aisthesis se relaciona com a dimensão propriamente
perceptiva da experiência estética. Os estudos da recepção no cinema
enfatizam as atividades de reconhecimento e interpretação dos produtos
22
culturais fílmicos, descrevendo as múltiplas mediações que conformam a
atividade do espectador. Aisthesis é uma atitude perceptiva que na recepção
da obra concede prioridade ao reconhecimento sensorial frente ao conceitual.
A katarsis ou catarse constitui a dimensão comunicativa da
recepção ao propiciar a satisfação “alheia”. A catarse permite ao espectador
mudar suas próprias convicções e liberar energias. Tal liberação, por parte do
espectador, refere-se aos aspectos práticos e às opressões da realidade
cotidiana, transportando-a para a liberdade do juízo estético. Juízo estético ou
do gosto é uma concepção descrita por Emmanuel Kant, tanto para negar a
ordem estabelecida quanto para apresentar normas para a atuação prática.
Não sendo o objetivo deste item delongar-se nos efeitos receptivos, e sim na
análise das personagens a partir dos aspectos produtivos da obra e a sua
percepção, trataremos sobre esta questão no último capítulo desta dissertação.
Por fim, selecionaremos duas das principais críticas que
apareceram na mídia impressa na ocasião do lançamento do filme As Horas,
que nos servirão para vislumbrar alguns dos efeitos receptivos que o filme
provocou na interpretação da crítica.
2. Imagem da personagem Virginia Woolf
22
Para a análise da personagem Virginia Woolf no filme As
Horas escolhemos a cena da estação (TF 1:19:26) que abordaremos de
acordo com as categorias acima enunciadas e fecharemos com uma possível
interpretação do conteúdo mais subjetivo desta cena que pode assinalar seus
efeitos receptivos.
Virginia Woolf : (TF – recorte da cena - 1:19:18)
Trens para Londres – Plataforma 1 – 17:28h
Virginia - Sr. Woolf. Que prazer inesperado.
Leonard - Pode me dizer o que está fazendo?
Virginia - O que estou fazendo?
Leonard - Procurei por você e você tinha saído.
Virginia - Estava trabalhando no jardim e não quis perturbá-lo.
Leonard - Você me perturba quando desaparece.
Virginia - Não desapareci.
Fui dar uma volta.
Leonard - Uma volta? Só isso? Uma volta?
(Virginia suspira)
Leonard - Vamos para casa. Nelly está fazendo o jantar. Ela teve um dia difícil.
Temos obrigação de jantar (Virginia lhe as costas, tentando recusar-se a
ouvi-lo).
Virginia - Não existe tal obrigação (vira-se para ele encarando-o novamente).
Tal obrigação não existe.
Leonard - Virginia, você tem obrigação para com sua sanidade.
22
Virginia - Agüentei demais essa proteção (diz em tom explosivo). Agüentei
demais essa prisão.
Leonard - Virginia!
Virginia - Sou constantemente tratada por médicos. Sempre tratada por
médicos que me dizem o que é melhor para mim.
Leonard - Eles sabem o que é melhor (em tom mais brando e controlado).
Virginia - Claro que não! Não sabem o que é melhor para mim.
Leonard - Sei o quanto deve ser difícil para uma mulher com os seus...
Virginia - Com os meus o que?
Leonard - ...seus talentos, ver que não pode julgar o que é melhor para si
própria.
Virginia - Quem poderia julgar?
Leonard - Você tem um histórico. De confinamento. Viemos para Richmond
porque você tem crises... melancolia, perda de memória, alucinações auditivas.
Nós a trouxemos para para evitar que você mesma se ferisse (ela anda de
um lado para outro). tentou se matar duas vezes. Vivo sob essa ameaça.
Comprei aquela... Compramos aquela prensa tipográfica, não a compramos à
toa, mas para que você tivesse uma fonte de ocupação e terapia.
Virginia - Como o bordado?
Leonard - Fiz isso por você (gritando). Pra você melhorar. Fiz isso por amor
(Virginia suspira). Se eu não a conhecesse, ia achar ingratidão.
Virginia - Eu sou ingrata? Está me chamando de ingrata? Minha vida me foi
roubada. Estou vivendo numa cidade onde não quero viver. Vivo uma vida que
não desejo viver (ambos estão cabisbaixos). Como isso foi acontecer?
22
(Entra em cena o chefe da estação para verificar se está tudo em ordem.
Entram duas mulheres, pois se aproxima o horário da partida do trem para
Londres. Virginia senta-se)
Virginia - Chegou a hora de voltarmos para Londres (Leonard, sentado, apóia
os braços sobre as pernas e abaixa a cabeça, sem resposta). Sinto falta de
Londres. Sinto falta da vida de Londres (fecha os olhos), (Leonard observa as
pessoas e se aproxima de Virginia).
Leonard - Não é você que está falando. Este é um aspecto da doença
Virginia- É a minha voz (agita-se no banco dividido com Leonard). É a minha
voz e só minha!
Leonard - É a voz que você ouve.
Virginia - Não é! É a minha voz (gritando, levanta-se). Estou morrendo nesta
cidade (chora).
Leonard - Se pensasse com clareza, lembraria que era Londres que a
deprimia.
Virginia - Se eu pensasse com clareza? Se eu pensasse com clareza?
Leonard - Nós a trouxemos para Richmond para lhe dar um pouco de paz.
Virginia - Se eu pensasse com clareza, Leonard, eu lhe diria...(mais branda)...
que luto sozinha na mais profunda escuridão e que eu sei... eu posso
entender o estado em que estou. Você diz viver sob a ameaça do meu
desaparecimento. Leonard, também vivo sob esta ameaça (a câmera o
focaliza. Ele se comove). É um direito que tenho. Que todo ser humano tem.
Não quero a calma sufocante dos subúrbios. Prefiro o solavanco violento da
capital. É minha escolha. Mesmo o mais humilde dos pacientes pode expressar
sua opinião sobre o tratamento que lhe é dado. É isso que define a condição do
22
ser humano. Gostaria, por você, de poder ser feliz no meio desse sossego.
Mas, se tiver que escolher entre Richmond e a morte, prefiro a morte (com
lágrimas no rosto).
Leonard - Muito bem. Que seja Londres. Voltaremos para Londres (chega o
trem com seu ruído característico. Leonard chora de emoção, mas logo se
controla).
Leonard - Está com fome? Estou com um pouco de fome (ela sorri). (Ele a
acaricia nas costas, em seu primeiro contato físico no filme, e sorri para ela).
Virginia - Vamos.
Voz- O trem para Londres está estacionado na plataforma 1 (ambos
caminham de costas para a câmera).
Virginia - Não se pode ter paz evitando a vida, Leonard (confundem-se com a
multidão).
Voz - Trem para Londres (ruído de trem, começa a música). Estacionado na
plataforma 1.
Virginia
Poiesis ou Techné
(TF1: 19:18)
Leonard sai correndo de casa em busca de Virginia, desce as
escadas da estação de trens, a câmera o foca em um contra-plogé. Aparece
um plano geral da estação que anuncia a plataforma 1 de trens para
Londres, um relógio marca 17 h e18 min. Ao ver Virginia sentada em um banco
da estação, Leonard, ofegante, diminui o passo e começa a recriminá-la em
voz alta, mas ela continua cabisbaixa. Depois a câmera em plano médio
22
focaliza Leonard em pose de quem aguarda explicações sobre a situação que
estão vivendo.
Ele veste um traje formal com suspensórios, colete e leva um
casaco na sua mão direita. Já Virginia está com um vestido estampado, luvas e
um sobretudo bege com detalhes em marrom que combinam com seu chapéu.
Ante o questionamento do marido de ter saído sem avisar, esta alça seu olhar
e diz que ela não desapareceu, levantando-se a seguir do banco, e começa a
falar em um tom mais agressivo.
Caminha em direção aos trilhos, dizendo que “tinha ido dar
uma volta”. Alternadamente aparecem Virginia, sem olhar para Leonard, e o
próprio Leonard em plano médio, olhando de forma inquisitiva para ela.
Quando Leonard argumenta o pretexto da desfeita do jantar, Virginia dá as
costas e se volta repentinamente para negar tudo o que possa ser uma
obrigação, queixando-se da excessiva proteção do esposo e relutando contra o
diagnóstico dos médicos.
A iluminação é clara e natural, deixando entrever as cores da
construção de tijolos e a estrutura metálica branca do teto da estação. Leonard,
mais reflexivo, abaixa a cabeça para falar do talento de Virginia. No entanto, a
seguir, eleva a voz novamente para referir-se à saúde dela, chega a gritar seu
histórico clínico, mantendo sua posição em cena, enquanto Virginia avança até
alcançar um primeiro plano na parte superior da tela.
De costas para Leonard e com um fundo desfocado, a
personagem fala de suas razões. Está de frente para ele, com os olhos baixos
e o cenho franzido, nega com gestos os motivos de seu desconforto. Leonard
grita que tudo o que fez foi por amor. Entre as acusações do casal um corte
22
e aparece um guarda na entrada da plataforma, caminhando para a esquerda
da tela, observando-os de longe. Duas mulheres caminham em direção a eles
e após um corte Virginia senta-se mais uma vez no banco; ouve-se ao fundo o
apito do trem chegando. Ela diz que precisa voltar para Londres, enquanto
Leonard vira-se para um lado e outro, caminha e por fim se senta ao lado dela.
Novamente em pé, no ângulo superior direito da tela, em um primeiro plano,
Leonard reforça que as vozes que Virginia ouve não são sua própria voz. Ao
fundo vê-se a sinalização indicando uma sala de espera – waiting room.
Virginia recua e em tom desesperado afirma que está
definhando naquela cidade. Leonard fecha os olhos e a lembra que Londres lhe
causava depressão. Ela eleva seu olhar e, inclinando-se na direção de seu
marido, afirma que seu estado é de profunda escuridão, ainda tendo o direito
de escolher seu próprio destino e chora. Leonard silencia e o apito do trem e o
barulho de sua entrada na estação irrompem na cena. Ele também chora e
consente em retornar a Londres, o enquadramento volta para a figura do casal,
focando a surpresa de Virginia ante a nobreza de sentimentos de Leonard e
fazendo um gesto de aceitação. Existe mais um corte e aparece o trem vindo
da esquerda para a direita da tela e a câmera mostra algumas pessoas
esperando.
Aisthesis
Percebe-se logo de entrada nesta cena o estado aflito e
desesperado de Leonard por encontrar a sua amada esposa Virginia. Assim,
quando a avista, diminui sua ansiedade, aqui o princípio de proximidade e
22
distanciamento em relação ao objeto de amor representa a preocupação
natural que move o protagonista. Para Virginia a chegada de Leonard é,
segundo suas próprias palavras, um prazer inesperado, o que assinala um
traço evasivo no qual existe uma profunda alteração da psique. E, a partir
desse momento, começa a haver uma disputa sobre os motivos desse singular
encontro do casal na estação de trens. A dialética que marca essa briga são a
presença excessivamente protetora de Leonard e a ausência progressivamente
assustadora de Virginia.
As possibilidades de escolha parecem ser outro ponto ao qual
nos remete o confronto do casal. Virginia, por um lado, não admite que os
médicos julguem a respeito de suas necessidades, entendidas como o fluxo
livre de sua consciência, da leitura e da arte de escrever. Leonard, por outro,
confia no diagnóstico da ciência sobre o verdadeiro estado de sua esposa.
Contudo, o protagonista sente por ela algo que sua lógica só pode assimilar na
ordem do imaginário: zelo, cuidado e proteção.
Esse amor demasiadamente protetor e conservador de
Leonard o levam a acompanhá-la nos momentos mais difíceis de seu histórico
clínico: confinamento, crise, melancolia, perda de memória, alucinação auditiva,
possibilidades de autodestruição e duas tentativas de suicídio. A partir disso,
ele vive sob a constante ameaça de que sua mulher venha a desaparecer.
Assim, oferece as razões de seu amor, a compra da prensa com o intuito de
que isso represente uma terapia para ela, que seu talento era escrever.
Leonard reforça que tudo o que faz por Virginia é por amor e, a esse
sentimento, ela deveria corresponder com gratidão.
22
Enfim, Virginia se pronuncia e afirma veementemente que sua
vida lhe foi roubada, sente-se sujeita às decisões dele - seu marido - e dos
médicos que as tomaram em seu lugar. Depois disso, ela expressa seu desejo
de voltar a Londres, uma cidade onde acredita que esteja sua vida mais
verdadeira, mesmo que isso signifique viver menos tempo, segundo a
revelação das vozes do seu interior. Reconhece que vive um estado de
profunda escuridão e que não consegue pensar com claridade, mas que
prefere viver esse estado em Londres, a vivê-lo em Richmond, cidade à qual
atribui o pejorativo de sufocante.
Catarse
A cena na estação remete aos lugares de passagem que
reconhecemos quando viajamos, à idéia do cronológico e linear, do relógio que
marca a seqüência do tempo. Universalmente, esse espaço representa para o
espectador o tempo fugaz, assim como o de toda paixão, das partidas e das
chegadas, do amor encarnado em diferentes corpos. O modelo identificatório
proposto nesta cena refere-se a um casal com os motivos que os unem e os
separam.
Outro ponto de ancoragem do olhar identificatório do
espectador o constituem os dois modos de amar que se correspondem, por sua
vez, com duas maneiras diferentes de viver, representadas na trama narrativa
mais concretamente neste episódio da estação. Para Leonard amar e viver são
questões objetivas, históricas e lineares, em que a família constitui o valor
social essencial e o patrimônio de todo homem. Para Virginia, amar e viver são
22
sinônimo de sentir com intensidade, conforme o fluir livre do pensamento e do
desejo.
Por último, impõem-se os valores e princípios femininos
enunciados pela protagonista Virginia Woolf a partir da obra Mrs.. Dalloway
que foram adaptados para o cinema. Em primeiro lugar, a manifestação de seu
desejo de voltar para Londres, sob o risco dela morrer se tal fato não
acontecer, significa muito mais do que uma simples excentricidade. O objeto de
desejo de Virginia é a morte, com tudo o que esta tem de romântico. Pode,
então, uma mulher morrer de amor? Certamente que sim, segundo o
demonstra o espírito da escritora onipresente na obra. Em segundo lugar, a
leitura e a escrita representam para a mulher a possibilidade de realização no
âmbito individual e social. E, em terceiro lugar, a experiência de ser mulher
para Virginia é quase uma experiência stica, atrelada ao gozo estético do
corpo que cai, que se excede e que mergulha no vazio, na solidão e no
abandono, como o demonstra o destino das personagens principais da trama.
Nisso fundamenta-se a estética receptiva do filme As Horas no qual a mulher é
a grande protagonista, precursora das mudanças na sociedade, seja do ponto
de vista de uma escritora, seja do ponto de vista de uma leitora que ama a
subjetividade expressa na literatura. Entende-se por subjetividade todo e
qualquer aspecto em que é imprescindível a mediação humana.
3. Imagem de Laura Brown
22
Laura Brown: ( tempo do filme 1:04:36)
Laura Brown, após ter deixado seu filho chorando com a babá,
visto que é uma criança extremamente sensível que intui os estados mais
íntimos da alma de sua mãe, decide se hospedar em um hotel em uma tarde
importantíssima em sua vida. Ela resolve ficar no hotel, um local de passagem,
onde pode fazer aquilo que mais lhe prazer, sem interrupção: ler. Sua
intenção inicial era suicidar-se, pois tira vários frascos de remédios da bolsa e
os dispõe sobre a cama, mas adormece enquanto lê, no romance Mrs.
Dalloway de Virginia Woolf, o trecho em que Virginia opta por matar a
protagonista do livro que está escrevendo, depois muda de idéia e conclui que
deve matar outra personagem, ela mesma.
Quando Laura adormece, sonha com águas de um rio
invadindo seu quarto no hotel, afogando-a e, então, acorda assustada,
incapacitada de cometer suicídio. Toma a resolução de fazer aquilo que
marcará toda a sua vida: abandonará seu marido e filhos assim que a filha que
está gerando nascer.
No quarto do hotel (música)
Funcionário - O serviço de quarto funciona 24h. Obrigado, senhora (Laura lhe
dá uma gorjeta). Mais alguma coisa? (música de fundo).
22
Laura - Sim. Não... não quero ser incomodada.
Laura fica sozinha no quarto, filmada de cima para baixo, transmitindo-nos a
idéia da solidão da personagem. Senta-se na cama para se ambientar ao local.
Tira os sapatos, que são filmados em primeiro plano, simbolizando que ela
deixa para trás sua vida cotidiana para ingressar na ficção. Tira os frascos de
comprimidos da bolsa, submersa em seus pensamentos, e os dispõe sobre a
cama. Pensa no bolo que fez para o marido e deixou sobre a mesa de sua
casa. Tira o livro Mrs. Dalloway da bolsa e começa a lê-lo.
As próximas cenas serão intercaladas com a voz de Virginia Woolf no livro,
como se Laura enxergasse o que está lendo.
Voz de Virginia - “Importava? Ela se perguntou... (deitada na cama com a mão
sobre o ventre) ... caminhando para Bond Street. Importava que ela devesse,
inevitavelmente, cessar totalmente? Tudo continuaria sem ela (Laura levanta a
blusa, acariciando o ventre, pensando que seu filho que está sendo gerado
ainda não pode prescindir dela). Ela se ressentia disso? Ou, não seria talvez,
um consolo?... (aparece Virginia em seu momento de criação) ... acreditar que
a morte terminava tudo absolutamente? ( a câmera filma Laura novamente, em
primeiro plano, lendo Mrs.. Dalloway).
Voz de Virginia - É possível morrer (câmera mostra Virginia). É realmente
possível morrer” (retorna para o quarto de hotel em que Laura se encontra,
para mostrar sua emoção).
A câmera volta para o quarto e mostra Laura em plano médio pegando os
frascos de remédios.
Virginia - (pensativa)
22
Vanessa - Você ainda está conosco? (Angélica, sua sobrinha, caminha até
Virginia e lhe oferece um biscoito).
Vanessa - Sua tia tem muita sorte, Angélica, porque ela tem duas vidas
(Virginia aceita o biscoito, beija-o e o coloca na mesa). Ela tem a própria vida e
a dos livros que ela escreve. Ela realmente tem muita sorte.
Angélica - No que estava pensando?
(A câmera volta a Laura deitada na cama. Mostra os remédios em primeiro
plano. Laura adormece e sonha com o quarto sendo invadido por águas de um
rio que deixam Laura e a cama submersas, em uma alegoria à morte de
Virginia).
(Virginia olha para a sobrinha como se estivesse tendo um insight. Sorri e
fecha os olhos, internalizando a cena de morte.)
Virginia - Eu ia matar minha heroína. Mas mudei de idéia.
(Laura acorda assustada e diz)
Laura - Não consigo (chora alisando a barriga).
(Aparece a imagem de Virginia)
Virginia - Então, terei que matar outra pessoa.
(Nessas cenas, as idéias de morte de Virginia se misturam com as de Laura,
mas Virginia está planejando sua própria morte futura, enquanto que Laura
descobre não ter coragem para tal, e decide mudar o rumo de sua vida, assim
que seu filho nascer).
Poiesis ou Techné
(TF1: 04:36)
22
A cena começa quando Laura, de frente para o recepcionista
do hotel e de costas para a câmera, gorjeta para este e pede para não ser
incomodada. Em um plongé panorâmico mostra-se o quarto no qual a
protagonista vai passar seu tempo. Na decoração predominam linhas retas
convergentes à cama com uma colcha branca. Na cabeceira da cama um
enquadramento com arcos centraliza a figura de Laura, que se destaca por
usar tons pastel e marrons. Ouve-se ao fundo o tique–taque de um relógio, o
resto é silêncio. Aparece o rosto dela em um contra-plogé enquanto Laura
movimenta o rosto para o lado direito e, após um corte, a câmera em primeiro
plano mostra-a tirando o calçado. Abaixa o olhar para a bolsa, tira dela pelo
menos quatro frascos de remédios e, nessa ação, dá para ver na parte superior
as chaves da habitação e na sua mão direita o relógio; suas unhas pintadas de
vermelho e sua aliança de casamento. Em um corte repentino e em flash-back,
a cena retorna lentamente a focar o bolo enfeitado que havia preparado antes
de sair de casa. A câmera volta ao rosto de Laura que, em seguida, retira de
sua bolsa o livro Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.
Um travelling circular em torno da cama ressalta a
compenetração de Laura na leitura, que com a mão esquerda segura o livro e
com a direita acaricia a incipiente barriga, desabotoa a blusa e o vestido, sem
afastar seu olhar da obra que prendera sua atenção por algum tempo, o florido
marca-textos denotando seu ritmo de leitura. Em mais um corte, aparece a
figura da personagem Virginia Woolf do lado esquerdo para o direito, seqüência
de outro travelling. Laura abre mais os olhos quando supostamente lê, e
quando escuta no seu interior a palavra ”morrer”, aparece mais uma vez
Virginia, sempre do lado contrário, como se o travelling começasse com Laura,
22
girando para a imagem de Virginia que está no final, e vice-versa. Laura
levanta a cabeça e engole saliva, emocionada. Daí aparece Virginia sentada
em um sofá com a perna cruzada e seu olhar perdido no infinito no nada.
Após um corte, em um primeiro plano, a irmã, que na cena seguinte aparece ao
lado de sua filha sustentando uma xícara de chá, a acorda, enquanto seus
sobrinhos zombam de seu estado doentio. Volta um primeiro plano para Laura,
que folheia as páginas do livro, fecha-o e vira para sua esquerda em direção
dos remédios, pegando-os todos de uma vez. Corte. Aparece Virginia
desconcertada ante o apelo de sua irmã e sua sobrinha Angélica avançando
até ela para oferecer-lhe um biscoito. Ela o beija e deixa de lado. Enquanto sua
irmã fala, de repente Virginia olha para ela e depois de forma penetrante nos
olhos de sua sobrinha. No fundo ouve-se a voz da irmã.
Laura está deitada com a cabeça inclinada para o lado
esquerdo da câmera. Aparecem os quatros frascos de remédio e ela é
mostrada em um contra-plogé no centro da cama com a barriga descoberta, a
mão direita na parte superior e a esquerda na parte inferior quase na região
pélvica, os remédios abaixo da cabeceira, sempre do lado esquerdo. Começa a
surgir água vinda de baixo da cama, nos dois sentidos, água que corre para o
lado direito e o esquerdo da tela, levando algas e aumentando cada vez mais
seu volume. A protagonista está profundamente adormecida e a água sobe até
a cama, transbordando por todo o quarto, fazendo-a submergir. Um corte
repentino mostra Virginia olhando do lado esquerdo para o direito, o rosto de
sua sobrinha, que traz uma rosa azul no cabelo. Em mais um primeiro plano, o
rosto de Angélica, que espera uma resposta de sua tia. Quando Virginia
responde, aparece abruptamente a imagem de Laura, acordando do pesadelo,
22
soluçando e chorando, e continua a se acariciar, agora com mais intensidade,
mexendo-se em um vaivém e chorando em alto tom.
Aisthesis
Laura Brown é uma dona de casa exemplar, esposa fiel e mãe
solícita, no entanto, deslumbrada com a força contraditória que Mrs.. Dalloway
– a literatura vem despertando nela. O episódio do filho Richard é comovente:
a protagonista arruma tudo e sai com ele, para deixá-lo com uma vizinha;
nesse momento, antepõe “suas coisas” às da família e interpela o filho a ser
corajoso porque ela tem coisas para fazer antes que chegue o pai. Ouvindo
seus gritos e de costas para ele, deixa-o chorando. Essa atitude inusitada de
Laura é no mínimo crítica, infiel e descuidada.
Chega a um hotel, também lugar de passagem em que o
tempo é de Laura – do eu para isso pagou e lhe entregaram as chaves, como
sucede na terapia, o tempo de encontro com o outro, neste caso a autora o
Outro. Não pode ser a literatura uma espécie de terapia na qual se desvelam
os segredos da alma? Para Laura, a literatura é muito mais do que um efeito; é
o tempo da graça kairós - e o espaço do leitor, fiel a essa experiência de
ficção para a qual se deve estar descalço. Do lado esquerdo, frascos de
remédios alucinógenos e calmantes; do lado direito, a literatura de Mrs.,
Dalloway, a dor e o prazer juntos. Contudo, trata-se de uma analogia entre os
22
efeitos que os remédios e a literatura são capazes de produzir nas pessoas,
alienando-as da dura realidade para oferecer a sensação real do prazer na
ficção.
E, a propósito de ficção, o motivo essencial com o qual Laura
se debate como personagem é seu destino, que está em mãos de sua criadora,
e ambas entram na ordem circular do tempo, um vai e vem da própria Laura
Brown, de Mrs. Dalloway como personagem e do filho de Laura: Richard, o
poeta. O questionamento desta protagonista sobre a vida e a morte é o enigma
de Laura que foge, o tempo todo, do sacrifício que o amor exige. O travelling
mostra magistralmente essa relação criador–criatura. Virginia e Laura se
fundem, pois a primeira cogita seriamente a possibilidade de que a segunda
morra. Mas, a pergunta ingênua e conciliadora da sobrinha salva Laura do
turbilhão das águas que tomam conta da cena, intensificando o ritmo e o gozo
mortífero de Laura que acorda, sem ar, ofegante e chorando, do pesadelo em
que Virginia a havia colocado. “Não consigo” é a resposta simultânea das duas
mulheres e o destino muda tudo, embora a origem continue sendo a mesma.
Catarse
Dona de casa, esposa dedicada, mãe atenta e amiga
verdadeira, Laura Brown representa para as espectadoras o modelo típico da
mulher habituada a viver o tempo entediante da rotina no ritmo compassado
dos valores que dita a tradição familiar. No entanto, a outra face desta mesma
personalidade–personagem pode ser vista na contumaz leitora que descobre o
22
poder libertador da literatura e o usa para fugir das determinantes sociais do
tempo e do espaço no mundo ficcional.
Os filhos da protagonista encarnam a vida a filha que Laura
espera enquanto e a morte o filho Richard que parte por livre e
espontânea vontade, após ter sido assombrado pelo fantasma do abandono
em que sua mãe o deixou e sofrido a angústia sempre latente do medo da
solidão, inaugurado também por ela, no momento em que sua infância fica para
trás.
Richard também é um modelo contemporâneo de identificação,
do homem sensível que faz poesia de suas experiências de prazer e de dor;
um portador de HIV que vive à margem da sociedade por escolha, lutando o
tempo todo com seus fantasmas do passado, da culpa e da auto-condenação
propiciados por Laura, sua mãe. O filho conta com o apoio incondicional de
uma amiga com a qual teve uma história de amor no passado, aquecido na
fogueira da boa literatura e na cumplicidade do presente, exercício sublimatório
da poesia na qual mata a sua própria mãe somente com o propósito de
exorcizá-la. O desejo de Laura de se matar encarna-se e materializa-se em
Richard, encorajando o vazio e a expectativa da morte.
Laura, sem dúvida, transforma-se na personagem mais
dependente do desejo do Outro, aqui entendido como aquele que tem o poder
de decidir sobre seu destino em todas as instâncias de seu devir protagônico. A
volta, no final do enredo, da personagem velha à casa da amiga de seu filho
demonstra a sabedoria que Laura nunca teve como mãe e a ignorância a
respeito de seu próprio desejo de mulher, silenciado nas quatro paredes do lar
e expresso unicamente no ato da leitura.
22
4. Imagem de Clarissa Vaughan
Clarissa Vaughan (Meryl Streep) trabalha como editora em
Nova Iorque e mora com Sally (Allison Janney), sua companheira dez anos.
Mas a verdadeira alegria em sua vida é seu intenso relacionamento com
Richard (Ed Harris), que está morrendo de AIDS. Ela cuida dele e está
terrificada com a idéia de perdê-lo. Ele não quer ir à festa em sua homenagem,
pois sente que é um escritor fracassado, já que não conseguiu descrever todos
os seus sentimentos e sensações como pretendia. Naquela tarde, enquanto
Clarissa prepara o prato preferido de Richard para a festa, Louis (Jeff Daniels),
ex-namorado de Richard, chega de San Francisco para visitá-la. Eles trocam
confidências sobre seu passado e ele confessa a ela que se sentiu livre
depois que conseguiu abandonar Richard. Para Clarissa, entretanto, o
momento mais feliz de sua vida foi quando Richard a beijou na praia quando
eram jovens e preencheu seus sonhos com possibilidades que não puderam
ser cumpridas, mas que lhe deram alento durante toda a vida.
Antes da festa, em seu apartamento, Richard diz a Clarissa, a
quem ele carinhosamente chama de Mrs.. Dalloway, que ele viveu até
aquele momento por causa dela, e que é chegado o momento dela deixá-lo
partir. A devoção de Clarissa a Richard e a felicidade vivida por ambos no
22
passado é uma mistura de sacrifício e egoísmo. Ela se recusa a deixá-lo dizer
não à vida, ignorando o fato de que ele diz não em todos os momentos, com
todas as suas forças muito debilitadas pela AIDS. Richard fala pela
depressão das três mulheres. Discursa sobre a dor, sua impossibilidade de
continuar, ironiza quem tenta ajudá-lo, agride amigos e espectadores. Diz o
que as três protagonistas juntas não conseguem expressar. A AIDS aqui pode
ser uma metáfora para a banalidade da vida humana e o prenúncio de seu fim
e prefigura aquilo que de mais amedrontador na espécie humana, que é a
presença e a certeza da morte.
Clarissa Vaughan: (TF 1:30:25)
Clarissa chega ao apartamento de Richard, em um bairro
decadente de Nova Iorque, para ajudá-lo a aprontar-se para a festa em sua
homenagem em que receberá o prêmio Carrouthers pelo romance
autobiográfico que escreveu, em que menciona seu relacionamento com
Clarissa e mata sua mãe, como vingança por ter sido abandonado por ela
quando ainda era uma criança e a amava incondicionalmente.
Richard, em seus momentos de lucidez, mostra a Clarissa que ela não está
vivendo sua própria vida, mas a dele, e que ela tem que se preparar para viver
sem ele quando ele morrer.
Em sua despedida Richard declara a Clarissa que a ama, que
ela sempre foi muito importante para ele, o que a emociona e a faz sentir-se
feliz, pois o momento mais feliz nas lembranças de Clarissa foi quando passou
22
a noite com Richard, muitos anos atrás, e sentiu que ambos estavam
imbuídos de possibilidades.
