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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ATIVIDADE COMUNITÁRIA E CONSCIENTIZAÇÃO: UMA INVESTIGAÇÃO A
PARTIR DOS MODOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL
EMANUEL MEIRELES VIEIRA
ORIENTADORA: VERÔNICA MORAIS XIMENES
Fortaleza, 2008
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EMANUEL MEIRELES VIEIRA
ATIVIDADE COMUNITÁRIA E CONSCIENTIZAÇÃO: UMA INVESTIGAÇÃO A
PARTIR DOS MODOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Dissertação submetida ao Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Ceará, como requisito para a
obtenção do título de mestre em Psicologia.
Orientadora: Profa. Dra. Verônica Morais Ximenes
FORTALEZA -CE
FEVEREIRO DE 2008
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Ficha Catalográfica elaborado por
Ericson Bezerra Viana – Bibliotecário – CRB -3/818
ericson@ufc.br
Biblioteca de Ciências Humanas
V715a Vieira, Emanuel Meireles .
Atividade comunitária e conscientização: uma investigação a partir dos
modos de participação social / Emanuel Meireles Vieira. – 2008.
125 f. : il.; 31 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de
Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza(CE),
12/02/2008.
Orientação: Profª. Drª. Verônica Morais Ximenes
Inclui bibliografia.
1-PSICOLOGIA COMUNITÁRIA. 2-CONSCIENTIZAÇÃO .3-PARTICIPAÇÃO SOCIAL.I- Ximenes,
Verônica Morais,orientador.II-Universidade Federal do Ceará.
III- Título.
CDD (22ª ed.) 362.20425098131
Emanuel Meireles Vieira
ATIVIDADE COMUNITÁRIA E CONSCIENTIZAÇÃO: UMA INVESTIGAÇÃO A
PARTIR DOS MODOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Banca examinadora
Profa Dra Verônica Morais Ximenes.....................................................................Orientadora
Profa Dra Ana Luiza Teixeira de Menezes
Profa Dra Elza Maria Franco Braga
Prof Dr Cezar Wagner de Lima Góis
iv
AGRADECIMENTOS
A meus pais, Oneide e Luciano, sem os quais não teria conseguido forças para
chegar até aqui, pois, de seu modo, apoiaram-me, quase que incondicionalmente, em
minhas escolhas ao longo da vida;
À querida professora Verônica Ximenes, que topou o desafio de me auxiliar nessa
árdua tarefa;
Ao professor Cezar Wagner, autor de profícua produção e pessoa de ótimas trocas
na vida;
Às professoras Elza Braga e Ana Luíza Menezes, por terem a solicitude de nos
honrar com suas presenças na banca;
Ao meu querido irmão Rodrigo, com quem tive o prazer de vir ao mundo e o maior
prazer ainda de permanecer compartilhando a vida;
A meu eterno orientador e mais novo amigo (José) Célio (Freire), alteridade que,
mesmo sem discutir um parágrafo desta produção, auxilia-me, cada vez mais, em minha
construção como pessoa;
Ao meu amigo Pablo, amigo e companheiro de Psicologia e da vida;
À FUNCAP, pelo apoio material ao bom desenvolvimento do trabalho;
Ao amigo João Paulo, pela profunda interlocução e paciente revisão desse trabalho;
Ao Jandson, pelos encontros ébrios e significativos após as visitas ao PRECE;
A Eugênia, companheira de cervejas, caranguejos e crises ao longo desse tortuoso
caminho;
Às pessoas que compuseram a primeira turma do curso de extensão em ACP da
UFC, que me propiciaram encontros significativos ao longo de 2007: Rochelle, Golbery,
Tatiana, Ana Paula, Mayrá, Cadu, Rosa, Silvia, Kristia, Fábio, Fábio Porto (facilitador),
Érica, Isabela, James, Úrsula e Nara;
Ao NUCOM, casa que sempre me abre as portas e que medeia minha relação cada
vez mais compromissada com as gentes, em especial, a Gabi, Gabizona, João Paulo e
Úrsula;
À família Andrade, que muito bem me acolheu em Pentecoste e abriu suas portas
para que pudesse realizar meu trabalho: Manoel, Aninha, Arneide, Carol, Adriano Andrade,
Dona Fransquinha e Seu Arão;
v
A Adriano Batista, Benjamin, Ione e José Alfredo, que muito bem me receberam e
comigo colaboraram nesta caminhada;
Aos meus amigos: Taís Bleicher, Marselle (meu mais novo presente), Victor,
Juliano, Barbosa, Wilton, Taís Dutra, Mariana, Verônica Gomes, Tony e Herbert Joab por
simplesmente me darem o prazer de compartilharmos a vida;
A minha terapeuta, Gabrielle Freire, pela paciência com que me acolhe;
Ao meu tio Otavinho, segundo pai, que me compreende como ninguém;
A Silvia, companheira de muito tempo dessa caminhada, que, com seu amor,
paciência, dedicação, entrega, “bobagens” e encantamento pela vida, muito me ensinou,
muitas vezes em silêncio.
vi
SUMÁRIO
Lista de anexos
_______________________________________________________ viii
Resumo
______________________________________________________________ ix
Abstract
______________________________________________________________ x
1.INTRODUÇÃO
______________________________________________________ 1
2. Participação: conceitualizações, condicionantes e implicações _________________ 7
2.1 – Conceituações em torno do participar _______________________________________ 7
2.2 – Condicionantes e formas de participação ____________________________________ 9
2.3 – Implicações do participar _______________________________________________ 11
2.4 – Participar pra quê?
_____________________________________________________ 16
3 – Por uma compreensão psíquica da interação social
________________________ 20
3.1 – Comunidade e sujeito da comunidade ______________________________________ 20
3.2 – Atividade comunitária __________________________________________________ 24
3.3 – A consciência ________________________________________________________ 29
3.3.1 – Consciência na teoria histórico-cultural da mente
___________________________ 30
3.3.2 – Paulo Freire e a conscientização
________________________________________ 37
3.3.3 – Martin-Baró: por uma concepção politica na psicologia
______________________ 42
3.4
Consciência, atividade comunitária e conscientização: uma articulação a partir da
Psicologia Comunitária _____________________________________________________ 44
4 – Construção do percurso metodológico __________________________________ 49
4.1 – Materialismo histórico-dialético __________________________________________ 49
4.2 – Abordagem qualitativa _________________________________________________ 50
4.3 O contexto: o município de Pentecoste e o Projeto de Educação em Células Cooperativas
(PRECE) _________________________________________________________________ 52
4.4 – A coleta de dados
_____________________________________________________ 55
4.5 – Leitura do mundo do sujeito
_____________________________________________ 59
5 O processo de conscientização de Nascimento a partir de sua atividade e suas
significações _______________________________________________________ __64
5.1 Conhecendo o cotidiano do PRECE para identificar espaços em que se realizem atividades
comunitárias. _____________________________________________________________ 65
5.2 – Quem é Nascimento?
__________________________________________________ 71
vii
5.3. Analisando a participação social de Nascimento no desenvolvimento de atividades
comunitárias ______________________________________________________________ 73
5.4 Realacionando o modo de participação em atividades comunutárias com o processo de
conscientização de Nascimento _______________________________________________ 76
Considerações finais __________________________________________________ 105
BIBLIOGRAFIA
____________________________________________________ 109
Anexos
____________________________________________________________ 113
Apêndice
___________________________________________________________ 124
viii
Lista de anexos
Anexo A – Diários de Campo.............................................................................................114
Anexo B – Roteiro Para Entrevista Individual....................................................................123
Anexo C – CD Rom com entrevista e quadros temáticos
Lista de apêndices
Aceite do Comitê de Ética em pesquisa da
UFC..................................................................125
ix
RESUMO
Este trabalho parte da constatação Góis de que, dentre os diversos fatores que atuam no
processo de conscientização, encontra-se o modo de participar de atividades comunitárias.
Pergunta-se, a partir dessa afirmação, de que modo a forma de participar interfere nesse
processo, definido aqui a partir de Paulo Freire. Tem como objetivo, portanto, discutir de
que maneira o modo de participar de atividades comunitárias influencia no processo de
conscientização. Para tanto, inicialmente, estabelece uma discussão a respeito das
diferentes formas de participar e os fatores que atuam no fenômeno da participação. Em
seguida, a partir da Psicologia Comunitária, da Educação Libertadora e da Teoria Histórico-
Cultural da Mente, discorre acerca das implicações psíquicas das interações humanas,
discutindo os conceitos de: comunidade, atividade comunitária, consciência e
conscientização. Utilizou-se uma abordagem qualitativa, com enfoque etnográfico,
entrevistando-se uma pessoa que faz parte do Projeto de Educação em Células Cooperativas
(PRECE), por meio de entrevista semi-estruturada, com foco na história de vida do
entrevistado. Realizaram-se registros da entrevista e diário de campo, de um total de sete
visitas. A partir de então, foi possível analisar o modo de participar do sujeito da pesquisa e
realizar uma análise temática de sua entrevista. Como resultado, pôde-se verificar que um
modo de participação mais ativo e cooperativo propicia condições para que o sujeito
fortaleça suas interações com a realidade pela apropriação e significação dessa maneira de
se relacionar, por parte do indivíduo.
Palavras-chave: Participação. Consciência. Atividade Comunitária. Conscientização.
Modos de Participar.
x
ABSTRACT
This work is based on Góis’s verification that, among the many factors that act on the
awereness process, the way to participate of communitarian activity is one of them. It is
asked from the statement of that the way to participate influences this process, defined here
for Paulo Freire’s theory. It has as objective, therefore, discuss how the way to participate
of communitarian activity influences on the the awereness process. For in such a way,
initially, it establishes a quarrel regarding the different forms to participate and the factors
that act in the phenomenon of the participation. After that, from Communitarian
Psychology, of the Liberating Education and the Historical-Cultural Theory of the Mind, it
discourses concerning the psychic implications of the interactions human beings, arguing
the concepts of: community, communitarian activity, conscience and awareness. A
qualitative boarding was used, with ethnographic approach, interviewing a person who is
part of Projeto de Educação em Células Cooperativas (PRECE), through the half-
structuralized interview, with focus in the history of life of the interviewed one. Registers
of the daily interview and of field, a total of seven visits had been become fullfilled. From
now on, it was possible to analyze the way to participate of the citizen of the research and
to carry through a thematic analysis of its interview. As result, we could verify that way of
a more active and cooperative participation propitiates conditions so that the citizen in this
way fortifies its interactions with the reality through the appropriation and significação of if
relating, on the part of the individual.
Key-words: participation, conscience, communitarian activity, awereness, ways to
particpate.
1
1. Introdução
O interesse em realizar esta pesquisa surgiu de nossa a trajetória ao longo de nossa
formação, no que diz respeito à Psicologia Comunitária, uma vez que pudemos participar
de atividades que envolviam esta área da Psicologia Social, muitas das quais vinculadas à
Universidade e, especificamente, ao Núcleo de Psicologia Comunitária da UFC (NUCOM),
Núcleo do qual fizemos parte durante três anos de nossa graduação. Além disso, como
substrato teórico para sua realização, este estudo se debruçou sobre questionamentos
surgidos de uma investigação realizada por Góis (2005) acerca da relação entre os tipos de
consciência, a partir de Paulo Freire (1984a) (semi-intransitiva, transitiva ingênua e
transitiva crítica), e a participação em atividades comunitárias
1
.
Nos trabalhos em Psicologia Comunitária que tivemos oportunidade de desenvolver,
a participação dos moradores em atividades comunitárias apresentava-se como um tema
merecedor de investigação mais acurada. Desse modo, tratam-se de inquietações situadas
no debate entre a prática da Psicologia Comunitária e um estudo empírico empreendido por
um de seus precursores.
O próprio surgimento da Psicologia Social no Brasil (LANE, 2002) remete-nos a
uma presença de diversos profissionais, no fim dos anos 1970, tentando trabalhar em prol
de uma realidade mais justa e abordando a participação como algo merecedor de destaque.
A base comum a esses trabalhos, segundo Lane (2002), eram os estudos empreendidos por
Paulo Freire na educação popular, sem muitas especificidades pertencentes a cada um dos
ramos de saber que tentavam atuar em comunidades.
Góis é um dos pioneiros no Brasil no trabalho da Psicologia em comunidades de
baixa renda. Ao longo do desenvolvimento de seu trabalho (GÓIS, 1994; 2003; 2005), este
autor construiu todo um manancial teórico que sustentação não apenas a uma Psicologia
“na” comunidade, senão que delimita uma área específica da Psicologia, ou seja, passa a ser
Psicologia Comunitária.
Isto especifica uma compreensão de psicologia. Não se trata de fazer qualquer
psicologia na comunidade, mas, sim, um tipo de trabalho que privilegie a transformação
1
Este termo é aqui utilizado de acordo com a definição de Góis (2005), segundo a qual “(...) a atividade
comunitária é a atividade prática e coletiva realizada por meio da cooperação e do diálogo em uma
comunidade, sendo orientada por ela mesma e pelo significado (sentido coletivo) e sentido (significado
pessoal) que a própria atividade e a vida comunitária têm para os moradores da comunidade” (p.89).
2
social e que reconheça que o psiquismo não é um epifenômeno da realidade (GÓIS, 2003).
É nesse sentido que Góis (1994, p. 43) define Psicologia Comunitária como
uma área da Psicologia Social que estuda a atividade do psiquismo
decorrente do modo de vida do lugar/comunidade; estuda o sistema de
relações e representações, identidade, consciência, identificação e
pertinência dos indivíduos ao lugar/comunidade e aos grupos
comunitários.
Ao mesmo tempo em que a definição acima demarca um campo de especificidade
na Psicologia, lança-nos o desafio de uma sistematização constante dessa área ainda
recente, se comparada a outras mais “tradicionais” na Psicologia. Evidentemente, esta
tradição não está isenta de interesses ideológicos que estão implicados na elaboração dos
currículos universitários, conforme nos diz Martin-Baró.
Contudo, cada vez mais, fez-se e faz-se necessário que possamos compreender que
processos psíquicos se desenvolvem ao longo de nossa atuação. Afinal, para além de uma
convicção de valores, que reconhecemos como válida, qual a importância de se fomentar a
participação numa dada direção? O que isso significa em termos de processos psíquicos?
De fato, muito se fala sobre o tema e se prega o seu uso, seja em empresas,
escolas, gestões públicas ou em comunidades. Mas de que participação falamos? Que
participação a Psicologia Comunitária, por exemplo área da Psicologia em que se situa
este estudo –, está interessada em promover? Sabemos, por exemplo, que a participação que
tem o diálogo como princípio (GÓIS, 2003) é facilitadora do crescimento pessoal e social.
Mas que impacto este tipo de ação tem na consciência do sujeito e, portanto, no seu modo
de agir sobre a realidade?
Movido por questões semelhantes, Góis (2005) realizou um estudo partindo de
questionamentos acerca da relação entre a participação em atividades comunitárias e a
consciência pessoal. Segundo o autor, seu objetivo era “verificar se a atividade comunitária
é importante no aprofundamento da consciência pessoal (mudança de uma consciência
semi-intransitiva a uma consciência transitiva) e compreender que aspectos da atividade
comunitária estão mais relacionados com tal fato, em moradores de uma comunidade rural
do Estado do Ceará” (GÓIS, 2005, p.125).
A passagem da consciência transitiva mágica para a transitiva crítica é nomeada por
Freire de conscientização. É este aspecto que Góis (2005) investiga em seus estudos,
3
relacionando-o com a participação em atividades comunitárias. Os resultados apresentados
por Góis (2005) indicam que não relação entre o tipo de consciência e aspectos, tais
como: idade, gênero, tempo de participação e freqüência de participação. no que diz
respeito à relação da consciência com variáveis, como escolaridade, estado civil, ocupação
laboral, ato de participar ou não, tipo de atividade comunitária, papel que exerce e modos
de participação, verifica-se uma forte dependência.
Interessa-nos, para este estudo, a relação entre o tipo de consciência e a variável
chamada por Góis (2005) de modo de participar da atividade comunitária. De acordo com
este autor, “quanto mais ativa é a participação nas atividades comunitárias, mais se
evidencia a consciência transitiva (ingênua e crítica). Por outro lado, quando a participação
é menos ativa, onde pouco diálogo, predomina a consciência mágica” (GÓIS, 2005,
p.170). Para o autor, a participação ativa concerne a expressões mais debatedoras e
propositivas por parte dos membros do grupo, enquanto o modo de participação passivo
implica em pessoas mais caladas e com pouca atitude indagadora nos espaços das
atividades comunitárias. Nesse contexto, Góis (2005, p. 87) indica a função “mediatizadora,
orientadora e transformadora” da atividade comunitária, dentro de situações de interações
sociais.
No entanto, apesar de apontar a correlação existente entre o modo de participação
em atividades comunitárias e o tipo de consciência dos indivíduos, Góis (2005) não
explicita como se processa a conscientização (FREIRE, 1980) a partir dos modos de
participação.
Tal investigação, articulada com nossa atuação em Psicologia Comunitária,
suscitou-nos o seguinte questionamento: de que maneira a participação dos moradores em
atividades comunitárias atua nos seus processos de conscientização? O objetivo geral deste
trabalho, portanto, é compreender como o modo de participação em atividades
comunitárias, tendo em vista sua função mediatizadora, atua no processo de
conscientização de um sujeito aqui investigado.
Entramos em contato, então, com o Programa de Educação em Células Cooperativas
(PRECE), projeto com sede em Pentecoste, uma vez que, por sua metodologia diferenciada
4
de estudos, o estudo em células cooperativas
2
, imaginávamos que lá poderíamos encontrar
uma participação mais efetiva de seus integrantes. Durante três meses, conforme
detalhamos no capítulo metodológico, realizamos visitas a diversas atividades do PRECE,
em Fortaleza e em Pentecoste, com ênfase no segundo local, pois foi lá que observamos o
desenvolvimento de uma atividade comunitária.
