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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: GEOGRAFIA E GESTÃO DO TERRITÓRIO
A REPRODUÇÃO DO LUGAR E O DESAFIO DE PERMANÊNCIA NOS
LOTES DA REFORMA AGRÁRIA: ASSENTAMENTO DIVISA
ITUIUTABA MG.
NELSON NEY DANTAS CRUZ
UBERLÂNDIA/MG
2008
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NELSON NEY DANTAS CRUZ
A REPRODUÇÃO DO LUGAR E O DESAFIO DE PERMANÊNCIA NOS
LOTES DA REFORMA AGRÁRIA: ASSENTAMENTO DIVISA
ITUIUTABA MG.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia da Universidade Federal de
Uberlândia, como requisito parcial à obtenção do título de
mestre em Geografia.
Área de Concentração: Geografia e Gestão do Território.
Orientador: Profº. Dr. Rosselvelt José Santos
Uberlândia/MG
INSTITUTO DE GEOGRAFIA
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C957r
Cruz, Nelson Ney Dantas, 1981-
A reprodução do lugar e o desafio de permanência nos lotes da
reforma agrária : Assentamento Divisa - Ituiutaba-MG / Nelson
Ney Dantas Cruz. - 2008
270 f . : il.
Orientador : Rosselvelt José Santos.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Geografia.
Inclui bibliografia.
1. Geografia rural - Teses. 2. Reforma agrária - Ituiutaba (MG) -
Teses. 3. Assentamentos rurais – Ituiutaba (MG) – Teses. I. Santos,
Rosselvelt José. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa
de Pós-Graduação em Geografia. III. Título.
CDU: 911.373
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
mg- 06/08
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
NELSON NEY DANTAS CRUZ
A REPRODUÇÃO DO LUGAR E O DESAFIO DE PERMANÊNCIA NOS LOTES DA
REFORMA AGRÁRIA: ASSENTAMENTO DIVISA ITUIUTABA MG.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________
Prof. Dr. Rosselvelt José Santos (Orientador).
__________________________________________________
Profª. Dr. Marcelo Rodrigues Mendonça - UFG.
__________________________________________________
Profª. Dra. Mônica Chaves Abdala – UFU.
Data: ____/____/_______
Resultado: ____________________________________________________
Dedico esta obra a todos aqueles
que se importaram comigo e me
deram apoio. Em especial, minha
esposa, Karine, minha mãe, dona
Marluce, meu pai, Manoel Cruz,
minha irmã, Nélia, meu irmão,
Nilson, e sua família, e minha
irmã, Nelma, e sua família.
AGRADECIMENTOS
Quando temos a certeza de que nossa obra de arte está concluída,
independente das imperfeições que os outros vêem, sentimo-nos tranqüilos conosco
mesmos, porém, não devemos nos esquecer das dificuldades que se fizeram
presentes, em nossa jornada.
As dificuldades me fazem lembrar as palavras de uma professora de minha
infância, que “As grandes conquistas profissionais exigem sacrifício”. Bem sei de
quantas vezes tive que dormir poucas horas durante a noite pois, mesmo cansado,
entendia ser necessário estudar um pouco mais. Em diversos momentos, tive de
recusar-me a participar de festas e reuniões familiares. Quem me dera ter
disponibilidade para não ter faltado aos jogos de futebol com os amigos. Poder ter-
me dedicado, um pouco mais, ao estudo da música e da arte. Ter tido força física
para não faltar aos treinamentos de boxe. Seria bom ter vivido, mais intensamente,
cada momento. Isto não significa que estou arrependido de ter-me dedicado à minha
formação de mestre. Demonstro apenas que, às vezes, é necessário sacrificar
algumas relações sociais e reduzir o espaço vivido para, num futuro próximo, ampliar
o próprio espaço social.
Dessa maneira, entendo ser necessário agradecer àqueles que
acompanharam minha caminhada e me deram força e incentivo para continuar
batalhando, sem desanimar. Agradeço, primeiramente, à minha família, com quem
morei ao mês de Abril de 2008. Agradeço ao meu pai e aos meus irmãos, que
moram no Assentamento Divisa. Agradeço a todas as famílias moradoras do
Assentamento, que contribuíram com entrevistas e receptividade, incluindo, de modo
especial, meu pai e meus irmãos que residem. Tenho muito a agradecer à minha
esposa que, durante maior parte desta trajetória, no mestrado, foi minha namorada e
noiva. As leituras que realizou comigo, bem como os debates que produzimos,
juntos, contribuíram para minha formação e foram incentivos valiosos.
Aos membros do laboratório de Geografia Cultural e Turismo deixo o meu
agradecimento, pelos diálogos que desenvolvemos no grupo de estudo, bem como
pelas alegrias que tivemos, nos momentos do ócio. Vocês são amigos importantes
para mim e espero continuar estabelecendo diálogos culturais cada vez mais
complexos e relevantes para nossa formação de Geógrafos.
Aos alunos que tive, no curso de graduação em Geografia, na UFU, também
agradeço, pela reciprocidade quanto aos debates que realizamos em sala de aula.
Os meus esforços para planejar uma aula rica em discussões contribuíram para
minha formação profissional e para o conteúdo teórico presente nesta pesquisa.
Agradeço ao Prof. Rosselvelt pela paciência, competência e disposição em
orientar esta pesquisa. Desde a graduação, tenho aprendido muito sobre pesquisa,
ensino e extensão. As discussões que tivemos, sobre práticas de trabalho de
campo, em Geografia, sempre foram encantadoras. Entendo que o seu
conhecimento, como Geógrafo, contribui ao desenvolvimento, não somente da
ciência geográfica, mas também das outras áreas das Ciências Humanas.
Por fim, agradeço a Deus, porque sou homem de fé, independente de crença
religiosa. Somente eu sei o quanto o dom da sabedoria me ajudou nos momentos
difíceis, que tiveram de ser superados, durante o decorrer do curso de mestrado.
Admito que, em toda minha vida, nunca vivenciei tantos problemas familiares e
pessoais. Minha estratégia foi utilizá-los como degraus para o meu próprio
amadurecimento profissional. Aprendi que ser mestre não é apenas conquistar título,
é também conquistar intelectualidade, humanidade, sabedoria e competência,
enquanto cidadão do mundo.
Os desafios da vida cotidiana não
devem ser obstáculos que impeçam
a construção de um mundo melhor.
O lugar se configura como espaço
Ideal para gestação de uma nova
sociedade.
RESUMO
O trabalho que se segue aborda o contexto cultural, político, econômico e social do
assentamento de Reforma Agrária Divisa. Mais especificamente, analisa os modos
de vida, a produção e reprodução do lugar e o espaço comunitário dos sujeitos
moradores desse assentamento. A comercialização de posses de lotes foi um dos
motivos que nortearam a realização da pesquisa, pois, no nosso entendimento, tal
situação constitui-se como um problema para a Reforma Agrária. As preocupações
em compreender o porquê da venda de lotes direcionaram os estudos para as
particularidades que se fazem presentes no espaço vivido. A estratégia foi analisar a
realidade das práticas sociais dos produtores familiares, por meio de suas falas, de
modo que pudéssemos conhecer suas trajetórias de vida, suas conquistas enquanto
assentados ou compradores de lotes. Sendo assim, ampliamos o nosso
conhecimento teórico acerca do trabalho de campo em Geografia, analisando, a
partir de obras geográficas, sociológicas, antropológicas e historiográficas, o método
descritivo e a história oral. Ao conhecermos sobre o cotidiano dos entrevistados,
percebemos que os ciclos da natureza são importantes para o processo produtivo na
agricultura. As festas, o lazer, o trabalho individual e o coletivo constituem o
cotidiano, sendo este estruturado, sobretudo, pelo trabalho. Nesse sentido, as
relações coletivas por afinidades se tornam importantes para reprodução e
estruturação do cotidiano. Dessa maneira, ao analisar os modos de vida,
compreendemos que existem divergências significativas que impedem a produção
de um espaço social coletivo único, em torno das atividades produtivas. Algumas
famílias possuem saberes e habilidades a respeito da produção agrícola, pois, em
suas trajetórias de vida, adquiriram conhecimentos a partir de diversas experiências
vividas no espaço rural. Outras famílias não viveram experiências no rural e
possuem origem urbana. Estas têm dificuldades em trabalhar, produzir e obter renda
a partir dos usos do lote. Dessa forma, o lugar é produzido e reproduzido pelos
conflitos, entendimentos e desentendimentos entre famílias moradoras do
assentamento. A reprodução da vida, por meio dos usos e apropriações dos lotes,
torna-se um desafio, que a produção do lugar é conflituosa, permeada por
conquistas, negociações frustradas e por fracassos na produção e nas organizações
coletivas. É dessa maneira que a realidade dos assentamentos vai sendo produzida
e reproduzida. Algumas famílias abandonam o sonho de possuir uma propriedade
de terras, pois diante das dificuldades de geração de renda, de obtenção de
assistência técnica e política do Governo, de se relacionar coletivamente, produzir a
comunidade e de obter ganhos financeiros pela venda de sua conquista, optam em
comercializar a posse do lote. Nessa trajetória, as redes de sociabilidade surgidas
pelo relacionamento coletivo das famílias que permanecem morando no
assentamento vai sendo construída e modificada pela vinda de novas famílias.
Analisando essa situação, entendemos que a venda de posses de lotes tem, como
causa, um conjunto de fatores que surgem no espaço vivido e se relacionam a
desencontros presentes no interior do espaço comunitário e nas relações sociais
extra-comunitárias que o coletivo estabelece.
Palavras Chave: Reforma Agrária, modos de vida, lugar, redes sociais,
comunidade.
ABSTRACT
The work that if follows approaches the context, politician, economic and social
cultural of the nesting of the Divided Agrarian Reformation. More specifically, it
analyzes the ways of life, the production and reproduction of the place and the
communitarian space of the living citizens of this nesting. The commercialization of
ownerships of lots was one of the reasons that had guided the accomplishment of the
research, therefore, in our agreement, such situation consists as a problem for the
Agrarian Reformation. The concerns in understanding the reason of the sales of lots
had directed the studies for the particularitities that if make gifts in the lived space.
The strategy was to analyze the reality of practical the social ones of the familiar
producers, by means of its speaks, in way that we could know its trajectories of life,
its seated or buying conquests while of lots. Being thus, we extend our theoretical
knowledge concerning the work of field in Geography, analyzing, from geographic,
sociological, anthropological and historiograficas workmanships, the descriptive
method and verbal history. When knowing on the daily one of the interviewed ones,
we perceive that the cycles of the nature are important for the productive process in
agriculture. The parties, the leisure, the individual work and the collective one
constitute the daily one, being this structuralized, over all, for the work. In this
direction, the collective relations for affinities if become important for reproduction
and structure of the daily one. In this way, when analyzing the life ways, we
understand that significant divergences that hinder the production of an only
collective social space, around the productive activities exist. Some families possess
to know and abilities regarding the agricultural production, therefore, in its trajectories
of life, had acquired knowledge from diverse experiences lived in the agricultural
space. Other families had not lived experiences in the agricultural one and possess
urban origin. These have difficulties in working, producing and to get income from the
uses of the lot. Of this form, the place is produced and reproduced by the conflicts,
agreements and misunderstandings between living families of the nesting. The
reproduction of the life, by means of the uses and appropriations of the lots, becomes
a challenge, since the production of the place is conflict, permeate for frustrate
conquests, negotiations and for failures in the production and the collective
organizations. It is in this way that the reality nestings goes them being produced and
reproduced. Some families abandon the dream to possess a land property, therefore
ahead of the difficulties of generation of producing, income, relating collectively if
politics and technique attainment of assistance of the Government, the community
and getting financial profits for the sales of its conquest, they opt in commercializing
the ownership of the lot. In this trajectory, the nets of sociability appeared by the
collective relationship of the families who remain liveing in the nesting go being
constructed and modified for the coming of new families. Analyzing this situation, we
understand that the sales of ownerships of lots have, as cause, a set of factors that
appear in the lived space and if they relate the failures in meeting gifts in the interior
of the communitarian space and in the extra-communitarian social relations that the
collective one establishes.
Key Words: Agrarian Reform, life ways, place, nets, community.
LISTA DE FOTOS
Foto 1: Ordenha no lote 18. Aqui estão ordenhador, o rebanho e os instrumentos
de trabalho utilizados durante as ordenhas, pela manhã ou pela tarde. Autor: CRUZ,
Nelson Ney Dantas, Março de 2007.......................................................................... 146
Foto 2: Bezerros sendo tratados em cocho, no lote 01. Autor: CRUZ, Nelson Ney
Dantas Cruz, Setembro, 2007. .................................................................................. 148
Foto 3: Vacas leiteiras sendo tratadas no lote 02. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas,
Setembro, 2007.......................................................................................................... 149
Foto 4: Trabalho de ordenha do lote 09. Durante o período das manhãs, marido e
mulher trabalham juntos. Enquanto a mulher segura o bezerro por um laço, o marido
realiza a ordenha. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.................... 153
Foto 5: Colheita do arroz no lote 01. O trabalho é realizado de forma coletiva,
onde participam assentados e fazendeiros vizinhos. As trocas de serviço são a base
dos trabalhos coletivos na lavoura. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de
2007............................................................................................................................ 156
Foto 6: Armazenamento das sacas de arroz colhido no lote 16. Alguns
participantes estiveram presentes em outros trabalhos coletivos, ocorridos nos
demais lotes. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro de 2007. ..................... 157
Foto 7: colheita do gergelim produzido no lote 16. Por meio do trabalho coletivo a
lavoura foi colhida, havendo participação de trabalhadores assentados, que moram
em assentamentos vizinhos ao P. A. Divisa. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, abril
de 2007....................................................................................................................... 158
Foto 8: Imagem do curral situado no lote nº 15. A infra-estrutura existente não está
adequada de acordo com as exigências que o laticínio tem solicitado aos produtores.
A infra-estrutura de cobertura e pavimentação está ausente. Autor: CRUZ, Nelson
Ney Dantas, março, 2007. ......................................................................................... 198
Foto 9: Curral no lote nº 04 sem a infra-estrutura que é exigida pelo laticínio. O
produtor realiza a ordenha à sombra de uma árvore que se localiza no centro do
curral. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro 2007........................................ 199
Foto 10: Entrega de leite no tanque de expansão de uma das associações de
produtores. O produtor é responsável em medir o volume do leite e depositá-lo no
tanque. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro, 2007..................................... 200
Foto 11: Entrega do leite no tanque resfriador. Numa folha, onde se tem uma tabela,
o produtor registra, em seu nome, a quantidade de leite que foi depositado no
tanque. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro, 2007..................................... 200
Foto 12: Alternativa de depósito de leite no tanque de expansão. Uma funcionária é
responsável em medir a quantidade de leite entregue, verificar o nível de acidez do
leite e registrar o volume depositado na tabela Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas,
abril de 2007............................................................................................................... 201
Foto 13: Realização de inseminação artificial. Moradora do lote nº 3 prepara o
material que será utilizado para inseminar o gado. Realiza o descongelamento do
sêmem e faz higienização dos instrumentos que serão utilizados. Autor: CRUZ,
Nelson Ney Dantas, abril de 2007............................................................................. 202
Foto 14: Inseminação artificial realizada no gado bovino. O local onde se prende o
animal é o tronco de um curral, situado próximo à residência do produtor. Autor:
CRUZ, Nelson Ney Dantas, abril de 2007. ............................................................... 203
Foto 15: Rebanho bovino leiteiro reunido do lote nº 02. O rebanho é mantido próximo
do curral, situado ao lado da residência do produtor. Em meio às crias fêmeas, tem-
se o reprodutor macho, da raça Nelore. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro
de 2007....................................................................................................................... 204
Foto 16: Touro reprodutor da raça Gir. Utilizado para cruzar com as fêmeas
produtoras de leite, pertecentes ao assentado morador do lote 18. Autor: CRUZ,
Nelson Ney Dantas, março de 2007.......................................................................... 205
Foto 17: Aparelho transmissor de energia elétrica para as cercas divisoras da
pastagem em piquetes. O aparelho está instalado na residência do morador do lote
nº 02. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007........................................ 206
Foto 18: Erosão do solo em área de nascente d’água, situada nas margens do
córrego Divisa. Essa área é acessada pelo rebanho bovino do lote 22. Autor:
CRUZ, Nelson Ney Dantas, setembro de 2007. ....................................................... 207
Foto 19: Carpideira puxada pelo cavalo para roçar as ervas daninhas presentes na
lavoura de abacaxi, no lote 03. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas Cruz, abril de
2007............................................................................................................................ 209
Foto 20: Colheita do arroz realizada no lote 01. O cutelo é o principal instrumento
utilizado para cortar as plantas. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
.................................................................................................................................... 210
Foto 21: Trabalho de “bater” o arroz. A separação dos grãos de arroz é feita pelo
atrito das plantas cortadas com o Jirau de madeira. O girau é constituído de caibros
roliços, dispostos espaçadamente, formando um estrado. Enquanto alguns separam
os grãos, outros realizam a limpeza, retirando palhas e demais restos vegetais
presentes em meio aos grãos caídos ao solo. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas,
março de 2007............................................................................................................ 211
Foto 22: Arroz colhido e esparramado no solo. Depois de colhidos, os grãos de
arroz, ainda em casca, são expostos ao sol para secar, antes de serem
armazenados em sacas. Para que essa etapa ocorra, é necessário que haja
condições meteorológicas favoráveis, como, por exemplo, dias ensolarados. Lote 01.
Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007. ................................................. 211
Foto 23: Transporte do arroz colhido no Lote 16. O trator é essencial para
transportar o arroz colhido, já que este produtor utiliza áreas do lote que estão
distantes de sua residência, onde as condições de solo são melhores para o cultivo
do arroz. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007................................... 212
Foto 24: área de uso coletivo no assentamento. No primeiro plano da imagem se
observam restos orgânicos de uma plantação de milho. No segundo plano tem-se a
plantação de eucalipto, realizada mediante esforços coletivos, porém seu cultivo tem
sido realizado de forma individual. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Setembro de
2007............................................................................................................................ 229
Foto 25: área coletiva, correspondente ás terras da sede do assentamento, com
cultivo de milho. Resultado de esforços de um grupo coletivo das duas associações
para uso das terras comunitárias. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Março de 2007.
.................................................................................................................................... 232
Foto 26: Artesanato em tricô, produzido pela associada moradora do lote 18. Não
freguesia constante para comprar a produção. Peças de artesanato têm sido
comercializadas com pessoas conhecidas e com parentes. Autor: CRUZ, Nelson
Ney Dantas, Setembro de 2007. ............................................................................... 237
Foto 27: Pintura e bordado em tecido confeccionado pela moradora do lote 23. O
artesanato que a associada nos apresentou para registro fotográfico é resultado das
reuniões que as mulheres realizavam para desenvolver e trocar experiências em
conjunto. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Setembro de 2007. ........................... 237
Foto 28:Fogão a lenha utilizado para produzir os doces de leite e doces
cristalizados, no lote nº 01. A produção apresenta um caráter artesanal. Autor:
CRUZ, Nelson Ney Dantas, Fevereiro de 2007........................................................ 239
Foto 29: Doces variados de leite, abóbora, figo e mamão. A matéria-prima é
produzida no próprio lote. Os doces são embalados em bandejas para serem
comercializados. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Fevereiro de 2007. ............... 239
Foto 30: O doces seriam levados à cidade para serem entregues ao comprador que
os encomendou, alguns dias. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Fevereiro de
2007............................................................................................................................ 240
Foto 31: Tanque de expansão para armazenamento de leite, localizado no lote nº 07.
Os laticínios da cidade exigem que o leite seja armazenado em tanques de
resfriamento. A alternativa dos produtores é se organizar em grupos e adquirir o
equipamento por meio de compra. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Setembro de
2007............................................................................................................................ 243
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Número de famílias assentadas no período de 1970 a 1999. Fonte:
Relatório de Criação de Projetos por fase de implementação Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária. Disponível em
<http://www.incra.gov.br/arquivos/0277102527.pdf>. Acesso em 03 de Novembro de
2007...............................................................................................................................53
Gráfico 2 – Número de famílias assentadas e projetos criados na região do Triângulo
Mineiro-MG, no período de 1986 a 2007. Fonte: Relatório de Criação de Projetos por
fase de implementação – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Disponível em <http://www.incra.gov.br/arquivos/0277102527.pdf>. Acesso em 03
de Novembro de 2007...................................................................................................55
LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Localização do Projeto de Assentamento Divisa no Município de Ituiutaba-
MG. Fonte:.....................................................................................................................31
Mapa 2 : Divisão em lotes do Projeto de Assentamento Divisa. ........................35
Mapa 3 Divisão em lotes do Projeto de Assentamento Divisa e localização das
famílias oriundas de um mesmo município............................................................... 109
Mapa 4 – Configuração da posse dos lotes no ano de 2007.................................. 113
Mapa 5: Demarcação de áreas para uso coletivo da terra....................................... 228
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Relação de lotes que possuíam moradores no ano de 2001. ................ 111
Quadro 2 Experiências de trabalho dos chefes provedores das famílias.
Organizador: CRUZ, Nelson Ney Dantas, 2007. ...................................................... 117
LISTA DE TABELAS
Tabela 01 Número de Assentamentos e de Famílias Assentadas por
Superintendências Regionais do Incra.........................................................................54
LISTA DE FIGURA
Figura 1: Representação da rede de relações, produzida a partir de grupos coletivos
intra e extra-comunitários. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas. ................................ 245
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................17
1. A COMERCIALIZAÇÃO DE POSSES DE TERRAS EM ASSENTAMENTOS
RURAIS COMO TEMA DE PESQUISA....................................................................23
1.1. Caminhos para uma problemática geográfica ....................................................24
1.1.1. Elementos para delimitação do espaço investigado: reflexões acerca dos
aspectos motivacionais na pesquisa............................................................................. 27
1.1.2. Precedentes históricos do Projeto de Assentamento Divisa: os primeiros contatos
com os futuros sujeitos da pesquisa ............................................................................. 33
1.2. A comercialização de posses de terras em assentamentos rurais localizados na
região do Triângulo Mineiro.......................................................................................39
1.3. Consolidação da problemática no contexto de análises relacionais do tema.....42
1.4. A Reforma Agrária em números.........................................................................47
1.5. Os assentamentos rurais como espaço de pesquisas .......................................59
2. MODOS DE VIDA E COTIDIANO: EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS NO ESPAÇO
DA REFORMA AGRÁRIA ........................................................................................77
2.1. Procedimentos e ética no trabalho de campo: reflexões sobre a abordagem
empírica dos sujeitos da pesquisa ............................................................................80
2.2. Os modos de vida das famílias moradoras no Projeto de Assentamento Divisa
................................................................................................................................101
2.3. Trajetórias de vida e experiências desencontradas .........................................106
2.4. Os usos da terra e as estratégias de geração de renda...................................132
2.5. Práticas estruturantes da vida cotidiana...........................................................140
3. PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DAS PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS DE
PRODUTORES FAMILIARES NO ASSENTAMENTO...........................................167
3.1. A produção e reprodução do lugar comunitário a partir das relações sociais ..170
3.2. Paisagem do lugar: resultado das relações com o meio .................................184
4. FORMAÇÃO DAS REDES SOCIAIS E COMUNITÁRIAS NO ASSENTAMENTO
................................................................................................................................216
4.1 – A formação de redes sociais e sua relação com organizações coletivas locais
................................................................................................................................218
4.2. Comunidade e coletividade no assentamento..................................................248
4.3. A lógica das relações sociais no espaço da Reforma Agrária..........................250
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................253
REFERÊNCIAS.......................................................................................................257
ANEXOS .................................................................................................................265
17
INTRODUÇÃO
“[...] eu nunca acreditava que essa reforma agrária ia assim vigorar, sabe.
Que um dia ia ficar em público. Porque quando eu via falar nisso eu era
mais pequeno. Desde eu pequeno ouvia falar na reforma agrária, só que
isso era uma coisa muito escondida, ninguém falava perto assim de um
patrão de uma pessoa rica, que tinha uma posição, porque ficava com medo
de uma represária, e não queria nem ver falar disso porque era
fazendeiro . Mas agora o é mais novidade não.” (Entrevistado 01 65
anos de idade)
A Reforma Agrária, no Brasil, é uma política que tem-se desenvolvido, com
maior vigor, a partir da década de 1990, pois, antes dessa data, podemos afirmar
que ela foi timidamente colocada em prática. Ao analisar as estatísticas referentes
aos números de projetos criados e quantidade de famílias assentadas, desde a
década passada, temos a impressão de que a reforma realmente tem ocorrido a
todo vapor, pois os números demonstram que, desde a criação do Estatuto da Terra,
nunca se assentou tamanha quantidade de famílias. Porém, as estatísticas ocultam
uma realidade que é contraditória e permeada por conflitos entre aqueles que são
beneficiários dos lotes, nos assentamentos. Se, por um lado, a distribuição de terras
realizada pelo Governo ameniza os conflitos e tensões no campo, entre os sem-terra
e os latifundiários, por outro ela gera novos conflitos em torno da luta pela
reprodução da vida, criando margens para o questionamento acerca das práticas
políticas que se têm realizado, a partir da reforma, bem como críticas a respeito da
realidade apresentada por meio de estatísticas.
A dificuldade das famílias em permanecerem morando nos lotes é uma
situação que não é relatada nos discursos do Governo, nem tampouco é
apresentada, nitidamente, nos números do distributivismo. Especificamente, na
região do Triângulo Mineiro, no estado de Minas Gerais, existem assentamentos
18
rurais em que mais de 50% das posses de lotes foram comercializadas. Esta
constatação advém de observações empíricas, durante o período em que
realizamos uma pesquisa, em quatro assentamentos de Reforma Agrária, na região.
Essa estatística nos leva questionar a própria política fundiária da reforma, nessa
região e também no restante do país. Entendemos que recorrer aos órgãos gestores
da Reforma Agrária não é uma alternativa indicada para obter respostas sobre a não
permanência de famílias titulares dos lotes, nos assentamentos. Os dados que são
elaborados e disponibilizados por tais órgãos não apresentam, com detalhes, a
realidade vivida pelos moradores dos projetos de assentamentos rurais. Sendo
assim, o ponto de partida para se compreender os resultados da Reforma Agrária,
no Brasil, é indo ao encontro da realidade dos sujeitos que produzem a reforma à
sua maneira, ou seja, do modo como se apropriam do que lhes é imposto para que
se reproduzam socialmente.
Desse modo, a comercialização de posses de lotes é uma realidade que se
faz presente nos espaços dos assentamentos e um fator importante para que se
questionem as condições nas quais os sujeitos da Reforma Agrária estão se
reproduzindo. A venda de lotes é apenas uma referência para que possamos
adentrar à realidade de homens e mulheres que, um dia, sonharam em possuir uma
propriedade rural. Porém, de acordo com circunstâncias adversas, podem surgir
necessidades que os levem a abandonar a terra e comercializar a posse
conquistada.
Certamente uma lógica que se estabelece nos espaços dos
assentamentos, sendo que a permanência de famílias nos lotes, bem como a venda
de posses, não está desvinculada de tal lógica. Dessa maneira, podemos entender
que, existindo uma lógica de organização, produção e reprodução de tais espaços, é
19
possível compreender o porquê da permanência ou não de famílias, nos
assentamentos rurais. Nesse sentido, o questionamento em torno da
comercialização de posses de lotes, em assentamentos rurais, tornou-se o fio
condutor da pesquisa que realizamos no Assentamento Divisa. Como a região do
Triângulo Mineiro foi a referência para constatação de que existe comercialização de
posses em assentamentos, escolheu-se um projeto de assentamento nessa região.
A proximidade com os moradores e o conhecimento a respeito da luta pela terra, por
eles empreendida, foram os principais critérios para delimitar o espaço de estudo.
Desse modo, o Projeto de Assentamento Divisa foi escolhido para estudarmos as
formas e os processos pelos quais homens e mulheres criam e recriam as condições
de produção e fixação de seus ideais, nos lotes da Reforma Agrária. O
assentamento está localizado na zona rural do município de Ituiutaba-MG e, desde a
sua criação, no ano de 1999, estabelecíamos contato com algumas famílias
moradoras, sendo que tal proximidade contribuiu para o desenvolvimento das
pesquisas.
O principal objetivo do trabalho que se segue é analisar os modos de vida e a
reprodução do lugar, no Projeto de Assentamento Divisa. Os modos de vida estão
diretamente relacionados às estratégias que as famílias possuem em garantir a
reprodução da vida. O lugar é o referencial geográfico onde ocorre a reprodução das
famílias, pois ele é produzido e reproduzido a partir das ações e reações dos
sujeitos, no assentamento. Entendemos que, ao compreender a gica que se
estabelece na produção e reprodução do lugar, poderemos analisar a
comercialização das posses, pois essa situação está intimamente ligada às
dificuldades de permanência das famílias, na terra.
20
O trabalho foi realizado a partir do contato com a realidade estudada, da
preparação teórica para que se fizesse leitura do conteúdo empírico, bem como
reflexões acerca das especificidades presentes no assentamento, de modo que se
pudessem alcançar os objetivos propostos sem resvalar em contradições
conceituais e considerações incoerentes.
A Dissertação de Mestrado, que se segue, está dividida em quatro capítulos,
cada um com objetivos a serem alcançados, que complementam o objetivo geral do
trabalho. Sendo assim, no primeiro capítulo, o principal objetivo é discutir a
problemática da pesquisa, bem como refletir acerca de trabalhos científicos
realizados em assentamentos de Reforma Agrária, no Brasil. A proposta é situar o
nosso trabalho dentro do contexto de eixos temáticos relacionados à Reforma
Agrária, justificando o tema e o espaço de pesquisa, para se construir a
problemática. Os trabalhos que tratam da Reforma Agrária e que foram analisados
possuem importância para situar a nossa pesquisa diante dos estudos realizados
em assentamentos, demonstrando que o estudo sobre os modos de vida e a
reprodução do lugar apresenta um caráter inovador, enquanto proposta de
abordagem da realidade dos assentamentos.
O segundo capítulo tem o objetivo de analisar os modos de vida e o cotidiano
das famílias moradoras do Projeto de Assentamento Divisa. Na primeira parte do
capítulo, é discutido o trabalho de campo, em Geografia, de modo que a análise
conceitual da etnografia e do método denominado história oral possam direcionar a
coleta de dados, durante os trabalhos de campo. Tais análises direcionam,
metodologicamente, a pesquisa científica, juntamente com as discussões realizadas
no primeiro capítulo. Na segunda parte do capítulo dois, os modos de vida o
analisados, conceitualmente, por meio de obras e Geografia e Sociologia, de modo
21
que se possa direcionar a abordagem dos modos de vida das famílias assentadas.
O termo “modos de vida” é utilizado no plural por não se tratar de famílias que
possuem uma mesma trajetória e experiência de vida, que possam ser
caracterizadas como homogêneas. Na luta pela reprodução da vida, diversas
habilidades e saberes são colocados em prática, sendo eles resultados de
experiências de outros tempos, que se manifestam no espaço do presente com toda
sua força. As práticas cotidianas demonstram como os modos de vida estão
estruturados pelo trabalho, sendo este regido por tempos lineares e cíclicos.
No terceiro capítulo, o objetivo é analisar a produção e reprodução do lugar,
enquanto espaço vivido no assentamento. As relações sociais de vizinhança são
analisadas como sendo conteúdos que possuem relevância no processo de
produção e reprodução do lugar. Elas surgem no tempo e no espaço como relações
contraditórias, que os estranhamentos e divergências entre projetos de vida são
explicitados desde a criação do assentamento. É nesse contexto que os modos de
vida demonstram ser divergentes e também convergentes, pois há encontros e
desencontros entre aqueles que possuem afinidades e se identificam na luta pela
permanência nos lotes da Reforma Agrária. Na segunda parte do capítulo, a
paisagem do assentamento é analisada como conteúdo portador de temporalidades
sociais desiguais, que se manifestam no espaço presente e se modificam de acordo
com as imposições do contexto social às famílias e com as suas reações, mediante
tais imposições.
No quarto capítulo, o objetivo é compreender as relações comunitárias,
tomando-se como referência as relações intra e extra-comunitárias, bem como a
formação de redes entre famílias e instituições com as quais elas estabelecem
contato. Nesse contexto, o analisados a lógica das relações coletivas, que
22
participam na formação de redes relacionadas à produção associativa e os demais
projetos que se formam, a partir do coletivo, e que estão em constante relação com
instituições externas ao assentamento.
23
1. A COMERCIALIZAÇÃO DE POSSES DE TERRAS EM
ASSENTAMENTOS RURAIS COMO TEMA DE PESQUISA.
Dentre diversos assuntos sobre Reforma Agrária, o que nos têm despertado
maior curiosidade é a comercialização de posses de terras em assentamentos
rurais. Por meio de algumas leituras, verificamos que essa situação não tem sido
objeto de discussão de pesquisas acadêmicas, nem tampouco revelada em
estatísticas ou documentos oficiais do Governo. Nossa preocupação, então, somada
à curiosidade sobre o assunto, é de que a venda de posses nos assentamentos
constitui uma realidade a ser investigada, pois o se configura como uma situação
corriqueira, a que pouco se deve dar importância, como se ela não fosse um
elemento contraditório dentro das políticas de distribuição de terras que o Governo
tem denominado Reforma Agrária.
As preocupações em produzir conhecimento acerca do assunto levaram-nos
ao desenvolvimento da pesquisa, que vinha sendo gestada alguns anos, que,
observando a realidade dos assentamentos rurais, desde o ano de 1998,
diagnosticamos a venda de posses de lotes. Naquele momento, quando nos
deparamos com a venda de lotes, pois, de acordo com as circunstâncias em que
vivíamos, estávamos sempre próximos a pessoas que eram beneficiárias de lotes
em assentamentos, achávamos que ocorria a venda da terra, ou seja, tínhamos o
entendimento de que as pessoas que pagavam pelos lotes compravam, também, o
título de propriedade da terra, e quem o vendia era visto, por nós, como indivíduos
24
oportunistas, que queriam obter ganhos financeiros por meio de benefícios do
Governo.
Mas o contato com a realidade de alguns assentamentos rurais da região do
Triângulo Mineiro, por meio do desenvolvimento de uma pesquisa de iniciação
científica, financiada pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o CNPq e o
INCRA, pôde ampliar nossa visão acerca das condições socioculturais das famílias
moradoras de tais assentamentos. Logo, a idéia que nhamos a respeito da venda
de lotes, no espaço da Reforma Agrária, foi sendo desconstruída e substituída por
uma rie de questionamentos. Desse modo, os questionamentos se tornaram base
para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre o assunto.
1.1. Caminhos para uma problemática geográfica
Para iniciar o primeiro capítulo, discutimos a problemática de nossa pesquisa,
apresentando os propósitos de escolha do espaço e do tema a ser estudado. Nesse
sentido, elaboramos uma reflexão sobre a postura do pesquisador frente à escolha
do objeto de análise, como direcionadora da problemática. Logo, ressaltamos que a
experiência no trabalho de campo, vivenciada no decorrer da construção deste
estudo, bem como as leituras e reflexões acerca de obras relacionadas ao assunto
pesquisado, trouxe-nos contribuições substanciais a respeito de como proceder à
escolha do tema, do espaço de pesquisa e da elaboração de uma problemática
geográfica.
Consideramos tal escolha como essencial para se iniciar um estudo científico.
No entanto, diversos caminhos podem ser seguidos antes de se proceder ao início
da pesquisa, pois não queremos justificar nosso trajeto como único a ser trilhado,
25
durante a escolha dos conteúdos de qualquer investigação. Nosso propósito é
reforçar a importância da reflexão das próprias opções, como guia introdutório à
investigação científica, pois tal reflexão foi essencial à elaboração específica desta
dissertação.
Na segunda parte do capítulo, prosseguimos o texto com análises referentes
a pesquisas científicas que tratam da Reforma Agrária. A partir da discussão em
torno de diversos enfoques sobre assentamentos rurais, delineamos pontualmente
nossa pesquisa, dentro do contexto de estudo dos sujeitos da Reforma Agrária. O
exercício teórico de entendimento dos conteúdos analisados não se constitui apenas
como justificativa da escolha de nosso tema e problemática, pois demonstra como
foi possível direcionar a pesquisa, dentro de um conjunto amplo de trabalhos
realizados sobre a Reforma Agrária e os assentamentos rurais.
Pensar uma problemática significa exercitar-se teoricamente, buscando
informações no campo empírico, que em coerência a tal problemática. Configura-
se como um desafio para qualquer pesquisador a tarefa de delinear, no tempo e no
espaço, o seu objeto de estudo. No decorrer do trabalho, percebemos que dois
caminhos poderiam ser válidos para se delimitar a área de estudo e construir uma
problemática geográfica.
O primeiro caminho tem o ponto de partida demarcado no campo empírico,
por meio da observação atenta da realidade. O geógrafo pode direcionar tal
observação para o espaço em que ele mesmo participa do processo de produção e
reprodução, bem como notar outros espaços, os quais lhe despertam curiosidade e
encantamento. Durante a delimitação do objeto de pesquisa, a afinidade do
pesquisador em relação à realidade que se pretende estudar torna-se um elemento
importante para o bom desenvolvimento da pesquisa, pois o próprio pesquisador é
26
dotado de sentimentos, desejos e ações perante a sociedade, sendo necessário,
então, estudar algo que lhe prazer e o faça sentir-se motivado. Porém, é
necessário pensar, também, nas contribuições conceituais que irão resultar de tal
pesquisa. Sendo assim, o campo teórico também se constitui como uma das bases
essenciais à delimitação do objeto de pesquisa e construção da problemática.
Um segundo caminho pode ser trilhado de maneira inversa ao anterior.
Partindo-se das divergências teóricas, o pesquisador irá caminhar em direção ao
campo empírico. Nessa jornada, ele poderá utilizar-se dos sentimentos e opções
pessoais para recortar a realidade que deseja estudar. Entendemos que, nos dois
caminhos apresentados, três elementos são os pontos de partida para o
direcionamento do tema de pesquisa, recorte do objeto de estudo e produção da
problemática. São eles os elementos: campo empírico, campo teórico e afinidade do
pesquisador. Compreendemos que é necessário não haver divergências entre os
três conteúdos ou incoerências que anulem o bom desenvolvimento da pesquisa.
Dessa maneira, há que haver pertinência entre os três elementos.
Porém, os dois caminhos apresentados não devem ser tomados como os
únicos possíveis para se delimitar um estudo científico. Temos o entendimento de
que cada pesquisa exige uma metodologia própria, que pode partir de diversas
referências iniciais de análise.
Em nossa pesquisa, trilhamos o primeiro caminho que foi apresentado.
Partimos da observação da realidade, dos conteúdos que constituem o espaço em
que vivemos e que despertam o nosso interesse em pesquisá-lo. Referimo-nos aos
Assentamentos de Reforma Agrária e, principalmente, aos sujeitos que produzem e
reproduzem esses espaços, no meio rural.
27
1.1.1. Elementos para delimitação do espaço investigado: reflexões acerca dos
aspectos motivacionais na pesquisa.
Compreendemos que, ao produzir um trabalho cientifico, o pesquisador é
motivado por diversas questões, que podem ser políticas, afetivas, morais,
ideológicas, profissionais. Entendemos que os elementos motivadores impulsionam
o investigador a conhecer o objeto, bem como a trilhar um caminho que o leve à
definição das problemáticas de estudo, procurando compreendê-las. Mas a
motivação não deve ser aqui entendida como um desejo ou ação determinante, que
direcionou todo o caminho metodológico elaborado na pesquisa. O fazer pesquisa e
sua produção teórico-metodológica constituem-se em um processo investigativo
amplo e profundo, que não se fundamenta apenas pela motivação. As reflexões que
se seguem apresentam o caminho trilhado no processo de produção da
problemática. Porém, devemos entendê-las como parte do trabalho científico,
importante para justificar o tema e a problemática, constituindo-se base necessária
para o direcionamento da pesquisa.
Entendemos que os recortes que o pesquisador faz do espaço a ser estudado
podem ser guiados por questões pessoais. Em uma investigação de cunho
geográfico, não devemos escolher, aleatoriamente, um determinado território, uma
paisagem, um lugar ou uma região para estudos, sem antes refletirmos sobre
algumas questões motivadoras. Pois entendemos que o sujeito, ao pretender
estudar algo da realidade, não está alheio às condições espaciais em que vive, visto
que ele possui uma cultura e um modo de vida.
28
Compreendemos que, em pesquisa científica, o investigador tem todo o
direito de ser conduzido por propósitos pessoais que guiem suas opções de tema e
de objeto de pesquisa. A possibilidade de escolha que o pesquisador possui é
fundamental na ciência, pois as alternativas pessoais contribuem para que a
pesquisa se torne prazerosa e o trabalho seja realizado com maior entusiasmo, em
todo seu curso. Conseqüentemente, em nossa pesquisa, o trabalho produziu
momentos inquietantes e prazerosos, que fomentaram discussões valiosas em torno
da problemática.
Consideramos que não , necessariamente, uma metodologia pronta e
acabada sobre como escolher um objeto de pesquisa na ciência geográfica. Sendo
assim, entendemos que a escolha deve ser independente de fórmulas prontas.
Entendemos que não há restrições em fazer o recorte do espaço de pesquisa
tomando-se como referência a orientação motivacional do cientista, pois esta aponta
para possibilidades de reprodução de efeitos positivos, no que diz respeito ao
interesse do pesquisador em resolver questões postas na problemática.
Exemplificando com nossa pesquisa, a construção do objeto de estudo foi
sustentada pelo aspecto motivacional e profissional, que levou em consideração
nossa história de vida, ligada ao espaço rural, bem como a experiência de se
desenvolver pesquisa em assentamentos rurais.
Inerente à questão motivacional, pode-se ter como elemento constituinte a
afetividade pelo lugar como guia de escolha - em se tratando de pesquisas
direcionadas ao estudo do lugar. No contexto das preferências pessoais,
consideramos necessário incluir o aspecto afetivo do homem em relação às pessoas
do lugar que integrarão o centro de suas pesquisas. Entendemos que o trabalho não
deve tomar um rumo no qual a afetividade pelos entrevistados oculte as
29
contradições que estão postas no espaço estudado ou promova uma defesa do
lugar. Em nosso trabalho, a proximidade relacional com os sujeitos pesquisados
favoreceu a coleta de dados e permitiu-nos conhecer elementos que, até então,
eram desconhecidos, apesar dos contatos freqüentes com a comunidade estudada,
que vinham ocorrendo desde o ano de 1998.
Percebemos, então, que o prévio contato com os sujeitos da pesquisa e o
conhecimento, a priori, de suas práticas sociais, religiosas e produtivas não nos
permitiu considerar comuns determinadas manifestações culturais, a ponto de não
relatá-las em nossos registros de campo.
Outro problema com que nos preocupamos referia-se a determinados
elementos que talvez não fossem relatados, por considerarmos comuns ou banais,
devido à costumeira observação, pela proximidade com o lugar. Nesse sentido, os
fenômenos que estávamos acostumados a presenciar, na comunidade, e que para
nós pareciam não ter importância, foram anotados em caderneta de campo e
tiveram grande valia nas análises, em gabinete e discussões, com o professor
orientador.
Analisar uma realidade social é um exercício de persistência, paciência e
sabedoria para lidar com pessoas que serão entrevistadas e observadas, durante a
realização do trabalho empírico. Desse modo, registrar histórias que são contadas,
descrever densamente situações e fatos e analisar a teoria, relacionando-a aos
dados da realidade, é uma prática árdua que leva tempo, sendo ela necessária para
qualquer pesquisador das ciências humanas. Conseqüentemente, o trabalho de
gabinete, onde se analisa a teoria em consonância com a pesquisa empírica,
contribuiu ao diálogo que realizamos em campo, bem como auxiliou na interpretação
dos dados obtidos pela observação e por entrevistas. É um processo lento, de
30
intensos diálogos com os autores escolhidos, para reflexão da problemática. Desse
modo, os aspectos motivacionais tornam-se decisivos na pesquisa, por serem um
incentivo ao trabalho, que nos desafia pelo cansaço, paciência e cautela.
Diante das reflexões em torno da motivação pela pesquisa, resolvemos os
embates quanto aos aspectos de escolha do tema geral a ser investigado. Levando
em consideração o nosso histórico de relação com a terra e, mais recentemente, a
nossa proximidade com pesquisas ligadas ao espaço rural, decidimos realizar um
estudo sobre assentamentos de Reforma Agrária. Nesse sentido, o Projeto de
Assentamento Divisa, localizado na zona rural do município de Ituiutaba-MG, no
Triângulo Mineiro, tornou-se objeto de pesquisa desta dissertação. O P. A. Divisa
encontra-se localizado no mapa 1.
31
Mapa 1: Localização do Projeto de Assentamento Divisa no Município de Ituiutaba-MG. Fonte:
32
Sendo assim, a explicação sobre a preferência por tal espaço de pesquisa
demonstra que fomos guiados por questões pessoais inerentes ao modo de vida,
pois somos sujeitos possuidores de sentimentos, identidades e pertencimentos, em
relação ao espaço rural. Desse modo, consideramos ser difícil o abandono das
experiências vividas ao longo de nossas histórias de vida. Existem lembranças mais
fortes que nos fazem rememorar as experiências mais intensas que foram vividas,
em outras épocas. Podemos enumerá-las como sendo o trabalho com a terra, a
participação em comunidades religiosas do meio rural, a construção de amizades e
relações de vizinhança, ou seja, nossa participação ativa na produção e reprodução
do lugar situado no meio rural.
É difícil dissociar um passado de intensas relações quando, ao conviver com
as pessoas nos assentamentos rurais, podemos sentir os mesmos cheiros exalados
pelas flores de plantas de um pomar, onde temos a ilusão de respirar um “ar puro”,
sem qualquer tipo de poluição, como nos tempos em que vivíamos no campo. A
sociabilidade que, aos nossos olhos, parece ser espontânea, relembra os tempos
das amizades constituídas nas comunidades que ajudamos a erguer e reproduzir.
Lembramos também dos frutos colhidos da terra, que nos garantiam o sustento e
possuíam um sabor que a nada se comparava, mesmo que fossem frutos de um
suor sem fim, exalado durante longos dias de trabalho árduo. Ali, as cenas de uma
vida no campo, para quem morou e se relacionou intensamente com a terra, vêm
à tona e produzem uma saudade de outros tempos vividos. Porém, temos clareza de
que esses elementos nem sempre devem ser os principais motivadores de uma
pesquisa científica. Numa sociedade, na qual as contradições e desigualdades
sociais são conteúdos indissociáveis da realidade, cabe a nós, na condição de
33
cidadãos e geógrafos, compreender, minimamente, a lógica que existe em tal
realidade, para que lancemos propostas de mudança efetivas na sociedade.
No caso específico da pesquisa que realizamos, o direcionamento dos
estudos é voltado para os sujeitos que residem no P. A. Divisa. Eles constituem o
conteúdo humano a ser investigado. São eles que percebem o lugar à sua maneira e
o reproduzem de acordo com suas ações. Sendo assim, a nossa proximidade e
identificação com o lugar, por meio de lembranças de tempos passados, é apenas
um dos elementos que condicionam o entusiasmo e o prazer em fazer pesquisa no
espaço escolhido. Para nós, a pesquisa também é prazerosa por ela ser um meio de
exercermos a cidadania e de retornarmos à sociedade o resultado dos investimentos
públicos, que se fizeram presentes durante a formação de geógrafo, adquirida na
academia.
1.1.2. Precedentes históricos do Projeto de Assentamento Divisa: os primeiros
contatos com os futuros sujeitos da pesquisa
A identificação com o Assentamento Divisa não se deu apenas por questões
inerentes ao nosso modo de vida. Desde a ocupação da fazenda Divisa, em agosto
de 1998, estivemos acompanhando o processo de resistência na luta pela terra, que
se materializou pela presença dos ocupantes da fazenda. Ali eles se alojaram, em
um acampamento improvisado, construído com barracas de lona.
Constantemente, tínhamos acesso a notícias sobre a rotina do acampamento
e a respeito dos trâmites de negociação entre o INCRA (Instituto de Colonização e
Reforma Agrária) e o proprietário da fazenda. Essas informações eram obtidas por
meio dos contatos que estabelecíamos com o entrevistado 01, que atualmente é
34
assentado morador no lote nº 02, conforme podemos identificar o lote, observando o
mapa 2.
35
Mapa 2 : Divisão em lotes do Projeto de Assentamento Divisa.
36
Em nossas conversas, as expectativas do entrevistado ficavam evidentes
quando ele relatava, com toda certeza, que em breve estariam recebendo o lote
para morar e produzir. Na condição de pequeno arrendatário produtor de abacaxi e
arroz, no município de Canápolis-MG, nunca tivera uma propriedade rural e
acreditava que, pela Reforma Agrária, teria a oportunidade de possuir terras próprias
para cultivar.
Durante o acampamento ele convivia com pessoas conhecidas e também
com sujeitos com os quais nunca tivera contato e que, apesar de serem
desconhecidos, tornaram-se amigos próximos, que estavam todos os dias juntos,
conversando sobre planos para o assentamento e para suas famílias.
Segundo ele, no tempo que ficavam no acampamento aguardando a emissão
de posse da fazenda e distribuição das terras, jogavam baralho, contavam piadas,
promoviam reuniões, faziam refeições juntos e, em suas narrações, percebíamos
que no acampamento não existiam desavenças ou brigas entre os acampados, nem
destes com os moradores da fazenda. Aparentemente, era um lugar muito tranqüilo,
se comparado àqueles noticiados pela mídia, naquele momento (ano de 1998),
sobre invasões e ocupações de terras.
Porém, no decorrer de nossos trabalhos, verificamos que o espaço vivido no
período de acampamento não era tão harmônico como pensávamos. Isto foi
constatado por intermédio dos relatos sobre a organização do movimento para
ocupação/invasão da Fazenda Divisa e a convivência que se estabelecia entre
acampados e vaqueiros moradores na fazenda.
O projeto de Assentamento Divisa foi criado em 11 de novembro de 1999.
Porém, quando houve a emissão de posse, em 8 de Abril de 1999, as famílias, por
iniciativa própria, dividiram a fazenda em lotes, do modo como desejavam. Quando
37
se criou o projeto de assentamento, a divisão de lotes e a sua escolha estavam
feitas e foram apenas ratificadas pelo INCRA, que realizou alguns ajustes, com
medições mais precisas dos lotes, reservas legais (RL) e áreas de preservação
permanentes (APP).
Antes de as famílias chegarem ao assentamento Divisa, houve um processo
de articulação política para organizar o movimento de ocupação da fazenda. A
iniciativa partiu dos dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canápolis-
MG, Ituiutaba-MG e Monte Alegre-MG que, conhecendo sobre a Reforma Agrária,
desejavam organizar um grupo de famílias para ocupar uma fazenda que fosse
desapropriada e estivesse localizada na região do Triângulo Mineiro.
Desse modo, o pólo regional da FETAEMG (Federação dos Trabalhadores na
Agricultura do Estado de Minas Gerais), localizado na cidade de Uberaba-MG, havia
se comprometido em informar aos sindicatos sobre os latifúndios que seriam
desapropriados na região do Triângulo Mineiro, devido ao interesse daqueles em
ocupar terras em processo de desapropriação. Em outubro de 1998, foi decretado,
no Diário Oficial de União, que a Fazenda Divisa, de propriedade da Sra. Maria
Stella César Martins Carvalho, medindo 1.161 hectares ou 240 alqueires, seria
desapropriada para fins de Reforma Agrária. Ao serem informados a respeito do
decreto de desapropriação, os dirigentes dos sindicatos se deslocaram até a
fazenda, para conhecer as terras e decidir se as ocupariam ou não.
O interesse pelas terras da fazenda foi imediato à visita e o desafio em ocupar
as terras estava apenas começando. Para fortalecer o movimento de luta pela terra,
os três sindicatos convidaram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Centralina-
MG, pois o seu dirigente tinha conhecimentos sobre a Reforma Agrária e experiência
em ocupações de terras, por ter participado de ocupações no município de Iturama-
38
MG, na década de 1980. Com essa união, os quatro sindicatos conseguiram
organizar 14 famílias, sendo esse número insuficiente para ocupar a fazenda,
segundo os dirigentes. Mesmo assim, a ocupação foi realizada no mês de outubro
de 1998 e, nesta tentativa, eles foram obrigados a se retirar do local, diante da
presença da Polícia Militar. A desocupação foi pacífica, não havendo conflito violento
entre os ocupantes e os policiais.
Esta retirada ocorreu ilegalmente, por meio de pressões das autoridades
policiais, pois, com o decreto de desapropriação publicado, a Polícia Militar não teria
autoridade para promover a desocupação. Desconhecendo esse procedimento legal
e preocupado com a violência que poderia ser travada com a polícia, o único líder do
movimento que se encontrava no acampamento decidiu que seria melhor desocupar
a fazenda.
Porém, não desistiram da luta pela terra e planejaram uma segunda
ocupação, com 16 pessoas. Eram todos homens e suas famílias não participaram
em nenhuma das duas entradas na propriedade. Havia receios quanto à violência
que poderia ser desencadeada, com possíveis jagunços contratados por fazendeiros
da região ou mesmo a presença da polícia. Desse modo, preferiram não pôr em
risco mulheres, crianças e jovens.
Prevendo que o movimento ocuparia novamente a fazenda Divisa, a Polícia
Militar montou barreiras nas duas estradas de acesso a ela. Enquanto isso, os sem-
terra ficaram alojados no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ituiutaba-MG,
aguardando o momento oportuno para seguirem de volta à fazenda.
Em uma madrugada chuvosa, colocaram suas lonas em uma caminhonete e
seguiram em direção à fazenda, pois sabiam que os policiais haviam desmontado
a barreira e certamente poderiam seguir, sem qualquer impedimento. Pela manhã, a
39
polícia já estava no local, mas não os retirou, pois os acampados tinham consciência
de que a desocupação somente poderia ser realizada mediante ordem judicial e,
então, exigiram que a polícia emitisse um boletim de ocorrência. Esta história de luta
foi acompanhada por meio do contato com os dirigentes do sindicato de Canápolis-
MG e com o entrevistado 01, que participou da segunda ocupação.
No ano de 2006, surgiu a oportunidade de construir uma proposta de
pesquisa direcionada para esse assentamento. A idéia de pesquisá-lo estava
sendo gestada no ano de 2001, no primeiro semestre do curso de graduação em
Geografia, porém não houvera oportunidades para que tal pesquisa ocorresse.