Richard atira-se pela janela de seu apartamento, como fez
Septimus em Mrs. Dalloway, para libertar-se de uma vida que já não tem mais
sentido para ele e também para libertar Clarissa de sua dependência, fato que
demonstra a nobilidade de seus sentimentos e não egoísmo ou ingratidão,
como interpretado por algumas pessoas que assistiram ao filme.
Clarissa - Richard, sou eu! Cheguei mais cedo. (entra no apartamento e se
espanta com a cena. Richard está abrindo as janelas e tirando tudo que fica
próximo a elas, eufórica e violentamente).
Clarissa - O que está acontecendo? Richard! (Clarissa fica preocupada.
Richard joga tudo no chão e olha para ela).
Richard - O que está fazendo aqui? Chegou cedo.
Clarissa - O que está acontecendo? O que está fazendo?
Richard - Eu tive uma ótima idéia. Eu precisava de luz. Precisava deixar entrar
a luz.
Clarissa - Richard, o que está fazendo?
Richard - Tive uma idéia fantástica. Tomei o Xanax e a Ritalina juntos. Não
tinha pensado antes.
Clarissa - Richard?
Richard- Não se aproxime (grita, alterado). Eu achei que tinha que deixar a luz
entrar (mais controlado) (com a bengala rasga o papel de parede).
Richard - O que você acha? Limpei todas as janelas (A câmera passa pelos
remédios, todos espalhados na mesa e no chão).
22
Clarissa - Tudo bem, Richard. Faça-me um favor. Venha se sentar.
Richard- Acho que não vou poder ir à festa, Clarissa.
Clarissa - Não precisa ir à festa, ou à cerimônia, nem fazer o que não quer.
Faça como quiser.
Richard - Mas ainda tenho que enfrentar as horas, não é? As horas depois da
festa. E as outras horas depois...
Clarissa - Você ainda tem dias bons. Sabe que tem.
Richard - Não é bem assim (irônico). É gentileza sua dizer isso, mas não é
verdade (abre as cortinas da janela e arranca com violência um protetor da
janela).
Clarissa - (apreensiva) Estão aqui?
Richard - Quem?
Clarissa - As vozes.
Richard - As vozes estão sempre aqui.
Clarissa - São elas que está ouvindo agora, não é?
Richard - Não, não, Mrs. Dalloway, estou ouvindo você. Fiquei vivo por você.
Mas agora tem que me deixar ir.
Clarissa - Richard... (emocionada)
Richard - Não, espere, espere. Conte-me uma história.
Clarissa - Sobre o que?
Richard - Uma história de como foi o seu dia.
Clarissa - (hesitante) Eu me levantei.
Richard - E? (aproximando-se da janela)
Clarissa - E saí. E fui comprar flores, como a Mrs. Dalloway do livro.
Richard - Sei (sentando no parapeito de dentro da janela).
22
Clarissa - O dia estava lindo.
Richard - É mesmo? (sorrindo)
Clarissa - Lindo. E o ar estava tão fresco.
Richard - É mesmo? (levanta o vidro da janela, sente frio e olha para baixo).
Como uma manhã na praia?
Clarissa - É. (comovida com a recordação)
Richard - (sorridente) É mesmo?
Clarissa - É.
Richard - Como naquela manhã quando você saiu daquela casa antiga e você
tinha 18 anos (coloca uma das pernas sobre o parapeito e olha para fora) ... eu
tinha uns 19.
Clarissa - (suspira) Isso.
Richard - (feliz na janela) Eu tinha 19 anos de idade e jamais tinha visto algo
tão bonito. Você, saindo pela porta de vidro de manhã, ainda sonolenta. Não é
estranho?
(câmera alterna as faces dos dois mostrando sua emoção).
Richard - Uma manhã tão comum na vida de qualquer pessoa. Acho que não
vou poder ir à festa, Clarissa (mais sério).
Clarissa - A festa... não tem importância.
Richard - Você sempre foi tão boa para mim, Mrs. Dalloway. Eu a amo.
(Clarissa fica séria, mas surpresa ao ouvir a declaração). Não acho que duas
pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos. (Clarissa, atônita, olha
para ele, mas não tem palavras. Richard olha para ela carinhosamente e
tranqüilamente vira-se e cai da janela, do alto do edifício).
22
Clarissa - (grita) Não, meu Deus! (vemos o corpo de Richard caindo e ouvimos
o barulho quando atinge o chão. Clarissa cobre o rosto com as mãos,
inconsolada).
Clarissa Vaughan
Poiesis ou Techné
(TF1: 29:15)
A imagem de Laura Brown vestida de noiva em um retrato é
segurada por uma mão, um corte e aparece Richard de costas; escuta-se
uma sirene de fundo e ele abre a janela para ver o que é. O protagonista é
mostrado em um plano médio, está de gorro e pijamas, com o cenho franzido e
a barba por fazer. As grades das janelas refletem no vidro e seu olhar está
perdido no nada. Ouve-se o grito desesperado de uma criança por sua mãe.
Logo, a imagem dele criança gritando atrás de uma janela. Em um
primeiríssimo plano, a câmera volta para o rosto de Richard, do qual caem
lágrimas, acentua-se a expressão angustiada de seu rosto e intensifica-se o
barulho da rua, além da sirene, depois o apito de um navio. O protagonista
fecha os olhos em mais uma cena após um corte, com uma mão na boca e a
outra segurando o queixo, como se estivesse orando e em visível sofrimento.
Toca a campainha, mais um corte, e uma cena externa mostra
o apartamento em um subúrbio de New York, com neve. Clarissa desce de um
carro escuro vestida de preto, com um xale laranja e óculos também escuros;
pega as chaves e se dirige ao apartamento de seu amigo. Abre a porta pichada
22
da entrada e sobe pelo elevador, mostrando em contra-plogé um edifício
corroído pelo tempo, a sujeira e o lixo.
Clarissa anuncia sua chegada batendo à porta e ao entrar
Richard mexendo com umas tábuas e jogando uma série de pastas no chão.
No meio de um plano geral do apartamento, pode-se observar a desordem e a
destruição, enquanto Clarissa permanece na parte inferior da tela, de costas
para a câmera. Depois de afirmar que teve uma idéia brilhante, Richard diz que
precisa de luz, de muita luz. A amiga pergunta o que estava fazendo. Ele pega
um pedaço de madeira, volta-se para um lado e afirma ter tomado uma mistura
de remédios. Clarissa segura os óculos e os tira, aproximando-se de Richard,
que a intercepta com um grito. Um primeiro plano mostra o rosto atônito de
Clarissa ante os gestos dele que, com sua bengala, arranca algumas peças da
janela que estavam servindo de cortinas.
Richard e Clarissa começam a discutir sobre a festa em
homenagem ao poeta e ambos são mostrados em planos médios
alternadamente.
Ante a frase que Richard pronuncia de que vai ter que “encarar
as horas” após a festa, e depois, e depois... Clarissa tenta convencê-lo de que
ele vai viver muito tempo. Ele faz gestos de ironia. Vira-se para outra janela,
abre as cortinas com a bengala e arranca com violência o forro em direção a
sua amiga. Ela, encenando um jogo, pergunta pelas vozes. Richard disse que
não está ouvindo vozes e a chama de senhora Dalloway. Ele é categórico ao
afirmar que está vivo por causa dela, mas que agora precisa ir. O gesto de
Clarissa ao ouvir isso é de desconserto. Richard pede para Clarissa que lhe
conte uma história, nisso vai se aproximando da janela e se senta no parapeito,
22
enquanto ouve o relato dela. Abre a janela de vidro, subindo-a. O rosto de
Clarissa aparece em um close-up desesperado.
O protagonista na janela fica sentado na borda, ouvindo de
modo dramático a história dela, enquanto um pequeno contra-plogé indica uma
atitude de aconchego em Richard, que lembra o passado. Após dizer a Clarissa
Vaughan que a ama e de como isto o fez feliz, Richard vira-se para o lado de
fora e cai. De costas, Clarissa grita e leva as mãos ao rosto. A cena se desloca
para o exterior e mostra em contra-plogé o corpo de Richard caindo até seu
choque com o chão. Corte.
Aisthesis
A personagem de Clarissa se constrói a partir de seu amigo
Richard. Este aparece sozinho em seu apartamento, angustiado e lembrando o
passado. O presente também não é fácil de enfrentar devido à iminência da
morte por HIV e a todos os sofrimentos da doença terminal. Desta forma, a
fidelidade dela é uma prova de que a mulher tem fibra para enfrentar a dor e o
sofrimento, talvez porque isso faça parte de sua natureza mais sensível.
Contudo, como observamos no caso de Clarissa, a força dela vem de dentro,
dessa capacidade subjetiva de imaginar, de contar e de interpretar o drama da
condição humana à luz da literatura.
Ela querendo se aproximar, Richard rejeitando-a por ver nela a
projeção desses pensamentos que o atormentavam justamente antes dela
chegar. O surto do amigo não impede Clarissa de entender que é hora de
desistir do compromisso em favor da tranqüilidade dele: “Você precisa fazer
22
o que tem vontade”. O que é a vontade senão o exercício de lembrar quais são
os princípios pelos quais nos empenhamos em viver?
A festa organizada por Clarissa é a razão para que esta refrate
o significado de encarar as horas. “Você vai viver muito tempo”, diz para o
desapontado Richard, embora isso seja mentira; ela mente, ou melhor, acredita
que seu desejo possa reverter o destino fatal do amado. Alucinada, ela
pergunta por elas, as vozes, “estão aqui?” As vozes estão de acordo com o
livro que serve de base para o filme, sempre no fluxo livre da consciência,
nunca na estagnação do inconsciente que costuma ficar no passado, sem
conseguir se desprender desse elo através do qual se está cativo para sempre.
O protagonista declara seu amor a Clarissa, afirma que está vivo
por causa dela, nega-se a si mesmo e revive o relato de Mrs. Dalloway,
interpretado por sua amada, pois o relato alivia Richard da angústia que lhe
provoca a morte, presente na realidade de seu corpo que desencarna na
queda, enquanto a mulher fica no alto.
Catarse
Mesmo sendo o retrato de um passado, a mãe vestida de noiva
oferece ao espectador uma imagem nostálgica do filho que olha para o
passado. A culpa da ausência dela é carregada por ele em seu próprio corpo,
na escrita do HIV. Assim, são complexas as relações mãe–filho, filho–doença e
homem-mulher. Expressam a trama do desejo: Laura lê, o filho é escritor; a
mãe carrega remédios na bolsa como potencial suicida, o filho ingere um
coquetel e se mata, patenteando desta maneira o destino dos excluídos.
22
A mãe de Richard na sua maturidade socorre, assiste e até
celebra o reconhecimento do filho, compreende até as vozes da consciência.
Revela-se com isso a transformação de uma mulher com a experiência que a
torna mais sábia e sensível perante a iminência da morte.
Em contrapartida, Richard e Clarissa recordam sua juventude,
quando tinham entre 18 e 19 anos, em que tudo era lindo e o comum ou mais
trivial do tempo era um fato inusitado. Nós fomos felizes, afirmam os outrora
amantes da vida, agora cultores da morte.
Por último, o suicídio de Richard significa para o espectador a
opção de escolher livremente o final da vida, sem entrar no mérito moral do
qual este assunto se reveste. Podemos afirmar que a força das personagens
reside na mulher que está, incondicionalmente, na lateralidade e na alteridade
do marido, do narrador e do amigo atual, sofrendo, entregando-se de corpo e
alma aos projetos de intermediar entre a realidade natural e a realidade cultural
do homem, neste caso Leonard, para Virginia, e o poeta visionário do tempo,
para Clarissa.
Em Clarissa podem se espelhar as mulheres intelectuais,
sensíveis e criativas que têm como princípio a entrega, a consagração e o
amor nas circunstâncias da época que vivem. Richard é o homem inteligente,
sensível e visionário que toda mulher desejaria amar sempre, quando estivesse
disposto a dizer a primeira e última palavra a respeito dela e de mais ninguém.
5. Crítica e receptividade do filme As Horas
A crítica é em si mesma um exercício de recepção que, quando
encontra o suporte adequado pode, além de propiciar informação, formar o
22
juízo crítico sobre o que se e o que se vê, fruto de uma adaptação como o
filme As Horas.
O respeitado ensaísta norte-americano Harold Bloom (1930),
na obra–prima O Cânone Ocidental (1995), destaque à obra de Virginia
Woolf no artigo exclusivo dedicado a ela “Woolf: o feminino como amor à
leitura” (BLOOM, 1995: 414–426), despertando na mídia o interesse e a
revitalização da obra desta escritora inglesa. A respeitada opinião deste crítico
serviu de antecedente para o lançamento do filme em 2002, tendo como figura
principal a “fundadora da crítica literária feminista”, sobretudo, em seus
polêmicos livros A Room of One´s Own Um Teto Todo Seu (1929) e Three
Guineas (1939) que renasceram e influenciaram o público na década de 90,
destacando o extraordinário amor e defesa da leitura que faz a escritora, um
emblema para as mulheres que lutam pela ascensão e o reconhecimento social
de seus talentos também no meio intelectual.
Bloom disse que Virginia é a mais completa pessoa de letras
da Inglaterra do século XX. Seus ensaios e romances alargam as tradições
centrais da literatura inglesa em aspectos que renovam, além de tudo, o
alcance de suas polêmicas. Foi necessário, afirma o crítico, Um Teto Todo
Seu, para que as mulheres começassem a ler e escrever, inspiradas na paixão
de Virginia Woolf. Assim como Three Guineas para empreender uma
verdadeira luta contra o patriarcado. Luta esta que até hoje rende resultados no
estudo comportamental dos gêneros.
Sem dúvida que Bloom ressalta de modo singular o caráter
precursor da romancista inglesa, mas o que verdadeiramente parece importar
para este é seu pioneirismo na crítica, na qual ambos compartilham paixão pela
22
literatura. A realidade para Virginia tremula e oscila a cada nova percepção e
sensação, as idéias são “sombras que ladeiam seus momentos privilegiados”,
afirma o crítico. Seu feminismo é poderoso e permanente, justamente por ser
menos uma idéia e mais um apanhado de percepções, sensações e emoções.
Desta forma, a ordem destas prioridades do fenômeno da existência humana
determina, em certa forma, os efeitos receptivos que a autora e o crítico
consideram como importantes. A percepção pela via dos sentidos, os estímulos
reconhecidos na realidade do corpo e da mente e as emoções construídas nos
afetos nas paixões. O que Virginia percebe e experimenta com sua
sensibilidade é sutilmente organizado “mais do que qualquer resposta que eu
possa dar”, coloca Bloom.
Esmagado pela eloqüência e o domínio da metáfora, o crítico
se reconhece incapaz, enquanto lê, de contradizer Three Guineas, mesmo que
este o deixe nervoso. E afirma que Freud poderia rivalizar com Virginia
Woolf como estilista de prosa tendenciosa (IBIDEM: 418). Freud e Woolf são
dois modelos bastante diferentes de esplendor persuasivo. O primeiro antecipa
as objeções sobre o desejo e parece responder a elas, a segunda insinua
fortemente que essa insatisfação e sua urgência se baseiam na falta de
percepção.
O que mais exige interpretação em Um Teto Todo Seu são os
hábitos inconciliáveis do pensamento da escritora, como afirma Bloom,
mostrando que o livro apresenta tanto uma argumentação central “feminista”
o patriarcado explora econômica e socialmente as mulheres para inflar sua
incompetente auto-estima quanto uma sub-argumentação romântica. A sub-
argumentação que explora o crítico apresenta as mulheres não como espelhos
22
para o narcisismo masculino, mas diz Virginia em citação de Bloom como
“uma renovação do poder de criação que o sexo oposto tem o dom de
conferir” (WOOLF APUD BLOOM, OP. CIT: 420). Esse dom se perdeu,
acrescenta o autor, mas não devido às depredações do patriarcado. A Primeira
Guerra Mundial é a vilã e o mundo re-concebido esteticamente como “crítica
cultural” ou “teoria política” é possível para aqueles que descartaram as
preocupações estéticas ou que descartaram a leitura pelo prazer prazer difícil
para outra época e lugar, onde as guerras entre os homens e mulheres e
entre as classes sociais, raças e religiões em competição tenham cessado.
No entanto, para nosso propósito, Virginia Woolf é hoje mais
discutida como autora desses livros citados do que como romancista de Mrs.
Dalloway. O forte amor à leitura presente na obra de Virginia Woolf faz deste
sentimento sua religião, a adoração da arte que no cinema encontra seu novo
altar. Pensamos que o valor do filme está em trazer esta figura feminina e
emblemática da literatura inglesa para mostrar o papel transformador que esta
teve na história da arte de escrever e que não se trata apenas de mais uma
versão da indústria cultural norte-americana carente de assunto ou
direcionando seu foco para o tema sempre polêmico dos gêneros.
Outro aspecto notório da crítica de Bloom, nesse sentido,
refere-se ao elemento erótico tratado por Virginia Woolf, absolutamente
reduzido na obra e na sua adaptação. O impulso erótico é traduzido por um
“esteticismo sublimante”, apresentado na figura de Laura Brown, na qual se
misturam feminismo e esteticismo na construção da personagem. Bloom fala
de um “feminismo contemplativo”, na verdade de uma posição metafórica. A
liberdade que a autora busca é pragmática e, ao mesmo, tempo visionária.
22
O que quer que Virginia Woolf possa ter reprimido, defende
Bloom, em uma ou outra época, jamais foi sua sensibilidade erótica. O amor à
leitura de Virginia era ao mesmo tempo seu impulso erótico e sua teologia
secular. A fábula - insiste o crítico - da dualidade sexual é um veio intrínseco
desse prazer em Virginia, porque a ansiedade sexual com a qual se confunde o
erótico bloqueia o prazer profundo da leitura (IBIDEM: 421).
Por fim, o crítico Harold Bloom ao mencionar especificamente o
esteticismo de Virginia Woolf em Mrs. Dalloway diz que este é central, porque
a arte é natureza, natureza feminina no seu estado mais irracional, esta “riscou
nas paredes da mente com tinta invisível um esboço que precisa apenas ser
exposto ao fogo do gênio para tornar-se visível”. Por isso, diz Bloom, a
personalidade para Virginia Woolf é “a mais alta fusão da arte com a natureza
que em muito excede a sociedade na determinação governante da vida e obra
do escritor” (IBIDEM:426).
Assim, podemos concluir que na crítica de Bloom à obra de
Virginia Woolf destaca-se a idéia central do êxtase do momento privilegiado
que visualizamos no filme As Horas e que usamos como recurso de análise. O
momento em que o corpo de Richard cai no vazio, em que Laura é inundada
pela força oceânica da autora, em que Clarissa ouve no limiar entre a vida e a
morte de Richard, tudo o que ela como mulher queria ouvir, uma declaração de
amor, e, por último, em que Virginia, a personagem de As Horas, adentra no
rio Ouse: o começo do fim, estratégia cinematográfica de enunciação confirma
o fato de que o tempo da criação é o tempo de morrer, seja na letra, seja no
corpo, para que outro e outros vivam a experiência estética da leitura como ato
de recepção.
22
Apresentamos, a seguir, uma das críticas do filme As Horas
que apareceu a propósito de seu lançamento na mídia impressa, sendo o
objetivo deste exercício analisar a recepção da crítica especializada e os temas
que causaram maiores efeitos de sentido no grande público.
Virginia, Laura e Clarissa
O New York Times publicou o artigo de Stephen Holden
“Quem tem medo como Virginia Woolf?” Pelo fato de nos parecer completo, o
traduzimos e interpretamos de acordo com os objetivos desta dissertação.
Segue na íntegra e no original o artigo citado.
Friday, June 13, 2003
MOVIE REVIEW
The Hours (2002)
NYT Critics' Pick This movie has been designated a Critic's Pick by
the film reviewers of The Times.
FILM REVIEW; Who's Afraid Like Virginia Woolf?
By STEPHEN HOLDEN
Published: December 27, 2002
In ''The Hours'' Nicole Kidman tunnels like a ferret into the soul of a
woman besieged by excruciating bouts of mental illness. As you
watch her wrestle with the demon of depression, it is as if its torment
has never been shown on the screen before. Directing her desperate,
furious stare into the void, her eyes not really focusing, Ms. Kidman,
in a performance of astounding bravery, evokes the savage inner war
22
waged by a brilliant mind against a system of faulty wiring that
transmits a searing, crazy static into her brain.
But since that woman is the English writer Virginia Woolf (a
prosthetic nose helps Ms. Kidman achieve an uncanny physical
resemblance), her struggle is a losing battle. On March 28, 1941,
Woolf, hounded by inner voices while in the throes of her fourth
breakdown, put a stone in her pocket and drowned herself in the
Ouse River near the English country house she shared with her
husband, Leonard. And in the opening scene of ''The Hours,'' the
eloquent, somber screen adaptation of Michael Cunningham's
meditation on that suicide (it won the 1998 Pulitzer Prize for
fiction), Woolf scrawls an anguished farewell letter to her husband,
then hurries into the muddy water like Joan of Arc embracing the
fire, accompanied by the churning, ethereal strains of Philip Glass's
score.
The deeply moving film, directed by Stephen Daldry (''Billy Elliot'')
from a screenplay by David Hare that cuts to the bone, is an
amazingly faithful screen adaptation of a novel that would seem an
unlikely candidate for a movie. A delicate, layered reflection that
skips around through time, ''The Hours,'' which opens today in New
York, is Mr. Cunningham's homage to Woolf's first great novel,
''Mrs.. Dalloway,'' published in 1925.
Woolf's novel details a day in the life of Clarissa Dalloway, a
conventional upper-class Englishwoman giving a party, who
experiences nagging intimations of the more adventurous life she
might have led. On the same day, Septimus Warren Smith, a
character in the novel whom she never meets but with whom she
shares some of the same observations, commits suicide. Five years
ago ''Mrs.. Dalloway'' was adapted into a shallow, unsatisfying film
starring Vanessa Redgrave. In accomplishing the virtually
impossible feat of bringing to the screen that novel's introspective
essence, the director and the screenwriter of ''The Hours'' have
righted a wrong, albeit by proxy, through Mr. Cunningham's
intuitive channeling.
22
A central idea animating ''Mrs.. Dalloway'' and embodied in its
stream-of-consciousness language is that people who never meet,
like Clarissa Dalloway and Septimus Warren Smith, are connected
by experiencing the same external events. ''The Hours'' extends that
idea through the decades to celebrate the timelessness of great
literature by placing the author, her fictional alter ego and two of her
latter-day readers in the same sphere of consciousness.
Interweaving flashbacks from Woolf's life as she was writing ''Mrs..
Dalloway'' with scenes from the lives of Laura Brown (Julianne
Moore), a Southern California housewife and mother in 1951, and
Clarissa Vaughan (Meryl Streep), a New York book editor living in
contemporary Greenwich Village, their stories blend into a lofty,
mystical theme and variations on Woolf's novel.
Laura, who is depressed and agitated, is reading ''Mrs.. Dalloway'' on
the same day she is baking a birthday cake for her husband, Dan
(John C. Reilly), a blunt, hale World War II veteran who dotes on
her and barely notices her anguish. Observing and absorbing Laura's
distress is her timid, fiercely clinging young son, Richie (Jack
Rovello). While baking the cake, Laura receives a surprise visit from
a brightly perky neighbor, Kitty (Toni Collette), who is about to go
into the hospital to be tested for cancer and admits she's frightened.
Meanwhile, in New York, Clarissa Vaughan (named after Woolf's
character) is planning a celebration for her closest friend, Richard
Brown (Ed Harris), a poet in the advanced stages of AIDS who has
just won a prestigious award. As the movie folds these stories
together, it emerges that Richard is Laura's grown-up son. And in a
huge risk that pays off, the movie gives the dying poet a sudden
flashback to the scared little boy he was (and fundamentally still is).
Another bold surreal touch imagines Laura lying on a bed that's
suddenly engulfed by the river that took Woolf.
Clarissa and Richard were lovers when they were younger, but both
eventually chose partners of the same sex. Richard had a long affair
with Louis Waters (Jeff Daniels), now a college professor in San
Francisco, who shows up for the celebration of the award. Clarissa
has lived for years with a woman, Sally Lester (Allison Janney), and
22
has a college-age daughter, Julia (Claire Danes), from an unknown
sperm donor.
Woolf herself was attracted to both men and women, and although
her literary alter ego, Mrs.. Dalloway, is married to a member of
Parliament, on the day of the party her mind darts back to a kiss
exchanged with another woman years earlier. In the movie, Woolf's
sister Vanessa Bell (Miranda Richardson) visits from London with
her family. And Woolf, in a moment of panic, plants a desperate,
passionate kiss on Vanessa's mouth. In California, Laura Brown
spontaneously reaches out to Kitty with a lingering kiss that is more
than polite.
Some of the movie's most wrenching moments show Leonard Woolf
(Stephen Dillane) frantically reaching out to his troubled wife and
being rebuffed. It's not that the Woolfs don't love each other, but the
agony Virginia is enduring can't be touched by love or reason. These
moments bring home the film's deepest and most intimidating
insight about the essential aloneness of the individual and its
feminist corollary: that appearances to the contrary, women in their
deepest selves do not and should not define themselves in terms of
men.
Clarissa is the most grounded character, probably because she has
been the truest to her instincts and has the most love to give back.
When Richard, whose good days have dwindled to none, accuses
Clarissa (whom he calls Mrs.. Dalloway) of forcing him to stay alive,
it's obviously true. Mr. Harris, more than matching his tumultuous
performance in ''Pollock,'' creates a wrenching, incendiary portrait of
a man ravaged with illness, who thrashes with rage and bitterness,
his emotions burning out of control like a torched oil slick on a
contaminated lake.
Ms. Streep's frayed, moody Clarissa is no hovering, haloed angel of
mercy but an intensely self-aware, vulnerable urbanite worn down
by her efforts to do the right thing. Through Ms. Streep's
performance, the movie captures, like no film I can remember, the
immediate, continuing interaction of experience and memory in the
22
instinctive human drive to infuse the moment with meaning and
value.
Ms. Moore's Laura, although a reader, lacks Clarissa's or Richard's
literary armament and is the more vulnerable for it. A wistful,
frightened creature embarrassed by her own china-doll fragility, she
longs to escape a life that feels all wrong but has little notion of
where to go or what to do. Ms. Moore brings to the role the same
luminous demureness that colors her portrayal of an innocent, well-
meaning Connecticut housewife whose world shatters in ''Far From
Heaven.''
All these brooding, complicated people are prototypical Woolfian
figures blessed and afflicted with the same feverish imaginations,
perplexing ambiguities and brightly etched memories of their
younger, more hopeful selves. Yet for all its sexual complexity, ''The
Hours'' is not really about sex. The film, like the novel, is a sustained
meditation on connection, human possibility, the elusive dream of
happiness and the sometimes seductive call of death.
Although suicide eventually tempts three of the film's characters,
''The Hours'' is not an unduly morbid film. Clear eyed and austerely
balanced would be a more accurate description, along with
magnificently written and acted. Mr. Glass's surging minimalist
score, with its air of cosmic abstraction, serves as ideal connective
tissue for a film that breaks down temporal barriers.
Appropriately it is Woolf who has the definitive final word on the
questions lurking in the backs of the minds of the film's characters
with their flickering life forces.
Leonard Woolf, querying his wife about her decision to kill off a
character in ''Mrs.. Dalloway,'' asks her why.
She answers carefully, ''Someone has to die that the rest of us should
value life more.''
''The Hours'' is rated PG-13 (Parents strongly cautioned) for strong
language and disturbing images of disease.
22
THE HOURS
Directed by Stephen Daldry; written by David Hare, based on the
novel by Michael Cunningham; director of photography, Seamus
McGarvey; edited by Peter Boyle; music by Philip Glass; production
designer, Maria Djurkovic; produced by Scott Rudin and Robert
Fox; released by Paramount Pictures. Running time: 110 minutes.
This film is rated PG-13.
WITH: Nicole Kidman (Virginia Woolf), Julianne Moore (Laura
Brown), Meryl Streep (Clarissa Vaughan), Stephen Dillane (Leonard
Woolf), Miranda Richardson (Vanessa Bell), John C. Reilly (Dan
Brown), Jack Rovello (Richie), Toni Collette, (Kitty), Ed Harris
(Richard Brown), Allison Janney (Sally Lester), Claire Danes (Julia
Vaughan) and Jeff Daniels (Louis Waters).
O título deste artigo de Stephen Holden, publicado pelo New
York Times sobre o filme As Horas é um tanto apelativo, a referência ao medo
como componente original da condição humana desvia-se em relação à
intencionalidade do crítico de chamar a atenção para o medo que suscita
qualquer estado mental de “perturbação”, sobretudo de mulheres criadas à
imagem e semelhança de Virginia Woolf. Em todo caso, não é Nicole Kidman
que penetra a alma de uma mulher enferma senão seu diretor, orientado pela
obra original Mrs. Dalloway e a recente adaptação de Michel Cunningham. A
atriz interpreta a escritora com êxito reconhecido pela Academia do Oscar e
pela mídia que enalteceu sua transfiguração acima de qualquer coisa.
A depressão é tratada de modo intrigante no filme e o que nos
chama a atenção na própria linha da autora é que o crítico denomina este
fenômeno “demônio da depressão” em uma fusão figurativa do masculino,
femininamente adjetivado. O olhar da personagem de Virginia para o vazio sem
22
foco talvez seja a chave interpretativa que precisaria ser explorada pelo escritor
do New York Times. As mulheres, em geral, lidam com os contornos do vazio,
do sem sentido e da morte pela sua própria natureza instintiva. A personagem
de Virginia interpretada pela atriz evoca, sem dúvida, a batalha interior da
genial escritora com o sistema repressivo que afeta sua sociedade, embora
essa conexão estática, segundo Holden, de nenhum modo se dá, a nosso
parecer nem no psicótico-psicótica que é perseguido por vozes interiores, nem
na literatura, e muito menos no cinema. A essência desse tipo de
representações é o movimento e nele o psicótico(a) transforma-se na sua
imagem, a literatura nos ajuda a gozar esteticamente da leitura e o cinema
adquire sua identidade comunicativa capaz de fusionar o tempo real da criação
e o espaço simbólico e imaginário reservado à mulher.