Como um dos objetivos específicos, podemos apontar o de conhecer o cotidiano do
PRECE, instituição em que realizamos esta pesquisa, para identificar atividades
comunitárias desenvolvidas por seus membros. Soma-se a este o de analisar a participação
social de um membro do PRECE no desenvolvimento de atividades comunitárias, de modo
que pudéssemos averiguar se esta participação ocorria de modo mais ativo ou menos ativo,
bem como os diversos aspectos que a compõem. Nosso último objetivo específico era
relacionar o modo de participação do sujeito investigado em atividades comunitárias com
seu processo de conscientização.
Para nos basearmos teoricamente para o cumprimento desses objetivos,
fundamentamo-nos na Psicologia Comunitária (GÓIS, 2003; 2005), enfocando as
influências que esta recebe da Educação Libertadora (FREIRE, 1981) e da Teoria
Histórico-Cultural da Mente (VIGOTSKI, 2001; 2004; LURIA, 1987; 2005; LEONTIEV,
1978; 1982).
Iniciamos o trabalho com uma discussão a respeito de participação. Tal discussão
intenta definir este conceito, bem como refletir acerca dos fatores sociais e individuais que
estão implicados no ato de participar. Além disso, reflete sobre as conseqüências de
determinados tipos de participação, tentando compreender este conceito a partir da noção
psicológica advinda da Teoria Histórico-Cultural da Mente e da Psicologia Comunitária.
Em seguida, elaboramos uma discussão a respeito de conceitos da Psicologia
Comunitária que mais nos interessam para a concepção da consciência aqui adotada:
comunidade, atividade comunitária, consciência e conscientização. As definições desses
conceitos acontecem a partir de uma articulação entre a Teoria Histórico-Cultural da
Mente, a Educação Libertadora e a Psicologia Comunitária. A importância da discussão
desses conceitos reside no fato de que, a partir deles, foi-nos possível compreender a
2
Esta metodologia é melhor trabalhada no capítulo “3” desta pesquisa, quando abordamos o PRECE.
5
importância do tema da participação para a Psicologia, uma vez que enfatizam a interação
homem-mundo como fundamental para o desenvolvimento do psiquismo.
No capítulo seguinte, discorremos sobre o percurso metodológico percorrido para
que pudéssemos executar este estudo.Assim, expomos nossa perspectiva epistemológica de
coleta e análise de dados, o tipo e abordagem que adotamos, ou seja, qualitativa, além de
contextualizar o lócus de elaboração da pesquisa, os métodos de coleta e análise dos dados.
A importância deste capítulo reside no fato de pensarmos ser relevante que se possa
compreender de que modo construímos os instrumentos de coleta, bem como o modo de
analisar os dados por nós colhidos.
Finalizando esta pesquisa, apresentamos o catulo de análise de dados, em que as
teorias que nos fundamentam dialogam com os dados que colhemos ao longo do trabalho.
De início, descrevemos nossa inserção no campo de pesquisa, utilizando-nos dos registros
feitos em diário de campo, ao longo de três meses de trabalho, em que realizamos sete
visitas ao local em que a pesquisa se desenvolveu.
Em seguida, analisamos a participação do sujeito, observada decorrer da pesquisa,
enfocando seu modo de participar de uma atividade comunitária por nós escolhida para ser
pesquisada. Por fim, a partir da análise temática de uma entrevista de história de vida,
fizemos um estudo temático para verificar de que modo a forma de participar de uma
atividade comunitária se articulava com o processo de conscientização de nosso
entrevistado.
Compreender essa questão é nos situar a respeito, por exemplo, da libertação dos
povos latino-americanos de que nos fala Martin-Baró (1998). Podemos decidir por um tipo
bancário ou libertador de participação inspirados nos dizeres de Paulo Freire (1979).
Preferir a segunda opção implica em repensar concepções metodológicas e a própria
produção do conhecimento – desde a forma como este é elaborado e concebido à sua
função, reconhecendo nesta uma ideologia.
Cremos, portanto, que este trabalho poderá colaborar não apenas para a Psicologia
Comunitária e suas metodologias de intervenção, como também para as ações que tenham
este tema como suporte em sua execução. Afirmamos isso, baseados em/e concordando
com Bordenave (2002, p. 58), quando este afirma que “a participação comunitária consiste
num microcosmos político social suficientemente complexo e dinâmico de forma a
6
representar a própria sociedade ou nação. Quer dizer que a participação das pessoas em
nível de sua comunidade é a melhor preparação para a sua participação como cidadãos em
nível da sociedade global”.
7
2. PARTICIPAÇÃO: CONCEITUAÇÕES, CONDICIONANTES E
IMPLICAÇÕES
Neste capítulo, abordamos o tema da participação mediante algumas conceituações,
bem como os modos como pode ser classificada e os diversos fatores que a compõem. A
partir disso, definimos o conceito de participação, a ser aqui utilizado, apontando a
importância da participação e a serviço de quem propomos a discussão deste conceito.
Finalmente, assinalamos a necessidade de uma intervenção no sentido da conscientização.
2.1. Conceituações em torno do participar
Falar de participação é transitar em um terreno sobre qual muito se fala, mas pouco
se compreende em seus aspectos mais profundos. Conforme Souza (1996, p. 81),
Hoje em dia, a participação é linguagem comum nas diversas camadas da
população em que pesem existirem interesses e preocupações
contraditórias e antagônicas entre aqueles que fazem as classes
fundamentais da sociedade. Nesse sentido, assumir a perspectiva da
participação exige, antes de qualquer outra atitude que se examine:
participação por quê? Em função de quem? O que é mesmo participação?
Diversos são os pontos de vista de compreensão sobre o tema, como também as
utilidades que este pode ter, o que faz com que se manifeste tanto em discursos mais
progressistas, quanto em setores mais reativos de nossa sociedade. Segundo Bordenave
(2002, p. 14), “a enumeração das contribuições da participação poderia levar a um conceito
puramente instrumental, com o perigo de que se veja nela algo para ser dirigido,
manipulado ou explorado quanto a seus resultados utilitários”. Demo (1988, p. 86)
compartilha desta preocupação quando afirma que a artimanha mais esperta do poder é
pintar-se como fonte da participação, seu baluarte, sua garantia, seu avalista (...). Poder
inteligente não se apresenta como poderoso. Vende-se como amigo dos desiguais e como
caminho único de composição da desigualdade”.
8
Dagnino (2004, p. 95) afirma que a presença da temática da participação nos mais
diversificados discursos evidencia “(...) uma confluência perversa
3
entre um projeto político
democratizante, participativo, e o projeto neoliberal, que marcaria hoje, desde o nosso
ponto de vista, o cenário da luta pelo aprofundamento da democracia na sociedade
brasileira”
Segundo esses autores, a participação não pode ser tomada apenas em sua dimensão
instrumental, senão que se trata de uma necessidade eminentemente humana, em sua
dimensão utópica. Esta perspectiva inaugura a possibilidade de transformação da realidade,
pois, dessa forma, ela se apresenta como um problema e não como um dado. Segundo
Demo (1988, p. 81), “porque somos utópicos, não nos curvaremos às misérias do presente e
sonhamos sempre com algo melhor. Em nome das utopias, tudo contestamos, mesmo que
tenhamos a certeza de que não conseguiremos implantá-la de todo” (p. 81).
De fato, se recorrermos à Teoria da Educação Libertadora (FREIRE, 1980) e à
Teoria Histórico-Cultural da Mente (LEONTIEV, 1978; VYGOTSKY, 2001; LURIA,
1990), que têm na obra marxiana uma importante fonte de inspiração, verificaremos uma
compreensão de que o que define a humanização do homem é a sua possibilidade de
transformação da realidade. Diferentemente dos animais, que estão em contato com o
mundo, o homem está em relação com este (FREIRE, 1992), o que significa que ele pode
sobrepujar as condições impostas pela natureza
4
.
De acordo com Lima (1983, p. 23), tematizar a participação é colocar em pauta,
também, o fenômeno da marginalização de setores mais desprovidos de nossa sociedade.
Segundo a autora,
ao lado de um franco processo de modernização e de crescimento
econômico, grande massa da população encontra-se marginalizada deste
processo, persistindo nessas sociedades características próprias do
subdesenvolvimento como desigualdade econômica, dependência
externa, etc.
Dessa forma, falar sobre participação é trazer à tona algo a que Freire (1981),
quase quarenta anos,
já chamava atenção: o direito primordial de os povos oprimidos
3
A autora define “perversa” da seguinte forma: “um fenômeno cujas conseqüências contrariam sua aparência,
cujos efeitos não são dados imediatamente evidentes e se revelam distintos do que se poderia esperar”
(DAGNINO, 2004, p. 96).
4
Uma apreciação mais detalhada acerca do assunto será possível mais adiante, quando mostramos a
Psicologia Comunitária, que tem na Teoria Histórico-Cultural da Mente e na Educação Libertadora dois
pilares de suas influências teórico-metodológicas.
9
dizerem a sua palavra. Abordar tal questão significa, portanto, pensar em possibilidades de
se efetivar a pronúncia da transformação do mundo por parte destes que se acham muitas
vezes negados em relação ao exercício de direitos fundamentais.
No campo da Psicologia, Góis (2003, p. 118) adverte-nos acerca da importância de
se diferenciar participação de mobilização, reconhecendo a importância de ambos os
conceitos. Segundo o autor,
a primeira é uma condição intrínseca à atividade social significativa dos
indivíduos, própria da consciência individual e em favor do indivíduo e
de sua coletividade – potencialização do indivíduo; enquanto a segunda é
a condição criada coletivamente para que se garanta politicamente a
participação social e o empoderamento da população potencialização
social.
Interessa-nos, como psicólogos, a participação, uma vez que, como bem coloca Góis
(2003), esta é da esfera da consciência individual, ou seja, é o sujeito quem participa e, ao
participar, modifica seu entorno, bem como a si mesmo. Evidentemente, essa participação
individual tem como pano de fundo toda uma estruturação social que pode ou não a
favorecer.
2.2. Condicionantes e formas de participação
Na sociedade, segundo Bordenave (2002), é possível encontrarmos duas esferas de
participação: a microparticipação e a macroparticipação. A primeira é “a associação
voluntária de duas ou mais pessoas em uma atividade comum na qual elas não pretendem
unicamente tirar benefícios pessoais e imediatos” (BORDENAVE, 2002, p. 24). Já a
macroparticipação, também chamada pelo autor de participação social, “implica uma visão
mais larga e ter algo a dizer na sociedade como um todo” (BORDENAVE, 2002, p. 24).
Segundo Amman (1978), “participação social é o processo mediante o qual as diversas
camadas da sociedade tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma
sociedade historicamente determinada” (p. 61).
Esta definição, compartilhada por Bordenave e Amman, é a adotada aqui, tendo em
vista o tipo específico de participação que aqui discutimos, qual seja, o de participação em
atividades comunitárias.
10
No que diz respeito às formas de participar, é possível encontrarmos a seguinte
variedade
(BORDENAVE, 2002): participação de fato: refere-se ao tipo de participação
existente na família nuclear e em outros grupos primitivos do quais não temos a
possibilidade de escolher participar; participação espontânea: é o tipo de organização
coletiva não-estável e sem propósitos claros e definidos, “a não ser os de satisfazer
necessidades psicológicas de pertencer, expressar-se, receber e dar afeto; obter
reconhecimento e prestígio” (BORDENAVE, 2002, p.27); participação imposta: o
indivíduo que faz parte de determinado grupo é obrigado a realizar atividades pertinentes a
estes, tais como: ir à missa para os católicos; participação voluntária: o coletivo é gerado
pelos participantes e estes estabelecem regras, objetivos e métodos de trabalho. Como
exemplo, podemos citar partidos políticos e sindicatos; participação provocada: é realizada
por agentes externos que ajudam outros a realizar objetivos definidos. Como exemplo,
temos o Serviço Social, ou a Psicologia Comunitária; participação concedida: poder
exercido por subordinados, considerado legítimo por eles e seus superiores. Temos como
exemplo a participação nos lucros, adotada por algumas empresas.
Optar por alguma destas maneiras de participar é, sem dúvida, realizar uma escolha
acerca de que sociedade valorizamos. Se temos em mente - o que é o nosso caso como
psicólogos comunitários - que a sociedade opressora e desigual em que vivemos precisa ser
transformada e que a autonomia do coletivo precisa ser fortalecida, decidir por uma
participação imposta, por exemplo, seria, no mínimo, contraditório. Como agentes externos
à comunidade, devemos conjugar participação provocada e participação voluntária, no
sentido de fortalecer atividades comunitárias desenvolvidas nas comunidades em que
atuamos.
Segundo Bordenave (2002), no que tange aos níveis de participação, podemos ir da
informação menor grau de participação à auto-gestão o maior grau de controle por
parte dos membros de um grupo. Os graus de participação, de acordo com o nível de
controle das decisões, em ordem crescente, são: informação, no qual os dirigentes deixam o
grupo a par do que acontece; consulta facultativa, em que o gestor pode, se quiser e quando
quiser, consultar os subordinados; elaboração/recomendação, em que os subordinados
preparam propostas e recomendações que podem ou não ser aceitas pela administração, que
é obrigada a justificar sua posição; co-gestão, onde a gestão é compartilhada, por meio da
11
co-decisão e colegialidade; delegação, em que os subordinados têm autonomia em alguns
aspectos para ter poder de decisão; auto-gestão, onde o grupo determina seus objetivos,
escolhe seus meios, determina seus objetivos, e estabelece os controles pertinentes sem
referência a uma autoridade externa” (BORDENAVE, 2002, p. 32-33).
no que diz respeito à importância das decisões tomadas, Bordenave (2002) divide
em seis níveis. O primeiro nível é o da formulação da doutrina e da política da instituição.
O segundo diz respeito à determinação de objetivos e ao estabelecimento de estratégias.
o terceiro aborda a elaboração de planos, programas e projetos. No quatro, as decisões
atingem a alocação de recursos e a administração de operações. no nível cinco, um
impacto sobre a execução das ações e, por último, no seis, as decisões atingem a avaliação
dos resultados.
Como se pode perceber, a participação envolve, de maneira direta, a questão do
poder, pois se refere à forma e à importância do que se toma parte. Por isso, os autores que
lidam com esta questão (BORDENAVE, 2002; LIMA, 1983, SOUZA, 1996; DEMO,
1988) afirmam que a participação necessariamente envolve a questão do conflito, uma vez
que, na perspectiva da auto-gestão, apresentada alhures, o que se objetiva é a conquista de
uma maior participação na importância das decisões.
2.3. Implicações do participar
Segundo Demo (1988, p. 92), a autogestão “não de significar autonomia total,
potencialidade ilimitada, isenção das artimanhas da dominação, mas crescente conquista de
participação na solução dos problemas”.
Em todos os grupamentos humanos, podemos encontrar espaços maiores ou
menores para a efetivação da participação. Tais espaços se apresentam nas mais diversas
esferas da vida social – de equipamentos e instituições públicas a organizações privadas e
refletem o modo hierárquico pelo qual nossa sociedade se organiza. Conforme Demo
(1988, p. 92), por exemplo, pensar sobre a participação implica em fazê-lo com relação à
dominação. De acordo com este autor, “não sociedade (...) que não tenha se
movimentado em torno de questões do poder, além das questões econômicas. Em torno do
12
poder se organiza, se institucionaliza, bem como por causa dos conflitos de poder se
desinstitucionaliza e se supera”.
Nesse mesmo sentido, Lima (1983, p. 34) afirma que
Em nosso contexto histórico, o desenvolvimento das estruturas
dominantes tem gerado ao mesmo tempo a marginalidade de grandes
setores. Pensar em integrar essa população sem modificar as estruturas
básicas da sociedade é conceber a marginalidade como um problema
transitório que seria eliminado a partir do desenvolvimento da sociedade
dentro dos mesmos padrões. Deste ponto de vista, a concepção de grupos
marginalizados (...) não pode ser trabalhada sem levar em conta as
estruturas sociais, políticas e econômicas que condicionam a própria
existência da marginalidade.
Pensar a participação, portanto, em nossa sociedade, requer o questionamento
acerca do modo como esta se organiza no que concerne à sua própria estrutura, que, por
muitas vezes, é hierárquica e com pouco espaço para uma participação popular de maior
importância. Participações mais efetivas podem ser encontradas com maior facilidade em
grupos menores, como associações de moradores ou organizações não-governamentais
(ONGs), a título de exemplificação (DEMO, 1998; BORDENAVE, 2002).
Numa tradição mais próxima da Psicologia Clínica, apesar de não se restringir a ela,
Carl Rogers, autor de influência significativa na construção da Psicologia Comunitária,
identificou que um dos aspectos fundamentais para o desenvolvimento pessoal era o da
participação. Esta deve ocorrer tanto no âmbito da psicoterapia, na qual o cliente escolhe o
que quer falar, como quer falar e que rumos tomar por meio de suas questões, quanto no
âmbito social mais amplo, pois, segundo a concepção de Rogers (2001, p. 290), a não-
participação de diversos setores da sociedade produz violência e outras mazelas sociais,
como podemos constatar na seguinte passagem:
Violência cega contra as pessoas não pode ocorrer e não ocorre em uma
cultura em que cada indivíduo sente-se como parte de um processo em
andamento e com finalidade. O indivíduo precisa estar completamente
alienado da corrente principal da sociedade para que a violência
impessoal se torne possível. Na China, uma cultura muito diferente da
nossa, a violência impessoal ao acaso que é comum em nossas cidades é,
pelo que se sabe, virtualmente desconhecida. Isto não se deve ao fato de
os chineses serem incapazes de violência(...). Na vida diária, os chineses
estão organizados em grupos locais com uma boa dose diária de
13
autogoverno. Além disso, eles se sentem, de modo supreendente,
interessados na reconstrução de seu país. Esse senso de um objetivo
unificador parece, hoje em dia, completamente ausente em nosso país. Os
objetivos proclamados são, na maioria, para manter o status quo ou para
tornar-se maior e melhor tecnologicamente(...).
