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Universidade Estadual do Ceará
Mestrado Acadêmico em Filosofia
CIDADANIA E RESPONSABILIDADE MORAL EM JEAN-
JACQUES ROUSSEAU
Alexsandra Sombra Lourenço
FORTALEZA
SETEMBRO/2007
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Alexsandra Sombra Lourenço
CIDADANIA E RESPONSABILIDADE MORAL EM
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
FORTALEZA
SETEMBRO/2007
2
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Filosofia,
com área de concentração em Ética e Filosofia Social e Política,
da Universidade Estadual do Ceará - UECE, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso
Co-orientador: Prof. Dr. Washington Luis da Silva Martins
(UFPE)
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Alexsandra Sombra Lourenço
CIDADANIA E RESPONSABILIDADE MORAL EM JEAN-
JACQUES ROUSSEAU
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Filosofia,
com área de concentração em Ética e Filosofia Social e Política, da
Universidade Estadual do Ceará - UECE, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso
APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA EM 21 DE SETEMBRO DE 2007
CONCEITO OBTIDO:
_______________________________________________
Prof. Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso
_______________________________________________
1º Examinador
Prof. Dr. Genildo Ferreira da Silva
________________________________________________
2º Examinador
Prof. Dra. Marly de Carvalho Soares
3
Dedico este trabalho a Sérgio, Beatriz e Júlia
que tornam minha vida um grande empreendimento
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo fôlego de vida;
Ao meu esposo Sérgio Araújo e minhas filhas Beatriz e Júlia, cúmplices neste processo;
A minha mãe, ícone de força; meus irmãos e sobrinha, sempre colaboradores;
Aos amigos da Igreja Evangélica Manancial;
A Funcap, que contribuiu financeiramente para a realização desta pesquisa;
Aos professores do Mestrado em Filosofia da UECE, em especial meu orientador Prof. Dr.
Emanuel;
Aos professores Dr. Washington Luis (UFPE), por sua contribuição; Dr.Genildo (UFBA),
cujo diálogo e paciência nortearam a escuridão da incerteza; Dr. Arley (Unioeste), por suas
importantes sugestões; Professora Ilana Amaral, por um diálogo da diferença e a todos do GT
Rousseau e o Iluminismo, em especial profs. Dr. José Oscar e Dra. Karin Volobuef, a quem
admiro pela imensa dedicação e seriedade.
5
RESUMO
A presente dissertação percorre o pensamento de Jean-Jacques Rousseau em busca da
compreensão da idéia de Cidadania e Responsabilidade Moral delineados principalmente em
sua obra política Contrato Social. Para tanto partimos da construção arqueológica concebida
pelo genebrino que traz o conceito de Estado de natureza, momento embrionário da história
da humanidade no qual a simplicidade é o cerne da existência. Nessa leitura vislumbramos o
homem como sujeito que busca a própria conservação sem ignorar, no entanto, a dor do outro.
Seguindo essa linha que mostra o desenvolvimento da História, passamos pelo momento que
retirou o homem desse ambiente de simplicidade e o levou a uma vida de relações e
necessidades complexas, que deram origem ao Estado de Civilização. Essa apreensão que
revela a história como declínio da capacidade do homem de se aperfeiçoar revela o conflito
estabelecido quanto aos sentimentos originais, à liberdade ilimitada e à permanente dicotomia
entre ser e parecer, decorrentes de uma nova condição gerada em sociedade. A questão que se
põe na crítica rousseauniana é compreender como o homem, um sujeito bom e simples,
corrompido pelo desenvolvimento do progresso, poderia retomar sentimentos naturais de
bondade e amor de si sem perder as vantagens encontradas na vida social. A figura pública do
homem, o cidadão, deveria ser repensada com virtudes para além das normas estabelecidas.
Por meio da retomada de sentimentos escritos como lei no coração, o homem poderia ser
moralmente responsável e a cidadania vista como um exercício de liberdade e soberania,
principalmente para consigo mesmo. A associação enquanto via de valorização de cada
indivíduo é o primeiro passo para a construção de uma vida social participativa. Criar e
obedecer leis, gera no cidadão a responsabilidade de um contrato de mão dupla que reconhece
e valoriza a si, enquanto parte componente do Estado, e ao outro enquanto extensão de si
mesmo. A proposta apontada por Rousseau, em pleno alvorecer das luzes, revela a
necessidade de conservar a liberdade, o maior bem daquele que foi ignorado pelo progresso
do pensamento. Compreender a responsabilidade como base para a cidadania é o desafio a
que nos propomos neste trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Homem, Natureza, Liberdade, Cidadania.
6
RESUMÉ
La présente dissertation couvre la pensée de Jean-Jacques Rousseau à la recherche de la
compréhension de l’idée de Citoyenneté et Responsabilité Morale délinéée principalement
dans son oeuvre politique Contrat Social. Pour y arriver nous partons de la construction
archéologique conçue par le Genevois qui apporte le concept d'État de nature, moment
embryonnaire de l’histoire de l'humanité où la simplicité est le cerne de l'existence. Dans cette
lecture nous apercevons l'homme comme sujet qui cherche la propre conservation sans
ignorer,anmoins, la douleur de l'autre. En suivant cette ligne qui montre le développement
de l’Histoire, nous passons par le moment qui a enlevé l'homme à cet environnement de
simplicité et l’a conduit à une vie de relations et de nécessités complexes, qui ont donné
origine à l'État de Civilisation. Cette appréhension qui révèle l’histoire comme déclin de la
capacité de l'homme se perfectionner révèle le conflit établi à l’égard des sentiments
originaux, la liberté illimitée et la permanente dichotomie entre être et sembler, conséquences
d’une nouvelle condition produite dans la société. La question qui se pose dans la critique
rousseaunienne est de comprendre comment l'homme, un sujet bon et simple, corrompu par le
développement du progrès, pourrait reprendre des sentiments naturels de bonté et d'amour de
soi sans perdre les avantages trouvés dans la vie sociale. La figure publique de l'homme, le
citoyen, devrait être repensée avec des vertus au-de des normes établies. Par le biais de la
reprise des sentiments écrits comme une loi dans le coeur, l'homme pourrait être moralement
responsable et la citoyenneté vue comme un exercice de liberté et de souveraineté,
principalement envers soi même. L’association vue comme une manière de valorisation de
chaque individu est la première étape pour la construction d'une vie sociale participative.
Créer et obéir à des lois, produit dans le citoyen la responsabilité d'un contrat mutuel qui
reconnaît et valorise soi même , en tant que partie composante de l'État, et à l'autre comme
extension de soi même. La proposition indiquée par Rousseau, au moment de la naissance des
lumières, révèle la nécessité de conserver la liberté, le plus grand bien qui a été ignoré par le
progrès de la pensée. Comprendre la responsabilité comme base pour la citoyenneté est le défi
auquel nous proposons dans ce travail.
MOTS CLÉS : Homme, Nature, Liberté, Citoyenneté.
7
ABREVIATURAS
A fim de facilitar a compreensão a conferencia das Referências Bibliográficas, adotaremos as
normas técnicas prescritas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). No
tocante à obra de Rousseau, adotaremos as seguintes abreviações para as obras mais citadas.
Para as demais, citaremos como na bibliografia:
(Contrat Social) Du contrat social ou principes du droit politique. In:___.
Œuvres Complètes. vol. I;
(Émile) Émile ou de l’éducation. In:___. Œuvres Complètes. vol.
II;
(Inégalité) Discurs sur l’origine et les fondements de l’inégalité
parmi les Hommes. In:___. Œuvres Complètes. vol. I;
(L’économie) De L’économie Politique. In:___. Œuvres Complètes.
vol. I;
(Lettre à Philopolis) Lettre à Mr.Philopolis.. In:___. Œuvres Complètes. vol. I;
(Sciences et lês Arts) Discurs sur les sciences et les Arts.. In:___. Œuvres
Complètes. vol. I;
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
I – ARQUEOLOGIA PELA NATUREZA: O COMEÇO DE TUDO 16
1.1 – O Estado de Natureza 16
1.2 – Homem, Animal e a igualdade dos instintos 22
1.3 – Homem e Animal: dos Instintos aos Sentidos 28
II O PROCESSO DE DESNATURAÇÃO E O SURGIMENTO DO
CIDADAO E DA SOCIEDADE CIVIL
38
2.1 – A saída do Estado de Natureza e a criação da Sociedade Civil 39
2.2 – Surgimento do indivíduo social: dicotomia entre Ser e Parecer 50
2.3 – Alienação, perda da liberdade e inatividade da responsabilidade moral 55
2.4 – Conflito entre proximidade e afastamento na Sociedade Civil 59
III RESTAURAÇÃO DA NATUREZA NO ESTADO CIVIL: O
CAMINHO DA RECONSTRUÇÃO E O RENASCIMENTO DO
CIDADAO, UM VISLUMBRE DE RESPONSABILIDADE 64
3.1 – Associar e não agregar: o primeiro passo à responsabilidade 67
3.2 – Soberania como exercício de cidadania 72
3.3 – A Vontade Geral como unidade de particularidades 78
IV – GOVERNO E CIDADANIA 87
4.1 – Cidadania e Responsabilidade Moral: a aplicação dos bons sentimentos no
seio civil
93
CONCLUSÃO 96
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 99
9
INTRODUÇÃO
Compreender a idéia de cidadania e responsabilidade no pensamento político de Jean-
Jacques Rousseau é uma possibilidade de caminhar no percurso moral e político vislumbrado
por esse autor moderno no ápice de uma revolução intelectual, onde a busca pelo primado da
razão estende-se ao longo da vida, das idéias e da construção política e social de uma época.
Um autor que preza pela importância do homem como um todo no qual fazem parte sentidos,
sentimentos e razão, e não apenas uma razão dissipada de aspectos sensíveis pertinentes à
própria existência.
Nessa caminhada, vislumbramos os aspectos morais decorrentes de uma proposta
moldada na participação que prezam a retomada da liberdade, da autonomia e da virtude em
um fazer político democrático efetivado numa república.
Com esse intuito traçamos quatro momentos, norteados em capítulos, que partem de
uma arqueologia pela natureza, seguindo da ruptura com a singularidade e surgimento da
sociedade, onde a crise da existência torna o homem fraco, traído pela própria razão,
compreendendo assim o segundo capítulo. O terceiro momento busca uma proposta de
reconstrução da história humana por meio de um novo acordo, e por fim o último capítulo, a
questão da cidadania e da responsabilidade do homem-cidadão, membro de um novo modelo
de sociedade.
Iniciamos tratando do Estado de Natureza, um estado original cuja arqueologia
pressuposta pelo genebrino tem a intenção de compreender o desenrolar da historia humana
em sua forma pura, livre de artifícios apreendidos pelos valores sociais. Conforme descrito no
Discurso Sobre A Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens
1
, a história
1
Conforme convencionamos na página de abreviaturas (página 7), utilizaremos apenas abreviações
das principais obras citadas, de Rousseau, a fim de facilitar a leitura.
10
humana descreve uma história marcada de valores sociais, certamente inautênticas, cheias de
erros e enganos:
Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham
desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do que
a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de
causas sempre renovadas, pela multidão de conhecimentos e de erros, pelas
mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das
paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de tornar-se quase
irreconhecível e, em lugar de um ser agindo sempre por princípios certos e
invariáveis, em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual o
criador a tinha marcado, não se encontra senão o contraste disforme entre a
paixão que crê raciocinar e o entendimento delirante. (Inegalité, p.532)
Uma notória diferença entre Rousseau e os Enciclopedistas está na apreensão da
História da origem humana. Para o genebrino, a História não foi honesta em desvelar a
origem remota da espécie humana, mas envolta em sentimentos e raciocínios sociais revelou
um homem original como se existisse em sociedade, cercado de vícios e maldades. “A
desigualdade, a tirania, o mundo das aparências são a prova de que o homem es
comprometido com uma história que ele mesmo forjou.” (Maria das Graças, 2001, p.79) Para
validar uma busca original seria necessária uma retomada aos primórdios de modo capaz de
compreender um estado de pureza onde o homem, em sua condição inicial, fosse um
indivíduo diferente do homem da sociedade, com vícios e males. Sem essa primeira busca
seria inútil tratar de questões referentes ao próprio homem, pois estando a origem corrompida
todo o resto também seria.
Disposto a investir nessa origem, Rousseau concebe o Estado de Natureza
2
: um estado
simplório composto de homens e animais vivendo de forma uniforme, sem relações longas ou
contatos estreitos, apenas de sobrevivência. A evolução desse processo solipsista, de um
homem vagante e solitário culmina na complexa sociedade em que ocorreu a perda da
2
O estado de natureza não foi uma concepção rousseauniana, mas comum a todos os filósofos
contratualistas e jusnaturalistas; também podemos encontrar essa idéia de um estado anterior ao de
civilização em Platão (Livro das Leis), Sêneca (Epístola a Lucílio), Kant (Metafísica dos Costumes) e
Hegel (Enciclopédia).
11
liberdade e a instauração da desigualdade, problemas fortemente enraizados no estado de
civilização, dos quais decorriam perdas consideráveis no fazer político, como a participação
nas questões e decisões públicas.
O caminho de “desenvolvimento” do homem vislumbrado por Rousseau em sua
arqueologia natural revela que a desigualdade, a princípio natural, onde havia jovens e velhos,
fortes e fracos, elevou-se a uma instância de alcance maior, afetando diretamente outros
homens. Quando o primeiro homem gritou isso é meu
3
, a força da voz prevaleceu diante de
uma reação absolvida pelos outros. Esse estrondo inicial que gerou a propriedade e fez nascer
um novo tipo de comportamento, reproduziu-se a ponto de estabelecer pequenas sociedades
com chefes e servos representados primeiramente nas figuras dos pais e filhos. A partir daí, o
conjunto de relações estende-se e caminha com o uso de novos artifícios como força, destreza,
desfaçatez, manipulação; elementos outrora desconhecidos. A simplicidade de um sujeito, em
sua mera existência, cede lugar a uma nova forma de vida, onde a busca pela sobrevivência
torna-se cada vez mais acirrada à medida que traz novos elementos.
Em busca da sobrevivência e da manutenção das posses, o homem passa a apreender
valores e sua condição de amoralismo cede lugar à moralidade convencionada por regras de
aceitação e conduta. Dessas regras, surge na contramão a polidez, que gera vícios e falácia aos
próprios sentidos. A sociedade nascente projeta no homem uma forma não mais tranqüila e
natural de vida, mas uma forma complexa em seus dúbios valores. A corrupção nasce no seio
social e se torna necessária à manutenção da aparência, requisito de importância social.
Envolvido cada vez mais em embaraços e se distanciando de sua natureza, o homem
segue atropelado pelo acordo taciturno que outrora surgia como melhoria de vida na busca
pela sobrevivência. Torna-se fraco, medroso, e aos poucos perde seu status de liberdade plena,
ficando a mercê dos interesses dos mais fortes. Com o surgimento da riqueza surge a pobreza,
do senhor, o servo, do forte, o fraco. A necessidade de pôr ordem a um possível caos
3
Cf. nos aponta Inegalité, pág. 551.
12
prevalece e os mais fortes tomam as rédeas nessa empreitada, fazendo surgir um primeiro
acordo tácito e informal. Dessa sociedade nascente caminhamos no segundo capítulo, na
crítica apontada por Rousseau à concepção daquilo que seria a realização maior da
perfectibilidade: a sociedade.
Contrária à expectativa inicial, a sociedade não promoveu melhorias à condição de
vida; ao contrário, criou normas e estabeleceu limites ao próprio homem, componente dessa
sociedade. Legitimou a escravidão e perdeu de vista o olhar sobre a alma humana, caindo na
contradição da desigualdade, da tirania e das injustiças.
Uma sociedade corrompida, falida em sua constituição original precisava repensar sua
estrutura. No Terceiro Capítulo será abordada a possibilidade de restauração das mazelas. Um
reparo às doenças adquiridas pelos cios e pela falácia dos novos sentimentos desenvolvidos
no seio social. Seria possível uma união na qual o homem dando-se a todos não se entregaria
a ninguém? Essa pergunta leva a possibilidade de conceber “uma forma de associação que
defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual
cada um, unindo-se a todos, obedece, contudo a si mesmo, permanecendo tão livre quanto
antes” (Contrat Social, p.644). A perspectiva apontada no Contrato seria a reconstrução da
figura do homem, corrompida ao longo da história, através da retomada da liberdade e da
igualdade, veiculadas autonomamente num Estado justo e bem ordenado à medida que é
construído por todos na busca do Bem Comum .
Nesse processo de reconstrução o começo seria posto na aceitação do Pacto. Uma via
de mão dupla que implica em responsabilidade, participação, direitos e deveres. Por isso seria
feita uma “associação”, um reconhecimento individual daquilo cuja importância culminaria
no coletivo. O povo não seria um agregado, um somatório de elementos, mas um Corpo
Político, composto de indivíduos conscientes, capazes de expressar interesses e anseios. Cada
homem teria um papel duplo nessa construção: de senhor e servo. Senhor, à proporção que
13
aponta a melhor forma de lei e servo quando se dispõe a cumprir a lei estabelecida. A
liberdade é retomada na decisão de aceitar o acordo, quando põe o homem em condição de
autonomia, de escolha e continua mantida quando se estabelece uma Vontade Geral como
união de particularidades em busca do Bem Comum. uma ordenação social que refaz a
política e a condição da existência do homem.
Dessa forma, refeito o homem surge o cidadão: figura pública de homem na
sociedade. espaço para a individualidade, na vida particular de cada um, e igualdade
política que une todos nas tomadas de decisões. A vida social insurge como ponto máximo da
capacidade de se aperfeiçoar pertinente a natureza humana. A realização da cidadania põe o
homem em plenificação de vida, enchendo-o de responsabilidade por validar o acordo
firmado. Isso ressaltando a importância dos sentimentos de Amor e Piedade relevantes à
sedimentação da pátria e do acordo.
A proposta de uma política participativa, igualitária e justa revela a responsabilidade
para cada indivíduo reconhecidamente importante no processo de socialização. Não sendo
assim uma proposta normativa que ignora as particularidades, mas que as converge em busca
de um ideal maior.
Por meio de uma política democrática se estabelece um Estado nobre com cidadãos
heróis, que une amor e zelo à pátria, vislumbrando numa política de responsabilidade a
aceitação e a consolidação das regras idealizadas em prol de conservação da vida e das
posses.
A idéia de cidadania, tratada no quarto capítulo, fica atrelada à idéia de
responsabilidade por contemplar o horizonte da existência em sua completude. O
contratualismo rousseauniano vai além da racionalidade, partindo de uma odisséia
antropológica que compreende o homem desde sua constituição sensualista até sua plenitude
racional capaz de ordenar a vida sem onerar a própria espécie. Ser homem e cidadão implica
14
em existir plenamente naquilo que é resultado de sua constituição: a perfectibilidade. Querer
que o homem em absoluto não se torne sociável, seria desejar, então que o fosse mais
homem, e erguer-se contra a sociedade humana é atacar a obra de Deus”. (Lettre a Philopolis,
p. 603).
15
CAPÍTULO 1
ARQUEOLOGIA PELA NATUREZA: O COMEÇO DE TUDO
1.1 - O ESTADO DE NATUREZA
“Uma busca pela alma humana”. Assim poderíamos compreender a idéia de Rousseau
ao tratar do estado de natureza, um estado hipotético que foge dos livros científicos, mas que
é capaz de nortear o pensamento na compreensão do homem enquanto ser, enquanto
indivíduo existente no mundo. Seria uma arqueologia da história humana a partir de sua
forma singela e real, sem as crendices mitológicas e sem os equívocos da razão social. Um
olhar na maneira selvagem, no aspecto primitivo que antecedeu todo o processo de civilização
e cultura, que deveria ser puro, sem os atributos sociais carregados de valores morais pré-
estabelecidos de forma desconhecida, onde estava o ponto zero dos valores e do saber; onde
nasceram os primeiros sentimentos que desembocaram na moralidade das ações.
16
Essa deveria ser a busca da Ciência e das Pesquisas, mas segundo Rousseau a história
do pensamento distanciava-se a cada passo de seu progresso, de seu alvo maior: o próprio
homem. As idéias giravam em torno de uma razão que era o ápice da existência, enquanto a
simplicidade ficava afastada do cotidiano pensante. Para Rousseau, esse ignorar além de
maléfico era insuficiente para o desenvolvimento do próprio conhecimento, pois privava o
homem de si mesmo e das possibilidades que essa verdade acerca dele pudessem trazer. Todo
o progresso promovido pela razão afastava o homem cada vez mais de si mesmo. Vejamos o
que ele diz no prefácio do Segundo Discurso:
O que de mais cruel ainda é que, todos os progressos da espécie humana
distanciando-se incessantemente de seu estado primitivo, quanto mais
acumulamos novos conhecimentos tanto mais afastamos os meios de
adquirir o mais importante de todos, e ainda que, num certo sentido, à força
de estudar o homem, tornamo-nos incapazes de conhecê-lo. (Inégalité,
p.532)
Para Rousseau, era necessário partir do conhecimento do homem no seu estado
original, pois esse poderia trazer todas as respostas para a compreensão dos problemas e
conflitos sociais; ele era o estado embrionário para os sentimentos que deram origem ao
universo social.