Durante o próprio curso de graduação, outros assentamentos foram
pesquisados na região do Triângulo Mineiro, o que nos permitiu adquirir um
entendimento acerca da Reforma Agrária e da situação sócio-econômico-cultural
dos grupos de assentados que pesquisamos.
1.2. A comercialização de posses de terras em assentamentos rurais
localizados na região do Triângulo Mineiro
Nossa experiência com a pesquisa em assentamentos foi construída,
sobretudo, a partir de trabalhos realizados junto ao Programa de Apoio Científico e
Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária do Triângulo Mineiro (PACTo-
TM-MG). Esse programa foi resultado da parceria entre Universidade Federal de
Uberlândia (UFU), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq).
Durante os anos de 2004, 2005 e alguns meses de 2006, o programa realizou
pesquisas em quatro assentamentos da região, sendo dois localizados no município
40
de Araguari-MG
1
e dois em Uberlândia-MG
2
. As pesquisas faziam parte de três eixos
temáticos que eram Produção, Saúde e Educação. Nossa pesquisa estava situada
no eixo da Produção, porém tínhamos relações de trabalho com pesquisas de outras
áreas, o que nos possibilitou compreender a realidade dos assentamentos em suas
outras dimensões, além dos aspectos produtivos.
Foi a partir das pesquisas de projetos relacionados à Educação, à Saúde e à
Produção que se pôde ter uma idéia geral das carências e potencialidades que os
projetos de assentamento da região possuem. Não é nossa proposta generalizar as
condições políticas, sociais e econômicas presentes em todos os assentamentos do
Triângulo Mineiro. Observamos que tais condições apresentam divergências
significativas, ao compararmos a organização interna dos quatro assentamentos.
Percebemos que as deficiências de produção e comercialização dos
alimentos, por parte dos sujeitos assentados, relacionavam-se a questões de ordem
associativa, cultural, política e econômica. Outras conseqüências de tais questões
eram o isolamento em relação à cidade, a ausência de infra-estrutura nesses
espaços rurais, como energia elétrica, água potável e encanada, bem como o
precário ou ausente apoio de órgãos públicos para produção e comercialização.
Estes são apenas alguns dos aspectos que observamos, durante nosso estudo
sobre a produção e comercialização de gêneros agrícolas nos assentamentos.
Tais aspectos não se generalizavam em todos os assentamentos. A
proximidade de órgãos públicos no apoio às organizações coletivas variava de um
1
Os assentamentos pesquisados neste município são o Projeto de Assentamento “Ezequias dos
Reis” e o Projeto de Assentamento Bom Jardim”. O primeiro possui 55 lotes e o segundo 44. O
número de famílias assentadas correspondia ao número de lotes apenas no momento de criação do
Assentamento. Na atualidade existem compradores e assentados.
2
Os assentamentos pesquisados neste município são o Projeto de Assentamento Rio das Pedras”
com 87 lotes e o Projeto de Assentamento “Zumbi dos Palmares” com 22 lotes. O número de famílias
assentadas correspondia ao número de lotes apenas no momento de criação do Assentamento. Na
atualidade, existem os compradores e os assentados.
41
assentamento a outro. Desse modo, as características de organização política,
econômica e de ordem cultural diferenciavam-se entre alguns e se assemelhavam,
entre outros.
Mas, no decorrer das pesquisas, fomos percebendo que esses
assentamentos possuem um aspecto semelhante entre si. Comparando-os, também,
ao Projeto de Assentamento Divisa, constatamos que, em todos eles, tem ocorrido a
venda de lotes, por parte dos assentados.
Logo, esta prática poderia se constituir o fio condutor de uma pesquisa
geográfica, dentro dos Assentamentos de Reforma Agrária. No contexto da criação e
gestão dos assentamentos, a compra e venda de lotes não é permitida por lei
3
. No
entanto, ela tem ocorrido nos assentamentos que pesquisamos. Sendo assim, a
prática que observamos, no espaço da Reforma Agrária, constitui-se uma
contradição quanto à aplicação da lei. Por outro lado, pode estar relacionada às
práticas culturais dos beneficiários. Não consideramos o assentado como um sujeito
passivo na prática da Reforma Agrária. Ele é possuidor de saberes e habilidades de
trabalho que podem estar ou não vinculados à terra. Desse modo, ele participa
ativamente no processo de criação e consolidação dos assentamentos, produzindo e
reproduzindo tais lugares a partir de sua lógica, que, por sua vez, pode ser
divergente das propostas governamentais para a Reforma Agrária.
Concordamos que infringir a lei pode representar um problema para a criação
e consolidação de assentamentos rurais, mas consideramos necessário pensar o
porquê de os assentados venderem seus lotes. Nesse sentido, elaboramos uma
3
De acordo com a Lei nº 8629, de 25 de Fevereiro de 1993, que regulamenta os dispositivos
constitucionais relativos à reforma agrária, em seu Artigo 18: “A distribuição de imóveis rurais pela
reforma agrária far-se-á através de títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo
prazo de 10 (dez) anos”.
42
reflexão que nos possibilitou delimitar o tema para construção da problemática: A
venda de lotes pode ser apenas uma das conseqüências da organização interna
4
do
assentamento, cuja produção se inicia a partir da composição do movimento na luta
pela terra. Sendo assim, a afinidade apresentada entre os integrantes, durante a
organização do movimento, diferencia-se enquanto prática de permanência nos lotes
da Reforma Agrária. Logo, optamos por realizar um estudo de seus modos de vida,
para analisarmos as divergências que se manifestam em suas práticas sociais e
compreender a venda de lotes.
Portanto, a idéia de realizar pesquisa no Projeto de Assentamento Divisa
estava sendo encaminhada. Se primeiro tínhamos o desejo de estudá-lo, agora
havíamos encontrado um motivo para produzir um projeto de pesquisa e
desenvolvê-lo. A partir da observação da realidade, foi possível direcionar as
reflexões teóricas, com o objetivo de se consolidar o tema e produzir a problemática.
1.3. Consolidação da problemática no contexto de análises relacionais do tema
De acordo com Raffestin (1993, p. 31), a problemática para um determinado
estudo científico deve ser relacional, pois “A existência é tecida por relações, é um
vasto complexo relacional [...]”. Segundo o autor, a problemática relacional pode ser,
também, um “Mecanismo consistente em determinar, antes de qualquer análise, o
estatuto de inteligibilidade capaz de justificar um sistema” (RAFFESTIN, 1993, p.
30). Pensemos o sistema como um conjunto de idéias que estão interligadas por
uma lógica coerente. Nesse contexto, a problemática justificaria tal lógica e os
4
Entendemos ser coerente pensar que a organização interna de um assentamento ocorre antes
mesmo de ele ser criado por lei. Primeiramente, a organização pode ser pensada e representada
pelos seus participantes, antes mesmo de se tornarem assentados, por meio de seus sonhos, planos
e expectativas.
43
propósitos do sistemas. Podemos, então, compreender o sistema como sendo o
corpo de idéias, justificadas pela problemática, constituindo-se a base para a
pesquisa científica.
A proposta empreendida de demonstrar as relações pessoais com o objeto de
pesquisa e de apresentar o entendimento a respeito da Reforma Agrária, analisando
alguns trabalhos relacionados, permitiu-nos compreender que o se pode dissociar
opções pessoais, embasamento teórico-conceitual e conhecimento prévio do campo
empírico; estes devem ser discutidos concomitantemente, pois esses três elementos
constituem o fundamento da pesquisa. Tomando-se consciência desses conteúdos
fundamentais, continuamos nossas discussões acerca da problemática. Podemos
entendê-la, também, como
[...] implica um mecanismo, um processo, portanto, o da explicação de um
corpo de conceitos tão unívocos quanto for possível sem os quais não se
pode chegar a um conhecimento livre de ambigüidades do conhecimento
imediato que se possa ter dos fatos. (Raffestin, 1993, p. 30)
Como constituição da problemática podemos incorporar o tema e os
problemas que a cercam. Ao nos interessarmos pelo tema, podemos considerar
diversas questões que podem, ou não, estar mediadas por um arcabouço teórico.
Entendemos que a escolha de temas por meio de pressupostos teóricos, como
únicos guias de decisões para pesquisa, o se conforma como instrumento
eficiente. Como discutimos anteriormente, nossa decisão pelo tema foi motivada,
sobretudo, por questões pessoais. Primeiro, no topo geral de nosso tema, encontra-
se o assunto Reforma Agrária. Em seguida, podemos eleger, como segunda parte
do tema, os assentamentos de Reforma Agrária. Em terceiro lugar está a escolha de
um assentamento específico, que é o P. A. Divisa. Por último, resumimos nosso
tema pela ênfase nos aspectos culturais, os quais serão investigados a partir da
Geografia Cultural. Sendo assim, podemos afirmar que nosso tema de pesquisa é a
44
produção e reprodução do lugar no espaço da Reforma Agrária, a cultura dos
sujeitos atuando como conteúdos mediadores no uso e apropriação do espaço local
e a venda de lotes no Projeto de Assentamento Divisa.
A partir da delimitação do tema, atentamos para os meandros e armadilhas
em que ele mesmo nos insere, por ser abrangente, apesar da pontualidade espacial
e teórica. Sendo assim, os problemas que existem em torno do eixo temático e que
mais nos interessam, na pesquisa, referem-se às seguintes questões: 1 Por que
têm ocorrido vendas de lotes nos assentamentos de Reforma Agrária? 2 O que
contribui para que as famílias beneficiárias de terras consigam se fixar no lote
adquirido, reproduzindo-o como moradia e como espaço de trabalho? 3 – Por que as
famílias não conseguem trabalhar a terra com habilidades e saberes equivalentes
entre si? 4 - São as diferenças culturais que promovem o distanciamento das
famílias quanto às organizações coletivas exigidas pelos órgãos gestores da
Reforma Agrária? 5 O lugar que é construído no assentamento, pelas famílias, é
um espaço harmônico, coeso e sem contradições? 6 Quais desafios estão postos
para a produção e reprodução do lugar? 7 – Como as relações intra e extra-
comunitárias contribuem para a produção e reprodução do lugar?
Postas essas perguntas, temos uma tarefa importante na construção do
trabalho científico. Organizar as idéias é um exercício essencial para a pesquisa.
Para Eco (1990), “Fazer uma tese significa, pois, aprender a pôr ordem nas próprias
idéias e ordenar os dados: é uma experiência de trabalho metódico [...]” (p. 5).
Compreendemos que, ao construir a problemática, estamos direcionando, por
meio da organização dos problemas pertinentes a um tema, a pesquisa, que
remeterá ao tratamento de um conjunto de dados e elementos da realidade que
possuem relevância, enquanto estudo científico.
45
A partir da delimitação temática, escolha do local de pesquisa e dos
problemas, podemos iniciar uma discussão teórica que nos forneça subsídios à
leitura que pretendemos realizar da realidade. É a partir dessa organização e análise
teórica que se movimenta a construção da problemática. Esta significa um diálogo
produzido pela análise dos aspectos motivacionais do cientista, como direcionador
do tema, discussão dos problemas que ele identifica, tomando-se a teoria como
fundamento, e delimitação do espaço de estudo. Consideramos esses três aspectos
como necessários para justificar a relevância da pesquisa e facilitar o entendimento
para produção de uma problemática relacional.
Logo, o diálogo para produção do conteúdo analisado na realidade considera
a complexidade das relações que, para Raffesttin (1993)
[...] é talvez o que torna tão difícil a abordagem relacional. Se, por razões de
comodismo, descreve-se primeiro as relações bilaterais, não se pode
esquecer que se trata de uma abstração, no sentido de que, na maior parte
do tempo, as relações são multilaterais. (p. 32)
Em nossa pesquisa, optamos por dar ênfase aos aspectos culturais das
famílias moradoras do assentamento. Também abordamos aspectos coletivos e
individuais, políticos e econômicos, que contribuem para a produção e reprodução
do lugar.
Entendemos que a compreensão da problemática que se manifesta
concretamente, no interior da organização dos assentamentos de Reforma Agrária,
exige-nos um traslado em direção ao sujeito, para analisá-lo em seu cotidiano. Não
é uma proposta fechada, dentro de uma compreensão individual do homem. Apenas
partimos da produção do espaço que se realiza ou se potencializa individualmente, a
partir dos modos de vida, para compreender, com maior amplitude, os fatos que
dizem respeito ao coletivo, às ações políticas, no contexto intra e extra comunitário.
46
Mergulhamos em uma produção do espaço que parte do individual, do
singular para o coletivo e do coletivo para o particular. O indivíduo, em sua
particularidade, é apenas a referência principal de estudo, mas não é a unidade final
de produção do espaço. Entendemos que as ações e projeções individuais se
manifestam no coletivo e o coletivo se apóia no individual, em um processo de
clivagens e determinações mútuas, aliadas aos processos políticos e econômicos
que estão subordinados e são subordinantes na prática cotidiana.
Nesse sentido, escapar do sujeito, em sua totalidade existencial, não trará
resultados que contemplem a nossa problemática, que ela está centrada nos
aspectos humanos que envolvem um ser completo e uma abrangência espacial que
não se resume aos aspectos materiais de produção, mas aos elementos abstratos e
subjetivos do homem, o que podemos chamar de espaço mental ou espaço das
representações.
Portanto, nossa problemática está centrada na prática de venda dos lotes e
pretendemos analisar a relação que se estabelece entre essa prática e a produção e
reprodução do lugar, partindo dos modos de vida dos sujeitos assentados como
caminho para investigação dos problemas propostos. Nossa preocupação é de
direcionar nossas atenções ao sujeito singular e coletivo, pois ele é capaz de nos
explicar como a Reforma Agrária, após a criação dos assentamentos, tem sido
desenvolvida. Sua participação em todo esse processo é fundamental, pois ele é
agente possuidor de um modo de vida que se traduz em ações de transformação do
lugar, podendo ou não garantir sua fixação nos lotes da Reforma Agrária. Essa
questão geral e, ao mesmo tempo, pontual, é o fio condutor de nossa pesquisa.
Sendo assim, o capítulo que se segue inicia nossa investigação partindo dos modos
de vida das famílias assentadas.
47
1.4. A Reforma Agrária em números
Analisando diversos estudos sobre a Reforma Agrária, produzidos nas últimas
décadas, tivemos a preocupação em situar o estudo na perspectiva da geografia
cultural, dentro de um contexto de produção científica a respeito da temática
“assentamentos de reforma agrária”. Para isto, tornou-se necessário pensar sobre a
importância de nosso trabalho dentro da produção teórico-conceitual existente e sua
contribuição à compreensão da realidade cultural dos grupos de assentados, dando
enfoque às suas práticas, no contexto da produção e reprodução do lugar e dos
seus modos de vida, nos espaços da Reforma Agrária.
Compreendemos que a Reforma Agrária brasileira carece de estudos amplos
sobre seus impactos regionais, no que diz respeito às condições socioculturais
presentes nos assentamentos, pois não se pode homogeneizar a realidade de tais
espaços, principalmente quando se tem um país com regiões bastante diferentes, no
que se refere aos aspectos culturais. Outra questão que justifica a importância de
estudos científicos em torno dos assentamentos é o caminhar da Reforma Agrária
brasileira. Esta é bastante jovem, se comparada às políticas realizadas pelos países
desenvolvidos. Podemos tomar como referência de análise sobre a juventude de
nossa política a obra de José Eli da Veiga, intitulada “O desenvolvimento agrícola
uma visão histórica” (1991), na qual ele apresenta as transformações ocorridas na
agricultura européia após a supressão do pousio e a implantação de reformas
agrárias em diversos países europeus. Segundo o autor, "O processo de supressão
do pousio comportou, evidentemente, grande diversidade na evolução das
estruturas produtivas." (p. 05). Isto se concretizou porque o espaço rural europeu foi
drasticamente mudado a partir da Revolução Industrial do século XVIII, pois novos
48
sujeitos passaram a produzir o que Veiga chama de “evolução das estruturas
produtivas”.
A partir de seus estudos sobre a agricultura na Europa, Veiga evidencia que o
processo de Reforma Agrária, sobretudo na Inglaterra, França e Dinamarca, ocorreu
a partir do século XVIII, com mudanças radicais na organização produtiva agrícola e
fundiária, próprias de um sistema capitalista em evolução. Vale ressaltar que os
Estados Unidos e o Japão também realizaram sua Reforma Agrária nos séculos XIX
e XX, respectivamente, (VEIGA, 1991), antes que se houvesse criado, no Brasil,
uma lei que regulamentasse o acesso à terra pela Reforma Agrária.
Compreende-se que a Reforma Agrária européia surge dentro de um contexto
de mudanças na agricultura que fazem parte da chamada revolução agrícola
moderna (MAZOYER; ROUDART, 2001), inserindo-se em um conjunto de mudanças
no seio do próprio capitalismo, que se expandiu até o espaço rural com maior
voracidade a partir da Revolução Industrial do século XVIII. Por meio da análise do
texto de Mazoyer e Roudart (2001)
5
, entendemos que o contexto no qual a Reforma
Agrária acontece está relacionado a mudanças gerais nas formas de se praticar
agricultura, no continente europeu. Segundo Mazoyer e Roudart (2001), as
transformações ocorridas na agricultura, com a revolução agrícola moderna, vão
além das mudanças técnicas, pois representaram alterações complexas em outros
setores de atividade, com conseqüências de ordem ecológica, econômica, social,
política, cultural e jurídica. No seio dessas mudanças, surge a reivindicação dos
trabalhadores rurais por melhores condições de salário e mudanças contratuais.
Porém, não se reivindicava uma Reforma Agrária que permitisse aos arrendatários e
5
O texto analisado refere-se à revolução agrícola moderna e se insere nos escritos do livro intitulado
“Histórias das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea”. É um livro clássico no que
se refere à evolução da agricultura mundial, apresentando com clareza os elementos significativos
que desencadearam as revoluções agrícolas, do neolítico ao momento contemporâneo.
49
assalariados rurais o acesso à propriedade da terra, no meio rural europeu. Sendo
assim, a Reforma Agrária, no início do século XIX, foi resultado da ão de
intelectuais urbanos engajados na política governamental. Na Inglaterra, como
demonstra Veiga (1991), “[...], o movimento inglês pró-reforma agrária resultou mais
de um projeto de um grupo de intelectuais urbanos cujo objetivo político central era
destruir o poder dos landlords.” (p. 41). No contexto geral, a Reforma Agrária,
iniciada na Inglaterra, ocorre a partir do momento em que os grandes proprietários,
denominados landlords, resolvem desfazer-se de suas terras espontaneamente,
devido à sua desvalorização no mercado de terras. Isto facilitou a execução da
Reforma Agrária por políticos intelectuais que idealizavam tal mudança, mas
esbarravam no poder político e econômico dos landlords.
Não nos propomos a analisar, proficuamente, as questões das reformas
agrárias ocorridas em outros países, em comparação com as políticas que, no Brasil,
apresentam-se como políticas para a Reforma Agrária, colocada em prática nestes
últimos cinqüenta anos. Entendemos que não é necessário realizar tal análise em
um trabalho que não tem seu foco de discussão pautado na diferenciação entre as
reformas de um e de outro país. Apenas queremos demonstrar que, nos países
“centrais” do capitalismo, a Reforma Agrária foi uma medida política e econômica
que se inscreveu em um contexto de mudanças capitalistas, no espaço rural pós-
revolução industrial do século XVIII, e que as políticas de desapropriação de terras e
criação de Projetos de Assentamentos, praticadas no Brasil, podem ser
questionadas se realmente configuram-se como uma Reforma Agrária. O marco
jurídico e temporal, que representa, teoricamente, o início da Reforma Agrária
50
brasileira, é delimitado pela criação da lei 4504, de 30 de novembro de 1964
6
. A
partir da sua criação o Estado realizou algumas ações que podem ser consideradas
tímidas, sobretudo entre os anos 1964 e 1992. Como não aprofundamos sobre a
validade de se usar o termo Reforma Agrária, para designar às políticas de criação
de Assentamentos, postas em prática a partir da elaboração do Estatuto da Terra,
continuaremos utilizando-o, na ausência de outro.
As ações do Governo, para a Reforma Agrária, tiveram início efetivo somente
a partir da década de 1970, com a criação do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA). Isto porque a Reforma o era objetivo central do Governo
militar. Um dos motivos de se ter criado tal instituto era acalmar os conflitos no campo,
desencadeados na cada de 1950
7
. Ao se refletir sobre a Reforma Agria, dentro do
contexto da modernizão agcola dos anos 1950 a 1980, Graziano da Silva (1987)
nos aponta que “[...] dentre as foas que procuravam articular o movimento camponês,
quatro grandes linhas se configuravam, o PC, as ligas, setores moderados da Igreja e
os “católicos radicais”.(p. 13). Havia preocupações, por parte do Governo, da cada
de 1960, em não realizar, de fato, a Reforma Agrária. Assim, a criação do estatuto da
terra teve impactos significativos quanto aos aspectos políticos de luta pela terra,
embalados pela atuação dos movimentos sociais citados por Graziano da Silva (1987).
De acordo com Martins (1981, p. 96)
O estatuto da terra faz, portanto, da reforma agrária brasileira uma reforma
tópica, de emergência, destinada a desmobilizar o campesinato sempre e
onde o problema da terra se tornar tenso, oferecendo riscos políticos. O
Estatuto procura impedir que a questão agrária se transforme numa questão
nacional, política e de classe.
6
Esta lei também é conhecida como Estatuto da Terra e foi sancionada no mesmo ano do golpe
militar no Brasil.
7
A partir da leitura de Martins (1981) “Os camponeses e a Política no Brasil”, Fernandes (1999)
“MST: Formação e territorialização” e Andrade (1980) “Latifúndio e Reforma Agrária no Brasil”,
compreendemos que as ligas camponesas tiveram um papel importante e ao mesmo tempo indireto
para criação de uma proposta de reforma agrária, pelo Estatuto da Terra.
51
Como é preconizado por Fernandes (1999, p. 33) “[...], o Estatuto revelou-se
um instrumento estratégico para controlar as lutas sociais, desarticulando os
conflitos por terra”. Isto ocorreu porque a proposta do Estatuto da Terra surgiu em
um momento em que o campo brasileiro se modernizava. De acordo com Graziano
da Silva (1987, p. 15), “[...] para a burguesia industrial, a Reforma Agrária era
sinônimo do que hoje chamamos de modernização do campo”. Desse modo, mesmo
regida por lei, ela não se traduziu em mudanças profundas na organização fundiária
do país, deixando claro que as opções do Governo, quanto à sua execução, ficavam
em segundo plano, pois havia intenção de modernizar, principalmente, a grande
propriedade rural, sem que se alterasse a estrutura agrária do país. Desse modo,
como nos aponta Fernandes
8
(1999, p. 38)
[...] o governo militar realizou os objetivos de sua política agrária,
promovendo a modernização técnica no campo sem mexer na estrutura
fundiária, valorizando as terras apropriadas pela burguesia agrária e criando
uma reserva de força de trabalho.
Podemos considerar que a Reforma Agrária brasileira surge, legalmente, em
um momento histórico em que as opções governamentais não eram de realmente
promover alterações substanciais no contexto agrário do país, por meio da aplicação
das leis previstas no Estatuto da Terra. A estratégia, por parte do Governo, foi
acalmar os conflitos desencadeados no campo, desmobilizando a atuação dos
movimentos sociais com a proposta de uma Reforma Agrária como solução para
melhores condições salariais e de trabalho, reivindicadas, sobretudo, pelos
sindicatos filiados à CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura), que se espalhavam e ganhavam força, rapidamente, pelo país.
8
Bernardo Mançano Fernandes publica, em 1999, o livro intitulado “MST: Formação e
territorialização”, apresentando a trajetória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra na luta
pela terra no Brasil. Nesse contexto, discute algumas questões acerca de como a Reforma Agrária
tem sido executada a partir da década de 1960, para contextualizar o surgimento e trajetória do MST.
52
Estando desarticuladas as forças sociais contrárias à modernização do
campo, a burguesia industrial, juntamente com Governo e latifundiários, poderiam
continuar executando as mudanças que, estrategicamente, introduziam na
agricultura brasileira, sem se preocupar em resolver os problemas decorrentes da
concentração fundiária do país.
Porém, nem todos os movimentos sociais foram desarticulados, pois, na
década de 1980, surgiram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), que
organizaram os espaços de discussão sobre a realidade agrária e contribuíram para
a articulação de trabalhadores rurais insatisfeitos com a política agrária. Nessa
perspectiva, “[...] as CEBs representaram, nesses anos, os espaços de confronto, de
ponto de partida para a luta organizada contra a política de desenvolvimento
agropecuário instaurado” (FERNANDES, 1999, p. 56).
Foi por meio dessa articulação da Igreja que surgiu o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST), no ano de 1984, na cidade de Cascavel-PR.
Com a decadência do Governo militar, o MST, juntamente com a CONTAG, a
Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Igreja Católica e alguns partidos políticos
organizaram-se para reivindicar do Governo um projeto para a Reforma Agrária
(FERNANDES, 1999). Desta iniciativa foi criado o Plano Nacional de Reforma
Agrária (PNRA), no ano de 1985, após a derrocada do regime militar. Porém, muito
pouco foi colocado em prática pelo Estado.
Para continuarmos nossa discussão acerca das políticas de Governo para a
Reforma Agrária, apresentamos alguns dados referentes à criação de
assentamentos no Brasil. Segundo um relatório do INCRA
9
, a execução das políticas
9
O relatório denominado “Relatório de atividades Incra 30 anos” apresenta números relativos à
criação de assentamentos pela Reforma Agrária e Colonização. Seus dados referem-se aos anos de
1970 a 1999.
53
norteadas pelo Estatuto da Terra podem ser divididas em dois momentos diferentes.
O primeiro compreende os anos 1970 a 1984, e o outro de 1985 a 1999, momento
de início de elaboração do relatório “Incra, 30 anos de Atividades”.
Apresentamos o número de famílias assentadas nesses dois períodos
diferentes, pois apresentam disparidades quanto à execução da Reforma Agrária.
Vejamos o gráfico 1.
Gráfico 1: Número de famílias assentadas no período de 1970 a 1999. Fonte: Relatório de Criação de
Projetos por fase de implementação Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Disponível em <http://www.incra.gov.br/arquivos/0277102527.pdf>. Acesso em 03 de Novembro de
2007.
Para se compreender a dimensão dos números da Reforma Agrária no Brasil
apresentamos, a seguir, uma tabela que apresenta a quantidade de assentamentos
criados e de famílias assentadas por regiões político-administrativas.
54
Tabela 01 – Número de Assentamentos e de Famílias Assentadas por
Superintendências Regionais do Incra.
Regiões Assentamentos
Famílias
Sup. da Região Norte 1703 330.649
Sup. da Região Nordeste 3557 267.673
Sup. da Região Sudeste 632 34.723
Sup. da Região Sul 757 33.123
Sup. da Região Centro-Oeste 1135 124.353
Total 7784 790.521
Tabela 1 Número de famílias assentadas e projetos criados por região
político-administrativa. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, 2007. Fonte:
Relatório de Criação de Projetos por fase de implementação – Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Disponível em
<http://www.incra.gov.br/arquivos/0277102527.pdf>. Acesso em 03 de
Novembro de 2007.
Diferente dos dados apresentados na ilustração anterior a esta, os números
da tabela 1 incluem dados de 1970 a 2007
10
.
Observando os números, percebemos que a criação de assentamentos no
Brasil se iniciou na segunda metade do século XX, em um período de
aproximadamente 37 anos. Apesar de esse tempo ser relativamente curto, os
números da Reforma Agrária parecem ser expressivos.
É preciso ressaltar que os assentamentos criados no período de 1970 a 1984
referem-se, exclusivamente, aos projetos de colonização, ou seja, são
correspondentes a áreas que eram consideradas devolutas pela União e,
posteriormente, eram arrecadadas para demarcação e criação de assentamentos.
O importante sobre os dados apresentados não é apenas pensarmos a
quantidade de assentamentos criados, pois estes podem não ser reflexos de uma
10
Os dados utilizados para o ano de 2007 estão contidos em um relatório do Incra que apresenta
números mais recentes sobre a criação de assentamentos, se comparado ao “Relatório de atividades
Incra 30 anos”. Sendo assim, utilizamos o relatório mais recente (2007), para produzir o gráfico por
regiões administrativas. O mesmo está disponível em
<http://www.incra.gov.br/arquivos/0277102527.pdf> e foi acessado em 03 de Novembro de 2007.
55
Reforma Agrária consistente e bem planejada. Dessa maneira, não se pode limitar o
sucesso da Reforma Agrária apenas pela quantidade de projetos de assentamentos
criados nos últimos quinze anos. Torna-se necessário questionar os resultados da
execução da Reforma Agrária a partir da idéia de que a distribuição de terras não é
a finalidade de todo o processo, pois o Estatuto da Terra acrescenta, à distribuição
da terra, questões relacionadas ao seu uso e produtividade
11
.
Para compreendermos a realidade distributivista da Reforma Agrária, na
região do Triângulo Mineiro, elaboramos um gráfico com número de projetos criados
e famílias assentadas, tomando-se como marco o ano de 1986, quando ocorreu a
criação do primeiro projeto de assentamento, na região.
Gráfico 2 Número de famílias assentadas e projetos criados na região do Triângulo Mineiro-MG, no
período de 1986 a 2007. Fonte: Relatório de Criação de Projetos por fase de implementação
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Disponível em
<http://www.incra.gov.br/arquivos/0277102527.pdf>. Acesso em 03 de Novembro de 2007.
11
Segundo o Estatuto, em seu parágrafo primeiro, a Reforma Agrária é definida: “1° Considera-se
Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante
modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao
aumento de produtividade.”
56
A realidade dos números pode ser questionada, pois a Reforma Agrária
certamente não se esgota com a criação de assentamentos. Desse modo, cabe a
nós pensarmos como têm sido organizados tais espaços dos assentamentos criados
pelo Governo.
Primeiro, analisemos algumas questões acerca da interpretação dos dados
sobre a Reforma Agrária, obtidos durante a realização do I Censo da Reforma
Agrária do Brasil. Este censo foi realizado entre os meses de Dezembro de 1996 e
Janeiro de 1997, sob a coordenação da UNB (Universidade de Brasília), que dirigiu
os trabalhos realizados por outras 29 universidades, espalhadas pelo país. O
recenseamento foi realizado em 1460 projetos de assentamento, indicados pelo
INCRA, e foram entrevistados 161.556 beneficiários. Os aspectos pesquisados
relacionaram-se às origens das famílias, às suas ocupações de trabalho no lote, ao
que se produz e quanto se produz, às condições de renda, ao nível educacional e de
saúde.
Alguns autores analisam o Censo da Reforma Agrária e apontam críticas
contundentes a respeito da qualidade dos dados apresentados e da sua importância
quanto a se explicar a realidade dos assentamentos. Em um trabalho produzido por
Bergamasco e Ferrante (1998), as autoras concordam que
O censo nacional dos assentamentos é, sem dúvida, uma inequívoca
expressão do reconhecimento de que a reforma agrária tem legitimidade, o
que não isenta tal processo de tensões, lutas, e disputas entre projetos
políticos diferentes. Contrapontos e ambigüidades que parecem não se
adequar à metodologia exigida por uma coleta de dados censitários de
caráter nacional. (p. 172)
A abrangência dos dados pode dificultar a compreensão de realidades mais
pontuais de assentamentos, principalmente no que se refere aos sujeitos que
constroem as relações sociais nos assentamentos, a partir de sua cultura. Desse
modo, o Censo não contempla os aspectos particulares do sujeito em si, suas
experiências e vivências construídas na trajetória de conquista da terra. A esse
57
respeito, Bergamasco e Ferrante, ao se referirem aos aspectos particulares não
abordados pelo Censo, entendem que
Sob a (i)lógica do Censo, assentamentos e assentados aparecem como
categorias datadas, esvaziadas de um processo de lutas, de violência, de
experiências vivenciadas. Trajetórias, nas quais entram a relação mediata
ou imediata com a terra, as conseqüências e processos de despejos e/ou
expropriações não são apreendidas no levantamento censitário. (p. 178-
179)
Nesta abordagem, o sujeito permanece oculto em suas contradições, postas
em prática no assentamento e nas relações que se estabelecem dentro e fora de
sua comunidade, que é construída por um processo que poderíamos denominar
(re)socialização. O caminhar da Reforma Agrária se faz em um espaço de lutas que
não se resume, apenas, ao processo anterior à criação do assentamento. A luta pela
sobrevivência é uma constante, após a conquista do lote, e se faz por caminhos os
mais diversos, que não podem ser homogeneizados, no contexto dos estudos sobre
a Reforma Agrária. A partir das análises de Bergamasco e Ferrante, entendemos
que o censo o apresenta a realidade particular dos assentamentos, no que se
refere às atitudes dos sujeitos moradores de tais espaços e, mais especificamente,
suas participações no processo de execução da Reforma Agrária e consolidação
dos projetos de assentamento. As autoras consideram que
[...] temos um cadastro genérico dos assentados, com poucos elementos
para a compreensão da constituição desse espaço produzido, e para a
discussão das possibilidades dos assentados terem atendidas suas
necessidades de reprodução das condições de vida. (p. 202)
Porém, o recenseamento atende a outras questões mais gerais, como as de
responder aos anseios dos gestores da Reforma Agrária em conhecer a realidade
dos assentamentos (DAVI et. al. 1997, p. 54). Mesmo em se tratando de dados
gerais, nos quais o Governo confia para interpretar a realidade, os autores alertam
para a incompatibilidade do Censo em retratar condições regionais, de modo que
[...]
as estatísticas elaboradas em nível nacional, ou mesmo em nível
estadual, são demasiadamente agregadas para se avaliar adequadamente
os impactos da reforma em termos de ocupação do território. Em um país
tão vasto e heterogêneo como o Brasil, considerar o processo de
58
diferenciação espacial torna-se um elemento crucial na compreensão da
reforma agrária. (DAVI et. al. 1997, p. 54)
Logo, tornam-se necessários outros estudos sobre a Reforma Agrária que
complementem os dados apresentados pelo Censo e melhor especifiquem as
condições de seus beneficiários, tomando-se como escala de estudo espaços mais
restritos, como, por exemplo, a abrangência local dos projetos de assentamento.
Graziano Neto (1997), aponta que “[...] a avaliação sobre a importância econômica
da Reforma Agrária dentro do processo do desenvolvimento brasileiro continua
carecendo de análise mais consistente.” (p. 166). Isto reforça a idéia de que os
dados apresentados pelo censo, analisados por Graziano Neto (1997), não são
suficientes para explicar a realidade da Reforma Agrária, que, desde o início de
sua execução, na década de 1970, nunca houve uma pesquisa abrangente para
diagnosticar as condições dos assentamentos que foram sendo implantados.
Desse modo, as reflexões acerca da Reforma Agrária brasileira nos levam a
compreender que o trajeto escolhido pelo Governo, ao executá-la, culminou em um
distributivismo, sem preocupações em conhecer de fato a realidade dos
assentamentos. Sendo assim, diversas questões sobre a Reforma Agrária podem
ser abordadas em pesquisas científicas, pois ainda muito que se compreender
dos assentamentos, sua dinâmica e desenvolvimento. Como questionamos
anteriormente, por meio de alguns autores, os dados do Censo não revelam o
conteúdo particular das relações sociais e das ações e expectativas dos sujeitos que
delas participam. Nesse sentido, enfatizamos a importância de estudos mais
pontuais, que estejam dentro de um espaço local do assentamento, como meio de
nos fornecer subsídios para o aprofundamento teórico-empírico, ao conhecer
determinada realidade. Logo, como já explicitamos anteriormente, optamos pelo
59
espaço do Projeto de Assentamento Divisa, onde estudamos os sujeitos que
produzem e reproduzem o lugar, a partir de seus modos de vida.
Nosso estudo, enquanto abordagem local, não é inédito, pois diversos
trabalhos cienficos têm sido produzidos sobre assentamentos rurais com enfoques
os mais variados. Sendo assim, analisamos algumas pesquisas, produzidas regional
e localmente, sobre assentamentos de Reforma Agrária, para situar-nos dentro de
um contexto de estudo da realidade que nos subsídios para justificar a
importância do nosso trabalho no meio acadêmico e sua contribuição ao
entendimento da Reforma Agrária.
1.5. Os assentamentos rurais como espaço de pesquisas
Ao realizarmos leituras diversas sobre livros, artigos de revistas e publicações
eletrônicas que tratam da Reforma Agrária, percebemos haver três temáticas
principais nos estudos desse assunto. A primeira se relaciona à questão agrária do
país, estabelecendo relações com a Reforma Agrária. Como exemplo de trabalhos
sobre o assunto, podemos citar alguns autores como Andrade (1980), Prado Júnior
(1981), Martins (1986), Graziano da Silva (1987), Fernandes (2000) e Oliveira
(2006a). A segunda linha de pesquisas tem-se preocupado com as lutas e conflitos
por terra, envolvendo movimentos sociais de reivindicação pela Reforma Agrária.
Dentre os autores que pesquisam essa temática, podemos citar Oliveira (1993),
Fernandes (1999), Comerford (1999), Brenneisen (2002) e Gomes e Cleps Jr (2006).
Por último, podemos apontar as pesquisas que direcionam o olhar para os
assentamentos de Reforma Agrária. Dentre os pesquisadores desta temática
podemos mencionar Zimmermman (1994), Bergamasco (1994), Ferreira Neto
60
(2000), Fabrini (2003), Neves (1997), Cruz (2006), Guimarães (2002), Romano
(1994), Oliveira (2006b) e Martins (2003). Como nossa pesquisa, no Assentamento
Divisa, encontra-se dentro dessa última temática, faremos uma breve análise teórica
dos conteúdos das obras dos respectivos autores mencionados.
Os autores que analisaremos apresentam, em seus textos, pesquisas
relacionadas à organização interna dos assentamentos. Diversos enfoques o
dados em seus trabalhos, de modo a nos permitir compreender como se organizam
os assentados em torno de seus projetos particulares e coletivos. As abordagens
servem para ilustrar os diversos aspectos pelos quais os estudos sobre
assentamentos têm sido direcionados. Essa bibliografia para reflexão foi escolhida,
dentre outras, que também trazem contribuições à compreensão da organização dos
sujeitos assentados. Porém, ao optarmos por tais autores e textos, temos o objetivo
de demonstrar como os assentamentos são estudados, na atualidade, como forma
de situar nossa pesquisa em meio aos diversos caminhos traçados nos estudos
sobre Reforma Agrária.
Em pesquisa desenvolvida num assentamento rural no Rio Grande do Sul,
Zimmermann (1994) estuda os elementos associativos e dissociativos que se
processam a partir dos planos dos assentados em se tornarem colonos. Estão em
jogo as divergências entre perspectivas dos beneficiários de terra e órgãos
mediadores da Reforma Agrária. Em seu trabalho ela constata que
Os depoimentos das famílias entrevistadas levam à compreensão de que o
móvel principal da luta pela terra que empreenderam foi a busca da
efetivação do projeto de “ser colono”, ou seja, ver viabilizada uma forma de
apropriação da terra e ter sob seu controle a organização e os resultados da
produção. E, nessa remontagem de um novo modo de vida, padrões
fundamentais do processo produtivo e da vida social da família camponesa
se explicitam. (p. 208)
Porém, a busca por “ser colono” não é uma trajetória harmônica, pois os
assentados estão submetidos a condições espaciais que representam uma barreira
61
à concretização de seus sonhos. A reprodução de um modo de vida ligado à terra
encontra entraves no projeto coletivo proposto, institucionalmente, pelo MST
(Movimento dos Trabalhadores rurais Sem Terra), que dirigiu o grupo assentado
para a conquista da terra. No contexto da criação do assentamento, o grupo de
beneficiários o demonstra concordância total aos projetos, pois os vêem como
empecilho à concretização de suas expectativas em se tornarem “colonos”.
As divergências entre os assentados destituíram os projetos coletivos
“modelares”, criados pelo movimento e ratificados pelo Mirad (Ministério da Reforma
e do Desenvolvimento Agrário e de Desapropriação de Terras)
12
e pela EMATER/RS
(Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul), que
prestava assistência técnica aos assentados da Fazenda Etel (Localizada no
município de Porto Alegre-RS), pois assentados que se integraram aos grupos
formados por tais órgãos não concordavam com a organização e a lógica dos
trabalhos coletivos.
De um modo geral, Zimmermann demonstra como ocorrem as divergências
entre os órgãos gestores, os movimentos sociais de luta pela terra e os assentados,
apresentando como surgem desentendimentos por parte das próprias famílias
assentadas. Diante das discordâncias internas entre os próprios grupos de
assentados, que divergem por questões de origem étnica e de formas diferentes de
trabalhar a terra, bem como a oposição desses grupos perante as propostas dos
gestores e mediadores, a autora compreende que
O primado do “coletivo” e de outras formas modelares acaba por
desrespeitar o ritmo de aprendizagem e a conduta democrática de
convivência que, juntamente com o trabalho de formação teórica, atuam
como sustentáculos do crescimento conjunto da consciência política. (p.
223)
12
No momento da pesquisa realizada por Zimmermann, o MIRAD exercia as funções do Incra
(Instituto Nacional de Colonicação e Reforma Agrária) como órgão executor e fiscalizador da Reforma
Agrária no Brasil.
62
Sendo assim, pensar o assentamento como uma produção harmônica e
coesa pode não ser uma alternativa segura, pois em sua organização interna, como
nos mostrou Zimmermann, existem divergências significativas entre projetos
individuais e coletivos, que potencializam novas formas de associações pela
dissociação de modelos prontos e determinados por instituições internas e externas
ao grupo de assentados.
Em estudos realizados por Bergamasco (1994) nos assentamentos Sumaré I
e Sumaré II, ambos localizados no município de Sumaré-SP, a autora constata que
as trajetórias dos dois núcleos são diferentes, porém nos dois existiram processos
de reorganização, no que diz respeito ao espaço produtivo.
Seu estudo sobre tais assentamentos está vinculado à questão associativa,
em sua organização interna, em que ela apresenta o caminho traçado pelos
assentados nos rearranjos para construção do projeto associativo. Tais projetos
associativos envolvem a participação coletiva dos assentados em torno de propostas
de produção e comercialização, que o desenvolvidas a partir do trabalho coletivo,
organizado por diretrizes que sejam comuns a todos os participantes. Sobre a
organização coletiva, a autora destaca que
[...] a necessidade de se unir em alguns momentos do processo de
produção e comercialização é algo internalizado pela maioria dos
assentados dos núcleos estudados, no sentido de se estabelecerem
elementos de intermediação entre o modo de vida dos trabalhadores e os
mecanismos de inserção no mundo das mercadorias. (BERGAMASCO,
1994, p. 229)
Desse modo, sua investigação traz o enfoque associativo, construído,
aparentemente, de forma harmônica, pelos sujeitos assentados que se adequam às
propostas associativistas, para potencializarem a produtividade agrícola. Dessa
maneira, conclui o estudo afirmando
[...] a análise das experiências concretas vivenciadas nos assentamentos de
Sumaré sinalizavam positivamente no sentido de se buscarem e de se
consolidarem novas estratégias de produção e reprodução dos assentados
63
na terra. Registra-se, é verdade, um processo de “reacomodação” que vem
possibilitando mudanças importantes nas relações de produção dos
assentados e na reorganização do espaço produtivo. É bem verdade que
em determinados aspectos essas transformações podem ser encaradas
como um certo recrudescimento do movimento de pressão e de
reivindicação, mas, posteriormente, registra-se uma readequação ou
mesmo uma redefinição da vontade desses produtores [...]
(BERGAMASCO, 1994, p. 234)
Tanto Bergamasco (1994) como Zimmermann (1994) trazem um enfoque
direcionado ao processo associativista voltado, principalmente, para a produção.
Nesse contexto, não são enfatizados os caminhos pelos quais se desenvolvem os
conflitos internos entre os sujeitos e seus modos de vida. Reportam-se aos aspectos
do coletivo como construtores de uma organicidade que não é explicada a partir de
um conteúdo cultural de formação dos indivíduos, em particular. As mediações e
negociações para a organização interna do assentamento são explicadas pelas
aglomerações de grupos por interesse e afinidade, que se confrontam com idéias de
outros grupos do próprio assentamento ou com as propostas elaboradas pelos
gestores e mediadores do processo de Reforma Agrária. Pensando dessa maneira,
poderíamos compreender que, no interior dos grupos afins, não contradições.
Nos trabalhos mencionados, não são apresentadas as discordâncias e divergências
que emergem durante os rearranjos para a construção do coletivo de sujeitos afins,
que se identificam com o processo de organização coletiva, por afinidades.
No P. A. Divisa existem grupos que se reúnem por afinidades, porém foram
construídos e organizados por processos contraditórios nas formas de pensar e agir,
que não demonstram harmonias em seu caminhar. Sendo assim, dentro da
cooperação por afinidades, podem existir embates que resultam da divergência de
formas de agir e pensar inerentes à cultura e aos processos de produção e
reprodução do lugar, pois é nesse espaço do vivido que o conflito entre modos de
vida divergentes se materializa.
64
Em um trabalho realizado por Ferreira Neto (2000)
13
sobre as questões
relacionadas ao aspecto coletivo da produção e organização dos assentamentos,
são apresentados argumentos a respeito dos pressupostos que conduzem o
beneficiário de terras a se organizar coletivamente e que podem justificar o
contraditório presente no coletivo, por meio de características individuais. Seu
estudo, dentro de um contexto da Reforma Agrária, é direcionado a questionar as
pesquisas que elegem o coletivo nos assentamentos como conteúdo coeso e
harmônico. Segundo Ferreira Neto (2000),
[...] a reforma agrária e os assentamentos rurais são, de modo geral,
analisados sob uma perspectiva estritamente coletivista, mesmo quando
essa análise se refere, por exemplo, ao estudo de um certo individualismo
que orientaria o processo de organização da produção nos assentamentos
rurais mediados pelo Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais. O
conteúdo coletivo da luta pela terra é o foco central de análises como as de
Bergamasco (1994), Ferrante e Bergamasco (1992), Gaiger (1994), Kleba
(1994), D’Incao e Roy (1995) e vários outros autores, que vêem os
assentamentos rurais, com diferentes níveis de organização em razão do
mediador envolvido, como a expressão de um processo que articula e
mobiliza determinado conjunto de trabalhadores submetidos às mesmas
condições conjunturais e estruturais, para reivindicar seus direitos de
trabalhar e produzir. (p. 17)
Desse modo, a explicação para se justificar a participação dos indivíduos em
trabalhos coletivos advém de uma unidade presente no jogo de interesses
individuais identificados pelo viés econômico. Segundo ele, os sem-terra não podem
fugir ao engajamento no coletivo, já que existem determinações impostas pelos
gestores e mediadores da Reforma Agrária que os conduzem a tal condição. Sendo
assim, o indivíduo, antes de ingressar no movimento de luta, avalia custos e
benefícios de participar de um grupo de reivindicação da Reforma Agrária. Segundo
o autor
13
Em seu ensaio intitulado “Racionalidade individual, ação coletiva e a luta pela reforma agrária” a
racionalidade individual é o motor para direcionar a participação do sujeito sem-terra ou o assentado
nas ações coletivas. O autor elabora fórmulas matemáticas que podem explicar o ingresso do
individual no coletivo, o qual se utiliza de dados financeiros para realizar seus cálculos, que podem
resultar em vantagens econômicas significativas pela participação no grupo de cooperação.
65
Num possível jogo explicativo para a luta pela terra, a não-cooperação não
pode ser utilizada como estratégia. A questão principal a ser investigada,
então, refere-se à definição de quais elementos o interferir na opção pela
cooperação e em que nível ela se dará, ou seja, como se a
contraposição entre incentivos positivos que estimulam a participação e
incentivos negativos, que agem no sentido contrário. (FERREIRA NETO,
2000, p. 20)
Nessa perspectiva, os aspectos econômicos seriam determinantes, que os
custos serão sempre menores que os benefícios. Por esse viés, o autor elabora
fórmulas matemáticas para explicar a relação custo-benefício para participação dos
sem-terra na reivindicação pelo lote. O que nos chama atenção, em seu trabalho, é
que são apresentados alguns depoimentos de sem-terra que reforçam os
argumentos do poder econômico como determinador das ações coletivas.
Diante de tal argumentação, percebemos que, em seu trabalho, a ação do
homem, nos projetos coletivos, é guiada simplesmente por questões econômicas,
dando-nos a idéia de que, para explicar as associações de assentamento estudadas
pelos autores por ele citados, a alternativa é recorrer às motivações de cunho
financeiro, que determinam o interesse em participar de projetos coletivos.
Dessa maneira, nossos questionamentos direcionam-se à validade de seus
estudos para explicar a venda de lotes nos assentamentos de Reforma Agrária. Será
que a venda também é movimentada apenas pelo cálculo custo\benefício de se
morar no lote e nele trabalhar? Não queremos nos agarrar à tese do cálculo
financeiro como meio para justificar a venda de lotes no P. A. Divisa. Tomando-se o
contexto de reprodução da vida a partir dos lotes, nos assentamentos, colocamos
em questionamento as diversas variantes que conduzem à ação do homem no
espaço. Pensá-lo como sujeito econômico anula outras possibilidades de analisar
formas de relações solidárias que se estabelecem na vivência do lugar, como foi
verificado no P. A. Divisa. Podemos citar as trocas de trabalho que não são
remuneradas em dinheiro, envolvendo grupos de assentados que não contabilizam o
66
tempo de trabalho para incorporá-lo, exatamente, em outras trocas de serviço. Logo,
estamos lidando com sujeitos complexos que o são apenas coletivos ou
estritamente individuais, mas que se subordinam e, ao mesmo tempo, determinam
os projetos coletivos pelas características de seus modos de vida.
Outros trabalhos, como o de Fabrini (2003), retratam o assentamento como
um espaço do debate político, da continuidade das lutas dos camponeses
articulados nos movimentos sociais de luta pela terra. Demonstra que é possível a
coletividade e a organização associativa dentro da lógica de reprodução camponesa.
Sendo assim, o assentamento é entendido como
Os assentamentos são um espaço de ações coletivas. As ações coletivas
são atividades desenvolvidas pelos camponeses assentados em que se
expressam politicamente passando pela representação do interesse de
classe. São ações motivadas, sobretudo, por uma identidade construída no
processo de luta pela terra e apresentam conteúdo político\ideológico que
passa pelas relações de poder da estrutura da sociedade. (FABRINI, 2003,
p. 9)
No entendimento de Fabrini (2003), o contexto da reprodução da vida, nos
assentamentos, é organizado sob a lógica camponesa, como guia das ações
políticas no processo de construção e consolidação de projetos associativistas.
Logo, temos um sujeito que se identifica com um modo de vida ligado à terra, mas
que não se reproduz socialmente apenas pelo conteúdo individualista. “Ao contrário
do individualismo ao qual se refere muitas vezes o MST, existe entre os
camponeses assentados uma capacidade de coesão e construção de ações
coletivas [...]” (FABRINI, 2003, p. 13).
Logo, Fabrini (2003) opta por outro viés de estudo que tangencia o “ser
econômico” tratado por Ferreira Neto (2000). Ele entende a categoria camponesa
como uma forma política altamente coesa, cuja finalidade de ação política é manter
sua reprodução mediante o espólio do capital que, em sua organização contraditória,
fornece brechas para a resistência camponesa nos assentamentos de reforma
67
agrária. Portanto, ao se tratar de campesinato, Fabrini (2003) apresenta uma análise
que se reporta ao conteúdo político do sujeito assentado, sendo ele caracterizado
como camponês. Ele afirma que
A existência dos grupos de assentados e núcleos de produção indicou, no
decorrer da pesquisa, a sua importância enquanto uma forma de
organização nos assentamentos que permite a compreensão do
desenvolvimento das ações coletivas. Eles são uma organização de base e
permitem oxigenar as lutas dos assentados, constituindo-se numa
estratégia de reprodução dos camponeses. (FABRINI, 2003, p. 18)
Fica evidenciada, no trabalho de Fabrini (2003), a importância que a categoria
camponesa possui nos assentamentos de Reforma Agrária, principalmente no que
diz respeito à organização política coesa que o campesinato apresenta, como
estratégia de sobrevivência dessa categoria. Ao considerarmos os assentados como
camponeses, corremos o risco de desprezar as diversidades presentes nos próprios
assentamentos. Da forma como nos é mostrado por Fabrini (2003), entende-se que
uma uniformidade nas maneiras de pensar e agir dentro dos assentamentos,
entre os próprios assentados, com diferenças de ações e pensamentos em relação
às instituições que os organizam e aquelas com as quais se estabelecem relações
sociais.
Dentro de outra perspectiva de estudos, Neves (1997) também se preocupa
com as organizações sociais coletivas existentes no processo de construção dos
assentamentos e construção do próprio sujeito assentado. O estudo de Neves
(1997) aborda a transformação dos assalariados rurais de uma usina de cana-de-
açúcar em assentados nessa própria usina, observando que existe um processo
longo, que contempla modificações profundas em suas maneiras de agir e reagir às
novas condições de trabalho em que eles são introduzidos. Nesse contexto, os
mediadores são fundamentais para a construção do sujeito, pois este está
dependente daqueles para organizar-se na coletividade do assentamento. Segundo
Neves (1997)
68
A construção social do assentado o deriva tão-somente das definições
formais dos programas de assentamento rural. Depende também de
reordenações imprevistas diante de constrangimentos preexistentes e
impostos externamente. E da capacidade de mobilização política dos que
pretendem fazer cumprir as regras formais mínimas que asseguram a
legalidade da posição alcançada. (p. 280)
Os dois trabalhos nos apontam um caminho para a compreensão dos
embates políticos estabelecidos no contexto do assentamento. Existe uma diferença
entre Fabrini (2003) e Neves (1997), no que concerne à construção do sujeito
assentado. No primeiro autor, o assentado parece ser uma figura que não está em
processo de construção, pois antes mesmo de se tornar beneficiário da Reforma
Agrária ele era um camponês que ingressou na luta pela terra e resistiu ao processo
de acampamento por estratégias políticas até chegar à condição de assentado.
Tornando-se beneficiário da Reforma Agrária, a luta continua sendo travada com os
mediadores e gestores do assentamento, para resistir na terra. A seu favor existe a
condição de ser camponês, o que lhe confere um alto poder de barganha política, ao
se associar com os demais integrantes do assentamento que também são
camponeses. Nesse caminho, sua história de resistência às imposições
contraditórias do capitalismo vai sendo reafirmada.