A depender da organização dos grupos, encontramos estruturas que facilitam e
outras que dificultam a participação de seus membros, bem como posturas que propiciam
maiores ou menores oportunidades de participação por parte da coletividade liderança
democrática e liderança autocrática, respectivamente (MONTERO, 2006). De acordo com
Bordenave (2002, p. 44-45), “na medida em que a estrutura de uma organização seja
flexível e descentralizada, a participação desenvolve-se mais naturalmente” (p. 44-45). Da
mesma forma, o autor analisa que quanto maior a flexibilidade da organização em relação à
flexibilidade da programação, maior a possibilidade de uma participação mais efetiva se
desenrolar.
Na dinâmica da participação referente a grupos ou a associações, estão em jogo,
conforme Bordenave (2002), a força das instituições sociais, organizações sociais
informais, as diferenças individuais de cada membro, a atmosfera geral do grupo, a
circulação de informação no grupo, a realimentação do próprio grupo, o diálogo, o padrão
de comunicação, os membros que mais contribuem para a discussão, além do tamanho do
grupo. no que concerne a uma esfera mais global, Bordenave (2002) aponta a
desigualdade entre cidadãos existente na esfera privada, a (falsa) divisão entre o setor
oficial (que decide) e o civil (que se beneficia ou não das decisões), a democracia
representativa (em contraposição à participativa), que cria o político profissional, e o
crescente aumento de experiência associativista – como ONGs, por exemplo – como fatores
que compõem o processo de participação popular.
Por conseguinte, fortalecer o último fator ora abordado e abrir espaços para uma
quebra dos paradigmas correntes nos outros fatores se torna um desafio ousado, visto que,
pela participação, podemos criar a possibilidade de as pessoas transformarem sua realidade.
É nesse sentido que Demo (1988, p. 25) afirma “(...) demagogos, populistas, corruptos e
contraventores se perpetuam no poder, porquanto a sociedade não consegue organizar-se
para impor seus mínimos direitos”.
Segundo Amman (1978, p. 32),
14
na medida (...) em que os sistemas político e organizacional permitem e
garantem a dependência da sociedade em relação às demais sociedades, na
medida em que, ainda, (...) bloqueiam o acesso das camadas populares à
gênese das decisões, esta sociedade está embargando a geração e a
efetivação do processo participativo.
Dessa forma, a potencialização de espaços de participação popular em todas as
esferas da vida cotidiana - principalmente por meio da educação, seja mediante políticas
públicas, seja a partir da proximidade de movimentos populares - apresenta-se como uma
exigência àqueles que, como nós, desejam a construção de uma sociedade mais justa. Isto,
por sua vez, aponta-nos para o imperativo de um compromisso por parte daqueles que
intentamos trabalhar em tal direção (SOUZA, 1996). Evidentemente, não se trata de uma
educação comum, bancária, já que falamos aqui de uma Educação Libertadora.
Conforme Amman (1978, p. 41), “não é tarefa (...) da educação, a mera substituição
de valores, mas trata-se de propiciar uma genuína passagem, onde o educando é ao mesmo
tempo seu autor e gestor, de uma consciência mágica, a uma consciência crítica”
5
. Demo
(1988, p. 91) compartilha desse ponto de vista quando define educação como “motivar o
desdobramento das potencialidades do educando, acreditando sempre que seu
desenvolvimento depende menos do mestre, do que da iniciativa e da criatividade
próprias”.
Tal educação deve ser inspirada nas idéias de Paulo Freire, o qual, em “Educação
como prática da liberdade”, tematizava a questão da participação no processo histórico da
sociedade brasileira, que, segundo sua análise, era bastante problemática e prejudicial. É
nesse sentido que Freire (1984, p. 43) alude:
(...) Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está
em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela
publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando
cada vez mais, sem o saber à sua capacidade de decidir. Vem sendo
expulso da órbita das decisões (...) afoga-se no anonimato nivelador da
massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: não
é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto (...) (grifos do autor).
5
Esta passagem da consciência mágica à crítica é chamada por Paulo Freire (1980) de conscientização e é
abordada de maneira aprofundada quando do capítulo Psicologia Comunitária.
15
É com base em uma compreensão similar à de Freire que Bordenave (2002) atesta
que “a participação das pessoas em vel de sua comunidade é a melhor preparação para a
sua participação como cidadãos em nível da sociedade global” (p. 58). De acordo com
Souza (1996), “a participação é processo existencial concreto, se produz na dinâmica da
sociedade e se expressa na própria realidade cotidiana dos diversos segmentos da
população” (p. 79).
Demo (1988), por sua vez, afirma que “os ideais participativos mais radicais
somente podem ser concretizados, e ainda assim de forma apenas aproximativa, em grupos
pequenos (...) está claro que [estes ideais] não se aplica[m] a uma cidade, (...), uma
região, e muito menos um país” (p. 86). Pensar, portanto, a participação apenas em um
âmbito mais global é deixar de reconhecer a cotidianidade desta temática, bem como a
materialidade com que se expressam as esferas globais no cotidiano
6
.
Por essa razão, Souza (ibidem) declara que “a participação supõe a criação do
homem para o enfrentamento dos desafios sociais” (p. 82). Ainda segundo a autora, tal
“criação” apresenta os seguintes pressupostos: o pensar coletivo, partindo do cotidiano, o
pensar coletivo na análise e desvelamento do que se apresenta como natural no cotidiano, a
passagem de um nível de grupalização e mobilização para a vivência da organização
consciente e modos renovados de reflexão e ação que respondam às novas demandas do
contexto social.
Segundo Pinto (1980 apud SOUZA, 1996, p. 93),
O instrumento principal para ação comunitária é a (...) organização
social; não entendida como simples estrutura formal, mas como
articulação consciente, permanente e dinâmica, dos grupos de uma
população, ao redor de interesses comuns, objetivos reais, mais
percebidos coletivamente, que alimentam ações coordenadas e que
buscam satisfazer a esses interesses coletivos.
Esta visão é compartilhada por Góis (2003) quando, ao apontar o que denomina de
condições básicas para a criação de um clima de crescimento psicossocial, cita a
organização comunitária e a luta reivindicatória e política como duas dessas condições.
Conforme tal autor (2003, p. 55),
6
Uma discussão mais aprofundada acerca desta temática é efetivada quando abordamos a relação entre
comunidade e sujeito comunitário, no capítulo três desta dissertação.
16
a organização comunitária se forma na base, o povo decidindo e agindo em
comum acordo. Os moradores pensando juntos, decidindo juntos, e
praticando juntos, num esforço solidário de verdadeira caminhada
individual e social. A classe oprimida organizada e participando através das
associações, dos seus sindicatos e dos seus partidos políticos, poderá
caminhar em direção à sua libertação.
Como se pode perceber, Góis (2003) compartilha com Bordenave (2002) e Demo
(1998) da concepção exposta anteriormente de que a participação na comunidade é a
melhor preparação para tal em nível global. Sem participação não é possível a construção
do sujeito comunitário objetivo de um trabalho em Psicologia Comunitária. De acordo
com Góis (2003), esse sujeito “tem uma consciência transitiva que lhe permite
compreender o modo de vida de sua comunidade e de si mesmo, além de reconhecer seu
valor e poder para desenvolvê-la e desenvolver-se numa perspectiva dialógica e solidária”
(p. 31).
É notório, portanto, que os diversos autores aqui citados apontam a participação
como uma alternativa viável para a superação das condições de opressão e marginalização
em que nos encontramos nós, povos latino-americanos. Mas, para que possamos, como
psicólogos, colaborar nesse processo de superação, faz-se necessário que retomemos o
questionamento de Souza (1996, p. 81), citado no início deste capítulo: “participação por
quê? Em função de quem? O que é mesmo participação?”.
2.4. Participar pra quê?
Diante do exposto, a partir das referências citadas, podemos responder aos
questionamentos lançados por Souza da seguinte forma: participar porque o homem não é
apenas produto, senão que também é produtor de sua história, num jogo dialético de
configuração da realidade. Participar porque faz parte da humanidade sonhar e construir
condições para a realização destes sonhos, uma vez que reconhecemos aqui, a partir de
Freire (1980) e Góis (1994; 2003; 2005), que a realidade é um problema, e não um dado, e
que, portanto, ela deve ser transformada e não apenas assimilada.
Participar, aqui, não pode ser de outro modo que não o de fazê-lo em função de uma
realidade mais justa, o que significa que se trata de trabalhar juntamente com o povo
17
oprimido latino-americano, em especial nós, nordestinos e cearenses, na edificação desta
realidade. Trabalhar nesta direção significa optar por superar as condições de opressão em
que nos encontramos e que desumanizam tanto o opressor, quanto o oprimido. Afirmamos
isto inspirados em Freire (1992) quando este expõe: “Não sou se você não é, não sou,
sobretudo, se proíbo você de ser” (p.100).
Participação, portanto, pode ser compreendido como um instrumento de libertação
(MARTIN-BARÓ, 1998) que envolve o maior número de pessoas e um nível de
importância nas decisões tomadas. Relembremos e reafirmemos como nossa a perspectiva
de Amman (1978), segundo a qual “participação social é o processo mediante o qual as
diversas camadas da sociedade tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens
de uma sociedade historicamente determinada” (p. 61). Este tomar parte, vale lembrar,
implica um caminhar rumo à autonomia coletiva.
Optar, por exemplo, por uma gestão que oportunize a participação popular “(...)
significa uma reforma moral e intelectual, um processo de aprendizagem social, de
construção de novos tipos de relação social, que implicam, obviamente, a constituição dos
cidadãos como sujeitos sociais ativos” (DAGNINO, 2004, p. 105). Dessa forma, conceituar
participação exige também fazê-lo com relação à cidadania.
Na concepção jurídica, de acordo com Benevides (1994 apud KAPPEL e DAL RI,
2007, p. 6),
Na teoria constitucional moderna, cidadão é o indivíduo que tem um
vínculo jurídico com o Estado. É portador de direitos e deveres fixados
por uma determinada estrutura legal (...) que lhe confere, ainda, a
nacionalidade. Cidadãos são, em tese, iguais perante a lei, porém súditos
do Estado. Nos regimes democráticos, entende-se que os cidadãos
participaram ou aceitaram o pacto fundante da nação ou uma de nova
ordem jurídica.
Como se pode perceber na passagem acima, esta definição traz em si a marca do
cidadão como cliente, beneficiário de algo que lhe é concedido pelo Estado e que, portanto,
nada mais pode além de se adequar à ordem vigente, uma vez que é “súdito” do Estado.
Este tipo de cidadania é chamado por Kappel e Dal Ri (2007, p. 9) de cidadania passiva,
pois aparece como sendo “(...) outorgada pelo Estado, com a idéia moral de favor de da
tutela, e acima de tudo, aquela que trata os direitos do cidadão como uma concessão
18
estatal” (p. 9). Contrapõe-se a este tipo de cidadania a cidadania ativa, presente nos
processos democráticos que propiciam, de fato, a participação popular, “(...) na qual o
cidadão é instituído como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de
direitos para abrir novos espaços de participação política” (KAPPEL e DAL RI, 2007, p. 9).
Em um país com tradição oligárquica e autoritária, como o nosso, este tipo de cidadania
ainda está longe de ser alcançada – requer um trabalho intenso de educação, bem como uma
luta constante contra aqueles que sempre se beneficiaram do sistema oligárquico
representativo em que nos encontramos.
Nesse sentido, assim como podemos observar uma cidadania ativa e uma passiva,
no que tange à democracia, podemos classificá-la em dois tipos, qual seja, a democracia
representativa e a democracia participativa. Segundo Pont (1999), o primeiro tipo se baseia
em uma concepção liberal burguesa de democracia, apresentando Locke e Rousseau como
dois de seus expoentes. Segundo esta concepção, “para que se mantenham as condições de
liberdade e igualdade, onde nenhum cidadão perde sua soberania no processo de formação
da vontade geral, esta não pode ser delegada ou transferida, a não ser para encarregados de
executá-la (...)” (PONT, 1999, p. 17). Ainda de acordo com Pont (1999), a igualdade
perante a lei mascara as desigualdades na sociedade civil.
a democracia participativa, como o próprio nome indica, envolve a participação
direta da sociedade nas decisões que lhe dizem respeito, como no caso das experiências de
orçamento participativo. Conforme Pont (1999), as principais características desse tipo de
democracia são: a participação popular, a prática direta e a auto-organização. Segundo
Suplicy (1999, p. 24),
(...) democracia participativa supõe o reconhecimento da pluralidade de
atores presentes na Cidade e o compromisso efetivo com a construção de
processos de decisão que incluam as concepções divergentes, de modo a
estabelecer verdadeiras arenas públcias de negociação e de decisão” (p.
24).
Desse modo, vivenciar uma democracia participativa requer o acolhimento da
diferença e o reconhecimento desta para a construção da sociedade.
Reconhecemos que a Psicologia tem muito a contribuir e, ao mesmo tempo, a
aprender no que diz respeito aos processos que envolvem a participação popular. Nesse
percurso, sem dúvida, a Psicologia Comunitária (GÓIS, 1994) é a área que se apresenta
como aquela com mais contribuições para uma melhor compreensão deste processo na
19
esfera psíquica, uma vez que, a partir da Teoria Histórico-Cultural da Mente, compreende a
imbricação entre a coletividade e a individualidade. É deste tema que tratamos no capítulo
seguinte.
20
3. POR UMA COMPREENSÃO PSÍQUICA DA INTERAÇÃO SOCIAL
Os conceitos de comunidade, atividade comunitária, consciência e conscientização
são centrais para a compreensão teórica desta pesquisa. Neste estudo, além disso, torna-se
muito importante compreender o caráter “comunitário” que os compõe. Das teorias que
compõe a Psicologia Comunitária (GÓIS, 2005), dizem-nos respeito mais especificamente
duas para este trabalho: a Teoria Histórico-Cultural da Mente e a Educação Libertadora. Da
primeira, tomamos os conceitos de atividade de onde Góis (2005) formula o conceito de
atividade comunitária e se utiliza do mesmo conceito de consciência. Da segunda,
interessa-nos o processo definido por Paulo Freire como conscientização. Para a discussão
destes conceitos, devemos explanar a respeito do conceito de comunidade, bem como sobre
o sujeito comunitário. Dessa forma, iniciamos este capítulo com esta breve exposição e, em
seguida, a partir daí, procuramos expor, de modo mais detalhado, os conceitos de atividade
comunitária, consciência e conscientização, como também as possíveis relações entre eles.
3.1. Comunidade e sujeito da comunidade
Tradicionalmente, o conceito de comunidade tem estado ausente do âmbito das
discussões da Psicologia (SAWAIA, 2002). Desse modo, trazer tal tema para o debate da
Psicologia, ao mesmo tempo em que significa afirmar a importância do contexto na
compreensão do psiquismo, também pode ser entendido como o adentrar num campo que,
pela Psicologia, é, ainda, pouco conhecido em suas potencialidades.
Segundo Góis (1994), este conceito traz consigo uma série de controvérsias ao
longo do tempo e, em nosso atual período de globalização e formação de determinados
agrupamentos econômicos, tem-se tornado cada vez mais difícil sua definição. Este
conceito pode ser compreendido, inclusive, de diversas formas, dependendo da área e, ou
teoria em que seja definido. Como não é um conceito que “pertence” a um saber específico,
é possível encontrarmos discursos a este respeito nos mais diversos campos das Ciências
Humanas (GÓIS, 2005).
Segundo Sawaia (2002), a modernidade, a partir do Iluminismo, desenvolveu toda
uma crítica ao conceito de comunidade, pois, com a decadência do sistema feudal, havia
21
todo um clima de valorização do indivíduo, a partir dos ideais da Revolução Francesa
liberdade, igualdade e fraternidade. A comunidade, neste período, passou a ser vista como
exemplo do “retrocesso” que representava o período feudal, uma vez que, àquela época, a
sociedade européia organizava-se em estamentos, sendo impossível a (falsa) noção de
liberdade advinda com o capitalismo, decorrente da organização da sociedade em classes e,
portanto, passível de maior mobilidade social.
De acordo com Góis (2005), com o declínio dos ideais da Revolução Francesa,
durante o século XIX, resultante de toda uma insatisfação de grupos de trabalhadores
europeus com as condições subumanas a que foram submetidos a partir da Revolução, o
conceito de comunidade passou a ser rediscutido e valorizado. Isto se deu tanto no
desenvolvimento das sociedades capitalistas, como no socialismo implementado com a
Revolução Russa de 1917. Ainda segundo Góis (2005, p. 57), na contemporaneidade, “(...)
as comunidades permitiram que seus moradores pudessem fazer frente ao novo conjunto de
forças sociais surgido na passagem de um mundo predominantemente agrário a um mundo
predominantemente industrial, de relações mais dinâmicas (feudalismo ao capitalismo)”.
O debate acerca do conceito de comunidade surgiu na Psicologia “(...) com o
objetivo de integrar indivíduos e grupos a partir da transformação de atitudes, inspirado nos
estudos psicossociais sobre grupos” (SAWAIA, 2002, p. 44). Como se pode perceber, esse
tipo de estudo tinha interesse de adaptar os indivíduos aos grupos, o que faz com que
Sawaia (2002) cite o clássico “Walden Two”, de Skinner, com um exemplo do que se
desejava atingir com os estudos psicológicos sobre a relação dos indivíduos e dos grupos na
Psicologia estadunidense daquela época.
Somente com a tentativa de construção de uma Psicologia Social para a América
Latina, em que predominou o referencial de uma matriz marxista, na década de 1970, a
comunidade passou a ser vista, neste pedaço do continente americano, como potente
irradiadora de mudança. Tal perspectiva é bem diferente da exposta no parágrafo acima,
pois, ao invés de visualizar a comunidade como um modo de facilitar a adaptação do
indivíduo à coletividade, pressupõe que a comunidade se apresenta como relevante
instrumento de transformação social.
Mas como concebemos comunidade? Em meio a tantas controvérsias, como definir
este conceito que, nos dizeres de Sawaia (2002), é tão antigo quanto a própria humanidade?