O estado de natureza implicava num estado de pureza tal que a característica maior
seria a ausência de moralidade, valores, significados, conceitos, investigação ou qualquer
forma de especulação realizada pela mente humana. Era um viver por viver, cuja atenção se
focava na simples conservação da existência.
O que Rousseau pretende ao consultar o estado de natureza é buscar pelo homem
abordando para tanto os aspectos físicos, moral e psicológico. No Segundo Discurso ele traça
um perfil daquele que seria o homem primitivo. Mas esclarece que esse estado é hipotético,
podendo até mesmo não ter existido, apesar de que sua importância é primordial à
compreensão da sociedade enquanto constituição humana.
17
Outros poderão, desembaraçadamente, ir mais longe na mesma direção, sem
que para ninguém seja fácil chegar ao término pois não constitui
empreendimento trivial separar o que de original e de artificial na
natureza atual do homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais
existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e
sobre o qual se tem, contudo a necessidade de alcançar noções exatas para
bem julgar de nosso estado presente. (Inégalité, p. 532)
Rousseau parte de um ponto que na verdade é uma hipótese, uma possibilidade. O
desafio que o torna inquisidor é afastar todas as idéias livrescas e científicas, buscando a
pureza de um estado primitivo, o visualizando nele aspectos sociais, como propriedade,
valores, conceitos morais e significados. Diferente do cientificismo de sua época, o genebrino
não se arrisca em divagar sobre aspectos biológicos ou genéticos da natureza humana. A idéia
mitológica desse estado consiste na ausência de comprovações ou até mesmo menção
científica. Seria um estado embrionário que continha todos os elementos que vieram a
culminar em aspectos sociais. É isso que Rousseau busca: a metamorfose, não genética da
natureza humana, mas do estado de pureza para o estado de corrupção, onde pudesse
compreender a natureza originária.
Ele trata do estado de natureza e do homem natural, começando da concepção do
homem físico, imaginando-o tal como é: bípede, utilizando as mãos para manusear alimentos,
forte e resistente, com boa constituição sica, sendo capaz de resistir às intempéries da
natureza sendo ágil e habilidoso. A natureza mantém vivos os fortes que resistem às suas
imposições. A natureza faz com eles precisamente como a lei de Esparta com os filhos dos
cidadãos, torna fortes e robustos aqueles que são bem constituídos levando todos os outros a
perecerem”. (Inégalité, p. 537)
O homem natural encontra na natureza desafios a sua conservação, mas nela também
encontra a satisfação às suas necessidades: alimentação, cópula e descanso. A natureza lhe é
mantenedora e lhe fornece abrigo. Sua moradia é a imensidão de sua vista, podendo usufruir
18
com simplicidade de tudo o que está ao seu alcance. Sendo forte, ele é capaz de lutar com
animais maiores e resistir, dispondo de tempo suficiente para descansar.
Os riscos que o homem sofre nesse estado são três: as enfermidades naturais, que o
próprio tempo se incumbe de tratar, a infância, que mesmo sendo longa conta com a proteção
e cuidado da mãe, que carrega e alimenta, e a velhice, que “entre todos os males, é aquele que
o socorro humano menos pode aliviar”
4
(Inégalité, p. 538), mas que se esvai por si mesma. O
homem natural vive de forma tranqüila, sem conflitos, sem grandes temores. Não teme a
morte, pois sequer a conhece, conforme Rousseau, o animal jamais saberá o que é morrer,
sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo
homem ao distanciar-se da condição animal (Inégalité, p. 541)
5
. Seus únicos temores são a
dor e a fome.
O homem primitivo vive solitário e desocupado, sua única preocupação é com sua
conservação e suas faculdades atentam apenas para o ataque e defesa de suas presas. Parte de
seus sentidos ainda é rude, como o tato e o gosto, enquanto visão, audição e olfato, são
aguçados e capazes de grande percepção. Até aqui, o homem é igual aos outros animais. A
natureza manda, todos obedecem. Contudo, no homem um diferencial essencial: a
liberdade que possui para ceder ou o aos impulsos naturais. Somente o homem escolhe se
cede ou não às paixões que lhe advêm. “A natureza manda em todos os animais, e a besta
obedece. O homem sofre a mesma influência, mas se considera livre para concordar ou
resistir.” (Inégalité, p. 540) Essa capacidade de escolha torna o homem um ser dotado de
espiritualidade que pressupõe a existência de uma consciência. É aqui que vemos no homem
4
A velhice é considerada um estado crítico da natureza que assim com a infância, implica em
fragilidade e falta de destreza, mas com o agravo de não dispor do auxílio de outrem. No entanto é
uma questão que a própria natureza incumbe de resolver.
5
Lançado na simplicidade do cotidiano, o homem primitivo não abstrai, nem especula; sua mente é
restrita a seus atos singulares. A idéia de morte pressupõe certa especulação sobre a vida, coisa que o
homem selvagem o faz. A noção de perda não existe no estado de natureza porque simplesmente
não posse. Cada um vive lançado à própria sorte, sem se ater a nada, seja de caráter material ou
emocional.
19
um animal distinto dos demais, um ser espirituoso, livre, capaz de optar e escolher conforme
sua vontade.
[...] na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua
alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a
formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher, e no
sentido desse poder só se encontram atos puramente espirituais[...]
(Inégalité, p. 540).
Em analogia a outros animais, o homem aparece com uma grande concentração de
possibilidades devido à condição que o torna melhor, ou seja, a capacidade de escolher. Junto
com essa liberdade de escolha há ainda a faculdade de se aperfeiçoar, que promove, conforme
as circunstâncias, aprimoramento do homem enquanto indivíduo e enquanto espécie.
A liberdade do homem natural é ilimitada, indo desde escolhas simples, como ceder
ou não aos impulsos naturais, quanto ter acesso a tudo o que suas forças e condições
permitirem. Sua vida relegada ao simples fato de existir não lhe permite especulações sobre a
natureza a sua volta. Abandonado aos instintos pela natureza, suas atividades serão poucas,
restritas unicamente aos sentidos.
A gênese pela natureza está centrada na simplicidade dos sentidos, que sendo poucos,
não constitui um universo existencial complexo. São as condições naturais provocadas por
mudanças no clima, ou as intempéries da natureza que despertarão as possibilidades de um vir
a ser, que promoverão um despertar das condições de sobrevivência na luta pela conservação
elevando gradualmente a condição do homem na natureza, o que proporciona certa
“superioridade” diante de outros animais.
Mesmo com essa liberdade de escolha e a faculdade de se aperfeiçoar o homem não é
um ser meditativo que especula sobre a natureza ou sobre a vida ao seu redor. Sua vida lhe
permite realizar operações simples que se restringem unicamente aos sentidos.
20
Perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os
outros animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e
quase únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias nela
determinem novos desenvolvimentos. (Inégalité, p. 540)
De acordo com o genebrino, o homem não especula, não questiona e não se pergunta.
Sua mente é equiparada à sua vida simples. Suas preocupações se concentram na sua
conservação, que busca sempre a satisfação das poucas necessidades, restringindo-se ao
presente, ao imediato. A vida está condicionada a um mero existir. “Sua alma, que nada agita,
entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual sem qualquer idéia do futuro, ainda
que próximo, e seus projetos, limitados como sua vista, dificilmente se estendem até o fim do
dia”
6
. Não o uso da imaginação, ou comparações ou preferências nesse estado, o homem
quando tomado pelos impulsos naturais cede facilmente e tem na natureza a garantia da sua
satisfação. O que importa é o momento presente.
Esse é um estado que está fora do tempo e fora da história (PISSARA, 2002, p.51)
Um estado germinativo que engendrou todo desenrolar da humanidade. Um estado de paz e
não um estado de guerra como imaginou Hobbes
7
, caracterizado fortemente pelo imediatismo.
Um estado sem conflitos pois não existiam relações de trabalho (Homem x Natureza),
nem relações morais (Homem x Homem). O homem era completamente livre, não tendo
dificuldades para se conservar, não vendo no outro uma ameaça à sua integridade. Por não ter
propriedades, nem sentimentos de egoísmo, nem sofrer injustiça, mesmo não tendo noção de
justiça, os homens são todos iguais.
6
Inégalité, p. 542
7
Thomas Hobbes (1588-1679), assim como Rousseau, também vislumbrou a origem pelo estado
hipotético de natureza, contudo sua concepção se distingue por considerar tal estado uma condição
permanente de guerra, onde o “homem é lobo do próprio homem” tendo que lutar para garantir sua
conservação, não encontrando limites para se apropriar do que necessita para assegurar sua
sobrevivência, o que acaba provocando a superioridade de uns sobre outros. Um estado de ferocidade
e censura. Hobbes também concebe a razão como natural, existindo como instrumento para homem
primitivo e gerando as leis naturais. Segundo Hobbes a lei natural “é o preceito ou regra geral,
descoberta pela razão, que veta ao homem fazer o que é lesivo à sua vida ou que lhe tolhe os meios
para preservá-la e omitir o que ele pensa que sua vida possa ser mais bem preservada”. Hobbes, 1921,
p.211/212.
21
O estado de natureza surge como um quadro onde o homem é revelado tal qual sua
essência, de forma transparente e objetiva sem as máscaras sociais ou o pensamento disforme
da “razão delirante”
8
. Nesse estado de tamanha originalidade cogita a alma humana em sua
pureza primordial, diferente de uma imagem modificada pela ação arbitrária de uma história
forjada pelo próprio homem que, sendo social, pintou um selvagem com as cores sociais. Era
essa imagem que precisava ser reconstruída com integridade.
Por meio desse conceito geral de natureza, podemos notar o homem em suas
particularidades quanto à origem dos sentimentos e ao desabrochar dos sentidos. Vejamos
algumas características desse homem a seguir.
1.2 – HOMEM, ANIMAL E A IGUALDADE DOS INSTINTOS
Rousseau, em sua busca pela origem da espécie humana, não especula sobre uma
constituição do homem anterior à que possui; Como vimos ele supõe o homem de natureza
bípede, utilizando as mãos para manusear, tendo visão de toda natureza por meio da postura
ereta que exibe, sendo ágil, robusto, capaz de medir a extensão do céu. Mas, é importante
levarmos em consideração alguns aspectos e condições que fazem parte da constituição
humana nesse ambiente:
Inocência:
No estado de natureza o homem não é bom nem mau,o possuicios nem virtudes,
o que não leva a conclusão de um homem cruel. Não saber o que é o bem não significa
8
Cf. Inégalité, p. 557.
22
imaginar um homem mau. A vida restrita ao simples existir não poderia julgar”, atribuindo
valores morais às ações, pois essa é uma atividade da razão. As escolhas, feitas conforme o
prazer para a realização imediata das necessidades, caracterizam o zelo à existência e à
manutenção da vida. A diferença entre bem e mal o existe para a consciência limitada do
homem de natureza.
9
O desconhecimento dos vícios e a tranqüilidade das paixões o
impedem de agir mal.
10
Uma vida simplória resumida, ao existir factual, caracteriza esse estado mostrando um
desconhecimento da abstração e uma distância da falácia dos sentidos, já que estes se reduzem
à realização das necessidades. O que denota uma inexistência de valores, de especulações e de
anseios pelo bem ou mesmo pelo mal. Se os conceitos de bem e mal, assim como todos os
valores decorrentes destes, fossem atribuídos à conservação, não poderiam ser ruins que se
conservar é fundamental à existência, e buscar isso implica no bem, seja para si mesmo
enquanto individuo, seja para a espécie enquanto partícipe.
Tamanha singeleza não traz em si educação ou progresso e mesmo com a
multiplicação da espécie e com a chegada da velhice o homem de natureza permanece tal qual
uma criança em sua pureza e desconhecimento:
A arte perecia com o inventor. Então não havia nem educação, nem
progresso, as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada um
sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria
das primeiras épocas; a espécie era velha e o homem continuava sempre
criança. (Inégalité, p. 549)
A pureza e a ignorância foram as marcas do homem primitivo.
9
Cf. STAROBINSKI, 1991, p.37
10
Cf. Inégalité, p. 546.
23
Isolamento ou Solidão?
Não nesse estado nenhum tipo de vínculo ou relacionamento duradouro firmado
entre os homens. Dispostos à própria vontade, vivem conforme a satisfação de suas
necessidades que sendo poucas, são facilmente resolvidas. No entanto, isso não exclui o
contato com outros da mesma espécie, até mesmo para que necessidade como a cópula seja
efetivada. O que não é um estreitamento desse contato; um elo capaz de estabelecer um
relacionamento que gere vínculo afetivo ou de dependência.
A ausência de relacionamento não implica aqui em completa displicência para com a
espécie, ou total abandono dos outros. A diferença es em que a ausência de vínculos exclui
parâmetros ou normas para uma convivência. Os homens simplesmente existem. A falta de
relações permite completa liberdade e acesso a tudo o que estiver ao alcance de cada um.
[...] errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicilio, sem
guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes, bem
como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer
alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões
e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes
próprias desse estado [...] (Inégalité, p. 549)
Essa solidão aponta a auto-suficiência, característica do homem rude. Sem depender
de ninguém ele é capaz de sobreviver sozinho e o faz sem maiores transtornos. A solidão aqui
não é uma característica negativa do homem de natureza, mas uma condição motivada pelas
próprias circunstâncias decorrentes desse estado pré-social, onde a busca pela conservação é
acirrada. Sem um acordo firmado com outro não qualquer tipo de responsabilidade ou
apego.
Vemos assim, que o homem natural é solitário, mas não está isolado; seu
relacionamento com semelhantes é breve e conforme a necessidade do momento, desfazendo-
24
se de acordo com a providência da necessidade que os uniu temporariamente. As relações
nesse estado estão no âmbito do imediatismo.
Ócio
11
Como vemos não para o homem nenhum tipo de relação, inclusive com a natureza.
Isso implica em total ócio ou ausência de um trabalho sistemático e formal que resulte em
horas concentradas e abnegação do tempo em favor de um bem maior. Como não existe
preocupação com o futuro, pois essa idéia é abstrata e não se concebem idéias desse nível, não
se acumulam provimentos em determinados períodos de dificuldade. A busca e preocupação
se referem ao hoje, ocasionando um imediatismo de certa forma oportuno, por não acarretar
em preocupações.
A natureza, mantenedora das necessidades, oferece abrigo e alimentação, sendo isso
suficientes para a satisfação dos desejos primários que não ansiedade ou apreensão
quanto ao que virá. A vida é adequada à natureza, seguindo conforme os ditames desta.
Cada um responde por si de modo que a satisfação das necessidades fica restrita ao
próprio existir. Sem a interferência de outros, e sem obrigações a cumprir, o homem natural
vive conforme as necessidades; nisto consiste sua busca.
Felicidade
O estado de natureza, favorável ao homem ao assegurar as condições para sua
sobrevivência, facilita a plena satisfação das necessidades. Se concebermos aqui a felicidade
como completo bem-estar e realização das necessidades, tal estado põe o homem nessa
11
Podemos compreender essa idéia como crítica à sociedade capitalista e defesa de um ócio criativo. O
trabalho não é natural conforme a construção do pensamento do genebrino.
25
dimensão metafísica. Contudo, ele não tem essa noção que por si mesma é abstrata, mas a têm
enquanto posse por efetivar as necessidades que conduzem a autopreservação e ao zelo de si
mesmo, que implicam em bem-estar e paz de espírito.
Ser feliz, no estado de natureza, consiste em estar vivo tendo satisfeito às
necessidades. As ameaças que cercavam o homem diziam respeito à dor e à fome, seus únicos
temores, que observava na natureza. Não temor pela morte, pois tal conhecimento implica
um processo de exercício mental que será possível numa condição que não será tão
singular.
A ignorância de possibilidades abstratas e racionais favorece no homem a
tranqüilidade, pois satisfeitas suas necessidades, sente-se em harmonia plena consigo mesmo
e com a natureza a sua volta. Essa segurança que desfruta, torna a natureza acolhedora e
materna apesar de todos os perigos e intempéries que possam apresentar. Ela é o abrigo e a
mantenedora do homem que se realiza nela, mesmo nos períodos mais críticos.
Dessa forma, o homem é feliz vivendo inocentemente sem sentimentos diferentes de
sua condição puramente animal. Busca a realização de suas paixões, que concorrem à própria
conservação, e tem as condições necessárias para efetivá-las. Como essas paixões são poucas
e simples, são facilmente resolvidas e logo o homem se encontra livre. E é essa liberdade o
bem maior que compõe sua natureza.
Perfectibilidade
De acordo com o genebrino, no homem uma capacidade inata que auxiliada pelas
circunstâncias favorece o desenvolvimento e a superação de obstáculos. Essa pré-disposição
chama-se “faculdade de se aperfeiçoar”, uma capacidade de perfectibilidade que faz com que
26
os instintos se aprimorem de tal modo que levem o homem a uma situação de progresso, e que
o acompanha durante toda a vida, distinguindo-o dos outros animais.
[...] quando as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por
um instante de causar discussão sobre a diferença entre o homem e o
animal, haveria uma outra qualidade, muito específica, que os distinguiria a
respeito da qual não pode haver contestação é a faculdade de aperfeiçoar-
se que, com o auxilio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas
as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie, quanto indivíduo.
(Inégalité, p. 540)
Através dessa faculdade, o homem desenvolve todas as capacidades que possui e que
se encontram potencializadas no estado de natureza. Por meio dela, o homem sai
gradualmente do estado original, colocando-se numa condição complexa de vida, onde a
sociabilidade acarretou um vasto horizonte de necessidades, idéias e comparações. A
perfectibilidade é pertinente ao estado de natureza, mas é no estado social que se efetiva.
12
O nível de desenvolvimento promovido pela perfectibilidade não é louvado por
Rousseau, que faz dura crítica ao considerar as mazelas oriundas da vida social. Essa
capacidade pode ter sido a “fonte de todos os males do homem”.
13
Ela o levou a um estado de
dependência e fraqueza, onde os vícios foram despertados juntamente com a tirania, onde o
homem passou a ser escravo de outro homem.
A perfectibilidade foi a propulsora do rompimento com a singularidade de uma vida
rústica, culminando numa sociedade que moldou no homem um caráter conflituoso. Ela
favoreceu a conservação, mas estabeleceu conflitos permanentes com a natureza à medida que
aumentou as necessidades e gerou dificuldades para a satisfação destas.
O aspecto positivo dessa capacidade foi o vir a ser” do homem. A realização das
possibilidades da constituição humana em seu existir prático, ou seja, na construção da
sociedade. A desnaturação trouxe outras possibilidades para a manutenção da vida.
12
Cf. OLIVEIRA, 1977, p.41.
13
Cf. Inégalité, p. 549.
27
1.3 – HOMEM E ANIMAL: DOS INSTINTOS AOS SENTIDOS
Livre, sem nenhum tipo de laço social e auto-suficiente está o homem. “Errando pelas
florestas”. Mas, apesar de toda solidão e ausência de fatores que condicionem suas escolhas,
existem dois princípios que direcionam o homem no estado de natureza: o Amor de Si mesmo
e a Piedade Natural. Sentimentos, escritos como lei em seu coração, que moderam as paixões
naturais no ímpeto de alcançar tudo o que deseja. O primeiro que mantém vivo o desejo de
conservar-se e o segundo, um sentimento que faz com que considere a própria natureza, ou
seja, os outros animais ou outros da própria espécie. Vejamos a seguir esses sentimentos:
O Amor de Si Mesmo
Pertinente à própria vida é a conservação; a fuga da dor, da fome, das intempéries e
dificuldades representa o interesse do homem em zelar por sua existência, sendo esse
sentimento primeiro compreendido como amor e apego à condição de ser e se manter vivo.
Esse interesse em se conversar dará origem a outros sentimentos, que também concorrerão
para a conservação, e sempre fará parte da constituição humana. Rousseau assim o define:
A fonte de nossas paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única
que nasce com o homem e nunca o abandona enquanto ele vive é o amor de
si mesmo; paixão primitiva, inata a todas as outras e de que todas as outras
não passam, em certo sentido, senão modificações. [...] O Amor de Si é
sempre bom e conforme a ordem [...] (Émile, p.527)·.