Em Neves (1997), o sujeito assentado vivencia um processo de construção
que não é determinado somente pelo modelo de assentado que os gestores da
Reforma Agrária querem que ele seja. Nessa construção, o mediador é uma figura
altamente importante, pois participa ativamente na organização da luta pela terra e
na construção associativista pós-conquista do lote. Sendo assim, Neves (1997)
enfatiza a importância dos mediadores na construção dos sujeitos da Reforma
Agrária.
Desse modo, no entendimento de ambos os autores, o assentado é visto
como um resultado da ação política, seja do seu ser enquanto condição camponesa
ou de sua sujeição às imposições e/ou reações aos mediadores que tentam
69
organizá-los. Entendemos que a categoria camponesa é importante para os estudos
que os autores realizaram e válida para o grupo por eles pesquisado. Em se
tratando do assentado como camponês, entendemos que não se pode generalizar
esta condição e/ou característica de modo a atribuí-la a todos os assentados. Na
região do Triângulo Mineiro, nem todas as famílias moradoras de assentamentos
possuíam experiências com o rural e modos de vida ligados à produção agrícola.
Constatamos, anteriormente, em estudo que realizado em 2006, que nem sempre
podemos afirmar que assentado é sinônimo de camponês ou mesmo enquadrado
nesta categoria simplesmente por se tornar posseiro de um lote de terras, dentro do
assentamento. O trabalho de pesquisa realizado no Assentamento Bom Jardim
14
demonstrou-nos que ser camponês exige um modo de vida próprio e que nem todos
os assentados são camponeses. De acordo com nossas observações,
A massa de trabalhadores beneficiada pela redistribuição de terras é
composta por uma camada de ex-assalariados urbanos com poucas
habilidades para cultivar a terra. Outra parte dos assentados é constituída
por ex-trabalhadores rurais, que viveram a experiência da divisão do
trabalho no campo, fruto de políticas agrárias excludentes. Nesse sentido, o
quadro da Reforma Agrária nos revela a construção de um novo sujeito,
cuja categoria ainda não foi definida. (CRUZ, 2006, p. 55)
A partir desta constatação afirmamos não ser possível transportar e/ou atribuir
aos assentados do P. A. Divisa uma condição na qual não se podem enquadrar seus
modos de vida, o que reforça a nossa posição em direcionar a pesquisa para o
sujeito particular que produz e reproduz sua sobrevivência no assentamento com ou
sem experiência política ou de trabalho na terra.
Pensar o homem como sendo apenas um ser político, no contexto das
relações com os mediadores, que simultaneamente determinam e se subordinam às
14
O assentamento Bom Jardim está localizado no Triângulo Mineiro, no município de Araguari-MG.
As pesquisas que realizamos neste assentamento estavam integradas ao PACTo/TM/MG (Programa
de Apoio Científico aos Assentamentos de Reforma Agrária do Triângulo Mineiro) e ocorreram no
período de 2004 a 2006. Nesse mesmo período desenvolvemos a monografia intitulada “Os espaços
dos sujeitos da reforma agrária: práticas produtivas e comerciais do assentamento Bom Jardim
Araguari-MG”.
70
circunstâncias presentes na Reforma Agrária, significa percorrer um caminho que
não considerará os aspectos abrangentes que se materializam no cotidiano.
Entendemos que as pessoas que vivem no assentamento não agem ou pensam
estritamente de acordo com os ditames políticos de seus mediadores. Entendemos
que se optarmos por tomá-los como camponeses corremos o risco de eleger como
grupo para estudo apenas aqueles sujeitos que se enquadram no contexto político
de negociações, possuidores de um modo de vida camponês ou que contribuem
para a organização política do assentamento com maior expressividade.
Nossas pesquisas apontam para um sujeito que produz e reproduz a vida no
lugar. Nesse processo, estão presentes as contradições que se manifestam a partir
de sua cultura e se materializam no lugar.
Outro trabalho que ressalta a organização dos assentamentos, referindo-se à
coesão na luta pela terra e construção do território pela identidade coletiva, é a
pesquisa de Guimarães (2002). Esta foi realizada na Fazenda Nova Santo Inácio
Ranchinho, no município de Campo Florido-MG. Criado em 1994, o assentamento é
um dos projetos mais antigos da região do Triângulo Mineiro.
Resgatando a trajetória de luta pela terra e a conquista da cidadania
vivenciada pelos assentados, Guimarães (2002) afirma que
[...] na constituição de novas territorialidades, baseadas em laços de
parentesco, amizade, vizinhança e, sobretudo, em formas de organização
que lhes são próprias, os trabalhadores constituíram uma nova identidade
no interior do assentamento, ancorada no pertencimento à localidade. As
reflexões a respeito da consolidação das identidades territoriais,
contradizem as tendências que preconizam a globalização como um
processo inexorável à homogeneização, que dilui as singularidades das
culturas locais. No que se refere às relações societárias, podemos afirmar
que houve um processo de aprendizagem de formas organizativas pelos
sujeitos sociais envolvidos neste estudo. As práticas de luta pela terra e de
constituição do novo território proporcionaram experiências de novas formas
de participação e de sociabilidade entre os assentados da Nova Santo
Inácio Ranchinho, possibilitando a abertura para concepções mais amplas
de sociabilidade. (p. 148-149)
71
A organização coletiva que se verifica na luta pela terra, principalmente
durante o momento em que o sem-terra é um acampado, é uma tentativa de
conquistar o direito à sobrevivência, principalmente o direito de trabalhar, de gerar
renda e se inserir dignamente na sociedade, por meio do trabalho. Durante esse
processo, novos conhecimentos são adquiridos e são postos em prática, em
conjunto com práticas antigas de sociabilidade.
O esforço coletivo pela territorialização é o conteúdo de maior evidência na
pesquisa de Guimarães (2002) e nos fornece o entendimento dos embates surgidos
durante a luta pela criação do projeto de assentamento. Essa pesquisa constitui um
trabalho importante para a compreensão da Reforma Agrária que se concretiza na
região do Triângulo Mineiro. Ao tratar dos modos de vida das famílias assentadas,
Guimarães (2002) analisa a construção das sociabilidades no contexto coletivo,
como tentativa de reconstrução de uma nova vida e da conquista pela cidadania.
Os usos e apropriações da terra conquistada não podem ser vistos como um
processo igual para todos, como se o privilégio político de uns, em detrimento de
outros, no contexto das organizações coletivas, fosse homogêneo. As contradições
presentes nas relações sociais, no assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, são
analisadas por Guimarães a partir do contexto da construção da cidadania, que se
traduziu pela união coletiva dos assentados em relação às imposições externas de
mediadores, gestores da Reforma Agrária e sociedade à qual estavam inseridos, no
contexto histórico do acampamento e criação do projeto de assentamento. Porém, a
autora não aborda, como eixo principal de análise, a venda de lotes no
assentamento. Suas análises sobre modos de vida trazem outros enfoques
relacionados à construção e organização sociais locais, que contribuíram ao estudo
72
que realizamos no Projeto de Assentamento Divisa. Nesse contexto, discutimos o
assentamento como produção de contradições e de lutas.
Para demonstrar as contradições que se explicitam nos assentamentos,
Romano (1994) entende tais espaços como sendo um campo de lutas, onde se
materializam os conflitos. Para esse autor, a ausência de conflito é apenas um
estado almejado que se concretizaria em situações particulares. Segundo Romano
(1994),
Enfocar o assentamento enquanto campo permite positivamente visualizar o
“conflito” – e o o “equilíbrio” – como o estado “natural” das relações
sociais nos assentamentos. O “equilíbrio”, a ausência de conflitos pode vir a
ser uma característica de um estado almejado, mais na concretude da
trajetória dos assentamentos, seria um resultado particular, restrito e
conjuntural. Por sua vez, considerar o conflito como o estado natural dos
assentamentos implica uma reviravolta de fundamental importância no
planejamento dos assentamentos. Pelo geral, quando existe, o
planejamento dos assentamentos de reforma agrária ainda se conforma
com base no princípio ordinário do “equilíbrio” ou, na sua versão
progressista, da idealização da “harmonia” da comunidade dos excluídos -,
assumindo os conflitos um caráter conjuntural, ocasional, extraordinário. (p.
252)
No seu ponto de vista está em jogo a distância estabelecida entre situação
almejada e situação vivenciada. Os conflitos, no ponto de vista do planejamento dos
assentamentos, não são comuns, são pouco presentes. Segundo o autor, isto
dificulta o próprio planejamento do Estado. Mas o desentendimento advindo dos
embates no assentamento não é apenas produto das relações entre camponeses
organizados e mediadores e gestores da Reforma Agrária. Os conflitos de que
Romano (1994) nos fala são os que permanecem no interior dos grupos, entre
indivíduos. Desse modo, torna-se importante, segundo Romano (1994), “[...] criticar
e enriquecer questões que articulam, por exemplo, poder, valores e conflito num
patamar analítico, por intermédio do qual possamos refletir melhor uma nova, e
esperada, fase do processo de reforma agrária.” (p. 258).
Reformulando, então, essas questões apontadas pelo autor, afirmamos ser
importante considerar a cultura dos assentados, direcionando o estudo para os seus
73
modos de vida no assentamento. Nossa preocupação com a cultura desses sujeitos
advém das características distintas das famílias moradoras do P. A. Divisa, que
apresentam trajetórias de vida diferentes.
Em um trabalho realizado por Oliveira (2006b), no assentamento Vereda I,
localizado no entorno do Distrito Federal, são pesquisadas famílias de origem
migrante, que buscam uma vida melhor na cidade, mas acabam se encontrando no
assentamento devido às circunstâncias de reprodução da vida no espaço urbano.
Uma das características percebidas, no grupo de assentados do Vereda I, foi que as
famílias tinham interesses divergentes quanto aos usos do espaço vivido no
assentamento. Verificou-se que, enquanto alguns queriam um sítio para o lazer nos
finais de semana, outros desejavam ter a terra para começar uma vida nova e nela
trabalhar. Isto demonstrou que as famílias possuíam trajetórias de vida divergentes,
que se materializavam no assentamento por interesses distintos. Segundo Oliveira
(2006b),
[...] o assentamento pode ser considerado, de certa forma, um espaço
construído de fora, ou seja, o assentamento foi formado por vários grupos
que chegaram e passaram a conviver e a se constituir a partir do
acampamento e, posteriormente, do assentamento. São atores com
trajetórias distintas, a não ser pelo fato de, em sua grande maioria, serem
migrantes, e que nesse momento de suas vidas passam a viver num
mesmo espaço, não físico, mas também de relações sociais com
características heterogêneas e individuais que, no assentamento, vão
aflorar e contribuir para a construção de uma série de relações sociais. (p.
262)
O trabalho nos apresenta outro viés sobre como abordar o assentamento e
seus beneficiários. O autor aponta para uma compreensão mais singular da
realidade, adentrando em suas trajetórias de vida para explicar o processo de
construção do lugar, no assentamento. O termo lugar é utilizado por nós ao
determinarmos uma escala geográfica que nos proporcione o entendimento das
relações particulares entre as famílias assentadas. Entendemos que as experiências
vividas pelos moradores do P. A. Divisa o fazem parte de uma cultura que foi
74
deixada de lado pelos sujeitos, ao conquistarem seus lotes, em prol de um ideal
coletivo. Devemos pensar nos rearranjos ocorridos em seus modos de vida para se
fixarem na terra e reproduzirem o lugar, tomando-se como investigação a sua
cultura.
Compreendemos, como Martins (2003), que existe um sujeito oculto, na
Reforma Agrária, que não tem emergido nos discursos do Estado ou mesmo dos
movimentos sociais de luta pela terra. Referimo-nos ao indivíduo que possui uma
experiência de vida, que produz a Reforma Agrária ao seu modo, à sua
interpretação. Como nos fala Martins (2003), em seu livro “O sujeito oculto: ordem e
transgressão na reforma agrária”,
[...] sujeito oculto da reforma agrária, o sujeito que está na prática cotidiana
e vivencial da questão agrária, das tensões e conflitos decorrentes e da
prática cotidiana e vivencial da própria reforma, longe das teorias e das
ideologias que a ela se referem. Enfim, trato aqui do sujeito invisível desses
processos sociais. O sujeito que é gestado no próprio processo da reforma
e não o sujeito empírico que a precede. Isto é, o sujeito que não chega com
nitidez à consciência do assentado e menos ainda do acampado, e que
se manifesta eventualmente quando a terra é objeto de transação. Um
sujeito que os agentes de mediação da luta pela reforma agrária ignoram,
pois se o reconhecessem poriam em risco a legitimidade e a difícil
coerência de suas idéias e de sua ação. São os percalços da militância
apoiada na doutrina superficial, improvisada e precária. (pág. 10)
O estudo de Martins (2003) coloca-nos diante da necessidade de reconhecer
um homem ou mulher que participam ativamente do processo de luta pela terra, de
sua conquista e trabalho, mas que apresentam interpretações diferentes do mundo e
não podem ser homogeneizados, mesmo que estejam engajados em grupos
pequenos nos assentamentos de Reforma Agrária. Partindo-se da idéia de que os
beneficiários da Reforma Agrária são sujeitos ativos nesse processo e que não
possuem uma identidade única, podemos considerar que não se pode rotulá-los com
uma tipologia única, que os determine enquanto grupo social homogêneo. Sobre
este sujeito, Martins (2003) afirma que
Refiro-me ao sujeito prático que emerge da dialética da circunstância,
daquilo que determina a ação e engendra a contraditória figura humana que
75
protagoniza essa circunstância. O sujeito que, diversamente do que se faz
supor nos embates políticos, não tem uma face coerente e unívoca. Antes,
divide-se nas ambivalências próprias de sua situação social, nas incertezas
de um duplo ser, que está mais na oculta estrutura das relações sociais do
que propriamente nas frágeis e idealizadas personificações dessas
relações. (p. 10)
Na travessia pela contemplação de sonhos e expectativas de se adquirir a
terra, diversos planos singulares são ocultados quando há um esforço conjunto
personificado no movimento de luta pela Reforma Agrária. Para alcançarmos a
realidade dinâmica dos assentamentos, em sua lógica de organização, seja ela
coletiva ou o, acreditamos que a chave de acesso encontra-se no ser individual,
mais especificamente em sua cultura. Mas entendemos que essa opção não
tangencia o ser econômico, nem o político. Esta abordagem nos permite acessar, de
modo mais específico, o homem em sua totalidade, em seu conjunto de práticas
sociais que se manifestam localmente e se integram a instâncias espaciais mais
abrangentes, que extrapolam as relações comunitárias locais. Sendo assim,
afirmamos que o próprio assentado é um sujeito dinâmico e complexo, que
materializa sua vivência no lugar pelo particular do modo de vida, daquilo que não
lhe é atribuído por rotulações genéricas, mas pelo que ele é enquanto cultura. Como
nos diz Martins (2003), “[...] o sujeito cuja visibilidade depende das revelações da
análise sociológica. Não é João, o é Jo, não é sem terra, não é sem fé.” (pág.
12).
Ao refletirmos, teoricamente, sobre alguns estudos da Reforma Agrária, no
Brasil, que abordam os assentamentos, tivemos a clara idéia de que há necessidade
de se acessar os assentados enquanto particularidades relevantes no caminhar
dessa reforma. Mas isto exige um esforço teórico e empírico que nos dê sustentação
para tal proeza, o qual está claramente apresentado no segundo capítulo.
Nos trabalhos que analisamos, o sujeito assentado permanece conhecido
como coletivo, orgânico, coeso e pertencente a grupos de interesses que se
76
constroem na vivência dos assentamentos. A sua face individual prevalece oculta
diante das generalizações ou homogeneizações identitárias que estão travestidas no
coletivo, na cooperação e na associação, sendo que as contradições advêm do
conflito entre grupos de afinidades.
No capítulo que se segue, refletimos acerca da metodologia de abordagem do
sujeito em sua particularidade, analisando o trabalho de campo realizado no
Assentamento Divisa, sendo ele o direcionador do estudo sobre modos de vida e
cotidiano das famílias moradoras do P. A. Divisa. Dessa maneira, os modos de vida
e o cotidiano são conteúdos importantes para se compreender os processos e
formas que se manifestam na reprodução do lugar, que seanalisada no terceiro
capítulo.
77
2. MODOS DE VIDA E COTIDIANO: EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS NO
ESPAÇO DA REFORMA AGRÁRIA
O principal objetivo deste capítulo é analisar os modos de vida e as práticas
cotidianas presentes no assentamento. O alcance dos resultados dependeu da
relação de dois fatores importantes para a pesquisa, que são o trabalho teórico e
empírico. É neste capítulo que os dados obtidos em trabalho de campo são mais
claramente apresentados, já que o primeiro capítulo é, sobretudo, teórico, com
algumas reflexões que se fundamentam em informações obtidas junto aos sujeitos
da pesquisa.
A estrutura do texto que se segue diferencia-se do capítulo anterior pelo
conteúdo metodológico, pois a importância do trabalho de campo para obtenção de
resultados exigiu-nos a construção de uma proposta metodológica própria, de modo
que ela direcionasse as pesquisas empíricas para que se tornassem eficientes.
Nenhuma visita a campo foi realizada aleatoriamente, sem planejamentos e
reflexões do que vem a ser o trabalho de campo para a Geografia.
No contexto geral, o conteúdo analítico que se segue direciona,
metodologicamente, a produção científica presente nos resultados apresentados nos
capítulos posteriores, que são oferecidas textualmente, com detalhes, as
abordagens que realizamos em campo para coleta de dados, bem como a relação e
análise estabelecida entre teoria e dados empíricos. Nesse sentido, consideramos
que a principal contribuição do capítulo, para os demais, não reside apenas na
análise dos modos de vida e das práticas cotidianas, mas também se encontra na
construção metodológica de investigação empírica.
78
A experiência que vivemos com os assentados, em nossos trabalhos de
campo, foi enriquecedora para o desenvolvimento da pesquisa. Também foi
desafiadora a proposta, que colocamos em prática, de visitar o assentamento por
mais de dois dias seguidos, dormindo por lá, na casa de um morador do lugar. Valeu
a pena o desafio, pois valorizamos cada momento de convívio mais próximo com as
famílias pesquisadas. A convivência próxima foi fundamental para a coleta de dados
porque, no decorrer dos trabalhos de campo, percebemos que a todo o momento
tínhamos a oportunidade de adquirir informações novas ou confirmar aquelas que se
repetiam nas observações e participações de diálogos informais e entrevistas com
as famílias.
Consideramos importante descrever os fenômenos percebidos de acordo com
aquilo que observávamos, sem acrescentar análise ou indagações a esse respeito.
As análises dos fenômenos foram realizadas nos momentos extra-campo,
permitindo que, durante as visitações, descrevêssemos, na íntegra, os fenômenos
presenciados, sem incluir nas descrições nossas opiniões pessoais, clivadas por
teorias. Tal postura foi adotada para evitarmos a negação de determinados aspectos
da realidade que fossem contrários às teorias estudadas ou à nossa visão de
mundo.
Outra consideração relevante acerca da convivência com as famílias
assentadas é que a proximidade e afetividade com o lugar estudado, que se
acentuou durante as pesquisas, não anulou a possibilidade de analisarmos as
contradições e divergências entre as próprias famílias. Uma observação aparente da
realidade nos levaria a acreditar que apenas um modo de vida seria determinante no
espaço do assentamento, de forma que todas as famílias que ali moram não se
diferenciassem enquanto aspectos culturais. Se considerássemos apenas o
79
aparente, não teríamos razão para pesquisar uma realidade na qual as divergências
não se manifestam. O fato é que resolvemos adentrar por uma realidade complexa,
mas que aparentemente é simplificada quando a entendemos, objetivamente, pela
percepção dos sentidos, e elaboramos conceitos a partir do senso comum.
Para penetrarmos na essência dos fenômenos, recorremos ao sujeito singular
e fundamental da Reforma Agrária, que é o próprio morador do assentamento, pois
ele constrói o cotidiano no assentamento de acordo com sua visão de mundo, cujas
características não são relevantes nas estatísticas do Governo e nem nas diversas
pesquisas científicas, como analisamos no capítulo anterior.
O seu modo de vida revela um conteúdo que interfere no caminhar da
Reforma Agrária, porém, não é considerado como elemento importante por parte do
Governo, quando este promove a criação de projetos de assentamentos.
Acreditamos que os aspectos culturais têm um peso relevante no sucesso e\ou
fracasso da Reforma Agrária, pois esta não se esgota com a desapropriação de
latifúndios e divisão de terras entre os sem-terra. A luta pela Reforma Agrária parece
se acentuar a partir da criação dos projetos de assentamento, pois fixar-se no lote
adquirido não é uma tarefa menos complicada que se tornar assentado, que essa
opção projeta o sujeito em uma nova condição de luta pela vida. É na situação de
assentado que muitos contemplam as expectativas que possuíam em cultivar terras
próprias, enquanto outros companheiros de luta não conseguem produzir sua
sobrevivência a partir da terra.
Em nossos encontros com os sujeitos assentados, foi possível coletar dados
importantes para analisar em que condições as famílias moradoras do Projeto de
Assentamento Divisa têm construído sua trajetória de vida. Consideramos que não é
somente o Governo ou os movimentos sociais de luta pela terra que promovem a
80
Reforma Agrária a seu modo. A partir da criação dos assentamentos, são os
próprios beneficiários de terra que produzem o espaço vivido à sua maneira, de
acordo com sua cultura. Não se quer, aqui, anular a influência de instituições
externas nas comunidades assentadas, mas apenas enfatizar que são os
beneficiários de terra os próprios sujeitos das relações sociais que colocam em
prática um modo de vida e, conjuntamente com agentes externos à comunidade,
determinam a história do espaço em construção.
Sendo assim, a busca pela compreensão dos modos de vida dos sujeitos
assentados foi resultado de avanços no campo conceitual, conjuntamente com a
realização dos trabalhos de pesquisa empírica. Os conceitos sempre caminharam ao
lado dos resultados obtidos em campo, possibilitando análises em torno dos
fenômenos próprios do lugar que vão muito além de generalizações da teoria. Por
conseguinte, esse encaminhamento metodológico nos possibilitou produzir
entendimentos sobre a gica de produção e organização do espaço, partindo dos
modos de vida presentes na realidade observada e das práticas cotidianas, sempre
considerando o campo conceitual em consonância com os dados obtidos em campo.
2.1. Procedimentos e ética no trabalho de campo: reflexões sobre a abordagem
empírica dos sujeitos da pesquisa
Antes de chegarmos ao conceito de modo de vida, tomando como referência
a teoria e, conseqüentemente, relacionando-o aos resultados da coleta de dados
junto ao assentamento, temos a pretensão de refletir a respeito do trabalho de
campo. Compreendemos que o caminhar da pesquisa está diretamente vinculado à
qualidade dos dados empíricos. Dessa forma, resulta de grande importância o
81
trabalho de campo para investigar os modos de vida das famílias assentadas. Se
não soubermos como proceder junto aos entrevistados, estaremos fadados a não
obter êxito em nossa investigação. Esta é uma premissa necessária para qualquer
pesquisa e, principalmente, a que realizamos junto aos sujeitos da Reforma Agrária,
entrevistando-os e observando suas relações com o lugar. Sendo assim, obter
informações junto a grupos humanos não é uma tarefa de cil execução, pois se
manuseiam dados qualitativos relacionados à subjetividade dos entrevistados.
Estrategicamente, organizamos a nossa coleta de dados partindo de dois
caminhos diferentes e complementares, que são as entrevistas e a descrição por
meio de observações.
Antes de nos lançarmos à empreitada que seria realizada em campo, tivemos
o cuidado de adotar uma postura ética, enquanto pesquisadores preocupados em
não envolver as famílias do assentamento, sem que elas consentissem no modo
como a pesquisa seria realizada e como os dados coletados pelas entrevistas e
observações seriam utilizados. Sendo assim, submetemos o projeto de pesquisa às
apreciações do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de
Uberlândia (CEP\UFU), no s de Novembro de 2006. Para que o projeto fosse
apreciado, elaboramos um termo de consentimento
15
(Anexo I), que deveria ser
apresentado às famílias observadas e entrevistadas, de maneira que elas
soubessem exatamente como iriam contribuir para a pesquisa e como as
informações a nós fornecidas seriam utilizadas. Após o parecer de aprovação
15
O termo de consentimento é composto por três partes. A primeira descreve de forma clara os
objetivos da pesquisa. A segunda apresenta a metodologia, com uma linguagem de fácil
compreensão. A terceira refere-se ao aceite do pesquisado em participar da pesquisa. No caso de
nossos trabalhos no assentamento, os sujeitos assentados que foram entrevistados tiveram que
assinar o termo de consentimento, permitindo-nos entrevistá-los quando necessário, de acordo com
sua disponibilidade em nos receber em seus lotes, para observações de seus trabalhos na terra, bem
como registrar tais atividades por meio de fotografias e descrições, em nossas cadernetas.
82
(Anexo II) do projeto de pesquisa, pelo CEP, procedemos à elaboração de
estratégias para realização dos trabalhos de campo.
O caminho foi analisar, teoricamente, os resultados obtidos no trabalho de
campo, tomando como referência alguns textos elaborados por autores da Geografia
e também de outras áreas das ciências humanas, como Sociologia, Antropologia e
História. Para o desenvolvimento de pesquisas em campo, consideramos necessário
introduzir uma discussão que apresente argumentos e análises a partir de um
conteúdo interdisciplinar que contribua para ampliar o entendimento sobre o que é
trabalho de campo nas ciências humanas e, a partir daí, expandir nossas
alternativas de procedimentos de coleta de dados junto aos sujeitos pesquisados.
O trabalho de campo, em Geografia, é um procedimento de grande
importância, que se faz presente desde a organização e sistematização dessa
ciência. A Geografia se afirmou como ciência a partir do século XIX e passou por
vários momentos que consolidaram seu objeto de pesquisa e os conceitos
fundamentais para investigação da realidade (MORAES, 1999).
O método descritivo é um procedimento desenvolvido na escola geográfica
tradicional e foi muito importante para a prática do trabalho de campo. A Geografia
Alemã, do século XIX, pertencente à escola tradicional, apoiava-se na descrição
como procedimento importante, que era adotado por geógrafos que realizam longas
viagens, por diversas partes do mundo (CAPEL, 1981). Mas a abordagem principal
dos pesquisadores dessa época estava vinculada ao determinismo ambiental,
predominante nas concepções filosóficas da vertente alemã, sendo que tais
concepções eram a base fundamental para produção científica em Geografia
(MORAES, 1999). As pesquisas divulgadas por Charles Darwin, sobre a evolução
das espécies, haviam influenciado expressivamente os ramos das ciências
83
humanas, que se consolidavam no século XIX. Logo, a Geografia tradicional
apoiava-se nas orientações filosóficas do evolucionismo darwiniano para estudar a
realidade, sendo que a descrição da natureza era um procedimento comum e
largamente utilizado pelos geógrafos alemães.
Alexander Von Humboldt foi um dos geógrafos que viajou por diversas partes
do mundo a trabalho de campo e contribuiu, enormemente, para a evolução da
ciência geográfica, pois descrevia detalhadamente a natureza e sua dinâmica, nas
regiões que visitava. Alguns autores atribuem a ele o título de “pai da Geografia
moderna”, por ser ele um dos principais agentes na elaboração de uma disciplina
sistematicamente ordenada. Analisando os trabalhos de Humboldt, Capel (1981),
afirma que este geógrafo
Se interesaba por la influencia de la naturaleza física del hombre e afirmaba
la necesidad de enlazar el estudio de la naturaleza física con el de la
naturaleza moral y empezar en realidad por llevar al universo tal como lo
conocemos la verdadera armonía”. […] El proyecto científico de Humboldt
trataba de demostrar empíricamente esa concepción idealista de la armonía
universal de la naturaleza concebida como un todo de partes íntimamente
relacionadas, un todo armonioso movido por fuerzas internas […] (p. 8)
Os trabalhos de campo da Geografia nascente tinham um compromisso com
a descrição dos fenômenos da natureza, e esse procedimento fundamentava o
método comparativo, presente nas pesquisas de Humboldt. A perspectiva histórica
também esteve sempre presente na análise dos dados obtidos pela observação e
descrição. Segundo Capel (1981), “[...] Humboldt siguió un método comparativo, y al
mismo tiempo incorporó siempre en sus investigaciones la perspectiva histórica.” (p.
8).
Adotar o procedimento comparativo, como realizara Humboldt, foi uma tarefa
diretamente ligada às atividades de coleta de dados em campo, pois integrava-se ao
trabalho de classificar, fielmente, as partes componentes dos fenômenos
84
observados. Sem a noção das partes, não era possível compreender o todo e o
movimento que o engendrava, porque segundo Humboldt (1982),
La Naturaleza, considerada por medio de la razón, es decir, sometida en su
conjunto a la acción del pensamiento, es la unidad en la diversidad de los
fenómenos, la armonía entre las cosas creadas que difieren por su forma,
por su constitución y por las fuerzas que las animan; es el Todo animado
por un soplo de vida. La consecución más importante de un estudio racional
de la Naturaleza es aprehender la unidad y la armonía que existe en esta
inmensa acumulación de cosas y fuerzas; asumir con el mismo interés tanto
los resultados de los descubrimientos de los pasados siglos como lo que se
debe a las investigaciones de los tiempos en que se vive y analizar los
caracteres de los fenómenos sin sucumbir bajo su masa. (p. 160)
Empiricamente, haveria que se descrever, de maneira densa, as partes que
compõem o todo dos fenômenos naturais, para que se tivesse o entendimento do
processo evolutivo, considerando-se a natureza como conteúdo determinante da
própria sociedade.
Podemos afirmar que o trabalho de campo torna-se uma alternativa
indispensável à ciência geográfica, pois realizar comparações a partir dos
fenômenos da natureza é uma tarefa que exige habilidade do geógrafo em
descrever tais fenômenos. Logo, compreendemos que o método descritivo é uma
ferramenta que se desenvolveu, amplamente, nos trabalhos de orientação
determinista.
Os geógrafos da corrente francesa tradicional, denominados possibilistas, não
abandonaram o todo descritivo como procedimento adotado em campo.
Colocaram-no em prática, porém tendo como concepção de estudo geográfico a
relação sociedade-natureza, passando a enxergar a natureza como possibilidade de
transformação pelo homem. Desse modo, os geógrafos franceses deram ênfase às
ações do homem em transformar a natureza, não o considerando apenas um
elemento subordinado às determinações impostas pelos fenômenos e\ou condições
naturais. Semelhante à postura de campo dos geógrafos alemães, a escola francesa
adotou a descrição como método de coleta de dados empíricos. A realidade era
85
abordada tendo-se como referência geográfica a categoria região, que coincidia com
uma delimitação da superfície terrestre. Segundo Vidal de La Blache (1982),
O campo de estudo, por excelência, da Geografia é a superfície; este é o
conjunto dos fenômenos que se produzem na zona de contato
entre as massas sólidas, líquidas e gasosas, que se constituem o planeta.
(p. 41).
Nesse contexto está inserido o homem, que age e reage às situações
impostas pela natureza. Desse modo, Vidal de La Blache concebe que o objeto de
estudo do geógrafo é um conjunto de fatores diversos que não produzem harmonias
ou equilíbrios, estando em constantes mutações. Isto nos traz o entendimento de
que o ato de descrever os fenômenos não é tão simples como o termo parece nos
indicar. De acordo com Vidal de La Blache (1982),
A Geografia distingue-se como ciência essencialmente descritiva. o
seguramente que renuncie à explicação: o estudo das relações dos
fenômenos, seu encadeamento e de sua evolução, são também caminhos
que levam a ela. Mas esse objeto mesmo a obriga, mais que em outra
ciência, a seguir minuciosamente o método descritivo. Uma dessas tarefas
principais não é localizar as diversas ordens de fatos que a ela concernem,
determinar exatamente a posição que ocupam, as áreas que abrangem?
Nenhum índice, mesmo nenhuma nuança não poderia passar despercebida;
cada uma tem seu valor geográfico, seja como dependência, seja como
fator, no conjunto que se trata de analisar. É preciso, então, tomar sobre o
fato cada uma das circunstâncias que o caracterizam, e estabelecer
exatamente o resultado. No rico teclado de formas que a natureza expõe
aos nossos olhos, as condições são tão diversas, tão intercruzadas, tão
complexas, que elas arriscam escapar a quem acredita tê-las cedo demais.
(p. 45)
Mesmo não se tratando de um trabalho que possua abrangência regional,
compreendemos que, em nossa pesquisa, a habilidade em descrever determinados
fenômenos tem sua importância. Não nos referimos aos fenômenos naturais, mas
aos fenômenos sociais. Estamos longe de adotar uma postura determinista ou
possibilista, típicas das escolas tradicionais da Geografia. Queremos demonstrar
que a descrição também pode ser um método adotado para se investigarem os
modos de vida das famílias assentadas. Porém, estamos cientes de que tal todo
não é tão simples de ser empregado, pois, apesar de lidarmos com uma realidade
local, temos o entendimento de que a essência dos elementos observados não é
86
objetiva, como parece nos indicar a percepção. As dificuldades em descrever os
fenômenos presentes no lugar são latentes, quando vamos ao encontro dos sujeitos
da Reforma Agrária para investigá-los e em direção às suas formas de pensar e agir.
Do mesmo modo que os fenômenos naturais aparecem-nos intercruzados e de difícil
descrição, como nos falou Vidal de La Blache (1982, p. 45), os fenômenos de âmbito
social não apresentam grau inferior de dificuldade, ou seja, manifestam-se
embaralhados, misturados e até mesmo camuflados, de modo que devemos adotar
critérios eficientes para descrevê-los de forma sistemática e ordenada. A finalidade
da estruturação empregada no método descritivo é de facilitar a análise dos dados,
após a realização do trabalho de campo.
Indo um pouco além da contribuição dos geógrafos Alexander Von Humboldt
e Vidal De la Blache quanto ao método descritivo na Geografia, destacamos o
geógrafo Max Sorre
16
e sua prática de observação de grupos sociais, pois seus
trabalhos apresentam maior proximidade com o objeto de nossa pesquisa, por se
tratar de grupos humanos. De acordo com Santos (1999), em sua análise sobre a
prática de campo de Max Sorre, “[...] o pesquisador no trabalho de campo não
mantinha apenas a posição de quem observava e participava da realidade estudada,
estava também desde o início revelada a sua identidade e os objetivos do trabalho.”
(p. 112)
De acordo com o entendimento de Santos (1999), o gênero de vida é um
conceito importante nos trabalhos de Max Sorre, pois este autor atribui enorme
relevância à capacidade dos grupos humanos em produzir sua relação com o meio e
não em ser apenas determinados por circunstâncias da natureza. O ato de
16
Partimos da discussão sobre a prática de campo do geógrafo Max Sorre tendo como referência as
análises de SANTOS, Rosselvelt José. Pesquisa empírica e trabalho de campo: algumas questões
acerca do conhecimento geográfico. In: Revista Sociedade & Natureza, nº 11, jan\dez, 1999, p. 111-
125.
87
considerar os pesquisados como sujeitos que agem e reagem às situações adversas
é um reconhecimento importante na pesquisa de campo, pois torna-se difícil
descrever os fenômenos sociais quando não se tem interação com os próprios
grupos humanos que produzem tais fenômenos, conforme o entendimento de
Santos (1999). Esta é uma variante que não se pode considerar alheia a qualquer
investigação e que nos trabalhos de Humboldt e Vidal de La Blache não se
manifestam, pois suas preocupações estão voltadas, primeiramente, para os
fenômenos naturais, que não reagem à presença do pesquisador. Mas, ao
investigarmos grupos humanos, estamos interferindo diretamente em seus
comportamentos e, conseqüentemente, nos fenômenos que tais grupos produzem
no espaço vivido. Dessa maneira, concordamos com Santos (1999) quando afirma
que,
Na realização de trabalhos de campo, considerando-nos sujeitos da
pesquisa e do conhecimento, muitas vezes procedemos como objetos
daqueles que pesquisamos. Enfim somos, ao mesmo tempo sujeito-objeto
da pesquisa. Entretanto, na vida cotidiana, sujeitos e objetos, agem e
reagem continuamente uns sobre os outros, tornando-se assim, um desafio
separar o sujeito do objeto. Contudo, é comum ouvir de um pesquisador a
respeito daquilo que se estuda, tratamentos de pertencimentos,
hierárquicos, como ‘meus lavradores, meus trabalhadores e meus
pesquisados’. (p. 114)
De acordo com a citação de Santos (1999), podemos entender que o método
descritivo, como prática de campo, exige-nos considerar as ações e reações dos
sujeitos da pesquisa, mediante nossa presença. Não estamos perante uma vitrine
que nos permite visualizar coisas ou pessoas insensíveis à nossa presença, como
se estivéssemos observando um teatro. Aqueles que estão do “lado de lá”, que são
os sujeitos pesquisados, não são homens ou mulheres que ignoram nossa presença
como pesquisadores. Sendo assim, podemos afirmar que tais pessoas não estão do
“lado de lá”, em outro espaço que não lhes permite nos acessar.
88
À medida que possibilitamos o contato mais próximo com os sujeitos da
pesquisa, construímos confiança mútua e respeito, cuja conseqüência é a facilitação
ao acesso de informações que consideramos importantes à pesquisa (SANTOS,
1999). Dessa forma, o método descritivo adquire sua eficiência, pois os fenômenos
que antes eram embaralhados à percepção podem, agora, ser mais bem
classificados, pois compreendemos que eles não são produzidos somente pelos
sujeitos pesquisados, mas por s, pesquisadores, ao oferecermos oportunidade de
ação e reação (SANTOS, 1999) mediante nossa presença e observação de suas
práticas cotidianas.
As considerações sobre o método descritivo e os cuidados em utilizá-lo não
encerram nossa discussão sobre trabalho de campo. Apenas nos projetam em outra
abordagem e discussão da coleta de dados qualitativos, em Geografia.
Classificamos como qualitativas as informações advindas das formas de pensar e
agir dos sujeitos da pesquisa, que podem ser manifestadas em suas falas ou,
mesmo, em suas ações.
Para enriquecer a análise do trabalho de campo em Geografia, não
recorremos à produção científica das escolas da Geografia Teorético-Quantitativa e
Geografia Crítica. Entendemos que, em tais correntes, foi negligenciada a
perspectiva do sujeito, nos trabalhos de campo. Na escola teorético-quantitativa, os
geógrafos não se preocuparam em desenvolver cnicas de campo que se
ocupassem dos aspectos humanos, pois a elaboração de estatísticas apenas
considerou o conteúdo objetivo da realidade, sendo este um procedimento típico do
método positivista. Analisando a contribuição das escolas geográficas ao trabalho de
campo em Geografia, Santos (1999) afirma que esta ciência, “[...] no Neo-
Positivismo-quantitativista chegou mesmo a negar a importância do trabalho de
89
campo. Essa negação propagou-se, inclusive, na Geografia Crítica e fez eco em
outros momentos.” (p. 114)
Pensando por este viés apresentado por Santos, o se pode negar que a
Geografia Humanista Cultural, nascida a partir da cada de 1970, tenha herdado
deficiências de outras escolas geográficas, acerca do trabalho de campo. Logo,
estamos diante de um desafio que deve ser superado: o de analisar e elaborar o
trabalho de campo que vá ao encontro dos anseios desta pesquisa e complemente o
método descritivo analisado anteriormente.
Buscando ampliar nosso conhecimento sobre pesquisas de campo,
recorremos ao entendimento de métodos de pesquisa de outras ciências que se
correlacionam à Geografia Cultural. Pretendemos analisar as abordagens presentes
na Antropologia e na História, para introduzirmos, em nossos procedimentos,
algumas estratégias de coleta de dados que tais ciências possam nos oferecer.
Como não temos um arcabouço teórico suficiente, na Geografia, que traga reflexões
pontuais acerca do trabalho de campo vinculado a grupos humanos, optamos por
refletir sobre propostas da Antropologia e História, que se possui carência teórica
sobre o assunto e a Geografia Cultural se aproxima da proposta de trabalho de tais
disciplinas das ciências humanas.
Partindo-se da Antropologia, temos que o trabalho de campo, como conjunto
de técnicas, é um processo no qual se buscam dados junto a grupos sociais, sem a
intermediação de outros pesquisadores (DAMATTA, 1981). Em Geografia Cultural, a
pesquisa desenvolvida junto às famílias assentadas vai ao encontro desta proposta,
pois ouvi-las, por entrevistas, observá-las em suas lidas de trabalho e também em
alguns momentos de lazer, foi uma alternativa que encontramos para nos aproximar
de suas práticas cotidianas. Como demonstra DaMatta (1981),
90
[...] como será possível observar tranqüila e friamente (com a roupagem da
neutralidade científica) um certo panorama humano, se não nos
relacionarmos intensamente com ele? Mas como é possível manter essa
neutralidade ideal, que teoricamente nos permitiria “ver” todas as situações
de todos os ângulos, se estamos tratando de fatos e de pessoas que
acabam por nos envolver nos seus dramas, projetos e fantasias? Ou
melhor: como poderei chegar a captar essa realidade social se não me
coloco diante dela como um semelhante aos que dela tiram a honradez, a
dignidade e o sentido de existência? Ou seja: é preciso pensar em que
espaço se move o etnólogo, engajado na pesquisa de campo e refletir sobre
as ambivalências de um estado existencial onde não se está nem numa
sociedade nem na outra, e no entanto está-se enfiado até o pescoço numa
e noutra. (p. 153-154)
A complexidade pertencente ao trabalho de campo junto a grupos humanos
exige que o cientista estabeleça relações de proximidade com as pessoas do lugar.
Em alguns momentos, o pesquisador pode ser o único em que o pesquisado confie
para contar certas situações do cotidiano ou mesmo particularidades de sua história
de vida. Desse modo, o pesquisador deve estar preparado para situações adversas,
não previsíveis, em trabalhos de campo, mas são conteúdos a serem analisados e
interpretados pelo cientista.
Como afirma DaMatta (1981), pensar o espaço em que se insere o etnólogo é
uma tarefa importante, pois o entendimento dos sujeitos pesquisados deve levar em
consideração a reação destes perante a ação do pesquisador. Tendo consciência
desta situação, podemos analisar os grupos sociais por diversos ângulos,
considerando a relação social que estabelecemos com eles e não apenas as
relações entre os membros do próprio grupo.
Mas o ato de estarmos na condição de proximidade com as pessoas do lugar
não significa que os conheçamos o suficiente para não atentarmos naquilo que nos
parece óbvio ou comum. Pelo contrário, durante a pesquisa empírica, devemos
sempre nos ver como um “estranho” à comunidade, mesmo que ela não manifeste
reações claras de que estamos incomodando ou que somos diferentes. Ao
declararmos estar ali para investigar a realidade, revestimo-nos de uma “roupagem”
diferente, como não participantes do processo histórico de luta e conquista da terra
91
por que tais pessoas passaram, ao construir o lugar e a comunidade, consoante
seus modos de vida. Da mesma forma que não nos vêem como iguais, também
devemos percebê-los como diferentes, mesmo que nossa proximidade nos deixe à
vontade para circular entre eles, observá-los, registrá-los por meio de fotografias ou
conversar, sem compromisso declarado de entrevista.
Sendo impossível incorporar a neutralidade científica, o que nos resta é
perceber que os sujeitos da pesquisa manifestam ações e reações perante nossa
presença que não podem ser encaradas como comuns ou corriqueiras ou, como
diria DaMatta (1981), familiares, pois,
[...] pressuponho que a familiaridade implica no conhecimento e na
intimidade. Isso é precisamente o que deve ser superado quando buscamos
usar os óculos da antropologia social. Em outras palavras, quando eu estico
o sentido social da familiaridade e suponho que conheço tudo o que está
em minha volta, eu apenas assumo a atitude do senso comum. Ao fazer
isso, não realizo antropologia, mas aplico as regras da minha cultura às
situações a ela familiares, embora tais situações possam ser raras,
acidentais ou periódicas. (p. 161)
Estar ali para registrar apenas o diferente também não deve ser o papel do
geógrafo. Sendo assim, o conhecimento da realidade é possibilitado pelo contato
advindo da presença do pesquisador em campo. Ir diversas vezes ao encontro dos
pesquisados é uma atitude prudente quando se têm variáveis de ações e fenômenos
sociais, durante determinados períodos de tempo. Se a convivência é um fator
importante para se obterem relatos que o pesquisado somente nos daria quando
estivesse à vontade e sentindo confiança em nós, entende-se que a presença é um
fator relevante para nutrir a convivência. Sendo assim, estipular números de idas a
campo talvez o seja uma alternativa que matematicamente resultará na
aproximação e intimidade entre os diferentes. Compreendemos que a convivência e
a proximidade também dependem das circunstâncias que compartilhamos junto aos
pesquisados.
92
Durante a convivência com as famílias assentadas do P. A. Divisa, tivemos a
oportunidade de estabelecer proximidades por meio de contatos advindos de
circunstâncias inesperadas. No início das pesquisas não conhecíamos,
pessoalmente, algumas famílias que eram moradoras do assentamento. Pela
participação, em alguns momentos de lazer, em festas no assentamento e em
fazendas vizinhas, ou ajudando algumas famílias no trabalho diário, doando a força
de trabalho, foi-nos possível aproximar e compreender que determinadas atitudes
faziam as pessoas do lugar enxergarem o pesquisador, mesmo por alguns
momentos, como indivíduo de características semelhantes a elas. Isto o anulou a
diferença entre pesquisador e pesquisado, mas permitiu-nos aproximar de algumas
famílias de maneira espontânea e sem grandes formalidades.
A atitude de nos aproximar sem considerar as formalidades de nos
apresentarmos como pesquisadores foi inspirada em Malinowski (1986). Segundo
este autor,
[...] convém ainda que o pesquisador abandone, de vez em quando, a
máquina fotográfica, o caderno de notas e o pis, e participe dos
acontecimentos. Ele pode tomar parte nos jogos dos nativos, pode
acompanhá-los em suas visitas e passeios, sentar-se, ouvir e participar de
suas conversas. (p. 44)
Mesmo nos momentos de lazer, em que não se manifesta a intencionalidade
de observação perante os pesquisados, o geógrafo deve estar atento aos
fenômenos que se apresentam à percepção. O ato de estar no campo para
pesquisa, independente do horário ou da circunstância, deve ser encarado pelo
geógrafo como momento de registrar na memória os fatos observados para,
posteriormente, relatá-los em sua caderneta ou mesmo direcionar as pesquisas
futuras. É necessário considerar que o há máximo nem mínimo de observações e
de registro delas. Segundo Malinowski (1986),
[...] um dos pontos principais do método da pesquisa de campo é a coleta
de dados concretos sobre uma ampla série de fatos. O que se deve fazer
93
não é apenas enumerar alguns exemplos, mas levantar, exaustivamente, o
maior número possível de casos; e, nessa busca de fatos, será mais bem
sucedido o investigador que tiver o esquema mental mais claro. Mas
sempre que o material de pesquisa permitir, esse esquema mental deve ser
transformado em um esquema real; deve materializar-se em diagramas, em
planos, em um quadro sinótico exaustivo de todos os casos. (p. 37)
A presença em eventos festivos, organizados pelos grupos pesquisados, não
anula a posição do pesquisador em estar atento aos fatos que se sucedem à sua
presença. Amesmo durante uma conversa informal, nos momentos em que não
se está “armado” de cadernetas e máquina fotográfica, tem-se que dar importância
às informações que chegam aos sentidos.
Sendo assim, a descrição, como método de pesquisa de campo, torna-se
importante quando se é capaz de relatar, textualmente, os fatos, após terem
ocorrido. Nesse sentido, consideramos relevante outra tarefa do geógrafo enquanto
participante dos fenômenos observados, que é a de ouvir e relatar textualmente. Tal
relevância se deve a duas justificativas primordiais. Primeiro, porque os fenômenos
são vistos de dentro e não como se o pesquisador permanecesse separado por uma
vitrine que não lhe permita interagir com aqueles que estão “do outro lado”.
Segundo, devido ao fato de o pesquisador abrir mão de suas ferramentas de campo,
que o a caderneta e a máquina fotográfica, em certos momentos de convivência
com os pesquisados, de modo que eles não se sintam constrangidos em se
manifestar.
Mas não se trata de um “ouvir” pacífico por parte do pesquisador. É uma ação
mediada pela interação, como se o diálogo não fosse provocado pelo compromisso
de entrevista entre os participantes. Analisando o trabalho do antropólogo, Oliveira
(1996) afirma que,
Trocando idéias e informações entre si, etnólogo e nativo, ambos
igualmente guinados a interlocutores, abrem-se a um diálogo em tudo e por
tudo superior, metodologicamente falando, à antiga relação
pesquisador/informante. O Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação,
qual estrada de mão única, numa outra, de mão dupla, portanto, uma
verdadeira interação. (p. 21)
94
Como se pode compreender, a descrição de fatos, a partir da observação de
grupos humanos, é uma tarefa complexa, que envolve um conjunto de
entendimentos acerca da ação do pesquisador e da reação de seus pesquisados.
Mas esse método não é o único a ser aplicado. Como vimos, a observação atenta
do pesquisador se a todo momento em que este se encontra com seu campo
empírico de estudo. As conversas com as pessoas do lugar, sem compromisso
declarado de entrevista, caracterizam-se como trabalho de campo e devem ser
registradas textualmente.
Para complementar o método descritivo (ou poderíamos, também, denominá-
lo etnografia), utilizamos a entrevista como técnica para se registrar trajetórias de
vida. A história oral é um método importante, tendo a entrevista como técnica, sendo
que a história evoca o passado e o termo oral remete à forma como se tem acesso a
tal conteúdo (PORTELLI, 2001). Podemos estabelecer uma diferença importante
entre o método da história oral e a etnografia. Ambos consideram a fala dos
interlocutores da pesquisa, sobretudo a dos sujeitos pesquisados, sendo que a
etnografia também se ocupa em relatar os fatos observados e descrevê-los. Em
história oral, o compromisso de registrar as falas dos entrevistados, sem que o
pesquisador intervenha, com sua visão, na transcrição dos relatos. A interpretação
do pesquisador não pode alterar a opinião do outro, que foi registrada. A proposta é
recorrer ao sujeito da pesquisa para compreender como ele pensa sobre
determinada situação presente, bem como conhecer sua trajetória de vida. Dessa
maneira, evocamos a subjetividade daqueles que entrevistamos. De acordo com
Portelli, “A História Oral não mais trata de fatos que transcendem a interferência da
subjetividade; a História Oral trata da subjetividade, memória, discurso e diálogo.” (p.
26).
95
Pensar a Geografia Cultural sob a perspectiva da história oral, como método
de pesquisa no trabalho de campo, é uma proposta coerente com a abordagem dos
estudos culturais. Segundo Claval (2002), “A abordagem cultural integra as
representações mentais e as reações subjetivas no campo da pesquisa geográfica.”
(p. 20). Por este viés estamos lidando com um conteúdo que não é objetivo, ou seja,
que imediatamente pode ser constatado e registrado. Estamos diante de uma “nova”
perspectiva de abordagem científica, em Geografia, que não amadureceu em
conjunto com a evolução dessa ciência. Assim como a etnografia deve ser
repensada, em Geografia, como o fizemos anteriormente, a entrevista, como meio
de aquisição de informações, também deve ser analisada dentro do contexto da
Geografia Cultural.
A idéia de se repensar a entrevista sob a perspectiva da história oral parte do
reconhecimento de que esse método, na disciplina História, tem-se desenvolvido
largamente e se difundido entre os historiadores, tornando-se referência para outros
ramos científicos. Sendo assim, os debates em torno de entrevistas e do registro de
memórias, recorrendo-se ao sujeito da pesquisa, como sendo ele capaz de
apresentar fatos, trajetórias de vida, relações sociais próprias do lugar, relatos de
momentos presentes, tem sido objeto de debates amplos, na História.
O sujeito torna-se o centro da atenção dos pesquisadores que se utilizam da
História Oral como método de campo. Conseqüentemente, pode-se estabelecer uma
relação próxima entre Geografia Cultural e História Oral, pois ambas m como foco
principal das fontes de informação a oralidade dos próprios sujeitos da pesquisa.
Por meio das reflexões de Claval (2002) entendemos que, numa pesquisa
geográfica de abordagem cultural, o homem é o centro das atenções, pois
A geografia cultural está associada à experiência que os homens têm da
Terra, da natureza e do ambiente, estuda a maneira pela qual eles os
modelam para responder às suas necessidades, seus gostos e suas
96
aspirações e procura compreender a maneira como eles aprendem a se
definir, a construir sua identidade e a se realizar. (p. 89)
Dessa maneira, pode-se afirmar que há relações estreitas entre história oral e
Geografia Cultural. Refleti-las em conjunto para uma aplicação prática é uma
alternativa inovadora que deve ser incorporada à metodologia de pesquisa dos
estudos culturais, em Geografia.
Ao nos relacionar com as famílias do P. A. Divisa, tivemos a oportunidade de
aplicar a história oral como método para conhecer suas trajetórias de vida e
organização social, no momento presente. A etnografia esteve caminhando ao lado
da história oral e pôde auxiliar as interpretações que realizamos em laboratório.
Mas as dificuldades em lidar com a história oral em trabalhos de campo
tiveram que ser superadas teoricamente, de modo que analisássemos a discussão
sobre o assunto proposta por alguns autores. Os apontamentos sobre a relação de
tal método com a Geografia Cultural direciona-nos à compreensão de como a
história oral se materializa, a partir de sua prática. Segundo Portelli (2001),
[...] uma entrevista da história oral tende a ser uma história não contada,
ainda que largamente recheada de episódios relatados duas vezes; e o
falante tende a lutar pela melhor opção possível. A novidade da situação e o
esforço da dicção acentuam uma característica de todo discurso oral: a de
ser um “texto” em elaboração, que inclui seus próprios esboços, materiais
preparatórios, tentativas descartadas. Haverá graduais tentativas na busca
de um tema, não diferente do glissando musical, reparos à conversa e
correções após o fato, quer por empenho pela exatidão, quer por eficiência
pragmática; repetições incrementadas por conta de acabamento e precisão
ou de efeito dramático. Esse esforço pessoal de composição na
performance é sustentado pelo uso de matéria lingüística socializada
(clichês, fórmulas, folclore, anedotas congeladas, lugares-comuns) e pelo
exemplo de gêneros derivados de escritos (novela, autobiografia, livros de
história) ou comunicação de massas. (p. 12)
Durante as entrevistas, constatamos que alguns sentiam vontade de relatar
determinados fatos sobre a luta pela terra e sobre o período em que viveram no
acampamento, aguardando a emissão de posse da terra. Outros entrevistados se
lançavam a relatar estórias do momento presente, descrevendo com emoção a
realidade atual em que viviam e os projetos futuros que almejava materializar. Uma
97
outra parcela dava ênfase às decepções anteriores junto às relações de trabalho
coletivo e às más colheitas que realizara alguns anos atrás.