22
De que modo se sua relação com a sociedade da qual faz parte? Góis (2005) afirma o
caráter contraditório do conceito de comunidade, pois, segundo o autor, ao mesmo tempo
em que a comunidade reflete aspectos da “sociedade maior”, ela também os refrata,
produzindo suas idiossincrasias em torno até mesmo de fenômenos globais. Dessa forma,
pudemos presenciar em nosso trabalho em uma comunidade periférica de Fortaleza que a
proliferação da informática, por exemplo, movimentava a sua economia, não no sentido de
as pessoas adquirirem seus computadores, mas de, de acordo com um morador do local, as
pessoas “fecharem suas ‘bodegas’ e passarem a abrir lan houses”.
A partir da base teórica da Psicologia Comunitária, conceituamos comunidade a
baseado em Góis (2005, p. 61), quando este assevera que a comunidade é
(...) um lugar de moradia, um ‘hogar’ social, de permanência estável e
duradoura, de relação direta (face-a-face) entre seus moradores, de
crescimento e de proteção da individualidade frente à natureza e à
sociedade. Apresenta, como o município e a sociedade maior, que
exercem influência sobre ela, um processo social próprio cheio de
contradições, conflitos e interesses comuns, que servem de base à
construção e orientação das ações de seus moradores com relação a
próprio lugar, ao município onde se encontra e ao conjunto da sociedade.
Assim, podemos afirmar que a comunidade transita entre o geral e o particular,
dando ao sujeito um nome, distante da perspectiva a-nônima que vivenciamos,
principalmente nos grandes centros urbanos. Vale ressaltar, contudo, como fazem Góis
(1994; 2003; 2005) e Sawaia (2002), que a realidade comunitária está longe do que se
poderia imaginar como sendo um agrupamento homogêneo, pois, assim como no restante
da sociedade, é possível encontrarmos interesses diversos e relações de poder não
necessariamente convergentes atuando e interagindo no mesmo espaço.
Mas além das contradições, o que podemos encontrar como sendo compartilhado
por aquilo que aqui concebemos como comunidade? Góis (2005, p. 60) declara que os
elementos em comum apresentados pelas comunidades são o
(...) território, história e valores compartilhados e um modo de vida
social, além de um mesmo sistema de representação social, um
sentimento de pertença e uma identidade social. São características
construídas ao longo do tempo, mediante relações sociais diretas e
íntimas em um mesmo espaço físico-social (...). Nesse espaço físico, a
referência é a moradia, a vizinhança e a circunvizinhança, dimensões
23
interativas e psicológicas formadoras de convivência social próxima e de
uma identidade de lugar, apesar de, muitas vezes, no meio urbano,
encontrarmos vivendo no mesmo espaço físico o rico e o pobre.
De acordo com essa definição, conceitos como os de “comunidade escolar” ou
“comunidade latino-americana” caem por terra, por não atenderem aos critérios para que se
possam caracterizar como tal. Daí o porquê de Góis (2005) afirmar que o conceito de
comunidade não diz respeito apenas a um conceito político, senão que traz consigo uma
série de significados que podem ser compreendidos se assim também for feito com
relação à História e ao cotidiano.
Segundo Sawaia (2002), a comunidade, em Psicologia Comunitária, não deve ser
entendida apenas como categoria para análise científica, pois “(...) é categoria orientadora
da ação e da reflexão e seu conteúdo é extremamente sensível ao contexto social em que se
insere, pois está associada ao debate milenar sobre exclusão social e ética do bem viver” (p.
50). Góis (2005, p. 65) corrobora com este ponto de vista ao afirmar que a investigação
sobre comunidade
(...) deve implicar uma articulação teoria-prática-compromisso social,
uma inserção voltada não para sua compreensão, mas também para o
desenvolvimento da vida comunitária, tanto em sua dimensão social
(comunidade) como em sua dimensão pessoal (sujeito da comunidade).
É a co-construção do sujeito da comunidade que se constitui como o objetivo de
um trabalho em Psicologia Comunitária. É por esta razão que os trabalhos em Psicologia
Comunitária exigem uma familiarização do profissional de Psicologia (MONTERO, 2006)
com os códigos locais, bem como um entendimento de psiquismo que suponha uma
vinculação direta entre o desenvolvimento deste e o desenvolvimento local.
Vale ressaltar que sujeito comunitário é aqui compreendido de acordo com a
definição de Góis (2005, p. 52) segundo a qual o sujeito comunitário é “(...) aquele que se
descobre (compreende e sente) responsável por sua história e pela história do lugar, e que
as constrói mediante sua atividade prática e coletiva no mesmo espaço físico-social em que
vive e faz história de sofrimento, luta, encontro, realização e esperança”.
A co-construção do sujeito comunitário, para a Psicologia Comunitária, se torna
possível por meio de um processo de “(...) aprofundamento da consciência (Freire) e da
ação comunitária, como decorrência da atividade comunitária dos indivíduos e das
24
condições sócio-históricas do lugar em que vivem” (GÓIS, 1994, p. 43). Dessa forma, os
trabalhos a partir dessa área da Psicologia Social enfatizam, em suas metodologias,
interações que privilegiem o movimento da consciência (conscientização), como também o
fortalecimento da atividade comunitária. Aprofundamos a seguir, portanto, o que significa
cada um desses conceitos para a Psicologia Comunitária.
3.2. Atividade comunitária
O conceito de atividade comunitária está ancorado na Teoria da Atividade,
pesquisada e desenvolvida por Alexis Leontiev. Esta teoria estabelece um elo indissolúvel
entre mudanças materiais e subjetivas, haja vista sua tese central ser a de que o trabalho
acarretou a hominização do cérebro. Trabalho aqui é compreendido de acordo com a
definição de Leontiev (1978, p. 175), a qual
o trabalho humano (...) é uma actividade (sic) originariamente social,
assente na cooperação entre indivíduos que supõe uma divisão técnica,
embrionária que seja, das funções do trabalho; assim, o trabalho é uma
acção (sic) sobre a natureza, ligando entre si os participantes,
mediatizando a sua comunicação.
Assim, podemos perceber, no trabalho, as dimensões cooperativa e comunicativa
que o envolve, uma vez que a decomposição da atividade em determinadas ações pressupõe
que elas se liguem mediante a relação entre o indivíduo e os membros da coletividade.
Desse modo, a atividade é permeada por significado social e não apenas por uma mera
satisfação instintiva.
De acordo com Leontiev (1978, p. 86),
No trabalho os homens entram forçosamente em relação, em
comunicação uns com os outros. Originariamente, as suas acções (sic), o
trabalho propriamente, e a sua comunicação formam um processo único.
Agindo sobre a natureza, os movimentos de trabalho dos homens agem
igualmente sobre os outros participantes na produção. Isto significa que
as acções (sic) do homem têm nestas condições uma dupla função: uma
função imediatamente produtiva e uma função de acção (sic) sobre os
outros homens, uma função de comunicação.
25
Dessa forma, podemos perceber que a atividade traz consigo a marca da cooperação,
de modo que é impossível pensá-la a partir de um único homem isolado. A atividade pode,
por exemplo, ser decomposta em diversas ações necessárias para que ela ocorra, de modo
que se abre a possibilidade (eminentemente humana) de se refletir psiquicamente a relação
entre o motivo da ação e o objeto, visto que a ação não se encerra nele. Segundo Leontiev
(1978, p. 79), “com a acção (sic), esta ‘unidade’ principal da actividade (sic) humana, surge
assim ‘a unidade’ fundamental, social por natureza, do psiquismo humano, o sentido
racional para o homem daquilo para que a sua actividade (sic) se orienta”.
A orientação da atividade humana acontece, portanto, a partir de um referencial
social, de uma série de significados que extrapolam os limites daquilo que, naturalmente,
ser-lhes-ia designado. Leontiev (1978) dá-nos o exemplo de uma caça. Dividida esta
atividade em algumas ações, teríamos, por exemplo, a de alguém que executaria a ação de
assustar a presa e a direcionar a um local que fornecesse melhores condições para a captura
da caça por um outro grupamento que, por sua vez, dependeria diretamente da boa
execução da tarefa daquele que espantaria a caça. Dessa forma, poderíamos compreender
que a atividade em questão é a caça, enquanto o espantar a caça e a sua captura
propriamente dita são algumas das ações que compõem esta atividade.
De um modo isolado, poderíamos pensar a ação de espantar o alvo da caça como
algo contraditório ao objetivo do trabalho, uma vez que o que se quer é capturar a presa.
Contudo, a ação do batedor liga-se a de outros que com ele capturariam a caça.
A possibilidade do discernimento da ação envolvida em uma atividade coletiva
ocorre pela capacidade humana de não se fundir ao objeto, mas, sim, como uma relação em
que o objeto é destacado num objetivo maior. Dessa forma, o conceito de caça, no exemplo
citado anteriormente, passa a se sobrepor ao que instintivamente apareceria apenas como
uma presa, pois a consciência a distinguiu e a significou dessa maneira.
De fato, o grande salto que a humanidade em relação aos outros animais e que
possibilita essa ação planejada do homem sobre a natureza é a criação de instrumentos. Os
trabalhos realizados pelos homens possuem essa peculiaridade: sua realização através de
determinados meios. Nossa compreensão de instrumento é ancorada na definição de
Leontiev (1978, p. 82), que expõe: “o instrumento é (...) um objeto com o qual se realiza
uma ação de trabalho, operações de trabalho”.
26
A utilização de um instrumento está estreitamente vinculada à consciência do fim da
ação. Desse modo, ele deixa de ser um mero objeto e passa a carregar consigo conceitos
que ultrapassam uma condição natural. Uma vara utilizada para atingir um determinado
alvo inatingível de modo natural não é apenas um pedaço de um galho de árvore, pois, na
ação, passa a se vincular a algo a que naturalmente não se vincularia. É nesse sentido que
Leontiev (1978, p. 82) afirma que “(...) é o instrumento que é de certa maneira portador da
primeira verdadeira abstração consciente e racional, da primeira generalização consciente e
racional.”.
Há, portanto, uma significação que atravessa o instrumento. De um graveto à
utilização de um microcomputador, vivemos o tempo todo utilizando instrumentos para
lidar com a realidade, transformando-a e desnaturalizando-a. Por se tratar de uma relação
dialética, o homem também se transforma e se desnaturaliza. Além disso, a utilização de
um instrumento traz consigo uma experiência social, pois um significado compartilhado
em torno dele.
O significado atribuído à ação e ao instrumento pela consciência só se torna possível
através do mais elaborado instrumento desenvolvido pela humanidade: a linguagem,
conforme expomos adiante. Segundo Leontiev (1978, p. 87), “significando no processo de
trabalho um objeto, a palavra distingue-o e generaliza-o para a consciência individual,
precisamente na sua relação objectiva (sic) e social, isto é, como objecto (sic) social”.
Conforme Góis (2005), devido a essa vinculação do instrumento a uma significação,
a atividade cumpre uma função mediatizadora, o que proporciona o desenvolvimento dos
processos psicológicos superiores. Ainda de acordo com o autor, além da função
mediatizadora, a atividade carrega consigo uma função orientadora, pois proporciona ao
indivíduo possibilidades de melhor compreensão de sua situação.
Góis (2005, p. 80) sintetiza as afirmações acima da seguinte maneira:
a atividade (...) implica um sistema de interações de crescente
complexidade entre indivíduo e mundo objetivo (interação dialética) que,
ao mesmo tempo, transforma a natureza e a sociedade, bem como
permite ao ser humano exercer o controle sobre si mesmo. Por esse
aspecto entendemos que a atividade humana é, em primeiro lugar, social,
e constitui a base da aprendizagem e do desenvolvimento cultural..
27
Ancorado nas investigações de Leontiev e no conceito de vivência, de Toro, Góis
(1994) desenvolve o conceito de atividade comunitária. Esse autor (GÓIS, 2005, p. 89)
define atividade comunitária como:
a atividade prática e coletiva realizada por meio da cooperação e do
diálogo em uma comunidade, sendo orientada por ela mesma e pelo
significado (sentido coletivo) e sentido (significado pessoal) que a
própria atividade e a vida comunitária têm para os moradores da
comunidade. Ela é uma rede de interações sociais, instrumental e
comunicativa, direcionada para a autonomia do morador e da própria
comunidade, na perspectiva do fortalecimento de uma identidade social
[...] de comunitário, do desenvolvimento da consciência social e pessoal,
e da construção da responsabilidade comunitária.
Assim como na teoria da atividade de Leontiev (1978), entre as características do
conceito de atividade comunitária que nos fornece Góis, encontra-se a de conter interações
instrumentais e comunicativas. As interações instrumentais “(...) são (...) voltadas para a
elaboração e uso de instrumentos com finalidades comunitárias, seja tecnologias simples
(...) ou tecnologias avançadas” (GÓIS, 2005, p. 86). Já a dimensão comunicativa “(...)
compreende o diálogo, a expressão de sentimentos e a cooperação entre os moradores, no
intuito de alcançar os objetivos da atividade comunitária e favorecer o desenvolvimento das
relações sociais na comunidade” (GÓIS, 2005, p. 86).
Como no exemplo do batedor, dado por Leontiev (1978), podemos pensar numa
reunião de quarteirão, metodologia exposta por Góis (2003), na qual moradores de
determinada área da comunidade dialogavam, num espírito festivo e problematizador,
acerca das questões que diziam respeito a seu cotidiano e buscavam, de modo cooperativo,
uma resolução para elas. Evidentemente, as questões, de modo geral, não possuem solução
imediata. Contudo, as pessoas que participam desses encontros podem assim como o
batedor da caça perceber-se fazendo parte de um processo que depende de sua organização
e diálogo.
Como verificamos, a comunidade passa a ser o locus privilegiado de interação e de
surgimento do psiquismo. Dessa forma, podemos afirmar que o cotidiano fornece
elementos preciosos para a compreensão e a atuação por parte daqueles que intentam
trabalhar com desenvolvimento humano de maneira geral. Isto força a uma redefinição da
atuação, por exemplo, dos psicólogos, que, de modo geral, apesar de observarem a
28
insuficiência dos métodos tradicionais (principalmente clínicos), não sabem como agir na
direção de uma psicologia do cotidiano (BARROS, 2007).
É por se basear em tal perspectiva que Góis (2003) propõe a organização
comunitária e a luta reivindicatória e política como duas das condições para a criação de
um clima psicossocial de crescimento pessoal e social – juntamente com congruência,
aceitação, empatia e diálogo.
Rogers (1982, p. 65), no âmbito da Psicoterapia, define consideração positiva
incondicional da seguinte forma: Significa que o facilitador está realmente
pronto a aceitar [a pessoa], seja o que for que esteja sentindo no
momento (...). Isto quer dizer que (...) [a] aprecia mais em sua totalidade
do que de uma forma condicional, que não se contenta com aceitar
simplesmente [a pessoa] quando esta segue determinados caminhos e
com desaprová-lo quando segue outros (ROGERS, 1982, p.65).
a empatia ocorre quando o facilitador “é sensível aos sentimentos e às reações
pessoais que o cliente experiencia a cada momento, quando pode apreendê-los “de dentro”
(...) e quando consegue comunicar com êxito alguma coisa dessa compreensão (...)”
(ROGERS, 1982, p.66).
No que diz respeito à genuinidade, esta aparece quando o facilitador “é aquilo que é,
quando as suas relações com o cliente são autênticas e sem máscara nem fachada,
exprimindo abertamente os sentimentos e as atitudes que nesse momento ocorrem”
(ROGERS, 1982, p. 65).
O diálogo, aqui, é compreendido, de acordo com Paulo Freire (1981, p. 93), como
encontro de homens, mediatizado pelo mundo, para pronunciá-lo (...).
Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a
pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos
demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no
direito primordial de dizer a palavra, reconquistem este direito, proibindo
que este assalto desumano continue (...). O diálogo é uma exigência
existencial
a organização comunitária e a luta reivindicatória e política - conforme Góis
(2003) - criam condições para que o indivíduo possa-se colocar de uma maneira mais
crítica diante de sua realidade, pois tal forma de organização da atividade está imbricada
29
em uma diferente organização do psiquismo. Vale ressaltar que, por se tratar de um
processo não apenas dialético, mas também dialógico, isto implica mudanças não apenas
nos moradores, mas também no profissional psicólogo, que sai de sua tradicional distância
profissional e passa a experimentar outras formas de interação. É nesse sentido que Góis
(1994, p. 89) alude que
a relação morador-psicólogo, no interior da atividade comunitária,
constitui um processo de facilitação da vida comunitária, no qual o
Psicólogo Comunitário e os moradores atuam em conjunto, seguindo
linhas de encontro, reflexão e ação no intuito de melhorar a qualidade da
vida psíquica dos moradores e do próprio Psicólogo Comunitário, no que
diz respeito à construção de sujeitos sociais e comunitários.
As implicações de formas diferenciadas de interação, tanto em sua dimensão
comunicativa (dialógico), quanto instrumental (transformação solidária da realidade), foram
objeto de estudos e de atuação de Paulo Freire, através de processos de conscientização
advindos de sua atuação com as maiorias oprimidas. Passemos a uma análise mais
detalhada acerca desse processo.
3.3. A consciência
O tema da consciência merece ser abordado com bastante cuidado. Talvez essa frase
se justifique pelo uso quase indiscriminado desse termo nas mais variadas áreas do
conhecimento, possuindo definições que beiram uma definição moral, bem como outras
que possuem bases em pesquisas da Psicologia. Afinal, quem nunca ouviu falar da
necessidade de criarmos consciência a respeito de algum tema, o que significa a
equivalência do termo a uma categoria moral, uma conduta socialmente aceitável?
Mas em que campo de saber se situa o conceito de consciência? Alguns podem
responder que se trata de um conceito da Psicologia. Contudo, tal resposta seria pouco
contundente, pois, como demonstra Góis (2005), este tema atravessa os diversos campos do
saber, ainda que com diferentes conotações. Mesmo quando situados na Psicologia, onde
esta palavra é amplamente utilizada, é preciso que se especifique a partir de onde definimos
este termo e, portanto, conceituamo-lo.