28
O amor à vida se manifesta na busca pelo bem-estar, primeiro a si mesmo, depois
aquilo que o ajuda nessa tarefa. Por essa razão, o homem ama tudo o que conserva e repudia
tudo o que impõe ou oferece risco: “o que favorece o bem-estar de um individuo atrai-o; o
que lhe é nocivo e prejudica repugna-o [...]” (Émile, p.527)
O amor e o cuidado pela vida aumentam à medida que o homem a dor alheia; o
sofrimento de um outro ser desperta no homem um sentimento de cuidado que se prolonga,
alcançando o outro enquanto partícipe da condição de vivente. A necessidade de estar vivo, e
em boas condições, é apreendida como um bem imprescindível. O amor de si mesmo
desponta como um lampejo interior de cuidado pela existência, primeiro de si, depois dos
outros, não individualmente, no âmbito particular de relações, mas enquanto espécie.
Ter as necessidades supridas assegura a satisfação do amor de si, que compreende uma
vida livre e feliz. Livre por não estar preso a nenhuma necessidade e feliz por estar
plenamente realizado em seus desejos. Sendo assim, o amor de si coopera para a felicidade
quando põe o homem na condição de auto-realizador. Ele tem em si mesmo as possibilidades
para viver bem e se satisfazer, sendo o agente promotor do que procura. Não está alienado a
ninguém ou a nenhuma condição que não seja imposta pela natureza, e seu desafio é superar
as adversidades naturais.
Esse sentimento, espontâneo e sempre bom, é um movimento de sensibilidade que
constituirá uma moral de responsabilidade natural, não no sentido normativo racional, mas no
sentido de conduzir e direcionar na busca pelas melhores formas de satisfação das
necessidades. Mesmo sendo um sentimento de caráter individual, não torna o homem um ser
“brutal” que avança nas conquistas dos desejos. uma moderação desse amor no
reconhecimento do outro enquanto individuo da mesma espécie.
Dessa forma, o Amor de Si mesmo não pode ser mal, pois representa o bem quando
concorre para a conservação da vida e a manutenção da existência. Ele dosa no homem, de
29
forma prática, o respeito e a responsabilidade por tudo que o cerca quando se reconhece o
amor às coisas que fortalecem e favorecem a conservação. O Amor de Si se configura assim
como um ponto de base na “moralidade” natural.
É importante compreender que para Rousseau, o Amor de Si Mesmo é diferente de
Amor-próprio. A distinção revela os sentimentos envolvidos nessas formas de amor,
aparentemente iguais, mas essencialmente diferentes; o Amor-próprio nasce da comparação e
da autovalorização, apreciação e preferência. É um amor egoísta, social, capaz de produzir
paixões irascíveis, enquanto o Amor de Si é reportado à conservação e à manutenção da vida:
O Amor de Si, que a nós mesmo considera, fica contente quando nossas
verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o Amor-próprio, que se
compara, nunca está contente nem poderia estar, pois esse sentimento,
preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles,
o que é impossível. Eis como as paixões doces e afetuosas nascem do Amor
de Si, e como as paixões odientas e irascíveis nascem do Amor-próprio. [...]
o que torna o homem essencialmente mau é ter muitas necessidades e dar
muita atenção à opinião. (Émile, p.527)
O estado de natureza, com poucas necessidades e total ignorância dos vícios e virtudes
favorece a tranqüilidade e proporciona a efetivação do amor de si mesmo, retirando do
homem selvagem a idéia de um sujeito carrancudo e mau. Mas a saída gradual desse estado
simplório gera aos poucos uma nova vida, trazendo novas necessidades, estreitando os
vínculos, aproximando os homens por meio de relacionamentos, que passam a ser mais
duradouros, trazendo conseqüentemente uma dependência, estabelecida sutilmente. Dentro
desse contexto, o amor o se restringe a si mesmo, ao olhar sobre si, mas a observação e a
comparação desperta o egoísmo por meio da autopreferência
14
.
Diferente do Amor de Si, o Amor-próprio observa, julga e imagina, exercendo
atividades que não compõe a natureza singela do homem primitivo. Isso não é benéfico à
14
Veremos no capítulo seguinte o processo de desnaturação que levou o homem a estabelecer relações
duradouras e atrair para si responsabilidades por meio dessas relações, que envolveu outros homens e
a natureza.
30
essência humana, mas leva o homem a um egoísmo ferrenho, a uma busca desenfreada pela
consideração e pela estima pública, retirando-o completamente da simplicidade original,
levando-o a uma vida de infelicidade e sofreguidão, com novas necessidades, alienadas a
outros homens, o que se torna mais difícil de realizar.
As modificações do Amor de Si, provocadas por causas estranhas
15
, engendram em
paixões que ao invés de trazerem vantagens, tornam-se nocivas à própria existência, pondo
desejos inúteis e necessidades fúteis que dificultam a manutenção da conservação.
Esse sentimento mesquinho e egoísta não nasce com o homem, mas é despertado nas
relações com outros homens. O laço que deveria ser produzido por um aprimoramento do
Amor de Si e da Piedade, sentimentos de conservação e altruísmo, torna-se um elo de
interesse onde cada um pretende ser melhor, em decorrência de uma desigualdade imaginativa
com base no julgamento feito por meio do olhar. Por essa razão não se deve confundir Amor
de Si e Amor-próprio. As finalidades de ambos são distintas e os fins a que se destinam
também.
O Amor-próprio não deve ser confundido com o Amor de Si mesmo, pois
diferem em si mesmos e em seus efeitos. O Amor de Si mesmo é um
sentimento natural que leva todo e qualquer animal a cuidar da própria
conservação e que guiado no homem pela compaixão, cria humanidade e
virtude. (Inégalité, p.538)
Enquanto o Amor de Si busca benefícios à conservação, o Amor-próprio busca
interesses referentes a si mesmo, muitas vezes sem reconhecer o outro, mas com o intuito de
se estabelecer com superioridade e dominação, impondo-se como melhor. A distinção do
Amor de Si do Amor próprio será necessária a compreensão da saída do estado de natureza à
consolidação da sociedade que trouxe, segundo Rousseau, mais males que bens a espécie
humana.
15
Cf. Émile, p. 527.
31
A Piedade Natural
O homem vive sozinho no estado de natureza, mas isso não significa em completo
isolamento e sim na ausência de relações definidas com outros homens; não existem para eles
vínculos com deveres comuns nem relações morais estabelecidas por qualquer tipo de
convenção.
De acordo com Rousseau, isso não pode levar como fez Hobbes, à idéia de um homem
cruel ou hostil: “não iremos, sobretudo, concluir como Hobbes, que por não ter nenhuma idéia
da bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a
virtude”. (Inégalité, p.546)
O estado de natureza, com toda sua simplicidade, era segundo Rousseau, o “mais
propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano(Inégalité, p.546), pois nele o
homem lutava apenas por sua conservação, e isso não incluía a satisfação de paixões outras
senão as da própria necessidade de existência, como não implicava em disputas inúteis ou
crueldade com os mais fracos e debilitados.
De acordo com Rousseau: “os selvagens não são maus, precisamente porque não
sabem o que é ser bom, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a
tranqüilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal”.
(Inégalité, p.546)
Segundo o autor do Segundo Discurso há, de forma natural e perceptível em todos os
animais, um sentimento que modera as paixões, um dispositivo que promove o equilíbrio e
promove atos de misericórdia: a Piedade.
A única virtude natural que o detrator mais acirrado das virtudes teria de
reconhecer. Falo da Piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e
sujeitos a tantos males como somos; virtude tanto mais universal e tanto
mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão
32
natural que as próprias bestas às vezes dão dele alguns sinais perceptíveis.
(Inégalité, p.547)
A Piedade, esse atributo natural, inerente ao simples fato de existir, condiciona todos
os animais a uma mansidão e um estado de paz, fazendo com que nenhum deles, inclusive o
homem, sinta prazer em ver outro sofrer, ou tirar proveito em benefício próprio, da desgraça
alheia.
A infelicidade do outro não pode produzir um sentimento de prazer, senão de
comiseração. Ver alguém em condição de dor ou angústia desperta com força esse sentimento
que colabora para a conservação. Segundo Rousseau, não é preciso refletir para chegar a
conclusão de que alguém ferido precisa de socorro; o que sente piedade se põe no lugar
daquele que sofre e se identifica com o sofrimento. aqui uma extensão do Amor de Si,
pois o homem que não sente prazer no sofrimento, também não tolera a dor em outro ser vivo
ou individuo da mesma espécie.
A Piedade, o segundo movimento de sensibilidade que lapida e direciona as ações,
poderia ser considerado como outro ponto de moralidade do homem natural agindo como uma
lei que pondera nos homens a paixão, colaborando dessa forma para a conservação de toda
espécie.
Certo, pois a Piedade representa um sentimento natural, que moderando em
cada indivíduo a ação do Amor de Si mesmo, concorre para a conservação
mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que
vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos
costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém se sentir tentado a
desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de
tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida
com dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar em outra parte.
(Inégalité, p.547)
O desejo de se conservar, sendo bom em si mesmo, não torna o homem cruel. Para o
homem, que diferente dos animais tem a vantagem de escolher se quer algo ou não, a Piedade
33
terá um caráter mais significativo. Ela soará como uma doce voz no seu coração e certamente
ele não terá como lhe resistir. Há na constituição mais íntima de cada ser vivo uma pré-
disposição à benevolência sem que exista para isso uma regra pré-estabelecida.
Dessa forma, um equilíbrio na própria natureza anterior a qualquer forma de
reflexão. A Piedade com toda sua singularidade resulta na moderação e na conservação. É um
apelo da natureza ao bem da própria existência. Ela o reserva aquele que a escolhe perdas,
seja de que espécie for, nem tampouco males, proporcionando um elo entre os homens com
base no amor e na responsabilidade.
O agir piedoso promove e reforça a conservação podendo estabelecer laços de respeito
e bondade, mesmo que estes não sejam duradouros. Não estabelece ainda qualquer forma de
desigualdade por revelar a fraqueza de um, mas desperta de certo modo, uma responsabilidade
pelo bem do outro levando em conta a espécie enquanto tal.
A Liberdade Natural
O homem natural tem o maior de todos os benefícios que caracterizam a existência: a
liberdade. Ele vive sozinho, anda errante pela natureza mas encontra nela tudo aquilo de que
necessita, não dependendo de outrem para manter sua própria conservação, ele não está
alienado a ninguém e a nenhuma condição que não seja natural.
Por ter tudo e nada ao mesmo tempo, o homem não estabelece nenhum laço ou
vínculos com outros homens, seja de ordem afetiva ou moral. Os laços criados pela piedade
são feitos e desfeitos conforme a realização das necessidades. Há aproximação quando surge a
necessidade ou um desafio maior ou ainda um obstáculo a ser vencido, e naturalmente o
afastamento com a satisfação da mesma.
34
Sendo livre, o homem é dono e senhor de si. Pode se deslocar conforme sua vontade e
pode satisfazer suas necessidades de acordo com sua disponibilidade, pois a natureza lhe
concede esse privilégio. Ele é livre para descansar quando e onde quiser, e não ter uma casa
não lhe impede de usufruir tudo o que a natureza lhe reserva. O homem é dono de seus passos
e de seu próprio destino, tendo acesso ilimitado a tudo o que estiver ao seu alcance.
A não ligação com outros homens lhe torna um indivíduo autônomo, mas não egoísta,
pois também favorece a conservação do outro através da Piedade. Os vínculos ainda não
estabelecidos promovem total liberdade inclusive para o uso da Piedade, mantendo uma
considerável distancia entre os homens, que se relacionam, temporária e arbitrariamente, mas
não criam laços permanentes.
A liberdade natural é a garantia para a realização de todos os seus desejos, que sendo
bem poucos e simples, são facilmente satisfeitos. Ninguém lhe impõe ordem ou
recomendação e a ausência das relações de trabalho lhe deixa a vontade para interagir do
modo que escolher com a natureza.
Existe ainda liberdade em relação à afetividade. As relações entre macho e fêmea são
puramente simples, sem estabelecer vínculos de apego, restringindo-se à cópula. Nãoamor
moral. Segundo Rousseau, o amor moral é um sentimento oriundo da sociedade, no qual o
indivíduo se fixa exclusivamente num objeto, por meio da comparação. No estado de natureza
não existe comparação pois a idéia do Belo, além de ser abstrata, decorre do olhar sobre o
outro. Desse mesmo olhar nascem outros sentimentos, sendo que todos eles levam ao engano
e a falácia dos sentidos, conforme vemos no Segundo Discurso:
Ora é fácil de compreender que o moral, no amor, é um sentimento
artificial, nascido do costume da sociedade e celebrado com muita
habilidade e cuidado pelas mulheres, que visam estabelecer seu império e
tornar dominante o sexo que deveriam obedecer. Esse sentimento,
baseando-se em certas noções de mérito ou de beleza, que um selvagem é
incapaz de ter, e em comparações que não está em condições de fazer, deve
ser quase nulo para ele. (Inégalité, p. 548)
35
O que caracteriza o estado de natureza é a simplicidade, onde não existem
comparações que geram escolhas. O homem primitivo é livre e não têm em seu coração
sentimentos de admiração e de amor de modo que qualquer fêmea lhe convém. Isso quer dizer
que todas as mulheres lhe são iguais, e que o ardor da paixão não se transforma num caos ou
num ímpeto de busca, mas se desvanece quando a necessidade é satisfeita.
Essa liberdade da qual todos desfrutam, promove a igualdade entre os homens, pois os
coloca nas mesmas condições: “[...] a simplicidade e uniformidade da vida animal e selvagem,
na qual todos se alimentam com os mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem
exatamente as mesmas coisas [...]” (Inégalité, p.549).
Porém, essa mesma liberdade favoreceu um novo estilo de vida, através da
capacidade de se aperfeiçoar, estabelecendo relacionamentos mais intensos e duradouros,
despertando a capacidade inata do homem de se aprimorar e vencer desafios e obstáculos por
meio da união entre iguais. Até aqui, nesse momento intermediário entre a total naturalidade e
a socialização, não alienação de um homem a outro, mas à medida que se desenvolvem os
hábitos comuns e se despertam os olhares, novas condições passam a existir, e a simplicidade
de outrora cede gradualmente a um novo florescer da existência humana. A grande pergunta
de Rousseau será em que instante o homem abriu mão desse bem, dessa liberdade
incondicional e irrestrita se dando a uma nova condição onde a liberdade passaria por
condicionantes externos, diferentes de sua própria vontade. Sua construção por meio de uma
hipótese sugere a retomada de um princípio ignorado pela historia, que tomou a realidade
factual como realidade única, o que resultou numa imagem degradada da constituição
humana, bem como da origem de todas as mazelas, cujo mal maior consistiu na perda da
liberdade.
A liberdade pode ser compreendida para o genebrino como o bem maior do homem,
da sua existência, de modo que abrir mão da liberdade é abandonar sua natureza humana.
36
Portanto, vislumbrar a liberdade natural enquanto componente essencial do homem natural
implica pensar num estado de soberania e responsabilidade naturalmente intrínseca ao
homem, mas que em algum momento se perdeu e se alienou. Em que instante se deu esse fato,
é o ponto do próximo capítulo.
37
CAPÍTULO 2
O PROCESSO DE DESNATURAÇÃO E O SURGIMENTO DO
CIDADÃO E DA SOCIEDADE CIVIL
Para compreendermos como aconteceu a ruptura do universo simplório da natureza,
que gerou toda degradação da essência da alma humana, não podemos deixar de caminhar na
odisséia rousseauniana sem vislumbrar o processo de desnaturação, percorrendo desde a
passagem do estado de natureza para o estado de civilização, que constitui importante passo
na compreensão do pensamento de Rousseau, quanto à moralidade e à constituição da vida no
liame social.
O estado de natureza, um estado simplório repleto de possibilidades imbricadas na
faculdade de se aperfeiçoar, vai aos poucos se extinguindo. Acaso não queria a natureza que o
homem permanecesse na vida rude e simples que lhe apresentara? Por certo que o. A
própria natureza, impôs as condições para o desenvolvimento das virtudes potencializadas do
homem. As estações, os climas intensos, as dificuldades na busca de alimentos, os animais
38
maiores, assim como uma série de elementos naturais colaborou para o despertar da cognição
e do olhar do homem sobre o mundo e sobre os outros à sua volta.
Rousseau tem por objetivo compreender como se deu a passagem do estado de
natureza para o estado de civilização a fim de buscar as origens das mazelas sociais como a
injustiça, a desigualdade e a arbitrariedade, cujo resultado mais expressivo foi a apropriação
indevida de bens e propriedades
16
, inclusive da liberdade do outro por meio da alienação.
Dessa forma, a compreensão da sociedade em seus aspectos mais profundos produziria
uma crítica positiva que, ao analisar os erros, buscaria a melhor forma de reconduzi-la, num
processo de restauração da dignidade humana. Por meio dessa reconstrução hipotética da
história da humanidade seria reconstruída a imagem do homem, em sua realidade, sem as
facetas ou erros da falacidade dos sentidos e da razão forjados ao longo da história.
Vejamos então como se deu a passagem do estado de natureza par o estado civil.
2.1 A SAÍDA DO ESTADO DE NATUREZA E A CRIAÇÃO DO ESTADO
CIVIL
No estado de natureza, a vida do homem selvagem se limitava às sensações puras, a
um simples estar no mundo levando em conta apenas as necessidades rudimentares, como
alimentação, descanso e cópula, assim como a busca constante pela conservação. Seus
instintos o faziam utilizar-se da natureza, mas sem nenhum uso prévio de imaginação ou
qualquer forma de especulação.
16
Apropriação essa que resultou na escravidão, na exploração de um homem pelo outro, com
conseqüente perda da liberdade. Segundo Rousseau “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi
aquele que cercando um terreno disse: isso é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para
acreditá-lo”. (Inégalité, p. 551).
39
Viver na natureza implicava estar de acordo com as condições impostas; mas a própria
natureza lançou desafios ao homem que precisou aprender como vencê-los:
Mas logo surgiram dificuldades e impôs-se aprender a vencê-las; a altura
das árvores, que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais
que procuravam nutrir-se deles, a ferocidade daqueles que lhe ameaçavam a
própria vida, tudo obrigou a entregar-se aos exercícios do corpo; foi preciso
tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais,
que são os galhos de árvore e as pedras, logo se encontraram em sua mão.
Aprendeu a dominar os obstáculos da natureza, a combater, quando
necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios
homens ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte.
(Inegalité, p.551)
17
A existência simplória passava lentamente a uma vida elaborada, com progressos
visíveis e permanentes. Os primeiros avanços, como o aumento do trabalho, provocado pela
multiplicação da espécie, a adaptação ao clima e às terras diferentes, as possibilidades
desenvolvidas nos artefatos, como linha e anzol, trouxeram algo novo: a indústria.
Essa indústria, a princípio rudimentar, constava na adaptação e aperfeiçoamento de
materiais que encontrava na natureza; o homem passou a elaborar ferramentas, armas e
artefatos que amenizaram os esforços na busca de sua conservação e na necessidade de
sobrevivência. Aos poucos se iam desenvolvendo apetrechos que tornariam menos árduo o
trabalho e a vida.
Em meio a um progresso físico se inicia também o psíquico: “a adequação reiterada
dos vários seres a si mesmo e de uns aos outros levou, naturalmente, o espírito do homem a
perceber certas relações”. (Inegalité, p.552) A capacidade de se aperfeiçoar despertou a mente
do homem selvagem para uma reflexão acerca do seu espaço, de sua vida e de suas condições
em analogia aos outros animais. Rousseau chama essa reflexão de prudência maquinal e
observa que ela facilita a conservação por promover uma maior segurança. A consciência de
17
Vale ressaltar aqui que esse “mais forte” que Rousseau utiliza se refere à desigualdade natural,
única aceitável por ser produzida por uma causa exterior ao homem, e da qual não pode fugir.
40
“ser melhor” ou diferente aumenta a superioridade no homem em relação aos outros animais;
superioridade essa que permite criar e usar armadilhas para melhor agarrar suas presas.
Começa a ser despertada e desenvolvida a sagacidade.
Nesse compasso de progresso, surge um sentimento: o orgulho, que nasce da
comparação, de um olhar sobre o outro. As relações entre homem x natureza, e homem x
homens começam a mudar. O surgimento do trabalho (utilização mais proveitosa dos recursos
e possibilidades naturais) marca a ruptura passiva do homem quanto ao estar no mundo; o
reconhecimento de outros seres iguais, promove a ajuda mútua, a união de forças em prol de
um desafio a ser superado, com conseqüente conservação de um grupo, e aos poucos se
estabelece a superioridade do homem frente à outros animais.
Nesse novo vislumbre, os homens passaram a se reunir em bandos que se formavam
conforme a necessidade, desfazendo-se logo após sua realização. Essa relação se dava numa
associação livre e passageira, sem regras ou especificações. Tinha um objetivo a cumprir e
após fazê-lo, simplesmente se extinguia. Ainda não havia a preocupação com o futuro e se
cada um do bando pudesse resolver algo sozinho o fazia sem sentir falta dos companheiros.