As diversas falas que se embalavam espontaneamente, desviando-se das
indagações que eram lançadas, tiveram o papel de remontar um histórico de fatos
desencontrados no tempo e no espaço. Sendo assim, tínhamos o trabalho de
estabelecer conexões entre as falas, de modo que a compreensão sobre os modos
de vida fosse um dos objetivos principais em colar fatos e interpretar visões de
mundo. Por este trabalho foi possível compreender que a história oral não se inicia
na oralidade ou nela se esgota, pois
A maior parte dos relatos pessoais ou familiares são contados em pedaços
e episódios, quando surge a ocasião; conhecemos mesmo as vidas de
nossos parentes mais próximos por fragmentos, repetições, por ouvir dizer.
Muitas histórias ou anedotas podem ter sido contadas inúmeras vezes no
interior de um círculo restrito, mas a história total dificilmente terá sido
contada em seqüência, como um todo coerente e organizado. (PORTELLI,
2001, p. 11)
As entrevistas nem sempre se seguem de acordo com a ordem proposta de
indagações. Essa é uma premissa que deve ser explorada em campo, junto aos
entrevistados, pois, manifestando-se espontaneamente, eles tendem a nos falar de
suas experiência vivenciadas sobre certos acontecimentos. Logo, a postura do
pesquisador diante das variáveis da espontaneidade de seus dialogadores é de
aceitar o desvio provocado pela circunstância e ingressar nela sem querer ordená-la
de acordo com o seu interesse.
A sistematização das falas coletadas e sua interpretação deve-se realizar
após o momento de entrevista. Talvez a proposta de traçar um diálogo retilíneo, que
se enquadre às intenções do entrevistador, fique em segundo plano. Em primeiro
lugar, devem estar os anseios daquele que fala e se abre ao pesquisador.
Sentindo-se importantes, os sujeitos da pesquisa produziam e conduziam o
diálogo por assuntos que eles mesmos consideravam significantes. Se queriam falar
98
do acampamento, sentiam-se à vontade. Se achavam importante comentar as brigas
entre vizinhos, deixávamos à vontade para falarem. Se desejavam não dizer nada,
cabia a nós respeitar e aguardar o momento em que pudessem nos receber
novamente em suas casas e dialogar conosco.
As imprevisões exigiram “jogo de cintura”, para não nos perdermos em
desvios a que os próprios entrevistados nos conduziam, por nem sempre
responderem às perguntas de acordo com o que estávamos interessados. Na
verdade, não criamos a expectativa de escutar respostas prontas, previsíveis pela
intuição. Caso fossem indagados a respeito da Associação de Produtores Rurais do
Assentamento, alguns tendiam a falar de suas ações individuais, por não se
engajarem, efetivamente, em trabalhos associativos. Outros relatavam alguns
trabalhos coletivos que, para eles foram importantes, não se remetendo a práticas
coletivas do presente, mesmo que essas ocorressem. É nesse sentido que se
encontraram desvios e respostas os mais diversos. Mas nem sempre era necessário
indagá-los para que relatassem fatos e demonstrassem suas opiniões.
Não nos preocupamos em dar ênfase às histórias de vida, como se
recorrêssemos à autobiografia daqueles que relatavam. A preocupação foi centrada
nas experiências individuais de cada pessoa entrevistada, visto que, ao analisarmos
o método da história oral, em consonância com sua prática, compreendemos que
história oral não é sinônimo de história de vida pois, como afirma Freitas,
A História Oral também não é sinônimo de história de vida. História de vida
pode ser considerada um relato autobiográfico, mas do qual a escrita que
define a autobiografia es ausente. Na história de vida é feita a
reconstituição do passado, efetuada pelo próprio indivíduo sobre o próprio
indivíduo. Este relato que não é necessariamente conduzido pelo
pesquisador pode abranger a totalidade da existência do informante.
(FREITAS, 2002, p. 21)
As entrevistas tiveram enfoques temáticos, não se reportando,
exclusivamente, à história de vida como um conteúdo total, para depois recortarmos
99
partes das falas que correspondessem aos temas abordados. Dentre os enfoques
dados, remetemos aos seguintes temas: trajetórias e experiências antes do
assentamento; história de luta pela terra; atividades geradoras de renda; trabalho
familiar; trabalhos coletivos no assentamento; relações de vizinhança; práticas de
lazer; engajamento em grupos de trabalho e religião; e relações com a cidade.
Nem sempre os relatos puderam ser conduzidos por uma ordem estabelecida
pois, nas falas dos entrevistados, era possível ir direcionando as idéias para se falar
de determinados assuntos, por meio de sugestões e indagações. Em alguns casos
essa ação não era possível, que a vontade de falar sobre si e opinar sobre os
outros era espontânea, na manifestação dos sujeitos da pesquisa. Diante desta
circunstância, cabia-nos concordar, discordar ou mesmo não opinar, pois éramos
convidados a participar do diálogo. Percebeu-se, então, que a participação do
pesquisador no diálogo, demonstrando enriquecer-se com a experiência do outro,
motiva este a relatar, por horas e horas, suas experiências de vida.
Na História Oral é eminente a participação do pesquisador no diálogo. De
acordo com Portelli (1997),
O respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é, portanto, uma
das primeiras lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo
na História Oral. Não são exclusivamente santos, os heróis, os tiranos ou
as vítimas, os transgressores, os artistas que produzem impacto. Cada
pessoa é uma amálgama de grande número de histórias em potencial, de
possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes,
contornados e por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de
ouvir baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com
quem conversamos enriquecem nossa experiência. (p. 17)
A proximidade que se estabelece, pelo diálogo com os entrevistados, não
pode determinar a visão do geógrafo em tomar como correta apenas uma única
visão relatada. Para isso, o pesquisador nem sempre tem a obrigação de concordar
com as opiniões que são expostas na conversação. As reações em contrário àquilo
que é relatado podem direcionar uma nova perspectiva do diálogo e enriquecer a
100
entrevista com visões que não seriam postas em jogo, caso não tivessem sido
questionadas.
As experiências que os entrevistados viveram e vivem no lugar, mediante a
participação no coletivo, são carregadas de visões individuais que discordam ou
concordam com os outros que pertencem ao seu mundo vivido. De acordo com
Freitas (2002),
Para alguns historiadores tradicionais, os depoimentos orais são tidos como
fontes subjetivas por nutrirem-se da memória individual que, ás vezes pode
ser falível e fantasiosa. No entanto, em história oral o entrevistado é
considerado, ele próprio, um agente histórico. Nesse sentido, é importante
resgatar sua visão acerca de sua própria experiência e dos acontecimentos
sociais dos quais participou. Por outro lado, a subjetividade está presente
em todas as fontes históricas, sejam elas orais, escritas ou visuais. O que
interessa em História Oral é saber porque o entrevistado foi seletivo ou
omisso, pois esta seletividade tem o seu significado. Além disso, a noção de
que o documento escrito possui um valor hierárquico superior a outros tipos
de fontes vem sendo sistematicamente contestado [...] (p. 69)
A prática da História Oral converge para o encontro de histórias diversas, que
devem ser postas em análise e confronto com aquilo que é observado e descrito.
Desse modo, realizar entrevistas não é uma tarefa simples, que se resume às
respostas que são dadas à indagação dos pesquisadores. Aquele que entrevista age
e reage no cotidiano, adotando uma posição de determinação e ordenação do
diálogo por meio da visão pré-conceitual daquilo que se pretende dialogar. Pela
História Oral tem-se a oportunidade de questionar não somente a entrevista em si,
mas analisar a postura dos sujeitos que estão entre os instrumentos de registro das
falas.
O método da História Oral apenas inicia a produção de informações que
resvalam na oralidade, sendo que a entrevista é somente uma das técnicas nesse
processo, assim como a transcrição das falas, a interpretação, a análise da ação e
reação dos sujeitos da pesquisa, a leitura de informações escritas em comparação
aos relatos. De um modo geral, a História Oral e a etnografia apresentam
abordagens complexas que em nada se assemelham à simples semântica de seus
101
termos. São métodos importantes para a pesquisa em Geografia Cultural,
possibilitando o acesso ao sujeito pesquisado por vários ângulos de visão que
conduzem à compreensão do ser enquanto ser, sem recortá-lo pela visão do homem
como sendo político, econômico, consumista, religioso ou cultural.
2.2. Os modos de vida das famílias moradoras no Projeto de Assentamento
Divisa
Os estudos dos modos de vida, em Geografia, têm-se desenvolvido, mais
especificamente, nas últimas três décadas, com a evolução da vertente humanística
cultural. As pesquisas sobre modos de vida têm se preocupado com as práticas
cotidianas, representações, costumes e tradições.
Tentando buscar uma metodologia de investigação que nos permita analisar,
cientificamente, os modos de vida das famílias do Projeto de Assentamento Divisa,
apoiamo-nos em duas perspectivas sobre o estudo do tema. A primeira se refere à
abordagem que a Sociologia tem dado ao tema, cujas vertentes investigativas têm-
se aproximado, significativamente, da Geografia Cultural. A outra perspectiva se
refere à abordagem que a própria Geografia Cultural tem dado aos modos de vida,
por meio de trabalhos que enfocam o espaço local, desenvolvida a partir de teses e
dissertações que têm sido produzidas nesta vertente geográfica.
Na Sociologia, o tema modos de vida foi largamente discutido, na cada de
1980, como sendo um tema unificador dos estudos sobre as condições de vida das
classes trabalhadoras. As discussões sobre o tema, nessa década, devem-se às
contribuições importantes da sociologia francesa a respeito de estudos que tratam
das condições de vida das famílias operárias urbanas. A publicação do seau
102
Modes de Vie, em 1984, introduziu questionamentos importantes sobre as pesquisas
que enfatizavam as condições de vida das famílias de classes tabalhadoras.
Analisando os apontamentos do Réseau Modes de Vie (1984), Lobo (1992) afirma
que
Francis Godard aponta o dilema da sociologia dos modos de vida, dividida
entre uma abordagem da vida cotidiana próxima à antropologia cultural e os
conteúdos sócio-econômicos e sócio políticos do processo de produção dos
objetos urbanos”. (p. 8)
Para a Sociologia, é um momento de repensar os estudos que são realizados
em torno das condições de vida. São postas em questionamento as abordagens
políticas e institucionais que direcionavam o estudo sobre as condições de vida das
classes operárias, em contraposição às práticas cotidianas. Essa última vertente de
estudos, que aborda o cotidiano, tem direcionado as pesquisas que tratam dos
modos de vida, como nos aponta Lobo (1992): “A novidade que a tematização dos
modos de vida pode instaurar reside muito no que Godard identifica como uma
aproximação entre sociologia dos modos de vida e antropologia cultural.” (p. 11)
A reemergência dos estudos sobre modos de vida, com ênfase nos aspectos
culturais, surge como fruto de mudanças filosóficas próprias do contexto evolutivo da
Sociologia e também de outras áreas do saber das Ciências Humanas, como a
Geografia Humanística Cultural. Nessa perspectiva, Lobo (1992) entende que
[...] a temática dos modos de vida é vista como resultante do “declínio” do
estruturalismo e, será preciso acrescentar, do marxismo estruturalista. Por
outro lado ela se insere no contexto da atomização dos conceitos
totalizantes e dos sistemas abrangentes. (p. 11)
Compreendemos, a partir do trecho anterior, que é necessária a análise do
conteúdo dos modos de vida a partir de um conceito aberto, que não se enquadre
perfeitamente a um modelo padrão, mas que responda à realidade do contexto
espacial-temporal investigado.
Em trabalho realizado por Fernandes (1992) sobre modos de vida, em que
aborda a trajetória de duas famílias de classe trabalhadora, o caminho traçado
103
demonstra-nos que a família é a unidade principal de pesquisa. Analisando suas
trajetórias de vida, a autora entende que a categoria trabalho é o componente que
estrutura os modos de vida, pois ele sentido à existência, à história de luta pela
sobrevivência. No caso estudado, verificou-se que o fracasso do homem, como
“chefe provedor” da família, fez com que se criassem novas alternativas que
permitissem à família lutar pelo direito à vida. Desse modo, o trabalho tornou-se o
eixo principal que direcionou as ações dos membros familiares. Segundo Fernandes
(1992),
Significante vazio, o trabalho vai adquirindo inúmeros significados que vão
dando sentido à vida, ao mesmo tempo que a idealização maciça modela
imaginariamente um mundo absolutamente cindido: do lado dos que se
sacrificam e trabalham, alinham-se não os trabalhadores, mas os bons
pais, bons maridos, bons filhos, bons parentes, bons vizinhos e,
especialmente, as boas mulheres. Daí o confronto com aqueles que
estariam do outro lado, com os que, presumivelmente, não trabalham
porque não querem pois são os que “não querem saber quem inventou o
trabalho”, justificando a canalização de uma agressividade maciça a um
outro digno de uma suspeita que já não se restringe ao papel de trabalhador
pois desloca-se em cadeia ao de pai, e marido, de filho, de parente, de
vizinho, de mulher de família, como também, ao de cristão e cidadão. (p. 49)
Nesse sentido, o estudo dos modos de vida está centrado na condição que
estrutura a vida e significado às práticas sociais a partir de um contexto familiar,
que, no caso citado, se refere à reprodução por meio do trabalho. As representações
projetam a família para classificação daqueles com os quais ela se identifica, que
são os que trabalham e que também vêem, no trabalho, uma forma de adquirir
cidadania (FERNANDES, 1992), de existir para a sociedade.
O caminho traçado por Fernandes, ao abordar a família, sua trajetória de luta
pela sobrevivência, desembocando no trabalho como eixo estruturador de sentido à
vida, que está representado na consciência de mundo das famílias estudadas,
permite-nos compreender que
É nesta síntese que reside o novo na emergência do tema dos modos de
vida, especialmente nos estudos sobre classes trabalhadoras não
exclusivamente voltados para as práticas político-institucionais ou para as
condições e padrões de vida e indicadores sociais, mas enfatizando as
práticas cotidianas, as tradições, a diferenciação interna das classes
104
trabalhadoras, suas representações, tanto quanto “a internalização subjetiva
de suas condições materiais de existência. (LOPES apud LOBO, 1992, p.
44)”
A partir dessa abordagem, a temática sobre modos de vida, em Sociologia, se
desloca para o entendimento da visão do sujeito da pesquisa, com o objetivo de se
compreender como ele produz sua própria existência e o que determina suas formas
de agir diante daqueles com quem estabelece relações sociais. Nesse
direcionamento está imbricada a importância de se recorrer à família como unidade
essencial para pesquisa sobre modos de vida, bem como às estratégias que lhe
garantam a sobrevivência.
Alguns estudos em Geografia Cultural apresentam uma perspectiva que
também se relaciona às práticas cotidianas de grupos sociais, como eixos
estruturadores da produção do espaço. Ao realizar o estudo de uma comunidade
rural situada em Vazante-MG, Oliveira (2004) analisa os modos de vida a partir das
práticas que a comunidade realiza no grupo a que pertence, dando ênfase ao
trabalho desenvolvido na terra. Os sujeitos pesquisados são vistos como
camponeses e a sua relação com a terra é analisada por meio dos aspectos
relacionados aos instrumentos de trabalho e à solidariedade entre os vizinhos, que
lhes permite se reproduzir enquanto camponeses. Condição esta que lhes garante a
sobrevivência, a partir do trabalho na terra. Nessa perspectiva, os modos de vida
são analisados a partir das práticas que permitem ao grupo se manter na terra,
garantindo sua sobrevivência.
Nesse contexto, são apresentadas as estratégias que garantem a existência
de práticas reprodutivas. Essas estratégias compõem os modos de vida como ações
materializadas no cotidiano, que foram se modificando ao longo da história da
comunidade. Tratando-os como camponeses, o autor afirma que
O seu mundo vivido é então definido pela experiência com o meio natural,
pelas relações de proximidade e conhecimento que o homem dos Bagres
105
estabeleceu com a natureza. É o aprendizado proporcionado àquele homem
pela sua experiência e ligação direta com a natureza que o faz reconhecer
os seus sinais e compreender o seu próprio ciclo. Sendo o camponês o
sujeito ativo da construção do seu mundo vivido, ele estabelece no lugar as
relações necessárias à sua sobrevivência, definindo o seu modo de vida a
partir dos ciclos da natureza que definem, por sua vez, os períodos de
plantio e colheita. (p. 20.)
No entendimento de Oliveira (2004), as práticas cotidianas compõem os
modos de vida do grupo estudado e se referem a um conjunto de estratégias que
permitem a reprodução camponesa na comunidade, garantindo a sobrevivência das
famílias a partir do trabalho na terra. Sendo assim, os apontamentos e análises em
torno dos modos de vida estão centrados nas estratégias de sobrevivência das
famílias na terra, cujos conhecimentos e saberes camponeses, advindos de
gerações passadas, manifestam-se como práticas cotidianas antigas, que convivem
com práticas modernas.
No trabalho realizado por Andrade (2007), numa comunidade rural no
município de Uberlândia, os modos de vida são analisados sob a perspectiva dos
meios de vida e de trabalho que se manifestam no cotidiano, como práticas sociais,
e contribuem para reproduzir o lugar. Desse modo, no cotidiano se manifestam as
relações comunitárias, costumes e práticas culturais que dão sentido à existência
das famílias moradoras da comunidade Tenda do Moreno e que foram modificadas
com a sucessão dos tempos históricos. Segundo Andrade (2007),
[...] o conjunto das práticas sócio-culturais e religiosas que faziam parte dos
modos de vida e trabalho rurais, presentes na comunidade Tenda do
Moreno, ainda sustenta formas de pertencimento e identidade que são
manifestadas de maneira individual e coletiva entre os moradores locais,
principalmente nos eventos religiosos e comunitários, incluindo-se,
principalmente, a festa [...] os valores fixados pela coletividade humana são
atravessados pelas imposições da sucessão de tempos históricos, o que
exige a mudança nos modos de vida e trabalho. [...](p. 119)
Nesse sentido, os aspectos socioculturais são relevantes nos modos de vida,
sendo estes entendidos como as relações que criam e produzem os meios de vida.
Mas a produção de tais meios é possibilitada pelo conteúdo cultural de
106
conhecimentos e saberes ligados à terra e também pelas práticas de relações
sociais, sobretudo aquelas que envolvem o coletivo, como as práticas religiosas.
A partir das análises acerca do estudo dos modos de vida, pode-se
compreender que este não se resume ao estudo do trabalho ou da produção de
bens materiais. Relaciona-se, sobretudo, com as práticas manifestadas no cotidiano
e representações que dão sentido à vida e contribuem para reprodução do lugar.
Mas as estratégias contidas nas práticas cotidianas são construídas com o passar
dos tempos históricos, ou seja, possuem conteúdos elaborados em outros tempos e
também no presente, que se manifestam no espaço vivido e determinam a
reprodução da vida.
2.3. Trajetórias de vida e experiências desencontradas
As relações sociais estabelecidas no processo de sobrevivência, no
Assentamento Divisa, são práticas que se constroem no cotidiano e nos indicam a
existência de modos de vida divergentes. As famílias que ocuparam a Fazenda
Divisa vieram de municípios diferentes, com experiências de trabalho as mais
diversas. Foi no período de acampamento que os assentados tiveram a
oportunidade de conhecer uns aos outros, mesmo que por um período muito
pequeno, se comparado às suas trajetórias de vida. Poucos puderam colocar em
prática suas habilidades de trabalho na terra, que o espaço coletivo do
acampamento não lhes proporcionou oportunidade para trabalharem,
individualmente ou em conjunto.
Os esforços do coletivo se direcionavam para uma conquista comum, que
possibilitaria outra trajetória de vida e a produção de um novo cotidiano, marcado
107
pelas divergências entre modos de vida. Referimos aos esforços canalizados para a
conquista da terra, que possibilitaram a criação do assentamento e,
conseqüentemente, a obtenção das posses de lotes de terra, onde a família se faz
presente e, a partir dali, se organiza para garantir sua sobrevivência, seja
dependendo da produção do cultivo da terra ou do trabalho fora dela. Sendo assim,
em nossa pesquisa, o morador do assentamento tornou-se a referência para que
pudéssemos analisar os modos de vida.
Durante os 12 meses do ano de 2007, realizamos cerca de 14 visitas ao
assentamento, todas com duração de três ou mais dias, incluindo finais de semana.
Em algumas visitas permanecemos no assentamento por um período de 10 dias, o
que muito enriqueceu nossos trabalhos de observação e entrevistas.
O assentamento possui 27 lotes e 22 famílias moradoras. Cinco famílias
moram na cidade e, esporadicamente, visitam seus lotes no assentamento.
Inicialmente, a pretensão era de entrevistar as 27 famílias, mas devido aos
desencontros foi possível entrevistar apenas 25, sendo 22 moradoras e três que não
moram em seus lotes.
As informações gerais acerca do assentamento, no que diz respeito à
organização do movimento de luta pela terra, à resistência das famílias no
acampamento, aos fatos marcantes durante a trajetória de oito anos de existência
do P. A. Divisa, bem como à organização atual das famílias, foram obtidas por meio
de informantes-chave. Os assentados que contribuíram enormemente para obtenção
de tais informações foram o entrevistado 01, entrevistado 02, entrevistado 03 e
entrevistado 04, respectivamente. Estes foram escolhidos por serem considerados,
pelas famílias do assentamento, os principais articuladores da organização do
movimento de luta pela terra, os primeiros moradores a trazerem as famílias para os
108
lotes, bem como serem participantes ativos dos mutirões, festas e reuniões
coletivas. Dentre eles, o entrevistado 3 é o presidente de uma das associações dos
produtores rurais do assentamento.
Em nossa primeira visita, realizada no mês de janeiro de 2007, informamo-
nos a respeito da trajetória de luta pela terra. Tínhamos o objetivo de confirmar fatos
e dados conhecidos e obter novas informações a que não tivemos acesso,
durante os diálogos com o entrevistado 01.
Para analisar os modos de vida, decidimos iniciar pela trajetória das famílias
assentadas, tomando como referência as suas origens de município. As origens
referem-se ao município ao qual residiam antes de se tornarem assentadas. Não
nos preocupamos em conhecer a naturalidade dos membros de cada família, pois o
importante foi obter informações acerca de suas experiências de vida e a motivação
que as conduziram para a luta pela terra, ou seja, o que as motivou a lutar em busca
de terras, por meio da Reforma Agrária. Com tais informações foi possível
diagnosticar, inicialmente, que a origem das famílias indicava trajetórias e
experiências desencontradas espacialmente. Esses desencontros são manifestados
com a organização delas no assentamento, que se estrutura pela proximidade de
lotes entre famílias de um mesmo município de origem. O mapa 3 representa a
posse no assentamento e nos permite localizar as famílias em seus lotes e perceber
como foi configurada a posse das terras, apresentando claramente a divisão entre
famílias de municípios diferentes.
109
Mapa 3 Divisão em lotes do Projeto de Assentamento Divisa e localização das famílias oriundas de
um mesmo município.
110
Observando o mapa 3, pode-se perceber que, durante o parcelamento, houve
o agrupamento de famílias de um mesmo município em lotes próximos uns dos
outros. Dois fatores podem ser considerados essenciais para o agrupamento das
famílias: a proximidade, relacionada à origem de município, e as relações de
parentesco. De acordo com os informantes-chave, as famílias moradoras dos lotes
01, 02 e 03 possuem parentesco entre si. Os moradores dos lotes 18 e 22 são
parentes e os dos lotes 11 e 12 também possuem grau de parentesco. Os titulares
dos lotes 07 e 08 também são da mesma família.
Podemos afirmar que esses dois fatores apontam para o entendimento de
que o período de experiência que vivenciaram juntos no acampamento não produziu
relações de vizinhança que pudessem despertar, nas famílias assentadas, a
necessidade espontânea de aproximar-se daquelas com que mantiveram laços de
amizade, no período de luta pela terra, que a escolha dos lotes não foi por sorteio
ou por determinação do INCRA, mas pela decisão autônoma das famílias.
Desde o início da criação do Projeto de Assentamento, nem todos os
beneficiários moravam em seus lotes, com suas famílias. De acordo com um
relatório da associação do assentamento, enviada ao INCRA no mês de agosto de
2001, a ocupação dos lotes pelas famílias e sua permanência na terra encontravam-
se da seguinte maneira:
SITUAÇÃO DE RESIDÊNCIA DOS MORADORES DO P. A. DIVISA NO ANO DE 2001
MORA NO LOTE? Nº DO LOTE
Sim ou Não? Se não, por quê?
07 NÃO Mora e trabalha na cidade
20 NÃO Mora e Trabalha na cidade
23 SIM
15 NÃO Desistiu do Lote
111
continuação
06 SIM
22 SIM
18 SIM
25 NÃO Mora e Trabalha na cidade
16 NÃO Mora e trabalha na cidade
09 SIM Pres. Do STR Centralina mas ainda não trouxe
família
08 NÃO Pres. Do STR de Canápolis e Vereador
24 NÃO É presidente do SRT de Monte Alegre de Minas e
trabalha lá
11 SIM
02 SIM Mas ainda não trouxe família
14 SIM Mas ainda não trouxe família
13 NÃO Mora e trabalha na cidade
12 SIM Ainda não trouxe família
21 NÃO Mora e trabalha na cidade
10 SIM
03 SIM
17 NÃO Desistiu do lote
05 SIM
26 SIM
27 NÃO Mora e trabalha na cidade
04 SIM Ainda não trouxe a família
01 SIM
19 SIM
Quadro 1: Relação de lotes que possuíam moradores no ano de 2001.
Organizador: CRUZ, Nelson Ney Dantas, 2007.
A configuração de posse da terra e de moradia das famílias, no
assentamento, foi sendo alterada e novos sujeitos se incorporaram ao grupo de
moradores. Algumas famílias comercializaram as posses conquistadas, ficando
112
inadimplentes perante o Governo e o banco
17
que lhes concedeu financiamento para
construção de infra-estrutura no lote e para produção. Desse modo, um novo mapa
de posse e uso dos lotes foi constituído a partir da primeira venda de lote no
assentamento, ocorrida em 2004. Neste ano, o lote de número 26 foi comercializado
e, a partir desta data, oito lotes também foram vendidos. Essa prática promoveu um
novo reordenamento no mapa de organização da posse da terra, bem como no
número de moradores do assentamento.
Em 2007, o assentamento era composto por famílias assentadas no projeto
original, famílias compradoras que foram assentadas pelo INCRA e famílias
compradoras que ainda não tinham a posse regularizada. O órgão gestor tem
conhecimento acerca da comercialização de posses e, em diversos casos, tem
transferido o título de posse dos antigos beneficiários para os compradores. O
tamanho médio dos lotes pertencentes a cada família é de 31 Ha, resguardadas as
áreas de preservação permanente (APPs) e reservas legais (RL). No mapa 4
apresentamos, cartograficamente, como se configura a posse da terra, que
contrasta, significativamente, com aquela que existira no momento da criação do P.
A. Divisa. É importante observarmos a diferença entre os dois mapas para
compreender as mudanças ocorridas, sobretudo na aglomeração de famílias por
municípios de origem.
17
O Banco do Brasil é o responsável em repassar o financiamento para os assentados da reforma
agrária, tendo como mediador o INCRA, que os assentados não conseguiriam financiamento, visto
possuírem apenas um título de concessão de uso da terra, e não a sua propriedade.
113
Mapa 4 – Configuração da posse dos lotes no ano de 2007.
114
O mapa 4 retrata a situação em que encontramos o assentamento, no ano de
nossas pesquisas, possuindo uma nova configuração de posse e moradia nos lotes,
diferente daquela instaurada em 1999. Nos trabalhos de campo, consideramos a
realidade atual, pois o nos interessou entrevistar aqueles que abandonaram os
projetos de vida no assentamento anterior à data da pesquisa. O objetivo foi analisar
os modos de vida daqueles que permanecem residindo nos lotes ou que, morando
em outra localidade, possuem posse de lote e vínculos com as famílias moradoras
do P. A. Divisa.
Nessa realidade, encontrada durante o ano de 2007, houve a venda do lote
de número 17, que está registrada no mapa anterior. Com a vinda dos
compradores, o número daqueles que moram no assentamento, na atualidade, é de
44 adultos, 10 adolescentes e 5 crianças.
As famílias compradoras dos lotes e moradoras do assentamento passaram a
integrar as organizações coletivas que existiam no lugar. A associação dos
produtores do assentamento é um exemplo de coletividade à qual os compradores
se associaram. Nesse contexto, os esforços para se integrarem às relações de
vizinhança foram sendo construídos por meio de experiências de vida as mais
diversas, que estão desencontradas na história do próprio assentamento, entre
aqueles que integraram o movimento de luta pela terra, em 1998, e aqueles que,
posteriormente vieram para a terra, por meio de compra da posse.
Podemos afirmar que os desencontros entre as famílias relacionam-se a suas
origens de município, laços de parentesco e nas formas de acesso à terra. Esses
fatores nos indicam que o assentamento é composto por grupos heterogêneos, não
nos permitindo generalizá-los em uma categoria que os determine, enquanto grupo
homogêneo. Nem mesmo é possível homogeneizar grupos menores no
115
assentamento, que estejam enquadrados na condição de assentados ou
compradores, além de existir diferenças entre as famílias que possuem parentesco.
Para demonstrar as diversidades de experiências desencontradas no
assentamento, buscamos, junto às famílias, informações referentes às habilidades
relacionadas ao trabalho, seja ele vinculado à terra ou não, que exerciam antes de
conquistarem o lote. O interesse pela experiência de trabalho das falias é importante
para estabelecermos análises sobre os usos da terra no assentamento e
compreendermos como o conteúdo cultural de saberes ligados à terra tem sido
colocado em prática para garantir a fixação das famílias nos lotes e sua sobrevivência.
A partir de entrevistas, foi possível elaborar um quadro referente às
experiências de trabalho das famílias moradoras e não moradoras do assentamento,
tomando-se, como referência, o chefe-provedor da família. Classificamos como
moradoras aquelas que permanecem no assentamento por mais de sete dias
contínuos e que não declararam estar de rias ou passeio, durante esse período. O
chefe-provedor é aqui entendido como o sujeito da família responsável em organizar
a produção no lote, ser o principal trabalhador nas atividades de produção, bem
como o responsável em exercer outras atividades geradoras de renda, que
garantam a sobrevivência da família. Vejamos o quadro 2:
EXPERIÊNCIAS DE TRABALHO E COMPOSIÇÃO FAMILIAR
LOTE EXPERIÊNCIAS SITUAÇÃO MEMBROS
DA FAMÍLIA
IDADE ESCOLA-
RIDADE
01
Trabalhador rural; Empregado
urbano(Açougueiro)
Morador Mora com a
esposa e três
filhos
45 Ensino
Fundam.
Incompleto
02
Trabalhador rural;
Empregado urbano (Pedreiro);
Pequeno Arrendatário
Morador Morador único 65 Ensino
Básico
Incompleto
03
Trabalhador rural;
Pequeno Arrendatário
Morador Mora com a
esposa e uma
filha
42 Ensino
Médio
Completo
04
Trabalhador rural;
Pequeno Arrendatário
Morador Mora com a
esposa
05
Trabalhador rural; Morador Mora com a 68 Ensino
116
Pequeno Arrendatário
Comerciante
esposa Básico
Incompleto
06
Trabalhador rural; Comerciante Não
residente
-----------------------
-----------
38 Ensino
Médio
Completo
07
Trabalhador rural em lavoura e
pecuária;
Morador Mora com a
esposa e uma
filha
38 Ensino
Básico
Incompleto
08
Diretor de Sindicato
Diretor regional da FETAEMG no
Triângulo Mineiro
Não
residente
-----------------------
------------
47 Ensino
Fundam.
Incompleto
09
Trabalhador rural em lavoura;
Presidente de sindicato;
Pequeno Arrendatário
Morador Mora com a
esposa
46 Ensino
Médio
Incompleto
10
------ Não
residente
---------
11
Trabalhador rural em lavoura e
pecuária;
Operador de máquinas agrícolas
Morador Mora com a
esposa e dois
filhos
12
Trabalhadora rural em lavoura Moradora Moradora única 78
Analfabeta
13
Trabalhador no comércio urbano Morador Mora com a
esposa
41 Ensino
Fundam.
Completo
14
Raizeiro; Não
residente
---------- 66 Ensino
Básico
Incompleto
15
Gerente de fazenda pecuária Morador Mora com a
esposa
54 Ensino
Básico
Completo
16
Trabalhador rural;
Pequeno produtor em terras
próprias
Morador Mora com a
esposa e dois
filhos
40 Ensino
Fundam.
Incompleto
17
-------------- -------------- ------------
18
Trabalhador rural em lavoura
Diretor de Sindicato
Morador Mora com a
esposa
49 Ensino
Básico
Completo
19
Pequeno produtor em terras
próprias, que possuía em outro
Estado
Morador Mora com a
esposa e um filho
68 Ensino
Básico
Incompleto
20
Operador de máquinas agrícolas Morador Mora com a
esposa e dois
filhos
52 Ensino
Básico
Incompleto
21
Pequeno produtor em terras
próprias, que possuía em outra
região do Município
Morador Mora com a
esposa
42 Ensino
Fundam.
Incompleto
22
Trabalhador rural em lavouras Morador Morador único 33 Ensino
Fundam.
Completo
23
Trabalhador rural
Comerciante na cidade
Morador Mora com a
esposa, o irmão
e uma filha
52
Analfabeto
24
Pequeno arrendatário;
Presidente de sindicato
Não
residente
-----------------------
--------
47 Ensino
Fundam.
Completo
25
Trabalhador rural em lavoura
Empregado urbano
Morador Mora com a
esposa e um filho
28 Ensino
Médio
Completo
26
Empregado urbano Não
residente
-----------------------
--------
40 Superior
Completo
117
27
Trabalhador rural na lavoura e
pecuária
Morador Mora com a
esposa
45 Ensino
Básico
Completo
Quadro 2 – Experiências de trabalho dos chefes provedores das famílias. Organizador: CRUZ, Nelson
Ney Dantas, 2007.
A partir da criação do assentamento, algumas famílias continuaram
reproduzindo as experiências de trabalho nos lotes conquistados, enquanto outras
continuaram trabalhando em empregos na cidade e até mesmo residindo no espaço
urbano, onde possuíam casas.
Em nosso primeiro contato com as famílias moradoras do assentamento, foi
possível coletar informações a respeito de suas motivações em vir para o
assentamento, bem como a respeito dos caminhos percorridos após a conquista do
lote, para que pudessem nele permanecer. Tais informações foram obtidas por meio
de entrevistas que o foram transcritas na íntegra, pois no primeiro contato com os
entrevistados não consideramos interessante registrar suas falas por meio de
aparelho gravador. Tivemos o cuidado de não deixar constrangidas as pessoas que
estavam nos recebendo pela primeira vez, para conversar sobre suas experiências.
Depois que se acostumaram com nossa presença no assentamento, foi possível
registrar suas histórias por meio de gravações, que as relações de proximidade
estavam fortalecidas.
No primeiro momento, utilizamos a caderneta para realizar anotações sobre
os diálogos. Sendo assim, as respostas dadas aos nossos questionamentos foram
sintetizadas em frases curtas e aqui serão explicitadas textualmente, acompanhadas
de análises e interpretações.
As motivações em se adquirir um lote de terras são diversas e demonstram-
nos os desencontros relacionados às experiências de vida das famílias assentadas,
antes de virem para o assentamento, e também divergências quanto às estratégias
de garantir a posse do lote.
118
Numa entrevista com o entrevistado 05, ele nos expôs que a necessidade de
se integrar ao movimento de luta pela terra relacionava-se à sua condição de
desempregado. Ele nos falou que veio para o acampamento em 1998, sendo
apoiado por sua esposa, que exercia a função de secretária no Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Ituiutaba-MG. Ele tinha receios de entrar na fazenda com
os outros companheiros, por achar que seria incorreto realizar tal ato. Mas resolveu
ir em frente, pois o “estar” desempregado motivou-o na busca pela terra, e para
conquistar o lote seria necessário participar do acampamento.
Logo que ele nos informou sobre sua condição de desempregado, tivemos a
idéia de que sua intenção era adquirir terra para trabalhar, que alegava ter vindo
para o assentamento por estar sem emprego, na cidade em que sempre morou.
Durante a entrevista ele nos relatou que, a partir da conquista do lote, ele
voltou para a cidade, por ter conseguido emprego no ramo comercial, em que
sempre trabalhou e no qual possuía larga experiência, exercendo a função de
vendedor de peças automotivas. Morou na cidade entre os anos de 1998 e 2004,
enquanto esteve empregado.
A partir da exigência do Governo de que o beneficiário do lote deve
permanecer morando no assentamento, com sua família, para garantir a posse da
terra, o entrevistado 05 e sua esposa iam para o assentamento nos finais de
semana. Em alguns dias de reuniões com o INCRA, a sua esposa permanecia no
assentamento durante os dias que fossem necessários, inclusive nos dias que o
fiscal do INCRA iria visitar o lote, para certificar que a família estava residindo na
terra conquistada.
Na fala do entrevistado 05, ele demonstrou não possuir experiência de
trabalho na terra, quando nos relata que o seu contato com o meio rural ocorria
119
durante visitas que realizava em chácaras de propriedade de parentes, onde
permanecia alguns dias com sua família, em busca de lazer e descanso.
Sendo assim, podemos compreender que a condição de desempregado não
se relaciona à motivação em trabalhar na terra, mas sim à disponibilidade de tempo
que tinha para permanecer acampado. Desse modo, analisando o seu interesse em
possuir terra para produzir, nela trabalhar e garantir a reprodução familiar, bem
como sua experiência de trabalho e de relações com o meio rural, percebemos que
esse beneficiário carece de conhecimentos e saberes ligados à produção agrícola,
bem como não possui relação de pertencimento ao meio rural, sendo esses fatores
que condicionaram a sua permanência na cidade, no período de 1998 a 2004. A
partir de 2004, ficando impossibilitado de continuar trabalhando como vendedor de
peças na cidade, devido a problemas de saúde, o entrevistado 05 decidiu morar no
assentamento com sua esposa, deixando sua filha solteira na cidade, morando com
a avó, para concluir os estudos.
No lote vizinho ao lote do entrevistado 05, encontra-se o lote de propriedade
do entrevistado 06, que possui uma trajetória de vida e experiência de trabalho
diferente do entrevistado 05. Na época em que conversamos com o entrevistado 05,
em fevereiro de 2007, o seu lote estava à venda, que ele pretendia mudar para a
cidade, a fim de cuidar de problemas relacionados à sua saúde, que o
impossibilitavam de trabalhar no lote.
O entrevistado 06 morava em uma fazenda no município de Ituiutaba-MG,
antes de conquistar o lote no assentamento. Nessa fazenda ele era empregado e
trabalhava com pecuária leiteira, além de plantar lavoura de milho e arroz em terras
que arrendava da própria fazenda na qual era empregado. Em sua fala ele deixou
claro que, apesar da experiência com a pecuária, o seu “xodó” de trabalhar na terra
120
é plantar lavoura. Para produzir na terra ele recorria a empréstimos junto ao Banco
do Brasil, mas detestava quando os técnicos do banco opinavam a respeito de como
a plantação deveria ser realizada. Na opinião do entrevistado 06, o modo de plantar
que os técnicos impunham não era correto. Sendo assim, a sua experiência de
trabalho na terra era mais importante que a assistência técnica e sempre acabava
plantando suas lavouras do seu modo, de acordo com o seu saber.
O entrevistado 06 não participou do movimento de luta pela terra, e sua vinda
para o assentamento foi possível pela desistência de um beneficiário e também
pelos contatos que matinha com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ituiutaba-
MG. Em sua fala, percebemos que a motivação em vir para o assentamento foi de
possuir terras próprias para produzir e, a partir delas, garantir sua sobrevivência,
tornando-se patrão de si mesmo, pois durante toda sua vida nunca havia possuído
propriedade rural.
Ao tomar posse do lote, ele trouxe sua esposa para morar com ele, sendo que
seu filho único recusou-se a morar no assentamento e se mudou para a cidade de
Ituiutaba-MG. Sendo assim, a principal mão-de-obra para trabalhar a terra era a dele
mesmo. Relatou-nos que trabalhava muito quando veio para o assentamento, pois
sentia muita vontade de cultivar suas terras e tinha muito prazer nisso. Mas ele
alega que o tipo de trabalho provocou-lhe doença, deixando-o impossibilitado de
executar o mesmo tempo de trabalho que realizara quando conquistou o lote.
Diante desta condição de impossibilidade para o trabalho na terra e também
da dificuldade em se deslocar para a cidade a fim de se tratar, o entrevistado 06
comercializou a posse conquistada em Setembro de 2007 e se mudou, com a
esposa, para a cidade de Ituiutaba-MG.
121
Outras experiências de vida também se fazem presentes no grupo de
famílias assentadas oriundas de Ituiutaba-MG, de lotes vizinhos ao do entrevistado
05 e do entrevistado 06. Tomemos como exemplo a experiência de trabalho do
entrevistado 07. Ele mora sozinho no lote, que seu cônjuge reside na cidade por
motivo de doença, pois com freqüência depende de atendimento médico-hospitalar.
O entrevistado 07 nos relatou que sua experiência de trabalho, pouco antes
de se tornar assentada, era de lavadeira. Em épocas mais antigas, quando era mais
jovem e possuía maior vigor físico, ela costumava trabalhar como bóia-fria em
diversas lavouras dos municípios da região do Triângulo Mineiro. A motivação em
possuir terra foi sustentada pela necessidade de ter um “cantinho” para descansar,
cultivar algumas plantas e criar alguns animais.
A sua relação com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ituiutaba-MG, em
que era suplente de um cargo que não soube explicar qual era, possibilitou-lhe o
contato com o movimento de luta pela terra e sua vinda para o assentamento, desde
a época do acampamento. Segundo ela, o seu papel no acampamento era o de
cozinheira e, por ser mais idosa que os outros participantes do movimento, passou a
ser conhecida como “vó”.
Em sua fala, podemos interpretar que a perspectiva de produzir para geração
de renda e sobrevivência o é a motivação principal ou mesmo a proposta central
de possuir terras. Utilizando-se de sua aposentadoria, a “vó” costuma pagar algumas
pessoas para realizar os trabalhos que ela o consegue, que as limitações do
físico, em função de sua idade, a impedem de realizar esforços maiores. Sendo
assim, afirmou-nos, com saudosismo, que gostaria de ter quarenta anos de idade
para poder esforçar-se mais intensamente no trabalho na terra.
122
Ao lado de sua propriedade, mora o seu neto, entrevistado 08, que a ajuda
nos trabalhos do lote e também é beneficiário da Reforma Agrária. O entrevistado 08
morava em Ituiutaba-MG, antes de vir para o assentamento com sua família,
composta por dois filhos pequenos e sua esposa. Como nos relatou, a vinda para o
assentamento foi a possibilidade de se tornar patrão de si mesmo, pois não gosta de
trabalhar de empregado para ninguém. Sua experiência de trabalho foi a de
vaqueiro, bóia-fria em lavouras de abacaxi, mecânico de automóveis, tratorista,
marceneiro e borracheiro. Essas profissões foram sendo exercidas alternadamente,
de acordo com as circunstâncias vivenciadas ao longo de sua experiência de vida.
Para ele, a experiência de morar no assentamento, principalmente nos
primeiros anos após a conquista da terra, foi bastante difícil, que sentiu falta das
“regalias” que possuía na cidade, como o uso da televisão e demais comodidades
que sua casa possuía. No assentamento, não havia energia elétrica nas casas dos
lotes e os aparelhos eletro-eletrônicos não puderam ser utilizados por um bom
tempo, pois a instalação de energia elétrica ocorreu no mês de dezembro do ano de
2005, seis anos após a criação do P. A. Divisa.
Semelhante à experiência do entrevistado 08, tem-se a experiência do
entrevistado 09. Durante nossos diálogos, ele afirmou que decidiu lutar pela terra
para que fosse patrão de si mesmo. Porém, as experiências de trabalho
demonstram que as suas estratégias de geração de renda e garantia de
sobrevivência dependiam das habilidades como bóia-fria, empregado nas lavouras
de cana, algodão e feijão, diferenciando-se da trajetória do entrevistado 08.
Antes de vir para o assentamento, o entrevistado 09 era o diretor do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de um dos municípios de origem das famílias assentadas
e articulador do movimento de luta, juntamente com os demais dirigentes dos
123
sindicatos. Apesar de ter contribuído intelectualmente, com outros grupos de luta,
para obtenção de terra na região, tinha receios em participar do acampamento. A
violência que existia na repressão de movimentos sociais deixava-o preocupado.
Mas a dificuldade em conseguir emprego como bóia-fria, devido ao aumento da
utilização de máquinas nas lavouras, impulsionou-o a conquistar a terra, para
construir outra possibilidade de geração de renda.
Mas, em sua visão, seria arriscado tornar-se um beneficiário de terras, pois as
dificuldades em se manter no lote poderiam criar uma condição de vida pior do que
aquela que levava na cidade. Apesar das incertezas e preocupações, resolveu
arriscar e ingressou no grupo que participou da primeira ocupação da fazenda.
Quando foram retirados, pela primeira vez, da fazenda, por pressão da Polícia
Militar, o entrevistado 09 pensou em desistir. Porém, achou que seria vergonhoso
voltar para sua cidade sem nenhuma conquista, que muitas pessoas o criticavam
pela atitude de participar da luta pela terra, dizendo que aquilo não ia dar em nada.
Após a criação do assentamento, trouxe sua esposa e um dos filhos. Houve
resistência por parte da esposa em vir morar no assentamento pois, desconhecendo
o processo de Reforma Agrária, ela acreditava que o movimento havia “roubado
terras”. Mas, ao tomar conhecimento dos trâmites legais, a partir de conversas com
o esposo e demais pessoas do assentamento, ficou mais tranqüila e veio morar com
seu esposo, sem o receio de que estaria “roubando terras”.
Esse mesmo receio também se manifestou na fala de outro assentado,
quando ele nos relatou, brevemente, sua experiência de vida em Centralina-MG e
suas experiências de trabalho. O entrevistado 10 trabalhava como bóia-fria e
arrendatário, em seu município de moradia. Residindo na cidade, sua fonte de renda
advinha de trabalhos como empregado nas lavouras de algodão, tomate e cana.
124
Como arrendatário de pequenas glebas de terra, costumava cultivar arroz e
hortaliças.
A possibilidade de adquirir terras próprias para produzir e dela tirar o sustento
foi anunciada pelo Sindicato, no qual era suplente de um cargo que não soube
especificar. Quando resolveu vir para o assentamento, foi criticado pela própria
família, inclusive pela esposa que, receosa com o processo de aquisição de terras,
desejou que o marido não participasse do movimento. Mesmo diante das oposições
e críticas, o entrevistado 10 resolveu participar do grupo que ocupou a fazenda.
Ele imaginava que as terras que iriam receber, denominadas improdutivas,
eram terras cheias de “mato”, que deveriam ser desbravadas pelo desmatamento.
Terras que não haviam sido utilizadas para plantio ou pecuária. Essa sua
representação foi modificada quando chegaram à fazenda Divisa. Segundo ele, o
sonho de ter a terra não correspondia ao que pensava. Pensou em plantar diversas
lavouras, tendo como atividade principal a produção de hortaliça. Mas, depois que
recebeu a posse da terra, percebeu que havia diversos empecilhos que o impediam
de concretizar o seu sonho.
A sua principal motivação em possuir terra era de que as suas habilidades em
plantar e colher poderiam ser colocadas em prática, na condição de proprietário de
terra, e não de empregado ou arrendatário. Um fator que ele considerava importante
para o trabalho é que possuiria mão-de-obra suficiente a partir dos membros de sua
família.
Apesar de sua esposa ter-se preocupado com sua participação na luta pela
terra, ela resolveu vir morar e trabalhar no assentamento, juntamente com dois
filhos, com idades de 23 e 27 anos, e uma filha, de 21 anos. Atualmente, apenas a
filha e a esposa moram e trabalham no lote com o entrevistado 10, pois os dois
125
filhos se mudaram para cidade de Centralina-MG, em busca de novas perspectivas
de trabalho.
No lote vizinho ao de propriedade do entrevistado 10, localiza-se o lote do
entrevistado 11, que reside na cidade e é diretor do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais do município de Monte Alegre. Quando se criou o assentamento, o
entrevistado 11 não trouxe a sua família para ali residir; apenas um dos filhos
morava em seu lote e ali trabalhava. Mas a possibilidade de trabalhar na cidade
como técnico agrícola foi mais sedutora para o filho, que abandonou o lote e voltou
para Monte Alegre.
O entrevistado 11 visita o assentamento esporadicamente, mas pretende ir
morar, definitivamente, em seu lote, pois em sua fala ele deixou claro que possui
vocação para o trabalho na terra e esta condição o atrai para o meio rural. Segundo
ele, morou em fazenda e trabalhou com pecuária leiteira e plantação de abacaxi.
Atualmente, possui chácara próxima à cidade de Monte Alegre, onde cultiva
lavouras de abacaxi.
O lote também é utilizado para produzir leite. Como não mora no lote, teve
que trazer outro filho para morar no assentamento. Sendo assim, comprou o lote
vizinho para a família de seu filho, de modo que esta ficou encarregada de trabalhar
nos dois lotes.
O entrevistado 11 é, atualmente, o único beneficiário de terras oriundo de
Monte Alegre que participou do projeto original de criação do assentamento. Todos
os outros beneficiários do mesmo município de origem dele comercializaram suas
posses.
No grupo de lotes pertencentes às famílias oriundas de Canápolis-MG,
apenas uma família deixou o assentamento e comercializou a posse. Mas, apesar
126
de se manterem na terra, os desencontros também se fazem presentes nas
experiências de vida das famílias.
Tomando-se como referência dois assentados que possuem grau de
parentesco, foi possível perceber que as diferenças também existem entre os
próprios grupos familiares. O entrevistado 03 é filho do entrevistado 01, que tem 65
anos. Os dois integraram-se ao movimento de luta pelo lote motivados pela
esperança de se tornarem proprietários de terra, de modo que deixassem a
condição de pequenos arrendatários. Suas experiências de trabalho estão
intimamente ligadas pois, segundo o entrevistado 03, ele sempre trabalhou como
arrendatário de terras, formando lavouras de abacaxi, no município de Canápolis,
além de ser produtor de pimentas e hortaliças e realizar trabalhos como bóia-fria nas
lavouras de abacaxi. O seu pai também plantava abacaxi em terras alheias, que se
localizavam na mesma propriedade arrendada pelo seu filho. A motivação em
possuir terras, para os dois assentados, está relacionada à possibilidade de se
reproduzirem socialmente, sem o impedimento de não serem donos do próprio
“chão”. Refere-se à possibilidade de adquirir autonomia, enquanto produtor rural.
É o anúncio de uma nova vida para a família, sendo a terra uma conquista
que sempre sonharam, mas nunca tiveram a oportunidade de possuir. Mas a
trajetória dos dois apresenta diferenças importantes, pois apenas um deles
conseguiu trazer a família para morar no assentamento. O entrevistado 01 o
conseguiu trazer mulher e filhos, que estes não se interessaram em mudar para o
assentamento. Alguns anos antes de o entrevistado 01 se tornar assentado da
Reforma Agrária, sua família morava na cidade de Uberlândia-MG, enquanto ele
residia na cidade de Canápolis, com sua filha, que atualmente é beneficiária do lote
nº 01.
127
O entrevistado 03 conseguiu trazer a esposa e suas duas filhas, apesar das
preocupações de sua mulher em relação ao assentamento, pois ela tinha receios
quanto à legitimidade da terra conquistada por seu esposo. Além das críticas da
própria esposa, o entrevistado 03 teve que enfrentar críticas advindas de pessoas
amigas da família, que moravam na cidade de Canápolis, principalmente daquelas
que eram mais próximas de sua família, por participarem juntas de trabalhos
religiosos, na Igreja Católica da cidade.
No grupo de famílias assentadas do município de Canápolis, o entrevistado
12, com 71 anos de idade, também almejou ter terras próprias para cultivar. Ele
morava na cidade e trabalhava como comerciante e pequeno produtor de abacaxi e
arroz, em terras arrendadas. A terra que possui hoje é a realização de um sonho que
sempre desejou concretizar. Mas alguns problemas de saúde têm impossibilitado o
entrevistado 12 de trabalhar na terra. Sendo assim, é a sua aposentadoria e a da
esposa que têm permitido aos dois permanecerem residindo no assentamento.
As experiências de trabalho e trajetórias das famílias assentadas convergem
para uma experiência comum, que foi a luta pela terra. Porém, os desencontros
ficam evidentes quando analisamos as experiências das famílias, antes de virem
para o assentamento e depois de conquistarem a terra. O objetivo foi refletir acerca
de algumas experiências de vida para percebermos, com maior pontualidade, a
diversidade das experiências que nos indicam a existência de modos de vida
divergentes.
Tendo-se consciência de que nem todos os moradores do assentamento
participaram da luta pela terra, torna-se importante acrescentarmos, às nossas
análises, a trajetória daqueles que não participaram do movimento, no ano de 1998.
Referimo-nos aos compradores de posses que vieram para o assentamento, a partir
128
do ano de 2004. Dentre nove compradores, elegemos quatro para expormos e
analisarmos suas experiências.
O entrevistado 13 reside no lote com sua esposa, entrevistado 14. Antes de
virem para o assentamento, eles moravam no município de São Simão-GO,
trabalhando e residindo em uma fazenda de pecuária de corte. A sua experiência de
trabalho sempre esteve ligada a fazendas, pois, como ele nos relatou, sua carteira
de trabalho foi assinada durante vinte e cinco anos apenas em três fazendas, onde
exerceu o cargo de gerente.
De acordo com sua fala, a vinda para o assentamento foi motivada pela
oportunidade de comprar terras a preço baixo, que, em sua região de origem, não
conseguiria comprar a mesma extensão de terras de propriedades equivalentes ao
tamanho dos lotes do assentamento Divisa. Sua preocupação, ao comprar lotes da
Reforma Agrária, era de que a terra poderia estar irregular quanto à documentação
de título de posse ou de propriedade. Por sorte, comprou o lote com a cerca de
divisa alterada, o que lhe causou transtorno e desgaste com o vizinho, também
comprador de lote.