30
Nossa definição de consciência é proveniente da Psicologia Comunitária (GÓIS,
1994; 2003; 2005), a qual se ancora na Teoria Histórico-Cultural da Mente, elaborada por
Vigotski (2001; 2004), Leontiev (1978; 1982) e Luria (1987). Como desdobramento da
concepção desses teóricos e reconhecendo a necessidade de transformação de uma
realidade, por vezes desumanizadora, a Psicologia Comunitária traz ainda a necessidade do
fomento à conscientização, ou seja, ao desenvolvimento da consciência, inspirada no
trabalho de Paulo Freire (1980; 1981; 1984a; 1992).
3.3.1. Consciência na Teoria Histórico-Cultural da Mente
A Teoria Histórico-Cultural da Mente representa uma revolução no modo de
abordar a consciência. Até o seu desenvolvimento, modelos atomísticos, ou que
simplesmente desprezavam este conceito para a Psicologia, dominavam os métodos de
investigação e de se construir um saber psicológico. A este respeito, Vigotski (2004, p. 171)
escreve que “embora a psicologia tivesse definido a si mesma como a ciência da
consciência, seu conhecimento a respeito desta era quase nulo”.
A afirmação citada no parágrafo anterior evidencia toda a necessidade de
reformulação teórico-metodológica que Vigotski e seu grupo identificaram na Psicologia de
seu tempo. Nesse sentido, produziram uma série de pesquisas acerca da gênese do
psiquismo que, segundo Wertsch e Smolka (1995), levaram a três idéias principais: a de
que o social funda o individual, a utilização do método genético para a investigação do
humano e de que os processos psíquicos humanos se utilizam de mediação, em especial, da
linguagem.
De acordo com Luria (1987, p. 20), a principal tese de Vigotski é de que
para explicar as formas mais complexas da vida consciente do homem é
imprescindível sair dos limites do organismo, buscar as origens desta
vida consciente e do comportamento “categorial”, não nas profundezas
do cérebro ou da alma, mas sim nas condições externas da vida e, em
primeiro lugar, na vida social, nas formas histórico-sociais.
Dessa forma, a Teoria Histórico-Cultural da Mente revolucionou o estudo do
psiquismo por reconhece-lo como uma propriedade eminentemente humana, não apenas
como decorrência de um comportamento adaptativo, mas reflexo da atividade de
31
transformação do homem no mundo. Este reconhecimento acontece pela compreensão da
consciência como produção cultural, e não apenas como uma faculdade cerebral, no que
pese não prescindir do cérebro para existir. É neste sentido que Leontiev (1982, p.108)
afirma que “[...] as particularidades psicológicas da consciência individual, precisamente,
só podem ser compreendidas mediante a análise de seus nexos com aquelas relações
sociais, dentro das quais está imerso o indivíduo”.
Aliás, a possibilidade de criação de cultura é o que diferencia o homem dos outros
animais. Esse salto qualitativo permite que a humanidade possa ultrapassar os limites da
experiência imediata e passe a encontrar nexos entre os elementos que compõem a
realidade, além de criar para além do que está dado. Assim, a matéria bruta pode ser
transformada em tudo aquilo a que a imaginação humana permitir.
Segundo a Teoria Histórico-Cultural da Mente, se torna possível falar de
consciência com o advento da convivência em sociedade, que é fundada, tomando por base
os pressupostos marxistas de Vigotski e seus colaboradores, a partir da cooperação entre os
homens.
A divisão do trabalho, portanto, cria necessidades e ações que, do ponto de vista da
Biologia, não seriam indispensáveis ao homem. O instinto passa a servir de base e, ao
mesmo tempo, ser superado pela capacidade humana de sonhar, querer e construir mais do
que lhe é determinado pela natureza, transformando-a, conforme explicitado no tópico
acerca do tema atividade comunitária.
A esse respeito, Valsiner e Van der Veer (1996, p. 244) assinalam que “a origem de
todo os processos psicológicos superiores, especificamente humanos, não pode [...] ser
encontrada na mente ou no cérebro de uma pessoa individual, mas deve ser procurada nos
sistemas de signos sociais ‘extracerebrais’que uma cultura proporciona”.
Desse modo, o intrapsíquico é antes interpsíquico, pois se funda a partir de
significações somente adquiridas nas interações sociais, a partir do momento em que o ser
humano nomeia e “manipula” seu meio. Assim, o estudo do desenvolvimento do
psiquismo, para os teóricos da Teoria Histórico-Cultural da Mente, passa pela investigação
dos níveis filogenético (desenvolvimento da espécie), ontogenético (desenvolvimento dos
seres humanos), sociogenético (compreensão social) e microgenético (compreensão do
desenvolvimento de um ser específico) (BARROS, 2007).
32
Ou seja, para que se possa compreender a gênese da consciência, o é suficiente,
de acordo com essa teoria, que se estude o homem a partir de seu estado atual, senão que se
realize o que Leontiev (1978) denomina “démarche histórica do psiquismo”. Afinal de
contas, se realizamos um salto qualitativo em relação aos animais a partir da interação
social portanto, por meio da criação de cultura –, torna-se necessário saber como se deu
este salto e de que modo este tipo outro de relação com o meio atua na gênese da
consciência.
Só se torna possível, por exemplo, falar de atividade, ao invés de ações,
distanciando-se de uma perspectiva naturalista e aproximando-se de um modo histórico-
cultural, devido a uma habilidade exclusivamente humana: a de dar significado. Conforme
explicitamos no capítulo anterior, a atividade humana possui dimensões instrumental e
comunicativa, portanto, a consciência opera tanto no nível de planejamento da atividade em
si, quanto na doação de significado que esta atividade tem para o grupo que a executa. De
acordo com Leontiev (1978, p. 86), “[...] para que um fenômeno possa ser significado e
reflectir-se (sic) na linguagem, deve ser destacado, tornar-se facto (sic) de consciência, o
que [...] se faz inicialmente na actividade (sic) prática dos homens, na produção”.
É importante anotar aqui que a convivência social condições para que o homem
possa significar o mundo, mas não se trata de uma sobreposição do social ao individual. Na
verdade, é a partir dessas interações e do domínio das produções culturais, em especial, da
linguagem, que o ser humano se torna capaz de dotar algo de um sentido particular, no que
pese o fato de a utilização de uma palavra, por exemplo, ter a mesma grafia e pronúncia
para todos os que compartilham de um idioma.
Os trabalhos de Vigotski, Leontiev e Luria centram-se nesta perspectiva a qual
enfatiza as interações sociais para a compreensão da consciência. Suas investigações se
utilizam, segundo Barros (2007, p. 20), de um método genético-experimental, a partir do
qual “[...] o(a) psicólogo(a) deve enfatizar a compreensão dos processos e das dinâmicas
que estão relacionados ao comportamento das pessoas, e não o comportamento em si
mesmo”.
Inspirar-se em tal perspectiva exige uma inserção no cotidiano, uma compreensão
do modo como acontecem as interações sociais nos diferentes contextos e sua conseqüente
influência na gênese das atividades desenvolvidas pelas pessoas. Em uma perspectiva
33
comunitária (GÓIS, 1994), isto implica uma convivência diária com moradores e a
necessária vivência e investigação acerca dos significados (coletivos) e sentidos
(individuais) compartilhados a respeito da relação dos moradores com a comunidade. Daí
porque, por exemplo, nesta pesquisa, não analisamos a participação por si só, senão que a
investigamos dentro de um contexto de interações que compõem a atividade comunitária
aqui trabalhada, como também seu sentido para quem a executa.
A significação se torna possível a partir da produção cultural, que, por sua vez,
não prescinde da linguagem para existir. De acordo com Valsiner e Van der Veer (1996, p,
241), os signos, recursos criados pelos seres humanos, que se manifestam através da
linguagem, por exemplo, “são artefatos sociais projetados para dominar e, portanto,
melhorar nossos processos psicológicos naturais”. Os autores (1996, p. 214) ainda apontam
como exemplos de signo “[...] palavras, números, recursos mnemóticos, símbolos
algébricos, obras de arte, sistemas de escrita, esquemas, diagramas, mapas, plantas, etc..”.
Segundo Luria (1987), o surgimento da linguagem, de início, esteve estreitamente
ligado à atividade material, servindo muito mais para facilitar sua execução a partir da
comunicação entre os que nela estavam envolvidos, o que o autor nomeia de caráter
“simpráxico” da linguagem. Progressivamente, a linguagem foi criando autonomia em
relação à situação imediata da execução de uma ação realizada, possibilitando ao homem
conhecer profundamente a realidade através de seus nexos lógicos. Graças à linguagem,
“[...] o homem pode superar os limites da experiência sensorial, individualizar as
características dos fenômenos, formular determinadas generalizações ou categorias [...].
Sem o trabalho e a linguagem, no homem não se teria formado o pensamento abstrato
‘categorial’” (LURIA, 1987, p. 22).
Nessa mesma direção, Leontiev (1978, p. 115) afirma que
Graças ao desenvolvimento da divisão do trabalho e de uma certa
individualização da actividade (sic) intelectual, as acções (sic) verbais
não asseguram unicamente a comunicação, mas orientam-se agora para
fins teóricos, o que torna a sua função exterior facultativa e mesmo
supérflua; razão por que elas revestem posteriormente o caráter de
processos puramente interior.
Como se pode perceber, a função da linguagem foi se modificando ao longo do
processo histórico. O que, a princípio, apenas comunicava e se vinculava a uma ação
34
concreta, agora exerce uma função de planejamento e organização da atividade a ser
executada, funcionando, portanto, como um importante instrumento regulador da atividade
humana.
Para Vigotski, segundo Valsiner e Van der Veer (1996, p. 241), o uso de signos
pelos homens implica que “[...] novas funções psicológicas ficavam envolvidas, [...] vários
processos naturais acabariam por declinar e [... mudanças em] propriedades do ato como
um todo, como sua intensidade e duração [...]”. Dessa forma, o emprego dos signos
introduziu uma modificação na própria estruturação das atividades especificamente
humanas.
Conforme Luria (1987), as palavras oferecem ao homem a possibilidade de duplicar
a experiência, de modo que, diferentemente dos outros animais, ele pode lidar com as
situações cotidianas, não apenas de modo concreto, mas as manusear sem que sua presença
seja necessária. De acordo com Luria (1987, p. 32),
o animal possui um mundo – o mundo dos objetos e situações percebidos
sensorialmente; o homem possui um mundo duplo, que inclui os objetos
captados diretamente e as imagens, ações, relações e qualidades que são
designadas pelas palavras.
Além disso, o autor atribui à linguagem as funções de generalização dos objetos,
transmissão das experiências das gerações passadas e viabilização da possibilidade de se
raciocinar acerca das relações homem-mundo.
É neste sentido que Vigotski (2001) apresenta toda uma análise acerca do modo
como a criança se apropria da linguagem e de como a relação entre linguagem e
pensamento vai-se modificando ao longo do desenvolvimento humano. Segundo o autor,
em um dado momento do desenvolvimento infantil, por volta dos dois anos de idade,
pensamento e linguagem, até então independentes, cruzam-se, de modo que, mesmo sendo
funções psicológicas distintas, a linguagem passa se relacionar estreitamente com o
pensamento e vice-versa. Nos dizeres de Vigotski (2001, p. 133), “[...] o pensamento se
torna verbal e a fala se torna intelectual”.
De início, a fala é exterior, em voz alta, como se a criança desse instruções a si
mesma (VIGOTSKI, 2001; LURIA, 1987), mas o que já demonstra uma utilização da
linguagem com o objetivo de regular a conduta. Mais adiante, essa fala externa,
35
aparentemente sem interlocutor, transforma-se em fala interna, o que, segundo Luria (1987,
p. 111), possibilita o surgimento da “[...] ação voluntária complexa como sistema de auto-
regulação, que se realiza com a ajuda da própria linguagem da criança, no início
exteriorizada e logo interiorizada”.
Ainda de acordo com Luria (1987), a linguagem (agora interiorizada) passa a
adquirir um caráter predicativo, ou seja, ela não mais apenas nomina as coisas função da
linguagem exterior. Sua função agora é predicativa, isto é, atribui propriedades àquilo sobre
o que se fala, regulando o comportamento mediado por estes atributos de que dota os
objetos da ação do sujeito.
É nesse sentido que Vigotski (2004, p. 186) assevera que “a consciência em seu
conjunto tem estrutura semântica. Julgamos a consciência em função da estrutura semântica
da consciência, que o sentido, a estrutura da consciência é a atitude para com o mundo
externo.”. A consciência, então, é estruturada de modo semântico e se desenvolve a partir
da produção social, que é a linguagem. De acordo com Leontiev (1978, p. 94), “no decurso
de sua vida, o homem assimila a experiência das gerações precedentes; este processo
realiza-se precisamente sob a forma da aquisição das significações e na medida desta
aquisição. A significação é, portanto, a forma sob a qual um homem assimila a experiência
humana generalizada e refletida”.
Assim, a partir da possibilidade de generalizar e refletir a experiência humana,
oferecida pela linguagem, é possível ao homem criar e transmitir cultura, de modo que cada
um de nós carrega consigo toda uma bagagem cultural construída ao longo da história da
humanidade. A possibilidade de, a partir da apropriação desta ferramenta generalizante,
significar as experiências de um modo singular se deu no desenvolvimento da própria
sociedade.
Leontiev (1978) atesta que , nas sociedades primitivas, nas quais os homens se
relacionavam diretamente com a natureza, compartilhavam os meios de produção e não
havia a exploração do homem por ele mesmo, também não havia uma diferenciação entre a
experiência singular (sentido) e a coletiva (significado). É dessa forma que o homem cria
necessidades que, biologicamente, não estão determinadas, que não se restringem àquilo de
que fisiologicamente necessita.
36
Luria (1987, p. 45) define significado da seguinte maneira: “Por significado,
entendemos o sistema de relações que se formou objetivamente no processo histórico e que
está encerrado na palavra”. Desse modo, por mais singular que seja a experiência da cada
pessoa com a palavra “livro”, por exemplo, uma série de características comuns que
generalizam e definem os atributos gerais de um livro.
Já o sentido é descrito por Luria (1987, p. 45) assim: “Por sentido, entendemos o
significado individual da palavra, separado deste sistema objetivo de enlaces; este está
composto por aqueles enlaces que têm relação com o momento e a situação dados”. Assim,
o sentido traz consigo a especificidade da relação do indivíduo com a palavra pronunciada,
o que significa, também, que uma vinculação afetiva entre a palavra e aquele que a
pronuncia, pois ela o remete a situações que lhe são significativas.
É nesse sentido, ainda, que Luria (1987, p. 45) afirma:
Vemos, então, que a mesma palavra possui um significado, formado
objetivamente ao longo da história e que, em forma potencial, conserva-se
para todas as pessoas, refletindo as coisas com diferente profundidade e
amplitude. Porém, junto com o significado, cada palavra tem um sentido,
que entendemos como a separação, neste significado, daqueles aspectos
ligados à situação dada e com as vivências afetivas do sujeito.
De acordo com Leontiev (1982, p. 121), quando são internalizadas e utilizadas pelo
sujeito, as significações
[...]
se subjetivizam, mas só no sentido de que seu movimento dentro do
sistema de relações sociais não está contido diretamente; as significações se
manifestam em outro sistema de relações, dentro de outro movimento. Mas,
e aqui o assombroso: de nenhum modo, elas perdem sua natureza histórico-
cultural, sua objetividade.
Dessa forma, o sentido que cada palavra pode indicar não deixa, por sua
particularidade, de indicar um caráter coletivo em sua constituição. A dialética homem-
cultura expressa-se de modo bastante claro quando se fala da relação entre sentido e
significado na Teoria Histórico-Cultural da Mente, pois um não existe sem o outro. É por
isso que Luria (1987, p. 46) relata que “o sentido é o elemento fundamental da utilização
viva, ligada a uma situação concreta afetiva, por parte do sujeito.”.
37
Segundo Góis (2005), o sentido é fundamental na Teoria Histórico-Cultural da
Mente e pode ser estudado a partir da linguagem, além de expressar “[...] a atitude do
indivíduo para com o mundo externo e para consigo mesmo.” (GÓIS, 2005, p. 99). Dessa
forma, além da compreensão das relações onde o sujeito está imerso e que fundam sua
consciência, para que possamos estudar o desenvolvimento da consciência, faz-se muito
importante que desenvolvamos um estudo da estrutura semântica, que é a consciência.
Conforme Góis (2005, p. 98), Vigotski “[...] postulou que o mais central no estudo
da consciência é a análise o sentido ou significado pessoal, a relação própria do sujeito com
os fenômenos objetivos conscienciados”. O estudo da consciência individual, portanto, no
que pese o reconhecimento da dimensão coletiva como, inclusive, sua condição de
existência, recai sobre a relação do sujeito com as generalizações, ou seja, com os
significados, que acontece, inevitavelmente, de modo singular. É por isso que Vigotski
(2004, p.188) afirma que “a análise semiótica é o único método adequado para estudar a
estrutura do sistema e o conteúdo da consciência.”. Diante disso, podemos declarar que nos
interessa o movimento da consciência como faculdade de atribuir sentido ao mundo.
Assim, utilizamos o termo consciência, neste estudo, a partir da definição de Luria,
segundo a qual (2005, p.23):
[...] a consciência é a forma mais elevada e reflexo da realidade: ela não é
dada a priori, nem é imutável e passiva, mas sim formada pela atividade
e usada pelos homens para orientá-los no ambiente, não apenas
adaptando-se a certas condições, mas tamm reestruturando-se.
A Psicologia Comunitária, campo de onde surgiu esta pesquisa, apropria-se dos
conceitos da Teoria Histórico-Cultural da Mente, fazendo uma análise da consciência e
tendo por fim do trabalho o fomento à conscientização, termo retirado da obra de Paulo
Freire. A seguir, analisamos como os conceitos e as concepções, que foram desenvolvidos
por Vigotski e seus colaboradores, são desenvolvidos pela Psicologia Comunitária e de que
modo se relacionam com a Educação Libertadora.