Assertivo, Stephen Holden ao definir o filme como uma
adaptação para o cinema surpreendente, fiel ao romance que parecia não
conceber uma adaptação. Nele, a autora desdobra seu alter–ego–ficcional,
neologismo utilizado pelo crítico e duas de suas leitoras mais contemporâneas,
ao caracterizá-las Holden insiste em mostrar as perturbações, medos e
angústias que as afetam. No entanto, remete-se à biografia de Virginia Woolf
para falar do seu suposto bi-sexualismo, que apareceria referenciado na festa
de Mrs. Dalloway quando esta troca beijos com outra mulher e quando no
filme, a irmã de Virginia, Vanessa Bell vem para visitá-la e esta, em um
momento de pânico, dá nela um beijo desesperado e apaixonado.
Alguns dos momentos mais arrebatadores do filme, disse
Stephen Holden, mostram Leonard tentando alcançar sua esposa. Não é que
não se amem mutuamente, enfatiza Holden, mas a agonia que Virginia está
22
sofrendo não pode ser tocada nem pelo amor, nem pela razão, em uma das
observações mais oportunas do texto.
O articulista faz menção explícita ao processo receptivo
quando diz que o filme “traz para casa” a percepção ameaçadora da solidão
essencial e o corolário feminino de que as mulheres não se definem a partir
dos homens. Deixa também clara sua preferência por Clarissa, interpretada por
Meryl Streep, qualifica-a como a mais arraigada por ser fiel a seus instintos e a
que mais amor tem para retribuir, como habitante urbana, autoconsciente,
vulnerável e enfraquecida pelo esforço que lhe demanda fazer as coisas certas.
Diferente da nossa opinião, no sentido de exaltar a interpretação de Julianne
Moore, sem entrar no mérito ético e moral como ele, pensamos que a rejeita
em função da falta de preparo literário, como se esta fosse a causa de seu
comportamento; chama-a de “criatura melancólica e amedrontada” pela sua
própria fragilidade.
O crítico encerra dizendo que o filme convida à meditação
sustentada na conexão das personagens abençoadas ou aflitas com
imaginações febris, ambigüidades complexas, memórias sofridas e
sexualidades ligadas ao sedutor chamado da morte. Em geral, a crítica de
Stephen Holden nos parece próxima de uma descrição argumentativa em
relação à trama narrativa, sem preocupar-se com os aspectos da produção que
justificariam muitas das ações das e dos personagens presentes em As Horas.
Nesse tipo de trabalho, Holden responde de modo sintético e eloqüente ao
desafio de contar para seus leitores a trama do filme. Contudo, reveste os
personagens de julgamentos moralizantes, sem ver nas mazelas da condição
humana a oportunidade da arte, no suporte literário ou audiovisual, de
22
reivindicar o impulso expressivo dos que vivem à margem da sociedade por
motivos de sua escolha sexual ou pela luta dos gêneros.
Apresentamos a seguir, também na íntegra e no original, uma
crítica da Folha de São Paulo, datada de março de 2003, logo depois do
lançamento do filme no Brasil.
06/03/2003 - 04h29 – Folha de São Paulo
Adaptação do livro é o que diferencia o filme "As
Horas"
PEDRO BUTCHER
Crítico da Folha de S.Paulo
Michael Cunningham, autor do romance "As Horas", disse ter adorado a versão para o cinema
do livro. Num depoimento que chega a ser comovente, ele se livra dos constrangimentos de um
autor traído para enumerar o que se perdeu da sua narrativa interiorizada.
Mas, em seguida, relata o que se ganhou (o olhar de uma atriz, o gesto de outra, ou a ação que se
repete, reproduzindo uma das características essenciais do livro, agora na forma de cinema).
É verdade que a adaptação de "As Horas" era um projeto ambicioso, besuntado do perigoso verniz
artístico que impregna tantos candidatos ao Oscar. O resultado final não chega a estar totalmente livre
desse verniz, mas o filme é um sobrevivente aos perigos que corria desde a origem. Sua base é rica
demais para ser desprezada, e o resultado final traz qualidades que o fazem infinitamente superior a
muitos outros dramas literários indicados ao Oscar.
Ao contrário, por exemplo, de "Adaptação", que traz verniz pior que o artístico (o do "filme cult"), "As
Horas" é um trabalho de adaptação de verdade. O grande arquiteto do filme não é Stephen Daldry,
diretor, mas David Hare, o dramaturgo que escreveu o roteiro. Nota-se que Hare suou para achar novo
formato a romance tão sofisticado, tendo chegado a algumas soluções brilhantes.
Dos problemas que o livro mostrou a Hare, um não foi resolvido: o dos diálogos. Soam pomposos,
literários e (talvez porque respeitosos demais) são culpados pelo tal verniz artístico. O problema fica mais
evidente na mais perigosa das três histórias do livro, justo a mais "literária": a que Virginia Woolf escreve
"Mrs.. Dalloway".
O romance de Virginia Woolf "Mrs.. Dalloway" é o eixo de tudo: com um uso primoroso e não exibicionista
da metalinguagem, Cunningham desenvolve três narrativas que se contrapõem, o tempo todo, à obra de
Woolf.
Na primeira, em 1929 no vilarejo de Richmond, Inglaterra, a própria escritora luta contra o fantasma da
melancolia ao narrar o único dia na vida de uma mulher. Na segunda, na Los Angeles de 1951, uma
dona-de-casa frustrada "Mrs.. Dalloway", o que terá consequências radicais em sua vida. Na terceira,
uma Clarissa moderna revive Mrs.. Dalloway, na Nova York contemporânea. Os três dias únicos na vida
de três mulheres se alternam gerando elos e ecos.
Essa estrutura radicalmente literária foi recriada no cinema com o uso de rimas visuais (os despertadores,
as flores e outros objetos ou simples gestos que se repetem nas três diferentes épocas) e um grande
trabalho de montagem, quase invisível.
O trio principal de atrizes é marcado por um desnível profundo, que prejudica o filme: Nicole Kidman não
convence como Virginia Woolf, com a contribuição inestimável do famoso nariz protético. A
interpretação da atriz, que excessiva importância a cada frase, fica ainda mais fraca perto da
excelência de Stephen Dillane e Miranda Richardson. Um trabalho que contrasta com a economia de
Julianne Moore e mesmo com o desempenho de Meryl Streep, intenso na dose certa.
22
De acordo com Pedro Butcher, crítico da Folha de São Paulo,
em várias entrevistas dadas por Michael Cunningham o roteiro e a adaptação
do filme são elogiados e vimos que realmente o roteiro é muito fiel à sua
transposição para a tela além de ser enriquecido com o aspecto visual e a
excelente interpretação de todos os atores, não das protagonistas, mas
também dos coadjuvantes.
Os diálogos são ricos e densos e talvez esse tenha sido o
motivo pelo qual o grande público o considerou como um filme “cult”. Aquilo
que no livro aparece em forma de pensamentos das personagens, no filme teve
que ser transformado em diálogos, de acordo com o artigo de Butcher, para
evitar a entediante voz em “off”. Esses diálogos são ricos e reveladores e dão
um tom intimista à trama, penetrando no âmago de todos que dela participam,
mesmo que esses diálogos, em seu resultado final, sejam considerados
rebuscados.
A expressão usada no New York Times por Stephen Holden
“fantasma da depressão” é substituída por “fantasma da melancolia” no texto
da Folha, que assombra a todas aquelas que se identificam com uma tristeza
indefinida e profunda, envolvidas nessa trama ficcional. A caracterização de
Laura Brown como uma dona de casa frustrada, na visão de Butcher, não
parece corresponder com a protagonista que reluta contra o papel a ela
designado pela sociedade, inspirada na força literária de Virginia Woolf.
Os elos e ecos entre as três protagonistas, assim como
assinala Pedro Butcher, são visíveis e aparecem no acordar, no pentear dos
cabelos, no quebrar de ovos, nas flores e principalmente nos pensamentos e
22
ações das três atrizes principais, embora a verdadeira ligação entre elas seja
invisível e de caráter temporal, uma vez que são introduzidos diálogos literais
extraídos da obra prima Mrs. Dalloway no início de cada cena. Essa questão
não é assinalada pelo crítico, talvez pela falta de espaço da matéria.
Se, como foi dito nesta crítica, Nicole Kidman não convence
como Virginia Woolf é porque o roteiro não propicia esse convencimento, e não
porque ela não desempenhe seu papel adequadamente. Dillane e Richardson
são excelentes atores, assim como Moore e Streep, mas não podem ser
considerados superiores ou inferiores, visto que é o papel que representam que
deve propiciar seu desempenho.
Por fim, a crítica da mídia impressa selecionada para ilustrar a
função deste meio no processo de recepção insiste, com razão, no valor da
adaptação literária de Stephen Daldry, no tom dramático do roteirista do filme
As Horas. A confluência da literatura e do drama assinala de modo eloqüente
as origens do cinema, a via pela qual este ingressou ao mundo simbólico das
representações, gerando o que conhecemos como linguagem audiovisual.
Tudo isto do ponto de vista formal no qual a crítica costuma ser magistral.
No entanto, em relação aos motivos, a crítica peca pelo
manifesto da forma e se omite em relação ao latente. Esta especula de acordo
com o veículo ou a direção que o crítico queira dar, conforme os interesses de
comunicação. A envergadura do tempo que perpassa o conteúdo da obra, as
nuances do protagonismo feminino e as possibilidades que o filme oferece à
espectadora ou ao espectador, de identificar na ficção algumas dessas
situações vividas na realidade, evidenciam o quanto estamos mal preparados
para aceitar e assumir o drama da condição humana como um desafio
22
existencial hora após hora. Nisso reside o pecado da omissão e o estigma da
crítica, mas também o papel formativo desta de ajudar o público a ir aquém do
tempo ficcional, com a intenção de viver a verdadeira experiência estética da
receptividade no cinema, e ir além no espaço reservado no filme às mulheres,
despertando nele, de um modo geral, o respeito pelas questões da ordem
feminina presentes na contemporaneidade.
Capítulo III – A ordem feminina nos processos identificatórios propostos
no filme As Horas
A ordem feminina é um registro no qual a identidade sexuada
se impõe como uma categoria de análise dos gêneros. O gênero feminino
como elaboração sócio-cultural da condição natural de ser mulher transforma-
se, assim, em uma chave de interpretação dos comportamentos e dos modos
de subjetivação deste Grupo Social de referência no campo da comunicação e
nos processos de recepção midiática. Portanto, faz-se necessário, antes de
qualquer coisa, definir em que consistem tais processos, para depois analisar
os motivos que impulsionam as mulheres a sentir, pensar e agir conforme o
gênero.
Recepção no campo da comunicação representa o interesse
pelo público ou receptores de um modo geral. No entanto, cabe destacar que
os “estudos da recepção” não se restringem exclusivamente à mídia. Trata-se
22
de abordagens nas quais estão envolvidas distintas “mediações culturais” que
associam a recepção com a vida social (ESCOSTEGUY, 2003:130). No
entanto, a mídia oferece distintas significações para cada uma das culturas que
interage com ela. Nesse sentido, a compreensão da relação que se estabelece
com a mídia se a partir das distintas posições ocupadas pelo sujeito–
receptor na estrutura social, apoiando-se fundamentalmente no referencial da
posição: classe social, contexto, raça, idade e gênero das diferentes
identidades coletivas ou Grupos Sociais. Desse universo do “gênero”, o recorte
operado nesta dissertação associa o tema da recepção com as particularidades
referentes às mulheres como Grupo Social de referência do gênero.
Pesquisas recentes no campo da comunicação, Teses e
Dissertações em Comunicação no Brasil (2001) de Regina Stumpf e Sérgio
Caparelli, revelam que a categoria do gênero está sendo usada no país apenas
para indicar a distinção sexual entre o feminino e o masculino. Em alguns
casos, até pode ser relacionada aos papéis sociais mãe, dona de casa –,
mas essas atuações específicas não contribuem para explicar, pelo menos
parcialmente, certos processos sociais e seus resultados objetivos. A utilização
da categoria de gênero como meramente uma diferenciação biológica permite
que os estudos da recepção corram o risco de cair em um discurso partidário
sobre o gênero. Entretanto, vale a pena reconhecer que essas mesmas
pesquisas, segundo os autores, têm possibilitado um saber sobre o universo
cultural da mulher, descrevendo o contexto no qual recebem as mensagens
midiáticas e os usos que estas fazem dessas narrativas dentro de sua vida
cotidiana.
22
Outro dado destas pesquisas, útil no tratamento da categoria de gênero,
é a adoção de um determinado modelo metodológico que viabilize a pesquisa de
recepção. A maioria das pesquisas revisada vincula-se às formulações teóricas de Jesús
Martín-Barbero e ao modelo metodológico construído por Guillermo Orozco. O modelo
das multimediações ou das múltiplas mediações, de acordo com esse autor, parte da noção
de mediação, delineada por Martín-Barbero, trazendo-a para o plano experimental, ou
seja, oferecendo uma operacionalização de distintas mediações que passam a ser
entendidas como influências no processo de recepção.
Dos meios às mediações (2001), obra principal de Jesús
Martín-Barbero, tem uma singular importância no contexto teórico e
metodológico da comunicação por ter suscitado um número significativo de
referências de caráter meta-comunicacional
15
. Trata-se de um texto de caráter
epistemológico que questiona os procedimentos tradicionais da pesquisa em
comunicação e propõe como métodos a crítica da razão dualista, pensar a
comunicação a partir da cultura, a elaboração de “mapas noturnos” para
explorar o campo e a investigação do “popular que nos interpela desde o
massivo” (MARTÍN-BARBERO, 2001:258-334).
Martín-Barbero rompeu de modo radical com a lógica dos
estudos da mídia mass media - que centravam a compreensão dos
processos sociais da comunicação nos meios da indústria massiva e nos
“efeitos” que produziam nos diferentes públicos. Os esquemas funcionalistas
lineares, que centravam suas preocupações nas pesquisas quantitativas nos
efeitos das campanhas publicitárias e eleitoreiras, de conteúdos manifestos e
do mero de aparelhos eletrônicos em posse, foram fundamentalmente
15
Raúl Fuentes Navarro (1998) define o meta-comunicacional como o conjunto de referencias
temáticas que utiliza a obra Dos meios às mediações para a reflexão e a construção do campo
de conhecimento em comunicação.
22
questionados. O autor mudou a concepção do campo ao inserir a história, a
cultura e a política no pensamento e na pesquisa em comunicação. O campo
estendeu-se e aprofundou na base das matrizes culturais, das mestiçagens
raciais, em aspectos étnicos, religiosos e políticos, assim como pela inclusão
dos gêneros e suas narrativas, no deslocamento da pesquisa, centrada nos
meios, para as mediações.
A questão do tempo em Martín-Barbero é fundamental para
definir que tipos de saberes são importantes em comunicação; no
metodológico, a partir de sua perspectiva, deve-se romper com a concepção
linear, ocidental do tempo e situar o futuro como elemento fundamental na
construção do presente, da vitalidade do presente, das hetero-topias e sonhos
da existência. Sendo este fator determinante no filme As Horas, existe nele
uma concepção espiral do tempo, similar a esta que Martín-Barbero assinala,
uma espécie de curva que gira em torno de um ponto, distanciando-se de
forma rápida, progressiva e sem controle cada vez mais deste. A analogia
representa mais ou menos o seguinte: enquanto o ponto nodal da obra é o
tempo inexorável da morte, a curva que gira em torno desse ponto é a mulher.
Contudo, é o estudo da realidade cotidiana do gênero como observação
empírica que resulta importante para os interesses desta pesquisa e nela pode-se ver os
detalhes de variações importantes nos modos de comunicar-se das mulheres; novas
formas de encontro, de intercâmbio, de juntar-se, de imaginar novos horizontes de vida.
As profundas transformações espaciais que o processo de urbanização representou
mudaram de maneira radical os fluxos, as rotinas, os costumes, os tempos e a psique das
novas gerações. Isto parece ser a marca inovadora da adaptação do romance de Michel
Cunningham e do roteiro dirigido por Stephen Daldry. O tempo cotidiano acelerou-se em
22
relação ao passado: as mudanças na aceleração temporal são cada vez mais freqüentes e
condicionam profundamente os comportamentos das mulheres.
Para estudar a comunicação na América Latina, Jesús Martín-Barbero
também seleciona como objeto chave de pesquisa a telenovela (IBIDEM: 46,48), pensada
como um lugar complexo no qual é possível encontrar elementos culturais, políticos,
sociais e comunicacionais importantes da realidade contemporânea. Nesta dissertação, o
elemento chave - objeto de estudo - é o corpus do filme, que em nada se parece ao
formato da telenovela, mas a trama ou enredo do gênero traz à tona os elementos
mencionados por Martín-Barbero, motivo da aparição na obra-prima do traço moderno,
do pós–modernismo na sua adaptação e a conseqüente versão cinematográfica
contemporânea
16
.
A partir desses dois elementos anunciados pelo modelo teórico-
metodológico da recepção de Jesús Martín-Barbero, a realidade cotidiana do gênero e a
complexidade da trama que o envolve é o que nesta dissertação trataremos como elo entre
o meio cinematográfico e as mediações com umblico feminino não popular,
distanciando-se assim da televisão, meio massivo e popular por excelência, no qual o
autor citado e grande parte de seus seguidores concentraram suas pesquisas e
investigações no campo da comunicação.
No entanto, cabe destacar que, nesta última parte do trabalho,
utiliza-se um método de recepção do gênero baseado no marco teórico de
Eliseo Verón, no seu livro La semiosis social: fragmentos de una teoría de la
discursividad (1996), sem distanciar-se desses dois elementos informativos da
recepção anunciados. O pesquisador, também latino-americano, preocupou-se
16
Certamente que não é inteão deste trabalho estabelecer similaridades entre os códigos
televisivo e cinematográfico, diferentes em sua forma e nos efeitos que são capazes de produzir
nos receptores. Muito menos, comparar o contexto cio-cultural da Europa com o da América
Latina trazido por Martín-Barbero. Embora, deste último resgatamos o entendimento essencial
que faz do fenômeno da recepção.
22
com o diálogo entre várias teorias, na perspectiva integradora de vários
modelos, para construir um objeto. Volta-se à discussão na qual se procura
encontrar um método adequado para o estudo da recepção sobre o gênero
feminino, no suporte midiático de um produto cultural fílmico, vasculhando nas
pesquisas realizadas em comunicação no Brasil.
Verón traz na sua proposta metodológica a carga teórica da
semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), o modelo ternário de Gottlob
Frege (1848-1925) e o chamado método “oblíquo”, que parte do princípio
peirciano de que um signo nunca pode representar a totalidade de um objeto e
sempre o reproduz com uma perspectiva determinada. Por isso, a visão frontal
do objeto equivale ao “objeto imediato”; “o objeto dinâmico” pode ser
enunciado e caracterizado a partir da interdiscursividade: a construção do
objeto é possível ao considerar os vários discursos ou perspectivas que o
concebem. O objeto pensado necessita da semiose para existir, pois ela
expressa na sua configuração a interdiscursividade que simboliza
17
.
Este método diagonal vincula o discurso da produção
cinematográfica com seu método analítico e o discurso social da recepção que
usa a noção de “rede discursiva” como condição necessária para falar de um
texto imagem dada a necessidade de contar sempre com uma dimensão
referencial na análise e na produção de sentido. Na perspectiva dos processos
identificatórios ou de reconhecimento propostos pelo filme As Horas, é
possível relacionar os efeitos de sentido com as propriedades do discurso
feminino. O efeito nunca é arbitrário e depende das estratégias de enunciação
17
Entende-se por semiose a ação do signo. E a ação do signo é funcionar como mediador entre
o objeto e o efeito que se produz em uma mente atual ou potencial. Quando Peirce afirma que o
signo é determinado pelo objeto, isso nos leva a pensar que o objeto tem primazia “real” sobre o
signo. Primazia real não quer dizer primazia gica, visto que embora o signo seja determinado
pelo objeto, este, por sua vez, só é logicamente acessível pela mediação do signo (SANTAELLA,
1995:38).
22
das três protagonistas; neste sentido, a caracterização das operações na
construção das personagens e as propriedades de suas ações oferecem pistas
para compreender os efeitos receptivos do filme.
No método se propõe a classificação das dimensões do texto
em icônicos, indiciais e simbólicos, permitindo organizar diversos tipos de
características na apresentação dos signos. Do ponto de vista de Peirce: “é a
ordem das relações de significação que implica relações existenciais”. No caso
da dimensão simbólica, é a ordem lingüística arbitrária, que para Peirce é da
ordem da lei, da necessidade. Verón destaca a classificação indicial que é
existencial e de contato, enquanto para Peirce é analógica, de similaridade. Por
meio desse recurso, Verón consegue descrever os comportamentos, os corpos
e os gestos como signos. O problema com o significado da ação tem saída
concreta para o crítico argentino no seguinte esquema: o indicial é existencial
não–analógico; é da ordem do contato, da proximidade e do distanciamento.
Estes elementos definem o “contato com o receptor” (VERON, 1996:90).
Por isso, este método de análise da recepção mostra-se o mais
apropriado para estudar “as tessituras do âmbito feminino no processo de
recepção”, pois responde a duas variáveis contempladas na pesquisa: a
primeira, a dimensão simbólica da linguagem fílmica, em que a imagem da
mulher é signo que se apresenta à espectadora do gênero feminino como um
índice um reflexo ou uma refração por extensão do que poderia ser sua
própria imagem ou comportamento na realidade. A segunda, a dimensão
existencial do filme tem a ver com a proximidade ou distanciamento da
espectadora no processo de identificação, seja com as personagens, seja com
a situação que estas vivem na trama ficcional. Desta forma, Verón pensa a
22
recepção em termos de dimensões e não de tipos, sendo que o conceito de
dimensão refere-se à extensão do objeto a mulher em uma direção
determinada à identificação com o gênero, enquanto o tipo, como elemento
de contato com o receptor, refere-se à função, modelo ou exemplo
característico do gênero e isto tem a ver com os signos metonímicos dos quais
se revestem algumas das personagens do filme As Horas, assim como muitas
mulheres nele representadas.
Neste modelo metodológico de Verón, corpos, objetos, olhares,
espaços, movimentos, cenários são inclusos na ordem do contato com o
receptor. A força dessa ordem estaria em sua importância histórica, que deixa
marcas, vestígios profundos nos sujeitos, na sua estrutura psíquica e que
condiciona o resto dos comportamentos na esfera material das coisas
(VERON, OP. CIT: 116). Isso explicaria a alta inversão da mídia no contato
com os públicos e, a partir daí, o autor argumenta a supremacia da enunciação
do modo a respeito do enunciado; em outras palavras, as operações na
construção de um discurso devem considerar como básico para sua realização
a ordem do contato; o modo e as formas de expressar um mesmo enunciado
mudam consideravelmente seu significado.
De forma bastante sintética, podemos dizer que encontramos
nos estudos sobre a recepção no Brasil, referenciados no livro catalográfico de
Stumpf e Caparelli, dois tipos de critérios para analisar o processo de
recepção. Os gerais, através dos quais os receptores são vistos como um
conjunto de sujeitos históricos, contextualizados econômica e socialmente de
modo particular, tratando das condições estruturais destes. E os
comunicacionais, que dão conta das particularidades das interações desses
22
receptores, portanto, isto pressupõe elementos culturais e situacionais do
próprio processo de recepção no qual a categoria de gênero é incorporada
como uma mediação de referência.
E, dado que a mediação de referência implica uma série de
traços ou variáveis vistas mais como integradoras do sujeito–receptor, esta
pesquisa procura captar e descrever um receptor que parece agir de forma
coerente com as marcas de sua identidade e não fraturado na sua posição
referencial.
1. Identidade feminina
Identidade feminina é uma noção que remete à individualidade
da mulher e à interpretação que esta faz de si mesma, reconhecendo-se como
um ser único e que existe, embora possa ser percebido, representado ou
denominado de formas diferentes, por causa das mudanças constantes que
afetam os seus desejos e as suas crenças
18
. Esta noção, do ponto de vista do
processo de recepção, está relacionada com a concepção que cada sociedade
elabora da identidade humana, étnica e cultural, de um modo geral, naquilo que
constitui a identificação do gênero. Por esta razão, nos referimos aos três tipos
de identificação que aparecem no filme As Horas e que constituem um convite
para a espectadora ou espectador público em geral de realizar a
experiência estética da catarse, a experiência da fruição sensível e
comunicativa da identificação. O primeiro tipo de identificação é a individual, o
18
Por um lado, o desejo inconsciente visa, primitivamente, a repetição alucinatória de uma
percepção anteriormente associada à satisfação, o que explica sua tendência a manifestar-se no
sonho e na fantasia (DORON e PAROT, 2001:227). Por outro, a crea constitui uma atitude de
adesão a uma proposição sob a forma de enunciado ou de representão, cuja verdade nem
sempre pode ser demonstrada. A crença se baseia, de um lado, em elementos de conhecimento
e, de outro, em um sentimento subjetivo da ordem da asserção; apresenta três graus: opinião,
saber e crença ou adesão.
22
segundo, a social e, o terceiro, a perceptiva que está diretamente ligada ao
processo criativo da autora Virginia Woolf de Mrs.. Dalloway, obra-prima,
transformada em personagem na adaptação de Stephen Daldry para o cinema.
1) A identidade individual é o resultado de uma experiência
própria da mulher, de se sentir existir e de ser reconhecida pelo “outro”,
enquanto singular ou diferente, mas idêntica na sua realidade física, psíquica e
social a “outras” de seu gênero
19
. Desta forma, a identidade feminina é uma
construção dinâmica da consciência que a mulher tem de si por meio de suas
relações intersubjetivas, sua comunicação lingüística e suas experiências
sociais. Processo ativo, afetivo e cognitivo da representação de si, a identidade
feminina está associada a um sentimento subjetivo de sua permanência no
tempo (DORON e PAROT, 2001:405). Este sentimento subjetivo que
identificamos como a angústia, afeta a personagem de Virginia pela passagem
inexorável do tempo, das horas, e justifica a criação ou projeção-ficcional de
duas personagens que dão continuidade a seu relato no tempo, introjetando
toda a carga enunciativa e afetiva da escritora, mesmo que isto represente
culpa, dívida simbólica e responsabilidade, no caso de Laura; ou uma
submissão-obediente no caso de Clarissa, que responde com a sua presença
lateral, ao lado, garantindo com isso o alívio da angústia existencial de sua
criadora, a continuidade, a unidade e o agir em conformidade com uma das
características do seu gênero.
Essa identidade individual da mulher, no sentido mais social,
não satisfaz as necessidades inter e intrapessoais de coerência, de
estabilidade e de síntese que garantem a permanência de um sujeito na
19
Sem querer entrar no mérito das nomenclaturas que caracterizam esse tipo de denominações
como: outro-outra; precisamos esclarecer que, o “outro” para a mulher é o homem, cuja
característica essencial em relação a si é a diferença.
22
existência, daí que o suicídio apareça como um motivo reiterativo no filme As
Horas. As características de coerência, estabilidade e síntese não aparecem
como dados sobre a identidade feminina na produção.
O episódio da estação de trens o demonstra, visto ser este um
lugar de passagem por excelência, em que a personagem Virginia argumenta
com seu marido Leonard o fato de sentir-se sufocada na pacata cidade de
Richmond: “não quero a calma sufocante dos subúrbios. Prefiro o solavanco
violento da capital. (...) É minha escolha (...) isso define a condição do ser
humano. Gostaria, por você, de poder ser feliz no meio do sossego. Mas, se
tiver que escolher entre Richmond e a morte, prefiro a morte” (com lágrimas no
rosto). Neste sentido, o motivo da morte e do suicídio perpassa toda a trama de
As Horas, em que o tempo real afeta de tal maneira as mulheres que provoca
nelas uma instabilidade emocional na qual resulta difícil conciliar o sentimento
e a razão, priorizando sempre o sentir, a intuição. Portanto, as funções de
regulação são indispensáveis para permitir a adaptação às mudanças e evitar o
aparecimento dos “distúrbios” da personalidade ligados à confusão e à difusão
de uma identidade ou a sua fragmentação. O histórico clínico de Virginia, citado
nessa mesma cena, remete a este princípio de instabilidade emocional da
escritora: confinamento, crise, melancolia, alucinações auditivas e as tentativas
de suicídio expressam uma constatação dos transtornos de personalidade da
autora que beiravam a loucura.
A própria criação das duas personagens como extensão dela
mesma, demonstra o caráter fragmentado de sua personalidade, que
transcende o nível da insanidade por universalizar a imagem intuitiva da mulher
baseada na sua condição natural de sentir. E assim também, a identidade
22
feminina inscreve o legado de seu passado na história da humanidade e na
história individual de todo sujeito. Laura é a única personagem que encarna, de
maneira bem pouco convencional, o papel ou função da mãe à qual estamos
fazendo referência, pelo fato dela estar na origem da vida, situação privilegiada
e “desejante” de Richard. No entanto, ela desaparece e, sejam quais forem os
motivos que a levaram a “abandonar” seu filho, Laura com esse ato, marca o
destino de Richard que busca em Clarissa, na poesia e nos seus parceiros,
iguais a ele, um sentido para essa atitude de sua mãe no passado; não
havendo resposta, inscreve no seu corpo pela AIDS o fim de sua vida ou o
cessar de seu desejo. Quando a parte mais primária, da ordem, da lei e da
necessidade, que na identidade feminina está relacionada com o desejo, não
pode ser investida, o equilíbrio de Laura é afetado.
Nessa mesma linha do desejo, a identidade feminina é
sexuada e se constrói progressivamente por observação e instrução. Ser
mulher ou homem é um resíduo de realidade variável e complexo, de múltiplas
possibilidades culturais em construção; a maneira que a mulher tem de habitar
seu corpo e de garantir sua identidade de gênero depende da incorporação dos
objetos libidinais, mas também dos efeitos sócio-culturais de atribuição dos
papéis feminino e masculino. No filme As Horas os objetos, causa do
investimento das personagens femininas, têm um significado que ajuda a
entender a função e a dimensão do gênero nas suas representações culturais.
Baseados no Dicionário de Símbolos (2006) de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant procuramos estabelecer a relação entre estes objetos de
22
investimento libidinal e as representações que as personagens femininas
fazem de sua própria identidade
20
:
Virginia, a pena e a passarinha. A pena com que a autora
escreve suas obras pode representar na personagem o poder
aéreo liberado do peso do mundo material. Ela também é símbolo
de autoridade e essa autoridade implica um dever de justiça. Nos
pratos da balança, o peso mais leve, da pluma, por exemplo, é
suficiente para romper o justo equilíbrio das coisas (CHEVALIER
e GHEERBRANT, 2006:725). O pássaro: o vôo dos pássaros os
predispõe a servir de símbolos às relações entre o céu e a terra.