A língua nesse momento era caracterizada em forma de “gritos inarticulados, muitos
gestos e alguns ruídos imitativos” (Inégalité, p.552), sendo adaptados ou convencionados de
acordo com as regiões se tornando posteriormente línguas particulares, apesar de grosseiras.
Conforme o estreitamento nas relações surge a necessidade da comunicação, que segundo o
Essai sur l’origine dês langues, tem sua gênese nas paixões (amor, ódio, piedade, cólera...) e
não nas necessidades físicas, como a sede ou a fome. Pelo envolvimento e aproximação com
outros homens, pelo agrupamento social que esse elo promove, a necessidade de expressar os
sentimentos eclode primeiramente com gritos que culminam na linguagem, outro ponto que
distingue os homens dos animais e mais ainda, distingue um homem de outro, por revelar
características particulares de cada um, como o lugar em que reside, por exemplo. A
41
linguagem será um dos avanços promovidos pela faculdade de se aperfeiçoar, pertinente à
natureza humana, que mostra a capacidade de adaptação aos novos obstáculos e condições.
À medida que o espírito desperta e se esclarece o mundo ao redor avança; utilizando
recursos descobertos e criando novos meios, o homem deixa sua moradia natural, em baixo de
árvores e em cavernas escuras, passando a construir, com seus artefatos, novas moradias, que
agora passa a defender. “A essa época se prende a uma primeira revolução que determinou o
estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da
qual nasceram talvez brigas e combates”. (Inégalité, p.553)
Cada família nascente gera em si uma pequena sociedade com pessoas exercendo
funções e tarefas distintas. O agregado de homem e mulher, habitando num mesmo lugar e
assumindo papéis de marido, esposa, pai e mãe, produz sentimentos como o amor conjugal, e
o amor paternal. Os homens passam a ter responsabilidades pelas vidas de outros homens,
buscando não mais a própria conservação, mas a de segundos e terceiros. Começam aqui
profundas distinções entre os sexos. “Cada família tornou-se uma pequena sociedade, ainda
mais unida por serem a afeição recíproca e a liberdade os únicos liames e, então se
estabeleceu a primeira diferença no modo de viver dos dois sexos, que a nenhum
apresentava”. (Inégalité, p.553)
Essa união trouxe aos homens a vantagem de resistir melhor às dificuldades e a ter
uma vida mais suave, contudo gerou certa comodidade que, passou a enfraquecer o corpo
gerando posteriormente novas necessidades, das quais não podia mais se desvencilhar. Assim,
os benefícios que conseguiu criar se transformaram em transtornos e frustrações quando não
realizados. “A privação se tornou muito mais cruel do que doce fora sua posse, e os homens
se sentiam infelizes por perdê-las, sem terem sido felizes por possuí-las”. (Inégalité, p.553)
De acordo com Rousseau, essas uniões que engendraram as famílias facilitaram ou
promoveram o desenvolvimento da língua que agora se tornava uma necessidade, devido o
42
nível das relações estabelecidas. As várias famílias reunidas, vivendo agrupadas findaram por
estabelecer, convencionalmente, “um idioma comum”.
Tudo começa a mudar de aspecto. Até então errando nos bosques, os
homens, ao adquirirem situação mais fixa, aproximam-se e por fim formam,
em cada região, uma nação particular, própria nos costumes e caracteres,
não por regulamentos e leis, mas, sim, pelo mesmo gênero de vida e de
alimentos e pela influência comum do clima. (Inégalité, p.553/554)
Além de promover o desenvolvimento da língua, a aproximação das famílias resulta
numa acomodação de pessoas e posteriormente de outras famílias. Esse agregar passa a
estabelecer trocas, contatos e reuniões por conta da ociosidade comum. Surgem as danças, os
cantos e com eles a idéia de mérito, beleza e a necessidade de “estima pública”, o desejo de
ser visto, de ter apreço e ser reconhecido pelos outros. Desse desejo, nada sadio segundo
Rousseau, brotam sentimentos que levarão às desigualdades e aos vícios:
À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o
coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se,as
ligações se ampliam e osnculos se estreitam. Os homens habituaram-se a
se reunir diante das cabanas ou ao redor de uma grande árvore: o canto e a
dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração e,
sobretudo a ocupação dos homens e das mulheres ociosas arrebanhados.
Cada um começou a olhar os outros e a desejar se olhado, e a estima pública
passou a ter valor. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o
mais astuto ou mais eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o
primeiro passo tanto para a desigualdade, quanto para o vício; dessas
primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e de
outro, a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos
germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência.
(Inégalité, p.554)
18
Sentimentos aparentemente pequenos, mas que convergem por um caminho difícil, no
qual o homem passa a ser vítima de si mesmo. Com a necessidade de ser reconhecido, cada
homem pretende de alguma forma ser aceito. O olhar de um homem sobre outro traz à tona a
comparação e o desejo de também ser visto, marcando a ruptura da simplicidade natural, de
18
Começa aqui as comparações mais fortes, o desejo de olhar e ser visto e o conflito, que será
permanente, de ser o mais apreciado que incidirá na problemática entre ser e parecer.
43
um simples estar no mundo. Nessa cadeia de apreciação, começam a surgir os valores morais
que estabelecem regras para aceitação ou punição das atitudes. A Piedade, o sentimento
natural que movia os atos de justiça, vai sendo coberta por sentimentos novos, egoístas, que
fazem o homem olhar apenas para si mesmo e para suas próprias necessidades. Cria-se uma
situação inversa que desperta o instinto carrasco e cruel daquele que outrora era bondoso. As
afrontas existenciais e os limites da busca pela conservação continuam implacáveis; o homem
começa a buscar resistência agindo com outros interesses que não visavam mais a
conservação da espécie enquanto tal, mas de si mesmo dentro da convivência com essa
espécie. O Amor de Si mesmo assume a forma de Amor-próprio, não mais altruísta como
antes buscando a conservação, mas sendo egoísta na busca de conquistas a si mesmo.
Juntamente com a festa surge a corrupção ocasionada pela comparação que julga o melhor em
decorrência do olhar do outro, gerado através de um processo de alteridade-alienação
19
.
Outra grande revolução na passagem do estado natural para o estado de civilização
aconteceu com a descoberta e utilização da Metalurgia e da Agricultura. Rousseau não sabe
ao certo como se iniciou o uso da Metalurgia; ele especula que “a circunstância extraordinária
de algum vulcão que, vomitando matérias metálicas em fusão, deu aos observadores a idéia de
imitar essa operação da natureza”. (Inegalité, p.555) Contudo, esse trabalho penoso e difícil
não deve ter sido utilizado por simples selvagens e sim por “espíritos mais desenvolvidos”.
(Inegalité, p.555)
20
Quanto a Agricultura, sua utilização é antiga, apesar de não levar, a princípio, em
consideração, a idéia da previsão para o futuro e a cultura em grande escala. A busca pela
sobrevivência levou o homem a imitar a natureza, observando e procurando meios que
facilitassem sua conservação.
19
Conforme nos apresenta SILVA, Genildo F., em sua tese de doutorado Rousseau e a Fundamentação
da moral: entre a razão e religião, 2004.
20
Isso pressupõe um avanço temporal histórico, mas ao qual Rousseau não se arrisca em especular.
44
Assim, os passivos campos bucólicos cedem espaço à agricultura, ao cultivo e a
manutenção de alimentos que abastecerão a muitos. Juntamente com a produção da
Metalurgia passa a haver divisão do trabalho: alguns se dedicam à lavoura, enquanto outros à
arte de produzir artefatos metalúrgicos.
Essa divisão o acontece apenas de forma abstrata, mas principalmente de forma
espacial com a divisão das terras. A propriedade passa a ser reconhecida e cada um precisa
ter algo, ser dono de alguma coisa para participar de um novo agregado social que aos poucos
se forma. Em meio a esse novo valor, surge o “direito de propriedade”, caracterizado por uma
posse contínua que se transforma em propriedade, na qual o homem investe todo o seu
trabalho.
A constituição da propriedade favoreceu a especialização do trabalho e acarretou num
processo de desigualdade
21
que apresentou proprietários e não proprietários; homens
apossados de uma gleba e outros totalmente desprovidos delas, essa será a primeira
desigualdade que se estabelece entre os homens, que culmina no surgimento de Ricos e
Pobres. A propriedade acarretará numa série de males que, de acordo com o genebrino, gerou
conflitos intermináveis, como a ameaça constante de guerra, a necessidade de leis que
regulassem a posse e a conservação da vida, bem como a necessidade de instituir um governo
capaz de ordenar isso tudo.
Dessa forma, a “verdadeira juventude do mundo”
22
submerge ao apelo feroz da
corrupção. A primeira organização que gerou a propriedade leva a um outro tipo de
21
Conforme vemos no Segundo Discurso, a desigualdade se deu em três níveis, sendo resultado direto
do estabelecimento da propriedade e da instituição do governo. “Se seguirmos o processo de
desigualdade nessas diferentes resoluções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o
estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo; sendo a
terceira e última a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o estado de rico e de
pobre foi autorizado pela primeira época; o de poderoso e fraco pela segunda; e pela terceira, o de
senhor e escravo, que é o último grau de desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem,
até que novas revoluções dissolvam completamente o governo ou o aproximem da instituição
legítima.” (Inégalité, p.563)
22
(Cf. Inégalité, p.554). Trata-se aqui da vida simples apesar das relações existentes; quando o
trabalho ainda não era normatizado de forma a estabelecer vínculos de dependência.
45
organização em relação ao trabalho. Não bastava buscar a conservação com o auto-sustento.
Esse vel de organização trouxe consigo um vínculo de dependência que ligava os homens
por uma necessidade física e metafísica onde estavam depositados interesses outros, como
ambição e ganância, germes da miséria e escravidão.
A diferença entre os homens, outrora natural, elevou-se criando novos abismos cuja
distância caracteriza a desigualdade; os mais fortes se tornam mais capazes e os mais fracos se
dobram à condição de frágeis e dependentes, com uma grande alienação ao trabalho alheio.
A desigualdade natural insensivelmente se desenvolve junto com a
desigualdade de combinação, e as diferenças entre os homens,
desenvolvidas pelas diferenças das circunstâncias, se tornam mais sensíveis,
mais permanentes em seus efeitos e, em idêntica proporção, começam a
influir na sorte dos particulares. (Inégalité, p.556)
A instituição da propriedade legitimou a desigualdade, elevando as relações humanas
ao nível do interesse, onde cada um deseja possuir mais para ter mais apreço, e favoreceu o
estado de guerra que colocava em risco a própria existência humana, sendo necessário
convencionar leis que garantissem o direito à vida e à propriedade, que agora era uma nova
necessidade para a existência. Com isso se institui o governo, criam os magistrados e os
legisladores e se estabelece a lei.
Então surge o direito como um valor instituído que tem o caráter de fazer valer o bem
comum, garantindo o necessário à vida e à manutenção da sobrevivência. A intenção é
chamar o homem à responsabilidade, a tomar consciência do outro enquanto igual necessitado
de direitos à vida e à conservação dos bens. Com base nesse direito, começam a criar as
associações, os governos, normas e regras que precisam ser obedecidas para que a ordem seja
estabelecida. Com uma criação arbitrária, esse direito, convencionado por uns e cegamente
obedecido por outros, traz consigo ainda mais desigualdades que ampliam o abismo das
injustiças e da desgraça humana.
46
Dessa forma, sucumbe-se a liberdade natural, que agora passa a ser obediência
(primeiro à lei e ao governo) e em seguida servidão (obediência aos mais fortes). Toda vida
fica submetida ao direito civil, que é a garantia da vida em comum. A existência se concentra
no liame social e se restringe ao cumprimento das regras do bem viver, à conduta predicada
pelas normas ditadas. Os valores sociais passam a ser predicativos à cidadania e à aceitação
social.
Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos
entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a
liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da
desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz, um direito irrevogável e,
para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo gênero
humano ao trabalho, à servidão e à miséria. (Inégalité, p. 558)
Toda organização necessária para manter o direito culminou na criação de magistrados
e governantes que buscavam o cumprimento das decisões e a defesa da “liberdade dos povos”.
Entretanto, todo poder depositado nas os de uns poucos gerou o despotismo, que fez o
poder circular no mesmo meio. Cria-se, com isso, um nível de desigualdade que define
Senhor e Escravo. Os que antes obedeciam, passaram a servir, subjugando suas próprias
vontades. “Os homens nada liam, a obediência transformou-se em submissão, a virtude
desapareceu cedendo lugar ao vício e à escravidão da aparência e da opinião”. (PISSARRA,
2002, p.55)
Da simples idéia de propriedade sucumbe um universo complexo que resulta na
instituição de uma força externa, o Estado, legitimado arbitrariamente da idéia de uns poucos
sobre muitos. A alienação era agora a garantia de sobrevivência e de conservação, não
bastando às normas de conduta social estabelecidas e terminantemente obedecidas, passíveis
de punição se desconsideradas. O papel de cidadão responsável pressupõe o cumprimento das
regras impostas e a alienação a valores ditos morais.
47
Assim se funda a sociedade civil, com base na desigualdade, legitimada
arbitrariamente por aqueles que se apropriaram do discurso do mais forte, fazendo-se acreditar
por meio da força e coação. Uma sociedade cujo predicado de virtude se traduz pela polidez,
pela capacidade de adaptação a uma imagem ideal desejável, a qual nunca se chega.
Nessa odisséia rousseauniana sobre a natureza humana em sua simplicidade até o
florescimento de um estilo complexo de vida, ou estágio social de civilização, está imbricada
toda teia de sentimentos que deram origem às leis, aos valores morais e ao modelo adequado
de comportamento a ser estabelecido na vida comum.
Rousseau não tem intenção de continuar sua investigação sobre esse estado de
civilização posto; ele não descreve o surgimento de outras artes
23
e atividade, mas se limita
a visualizar o gênero humano:
Não me deterei escrevendo a invenção sucessiva das outras artes, o
progresso das línguas, o ensaio e o emprego dos talentos, a desigualdade
das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os detalhes
complementares que cada qual pode sem esforço imaginar. Limitar-me-ei
unicamente a lançar um golpe de vista sobre o gênero humano posto na
nova ordem das coisas. (Inégalité, p.556)
Na busca pela perfectibilidade, desenvolvem-se ainda os sentimentos; cresce o
orgulho, o Amor-próprio, a imaginação; as necessidades também evoluem atingindo
proporções inimagináveis. A satisfação fica cada vez mais distante, e o viver atinge um
enorme grau de complexidade.
O grande destaque nessa caminhada pela história da humanidade se concentra na
questão da desigualdade; que sendo a princípio natural, diferenciando os homens quanto ao
23
Devemos ressaltar aqui que o intuito de Rousseau é descobrir as origens, o nascimento dos
sentimentos que levaram o homem a um estágio de desenvolvimento complexo caracterizado por
perdas. Ele escreve o Discurs sur les sciences et les Arts no qual descreve o nascimento da origem das
línguas e de algumas ciências, fazendo a estas duras críticas, mas seu objetivo permanece o mesmo.
Seria uma gênese da existência e do fazer humano.
48
tempo, a força e a destreza, elevou-se à categoria social, criando um abismo e novas formas
de diferença e dependência.
24
A vida simples e rústica do homem selvagem sucumbiu diante de um universo
caracterizado pelas relações entre homem x natureza, através do trabalho, e homem x homem,
por meio da sociedade. Dessas relações surgiram os valores, as leis, as idéias que convergiram
num estado social marcado pela extensão das diferenças, que sendo profundas, se
consolidaram em desigualdades.
A sociedade ou estado de civilização nasceu com base nos sentimentos de
comparação, ambição e apreciação, onde cada homem colocou a satisfação em algo distante
de si mesmo, mas escondido em uma scara que dificultava a real imagem do caráter e da
verdade. Surge assim um novo conflito, que traz à tona a crítica de Rousseau a sociedade
nascente: a dicotomia entre ser e parecer, a profunda diferença entre essência e aparência.
24
A desigualdade iniciada pelo “aproveitamento” da desigualdade natural resultou da aceitação de um
homem diante da perspicácia de outro, do se deixar dominar, cedendo ao apelo do mais forte. Criou-se
a idéia de um Direito reduzido à força, do qual Rousseau é contrário, por ser sinônimo de Direito do
Mais Forte, condição arbitrária que descaracteriza a própria idéia de direito; isso pode ser observado
no capítulo 3, do Livro I do Contrat Social, “Do Direito do Mais Forte”. Segundo Rousseau a força
não faz o direito, devendo se obedecer ao poder legítimo, coisa que o próprio Rousseau descreverá
posteriormente.
49
2.2 SURGIMENTO DO INDIVIDUO SOCIAL: DICOTOMIA ENTRE SER
E PARECER
Toda crítica de Rousseau a sociedade da razão ou ao estado de civilização sucumbe da
análise histórica da condição humana. O estado de natureza foi segundo Rousseau, um estado
de pureza porque ausentava o homem de relações e o satisfazia na singularidade de sua
existência.
O rompimento com essa simplicidade ocasionou as relações entre os homens e a
natureza, não mais caracterizadas pelo imediatismo, mas marcadas por necessidades, desejos
e sentimentos oriundos das comparações. A sociedade nascente impunha novos sentimentos e
valores aos quais o homem buscava se adaptar. Os sentimentos naturais, como a Bondade e o
Amor de Si, vão aos poucos se esvaindo. O Amor de Si se transforma em Amor-próprio
25
,
fazendo surgir um novo homem, com uma imensidão de necessidades, sendo algumas delas
alienadas a outros, como o desejo de reconhecimento e apreciação.
Na sua crítica, o estado de civilização significa o surgimento do mal, no qual surgem
vícios em detrimento das virtudes naturais e do apego à simplicidade. Um estado de corrupção
impulsionado por valores estranhos à natureza humana que condicionam atos de desprezo e
desrespeito pela própria existência, motivados por comparação e ganância.
Segundo Rousseau, a história do progresso humano legitimou o processo de injustiças,
onde as necessidades materiais se elevaram ao campo da moralidade. Não bastava ter, era
preciso ser reconhecido por essa posse; era necessário estabelecer valores morais que
assegurassem o reconhecimento de uma desigualdade arbitrariamente estabelecida. A
responsabilidade se focava na busca por bens e pela manutenção da aparência, saindo da
esfera da simples conservação.
25
O Amor-próprio nasce como preferência individual em analogia a outro homem como preferência
do desejo de apreciação e reconhecimento e da vontade de dominação e prestígio. Por essas
características, é desenvolvido na sociedade onde dissimulação e fraude, tendendo a considerar a
opinião alheia como suporte de valor à própria existência.
50
O nível das relações o se localizava mais em homem x homem, mas passava pelas
“coisas” (homem x coisa x homem); o sentimento que unia os homens no propósito único da
conservação é alterado e adequado às novas necessidades onde os interesses estão além do
simples “se manter vivo”. agora um novo olhar sobre o horizonte de vida: a alienação às
coisas matérias.
A estima e a benevolência constituem um laço pelo qual os homens se
reúnem imediatamente: nada se interpõe entre as consciências, elas se
oferecem espontaneamente numa evidência total. Em compensação, os
laços ordenados pelo interesse pessoal perderam esse caráter imediato. A
relação não se estabelece diretamente de consciência a consciência; ela
agora passa por coisas. (STAROBINSKI, 1991, p.35)
O interesse dos homens, não mais centrado na simples conservação, volta-se para
necessidades criadas que tem uma satisfação não imediata, resultando assim num conflito
contínuo. Para satisfazer as novas necessidades, o homem passa a agir com interesse,
dissimulando seus sentimentos para conseguir galgar aquilo que julga necessário à sua
existência. Dessa forma, as relações passam por crises de veracidade e o interesse se funde
com a sinceridade. O estado de natureza se esvai com toda sua clareza, sendo substituído por
um mundo marcadamente obscuro, com homens mascarados.
O estado de civilização se torna um estado contrário ao estado de natureza, que não a
suprime, mas cria com ela conflitos permanentes, cuja característica se observa tanto na
falacidade dos sentidos, quanto na dissimulação de sentimentos e valores.
Esse estado produz um homem distante de si mesmo, antinatural, despreocupado com
a espécie enquanto tal, egocêntrico voltado para seus próprios interesses, onde vale a
qualquer custo a satisfação pessoal indiferente da condição do outro.
De forma simples e livre de especulação, havia no estado de natureza certa
responsabilidade com o outro; não numa esfera individual ou pessoal, mas num âmbito onde o
coletivo era priorizado na valorização da vida humana enquanto tal. Isso denota certo
interesse não pela manutenção da vida, mas pela existência em si. Permitir ao outro a
51
possibilidade de viver em condição igual era plenamente sustentável no estado natural, que
o acesso a tudo era comum a todos.