Apesar dos inconvenientes gerados pela irregularidade da cerca de divisa, o
entrevistado 13 nos afirmou que concretizou um dos sonhos. A sua preocupação em
possuir terra também se relacionava às dificuldades em conseguir trabalho.
Segundo ele, sua idade, 54 anos, é um empecilho para ser contratado como gerente
de fazenda. Sendo assim, possuir terra é uma condição importante para reproduzir a
sobrevivência, visto que a condição de proprietário rural lhe permite trabalhar a terra
do seu jeito.
Outro comprador de lote, que viu no assentamento a possibilidade de comprar
terras baratas, foi o entrevistado 15. Pequeno produtor rural, ele era proprietário de
129
um sítio no município de Gouvelândia-GO. Devido ao avanço da plantação de cana-
de-açúcar nas terras do município, a produção de leite e sua comercialização
estavam sendo comprometidas. Desse modo, a alternativa foi vender o seu sítio,
que tinha aproximadamente 10 hectares de extensão, e comprar outra propriedade
rural, para continuar se reproduzindo a partir da produção do leite.
Objetivando possuir maior extensão de terras, resolveu comprar uma
propriedade que possuísse valor inferior em relação àquela em que morava, em
Goiás. O seu contato com um dos assentados, morador do P. A. Divisa, trouxe-o
para o assentamento. Interessando-se pela organização produtiva do leite, que na
Divisa já existia, e também pelo preço da terra, adquiriu o lote e trouxe sua esposa e
o filho, que o ajudava na lida de trabalho com o gado.
O entrevistado 16 também comprou a posse da terra a partir da venda de um
sítio que possuía, no município de Ituiutaba, próximo à cidade. Devido a problemas
relacionados à saúde, o entrevistado 16 teve que vender sua propriedade rural para
poder se manter enquanto cuidava da saúde, que ele era o responsável em
trabalhar no sítio e gerar renda familiar.
Depois que resolveu os problemas de saúde, decidiu empregar parte do seu
capital na compra de terras. A partir da indicação do fazendeiro vizinho ao
assentamento, o entrevistado 16 teve a oportunidade de conhecer alguns lotes que
estavam à venda no assentamento Divisa. Depois de avaliar preços, qualidade da
terra e infra-estrutura, escolheu o lote que possuía os critérios que estabelecera. A
produção de leite e venda de queijos na cidade era a atividade que exercia no sítio
em que morava, anteriormente. Sendo assim, a partir da infra-estrutura que
estava construída no lote, como currais, cercas de divisa e uma casa, ele decidiu
130
continuar com a atividade de produção que sempre exercera, na antiga propriedade
rural.
A possibilidade de comprar terras baratas é um dos atrativos sedutores para
famílias que desejam possuir uma propriedade rural. Seduzido pelo preço da terra, o
entrevistado 17 decidiu adquirir sua propriedade rural no assentamento. Ele morava
no município de Canápolis e era trabalhador empregado da usina de cana-de-açúcar
denominada Triálcool. Trabalhava como cortador de cana, além de possuir
experiências como bóia-fria, nas lavouras de abacaxi do município. Sempre desejou
possuir uma propriedade rural e, quando veio para o assentamento, a sua decisão
foi de trabalhar com produção de leite, pois sua experiência de vaqueiro em
fazendas o havia motivado a trabalhar com gado.
Trouxe a mulher e o filho único para morarem no assentamento, mas o filho
decidiu morar na cidade, porque almeja ter uma profissão que lhe possibilite ser um
empregado no meio urbano. Sendo assim, o entrevistado 17 se utiliza da mão-de-
obra da esposa para auxiliá-lo nas tarefas de lida com o gado.
A análise das trajetórias de vida e as experiências das famílias do
assentamento demonstra-nos que existem dois grupos de famílias que se
diferenciam quanto à forma de acesso aos lotes do assentamento. No primeiro
grupo, estão as famílias que participaram da luta pela terra e foram cadastradas pelo
INCRA, a partir da criação do assentamento. No segundo grupo, estão os
compradores de lotes, sendo alguns cadastrados e outros com lotes pendentes de
regularização perante o INCRA.
A organização da posse da terra, a partir da criação do assentamento, é a
clara expressão de que existem diferenças entre os próprios assentados. As
principais se referem às afinidades de parentesco e relações de vizinhanças, que
131
foram construídas em tempos passados, durante suas trajetórias e experiências de
vida, a partir dos municípios de origem.
Porém, os quatro grupos que se formaram no assentamento (Mapa I), a partir
de sua criação, bem como os dois grupos que se diferenciam pela forma de acesso
à terra, e também os grupos que mantêm relação de parentesco não representam o
esboço final dos desencontros entre as trajetórias e experiências de vida das
famílias passíveis de classificação. A incorporação de novos moradores que
compraram direitos de posse promoveu o desmantelamento da organização
estrutural estabelecida com a divisão de lotes, criada em 1999. Sendo assim, as
modificações geradas, pela vinda de novas famílias, dizem respeito à ampliação das
heterogeneidades relacionadas às experiências de trabalho e à perspectiva e
motivação em se possuir terras.
As experiências de trabalho vivenciadas pelas famílias, em seus municípios
de origem, demonstram-nos que nem todas garantiam sua sobrevivência a partir do
emprego no espaço rural, e que, para alguns, as relações com a propriedade no
campo eram estritamente voltadas para o lazer e o descanso. Outros se
reproduziam a partir do trabalho exercido em terras arrendadas e em determinados
períodos do ano trabalhavam como bóias-frias, em lavouras da região. Outras
famílias viviam a experiência da inconstância de ter ou não trabalho e, para garantir
a sobrevivência, exerciam diversas atividades, como trabalhadores empregados no
espaço rural e urbano. Algumas famílias compradoras de lote tiveram a
oportunidade de continuar se reproduzindo a partir do trabalho na terra, possuindo
uma experiência diferente das demais famílias que foram assentadas, bem como
daquelas que, por meio da compra de lote, adquiriram a primeira propriedade rural.
132
Sendo assim, nas representações de parte dos assentados, o lote do
assentamento foi o meio para se tornarem patrões de si mesmos, que nunca
tiveram a oportunidade de ter uma propriedade no campo ou algum empreendimento
que lhes conferisse o título de patrão. Para outros, as suas experiências de vida, no
espaço urbano, conduziram-nos à possibilidade do uso relacionado ao lazer e ao
descanso, pois era desse modo que se relacionavam com o meio rural. Na
concepção de outras famílias, o desejo de possuir terra relacionava-se à
possibilidade de adquirir autonomia quanto ao cultivo agrícola, prosperidade e
estabilidade para a sobrevivência familiar. A possibilidade de comprar terras de
baixo valor atraiu os compradores de lotes, que trouxeram suas famílias para
continuar se reproduzindo a partir da terra, como o faziam em seus municípios de
origem.
Portanto, no assentamento, estão materializadas experiências e trajetórias de
vida as mais diversas, constituídas por estratégias de sobrevivência e de garantia de
reprodução familiar desencontradas no espaço e no tempo, indicando-nos que a
reprodução da vida no assentamento pode ser conduzida por modos de vida
divergentes.
2.4. Os usos da terra e as estratégias de geração de renda
Compreendendo que o grupo de assentados não apresenta um corpo unívoco
de idéias e de formas de agir, quanto à reprodução da vida, torna-se necessário
analisar as estratégias que foram adotadas pelas famílias, para que estas pudessem
garantir a posse da terra, retirando ou não o sustento a partir dela.
133
Nem todos os assentados utilizaram seus lotes para gerar renda. Após a
conquista da terra, alguns continuaram trabalhando em seus municípios de origem,
para sustentar a família. A falta de recursos financeiros para investimento no lote foi
um dos fatores que contribuiram para que muitas famílias não permanecessem
morando no assentamento, nos primeiros anos. Sendo assim, a estratégia foi
recorrer ao trabalho na cidade, manter a família e deixar o lote sem uso
econômico. Como exemplo, podemos citar o assentado entrevistado 05, que morou
na cidade com sua família de 1998 a 2004 e ali se manteve, trabalhando como
vendedor de peças automotivas. O entrevistado 18 é outro exemplo que podemos
mencionar. Desde a criação do assentamento, ele sempre morou na cidade, sendo
que em Canápolis era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e vereador.
Depois que os dois mandatos se encerraram ele se mudou para Uberaba-MG, onde
trabalha como Diretor regional da FETAEMG (Federação dos Trabalhadores na
Agricultura do Estado de Minas Gerais).
Aqueles que decidiram morar no assentamento, com ou sem família,
organizaram-se em grupos e alugaram as terras para fazendeiros vizinhos. Os lotes
ainda não estavam cercados e a extensão de terras alugadas para um mesmo
fazendeiro compreendia mais de um lote. O preço pago pelo uso das terras era
calculado por quantidade de cabeça de gado. Também participavam dos grupos
aqueles assentados que moravam na cidade e trabalhavam. Para estes, o lote
não se tornou espaço para moradia e reprodução familiar, mas a oportunidade de
complementar os ganhos salariais. Aqueles que permaneceram morando no
assentamento e gerando renda a partir do aluguel das terras arriscaram-se em
outras atividades econômicas, com os poucos recursos que possuíam.
134
O grupo de assentados oriundos de Canápolis-MG resolveu investir na
produção de abacaxi, pois era nessa atividade agrícola que trabalhavam, em seu
município, seja como produtores arrendatários ou trabalhadores rurais. Segundo
eles, a terra era fértil para a lavoura de abacaxi e certamente teriam sucesso com
essa produção. O otimismo do grupo de assentados oriundos de Canápolis motivou
outras famílias assentadas a cultivarem o abacaxi em seus lotes, mesmo que elas
não possuíssem experiência em cultivar essa lavoura.
Os arrendatários de Canápolis possuíam roças de abacaxi que não eram
mais cultivadas, porém forneciam mudas para a formação de novas lavouras. Desse
modo, para cultivar o abacaxi em seus lotes, tiveram que buscar as mudas nessas
lavouras que haviam cultivado, em seus municípios. Buscaram mudas suficientes
para que outros assentados, principalmente os oriundos de Ituiutaba, pudessem
formar as lavouras de abacaxi.
Mas nem todos os assentados de Canápolis resolveram apostar na produção.
Apenas cinco proprietários de lotes 02, 03, 04, 05 e 06 associaram-se na produção.
Cada assentado plantou em seu lote, mas o trabalho foi realizado de forma coletiva,
por meio de trocas de serviço. De acordo com os informantes-chave, cada
assentado trabalhou nas lavouras do vizinho, de modo que recebesse em troca a
mão-de-obra quando precisasse.
Esta parceria ocorreu, principalmente, no momento de plantio, quando este
exige maior tempo de trabalho. Alguns dos plantadores de abacaxi também
contribuíram para o plantio realizado por três assentados oriundos de Ituiutaba, que
resolveram formar as lavouras em seus lotes.
Para os plantadores de Canápolis, a produção de abacaxi no assentamento
representou a oportunidade de continuar desenvolvendo a cultura agrícola na qual
135
possuíam experiência de trabalho. Para os outros que apostaram na cultura de
abacaxi, sem possuir experiência de trabalho nesse ramo de atividade, a lavoura
significou a tentativa de uma nova possibilidade de geração de renda, inspirada
naqueles que possuíam habilidade em trabalhar com o abacaxi e que
demonstraram, para os outros assentados, que esse ramo da agricultura seria a
melhor opção de geração de renda, no assentamento.
Os assentados oriundos de Monte Alegre, que possuíam experiência com a
produção de abacaxi, também resolveram dar continuidade ao exercício das
habilidades relacionadas ao cultivo. Suas lavouras também foram formadas a partir
de mudas que possuíam em antigas roças que cultivavam, em seus municípios.
Para realizar o plantio das lavouras, alguns assentados buscaram mão-de-obra em
Monte Alegre. Trouxeram pessoas da própria família, que lá trabalhavam como
bóias-frias nas roças de abacaxi, para realizarem mutirões de plantio, no
assentamento. Dentre os oriundos de Monte Alegre, apenas os assentados dos lotes
24 e 25 produziram abacaxi.
Outro grupo coletivo foi organizado, no assentamento, a partir das famílias
oriundas do município de Centralina-MG. Os assentados dos lotes 09, 18, 20, 22
e 23 associaram-se na produção de algodão, que em seus municípios
trabalhavam com esta cultura agrícola, fosse como arrendatários ou bóias-frias.
O sindicato dos trabalhadores rurais de Centralina forneceu apoio financeiro
ao grupo, bem como maquinário para a preparação do solo. Segundo um dos
assentados participantes do grupo, a mão-de-obra empregada para plantio e
colheita foi remunerada em dinheiro, sendo que assentados de projetos de
assentamento vizinhos da Divisa participaram do trabalho no algodão.
136
A comercialização do produto ocorreu com uma algodoeira localizada em
Ituiutaba e, segundo o entrevistado 09, os lucros foram satisfatórios, mas o grupo
decidiu não cultivar outras lavouras de algodão devido à falta de incentivos
financeiros e à baixa fertilidade do solo para aquela cultura, pois a primeira lavoura
exigiu enorme quantidade de insumos agrícolas.
As experiências de produção do abacaxi e do algodão não foram as únicas
alternativas de geração de renda para aqueles que apostaram nessas atividades,
pois a produção dessas lavouras ocorre entre um ano e um ano e meio. Nesse
período, os assentados desenvolviam outros trabalhos que pudesse fornecer renda
para complementar o aluguel das terras, recebido dos fazendeiros vizinhos. Algumas
famílias voltavam para os municípios de origem para trabalhar como bóias-frias em
períodos de colheita do algodão ou da cana. Outras eram empregadas nas fazendas
vizinhas, em atividade de confinamento do gado, que duravam, geralmente, de maio
a outubro.
A partir dessas estratégias de geração de renda, as famílias foram garantindo
a posse da terra, entre 1999 e 2001. A partir dessa data o INCRA, em parceria com
o Banco do Brasil, liberou o PRONAF (Programa Nacional de Financiamento da
Agricultura Familiar), juntamente com outro recurso, para construção das casas, nos
lotes. O valor do PRONAF, para investimento em produção, foi de R$9.000,00, e o
de construção de casa, apenas R$2.000,00. A liberação desses créditos foi um
“divisor de águas” para a geração de renda no assentamento, possibilitando novos
usos da terra.
Para que o recurso fosse liberado, houve necessidade de se criar um projeto
coletivo de produção, sendo que todos os assentados deveriam optar por um tipo de
atividade agrícola.
137
Os resultados obtidos com a produção de abacaxi não foram satisfatórios
para todos os que optaram pela atividade, principalmente para os assentados que
não tinham experiência em cultivar a fruta. Estes não tiveram boas produções, pois
não adubaram as plantas na época certa, obtendo baixa produtividade.
Aqueles que tinham experiência em produzir obtiveram boa produtividade,
mas não alcançaram lucro suficiente para pagar os gastos de produção, que
venderam o produto por preços baixos.
Apesar de a produção de algodão ter gerado lucros, como nos afirmou o
entrevistado 18, os custos de produção eram altos e a comercialização poderia ser
comprometida, que a empresa com que comercializaram a primeira produção
havia desativado a sua unidade de compras, que se localizava na cidade de
Ituiutaba-MG. Sendo assim, deveriam procurar outros compradores, situados mais
distantes do assentamento. Essa alternativa não seria viável, conforme o
entrevistado 18 no relatou, pois, segundo ele, o preço do frete diminuiria os lucros .
Também nos foi informado que, durante os dois primeiros anos de moradia e
trabalho na terra, não se teve o apoio de empresas de assistência técnica para as
produções coletivas. A decisão em produzir abacaxi e algodão partiu de iniciativas
espontâneas das famílias assentadas, que possuíam experiência de trabalho com
tais cultivos.
Diante das incertezas de geração de renda a partir das produções agrícolas
que haviam experimentado no assentamento, e também da incerteza de
conseguirem alugar a terra para os fazendeiros, os assentados, em conjunto com a
EMATER/MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais),
elaboraram um projeto de produção de leite, no ano de 2001, utilizando-se dos
primeiros recursos de financiamento da produção, fornecidos pelo Governo Federal.
138
A partir do recurso financeiro de R$9.000,00, os assentados iriam cercar suas
propriedades e comprar gado leiteiro, pois o principal incentivo para trabalharem
com essa atividade advinha do discurso da EMATER, de que a “vocação” da região
era a de produção de leite, o que facilitaria o desenvolvimento da atividade, no
assentamento.
Com os investimentos em gado leiteiro, os assentados tiveram que se mudar
para seus lotes e deixar a sede da fazenda, onde moravam em barracos
improvisados. O trabalho com o gado foi uma nova fase para os assentados, pois a
produção de leite tornou-se uma garantia de geração de renda familiar e,
conseqüentemente, o anúncio de estabilidade de trabalho e reprodução da
sobrevivência, a partir da terra. A produção de leite representou uma nova fase de
organização do trabalho, da moradia e das relações coletivas no assentamento. A
presença da EMATER/MG, com apoio à produção, a criação de infra-estrutura para
moradia nos lotes, a criação do gado leiteiro e a consolidação de relações
comerciais com laticínios da cidade trouxeram esperança para as famílias que
pretendiam reproduzir a vida a partir de suas terras nos lotes.
Porém, nem todos possuíam experiência em trabalhar com a criação de gado,
que as principais atividades de trabalho que foram declaradas relacionavam-se ao
emprego em lavouras como bóias-frias, arrendatários em lavouras próprias ou
empregados urbanos.
A infra-estrutura criada nos lotes, a partir dos recursos financeiros investidos
na produção de leite, na construção de casa e poços d’água, contribuiu para
valorizar os lotes e, conseqüentemente, favorecer a especulação da terra. Sendo
assim, aquelas famílias que não arriscaram uma mudança de vida ou não possuíam
interesse em continuar com a posse do lote comercializaram os seus direitos à terra.
139
As diversas atividades de geração de renda das famílias assentadas
demonstram-nos que a garantia de posse da terra não está vinculada ao uso do lote
para produção ou mesmo para moradia, que diversas famílias permaneceram
morando e trabalhando na cidade, sem que a terra conquistada fosse o principal
meio para garantia de sobrevivência. As famílias que moravam no assentamento
também tiveram que recorrer ao trabalho fora do lote, exercendo atividades
temporárias em fazendas vizinhas ou em lavouras de seus municípios de origem.
Os primeiros anos após a conquista da terra foram um recomeço para as
famílias assentadas, condicionados pela instabilidade de trabalho e geração de
renda, bem como pelos fracassos dos primeiros investimentos nas lavouras que
tinham experiência em cultivar. Para algumas famílias, foi a oportunidade de arriscar
em culturas agrícolas em que não possuíam habilidades, pois acreditavam que
poderiam ter sucesso, a exemplo daquelas famílias que possuíam saberes
relacionados ao cultivo do abacaxi.
A formação de grupos para produção de gêneros agrícolas que eram
cultivados nos municípios de origem representa o esforço das famílias em continuar
reproduzindo as atividades nas quais possuíam experiência de trabalho. Mas as
novas condições naturais e estruturais que as famílias receberam, como imposição
social, tornaram-se barreiras à continuidade das práticas antigas, promovendo
descontinuidades nas estratégias de reprodução da vida.
Sendo assim, para algumas famílias, a conquista da terra e a garantia de
posse é uma tarefa que exige mudança de vida, rompimentos com práticas antigas e
tentativas de novas práticas, que nem sempre resultam no sucesso desejado. Para
outras famílias não foi necessário mudar de vida, que, a partir da cidade,
conseguiram administrar a posse da terra com recursos financeiros advindos do
140
próprio lote e também de ganhos salariais das atividades que exerciam no espaço
urbano, como atualmente é o caso dos lotes nº 06, 08, 24 e 26.
A partir do projeto de produção de leite, houve mudanças significativas quanto
ao uso da terra e geração de renda, a partir do lote. As famílias não mais trabalham
para fazendeiros vizinhos ou em serviços temporários, em lavouras de seus
municípios, com a mesma freqüência de quando conquistaram o lote. Para alguns
beneficiários, o aluguel das terras tornou-se uma prática para geração de renda,
que não conseguiram desenvolver a atividade de produção do leite. Outros, ainda
persistem com o cultivo de lavouras do abacaxi, como é o caso de famílias oriundas
de Canápolis e Monte Alegre, que possuem essa atividade como secundária e
complementar à renda obtida pela produção do leite.
2.5. Práticas estruturantes da vida cotidiana
A conquista da terra, pelas famílias assentadas e pelas compradoras de lotes,
projetou-as em um novo ciclo de reprodução da vida. Como se pôde compreender,
houve necessidade de mudança de vida para aqueles que optaram pela empreitada
de residir no assentamento. Ao tratarmos de reprodução da vida, compartilhamos
com o entendimento de Lefebvre (1991) a respeito do conceito de reprodução. Ao
analisar o conceito de produção, a partir das obras de Karl Marx, Lefebvre conclui
que este conceito não se reduz a “um sistema filosófico (do materialismo dialético)
ou a uma teoria econômica política.” (p. 37). Lefebvre (1991) compreende que
[...] o termo produção readquire um sentido amplo e vigoroso. Sentido esse
que se desdobra. A produção não se reduz à fabricação de produtos. O
termo designa, de uma parte, a criação de obras (incluindo o tempo e o
espaço sociais), em resumo, a produção material, a fabricação de coisas.
Ele designa também a produção do “ser humano” por si mesmo, no decorrer
do seu desenvolvimento histórico. Isso implica a produção das relações
sociais. Enfim, tomando em toda a sua amplitude, o termo envolve a
reprodução. Não há apenas reprodução biológica (e conseqüente aumento
141
demográfico), mas também reprodução material dos utensílios necessários
à produção, instrumentos técnicos e, ainda, reprodução das relações
sociais. (p. 37-38)
As estratégias de reprodução da vida, a partir da terra, foram sendo
construídas e reconstruídas diante dos fracassos e/ou sucessos das práticas que se
inscrevem no tempo e no espaço e podem ser analisadas a partir do cotidiano.
Referimo-nos à vida cotidiana das famílias assentadas, às práticas contidas, que
se fundamentam nos esforços para garantia da reprodução existencial.
As ocupações, preocupações, trabalhos e divertimentos fazem parte do
cotidiano das famílias. De acordo com Lefebvre (1991) “O cotidiano se compõe de
ciclos e entra em ciclos mais largos. Os começos são recomeços e renascimentos.”
(p. 11). Sendo assim, não se pode concluir que a vinda das famílias para o
assentamento representou uma dissolução total de práticas cotidianas
empreendidas noutros tempos e espaços. Houve tentativas de continuidade de tais
práticas, a partir de um espaço “novo”, constituído de infra-estruturas e condições
sócio-econômicas “novas”.
A mudança de vida a que nos referimos, anteriormente, não contradiz o
entendimento de que houve tentativa de continuidade das estratégias de reprodução
da vida. A mudança designa a modificação e não a supressão de práticas
cotidianas, a partir das novas condições de reprodução. Tais condições se
relacionam às estruturas impostas, socialmente, às famílias assentadas.
Desse modo, recorremos ao cotidiano para verificar como as práticas se
inscrevem no assentamento. O conceito de cotidiano, a partir da obra de Lefebvre
(1991), é entendido da seguinte maneira:
Em sua trivialidade, o cotidiano se compõe de repetições: gestos no
trabalho e fora do trabalho, movimentos mecânicos (das mãos e do corpo,
assim como de peças e de dispositivos, rotação, vaivéns, horas, dias,
semanas, meses, anos; repetições lineares e repetições cíclicas, tempo da
natureza e tempo da racionalidade etc. O estudo da atividade criadora (da
produção no sentido mais amplo) conduz à análise da reprodução, isto é,
142
das condições em que as atividades produtoras de objetos ou de obras se
re-produzem elas mesmas, re-começam, retomam seus elos constitutivos
ou, ao contrário, se transformam por modificações graduais ou por saltos.
(p. 24)
Desse modo, recorrer ao cotidiano das famílias significa compreender,
amplamente, as estratégias que são colocadas em prática para garantia de
reprodução, tomando-se como referência as suas relações com a natureza, bem
como a repetição de atividades que se inscrevem em tempos cíclicos ou lineares.
Sendo assim, a partir do entendimento de Lefebvre (1991), o cotidiano esboça a
realidade existencial do homem, que não se reproduz ausente do tempo e do
espaço.
Ao analisar a vida econômica e social reconstituída na França, no início do
ano de 1946, Lefebvre (1991), em seu livro intitulado “Introduction à La Crítique de la
vie quotidienne”, ressalta que “[...] muitos acreditavam estar construindo uma outra
sociedade, enquanto trabalhavam para restabelecer, um pouco modificadas, as
antigas relações sociais.” (p. 37)
Nesse sentido, cabe à sociedade o papel de transmissão das estruturas
sociais, sendo o cotidiano um elemento pertencente à substância da própria
sociedade. A partir da reprodução do cotidiano é que tais estruturas são transmitidas
a sujeitos sociais de tempos futuros, como imposições sociais. Sendo assim, para
Heller (1992), a substância da sociedade que é repassada por imposição social,
podendo ser visualizada pelo cotidiano, é vista da seguinte maneira:
Essa substância é estruturada e amplamente heterogênea. As esferas
heterogêneas por exemplo, produção, relações de propriedade, estrutura
política, vida cotidiana, moral, ciência, arte, etc. encontram-se entre si na
relação de primário e secundário, ou, pura e simplesmente, na mera relação
de alteridade. Não existe entre as esferas nenhuma hierarquia universal [...]
(p. 03)
Tais estruturas estão em constante alternância quanto à hierarquia constituída
a partir das determinações tuas, reorganizadas pela ação do homem. Sabendo
que a vida cotidiana é um dos componentes da substância da sociedade e que as
143
demais estruturas estão em determinações mútuas, podemos afirmar que o
cotidiano das famílias assentadas foi sendo reordenado e reformulado, não
totalmente, frente às “novas” estruturas da sociedade que lhes foram impostas. As
relações de propriedade são modificadas a partir da conquista da terra. Aquelas
famílias que, antes, eram arrendatárias e/ou assalariadas, tiveram a oportunidade de
obter posse de uma faixa territorial no meio rural, deixando uma condição anterior
que se caracterizava pela não propriedade dos meios-de-produção.
A vida cotidiana, então, foi alterada em função das determinações mútuas
entre estruturas heterogêneas. Pode-se afirmar que o cotidiano tem sido construído
por novas práticas sociais reordenadas e, talvez se possa dizer, readequadas às
determinações das estruturas impostas, socialmente, ao grupo de famílias
beneficiárias de terras e famílias compradoras de lotes, no assentamento Divisa.
Para ampliar o entendimento acerca do cotidiano, analisamos o conceito a
partir de Heller (1992). Segundo esta autora,
A vida cotidiana é, em grande medida, heterogênea; e isso sob vários
aspectos, sobretudo no que se refere ao conteúdo e à significação ou
importância de nossos tipos de atividade. São partes orgânicas da vida
cotidiana: a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o
descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação. (p.
18)
Sendo a vida cotidiana um conteúdo heterogêneo, constituído por partes que
estabelecem relações entre si com graus de importância variados, podemos afirmar
que o conteúdo do cotidiano é estruturado por hierarquias e, indo um pouco mais
além, de determinações mútuas que se alternam de forma lógica. Desse modo, o
cotidiano no assentamento Divisa é ordenado por uma lógica que se fundamenta
numa prática estruturante de diversas outras práticas subjacentes.
Não é possível dizer que a vida cotidiana é construída e reproduzida a partir
de uma única prática social. É nesse sentido que se torna essencial falarmos de
reprodução da vida, associando-a ao cotidiano. O termo reprodução nos possibilita ir
144
além da condição humana do trabalho, relacionado à produção de mercadorias,
bens materiais. A vida cotidiana não é conduzida por esse único fim, mas se
estrutura por outras ações que podem ou não ser regidas pelo trabalho.
Nesse contexto, o homem é o sujeito essencial do processo de produção da
vida cotidiana, pois é capaz de organizar-se para o trabalho, a festa, o lazer e outras
práticas que se repetem ciclicamente, no tempo e no espaço, garantindo a
reprodução da vida. Nessa gama de opções, os seus esforços são depositados,
mesmo que em graus diferenciados. Segundo Heller (1992),
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na
vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade. Nela, colocam-se em funcionamento” todos os seus
sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades
manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias. O fato de que
todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento determina
também, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, nem de
longe, em toda sua intensidade. O homem da cotidianidade é atuante e
fruidor, ativo e receptivo, mas não tem tempo nem possibilidade de se
absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode
aguçá-los em toda sua intensidade. (p. 17-18)
A partir das análises dos autores Lefebvre (1991) e Heller (1992),
compreendemos que o cotidiano é parte constituinte da história da sociedade,
juntamente com outras estruturas, e que nele estão contidas práticas que
apresentam uma lógica cíclica ou linear. O cotidiano também se relaciona à
reprodução da vida de grupos sociais, considerando as estratégias que se
manifestam nas práticas cotidianas e garantem a própria reprodução. A vida
cotidiana também é estruturada por conteúdos que podem estar organizados
hierarquicamente, no caso do assentamento Divisa, podemos eleger o trabalho
como estruturante do cotidiano e direcionador das demais práticas cotidianas. Desse
modo, analisaremos a vida cotidiana no assentamento tomando como referência as
práticas que garantem a reprodução da vida.
A produção de leite, como prática agrícola dominante no assentamento,
trouxe uma nova estrutura de organização do trabalho. Atualmente, todos os lotes
145
possuem gado leiteiro, com exceção dos lotes 11, 14 e 26. O assentado do
lote 11 perdeu o seu rebanho alguns anos atrás, devido a problemas de
alimentação. Os lotes 14 e 26 pertencem a compradores que não residem no
assentamento, sendo que o primeiro optou pela criação de gado de corte e o outro
pela silvicultura e criação de abelhas.
A ocupação das famílias com o gado leiteiro ocorreu a partir do ano de 2001,
quando muitas abandonaram as atividades agrícolas que experimentaram logo após
a conquista da terra, como foi o caso da produção de abacaxi e algodão. A mudança
de atividade, que ocorreu de forma generalizada, trouxe uma nova ocupação de
trabalho e disciplina para as famílias, bem como uma garantia de geração de renda.
Apesar de nem todas as famílias possuírem experiências de trabalho com a
criação de gado, essa atividade se tornou o principal meio de geração de renda e
está organizada por uma infra-estrutura relacionada à produção e à comercialização
que foi sendo construída de acordo com o seu desenvolvimento.
A infra-estrutura que um determinado lote possui, relacionado à produção, é o
plantel de animais produtores de leite, currais para que se realize a ordenha,
instrumentos de trabalho como cordas, baldes, bancos e latões (estes para
transporte do leite), como se pode visualizar na foto 01.
146
Foto 1: Ordenha no lote 18. Aqui estão ordenhador, o rebanho e os instrumentos de
trabalho utilizados durante as ordenhas, pela manhã ou pela tarde. Autor: CRUZ, Nelson
Ney Dantas, Março de 2007.
O período da manhã é reservado ao trabalho de ordenha. Todos os dias
necessidade de se apartar o gado, colocá-lo no curral, ordenhar o rebanho e levar o
leite até o tanque de expansão. Esta é uma atividade em que não podem ocorrer
atrasos ou deixar de ser realizada. Quanto mais cedo a família ordenhar o rebanho,
menos risco terá de descartar o leite, devido ao aumento da acidez. Estando nessa
condição química, o leite não pode ser depositado nos tanques de expansão, pois
poderia comprometer a qualidade do leite de outras famílias, que também utilizam o
tanque.
Sendo assim, as baixas temperaturas da madrugada ou das primeiras horas
após o raiar do sol favorecem a manutenção da qualidade do leite, até que seja
depositado nos tanques. É por essa razão que encontramos, logo cedo, por volta
das 6:00 H. da manhã, pessoas trabalhando nos currais e realizando suas ordenhas.
147
Dessa maneira, o trabalho no lote com a produção do leite é uma tarefa que
exige disciplina de horários e comprometimento da família para a lida com o gado.
Em uma entrevista com o entrevistado 19, ele nos relatou como é o seu trabalho
diário.
“Eu levanto às cinco e meia, mais ou menos, já tempera a ração, põe
no coxo, depois fecha as vaca, fecha os bezerro, tira o leite, põe a ração
concentrada, a ração volumosa, depois leva o leite no resfriador, depois
volta, lava os latão. Quando é meio dia e meio, uma hora, tem que temperar
mais ração, pôr pras vaca. E três e meia, tempera a ração de novo, põe no
coxo, fecha as vaca, fecha os bezerro, tira o leite, tira o leite da tarde, leva
no resfriador. Põe a ração volumosa pro gado, à tarde de novo, lava os
latão e termina essa rotina lá pras sete horas.” (Informação verbal)
18
A lida com o gado exige uma rotina de tarefas que não se resumem à
ordenha. Outros cuidados são necessários para que se garanta a produção do leite.
Se não houver cuidados com a alimentação das crias, certamente haverá queda da
produção e diminuição na geração de renda. Sendo assim, torna-se necessário estar
próximo dos animais, bem como realizar outras atividades de manutenção do
rebanho. que se estar ali todos os dias, para amparar a criação, fornecendo-lhe
alimento no cocho para garantir a produção do leite, principalmente nos meses em
que a pastagem seca e é necessário tratar dos animais a partir de rações
compradas na cidade ou por meio de plantas cultivadas no próprio lote, como é o
caso da cana e capins.
Em um diálogo com o entrevistado 01, ele nos relatou sobre o
comprometimento que se deve ter com a criação.
“O horário aqui não tem horário para trabalhar. Porque quem trabalha com
gado não tem horário, não tem dia, dia santo, feriado, essas coisas. Então,
toda hora a gente tem que no eito. Porque na mesma hora que você o
tem serviço, na mesma hora tem também. Porque o gado precisa de
cuidado. Hora tem que se ele não dentro das roça, se rebentô uma
cerca, se gado não tá engastaiado. Toda hora a gente tem que tá trabaiano.
18
Entrevista concedia no mês de Setembro de 2007.
148
Aqui não tem hora não, nem de pegá no serviço nem de largar também.”
(Informação verbal)
19
As fotos que se seguem (02 e 03) ilustram a fala do entrevistado 01. e nos
apresentam animais sendo tratados em cochos, próximos à residência das famílias
assentadas.
Foto 2: Bezerros sendo tratados em cocho, no lote 01. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas
Cruz, Setembro, 2007.
19
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007 com o Sr. M. C., assentado do lote nº 02.
149
Foto 3: Vacas leiteiras sendo tratadas no lote 02. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas,
Setembro, 2007.
Podemos verificar que a proximidade da família com suas crias é essencial
para que a produção do leite seja garantida. Desse modo, a organização do trabalho
no lote é determinada pelo tempo dos animais, mas por um ritmo ditado por um
tempo que podemos caracterizar como linear. Este tempo linear se refere à
constância do trabalho com o gado leiteiro, da forma de lidar com as crias, de cuidar
da ordenha, de alimentá-las, de apartá-las. São as práticas rotineiras que não se
modificam ou se alteram, pois todos os dias o trabalho parece ser sempre o mesmo.
Mas existem modificações lentas, que pertencem a um tempo cíclico maior,
que o é o tempo da natureza. A intensidade dos trabalhos com o gado leiteiro e as
atividades rotineiras modificam-se em dois períodos do ano, coincidindo com as
estações bem definidas do cerrado, que são o inverno seco, entre os meses de maio
e outubro e o verão chuvoso, de novembro a abril. Nessas duas estações, os
150
trabalhos se alteram em quantidade e diversidade. A ordenha, por exemplo, no
período chuvoso, é mais demorada para se realizar, que a quantidade de leite
pode aumentar devido à abundância de pastagens verdes, crescimento ou
decréscimo do rebanho. No período da seca, o tempo de ordenha torna-se menor,
porém outros trabalhos são acrescentados em torno da pecuária leiteira. Podemos
citar a ocupação quanto ao trato dos animais, como pôde ser ilustrado nas fotos 02 e
03. Outra atividade é o corte de plantas que nascem na pastagem, em concorrência
com o alimento do gado, podendo comprometê-lo.
Pode-se compreender que o trabalho com o gado exige disciplina e
organização para com as tarefas que são realizadas diariamente. Estas são
repetidas todos os dias, como se o trabalho fosse sempre o mesmo. Daí concluirmos
que o tempo do trabalho com o gado se inscreve como uma prática cotidiana de
tempo linear. Mas, por essas tarefas estarem vinculadas a um ciclo da natureza, por
períodos caracterizados pela abundância e pela escassez de alimentos para o gado,
respectivamente estação chuvosa e estação seca, que se alternam ao longo do ano,
pode-se dizer que o tempo linear do trabalho se inscreve em um tempo cíclico maior,
que exige da família capacidade de se adequar às imposições da natureza. Sendo
assim, ao longo do ano, algumas práticas permanecem as mesmas, modificando-se
apenas em quantidade de tempo despendido para realizá-las. Outras não se
realizam, como por exemplo, o trato dado aos animais, no período chuvoso.
A partir do entendimento de que o tempo de trabalho é organizado por
práticas rotineiras que se alternam ao longo das estações típicas do cerrado, torna-
se importante pensar como a família no assentamento se organiza para o trabalho,
não apenas na produção do leite, mas para outras práticas agrícolas, importantes
para se complementar a renda familiar.
151
Foi possível compreender que a prática do trabalho, da produção de bens
materiais, assenta-se na família, sendo esta o seu pivô de sustentação, pois ela é a
principal fornecedora de mão-de-obra para realização das atividades ligadas ao
trabalho. Os membros da família que mais se envolvem nos trabalhos da terra são o
esposo e a esposa. Aquelas famílias que possuem crianças ou adolescentes que
estejam na escola não impõem o trabalho como prioridade para os filhos. Estes, ao
contribuírem como mão-de-obra na produção do leite ou nas demais atividades
agrícolas, fazem-no em horários que não correspondam ao tempo destinado ao
estudo.
uma divisão clara de tarefas no interior da família, que se organiza pelo
trabalho na terra e no lar. O trabalho na terra é realizado, em sua maior parte, pelo
homem provedor da família, enquanto que as tarefas domésticas são de
responsabilidade da mulher. Mas nem sempre essa divisão de tarefas permanece
estática, sem que esforços sejam canalizados, conjuntamente, para um mesmo
trabalho. Na luta pela reprodução da vida, no assentamento, esforços conjuntos dos
membros da família podem ser direcionados para um mesmo fim, desde que as
necessidades suscitadas pelo trabalho na terra não estejam sendo supridas apenas
pela mão-de-obra masculina, ou seja, do provedor da família. Nas entrevistas
realizadas e em observações junto às famílias moradoras do assentamento, foi
possível diagnosticar a divisão de tarefas, bem como o envolvimento conjunto dos
membros da família para com a lida na terra. De acordo com uma entrevista
realizada com a entrevistada 20, ela nos relata que
“Eu trabalho assim, no dia que S. precisa de ajuda, eu ajudo ele. Eu
trabalhei mais, né. Hoje eu trabalho menos, fico mais dentro de casa. Mas
eu fiz de tudo junto com ele na roça. Agora, mais assim, em época de
carpina. eu vou mais, mas não é o dia todo, também. É nos intervalo do
152
meu serviço de casa. eu vou e trabalho, depois venho fazer o serviço de
casa.” (Informação Verbal)
20
Para a mulher, o trabalho na agricultura se mantém em segundo plano. A
família da entrevistada 20. é constituída por cinco pessoas, sendo duas crianças
com idade de oito anos e um adolescente com idade de 16 anos. As crianças ainda
não se envolvem com o trabalho de modo a ter um compromisso sério, com tarefas
diárias a cumprir. O adolescente, apesar de estudar em escola na cidade, pela
manhã, emprega sua mão-de-obra à tarde com o trabalho na pecuária, junto com o
pai, ou na sua ausência.
Apesar de permanecer a divisão de tarefas entre homem e mulher, esta ainda
contribui como mão-de-obra na lavoura ou na pecuária. Pode-se perceber esta
situação a partir do relato da entrevistada 14, cônjuge do entrevistado 13.
“Levanto cedo, rumo o que tem que arrumar aqui em casa, vou tratar das
criação. Cuidar de uma galinha, de um porco. Inclusive, se precisar de ir
no curral eu vou ajudar ele fazer alguma coisa, ir r ração eu vou. Como
diz, é aqui dentro e de fora que eu ajudo. Mais aqui dentro do que lá,
ajudando ele. Tirar leite mesmo eu nunca aprendi a tirar. Mas apartar uma
vaca, quando ele sai olhar as criação eu olho.” (informação verbal)
21
Esta situação se repete em outros lotes, onde há efetiva participação da
mulher em práticas que são de responsabilidade do homem, por exigirem maior
esforço físico. Na fala da entrevistada 14., pode-se perceber que, apesar de não
participar ativamente em todas as tarefas relacionadas à produção do leite, ela sabe
como realizá-las, principalmente aquelas de maior necessidade, para suprir a
ausência do esposo.
Durante as visitas realizadas nos momentos de ordenha, em diversos lotes no
assentamento, constatamos que a presença da mulher, no trabalho na terra, é uma
realidade que se inscreve nas práticas cotidianas, onde o esforço da família para
20
Entrevista concedia no mês de Setembro de 2007.
21
Entrevista concedida no mês de Setembro de 2007.
153
garantir a reprodução da vida, a partir do lote. Na foto 04, pode-se visualizar a
presença feminina no curral, auxiliando o trabalho do homem.
Foto 4: Trabalho de ordenha do lote nº 09. Durante o período das manhãs, marido e
mulher trabalham juntos. Enquanto a mulher segura o bezerro por um laço, o marido
realiza a ordenha. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
Mas a mão-de-obra familiar nem sempre é suficiente para suprir as tarefas em
todos os dias do ano, que a quantidade de trabalho a ser realizado aumenta ou
diminui de acordo com os ciclos das estações chuvosa e seca, bem como em
relação ao desenvolvimento da pecuária e de outras atividades agrícolas, no lote.
A pecuária leiteira não é a única atividade desenvolvida no assentamento
Divisa, para uso da terra. Outras atividades de geração de renda surgem como
prática que estrutura a reprodução da vida e também organiza o cotidiano das
famílias.
154
Aquelas atividades agrícolas realizadas nos primeiros anos depois da criação
do assentamento ainda o praticadas por algumas famílias em seus lotes. O
abacaxi, por exemplo, ainda é cultivado pelo entrevistado 03, pois, segundo ele,
“Durante esse período que a gente teve aqui eu tenho observado o
seguinte: que a gente o pode ficar com uma atividade só, principalmente
com a atividade do leite. Por que o leite ele ocorre muitas altas e baixas,
mais baixas do que altas. Então, quando você pensa que vai ganhar um
dinheirinho com o leite, ele despenca de novo e vai embaixo. Durante o
ano ocorre dois mês de pico do leite só. Que não é suficiente pra você
manter, geralmente é a época que você gasta mais, ele sobe, e você
pensa que ele vai ficar uns três, quatro mês, cinco mês, não. Como agora, o
leite subiu pra nós a oitenta e cinco centavo e tão falando agora que
eles vai pagar setenta. Quer dizer, o próximo mês tão dizendo que ele cai
pra setenta, depois cai de novo. Chegou esse período da seca como a
estiagem foi longa, a gente se endividou muito com a ração, comprou, pra
manter o gado. Às vezes até aumentou a produção mas não foi o suficiente.
Então, praticamente fica na mesma, na mesma coisa. Aí, o que ocorre
nisso, que a gente que é obrigação da gente encontrar outra atividade
junto. Não que venha extinguir o leite, mas que venha dar uma ajuda igual o
leite ou melhor. Que você mantenha uma renda e consiga se manter na
terra. Por que vofica nessa dificuldade, não consegue se manter dentro
da terra.” (Informação verbal)
22
É a partir das diversas atividades de geração de renda, praticadas em um
mesmo lote, que as alternativas para superar o volume de trabalho vão sendo
construídas entre as famílias assentadas. No caso do entrevistado 03., a produção
do abacaxi é uma das alternativas para complementar a renda familiar, juntamente
com a produção de melancia. Mas é o cultivo do abacaxi que exige maior ocupação
do tempo de trabalho, principalmente nas épocas de plantio e carpina da lavoura. O
período de plantio dessa cultura é realizado na estação chuvosa, que ele não
possui meios técnicos (como irrigação, tratores para aragem, etc.) para que esta
etapa da produção possa se concretizar no período de seca. Sendo assim, ele
acompanha o ciclo das estações, para formar sua lavoura. A partir da aragem do
solo, ele inicia o plantio, e como a mão-de-obra familiar não é suficiente para que o
trabalho se realize em período de tempo que não comprometa futuramente a
22
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
155
produção, ele costuma recorrer à mão-de-obra de vizinhos ou parentes, para que
esta etapa do trabalho seja cumprida no menor tempo possível. Mas o trabalho
alheio não é remunerado em dinheiro. Sendo assim, a estratégia para que não se
pague mão-de-obra é realizar trocas de serviço.
Numa visita ao assentamento, no mês de fevereiro de 2007, foi possível
presenciar as trocas de serviço. Nesse mês, o entrevistado 03. havia iniciado o
trabalho de plantio do abacaxi. A sua preocupação era de que as mudas deveriam
ser plantadas o mais rápido possível, que as chuvas poderiam se encerrar
naquele mesmo mês, comprometendo o desenvolvimento da lavoura. A mão-de-
obra de que dispunha era das duas filhas mulheres, sendo uma com 14 anos de
idade e outra com 17 anos. Antes mesmo de recorrer à ajuda dos parentes,
moradores dos lotes 01 e 02, o seu cunhado, entrevistado 02, havia expressado
preocupações em relação ao plantio da lavoura de abacaxi do entrevistado 03, pois
sabia que a mão-de-obra de sua família não seria suficiente para plantar 35.000
mudas, durante o mês de fevereiro. Sendo assim, socorreu o entrevistado 03, sem
que este lhe solicitasse ajuda, pois algumas semanas após o plantio do abacaxi o
entrevistado 02 estaria colhendo a sua produção de arroz e, certamente,
necessitaria da mão-de-obra do seu cunhado, entrevistado 03.
É dessa maneira que vão sendo construídas as relações de parceria de
trabalho, entre famílias e vizinhos. Na colheita da produção de arroz do entrevistado
02, diversos assentados estiveram presentes para o trabalho, com os quais o
entrevistado 02 se comprometeu em disponibilizar sua mão-de-obra quando os
outros necessitassem de ajuda no trabalho de seus lotes. Duas colheitas de lavoura
de arroz ocorreram, nessa mesma semana, no assentamento, sendo uma no lote
01 e outra no lote nº 16. Nesses dois lotes houve participação de assentados,
156
moradores do P. A. Divisa, moradores de outros projetos de assentamento vizinhos
e fazendeiros vizinhos, os quais mantêm relações amistosas com as famílias do
assentamento.
Nas fotos 05 e 06 pode-se observar o trabalho coletivo para colheita e
armazenagem do arroz, realizado nos lotes nº 01 e 16.
Foto 5: Colheita do arroz no lote 01. O trabalho é realizado de forma coletiva, onde
participam assentados e fazendeiros vizinhos. As trocas de serviço são a base dos
trabalhos coletivos na lavoura. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007
157
Foto 6: Armazenamento das sacas de arroz colhido no lote 16. Alguns participantes
estiveram presentes em outros trabalhos coletivos, ocorridos nos demais lotes. Autor:
CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro de 2007.
No mês de abril ocorreu outra colheita, por meio das trocas de serviço. No
lote nº 16, a produção do gergelim deveria ser colhida rapidamente, antes que
alguma chuva pudesse comprometê-la, que os grãos estavam maduros. Sendo
assim, aqueles que participaram da colheita do arroz foram convocados pelo
entrevistado 21 a participarem da colheita do gergelim. A foto 07 ilustra o trabalho no
lote nº 16.
158
Foto 7: colheita do gergelim produzido no lote 16. Por meio do trabalho coletivo a
lavoura foi colhida, havendo participação de trabalhadores assentados, que moram em
assentamentos vizinhos ao P. A. Divisa. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, abril de 2007.
Mas a troca de serviço não é o único meio para se remunerar o trabalho
coletivo. Em conversa com um participante da colheita do gergelim, o entrevistado
22., assentado morador do P. A. Capão Rico, relatou-nos que o seu trabalho foi
combinado tendo como pagamento o dinheiro. Mas, se fosse necessário, também
poderia receber em sacas de gergelim. Ele foi o único que trabalhou na colheita para
receber em dinheiro ou em produto da lavoura, sendo que os outros participaram
para pagar os dias de serviço que o entrevistado 21 havia realizado na colheita do
arroz e outros serviços prestados. Desse modo, a troca de serviço é uma prática
predominante em relação à remuneração em dinheiro ou pagamento em produto
colhido.
Sendo assim, nas trocas de serviço por meio de relações de vizinhança e
parentesco, a deficiência de mão-de-obra familiar para o trabalho no lote vai sendo
159
superada. A troca de serviço é uma parceria de trabalho que se faz presente nas
atividades agrícolas da lavoura e da pecuária. De acordo com o entrevistado 23, a
troca de serviço ocorre da seguinte maneira:
“Às vêiz o cara tem um serviço pra fazer, meio ocupado, eu meio
forgado, eu vou e ajudo ele, não cobro o dia. E o dia que eu tiver um
serviço aqui pra fazer eu fico de a ver com ele. É uma cerca de arame,
arrumar um pasto, um serviço de curral. Um vai e ajuda o outro aí não tem o
dinheiro pra pagar, fica de a ver. O outro o dia que tiver o seu serviço
você chama ele e te ajuda também. Você fica de a ver, se trabalhar um
dia ou dois, contar os dias e deixa anotado. Quanto acontece, aí,
acontece que o cara não pode vim, ele me paga a diária e eu pago a diária
pro outro vim.” (Informação Verbal)
23
É a partir desses rearranjos no trabalho que a produção vai sendo mantida e
garantida nos lotes do assentamento Divisa. Essas práticas estão organizadas a
partir do tempo cíclico da natureza, obedecendo períodos favoráveis ao plantio e
colheita, que correspondem aos meses chuvosos e secos.
Essas relações de parceria ocorrem, principalmente, entre os que moram no
assentamento e trabalham com duas ou mais atividades de produção ou, lidando
apenas com a pecuária leiteira, não possuem mão-de-obra familiar suficiente para
suprir as necessidades do trabalho, como é o caso do entrevistado 01 e do
entrevistado 07. Ambos não possuem parentes ou cônjuges que os ajudem na lida
diária com a pecuária, por morarem sozinhos. De acordo com o entrevistado 01,
quando ele necessita ir à cidade, procede da seguinte maneira:
“Aí eu organizo mais ou menos, num sabe, pro serviço ficar menos um
pouco, porque às vezes tem uma capina, uma coisa ou outra que não pode
ficar dois, três dias. Então eu resolvo aquilo pra poder sair e quando saio
deixo uma pessoa olhando, né, o gado, a casa também né. Não tendo
criação de leite, sendo gado solteiro não tem problema, né, pode ficar
uma semana fora. Mas o gado tem que ta olhando, tem que tirar o leite, não
pode deixar os bezerros ficar mamando porque fica doente, né. Quando
saio sempre consigo alguém. Não pago não porque é da família, né. É meu
filho, genro. Mas a gente não deixa de não ficar preocupado também,
porque eles também tem os serviços deles. E aí, muita das vez nunca faz
do jeito que a gente faz.” (informação Verbal)
24
23
Entrevista realizada no mês de setembro de 2007.
24
Entrevista realizada no mês de setembro de 2007.
160
A estratégia da troca de serviço se inscreve num contexto ligado às
necessidades de reprodução da vida, constituindo-se como prática cotidiana
daqueles que necessitam solucionar a deficiência da mão-de-obra familiar, seja para
os que possuem família numerosa ou para aqueles que, morando sozinhos,
necessitam de ajuda para cumprir a rotina de trabalho nos lotes, como é o caso do
entrevistado 01.
Analisando o trabalho como pertencente e estruturador da vida cotidiana,
entende-se que este se estrutura por práticas rotineiras, na pecuária e na lavoura. É
constituído por tarefas repetitivas, que se realizam sob a organização da família para
o trabalho. Sendo assim, existe uma divisão clara do trabalho no interior da família,
sendo que o homem é responsável pelas tarefas de produção no lote, enquanto a
mulher se dedica ao trabalho doméstico e os filhos contribuem quando lhes sobra
tempo, antes ou depois do expediente escolar. Geralmente, a mulher se envolve
com o trabalho na terra em auxílio ao seu esposo, mas a sua prioridade ainda é a
tarefa doméstica.
Pode-se compreender que existe uma rotina de tarefas a serem cumpridas,
principalmente relacionadas à produção do leite. , nas práticas cotidianas
relacionadas ao trabalho, o tempo linear, que se caracteriza por tarefas rotineiras e
repetitivas e que estão inseridas em um tempo cíclico maior, ditado pelas mudanças
da natureza. Desse modo, as duas estações bem definidas, características do
cerrado, determinam o tempo de plantar e colher, bem como reorganizam o tempo
de trabalho das famílias. É a partir das práticas cotidianas de tempo linear e tempo
cíclico que surgem as parcerias de trabalho, como trocas de serviço. Como a mão-
de-obra familiar não é suficiente para suprir as necessidades do trabalho na lavoura
e na pecuária, bem como a renda familiar não consegue custear mão-de-obra
161
remunerada, torna-se necessário recorrer às trocas de serviço com os vizinhos e
parentes.
Mas o trabalho não é a única prática cotidiana presente no assentamento
Divisa. A festa também é uma organização que surge a partir das relações de
vizinhança e parentesco. Todo mês uma festa é organizada na casa de alguma
família do assentamento, na casa sede do assentamento ou numa fazenda vizinha.
Geralmente, cada família contribui com alguma comida ou bebida, para que a festa
possa acontecer. No mês de dezembro havia quatro pessoas no assentamento que
iriam completar anos de vida. Sendo assim, as famílias dos quatro aniversariantes
se reuniram para promover uma festa, na casa sede do assentamento.
As festas, no assentamento, são constantes e acontecem mediante a
disponibilidade das famílias em receber os vizinhos em sua casa ou de se
organizarem, coletivamente, para que a promoção da festa seja de responsabilidade
de todos que dela participem. Durante a festa os homens se reúnem para jogar
truco, enquanto as mulheres conversam e dançam entre elas mesmas ou com os
maridos que não estão jogando. Para alguns moradores, a alternativa também é
participar de festas na cidade ou em outros lugares do meio rural, como nos fala o
entrevistado 24.