3.3.2. Paulo Freire e a conscientização
Mais do que o tema da consciência, mais concernente ao estudo psicológico, a
conscientização é constante na obra de Paulo Freire. Apesar de não ser de sua autoria
38
(FREIRE, 1980), foi em seu trabalho que tal termo ganhou notoriedade. Isto leva, inclusive,
a que se pense nele de diversas formas, transitando de uma opção ético-política de
transformação social a uma moral que postula ser preciso conscientizar as pessoas.
No que pesem as controvérsias citadas alhures, Freire (1980, p. 29) define
conscientização da seguinte forma: “(...) tomar posse da realidade (...), é o olhar mais
crítico possível da realidade, que a ‘des-vela’ para conhecê-la e para conhecer os mitos que
enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante”. Como percebemos,
esta definição extrapola uma dimensão apenas cognoscitiva, um conhecer melhor a
realidade, pois traz consigo uma concepção política, qual seja, a da transformação desta.
Aliás, o sufixo “ação”, que acompanha a palavra em questão, não é obra do acaso,
pois indica uma exigência não apenas de compreensão gica da realidade, mas também de
ações concretas diante dela. Tal exigência se torna ainda mais urgente em contextos como o
latino-americano, em que a maioria da população vive realidades extremamente desiguais e
opressoras, nas quais o direito de pronunciar a sua palavra lhe é constantemente negado, ou
permitido na forma de um imenso favor (FREIRE, 1984a; 1981; MARTIN-BARÓ, 1996).
Segundo Góis (2005), Freire via uma profunda imbricação entre contexto histórico-
cultural e compreensão de mundo. É com base nisto que, em “Educação como prática da
Liberdade”, Freire (1984a) expõe às sociedades como podendo ser de três tipos: fechadas,
abertas ou de transição. O primeiro tipo carrega consigo a marca da sobreposição de uma
elite cada vez mais rica em detrimento de uma maioria cada vez mais pobre e subjugada a
interesses alheios a suas principais demandas.
as sociedades em transição se caracterizam por um acirramento pouco profundo
entre o que é velho e o que representa o novo, de modo que ambas as idéias são guiadas por
um clima de muita emoção em detrimento da resolução das questões urgentes que
compõem as contradições sociais. que implica uma importação de modelos
descontextualizados e posturas bastante assistencialistas por parte dos dirigentes.
As sociedades abertas, por sua vez, possuem uma relação mais direta entre elite e
população em geral, o contexto é levado em conta na efetivação das ações, uma maior
auto-confiança de seu povo, bem como existe um considerado fomento de espaços para
uma participação pautada no diálogo. O resultado disso é uma população mais dialógica e
39
que, de fato, volta-se para uma compreensão e uma transformação mais profunda de suas
questões.
A cada uma dessas sociedades corresponde, respectivamente, um determinado tipo
de consciência. Freire (1984) expõe três tipos
7
de consciência, correspondentes a cada um
desses tipos de sociedade: a semi-intransitiva
8
, a transitiva-ingênua e a transitiva crítica.
Definamos cada um desses termos iniciando-se pela semi-intransitiva, correlacionada com
o tipo de sociedade descrita anteriormente como fechada, a partir das próprias palavras de
Paulo Freire (1984a, p. 60):
É evidente que o conceito de “intransitividade” não corresponde a um
fechamento do homem dentro dêle mesmo [...]. O homem, qualquer que
seja seu estado, é um ser aberto. O que pretendemos significar com a
consciência “intransitiva” é a limitação de sua esfera de apreensão. É a sua
impermeabilidade a desafios situados fora da órbita vegetativa. Neste
sentido, e neste sentido, é que a intransitividade representa um quase
incompromisso do homem com a existência [...].
Como se pode perceber, na consciência semi-intransitiva, o indivíduo apreende a
realidade de um modo quase vegetativo, visto que esta é compreendida de maneira
cristalizada e terminada. Neste estado, o ser não estaria em relação com o mundo, mas
apenas em contato com ele. Não estaria, como coloca acima Freire (1984a),
compromissado com a existência, pois, em seu sentido radical, esta palavra, advinda do
latim exsistèredeixar-se ver, manifestar-se -, denota um lançar-se para fora, ou seja, o ser
seria possibilidades e não estagnação numa realidade já acabada.
Importante se faz ressaltarmos que não se trata de estigmatizar pessoas que
manifestem este tipo de postura diante da realidade. Não é uma postura possível, como
bastante comum de ser encontrada em diversos locais do país e é necessário reconhecê-la
dessa forma para que não criemos uma psicopatologia da consciência. Estimular o trânsito
da consciência, como vemos adiante com Martin-Baró, não significa mostrar a boa forma
7
Em verdade, Freire (1984) refere-se a níveis de consciência. Góis (2005), contudo, traz a idéia de que
seriam tipos. Concordamos com essa idéia, por dar uma noção menos linear e mais transitiva do processo.
8
Freire (1984) refere-se a uma consciência intransitiva. Contudo, de acordo com sua própria definição e
baseados em Góis (2005), pensamos ser mais apropriada a utilização do termo semi-intransitiva, pois, como
Freire expõe acima, nenhuma consciência pode ser completamente intransitiva, uma vez que toda consciência
é consciência de alguma coisa. Portanto, para que possa se relacionar com o mundo, precisa estar
minimamente aberta.
40
de apreender o mundo, senão criar condições para que os sentidos do sujeito se imiscuam
com os significados da coletividade e, a partir de então, seja cada vez mais próprio dos que
os produzem.
Os processos do mundo, a partir da apreensão semi-intransitiva, teriam a sua
responsabilidade atribuída a uma instância superior, pois “o discernimento se dificulta.
Confundem-se as notas dos objetos e dos desafios do contorno e o homem se faz mágico,
pela não-captação da causalidade autêntica” (FREIRE, 1984a, p.60). A consciência gica
capta os fatos “(...) emprestando-lhes um poder superior, que a domina de fora e a que tem,
por isso mesmo, de submeter-se com docilidade. É próprio desta consciência o fatalismo,
que leva ao cruzamento dos braços, à impossibilidade de fazer algo diante do poder dos
fatos (...)” (FREIRE, 1984a, p.105-106). A consciência, então, capaz de transitar,
movimentar-se, ganha um caráter estático, gido, tendo em vista que o mundo não se
coloca como um problema para ela, mas como um dado.
A transitividade, contudo, segundo Freire (1984, p.60), não se revela de uma
maneira crítica, pois “(...) num primeiro estado [é] preponderantemente ingênua”
(diretamente vinculada ao tipo de sociedade denominada ingênua, de acordo com descrição
anterior). De acordo com Freire (1984a, p.60 e 61),
a transitividade ingênua (...) se caracteriza, entre outros aspectos, pela
simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que
o tempo melhor foi o tempo passado. Pela subestimação do homem
comum. Por uma forte inclinação ao gregarismo, característico da
massificação. Pela impermeabilidade à investigação, a que corresponde
um gosto acentuado pelas explicações fabulosas. Pela fragilidade na
argumentação. Por forte teor de emocionalidade. Pela prática não
propriamente do diálogo, mas da polêmica (...). Esta nota mágica, típica
da intransitividade, perdura, em parte, na transitividade (...).
A consciência transitiva ingênua, então, forneceria condições para que se pudesse
implantar qualquer tipo de tirania contra os seres humanos. Não é por acaso o fato de os
grandes ditadores sempre terem como apelo a emoção e, ao mesmo tempo, a firme postura
de um grande protetor, que não precisa ter algum tipo de preparo específico para
administrar um lugar, sob a égide de que “quem ama protege”. Como exemplo disso, na
História da América Latina, podemos identificar o período da ditadura militar, dos anos
41
1960 até meados dos anos 1980, em que se utilizavam slogans ufanistas, como “Brasil,
ame-o, ou deixo-o!”.
a consciência transitiva-crítica é caracterizada, segundo Freire (1984a, p. 61 e
62), pelos seguintes aspectos:
(...) profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de
explicações mágicas por princípios causais. Por procurar testar os
“achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de
preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se
por evitar deformações. Por negar a transferência da responsabilidade.
Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela
prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo e pela
não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos
enquanto válidos. Por se inclinar sempre a argüições.
Este tipo de consciência, portanto, analisa com maior profundidade os fatos, mostra-
se mais aberta, democrática e, ao mesmo tempo, mais inquieta, pois as indagações são seu
ponto de partida. A conscientização, desse modo, é um processo que incita a - e é incitada
por - uma participação popular de modo efetivo, superando a mera cidadania dos direitos,
indo em direção a uma cidadania ativa (BENEVIDES, 1991), num processo dialético em
que o povo passa a se pronunciar acerca de que direitos quer ter e não apenas usufruir
direitos elaborados de modo alheio a suas reais necessidades. Mas, afinal, que relações
podemos estabelecer entre este conceito e o psiquismo humano? Em que nos interessa esta
categoria, desenvolvida por um educador e que, apesar de apontar, não nos define qual sua
concepção explícita de psiquismo?
O surgimento da Psicologia Comunitária no Brasil, inclusive, está ligado à pergunta
acima, pois, segundo Lane (2002), de um começo assistencialista, preocupado com a mera
presença do psicólogo no auxílio a populações carentes”, a Psicologia Social passou a se
perguntar acerca de sua utilidade no que diz respeito à emancipação das populações
oprimidas. De acordo com Lane (2002) e Góis (2003), um dos referenciais teórico-
metodológicos muito utilizados naquele período de surgimento da Psicologia Comunitária,
no Brasil, era o trabalho em educação popular desenvolvido por Paulo Freire.
No que pese a importância dos trabalhos inicias com Psicologia Comunitária, a
partir de Freire, o havia uma compreensão clara da relação entre as condições materiais
da vida cotidiana e o desenvolvimento do psiquismo. Em relação à utilização do termo
42
“conscientização”, podemos afirmar que se tratava de uma concepção muito mais política
do que necessariamente psicológica.
3.3.3. Martin-Baró: por uma concepção política na Psicologia
Um dos grandes defensores da utilização do termo “conscientização” para a
Psicologia é Martin-Baró, psicólogo espanhol, mas de intensa atividade em El Salvador.
Ignácio Martin-Baró viu no trabalho de Paulo Freire elementos de essencial contribuição
para a construção de uma Psicologia da Libertação (MARTIN-BARÓ, 1998). Este autor
define o papel do psicólogo como o de contribuir para a transformação da realidade de
opressão em que vive a maioria das pessoas da América Latina.
Segundo Martin-Baró (1996, p. 15), “à luz desta visão [da transformação da
realidade] da psicologia, pode-se afirmar que a conscientização constitui-se no horizonte
primordial do quefazer psicológico.”. O autor define conscientização a partir de Paulo
Freire e afirma se tratar do “(...) processo de transformação pessoal e social que
experimentam os oprimidos latino-americanos quando se alfabetizam em dialética com o
seu mundo” (MARTIN-BARÓ, p. 15 e 16).
O trabalho do psicólogo, na perspectiva acima, diria respeito a facilitar que as
pessoas pronunciem suas palavras e, para tanto, é preciso “que as pessoas assumam seu
destino, que tomem as rédeas de sua vida, o que lhes exige superar a falsa consciência e
atingir um saber crítico sobre si mesmas, sobre seu mundo e sobre sua inserção nesse
mundo.” (MARTIN-BARÓ, 1996, p. 16). Dessa forma, o horizonte ético sobre o qual se
funda a Psicologia, na América Latina, não poderia ser outro que não o da libertação.
Vale lembrar que o período em que Martin-Baró produziu seus trabalhos, décadas
de 1970 e 1980, foi marcado por uma efervescência das discussões em torno do papel das
Ciências Humanas ante as desigualdades que constituem a América Latina. Portanto, assim
como no Brasil, podemos perceber em Silvia Lane (1995; 2002) alguém que chamou
atenção sobre a necessária mudança de perspectiva da Psicologia no Brasil, podemos dizer
que Martin-Baró (1996; 1998), em sua produção, relata, peremptoriamente, a
impossibilidade de a produção dessa ciência em toda a região latino-americana passar
incólume a respeito da imbricação realidade-constituição do psiquismo (BLANCO, 2001).
43
Lembramos esse fato para ressaltar a importância de seu trabalho, bem como a falta
de uma explicitação psíquica do funcionamento da conscientização. Era um período em que
se tornava necessário expor a descontextualização da Psicologia, no que pese um não-saber
ao certo o que colocar no lugar de uma tradição psicológica considerada
descontextualizada.
Blanco (2001), analisando a epistemologia da Psicologia Social na América Latina,
a partir da obra de Martin-Baró, situa a produção deste autor em um realismo crítico,
marcado por uma primazia da realidade, por uma necessidade de se historicizar o psiquismo
e pela inevitabilidade de comprometer-se. Isto implica uma visão de sujeito e de sociedade,
na qual o sujeito é histórico, com amplas possibilidades de utilizar o aparato histórico-
cultural de que dispõe, como também de criar outros a partir destes e modificar sua
realidade, conforme explicitamos quando versamos sobre a Teoria Histórico-Cultural da
Mente. A realidade, por sua vez, não é estática e deve contar com a participação daqueles
que a constituem; nesse sentido, a sociedade vislumbrada pelo realismo crítico de Martin-
Baró é, sobretudo, justa, com oportunidades para que este sujeito que permeia sua práxis
possa se desenvolver, o que significa mudança nas condições materiais deste
desenvolvimento.
Martin-Baró (1998) aposta na conscientização como processo fundamental na
atuação do psicólogo que almeja trabalhar a partir de seu realismo crítico, tomando de
Paulo Freire esta noção. A conscientização, segundo Martin-Baró (1998, p. 147), “não
consiste numa simples mudança de opinião sobre a realidade, numa mudança da
subjetividade individual que deixe intacta a situação objetiva: a conscientização supõe uma
mudança das pessoas no processo de mudar suas relações com o meio-ambiente e,
sobretudo com os demais.”
9
. É nesse sentido que Blanco (2001) afirma que a proposta de
Martin-Baró é sócio-histórica. A partir dessa perspectiva, o desenvolvimento pessoal não
prescinde, portanto, de mudanças nas estruturas sociais opressoras em que, por vezes, estão
inseridas as maiorias da América Latina. Da mesma forma que o contrário também se faz
verdadeiro, ou seja, não mudança objetiva do mundo, se não acontece uma implicação
afetiva do sujeito neste ato de transformação. A conscientização, portanto, não é apenas um
processo de conhecimento do mundo, mas de relação com ele, ou seja, envolve
9
Todas as traduções citadas nesse trabalho foram realizadas por nós.
44
sentimentos, conforme vemos mais adiante, na análise da entrevista realizada para este
estudo.
Apesar de chamar atenção à contextualização do fazer psicológico na América
Latina, Martin-Baró (1996; 1998) não explicita o significado disso em termos de processos
psíquicos. Não obstante as semelhanças e até mesmo de uma certa teoria de psiquismo
implícita ao realismo crítico de Martin-Baró, cabe aos estudiosos de sua produção realizar
essa associação. Blanco (2001) e Góis (2005), por exemplo, apontam a teoria de Vigotski e
seus colaboradores como uma grande interlocução para a compreensão deste processo.
3.4. Consciência, atividade comunitária e conscientização: uma articulação a partir da
Psicologia Comunitária
Estabelecer paralelos entre esses conceitos exige, de imediato, um cuidado
importante: o de saber que se tratam de conceitos produzidos em áreas díspares do
conhecimento e que, portanto, contêm as especificidades de cada uma dessas áreas.
Contudo, essa comparação pode ser iniciada a partir do reconhecimento de uma matriz
comum ao pensamento de Vigotski e seus colaboradores e ao de Paulo Freire e Martin-
Baró: o materialismo histórico-dialético. Em ambas as perspectivas, é possível encontrar
referências a Marx ou a autores de notória inspiração marxista (GÓIS, 2005; BLANCO,
2001; LEONTIEV, 1982).
Isto implica uma necessária imbricação, em ambas as teorias, entre realidade
material e subjetividade, pois adotar o materialismo histórico-dialético como fundamento
epistemológico para a construção de um pensamento traz consigo conseqüências éticas e
epistemológicas. No campo ético, significa deixar de lado qualquer concepção de
neutralidade em que possa ser pensada a construção do conhecimento, pois se reconhece
nesta uma exigência de vinculação direta com as questões do tempo e do lugar em que é
desenvolvida. Já no âmbito epistemológico, significa que “o pesquisador (...) deve ter
presente em seu estudo uma concepção dialética da realidade natural e social e do
pensamento, a materialidade dos fenômenos e que estes são possíveis de conhecer”
(TRIVIÑOS, 1987, p. 73).
45
A Psicologia Comunitária (GÓIS, 1994; 2003; 2005) tem forte incidência da Teoria
Histórico-Cultural da Mente em sua constituição. Contudo, devido até mesmo ao
desconhecimento inicial desta teoria, pois não havia, àquela época, acesso no Brasil às
obras de Vigotski e seus colaboradores, a concepção de consciência deste ramo da
Psicologia traz consigo algumas peculiaridades, em especial, a forte influência do trabalho
de Paulo Freire, a partir da noção de conscientização.
Por compreender a gênese do psiquismo de modo intersubjetivo é que Góis (2005,
p. 51) afirma que a Psicologia Comunitária objetiva “a construção do sujeito da
comunidade, mediante o aprofundamento da consciência [...] dos moradores com relação ao
seu modo de vida e ao modo de vida da comunidade”. Dessa forma, podemos ver que um
trabalho que tome a Psicologia Comunitária como base deve incidir diretamente na
construção da consciência dos moradores, portanto. em seus sentidos acerca da realidade
em que interagem (BARROS, 2007).
É a partir desse viés que Góis (1994, p. 86) propõe, como método da Psicologia
Comunitária, a análise e a vivência da atividade comunitária, “[...] isto é, do processo
interativo e coletivo pelo qual o indivíduo vivencia e interioriza a realidade do
lugar/comunidade, a transforma e aprofunda sua consciência de si e do mundo [...].”.
Uma das condições necessárias para que desenvolva um processo de
conscientização é o estabelecimento do diálogo (FREIRE, 1984b), o que traduz reconhecer
no outro a importância do direito de dizer a sua palavra, de modo que uma interação que
permite a participação de todos, em que cada um tem a possibilidade de escrever, de modo
coletivo, a história de todos.