A própria palavra em grego foi sinônimo de presságio e de
mensagem do céu. É essa a significação dos pássaros no
taoísmo, onde os Imortais adotam a forma de aves para significar
a leveza, a liberação do peso terrestre. Na mesma perspectiva, o
pássaro é a representação da alma que se liberta do corpo, ou
apenas o símbolo das funções intelectuais. Contudo, o passarinho
da cena de Virginia com sua sobrinha Angélica está morto,
adquirindo assim o significado de ser justamente a alma de um
morto, isto é, a alma libertada que volta à pátria celeste, onde vai
20
o só os processos, os atos e as criações nas quais as mulheres se envolvem, mas também
a diferenciação, os confrontos e os engajamentos são os meios que estas utilizam para deixar a
marca de sua identidade.
22
ficar à espera de sua reencarnação, mas também o reflexo da
alma dessa criança (IBIDEM: 687).
A visão platônica dos autores do Dicionário de mbolos é
assertiva em relação ao significado que adquire a pena para a
personagem de Virginia Woolf, a escritora. Nela descarrega sua
revolta, libertando-se assim das ataduras do material,
representadas pela sujeira da tinta, para ascender pelo exercício
da escrita ao mundo espiritual, ao céu, no qual ela é autoridade,
sendo que é autora, sobre sua criação; por isso o medo de
romper esse equilíbrio do universo por ela mesma criado na cena
em que decide matar a sua própria protagonista, salva pelo efeito
do olhar mediador de sua sobrinha. O passarinho morto é para
Virginia a projeção de seu próprio desejo de morrer para liberar-se
do corpo e ascender a um plano puramente espiritual a fim de
transcender o tempo esse é o destino dos Imortais na literatura
como a autora.
Laura e o bolo de aniversário. A feitura de um bolo por parte da
personagem representa muito mais que a função da esposa
atenta que quer agradar o marido e que se faz acompanhar do
filho nessa tarefa doméstica. O motivo do investimento é o
22
aniversário que marca as fases do ciclo de uma existência:
nascimento convivência e morte. Para Laura isso significa a
duração de seu casamento, unido ao símbolo da lembrança e da
aliança de ouro, material sólido que aparece em destaque e que
sela o compromisso assumido ante a lei (IBIDEM: 59). Laura
dispensa no bolo cuidado, dedicação e esforço para que o
resultado seja ante os “outros”, marido e filho, o símbolo de sua
entrega. O tempo na cena projeta-se para o passado, presente e
futuro da protagonista e para os motivos que a levaram a
abandonar o lar.
Clarissa e as flores para a festa. A flor é, de maneira geral,
símbolo do princípio passivo, receptáculo da atividade celeste. O
próprio desenvolvimento da flor, a partir da terra e da água, como
a lótus, simboliza o despertar da manifestação dessa mesma
substância passiva. São João da Cruz faz da flor a imagem das
virtudes da alma, e do ramalhete que as reúne, a imagem da
perfeição espiritual (IBIDEM: 437). Símbolo do amor e da
harmonia que caracterizam a natureza primordial, esta definição
está mais próxima da identidade da personagem feminina. a
festa é o tempo de celebrar um acontecimento, em que não se
trabalha e que representa para todos os participantes alegria,
22
diversão e regozijo. No caso de Clarissa Vaughan é a mostra de
afeto que faz como homenagem a seu amigo, o poeta Richard.
2) A identidade social de gênero. A identidade social resulta
de um processo de atribuição, de intervenção e de posicionamento do gênero
no meio coletivo; exprime-se por meio da participação das mulheres em grupos
ou em instituições. Apesar do caráter extremamente introjetivo das
personagens, pode-se inferir alguns destes traços nos diálogos e na ação dos
“outros” personagens. Ela pode ser outorgada ou reivindicada em função das
modalidades de afirmação das personagens e dos seus desejos de realização
Sua construção e suas características são, portanto, relativas, interativas e
funcionais (DORON e PAROT, OP. CIT: 406).
A identidade social do gênero é estruturada, em As Horas,
pelas referências enunciativas de Virginia Woolf, a personagem, referências
identificatórias ligadas às experiências partilhadas, de “leitura” com outros
atores personagens que as atualizam, e na criação ficcional, conforme a
posição referencial das mulheres, uma atribuição e estimação das imagens de
si, variáveis conforme o grupo social no qual a autora as insere. Ligada aos
processos de integração, a identidade social manifesta-se publicamente por
meio do exercício dos papéis, função que revela a concepção pessoal de um
estilo de vida convencional, marginal, desviante ou rebelde. A interpretação dos
papéis no jogo social favorece a emergência de uma consciência de si com
relação aos outros que mantém um sentimento avaliativo.
22
Virginia em um de seus momentos de criação
Virginia escritora. Ela, segundo o filme, tenta continuar viva, criando um
mundo interior para si, perpassado por vozes, sensações, emoções e sentimentos
que projeta na realidade individual de cada mulher caracterizada. Suas
personagens femininas olham a vida de fora, alheias ao mundo da realidade
objetiva, social. Enquanto Virginia escreve Mrs.. Dalloway seu pensamento
oscila entre imagens do passado ao qual foi preciso renunciar, considerando a
morte como uma maneira de pôr fim a todos os sofrimentos e diferenças entre os
seres humanos, principalmente entre homens e mulheres (MANNONI, 1999:
14-15).
Laura e Richie, ao deixá-lo com a babá
Laura mãe e esposa. Laura é mulher e mãe ao mesmo tempo, adorada por um
filho sensível e intuitivo. Está grávida e experimenta sentimentos ambíguos em
relação à sua maternidade; a personagem revela-se amorosa e protetora em alguns
momentos, mas em outros sem vontade de dar conta desse compromisso social.
Laura exerce papéis, do quais é difícil escapar, mesmo que neles seja infeliz.
Como esposa, seu convívio com Dan mostra-se superficial e cortês, embora ele
nem sequer cogite o fato de sua esposa não estar feliz a seu lado e de seu filho.
22
Prefere sobrepor a intelectualidade à sexualidade, e quando seu marido a chama
para deitar-se com ele, chora sozinha no banheiro, pois não é essa sua vontade. A
personagem pensa intimamente em escapar desses papéis, nos quais se encontra
aprisionada, para poder alcançar liberdade e realização. O papel de mãe e de
esposa a deixa cada vez mais deprimida e, para ela, sua única saída é a leitura de
Mrs.. Dalloway, capaz de transportá-la para o interior de si mesma e, a partir daí,
compensar o prazer com bons momentos, em contato com a autora e com o
universo ficcional por ela criado, em função da libertação do gênero desses papéis
atribuídos pela sociedade.
Clarissa e Richard
Clarissa, a amiga fiel. Clarissa é a Mrs.. Dalloway da atualidade. Amiga
incondicional de Richard, mãe de Julia e companheira de Sally. As escolhas e
acordos que apresentam conflitos para Clarissa Vaughan na Nova Iorque do início
do novo milênio são enfrentados pela personagem na adaptação. Como mulher, é
revestida no contexto, complementando-se com a narrativa de uma busca, nos
empecilhos do seu desenvolvimento individual. Richard é rigoroso ao julgar
Clarissa; gostaria que ela tivesse coragem de ousar mais, de viver de um modo
diferente, de construir sua identidade transcendendo o papel de editora em uma
revista. O peso dessa recriminação é semelhante ao peso da sociedade “patriarcal”
e moralista sobre a mulher, impondo o que se espera do comportamento delas e o
22
que é “certo” ou “errado”. O dia de Clarissa terminaria com uma festa para
celebrar a sobrevivência de seu amigo, tão difícil em tempos da AIDS, mas com a
morte de Richard ela volta a ser mãe e amante, apenas Clarissa, agora que o
mais ninguém para chamá-la de Mrs. Dalloway.
No nível individual destas protagonistas femininas a identidade
social é produto e lugar de síntese das relações dialéticas do “eu” envolvido em
relação com “os outros”. Do ponto de vista fenomenológico, a atualização da
identidade da mulher na sua relação comunicativa gera para ela uma
consciência complementar de identidade. Como a experiência de si no mundo,
apóia-se nas representações que uma mulher pode fazer de si mesma em
qualquer situação, como também na sua consciência de integração, em que a
concepção de identidade depende fundamentalmente da construção social,
cognitiva, inseparável da consciência. As três mulheres de As Horas mostram
o histórico do modelo social opressor.
Virginia Woolf sempre considerou nefasta a idéia de um ser
puramente masculino ou feminino: “é preciso ser mulher-masculina ou homem-
feminino” para que possa haver um casamento. Para livrar-se da opressão do
passado e seguir o caminho de seus próprios desejos, as protagonistas de
Virginia evoluem fora do corpo, na alma. Mas uma parte, os vestígios, dessa
criação continua prisioneira de uma relação imaginária com “os outros” ou
consigo mesma. A força da autora, vista na atuação artística de As Horas,
consiste em acrescentar aos dramas, que invadem os jogos com as palavras,
um lugar para o sonho, para a fantasia, por meio de uma escrita que surge do
inconsciente que frui e tenta comunicar um desejo impossível. A autora-
22
protagonista tenta apreender o passado para viver o presente em função de um
futuro que deseja diferente. O fato de expressar o desconforto, a opressão e a
perversidade com palavras liberta a mulher, que nem sempre consegue dizer
tudo, visto que lhe faltam palavras, pois elas ficam presas no recalque ou na
oposição do inominável, evocando o real de um encontro impossível – “o outro”
(MANNONI, OP. CIT: 16-20).
As mulheres falam no filme também através do seu contraponto
masculino, o homem. Leonard age como o conservador esposo de Virginia que cuida dela
com o zelo de uma mãe. Ciente de seu papel de marido, a família representa para ele o
patrimônio mais prezado de um homem. Já Richard deprimido, age de maneira
inexplicável, frágil e vulnerável no seu insuportável sofrimento e visão de mundo. Com
ele, saltam pela janela toda a esperança de redenção da protagonista, e, no ato de
desaparecer no dia de sua homenagem, fere a única mulher que ainda o ama e é sua
amiga. Clarissa sobrepõe características “femininas”, como ternura e devoção, a
características “masculinas”, como bom senso e intelecto, e as atribui como um elogio a
um amigo homem. Ela acha difícil julgar as pessoas, já que não acredita emgidos
padrões de referência.
Características tidas como masculinas ou femininas são embaralhadas e
comportamentos apropriados ou inapropriados são revelados de acordo com o contexto.
Clarissa é capaz de seguir as regras impostas pela sociedade patriarcal e também de entrar
em contato com a poesia. Enquanto Clarissa percebe que tudo que construiu é fruto de
suas escolhas, e que cada escolha é um passo a mais em direção a uma rígida
conformidade, Laura se incomoda com sua posão submissa e inegável infelicidade, mas
não chega a questionar a ordem das coisas. Sente um mal estar difuso por não
desempenhar seu papel de esposa, mãe e dona de casa de acordo com o desejo dos
22
“outros”. Sua única oportunidade de escape dessa vida medíocre é a leitura de Mrs.
Dalloway, por vislumbrar nela consciências em constante fluxo, impossíveis de serem
aprisionadas. Precursora do feminismo moderno, de um engajamento a serviço da
emancipação das mulheres, Virginia Woolf proporciona a suas personagens a
possibilidade de escaparem dos papéis nos quais se encontram aprisionadas e de se
realizarem, atingindo a verdade de seu ser. A autora tenta promover uma ética feminina
para que o mundo masculino evolua, libertando a mulher da libido fálica proposta pela
psicanálise, reivindicando a existência de dois sexos e suas diferenças, e fazendo com que
a mulher deixe de ser um espelho para o homem (IBIDEM: 43-44).
3) A identificação do gênero. Este termo designa o processo
de recepção fílmica pelo qual um sujeito, o receptor ou espectador, reconhece
um acontecimento ou um outro sujeito na ação ou na personagem como
pertencendo a determinada classe ou grupo social (DORON e PAROT, OP.
CIT: 405) - de referência, o gênero feminino. A capacidade de identificação
constitui um dos principais critérios da função representativa e as imagens
audiovisuais de caráter indicial elaboradas pelo espectador, na sua interação
com o meio, permitem o estabelecimento da correspondência entre a imagem
percebida e a mente do receptor-espectador. Desta forma, adaptamos a
definição do processo de identificação à recepção, com o fim de observar os
processos identificatórios propostos no filme As Horas para o público feminino.
Por isso, a identificação representa, para nós, o estudo da
constituição do espectador ou receptor nos processos de sua experiência
estética, e estes podem ser de:
22
Identificação primária: o espectador se identifica com seu
próprio olhar e se experimenta como foco da representação,
como sujeito privilegiado, central e transcendente da visão. A
identificação de qualquer espectadora com a onividência da
personagem Virginia que interpreta a escritora Virginia Woolf
é um bom exemplo deste tipo de identificação, sendo esta a
autora do livro que serviu de base para a adaptação do filme.
Identificação secundária: este tipo de identificação no
cinema é basicamente a identificação com um personagem
como figura semelhante ao espectador no relato ficcional,
afirma Aumont no seu livro Estética del Cine (2002). Tanto
com Laura quanto com Clarissa, a espectadora tem duas
figuras femininas diferentes, sendo uma a esposa e mãe
insatisfeita com sua pacata vida de família e a outra, uma
mulher antenada com sua época, romântica e sonhadora.
Enunciação: o espectador se reconhece na ritualização das
práticas sociais e nas transformações operadas em favor dos
ideais, valores e tradições que os protagonistas representam.
As três protagonistas encarnam princípios e valores do
gênero feminino, como vimos anteriormente. Assim, as
espectadoras podem vir a se identificar com o romantismo ou
mística de Virginia, com a dedicação e imaginação de Laura
ou com a fidelidade para com o amor de Clarissa.
Repercussão e o impacto: estudo da constituição do
espectador ou receptor através do feedback concreto de
22
adesão ao filme e os relatos da experiência de catarse. Esta
experiência de difícil apreensão corresponde àquilo que a
espectadora pode fazer com a carga afetiva e informativa que
lhe proporcionou o filme As Horas, comunicando-a ou
vivenciando-a de acordo com a circunstância em que esta
precisar concorrer a uma situação na qual entrem em jogo as
escolhas do gênero.
2. Virginia – o tempo de errância da mulher
Pode parecer um paradoxo querer expor alguns traços
distintivos da subjetividade de Virginia Woolf quando se trata da análise de um
filme, no qual ela é representada como metáfora do tempo da mulher, aquilo
que viemos a chamar tempo de “errância da mulher”, sem que isto tenha
nenhum tipo de conotação moral, muito pelo contrário, pensamos que se trata
de uma estética sobre o tempo que nos interessa observar ao longo do filme.
De fato, o roteiro de As Horas de David Hare não preserva a estrutura do
22
tempo cronológico linear à qual estamos acostumados. Da primeira à última
cena, o tempo se configura em forma de espiral, no sentido que o feminino gira
em torno de um ponto o tempo , contornando-o de maneira rápida,
progressiva e inefável, enquanto infinito “ignorância do sempre”
21
. Nele vai
sendo montada a história das três mulheres protagonistas: ela Virginia e
seus desdobramentos no tempo, Laura e Clarissa.
Deste modo, as imagens vão adquirindo sentido à medida que
cada personagem feminina vai sendo tecida de acordo com o ritmo da escrita
da protagonista “principal”. Temporalidades de errância em busca de sentido:
as imagens ficam suspensas no corte, à espera, e adquirem sentido no próprio
desenrolar de cada uma das histórias do gênero feminino. No tempo a
posteriori de As Horas o sentido é criado continuamente e recriado na
produção de novas articulações. Esse sentido não reside nas cenas isoladas,
mas na totalidade da trama que se cria do encontro entre aquelas e esta, de tal
forma que a imagem ou a cena será carregada pelo espectador de um sentido
muito diferente. Ao quebrar a ordem seqüencial, o roteiro adquire o formato de
uma temporalidade psíquica, rompendo assim com a linearidade temporal e
causal do filme.
Virginia na sua atividade criativa aparece investindo fortemente
do ponto de vista afetivo, atividade intensa do psiquismo na qual ela põe em
21
Ignorância do sempre é uma expressão de Martin Heidegger com a qual desenvolve a tese do
“dizer” da arte, isto nos parece relevante no cruzamento literatura e cinema do qual emerge uma
figura como a de Virginia Woolf compartilhando com seus personagens o protagonismo de As
Horas. Esse “dizer das artes é feito a partir da tensão entre “dentro” e “fora”. Portanto,
procuramos discernir entre esse “dizer de dentro” e esse “dizer de fora”. O primeiro é o dizer da
certeza e da segurança no mundo, constituído de palavras cheias de sentido e respostas, a partir
das quais o ser humano encontra a si e ao mundo, repletos de definições. O segundo o Dizer
de Fora no qual encaixamos a protagonista Virginia Woolf, provém de uma região de insegurança
e incerteza. É o dizer que é constituído pela precariedade do ser humano. Este dizer é feito de
palavras quebradas, palavras que trazem em si “a falha” ou a “falta” que se abre para o impreciso
e oculto, para a dimensão retraída do ser que entendemos seja a dimensão na qual o feminino se
revela mais ele (PESSANHA, 2000:137).
22
funcionamento um processo de elaboração a partir de excitações internas que
trazem à escrita o enigma real da fantasia. Em seu texto Escritores Criativos
e Devaneios (1908:123-135), Freud refere-se ao nexo da fantasia ou atividade
criadora com o tempo, ou melhor, com a multiplicidade de tempos nos quais ela
se revela na sua face mulher e sinaliza através de suas personagens os
motivos pelos quais as espectadoras podem se identificar com o gênero.
Afirma o precursor da psicanálise:
Uma fantasia oscila de certo modo entre dois tempos,
três momentos temporais de nosso representar. O
trabalho anímico se vincula com uma impressão atual,
a uma ocasião do presente que foi capaz de despertar
os grandes desejos da pessoa; a partir daí, remonta-se
a uma vivência anterior, infantil no mais das vezes, na
qual esse desejo se realizava, e então cria uma
situação referida ao futuro, que se figuraliza como a
realização de um desejo, justamente o devaneio ou a
fantasia, no qual estão impressas as marcas de sua
origem no atual e na lembrança (FREUD, [1908]1996).
O devaneio presente em Mrs. Dalloway como estratégia da
escrita, assim como “fluxo livre da consciência” em seu devir, parte de uma
percepção de atual e se dirige para o passado, onde encontra o desejo que lhe
serve de plataforma de lançamento para o futuro, criando uma fantasia na qual
esse desejo se figuraliza, articulado em uma produção que respeita a ordem
seqüencial. Freud denomina a fantasia um produto de “sangue misto”, um
intermediário entre os processos primários e os processos secundários, entre a
22
identidade de percepção e a identidade de pensamento e entre repetição e
rememoração
22
.
O termo fantasia é de grande abrangência quando se trata de
pensar a subjetividade feminina da escritora Virginia Woolf, representada no
filme As Horas. Em princípio porque devemos inferir muitas coisas e compará-
las com os dados biográficos de sua vida, mas o que resulta fascinante, neste
modelo exploratório de análise, é que a própria narrativa fornece o desafio de
cruzar os tempos para extrair deles, a identidade feminina como um princípio
de fusão da mulher com o sonho diurno, “o devaneio”, e até com as fantasias
inconscientes, que se encontram no fundamento dos sintomas neuróticos,
alcançando desde as construções feitas na mistura de várias cenas que
expressam os movimentos do desejo “lembranças encobridoras” até as
fantasias mais originárias. O próprio empreendimento de Freud, segundo
Laplanche e Pontalis, não consiste em distinguir fantasias conscientes e
inconscientes; pelo contrário, ele visa nos seus escritos mostrar suas
analogias, suas estreitas relações e suas passagens tuas, considerando-as
como algo que atravessa todo o aparelho psíquico do sujeito da mulher , e
que adquire o caráter consciente ou inconsciente, dependendo das
intensificações dos investimentos (LAPLANCHE e PONTALIS, 1988:231).
O inconsciente da escritora Virginia Woolf, perceptível nas
imagens, mistura, cruza e justapõe os tempos, ignorando sua separação.
Vemos, assim, que no interior da narrativa a autora encontra o momento de
22
Este caráter intermediário da fantasia equivale à substituição do “princípio do prazer -
inconsciente pelo “princípio de realidade” - consciente. Por isso, a identidade de percepção é o
reencontro da perceão satisfatória pela via breve da alucinão. A identidade de pensamento é
a identidade de perceão redescoberta pela via desviada do pensamento e da ão sobre o
mundo exterior. Repetição é o mecanismo de reprodução automático de estados e experiências
que aparecem de forma reiterada. Já a rememoração designa a recuperação não automática de
informações na memória.
22
elaboração, sendo este um momento de “transposição da experiência
temporal”. Mas essa transposição temporal implica uma mudança no
movimento do desejo: da denegação para a inclusão do corte como uma morte
da palavra ou da imagem no texto literário ou na tela do cinema. A própria
tessitura da narrativa de Mrs. Dalloway vai construindo um lugar no qual se
possa localizar o acontecimento vivido e o sentimento de “desamparo”, o que
leva a autora a concluir que o romance pode ser visto como um driblar do
tempo, com as dimensões antagônicas do mesmo: um tempo realista,
separado pelas experiências de morte, afetivas beijos e de festas, e um
tempo “onírico”, encaminhado em direção à experiência de um “não-tempo”, de
um “antes” fundador do tempo. Nessa linha, o filme refere o desamparo infantil
colocado no âmago da produção fantasística a partir da função materna de
Laura, do seu filho, o personagem de Richard, e das produções criativas de
Virginia ante um desamparo existencial. Estamos diante de um trabalho de
tecelagem, no qual a própria fiação do tecido vai construindo no psiquismo um
lugar capaz de alojar o novo, a nova mulher. Aqui, o momento de elaboração é
visto como a “transposição da experiência temporal” permitida pela mudança
de movimento do desejo momento que ocorre entre a tentativa denegatória
do “outro” e do novo , e o trabalho de abertura e de circulação na
subjetividade das protagonistas, mediada pela irrupção do corte que permite o
aparecimento do inédito. Cabe salientar aqui o sentido figurado que tem o corte
como procedimento fílmico, relacionando-o com o tempo de morte, da imagem
ou da cena, e a “ruptura” da simbiose que indica um estado de fusão, de
indiferenciação, no qual a criança percebe a mãe como estando nela e sendo
parte dela, e a mãe de forma recíproca, vivendo assim a onipotência e a
22
realização ao mesmo tempo narcisista e objetal.
As fantasias originárias a sedução, a castração e a cena
primária , são respostas para as interrogações sobre a origem da
sexualidade, de si próprio e da diferença dos sexos, que inquietam a criança.
Elas refletem, em um estado imaginário, a forma na qual o simbólico se insere
no corporal de acordo com Laplanche e Pontalis no livro Fantasia originária,
fantasia das origens, origens da fantasia (1990). As teorias sexuais infantis
vão trabalhar as fantasias originárias, desde as vicissitudes do Complexo de
Édipo e de castração, tentando novamente construir respostas sobre a origem,
o desejo e os “outros” que rodeiam a criança
23
. As construções fantasmáticas
são encenações imaginárias com forte potencial simbolizador. Elas têm um
lugar fundamental no processo permanente de construção de si próprio e do
estranho processo no qual uma ficção sobre as origens é chave para ancorar
uma história.
No inconsciente as marcas e vestígios históricos não
envelhecem, o tempo não passa; é o tempo, como vimos, da repetição. A
repetição se faz presente no seio do “princípio de prazer”; os caminhos do
desejo que Virginia percorre são vias abertas para sempre, pois a busca da
primeira experiência de satisfação marca a sexualidade humana de forma
23
Sedão, castração e cena originária são os chamados três fantasmas originários da infância.
O primeiro, a sedução, representa o despertar da sexualidade por ocasião dos cuidados ou
descuidos do corpo. O segundo, a castração, é o complexo e a angústia relacionada com a
dialética do ter ou não ter o pênis como parte essencial da imagem do eu. O terceiro, a cena
originária, consiste na vio real ou fantasiada por parte da criança das relações sexuais dos
pais, provocando nela uma mistura de desejos e temores. o Complexo de Édipo tem a ver
com uma descoberta de Freud de 1897 sobre a existência de desejos inconscientes de morte
dirigidos contra o pai, desejos incestuosos dirigidos à mãe e uma ligação entre os dois. Mas é
apenas em 1908 que ele descreve o complexo nuclear das neuroses, e é de 1910 a
denominação de Complexo de Édipo. O Édipo Masculino: desejos incestuosos em relação à mãe
e sentimentos ambivalentes a respeito do pai, que é ao mesmo tempo um rival e um objeto de
amor e de identificação. Édipo Feminino: pelo contrário, começa com o complexo de castração: é
a inveja do pênis que afastaria a menina de sua mãe e a levaria a escolher o pai como objeto
sexual (DORON e PAROT, 1998:156).
22
indelével. Entretanto, no jogo entre o “princípio de prazer” e o “princípio de
realidade” que inclui o devaneio e o adiamento do prazer, abre-se o espaço
para a criação de produtos intermediários: sintomas, sonhos e fantasias
(FREUD, [1930]1996:71). É no “para além do princípio do prazer”, no
automatismo da repetição e na neurose de destino, “nesse eterno retorno do
mesmo”, onde encontramos a imagem radicalmente feminina da escritora
inglesa. Na dimensão sócio-cultural da obra Mrs. Dalloway verificam-se os
enunciados sobre a origem, a morte e a relação entre gerações que nos
servem de apoio para o trabalho de análise. Reconhecemos com isto a
necessidade de construir um saber sobre a própria história libidinal como
investimento e identificatória de Virginia e de suas duas personagens: Laura
e Clarissa, efeitos de continuidade temporal.
A autora protagonista mostra como o “eu” advém a um espaço
que o precede, a um discurso existente, e como tem de encarregar-se de
representar, de construir uma versão sobre o tempo vivido. Esse “eu” deve
construir sua própria ontogênese, para poder sustentar um devir e para que se
possa abrir a possibilidade de mudanças na vida, mas com a garantia de que
lhe seja preservado algo de “próprio” em termos de identidade e de registro.
Nas configurações do gênero feminino, os enunciados identificatórios que a
mãe transmite à menina ao relatar sua relação são fundamentais, que as
inscrições em seu corpo testemunham que algo experimentado em um
tempo que é anterior à existência dos traços mnêmicos deixados pelas
representações idealizadas
24
. A importância de tal construção fica em
24
Um traço mnêmico retém a performance de memorização e recuperação de informação a
respeito de acontecimentos passados. O caráter performático do traço confere a este o estatuto
semiótico, ou seja, o de um signo capaz de produzir significações anteriores representações
dos afetos –, inscrições psíquicas móveis, submetidas às operações de “deslocamento e
“condensação do processo pririo, denominado também de semiótico pela oposição às
22
evidência quando nos deparamos com os efeitos produzidos por seu fracasso,
dos quais a psicose é um poderoso sinal, observável em alguns episódios nos
quais aparece a própria Virginia deixando-se levar por suas fantasias e
devaneios sem conseguir entrar em contato com a realidade assinalada no
filme
25
. É essa construção do tempo vivido de As Horas no sentido
seqüencial que acesso aos processos de rememoração e de historização
que se contrapõe ao id da fantasia e o devaneio “esse mestre de feiticeiro”,
nas palavras de Piera Aulagnier, que não pára na contemporaneidade, de
repetir sua “história sem palavras” (AULAGNIER, 1989:15).
Na história singular é que se constrói a possibilidade de
simbolização; no entanto, e sendo conseqüente com o direcionamento da linha
de pesquisa “Contribuições da mídia para a interação entre Grupos Sociais”, é
o entorno cultural que se encarrega de manter “as bordas”, de construir um
fundamento metapsicológico com função de enquadre, garantia externa da
capacidade de simbolização, continente da identidade feminina e estrutura de
apoio dos processos de subjetivação e sublimação
26
.
Contudo, essa garantia está ausente na protagonista Virginia,
produzindo-se efeitos de “ruptura” no trabalho de ligação, de representação e
representações “simbólicas” próprias ou consecutivas do sistema da língua: àquelas que são
reconhecidas como representação de coisa análoga ao significado da lingüística e
representação de palavra análoga ao significante da lingüística.
25
A Psicose tem um caráter estrutural que designa a atividade mental caracterizado pela recusa
da realidade, pelo recuo narcisista da libido e pela fragmentação das representações de objetos
fantasmáticos (DORON e PAROT, 1998:634).
26
Os processos de subjetivação que se desenvolvem nos campos mais experimentais da
imagem atual, como o cinema, atentam na atualidade para os “destinos do desejo. Assim, se os
destinos do desejo assumem uma direção marcadamente auto-centrada e exibicionista, na qual o
horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e des-investido das trocas inter-humanas, não
se difícil compreender que o que caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo parece
ser mesmo a impossibilidade de receber e reconhecer o ”outro“ em sua diferença radical
(BARTUCCI, 2000:14)”. A sublimação, por outro lado, seria o que permitiria a constituição de
uma dialética da “alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura. A arte seria
assim uma modalidade de sublimação às pulsões, na qual o sujeito manteria o objeto de
investimento, transformando seu alvo.
22
de articulação que se tornam obstáculo para a memória. Trabalho complexo,
cujo objetivo é des-ocultar o reprimido, mas também reprimir o que não pode
ser tolerado, e a re-significação a partir do presente colocando em perspectiva
o passado. Esta questão é bem alcançada tanto por Cunningham quanto por
Daldry nas suas respectivas adaptações.
Pensar o psiquismo por meio de referências temporais permite
concebê-lo, fundamentalmente, como algo em perpétuo movimento, que o
tempo é movimento. Nesse sentido, a transformação é a marca dinâmica da
subjetivação. A diversidade de inscrições no psiquismo e suas diferentes
qualidades, através das descrições das leis que regem seu funcionamento
temporal, evidenciam a circulação no processo de re-transcrição
adaptação/transposição para o cinema desta fruição no filme que segue o
percurso do “fluxo livre da consciência”.
