reivindicar o impulso expressivo dos que vivem à margem da sociedade por
motivos de sua escolha sexual ou pela luta dos gêneros.
Apresentamos a seguir, também na íntegra e no original, uma
crítica da Folha de São Paulo, datada de março de 2003, logo depois do
lançamento do filme no Brasil.
06/03/2003 - 04h29 – Folha de São Paulo
Adaptação do livro é o que diferencia o filme "As
Horas"
PEDRO BUTCHER
Crítico da Folha de S.Paulo
Michael Cunningham, autor do romance "As Horas", disse ter adorado a versão para o cinema
do livro. Num depoimento que chega a ser comovente, ele se livra dos constrangimentos de um
autor traído para enumerar o que se perdeu da sua narrativa interiorizada.
Mas, em seguida, relata o que se ganhou (o olhar de uma atriz, o gesto de outra, ou a ação que se
repete, reproduzindo uma das características essenciais do livro, agora na forma de cinema).
É verdade que a adaptação de "As Horas" era um projeto ambicioso, besuntado do perigoso verniz
artístico que impregna tantos candidatos ao Oscar. O resultado final não chega a estar totalmente livre
desse verniz, mas o filme é um sobrevivente aos perigos que corria desde a origem. Sua base é rica
demais para ser desprezada, e o resultado final traz qualidades que o fazem infinitamente superior a
muitos outros dramas literários indicados ao Oscar.
Ao contrário, por exemplo, de "Adaptação", que traz verniz pior que o artístico (o do "filme cult"), "As
Horas" é um trabalho de adaptação de verdade. O grande arquiteto do filme não é Stephen Daldry,
diretor, mas David Hare, o dramaturgo que escreveu o roteiro. Nota-se que Hare suou para achar novo
formato a romance tão sofisticado, tendo chegado a algumas soluções brilhantes.
Dos problemas que o livro mostrou a Hare, só um não foi resolvido: o dos diálogos. Soam pomposos,
literários e (talvez porque respeitosos demais) são culpados pelo tal verniz artístico. O problema fica mais
evidente na mais perigosa das três histórias do livro, justo a mais "literária": a que Virginia Woolf escreve
"Mrs.. Dalloway".
O romance de Virginia Woolf "Mrs.. Dalloway" é o eixo de tudo: com um uso primoroso e não exibicionista
da metalinguagem, Cunningham desenvolve três narrativas que se contrapõem, o tempo todo, à obra de
Woolf.
Na primeira, em 1929 no vilarejo de Richmond, Inglaterra, a própria escritora luta contra o fantasma da
melancolia ao narrar o único dia na vida de uma mulher. Na segunda, na Los Angeles de 1951, uma
dona-de-casa frustrada lê "Mrs.. Dalloway", o que terá consequências radicais em sua vida. Na terceira,
uma Clarissa moderna revive Mrs.. Dalloway, na Nova York contemporânea. Os três dias únicos na vida
de três mulheres se alternam gerando elos e ecos.
Essa estrutura radicalmente literária foi recriada no cinema com o uso de rimas visuais (os despertadores,
as flores e outros objetos ou simples gestos que se repetem nas três diferentes épocas) e um grande
trabalho de montagem, quase invisível.
O trio principal de atrizes é marcado por um desnível profundo, que prejudica o filme: Nicole Kidman não
convence como Virginia Woolf, com a contribuição inestimável do já famoso nariz protético. A
interpretação da atriz, que dá excessiva importância a cada frase, fica ainda mais fraca perto da
excelência de Stephen Dillane e Miranda Richardson. Um trabalho que contrasta com a economia de
Julianne Moore e mesmo com o desempenho de Meryl Streep, intenso na dose certa.