“Eu vou pra cidade mesmo. Eu vou pro buteco aqui da região. Igual, ontem
à noite, eu o pude ir na festa na fazenda vizinha, mas eu fui na dona
Maria. Então, a gente reúne aqui na fazenda mesmo. E vou pra Ituiutaba,
né, porque se eu quiser festar eu vou pra Centralina ou pra Ituiutaba. Dois
ou três dias que eu saio é pra desestressar um pouquinho. Vou pra
Centralina. Aqui é o barzinho mesmo, os amigo e tal. É jogar um truco
com os amigo no domingo aqui é uma festa também. A gente sempre reúne
uma turma com nóis aqui, os agricultor aqui, vizinho do assentamento, a
gente faz um truquinho aqui uma vez por mês. Fica o dia inteiro por conta
do almoço, do truco, vai passando casa por casa.” (Informação Verbal)
25
25
Entrevista realizada no mês de setembro de 2007.
162
De acordo com a fala do entrevistado 24, a festa está na cidade ou em
fazendas vizinhas e não no assentamento, onde ocorrem reuniões para almoço ou
comemorações de aniversários. A festa na qual não pôde ir ocorreu no dia anterior à
entrevista que realizamos com ele. Geralmente, promoção de festas por
fazendeiros vizinhos, que convidam as famílias moradoras do assentamento. No
mês de setembro, o entrevistado 24, gerente de uma fazenda vizinha, convidou as
famílias assentadas para participarem de uma festa que ele estava promovendo,
para comemorar o aniversário de sua filha.
Estávamos nós no lote 01, preparando-nos para ir à festa com a família
moradora deste lote. Observando o ambiente familiar, constatamos que havia
grande empolgação dos filhos, da esposa e do marido, em ir para a festa. A mãe se
preocupava com os detalhes das roupas de seus dois filhos. Os filhos estavam
preocupados com o pai que não terminara a tarefa de ordenha, pois queriam que
fossem todos juntos. Mas, com a chegada da família moradora no lote 15, para
acompanhá-los até a festa, tiveram que deixar o pai e o irmão mais velho para trás;
eles iriam depois de concluir a ordenha e levar o leite até o tanque de expansão.
Somente após a tarefa cumprida poderiam seguir para a fazenda vizinha.
Analisando o trabalho e a festa como práticas estruturantes da vida cotidiana,
no assentamento, pode-se compreender que essas práticas estão ligadas às
relações coletivas que se estabelecem com famílias de moradores do assentamento
ou famílias vizinhas a ele. Entende-se que a família é o cleo central da
organização do trabalho no lote e que nem todas conseguem suprir suas
necessidades em tempos de colheita ou plantio da lavoura, ou mesmo em relação
ao trabalho na pecuária leiteira. As necessidades de se obter renda por um conjunto
de atividades de produção que complementem os rendimentos obtidos pela venda
163
do leite impõem uma carga de trabalho além da capacidade de mão-de-obra familiar,
forjando relações coletivas que têm a missão de resolver os problemas em torno do
trabalho. Nesse contexto, as tarefas rotineiras, relacionadas à lida com o gado, se
encontram no topo da hierarquia de atividades, pois o trabalho na lavoura se inicia
depois de se ter apartado o gado, realizado a ordenha e armazenado o leite, no
tanque de expansão. Os ciclos da natureza, então, são os ditames do tempo de
plantar, colher e de organizar o núcleo familiar para o trabalho, bem como
determinar o tempo de se realizarem trocas de serviço. Nesse contexto, a festa
surge a partir do coletivo ou por promoção autônoma, que não deixa de incluir o
coletivo. Mas o trabalho é o eixo principal e prática estruturante do cotidiano das
famílias, no assentamento Divisa. A festa pode acontecer depois que as tarefas
rotineiras foram realizadas, sobrando tempo livre para o lazer.
Nesse contexto, os modos de vida se estruturam em um conjunto de práticas
que garantem a reprodução da vida. O trabalho é o principal meio para se garantir a
reprodução e se inscreve como prática norteadora das demais atividades
pertencentes ao cotidiano. Nesse sentido, os modos de vida o se resumem às
estratégias de gerenciar os meios que lhe garantam a sobrevivência material. Mas,
ao pensarmos o cotidiano constituído por práticas que estruturam a reprodução da
vida, estamos nos referindo a um conjunto de alternativas que promovem a
continuidade das relações sociais por estratégias as mais diversas, que foram
produzidas em outros momentos históricos, constituintes das trajetórias de vida das
famílias moradoras do assentamento e que também são essenciais para que a
família continue garantindo a posse do lote.
Podemos afirmar que os desencontros das trajetórias de vida se manifestam
no espaço do assentamento, em um cotidiano constituído por práticas diversas e
164
divergentes, potencializando formas coletivas de se relacionar que, constantemente,
são alinhadas pelos ditames dos tempos lineares do trabalho rotineiro e do tempo
cíclico da natureza.
Nesse contexto, existem aquelas famílias com modos de vida estritamente
ligados à produção a partir da terra, que se sustentam pelos ganhos obtidos na
lavoura ou na pecuária e que são autônomas quanto ao desenvolvimento de suas
tarefas rotineiras, não necessitando participar de trabalhos coletivos para trocas de
serviço, pois, esporadicamente, são capazes de remunerar mão-de-obra quando
necessitam. Podemos citar, como exemplo, os moradores dos lotes 13, 19 e 21,
que não costumam participar de trabalhos coletivos, ou mesmo de festas
promovidas por famílias moradoras do assentamento.
Outras famílias possuem modos de vida ligados à produção na terra e estão
estritamente dependentes do coletivo, seja para o trabalho ou para a festa. Essas
famílias não conseguem resolver os problemas relacionados à mão-de-obra para o
trabalho no lote, que necessitam gerar renda a partir de duas ou mais atividades
de produção. Sendo assim, o volume de trabalho, nas épocas de plantio e de
colheita, bem como noutras atividades que se relacionam à pecuária leiteira, é
resolvido a partir da troca de serviço com parentes ou vizinhos. Não tendo como
prática visitar a cidade para obter lazer ou festa, o participantes do grupo coletivo,
que promove festas mensais, motivadas pela vontade desse grupo de se reunir para
comemorar aniversários. As famílias moradoras dos lotes 01, 03, 16, 18 e 27 são
exemplos de participantes de trabalhos coletivos de trocas de serviço e de
promotores de festas coletivas, no assentamento.
Outro grupo de famílias surge com um modo de vida que se diferencia dos
demais, pois a reprodução da vida não está totalmente dependente do espaço rural
165
do assentamento, mas se desenvolve a partir da cidade. As famílias que possuem
lotes no assentamento e residem na cidade o participam dos trabalhos coletivos.
Mesmo possuindo atividade de produção em suas terras, essas famílias resolvem o
problema do trabalho a partir da remuneração em dinheiro para algumas famílias
assentadas cuidarem de seus lotes, pois apenas esporadicamente visitam o
assentamento. É o caso do lote nº 08, cuja produção de leite é gerenciada pela mão-
de-obra da família moradora em outro lote. O lote 26 também é exemplo de
propriedade que não possui morador, sendo que o seu proprietário reside na cidade
de Ituiutaba e, em algumas ocasiões, visita o lote, com mão-de-obra trazida da
cidade.
Portanto, no assentamento Divisa residem famílias com modos de vida
divergentes, por possuírem trajetórias de vida que estão desencontradas no tempo e
no espaço, com experiências de trabalho as mais diversas. As experiências de
produção agrícola nos lotes, a partir da criação do assentamento, expressaram as
diferenças nas formas de se apropriar da terra, demonstrando que os fracassos e
sucessos contribuíram para que muitas famílias direcionassem a reprodução da vida
a partir de outros projetos. Apesar de a produção, na terra, ser a principal alternativa
de geração de renda das famílias assentadas, nem todas possuem práticas
cotidianas que as aproximem. Persiste uma diferença de estratégias de reprodução
da vida entre os que permanecem morando no assentamento e aqueles que não
residem em seus lotes. Também divergências entre os próprios moradores do
assentamento, caracterizadas pelas trajetórias de vida e pelas práticas cotidianas,
que se diferenciam no interior de suas estruturas, como é o caso da organização do
trabalho, e as estratégias para suprir a incapacidade de mão-de-obra familiar, em
resolver os problemas de plantio e colheita, que acompanham os ciclos da natureza.
166
Sendo assim, a produção e a reprodução do lugar se realizam por relações sociais
surgidas a partir de modos de vida divergentes, com práticas cotidianas estruturadas
pelo trabalho, que dão sentido à existência das famílias, garantindo-lhes a posse da
terra, a permanência de moradia no assentamento e, conseqüentemente, a
reprodução da vida.
167
3. PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DAS PRÁTICAS
SOCIOCULTURAIS DE PRODUTORES FAMILIARES NO
ASSENTAMENTO
A conquista da terra projetou as famílias beneficiárias em várias situações e
imposições de reprodução da vida, pois muitas deixaram para trás o espaço vivido
para concentrarem seus esforços na produção e reprodução de um espaço
diferente, na luta pela construção de um novo lugar. Nesse desafio de realizar
sonhos, nem todas as famílias permaneceram no assentamento, permitindo que
novos sujeitos assumissem o desafio, a partir da moradia no lote.
A luta pela terra não se resumiu, apenas, à conquista do lote e dos benefícios
fornecidos pelo Governo como incentivo à moradia e à produção agrícola. Diante da
realidade do assentamento e das práticas cotidianas que aí se manifestam, é
possível perceber que a luta pela terra envolve a produção e reprodução do lugar,
por meio das relações sociais e da relação do homem com o ambiente natural.
As famílias que receberam o título de posse da terra, tornando-se assentadas,
não possuem a propriedade, sendo que esta deve ser garantida mediante o
pagamento, em dinheiro, após o período de 10 anos, contados a partir do momento
em que o assentamento é criado. Também devem pagar pela propriedade da terra
os compradores de lotes, pois estes compraram o direito de posse, o direito de se
tornarem assentados. No assentamento Divisa, algumas famílias estão em
situação regular perante o INCRA, pois foram assentadas.
168
A compra e venda de posses é um trâmite ilegal, mas tem sido praticado nos
assentamentos de Reforma Agrária. O diagnóstico sobre essa realidade no
assentamento Divisa, bem como de que os compradores têm se tornado
assentados, demonstra-nos que os compradores têm recebido, por parte do
Governo, os mesmos incentivos financeiros que os outros beneficiários de terra,
igualando-se em condições jurídicas, mas diferenciando-se enquanto sujeitos
participantes das lutas e conquistas coletivas. Desse modo, pode-se considerar que
o Governo tem colocado em prática uma política que incentiva a compra e venda de
posses. A ilegalidade não reside em assentar aquelas famílias que, não participando
da luta pela terra, conquistam os lotes da Reforma Agrária por outros meios, mas se
encontra no caráter incentivador que o ato de assentar oferece àqueles que
conquistaram a terra sem altos investimentos financeiros e, desejando abandonar o
lote, vendem seus direitos de posse.
Com a vinda de novos posseiros, alteram-se as relações de vizinhança e
novas possibilidades de relações são anunciadas. Nesse contexto, a produção e a
reprodução do lugar incorporam novos sujeitos, que agem e reagem às situações
presentes no lugar.
É no processo de produção e reprodução do lugar, no assentamento, que
uma nova trajetória de vida vai sendo estabelecida a partir de sujeitos diversos, com
modos de vida divergentes e práticas cotidianas que os aproximam, no tempo e no
espaço.
A discussão a respeito do lugar, no assentamento, é extremamente válida,
por se tratar de um espaço local, caso queiramos ilustrar o lugar a partir de uma
referência cartográfica. No caso do assentamento, o espaço local torna-se a
referência para as famílias moradoras, pois é ali que elas depositam seus esforços
169
para garantir a posse da terra; ou, poderíamos dizer, manter-se morando na terra,
pois como vimos, anteriormente, não é necessário morar no assentamento para se
obter a posse do lote e, por fim, a propriedade. A garantia de possuir o lote também
é mantida por aqueles que, mesmo morando na cidade, detêm habilidades políticas
e condições financeiras que lhes permitem continuar possuindo a terra e se
mantendo na condição de assentado.
Como se observa pelas práticas cotidianas, a produção do mundo vivido,
utilizando-se este termo de Milton Santos (1997), é possibilitada por habilidades e
saberes advindos de outras épocas, que se manifestam na dialética de construção
do espaço vivido ou mundo vivido. o nos referimos, apenas, às estratégias que
promovem a modificação do ambiente natural, mas às formas de se relacionar,
socialmente, das pessoas que moram no local. Não é um processo constituído por
harmonias, concordâncias ou similaridades entre os diferentes. Pelo contrário, o
lugar é produzido pelos fracassos e/ou sucessos, pelas discordâncias presentes nas
relações de vizinhança, que em nada refletem um espaço uniforme ou produzido
harmonicamente. Nele estão embutidos os processos de negociação entre os
diferentes e a aproximação daqueles que têm afinidades nas formas de se relacionar
e de se reproduzir socialmente.
Portanto, pretendemos tratar de um lugar que é produzido pelo embate, pela
desarmonia entre aqueles que apresentam modos de vida divergentes e que, apesar
das similaridades e encontros na vida cotidiana, possuem diferenças quanto às
habilidades e saberes de se relacionar com a terra e de se inserir e participar,
socialmente, dos processos produtivos rurais no assentamento.
170
3.1. A produção e reprodução do lugar comunitário a partir das relações
sociais
Neste terceiro capítulo, estamos diante do desafio de analisar a produção e
reprodução do lugar. É o momento de apropriar-nos do conteúdo teórico trabalhado
nos capítulos anteriores, sobretudo do entendimento construído acerca dos modos
de vida e das práticas cotidianas. Ao mesmo tempo, devemos avançar teoricamente,
acrescentando outros conceitos que contribuam para alcançar o objetivo proposto.
Nesse sentido, o tópico aborda dois conceitos importantes, que direcionam
valorosamente o estudo do lugar. São eles o espaço e lugar, os conceitos-chave do
texto que se segue.
Os conceitos estão sobrepostos, pois a partir do espaço podemos analisar o
lugar onde se processam relações sociais que o caracterizam e lhe dão sentido. O
espaço, então, emerge como uma categoria de análise mais ampla e merece uma
reflexão profícua, que nos base para compreender o lugar e, conseqüentemente,
analisá-lo, na perspectiva das especificidades das relações sociais.
O espaço geográfico é um conceito amplo e fundamental para a ciência
geográfica, podendo-se afirmar que ele é a “pedra angular” da Geografia. Esse
conceito é desenvolvido sob diversos enfoques, contidos no bojo da evolução das
próprias escolas geográficas. Compreendendo que o conceito de espaço nos remete
ao conteúdo do objeto de estudo da Geografia, analisaremos esse conceito para
justificar ou mesmo facilitar o estudo do lugar.
O conceito de espaço que mais nos interessa, para o estudo do lugar, é o
desenvolvido pelos autores da Geografia Crítica e da Humanística Cultural, pois é
171
especificamente a partir da Geografia Crítica que o espaço se torna um conceito-
chave.
Na escola tradicionalista, os conceitos mais desenvolvidos e direcionadores
das pesquisas foram a paisagem e a região (CORREA, 1995). Nesse contexto, a
Geografia evoluiu no sentido de reafirmar suas bases conceituais, bem como definir
o seu objeto de pesquisa. Diante da fragmentação experimentada pela Ciência, a
qual é dividida, claramente, em Ciência Social e Ciência Natural, a Geografia se
projeta diferentemente das demais ciências, pois “[...] sempre expressou (desde sua
autonomia) sua preocupação com a busca da compreensão da relação do homem
com o meio (entendido como entorno natural)” (SUERTEGARAY, 2001, p. 02).
Sendo assim, ela compartilha de conhecimentos pertinentes às duas áreas da
ciência, sendo que o conceito de espaço, discutido a partir da Geografia Crítica,
apresenta um conteúdo analítico amplo, que permite compreender o espaço como
categoria fundamental na Geografia, que agrega conhecimentos da Ciência Social e
da Ciência Natural.
O espaço, a partir da Geografia Crítica, passa a ser analisado pela
perspectiva marxista, que é desenvolvida amplamente por Lefebvre (1976), como
demonstra Correa (1995). De acordo com Lefebvre apud Correa (1995, p. 25-26),
Do espaço não se pode dizer que seja um produto como qualquer outro, um
objeto ou uma soma de objetos, uma coisa ou uma coleção de coisas, uma
mercadoria ou um conjunto de mercadorias. Não se pode dizer que seja
simplesmente um instrumento, o mais importante de todos os instrumentos,
o pressuposto de toda produção e de todo intercâmbio. Estaria
essencialmente vislumbrado com a reprodução das relações (sociais) de
produção. (LEFEBVRE, 1976, p. 34)
O entendimento de espaço, a partir de Lefebvre, designa a própria
reprodução da sociedade, ou seja, sociedade e espaço não são elementos
dissociados. Os dois são sinônimos e contidos simultaneamente. Não é apenas a
soma de objetos que não interagem no decorrer do tempo histórico. Se interação
172
entre os objetos que estão contidos no espaço ou se aqueles constituem a
reprodução das relações sociais, pode-se entender que o espaço possui uma lógica.
Sendo assim, o seu conteúdo é permeado por uma substância determinante de um
movimento lógico, que se reproduz e é garantido pela existência da própria
sociedade. Se a substância da sociedade é entendida como sendo o tempo histórico
(HELLER, 1992), logo podemos crer que o tempo (histórico) é um conteúdo
relevante na categoria espaço. Em Suertegaray (2001), tempo e espaço são uma
constituição de conceitos, dentre os quais o tempo é uma categoria extremamente
relevante para se compreender o espaço geográfico.
O conceito de espaço, analisado por Santos (2006), apresenta o significado
de um conteúdo formado por: “[...] um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, o considerados
isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá.” (p. 63).
Ao compreender o espaço como um conjunto indissociável de sistemas de
objetos e sistemas de ações, Santos (2006) entende que é possível “[...] trabalhar o
resultado conjunto dessa interação, como processo e como resultado, mas a partir
de categorias susceptíveis e um tratamento analítico [...]” (SANTOS, 2006, p. 64).
Nesse contexto, o tempo emerge como categoria necessária do estudo do espaço,
pois segundo Santos (2006),
A vida social, nas suas diferenças e hierarquias, dá-se segundo tempos
diversos que se casam e anastomosam, entrelaçados no chamado viver
comum. Esse viver comum se realiza no espaço, seja qual for a escalado
lugarejo, da grande cidade, da região do país inteiro, do mundo. A ordem
espacial é a ordem geral, que coordena e regula as ordens exclusivas de
cada tempo particular. Segundo Leibniz (1965), o espaço é a ordem das
coexistências possíveis. (p. 159)
Podemos entender que a reprodução das relações sociais de produção não
ocorre ausente do espaço ou mesmo desligada do tempo. O espaço é o próprio
determinante de tais relações, mas também é determinado (CORREA, 1995). Desse
173
modo, o espaço é constituído de temporalidades, como se pode exemplificar com a
afirmação de Santos (1988) de que o “[...] espaço é a acumulação desigual dos
tempos.”
Ainda em Santos (2006), entende-se que “O espaço é que reúne todos, com
suas múltiplas possibilidades, que são possibilidades diferentes de uso do espaço
(do território), relacionadas com possibilidades diferentes de uso do tempo.” (p. 160).
O espaço, a partir da Geografia Crítica, adquire um sentido amplo. É entendido
como um conjunto de objetos que se relacionam e estabelecem uma lógica
organizacional, que se processa em constante dinâmica de relações. O tempo passa
a ser uma categoria preponderante, pois o espaço não é dissociado da
determinação das temporalidades, ou seja, do resultado da reprodução da
sociedade ocorrida em tempos passados, que emerge no presente sob as
determinações da lógica social instituída. Desse modo, o espaço passa a integrar a
própria sociedade e não é um conteúdo ausente dela. Pode-se falar, então, de
espaço social, concreto e imbricado pelas relações de produção instituídas e
reproduzidas socialmente.
Outra acepção do espaço que se complementa àquela abordada pelos
autores analisados, anteriormente, refere-se ao conceito de espaço abordado pela
Geografia Humanística Cultural, que atribui a ele o sentido de espaço vivido. Nessa
corrente, o espaço é analisado pela perspectiva do singular, onde os grupos sociais
não são vistos ou compreendidos apenas como sujeitos produtores de bens
materiais. Há, no estudo do espaço, uma aproximação com o método
fenomenológico, que privilegia o subjetivo e busca, no próprio homem, a resposta
para compreender suas ações e pensamentos. Desse modo, a Geografia
174
Humanística Cultural se compromete com o estudo do espaço, dando ênfase nos
seguintes conteúdos:
[...] na subjetividade, na intuição, nos sentimentos, na experiência, no
simbolismo e na contingência, privilegiando o singular e não o particular ou
o universal e, ao invés da explicação, tem na compreensão a base de
inteligibilidade do mundo real. (CORREA, 1995, p. 30)
Nesse sentido, considera-se a manifestação dos indivíduos enquanto sujeitos
que agem e reagem às imposições sociais, ou poderíamos dizer imposições
espaciais. A experiência do homem com a terra, com o meio ambiente, com as
pessoas com quem se relaciona, passa a ser valorizada. É nesse ponto que reside a
compreensão da realidade. A cultura passa a ser o elemento principal que está
contido nos sujeitos e se manifesta no espaço através de diversas ações de tais
sujeitos. De acordo com Holzer (1992, p. 40 apud CORREA, 1995, p. 32), “O espaço
vivido é uma experiência contínua, egocêntrica e social, um espaço de movimento e
um espaço-tempo vivido... (que)... se refere ao afetivo, ao mágico, ao imaginário.”
(HOLZER, 1992, p. 440).
Nesse contexto, o estudo do espaço se realiza a partir de um recorte pontual,
onde se estrutura o cotidiano. Na Geografia Humanística Cultural, os conceitos de
lugar e paisagem são retomados para se analisar o espaço vivido. Nesse contexto,
também são elencadas as contribuições da Geografia Cultural, que também é
retomada, com novos apontamentos e reformulações. Especificamente, nesta
pesquisa, optamos por analisar o espaço geográfico do assentamento Divisa a partir
das categorias lugar e paisagem. Porém, neste tópico específico, daremos ênfase
ao estudo do lugar.
A análise do conceito de espaço nos permitiu compreender que o
assentamento Divisa é resultado de ações empreendidas historicamente, que se
manifestam no presente acompanhadas de um conteúdo temporal marcante, que
175
representa a continuidade e também a descontinuidade de ações empreendidas e
experenciadas anteriormente, em tempos passados.
A organização das relações sociais que se manifestam no assentamento
possui uma lógica e uma dinâmica que podem ser analisadas empiricamente,
partindo-se dos sujeitos que produzem e reproduzem o lugar e promovem as
relações sociais. Porém, o lugar no assentamento não se constitui como sistema
fechado às imposições externas, daqueles que, ausentes concretamente do espaço
vivido, contribuem para sua produção e reprodução, como é o caso dos órgãos
governamentais. O espaço é um sistema aberto, onde se manifestam e interagem
sujeitos diversos, com ações e intenções que se diferenciam nos planos ideológicos
e práticos.
Nesse sentido, antes de se pensar o lugar, tornou-se importante analisar o
espaço e compreendê-lo para que, a partir de seus recortes, não se façam
considerações aleatórias que dêem margem para divergências conceituais e
interpretações incoerentes.
O lugar pode ser caracterizado pelo aspecto singular do vivido, da forma de
se viver, que se insere no circuito da vida cotidiana. É o espaço onde os vizinhos se
encontram, onde a afetividade pelos objetos e pessoas do cotidiano é acentuada. De
acordo com Carlos (1996),
O lugar é a base para reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade
habitante-identidade-lugar [...]. Este plano é aquele do local. As relações
que os indivíduos mantém com os espaços habitados se exprimem todos os
dias nos modos do uso, nas condições banais, no secundário, no acidental.
É o espaço passível de ser sentido, apropriado e vivido através do corpo. (p.
20)
Como nos mostra Carlos (1996), o local é o ponto de referência para o estudo
do lugar. A identificação com os elementos constituintes do local é imprescindível
para que o lugar exista. Pode-se até afirmar que este espaço do vivido é produzido
pelas subjetividades particulares, mas nem de longe é erguido pela individualidade,
176
apesar de ser apropriado pelo corpo. Uma característica importante sobre o lugar é
que ele se reproduz a partir dos modos de uso que se erguem nas práticas banais
do cotidiano, pois, segundo Carlos (1996): “[...] o lugar pode ser compreendido
em suas referências, que não são específicas de uma função ou de uma forma, mas
produzidas por um conjunto de sentidos, impressos pelo uso.” (p. 22)
Se o uso remete ao cotidiano, torna-se importante retomar algumas análises
do conteúdo da vida cotidiana, tratado, anteriormente, no capítulo 2, porém
acompanhado de avanços teóricos que ampliem o entendimento do lugar. Nesse
contexto, é de extrema necessidade adentrar no mínimo conteúdo do cotidiano, pois
o lugar possui uma substância que se assenta na particularidade daqueles que
estabelecem os modos de uso. O processo de produção do lugar, então, advém de
práticas cotidianas fundamentadas em particularidades mais específicas e banais,
mas que participam, com toda sua força, da lógica de organização da reprodução
das relações sociais. É importante salientar que, segundo Carlos (1996),
[...] o lugar permite pensar o viver, o habitar, o trabalho, o lazer enquanto
situações vividas, revelando, no nível do cotidiano, os conflitos do mundo
moderno. Desse modo, a análise do lugar se revela em sua
simultaneidade e multiplicidade de espaços sociais que se justapõem e
interpõem no cotidiano com suas situações de conflito [...] O lugar é o
mundo do vivido, é onde se formulam os problemas da produção no sentido
amplo, isto é, o modo como é produzida a existência dos seres humanos.
(p. 26)
Nesse sentido que nos fala Carlos (1996), pode-se compreender que o lugar
se constitui o espaço do embate, do conflito, que faz parte das experiências, no
decorrer da luta pela reprodução da vida. Vitórias e fracassos estão contidos no
caminhar da produção e reprodução do lugar.
No assentamento Divisa fica claro o embate, o choque e o conflito para se
produzir o lugar, quando se analisam os modos de vida das famílias que compõem o
assentamento. Nesse caso, o lugar possui um conteúdo histórico, ligado a trajetórias
177
desencontradas no tempo e no espaço das famílias moradoras do assentamento,
que abandonaram projetos de vida que se materializavam em outros lugares.
O assentamento passou a ser apropriado pelo corpo, pelos sentidos, onde o
ambiente é apreciado, contribuindo para identificação do sujeito com o lugar, em um
processo de determinações mútuas. O estudo da percepção, atitudes e valores do
meio ambiente, como realiza Tuan (1974), demonstra a relação do homem com o
meio por um processo sentimental, no qual ele nos diz que
O termo topofilia associou sentimento com lugar [...] Os estímulos sensoriais
são potencialmente infinitos: aquilo a que decidimos prestar atenção
(valorizar ou amar) é um acidente do temperamento individual, do propósito
e das forças culturais que atuam em determinada época. (p. 129)
Porém, não se deve pensar o lugar apenas como espaço apropriado,
valorizado pelos sentidos. Devemos ir um pouco mais além, ao analisar os conflitos
que emergem pelos estranhamentos ao se relacionar com o outro, que também
possui um modo de uso e apropriação do ambiente. Ao analisar a produção do
lugar, entendemos que ele não se constrói por um processo o harmônico e
tranqüilo como nos apresenta Tuan (1974), ou mesmo dependente de
temperamentos, que determinam escolhas pelo amar ou odiar o lugar. É importante
considerar o inesperado e o conflito entre aqueles que, em poucos aspectos, se
igualam quanto aos modos de vida. É por meio das relações sociais que se pode
apreender a realidade da produção do lugar. Nele estão contidos harmonias e
desarmonias, pois não se predominam modos de uso semelhantes ou atitudes
similares. Desse modo, pretendemos analisar as relações sociais estabelecidas no
assentamento, para compreender a produção e reprodução do lugar.
O trabalho, como prática cotidiana das famílias assentadas, não se realiza de
maneira individual, autônoma e independente. Como vimos, relações coletivas
estabelecidas, que contribuem para garantir a reprodução familiar. As trocas de
178
serviços podem ser costumes aparentemente corriqueiros, mas possuem um
conteúdo de grande valor para a reprodução da vida. É até curioso pensarmos o
porquê de essas trocas não serem praticadas por todas as famílias do
assentamento.
Para pensar o lugar e sua lógica, adentramos nas relações de vizinhança
construídas historicamente, no assentamento. Os conflitos e embates que se
materializam no espaço vivido o elementos aparentemente banais e pouco
significantes, porém participam, ativamente, na construção de afinidades entre as
famílias.
O primeiro conflito que se instaurou no assentamento teve como motivo a não
permanência das famílias nos lotes. De acordo com o relato do entrevistado 09.,
morador do lote nº 18, houve estranhamentos entre aqueles que queriam ali morar e
os que demonstravam não desejar residir no assentamento,
“Porque geralmente o INCRA... de início, depois não, mais no início tem que
morar gente séria e se num morar... e isso acabou tendo até um
constrangimento entre a gente, moradores daqui mesmo, uma demanda
disgramada, teve uma briga entre a gente com os que num vinha. Um
falava... eu posso vim daqui dois ano e num vinha nada e gerou até uma
polêmica nisso aí... na verdade teve uns quatro aí que falou que num
morava. Não é que num morava, ficava na cidade e vinha final de semana.
Quando dava certo. Aí, por exemplo, surgiu alguma verba que a gente
pegava dava muita dificuldade para gente nesse sentido e por exemplo...
quando você ia fazer uma reunião você tinha que ficar ligando ou mandando
os outros pessoal vim. Quando mora tudo você tem uma certa facilidade de
avisar porque ta encontrando todo dia.” (Informação Verbal)
26
A proximidade entre as famílias, por meio das relações de vizinhança, é uma
condição importante, na visão do entrevistado 09. O anseio em permanecer na terra
foi dependente, também, dos planos coletivos impostos pelo Governo. Porém, como
não foi de interesse de todos os beneficiários residirem no assentamento, em seus
respectivos lotes, o plano coletivo esteve ameaçado e, por conseguinte, também a
26
Entrevista realizada em Setembro de 2007.
179
terra conquistada. Sendo assim, os conflitos se estabelecem a partir de interesses e
propostas individuais que ameacem o coletivo.
Os desgastes na relação entre vizinhos foram desencadeados pela não
permanência na terra, que trouxe desdobramentos futuros em relação à afinidade e
aproximação entre famílias. Nos diálogos com o entrevistado 07, ele nos relatava a
respeito do convite de casamento que havia recebido, algumas semanas antes, de
uma família moradora do assentamento. Segundo o entrevistado 07, o convite foi
recebido com muita surpresa, que sua família não estabelece relações amistosas
com a família da noiva que iria se casar e era moradora do assentamento. Na época
em que houve embates entre aqueles que queriam morar nos lotes e aqueles que,
possuindo lotes, moravam na cidade, o pai da noiva havia feito uma denúncia para o
INCRA, relatando os nomes dos beneficiários que moravam com ou sem família no
assentamento, bem como daqueles que queriam manter o lote sem nele residir. Isto
desencadeou intrigas e desavenças entre essas duas famílias, pois a família do
entrevistado 07 residia em Ituiutaba-MG e vinha para o seu lote nos finais de
semana.
Mas a entrega do convite de casamento à família do entrevistado 07
demonstra que o convívio, nas relações de vizinhança, pode ser rompido e também
restabelecido por estratégias de aproximação as mais diversas.
Outro desdobramento refere-se à divisão da associação, que foi criada em
1999 e, no ano de 2001, foram formadas duas associações. Nesse ano, quando se
acentuaram as desavenças entre os grupos que moravam no assentamento e os
que residiam na cidade, houve a divisão da associação. De acordo com o
entrevistado 09,
“Existe vários ponto né, e esse mesmo do pessoal não morar foi um ponto
desgastante pra todo mundo, né. Porque inclusive, depois, um fato que eu
achei ruim foi a separação da associação, né. Quando a gente entramo
180
aqui, falávamo companheiro e companheira pra ta sempre junto. quando
cada um pega seu lote por si você distancia um pouco porque cada um...
quando você ta coletivo, a gente ta acampado ali é uma coisa, né.
quando cada um pega seu lote, fica mais distante um pouquinho. Mas
depois quando se dividiu, raca associação, por exemplo, formaram dois
grupos eu achei assim... muita dificuldade. Por ser um grupo muito
pequeno, todo mundo conhecido, né, por ter rachado eu achei que não foi
viável.” (informação verbal)
27
Apesar da intimidade entre as famílias que participaram do acampamento,
nem todos colocaram em prática um plano comum, ao definirem a apropriação dos
lotes. Isto é percebido quando se observa que, dentre os lotes pertencentes a cada
grupo de famílias oriundas de um município, houve venda de posses.
Acompanhada do fato desgastante da não permanência das famílias no lote,
a venda das posses foi uma prática que também gerou preocupações por parte
daqueles que conquistaram a terra por meio da ocupação e acampamento. A vinda
de famílias compradoras não foi um fato agradável para alguns assentados, pois, de
acordo com o relato do entrevistado 09,
“Toda vida eu falei o seguinte: se o cara veio pra trabalhar e quisesse
trabalhar... queria que ficasse os vinte e sete que entrou porque era um
motivo de incentivo pra gente, que passou todo sofrimento e a gente tudo
inexperiente. Mas aqueles que depois num adaptou e que num queria
trabalhar eu achava viável vender e colocasse alguém que precisasse e que
trabalhasse. Porque também, porque isso aqui você gera um pouco de
emprego, você gera renda, né. É a pessoa ficar pra não trabalhar também
num vai... por exemplo, você sair da cidade pra vim ficar parado,
dependendo dos outros é pior do que ta na cidade mesmo do que deixasse
quem quisesse trabalhar na terra.” (informação verbal)
A defesa daqueles que querem a terra para trabalhar fica evidente na fala do
Entrevistado 09. É possível compreender que o desgaste na relação entre os
moradores do assentamento e os beneficiários que ali não residiam não tem, como
único motivo, a dificuldade de contato ou não participação dos não moradores na
construção de projetos e reuniões coletivas, como nos relatou anteriormente o
entrevistado 09. Acrescentemos como motivo o trabalho, para ampliarmos a
compreensão das relações sociais que se estabelecem no assentamento. O trabalho
27
Entrevista realizada em setembro de 2007.
181
é uma prática cotidiana que pode implicar o modo de uso da terra. No caso do
assentamento Divisa, a produção do lugar, a partir de relações sociais, envolve o
valor que as famílias dão ao trabalho. Isto porque, na fala do entrevistado 09, o
trabalho na terra é essencial, mesmo que no lote permaneça morando outra família
que não tenha sido companheira de luta. Mas as relações estabelecidas entre
aqueles que compraram posses no assentamento e as famílias assentadas desde a
criação do projeto não ocorreram de forma harmônica, mesmo que os compradores
tenham permanecido nos lotes e neles trabalhado, para garantir a reprodução da
vida.
Por meio de diálogos informais, fomos descobrindo como se deram as
relações entre famílias assentadas e compradoras de posses. Numa entrevista com
o entrevistado 19, ele nos relatou que sua família comprara o lote 10 meses, e
como sempre trabalharam com produção leiteira, continuaram reproduzindo essa
atividade no assentamento. Sendo assim, sua produção de leite é depositada,
diariamente, no tanque de expansão, que se localiza no lote 18. Ele narrou um
episódio interessante, que ilustra sua relação de vizinhança.
“Assim que a gente mudou pra cá eu comecei a pôr o leite ali. E aí,
acontece de pessoa às vezes não dar certo com você. Até mesmo um
vizinho sem motivo nenhum resolveu criar um problema comigo até
estranho. Ele alegou que o problema que eu tinha de pôr o leite no
resfriador é que eu tirava leite demais. Nosso leite era muito. esse dia a
gente discutiu, entrou em atrito. E foi isso aí. Também, não sei é uma
pessoa que não compensa levar em consideração, porque é cabeça fraca.
Daí dois, três dias, já estava aqui na porta da minha casa conversando,
então eu deixei aquilo pra lá. Mas a gente sempre lembra desse episódio.
Eu não conhecia ninguém e fazia praticamente dois meses que eu tava aqui
e a gente começa a ver que aqui tem todo tipo de pessoa.Simplesmente
ele enxergou que o motivo que ele discutiu comigo, foi um motivo bobo, que
não teve o menor sentido. Ele procurou aproximação e eu não fugi dessa
aproximação. Eu podia ter falado que não queria papo com ele, mas
simplesmente eu falei tudo bem, se você quer aproximar. Até porque não
seria bom pra mim já criar uma indisposição com uma pessoa logo na
chegada, né. For ficar diferente com um vizinho por causa de uma bobeira,
182
acho que isso foi uma bobeira da parte dele e a gente deixa isso pra lá.
(Informação Verbal)
28
Podemos perceber que as pessoas que produzem o lugar nem sempre
aceitam o outro, por este ser diferente. O ato de “tirar leite demais” demonstra uma
diferença que se apresenta em relação ao trabalho, à capacidade de produção que o
comprador de posse da terra desenvolve, no assentamento, sob uma infra-estrutura
mais bem desenvolvida. A infra-estrutura que o comprador possui, em seu lote,
difere de algumas outras, em parcelas de terra pertencentes às primeiras famílias
beneficiárias do projeto de assentamento.
Alguns dos compradores que vieram para o P. A. Divisa trouxeram gado,
maquinário agrícola e encontraram o lote cercado, com casa, poços d’agua, currais,
etc., toda uma infra-estrutura que foi produzida pelo assentado que lhe vendeu a
posse. Essa condição favoreceu a produtividade de alguns compradores, que
continuaram reproduzindo as mesmas atividades agrícolas em que trabalhavam,
anteriormente.
Por parte dos compradores, um esforço para construir novas relações de
vizinhança, de modo que, para se integrar ao grupo coletivo de uma das
associações de produtores, torna-se necessário solidificar tais relações e não
rompê-las.
Mas a aproximação e o conflito não se apresentam apenas entre os
assentados e os compradores de posses. Entre os próprios compradores existem
conflitos nas relações de vizinhança, que determinam o curso da reprodução de
relações mais amplas, aquelas que envolvem o coletivo.
28
Entrevista realizada em setembro de 2007.
183
Como nos foi relatado pelo entrevistado 13, a sua divisa de cerca com o lote
16 estava alterada desde quando comprou a posse da terra. Segundo o
entrevistado 13,
“O cara que me vendeu esse lote aqui, o tal de Gumercindo, eu achei ele
muito irresponsável, porque o cara quando é homi ele não precisa fazer as
coisa escondido. Quando eu comprei aqui. Quando o Elias comprou tava
errado. Quando o Gumercindo, que era dono aqui, que ele comprou
primeiro que o Elias. Quando ele comprou, comprou com a cerca errada.
A cerca tava dentro do chão dele, que é meu hoje, . Ele me contou e eu
nem sabia o motivo disso. o Elias, pega, compra também e continua
do mesmo jeito errada. Não sei se ele quis pôr isso no lugar, eu não sei.
Não vou falar que eu não sei de nada disso, né. Eu sei da minha parte.
quando eu vim pra eu não sabia. O véi que me vendeu não falou nada.
Se ele me falar que a divisa tava errada, aí eu procurava o Elias antes de
comprar pra saber dele se nós punha ela no lugar. Porque se falasse que
não ia pôr eu não comprava o chão. Eu comprar encrenca pra quê? Eu
nunca precisei disso... nós percorremo a divisa todinha. Teve a reunião
depois na sede e falou que era pra pôr a cerca no lugar e foi o que
aconteceu. Hoje ela no lugar certo onde devia tá. tinha que anos
atrás. Tudo que acontecer aqui dentro, quem tem que resolver mais é o
INCRA. Por causa disso a gente quase não relaciona, de jeito nenhum.”
(Informação Verbal)
29
A negociação para se resolver o problema da divisa não foi satisfatória entre
os vizinhos, sendo que a alternativa foi recorrer ao INCRA, para que este
determinasse que a cerca fosse alterada. Na fala do entrevistado 13, fica evidente
sua preocupação em não ter conflitos com outras pessoas, especialmente com a
vizinhança. Depois das discordâncias, o entrevistado 13 não mais participa dos
trabalhos coletivos de colheita das lavouras, pelo sistema de trocas de serviço.
Pouco antes de se frustrar com as negociações junto ao vizinho, ele participara da
colheita de arroz, que foi realizada de forma coletiva no lote nº 16. Sendo assim, não
participou da colheita do gergelim, realizada no mês de Abril.
Mas nas relações de vizinhança ainda persistem gestos de cordialidade e
solidariedade, como nos relata o entrevistado 14,
“Se um vizinho chegar precisando, como diz, o que eu tiver, graças a Deus.
Só se eu não tiver mesmo. Mas o que tiver a gente socorre na hora. A gente
vende, dá. Se for uma pessoa conhecida a gente dá. Ou empresta e a gente
devolve, entendeu. A maioria a gente dá, porque se for um vizinho próximo
29
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
184
da gente ou que seja um conhecido, ovo, frango, essas coisas a gente o
vai vender, porque isso faz falta, né.” (Informação Verbal)
30
As relações sociais que se estabelecem no local produzem o lugar por uma
perspectiva do embate, da negociação, da tolerância e da solidariedade, que se
manifestam em práticas que estruturam o cotidiano. Desse modo, não se pode
dissociar a produção das atitudes que estão imbricadas nas relações de vizinhança
e que podem interferir nas formas coletivas de se relacionar. O lugar não é uma
produção individual, ou mesmo harmônica. projeções que se relacionam a
projetos individuais, mas que somente se realizam no coletivo ou em função dele.
Apesar de o trabalho ser uma categoria de grande importância para os
assentados, não é somente ele que garante a condição do bom vizinho. No caso do
assentamento, a história de lutas das famílias que participaram da ocupação e do
acampamento é relevante para os assentados, e não basta apenas morar na terra
para que se tenham afinidades e se promovam relações sociais. É necessário ter
habilidades para contornar os inconvenientes, solidarizar-se com a condição do
outro; é possível, entretanto, não se estabelecerem relações de proximidade, por se
ser diferente e, talvez, considerado melhor. O espaço vivido é produzido por formas
de pensar e agir que promovem o embate e o conflito, demonstrando que a
produção do lugar se processa pela lógica do contraditório, de aproximações e
distanciamentos entre os sujeitos que participam desse processo.
3.2. Paisagem do lugar: resultado das relações com o meio
O contexto da produção e reprodução do lugar também pode ser analisado a
partir da paisagem. Como categoria analítica do espaço, a paisagem apresenta um
30
Entrevista realizada no mês de setembro de 2007.
185
conteúdo teórico que orienta, metodologicamente, a investigação da realidade, e nos
permite tecer considerações relevantes que contribuem para elaboração do
entendimento do lugar.
Paisagem é um conceito-chave nos estudos culturais e, por ter sito retomado
nas análises da corrente humanística-cultural, é de grande relevância para se
compreender a transformação que o espaço sofre, a partir do processo de
reprodução da sociedade. É necessário pensar a paisagem como sendo um
conceito complexo, que não se resume àquilo que pode ser percebido pelo campo
visual. Nesse sentido, propomos, primeiramente, uma diferenciação teórica entre
espaço e paisagem.
O espaço, como conceito amplo, necessita de recortes para que seja
analisado minimamente, nos detalhes que o compõem, pois apreendê-lo, em sua
totalidade, é uma tarefa que necessita de orientação metodológica. Sendo assim,
pode-se dizer que a paisagem é uma categoria analítica do espaço, que permite
compreendê-lo por um viés específico, único e complementar às demais categorias,
como por exemplo, o lugar.
Milton Santos (2006), ao diferenciar espaço de paisagem, afirma que
Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é o conjunto de formas
que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as
sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são
essas formas mais a vida que as anima [...] a paisagem se como um
conjunto de objetos-concretos. Nesse sentido, a paisagem é transtemporal,
juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal. O
espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação
única. (p. 103)
Essa diferenciação não encerra a compreensão acerca do conceito de
paisagem. Sua contribuição introduz a necessidade de apontar outras reflexões
acerca do conceito. Compreendendo que espaço e paisagem possuem diferenças
consideráveis, mas se aproximam enquanto recorte da realidade, que é a própria
sociedade, podemos prosseguir nossas análises a partir de reflexões específicas
186
acerca da paisagem, de modo que se produza a análise deste conceito para a
compreensão do lugar.
É importante ressaltar que os termos paisagem e lugar o o entendidos
como equivalentes, muito menos como excludentes. Pelo contrário, estão
sobrepostos e se interpõem, estando um contido no outro. A paisagem pode ser
entendida como um conteúdo dotado de aspectos visíveis, que poderíamos
denominar perceptíveis, e elementos não visíveis (TROLL, 1996). No entendimento
de Troll a paisagem seria, então, constituída por um conteúdo fisionômico ou formal
e outro funcional. As formas dos objetos constituintes da paisagem apresentam uma
funcionalidade que lhe dá sentido e dinâmica relacional.
No aspecto funcional estão contidos diversos fatores que interagem em
determinações mútuas, como a economia, a cultura, a política, etc., contribuindo
para a constituição de formas na paisagem que podem ser apreendidas
perceptivelmente. No processo de interação entre os geofatores (TROLL, 1996),
diversas formas e conteúdos da paisagem convivem com elementos de outros
tempos, produzidos e reproduzidos em épocas bastante distantes no tempo. De
acordo com Troll (1996),
Todas as paisagens refletem também transformações temporais e
conservam testemunhos de tempos passados. Mas enquanto paisagens
naturais só variam em ritmo secular ou geológico, as paisagens econômicas
mudam relativamente depressa, de geração em geração e, inclusive,
durante a própria observação do geógrafo. ( p. 03)
Ao analisar a funcionalidade contida na paisagem, deve-se considerar que
não são apenas elementos do presente que interagem para a produção da
paisagem geográfica. diversidade de formas que são testemunhos de outras
épocas, podendo ou não possuir funcionalidade no tempo presente.
Na perspectiva de Troll (1996), a paisagem não é analisada somente pelo
enfoque naturalístico, mas também pelo viés cultural, como resultado da ação do
187
homem sobre o meio. Por fim, pode-se chegar a uma primeira definição de
paisagem.
O termo paisagem geográfica diz respeito a um setor da superfície terrestre
definido por uma configuração espacial determinada, resultante de um
aspecto exterior, do conjunto de seus elementos e de suas relações
externas e internas, que estão enquadrados pelos limites naturais das
outras paisagens de caráter distinto. (TROLL, 1996, p. 4)
Outra definição de paisagem que se aproxima da anterior e a complementa,
apresentada por Troll (1966), refere-se ao entendimento de paisagem elaborado por
Sauer (1998). Recapitulando, em Troll (1996) a paisagem possui um conteúdo
fisionômico, que podemos entender como formal. Esta, por sua vez, possui conteúdo
funcional, de intenção, que lhes dão sentido. No conteúdo da paisagem estão
preservados testemunhos de outras épocas, que podem ou não ter funcionalidade
no espaço presente.
O conceito de paisagem apresentado por Sauer (1998) aproxima-se do
conceito elaborado por Troll (1996). De acordo com Sauer (1998), paisagem pode
ser definida como
[...] uma forma da terra na qual o processo de modelagem não é de modo
algum imaginado como simplesmente físico. Ela pode ser, portanto, definida
como uma área composta por uma associação distinta de formas, ao
mesmo tempo físicas e culturais. (p. 23)
Os dois conceitos se aproximam por tratarem de aspectos externos da
paisagem. Enquanto Troll (1996) considera a fisionomia, Sauer (1998) trata de
morfologia. Porém, os dois termos não podem ser tomados como sinônimos ou
equivalentes. Fisionomia se diz do aspecto visível, perceptível aos sentidos,
enquanto morfologia relaciona-se à maneira de se classificarem as formas presentes
na paisagem.
Para Sauer (1998), a natureza é entendida como paisagem natural e está
submetida à intervenção do homem, que por meio de sua cultura transforma a
188
natureza de acordo com o seu interesse. Sendo assim, Sauer (1998) nos fala de
paisagem cultural como sendo
[...] área geográfica em seu último significado. Suas formas são todas as
obras do homem que caracterizam a paisagem. Com base nessa definição,
em geografia não nos preocupamos com a energia, costumes ou crenças
do homem, mas com as marcas do homem na paisagem. (p. 57)
Nessa perspectiva, o estudo da paisagem elege como centro de investigação
o resultado da relação do homem com a natureza, produzido culturalmente. Nesse
contexto, podem-se incluir as técnicas que permitem ao homem alterar o meio
natural. Tomando-se como referência a paisagem do assentamento Divisa e seu
conteúdo cultural, podemos afirmar que a criação do projeto de assentamento
representou um marco importante para a modificação da paisagem da fazenda
Divisa. Após as famílias se tornarem assentadas houve a produção de uma nova
paisagem, que resultou em novas formas ou fisionomias, que se relacionam com
novas funcionalidades. Sendo assim, concordamos com Troll (1996) quando ele
afirma que as “paisagens econômicas mudam relativamente depressa”. Nesse caso,
entende-se, por meio de Sauer (1998), que a paisagem cultural também possui
ciclos de mudança que estão atrelados à funcionalidade que rege e coordena a
construção de marcas na paisagem.
Pensando a paisagem como marca, podemos recorrer ao conceito elaborado
por Berque (1998), para ampliar nosso entendimento a respeito de paisagem
geográfica
Como manifestação concreta, a paisagem está naturalmente exposta à
objetivação analítica do tipo positivista; mas ela existe, em primeiro lugar, na
sua relação com um sujeito coletivo: a sociedade que a produziu, que a
reproduz e a transforma em função de uma certa lógica [...] A paisagem é
uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz
porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação – ou
seja, da cultura que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma
sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu
ecúmeno. E assim, sucessivamente, por infinitos laços de co-determinação.
(p. 85)
189
Tendo-se o entendimento de que a paisagem é dotada de funcionalidade,
também podemos compreender que ela é marca e matriz das ações dos homens. A
marca se refere ao resultado da relação do homem com a natureza e com a própria
sociedade. Essa mesma marca se torna matriz para o estabelecimento de novas
formas e funções, ou seja, podemos entendê-la como possuidora de um caráter
absoluto, devido a não se poderem construir novas marcas sem recorrer às marcas
empreendidas anteriormente. Nesse processo de construção, marcas antigas vão
perdendo ou adquirindo funcionalidades. De acordo com Sauer (1998), “Com a
introdução de uma cultura diferente, isto é, estranha, estabelece-se um
rejuvenescimento da paisagem cultural ou uma nova paisagem se sobrepõe sobre o
que sobrou da antiga.” (p. 59)
Nesse sentido, o P. A. Divisa é um exemplo de paisagem marca e matriz, por
possuir seu espaço modificado em um período curto de tempo por uma “nova”
cultura, ou poderíamos dizer, mais especificamente, modos de vida que interagem e
se estabelecem no espaço.
Por meio da análise dos vários conceitos de paisagem, abordados
anteriormente, foi possível compreender que a paisagem deve ser enfocada, em
seus aspectos naturais e culturais, tomando-se como referência inicial as formas que
ali estão postas, para adentrar, minimamente, na funcionalidade que as rege. Nesse
contexto, devem ser consideradas as marcas e funcionalidades anteriores, pois a
paisagem que se encontra no presente é carregada de conteúdos de outros tempos,
que possuem ou não funcionalidade. O conceito de marca e de matriz nos remete ao
entendimento de que as marcas e as funcionalidades que as determinaram, em um
período histórico anterior, tornaram-se matrizes para a produção da paisagem que
se organiza e se manifesta no espaço presente.
190
Ao analisarmos a produção do lugar, tendo como referência as relações
sociais, foi possível compreender que tais relações não se produzem sem que haja a
materialidade também produzida. Nesse sentido, as marcas que as famílias
empreenderam, no espaço do assentamento, representam um conteúdo significativo
para a produção e reprodução do lugar.
Durante as visitas ao P. A. Divisa, tivemos a oportunidade de observar a
paisagem por diversas vezes, tomando como referência a percepção por meio dos
sentidos.
A paisagem, observada pelo ouvir, pelo ver, pelo sentir, foi um guia para que
pudéssemos analisar as formas presentes no assentamento, ou seja, as marcas que
as famílias empreenderam por meio dos modos de uso da terra. Foi uma tarefa
interessante trabalhar com os sentidos e descrever o ambiente de uma forma
agradável, a mesmo poética. Para nós foi o momento de desenvolver a
observação e dar significado de importância àquilo que para muitos pesquisadores
poderia ser visto como algo comum.
Em um dia qualquer de visita ao assentamento é possível perceber que os
animais berram à beira do curral logo pela manhã, pouco depois de o Sol raiar. O
mugido das vacas parece clamar pelas crias, como se elas necessitassem se
alimentar do leite somente naquele mesmo horário, todos os dias. É possível escutar
muito bem o mugido do gado que está apartado de suas crias, demonstrando estar
inquieto por desejar compartilhar um contato caloroso com seus filhotes, como se
compreendesse que somente o seu pastor é capaz de atender-lhe o desejo.
Para o homem do campo, o tempo de realizar os afazeres, no curral ou na
roça, não é orientado pelo relógio de horas marcadas, ao qual as pessoas da cidade
191
recorrem diariamente. Esse mesmo relógio parece ser desnecessário para despertar
o homem e sua família, para o trabalho na terra.
No assentamento, não é apenas o gado que desperta as pessoas do lugar
para o trabalho. O mugido dos animais junta-se ao canto dos pássaros, que voam de
árvore em árvore, cantando incansavelmente. São pássaros pretos, araras azuis,
pardais, canarinhos, curicacas e seriemas, cujos cantos podem ser escutados,
nitidamente, ao longe. São tantas as aves que elas parecem se revezar como
músicos em uma orquestra e, em alguns momentos, produzir uma harmonia de sons
intercalados que causam encantamento e curiosidade às pessoas que não estão
acostumadas a ouvir, diariamente, essa multiplicidade de sons.