O processo da escrita em Virginia, assim, é sublimatório vive
no corpo/morre na letra e marca a travessia da escritora pela fantasia e a
pulsão sexual, e depois pela agressão e a “pulsão de morte”
27
. Tudo isto
considerando que a pulsão sexual não tem nem meta nem objeto específico,
portanto, o objeto é variável e contingente. Desta maneira, a protagonista
sublima falando daquele lugar desconhecido no qual as mulheres são livres,
presentifica seu objeto ausente a figura da mãe –, modifica as coordenadas
espaço-tempo, saindo-se, mas sem fugir totalmente da lógica do significante,
do jogo das metáforas e metonímias.
27
Freud julga que a “pulsão de morte” é a base do princípio primordial de funcionamento do
aparelho psíquico. Este repousa na tarefa jamais concluída, sempre recomeçada que
consiste em reduzir a excitação e, portanto, a tensão do organismo ao menor nível possível. À
primeira vista, é a busca de satisfação “o princípio de prazer” que submete o sujeito, pela
descarga pulsional, a esse ponto de estiagem. Freud também viu nisso a expressão da pulsão de
morte, pois esse retorno ao ponto de partida, ao nível mínimo de excitação, de alguma forma, é o
eco da tendência que leva o organismo a retornar às origens, a seu estado primordial de não-
vida, isto é, de morte (CHEMAMA, 1995:181).
22
A narrativa de As Horas conduz à indiferenciação, à confusão
e à clarividência, à morte e ao mesmo tempo à eternidade; é um livre
movimento entre dois mundos – a literatura e o cinema que têm em comum a
subjetividade, neste caso feminina, como objeto de produção, representação e
recepção. O objeto no filme As Horas, baseado na obra Mrs. Dalloway de
Virginia Woolf, é a trama do próprio eu, que se oferece ao id como objeto de
amor. Esta parece ser a trilha na qual as três protagonistas tecem a trama mais
que perfeita do gênero feminino. Nesta linha de pensamento, o objeto da
escrita em Virginia pode ser considerado uma oferenda, um dom, um sacrifício
aos deuses, produto obtido através do gozo feminino, da dor e da angústia
existencial que a protagonista vive e reproduz em suas personagens.
Junto a Eros amor/vida , a “pulsão de morte” Thanatos
se expressa por meio da “pulsão de agressão”, da hostilidade de uns contra
todos. Essa luta é o conteúdo essencial da vida. A criação literária de Virginia
Woolf está indissoluvelmente ligada a esse aspecto destrutivo. através da
morte é possível criar. A sublimação em Virginia é a forma que esta tem de dar
conta de seu mal-estar frente à contradição do pulsional que é contraditório de
por si, e a obrigatoriedade normativa que lhe impõe a cultura. O objeto original
falta para ela, e aquele que ocupa seu lugar; é substituível, há ausência
sempre renovada. Amor e morte são dois sentimentos universais. Mas Virginia,
como toda mulher costura sua falta, organiza sua obra ao redor do vazio, que a
religião evita e que a ciência rejeita. No entanto um objeto, na medida em que
é criado, pode representar a Coisa, ou seja, “elevar o objeto à dignidade de
Coisa”
28
. A obra de Virginia Woolf mostra organizar-se em torno do vazio da
morte do significante, na criação de um novo sentido.
28
Coisa é tudo o que existe, seja real ou imaginário; natural ou artificial; espiritual ou corporal.
22
O discurso da relação amorosa das protagonistas em Virginia
Woolf situa-se na estética dos limites. O estranho é que, em lugar de
evidenciar a linguagem direta de uma idealização simples do objeto amado em
si, no “outro” ou no mundo, a escritora vai analisar os estados dolorosos em
que o objeto se furta para Laura e Clarissa. Toda experiência amorosa neste
sentido repousa sobre o narcisismo e sua auréola de vazio, de aparência e de
impossível, o que subentende toda idealização, igualmente e essencialmente
inerente do amor. Mais do que isso, quando o consenso social pouco ou de
forma nenhuma favorece uma tal possibilidade de idealização, como se pode
observar na atualidade, fenômeno de que a crise religiosa e moral é apenas
um aspecto, essa desrealização subjacente ao “idealismo amoroso” aparece
com toda a força
29
.
A transposição para a linguagem dessa idealização, a mais
próxima do recalque originário, que é a experiência amorosa, supõe que a
escrita e a escritora Virginia Woolf investem em primeiro lugar na linguagem,
enquanto objeto de escolha: lugar de excesso e de absurdo; de êxtase e de
morte. Esta nomeação do amor, que vai sublinhar a enunciação mais do que o
enunciado Virginia: “Eu preciso dizer da maneira mais próxima do gênero
daquilo que eu vivo com o “outro” , mobiliza necessariamente não a estrutura
narcisista, mas aquilo que nos pareceu ser uma economia narcisista. A palavra
amorosa, que observamos em Virginia em estado de incerteza e de contenção
metafórica, revela a permanência dessa economia narcisista, inclusive na
29
Idealismo é a filosofia que sustenta que a natureza do pensamento tem como função a
elaboração de representações, preparando com isso a reabilitação dos fenômenos mentais pelo
construtivismo e cognitivismo. Mais do que pela psicologia, o amor foi descrito pela literatura nas
suas variantes narcisista, filial, parental, heterossexual e homossexual, na sua intensidade
paixão violenta, breve encontro nos seus processos e nos seus efeitos (DORON e PAROT,
1998:55).
22
experiência amorosa que não ousa dizer senão superficialmente, que não se
aventura á procura de uma lógica aquém do espelho em que os amantes se
fascinam. Porque disse assim a verdade angustiante, mas também instintiva do
amor, essa escrita nos atrai. Tornamo-nos seus leitores, assim como Laura,
nos intervalos de nossos próprios amores, quando somos capazes de suportar
uma visão sua menos fílmica, mas fundamental: aquela que forçosamente não
podemos trocar com nossos parceiros, mas de que nossos sonhos, angústias
e gozos são testemunha.
O tempo é um referencial e a metáfora da mulher. Tal
deslocamento de sentido afeta a linguagem quando o sujeito e o objeto da
enunciação confundem as suas fronteiras. No entanto, buscamos a
inteligibilidade dessa metáfora ampliada na economia amorosa do sujeito da
enunciação que manifesta em metáforas o ato complexo da identificação
narcisismo e idealização.
Para Virginia, a mulher não é simples interior em contraposição
a um exterior referencial do gênero. A estrutura subjetiva, entendida como
articulação específica da relação entre a mulher falante e o Outro, determina a
posição mesma da realidade. Dentro dessa perspectiva, a ontologia subordina-
se à estrutura significante do romance na qual se apóia a mulher na sua
transferência para o Outro. Nesse sentido, o suporte último da metáfora é um
ser em ato. A metáfora da mulher transmite “o movimento e a vida”; ora, o “ato
é movimento”, assim como o cinema. A proposição da escritora, “ser em ato”
não poderia ser senão para uma mulher um contato simbólico, ou melhor,
“mediador”, isto é, em movimento, em transferência para um “outro”. A mulher
em ato se dá na experiência subjetiva. Já não é mais a física, é a subjetividade
22
“falante” da mulher que Virginia Woolf nos propõe como uma questão chave
sobre o gênero feminino: o que é um mover-se? O que é uma inovação?
A experiência amorosa se manifesta na mulher como dinâmica
da crise e da renovação subjetiva e seu correlato lingüístico, o metafórico,
parece estar, deste ponto de vista, no centro de um debate essencial: o
feminino. A univocidade dos signos passa por uma equivocidade e se resolve
em Virginia em uma conotação mais ou menos indecisa quando a mulher da
enunciação, em transferência amor pelo “outro”, transpõe a mesma
operação de identificação, de transformação, para unidades de linguagem:
para os signos.
O efeito desta operação reside na ambigüidade da referência.
A unidade significante o signo , neste caso entendido como o gênero, abre-
se até seus componentes pulsionais e sensitivos metáfora sinestésica –,
enquanto a mulher, no estado de transferência amorosa, inflama-se da
sensação à idealização.
Desta forma, a literatura aparece como o lugar privilegiado
para o cinema, em que o sentido se constitui e se destrói, eclipsa-se quando se
poderia pensar que se renova. É esse o efeito da metáfora. A experiência
literária revela-se como uma experiência essencialmente amorosa, capaz de
desestabilizar o meio na sua identificação com “o outro”. Rival nesse ponto
com a teologia, que no mesmo terreno consolidou o amor como fé, subjugando
assim pelo absoluto o momento crítico que o amor comporta, a literatura é
hoje, a um tempo, fonte de renovação “mística” na medida em que cria
novos espaços amorosos e negação intrínseca da teologia, na medida em
que a única que a literatura veicula é a garantia de sua própria
22
“performance” como autoria suprema, quando mais a responsabilidade do
cinema de divulgar esses princípios da enunciação imagética. Amante da letra
escrita na espiral de seu próprio corpo, Virginia Woolf protagoniza no filme As
Horas a saga da mulher que inaugura, no estudo de seu gênero, uma nova
estética da errância como um “fluir livre da consciência”.
A vinda à cena de Virginia Woolf é uma amostra do que a
relação consangüínea entre literatura e cinema é capaz de nos proporcionar
como experiência estética de recepção. Lembremos que as origens do cinema
estão no drama e na literatura ação e contemplação, respectivamente.
Compreendemos por esse tipo de experiências como uma escritora artista –,
tecelã de palavras, forma ao vazio demarcado pelos objetos de desejo que
orbitam a imaginação em uma constelação de imagens e sentimentos. Por
isso, não existe objeto mais causa do desejo que o olhar real na experiência
audiovisual do cinema.
O real tem um papel crucial na confluência literatura e cinema,
é o real da protagonista que circula de forma latente em todo o filme como um
vazio inatingível, sem presença, pura vacuidade. A esse lugar da subjetividade
comparece a noção de sublimação e de gozo sexual; anteriormente revisadas,
a propósito da errância psíquica do objeto “a”, chamado por Lacan, objeto
causa do desejo que na sublimação resvala pelas paredes internas do
“vacúolo” vácuo ou vazio , neologismo usado por Jacques Lacan nos seus
Escritos ([1968]1998).
A relação da sublimação com o gozo, pois é disto que se
trata, que a sublimação é gozo sexual, pode ser
explicado pelo que eu chamarei literalmente anatomia do
22
vacúolo (...) O objeto a desempenha este papel em relação
ao vacúolo. Dito de outra maneira é ele que roça das Ding
pelo interior. É o que faz o mérito essencial de tudo o que se
chama obra de arte (LACAN, 1968 APUD MACHADO,
1993:71).
A sublimação é na psicanálise pelo visto uma modalidade de
investimento pulsional em que o objeto de gozo sexual reveste o vazio,
passando-se daí para outra “dimensão”: o sublime. A sublimação requer assim
um ato, é o fazer de uma determinada maneira ou um “saber-fazer” e o objeto
feito é fruto de uma autoria um fazer com arte e maestria. A partir de um
traço indicial do olhar na interpretação da personagem Virginia, pode-se
penetrar nos meandros da subjetividade da autora, que no processo de criação
literária dá vida a suas personagens como se estas fossem uma extensão de si
mesma e uma forma de afastar a solidão e de aliviar sua angústia, aquilo que
representa no seu corpo a passagem real do tempo. O real é na psicanálise
método clarividente para falar da subjetividade; o vazio central ocupado pelo
objeto impossível de ser reencontrado. Esse objeto impossível com o qual
Virginia Woolf se entretém nos seus devaneios. Freud chama de das Ding, a
Coisa inacessível que coincide com a própria falta na protagonista “logo,
impossível”. Na nossa leitura, a Coisa significa tudo que não é, tudo que não
está, mas que permanece lá, na dialética ausência–presença, distância–
proximidade, realidade–ficção.
Desta forma, pensamos o cinema como a construção de um
olhar, dando a este o estatuto de objeto sublime, embora nem todo filme ou
livro faça parte desta ordem. O objeto sublime é resultado de um ato
sublimatório do artista de Virginia Woolf que ao tocar as imagens ou as
22
palavras com seu olhar ou com sua pluma faz como o oleiro ao modelar o
barro, modela a matéria. Nesse ato a matéria torna-se significante. O que é
vazio, o real, a Coisa, fica transformado em uma coisa de sua autoria; por
exemplo, Virginia que o papel é um espaço a preencher, um mundo para
criar, um vazio encantado aberto para si. Para a escritora esse vazio fascinante
é morado para o objeto sublime a mulher –, objeto revestido de sua própria
fantasia.
O filme As Horas não é apenas “um exemplo” sensível de
criação como vazio inatingível. Recorrer a ele é uma maneira de descobrirmos
ligações novas no ponto em que se reconstrói o “olhar feminino”. É a mulher
que ocupa o lugar central no filme, nesse ponto exerce a função de tela na qual
se descortinam os acontecimentos do cotidiano das protagonistas, em um
desfile de metáforas sucessivas encarnadas por elas, cada uma delas: artista-
escritora; e-esposa; amiga-amante. Isto nos faz pensar que o olhar
visionário de Virginia se projeta no tempo. Através dessas metáforas, ela vai
dando forma aos poucos a seu espaço vazio em torno do qual faz girar o
tempo de As Horas. O filme é cheio de antinomias: tradicional–moderno, vida–
morte, sanidade–loucura, levando a(o) receptora(r) á experiência de
“estranhamento”, ao desconhecido muito conhecido ou à “inquietante
estranheza”
30
.
O paradoxo do sublime em As Horas é encarnado pelo objeto
feminino representado pelo protagonismo da autora/escritora Virginia a
mulher. Podemos identificar nela, em Laura e em Clarissa a mulher elevada à
30
Com o termo “Unheimliche” a inquietante estranheza, Freud, referindo-se a obras literárias,
em particular ao “Homem de Areia” extraído dos contos de Hoffmann, descreve um sentimento
de angústia provocado pela perda do sentimento de familiaridade quando se apresenta como real
algo até então considerado fantástico. Esse sentimento resultaria do fato de a situação presente
despertar formações psíquicas da infância sentimentos, fantasias, crenças, etc., recalcadas
ou ultrapassadas (DROGUETT, 2004:42)
22
dignidade da Coisa, que como objeto sublime é fascinante e inatingível: na
fantasia ela é bela e inacessível; na realidade, torna-se banal. Nesse
movimento de desidealização, desfaz-se o objeto sublime, reduzindo-o a seu
estatuto de nada. Ele restabelece a dimensão da fantasia em uma associação,
por vezes lúcida, do objeto sublime com o nada, encontrando um novo sentido.
Cunningham e Daldry tratam o delírio de Virginia como uma
metáfora. Com isto, indicam o que Lacan ensina sobre a função da “metáfora
delirante” na psicose, uma forma de dizer o que é da ordem do rejeitado, do
“foracluído”, do inassimilável ao simbólico que retorna no real. Indica-se no
filme uma diferença entre a loucura e a literatura: a louca fica imersa, afundada
na sua melancolia e angústia, enquanto a escritora pode se desafogar, saindo
do fundo de si, transformando a Coisa em signo protagonismo feminino, via
significantes Laura e Clarissa
31
. O vazio ocupado pela “leitura”, objeto
fantástico por excelência é também um signo, uma convenção lingüística que
muito se aproxima da Coisa. A ilusão criada por ela é uma construção
significante de Virginia Woolf, Michael Cunningham e Stephen Daldry. A
mulher narrada e projetada na tela não pode ser alcançada. Ela encarna
aquela presença muda e inerte da Coisa terrificante: ponto de mira, visada do
inatingível.
A leitura impulsiona também um momento interpretativo por
parte da(do) espectadora(r) da ordem do simbólico na cena em que Laura
Mrs. Dalloway no quarto do hotel. Mostra-se a leitora capturada e obrigada a
responder às mais insólitas perguntas sobre a “alma feminina” efeito
31
Com relação ao termo entre aspas, “foracluído”, ele provém da noção de foraclusão usada por
Lacan para referir-se à especificidade das psicoses, caracterizadas pela rejeição primordial de
um significante fundamental o falo, por exemplo para fora do universo simbólico do sujeito.
Este mecanismo primário de separação e de rejeição da percepção insuportável corresponde aos
termos desenvestimento radical da representação inconsciente ou perda da realidade
fenômeno alucinatório (DORON e PAROT, 1998:351).
22
metalingüístico no qual o cinema fala dos “efeitos de sentido” que sua matriz
ficcional literária é capaz de produzir. Tal é o objeto sublime “o ato de leitura”
é tão fascinante quanto assustador na experiência de Laura e de Clarissa.
Como dissemos, a sublimação eleva o objeto à dignidade de Coisa. O que o
filme As Horas nos ensina no processo de criação do cinema é essa
possibilidade no surgimento da literatura como objeto de arte.
Mas, voltemos ao olhar da protagonista Virginia Woolf em torno
do “ponto infinito da morte” como estruturante do olhar. Existem dois sentidos
temporais da morte: de acordo com Lacan, a morte como final da vida e a
“pulsão de morte”, sublinhada por Freud como condição de vida, da existência
do sujeito. A “pulsão de morte” significa o que não cessa de repetir-se,
levando-nos enquanto vivemos a falar, a simbolizar e a repetir, seja nas
criações, seja nos sintomas
32
. A “pulsão de morte” é, em termos de
subjetividade, vital. A presença desta “segunda” morte na criação literária de
Virginia, a referente à “pulsão de morte”, permite o desaparecimento da autora
na obra criada desprendida. Suspensa em um ponto do tempo, que para ela
mesma é enigmático, (re)cria o inexorável, mas não sabe disso no ímpeto febril
de seu ato de criação. Virginia Woolf (re)cria o protagonismo da mulher para a
morte, sendo redimido na receptividade do gênero.
A escritora Virginia Woolf está, pois, condenada a repetir,
significando uma suspensão da morte. Para Maurice Blanchot “aquele que
busca esclarecer a repetição pela morte é também levado a quebrar a morte
como possibilidade, a encerrá-la no encantamento da repetição” (BLANCHOT,
1959 APUD GUIMARÃES, 1993:80). Pela repetição a escritora contorna o
32
Em princípio, o sintoma é um signo inscrito na realidade objetiva do corpo visível a aquilo a
que ele remete, podendo ser uma referência ao registro subjetivo do inconsciente – oculto.
22
vazio sempre presente em toda criação artística, fazendo este contorno
recomeçar outra vez, acontecer de novo, ainda que não tenha de fato nunca
ocorrido uma primeira vez. È a busca daquilo que nunca teve começo,
presente na sublimação.
Afirma Octavio Paz: “o poema é uma máscara que oculta o
vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana! (...) uma tela,
uma escultura, uma dança são, à sua maneira, poemas “(PAZ, 1982:16). O
filme As Horas também o é, um poema sobre o amor feminino. Slavoj Zizek
identifica neste filme a estrutura da intersubjetividade feminina, “funcionando na
ausência da Coisa, na medida em que esta estrutura gira no real em forma
de espiral , e o objeto encarna o vazio, em torno do que se articula o desejo
(ZIZEK, 1998:85)”. Blanchot, recentemente citado, também identifica este
ponto obscuro, ele é “... uma mancha cega que o olhar ignora, uma ilha de
ausência no seio da visão, eis a finalidade da busca e o lugar, a aposta da
intriga” (BLANCHOT, 1959 APUD GUIMARÃES, IBIDEM).
Por fim, o objeto invisível do olhar na ficção de Virginia indica o
objeto definitivamente perdido estudado pela psicanálise: objeto impossível de
ser reencontrado, mas que demanda a organização do jogo das
representações literárias e a construção das personagens nos cenários do
filme As Horas. Esse objeto, causa do “tempo de errância da mulher”, mostra
três vertentes do objeto de desejo: o real da própria Virginia como a dimensão
impossível do Outro idealizado, o simbólico de Laura recuperado pela marca
invisível do significante da leitura, e Clarissa, o imaginário do amor feito de
pura fantasia.
22
3. Laura - abandono, culpa e ressentimento
Por meio da personagem Laura Brown conhecemos, na trama
ficcional de As Horas, os tormentos voluptuosos da histeria construída pela
autora Virginia Woolf, também protagonista
33
. A histeria é um estado mental no
qual se encontra passagem para a conversão, de um gozo inconsciente
provocado pelo corpo e no corpo. Esse estado, em que o corpo da protagonista
é excessivamente erotizado, podemos observá-lo na cena em que se isola para
ler o romance Mrs.. Dalloway, descalça e deitada na cama. Com a mão
esquerda sustenta o livro, com a direita se acaricia sua insipiente barriga e, na
medida em que as cenas se sucedem, Laura intensifica esse movimento,
dando ao seu corpo a possibilidade de somatizar a fantasia contida no livro que
lê nesse instante.
De reivindicação em reivindicação, de afirmação em afirmação,
a protagonista vai até o “fracasso total” que a deixa “indiferente” ante seu
mundo, embora dramaticamente angustiada. O que não a poupa do sintoma
33
Virginia Woolf, a autora na sua vida pessoal e real, considerou a morte de sua e como
traição e abandono; não conseguindo suportar essa falta, passou por uma de suas maiores
crises de depressão, tendo que ser internada, pois havia atentado contra sua própria vida. Na
obra da autora, a água simboliza a procura da mãe perdida, sempre passível de ser reencontrada
a fim de negar e anular a separação. Este é o tema de Passeio ao Farol (1927), em que o mar
mortal atrai as personagens. Nessa obra, a presença da e mantém-se depois de seu
desaparecimento e a sensação de vazio faz eco à incapacidade de pensá-la, de viver
internamente a infância feliz. Somente depois de escrever esse livro a autora inglesa conseguiu
livrar-se da obsessão pela mãe, o ouviu mais sua voz e de deixá-lo em paz, apesar de
carregar seu fantasma até o momento em que se afoga, na tentativa de reencontrá-la
(MANNONI, 1999: 68).
22
em virtude do qual podemos observar, a asfixia, que aparece no momento
climático em que lê e o quarto do hotel começa a se inundar pelas águas do rio
no qual a própria Virginia havia se afogado. Um sintoma consiste na relação
entre algo que se mostra signo e aquilo a que ele remete. O sintoma não
assume seu valor senão na lógica em que se inscreve e, tratando-se da ficção
literária criada por Virginia Woolf, o sintoma de Laura é a angústia que lhe
provoca não saber o destino de sua vida, em mãos de sua criadora.
A história de Laura não é comum, ela abandona Richard e seu
marido, perde-se a seguir no tempo do filme, até reaparecer no final, após a
morte do filho. Essa “ausência real” de Laura leva Richard, o personagem mais
angustiado, às últimas conseqüências. A preocupação inicial da protagonista
no filme torna-a “sensível, amável e gentil”, mas sua relação íntima com a
“leitura” a transforma, ela entra em um estado de devaneio, fantasia e gozo
permanente. Esse gozo contínuo lhe permite nada perder, nem de sua
estrutura familiar, nem de suas gratificações, mas substitui essa completude
sufocante do lar por sua “suposta” liberdade. Laura se deixa levar pelas novas
sensações perceptivas que lhe propicia o ato da leitura, mostrando-se a partir
dessa experiência “indiferente” em relação a seu passado.
Desse vazio nuclear que Laura delineia a partir desse instante,
talvez de um modo direito demais, ela não extrai dessa experiência objeto
algum com que se medir, se confrontar e projetar na realidade. O que é para
Laura uma objeção sua função de mãe protetora para Richard resulta
inanidade pura, simples, agitada, febril e na procura impossível de um
“verdadeiro amor” e de sua “verdadeira identidade”. De que lógica Laura
predestina a seu filho Richard a ser tima? Ela não se dá conta senão até
22
quando a filha de Clarissa aparece ante seus olhos como uma chance de
redenção.
A protagonista vive a partir daí em um espaço sem fronteiras,
pontuado temporariamente pelos sintomas da falta de ar, de limites, de
barreiras, de respaldo por parte da autora e do gozo dos seus devaneios,
fantasias e desejos com a “leitura”. Em relação a esse deslocamento de Laura
para o interior da ficção, produzido pela identificação primária com a autora,
isso nos permite inferir a existência de um Outro potencialmente simbólico.
Pois se Laura transfere Virginia Woolf para o lugar do “pai imaginário”, uma vez
que este garante o ingresso na linguagem e se contrapõe à potencialidade
fóbica e psicótica de sua histeria fusional, a protagonista chega ali com as
armas da representação “a leitura”, mas sem a bagagem da pulsão do
sentir na realidade como mulher.
O vazio da ausência materna de Laura na vida de Richard
significa a falta desse ser que satisfaz as necessidades mais elementares e
referenciais de um ser humano, e que não poderia deixar outra marca senão a
de um “não-ser”. Essa mãe não tem o contorno de um objeto ideal, mas o de
uma “estranha”, “ausente” e “indiferente” em relação a seu filho, inclusive antes
de tornar-se um objeto conflituoso de identificação projetiva no
homossexualismo de Richard e na causa de sua morte. Isto pode ser
observado de modo dramático na cena em que este, contemplando a imagem
de Laura no retrato fotográfico, sozinha a mãe sem desejo pelo Outro
vestida de noiva, como se isso representasse para ele, na sua fantasia
inconsciente de menino - infante, ser o único e verdadeiro homem de sua mãe.
22
Por isso, o tipo de histeria que Laura vive como um conflito
encontra seu Eros não nos homens e sim nas mulheres, o que revela o grau de
dificuldade desta em escolher ou afeiçoar-se a um objeto amoroso masculino.
Pai imaginário não existe para a protagonista, nem para nenhuma das
mulheres que sofrem deste tipo de sintoma
34
. Assim, esse pai só pode surgir do
vazio e da inconsistência da mãe imaginária, como um objeto susceptível de
amor e ódio ao mesmo tempo e como um objeto erótico forçosamente feito à
imagem da mãe. O que se pode observar neste haurir narcisista de Laura a
mãe protagonista é uma das condições da violência próprias às identificações
projetivas na estrutura narcisista em questão. “Mais acentuadas nas mulheres,
essas particularidades me parecem esclarecer a paranóia feminina que
espreita do fundo de inúmeras histerias” afirma Julia Kristeva em Histórias de
Amor (1989:75)
35
, dando-nos a noção de que a histeria se constitui em uma
estrutura psíquica que tem como base, o infantilismo da sexualidade - sempre
traumática e das fantasias de desejo edipiano incesto ou parricídio cujos
sintomas são o retorno do recalcado (KAUFMANN, 1996:248)
36
.
34
Também chamado de “sintoma de conversão”, a histeria representa algo que tem a conotação
temporal de chegar ao mesmo tempo, em virtude de uma relação necessária de causa e efeito.
Para Freud, a histeria está ligada radicalmente com a angústia. A descoberta freudiana apóia-se
essencialmente na noção de inconsciente e é por isso que a sexualidade infantil entra em jogo.
Com Breuer, Freud descobre que há um vínculo simbólico entre o sintoma sotico e sua causa,
isto é, o traumatismo de ordem psíquica. Trata-se de algum afeto penoso que, provocado por um
ou vários acontecimentos, persistiu inalterado por não ter encontrado sua solução em razão do
recalque. Portanto, o histérico sofre de reminiscências inconscientes, ligadas a um afeto
insuportável (KAUFMANN, OP. CIT: 247).
35
A paranóia na lógica psicanalítica está relacionada com o delírio paranóico, um valor de defesa
contra a homossexualidade de acordo com Freud. Essa modalidade defensiva seria
caracterizada por uma denegação rejeição de uma parte da realidade e por uma projeção
atribuição ao outro de seus próprios sentimentos, não reconhecidos como seus (DORON e
PAROT, 1998:571).
36
Mecanismo fundamental de defesa, inicialmente descrito por Freud em relação à histeria e em
conformidade com a sua teoria da sedução, é a operação pela qual o sujeito rejeita ou conserva
no inconsciente pensamentos, imagens ou lembranças ligados à sexualidade (DORON e
PAROT, 1998:649).
22
Ao acariciar-se a barriga na cena do quarto do hotel, Laura
fornece a seu próprio corpo como objeto todas as carícias que costumam ser
fornecidas ao corpo de um objeto sexual auto-erotismo. Esse estado em que
o eu retém junto de si a libido chama-se “narcisismo”
37
. Freud formula a
hipótese de que no “narcisismo” não exista, no início, uma unidade comparável
ao eu. O eu, portanto, tem que se desenvolver, sendo fundamentais para isso
as pulsões auto-eróticas. Se a libidinização do objeto de amor a bebê que
Laura espera, manifesto na sua incipiente barriga é um desdobramento da
libidinização do eu - sujeito, essa cisão – corte - também alcança em Laura seu
objeto de desejo ou da escolha de amor. O eu cindido da protagonista pode
alcançar, assim, duas séries de objetos, uma o objeto parcial da pulsão, via
fantasma o fantasma é aquilo que de mais arcaico aparece no nosso
inconsciente em forma de imagem, ligada com freqüência à imagem matricial; a
outra, o objeto de escolha do objeto, via os fenômenos do amor que mais nos
interessa explorar, justamente por se tratar de um romance.
Ser ou não ser o objeto de amor parece ser um dilema da
mulher e da condição feminina, assim o demonstra nossa protagonista, cujo
impulso parece resignar seus objetos e carregar por isso a culpa do abandono.
Desprende-se de sua ação nas sombras que a culpa é um fenômeno insistente
37
A noção de libido teve sua origem na literatura latina de inspiração erótica Ovídio -,
transmitida dessa fonte profana para a teologia moral da Idade Média antes de ser credenciada
pelo vocabulário médico do século XIX. Na maioria de suas acepções, a libido está relacionada
com a idéia de vontade, desejo e concupiscência. De um modo geral, quer designe o cio animal
ou seu equivalente humano sob a forma de apetite sexual, a “libido” se aplicará sem
discriminação ao ardor sexual da fêmea neste caso (KAUFMANN, OP. CIT: 286). o
“narcisismo é um conceito clínico que descreve um conjunto de atitudes humanas dominadas
por dois traços principais: o desinteresse pelo mundo exterior e uma grandiosa imagem de si
mesmo (IBIDEM: 523). O termo narcisismo é empregado em psicanálise para designar um
comportamento pelo qual um indivíduo “ama a si mesmo”, em outras palavras, um
comportamento pelo qual um indivíduo trata o próprio corpo da mesma maneira como se trata o
corpo de uma pessoa amada. “Se apaixonado por si mesmo” definiria assim o narcisismo,
segundo o mito grego do jovem Narciso fascinado pela própria imagem; o termo adquire
importância a partir do momento em que indica uma fase necessária na evolução da libido, antes
que o sujeito se volte para um objeto sexual externo (IBIDEM: 347).