O estado de civilização, que teve por objetivo facilitar a conservação, não trouxe
tantos benefícios; sua estrutura paradoxal revelou ameaças ao próprio homem que, possuindo
bens sentia a necessidade de defendê-los; assim, a paz é ameaçada diante da possibilidade da
guerra. O “ter e manter” falava mais alto que o existir alheio. Renunciar as posses seria, nesse
novo momento histórico, renunciar a si mesmo; logo, o apego às coisas reclamava prioridade
diante de situações que exigiam benevolência. A amplitude do ego e do Amor-próprio atingiu
grande proporção no coração do homem que optou agir em proveito próprio, mesmo tendo
que dissimular ou usar de desfaçatez.
Com o desenvolvimento do homem e da sociedade, desenvolve-se a razão que
apresenta nas artes, nas letras e nas ciências uma polidez extensiva à vida comum das pessoas.
A vontade de agradar transforma-se em arte, fazendo que os homens apurem o gosto e se
tornem decorosos. Esse desejo desemboca num costume que traz uma “uniformidade
desprezível e enganosa” onde “parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde”.
(Sciences et lês Arts, p. 465).
O teatro traz à vista o parecer, onde a encenação, criando uma realidade imaginária
gera possibilidades de comportamento que na verdade são irreais. A platéia formada pela elite
se contenta com a fantasia daquilo que muitas vezes gostaria de ser, vendo no ato cênico a
concretização de seus ideais de moralidade e de virtude. Entretanto, esses atos não passam de
representação, não podendo acontecer porque são na verdade desejos alicerçados nas idéias,
que acontecem em condições ideais invisíveis, distantes da realidade social, sem qualquer
responsabilidade de efetivação.
A platéia espectadora forma uma sociedade alienada, uma sociedade que se contenta
em assistir ao espetáculo imaginário que a absolve da realidade. Essa sociedade se forma com
52
homens cuja imagem difere da essência, dos verdadeiros sentimentos e desejos do coração. A
base das relações estabelecidas entre esses homens muda da benevolência para a
desconfiança. “As suspeitas, os receios, os medos, a frieza, a reserva, o ódio, a traição
esconder-se-ão todo o tempo sob esse véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade
tão exaltada que devemos às luzes de nosso século”. (Sciences et lês Arts, p.466)
Os progressos oriundos da razão resultaram em progressos diretos na estrutura social e
no comportamento do homem. A máscara necessária à manutenção dessa máquina social
condicionava todos à frivolidade, ausentando processualmente o homem de si mesmo e de sua
condição primeira. Como conseqüência, dissipou-se a Bondade natural e a preocupação com a
vida do outro. A necessidade de conservação atingia agora novos desafios
26
, não mais
naturais, mas criados e normatizados como regras que deveriam ser indiscutivelmente
obedecidas.
A fim de se manter no veio social e estabelecer vínculos, o condicionamento foi um
processo resultante de todo desenrolar histórico. A busca pela conservação, que sempre
acompanhou o homem, ainda era prioridade e agarrar-se à vida era um estímulo que levava o
homem à adequação às normas vigentes, e às imposições sociais.
Dessa forma, instaura-se o conflito entre ser e parecer. Era preciso compartilhar dos
ideais, dos gostos, dos costumes e estabelecer uma cultura baseada na aceitação. Sempre
agradar e ser agradável era a conduta polida que levava a desfaçatez e a vaidade, eximindo a
responsabilidade para com os sentimentos verdadeiros e originais. O mundo moral se funde
com um mundo ideal onde as virtudes acarretam mais vícios e a paz não passa de uma
manipulação dos interesses dos mais fortes.
Assim, segundo Rousseau, quanto maior o progresso e o desenvolvimento das artes e
das ciências, maior a degeneração humana, a corrupção e a perda dos valores essenciais
26
Desafios esses que se traduzem no condicionamento às leis e aos costumes; às regras
convencionadas pela sociedade estabelecida.
53
pertinentes à natureza humana, acarretando maior estranheza e alienação. Para Rousseau, as
grandes descobertas bem como o grande despertar de todo conhecimento, floresceram do
desenvolvimento dos vícios e não das virtudes que engendrando mais males que bens à
existência.
A astronomia nasceu da superstição; a eloqüência da ambição, do ódio, da
adulação, da mentira; a geometria da avareza; a física, de uma curiosidade
infantil; todas elas, e a própria moral, do orgulho humano. As ciências e as
artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios: teríamos menor
dúvida quanto às vantagens, se o devessem a nossas virtudes. (Sciences et
les Arts
, p.470).
Além de estabelecer os padrões ou regras de conduta, a sociedade podava a liberdade
individual ao oferecer uma única opção: a adequação. Assim, a vida no seio social formava
pessoas preocupadas com a aparência em detrimento da essência. E as artes tratavam dessa
condição com ironia e desprezo.
Assim como as Artes, outro grande mal afetava o homem no seio da sociedade: a
Educação, que se mostrava como mantenedora dos costumes, mas que na verdade despertava
precocemente a razão, esquecendo dos sentimentos e sentidos e levando as crianças a uma
precocidade inútil e doentia. Nesse processo, ela se torna a grande mentora, a que direciona os
mais jovens ao caminho do ideal social. Rousseau na obra Émile traçará os parâmetros do que
considera ideal: o controle das paixões e o desapego dos costumes. O ensino para a liberdade,
condição totalmente contraditória a sua época exigia grande esforço e marcava a ruptura com
toda cultura instituída.
Rousseau além de vislumbrar essa crise entre ser e parecer, projetava um ideal de
homem, moldado na simplicidade e na Piedade (condições do estado de natureza), com um
apelo ao resgate pela natureza com todo seu encanto e pureza. O homem civil vivia o conflito
entre ser (o que para Rousseau era ruim, pois tinha por base o Amor-próprio) e parecer
54
(condição necessária à manutenção da vida no seio da sociedade). Um conflito instaurado
cujo fim não era contemplado.
2.3 ALIENAÇÃO, PERDA DA LIBERDADE E INATIVIDADE DA
RESPONSABILIDADE MORAL
O estado de civilização, resultante da sociedade e do progresso da razão, alterou as
relações, a estrutura da moralidade e afetou completamente a liberdade, que sendo
incondicional e inviolável, passou a se acomodar as condições de desigualdade que se
impunham.
Ser livre, no estado de natureza, dizia respeito não só a um estado, mas a uma
condição necessária à própria vida, pois levava em consideração prioritariamente a
conservação. Escolher quando e como agir delegava ao homem um poder incomensurável e o
distinguia dos demais animais porque sua consciência
27
lhe dava conta dessa condição. Ser
livre e autônomo coincidiam nesse estado de pureza. Os atos eram movidos por impulsos
interiores sem que houvesse um contra-senso exterior. Sem manipulações ou falso decoro,
ficavam abertas as possibilidades do agir ao homem, que eram movidas conforme a própria
vontade
28
.
27
A consciência tem um caráter complexo na obra de Rousseau. Além desse “despertar” ela assume
forte conotação moral, sendo considerada como voz divina no espírito, não no âmbito pessoal,
particular, mas como parte de um todo harmonioso, conforme nos mostra a Confissão de do
Vigário Saboiano: “Consciência! Consciência! Instinto divino imortal e celeste voz; guia seguro de
um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o
homem semelhante a Deus, és tu que fazes a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações;
sem ti nada sinto em mim que me eleve acima dos animais, a o ser o triste privilégio de perder-me
de erros em erros com o auxilio de um entendimento sem regra e de uma razão sem princípios.”
(Émile, p. 595).
28
“Como imanentes e positivas, as determinações da vontade são boas, e o homem é caracterizado
como naturalmente bom.” Conforme Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, pág.24. Ao buscar a
conservação pela vontade o homem usufrui a liberdade como bem maior da sua existência.
55
Segundo Rousseau, a instituição da sociedade criada a partir da idéia de propriedade
resultou na desigualdade, formando distinção entre ricos e pobres, poderosos e fracos e
senhores e escravos. A sedimentação dessa desigualdade aboliu completamente a liberdade
em sua essência mais íntima por alienar o homem a novas necessidades, diferentes das
naturais. Perde-se a liberdade juntamente com a autonomia.
No estado de natureza, a liberdade não se configurava como valor moral, pois não
havia ditames nem especulação dessa condição que levassem o homem à consideração
abstrata capaz de atribuir a esta algum valor. A imaginação que não fazia parte do universo
natural, o promovia apreensão do seu termo enquanto idéia metafísica. O homem era livre
sem ter noção abstrata disso.
Mas a faculdade de se aperfeiçoar, que levou o homem a lançar um olhar sobre os
outros viventes a sua volta, inclusive sobre os outros homens, promove aos poucos a
consciência do sentido que a liberdade pode assumir. Por meio das relações entre o homem
com os animais e outros homens, obtém-se a noção de “ser livre” reconhecendo no outro
(semelhante) tal condição.
A noção de liberdade individual, apreendida por esse olhar, assume assim categorias
morais, pois promove o reconhecimento do outro enquanto ser da mesma espécie dotado de
semelhante condição de liberdade. Assim, o homem poderia agir de acordo com a voz interior
(da consciência e da Piedade, que era sentimento de justiça). A liberdade era a abertura para o
agir correto (que seria de acordo com a própria natureza) movendo à vontade na busca do que
seria bom a si mesmo, e pela piedade essa busca pelo bem se estenderia a toda espécie.
Entretanto, essa total liberdade é intimidada pelas novas condições que se apresentam
lentamente ao homem por meio da faculdade de se aperfeiçoar. Mas, como se deu a corrupção
56
de tal condição de liberdade e autonomia? Como o homem se dispôs a negar a si mesmo?
29
O
que o levou à alienação de seu bem maior?
As relações de desigualdades sedimentadas no seio social causam o conflito
existencial que leva o homem a essa alienação. Cria-se um vínculo ordenado não por valores
morais naturais, mas decorrentes de uma dependência acentuada pelas necessidades que
progridem junto à nova condição de vida. Esse novo caráter de necessidade, não mais restrito
às básicas, como alimentação, descanso e cópula, retira do mais fraco a possibilidade de
prover a si mesmo, tornando-o parte existencial de outrem, que o sustenta na conservação da
própria vida, não mais com o recurso natural da bondade, mas com o reconhecimento da
desigualdade estabelecida entre ambos.
A adequação ao novo viés, agora social, promoveu um esvaziar-se de si mesmo que
destrói automaticamente a essência humana, expressada por meio da liberdade. Um exemplo
simples é o do escravo que submetido ou subjugado a tal condição exclui de si a própria
condição da existência, de sujeito autônomo. Segundo Rousseau, essa perda promove o
fracasso da existência, engendrando a perda dos direitos pertinentes à própria humanidade,
bem como os deveres; assim, o homem rompe com sua condição de ser humano.
Renunciar a sua liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos
da humanidade, e até os próprios deveres. Não reparação possível para
quem tudo renuncia. Tal renuncia não se compadece com a natureza do
homem e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale
a excluir a moralidade de suas ações. (Contrat Social, p.642)
29
Para Rousseau a distinção entre os homens e os animais não estava no pensamento nem no
sentimento, pois para ele tanto o homem quanto o animal eram capazes de pensar e de sentir. A
distinção era observada na consciência da liberdade, característica do homem que cedia ou não aos
impulsos naturais. Essa concepção o faz romper com a doutrina Sensualista, especificamente com
Condillac e Descartes. Para Condillac a distinção entre o homem e o animal acontecia
quantitativamente na ordem do entendimento, que estabelecia uma continuidade no âmbito existencial
do homem e dos animais; para Descartes o entendimento era o que caracteriza o homem, pois os
animais não participavam dessa condição, que mostra uma descontinuidade entre essas existências.
Rousseau por sua vez, não considera como distinção o entendimento, pois para ele os animais também
participam dessa condição, mas admite uma descontinuidade entre a existência do homem e dos
animais, admitindo-a por meio da liberdade manifesta através da vontade.
57
A alienação da liberdade em troca da conservação isentou completamente a
possibilidade de um agir moral, de um ato movido pela bondade, ou de estabelecer certa
responsabilidade com o outro enquanto indivíduo da mesma espécie. Essa alienação
promoveu além da perda da essência humana, afastamento dos sentimentos naturais (Bondade
e Amor de Si mesmo). O homem que se submete à condição de escravo perde
automaticamente a condição de homem, passando a ser uma “coisa”, uma apropriação
indevida completamente repudiável.
Com a escravidão a autonomia sucumbe com a liberdade. A negociação, que girava
em torno da própria vida como garantia para conservação e manutenção no seio social, cria
uma nova espécie de vida, indiferente a natureza humana. Diante das convenções não restava
ao homem conceder seu bem mais valioso, que servia de base para o fortalecimento das
desigualdades e das injustiças, que fermentando a escravidão, abolia as possibilidades de um
agir moral justo baseado nos sentimentos naturais.
Ser individuo social implicava a maioria ser servo ou escravo, que os fortes
(certamente poucos) dominavam. Os direitos se referiam aos poderosos enquanto os deveres e
as obrigações aos mais fracos. A liberdade nesse estado assumia a forma de obediência, que
era sinônimo de prudência diante da necessidade primária de conservação.
A crítica de Rousseau à sociedade não se deve apenas ao falso moralismo, ao erro na
educação ou à falácia da polidez, mas principalmente à mazela da servidão, da escravidão e
do esquecimento do homem enquanto essência, da concessão inescrupulosa e arbitrária da
liberdade.
Os vislumbres do progresso contemplavam patamares altos enquanto a condição mais
simples, a de ser homem, estava relegada a um plano qualquer. Todo movimento iluminista a
que visava o homem acabava assim esquecendo-se dele; construindo valores em detrimento
58
dos valores reais da humanidade. Para Rousseau, isso não poderia ser visto como avanço, mas
como completo equívoco.
2.4 - CONFLITO ENTRE PROXIMIDADE E AFASTAMENTO NA
SOCIEDADE CIVIL
Diante das análises feitas nos discursos sobre a genealogia da sociedade (Inegalité e
Sciences et lês Arts), Rousseau considera o estado de civilização um estado de degeneração
onde a natureza humana se transformou diante de novas condições postas pela faculdade de se
aperfeiçoar. Neles se entende a sociedade como e corrupta, as instituições falidas e a
educação uma deturpadora dos atributos naturais, alterando a natureza humana ao lhe impor a
polidez como regra de sociabilidade, alienando o homem de si mesmo e de sua condição
primeira, bem como abolindo a liberdade e a autonomia.
nas obras Émile e Contrat Social, Rousseau reconhece que a capacidade de se
aperfeiçoar promove a ruptura do homem com o mundo simplório da animalidade, elevando-o
a uma condição de superioridade onde efetivação de sua existência pela consciência de si
mesmo, o que vai gerar as relações e o olhar sobre o outro e sobre si bem como a plenificação
da moralidade, expressada na forma de vida social estruturada.
Seriam dois momentos distintos, onde a análise da aproximação e do afastamento
assume uma conotação negativa e outra positiva
30
. A princípio, notamos um sério paradoxo
nas idéias de Rousseau que parecem conflitar. Precisamos então entender que proximidade ou
aproximação implicaria nas relações com outros homens que culminaram nos vínculos
sociais, como governos, instituições e sociedade, enquanto afastamento constituiria a perda da
liberdade, essência primária do homem que foi alienada em detrimento da necessidade de se
manter vivo, conservar-se. Ou seja, aproximação com outros e afastamento de si mesmo.
30
Cf. OLIVEIRA, 1977, p. 68.
59
Nos dois discursos, a crítica à sociedade estabelecida é ferrenha e a aproximação
assume o caráter de negatividade por denotar o fracasso que a faculdade de se aperfeiçoar
gerou que acarretou na perda da liberdade, instituindo em seu lugar a miséria e a escravidão.
O afastamento por sua vez, é visto de forma positiva por resguardar o homem dos vícios, da
falácia dos sentidos, dos erros e das mazelas sociais, mesmo que o deixe num estado de
solidão.
Sob esse foco, o afastamento surge como melhor condição de vida, que estar
sozinho seria bem mais proveitoso, mesmo que correndo os riscos de uma vida rude estando
ausente das regalias e do conforto que o agregado social proporcionou. O processo de
desnaturação, que significou a saída do estado rudimentar à chegada numa forma de vida
complexa, implicou em algo ruim que vitimou o próprio homem. Nesse primeiro momento,
Rousseau observa o lado negativo gerado pela aproximação, ou seja, do corpo social
estabelecido por convenções, que segundo ele, foram arbitrárias.
Mas, no Émile e no Contrat Social a idéia de aproximação toma o caráter positivo: de
aprimoramento, de perfectibilidade e espiritualidade do homem. A entrada na vida social foi
um processo pertinente à própria natureza humana, de desenvolvimento e ascensão. Segundo
Rousseau, desconsiderar isso seria não reconhecer a humanidade como obra divina. O homem
passaria a viver a moralidade, sendo suas possibilidades
31
peças para uma boa engrenagem
social. O estado de sociedade seria então resultado imediato da faculdade humana. Vejamos o
que ele fala sobre isso na Carta ao Senhor Philopolis, que mostra sua postura quanto à idéia
de sociedade:
31
Entendam-se aqui como possibilidades a Virtude, o aprimoramento do Amor de Si e a Justiça, como
conseqüência da Piedade, que no estado de natureza eram virtualidades em potencial, que estando
guardadas passam a ser efetivadas.
60
O estado de sociedade, dizeis, é resultado imediato das faculdades do
homem, conseqüentemente, de sua natureza. Querer que o homem em
absoluto não se torne sociável, seria desejar, então que não fosse mais
homem, e ergue-se contra a sociedade humana é atacar a obra de Deus .
(Lettre a Philopolis, p. 603).
Rousseau não é anti-social, mas segundo ele existem duas concepções de sociedade:
uma legítima e outra ilegítima. A sociedade legítima apontada nas duas últimas obras citadas
(Émile e Contrat Social) seria a de caráter positivo, e a ilegítima (apontada nos dois discursos)
assumiria o caráter negativo revelando de forma crítica a estrutura social desenvolvida sem o
pleno acordo entre os homens
32
, marcada pela perda ou alienação da liberdade e eximida de
uma verdadeira responsabilidade moral baseada nos sentimentos.
Observamos assim, que Rousseau não é contra a sociedade ou a vida social ou ainda
ao estado de civilização. Ele aponta os erros que foram lentamente sedimentando as injustiças
e a desigualdade entre os homens e que favoreceram a ausência da liberdade e da
responsabilidade moral que resultaram num homem coisificado, vivendo com uma máscara de
artificialidade, sob o respaldo da polidez. O mal não estaria na natureza, mas nas relações
estabelecidas com ela através dos homens, tendo sido criado dessa forma pelo próprio
homem, ou seja, o mal é de origem social.
O genebrino critica toda a idéia de progresso por observar que a questão do homem foi
posta de lado, sendo desconsiderada em razão de interesses dos que detinham poder e
riquezas. Na verdade o verdadeiro progresso deveria contemplar a espécie humana enquanto
tal, abordando as questões da existência na forma política e social.
Para Rousseau, o desenvolvimento do progresso deveria ser diferente, considerando o
homem em primeiro lugar. Esse desenvolvimento não seria, de forma alguma, um retorno às
origens, à vida rude e à animalidade, pois Rousseau reconhece que voltar a um estado original
de simplicidade seria algo impossível, mas observa, através de sua critica, que viver numa
sociedade corrompida, sem existir plenamente, seria insuportável. Para Rousseau, era preciso
32
Cf. OLIVEIRA, 1977, p.65.
61
reaver a condição primordial da humanidade, retomando àquela que compunha a natureza
original do homem, mas preservando os benefícios que a vida na sociedade trouxe. O retorno
seria à liberdade e aos sentimentos naturais de virtude (Amor de Si Mesmo) e justiça
(Piedade natural). Ao homem caberia viver e usufruir os benefícios de uma vida em
sociedade, ainda na carta ao Senhor Philopolis escreve: “É preciso, quando se pode, fixar sua
moradia na pátria pra amá-la e servi-la”. (Lettre a Philopolis, p.604).
Mas para servir e amar a pátria seria preciso recriar o laço que unia os homens,
restabelecendo parâmetros para a vida em comum, que favorecesse a um todo e não uma
parte; seria uma reconstrução, pelo viés político da liberdade restabelecida pela igualdade e
pela participação. Uma condição de justiça, na qual, cada um alienaria um pouco de si mesmo
em benefício de todos, retomando a responsabilidade pelo outro enquanto partícipe da
condição humana. Seria uma efetivação da cidadania, agora justa e plena.