Além de uma óbvia implicação ética o reconhecimento do outro –, o diálogo
parece mediar um processo psíquico no qual a percepção da realidade e o modo de agir
diante dela sofrem profundos impactos e merecem, sem dúvida, uma investigação mais
acurada. Góis (2005, p. 110) identifica esse processo psíquico como “(...) um mecanismo
de interiorização da realidade físico-social, em sua diversidade e mudança, e ao mesmo
tempo de expressão do indivíduo no mundo”. O autor, portanto, reconhece esse nexo
psíquico no processo de conscientização ancorado na concepção de psiquismo presente na
Teoria Histórico-Cultural da Mente, em suas noções de atividade e consciência.
46
Para uma melhor compreensão deste processo, retomemos a concepção de
psiquismo presente na Teoria Histórico-cultural da Mente, a partir de Luria, que afirma: “o
homem pode abstrair características isoladas, captar os profundos enlaces e relações em que
se encontram.” (LURIA, 1987, p. 12).
Ora, como podemos observar, adotar a noção de consciência exposta acima significa
admitir que o desenvolvimento dela (consciência) necessariamente envolve a superação de
uma apreensão natural da realidade. É dada ao homem a possibilidade de não apenas se
adaptar à realidade, pois ele pode se distanciar dela e deve, sobretudo, transformá-la. E o
que significa a conscientização, senão a superação de uma apreensão quase espontânea da
realidade?
Ao mesmo tempo, a partir de Leontiev (1978), Luria (2005) e Góis (2005), podemos
dizer que tal mudança não ocorre apenas mediante uma alteração no modo de se conceber a
realidade. Pela noção de atividade, sabemos que a metamorfose da consciência ocorre pela
via da interação com o mundo, de modo que esta interação reorganiza os modos de
apreensão da realidade.
Dessa forma, podemos compreender a conscientização, a consciência e a atividade
comunitária como fazendo parte de um único processo. Afinal, conforme expusemos
anteriormente, a partir da Teoria Histórico-Cultural da Mente (LEONTIEV,1978; 1982;
VIGOTSKI, 2001; 2004; LURIA, 1987), a interação com a realidade, através de suas
dimensões instrumental e comunicativa, produz mudanças na forma de o indivíduo se
relacionar consigo, com o outro e com o mundo, pois a atividade comunitária possui uma
função orientadora, juntamente com a internalização da linguagem, a partir da capacidade
desenvolvida historicamente de dar significado (LURIA, 1987; LEONTIEV, 1978; GÓIS,
1994; 2005).
Esse movimento dialético de mútua transformação ocorre num mundo de
significados, ou seja, sentidos compartilhados de maneira coletiva, dporque referirmo-
nos ao termo atividade e não uma mera ação sobre a realidade. É nesta mesma direção que
Valsiner e Van der Veer (1996, p. 247) afirmam que “as pessoas não apenas possuem
instrumentos mentais, elas também são possuídas por eles. Os meios culturais, a fala em
particular, não são externos à nossa mente, mas crescem dentro dela, criando, assim, uma
‘segunda natureza’.”.
47
A conscientização, por sua vez, possui, assim como a atividade comunitária, as
dimensões comunicativas e instrumentais. O aspecto instrumental da conscientização
acontece pelo fato de esta não prescindir da problematização em torno de palavras.
Definimos problematização como “gerar situações nas quais as pessoas se vêem forçadas a
revisar suas ações ou opiniões acerca dos fatos de sua vida diária vistos como normais,
convertidos por tal razão em habituais, ou percebidos como inevitáveis ao considerá-los
normas” (MONTERO, 2006, p. 231)
a palavra, vista por um prisma histórico-cultural, é aqui definida como
“significação produzida pela ‘práxis’, palavra cuja discursividade flui da historicidade
palavra viva e dinâmica, não categoria inerte exâmine. Palavra que diz e transforma o
mundo” (FIORI, 1981, p.15). O aspecto instrumental da conscientização manifesta-se na
elaboração de instrumentos que auxiliem na transformação da realidade, comissões de
mobilização e ação e confecção de instrumentos para uma manifestação pública, por
exemplo. O diálogo problematizador, portanto, parece criar uma ambiência propícia para
um desenvolvimento do ser humano na direção de seu reconhecimento como ser histórico
e, conseqüentemente, inacabado.
A compreensão da conscientização, como parte do desenvolvimento dos processos
psíquicos superiores (nas palavras de Vygotski), portanto, mediados pelas relações sociais,
é fundamental para que se possa compreender a especificidade desta perspectiva no
trabalho do psicólogo. Não é raro ouvirmos que o diferencial do psicólogo numa equipe
multiprofissional é a escuta, o que é muito pouco. Nossa formação clínica, sem dúvida,
favorece que tanto nós, como outros profissionais, esperemos isto, e a imagem que daí
advém é a de um “grande ouvido”.
Por outro lado, o compromisso social apenas não basta para o desenvolvimento de
um trabalho com Psicologia Comunitária. Pode, inclusive, ser um ponto de partida, mas
deve envolver a compreensão deste trabalho à luz de uma teoria psicológica, até mesmo
para que se possa diferenciar o militante do profissional de Psicologia. Para que não seja
apenas um psicólogo engajado, mas, sim, uma Psicologia que se apresente como ferramenta
para esse compromisso social. Vemos na Teoria Histórico-Cultural da Mente uma teoria de
enorme potencial para que possamos compreender os meandros do processo nomeado por
48
Martin-Baró e Paulo Freire de conscientização, em termos de desenvolvimento dos
processos psíquicos superiores.
Cientes de que tal afirmação merece uma investigação empírica e mais detalhada
acerca do processo de conscientização, assim como das mediações que lhe sustentam,
decidimos realizar esta pesquisa. O que a alicerça na trajetória dessa articulação é o
pensamento de Góis (2005, p. 118), o qual analisando as concepções de consciência em
Vygotski e Paulo Freire, vemos que entre elas não uma oposição, mas uma ampliação e
adequação às questões do desenvolvimento sócio-econômico e da educação, especialmente
nos países pobres”.
E é nesse sentido que as metodologias de trabalho da Psicologia Comunitária
privilegiam o fortalecimento de atividades comunitárias, como expusemos, e coloca ao
profissional o desafio de imergir no cotidiano e compreender de que modo este atua na
produção do psiquismo dos moradores. Conforme Barros (2006, p. 24), “[...] em processos
interativos existentes em tecidos comunitários, a mediação simbólica deflagrada a partir da
interlocução, por exemplo, de um agente externo, como o psicólogo, com os diversos atores
comunitários pode, desde que dialógica, ampliar esse campo de construção contínua [da
consciência] que é admissível de se estabelecer em relação”.
49
4. CONSTRUÇÃO DO PERCURSO METODOLÓGICO
Falar sobre metodologia é versar acerca dos caminhos a percorrer numa pesquisa.
Esta tarefa nada fácil e de fundamental importância cumpre um papel decisivo no
trabalho de pesquisa, pois, uma vez postos o problema, os conceitos e as teorias que o
baseiam, é chegada a hora de se apresentar como tal problema será investigado e
interpretado por nós.
Tal investigação e interpretação requerem muito cuidado, abertura e humildade.
Assim, é muito importante que possamos, de fato, compreender o problema para que haja
uma investigação adequada deste. Nesse sentido, fazem parte do contexto de compreensão
do problema, além das teorias expostas até aqui, uma epistemologia, o tipo de pesquisa e as
metodologias de coleta e análise.
Dessa forma, esta pesquisa se ancora epistemologicamente na perspectiva do
materialismo histórico-dialético e possuiu um caráter qualitativo, por meio das
metodologias da observação-participante com enfoque etnográfico a qual se mostra útil
ao estudo das interações sociais e da entrevista semi-estruturada. No que diz respeito à
análise dos dados, lançamos mão da análise de conteúdo que baliza o estudo dos modos
de participação e dos tipos de consciência.
4. 1. Materialismo histórico-dialético
Adotar o materialismo histórico-dialético como fundamento epistemológico para
este projeto traz consigo implicações éticas e epistemológicas. No campo ético, significa
deixar de lado qualquer concepção de neutralidade em que possa ser pensada a construção
do conhecimento, pois se reconhece nesta construção uma exigência de vinculação direta
com as questões do tempo e do lugar em que é desenvolvida. no âmbito epistemológico,
significa que “o pesquisador (...) deve ter presente em seu estudo uma concepção dialética
da realidade natural e social e do pensamento, a materialidade dos fenômenos e que estes
são possíveis de conhecer” (TRIVIÑOS, 1987, p. 73).
As decorrências acima justificam-se pelo próprio significado de cada um dos termos
que compõem o nome dessa perspectiva. Segundo Triviños (1987, p. 50), o termo
50
“materialismo” compreende que “(...) a matéria é o princípio primordial e que o espírito
seria o aspecto secundário”. Isto implica que a realidade existe independentemente da
existência de uma consciência.
o termo “materialismo dialético” especifica filosoficamente esta posição, pois,
neste, “(...) o pensar filosófico tem como propósito fundamental o estudo das leis mais
gerais que regem a natureza, a sociedade e o pensamento e, como a realidade objetiva, se
reflete na consciência” (TRIVIÑOS, 1987, p. 51). A partir desta perspectiva, portanto,
um rompimento da cisão objetividade-subjetividade, uma vez que a última está imbricada a
toda uma trama concreta de relações.
A palavra “histórico”, por sua vez, denota o estudo das “(...) leis sociológicas que
caracterizam a vida em sociedade, de sua evolução histórica e da prática social dos homens,
no desenvolvimento da humanidade” (TRIVIÑOS, 1987, p. 51). Dessa forma, a
interpretação dos fenômenos sociais passa a ser vista de modo diverso da interpretação
idealista, pois as formações socioeconômicas e as relações de produção são tomadas como
fundamentos da sociedade. Em nosso caso, são fundamentais para a compreensão da
consciência as relações que o sujeito da pesquisa estabelece no seu cotidiano, bem como
suas atividades e o modo como ele as significa.
Essa contextualização filosófica se torna necessária para que possamos compreender
que as análises que foram realizadas neste trabalho carregam uma compreensão muito
específica de sociedade e dos fenômenos psíquicos. Esta percepção é histórica e processual,
o que significa que toda análise teórica necessariamente envolveu uma aceitação dos
fenômenos como vinculados à conjuntura da sociedade e de que essa conjuntura, muitas
vezes de desigualdade, é passível de transformação.
4. 2. Abordagem qualitativa
a escolha de um caráter qualitativo, da pesquisa, de acordo com Richardson
(1999, p. 79), justifica-se quando o pesquisador “não pretende numerar ou medir unidades
ou categorias homogêneas”. Além disso, “a análise qualitativa tem como objeto situações
complexas ou estritamente particulares. Os estudos que [a] empregam (...) podem (...)
compreender (...) em maior nível de profundidade o entendimento das particularidades do
51
comportamento dos indivíduos” (RICHARDSON, 1999, p. 80). O autor também indica este
tipo de abordagem como uma maneira apropriada para o entendimento da gênese de um
fenômeno social.
Uma vez que tentamos entender um processo, qual seja, o modo pelo qual a
participação de uma atividade comunitária influencia no processo de conscientização de um
participante deste tipo de atividade, tal abordagem nos pareceu a mais adequada. Segundo
Triviños (1987), a pesquisa qualitativa possui cinco características: o ambiente natural é a
fonte direta da produção do conhecimento; o tipo de pesquisa é descritivo; o foco é no
processo e não apenas nos resultados e produtos; a análise dos dados costuma ser indutiva e
há uma preocupação primordial com o significado dos fenômenos investigados.
A afirmação de que o ambiente natural é a fonte da produção do conhecimento
repercutiu nesta produção na forma de uma constante contextualização desta e numa
atitude, por nossa parte, no sentido de deixar que os fatos fossem muito mais relevantes que
qualquer preconceito. Assim, foi-nos primordial uma interação constante com o cotidiano
da instituição onde foi realizada a pesquisa, bem como um total de sete visitas aos locais
em que se realizava a atividade comunitária aqui pesquisada, com registros das visitas em
diários de campo (anexo A).
o caráter descritivo da pesquisa qualitativa significa que “(...) a interpretação dos
resultados surge como a totalidade de uma especulação que tem como base a percepção de
um fenômeno num contexto” (TRIVIÑOS, 1987, p. 128). Focar a pesquisa no processo e
não apenas nos resultados significa ir para além de dados, pois se procura compreender o
que estes indicam e suas possíveis correlações com variáveis histórico-culturais. Esta
característica, aliás, não é apenas da pesquisa qualitativa, senão que também deve fazer
parte de toda pesquisa quantitativa, pois os números não são um fim e sim um meio para
que se possa, daí, produzir interpretações e correlações.
A indução, que caracteriza o modo qualitativo de análise dos dados, requer uma
atitude, por parte do investigador, na qual se parte do fenômeno social e não de
especulações a priori sobre este. A teoria é constantemente colocada à prova com base na
realidade material.
a preocupação essencial com o significado incide sobre a pesquisa a partir de
uma atenção a que pressupostos fundamentam a vida das pessoas, ou seja, aspectos como
52
os hábitos, os costumes, a cultura, dentre outros, são tomados como construções humanas e
históricas. Dessa forma, trata-se “(...) de explicar e compreender o desenvolvimento da vida
humana e de seus diferentes significados no devir dos diversos meios culturais”
(TRIVIÑOS, 1987, p. 130).
O primeiro aspecto deste estudo se refere à inserção numa instituição, à escolha do
sujeito participante da pesquisa e ao acompanhamento de uma atividade comunitária
escolhida, desenvolvida por um membro do Projeto de Educação em Células Cooperativas
(PRECE). Desse modo, esta faceta de nossa investigação disse respeito a um maior
conhecimento da instituição e de seus membros, assim como a uma busca por atividades
desenvolvidas por estes e que pudessem ser consideradas comunitárias
10
, para posterior
acompanhamento de uma delas.
4. 3 O CONTEXTO: O MUNICÍPIO DE PENTECOSTE E O PROJETO DE
EDUCAÇÃO EM CÉLULAS COOPERATIVAS (PRECE)
A pesquisa foi realizada no município de Pentecoste, Interior do Ceará, mais
especificamente, no Projeto de Educação em Células Cooperativas (PRECE), projeto de
extensão da Universidade Federal do Ceará. O PRECE é oriundo daquele município e
desenvolve atividades que podem ser identificadas como “atividades comunitárias” (GÓIS,
2005).
Pentecoste localiza-se no norte do Estado do Ceará, estando a 86 quilômetros da
Capital cearense, Fortaleza. Geograficamente, estabelece limites com alguns municípios:
“ao norte, São Gonçalo do Amarante e Umirim; ao sul, Apuiarés, Caridade e Paramoti; a
leste, Maranguape e Caucaia; e a oeste, Uruburetama e Itapajé” (FARIAS, 2006, p. 31).
Os primeiros registros de habitação no território de Pentecoste datam de 1860,
quando um fazendeiro, do município de Canindé e que residia em Acaraú, construiu uma
casa onde fixou residência e, a partir de então, atraiu a vinda de outros moradores que
edificaram casas e contribuíram para a construção de um arraial (PENTECOSTE, 2007).
Segundo Farias (2006), o que atraía estes moradores eram suas terras férteis, que ficavam
10
A definição de atividade comunitária segue a mesma já apresentada no capítulo anterior, em que utilizamos
Góis (2005).
53
às margens dos rios Canindé, Curu e Capitão Mor.
Para Farias (2006), o primeiro nome que esse município recebeu foi Barra da
Conceição (ou Conceição da Barra), mas, por conta da primeira missa ali realizada, no dia 4
de junho de 1864 o Dia de Pentecostes, de acordo com o calendário católico –, o pároco
responsável pela celebração sugeriu que, em virtude daquela data, a cidade recebesse o
nome de Pentecostes. Dado um erro de impressão quando do registro oficial do nome do
município, foi omitido o “s” da palavra Pentecostes, daí por que o município se chamar
Pentecoste.
De acordo com dados do Censo 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2007), a população do município é de 32.600 habitantes,
divididos em população urbana (19.212) e população rural (13.388). De acordo com Farias
(2006), apesar das diversas atividades econômicas desenvolvidas no município, a
agricultura emprega 70% da mão-de-obra economicamente ativa. Destacam-se, nesta
produção, “milho, feijão, mandioca, banana e coco em áreas irrigadas, próximas à faixa do
rio Curu perenizado e do açude Pereira de Miranda” (PENTECOSTE, 2007).
Como em muitos locais do Brasil, Pentecoste caracteriza-se por uma grande
concentração de renda e terras nas mãos de poucas pessoas, em contraposição ao fato de
muitos sequer possuírem terra suficiente para sua própria subsistência. Tal fato vem
acompanhado de uma forte marca de coronelismo, o que leva a uma grande manipulação da
população por parte dos políticos (FARIAS, 2006). Como em outros locais, contudo, o
povo mobiliza-se em torno de atividades que visam a uma maior autonomia sua.
Esta pesquisa foi realizada no PRECE, projeto que goza de grande credibilidade no
município de Pentecoste
11
. Seu “principal objetivo [é] promover o desenvolvimento
sustentável de comunidades de baixa renda, através da educação cooperativa e solidária,
utilizando os próprios estudantes como atores do processo” (FARIAS, 2006, p. 33).
Atualmente, o PRECE desenvolve atividades nas cidades de Pentecoste, Apuiarés,
Paracuru, Paramoti, General Sampaio, Umirim e Fortaleza.
Por conta da dificuldade de acesso à educação, que se verificava no inicio dos anos
1990, por iniciativa do professor Manoel Andrade, criou-se o PRECE, com o objetivo de
11
Nas comemorações do aniversário do município, ocorrida em 27 de outubro de 2007, havia entre 2500 a
3000 pessoas no Ginásio Esportivo Carneirão, na sede do município, o que mostra a grande repercussão que o
projeto tem no município.