22
e estrutural da condição humana. E a mulher, de um modo geral, encarna a
culpa em situações similares às de Laura. O que resulta interessante na
abordagem da culpa é que, falasse menos de um sentimento de culpa e mais
de um gozo. O conceito de gozo, segundo a psicanálise, contempla com rigor o
que fica fora do âmbito do prazer. A sua acepção é mais de usufruto, de
possessão, como objeto de disputa em relação ao corpo do Outro Virginia
(IBIDEM: 221)
38
. O discurso jurídico nos permite pensar a culpa em relação aos
fatos da realidade. Existem em tal concepção fundamentos éticos e de direito
suficientes para colocar em relação a nossa protagonista com o dano realizado
e desta forma estabelecer responsabilidades. A culpa de Laura é causa do
delito - “o abandono” e não uma conseqüência deste. Por um lado, a
conseqüência moral nesse sentido é mais severa com ela, pois significa a
inevitável e fatal pressão do superego de Virginia, instância que não exerce
a função de zeloso vigilante da subjetividade senão que empurra Laura e ao
mesmo tempo a marca, e nunca fica à altura das circunstâncias que Virginia
cria para ela.
Em Laura aparecem certos traços de seu protagonismo que se
projetam nas mulheres de atualidade. O que sustenta dignamente a posição
social da protagonista é sua família, mas a sensação de fazer o que lhe
prazer pelo bem do Outro permite que surja na trama uma diversidade de
significações relacionadas com a culpa como: sentimento, sócia do superego,
parasita do mesmo, categoria onipresente, engano do outro, nome da tensão
entre o eu e o superego, necessidade de castigo e fato da existência, entre
38
O Outro ou Grande Outro remete, em primeira instância à figura materna da qual depende a
sobrevivência do sujeito. Essa figura se projeta na existência naquelas que sustentam todo o
poder e da qual se depende, vários autores comparam esse Outro com a dia, seja pela
onipresença, onipotência e onisciência que esta ostenta na contemporaneidade.
22
outras. A culpa, segundo aparece na protagonista Laura Brown do filme As
Horas é, antes de tudo, um afeto, algo que se sente. Efeito da tensão entre o
eu Laura e o superego Virginia. Mostra-se tudo isso na idéia de um
requerimento ao Outro, que se chamado a fazer algo com isso veja-se o
episódio da salvação de Laura como criatura, operada por Virginia sua
criadora.
O paradoxo que representa o sentimento inconsciente da culpa
admite como mais adequada à expressão “necessidade de castigo”, e as
vantagens são: deixar de lado a ambigüidade que persiste ao tratar um
sentimento como inconsciente, pois o necessário fortalece a idéia da culpa
como universal, o castigo reafirma o desígnio de que o sujeito nem sempre
quer seu próprio bem. Contudo, o efeito alucinatório da literatura em Mrs.
Dalloway representa para Laura a saída para o sentimento de culpabilidade
provocado pelo abandono. No entanto, o aspecto mais subjetivo inconsciente
que participa da gênese de uma alucinação é o desejo. O desejo está na
origem de toda alucinação, sendo esta uma alteração do mecanismo
perceptivo cuja imagem é produto de atividades de representação e não uma
simples réplica do real (DORON e PAROT, 1998:49). Significa, antes de tudo,
um estado de falta, de privação e de dor que favorece e suscita em
compensação, a criação de uma imagem nova Virginia cria Laura como uma
projeção de si mesma e de todas as mulheres que lidam com a função de ser
esposas e mães.
A alucinação é a resposta de Laura a um estado doloroso de
desejo. Esta noção de desejo apela de imediato para o conceito de alucinação,
ou melhor, da “realização alucinatória do desejo” efeito que provoca “a
22
leitura” sobre um leitor que consente essa experiência e se entrega a ela. O
desejo é justamente esse estado de tensão interna que pretende resolver-se
com uma resposta interna ineficaz, uma descarga que não consegue realizar-
se verdadeiramente. Pois bem, a alucinação é uma solução virtual, uma
tentativa imperfeita de resolver o desejo necessário e limitativo de todo amor. A
crença consiste em fundar, no lugar da frustração decepção que suscita
inevitavelmente toda busca amorosa um objeto ideal e absoluto que no além
garanta beatitude e desejo.
Nesse sentido, a mãe é a única função do “outro sexo” à qual
podemos atribuir uma existência, assim o demonstra a protagonista Laura
Brown. No entanto, aqui também estamos ante um paradoxo: primeiro, vivemos
em uma civilização em que a representação consagrada da feminilidade é
absorvida pela maternidade. Mas vista de perto em As Horas, essa
maternidade é o fantasma que assombra Richard. Trata-se ainda de uma mãe
arcaica e idealizada que em uma idealização da relação que nos liga a ela, i-
localizável, nos faz cair no seu narcisismo primário.
Quando o feminismo reivindica uma nova representação do
gênero, ele parece identificar a maternidade como esse equívoco idealizado e,
recusando a imagem e seus abusos, contorna a experiência do real que tal
fantasma oculta. Qual é o resultado disso? Denegação ou rejeição da
maternidade para certos setores vanguardistas do feminismo ou, então,
aceitação consciente ou não de suas representações tradicionais marcadas
pelo “ressentimento” do grande público.
O ressentimento é um afeto de forte apelo dramático no filme
As Horas. Funciona bem como elemento polarizador no cinema, e também
22
para promover a identificação da espectadora com algumas das personagens
protagonistas Laura em particular vistas como vitimizadas pelas
circunstâncias ou principalmente pelos “outros”. A personagem ressentida
Laura/Richard; mãe e filho costuma angariar simpatias ou compaixão; suas
queixas são repetitivas e fundamentadas, e se ela (ele) se coloca como
“perdedor(a)”, ou como alguém que ficou para trás na dinâmica das relações
sociais, isto se em relação de sua condição moral, em sua inabilidade para
jogar o jogo das conveniências e das aparências. Não é difícil entender que o
ressentimento funciona na dramaturgia, produzindo a identificação do público
com uma personagem que ocupa o lugar do sensível, do frágil, do que fracassa
não por ser o pior, mas por ser diferente do que “os outros”. A personagem
ressentida promove dois tipos de adesão por parte do público: ou a
identificação no ressentimento ou a simpatia movida pela consciência
alguém sempre de se sentir culpado pelo sofrimento, pelo seu silêncio
magoado. Por esta razão, a identificação com a protagonista Laura Brown
transforma-se em uma escolha do espectador, de um modo geral, e da
espectadora, em particular, que vive uma situação similar.
A ressentida Laura não aparenta ter uma grande consistência
psicológica que lhe credibilidade, mas tem, ela não aparece como as
grandes personagens trágicas, de consciência dividida ou atormentada pelas
más escolhas. Isso é ideal para o melodrama, ressentida nossa protagonista
não duvida de si mesma, nem pela justeza de suas escolhas. um gênio
como Virginia Woolf é capaz de criar uma personagem angustiada, dividida e
implicada consigo mesma como Laura Brown, interpretada no filme As Horas
por Julianne Moore.
22
Em que consiste esse ressentimento e como explicar o poder
de Laura em produzir adesão, empatia ou identificação com suas
espectadoras? Em linhas gerais, o ressentimento é uma conseqüência
bastante provável da recusa de implicar-se no próprio desejo, segundo explica
Maria Rita Kehl, no artigo “Desejo e Liberdade estética do ressentimento”
(2000). Ressentir-se ou, como a mesma palavra indica, insistir repetidamente
na atualização de um sentimento, é sempre se ressentir contra “o outro”.
Na origem desse sentimento, explica a autora citada, houve a
renúncia, a servidão voluntária. Laura cedeu ao “outro”, recalcou as
representações de seu desejo entre as quatro paredes de sua casa,
aprisionada por uma necessidade de liberdade. O núcleo arcaico do
ressentimento, em continuidade com o pensamento de Maria Rita, origina-se
quando da entrada do “semelhante” no campo narcisista do sujeito. A
identificação com “o outro”, a duplicação da percepção de si mesmo que se
nesse momento, impedido como disse Lacan, que o eu se reduza a sua
identidade vivida, abre para sempre no sujeito esta possibilidade de confundir
os momentos em que nega conhecer a si mesmo – “eu não sou este/ eu não fiz
isto” e aqueles em que se responsabiliza “o outro” por seus atos ou desejos
(LACAN, 1948 APUD KEHL, 2000:215).
A superação do ressentimento de Laura passa assim pela
ambivalência de “o outro sou eu”, mas, simultaneamente, “o outro é aquilo que
eu quero expulsar de mim”, de modo que o semelhante como a vizinha
desesperada na véspera de uma cirurgia passa a ocupar um outro lugar na
vida da protagonista, daí o beijo de Laura que sela essa transformação no
silêncio das palavras e na eloqüência do sentir. Como parceira das moções de
22
desejo, cúmplice na experiência de limites e na transgressão, como medida, ao
mesmo tempo, da grandeza e da insignificância de cada um. Mas o núcleo que
possibilita a descarga do eu sobre “o outro” e o “retorno” na forma de
ressentimento, está sempre a postos para funcionar em caso de necessidade,
explica a psicanalista.
Na dramaturgia, o poder identificatório do ressentimento reside,
então, na esperança que ele oferece à espectadora, de que “outro” possa ser
responsabilizado pelas conseqüências dos atos e decisões da protagonista. A
adesão ao ressentimento também pode ser movida pela consciência do
neurótico “se ele se queixa, eu devo ter dito alguma coisa errada” -, mas
baseia-se principalmente na aposta de que haja algo a ser cobrado, dos
“outros” ou do Outro, pelas conseqüências das escolhas operadas (IBIDEM:
217).
O filme As Horas traz três personagens femininas
supostamente vitimizadas em relação à sociedade em que vivem ou vingativas
no sentido de lutar por seus próprios direitos, que conduzem o fio narrativo,
ainda que sua ação é praticamente a reiteração de uma imobilidade,
promovendo nas espectadoras o gozo vicário de poder, ao mesmo tempo agir
em nome próprio e alegar uma certa irresponsabilidade, uma ilusória inocência
em relação ao desejo
39
.
A insistência, a repetição de Laura funciona à maneira de
sintoma: mantém o recalcado aquilo que ela não quer saber , sua própria
implicação no ato de abandono. A protagonista tem a clara função de mobilizar
39
O ressentimento que nasce quando a ação que importa está proibida, para uma protagonista
neste caso, converte o móvel da ação em uma “vingança imaginária”. Há assim uma passividade
no ressentimento, que não se pode confundir com imobilidade; “o ressentido parece ativo, mas
suas ações são, de fato, reações” (KEHL, 2000:218).
22
a ação em uma narrativa, mas deve-se precisar em que consiste esta ação.
Friedrich Nietzsche revertendo os conceitos da moral cristã, segundo a qual o
bem está do lado dos fracos e dos sofredores, nos surpreende ao substituir a
oposição moral entre “bom e mau”, por “bom e ruim”. “Os fortes que se
protejam, portanto dos fracos” escreve o filósofo alemão em Genealogia da
Moral (1998), “enquanto os primeiros entregam-se de peito aberto à vida, os
segundos, temerosos e servis ruminam silenciosamente a vingança”. Fazendo
uma aplicação dos conceitos discutidos por Nietzsche, na obra anteriormente
citada, podemos afirmar que o ressentimento é para o autor uma patologia que
nasce quando a ação que importa está proibida para uma mulher. A proibição
da ação pensemos no medo às conseqüências do ato de abandono , mas
também no conceito de recalcamento produz uma contrapartida, a
interiorização de Laura, resultado do trabalho das forças pulsionais que,
impedidas de esgotar-se na ação, voltam-se contra ela. O ressentimento tem,
assim, a função dramática de parecer “profundo”, “introspectivo” e
psicologicamente interessante, assim como a subjetividade de nossa
protagonista, interpretada a partir dos conteúdos manifestos do filme.
Por último, a relação de Laura com Virginia nos remete a um
texto de Paul Laurent-Assoun “Neurose e Moralidade” (1989), no qual o autor
afirma que “o ressentimento, paradoxalmente nasce quando o que é privativo
a inibição de uma ação torna-se criador”. Isto supõe para nós a inversão da
relação sujeito ação mundo: a mulher do ressentimento precisa, em termos
fisiológicos, das excitações exteriores para agir. Sua ação é, no fundo, uma
reação. Daí o caráter passivo de sua concepção de felicidade, isto é, da
expressão de si própria (LAURENT-ASSOUN, 1989:230). Seja Laura, seja
22
Virginia a ressentida com o mundo, entendido no seu aspecto repressivo -
social, elas vivem a repetição de um gozo, presas à pulsão de morte, ao invés
de consumir-se rapidamente nos variados prazeres possíveis, na dinâmica das
pulsões de vida. Estes conceitos de “pulsão de vida” e “pulsão de morte” o
tratamos a propósito da protagonista Virginia Woolf no filme, relacionando-os
com o processo de criação da autora, interpretada na trama narrativa.
A condição de opressão social das mulheres no passado
facilita imensamente a credibilidade da personagem Laura, além de nos fazer
pensar que o ressentimento tenha sido uma patologia caracteristicamente
feminina, até poucas décadas atrás. Às mulheres, desprovidas de voz própria e
de recursos para agir, restavam a vingança silenciosa, o desprezo, o ódio
“cozido no fogo lento do ressentimento”. Criado, inimigo que considera malvado
e imaginando uma vingança contra seus valores, o que faz uma mulher
ressentida é dar sentido a sua falta de forças, “o outro” é sempre culpado do
que ela não pode, do que ela não é. Sabemos, como já mencionamos no início
deste item, que a histeria foi a forma de expressão mais sintomática das
mulheres, justamente porque não encontravam a forma de se rebelar contra a
vida que não escolhiam, e sim ao contrário, que era escolhida para elas. Esta
questão das escolhas está também nitidamente retratada na cena da estação,
quando a própria Virginia reivindica esse poder de escolher no qual se funda a
ética do desejo. Enfim, o ressentimento de Laura pode ser interpretado pelo
“medo ao desejo” que percebe em si mesma, pode-se prolongar na
consciência; as forças pulsionais voltadas contra ela mesma produzem a
interiorização referida, e é em si mesma que a protagonista vai buscar a
causa de sua infelicidade. Entretanto, como Laura está impedida de perceber
22
que a causa está na renúncia ao desejo, pelo abandono de seu marido e de
seu filho, ressentida aposta na culpa.
4. Clarissa – o olhar amoroso da amiga e da amante
O amor é no limite o olhar da alma sobre as coisas invisíveis: a
contemplação desencadeia a emoção, “mas é possível experimentar emoções
mesmo com relação às coisas invisíveis”; toda alma, por assim dizer, as
experimenta, mas principalmente Clarissa Vaughan, protagonista do filme As
Horas, que do amor está apaixonada. Entendemos que a relação entre o amor
e a mulher é análoga, sendo o amor um sentimento subjetivo e a mulher um
ser objetivo a própria matéria; e tudo o que nela acreditamos ver, escarnece
de nós e nada mais é do que um fantasma, exatamente como um espelho, em
que o objeto de amor aparece em um lugar diverso daquele em que se situa.
Da mesma forma que o reflexo o amor não existe sem um espelho a
mulher ou uma superfície análoga; se a natureza da mulher é existir em uma
outra o homem, ela não mais se produz quando esta outra não mais é: ora,
tal é a natureza da imagem da mulher; é aquilo que é uma outra coisa,
22
totalmente diferente daquilo que se oferece a nossa percepção (KRISTEVA,
1989:133).
Situada no contexto contemporâneo de Nova Iorque, no ano de
2001, Clarissa contempla o acontecer de sua época na imediatez de suas
relações, a rejeição da idéia do fundamento por parte de Richard no passado
amante, no presente amigo e do “conformismo” generalizado do resto dos
personagens. Ela mesma encarna o desejo na trama ficcional, isso pode ser
observado na sua relação com Richard, filho de Laura Brown. A alma da
protagonista constitui-se, amando-o no ideal da amizade e na transcendência
de sua sexualidade
40
.
Portanto, o que é o amor para Clarissa ou para qualquer
mulher contemporânea? É a difusão luminosa, a reflexão espelhada do Um
Richard que a alma dela olha e ama. O Um, no entanto, não faz esforço
algum para amar ou ser amado, em Richard não reverberação amorosa,
nada que nos possa levar a pensar na sua generosidade, muito pelo contrário.
Para Clarissa, esse amor de Richard feliz e inebriante é a um tempo:
objeto amado, amor e amor de si porque é belo e não retira sua beleza senão
de si, e porque a traz em si o poeta. Note-se que a construção subjetiva do
amor, no filme As Horas, parte pela focalização ou identificação do objeto, pela
imagem de si de Clarissa em particular ou da mulher em geral, e pela
beleza que é sempre um dado de re-conhecimento do eu no “outro”. A mulher
representa, neste sentido, a metamorfose interiorizada da inteligência movida
pelo amor do bem e do belo. O feminismo caracterizado pela protagonista e a
40
Esta idéia da transcendência da sexualidade está relacionada com aquilo que mencionamos
sobre a ordem feminina: “não se nasce com um sexo, mas se aprende a ter uma identidade
sexuada”.
22
“neurose obsessiva” de Richard são a clivagem do enredo: mulher/homem,
dentro/fora, si mesma/ o “outro”. Isto equivale a dizer, o que corresponde nele à
existência é em Clarissa seu ser, seu olhar
41
.
A mulher é menos narcisista do que o homem, como sustenta
Sigmund Freud (1856-1939), atribuindo como característica marcante o
narcisismo ao gênero masculino e a histeria ao gênero feminino. E, se uma
mulher como Clarissa canaliza a sede insaciável de uma bela imagem de si
para o interior de suas entranhas ou para sua solidão na dor voluptuosa da
contemplação, do sonho e até mesmo da “alucinação”, eis o que constitui uma
verdadeira “revolução do narcisismo” promovida por Virginia Woolf em Mrs..
Dalloway, que no filme As Horas de Stephen Daldry aparece como uma
reivindicação contemporânea do gênero. Essa revolução nada tem de erótica,
mas é completa, delicada e, sobretudo, amorosa em Clarissa. Um olhar que se
consome nele mesmo, fusão e permuta de uma e de “outro”, nem vidente nem
visto, nem sujeito nem objeto: esse amor no feminino em que esbarram as
experiências místicas, aninha-se no corpo a “corpo” das indecisões e das
imagens anteriores ao “Estádio do Espelho”
42
. Devoração do imaginário pelo
real, emergência do imaginário sob a égide do simbólico, encetamento absoluto
41
Deste trecho devemos esclarecer, em primeiro lugar, que neurose é um modo de defesa contra
a castração, pela fixação de um argumento edipiano. Na neurose narcisista que observamos no
personagem Richard, corresponde à transferência na qual a libido é investida sobre o próprio
eu. Também vale a pena deixar claro que a castração para Freud é o conjunto de conseqüências
subjetivas, principalmente inconscientes, determinadas pela ameaça de castração, no homem, e
pela ausência do pênis, na mulher (CHEMAMA, 1995:30/141).Em segundo lugar, cabe assinalar
aqui que uma das principais características que diferencia os gêneros é a preocupação da
mulher com as questões ontológicas e do homem com as questões existenciais. As causas
podem ser infindáveis, mas estudos de antropologia comprovam que isto está ligado à natureza e
ao desenvolvimento biopsicosocial do ser humano.
42
A obra que descreve esta fase do desenvolvimento é “O Estádio do Espelho como formador da
função do Eu”, de Jacques Marie Lacan (1901-1981). Trata-se da elaboração de uma teoria que
explica a instalação do primeiro esboço do eu, que logo se constitui como eu ideal, originando
identificações secundárias. O Estádio do Espelho é o aparecimento do narcisismo primário,
narcisismo no sentido pleno do mito, pois indica a morte, morte ligada à insuficiência vital do
período no qual surge esse momento de prematuridade específica de nascimento do ser
humano, comprovada pelas fantasias do corpo fragmentado (CHEMAMA, 1995:58).
22
do ideal esse feminino de Clarissa é talvez a sublimação mais sutil da
“psicose de histeria”
43
. A sublimação, talvez seja a palavra chave que legitima a
nossa análise da subjetividade feminina no filme As Horas, a partir do princípio
de que o cinema estimula a (o) espectador (a) a identificar-se com a situação
apresentada no enredo ficcional ou com o (s) personagem (ns) que nele
aparecem, possibilitando assim a experiência estética do meio. Desta forma, “o
narcisismo”, sendo um traço da subjetividade feminina e masculina, não é
apenas a libido investida sobre o próprio corpo, como nos fez pensar a
personagem de Laura, mas como o reafirma Clarissa na sua atuação, uma
relação imaginária crucial nas interações humanas: ama-se no “outro” o que
existe nele de identificação erótica, representando toda tensão agressiva, de
acordo com O Seminário, Livro 3 de Lacan – “As Psicoses”.
Contudo, o contraponto de Clarissa Richard , compartilha
com ela o protagonismo na maior parte das cenas do filme As Horas. Para ele
não “outro” no sentido que viemos assinalando um outro diferente uma
“outra”, a não ser Laura, sua mãe, por isso, podemos pensar que a fonte de
identificação pode ser sua amiga a quem ama. Símbolo do corpo materno
que não é ela. Seja como for, essa “posse” inteiramente imaginária, não
reserva o “outro”, e particularmente ao “outro sexo”, mais que o lugar do nada –
do vazio. Pode parecer exagerado querer atribuir ao homem o papel crucial na
história da subjetividade ocidental, sobretudo, a partir de seu declínio na
ordem do simbólico que transformou a identidade em atividade especulativa.
43
A sublimação é a capacidade da pulsão sexual ou agressiva de substituir um objeto dessa
mesma natureza por um objeto não-sexual ou agressivo, carregando-o de determinados valores
e ideais sociais para o desenvolvimento intelectual e a criatividade cultural ou artística (DORON e
PAROT, 1998:729).
22
A banalidade, a demência e “sua aventura” fazem do
personagem Richard um caso limite, trágico e mortal. Enamorado de si mesmo,
nos resulta estranhamente próximo na sua puerilidade cotidiana, pois
incomoda, produzindo no espectador um “mal-estar”, um desconforto úmido e
frio com ressonâncias na atualidade. Em Richard, encontram-se os sintomas
masculinos contemporâneos mais regressivos, o infantilismo e a perversão.
Essa aventura narcisista do personagem, sua causa e seu fim é o amor sem
outro objeto a não ser sua própria imagem, um reflexo do próprio corpo no qual
leva inscritas as marcas do HIV. Um vestígio na parte idealizada que age pelo
todo. Richard apresenta-se como um melancólico, nessa melancolia reside a
ausência de objeto sexual. Para que serve neste caso o objeto? Para dar uma
existência sexual à angústia. O objeto de Richard é a própria representação do
“fantasma”, efeito do desejo arcaico e inconsciente por sua mãe, mas ele não
sabe disso e se condena à morte, para não saber, aspecto perverso e errático
do amor do protagonista por seu próprio corpo mesmo no sentido figurado,
Richard mata sua mãe em um de seus livros. Pulsão de morte e “negatividade”
são o campo semântico em que se define a identidade de Richard, melancólico
como dissemos e patético, ele não está em busca de um objeto capaz de
deter ou aliviar sua angústia.
A angústia e a dor moral de Richard manifestam-se na sua
própria carne, que sofre dessa propensão da alma homossexual ao sacrifício,
com o fim de preservar, tanto o fantasma de que existe um poder simbólico
capaz de libertar quanto seu reverso masoquista de “passividade feminina”.
Masoquismo essencial e originariamente feminino significa submissão ao “falo”,
que o homossexual conhece bem, e que pode assumir até a morte, para tornar-
22
se essa “verdadeira” mulher passiva, castrada, não fálica que sua mãe
Laura não foi
44
.
O amor de Clarissa para com Richard está sustentado,
principalmente no afeto amigo/presente e no desejo - amante/passado ,
longe de anular a falta que vai definir o amor feminino, para depois superá-lo
no cerne mesmo da violência amorosa
45
. Mas, também o amor faz mal, sejam
quais forem as razões dos conflitos: razões ligadas à natureza corporal ou à
queda do homem o suicídio de Richard é um evento importante na vida da
protagonista e um tempo catárquico do filme ao qual comparece a espectadora
que acompanha Clarissa. Incerta, apaixonada, doente ou feliz, ela identifica-se
com o afeto, e a amizade de Richard representa para ela benevolência, aquela
que quer o bem do objeto, fora de toda e qualquer consideração utilitária.
Trata-se do âmbito exclusivo do sentimento e da sensibilidade em que Clarissa
situa sua relação com o filho de Laura. E se o amor é um dos quatro afetos
como o medo, a tristeza e a alegria, a noção de afeto reveste-se também de
complexidade e ambigüidade que nos permite uma aproximação à densidade e
aos conflitos que conduzem à experiência e à concepção do amor em As
Horas. O afeto é tributário dos sentidos – isto é bem feminino – tanto quanto da
vontade, porque a mulher como ser falante, enquanto espiritual, é movida para
uma única e mesma lógica, a dos sentidos (KRISTEVA, 1989:183).
Em Clarissa, o afeto é uma noção correlata a seu desejo. A
diferença está em que o desejo evidencia neste caso a falta, enquanto o afeto,
44
O falo é o “significante do desejo”, é o sexual, o ponto eficaz da interpretação destinado a
designar, em seu conjunto, os efeitos de sentido. O falo é um operador de dissemetria vida e
morte; Eros e Thanatos - necesria ao desejo e ao gozo sexual (CHEMAMA, 1991:69).
45
Um desejo amoroso pode ser violento; a violência não é necessariamente obra da
agressividade. No entanto, do ponto do vista moral, a violência representa do ponto de vista da
superioridade, a ameaça da retirada do amor e da proteção, e o uso perverso do raciocínio, que
submete a vítima a contradições lógicas, comunicações paradoxais e cuja culpa se volta contra
ela (DORON e PAROT, 1998:782).
22
mesmo que a reconheça, privilegia o movimento em direção ao “outro” e à
atração recíproca entre os sexos
46
. No entanto, percebe-se que a protagonista
sucumbe a suas fragilidades, o que inclui por vezes a ausência de afeição,
assim o demonstram suas crises de choro e desespero na cozinha, enquanto
preparava a festa para Richard. Distinguem-se, assim, três tipos de afeição, do
ponto de vista de São Bernardo de Clairvaux (1091-1153), em Ego Affectus
Est: a afeição que vem da carne, outra que governa a razão e uma última que
estabelece a sabedoria (IBIDEM: 184). Trata-se do primeiro grau do afeto ou
amor rebelde à lei divina e orientado para as questões da ordem mundana.
A origem dos afetos é da ordem exterior e parece indicar um
componente bastante primitivo, rudimentar e essencial à ligação do sujeito com
o Outro. Na atualidade, os afetos são interditados pelo poder econômico,
político e moral que impede toda e qualquer forma de comunicação. Pelo
“outro”, esta situação em relação à origem dos afetos, é vista não como
aquisição, resultado de uma ação externa, mas como intrinsecamente
espiritual. Pathos no seu aspecto passivo; pulsão no seu caráter primitivo e
rebelde à lei, composto de desejos; amor se pensarmos no grau final, os afetos
têm um caráter purificador em Clarissa, capazes de distancia-la de Richard em
relação a sua mãe.
Para entender a complexidade dos afetos contraditórios nas
protagonistas de As Horas, admitimos junto com São Bernardo, citado por
Kristeva, que os quatro afetos podem produzir efeitos não ordenados,
confusos, patéticos e pulsionais. Não existe alma humana sem essas quatro
afeições: amor, alegria, medo e tristeza. A este cruzamento dramático das
afeições internas e externas concorre a noção de desejo. O Desejo de Deus
46
Esse movimento designa o movimento afetivo do próprio Deus.
22
(2000) que Juan Droguett assinala como “uma outra dimensão”, mostra esse
desejo enraizado no mais original dos desejos humanos que é, no limite da
subjetividade, a “voracidade”. O desejo dos sentidos, do corpo, que é, no
entanto, ordenado pela razão que lhe prevê e fixa um outro destino. Desta
forma, se o desejo de Deus enraíza-se no desejo voraz, como disse o autor
citado, é Deus também que inspira esse desejo, Deus o informa, o dirige, o
ordena, aquém e além da natureza e da queda.
Uma das cenas mais chocantes do filme é o suicídio de
Richard, representado pela queda – real, a expulsão de Richard da realidade. A
queda desta forma está relacionada em primeiro lugar com a realidade do
corpo, submetida à ação da gravidade; em segundo lugar com a morte; em
defesa de uma causa; e, em terceiro lugar, com a perda do referencial, da
posição ou do poder. O protagonista não é mais um anjo caído, que não
suportou o peso do abandono? Ou outro Lúcifer que encarou o narcisismo de
Deus?
Graças à ligação especular e originária com esse Outro Deus
para Clarissa/ a Mãe para Richard, o desejo de uma ausência desejo ávido,
total e impossível, pode ser guiado pela vontade e sabedoria em uma tentativa
de salvação ou de sentido. Contudo, essa completude pressuposta e atingida,
em primeira e última instância, comporta privação, enquanto aparência
preliminar à identificação com o Objeto ideal. Esse desejo é violento e impele a
agir com impaciência. As semelhanças e as diferenças em Clarissa, como
amante e amiga na insistência do desejo, levam-na a perder sua contenção e a
desfalecer, chorar, gemer e atormentar-se na sua tentativa de encontrar “o
outro” que nunca está. O sofrimento da protagonista, provocado pela falta
22
desse “outro”, é o desdobramento indispensável da satisfação projetada,
atingida e representada no corpo. O sofrimento condiciona assim o gozo de
Clarissa, enquanto gozo seria o estímulo de uma nova busca na qual se
misturam: espera, satisfação, frustração, tensão, dor, a perda e o luto
47
.
Diretamente ligado com o termo gozo está também o interdito feito do próprio
tecido da linguagem, onde o desejo encontra seu impacto e suas regras na
tessitura corporal. Esse lugar da linguagem é chamado por Lacan, de Grande
Outro, e todas as dificuldades na obtenção do “gozo” vêm de nossa relação
com esse grande Outro não representável. Porém, esse lugar é, com
freqüência, tomado por Deus ou por alguma figura real subjetivada
(CHEMAMA, 1995:91).