Rousseau propõe uma aproximação efetiva resultante de uma sociedade legítima,
composta por homens livres, que trocariam sua liberdade natural em troca não da simples
conservação, mas do bem comum, gerando em seu lugar uma liberdade convencional regida
por direitos e deveres, elaborados em comum acordo por todos os componentes da nova
sociedade.
O conflito produzido pela aproximação entre os homens seria dissipado quando
fosse reconstituída a dignidade do homem enquanto tal e restabelecida a igualdade
33
. Seria a
reconstrução do homem e o nascimento do cidadão, em sua forma real, marcando o progresso
na história da humanidade e na efetivação de uma sociedade justa. O restabelecimento da
liberdade garantiria a responsabilidade enquanto a igualdade estabeleceria a participação na
vida pública, assim como a quebra das relações arbitrárias e dos interesses particulares.
33
Sobre o restabelecimento da igualdade podemos acrescentar que seria igualdade política,
estabelecida e efetivada pela participação na vida pública, que consistiria na Vontade Geral, onde o
papel do cidadão seria tão importante quanto o papel de homem.
62
O estado de civilização visto a principio como o grande autor da corrupção humana,
precisava ascender e atingir o caráter positivo para o homem. Nisso consistiria o progresso e
essa deveria ser a busca dos pesquisadores e cientistas. A sociedade deveria ser legitima e os
governos estabelecidos de forma positiva e sem nenhuma arbitrariedade. Assim, a alma
humana poderia ser resgatada e a responsabilidade reassumida.
Entretanto o abandono, a desfaçatez e o improviso que engendraram a ausência da
responsabilidade moral resultaram na insuficiência do papel de cidadão e a decadência do
homem. O estado de civilização nasceu do erro, da ganância e da corrupção, mas agora tinha
o dever de restaurar a dignidade e curar as feridas provocadas pela desigualdade e pelas
injustiças.
A saída é apontada no Contrat Social, que traça o perfil político de um governo
composto de homens para homens com o objetivo de restaurar e conservar a dignidade por
meio da restauração da liberdade e da justiça, através de uma união e não de acordo cito
feito de forma incompreensível. Ela seria a proposta dinâmica da construção da cidadania e da
retomada pela responsabilidade moral.
63
CAPÍTULO 3
RESTAURAÇÃO DA NATUREZA NO ESTADO CIVIL: O
CAMINHO DA RECONSTRUÇÃO E O RENASCIMENTO DO
CIDADÃO, UM VISLUMBRE DE RESPONSABILIDADE
Buscar o verdadeiro progresso, contemplar a humanidade, restabelecer as condições
para a dignidade da vida humana (parâmetros comuns não apenas para Rousseau, mas para os
filósofos do Iluminismo
34
); esses e talvez tantos outros motivos levaram Rousseau a pensar
numa reconstrução política através de um novo pacto. Mais que um novo acordo firmado
entre os homens, o pacto social surge como possibilidade de um recomeço, de uma
aproximação ao momento ideal à mudança, à garantia efetiva da liberdade e da propriedade,
já que essa era a verdadeira fundadora da sociedade civil. Cabia a sociedade reconstruir aquilo
que foi perdido ao longo da historia por meio da desigualdade e das injustiças. Era o momento
de re-ordenar a vida no liame social, legitimando o poder através das leis, cujos direitos e
deveres, comuns a todos, concretizar-se-iam por meio da responsabilidade. O governo feito
34
Podemos citar alguns filósofos como Grotius, Pufendorf, Maquiavel, Hobbes, dentre outros.
64
pelos homens e para os homens contemplaria a justiça e buscaria os bons costumes e o
desenvolvimento das virtudes sociais, fazendo florescer o real papel de cidadão, com direitos
e deveres.
O Contrat Social é uma tentativa de normalizar ou aperfeiçoar as condições que
favorecem uma vida onde prevalecem a justiça e a igualdade. Uma espécie de divisão ou
compartilhamento de poder, no qual todos criariam e reconheceriam as regras para uma
melhor vida comum. Essa idéia contratualista não é, no entanto, oriunda de Rousseau,
podendo inclusive ter seu “embrião” na antiguidade, na República de Platão
35
. Entretanto, a
idéia de Contrato se sedimenta com os teóricos do Direito Natural, assumindo a partir daí um
ato consciente. O contratualismo rompe com o poder centralizado ou legitimado pela
monarquia, como poder divino, ou manifestação de uma vontade externa sobrenatural,
atribuindo ao povo esse poder como direito. Pressupõe para tanto uma sociedade ou corpo
político estabelecido.
A teoria do contrato social é, portanto, desde o século XVI, uma arma
contra a monarquia de direito divino. Essa teoria desemboca
necessariamente na idéia de que a origem de todo poder está no povo. No
plano especulativo, ela depara com grandes dificuldades, porque a
conclusão de um contrato supõe necessariamente que existe uma
sociedade civil, a qual se trata, justamente, de fundar. (LECERCLE, p.16)
Rousseau se remonta aos juristas ou teóricos do Direito Natural como Grotius,
Pufendorf e Burlamaqui e também aos escritores políticos como Hobbes (a quem refuta),
Locke, Bossuet e Montesquieu, para tecer posteriormente sua teoria política.
36
Os teóricos do direito natural realizaram, com grande esforço, a separação do direito
natural da teologia, que rompia definitivamente com a idéia de direito divino, o aclamado
pela monarquia, fundando em seu lugar uma ciência política sem os possíveis dogmas
35
Conforme LECERCLE, A elaboração do Contrato Social, p.15.
36
Conforme nos mostra Deratna obra Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps,
Vrin,1995.
65
teológicos. Essa ruptura torna claro que o poder político é convencionado por homens sendo
dessa forma, exterior a um plano divino. Essa concepção de convenção será a principal
conotação na doutrina política contratualista, que conceberá a sociedade como uma
associação e não um agregado; o que por sua vez, pressupõe a existência de homens, como
possibilidades de uma construção política, como feitores e executores.
Dessa forma, o genebrino busca encontrar uma forma de associação que defenda e
proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, só obedece, todavia a si próprio, e permanece tão livre quanto
anteriormente.” (Contrat Social, p. 641) Sob essa forma de restauração política seria possível
reencontrar a liberdade e junto com ela um grande passo seria dado à responsabilidade moral,
à autonomia nos atos movidos pela vontade que pudessem relembrar a justiça inata. Seria
possível estabelecer parâmetros para uma boa convivência promovendo meios de romper
com a escravidão e a miséria.
A saída política aos problemas sociais, apontando, de acordo com Rousseau, para um
novo horizonte na história humana poderia ser a cura das mazelas sociais. Partiria do homem
para o próprio homem que buscava na retomada da liberdade a efetivação de sua existência.
Para isso, era preciso partir da idéia de associação, onde a liberdade individual, expressada
através da vontade (geral),o garantiria, como estabeleceria a soberania entre os homens,
num governo feito por eles e para eles através de convenções que contemplasse a todos.
66
3.1 ASSOCIAR E NÃO AGREGAR: O PRIMEIRO PASSO À
RESPONSABILIDADE
“Encontrar uma forma de associação”, esse é o objetivo do Contrat; antes de politizar,
encontrar “homens”, indivíduos potencializados, capazes de decidir e escolher sobre seus
destinos; sujeitos capazes de se unir em troca de favores comuns, sem deflagrar a integridade
de nenhum outro e sem oferecer riscos à conservação. Mas principalmente indivíduos livres,
capazes, dispostos. Essa condição, primordial, nos remete à idéia de que Rousseau busca
restabelecer primeiramente a condição humana, para depois estabelecer uma condição
política. Isso implica que para expressar sua vontade, o homem precisava ter liberdade e
autonomia, por isso a grande diferença entre associar ao invés de simplesmente agregar.
Portanto, para associar seria preciso rever primeiramente a questão da liberdade. O homem
nasce livre, e por toda parte encontra-se a ferros.” (Contrat Social, p. 664)
O termo agregar sugere a idéia de aglomerado, soma de coisas, consideradas não em si
mesmas enquanto essência, mas ligadas a um objetivo maior tendo sua relevância ao ser vista
nesse aspecto. Isso não poderia significar muito que não podemos observar os indivíduos
enquanto tais, enquanto sujeitos pertinentes, componentes, mas enquanto totalidade, cujo todo
é mais importante que as partes. Rousseau preza consideravelmente pela liberdade individual,
que pelo contrato será convencionada a fim de dar vazão a todos os homens. Mas para que
haja um corpo político é preciso que esses homens, “indivíduos livres” unam seus interesses e
suas vontades, formando um corpo moral, no qual cada um tem lugar, sendo visto dessa forma
como um todo e como partes do todo.
Esse efeito de associar ressalta o valor das individualidades e busca simultaneamente
atingir a coletividade, harmonizando a sociedade pela soma das partes (dos homens enquanto
67
sujeitos) e das vontades
37
(enquanto manifestação das individualidades). A importância do
homem como indivíduo refletirá no caráter moral do Estado que será responsável pela
integridade da liberdade e da autonomia (reguladas por meio do Pacto estabelecido). A
liberdade constituirá então Direito e Dever. Direito por ser uma retomada essencial da
condição humana
38
, e Dever por levar ao respeito do outro enquanto semelhante e indivíduo
livre. Assim, Rousseau reconhece o valor do indivíduo, mas não o leva ao individualismo,
pelo contrário, promove uma visão de respeito e responsabilidade, equilibrando a vida social.
Por essa razão, a escravidão não cabe à condição humana muito menos ao papel de
cidadão. Um indivíduo sem liberdade não poderia ser responsabilizado por suas escolhas, pois
essas, provenientes de outrem e não dele mesmo seriam condicionadas a fatores externos,
desconhecidos, distantes de si mesmo; a liberdade enquanto parte essencial da natureza do
homem torna-o componente, partícipe da espécie. Não ser dono e senhor de si mesmo é
estranho a essa natureza de modo que “nenhum homem tem autoridade natural sobre o seu
semelhante.” (Contrat Social, p. 666) Um homem não tem, portanto, direito sobre outro,
sobre a vida, as escolhas e as vontades. Para Rousseau, nenhum homem se gratuitamente,
entrega-se sem reservas, alienando sua vida. “Tal ato é ilegítimo e nulo, por isso mesmo que
aquele que o realiza não está na posse de seus sentidos” (Contrat Social, p. 667)
A escravidão é dessa forma uma grave violência à natureza humana, extraindo dela
todo caráter de moralidade, ausentando o homem de si mesmo, o esvaziando de sua essência,
impedindo qualquer relação moral entre senhor e servo, mantendo apenas uma relação onde
37
Essa vontade a que nos referimos aqui é a Vontade Geral, que diferente da Vontade de Todos é mais
que uma simples soma de vontades, mas a busca profunda pelo bem comum. Por se tratar de um
aspecto valioso, trataremos dela com mais cuidado a seguir (item 3.3).
38
Sobre essa condição podemos citar o célebre trecho do Contrato: “Renunciar à liberdade é renunciar
à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não recompensa
possível para quem a tudo renuncia. Tal renuncia não se compadece com a natureza do homem e
destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas
ações.” (Contrat Social, p.667) Ainda que, conforme Hegel “O Direito é, pois, a liberdade em geral
como Idéia. [...] a base primitiva e substancial deve estar não na vontade como existente e racional em
si e para si, não no espírito como espírito verdadeiro, mas na vontade como indivíduo particular, como
vontade do indivíduo no livre-arbítrio que lhe é próprio.” Hegel, Princípios da Filosofia do Direito,
pág. 31.
68
predomina a vontade de um sobre o outro. Sendo próprio do homem o agir moral
concretizado por meio das escolhas oriundas da consciência, a escravização o torna algo que
ele não é: um objeto alienado transformado em “coisa”.
Rousseau, em nenhum momento legitima ou justifica a escravidão bem como
nenhuma forma de superioridade ilegítima ou arbitrária ou ainda a supremacia de um homem
sobre o outro. Segundo ele não condições suficientemente fortes para isso, nem mesmo a
guerra, pois esta, pondo os homens em conflito, enquanto defensores de seus países os trazem
de volta à condição de indivíduos após cessarem as hostilidades. Cada guerreiro ou soldado é,
pois um homem, um indivíduo moral membro de um Estado. A guerra é de Estado para
Estado, e não de homens para homens. Aquele país que vence a guerra perde assim os direitos
sobre esses homens, pois derrotados, deixam de ser guerreiros e voltam a ser cidadãos, ou
simplesmente homens.
A guerra não é, pois, de modo algum, uma relação de homem para homem,
mas sim uma relação de Estado a Estado, na qual os particulares só
acidentalmente são inimigos, não como homens nem sequer como cidadãos,
mas como soldados; o como membros da pátria, mas como seus
defensores. Enfim, cada Estado não pode ter por inimigo senão outros
estados [...] (Contrat Social, p. 667/8)
A guerra não dá, portanto, o direito de escravizar ou massacrar os homens, quando
esses são vencidos. Ela não justifica nem legitima a escravidão, não podendo reforçar sequer a
idéia de direito do mais forte
39
.Se a guerra nunca ao vencedor o direito de massacrar os
povos vencidos, este direito, que ele não tem, não pode fundar o de os escravizar.” (Contrat
Social, p. 668) Dessa forma, os homens não têm direito sobre a vida ou a morte de outrem,
não podendo assim trocar esse direito pela liberdade. A vida e a liberdade sobressaem às
39
O capítulo III do Livro I do Contrat Social trata sobre essa questão (Do Direito do Mais Forte), onde
Rousseau explica a contradição entre Direito e Força. A força segundo Rousseau, é um poder físico,
não tendo moralidade em seus atos. Aquele que cede a força o faz por prudência. Quando o mais forte
toma o discurso se apropriando da razão por meio da força, o Direito se torna ilegítimo e aparente e
não existe mais a idéia de Direito. “Convenhamos, pois, em que a força não faz o direito, e que não se
é obrigado a obedecer senão aos poderes legítimos”. (Contrat Social, p. 666)
69
questões do estado, sendo direitos pertinentes à condição humana, à espécie enquanto tal, não
podendo assim ser negociada. Não direito do mais forte nem em si mesmo, enquanto idéia
de direito, nem decorrente de um estado de guerra pois não se transforma a obediência em
dever a não ser pela coação e sendo a força um poder físico, não pode alcançar um caráter
moral na singularidade de seus efeitos. Todo aquele que cede mediante a pressão da força o
faz por prudência, vislumbrando sua necessidade primária que é a conservação. Não
associação livre mediante o uso da força.
O estado de sociedade, diferentemente do estado de natureza, deveria ser, com base no
Contrato, um estado de dependência, de co-participação e cooperação, onde a dependência é
legitimada mediante a justiça da lei, na qual todos os homens são contemplados. O vínculo de
dependência deveria ter, portanto um caráter moral positivo capaz de interligar os homens
num modo de vida onde houvesse respeito mútuo (pela liberdade e pela igualdade) e não um
caráter negativo onde a vida e os bens de um ficam alienados a outrem em completa
disposição. Isso não seria a plenificação da perfectibilidade do homem, mas seria a
incompetência em gerar uma sociedade saudável e equilibrada.
A escravidão, representando um caráter negativo de interdependência, não fazia jus a
uma nova concepção de sociedade onde o foco central era o homem. Além de tornar a idéia
controversa, trazia um grande agravo à natureza humana, à essência da existência, não
podendo assim ser concebida, favorecida ou muito menos legitimada. Não seria possível a
existência de meio-homem, que deixa de ser homem por não ter em sua essência a liberdade.
Não poderia haver meio-homem na formação de um corpo político moral que fosse reger
justamente os homens, porque as leis não poderiam ser parciais ou injustas.
O objetivo de uma associação, feita por homens livres, seria a formação de um Corpo
Político no qual se fundaria a base moral e legal de um governo. Para que esse corpo existisse
seria necessário um acordo entre os homens de modo que a liberdade ilimitada de cada um se
70
alienasse a esse corpo gerando em seu lugar uma liberdade convencional, regida por normas
de justiça, expressa pela Vontade Geral, cuja busca seria pelo Bem comum. O Corpo Político
seria formado por tantos membros que fizessem parte da assembléia tendo sua unidade na
vontade: “[...] esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada
contratante, um corpo moral e político, composto de tantos membros quanto são os votos da
assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade.” (Contrat Social, p. 670)
Por meio dessa associação se estabeleceria o Pacto Social, onde cada um dando-se a
todos não se daria a ninguém. Constituir-se-ia assim uma união de vontades, onde o objetivo
seria a busca pelo Bem Comum, que reforça o poder de conservação e cria vínculos de
dependência positiva, na qual seriam firmadas a igualdade e a responsabilidade pelo outro.
Esse corpo que se forma recebe o nome de Estado, tendo uma política de participação na
elaboração e na execução das leis por parte de seus membros, que assumem os papéis de
soberanos (criando as leis) e súditos (cumprindo as leis criadas).
Essa pessoa pública que se forma, desse modo, pela união de todas as
outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de republica ou de
corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando
passivo, Soberano, quando ativo e Potência quando comparado a seus
semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome
de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da
autoridade soberana e súditos enquanto submetidos às leis do Estado.
(Contrat Social, p. 670)
A associação representa a chave para uma política participativa, de responsabilidade,
de reconhecimento e de zelo pelo outro e pelo Estado enquanto mantenedor da ordem. É a
forma de condução racional que não despreza o sentimento de bondade natural (representado
pela justiça) e de amor (enquanto necessidade de conservação de si mesmo e da espécie). Ela
representa ainda um sério compromisso entre o que é público e o que é particular,
estabelecendo uma responsabilidade moral com os homens entre si (enquanto membros de um
71
corpo) e entre os homens e o estado (enquanto executor das decisões da Vontade Geral). Esse
foi o primeiro passo para uma política de responsabilidade. Vejamos então os passos
seguintes.
3.2 – SOBERANIA COMO EXERCÍCIO DE CIDADANIA
Estabelecido o acordo entre os homens através do Pacto Social, surge a necessidade de
se organizar o poder do corpo político formado pela associação dos homens livres. Será
preciso então deliberar “movimento e vontade” a esse corpo moral, pois ele traz em si um
poder absoluto sobre os seus membros, sendo esse poder chamado Soberania, que se move de
acordo com a vontade geral. “Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político.
Trata-se, agora, de lhe dar, pela legislação, movimento e vontade, porque o ato primitivo pelo
qual esse corpo se forma e se une nada determina ainda daquilo que deverá fazer para
conservar-se.” (Contrat Social, p. 678).
Para que tal efetivação aconteça é necessário o exercício da soberania, onde cada
homem assumindo o papel de cidadão põe sua vontade e seu interesse a favor do Estado que
propôs criar. Seria necessário conciliar aqui patriotismo e humanidade como virtudes
necessárias à vida pública e particular. O Pacto Social, estabelecido num acordo entre os
homens, faz com que estes alienem sua liberdade ilimitada a tudo, e a independência em troca
de uma liberdade convencionada, onde a dependência, ou melhor, a interdependência
constituiria forte elo mantenedor da existência social. Essa união associativa, cujo objetivo é
resguardar a liberdade, supera o mal
40
na medida em que propõe reconstruir politicamente
40
O mal se refere aqui à crítica à sociedade feita por Rousseau no II Discurso cuja genealogia é
apontada na constituição perversa da história na qual o homem “tendo cercado um terreno lembrou-se
de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes,
guerras, assassínios e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou
enchendo o fosso tivesse gritado: Guardai-vos de escutar esse impostor.” Inegalité, p.551.
72
uma nova sociedade que conserva aspectos do estado primitivo da humanidade. Nesse
sentido, observamos duas figuras distintas, porém perfeitamente interligadas: homem e
cidadão.
Anterior a qualquer condição política está a condição humana; por essa razão a figura
do homem existe antes do cidadão, com valores originais (como liberdade, Amor de Si
Mesmo, vontade) pertinentes a sua natureza, que exercerão influência direta no papel público
que exercerá no Estado, ou seja no papel de cidadão. Somente um homem bom e justo poderia
buscar o Bem Comum, o bem de todos. Pela Piedade natural, a justiça se estenderia à
humanidade, e com o pleno exercício da consciência no liame social, esta se efetivaria por
meio das leis, que sendo feita por todos e para todos garantiria a igualdade.
Mas como pensar em um homem bom que tendo resgatado os valores originais se
torna justo se existe uma sociedade estabelecida que é corrupta e má, que ensina a polidez
como conduta maquiando um falso caráter, exterminando as virtudes primitivas, criando e
aprimorando os vícios como o orgulho e a cobiça? Para tanto seria necessário “formar” um
novo homem, capaz de ser justo e equilibrado pra viver numa sociedade livre.