Os galos parecem ser preguiçosos, se comparados aos pássaros, que ao
raiar do sol celebram com seus cantos o início de um novo dia. Os “donos do
terreiro” cantam poucas vezes pela manhã, mas são importantes para marcar o
caminhar da noite. Suas manifestações tenóricas são espaçadas, pontualmente,
durante as noites estreladas ou nebulosas, como se eles fossem um relógio que
despertasse de hora em hora. Logo pela manhã, o galo reúne o seu plantel de
galinhas para aguardar o momento em que o seu dono abrirá a porta da cozinha e
lançará ao solo do terreiro dos fundos da casa a sua ração diária. Caso ocorra
algum atraso na entrega do milho, as galinhas se encarregam de conversar um
pouco mais alto, para que os de dentro se compadeçam de suas necessidades
vitais.
Os cachorros permanecem atentos quanto aos inconvenientes que possam
interferir, de forma agradável ou desagradável, na rotina de seus donos. Estão
sempre de prontidão, observando cobras e outros animais que se aproximem da
propriedade e ameacem qualquer ser que tenha vida, principalmente o seu dono.
192
Eles são fiéis denunciadores daquilo que é estranho ao que eles estão acostumados
a ver e ouvir. Seus latidos, durante à noite, demonstram que algo diferente pode
estar ocorrendo nas imediações da residência de seu amo. Geralmente, latem para
alertar os de casa sobre um lobo guará ou uma raposa que, esporadicamente,
aparecem, de forma sutil e silenciosa, para perturbar o sono das galinhas. Poucas
vezes o chefe da família se levanta para ver o que está acontecendo, já que acredita
na destreza e competência de seus súditos. Basta os cachorros pararem de latir,
como sinal de que tudo permanece harmônico e em ordem, para que os seus donos,
que estão em casa repousando, possam voltar novamente a dormir.
O gato é outro animal que exerce um papel importante na hierarquia do
trabalho dos animais na propriedade rural. Sua função é exercida principalmente
dentro de casa, longe do ardor do sol ou da umidade do sereno da noite. Eles
trabalham à sombra, vasculhando a casa e casebres à procura de ratos e outros
pequenos animais. Pelas manhãs, hora comum em que todos os animais aguardam
a presença de seus donos, os gatos também estão ali, pelas portas ou janelas, com
seus miados aperreados, demonstrando o quanto estão famintos pelas quitandas
feitas pela dona da casa e sedentos pelo leite, que será pontualmente ordenhado.
Os animais são os primeiros a acordar para o dia e a despertar as pessoas do
lugar. Muitos deles não dormem à noite, mas pela manhã estão sempre ali,
aguardando a manifestação de seus donos. Porém, volta e meia são surpreendidos
com o madrugar dos de dentro que, esporadicamente, acordam antes de o Sol raiar,
quando necessitam apressar o trabalho de ordenha para visitar a cidade, participar
de uma colheita no lote de algum vizinho, trabalhar para algum fazendeiro conhecido
ou vizinho de lote.
193
O ato de levantar antes do horário aguardado pelos animais domésticos não
frustra a expectativa deles nem os deixa mal acostumados para que, no outro dia,
acordem o seu dono no mesmo horário em que ele lhes servira o alimento, no dia
anterior. A rotina dos animais, principalmente os domésticos, parece acompanhar
uma linearidade de horários que se conjuga com os momentos que o homem
estabelece enquanto tempo de trabalho. Desse modo, as adversidades do tempo de
início da lida no curral ou na roça, desde que não ocorram com freqüência, não
interferem no costume das crias em modificar também seus horários de despertar
para o dia.
O despertar no campo independe das condições metereológicas. Este,
diariamente, é observado por alguns sujeitos mais atentos, que conseguem
perceber, nas atitudes dos animais ou na direção dos ventos se, no período de vinte
e quatro horas, poderá chover ou mesmo haver mudanças bruscas de temperatura.
Podemos citar como exemplo o entrevistado 01, o qual concedeu sua casa para que
pudéssemos ficar alojados, todas as vezes em que fôssemos a campo. Tais
observações foram realizadas sempre que tivemos a oportunidade de acompanhá-lo
na lida diária ou no tempo de descanso.
Numa certa tarde estávamos reunidos na casa de sua filha, moradora do lote
vizinho. Eram aproximadamente três horas da tarde e o entrevistado 01 e nós
ouvimos um pássaro conhecido como anu-preto cantar em meio às árvores do
quintal da casa. Imediatamente ele nos informou que, naquele mesmo dia ou no
prazo máximo de 24 horas, iria chover. Alguns que estavam por ali o acreditaram
em sua fala pois, como observamos, o tempo naquele momento estava com
temperaturas altas e sem quaisquer nuvens no céu.
194
Mas no final da tarde ocorreu uma chuva que durou, aproximadamente, 40
minutos, acontecendo o que poucos esperavam. Numa conversa posterior com o
entrevistado 01, ele nos relatou que alguns animais podem sentir as mudanças do
tempo e nos indicar se ocorrerão chuvas ou não. O seu conhecimento sobre a
natureza advém de uma trajetória de vida ligada à terra, como ele nos informa:
“Eu nasci, por exemplo, mexendo com gado. Desde eu pequeno, que
comecei a andar mexendo com gado. Porque era o serviço que tinha,
nessa época, aí, mexi desde pequeno, estudei pouco e não consegui um
serviço melhor, um emprego. Tive que ir pra roça mesmo, né. é um
serviço grosseiro assim mesmo, eu acho bom. Eu trabalhei pros outros,
trabalhei muito tempo, aí depois comecei a alugar chão, arrendar, já
trabalhava diferente, né. Contando que não era empregado assim, né.
Trabalhava de arrendado na roça a mesma coisa. Trabalhei de pedreiro um
bucado de tempo, assim, mais nas horas vaga pra melhorar o salário um
pouquinho.” (Informação Verbal)
31
Outros sujeitos não possuem saberes a respeito da natureza, que não
tiveram uma trajetória de vida ligada ao trabalho na terra. Podemos citar, como
exemplo, o entrevistado 25. Nos relatos a respeito de sua trajetória de vida, ele nos
disse o seguinte:
“Eu aprendi tirar leite aqui, sozinho. Eu pensei que ia ser melhor pra mim,
né. Eu pensei mesmo. Acho que ta (estar no assentamento), tirar um
leitinho é melhor, né. Porque lá a gente tem um dinheirinho todo dia. Pouco,
mas tem. Porque você ta na cidade mas não tem dinheiro todo dia. o
bicho pega.” (Informação verbal)
Em seus relatos ficou claro que o seu primeiro contato com o trabalho na terra
se deu no assentamento Divisa, demonstrando que as marcas na paisagem não são
empreendidas por uma funcionalidade única, pois os saberes e habilidades,
presentes no conteúdo cultural das famílias, as diferencia, substancialmente, no que
se refere à condução da produção, a partir da terra.
Ainda analisando o ambiente como regulador do tempo de trabalho, das
práticas contidas e dos modos de uso, que contribuem para instituição de uma
lógica na construção das paisagens e produção do espaço vivido, pode-se
31
Entrevista realizada em setembro de 2007.
195
compreender que a organização de atividades e sua execução nem sempre
depende da manifestação de crias domésticas ou animais silvestres. Os jovens que
estudam na cidade acordam antes do nascer do Sol, para aguardar o veículo que os
conduz até a escola.
Para algumas famílias, a preparação do café se inicia pela madrugada, com a
peleja para acender o fogão de lenha. Na verdade, não se pode falar em peleja
quando se possui um treino para realizar determinado afazer. Produzir fogo em
um fogão de lenha não é uma tarefa fácil, para quem não possui habilidade. Mas
para a família que lida, todos os dias, com a realidade de buscar lenha das árvores
caídas na mata e de arbustos cortados e amontoados ao longo da área de
pastagem, isto não significa dificuldade extrema, nem mesmo perda de tempo.
Significa economia, mas, além disso, um ritual que se inscreve na matinada e no
alvorecer de um despertar e ao anoitecer, comuns de todos os dias. O ritmo do
cozinhar é ditado pelo ritmo do colher a lenha, cortá-la e deixá-la ser consumida por
chamas que, além de preparar os alimentos, também aquecem os corpos frios e
carentes do calor de uma fogueira, nos dias de temperaturas amenas.
Mas ao lado do fogão simples de tijolo e barro encontra-se um concorrente
mais moderno que, volta e meia, ganha a disputa do trabalho na cozinha. O fogão a
gás dá um novo ritmo ao cozido, embalando, com maior rapidez o trabalho na
cozinha. Quando se tem um atraso no despertar, o fogão a gás é a melhor opção a
ser utilizada. Isto porque o trabalho não pode ter grandes atrasos, principalmente
quando se tem uma programação diária de muitas tarefas, que não se resumem às
obrigações no lote, mas que podem se estender, também, às fazendas vizinhas e a
outras glebas do assentamento.
196
Os que ficam para o trabalho que se inicia logo após o arrebol de uma aurora,
em qualquer semana, estão acostumados a uma preparação disciplinar para o
trabalho. Ao se levantar, procura-se a roupa que foi utilizada no dia anterior de
trabalho, para vesti-la novamente. As botas estão por ali, próximas à cama,
empoeiradas ou com barro em sua sola. Não uma preocupação em preparar, no
dia anterior, a roupa que será vestida no trabalho do dia seguinte. A camisa mais
velha que se possui, a calça surrada do trabalho na lavoura e no campear do gado,
as mangas longas que se vestem separadamente, para proteger os braços dos raios
solares, e que possuem uma cor de um tecido que não combina com a cor de outras
peças da roupa, bem como o chapéu para amenizar o contato dos raios solares
compõem uma vestimenta de todos os dias de trabalho.
Talvez não seja adequado trocar de roupa todos os dias para um trabalho que
não exige condições de vestimentas totalmente limpas e bem alvejadas. Caso se
quisesse manter essa postura, poderia ocorrer um sobretrabalho doméstico. Desse
modo, a mulher da casa parece não se importar com a moda que prevalece entre os
de casa que são responsáveis pela lida na lavoura e pecuária. Sua preocupação
quanto à vestimenta direciona-se para os filhos que estudam na cidade. É
necessário vestir um uniforme escolar limpo e cheiroso e estar com o corpo de
banho tomado para ir à escola. Percebe-se que um zelo pela aparência, pelo
mínimo que seja, quando se refere ao convívio social fora do tempo de trabalho, em
festas na roça ou visitas à cidade.
O trabalho na ordenha se segue pela participação de alguns filhos da família.
Numa observação da tarefa de ordenha no lote nº 01, uma das crianças está no
curral, e embora não se interesse em aprender como amarrar as patas traseiras da
197
vaca e a pear um bezerro junto a ela, acompanha o pai, porque o aprendizado é
uma ordem e não uma opção.
Cuidadosamente, o pai lhe ensina como manusear a corda que irá imobilizar
os animais. Ensina-lhe também que, antes de iniciar a ordenha, é necessário limpar
as tetas da vaca com o rabo dela ou cuspir nas mãos. O menino repete os mesmos
gestos que o pai, da maneira que ele lhes ensinou. Apenas é instruído de que não
deve adquirir o bito de fumar, como o pai tem. Este é um hábito que ocorre,
também, durante a ordenha.
Durante a observação o ordenhador nos narra a condição estrutural e de
hábitos exigida pelo laticínio que compra o leite das famílias do assentamento. O
laticínio tem dialogado constantemente sobre algumas adequações que são
necessárias para melhorar a qualidade do leite, no que diz respeito à diminuição de
bactérias. O laticínio tem cobrado que, até o ano de 2010, todos os produtores
tenham os currais cobertos e calçados, e que a ordenha se realize por
procedimentos bastante diferentes dos que o adotados na atualidade. Para se
realizar a ordenha o balde onde se deposita o leite deve ser de material inox, e não
de plástico, como é comumente utilizado. A abertura do recipiente tem que ser
estreita, para evitar cair pêlo dos animais ou outros fragmentos, sólidos ou líquidos,
no balde de leite. As tetas das vacas devem ser lavadas com água e sabão, antes
da ordenha, para ficarem limpas, e devem ser enxugadas com papel toalha. De
acordo com essas informações, narradas pelo morador do lote 01, entendemos
que essas exigências o contrárias às práticas que fazem parte da cultura de
algumas famílias. A exigência de infra-estrutura relacionada à produção do leite
anuncia mudanças na paisagem, pois, como foi observado nos lotes, nenhuma
família produtora de leite enquadra-se nas exigências propostas pelo laticínio. Como
198
se pode observar nas fotos 08 e 09, os currais não possuem a infra-estrutura exigida
pelo laticínio.
Foto 8: Imagem do curral situado no lote nº 15. A infra-estrutura existente não está
adequada de acordo com as exigências que o laticínio tem solicitado aos produtores. A
infra-estrutura de cobertura e pavimentação está ausente. Autor: CRUZ, Nelson Ney
Dantas, março, 2007.
199
Foto 9: Curral no lote nº 04 sem a infra-estrutura que é
exigida pelo laticínio. O produtor realiza a ordenha à
sombra de uma árvore que se localiza no centro do
curral. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro
2007.
As exincias por parte do laticínio m-se refletido nas organizações das
relões sociais no lugar pois, como vimos anteriormente, ainda persistem relões de
vizinhança em que vigoram a tolerância, a cumplicidade e também a confiança. Essas
relões permitem que a organização coletiva, quanto à produção do leite, seja
realizada e regida por atitudes que não são juridicamente impostas, mas socialmente
compartilhadas, como é o caso da organização que os assentados possuem, em
depositar o leite nos tanques de expano pertencentes a grupos coletivos.
Observando o trabalho em torno da produção do leite, pôde-se verificar que
uma relação de confiança entre aqueles que depositam o leite no tanque de
expansão, pois cada um é responsável por medir o volume de leite, depositá-lo e
registrar o valor do volume numa tabela. As fotos 10 e 11 ilustram essa paisagem
existente no assentamento.
200
Foto 10: Entrega de leite no tanque de expansão de uma das associações de
produtores. O produtor é responsável em medir o volume do leite e depositá-lo no
tanque. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro, 2007.
Foto 11: Entrega do leite no tanque resfriador. Numa folha, onde se tem uma tabela, o
produtor registra, em seu nome, a quantidade de leite que foi depositado no tanque.
Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro, 2007.
As mudanças solicitadas pelo laticínio estão sendo sedutoras para os
assentados e aos poucos vão modificando as relações coletivas baseadas na
confiança mútua, como é o caso da honestidade que prevalece no uso coletivo do
tanque de expansão. A partir de abril de 2007, a entrega do leite passou a ser
realizada mediante a presença de uma outra pessoa, que mede o volume do
produto, realiza uma medida de acidez do leite e o deposita no tanque. A
necessidade de se colocar alguém, para que realize tal trabalho, advém da
exigência do laticínio, o qual promete pagar um preço maior pelo leite, que contenha
o mínimo de bactérias por volume. Sendo assim, as famílias produtoras decidiram
contratar uma pessoa do próprio assentamento, para trabalhar durante as manhãs e
201
realizar o trabalho, que antes era de responsabilidade de todos, inclusive a tarefa de
limpeza do tanque. Podemos observar esta realidade na foto 12:
Foto 12: Alternativa de depósito de leite no tanque de expansão. Uma funcionária é
responsável em medir a quantidade de leite entregue, verificar o nível de acidez do leite
e registrar o volume depositado na tabela Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, abril de
2007.
Dentro do processo de produção do leite, pode-se verificar, também,
alterações nas técnicas de produção relacionadas à melhoria genética do gado
leiteiro. Aqueles produtores que pretendem se adequar às exigências do mercado
têm buscado técnicas que possam lhes permitir aumentar a produção do leite.
Desse modo, no assentamento Divisa, dois produtores vizinhos fizeram um curso de
inseminação artificial e, em conjunto, mantêm a prática da inseminação do gado
leiteiro. Os vizinhos dos lotes 03 e 04 trabalham, em conjunto, para a
manutenção de um botijão com nitrogênio, a fim de conservar o sêmen que será
202
utilizado na inseminação. Na foto 13, tem-se o botijão aberto para retirada do sêmen
que seria utilizado para fertilizar o gado.
Foto 13: Realização de inseminação artificial. Moradora do lote nº 3
prepara o material que será utilizado para inseminar o gado. Realiza o
descongelamento do sêmem e faz higienização dos instrumentos que
serão utilizados. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, abril de 2007.
Mas essa técnica moderna tem sido acompanhada pela sabedoria do
produtor em conhecer os ciclos da natureza. A inseminação o é realizada
aleatoriamente, escolhendo-se o animal sem critérios que apontem a melhor opção.
O produtor tem que saber o momento em que a vaca está no cio, para que o sêmen
utilizado para inseminar o seja descartado. No caso específico da inseminação
203
realizada em abril de 2007, como está ilustrada pela foto 14, que se segue, o
entrevistado 26 nos relatou que o entrevistado 03 havia escutado, pela madrugada,
a vaca mugindo e pressupôs, imediatamente, que ela estava no cio, podendo ser
fertilizada pela inseminação. Como o entrevistado 03 não poderia realizar o trabalho,
solicitou a sua filha para que o fizesse, na sua ausência.
Foto 14: Inseminação artificial realizada no gado bovino. O local onde se prende o
animal é o tronco de um curral, situado próximo à residência do produtor. Autor: CRUZ,
Nelson Ney Dantas, abril de 2007.
Essa técnica moderna de fertilização do gado não é utilizada por todos, no
assentamento. Nos outros 25 lotes que possuem rebanho bovino ainda se utiliza um
macho reprodutor, como é o caso do lote 02 e lote 18. Ao se observar a
paisagem, fica evidente que, no assentamento, existem contrastes de técnicas que
revelam a opção de um e de outro produtor, bem como a potencialidade infra-
estrutural de se realizarem investimentos para com a produção. Nas fotos que se
204
seguem, podem-se visualizar os animais que são utilizados para fertilizar o rebanho,
num e noutro lote.
Foto 15: Rebanho bovino leiteiro reunido do lote 02. O rebanho é mantido próximo do
curral, situado ao lado da residência do produtor. Em meio às crias fêmeas, tem-se o
reprodutor macho, da raça Nelore. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, fevereiro de 2007.
205
Foto 16: Touro reprodutor da raça Gir. Utilizado para cruzar com as fêmeas produtoras
de leite, pertecentes ao assentado morador do lote 18. Autor: CRUZ, Nelson Ney
Dantas, março de 2007.
Enquanto o produtor do lote 02 opta pelo reprodutor Nelore, o produtor do
lote 18 adotou como opção a raça Gir. As diferenças entre os dois produtores se
relacionam às matrizes genéticas de um e de outro macho reprodutor pois, segundo
os dois assentados dos respectivos lotes, as crias do macho reprodutor de raça
Nelore possuem melhores preços no mercado, por possuírem maior potencial na
produção da carne, enquanto as crias descendentes da raça Gir possuem maior
potencial para produção do leite.
Mesmo não optando por técnicas modernas de inseminação artificial, os dois
produtores, dos lotes 02 e 18, adotam um sistema moderno de divisão de
pastagens, por meio da utilização de cercas elétricas, sendo esta uma prática
comum, na maioria dos lotes do assentamento. A cerca elétrica é mantida por um
aparelho ligado à rede de energia, que é responsável em distribuir a corrente elétrica
206
para os fios de metal que cercam os piquetes na pastagem. A foto 17 mostra um
aparelho elétrico instalado no lote nº 02.
Foto 17: Aparelho transmissor de energia elétrica para as cercas divisoras da pastagem
em piquetes. O aparelho está instalado na residência do morador do lote 02. Autor:
CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
A divisão da área de pastagem dos lotes em áreas menores foi uma opção
encontrada pelos produtores para otimizar o consumo de alimento pelo gado. Os
piquetes, como são chamadas essas divisões menores da pastagem, permitem que
o gado bovino consuma o máximo de alimento contido nesse espaço delimitado pela
cerca elétrica. Enquanto isso, outras áreas de pastagem, delimitadas pela cerca,
ficam em descanso, para que o capim cresça e forneça maior quantidade de
alimento para o gado, quando este for transferido para outra área de piquete. A
implantação de piquetes, por meio da utilização de cerca elétrica, reduz os gastos
207
com postes e fiação para construção de cercas, como nos informou o entrevistado
09, bem como diminui o trabalho que seria empregado para a construção de cercas.
A opção pelos piquetes foi adotada com o intuito de melhorar a alimentação
do gado, sem que alterações na pastagem fossem realizadas. A pastagem que
permanece nos lotes é a mesma desde quando o assentamento Divisa foi criado.
Como uma imposição social, as condições naturais das Áreas de Preservação
Permanentes (APPs), das áreas de Reservas Legais (RLs) e áreas agricultáveis dos
lotes apresentam determinado grau de degradação ambiental, como se pode
observar não somente pelas práticas de otimização da pastagem, mas também pelo
assoreamento dos córregos que estão na divisa do assentamento. Na foto 18 pode-
se observar as margens do córrego Divisa, no lote Nº 22.
Foto 18: Erosão do solo em área de nascente d’água, situada nas margens do córrego
Divisa. Essa área é acessada pelo rebanho bovino do lote nº 22. Autor: CRUZ, Nelson
Ney Dantas, setembro de 2007.
208
Na paisagem, estão contidos elementos que se caracterizam pelas
temporalidades, sendo que, no espaço presente, contribuem para que a reprodução
da vida seja garantida. Se a permanência no assentamento é um fator importante
para produção e reprodução do lugar, a técnica é um fator essencial para se garantir
a reprodução da vida, a partir dos lotes da Reforma Agrária. Observando as fotos
13, 14, 15 e 16, podemos compreender que técnicas diferentes materializam-se num
espaço comum, sem que uma técnica antiga anule a possibilidade da existência de
uma técnica moderna. As técnicas fazem parte das estratégias que são colocadas
em prática pelas famílias assentadas, na luta para permanecer morando nos lotes e
reproduzindo o lugar.
Sendo assim, na paisagem estão contidos conteúdos advindos de outras
épocas, como os saberes relacionados ao tempo da natureza, do ciclo de produção
do gado, como se pôde constatar no relato do entrevistado 26. Conhecer o momento
em que o animal está no cio é imprescindível para que se obtenha sucesso com a
técnica de inseminação artificial.
A organização dos elementos que se fazem presentes na paisagem, bem
como a sua funcionalidade também estão associadas aos elementos naturais, como
é o caso das condições naturais apresentadas nos lotes. Tais condições foram
criadas em outros tempos, antes mesmo da desapropriação das terras para a
Reforma Agrária. Sendo assim, os elementos da paisagem natural foram sendo
modificados pelos modos de uso da terra, sendo que os saberes e habilidades
daqueles que permanecem morando no assentamento têm modificado o espaço e
deixado as marcas na paisagem. Sendo assim, a paisagem é composta por
elementos naturais e culturais que estão em constante processo de modificação, de
209
modo que os sujeitos que empreendem marcas na paisagem o fazem para a sua
própria sobrevivência, garantindo a posse e propriedade da terra.
Os contrastes que se manifestam na paisagem não se resumem apenas ao
trabalho com o gado leiteiro e às técnicas empregadas. Na lavoura, também são
empregadas técnicas que possuem eficiência para o trabalho no campo, apesar de
serem desenvolvidas a partir de instrumentos que não se utilizam de altas
tecnologias. Na foto 19, a tração animal ainda é utilizada para lavrar a terra, como se
pode visualizar na foto que se segue.
Foto 19: Carpideira puxada pelo cavalo para roçar as ervas daninhas presentes na
lavoura de abacaxi, no lote nº 03. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas Cruz, abril de 2007.
As precariedades presentes na produção ainda permitem que formas
alternativas de lavrar a terra se manifestem na paisagem do assentamento. Na
lavoura, também se observa a diferença entre práticas, sejam elas relacionadas a
condições infra-estruturais ou a saberes e habilidades.
210
As técnicas manuais de lavrar a terra, dar manutenção na lavoura e colher os
frutos da produção estão presentes no assentamento, em contraste com a presença
de maquinários modernos, como é o caso da utilização do trator, para auxiliar as
atividades de colheita.
Observando o trabalho coletivo para colheita do arroz, em dois lotes, puderam
ser registrados os instrumentos de trabalho e a técnica empregada para realizar a
colheita. O trabalho para colheita e armazenamento do arroz, no lote 01, foi
realizado de forma manual, com habilidades manuais e utilização de instrumentos
antigos e de baixa tecnologia, se comparados ao maquinário que, na atualidade, é
utilizado para colheita de grãos, em grandes lavouras.
Nas fotos que se seguem é possível observar o trabalho coletivo, com
características manuais e utilização de instrumentos de baixa tecnologia.
Foto 20: Colheita do arroz realizada no lote 01. O cutelo é o principal instrumento
utilizado para cortar as plantas. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
211
Foto 21: Trabalho de “batero arroz. A separação dos grãos de arroz é feita
pelo atrito das plantas cortadas com o Jirau de madeira. O girau é
constituído de caibros roliços, dispostos espaçadamente, formando um
estrado. Enquanto alguns separam os grãos, outros realizam a limpeza,
retirando palhas e demais restos vegetais presentes em meio aos grãos
caídos ao solo. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
Foto 22: Arroz colhido e esparramado no solo. Depois de colhidos, os grãos
de arroz, ainda em casca, são expostos ao sol para secar, antes de serem
armazenados em sacas. Para que essa etapa ocorra, é necessário que haja
condições meteorológicas favoráveis, como, por exemplo, dias ensolarados.
Lote 01. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
212
O transporte do arroz colhido no lote 01 foi realizado por meio de carroça
atrelada e puxada por um equino, diferenciando-se do transporte utilizado em outra
colheita de arroz, realizada no lote nº 16. O trabalho coletivo também se fez presente
no lote 16, em que a colheita da lavoura foi realizada com utilização dos mesmos
instrumentos e técnicas de corte, separação dos grãos, secagem e armazenamento.
Porém, devido ao fato de o morador do lote 16 possuir trator, o transporte foi
realizado por esse veículo, como se pode observar na foto 23.
Foto 23: Transporte do arroz colhido no Lote 16. O trator é essencial para transportar o
arroz colhido, já que este produtor utiliza áreas do lote que estão distantes de sua
residência, onde as condições de solo são melhores para o cultivo do arroz. Autor:
CRUZ, Nelson Ney Dantas, março de 2007.
Pode-se compreender que, num mesmo espaço, são empregadas técnicas
antigas e modernas, na lavoura e na pecuária. As duas estão intimamente
relacionadas pois, como vimos anteriormente sobre a inseminação artificial, o saber
a respeito do ciclo da natureza é importante para que essa técnica moderna seja
213
desenvolvida, na pecuária. Quanto àqueles que não inseminam o rebanho por
métodos modernos, utilizam-se da cerca elétrica para repartir áreas na pastagem,
permitindo que tais áreas sejam melhor conservadas por meio da redução do uso
intensivo do solo, pelo rebanho. Sendo assim, esses produtores também se utilizam
de técnicas modernas, em outras etapas do processo produtivo.
Observando o trabalho na lavoura, também se percebe que as técnicas
antigas de produção se fazem presentes nas etapas do processo produtivo.
Relações de trocas de serviço também se inserem nas etapas de produção como
alternativa à ausência de tecnologia que substitua a mão-de-obra daqueles que
participam do grupo das trocas de serviço.
O trabalho manual, na lavoura, exige um número de trabalhadores que a
mão-de-obra familiar não consegue suprir. Como alternativa, tem-se o costume de
trocar dias de serviço com aqueles em que se tem confiança e que desejam
participar do grupo que realiza essa forma de trabalho. Mas o emprego de
tecnologias modernas pode alterar essa forma de parceria, como tem ocorrido na
produção do leite, em que uma pessoa da associação é nomeada para trabalhar na
organização da coleta, medição e verificação da qualidade do leite que é depositado
nos tanques de expansão. As duas associações possuem uma pessoa responsável
em realizar o trabalho nos tanques.
A paisagem do assentamento contém formas herdadas de outros tempos, que
deixaram seus testemunhos no espaço, como é o caso da pastagem degradada. Os
modos de vida das famílias moradoras têm contribuído para que essas formas sejam
alteradas e adquiram novas funcionalidades, pois o conteúdo que anima o conjunto
de objetos materiais, presentes na paisagem, é regido por saberes e técnicas
antigos, em conjunto com saberes e técnicas modernas de se trabalhar a lavoura e a
214
pecuária. As relações sociais que se estabelecem entre os produtores para realizar
tarefas conjuntas, por meio das trocas de serviço, são componentes essenciais da
paisagem; porém, as relações modernas que se estabelecem com instituições
externas ao assentamento têm alterado o conteúdo dessas relações, principalmente
na produção do leite. O pagamento de salário para uma pessoa cuidar do
recebimento do leite, realizando análises da acidez do produto, é conseqüência das
exigências do laticínio, que necessita comprar um leite de melhor qualidade. Sendo
assim, a prática da relação de confiança entre aqueles que entregam leite nos
tanques de expansão vai sendo clivada pelas determinações das relações
modernas.
Como vimos, a produção do lugar não se estabelece por meio de relações
harmônicas e tranqüilas. Desde a criação do assentamento, houve desavenças
entre projetos diferenciados, que se baseavam na permanência de alguns nos lotes
conquistados e na ausência de outros, que não almejavam morar no assentamento.
Desse modo, o companheirismo entre as famílias que participaram do acampamento
e vivenciaram a criação do projeto de assentamento vai sendo modificado, a partir
da criação da posse dos lotes. É nesse momento que os interesses se tornam
individuais e os conflitos nas relações de vizinhança são gerados.
As relações conflituosas, estabelecidas no início do projeto de assentamento,
ecoam em outros momentos, à medida que tentativas de aproximação são
realizadas. Isto demonstra que, na produção do lugar, a tolerância e a passividade
são condições necessárias para que se estabeleça um equilíbrio, uma harmonia,
que não se concretiza na prática.
Na trajetória das famílias moradoras do assentamento, a harmonia nas
relações é ameaçada quando novos moradores vêm chegando. Estes são
215
considerados diferentes, por não terem participado da luta pela terra. Essa diferença
desencadeia estranhamentos nas relações de vizinhança, pois aqueles que
compraram as posses dos lotes parecem ter melhores condições de infra-estrutura e
também de produção.
No lugar é que se manifestam, com maior clareza, as estratégias para
reprodução da vida, os laços de solidariedade persistem, apesar de se
estabelecerem conflitos entre grupos de assentados, compradores de posse e
assentados e entre os próprios compradores. As relações que se estabelecem em
torno do trabalho demonstram que as aproximações entre as famílias moradoras do
assentamento se dão por práticas advindas de outros tempos, como são as trocas
de serviço, que alguns assentados desenvolviam no meio rural, antes de virem
para o assentamento. A prática das trocas e dias de serviço tem sido ameaçada
pelas relações modernas, instituídas entre produtores e instituições com as quais
eles se relacionam. Nesse sentido, aos poucos a reprodução do lugar vai adquirindo
outras características. Estas se relacionam com a diminuição de práticas sociais que
tenham como fundamento a confiança mútua. Desse modo, outra lógica tem-se
manifestado nas relações sociais estabelecidas no decorrer da reprodução do lugar,
no assentamento Divisa.
216
4. FORMAÇÃO DAS REDES SOCIAIS E COMUNITÁRIAS NO
ASSENTAMENTO
A conquista da terra e a divisão da fazenda Divisa, em lotes, corresponde a
um momento importante no trajeto a luta empreendida pelas famílias assentadas.
Dessa maneira, a análise dos modos de vida e da produção/reprodução do lugar
demonstrou-nos que a posse da terra não encerra o processo histórico de lutas dos
beneficiários da Reforma Agrária. Adentrando, particularmente, em suas
especificidades, quanto ao trabalho, ao ambiente doméstico, às relações de
vizinhança, às festas e às parcerias no trabalho, compreendemos que a garantia de
posse da terra relaciona-se ao trajeto de luta pela vida. Podemos afirmar que a
posse de um lote, em assentamentos rurais, projeta o seu beneficiário a uma
realidade de constante peleja pela sobrevivência, pela permanência na terra e, em
um futuro próximo, pela garantia de conquista da propriedade.
Porém, nem todos os beneficiários se lançam à empreitada de produção e
reprodução da vida a partir da moradia, trabalho e participação do cotidiano que é
construído no assentamento. Como vimos, algumas famílias, não possuindo
habilidades e saberes em trabalhar no lote, buscam outras alternativas de geração
de renda, na cidade ou no campo, além de comercializar a posse que conquistaram.
Outras, não possuindo interesse em investir no lote, empregam esforços e
investimentos em outros setores. Constitui-se, então, o assentamento, como um
espaço múltiplo de práticas, de lutas, de fracassos e conquistas.
Diante dessa realidade, torna-se importante pensar a coletividade que se
instaura a partir das práticas sociais. Num espaço com modos de vida diversos, seria
217
possível existir comunidade? Essa é uma questão importante a ser analisada pois,
tomando-se como referência o período de nove anos de existência do Assentamento
Divisa, diversas mudanças ocorreram na produção e organização da coletividade,
entre assentados e compradores, entre os próprios assentados, bem como
modificações se fizeram presentes na organização da rede de sociabilidade, que nos
demonstra a lógica das relações sociais com instituições externas ao assentamento.
Sendo assim, tomamos as redes sociais como conteúdo analítico das relações
coletivas, pois as consideramos elementos importantes para a produção
comunitária, bem como uma organização que possibilita compreender como a
comunidade se estabelece, no lugar.
Desse modo, o objetivo do capítulo é analisar a lógica de organização da
comunidade, no Assentamento Divisa, bem como discutir as articulações com as
redes sociais, que se estabelecem entre sujeitos moradores do assentamento e
instituições externas, com as quais se relacionam.
Primeiro, partimos do estudo das práticas coletivas que se constituíram no
assentamento, com o intuito de compreender como se estabelece a lógica de
organização dos grupos de assentados em rede. Após essa análise,
compreendemos como as redes sociais estão associadas ao espaço coletivo. Em
segundo lugar, discutimos a comunidade e sua relação com as redes
institucionalizadas pelo Estado, bem como sua lógica organizacional. Por último,
encerramos o capítulo com uma discussão sobre a lógica das relações sociais, no
espaço da Reforma Agrária.
Pensar os modos de vida, a reprodução do lugar e a organização comunitária
é um caminho essencial para adentrarmos à lógica das relações sociais que são
estabelecidas nos assentamentos rurais. Entendemos que o espaço social é
218
construído pelos esforços individuais e coletivos, divergentes e convergentes em
suas bases constitutivas. Porém, não resultam em práticas aleatórias e
desordenadas. Apresentam, em seu conteúdo, uma dinâmica que se manifesta na
realidade, sendo concreta e passível de interpretação.
4.1 – A formação de redes sociais e sua relação com organizações coletivas
locais
As práticas coletivas que foram sendo constituídas, no decorrer da história do
assentamento, relacionam-se à formação das redes sociais. A partir das formas
coletivas, foi possível analisar a organização de tais redes, que evoluíram por meio
de práticas sociais empreendidas entre grupos de interesse ou afinidades entre
famílias moradoras do assentamento.
O estudo das redes, a partir da Geografia, em sua dimensão teórica,
relaciona-se a um debate contemporâneo, que se desenvolveu nas ciências
humanas, com maior aprofundamento, a partir de meados do século XX (DIAS,
2005). O desenvolvimento de novas tecnologias, como, por exemplo, as redes de
comunicação, proporcionou o destaque do conceito, também, nas ciências humanas
(DIAS, 2005). Desse modo, a sociedade tem sido pensada, dentre outros vieses, por
meio das redes. Segundo Dias (2005),
A rede, como qualquer outra invenção humana, é uma construção social.
Indivíduos, grupos, instituições ou firmas desenvolvem estratégias de toda
ordem (políticas, sociais, econômicas e territoriais) e se organizam em rede.
A rede não constitui o sujeito da ação, mas expressa ou define a escala das
ações sociais. As escalas não são dadas a priori, porque são construídas
nos processos. (p. 22-23)
Por esse viés, entendemos que as redes constituem uma forma de
organização social ou um empreendimento que envolve o coletivo. É necessário
haver grupos de pessoas ou instituições que se identifiquem por uma causa, desde
219
que não comunguem com interesses que mantenham o grupo isolado dos demais. O
grupo organizado deve estabelecer relações com outros grupos, menores ou
maiores. Dessa maneira, a rede vai-se constituindo por hierarquias e relações que
são dinamizadas por cada núcleo coletivo. O coletivo pode ser o sujeito participante
das relações em rede mas, em sua composição, também se manifesta o individual,
com suas particularidades. Desse modo, pode-se afirmar que sujeitos individuais
participam ativamente na produção e reprodução de redes, pois ele se apresenta
conectado com o global, a partir do núcleo coletivo local. Como nos fala Dias (2005),
[...] a rede conecta diferentes pontos ou lugares mais ou menos distantes e
permite hoje a ampliação da escala da ação humana até a dimensão global
[...] a rede encerra, em sua etimologia, o significado de fios regularmente
entrelaçados que servia para capturar pequenos animais. (p. 23)
Entendemos que o estudo das sociedades, pelas redes, parece ser mais
complexo do que uma trama constituída, simplesmente, por conexões. Tomando-se
como referência os pontos que possuem caráter local, é possível adentrar à
complexidade da trama que forma a própria rede. Nesse contexto, as ações
empreendidas para que se realizem conexões entre os nós merecem ser analisadas,
de modo que se possa compreender o seu papel de determinação ou de
subordinação à lógica que se estabelece nas relações sociais interligadas em rede.
A autora nos alerta para a complexidade da análise social, por meio de redes.
Segundo ela,
[...] a idéia da rede certamente ilumina um aspecto importante da realidade
chama a atenção para a complexidade das interações espaciais,
resultantes do conjunto de ações desencadeadas em lugares mais ou
menos longínquos. Assim, a rede representa um dos recortes espaciais
possíveis para compreender a organização do espaço contemporâneo.
(DIAS, 2005, p. 23)
A rede, além de ser pensada como meio que possibilita a conexão entre
espaços distantes, sejam eles espaços locais ou globais, também pode ser
analisada sob o viés político, econômico e cultural. Essa perspectiva constitui-se
uma justificativa da própria complexidade da organização em rede. Por esse viés,
220
ela assume uma dimensão espacial de ampla análise e, por conseqüência, uma
complexidade em termos de constituição e lógica. No atual desenvolvimento dos
sistemas de comunicação, torna-se importante pensar a sociedade conectada em
rede, podendo ou não tomar-se, como referência, espaços comunitários locais, para
se analisar como esses influenciam e são influenciados pelas relações sociais.
Destacando a importância da análise da sociedade em rede, Trivinho (1998) afirma
que:
Na etapa atual das forças produtivas, as redes tecem as sociedades,
rearticulam a política, reorganizam as economias, modulam as culturas.
Estão na base da interatividade absoluta e veloz entre pessoas, empresas e
governos [...] Tudo se equaciona nas redes, desde as ações cotidianas no
espaço doméstico às grandes decisões políticas na esfera do Estado, desde
o telex e o fax às avançadas estações multimedia que operam em três
dimensões, desde o laptop no automóvel ao telefone celular no avião,
desde as transmissões de rádio locais às transmissões via satélite. (p. 13-
14)
No século XIX, com o desenvolvimento das técnicas de informação, surge a
idéia de rede social, utilizada para analisar as mudanças significativas que vinham
ocorrendo na sociedade. O desenvolvimento tecnológico e a fluidez das
comunicações atribuíram uma nova dinâmica às relações institucionais e destas com
diversos sujeitos sociais, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. O
espaço do cotidiano também se modifica, pois os sujeitos que o constituem
estabelecem intensas relações sociais, produzidas em rede. Na atualidade (2008),
as redes atingem diversos aspectos e, dentre eles, podemos citar o caráter virtual
das relações que se estabelecem. De acordo com Trivinho (1998), essa forma de
organização em rede contribui para “[...] anulação do território geográfico [...]” (p.
13), pois suprimem o espaço físico. Porém, ao analisarmos Dias (2005),
compreendemos que os grupos que interagem em rede necessitam de uma base
material e, conseqüentemente, de um território. Também podemos pensar no lugar
como sendo uma base espacial, onde se materializam práticas cotidianas que
221
participam da produção de redes sociais. Nesse sentido, podemos afirmar que os
modos de vida participam, ativamente, das relações estabelecidas na rede, já que as
ações individuais e coletivas, de âmbito local, tomando-se como exemplo o grupo de
moradores do assentamento Divisa, articulam-se junto a instituições públicas ou
governamentais para obter ganhos que contribuam à produção nos lotes, por
exemplo.
Analisando Castells (1999), compreendemos que as redes existiram em
outros tempos, sendo elas, na atualidade (2008), dinamizadas, sobretudo, pelos
sistemas de tecnologia da informação. Por outro ângulo, o autor nos aponta que é
necessária uma base material para a produção tecnológica de informações que
dinamizem a rede. De acordo com Castells (2003):
Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a
difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os
resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura.
Embora a forma de organização social em redes tenha existido em outros
tempos e espaços, o novo paradigma da tecnologia da informação fornece a
base material para sua expansão penetrante em toda a estrutura social. (p.
497)
Desse modo, consideramos importante analisar as relações produzidas
localmente, bem como sua repercussão em espaços distantes do lugar. Entendemos
que a base material, sobretudo para grupos locais, é importante na formação e
reprodução de redes sociais, como se pode constatar a partir das análises que
produzimos acerca das relações institucionais dos moradores do assentamento
Divisa com órgãos do Governo e empresas privadas. É a partir dessas relações que
as famílias assentadas se integram a uma rede mais ampla de comunicação e de
informação. Por meio delas, o lugar interage com o global, com uma sociedade que
produz uma rede de conexões extensa, onde se manifestam os desencontros, as
222
negociações e as conquistas daqueles que, ao interagir com elementos da rede,
participam, ativamente, com sua cultura e seus modos de vida.
Como se pode perceber, o que nos interessa, especialmente, sobre as redes
sociais, no caso que pesquisamos, é o seu caráter local ou sua organização coletiva
que surge no lugar como resultado da produção e reprodução deste. Nesse sentido,
não podemos tomar, de forma isolada, a análise de uma rede local, sem considerar
as conexões que ela estabelece com outros espaços sociais, sejam eles regionais
ou globais. Entendemos que as práticas sociais coletivas que surgem, a partir do
assentamento, estão integradas a uma rede de sociabilidade de negociações
políticas e econômicas, principalmente porque os produtores locais estão
interligados com instituições públicas e privadas, com as quais eles mantêm
relações sociais. Quando admitimos que, em nossos objetivos, a análise de redes
está relacionada ao contexto local, queremos dar o entendimento de que é a partir
do local que se materializam práticas coletivas que promovem a construção de
redes, sendo que o lugar é o ponto inicial de sua análise. Não se pretende cercar,
rigidamente, o espaço local, para análise dos enlaces coletivos e das redes.
Entendemos que a sociabilidade das redes se constrói pelas conexões que o local
estabelece com outros espaços, que podem estar próximos ou distantes.
Tomando-se como referência outro entendimento e análise conceitual das redes
sociais, pretendemos justificar nosso enfoque sobre o referencial local, para o seu
estudo. De acordo com Sherer-Warren (2005),
As formas de sociabilidade nas redes, bem como as respectivas relações de
identificações ou de assimetrias de poder, podem ser nomeadas de
maneiras diversas, ou de acordo com as seguintes categorias analíticas:
reciprocidade, solidariedade, estratégias e cognição. (p. 40)
O autor nos apresenta quatro alternativas analíticas da sociedade, por meio
das redes sociais. A reciprocidade, como seu conteúdo formador, identifica-se, com
223
maior proximidade, à análise que realizamos em torno do contexto espacial do
assentamento Divisa. Segundo Sherer-Warren (2005) “A noção de redes sociais a
partir da categoria da reciprocidade tem sido especialmente útil aos estudos dirigidos
às relações do cotidiano local [...]” (p. 40). Percebemos que o conteúdo da
reciprocidade é uma liga constituinte dos grupos e organizações coletivas, de
interesses comuns, que surgem das práticas sociais entre as famílias moradoras do
assentamento.
Tomando-se como referência as redes de colaboração solidária, o autor
Mance (2003), nos diz que
A noção de rede coloca a ênfase nas relações entre diversidades que se
integram, nos fluxos de elementos que circulam nas relações, nos laços que
potencializam a sinergia coletiva, no movimento de autopoiese em que cada
elemento concorre para a reprodução de cada outro, na potencialidade de
transformação de cada parte pela sua relação com as demais e na
transformação do conjunto pelos fluxos que circulam através de toda a rede.
(p. 219-220)
Nesse sentido, os grupos coletivos, que se relacionam em rede, contribuem
para formação ou dissolução dos demais. Os coletivos que surgem e se reproduzem
no interior das relações de trabalho, no assentamento, ao interagirem com outros
grupos, podem ser vistos como agentes fundamentais para a reprodução das redes.
Em seu conteúdo, cada indivíduo participa com suas aspirações, desejos e práticas,
construindo relações múltiplas que integram e promovem os fluxos das redes. Sendo
assim, ele está sujeito às determinações de outros membros da rede pois, segundo
Mance (2003), “[...] a consistência de cada membro depende de como ele se integra
na rede, dos fluxos de que participa, de como acolhe e colabora com os demais.” (p.
220).
Desse modo, partimos das práticas coletivas surgidas no histórico das
relações produzidas pelas famílias assentadas, em suas trajetórias de permanência
224
nos lotes, para analisar as redes de sociabilidade. Compreendemos que a
reciprocidade tornou-se, entre os grupos coletivos de trabalho, um conteúdo de
grande valia para manter interligados indivíduos com interesses comuns.
Cotidianamente, são construídas relações interpessoais, que são a base para
formação de grupos. Denominamos tais grupos como formações coletivas, ou
poderíamos denominá-las células dinamizadoras da sociabilidade, estabelecida em
rede, na qual se podem analisar os diálogos ocorridos com instituições públicas e
privadas. Uma verdadeira trama de relações sociais coletivas é instituída entre
grupos de afinidades no Assentamento Divisa, que são responsáveis em promover a
construção de redes de reciprocidade em espaço local, estendendo-se por relações
mais amplas com órgãos externos ao assentamento.
Durante a coleta de dados, foi constatado que diversos grupos coletivos
surgiram, sendo que alguns permaneceram e outros foram desfeitos. Sendo assim,
não podemos admitir que exista, no ano de 2007, um grupo coletivo amplo, que
englobe todas as famílias moradoras do assentamento. Existem, na atualidade,
diversos grupos que se conectam e forma parte da rede social. Essa multiplicidade
de grupos encontra suas raízes nas trajetórias de vida de cada família assentada,
bem como em seus modos de vida. Como demonstramos no capítulo 02, as
primeiras produções agrícolas foram realizadas a partir do trabalho coletivo, nos
seus lotes. Naquele momento, entre os anos de 1999 e 2001, surgiram dois grupos:
o grupo dos produtores de abacaxi e o dos produtores de algodão. Havia também,
nesse momento, apenas uma associação de produtores rurais, que era composta
por todas as famílias moradoras do assentamento.
A sociabilidade que as famílias estabeleceram com o Incra, a EMATER, o
Laticínio Canto de Minas e a Prefeitura Municipal de Ituiutaba-MG foi possibilitada
225
pela criação da Associação de Produtores do Assentamento Divisa, no ano de 1999.
Em 2001, houve uma divisão da própria associação em dois grupos, que divergiam
ideologicamente. Segundo o entrevistado 24,
“Teve um racha sim. Até entre canápolis, centralina, com uma equipe de
canápolis. Mas eu acho que é questão cultural, eles vei de uma área nós vei
doutra e as idéia não batia, é coisa à toa. Eles queria que a gente, por
exemplo, os menino que morava aqui exigia que a gente morasse direto,
não podia sair pra trabalhar. Nós tinha outra visão. Não podia ficar preso
aqui, tinha que sair pra trabalhar. E eles não, tem que ficar, e esse
desentendimento acho que foi o x da questão. Nós saímos pra trabalhar
fora e, eles não, queria que a gente ficasse aqui sem serviço, sem condição.
E isso foi um dos grandes gargalo da situação.” (Informação verbal)
32
O entrevistado também nos relatou que outro problema, relacionado às
discordâncias entre grupos da mesma associação, foi em relação à venda das
posses de lotes. Enquanto um grupo concordava com a venda, o outro discordava, o
que contribuiu, juridicamente, para que outra associação fosse criada, com registro
em cartório.
A expressão clara da existência de duas associações de produtores é hoje
materializada pela comercialização do leite. No ano de 2001, as famílias moradoras
haviam recebido financiamento do Governo Federal e investido na compra de gado,
para produção do leite. Sendo assim, a compra de um tanque de armazenamento do
produto, por cada associação, consolidou a existência de dois grupos coletivos de
produção. O entrevistado 03 nos relata a trajetória coletiva do grupo que
comercializava leite, contando-nos alguns detalhes, de outro projeto coletivo, que
existia antes da divisão do assentamento em lotes. Segundo o entrevistado 03,
“Bem no início, no acampamento, ainda, se começou a fazer um trabalho
coletivo de horta. Ela durou todo período, mais ou menos, do acampamento.
depois da emissão de posse ela não foi pra frente porque cada um
foi pro seu lugar, às vezes, mesmo num tando parcelado, mais alguns
ficou berando a sede, outros foram pro lote e fizeram os barracos e ali
fizeram suas hortas, já não teve mais continuidade no trabalho coletivo.
Aí, depois disso, o primeiro trabalho coletivo que a gente começou foi na
venda do leite pra uma empresa só. Tinha várias empresas e a gente reuniu
32
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
226
e todos vendia o leite, era recolhido no latão e a gente começou com a
cooperativa. Depois a cooperativa tava comprando muito barato. a
gente reuniu de novo pra fazer outra venda coletiva pra outra empresa. a
gente mudou de novo. depois disso foi o tanquinho de expansão que a
gente comprou. Não todo o projeto aderiu, mas, inclusive foi seis que aderiu
na compra do tanque de expansão. E com isso deu certo, a gente vem
trabalhando a hoje. Ninguém adquiriu um tanque particular, ainda ta
trabalhando no coletivo, no mesmo tanque. a outra parte que entregava
leite também viu a necessidade e então adquiriu um outro tanque também.
Então, hoje, praticamente todos produz leite aqui, ta trabalhando nesse
sistema coletivo de entrega de leite. Praticamente esse é um dos único
trabalho coletivo.” (Informação Verbal)
33
Mas a divisão em dois grupos não eliminou as demais práticas coletivas que
pudessem envolver produtores de uma e de outra associação. Novos grupos foram
sendo formados, a partir de afinidades quanto ao trabalho, à produção, às relações
de vizinhança e à promoção de festas. Esses grupos também são analisados quanto
à sociabilidade que existe entre os membros que deles participam, bem como às
redes que se formam a partir da interação entre grupos e destes com órgãos
externos ao assentamento.
A troca de serviço reúne produtores das duas associações, inclusive
compradores de posses de lotes. A reciprocidade é um dos princípios do grupo, pois
participam de atividades de colheita, plantio, limpeza de pastagens e outros
serviços, aqueles produtores que o recíprocos às trocas de serviços e dependem
do apoio da mão-de-obra alheia, pois ela é a garantia de execução do trabalho,
que a mão-de-obra familiar não é suficiente para atender ao volume de serviço, em
determinados períodos do ano.
As primeiras produções agrícolas foram realizadas mediante as trocas de
serviços e, em casos de exceção, pagamentos de diárias para aqueles que não
podiam ou não desejavam realizar trocas de dias de trabalho. Ainda hoje (2008), o
grupo continua se relacionando, na perspectiva de obter a produção a partir da
33
Entrevista realizada no mês de Abril de 2007.
227
reciprocidade no trabalho, mas permanece com algumas alterações, pois conta com
a participação de produtores de outros assentamentos, fazendeiros vizinhos e
compradores de posses de lotes do próprio assentamento.
Porém, ao analisar alguns trabalhos coletivos, desenvolvidos entre algumas
famílias assentadas, percebemos que não reciprocidade entre membros
participantes, sobretudo em relação ao trabalho que cada um deve realizar, no
coletivo. Desse modo, pode-se afirmar que tal postura, por parte de alguns
membros, é uma ameaça ao desenvolvimento da organização coletiva.
Outro exemplo de formas coletivas de produção são as atividades de cultivo
desenvolvidas nas terras comunitárias, que se localizam em duas áreas distintas no
assentamento, conforme podemos observar no mapa 5, que se segue.
228
Mapa 5: Demarcação de áreas para uso coletivo da terra.
229
Na área coletiva, localizada entre os lotes 27 e 01, um grupo de famílias
assentadas realizou o plantio de eucalipto para produção de lenha, que será colhida,
aproximadamente, depois de cinco anos após a data do plantio. As mudas foram
adquiridas do IEF (Instituto Estadual de Florestas), no ano de 2006, por intermédio
da EMATER/MG. Apenas um grupo de famílias interessou-se pelo cultivo do
eucalipto, na área pertencente às duas associações. Na foto 24, podemos observar
a área coletiva, onde se realizou o plantio do eucalipto.
Foto 24: área de uso coletivo no assentamento. No primeiro plano da imagem se
observam restos orgânicos de uma plantação de milho. No segundo plano tem-se a
plantação de eucalipto, realizada mediante esforços coletivos, porém seu cultivo tem
sido realizado de forma individual. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Setembro de 2007.
De acordo com o entrevistado 01, o grupo coletivo se organizou da seguinte
maneira:
“Pra conseguir as mudas tinha que ser no coletivo. Quando is feiz era
no coletivo. Aí se você quiser fazer no individual, você faz, eles dão as
muda de qualquer coisa que você quiser prantar. Nóis prantou tudo, nóis
ajuntou todo mundo e prantou. depois que nóis prantou, foi que nóis
repartiu cada um. Cada um, por exemplo, se deu, num lembro quantos mil
foi, nóis dividiu quanto deu pra cada um. Acho que nóis era em oito ou
230
era nove. Cada um tirou tudo igual. pra cada um zelar individual. A gente
achou melhor, né, porquê, ás veiz ia uns e os outros num ia trabalhar e
virava aquele rolo, então, vamos fazer assim, nóis vamos prantar, junta todo
mundo e pranta, porque pranta mais depressa, né, todo mundo no coletivo.
Depois is divide cada um pedaço. Então, cada um zelou do pedaço dele.
Mais aí, você tem que matar as formigas que está no seu chão e as que
vem de fora. Tem uns ali que não tem quase nem um pé mais, acabou tudo.