Para Clarissa, Richard encarna a figura do pai ausente, da
mesma forma que ela é a imagem da mulher de conveniências, razões,
pudores, prudência e discernimento que sua mãe poderia haver sido. Mas, o
amor puro da protagonista pode ser atingido ao preço do sacrifício, do
desejo e da felicidade pessoal. Não confundir amor, prazer e desejo parece ser
a consigna na qual o amor pressupõe um certo desenraigamento de si em
benefício da identificação ideal com o amado. Mas a insistência na carne que
resiste à idealização e ao desinteresse amoroso abre o amor para o que
escapa à consciência, ao conhecimento e à vontade por essa região que
chamamos de inconsciente. Definir a mulher na perspectiva analógica do amor
é um ato que, para além do campo teórico e filosófico que visa a subjetividade,
vai fecundar a experiência amorosa do gênero, da mesma forma que a
47
A noção de gozo refere-se às diferentes relações com a satisfação que um sujeito desejante e
falante pode experimentar no uso de um objeto desejado (CHEMAMA, 1995:90).
22
linguagem, a retórica e, sobretudo, a literatura de Mrs.. Dalloway como uma
loucura admitida no tempo de As Horas.
O desdobramento do amor na vida de Clarissa Vaughan
configura-se também no universo erótico da figura de Sally, sua “companheira”.
A homossexualidade feminina repousa neste caso na tese fundadora de uma
feminilidade primordial, que resultaria da simbiose primitiva da menina com sua
mãe. Embora, é preciso justificar a origem de um processo de identificação
masculina. Com isto, evidencia-se na mulher uma dinâmica do desejo capaz de
responder aos critérios que permitem isolar uma estrutura, correspondente
àquilo que define a especificidade no homem. Nesse sentido, o papel de
Richard é fundamental como um mediador masculino, além da dinâmica do
empreendimento fálico que se atualiza na sua função de referência o terceiro
masculino do amigo e amante. Tal referência implícita ou explícita é
constantemente convocada na medida em que Richard é supostamente
investido dos emblemas fálicos do poeta
48
. A preocupação com a conotação
fálica na relação amorosa de Clarissa e Sally manifesta-se na idéia que a
protagonista tem de assegurar o gozo, apesar da complexidade desta noção
que encontra seu rigor nas imbricações da linguagem com o desejo, este
vínculo funda um hiato radical entre homens e mulheres a diferença dos
gêneros – por isso, o gozo está marcado pela falta, e não pela plenitude. Se do
lado do gozo masculino de Richard, o significante desse hiato é o falo, do lado
do gozo feminino de Clarissa existe uma divisão entre o referencial fálico e um
gozo do Outro, na cadeia significante da linguagem do ex-sistir permitindo à
48
Nada mais emblemático do ponto de vista fálico como representação simlica que a
linguagem poética para expressar o poder sedutor de um homem por uma mulher.
22
protagonista ser a intérprete do sentido e do alcance desse semblante do gozo
feminino.
Piera Aulagnier (1990) pergunta-se pela origem da
feminilidade, no ponto em que se formula a pergunta trágica do perverso diante
da ausência do pênis materno. Determinando, assim, a castração como a
dimensão da falta que faz surgir, no primeiro plano, o objeto de desejo. A
autora circunscreve em torno desse objeto faltante o ponto de surgimento da
feminilidade, a qual seria “o nome dado, pelo sujeito do desejo, ao objeto
onde não pode ser nomeado porque faltante” (DE FREITAS, 2002:245). Este
“momento fecundo”, designado por Freud em seu estudo Sexualidade
feminina (1931), tem como conseqüência imediata sujeitar o campo da
feminilidade ao reconhecimento do “outro”.
Richard o “outro” pode oferecer deste modo a uma
mulher como Clarissa alguma segurança sobre sua feminilidade. Em outras
palavras, uma mulher jamais recebe a investidura de sua feminilidade senão do
consentimento de um homem amigo/amante, cujo único desejo basta para
lhe expressar se ela a possui ou não. A assunção da feminilidade é objeto de
uma invariável rivalidade de toda mulher em relação à outra, fortalecendo o
motivo da inveja com a qual Freud especifica a conotação desta, como uma
constante típica da estrutura feminina. Pertinentemente, Piera Aulagnier afirma
que “a feminilidade, desde seu surgimento, partilha com o pênis o privilégio de
ser o objeto de inveja por excelência” (AULAGNIER, 1967 APUD DOR,
1991:184). Pelo registro da inveja, retornamos ao viés da feminilidade, à
problemática da homossexualidade feminina e da perversão. De fato, a inveja
do pênis, metonimicamente traduzida por meio da reivindicação fálica, não
22
deveria ser para as mulheres homossexuais a expressão paradoxal de sua
inveja da feminilidade que venera junto a sua parceira. A qual reforça tanto
mais o objeto dessa cobiça homossexual, como objeto potencial da atração
oferecida ao desejo do homem.
Mulheres como Clarissa e Sally parecem, em primeiro lugar, ter
amado demais seus pais. Porém devem, anteriormente, ter amado demais a
suas mães e não ter suportado a frustração desse amor. Por motivo da
mudança de objeto de amor pré-edipiano, o pai herda a “transferência do amor”
e torna-se assim o suporte de uma identificação masculina possível. De fato, o
objeto de amor paterno não desaparece como tal, senão porque a criança
introjeta-o, apropriando-se neste momento de suas insígnias fálicas
49
.
Emblemas fálicos, em vista dos quais o discurso da mãe deixa de “destilar”
para todo lado, que o pai nunca soube explorar seus privilégios junto a ela.
Expressando-se deste modo como faltante junto a sua filha, a mãe não deixa
de revelar a impostura do pai que supostamente não soube ser, representar ou
interpretar a lei. A ambigüidade revela-se mais do que suficiente para que a
menina se identifique com o objeto dessa falta. Quando um sujeito se adorna
com as insígnias daquilo com que está se identificando, torna-se o
“significante” dessas insígnias.
Não acontece diferente na relação entre duas mulheres como
Clarissa e Sally, ambas propondo-se como objeto capaz de preencher a falta
da outra, elas reatam de um certo modo seus primeiros amores, reencontrados
inconscientemente na outra mãe faltante. Chegam a isso por elas mesmas,
49
Insígnias e emblemas são signos indiciais visíveis relacionadas com a identificação e os
vínculos de pertença do sujeito a um determinado grupo social de referência. Já o significante, é
o elemento do discurso consciente ou inconsciente que representa e determina o sujeito, os
efeitos de sentido e o papel que eles têm na economia subjetiva (CHEMAMA, 1995:198). O fálico
é significante do gozo sexual, é o ponto onde se articulam as diferenças na relação com o corpo,
com o objeto e com a linguagem.
22
representam o objeto dessa falta elas não têm , mas que podem, contudo,
dar ao outro feminino. Essa é a proeza que a mulher homossexual se esforça
por realizar e que nenhum homem–pai poderia fazer. Por mais que um homem
se apresente como uma via sexual em que a mulher se engaja, trata-se,
contudo, de perversão?
Tudo se passa preferencialmente como se a mulher
atualizasse seu investimento libidinal de modo perverso, sem jamais ter nada
para perverter. A perversão, do ponto de vista estrutural, tem sentido em
relação às perversões sexuais. Por isso, podemos concluir, no máximo, que
as mulheres atualizam singularidades que se instrumentalizam favoravelmente
com as perversões sexuais masculinas. Considerando a recusa à castração
como o traço fundamental que subentende a dinâmica das estruturas
perversas, devemos admitir que esse traço específico, como afirma Joël Dor
(1991), é completamente recessivo na economia do desejo da mulher. Se a
castração faz referência tanto à mulher quanto ao homem, ela não interpela a
mulher, senão enquanto ameaça e marca a outra que ela deseja (DOR, OP.
CIT: 186). Este é um dos privilégios da menina em relação à lei. Como outros
privilégios, perfila-se a aptidão da mulher de não se perverter, mas de perverter
sua libido: ou de modo “narcisista” como analisamos ou pela via da
“maternagem” na protagonista Clarissa, no filme As Horas, cujos
comportamentos eram os de alguém que ocupa o lugar da mãe para brindar ao
“outro”: amor, cuidado e proteção.
Por não ser fetichista, Clarissa pode ser fetichizada por
Richard, Sally e por sua filha adotiva. A mulher de um modo geral torna-se para
ela mesma seu próprio fetiche, oferecendo seu corpo ao gozo sexual de um
22
homem
50
. Contudo, a erotização do corpo fetiche é satisfatória na única
condição em que esse corpo pode ser entregue a um homem, destituído de
sua atribuição fálica e das referências à lei que ela supõe, isto é, reduzido
nesse momento, a uma pura e simples função instrumental. Quanto à
maternagem, o caráter perverso da relação com a mãe se dá por causa da
relação naturalmente privilegiada que a mãe mantém com a criança, a relação
mãe/filha subentendida pelo amor materno, engaja-se em uma tendência
perversa ao não encontrar matéria para sublimar
51
. A criança não deixa de
encontrar, nesta disponibilidade materna, o eco mais favorável à dinâmica de
seu desejo que a leva a se constituir, ela mesma, como objeto que preenche a
falta do Outro. Por mais que a mediação paterna falte ao modo de uma
complacência silenciosa, a mãe captura seu filho nas redes de uma sedução,
da qual podemos mencionar a incidência comparecimento do fantasma,
realidade psíquica de uma cena desejada, mas proibida. A sedução é um dos
três fantasmas originários: sedução, castração e cena original nos quais se
prefigura o surgimento da sexualidade, estudada como uma conduta social e
conforme os códigos culturais vigentes.
Um caso que Piera Aulagnier cita como perversão da libido, e
que vem de encontro à caracterização feita no filme de Clarissa, apóia-se no
fato de que a mulher alimenta preferentemente o fantasma de se tornar para o
“outro” amado, objeto de sua paixão. Essa atração particular que a paixão
exerce sobre a mulher, é o que lhe vai servir de porta de entrada no registro da
perversão. É em nome deste objetivo ideal através do qual a mulher quer se
50
O fetiche é um significante fálico bem masculino -, mas não real senão faltoso, podendo ser
atribuído à mãe, mas, ao mesmo tempo, enquanto reconhecida sua ausência: é esta a dimensão
de clivagem do fetiche, essa alternância da presença-ausência –sistema fundado na oposição do
mais e do menos –que caracteriza todo sistema simbólico (CHEMAMA, 1995:76).
51
Aqui a sublimação pode ser entendida como a capacidade de transformar qualquer estado da
matéria.
22
supor a única desejada, ou seja, a única a tornar-se “exigência vital” para o
desejo do “outro”, que se perverteria a dinâmica feminina ao desejo, por
exemplo, o fantasma da prostituição.
O fascínio pela prostituição deve-se à interação recíproca da
transgressão e da submissão. Quanto mais o objeto feminino é maltratado e
rejeitado, mais é investido como objeto destruidor do gozo. Deste ponto de
vista, a personagem da prostituta, que não aparece no filme, mas que nos
serve para ilustrar essa outra fase da mulher que muitos consideram “a mulher
de verdade”, aparece como aquela que chega a fazer coincidir a posição
masoquista feminina com o objeto por excelência do gozo.
De fato, a prostituição pode ocupar o lugar de objeto da falta
com a qual goza e expressa como tal, que a mulher encarna a própria prova de
sua vitória sobre a castração. Instituída em uma total submissão a todas as
exigências do parceiro, ela lhe garante fantasmaticamente que nada lhe falta,
tornando-se deste modo, a única e exclusiva satisfação do desejo do “outro”. É
através dessa representação masoquista da prostituição fantasmática de uma
mulher que o desejo se perverterá, tornando-se paixão que permite com que a
mulher se faça facilmente, em um dado momento, o instrumento adequado
para servir à perversão de um homem.
Efetivamente, por causa da relação que a mulher mantém
necessariamente com o real da ausência fálica, as manifestações perversas da
mulher podem dificilmente ser atribuídas a uma perversão sexual porque não
há na mulher perversões sexuais.
5. Adaptação, transposição e atualidade do tempo ficcional literário no
cinema
22
Neste último item, fazemos uma síntese a modo de ensaio
sobre os principais cruzamentos entre literatura e cinema que têm maior
destaque nesta dissertação. Utilizamos a forma figurada em um primeiro
momento, por sentirmos que é, justamente, a única maneira de nos colocarmos
a respeito desses pontos nodais que nos interessa ressaltar. Em um segundo
momento, faremos uma breve alusão à relação analógica entre a imagem
explorada tanto pela literatura quanto pelo cinema para, enfim, no terceiro e
último momento, concluir com uma síntese sobre a atualidade do cinema e a
mulher nas suas reivindicações de gênero, que lhe servem de referência
identificatória.
As tensões entre literatura e cinema caracterizam-se pelas
convergências e divergências na complexa relação entre estas duas óticas do
tempo no devir de suas representações e interações humanas.
No começo foi o cinema mudo, e Guillaume Apollinaire
reconhece a infinita e inusitada capacidade de representar o dinamismo da
modernidade, ou o caráter fabuloso que encarnará metade verdade, metade
sonho ; para André Breton, a chegada do cinema é como algo inerente ao
registro do surrealismo.
A partir do estudo das contradições que produz o Cinema em
contraste com as Letras, podemos interpretar as polêmicas posteriores que o
novo adiantamento técnico ou narrativo suscita, como o reconhecimento da
montagem e suas possibilidades de uso literário como meio de justaposição
das imagens, no seu estilo de contrastes e elipses, ou na grande decepção que
produz o cinema sonoro e sua tendência realista, que nega aos mesmos
surrealistas que o elogiaram, “todos os poderes mágicos que lhe haviam
22
conferido em um princípio”; daí Artaud nos falará da precoce velhice do
cinema.
O genial George Méliès será motivo da discussão, não como o
élan necessário para a passagem do cinematógrafo para o cinema,não para
dar conta do avanço com relação às produções dos irmãos Lumière, mas como
um aporte onírico ao cinema através de suas fantasias e cenografias plásticas
que parecem renegar a verdadeira como se houvesse natureza do cinema,
servidor do realismo, servo fiel da mímese. Méliès, mestre da trucagem, “um
aprendiz de feiticeiro” e mágico da transformação, tagarela as primeiras sílabas
da futura linguagem, mas serve-se ainda das formulas mágicas, não das
palavras.
O cinema, então, nos seus começos está ligado aos grandes
prestidigitadores, aos cientistas freudianos do sonho e da hipnose. Méliès
consagra-se como escritor visual através da busca propriamente
cinematográfica, da imagem e do som, da literatura e do cinema.
Na obra tridimensional de Stephen Daldry a autora Virginia
Woolf, de Mrs. Dalloway, protagonista de As Horas, é colocada em três
épocas, três mulheres, três histórias e um romance, com deslocamentos da
imagem tempo no sentido deleuziano.
Esvaziar a imagem de seu poder, da bestialidade de seu poder
é uma mulher que fala e uma mulher que olha, que obriga a espectadora a
olhar para, enfim, escutá-la. Arte do silêncio, do desvelamento da imagem que
será para sempre enganosa como uma miragem “transparência e
opacidade”. Um cinema para os ouvidos, como a literatura é uma arte do ruído,
segundo Roland Barthes.
22
Ir ao cinema para ver As Horas é ver dois filmes. Problema
situado na articulação imagem e texto. Em quase todos os filmes, um texto
atrás que especularmente guia a obra cinematográfica. Mrs. Dalloway As
Horas de Cunningham. Adaptações, textos originais, transposições de seus
próprios livros. A literatura sempre como matéria existente. Obsessiva,
determinando sua presença. Mas não adapta seus livros para reduzi-los à
película, nem é escrita que além do mais se atreve a filmar.
Mrs. Dalloway transformou-se com o devir de As Horas em
uma obra tridimensional. David Hare reescreve para o meio fílmico. Ver de
outra maneira, contar, fazer ouvir a voz do tempo. Nessa operação, o cinema
coloca outro questionamento estético e ideológico.
Paradoxo do cinema! Com a preocupação sobre o lugar da
mulher na sociedade. Personagens femininas – Virginia, Laura e Clarissa que
desejam, entre outras coisas, romper com as ataduras da função de esposa,
mãe, dona de casa e amante. O interesse de Daldry é por um cinema mais
livre, menos demarcado que o romance, cheio de convencionalismos e
tradições. A mulher a serviço do cinema com o fim de estilizar e problematizar
todo objeto visual, independentemente do contexto ficcional.
Desincronização. O tempo subjetivo de Heidegger a
Tarkovski. Dispositivo visual / sonoro audiovisual , poética da imagem,
movimento e tempo por sua vez. Segundo Jacques Aumont (2002), desde
Freud e Bataille, o olho é fálico e a orelha, na ordem do fantasmático, o lugar
de qual algo cai, assim como Richard. Woolf reabilita o espaço feminino,
reivindicando o real do tempo e deslocando o papel do olhar.
22
A adaptação de Cunningham: o cinema como excesso gozo
literário. No cinema olhar tudo. Tudo o que se pode olhar na tela. A vida
mesma. O cotidiano da escritora, da dona de casa e da editora. Os excessos
da vida. O resto de um ideal. A mulher tende a sair de si. O olhar de Virginia
opta. Entre o erotismo e a morte, para Virginia olhar. Olhar o “outro” ou entrar
na morte de olhos abertos e sonhar “sonhar de olhos abertos”. O olho como
desprendimento e prolongação. Assim é o cinema, entre o eu e o excesso,
entre o olhar e vê-lo todo. O olho no cinema como um jogo do conhecimento. O
aparelho da visão serve o conhecimento como contemplação.
Somos escravos do olho. O olho é um corpo, não é abstrato,
mas concreto, não é plano, mas profundo, em si mesmo monstruoso. O olho é
independente do organismo que o habita. Na tela esse summun, esse tudo
inaudito. O olho procura ir além de seus limites, sai ao encontro da luz na
caverna de suas órbitas; o olho busca na escuridão da sala, o resplandecer da
tela. A lógica dialética do orgasmo também transcendente entre a quietude e o
movimento. Ver é deter o movimento, até o excesso.
Como na erótica e na morte, no cinema vemos aquilo que não
pode ser contemplado, aquilo que fora da ilusão não pode olhar fixamente. O
cinema erradica o olho de sua servidão pesada. A partir do cinema, nossos
olhos já não são os mesmos.
A relação analógica entre imagem e aquilo que esta representa
se formula em relação àquilo que denominamos realidade: uma referência
externa, o mundo. Neste caso, o que procuramos ver, enquanto vinculação
literatura e cinema por meio da imagem, é o relacionado à analogia que pode
ou não se estabelecer entre ambas as formas artísticas.
22
Vale à pena lembrar que na comparação da linguagem
matéria prima da literatura com o visual imagem/ícone, índice e
símbolo/movimento e tempo , destaca-se a idéia do status analógico nesta
última, a diferença da primeira. Para Christian Metz, o arbitrário não é oposto
ao analógico senão ao motivado (“Além da analogia, a imagem” IN:
Comunicações, 1970). As Horas é uma imagem do tempo.
Trata-se de interações nas quais a analogia pode ser
considerada um ponto especialmente significativo de interpretação da imagem
no cinema. Neste sentido, as relações interdiscursivas cobram importância no
contexto, que permite a expansão do significante no filme As Horas e no qual
repousa toda e qualquer possibilidade de conhecimento.
Analogia: mulher–tempo, entre o percebido e o nomeado no
processo de transformar a diegese em imagem; o que queremos deixar de
manifesto nesta relação é que a mulher remete prioritariamente no filme ao
texto literário de Virginia Woolf, que seria a chave de interpretação de maior
alcance de As Horas, levando em consideração que se trata da filmagem de
um texto de Mrs. Dalloway.
No filme As Horas, a relação simbólica superior aparece
naquilo que ele mesmo seria, o “outro” texto apresentado; e não no
representado o referente senão na construção de figuras colocadas em
todos os elementos constitutivos da obra: personagens, cenas, desenhos das
seqüências, iluminação, montagem e naquilo que chamamos de “estratégias de
citação”, isto é, a remissão ao texto literário e Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.
Das injustiças do mundo às novas demandas do senso ético,
do caos urbano megapolitano às subjetividades de narciso zumbis , da
22
consciência de uma nova era à sua equiparação a uma “nova idade média”, o
cinema reemerge na qualidade de um grande caldeirão de composições, um
continente dos mais variados materiais que servirão de referência à mais
recente empreitada crítica da cultura.
Multiplicam-se as combinatórias, o desejo de composição de
outros campos com o cinema. É assim que, da literatura à psicanálise, da
antropologia à sociologia, da ecologia à robótica, da literatura para o cinema, e
tantas outras disciplinas, vêm se instalar no cerne dos discursos
contemporâneos na efervescência conetiva com o cinema.
Quando pensamos na premissa cinema e nos debruçamos
sobre as questões da época, tentando vislumbrar um diagnóstico, a
exemplaridade deste meio, muito mais do que ser a especificidade de um filme,
transforma-se em um recurso heurístico. Da ilusão do mundo, à qual esteve
vinculado por muito tempo, torna-se conhecimento do mundo.
A euforia frente ao cinema é dissimétrica no final dos
Oitocentos, momento de sua emergência, e no final dos Novecentos, quando
se processa uma verdadeira mutação no campo da imagem. Naquele, ao
irromper no solo visionário de técnicas que investem na ampliação dos
sentidos, máquinas sensoriais, anti-arte, devir, ele habita e circula nos espaços
informais e mal–afamados dos circos, feiras e cabarés. “Cinema inocente”,
inocente do cinema que ainda de vir. Este, ao atravessar os vários ritos de
passagem da técnica à arte, do mudo ao sonoro, do preto e branco à cor, do
movimento ao tempo, ele converte-se em autômato espiritual, psico-mecânica,
subjetividade automática, para vir compor e se integrar ao automatismo
eletrônico de um espaço informático, o qual vem dar concretude a um novo
22
regime maquínico “máquinas cerebrais”. Entre ambos os finais de século o
cinema, portanto, vai alterando de tal forma sua consistência, a sua
configuração tecno-estética, o seu regime de produção de imagem, que desde
os anos oitenta a questão ontológica “O que é o cinema?” cala-se quase por
completo.
O cinema de autor foi o último grande movimento
cinematográfico a se processar nas fronteiras de um regime maquínico
sensório do cinema, situando-se, com a complexidade de suas criações, no
limiar de um outro devir do campo imagético. Com ele o cinema consubstancia
seu privilégio de uma das mais potentes máquinas de visão deste século,
sobretudo quando pôde transformar tais máquinas de pensamento. Ou seja,
quando conseguiu articular os meios tecnológicos aos fins artísticos, dobrá-los
em função da invenção de novos modos de existência.
As reverberações disso nos textos de Gilles Deleuze não são
poucas. Tomemos uma linha central de suas elaborações, a passagem da
imagem–movimento que caracteriza o cinema clássico para a imagem–tempo
do cinema moderno, bem de encontro ao contexto de Mrs. Dalloway e de seus
posteriores desdobramentos.
A imagem-movimento é regida por um esquema sensório-
motor que possibilita aos personagens reagir frente a uma dada situação, ai
residindo a espinha dorsal de toda constituição narrativa. Tal esquema se
processa, basicamente, através da reversibilidade entre a objetiva indireta da
câmera e a subjetividade direta dos personagens. É no vaivém de ambos os
enquadramentos, no interior do filme, que uma ação vai se processar diante de
uma situação que ao final terá sua consistência transformada, quando o
22
esquema se completa e torna a se reiterar. É por essa razão que o tempo
aparece como efeito do movimento, como derivação do trabalho de montagem
que o inscreve sob a sucessão de planos (DELEUZE, 2005).
Entra-se, conforme Deleuze, no âmbito não mais de ações
sensoriomotoras possíveis, mas de situações ópticas e sonoras puras, que
liberam uma imagem direta do tempo. Aí, o modo de composição por
excelência é o de uma subjetividade indireta livre, com o qual o cinema
contemporâneo apresenta “devires mais que histórias” (DELEUZE, OP. CIT:
77). Com esse quadro que faz entrar em crise o cinema de autor,
reenquadramento da história do cinema operado pela filosofia deleuzeana,
emergência das poéticas videográficas e horizonte aberto com as imagens de
síntese, objetivou-se uma exposição panorâmica, certamente de modulações
que tanto dizem respeito à imagem cinematográfica e suas transformações,
quanto às suas correlações com um campo mais amplo da imagem atual. O
interesse é o de criar um contraste entre um rumoroso apelo dirigido ao
cinema, em um âmbito mais difuso da cultura, e uma situação de complexa e
dinâmica instabilidade por que passa o campo audiovisual nos dias de hoje.
E como fica a problemática da subjetivação, tema latente no
filme As Horas, nesses cenários de atualidade? Trata-se de um objeto cujos
contornos recentemente adquiriram relevo no pensamento, embora imerso
em tal grau de difusão, circulação, de consumação, que já não é impertinente a
pergunta sobre quanto tempo ainda irradiará inovação. Não faz muito tempo,
mas a subjetividade antes não existia e, hoje, é como se não se conseguisse
mais atinar com a sua anterior ausência. Antes existia o “sujeito”, mas não a
“subjetividade”. Ressalta-se, aqui, o quanto inflexões discursivas arrastam
22
consigo objetos cujas fixações pareciam irremovíveis. A noção de subjetividade
parece, em primeira instância, surgir de uma constelação ontológica como
essência, verdade, razão, humanismo, identidade, gênero, etc. Olhando para
trás viu-se um “retorno do sujeito”. Mas Deleuze define a subjetivação da
seguinte maneira: “A subjetivação é uma operação artística que se distingue do
saber e do poder, e não tem lugar no interior deles”; trata-se agora da
“existência não como sujeito, mas como obra de arte”
52
.
Com esse deslocamento o campo artístico ganha um relevo
antes ocupado pelo social e político, enquanto catalisadores, referentes
primeiros, de suas indagações. Seu discurso se desdobra em referenciais tais
como “estilo de vida”, “estilística da existência”, “relação a Si”, todo um campo
em relação aos “processos de subjetivação” que vêm se potencializar no
campo da arte, em um querer artista, na constituição de uma “estética da
existência”, da “vida como uma obra de arte”. Nietzsche via nisso, desde os
gregos, a manifestação mais alta de uma vontade de potência.
Para Foucault, no entanto, não se trata de uma diluição da arte
na vida, mas da questão: se durante séculos se pôde produzir arte com os
materiais mais díspares disponíveis ao ser humano, porque não considerar e
transmutar as matérias existenciais em elementos estéticos, construir novas
possibilidades de vida, processos de subjetivação, estilos de vida, como estilos
de arte? (FOUCAULT, 1985)
53
. Tudo isso não tem mais nada a ver com a
interioridade e identidade de um sujeito, de uma pessoa, com a pressão de
normas obrigatórias de uma moral constringente. São modos de existência
52
Confrontar DELEUZE, Gilles. “A Vida como Obra de Arte IN: TEXEIRA, Francisco. Entre o
Cristal e a Fumaça: a condição social contemporânea. Cadernos de Subjetividade. São Paulo,
4, 1996, p. 249 – 268.
53
Ver FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro:
Graal, 1984. E, História da Sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
22
individuados, particulares e coletivos, que não cessam de se recriar “segundo
regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como de furtar ao saber,
mesmo se o saber tentasse penetrá-los e o poder tentsse apropriar-se
deles” (DELEUZE, 1990:116)
54
.
Em resumo, o estado atual da imagem, quando se trata de
inseri-la nestas tendências artísticas contemporâneas, oferece as seguintes
condições para pensar a subjetividade a partir do cinema e de um filme como
As Horas, que nos serviu de suporte para este trabalho. Para efeitos de uma
enunciação breve e esquemática, apresentamos um diagrama das imagens
experimentais, em cujas linhas os processos de subjetivação evidenciam os
seguintes traços:
1) Ênfase na dimensão da ação, da atividade, do ato,
portanto, da transformação de um virtual em atual, de uma
virtualização, campo de invenção de problemas ou, em outros
termos, passagem de um estado de invenção a um ato experimental.
2) Colocação em primeiro plano, assim, do que é do
campo das sensações, das intensidades, das energias de ruptura,
ou seja, das disposições de natureza decididamente poiéticas, que
visam ao ato de criação, de fabricação, de fabricação em si das
imagens.
3) Suspensão do que é de natureza reprodutiva,
representativa, referencial, do que remete, primordialmente, à
celebração entre imagem e realidade, seu mimetismo; com a
transformação da função de registro da câmera, com a ascensão de
54
O artigo na obra Imagem – Movimento chama-se “Rachar as coisas, rachar as Palavras”.
22
uma processualidade em que as imagens se nutrem de outras
imagens, é a obra expressiva, que surpreende, inova, inventa, que
irrompe nos interstícios de um espaço–tempo, não sem produzir
rombos em uma configuração visual habitual; daí o tremido, o
desfocado, o anamórfico, como traços.
4) Por último, à guisa de uma definição aproximativa,
destacamos uma comentada. O cinema experimental ou de
vanguarda tem em comum a vontade de escapar por todos os meios
possíveis de três coisas: da onipotência fotográfica; do realismo da
representação; do regime de crença na narrativa.
Portanto, experimentar, seja no âmbito da produção de
subjetividade, da invenção de processos de subjetivação, seja no da criação
artística, ou em ambos, na medida em que convergem para uma
indiscernibilidade, é, para o cinema, partir de uma tela vazia. Este é o ponto de
encontro com o protagonismo de Virginia Woolf em As Horas que nos
interessa destacar, esse vazio como lugar de produção artística.
Dos anos oitenta para cá, não se pode deixar de constatar um
privilégio ascendente do cinema. Neste período é publicado o romance As
Horas, de Michael Cunningham. E, para ser abrangentes, o prestígio da arte e
da sensibilidade artística de um modo geral, do campo imagético em particular,
com relevância peculiar do cinema. Um dos modos de se visualizar esse
inesperado interesse é observando-se o quanto o cinema passou a ser
22
solicitado como referência de tudo quanto é assunto cultural, como a
emergência do polêmico tema do gênero feminino.