Para que o homem assuma uma postura firme, livre de vícios e de fraquezas, seria
necessária uma educação que visasse uma “formação”, uma estruturação dos sentimentos e
sentidos até a chegada ao desenvolvimento da razão (que seria a última instância a ser
moldada na vida do homem). Diferentemente dos outros educadores de sua época, Rousseau
reconhece a importância de educar os sentidos e sentimentos antes de desenvolver a razão e a
imaginação; isso implica para ele numa maturação da existência que permite melhor
ajustamento da vida ao mundo. Para tanto, Rousseau lança uma proposta que tem o objetivo
de formar um homem capaz de viver e dispor de liberdade numa sociedade reta. Todo o
esforço de Rousseau será apoiado na idéia da liberdade
41
, sendo sua proposta pedagógica
41
“Este é um valor que deve ser preservado a todo custo. Tanto a sua proposta educativa como
também a sua moral, tem no ideal de liberdade a base fundamental.” (OLIVEIRA,1997, p. 77).
73
descrita na obra Émile
42
, uma criança imaginária que terá sua uma educação voltada para a
vida livre no seio da vida social.
A preocupação com uma formação de homem se concentra na necessidade de
conservar a integridade da natureza humana, projetando no homem uma educação que lhe
habilite os poderes e torne possível a expressão de seus valores em todas as esferas da vida,
tanto pública quanto privada. Daí a necessidade em resgatar os atributos naturais pertinentes a
essência humana, pois os verdadeiros valores moldarão no homem a figura do cidadão, a
imagem pública do indivíduo particular, livre e participativo.
Essa figura pública seria moldada a partir da (re) construção da figura de homem; por
isso, a primazia da formação se focava na preocupação pela essência humana, pelo homem
em si, sem desconsiderar, no entanto os sentimentos, sentidos e sensações característicos de
sua condição de ser vivo, de animal. A razão (decorrente da perfectibilidade) seria, nesse
contexto, o último momento de desenvolvimento, sendo assim uma espécie de aprimoramento
de seu pleno existir, uma efetivação da existência humana que tomaria forma e sentido no seio
social, lugar para as possibilidades da perfectibilidade.
O papel de cidadão implica em certo status ou posição diante do Estado criado,
participação na formação ou ratificação da legislação, mudança moral, ou responsabilidade
moral, para com o Estado do qual faz parte e para com os outros cidadãos, membros
associados, e participação nos direitos e benefícios que o Estado pode oferecer. Ser um
cidadão num Estado livre implica numa moralização pública da imagem do homem, numa
42
Emílio ou Da Educação é um tratado pedagógico que descreve o processo de educação de um aluno
imaginário, Emílio, que cresce sob a orientação de seu preceptor Jean-Jacques Rousseau. Seu
desenvolvimento é observado desde o nascimento até a o auge da vida adulta, à maturidade e a vida
plena em sociedade. A obra está dividida em cinco livros que descrevem o tipo de educação necessária
a cada fase da vida, sendo assim a distribuição: Livros I e II: do nascimento aos 12 anos; Livro III:
dos 12 aos 15 anos; Livro IV: dos 15 aos 20 anos; Livro V: dos 20 aos 25 anos. O objetivo em
descrever as fases ressalta a importância de uma educação adequada às condições de vida de um
indivíduo, considerando as características da natureza humana, moldando em seu caráter as
faculdades e sentidos que resultarão no amor de si mesmo, da espécie, dos amigos, da sociedade, do
amor afetivo, do exercício da cidadania. Um pleno existir da forma particular com implicações diretas
na forma pública.
74
política de responsabilidade e respeito pelo outro (enquanto membro do Estado) e por si
mesmo (enquanto parte componente do Estado). Os encargos de um cidadão no Estado
implicam ainda no papel de legislador, ressaltando o aprofundamento que o torna não
criador da lei (soberano), mas também executor (súdito). Apesar das mazelas humanas terem
sua origem na vida social, somente em sociedade há a possibilidade para o aprimoramento das
faculdades humanas já que a perfectibilidade é desenvolvida diante de novos obstáculos. É no
seio social está o campo fértil para o aprimoramento da razão. Dessa forma, o cidadão (figura
pública do homem que se desenvolve na sociedade) terá uma postura dinâmica na sociedade,
sendo soberano e servo simultaneamente, criando e obedecendo as leis convencionadas pela
vontade geral. As leis serão as condições pelas quais os cidadãos, enquanto povo se submete.
“As leis não são, propriamente, mais do que as condições da associação civil. O povo
submetido às leis deve ser o seu autor.” (Contrat Social, p. 679).
Assim o cidadão assume duas funções: exercer as tarefas da soberania e exercer o
papel de súdito. A soberania consistiria no exercício da vontade geral, na busca pelo bem
comum a medida que cria as leis. “Afirmo, pois que a soberania, não sendo senão o exercício
da Vontade Geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo,
pode ser representado por si mesmo.” (Contrat Social, p.673). O exercício da soberania,
conferido a cada cidadão, membro do corpo político do Estado, torna-se imprescindível à
prática de uma política de responsabilidade. Cada membro traz para junto de si essas tarefas,
não sendo esse poder representativo, ou alienando a outro; a perda desse poder de escolha e
decisão aniquilaria o corpo político, o desconfigurando por completo.
Por essa razão a soberania é inalienável
43
; seu poder dissipado entre os cidadãos, toma
forma mediante a voz da Vontade Geral, o que implica ainda que ela deve ser indivisível para
que não represente partes isoladas, mas o todo, o corpo enquanto tal; favorecendo o
aparecimento de leis justas e eqüitativas.
43
Cf. LV II, cap. I, Contrat Social.
75
Que será, pois, um ato de soberania? Não é uma convenção entre o superior
e o inferior, mas uma convenção do corpo com cada um de seus membros:
convenção legítima por ter como base o contrato social, eqüitativa por ser
comum a todos útil por não poder ter outro objetivo que não o bem geral, e
sólida por ter como garantia a força pública e o poder supremo. (Contrat
Social, p.676)
Atos isolados do soberano não podem ser considerados como atos de soberania, mas
como um decreto ou ato de magistratura
44
. A soberania, entregue às mãos do povo, tinha um
único ideal a contemplar: o bem comum, e não uma ação sobre um particular.
A tarefa de ser súdito se aplicava ao cumprimento das leis, ao seu respeito e sua
observância, o que implicava ainda o olhar sobre o outro enquanto sujeito passivo ao
cumprimento das mesmas. Todos assumiam a liberdade convencionada às diretrizes propostas
pela Vontade Geral, que acarretava respeito às normas estabelecidas. Por essa razão:
Aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por
todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é
essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra
qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo
de toda máquina política e é a única a legitimar os compromissos civis, os
quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos a maiores
abusos. (Contrat Social, p.671)
Cabe então ao papel de cidadão a responsabilidade de criar e de obedecer às leis,
compreendendo a si mesmo e ao outro como membro de uma associação criada, que observa
e reconhece as leis que regulam as condições de vida no liame social. Aqui lei e moral se
fundem
45
de tal forma que não se pode compreender a lei como um fato social, mas como uma
44
Os magistrados formariam um âmbito intermediário entre os Súditos e o Soberano, tendo a função
simplista de executar as decisões do Corpo Político, assegurando aos súditos o cumprimento das
mesmas. Seria o que chamamos de Governo “um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o
soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da
liberdade, tanto civil, como política.” (Contrat Social, p.687).
45
A relação entre lei e moralidade provoca uma forte discussão, pois nos remete a duas vertentes:
uma que considera lei e moralidade distintas e outra que considera lei como expressão de moralidade.
“A lei é configurada pelos valores morais que as pessoas têm – os valores daqueles que são capazes de
afetar o desenvolvimento da lei. A lei também tem um impacto importante nas atitudes morais; sua
imposição, por exemplo, tende a impor os valores que ela reflete.” (LYONS, 1935, p.65). Aqui em
76
busca pelo Bem Comum, pela ordem e pela manutenção da vida social, o que implica na
moralidade decorrente da Vontade Geral. O papel do súdito concorreria para a manutenção da
ordem à medida que se apropria das decisões tomadas pela Vontade Geral, zelando dessa
forma pela liberdade individual e coletiva.
As leis criadas pela Vontade Geral não beneficiariam ninguém individualmente, um
particular ou um grupo específico. Seu vislumbre seria o coletivo, o todo harmonioso; seu
objeto, sempre geral, busca alcançar o bem comum para todos os membros do Estado, sendo
as condições de associação civil idealizadas pelos membros componentes do Estado.As leis
não são, propriamente, mais do que as condições de associação civil. O povo, submetido às
leis, deve ser o seu autor. Só aqueles que se associam cabe regular as condições da
sociedade.” (Contrat Social, p.679)
A responsabilidade moral oriunda de uma vida pública legitimaria os sentimentos de
justiça pertinentes à natureza humana, fazendo com que a figura do homem se realizasse se
positivasse na figura do cidadão atingindo o pleno efetivar da condição humana; a realização
e o mais elevado nível de perfectibilidade, alcançado por meio da razão e da vida social. “É
pela atividade do entendimento que a razão se aperfeiçoa” (Inégalité, p.540), essa atividade
está justamente na vida social e nos desafios que ela acarreta.
3.3 – A VONTADE GERAL COMO UNIDADE DE PARTICULARIDADES
Toda a questão de associação e criação de leis e governo parte de um eixo central na
política de responsabilidade proposta por Rousseau: a Vontade Geral. A idéia desse conceito
Rousseau a lei não pode ser compreendida como um fato social, mas como uma conseqüência da
moralidade de uma associação, expressa através da Vontade Geral.
77
nos leva à compreensão da lei justa, contendo a chave para entender como podem ser
legitimados o poder e a autoridade civil no contratualismo rousseauniano.
46
A questão da legitimidade da ordem social
47
é anterior à questão política, sendo a
legitimação dessa nova ordem estabelecida por meio da convenção, da associação que define
e sustenta o pacto social e que harmoniza a vida particular com a vida pública tornando
imbricada a moral e a política: “É preciso estudar a sociedade pelos homens e os homens pela
sociedade; quem quiser tratar separadamente a política e a moral nada entenderá de nenhuma
das duas(Émile p.554). Assim, a moralidade individual incidirá diretamente na vida pública
sendo o reconhecimento do outro o horizonte para a busca do Bem Comum. As vontades
interligadas pelo respeito e reconhecimento buscariam o melhor não a si mesmas enquanto
partes individuais isoladas, mas o melhor ao todo, ao corpo formado pela união dos membros.
Dessa forma, a conciliação dos termos Interesse e Justiça, Liberdade e Dependência seriam
reguladas pela Vontade Geral, a vontade de cada membro na busca por um bem maior,
caracterizando assim a questão política na instituição do governo, na criação das leis e na
efetivação das mesmas. Somente pela Vontade Geral poderia ser restabelecida a justiça social
e política, pois essa seria a voz do Corpo Político, dos membros constituintes do Estado.
Somente uma associação na qual prevaleça soberanamente a vontade geral é
compatível tanto a justiça como o interesse. A submissão à vontade geral é
submissão à minha própria vontade, pois a vontade geral pode ser descrita
como a vontade de cada membro da associação enquanto dirigida ao
interesse geral da coletividade. Uma associação que obedeça a esse
requisito é legítima e a submissão do indivíduo a uma ordem exterior pode
se converter em obrigação, na medida mesma em que esta ordem é
expressão da vontade geral. (FORTES, 1976, p.78/79)
46
Na proposta política exposta no Contrat Social, o Corpo Soberano formado pelos cidadãos,
membros constituídos do Pacto Social, expressa sua soberania por meio da Vontade Geral, que sendo
bem ordenada busca o bem comum.
47
A ordem social implica aqui na questão do homem no liame social, sobre sua liberdade e sua
condição de vida no sentido público sem desconsiderar o sentido privado.
78
A Vontade Geral legitima a ordem social à medida que reconhece a liberdade
individual, orientando ainda a ordem política, quando projeta a figura do homem na vida
pública do Estado através da participação deste no seio social coletivo, nas tomadas de
decisões que expressarão as vontades particulares na busca do interesse e do bem coletivo.
Devemos ressaltar aqui que Vontade Geral não se configura como concordância eventual de
vontades particulares, mas que se exprime por seu intermédio. Adiante faremos a distinção
entre Vontade Geral e Vontade Particular.
A convenção estabelecida entre os membros do Estado se efetiva ou se torna possível
pelo consentimento em alienar a liberdade ilimitada, mas também pelo “uso” da liberdade
convencional como força de expressão política no sentido que conduz à Vontade Geral. A
concordância é o primeiro princípio estabelecido que não regerá a sociedade, mas que
zelará por sua existência, mantendo vivo dessa forma o corpo político, ou seja, o Estado.
Não há sociedade onde não haja uma concórdia por parte dos indivíduos em
formar a sociedade: a primeira e mais importante conseqüência dos
princípios estabelecidos é a de que somente a vontade geral pode dirigir as
forças do Estado segundo o fim de sua instituição que é o bem comum: pois
se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o
estabelecimento das sociedades, foi o acordo destes mesmos interesses que
a tornou possível. E é o que de comum, nestes diferentes interesses, que
forma o laço social e, se não houvesse algum ponto no qual todos os
interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. (FORTES,
p.84)
Essa concórdia expressada através do Pacto Social revela, de certo modo, o interesse
na vida comum e o reconhecimento do outro enquanto indivíduo, da importância do particular
na instância pública. Por essa ordem de respeito e consideração mútua, um grupo não poderia
ter autoridade sobre o todo, nem uma parte falar mais alto que a voz da Vontade Geral. Isso
romperia definitivamente o pacto, transformando o elo da dependência em submissão, o que o
tornava a sociedade nascente novamente corrupta. Por essa razão, é necessário compreender
79
bem a vontade geral fazendo a distinção dela ante outros tipos de vontades. Vejamos quais
seriam essas outras vontades:
Distinguindo a Vontade Geral da:
Vontade Particular
Diferentemente da Vontade Geral, a Vontade Particular vislumbra o interesse
particular se orientando pelo teor privado das disposições. A Vontade Geral se exprime
através da Vontade Particular, entretanto não é uma agregação dessas vontades, mas uma
supressão dela, onde são retirados os “a-mais” e os “a-menos”. A essência da Vontade Geral é
o bem público, comum, enquanto a Vontade Particular possui um objeto próprio independente
do bem comum, que objetiva uns em detrimento do todo.
Essa distorção da vontade, assumindo a forma particular, toma a forma individual
quando põe o indivíduo em primazia ao grupo, no qual o interesse pessoal o reserva do
interesse coletivo sendo o seu próprio bem o ideal maior. Dessa forma, a Vontade Particular
conflita com a Vontade Geral, pois o interesse pessoal, a vontade do homem, se sobrepõe a
vontade do cidadão, do membro do corpo político. Isso leva a um estado de independência tal
que rompe com a interdependência necessária à vida social. Quando essa vontade manipula a
Vontade Geral, subjugando-a, faz o Estado perecer, pois quebra o vínculo criado no Pacto
Social.
A predominância da Vontade Particular não poderia tornar a sociedade justa nem
tampouco as leis legitimas. Os limites da individualidade transcenderiam ao âmbito social de
modo a trazer de volta a desigualdade, a desfaçatez e o engano. O Bem individual não
80
garantiria o bem comum, mas o bem comum, por sua vez, resultaria no bem individual a
medida que concorre à conservação do Corpo Político.
A liberdade individual não pode aqui ser confundida com a Vontade Particular; esta
para ser boa e justa deve estar em concordância com a Vontade Geral, buscando o Bem
Comum e não apenas o próprio interesse em supremacia ao coletivo, ao todo. A identificação
com o outro, o reconhecimento do limite da condição de sujeito livre, mantém o laço de
dependência que amplia o próprio horizonte da existência, alargando ainda mais a faculdade
de se aperfeiçoar. A auto-realização como cidadão se efetiva mediante a colaboração
particular dada a efetivação da vontade geral e não a consolidação de uma vontade particular,
moldada pelo interesse, na existência da vida social.
A Vontade Particular é compreendida como mazela à constituição do Corpo Social,
sendo sua efetivação, ou realização na ordem política, a causa da morte imediata do Corpo
Político estabelecido pelo pacto, por considerar uma parte superior ao todo, engendrando
assim a desigualdade e a corrupção na política e na sociedade.
Vontade de Todos
Assim como a Vontade Particular o pode superar a Vontade Geral, o mesmo não
pode ser feito com a Vontade de Todos, pois mesmo aparentando o bem, representa não o
bem comum, mas o particular, sendo dessa forma distinta da Vontade Geral, ou ainda
contrária a ela, podendo ser claramente diferenciada na seguinte citação:
comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral.
Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e
não passa de uma soma das vontades particulares. Quando se retiram,
porém, dessas mesmas vontades, os a-mais e os a-menos que se destroem
mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral. (Contrat
Social, p. 674/675)
81
A Vontade de Todos implica na soma das vontades particulares que se ligam pelo
interesse particular comum aos membros, mas que não objetivam o bem coletivo e sim o bem
de si mesmos enquanto parte de um todo, no caso o Estado. Essa soma de vontades provém
do reconhecimento ou da extensão do interesse privado sobre o publico, sendo sua efetivação
a destruição da Vontade Geral e de um governo moderado caracterizando novamente a
corrupção.
Vontade Corporativa
A Vontade Corporativa, por sua vez, corresponderia a vontade de um determinado
grupo cujo interesse comum pretende prevalecer sobre o interesse geral; seria uma busca de
maior força ou poder enquanto grupo, em detrimento dos demais que formam o Estado ou o
Corpo Político. Essa vontade também se torna agravante à medida que avança na busca de sua
realização, pondo sério risco a vida publica e a vida particular por desconsiderar o bem
comum como o bem maior.
O ideal para a efetivação do governo seria a busca pelo Bem comum, pelo bem de
todos, mesmo que as vontades particulares, individuais e corporativas não se efetivassem em
seu teor específico. Caso isso não acontecesse, a busca pelo Bem comum garantiria a todos o
bem, sendo assim a forma legítima e justa de governar. “Enquanto muitos homens reunidos se
consideram um único corpo, eles não têm senão uma única vontade que se liga à conservação
comum e ao bem-estar geral.” (Contrat Social, p.707)
A predominância da vontade de um grupo em detrimento de outro(s), equivaleria à
reconstrução da desigualdade em sua forma mais torpe de existir, ou seja, na penumbra das
escolhas e decisões se faz valer os interesses de minoria enquanto a maioria se restringe a
82
louvar ou odiar, perdendo assim o caráter de liberdade, de escolhas e de possibilidades. Seria
então o retorno à servidão, ao engano e à falsidade.
Não toma, portanto um caráter benéfico o uso das Vontades Corporativas, dos grupos
de membros iguais que buscam seus interesses enquanto corpo dentro de um todo maior. Isso
seria, no mínimo, reconhecer um membro mais importante que outra coisa que não é objetivo
do contrato e do pacto.
Diante de tantas possibilidades de erros e de conflitos, como reconhecer a Vontade
Geral e como ter certeza que o Estado seria feito por ela de forma eficiente e transparente?
Vejamos a seguir:
Reconhecendo a Vontade Geral:
Visa o bem comum:
“[...] não pode haver Vontade Geral visando objeto particular.” (Contrat Social, p.
678) Ao lançar mão do Pacto Social e efetivar um Corpo Político com moralidade e
responsabilidade o novo homem se compromete em buscar o Bem, não mais no sentido
restrito, individual, mas pensando na coletividade na qual está inserido. O reconhecimento do
outro enquanto ser de possibilidades reforça a necessidade do uso da Bondade, que no Estado,
se fará por meio da justiça expressa nas leis criadas por todos e para todos.
Essa entrega, ao outro e ao Estado, é uma virtude necessária à existência e manutenção
do Corpo Político, e é por meio dela que se desenvolve o sentimento de amor à pátria que
produzirá ações de responsabilidade: “[...] esse sentimento suave e vivo, que junta a força do
83
amor próprio a toda beleza da virtude, dá-lhe uma energia que, sem desfigurá-la a torna mais
heróica de todas as paixões.” (L’economie Politique, p.617).
A virtude e o patriotismo se tornam elementos que consolidam a Vontade Geral, pois
ambos sedimentam o Pacto Social em sua essência, assegurando a conservação das vidas e
dos bens, estabelecendo a igualdade, conservando a liberdade e instituindo a justiça através do
acordo tácito implícito na busca pelo Bem Comum.
Dessa forma, é estranho a um membro do corpo não ceder à voz da Vontade Geral ou
não tornar sua vontade particular submissa àquela que prioriza o todo ao invés de uma ou
outra parte. O consentimento e a aceitação à Vontade Geral apontam à virtude de um povo e
torna cada cidadão responsável pela engrenagem estatal. A garantia da Vontade Geral é
centrada no Bem Maior, que comum a todos, não pode infringir nenhum particular.
É sempre certa
48
A Vontade Geral é sempre certa na medida em que orienta os interesses à coletividade,
unindo as vontades na busca pelo Bem Comum. O Legislador seria aquele que guiaria os
membros no entendimento e na vontade para que ambas concorressem à manutenção da
harmonia na vida pública.