Ele num matava as formiga, além de comer no lote dele passava pros
nosso. A gente pensava que os nosso tava feito, e quando dava fé, pensava
que não, dois ou três dias que você ia lá, chegava lá, as formigas comia os
deles e vinha pros nosso. Não adiantava também falar, porque era mesmo
que nada. E foi indo e agente salvou bastante coisa, mas os deles num
salvou nada. O que pertenceu pra mim é meu, o que pertenceu a ele, é
dele, se os bicho cumeu, não tem mais nada. Eu sou responsável pelo
meu. E ele era responsável pelo dele. Se deixou os bicho cumer, num
zelou, a culpa é dele. Eu que zelei do meu não vou ter que repartir nada
com ninguém.” (Informação Verbal)
34
O coletivo, a partir de grupos de produção, é uma alternativa para a ajuda
mútua, principalmente, quando se refere ao cultivo de lavouras. Todavia, surgem
contradições no interior da organização do trabalho, quanto às reciprocidades, por
parte de alguns membros. Dessa maneira, podemos afirmar que as relações
baseadas no trabalho coletivo nem sempre produzem ou fortalecem práticas
coletivas ou redes sociais, no interior de grupos locais. Existem diferenças nos
esforços individuais para o trabalho que interferem no resultado final da apropriação
dos frutos obtidos por parte de todos os membros participantes. Como nos relatou o
entrevistado 01, não é necessário se preocupar com a parcela de cultivo de
responsabilidade dos outros, que não compromisso de trabalho destes, que se
filiaram ao coletivo. Sendo assim, não havendo reciprocidade, torna-se necessário
cuidar para que os resultados do trabalho individual e dos esforços particulares não
sejam prejudicados pelo outro. Percebemos, nessa relação desigual de aplicação de
esforços individuais, que o trabalho coletivo o é constituído por interesses iguais
ou por indivíduos que comungam dos mesmos objetivos. Sendo assim, as redes
sociais, derivadas das relações coletivas e do entrelaçamento de famílias
34
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
231
participantes de diversos grupos coletivos, encontram barreiras para o próprio
desenvolvimento, enquanto conteúdo rico em práticas coletivas diversificadas, já que
nem todas elas conseguem se reproduzir como costume.
A desigualdade quanto aos esforços para o trabalho na produção, em terras
destinadas ao uso coletivo, não é o único problema desarticulador das relações
sociais e das sociabilidades existentes entre famílias assentadas que se organizam
em grupos. Quando analisamos, de forma mais ampla, as relações que são
estabelecidas entre grupos coletivos e órgãos externos ao assentamento,
percebemos que existem lógicas diferentes quanto às formas de se estabelecerem
reciprocidades, cumprir com promessas estabelecidas ou mesmo atender aos
anseios expostos pelo grupo de famílias aos órgãos com os quais elas se
relacionam.
Desde a criação das duas associações de produtores, alguns esforços, por
parte de membros de cada associação, têm sido colocados em prática, com o
objetivo de reatar relações coletivas mais amplas, de modo que as duas
associações estabeleçam uma nova união. Nesse sentido, a plantação de milho,
realizada no mês de Janeiro de 2007, com dois membros de uma associação e três
de outra, foi um esforço coletivo para se reatarem laços que haviam sido rompidos,
entre as duas associações de produtores. No mês de março, em visita ao
assentamento, pôde-se registrar, por meio de fotografia, a lavoura de milho que foi
plantada, na área coletiva de três hectares, próxima à sede do assentamento,
conforme se observa na foto 25.
232
Foto 25: área coletiva, correspondente ás terras da sede do assentamento, com cultivo
de milho. Resultado de esforços de um grupo coletivo das duas associações para uso
das terras comunitárias. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Março de 2007.
Os resultados da colheita de milho, que deveriam ser de usufruto de todos os
participantes, não foi apropriada pela totalidade de seus membros. O entrevistado 03
nos falou sobre o trabalho coletivo, da seguinte maneira:
“Uma área a gente limpou, praticamente no coletivo. Uns trabalhou mais,
uns não podia ir em certos dias, então teve uns que tiveram a faixa de
quarenta serviço empregado na área, outros vinte e foi. na hora do
prantio, que a gente fez o prantio no mês de janeiro, na metade do mês em
diante, a gente arrumou um trator por nossa conta, compramos o adubo de
prantio, tudo, um pouco de adubo de cobertura, arrumou um trator e ele
fez um prantio geral na área, uniforme. Em quatro, cinco dias a gente
prantou essa área, não essa área, mas a gente prantou também a área
da sede, onde se faz as reuniões lá, aquela parte lá, então a gente plantou
ali, preparou e prantou. Inclusive a gente prantou também um hectare
de pinhão manso. Teve polêmica, que uns queriam que prantasse, outros
não. Mesmo os que não tava participando não queria que prantasse. Mas
agente prantou assim mesmo, essa área aí. os outros trabalho foram
feitos, a gente fez parece que uma limpeza na área. Quando a agente ia
fazer uma primeira cobertura fez uma estiagem no mês de fevereiro.
essa estiagem prolongou mais de mês. o milho não desenvolveu, não
teve como nós fazer essa cobertura, aí o milho não cresceu. Logo ele
começou penduar deu só aquelas espiguinha pequena. Quando a chuva
começou, voltou as chuva de novo no mês de março, do mei do mês em
diante, tinha passado da hora. a gente praticamente perdeu a área.
um pouco a gente utilizou esse milho pra silo. Principalmente a área de
233
os meninos encilou uma parte dela. Inclusive a gente ia encilar toda área.
Mas acontece que a gente foi na prefeitura, conseguiu os trator pra vim
fazer o silo pra gente. E eles não tinha enciladera, a gente foi no vizim e
pegou uma enciladera pra fazer esse silo e compramo o plástico pra cobrir
esse silo. Inclusive a gente ia fazer o silo dentro da roça mesmo, pra
quando chegar o tempo da seca a gente só ir e buscava de carroça esse
silo. Só que aí, quando, a gente deixou as coisa tudo pronta pra fazer o silo,
quando foi na semana que eles vinha fazer o silo, pra gente, ia mandar dois
trator pra fazer o silo. O rapaz veio aqui, avisou que não pôde vim. O
secretário de agricultura não autorizou os trator pra vim fazer o serviço pra
gente. E como o milho já tava começando passar, começando querer
secar a palha, não foi possível. os menino arrumou uns trator deles
mesmo, né, que tinha e aí fez, a parte de que era três hectare eles
fizeram o silo. a nossa aqui nós foi fazer a conta de quanto ficava a hora
pra fazer o silo a gente viu que não compensava. eles resolveram
pagar a máquina. Nós não quisemos pagar. nós dissemos quem quiser
pagar a máquina, ver que compensa, quiser aproveitar, os outros, que
nós era os outros três, falou não, nós pagar sessenta real a hora, duas
maquina trabalhando, aí não compensa.” (Informação Verbal)
35
Além do trabalho realizado de forma desigual, com esforços individuais
contabilizados por dias de trabalho diferenciados entre os participantes, o órgão
público que havia-se comprometido em participar na colheita da produção, com o
envio de dois tratores para o assentamento, não cumpriu com o prometido. Um dos
participantes, mesmo possuindo trator, não realizou a colheita para todos, pois o
preço que deveria ser pago para que o próprio membro do grupo colhesse a
produção não ficaria viável, financeiramente, para o coletivo. Sendo assim, apenas
realizou o trabalho para os membros da associação a que pertence.
De acordo com o entrevistado 03, a Secretaria de Agricultura havia prometido
que enviaria os tratores, no período em que as famílias necessitassem do
maquinário para colher a produção de milho. Porém, conforme nos relatou o
produtor representante do grupo coletivo junto à Prefeitura, a vinda dos tratores não
mais resolveria o problema da colheita, pois o milho não poderia ser aproveitado
para produção de silagem. A alternativa foi dispensar os tratores oferecidos pela
Prefeitura, que a lavoura deveria ser colhida na semana em que os tratores, por
35
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
234
acordo, deveriam ser utilizados. Dessa maneira, as tentativas em reatar laços entre
as duas associações não resultaram no sucesso esperado.
Entendemos que a participação de órgãos públicos, para criação e
consolidação do assentamento Divisa, tem produzido desencontros nas relações
que são estabelecidas com as famílias moradoras. Como se pode analisar, os
benefícios que os órgãos públicos oferecem às famílias do assentamento não são
aplicados no tempo correto, como é o caso da colheita de milho, que não foi
realizada no momento que ele estava em condições ideais para se produzir a
silagem.
Sendo assim, entendemos que recursos financeiros são aplicados à Reforma
Agrária sem considerar o tempo da natureza, seja de plantio ou de colheita.
Podemos utilizar também, como exemplo, o envio de tratores, por parte da
Secretaria Municipal de Agricultura, aos assentamentos vizinhos. Em diálogos com
algumas famílias do assentamento, constatamos que, em suas falas, fica evidente
que, todos os anos, há dificuldade em conseguir tratores da Prefeitura para se
realizar a preparação do solo para o plantio, nos meses de outubro, novembro ou
dezembro. Os produtores alegam que a prioridade da Prefeitura, para aração do
solo, não é voltada para os assentamentos. Foi-nos relatado que, no início do ano
de 2007, os quatro assentamentos do município, localizados próximos uns dos
outros, que são o Assentamento Divisa, Assentamento Capão Rico, Assentamento
Chico Mendes e Assentamento Douradinho, conquistaram, junto ao Governo
Federal, dois tratores, para serem de uso permanente das associações de tais
assentamentos. Porém, a entrega das quinas não ocorreu, que foram
repassados à Prefeitura Municipal. Esta, por sua vez, decidiu disponibilizar apenas
um trator, em condições precárias de uso, para realização de serviços diversos, nos
235
quatro assentamentos. Segundo os produtores do assentamento Divisa, apenas um
trator não é suficiente para atender a todos os lotes, que a preparação do solo,
sendo prioridade no período de início das chuvas, nos três últimos meses do ano,
não pode ser realizada, pois apenas um veículo não conseguirá atender à demanda
de trabalho dos quatro assentamentos.
Buscando solucionar o problema quanto à preparação do solo, alguns
produtores contratam o-de-obra particular, daqueles que possuem tratores, para
que a produção do milho, do arroz ou do gergelim o fique comprometida, no
próximo ano. Outros utilizam instrumentos tradicionais, como a carpideira, atrelada
ao cavalo, para preparar a terra. Desse modo, verifica-se que nem todas as famílias
de produtores estão reféns dos desencontros produzidos por órgãos públicos de
assistência à produção no assentamento.
Analisando o contexto das organizações coletivas para produção,
percebemos que existem dois fatores principais que contribuem para o seu
fortalecimento ou, contrariamente, para o seu enfraquecimento. Referimo-nos à
lógica interna que o grupo constrói quanto ao trabalho, à reciprocidade, às
relações de vizinhança, à convergência ou divergência de objetivos comuns - e às
imposições externas, que surgem à medida que o coletivo se relaciona com órgãos
que contribuem para que as atividades de produção aconteçam no assentamento.
A organização coletiva da associação de mulheres, que foi criada no
assentamento Divisa, surgiu a partir da parceria de um grupo feminino junto à
EMATER/MG, a qual podemos citar como exemplo de associação existente que, na
atualidade, não desenvolve trabalhos coletivos. Nas visitas às residências familiares,
constatamos a produção de artesanato, realizado por mulheres que participaram da
associação e ainda se diziam membros dela. Foi a oportunidade que nos possibilitou
236
a descoberta de outro grupo coletivo, que o se desenvolveu no assentamento,
desde o momento em que a EMATER/MG não mais ministrou cursos de artesanato
para as mulheres.
Segundo a entrevistada 30, ela nos relatou a respeito das reuniões que
ocorriam com uma técnica da EMATER/MG. Segundo ela,
“Tinha a reunião do pessoal da EMATER que vinha, agora tem muito tempo
que eles não aparece mais com as mulher, né. Então, a gente participava.
Todo mês ela vinha, fazia reunião. Olha, essas reuniões era crochê, tricô,
bordado. Ela vinha ensinar pra gente e a gente participava. Elas ensinava a
gente fazer. Era doce, doce cristalizado. A turma foi descrençando, ficou
particular, cada um fazia pra si e vendia. Todo mês era um curso diferente
que ela fazia. A Sra. A. da EMATER foi embora. A que entrou no lugar dela
disse que a EMATER ainda ta investindo nela, né. Ainda ta investindo pra
ela passar pra gente. Aí ela falou que ia demorar.” (Informação Verbal)
36
Apesar de não haver mais reuniões de mulheres para aprender a
confeccionar novos modelos de artesanato, bem como produzir peças para
comercialização, a fala da entrevistada 30 demonstra que o grupo possui uma
dependência do órgão de assistência técnica para continuar desenvolvendo
atividades coletivas e fortalecendo-se enquanto grupo. Porém, o conhecimento
adquirido por meio dos cursos oferecidos pela EMATER/MG ainda é posto em
prática por algumas mulheres do assentamento, como é o caso dos bordados, que
continuam sendo produzidos e comercializados, conforme nos relatou a entrevistada
30.
Em visita a outros lotes, onde existem mulheres participantes da associação,
registramos (conforme as fotos 26 e 27) alguns artesanatos produzidos para
comercialização, que têm sido feitos de forma individual, que não têm ocorrido
reuniões para produção coletiva e trocas de experiência de trabalho.
36
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
237
Foto 26: Artesanato em tricô, produzido pela associada moradora do lote 18.
Não freguesia constante para comprar a produção. Peças de artesanato têm
sido comercializadas com pessoas conhecidas e com parentes. Autor: CRUZ,
Nelson Ney Dantas, Setembro de 2007.
Foto 27: Pintura e bordado em tecido confeccionado pela moradora do lote 23. O artesanato que a
associada nos apresentou para registro fotográfico é resultado das reuniões que as mulheres
realizavam para desenvolver e trocar experiências em conjunto. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas,
Setembro de 2007.
238
Em diálogos com a entrevistada 20, colhemos um depoimento acerca dos
rearranjos que ocorriam nas relações com a EMATER/MG e a Prefeitura Municipal
de Ituiutaba, para que o grupo de mulheres pudesse desenvolver as atividades
dentro do coletivo. De acordo com a entrevistada 20,
“Teve uma época que a gente estava fazendo muito artesanato no grupo,
né. A gente ia no encontro da mulher rural e levava, vendia bastante. Nós
reunia uma vez na semana na sede todas as mulheres e a gente fazia
tudo em grupo, tudo dividido, a compra do material, a venda desses
artesanato que a gente fazia, era tudo dividido por igual no grupo, era um
grupo grande de mulheres. Mas foi distanciando, né, e no fim a gente
dividiu tudo, e agora todo mundo borda individual. Os primeiros recursos
que veio foi da prefeitura. A Sra. A. através da prefeitura trouxe os materiais
pra gente e a gente fazia uma quantidade e tinha que devolver um tanto pra
eles e a gente ficava com um pouco. Depois desses que a gente foi
vendendo que ficou pra nós, a gente comprou um pouco de mais material
pra nóis. depois nós fizemos uma festa e arrecadamos um dinheiro e
compramos tudo em material. E a gente continuou bordando junto. A
gente fez uma festa junina na sede e arrecadamos um dinheiro e
compramos o material.” (Informação Verbal)
37
Os cursos oferecidos pela EMATER/MG sobre artesanatos não se resumiram
ao tricô, ao bordado e às pinturas em tecido. A assistente técnica que reunia as
mulheres na sede também ensinou a produzir doces cristalizados, aproveitando
frutos do pomar. A entrevistada 20 produz os doces em sua propriedade e os
comercializa com parentes, amigos e pessoas da cidade, que conhecem o seu
produto e o encomendam. As fotos que se seguem ilustram a produção artesanal de
doces.
37
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
239
Foto 28:Fogão a lenha utilizado para produzir os doces de leite e doces cristalizados, no
lote nº 01. A produção apresenta um caráter artesanal. Autor: CRUZ, Nelson Ney
Dantas, Fevereiro de 2007.
Foto 29: Doces variados de leite, abóbora, figo e mamão. A matéria-prima é produzida
no próprio lote. Os doces são embalados em bandejas para serem comercializados.
Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Fevereiro de 2007.
240
Foto 30: O doces seriam levados à cidade para serem entregues ao comprador que os
encomendou, há alguns dias. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Fevereiro de 2007.
Assim como outras mulheres que participavam da produção associativa, a
entrevistada 20 trabalha com produção artesanal em seu lote, de forma individual,
que o grupo não se reúne para produzir em conjunto. De acordo com o relato da
entrevistada 20,
“O grupo não ta reunindo mais não, a gente ta fazendo tudo individual. As
mulheres mais pro final foi desanimando às vezes ia poucas mulheres,
faltava muito e foi desinteressando, né, por aquilo, a dificuldade de vender
os material também, né. E foi desanimando e separou todo mundo, foi por
isso. Era difícil pra gente ta aqui e ir pra cidade vender, né. Não tinha muito
tempo pra isso. Agora que surgiu um camelódromo em Ituiutaba, tem
uma barraca que vende só coisas da fazenda, né. Artesanato, doce,
essas coisas vende, a gente pode expor lá. Mas aí o grupo tinha
parado e nós nem chegamos levar nesse camelódromo pra vender. Era
um Box não só pra nós, mas pra toda comunidade rural. Tem o pessoal das
outras fazenda que leva, todo mundo que quiser colocar pode levar. E a
Sra. A. também foi embora, a nossa extensionista, veio outra, mas a outra
não tem muito conhecimento em artesanato, nesses cursos, por fim, ela não
veio e nós não fizemos nenhum curso. Não foi falta de interesse do grupo,
ela não procurou também. Ela veio uma vez aqui numa reunião. Acho que já
veio mais de uma, eu é que não participei. Não trouxe, não dispôs nada
para gente fazê, nenhum outro tipo de curso. Aí no fim, parou, não ta
241
fazendo nenhum curso, porque a Sra. A. tinha mais interesse do que ela.”
(Informação Verbal)
38
Conforme o relato das entrevistadas, um dos principais motivos que levaram
ao enfraquecimento do grupo de mulheres foi o afastamento da EMATER/MG,
quanto ao oferecimento de cursos para a associação. A relação firmada com a
instituição de assistência técnica facilitava o contato com outros órgãos que
contribuíam para a produção artesanal, sobretudo com auxílio à comercialização. A
dificuldade em se ter acesso à cidade, por meio de transporte para a produção,
também é um dos motivos que contribuíram para a desarticulação entre as mulheres
pois, na falta do auxílio dado pela EMATER/MG, elas perderam o poder de
negociação perante as instituições que financiaram a produção e promoveram
eventos para exposição do artesanato. Estando desarticuladas com a assistência
técnica, as mulheres têm desenvolvido a produção do artesanato em pequena
escala, apenas para atender a uma freguesia local, formada por parentes e pessoas
conhecidas.
Outro grupo coletivo, que merece destaque quanto à sua organização, é o
que comercializa o leite; essa comercialização tem sido realizada por duas famílias
compradoras de posses de lotes. Diante das dificuldades de participar de um dos
grupos produtores de leite, dois parentes, que compraram posse no assentamento,
financiaram a compra de um tanque de expansão, para armazenar o leite. De acordo
com o entrevistado 35, alguns problemas surgiram quando ele e seu primo
resolveram participar de um dos grupos, para comercializar o leite com o laticínio.
Segundo ele,
“Eu entregava o leite lá. Então, eu ajuntei mais meus primo que o leite não
tava cabendo lá, nós compremos um tanquinho e ta aqui no chão meu.
Então, a gente ta pondo aqui de sociedade. Nós ta vendendo pro canto de
38
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
242
minas, igual os menino lá ta vendendo, ta tudo reunido. Que nem diz o
ditado, é melhor porque ta em casa, né, e o cabia o nosso leite. Nós
teve de colocar o tanquinho por isso. A despesa aumenta mais um pouco
porque a gente gasta mais energia, né, vai aumentar mais um pouco.
Quando colocava gastava menos porque era mais gente. Então, era
sociedade, cada um pagava um pouco, agora, aqui, não, é mais dois
vai gastar mais. Foi mais viável comprar esse tanque. Se nós tivesse ficado
lá, ficava mio, né, mas aí a gente não pensou e já comprou foi outro. Porque
se tivesse feito isso pra trocar os tanque ficava mais barato. Porque hoje
em dia você trabalhar em grupo, o povo fala que não, mas você trabalhar
em grupo é melhor do que você sozinho, principalmente num chãozinho
desse aqui.” (Informação Verbal)
39
As dificuldades em participar de um grupo coletivo de produção, no
assentamento, conduziu os dois compradores a adquirem um tanque de expansão,
tornando-se autônomos, apesar da inviabilidade financeira, comentada na fala do
próprio entrevistado. Segundo ele, a estratégia do pequeno produtor, para se manter
no seu lote, é desenvolver práticas coletivas. Nesse sentido, pode-se justificar o seu
interesse em se associar com o primo, para conquistar autonomia. Ou seja, o grupo
coletivo também deve garantir autonomia, inclusive de opinião e decisão, dentro das
ações em grupo. Como não obtiveram tais ganhos, estando vinculados em um dos
grupos associativos do leite, a alternativa foi conquistar a autonomia pela construção
de um grupo que apresente reciprocidade que, nesse caso, parece ser garantida
pelas relações de parentesco entre o entrevistado e o outro produtor com que se
associara. Em seu lote, localiza-se o tanque de expansão para o armazenamento do
leite de apenas dois produtores, como se pode observar, pela foto 30.
39
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
243
Foto 31: Tanque de expansão para armazenamento de leite, localizado no lote nº 07. Os
laticínios da cidade exigem que o leite seja armazenado em tanques de resfriamento. A
alternativa dos produtores é se organizar em grupos e adquirir o equipamento por meio
de compra. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas, Setembro de 2007.
O produtor entrevistado ainda não conseguiu o título de posse, que lhe
garante a condição de assentado da Reforma Agrária. Segundo ele, o Incra está
com a documentação necessária para regularizar a posse da terra. Outros
compradores estão na mesma situação irregular que o entrevistado 14. Em alguns
relatos, constatamos a dificuldade em participar da associação dos produtores. O
entrevistado nos informou o seguinte:
“Pode dizer que eu não tenho quase participação. Eu vou nas reunião deles
aí, mas a gente sem documento até que você não pode optar nada. Igual eu
aqui por enquanto, não sou ninguém. To aqui dentro mas não tem registro
de nada aqui. Eu acho que eu sou considerado um ninguém aqui, porque
como é que eu vou optar. Você tem seu documento do solo? Eu não tenho.
Eu acho que até, eu não opto em nada, vou assisto, quando eu posso. Mas
não dou opinião nessas coisa por causa disso, porque não tem documento.
Agora, depois que você tiver o documento, é diferente, você já tá
dentro daquela associação. Mas, igual eu, eu não, tem mais que não tem
documento, nós não faz nada aqui. Quando nós precisa de um documento
da cidade, uma nota, tudo, é no nome de quem tem inscrição, a turma que
tem. Nós mesmo, eu acho que nóis, igual, não temos que dar palpite
244
aqui, como nós comprador que ainda não pegou documento não tem como
nós optar em nada, falar que ta errado, falar que ta certo. Nós não é
considerado do grupo por enquanto. Na hora que chegar os documento
tudo bem, aí acho que é diferente.” (Informação Verbal)
40
A situação irregular do comprador de posses influencia na sua participação no
grupo associativo, pois ele se caracteriza como indivíduo sem poder opinar, ou seja,
de participar de decisões no grupo. No seu entendimento, sua participação sede
forma efetiva quando obtiver o título de posse, pois será possível conquistar um
registro de produtor rural e, conseqüentemente, igualar-se aos demais produtores,
que já estão na condição de assentados.
A partir das análises que realizamos em torno das práticas coletivas que
surgem no assentamento, podemos discutir a organização das redes, que se
estabelecem pela instituição, consolidação ou enfraquecimento dos grupos coletivos
locais. Estes, por sua vez, relacionam-se com outros grupos, conectando os
indivíduos a uma rede de sociabilidade, indispensável ao seu cotidiano e,
conseqüentemente, à reprodução da vida e permanência das famílias no
assentamento.
40
Entrevista realizada no mês de Setembro de 2007.
245
Figura 1: Representação da rede de relações, produzida a partir de grupos coletivos intra e extra-
comunitários. Autor: CRUZ, Nelson Ney Dantas.
Tomando-se como referência os grupos analisados, construímos um
diagrama representativo das relações que se estabelecem entre grupos do próprio
assentamento e destes com não moradores do assentamento e instituições externas
a ele. A proposta é demonstrar, esquematicamente, as redes de sociabilidade,
constituídas a partir de s e conexões produzidas por práticas coletivas. Sendo
assim, apresentamos o diagrama que se segue.
O desenho representativo dos grupos coletivos demonstra que a produção de
redes sociais se pela conexão que esses grupos estabelecem entre si. Indivíduos
que participam de uma organização coletiva estão, também, presentes noutras
organizações, contribuindo, em diversas partes da rede, para que esta seja
fortalecida.
246
Ao pensarmos a lógica de organização das redes de sociabilidade, no
assentamento Divisa, consideramos o coletivo como um espaço múltiplo, que é
construído por ações diversas entre os sujeitos sociais. Compreendemos que o
coletivo é um espaço social determinado e determinante no processo de constituição
e consolidação das redes de sociabilidade.
A necessidade de se relacionar com instituições governamentais e não-
governamentais é produzida pelas necessidades e circunstâncias sociais e
econômicas, próprias do mundo moderno. O poder público, ao estabelecer relações
com os grupos de produtores do assentamento, dialoga com a coletividade, onde as
particularidades individuais são ignoradas e não percebidas como contradição ou
empecilho à implantação de projetos modelares, fornecimento de assistência técnica
e de benefícios econômicos e estruturais.
As conexões e estratégias, criadas pelo coletivo, no espaço do assentamento,
demonstram a diversidade das relações sociais que se manifestam na organização
para o trabalho coletivo, na escolha da vizinhança para produção da festa, nas
tentativas de se reatarem laços comunitários que, em determinado momento, foram
rompidos. Havendo reciprocidade, por parte das instituições com as quais a conexão
é estabelecida, o coletivo é fortalecido e, conseqüentemente, a rede social é
ampliada e também fortalecida.
O que compreendemos é que a rede não possui laços contínuos de
reciprocidade, entre os grupos participantes. Dessa maneira, é possível analisar os
elementos que dão sentido e ordenamento à rede; podemos enumerá-los como: as
formas de representar o trabalho e de empregá-lo na produção; a reciprocidade
quanto ao esforço contido na concretização de idéias comuns; a satisfação ou
insatisfação quanto aos resultados conquistados em grupo.
247
Os grupos são organizados por uma necessidade imposta, socialmente, às
famílias assentadas. Estas, por sua vez, organizam-se por motivações como
reciprocidade, relações de vizinhança e parentesco. Essas são as estratégias
encontradas para suprir a carência da mão-de-obra familiar, garantir a geração da
renda e a reprodução da vida. Porém, as divergências entre modos de vida, que no
cotidiano se manifestam pelas formas de representar a realidade, não permitem que
exista um coletivo coeso, livre de contradições e conflitos. Sendo assim, cada família
se organiza no grupo com que mais se identifica, sem deixar de participar da rede
social, a qual a conecta a diversas instituições, necessárias ao seu cotidiano.
Observando a caminhada de luta pela permanência no lote, percebe-se que
as relações, no interior dos grupos, o altamente dinâmicas, pois as frustrações,
quanto a determinados trabalhos coletivos, provocam a desistência e descrença de
alguns, por aquele empreendimento. Contudo, potencializam novas formas de
relações coletivas, pois é necessário estabelecer conexões com grupos externos ao
assentamento, seja para comercialização de produtos ou negociação política com
instituições públicas. Sendo assim, é necessário estar em grupo ou mesmo se dizer
pertencente a ele, para receber financiamentos destinados a projetos produtivos,
regularizar a documentação da posse do lote que foi comprado, obter apoio e
solidariedade daqueles que produzem o cotidiano no assentamento e, também,
produzir a festa. A coletividade permite maior poder de negociação para os que dela
participam, e o indivíduo apresenta os seus interesses como sendo coletivos,
facilitando alcançar a conquista almejada.
Por fim, compreendemos que a organização das redes de sociabilidade, no
contexto local dos assentamentos, relaciona-se à multiplicidade e dinamicidade de
organizações coletivas, produzidas pelas divergências entre modos de vida, conflitos
248
de idéias e de práticas, que não têm sido capazes de eliminar a produção de formas
coletivas de organização, para criação de redes de sociabilidade intra e extra
comunitárias.
4.2. Comunidade e coletividade no assentamento.
A coletividade, como foi analisado a partir das redes sociais, não apresenta
um conteúdo desarticulado de uma lógica que lhe sustentação. A comunidade,
por sua vez, resulta da relação que o coletivo e as redes produzem no espaço local
do assentamento. Desse modo, é possível falar em existência de comunidade, no
espaço rural estudado; mas de uma comunidade que se constitui com objetivos
relacionados à produção, sustentados por diversos tipos de reciprocidade.
O lugar, enquanto assentamento, é construído pelas relações do homem com
o meio e deste com grupos sociais diversos, é a base para o fortalecimento
comunitário. Nesse sentido, o espaço do vivido, onde os indivíduos elaboram metas,
demonstram seus sentimentos, desejos, sonhos e representações, constitui-se a
dimensão essencial para a produção e reprodução do lugar comunitário. Apesar de
existirem diversos grupos coletivos de afinidades entre famílias, é possível observar
que tais grupos estão em constante conexão e relacionamento, sendo que membros
de um grupo estão sempre em contato com os demais grupos sociais e instituições
públicas e privadas, pois a rede de sociabilidade que se estabelece, a partir do
assentamento, não isola os grupos de relações mais amplas.
Tratando-se do conceito de comunidade, os autores Maciver e Page (1973),
afirmam que
“O que caracteriza uma comunidade é que a vida de alguém pode ser
totalmente vivida dentro dela. Não se pode viver inteiramente dentro de uma
empresa comercial ou de uma igreja; pode-se viver inteiramente dentro de
249
uma tribo ou de uma cidade. O critério básico da comunidade, portanto, está
em que todas as relações sociais de alguém podem ser encontradas dentro
dela.” (p. 122);
A partir de tal afirmação, compreendemos que a análise do cotidiano, da
maneira que realizamos no capítulo 02, foi importante para mostrar a complexidade
da vida, nas redes familiares. As relações estabelecidas, no cotidiano, apresentam
as ligações diversas que indivíduos estabelecem com o coletivo, para realizar
conquistas.
Porém, também ficam evidentes as divergências e conflitos que surgem no
interior da organização comunitária. No entanto, as diferenças quanto aos modos de
vida não anulam a possibilidade da coesão. Entendemos, também, a partir de
Fichter (1973), que
“[...] comunidade é um grupo territorial de indivíduos com relações
recíprocas, que se servem de meios comuns para lograr fins comuns. [...]
Uma comunidade é essencialmente “ligada ao solo”, no sentido de que os
indivíduos vivem permanentemente numa dada área, têm consciência de
pertencer tanto ao grupo como ao lugar e funcionam conjuntamente nos
principais assuntos da vida. A comunidade é considerada sempre em
relação ao meio físico. A comunidade é, essencialmente, uma agrupação ou
uma rede de pequenos grupos, porém, em sua totalidade, pode-se distingui-
la em muitos aspectos como um grande grupo social. Os membros da
comunidade têm consciência das necessidades dos indivíduos dentro e fora
de seu grupo imediato e tendem a cooperar estreitamente.” P. 154;
Os objetivos comuns dos grupos que compõem a rede de sociabilidade são
diferentes. Mas podemos dizer que eles convergem sempre para um determinado
fim, que é o de garantir a reprodução da vida, em todas as suas dimensões. É assim
que a comunidade, no assentamento, é constituída, pois estar em um grupo coletivo
significa participar da rede social e pode-se afirmar que contribuir para a rede é
colaborar para sustentações de uma sociabilidade comunitária.
A discussão sobre comunidade, a partir dos conceitos que utilizamos,
contribuiu para nossa análise do coletivo no assentamento, pois, na atualidade,
apesar de haver outras discussões sobre o conceito, em que autores questionam a
existência comunitária condicionada à relação com o meio físico, é possível
250
entender que, no caso pesquisado, a comunidade, em seu conteúdo se compõe de
sujeitos que, na luta pela vida e permanência no assentamento, estabelecem
intensas relações com o Estado para obter meios que redefinam a relação com a
natureza. Não podemos entender o espaço comunitário do assentamento estando
desvinculado de práticas sociais de uso da terra, pois essa prática constitui-se como
elemento mediador das relações coletivas presentes no cotidiano.
Nossa análise demonstra que o meio físico não é o elemento condicionador
da produção comunitária. É apenas uma das bases espaciais onde se desenvolve a
vida. O sentido de comunidade, apoiado no trabalho e nas relações que o envolvem,
bem como na organização da festa, contribui para produzir e reproduzir o lugar,
enquanto comunitário.
4.3. A lógica das relações sociais no espaço da Reforma Agrária
O estudo das particularidades de relações existentes no Projeto de
Assentamento Divisa revelou-nos um cotidiano permeado por contradições e
heterogeneidades, não confirmando a existência de um grupo homogêneo, coeso e
ausente de conflitos. É nesse contexto espacial que a compra e venda de posses de
lotes têm ocorrido e foi a partir dele que compreendemos os motivos que conduzem
os beneficiários a comercializarem suas posses. Consideramos que essa situação
representa uma contradição para a Reforma Agrária, e não deve ser analisada sem
tomar como referência os próprios sujeitos que lutam pela vida, nos espaços que
recebem como benefício.
A possibilidade de regularização de posses que foram compradas, em
assentamentos, constitui-se como incentivo para que novas comercializações sejam
251
realizadas, estabelecendo-se um constante “vai e vem” de beneficiários, o que faz
aumentar os números das estatísticas governamentais e ocultar a realidade que tem
sido produzida no meio rural, com a Reforma Agrária.
A venda de lotes, além de criar a idéia de impunidade, produz um espaço
permeado por conflitos entre aqueles beneficiários que lutam para permanecer em
seus lotes. A vinda de novas famílias, para os lotes daqueles que o comercializaram,
representa um rompimento de laços estabelecidos entre os que permanecem e
aqueles que abandonam seus lotes. Logo, os projetos coletivos, nascentes de
conquistas conjuntas, têm sua continuidade e reprodução comprometidas, pois
dependem da sociabilidade que os novos moradores do assentamento irão produzir,
a partir de diversas relações que estruturam o cotidiano.
A gênese da comercialização das posses dos lotes está presente nos
desencontros ideológicos e práticos entre os grupos que estabelecem relações,
dentro das redes de sociabilidade. Partindo-se da análise particular das famílias
beneficiárias, encontramos diversidade quanto aos aspectos culturais e aos
conhecimentos e habilidades relacionados ao trabalho na terra. A produção do
cotidiano é realizada por ações entre grupos familiares que possuem modos de vida
diversos. Nesta condição, os embates vão sendo produzidos, ficando evidentes as
concordâncias e discordâncias surgidas na organização de associações, sendo que
as políticas oferecidas pelos órgãos gestores da Reforma Agrária para o coletivo,
aparentemente organizado, não conseguem atender às particularidades, sobretudo
daqueles que, sem saber cultivar a terra, não conseguem retirar sua sobrevivência a
partir do uso do lote conquistado.
Alternativas para obter renda são empreendidas por alguns assentados. Eles
buscam o emprego assalariado em cidades ou no campo, enquanto não conseguem
252
obter as condições necessárias para trabalhar, de forma autônoma, na produção
agrícola, e trazer suas famílias para morar no assentamento. Outros, vivendo em
condições precárias, após a conquista do lote, combinam a atividade de produção
em suas terras com a prestação de serviços como assalariados, enquanto não
conseguem renda das primeiras produções ou financiamento do Governo para
construção de casas e melhoramento estrutural e produtivo do lote.
Nesse sentido, as organizações coletivas para o trabalho, como o mutirão,
bem como o desenvolvimento de atividades religiosas e festivas, é essencial para
que as famílias conquistem um espaço de comercialização dos produtos agrícolas,
ampliem as relações sociais e produzam a comunidade e reproduzam o lugar, a
partir da moradia nos lotes. Desse modo, podemos considerar que as dificuldades
de se inserir socialmente, de produzir o cotidiano e o lugar, de conquistar melhores
condições de moradia e investimentos para geração de renda com apoio dos
órgãos gestores -, de se identificar com os projetos comunitários e participar
ativamente das redes sociais, de superar os conflitos e confrontos das diferenças
entre modos de vida, de obter recursos financeiros, são os motivos pelos quais os
beneficiários da Reforma Agrária, no assentamento Divisa, comercializam as posses
dos lotes.
253
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diversas possibilidades de pesquisa podem ser desenvolvidas em
assentamentos rurais. A abordagem geográfica, que desenvolvemos ao longo dos
quatro capítulos, é a postura teórico-metodológica para analisar a realidade do
espaço vivido. Entendemos que é necessário, em todo caso, ir a campo observar,
descrever, comparar e compreender as especificidades, particularidades e
singularidades presentes no espaço social dos sujeitos que produzem e reproduzem
o lugar nos assentamentos rurais. Desenvolvemos, ao longo do trabalho, um
exercício de leituras teóricas e empíricas, como estratégia de direcionar o caminho
da pesquisa, para pensar as contradições, os embates e as superações.
Partimos de um questionamento que foi elaborado pela observação da
realidade rural dos assentamentos localizados na região do Triângulo Mineiro.
Preocupamo-nos com as vendas de posses de lotes que eram realizadas em tais
assentamentos e, sempre estávamos nos perguntando a respeito das causas e
conseqüências do movimento de “ir e vir” de beneficiários. Observávamos, também,
que havia lotes que não vinham sendo cultivados, sendo que seus beneficiários
residiam em outro local e, esporadicamente, visitavam o assentamento em dias de
reuniões consideradas importantes. Analisando algumas obras científicas sobre o
assunto Reforma Agrária, não encontramos publicações que pudessem nos orientar
a respeito de estatísticas relacionadas à comercialização de posses, nem mesmo
sobre o motivo de elas existirem. Encontramos diversas pesquisas que tratam de
assuntos relacionados a assentamentos rurais. Suas abordagens não analisavam o
aspectos amplos a respeito da reprodução da vida e sobre a permanência de
254
famílias beneficiárias em seus lotes. Sendo assim, a curiosidade e o desejo pela
pesquisa motivaram a realização do trabalho com as famílias moradoras do Projeto
de Assentamento Divisa.
Ao desenvolver a problemática, no início do primeiro capítulo, direcionamos o
estudo utilizando questionamentos para construir o tema e apontar os caminhos que
a pesquisa iria trilhar. A consolidação do tema ocorreu pela leitura e análise de
conteúdos teóricos, que tratavam de assuntos relacionados a Assentamentos de
Reforma Agrária. Essa abordagem permitiu justificar a realização da pesquisa, bem
como situá-la no contexto das demais, demonstrando a sua importância no local de
estudos. Foi possível compreender que havia necessidade de analisar os
assentados, em suas particularidades relevantes, no caminhar da reforma, de modo
a decifrar o problema da comercialização de posses de lotes.
Os modos de vida foram escolhidos como conteúdo particular de análise da
realidade das famílias. Sendo assim, tivemos que analisar, conceitualmente, o modo
de vida em relação ao cotidiano e compreender como ele se estrutura, nas relações
sociais. O conteúdo analítico, desenvolvido no segundo capítulo, foi responsável em
direcionar, metodologicamente, a investigação científica, presente nos capítulos
posteriores. A pesquisa empírica foi analisada, teoricamente, a partir de outras áreas
das ciências humanas, com textos de antropólogos, historiadores e sociólogos.
Pensando na interdisciplinaridade, foi possível elaborar um entendimento sobre o
trabalho de campo relacionado a estudos culturais em Geografia. Isto se fez
necessário, também, porque as preocupações com a ética em pesquisa considerou
a preservação da identidade dos sujeitos entrevistados e observados. Sendo assim,
foi necessário pensar sobre como obter eficiência na coleta de dados sem que
interferíssemos, negativamente, na privacidade dos pesquisados.
255
Iniciamos nossas análises sobre modos de vida a partir do entendimento da
trajetória de luta vivida pelas famílias moradoras do assentamento. Ouvimos e
registramos diversas histórias que faziam parte da trajetória de vida das famílias, nos
momentos anteriores e posteriores à criação do assentamento. Nesse contexto, foi
possível registrar as particularidades pertencentes a cada grupo familiar. Dessa
maneira, fomos compreendendo a produção de práticas cotidianas, que se
relacionam às características presentes nos modos de vida.
De acordo com nossas análises consideramos que, no assentamento,
residem famílias com modos de vida diferentes e divergentes, por possuírem
trajetórias de vida que estão desencontradas no tempo e no espaço, com
experiências de trabalho as mais diversas. Persiste uma diferença de estratégias de
reprodução da vida entre os que permanecem morando no assentamento e aqueles
que o residem em seus lotes. Também divergências entre os próprios
moradores do assentamento, caracterizadas pelas trajetórias de vida e pelas
práticas cotidianas, que se diferenciam no interior de suas estruturas, como é o caso
da organização do trabalho, e as estratégias para suprir as deficiências de mão-de-
obra familiar.
O cotidiano e os modos de vida direcionaram as reflexões produzidas no
capítulo três, pois o lugar foi analisado em sua dimensão sócio-cultural, sendo que a
paisagem também foi outra categoria analisada. A proposta analítica convergiu para
o estudo do lugar. Compreendemos essa categoria como sendo produzida pelo
embate, pela desarmonia entre aqueles que apresentam modos de vida divergentes
e que, apesar das similaridades e encontros na vida cotidiana, possuem diferenças
quanto às habilidades e saberes de se relacionar com os lotes da Reforma Agrária e
256
de se inserir e participar, socialmente, dos processos produtivos rurais, no
assentamento.
Foi possível perceber que os laços de solidariedade persistem, apesar de se
estabelecerem conflitos entre compradores de posse e assentados e entre os
próprios compradores. As relações que se estabelecem, em torno do trabalho,
demonstram que as aproximações entre as famílias moradoras do assentamento se
por práticas advindas de outros tempos, como são as trocas de serviço, que
alguns assentados desenvolviam no meio rural, antes de virem para o
assentamento. No contexto das práticas coletivas, podemos compreender que elas
surgem no lugar e estão integradas a uma rede de sociabilidades e de interconexões
entre diversos grupos coletivos, intra e extra comunitários.
Pensar os modos de vida, a reprodução do lugar e a organização comunitária
foi um caminho importante para adentrarmos à lógica das relações que são
estabelecidas nos assentamentos rurais. Entendemos que o espaço social é
construído pelos esforços individuais e coletivos, divergentes e convergentes, em
suas bases constitutivas. Desse modo, a comunidade, bem como a lógica de
relações derivadas das redes de sociabilidade, foram analisadas, no quarto capítulo.
Portanto, ao desenvolver este trabalho, esperamos que outras pesquisas
sejam realizadas, a fim de ampliar o estudo da realidade dos assentamentos rurais,
bem como contribuir para o entendimento das contradições que emergem no interior
das práticas cotidianas dos grupos humanos que vivem nos espaços rurais
brasileiros. Adentrar à reprodução da vida daqueles que sonham, lutam, conquistam
ou desistem de uma causa pela Reforma Agrária é uma alternativa de explicar a
própria reforma, bem como produzir novos rumos, baseados no atendimento às
particularidades que surgem de conteúdos culturais diversos.
257
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265
ANEXOS
6 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TÍTULO DO PROJETO: A Reprodução do lugar como desafio de permanência nos lotes da
reforma agrária: Assentamento Divisa - Ituiutaba-MG
OBJETIVO E JUSTIFICATIVA DA PESQUISA.
Eu entendo que fui convidado (a) conjuntamente com minha família a participar de um
projeto de pesquisa envolvendo moradores e familiares do Assentamento Divisa. Fui
informado de que os objetivos do projeto são estudar os modos de vida das famílias
assentadas. Neste estudo, os pesquisadores conhecerão minha casa e minha família para
saber quais práticas agrícolas exerço em meu lote e como me relaciono com as demais
pessoas do assentamento. Os pesquisadores também me informaram que irão abordar as
estratégias e as formas de organizações sociais que fazem parte do processo de produção
agrícola e que eu, de acordo com minha disponibilidade, poderei acompanhá-los quando
forem visitar minhas plantações e criações. Os pesquisadores também me esclareceram
que pretendem conhecer a maneira como nos relacionamos com os vizinhos e demais
moradores do assentamento. Eles justificaram a pesquisa como sendo um trabalho de
mestrado que visa compreender a reprodução do lugar a partir das relações de vizinhança e
parentesco, bem como as mesmas contribuem para o fortalecimento e organização da
comunidade que participo e seu papel na construção de parcerias institucionais entre
assentamento, órgãos governamentais e não governamentais.
PROCEDIMENTOS QUE SERÃO UTILIZADOS NA PESQUISA
Entendo que se eu concordar em participar do estudo proposto, o trabalho será realizado da
seguinte forma:
Os pesquisadores visitarão o assentamento, permanecendo por alguns dias e
procurarão conhecer a nossa organização de trabalho familiar no lote, nossas expectativas e
anseios em trabalhar na terra, nossa organização comunitária e nossas relações sociais
estabelecidas com órgãos governamentais e não governamentais parceiros do
assentamento;
Eles me explicaram que serei convidado a acompanhá-los nas suas visitas ao meu
lote e nas atividades comunitárias;
Estarão sempre registrando as nossas atividades no lote e na comunidade, com
especial atenção para o trabalho rotineiro na lavoura e na pecuária, nossos mutirões e
reuniões coletivas;
Outros membros de nossa família, como os jovens, também serão convidados em
alguns momentos para falarem a respeito de sua participação no trabalho familiar e suas
pretensões futuras de continuarem trabalhando e morando no assentamento;
Também me foi explicado e entendi que os procedimentos mencionados acima vão
ser realizados toda a vez que os pesquisadores visitarem a minha propriedade e ou
comunidade;
266
O registro das paisagens
41
será feito por meio de observações, descrições e
comparações de campo com documentações fotográficas e cartográficas;
Os dados coletados em trabalhos de campo serão discutidos entre os pesquisadores
e todo o material coletado será utilizado para fins científicos, aulas e documentários a
respeito do modo de vida, da cultura e das relações comunitárias, sem que haja perda da
minha privacidade. Tenho plena consciência e total liberdade para me informar quanto aos
resultados.
Entendo que a participação é voluntária e que posso me recusar a participar ou retirar meu
consentimento interrompendo a minha participação e de meus familiares no estudo a
qualquer momento sem qualquer penalização. Eu reconheço também que o Mestrando
Nelson Ney Dantas Cruz e seu professor orientador Rosselvelt José Santos, colocaram-se a
disposição para esclarecer qualquer dúvida no decorrer da pesquisa.
Eu, ..................................................................... RG .................................., confirmo que o
Mestrando Nelson Ney Dantas Cruz e seu orientador Prof. Rosselvelt José Santos,
explicaram-me o objetivo do estudo, os procedimentos que serão utilizados. Também me foi
explicado, assim como compreendi esse termo de consentimento e estou conjuntamente
com minha família, de pleno acordo em participar desse estudo.
_______________________________________________________
Assinatura do participante ou responsável
Mestrando/Pesquisador: Nelson Ney Dantas Cruz
cruzdageo@yahoo.com.br – Fone: 9151-1296
Orientador: Prof. Rosselvelt José Santos
[email protected] – Fone: 3239-4169 ramal 42
Comitê de Ética da Universidade Federal de Uberlândia – CEP/UFU
Av. João Naves de Ávila, 2121 Bloco 1J Campus Santa Mônica – Uberlândia-MG
CEP: 39400-902 – Fone/Fax(34) 3239-4334 – dirpguf[email protected]
267
268
ROTEIRO PARA REALIZAÇÃO DE ENTREVISTAS
Assentamento Divisa
Nome do Entrevistado: ________________________ Idade: _____________
A família é composta por quantos membros (que residem no assentamento)? ______
Qual o grau de parentesco e o que fazem (cuidam da casa, trabalham no lote, apenas estudam,
qual o grau de escolaridade, etc.)
___________________________________________________________________________
Qual a religião da família? _______________________________
Qual a situação das famílias no lote (assentada, comprou o lote, alugou, arrenda, etc)?
__________________________________________________________________________
A – De onde as famílias vieram e os motivos do deslocamento
1 - Qual a sua cidade de origem?
2 - Em qual município morava antes de vir para o assentamento? Residia na zona rural ou na cidade?
3 O Senhor não achou que seria difícil e desconfortável deixar a moradia na cidade para vir morar
na zona rural?
4 - Que profissão (ões) exercia antes de vir para o assentamento?
5 - Por que possuir terra, o que motivou vir para o assentamento (tinha casa própria na cidade, estava
desempregado, sonhava em possuir uma propriedade rural)?
6 – Como o Senhor imaginava a vida no assentamento, antes de morar no Assentamento Divisa?
7 O que o Senhor teve de deixar para trás ao optar por ser assentado (em relação ao trabalho, à
família, aos amigos, religião, etc.)?
8 – O que mudou na vida do Senhor após vir morar no assentamento?
B - Experiências de trabalho na Agricultura e experiências de produção no lote
1 - O Senhor trabalhou alguma vez na agricultura? Quando trabalhou? Como era o trabalho na
lavoura ou na pecuária?
2 – O Senhor já foi bóia-fria, arrendatário, meeiro, vaqueiro, zelador de fazenda, etc.?
3 - O senhor sempre sonhou em ter um negócio próprio relacionado à produção agrícola?
4 O senhor acha que esse sonho está sendo realizado no assentamento? Nesse caso, as
expectativas que o Senhor possuía em relação ao trabalho no assentamento, à geração de renda, ao
lote que seria adquirido, foram contempladas?
5 Qual foi a primeira fonte de geração de renda após ter conquistado o lote? (verificar quando se
realizou a primeira utilização das terras da fazenda pelos assentados, se ocorreu antes ou após a
divisão em lotes)
6 – Quando o Senhor recebeu o lote o que pensou em produzir primeiramente?
7 – Porque o Senhor escolheu produzir tal gênero agrícola?
8 Como se realizou a primeira produção (com investimento próprio, financiamento do banco, com
mão-de-obra da própria família, com ajuda de outros membros do assentamento, etc.)?
269
9 – Onde adquiriram as primeiras mudas para plantio e as primeiras crias?
10 Que parceiros incentivaram e ajudaram na organização das primeiras produções agrícolas?
(órgãos de assistência técnica, associação do assentamento, órgãos financiadores como o Incra e
Bancos, Fazendeiros vizinhos, Indústrias de Laticínios, Prefeitura do município, etc.)
11 Quais as principais dificuldades enfrentadas durante o plantio, manutenção da lavoura e
colheita, ou dificuldades em relação às primeiras crias de animais para produção de carne, leite,
ovos?
12 - Que providências tomou para superar as dificuldades? Conseguiu superá-las?
13 Qual o destino dado às primeiras produções agrícolas? A safra foi vendida? Para quem foi
vendida? Que dificuldades encontrou na comercialização?
14 A forma de geração de renda realizada atualmente difere daquela realizada nos primeiros anos
de moradia no lote?
15 – O que o Senhor tem produzido atualmente?
16 – Porque houve alterações quanto aos gêneros produzidos no lote?
17 – As dificuldades existentes nas primeiras produções foram superadas?
18 – Que facilidades ou incentivos contribuem para que se desenvolva a atual atividade agrícola?
19 – Que dificuldades persistem na produção agrícola?
20 O Senhor pretende continuar desenvolvendo a atual produção agrícola ou sonha em exercer
outra atividade mais rentável? Que atividade o Senhor desejaria desenvolver? Porquê?
C – Relações de trabalho e organização coletiva
1 Quantas pessoas moravam no lote logo após a criação do Assentamento ou compra do lote?
Quantos ainda moram no lote? Porque mudaram?
2 – Quantos trabalham na agricultura ou demais atividades de geração de renda no lote?
3 – O Senhor considera que a mão-de-obra que se tem no lote é suficiente para o trabalho na terra?
4 – Se não é suficiente, o que o (a) Senhor (a) faz para suprir a demanda por mão-de-obra?
5 O Senhor costuma participar de mutirões, trocas de trabalho, produção de a meia, ou desenvolve
alguma produção em conjunto com outros assentados?
6 Houve épocas em que o Senhor participava mais ativamente das reuniões coletivas para
produção, mutirões, etc.? Porquê?
7 – Quais as principais conquistas da associação do assentamento?
8 Ao firmar parcerias de trabalho com outros assentados que condições são estabelecidas como
acordo?
9 Quando passou a morar no assentamento o Senhor teve de trabalhar fora do lote para obter
renda? Porquê? Que trabalho realizava?
10 Atualmente desenvolve alguma atividade de geração de renda além do trabalho no lote? Que
atividade exerce? Com que freqüência a exerce (mensal, semestral, anual)? Porquê exerce?
270
D – Relação de dependência da cidade
1 – O Senhor costuma ir à cidade mais próxima com freqüência? Quais cidades?
2 – Por quais motivos o Senhor depende da cidade? Com que freqüência o Senhor vai à cidade?
3 Que estratégias o Senhor utiliza para ir à cidade (veículo próprio, ônibus de linha, carona com
vizinhos, etc.)?
E – Projetos familiares
1 – O senhor pretende continuar morando no assentamento com a família? Porquê?
2 – Qual o projeto que se tem para os filhos em relação à vida profissional?
3 O Senhor deseja que os filhos permaneçam trabalhando na terra com o Senhor e aprendam uma
profissão ligada à produção agrícola?
4 – Qual a opção dos filhos em relação à vida profissional ou moradia no assentamento?
F – Construção de infra-estruturas
1 Com que recurso e mão-de-obra o Senhor construiu a casa no lote, os currais, as cercas, o poço
d’água, etc.?
2 A construção destas infra-estruturas ocorreu imediatamente após a divisão da fazenda em lotes?
Quanto tempo demorou? Porquê houve esta demora?
G – Demais formas de relacionamento comunitário dentro e fora do assentamento
1 O Senhor e sua família participam de outras formas de relacionamento além das reuniões da
associação? Quais são?
2 Onde a família do Senhor costuma participar de cultos, missas no assentamento ou em fazendas
ou assentamentos vizinhos?
3 – O Senhor costuma ir à cidade para participar de cultos ou missas?
3 Com que freqüência ocorre missas, cultos, festas religiosas, confraternizações entre os
assentados, cursos para produtores rurais, reuniões com órgãos externos ao assentamento?
4 – A família do Senhor costuma participar de festas na cidade? Com que freqüência?
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