A refinada percepção de Stephen Daldry sobre esse estado e o
devir do cinema é bem particular e rica em desdobramentos. É o que se pode
chamar de um dissenso em relação ao que, habitualmente, um espaço
midiático põe em circulação. Fala do artista que vem revelar o quão singular
pode ser sua relação com o meio audiovisual do qual parte sua criação. Mas
em um âmbito mais complexo e menos específico da cultura, as ressonâncias
são de outra ordem. A questão do gênero, anteriormente mencionada, concorre
como um antecedente de atualidade que coloca a mulher em um lugar de
destaque na sociedade. Desafio para a literatura e o cinema, de representar
nas suas produções a dimensão subjetiva que caracteriza o discurso deste
grupo social de referência.
A reflexão sobre cinema centrada na militância e no
pensamento feminista irá tornar-se, nos anos 80 e 90, uma das principais
correntes da teoria do cinema. Dentro das universidades americanas,
impulsionadas pela ascensão dos “estudos culturais” Cultural Studies
, as
feministas desenvolvem, a partir dos anos 70, um trabalho importante em teoria
do cinema, questionando em particular a representação da mulher no
classicismo hollywoodiano e os mecanismos de identificação receptiva que
este cinema supõe. A partir de meados dos anos 80 as preocupações mais
teóricas e gerais, que marcam o primeiro feminismo, dão lugar a análises
circunstanciadas, marcadas por pesquisas históricas e por um diálogo ativo
com a produção audiovisual feminista engajada. O texto de Laura Mulvey
Visual and Other Pleasures (1983) “Prazer Visual e Cinema Narrativo” IN:
22
XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983
55
–,
deve ser entendido neste contexto: ainda bastante próximo do universo pós-
estruturalista francês, mas marcando de modo nítido os contornos que a
crítica feminista teria nas próximas décadas.
Mulvey introduz um primeiro recorte limitador no conceitual
psicanalítico que vinha sendo usado para trabalhar o cinema: a mulher. Irá
analisar o prazer que o espectador obtém através do olhar como marcado pela
questão do gênero. O prazer do olhar, enquanto prazer escopofílico,
inicialmente “emerge do prazer em usar outra pessoa como objeto de
estimulação sexual através do olhar”, como libido relacionada às pulsões
sexuais. O segundo aspecto do prazer do olhar, envolvido na fruição
cinematográfica, lida com a libido do ego e “desenvolve-se em torno do
narcisismo e da constituição do ego, resultando da identificação com a imagem
vista”. Nesta contradição, clássica para a psicanálise entre libido sexual e
narcisismo do ego, Mulvey introduz a questão do gênero, através da ameaça
de castração. O olhar do espectador cinematográfico, embora agradável na
forma, pode transformar-se em motivo de angústia ao revelar o que deve estar
oculto por detrás da representação, idéia esta que encontramos em Metz
através da noção de dispositivo como fetiche da castração.
Aqui, no entanto, é a figura diegética da mulher, como
personagem para nós protagonista –, que substitui a relação:
dispositivo/aparelho psíquico. As protagonistas femininas no romance As
Horas, enquanto “representação”/imagem, personificam o paradoxo do prazer
escopofílico/narcisista, constituindo e implicando uma visão masculina. È o
55
Laura Mulvey tornou-se uma conhecida cineasta, antes de ser uma teórica militante do
feminismo.
22
conceito de castração que vai permitir a cisão do nero e qualificar
diferentemente através da diferenciação femininomasculino o prazer do
receptor–espectador obtido com a narrativa cinematográfica, dentro da tradição
clássica de Hollywood.
A atualidade do filme As Horas, que traz no seu enredo o
protagonismo feminino, nos levou a procurar na psicanálise os eixos que
sustentam a subjetividade do gênero, nas teorias do cinema o percurso destas
até chegar à atualidade, mas fica neste fim de capítulo, uma das questões mais
importantes pelas quais passa toda esta dissertação: determinar como o
receptor a espectadora identifica-se com essas estruturas de prazer que o
cinema pode oferecer a modo de sublimação catarse. O prazer visual é um
padrão originário que se na “reencenação do trauma originário” ou na “cena
original” nelas a mulher é protagonista, portanto, investigando a mulher,
desmistificando seu mistério podemos chegar próximos desse mistério ,
contrabalançado pela desvalorização, punição ou redenção do objeto culpado
caminho tipificado por Laura e pelo filme noir, ou a complexa rejeição da
“castração” que se na substituição por um objeto fetiche ou através da
transformação da figura–feminina representada em um fetiche, de modo a
tornar a mulher tranqüilizadora em vez de ameaçadora caso da
supervalorização e do culto da estrela marca mais uma vez o protagonismo
da mulher em cena.
Virginia, Laura e Clarissa são mulheres donas do olhar e da
afirmação como seres a quem se olha um espetáculo. A imagem delas é a
própria enunciação. A questão mais complexa aqui é de que modo situar a
22
espectadora feminina, que deve também realizar sua identificação fílmica, a
partir de uma narrativa moldada pelo olhar masculino. O romance Mrs.
Dalloway, de Virginia Woolf, bem como sua adaptação As Horas, de Michael
Cunningham, foi transposto e adaptado para o cinema no filme As Horas, de
Stephen Daldry; e, esse gênero, assim como o “melodrama”, originalmente
literários, foram essencialmente feitos para um público feminino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
22
O título da dissertação “As mulheres do filme As Horas
tessituras do âmbito feminino” contemplou os pressupostos de uma pesquisa
teórica, aplicada à análise de um produto cultural fílmico de notória
repercussão no meio cinematográfico. O primeiro desses pressupostos é a
imagem protagônica da mulher no filme As Horas de Stephen Daldry,
referência da forma e do conteúdo em que o gênero feminino é representado
pela mídia cinematográfica. O segundo é a noção de “tessituras” que vem para
ilustrar as duas atividades do gênero feminino com as quais se identifica a
ascensão da mulher na sociedade moderna: a escrita literária e o papel da
“leitora” no ciclo receptivo da obra de arte. O terceiro e último pressuposto do
título, refere-se aos motivos que levam as mulheres a agir de determinadas
maneiras, comumente associadas ao gênero.
Deste modo, os procedimentos metodológicos que pautaram a
pesquisa teórica foram um levantamento bibliográfico das principais fontes de
referência sobre o modernismo inglês, adaptações para o cinema, o tempo
como temática nos filmes, a recepção como prática social e a questão do
gênero como grupo social de referência. Sendo o tema das adaptações o
menos desenvolvido e a recepção do gênero um estudo especulativo, pela
origem cultural da produção e pela ausência de estudos sobre “subjetividade”
feminina. Assim, a análise do filme transformou-se no exercício mais empírico
deste trabalho.
Em vista da receptividade do filme no meio artístico e
especializado, e a obtenção do Oscar que lhe valeu o reconhecimento social,
constatamos que as razões desta notoriedade se deviam à confluência de
22
temas nele, tratando do drama da condição humana, tanto do ponto de vista da
mulher criativa, quanto do ponto de vista da mulher atormentada. A partir disso,
escolhemos reconstruir a imagem das três protagonistas: Virginia, Laura e
Clarissa. Delas, selecionamos as cenas de maior tensão dramática no romance
adaptado para a tela e, depois, decupamos cada uma delas.
Estruturamos a dissertação sob a lógica da passagem da
literatura inglesa para sua versão cinematográfica. Caracterizamos os
princípios mais elementares da linguagem audiovisual para ilustrar a cenas que
nos ajudassem a interpretar, com certo rigor, o filme como um todo, e em cada
uma de suas cenas. O processo de recepção fílmica nos levou a definir e
aplicar as categorias estéticas de poiesis ou techné, aisthesis e catarse nas
cenas selecionadas das três protagonistas. Esta última categoria sinalizou a
relevância dos estudos de gênero como estudos de recepção. Sondamos na
crítica especializada as repercussões do filme por conta do lançamento,
analisando a posição de três críticos da mídia impressa, um literário, um de um
meio norte-americano e o outro de um meio brasileiro. Destacando como
resultado deste procedimento, nas matérias jornalísticas, a falta de interesse
das mídias em aprofundar as questões relacionadas com a subjetividade
feminina, explorando inclusive a figura da escritora como alguém que sofre de
distúrbios mentais.
Por fim, metodologicamente, elencamos os motivos recorrentes
da trama ficcional que deram consistência às situações com as quais o gênero
feminino poderia se identificar. Neste ponto, dois resultados surgiram como
fruto da própria pesquisa: os papéis sociais nos quais estas se encaixam,
exercendo uma determinada função, e o estabelecimento das relações de tipo
22
objetal das protagonistas nas quais investem libidinalmente. Não foi nessa
ordem de aparição que esses resultados foram registrados, mas nos
surpreendeu como as relações sociais reprimem o espírito feminino,
principalmente na figura de Virginia, que projeta nas personagens de ficção
Laura e Clarissa essa rejeição. Enquanto as relações de tipo objetal as
libertam, pelo fato de elas mesmas se projetarem de modo mais criativo, fiel e
amoroso.
Em síntese, a metodologia foi formulada a partir de um
levantamento teórico sobre o cinema e adaptações, da análise do filme As
Horas, da reconstrução da imagem das três protagonistas e da aplicação das
categorias estéticas de recepção, a fim de identificar os motivos do gênero no
filme e reconhecer-se nele representado.
Situamos, do ponto de vista contextual, o modernismo inglês
com o intuito de adentrarmos as origens da obra-prima Mrs. Dalloway (1925)
de Virginia Woolf. Esses dados fornecidos mostraram como o movimento
modernista assentou suas bases nas novas formas de produção industrial que
se estenderam a todos os setores da cultura. Os novos motivos presentes no
romance, como a luta de classes e os conflitos morais provocaram a perda de
valores e princípios que, outrora, pautaram o comportamento em sociedade.
Conseguimos detectar na obra original os traços modernos nas personagens
ou seu envolvimento direto com a situação da Inglaterra daquele então.
Sendo assim, entramos no modernismo inglês,
especificamente literário, e descobrimos quatro fases a partir das quais surgiu a
obra adaptada. A primeira fase conhece-se como “realismo”. Nela, a
consciência do indivíduo era formada a partir dos princípios da percepção
22
“pragmatismo”. Na segunda fase, em vista da divisão territorial da população
urbana e rural inglesa, surge a idéia de educar de forma massiva o público. A
terceira fase é a do movimento simbólico revolucionário , cuja consigna era
o discernimento entre o mundo objetivo e subjetivo. Na quarta fase uma
quebra com o autóctone, que se pelo “negativismo”, a despersonalização e
a desumanização.
Provocou-se, assim, a desintegração familiar no interior da
sociedade e a perda das bases ontológicas do indivíduo, colocadas em xeque,
principalmente por Marx, Nietzsche e Freud, no que se refere à perda de
referenciais de identificação. A arte entrou em sintonia com os movimentos de
vanguarda do resto da Europa, como o “cubismo”, “impressionismo” e
“surrealismo”. Estes dados nos ajudaram a entender de que esfera surge a
inovação de Virginia Woolf ao criar uma estratégia de produção literária
chamada “fluxo da consciência”, na qual o método para a construção de
personagens ficcionais consistia na fruição do pensamento livre, sem
continuidade nem precisão lógica, mas sim de retórica, cujas vinculações
afetivas ou cognitivas aparecem pela via da persuasão.
Analisamos Mrs. Dalloway e detectamos nela influências do
modernismo inglês como a ênfase que as personagens femininas colocam nos
sentidos, nos fenômenos da percepção, assim como nas questões relativas
aos padrões éticos e morais da conduta social e na divisão de classes que
comparece à obra. Desta leitura inferimos como o processo de recepção pode
ser explorado a partir do romance, de seu destinatário e das razões contextuais
presentes na obra e transpostas para o filme As Horas. Essa leitura nos
possibilitou deduzir que os temas da insanidade e dos conflitos internos das
22
personagens, são principalmente, de acordo com a protagonista, as escolhas
que fazemos na vida. Ela repassa no instante da festa vários episódios com os
quais delineia o contexto sócio-cultural da Inglaterra da época: a força imperial
do colonialismo, a Primeira Guerra Mundial e o surgimento dos costumes
modernos que Mrs. Dalloway encarna na sua amiga Sally, irreverente,
polêmica e sedutora. Pensa na atração que Peter Walsh provocava nela, com
idéias diretas e no comando das situações, e isso era uma idéia que a atraía.
Entretanto, ao olhar para sua realidade familiar vê rotina, tédio e monotonia,
manifestando a idéia de suicídio como saída plausível ao engodo da realidade,
à angústia e ao sem sentido das coisas. Nisto observamos o traço niilista do
modernismo, assim como na “teoria mística da morte”, motivos presentes em
Mrs. Dalloway.
A leitura de Michael Cunningham, por sua vez, nos aproximou
mais da realidade do filme. Para isso, caracterizamos o contexto sócio-cultural
contemporâneo que deu origem ao movimento filosófico-artístico do pós-
modernismo. O autor formula esta adaptação de seu romance como um tributo
a Virginia Woolf. As Horas é de conteúdo existencial, situado historicamente
na Segunda Guerra Mundial, o que provocou a rejeição da integridade formal
do mundo como causa e a percepção fragmentada no individuo como
conseqüência. O tempo na narrativa pós-moderna é fluxo e transitoriedade, na
qual o movimento não pode ser retido. Nesse clima o sujeito procura,
fundamentalmente, o particular e o contingente. Os comportamentos sociais
das protagonistas são basicamente os mesmos que do filme. Nota-se um mal-
estar, sobretudo, com o cotidiano do trabalho compulsivo e com as ditaduras
do tempo. O traço pós-moderno mais notório é o simulacro, avatar do que a
22
própria ficção é beneficiária. Laura, uma das protagonistas, por exemplo, na
atividade da “leitura” um meio de negociação entre o mundo individual e o
externo; em lugar de contar as horas, ela conta as páginas do livro. Virginia,
Laura e Clarissa são protagonistas que não têm sentimento de culpa e vivem a
feminilidade com o máximo da intenção criativa.
Diferenciamos os recursos de adaptação e transposição de
acordo com o modelo de comunicação lingüística de Roman Jakobson, sendo
a adaptação a travessia da mensagem do emissor para o receptor, e a
transposição a passagem de um código para outro. Seja qual for a estratégia
de trabalhar com uma obra literária, o objetivo consiste em privilegiar o tema,
os traços retóricos contidos nela, o estilo individual e as tendências da época.
Qual é, então, o ponto da obra literária Mrs. Dalloway imprescindível para sua
adaptação ou transposição? O tema da angústia e da depressão, pois As
Horas representam a união copulativa e complexa do amor e da morte.
Em posse do objeto, o filme As Horas, constatamos que este é
fiel à fonte original, o romance homônimo de Michael Cunningham. Stephen
Daldry e David Hare, o roteirista, situam as protagonistas conforme o tempo da
enunciação: Virginia a caminho do suicídio na pacata Richmond de 1923, Laura
nos dourados anos 50 nos Estados Unidos e Clarissa na atualíssima Nova
Iorque de 2001.
Entre as concordâncias e divergências do filme com a obra
original, Virginia, no primeiro, é caracterizada como muito frágil e demasiado
insegura. Enquanto aquela que promoveu “o extermínio da rainha do lar”, na
segunda, foi uma mulher forte, de caráter e bem convencida daquilo que era
sua percepção da realidade, mesmo que esta estivesse por ocasiões alterada.
22
No entanto, o ponto que mais nos chamou a atenção sobre a transposição do
filme é que este traz na sua estrutura latente o ritmo ou velocidade da imagem,
“o fluxo da consciência”, notoriamente acentuado pela trilha sonora original.
Com relação aos comportamentos humanos, existe um ponto interessante de
se notar, a relação do casal Virginia e Leonard que no filme aparece como
conflitante, polarizada e abissal. Mas, segundo os diários da autora, a relação
deles é de companheirismo em que ele sentia muita “admiração” por ela, e ela
sentia-se orgulhosa dele por militar o partido pacifista do socialismo.
Descobrimos que a dificuldade principal da adaptação do
romance de Cunningham para o filme de Stephen Daldry foi em relação aos
diálogos, haja visto as distintas linguagens dos meios que servem de suporte à
obra. A imagem de Virginia, por exemplo, aparece em uma primeira instância
perturbada e de difícil convivência, logo, luminosa, irresistível e fascinante, por
exemplo, quando diz: “pessoas devem morrer para que dêem valor à vida”. A
morte é vista, nesse sentido, não do ponto de vista da forma senão também
do ponto de vista do conteúdo: o tempo da morte.
Sintetizamos, simultaneamente, a passagem da obra literária
original da modernidade para sua adaptação pós-moderna e contemporânea
na filmografia. Do período de transição moderna, no qual se produzem rupturas
significativas, do ponto de vista das causas, sobretudo morais, até a
contemporaneidade, em que o movimento pós-moderno faz sentir seus efeitos
receptivos na fragmentação do sujeito, cuja concepção de vida passa pela idéia
da efemeridade do tempo e das mudanças caóticas e abruptas que afetam o
mundo, As Horas propõe a experiência distintiva do tempo, do espaço e da
22
causalidade transitiva, fugitiva e arbitrária. O racionalismo do tempo está,
nesse sentido, na sua volatilidade.
Por considerar a produção fundamental para compreender o
processo de recepção, na sua variante do gênero representado, diminuímos a
distância entre estes dois fatores do processo de comunicação, centrando-nos
na mensagem. O título do filme As Horas traz o enunciado do objeto, o tempo
nos seus desdobramentos, justaposições e fusões com uma das protagonistas,
a autora Virginia Woolf, que vínhamos examinando como a fonte primária da
adaptação transposta para o cinema. Esta distinção, que fizemos nestas
considerações, nos permitiu adentrarmos no código dessa linguagem universal
e vislumbrar, como resultado, a confluência identificatória de gênero, tanto no
sentido “diegético”, quanto no sentido protagônico.
A imagem feminina converteu-se em um dispositivo que
utilizamos para avaliar o coeficiente sensorial e emotivo das três protagonistas
do filme As Horas na sua condição de representação mulheres que
transcendem como gênero a realidade material, alcançando na tela valor
figurativo graças ao movimento, caráter específico da imagem fílmica, mas
também o caráter que distingue uma protagonista do resto das personagens.
Assim, a imagem de Virginia é a angústia, pela passagem inexorável de As
Horas. De Laura é a culpa, pelo abandono de Richard, e de Clarissa, a falta de
amor, um desejo sempre adiado.
Câmera e enquadramento representaram na seqüência que
estudamos da produção o registro da realidade material em movimento, o
“fluxo da consciência” na sua passagem, da ficção para a realidade e vice-
versa. Neste ponto, a participação criativa da câmera nos mostrou a
22
intensidade dramática da luta entre a criadora Virginia e Laura sua
criatura na cena do quarto do hotel, esta última sendo objeto metalingüístico
do passar do tempo; veja-se na cena em que Richard cultua a fotografia de sua
mãe sozinha, vestida de noiva. O cinema, nesse instante, fala também de suas
origens na fotografia e do efeito que essa reminiscência familiar representada
produz no espectador. O plano foi determinante como vínculo da ação temporal
e o corte o elemento técnico e subjetivo que se opera no filme com o fim de
estabelecer a cisão, a ruptura e a morte da imagem. A angulação ajudou a
acentuar o efeito dramático do plano convertido em tempo, a iluminação a
penetrar no espaço e a dar expressividade à imagem, revestindo-a de um valor
poético, como exemplificamos com a cena da “passarinha”. Vestuário, cenário
e atores foram meios de expressão fílmica usados para produzir efeitos
relacionados com a identificação social das personagens, a estilização dos
espaços e com a dramaticidade na interpretação de Nicole Kidman, Julianne
Moore e Meryl Streep.
Completamos esta revisão da linguagem cinematográfica
aplicada ao filme com as noções de tempo e espaço. O tempo como
“decupagem” corresponde à operação analítica que executamos em função da
trama narrativa, cena após cena, para inferir a montagem como a operação
sintética da produção a favor da trama ficcional. Destacaram-se como recursos
o flashback para mostrar o passado das protagonistas e o travelling para
representar a circularidade espiral do tempo no conteúdo narrativo.
Resgatamos o espaço como expressão do tempo da imagem, do corpo
representado e interpretado por cada uma das protagonistas.
22
Virginia na cena da estação nos fez sentir o drama da
existência, marcada pelo relógio da plataforma que anuncia os trens para
Londres à qual chega desesperado Leonard, pelo conflito protagonizado pelo
casal ele de frente, ela de costas e pelo apito do trem que marca o fim da
cena. O enredo: por um lado, a presença excessiva do marido. Por outro, a
ausência assustadora dela, daquilo que seria o “princípio de realidade” em que
Virginia vive intensamente o tempo de forma espiral, segundo o fluir do próprio
desejo. Nesta cena veio à tona o casal como modelo identificatório, não cada
um em separado, discutindo os motivos que os unem e os separam, mas como
um. O valor feminino que a autora encarna nesta cena, e que serve à
espectadora na sua experiência estética de catarse, é o poder de escolha na
fusão desejo/morte da enunciação romântica da protagonista.
Laura debateu-se em picado e contra-picado, do lado da mão
direita, frascos de remédios prestes a serem engolidos, na mão esquerda, o
exemplar de Mrs. Dalloway de Virginia Woolf. O predomínio do flashback e do
travelling mostram alternadamente esta personagem protagonista, criada por
uma outra em outro tempo e espaço. De esposa fiel e mãe solícita, Laura
passou a ser uma mulher crítica, infiel e decidida, graças ao poder revelador de
sua “leitura”. Esta protagonista representa, segundo vimos no decorrer da
dissertação, a função de esposa, mãe e amiga que vive um tempo entediante.
na sua dimensão de “leitora” experimenta a liberdade pela via da arte,
mesmo que o clímax seja o momento mais angustiante em que acorda sem ar,
ofegante e chorando como se nesse instante fosse completamente estranha a
si mesma e familiar a todas as mulheres, no que significa para elas a
22
experiência do gozo feminino em que se conjuga no tempo mais do que
perfeito da morte o modo singular do gênero feminino.
Clarissa interpretou a mulher no presente de um homem
Richard. No passado, essa figura feminina era a mãe que o abandonou, por
isso utilizam-se vários cortes entre um exterior que mostra um edifício corroído
pelo tempo e a sujeira, e um interior no qual se produz um diálogo sobre a festa
que Clarissa organizava para o poeta. No embate, ambos os amigos, que
outrora foram amantes, deixam entrever a luta entre os gêneros. No final desta
cena, mais um corte, no exterior, um corpo que cai. Corte e fim da cena.
Richard mostra-se angustiado pela eminência do vírus e Clarissa tenta aliviá-lo
imaginando, contando e interpretando Mrs. Dalloway, um código dos amantes
da poesia.
Neste desdobramento da relação mãe–Richard e Richard–
Clarissa existe uma complexa projeção, a partir da qual a protagonista Laura
a mãe lê, e o filho será escritor, a mãe leva remédios na bolsa e o filho será
um suicida em potencial. A mãe sozinha, vestida de noiva, na fotografia que
Richard contempla, é a cena que prefigura a discussão de Richard com
Clarissa sobre o passado dos amantes e o presente dos amigos, que
compartilham até esse momento de clímax, pois Richard escolhe suicidar-se. O
corpo dele precipita-se à morte e o real se impõe na cena. Clarissa fica
desesperada e, mais uma vez, permite a seu imaginário justificar a escolha do
homem a quem nunca pertenceu e ao amigo que a deixou sozinha. A falta de
mediação simbólica produz o efeito do choque nesta cena, a passagem
abrupta do imaginário para o real surpreende, inclusive pela tomada que foca
“um corpo que cai”. Clarissa, em termos de identificação, é a mulher intelectual,
22
sensível e criativa, contudo, seu caráter está na lateralidade, sempre ao lado
de Richard, Sally e Julia, e na alteridade “o outro” ; experiência na qual
reconhece-se igual e diferente, segundo a proximidade e identidade com o
gênero.
A crítica especializada, tanto da literatura quanto do cinema,
compareceu neste trabalho como um exercício de recepção, cujo fim consiste
em informar e educar o juízo estético do grande público. A proposta de Harold
Bloom, consultor de grandes jornais norte-americanos fala da figura da
escritora que inspirou o filme. Define-a como uma amante e defensora da
“leitura” que permite às mulheres lutar por seu reconhecimento e ascensão
social. Atribui a ela o pioneirismo da “crítica feminina” direcionada ao
“patriarcado”, que explora econômica e socialmente as mulheres para inflar sua
“incompetente auto-estima” com “argumentações românticas”. O impulso da
obra e do gênero, segundo o crítico, tem a ver com o “esteticismo sublime” da
mulher pragmática e visionária que era Virginia, personalidade que em muito
excede a vida e a morte; a inundação e a seca; a queda e a elevação; e o
excesso e o vazio como experiências estéticas da arte no filme As Horas. A
arte ligada, neste caso, à natureza da mulher em seu estado mais original,
àquele em que risca de sua mente todo preconceito e escreve com tinta de
fogo a identidade do gênero feminino.
A matéria de Stephen Holden do New York Times contrastou
com a de Bloom por seu apelo ao medo das personagens criadas à imagem e
semelhança da autora, angustiada e perturbada, depressiva, psicótica “ouve
vozes” e uma incisiva defensora apologista das mulheres contra todo e
qualquer sistema repressivo. Holden critica “as vozes” de Virginia, no entanto,
22
enaltece o “alter ego ficcional” dela Laura e Clarissa e o fato da escritora
colocar a sexualidade ligada ao chamado sedutor da morte. Pareceu-nos que a
intenção comunicativa do filme As Horas foi fusionar o tempo real da criação
literária pela morte, com o espaço simbólico “mediador” da mulher e do
gênero, em um filme cujo protagonismo equaciona o imaginário feminino com o
imaginário do cinema.
A ordem feminina cruzou como registro a dimensão da
identidade sexuada da mulher como categoria para a análise de gênero, assim
como o traço mais relevante da personalidade de cada uma das três
protagonistas que o interpretam como um grupo social ligado às
representações mais subjetivas do desejo, elevado à dignidade de signo, do
amor, cujos labirintos exploramos não do ponto de vista cinematográfico,
mas também na experiência das mulheres, de um modo geral, que atribuem à
promessa a virtude de iluminar sua própria vivência. Para cruzar a ordem
feminina e os processos identificatórios das mulheres e de seu gênero, nos
valemos dos estudos da recepção que propõem a posição ocupada pela
mulher na estrutura social do gênero como identidade coletiva, que permite
associar o tema da recepção com as particularidades de um gênero de
referência como este, no qual os interesses comuns perpassam a idéia do
tempo na sua ampla vastidão.
Desta forma, apropriamo-nos da noção de “mediação” que veio
bem de encontro a uma das dimensões essenciais do gênero. Neste ponto, “as
mediações” estiveram relacionadas com a concepção do tempo espiral no
filme, que definimos como uma curva que gira em torno de um ponto,
distanciando-se rápida, progressivamente e sem controle deste. O tempo
22
inexorável da morte constitui o ponto central de As Horas e a curva que orbita
esse ponto no espaço é a mulher. Ainda que o tempo espiral seja uma
metáfora, ela nos serviu para compreender quais são as situações objetivas em
que o gênero nos permite observar o modo como as mulheres se comunicam e
amam no encontro, no intercâmbio e no modo de imaginar horizontes de
sentido para si e para o gênero ao qual pertencem.
Desse “método oblíquo” que assumimos como parte do
princípio peirciano de que “um signo nunca pode representar a totalidade de
um objeto e sempre o reproduz em uma perspectiva determinada”, extraímos o
mais apropriado para os interesses do trabalho e as convicções a respeito da
natureza do nosso objeto, que se distancia do modelo latino-americano em
relação às diferenças culturais nas quais o filme As Horas foi concebido, e ao
meio cinema, incompatível do ponto de vista “qualitativo” e “eqüitativo” com a
cultura de massas que os estudos da recepção televisiva priorizam nos seus
investimentos de pesquisa. Destacamos, deste “método oblíquo”, o discurso
social da recepção que usa o conceito de “rede discursiva” para referir-se ao
texto-imagem nos processos identificatórios. Vale lembrar que nosso título
“tessituras do âmbito feminino” insere-se justamente nesta variante da
investigação, da mesma forma que os efeitos receptivos do filme dependem
das estratégias de enunciação de cada uma das protagonistas.
As categorias icônicas, indiciais e simbólicas da imagem no
modelo metodológico enfatizam as de caráter indicial, segundo o referencial
teórico adotado, por entender os comportamentos, corpos e gestos como
signos de contato e existenciais. Apontando, em primeiro lugar, para a
dimensão simbólica da linguagem fílmica e, em segundo lugar, para a
22
dimensão existencial do filme As Horas vista na proximidade ou
distanciamento da espectadora no processo de identificação. Portanto, nossa
receptora é, antes de tudo, comunicadora porque interage com elementos
culturais e situacionais no próprio processo de recepção no qual a categoria do
gênero incorpora-se como uma categoria de referência.
Procuramos definir a identidade feminina como a noção que
remete à individualidade da mulher e à interpretação que esta faz de si,
reconhecendo-se com um ser único e que existe. Contudo, a identidade
individual é o resultado de uma experiência própria da mulher de se sentir
existir e de ser reconhecida pelo “outro”, singular e idêntica ao mesmo tempo.
Descobrimos, enfim, que a identidade feminina está associada a um
sentimento subjetivo de sua permanência no tempo. Esse sentimento, de
acordo com o filme As Horas, é a angústia, seja na carga enunciativa de
Virginia, na culpa de Laura ou na submissão de Clarissa. E, na linha do desejo
que encarna cada uma das protagonistas, a identidade é sexuada e se constrói
progressivamente por observação e instrução. Ser mulher, nesse sentido, é um
resíduo de realidade com múltiplas possibilidades de vir a ser no corpo, nos
“outros” e no gênero.
22
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Manuscrítica – Revista de Crítica Genética. São Paulo: junho/2003.
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. London: Penguin Books, 1996.
______. Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
______. O Discurso Cinematográfico – a opacidade e a transparência. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1984.
ZIZEK, Slavoj. Porque no saben lo que hacen: el goce como un factor
político. Buenos Aires: Paidós, 1998.
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FILME
AS Horas. Direção de Stephen Baldry. Hollywood. EUA. Imagem Filmes, 2002.
DVD (115 Min): NTSC, som, colorido. Legendado em Português.
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SITEOLOGIA
www.virginiawoolfsociety.co.uk/vw
www.google.com.br em imagens – filme “As Horas”
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