Por meio da Vontade Geral todos são igualmente favorecidos de modo que ninguém é
destituído do corpo político, ficando a margem de decisões ou de forma inversa, sendo um
único beneficiado: “[...] o Pacto Social estabelece uma tal igualdade, que eles se
comprometem todos nas mesmas condições e devem todos gozar dos mesmos direitos e
deveres. Igualmente, devido a natureza do pacto, todo o ato de soberania, isto é, todo ato
autêntico da Vontade Geral, obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos de modo que o
48
Cf.cap. III do Livro II do Contrat Social.
84
soberano conhece unicamente o corpo da nação e não distingue nenhum dos que a compõe.”
(Contrat Social, p.676)
A Vontade Geral legitima a soberania mantendo a liberdade individual sem desvirtuá-
la para um individualismo. Assim, o sujeito social é homem (participa da condição de
homem, enquanto indivíduo livre) e cidadão (detém as vantagens do enlace efetivado pelo
pacto) numa sociedade que busca a equidade.
A Vontade Geral é indestrutível
49
Conforme o primeiro capítulo do Livro IV do Contrat, Rousseau mostra a Vontade
Geral indestrutível por sua característica primordial: a busca do Bem Comum. Segundo ele
essa é uma máxima clara e simples de qualquer estado e qualquer povo. Ela pode, em algum
momento, encontrar-se subordinada a outras vontades, que podem sobrepujá-la, entretanto ela
será sempre constante, inalterável e pura.
50
A Vontade Geral se fará ouvir mediante a concórdia dos homens nas assembléias e nos
momentos de votação. Quanto mais unânimes as opiniões mais dominante sua voz, entretanto,
quanto mais dispersos os interesses, quanto mais ávidos os debates, mas emudecida fica sua
voz.
Por meio da Vontade Geral o cidadão se torna pleno, efetiva sua liberdade que vem a
existir por meio da concórdia estabelecida no Pacto Social. Por essa razão, o cidadão
reconhece e aceita a voz da Vontade Geral como garantidora do vínculo estabelecido. Sendo
assim, ele acata as leis (pois ele mesmo é o autor, quando exerce o papel de soberano) e as
obedece (exercendo o papel de súdito), mesmo aquelas que punem. “O cidadão consente todas
49
Cf.cap. I do Livro IV (Contrat Social)
50
Conforme Contrat Social, p. 708.
85
as leis, mesmo as aprovadas contra sua vontade e até aquelas que o punem quando ousa violar
uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a Vontade Geral: por ela é
que são cidadãos e livres.” (Contrat Social, p.709)
A Vontade Geral é a representação do consentimento das condições necessárias à vida
no liame social; é a voz da concórdia que se consolida em forma de lei e que torna todos os
cidadãos responsáveis por sua existência e manutenção. Por essa razão, ela é o eixo da política
rousseauniana, onde a liberdade se reproduz em responsabilidade, seja no plano individual,
seja no plano coletivo. Ela será justa por apresentar as partes ao todo, como um corpo que,
coeso, vai buscar o próprio desenvolvimento. “Somente a Vontade Geral pode ser justa e reta
pois só ela tem por finalidade o interesse público [...] Apenas a vontade pode fazer ou revogar
leis, mas para isso deve exprimir-se diretamente, sem se fragmentar ou se alienar.”
(PISSARRA,2002, p.76)
Para tanto, a Vontade Geral não pode ser alienada, representada ou submetida a um
poder maior. Ela é a expressão máxima da moralidade de um povo que culminará na criação
das leis, na efetivação do direito e na instituição de uma política participativa e justa onde
predomina a liberdade e a igualdade. Ela é a pulsão do Estado verdadeiro.
86
CAPÍTULO 4
GOVERNO E CIDADANIA
A vida pública apontada por Rousseau configura a participação e a intensa atividade
no seio social, de modo que a liberdade, sendo usada para as escolhas e decisões, exerce
importante papel na construção do Governo a medida que propicia leis comuns. “[...] ser
político é viver na opressão e na liberdade: ser livre não é ser sem lei, nem seguir a lei dos
outros, mas é ser a própria lei, uma lei que eu fiz mediante contrato com os outros, de modo
que todos obedeçam, ao mesmo tempo, a todos e só a si mesmo.” (ASSMANN, - , p.6)
Desse modo, o cidadão, membro do Estado e partícipe do novo acordo firmado, seria
detentor de liberdade, principalmente na vida pública, na qual suas ações atingiriam duas
esferas no âmbito da coletividade: uma moral, configurada pela Vontade Geral e outra física,
capaz de executar todas as determinações decorrentes dessa vontade, sendo na prática o
Governo. Essa instância física seria um agente próprio capaz de reunir e pôr em ação as
diretrizes da Vontade Geral, servindo à comunicação entre Estado e Soberano.
87
O Governo seria assim constituído de magistrados com a função de manter a liberdade
civil e política, conforme observamos na citação a seguir:
Que será, pois o Governo? É um corpo intermediário estabelecido entre os
súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da
execução das leis e da liberdade, tanto civil como política. (Contrat Social,
p. 687)
A garantia da execução da Vontade Geral estaria assegurada por essa força que agiria
conforme as leis estabelecidas pela assembléia popular. O Governo seria então a “vida” do
corpo político, que assim como um corpo humano necessita de regras para uma existência
saudável. Rousseau aponta em Economia Política as regras para um governo popular e
legítimo capaz de assegurar ao cidadão a presteza do acordo. Seriam essas as regras:
Conformar a Administração pelas leis
“[...] a primeira dessas leis consiste em respeitar as leis” (L’économie, p. 590)
Essa é uma premissa de responsabilidade certamente acordada no estabelecimento do
novo pacto. Pressupõe o uso de consciência e aceitação das possibilidades discutidas por
todos os cidadãos. O respeito às leis consistiria no respeito ao Estado enquanto tal. A primeira
regra para uma boa administração pública seria uma administração consoante às leis,
expressando a plena realização das decisões comuns.
88
Conformar as vontades particulares pela Vontade Geral
Essa seria a maior virtude do cidadão: a conformidade de sua vontade particular à
vontade geral em benefício do coletivo, do outro e da estrutura na qual é estabelecido o pacto.
Ao governo caberia fazer reinar essa virtude. “[...] todo homem é virtuoso quando sua vontade
particular em tudo se encontra de acordo com a Vontade Geral e de bom grado desejamos
aquilo que desejam as pessoas que amamos.” (L’économie, p. 592) Para tanto, o governo
deveria desenvolver os bons costumes no seio social por meio da educação pública. O
primado de uma verdadeira política e da fundação de uma moral comungam pela recuperação
da dimensão pública da existência individual consolidada na efetivação da Vontade Geral.
Essa virtude pressupõe o patriotismo, um “sentimento suave e vivo, que junta a força
do amor próprio a toda beleza da virtude, dando-lhe uma energia que, sem desfigurá-la a torna
a mais heróica de todas as paixões”, (L’économie, p. 592). Direciona o amor individual ao
amor coletivo, retirando-o do âmbito particular e o estendendo a toda comunidade que forma
o Estado.
Através dos sentimentos seriam resgatados valores morais relevantes à existência
responsável do cidadão, considerado em sua humanidade, tanto para o Estado, quanto ao
corpo coletivo, quanto ao sujeito mais próximo de si. O amor à pátria seria amor pela própria
vida. A pátria sendo a benfeitora do cidadão confere a este honra queo cabe ao estrangeiro
assim como vantagens que asseguram sua vida e seus pertences, além da liberdade civil. A lei
gerada pela Vontade Geral seria assim gerada e geradora de moralidade a partir do momento
que pressupõe valores na sua criação e aceitação.
Portanto, a virtude maior necessária à manutenção do acordo reivindicada pela
Vontade Geral como sinal de responsabilidade deveria ser levada ao conhecimento e
aceitação por parte dos cidadãos. Para esse desempenho caberia ao governo “prevenir a
89
extrema desigualdade das fortunas, não arrebatando os tesouros a seus possuidores, mas
tirando de todos os meios de acumulá-los; não construindo hospitais para os pobres, mas
garantindo o futuro dos cidadãos.” (L’économie, p.594).
O governo para ser justo não poderia ter extrema desigualdade a ponto de gerar pobres
e ricos. As leis seriam impotentes contra o tesouro dos ricos bem como à miséria do pobre. O
público de um governo justo estaria centrado na mediocridade, no meio termo considerado
ideal a aplicabilidade das leis. A igualdade, assim como a liberdade, é uma premissa para um
governo justo porque equipara a existência. “A questão que se acha por trás de todos os
debates é a questão relativa a quem, na comunidade, detém direitos. Vemos, por outro lado,
que os termos do pacto se deduzem dos dois objetos principais, aos quais se reduz o maior
bem de todos, ou seja, a igualdade e a liberdade. Cada participante se aliena: a condição é,
pois igual para todos, ninguém se acha excluído. A alienação se faz a toda comunidade: logo,
não implica em submissão a nenhuma outra vontade particular. [...] Fazer da Vontade Geral a
vontade soberana é dizer como se configura, do ponto de vista jurídico, a associação melhor
possível entre uma multiplicidade de indivíduos.” (FORTES, 1976, p. 87).
A igualdade se efetiva a medida que cada um livre e consciente, concorda em se
colocar sob a plena direção da Vontade Geral. A base do governo é vislumbrada no interesse
comum dos indivíduos, das partes componentes do todo. O homem deixa de ser inteiro
absoluto, sem relações exteriores a si mesmo, passando a ser relativo, tendo plenificação no
“eu comum”, o que pressupõe uma disposição de razão e sentimentos, mediante as relações.
Assim observamos que “o Corpo Político não é um sistema de relações jurídicas entre
os indivíduos: esse sistema é apenas a sua ossatura. Mais do que isto, trata-se de uma
realidade essencialmente de ordem afetivas”. (FORTES, 1976, p. 89) uma disposição de
caráter que expressa anseios conformando-se simultaneamente a efetivação do bem comum.
90
Nesse aspecto a idéia de Corpo Político se funde com a idéia de Pátria, e o interesse na
união sedimenta-se no sentimento de amor e responsabilidade, indo além da instancia política,
atingindo a esfera particular do sentimento enquanto viés formador da base política, social e
econômica.
Atender as necessidades públicas
Esse aspecto se refere à administração dos bens e das finanças públicas, sendo a parte
econômica propriamente dita. São tratados os aspectos referentes ao fisco e as finanças do
governo concernente à manutenção da máquina estatal, na qual é sugerida a cotização para a
fixação de impostos, sendo esta proporcional aos recursos de cada membro. ainda a
sugestão de que haja isenção de impostos sobre os produtos necessários, cobrando apenas de
artigos de luxo, tanto de exportação quanto de importação.
Em síntese podemos dizer que as bases de um governo justo conforme as normas do
genebrino devem considerar:
- Respeito às Leis
- Amor à Pátria
- Vigor da Vontade Geral
Um governo democrático e participativo teria sua base no sentimento de
responsabilidade gerado pela cidadania conscientemente adquirida. O respeito pelas leis,
pelos outros e pelo Estado asseguraria a paz decorrente desses “homens de bem”, com
capacidade de ser súditos e soberanos. O pacto firmado por meio de mentes conscientes, de
homens livres, construiria uma sociedade justa e politicamente igual à medida que convida
todos a participação dos direitos e deveres delegados em comum acordo.
91
Por essa razão, a vida política é uma vida moral, cercada de valores individuais
potencializados na coletividade, não podendo ser desvinculada da educação pública
51
formadora dos espíritos jovens. A cidadania é uma via de mão dupla que traz consigo a
“obrigação”, o dever para com o Estado e para com o outro enquanto extensão de si mesmo,
assim como o resgate de bens maiores como a igualdade e a liberdade e direitos concernentes
à conservação da vida e das posses. A democracia apontada como forma de governo revela
uma proposta capaz de expressar não apenas interesses, mas os anseios de uma coletividade.
É uma chamada pública à responsabilidade política e social construída no intuito de buscar a
supremacia do Bem Comum e a excelência da participação popular desconsiderando
diferenças e desigualdades.
51
A educação pública é considerada uma das máximas fundamentais do governo popular. É por ela
que os espíritos jovens são formados e gerados os futuros cidadãos. (conforme vemos em L’économie,
p. 595)
92
4.1 CIDADANIA E RESPONSABILIDADE MORAL: A APLICAÇÃO
DOS BONS SENTIMENTOS NO SEIO CIVIL
Como vimos no capítulo anterior, o governo justo não seria um amontoado de regras
que ignoram as peculiaridades individuais, desconsiderando os sentimentos na construção do
Estado enquanto instância pública, mas seria um misto de interesses e sentimentos voltados ao
Bem Comum, tanto do Corpo Político quanto dos membros associados.
Para o exercício da cidadania, com o uso real de responsabilidade para o acordo
firmado, seria necessário além da participação o desenvolvimento da virtude, característica do
cidadão que ama e zela a pátria. Pela virtude surge a figura do herói, aquele que é capaz de
doar-se por um bem maior, por um bem coletivo, expressado por um elo firme para com o
Estado à medida que se submete à vontade geral e se dispõe a obedecer e ser obedecido. A
virtude republicana apregoada como sentimento profundo de amor torna-se a maior dádiva em
um estado participativo: “Certamente os maiores prodígios de virtude foram produzidos pelo
amor à pátria. Esse sentimento suave e vivo, que junta a força do amor próprio a toda a beleza
da virtude, dá-lhe uma energia que, sem desfigurá-la, a torna a mais heróica de todas as
paixões”. (L’économie, p. 592)
Essa virtude transmite ainda a idéia de autonomia, o desejo em escolher servir, zelar.
O cidadão escolhe o pacto, opta por ele, mas pela liberdade se predispõe a amar. Esse
sentimento de amor que produz a virtude promove a vida do estado ao caminhar para seu
cuidado.
O ideal de justiça eleva os sentimentos à razão, à medida que desperta as consciências
na busca do bem por meio da reconstrução de uma cidadania participativa e da ativação da
responsabilidade moral, do interesse nas decisões públicas e no respeito à supremacia da
Vontade Geral como guiadora do destino político.
93
A dualidade existencial expressada nas figuras de súdito e soberano onde obedecer e
mandar, ser servo e senhor, dispor e ser disponível comunga os anseios em construir uma
sociedade civil moldada em novos elementos conhecidos e observados. O individualismo é
ultrapassado gerando um “homem parte” existente não mais em si mesmo, mas enquanto
possibilidade de uma síntese social. A existência humana passa a existir indiferente ao auto-
engano da massificação e da representação. A vida autônoma e independente cede a
necessidade de um todo no qual as partes são contempladas e uniformizadas.
A democracia direta proposta pelo contrato descarta a representatividade porque esta
exclui e isenta o cidadão de plena responsabilidade para com os deveres adquiridos pelo
acordo firmado no pacto. Ser parte do Corpo Político implica em dar e receber, estando
“vivo” como membro desse todo, sendo autor e partícipe das decisões. Dessa forma, a vida
pública permite repletas possibilidades que não ignoram as peculiaridades, mas buscam um
bem maior comum a todos. Ser político significa assim viver na liberdade das leis criadas pela
própria conveniência, de modo que cada um obedece a todos e a si mesmo.
A proposta contratualista do genebrino resgata a participação na vida pública como
uma extensão ou efetivação da existência. O homem se torna pleno em sociedade; é nela e por
ela que sua vida toma forma e sentindo. A perfectibilidade permite ao homem a condição de
reconstruir, refazer o que outrora foi perdido no seio social, e a própria sociedade deveria
oferecer o remédio às mazelas provocadas ao homem. “Querer que o homem em absoluto não
se torne sociável, seria desejar, então, que não fosse mais homem, e insurgir-se contra a
sociedade humana é atacar a obra de Deus.” (Lettre a Philopolis, p. 603) O homem é um ser
social, a história descreveu apenas a corrupção oriunda do engano da capacidade racional,
mas isso poderia ser corrigido, na própria vida em sociedade, retomando valores e
sentimentos.
94
A justiça de um governo se configura pela responsabilidade individual em fazer valer
o acordo comum, numa união consciente de vontades que prezam por um bem maior
vislumbrado numa administração construída por todos, na autonomia de um sujeito livre que
comunga de direitos e deveres no seio social. Cada cidadão passa a zelar pelo cumprimento de
um contrato onde as partes se tornam uma unidade. Ser cidadão implica em ser responsável e
não ignorar a Vontade Geral como vontade suprema.
Dessa forma, o conceito de cidadania fica atrelado ao conceito de responsabilidade
quando compreendemos um enlace de valores pelo pacto e pela busca do Bem Comum,
tornando-se inseparáveis na sedimentação do Estado e na administração pública. Os
sentimentos de amor e zelo expressados na virtude como benfeitora maior, tornam-se fortes
aliados à capacidade racional de compreender o Estado como instancia pública necessária a
todos.
95
CONCLUSÃO
A proposta política de Rousseau ultrapassa os limites da jurisprudência e do
formalismo alcançando o homem em sua plenitude existencial, reconhecendo e valorizando os
sentimentos e sentidos na constituição da vida particular e pública. Ser homem e cidadão
coincidem no ousado projeto de igualdade e liberdade efetivado numa sociedade justa.
A capacidade de se aperfeiçoar que retirou o homem de seu estado original o fez
avançar em direção ao processo de socialização que culminou no complexo conjunto de
valores, normas, direitos e deveres chamados Sociedade. Esse processo inevitável decorreu da
condição humana de escolher e decidir, algo inerente à constituição do homem.
Na dura crítica a sociedade, o genebrino aponta os erros e a falácia da razão que
geraram mais males que bens ao retirar do homem sua maior dádiva: a liberdade. No entanto,
sua impressão quanto ao futuro da condição humana não é negativa. Ele reconhece que pela
sociedade o homem se efetiva. Isso implica que o antídoto para os males registrados na
história pode ser encontrado na própria sociedade. O conhecimento, ou esclarecimento
oriundo da razão deveria conduzir melhor a vida do homem e não existir ou ser fim em sim
mesma. A razão não poderia ser o único meio de desenvolvimento do homem porque esse
homem também existe em sentimentos e sentidos.
A capacidade de se aperfeiçoar soaria nesse complexo mundo como uma possibilidade
real de mudança, onde por meio da consciência o homem reconstruiria um novo pacto capaz
de restaurar a liberdade, estabelecendo para isso condições necessárias ao bem-estar particular
e público. Com isso, cada homem seria reconhecido como um indivíduo importante ao
96
coletivo, sendo parte de um todo harmonioso. Seria um ser político, com uma vida privada
diretamente ligada à vida pública. Assim, restaurando a figura do homem, ressurge a figura do
cidadão, súdito e soberano num governo pautado na igualdade.
Pensar numa política democrática participativa implica em aderir à idéia de
responsabilidade para viabilização de um acordo duplo, onde cada parte zela em cumprir seu
papel em benefício da vitalidade e durabilidade do acordo. A consciência desenvolve o
sentimento de amor por aquela sociedade que cuida de seus membros como um pai de seus
filhos, e o Estado trata de assegurar a vida, a liberdade e a garantia das posses. O corpo
político se mantém pela união estável de seus membros que dispostos a reconhecerem a
Vontade Geral como Vontade Soberana, caminham em benefício da coletividade sem ignorar
para isso a individualidade. Assim a idéia de justiça se funde com a própria idéia de
sociedade.
Os termos justiça e sociedade podem ser unidos com a condição de que
seja respeitado o requisito essencial que faz do consentimento daquele que
se obriga o fundamento da obrigação. A resposta à questão estabelece os
limites entre o justo e o injusto, circunscreve o âmbito da justiça, fixando os
princípios primeiros a partir dos quais todo o sistema político se deduz ao
mesmo tempo em que determina a essência do corpo político. (FORTES,
1976, p.74)
O elo assegurador da sociedade fica localizado na responsabilidade em se dar a todos,
com a garantia de não se dar a ninguém. Cada membro do acordo se dispõe a entregar-se sem
negar para isso sua importância enquanto parte componente ou inclinar para tal projeto
unicamente a razão. O vislumbre da cidadania reconhece a simplicidade do homem e trabalha
nessa condição unificando os papéis. Homem e Cidadão são constituídos existencialmente em
harmonia na e para a sociedade.
Dessa forma, disposto a repensar a condição do homem no seio social Rousseau se
apóia na razão para revitalizar a importância dos sentimentos na construção de uma política
97
plena e participativa moldada na liberdade e assegurada pela igualdade. Sem desconsiderar a
constituição humana composta de sentidos, sentimentos e razão, ele ressalta a fragilidade
desta (razão) em seu devir isolado, mas aponta sua potencialidade expressada numa Vontade
Coletivista.
98
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