54
“(...) motivar jovens e adultos a investir em seus estudos como forma de enfrentamento da
realidade desfavorável que ali imperava” (RODRIGUES, 2006, p. 70). O trabalho
começou com quatro jovens os quais dispunham de um espaço que anteriormente
funcionava como casa de fazer farinha e que, sem a presença de um professor, passaram a
estudar em grupo. Nesse processo, eram privilegiados os momentos de interação entre os
jovens, que sempre tendiam a um questionamento acerca de uma realidade descrita por
Rodrigues (2006, p. 71) como “uma realidade na qual não se tinha possibilidade de escolha.
Uma realidade opressora”.
Após dois anos de muita dedicação e compromisso, por parte dos membros do
grupo - os quais, segundo relato de um deles (RODRIGUES, 2006), eram vistos como
desocupados que não queriam realizar trabalhos pesados - , o projeto conseguiu sua
primeira aprovação no vestibular, de um atual
12
número total de cento e quarenta e duas
(RODRIGUES, 2007). Segundo Rodrigues (2007), isto deu credibilidade ao projeto e
incentivou a maior participação de outros jovens, de modo que uma realidade que até então
era posta como possuidora de poucas alternativas passou a apresentar outras possibilidades
para aqueles que nela viviam.
Devido ao aumento da procura pelo projeto, foi necessário sistematizar uma
metodologia de aprendizagem. Desse modo, os participantes organizaram-se em:
“graduados, universitários; veteranos, compreendidos como aqueles que ainda não haviam
chegado à universidade, mas que participam do projeto (...) um ano; e novatos (...)”
(RODRIGUES, 2006 p. 72). Vale ressaltar que os universitários aprovados pelo PRECE
costumam retornar ao projeto no fim de semana, em diversas comunidades espalhadas pelo
municípios em que atuam, para colaborar com seus conhecimentos na perpetuação desta
experiência. Por sinal, tal experiência, atualmente, envolve aproximadamente 600
estudantes, contando com a colaboração de 90 egressos universitários na Universidade
Federal do Ceará (UFC) e de profissionais que se graduaram e continuam cooperando
com o projeto, em número de 10, além de dois que cursam mestrado e um ingresso em um
curso de doutorado.
12
Dado de 2006.
55
Os estudantes e os colaboradores agrupam-se em células de estudo, de acordo com
seu vel de conhecimento. Cada célula possui de cinco a sete membros contando com
um ou mais monitor e dura em média três horas diárias de estudos. Os monitores, que
devem ter pelo menos um ano de PRECE e afinidade com a área do conhecimento estudada
pela célula, têm a função de estimular a participação e discussões grupais de modo
horizontal e dialógico. Nos fins de semana, os monitores e veteranos participam de
encontros de estudos coordenados por integrantes graduados e universitários, nos sete
núcleos de atuação do PRECE, no município de Pentecoste (RODRIGUES, 2006; 2007).
Segundo Farias (2006), a principal missão dessa organização é “colaborar com a
formação de sujeitos críticos reflexivos nos diferentes níveis de conhecimento (...), capazes
de realizar o desenvolvimento educacional, científico, econômico, político e cultural de
comunidades de baixa renda de forma sustentável” (p. 33). Dessa forma, nas Escolas
Populares Cooperativas (EPCs), como são conhecidos os núcleos do PRECE, além de uma
educação que facilite o acesso dos moradores jovens à Universidade, busca-se articular a
atuação do “precista”, modo como são chamados os participantes do projeto, em suas
comunidades de origem “(...) no sentido de colaborar e ou aprender com o processo de
organização e participação comunitária” (RODRIGUES, 2006, p. 74).
O fato de o PRECE dar atenção não apenas ao acesso à Universidade, mas também
ao fortalecimento da vinculação entre o “precistae sua comunidade de origem, é muito
presente nas discussões do grupo, conforme pudemos perceber nos diversos momentos de
interação com este. Nascimento, nosso entrevistado, mostra-nos isto, quando afirma: Pra
mim, cara, passar no vestibular significava além de eu entrar na universidade, significava
também, cara, sabe, ter acesso a um conhecimento, entendeu, que eu pudesse ajudar a
minha comunidade, que eu pudesse me preparar pra fazer os trabalhos que eu tinha feito
anteriormente com... assim... com menos, sei lá, menos preparo, entendeu, então eu achava
que vir pra universidade significava isso, é adquirir mais conhecimento pra fazer aquilo
que eu tinha tentado fazer com melhor qualidade.(R.172, L.1103-1110). Assim, essa
instituição se mostrou bastante frutífera para que pudéssemos buscar o desenvolvimento de
atividades comunitárias com seus membros.
4.4. A coleta de dados
56
Para o intuito da pesquisa, foi preciso uma maior convivência com o cotidiano que
atravessava o contexto em que o PRECE funcionava. Pretendíamos, assim, compreender as
interações sociais que a perpassavam e engendravam, bem como conhecer quais atividades
comunitárias seus membros desenvolviam. Isto se justifica, de acordo com Mattos (2005),
pelo fato de que, “na interação social, percebemos outras pessoas e situações sociais e,
baseando-nos nelas, elaboramos idéias sobre o que é esperado, e os valores, crenças e
atitudes que a ela se aplicam”.
Dessa forma, realizamos o acompanhamento de encontros periódicos do Conselho
das Escolas Populares Cooperativas (EPCs). Com isto, intentávamos pesquisar de que
modo os “precistas” costumavam participar de suas reuniões, se de modo mais ativo ou
menos ativo de acordo com a definição de Góis (2005), explicitada alhures. A partir daí,
poderíamos escolher um membro do projeto que desenvolvesse uma atividade comunitária.
O momento seguinte consistiu, então, no acompanhamento da atividade
desenvolvida pelo “precista” escolhido para participar da pesquisa. Para tanto, fizemos uma
série de visitas aos locais em que a atividade era realizada, no intuito de examinarmos suas
dimensões instrumental e comunicativa (GÓIS, 2005), bem como o significado para as
pessoas que dela participavam, além de uma análise do modo de nosso entrevistado
participar dessas atividades.
Um terceiro foi a realização de entrevistas com um “precista” que desenvolvesse a
atividade comunitária investigada, no intuito de nos aproximar dos sentidos que este
atribuía a ela (LURIA, 1987; VIGOTSKI, 2001), como também de acompanhar seu
processo de conscientização nas diversas atividades que desenvolveu ao longo da vida
(FREIRE, 1984a). Uma vez que temos na Teoria Histórico-Cultural um dos fundamentos
para esta pesquisa, ressaltamos a importância da entrevista, por compreendermos, dentro
dessaperspectiva, que (...) a fala, construída na relação com a história e a cultura, e
expressa pelo sujeito, corresponde à maneira como este é capaz de expressar/codificar,
neste momento específico, as vivências que se processam em sua subjetividade” (AGUIAR,
2001, p. 131).
A elaboração desta entrevista, aqui definida de acordo com Richardson, (1985, p.
161), segundo a qual esta é “[...] o ato de perceber realizado entre duas pessoas”, efetivou-
se a partir de um roteiro de entrevista (anexo B) construído com base na observação da
57
atividade e no manancial teórico que guiou nosso estudo, ancorando-se na técnica da
entrevista dirigida explicitada mais adiante. Vale ressaltar que este roteiro passou pela
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFC (apêndice 1) e por um pré-teste, no
qual foi ajustado de acordo com as necessidades apontadas por sua aplicação.
O pré-teste foi realizado no mês de novembro de 2007, com um estudante do
PRECE que participava de modo bastante ativo das reuniões do Conselho de EPCs, grupo
composto pelos coordenadores das diversas EPCs, que se encontra semanalmente em
Fortaleza e do qual obtivemos a permissão de participar durante todo o período da pesquisa.
Além disso, o participante do pré-teste desenvolvia uma atividade que, embora não a
tenhamos considerado comunitária, envolvia um grupo de garotos em sua comunidade,
semanalmente, conforme detalhamos no capítulo seguinte desta dissertação.
Essa entrevista durou cerca de uma hora e meia e, por ela, pudemos rever as
questões que guiariam a entrevista a ser analisada. Assim, questões que, anteriormente,
pareciam-nos relevantes, por não termos contato com o campo, foram excluídas ou
passaram por modificações. Assim como, por outro lado, questões até então inexistentes
foram acrescentadas, tomando como referência os elementos que a entrevista do pré-teste
nos forneceu
13
.
A inserção na instituição e o acompanhamento da atividade comunitária, ambos
referidos alhures, tiveram inspiração etnográfica. Para Mattos (2005), a etnografia
compreende o estudo, pela observação direta e por um período de tempo,
das formas costumeiras de viver de um grupo particular de pessoas: um
grupo de pessoas associadas de alguma maneira, uma unidade social
representativa para estudo, seja ela formada por poucos ou muitos
elementos.
Desta forma, procuramos nos aproximar do cotidiano da comunidade, bem como da
atividade comunitária escolhida, para melhor entender como a comunidade e a atividade se
articulam entre si.
Nossa aproximação do cotidiano se justifica por nossa concordância com a posição
de Triviños (1987, p.122), na qual “as tentativas de compreender a conduta humana isolada
do contexto no qual se manifesta criam situações artificiais que falsificam a realidade,
13
O modo como escolhemos o participante da pesquisa é detalhado no capítulo a seguir, quando relatamos
nossas visitas e todo o procedimento adotado no decorrer delas, até se chegar à análise da entrevista que nos
foi concedida.
58
levam a engano, a elaborar postulados não-adequados, a interpretações equivocadas”.
Assim , o fato de nos inserirmos na instituição e participarmos da atividade comunitária
investigada coaduna-se com a perspectiva materialista-histórica-dialética apresentada,
que reconhece a existência material do mundo, independentemente de uma consciência para
apreendê-lo e, portanto, exige uma relação de proximidade com essa realidade.
A coleta de dados teve na observação-participante uma de suas técnicas. Esta, de
acordo com Richardson (1999, 261),
é recomendad[a] especialmente para estudos de grupos e comunidades. O
observador participante tem mais condições de compreender os hábitos,
atitudes, interesses, relações pessoais e características da vida diária da
comunidade do que o observador não participante.
Segundo Montero (2006), este tipo de observação tem como objetivos: obter uma
visão mais ampla do fenômeno estudado, descobrir os sentidos, perspectivas, valores e
normas que atravessam os atores sociais, na construção de sua realidade, e ampliar as
possibilidades de acesso ao posicionamento e significados de pessoas e grupos.
Ainda de acordo com Montero (2006, p. 208), “a parte mais difícil da OP
14
reside
no registro de dados, o qual pode ser feito levando anotações e diários de campo, ou bem
pode ser gravado pela pessoa que investiga e relata observado”. Vale ressaltar que a autora
diferencia anotação de campo de diário de campo. O primeiro tipo de registro diz respeito a
um tipo mais abreviado e informal, pois não segue “um plano preestabelecido [...], não se
orienta por um princípio e um fim” (2006, p. 303). O diário de campo diferencia-se das
anotações de campo, conforme Montero (2006), devido a sua extensão, que é maior, por
não necessariamente seguir uma ordem cronológica, por poder chegar a ser publicado o
que exige mais sistematização –, pelo fato de combinar rigorosas observações de campo
com análises e interpretações, por servir como relato da construção do processo teórico-
metodológico do pesquisador e por ser escrito mais ao fim do dia de trabalhos
investigativos, quando se pode realizar todo um apanhado do que foi observado e registrado
de diversas maneiras (anexo A).
Em nosso caso, lançamos mão do diário de campo por percebermos que nos
auxiliaria na compreensão da atividade comunitária em questão. Assim, ao final de cada
14
Trata-se da maneira abreviada como a autora se refere à observação participante.
59
visita, registramos no diário de campo as impressões dos encontros que compunham a
atividade comunitária, assim como as descrições de como eles aconteciam, dando ênfase à
participação de nosso entrevistado.
Já no que concerne às entrevistas, decidimos pela técnica de história de vida.
Segundo Spindola e Santos (2003), o que interessa nesta técnica é a percepção do próprio
sujeito, nomeado por Haguette (2005) de ator social, que narra a história. “Assim, o método
da história (...) de vida tem como conseqüência tirar o pesquisador de seu pedestal de ‘dono
do saber’ e ouvir o que o sujeito tem a dizer sobre ele mesmo: o que ele acredita que seja
importante sobre sua vida” (SPINDOLA; SANTOS, 2003, p. 121). Um outro aspecto
relevante na história de vida é o fato de esta técnica enfatizar a dimensão processual dos
fenômenos investigados. Segundo Haguette (2005, p. 82), a história de vida “(...) pode,
mais do que qualquer cnica, exceto talvez a observação participante, dar sentido à noção
de ‘processo’”. Em nosso caso, interessava-nos o processo de transitividade da consciência,
ou seja, a conscientização, conforme descrito anteriormente.
A estruturação dessas entrevistas teve com substrato os registros feitos durante a
observação, bem como as teorias e os conceitos que embasaram nosso estudo. Isto se
justifica pelo fato de esta entrevista partir “(...) de certos questionamentos básicos, apoiados
em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem um amplo
campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se
recebem as respostas do informante” (TRIVIÑOS, 1987, p. 146).
4.5. LEITURA DO MUNDO DO SUJEITO
Como método de análise das entrevistas, utilizamos a análise de conteúdo. De
acordo com Bardin (1979 apud Richardson, 1999, p.223),
a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das
comunicações visando obter (sic), através de procedimentos sistemáticos
e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (...) que
permitam inferir conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens.
60
Efetuamos um exame temático dos dados coletados. Esta “(...) funciona por
operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo
reagrupamentos analógicos” (BARDIN, 1977, p. 153). Conforme Richardson (1999, p.
243), a operacionalização desta técnica consiste em “isolar temas de um texto e extrair
partes utilizáveis, de acordo com o problema pesquisado, para permitir sua comparação
com outros textos escolhidos da mesma maneira”.
A categorização dos dados contou com as seguintes fases: 1) leitura flutuante da
entrevista; 2) codificação da entrevista, que consistiu na enumeração de todas as linhas,
perguntas e respostas da entrevista, para otimizar consultas ao material coletado; 3)
estabelecimento de dimensões analíticas, com base nos objetivos específicos da pesquisa e
nas leituras flutuantes; 4) destaque das unidades de sentido no discurso do entrevistado; as
unidades de sentido são passagens que resumem o raciocínio e as idéias do sujeito da
pesquisa em torno dos assuntos relacionados às dimensões estabelecidas; 5) criação de
categorias de análise, com fundamento nas unidades de sentido; 6) confecção de quadros
temáticos que auxiliassem na organização lógica do material coletado na entrevista,
agregando, respectivamente, as dimensões, as categorias e as unidades de sentido
codificadas (BARROS, 2007).
Dessa forma, tendo como ponte de partida essa metodologia, buscamos os temas
centrais presentes nos dados apresentados na entrevista, a fim de compreender os sentidos
produzidos pelo entrevistado sobre as atividades comunitárias de que participou, assim
como seu modo de participar, e a conseqüente mutação em seu posicionamento diante da
realidade. Construímos, então, quadros temáticos para a análise da entrevista realizada,
conforme o seguinte exemplo:
TEMA 2 – TRABALHO
TEMAS SUBTEMAS Unidades de Sentido
2.Trabalho
2.1. Prazer em
acompanhar o pai
Eu comecei a pescar com meu pai muito cedo. Eu
achava muito interessante fazer esses trabalhos com
ele. Lógico, que era o referencial que eu tinha, era
agricultor, pescador. Então, ir pra roça com ele, era
algo que eu achava maravilhoso (R. 6, L. 30-32).
Quando eu era pequeno, eu tinha cinco a dez anos
de idade, eu não fazia quase nada. Eu ia
61
acompanhar ele mesmo, ficava matando os
insetos e tal, né? (R.7, L.36-38).
2.2.Trabalho pesado
Eu me lembro de algumas atividades, que eu
achava, assim, bastante, sufocante...que eu até
contei no meu memorial...que era quando a gente
roçava capoeira de algodão (R. 7, L.41-43).
Muitas vezes, é necessário arrancar o mato com a
mão. Eu fiz muito isso quando era criança. Aliás, eu
trabalhei mesmo na roça dos quatro até os quinze
anos de idade... (R. 9, L. 56-58).
Logo naquele período da adolescência, eu me sentia
meio forçado pra trabalhar na roça... mas, quando
eu fui crescendo, eu via que era uma forma de
ajudar meu pai, ele precisava do trabalho familiar
também, né (R. 11, L. 62-64).
O trabalho era um trabalho pesado, um trabalho
sem...lógico, que tinha aquela coisa...o sol quente,
muito suor, tá entendendo? (R. 13, L. 71-73).
Um dos trabalhos mais pesados que eu fiz na minha
vida foi brocar, foi, nesse período aí, de quinze a
dezoito anos. Brocar e... e... arrancar toco. Em me
lembro que eu fiz uma empeleita mais o meu
cunhado, pô... Era um negócio impressionante.
(R.55, L.305-308).
Eu lembro que você derrubava o pau, mas queria
que ele ficasse em pé. Arranca a raiz dele, mas
queria que ele ficasse em pé fazendo sombra, apesar
de não ter folhas, né? (R. 57, L. 314-316)
À noite você estava com os lábios rachados e seu
corpo parecia que estava todo...todo...todo dolorido.
Chegava a você ter um quadro febril no final da
tarde. Era um negócio, assim, desumano mesmo.
Mas era, principalmente, no período seco, era a
única forma de você conseguir algum dinheiro, né?
(R.59, L.326-330).
Exemplo do quadro temático “Trabalho”, com seus respectivos subtemas.
Assim, para efeito de exame, cada tema presente na transcrição da entrevista (anexo
C) foi dividido em subtemas e unidades de análises, ou seja, passagens presentes no
discurso do sujeito que nos dessem uma clara dimensão do sentido que aquele
tema/subtema tinha para si. Cada resposta e cada pergunta foram numeradas, de modo que,
quando da análise dos dados, é feita referência a uma fala do sujeito da pesquisa, esta
aparece na forma de “R”, acompanhada por um número que corresponde ao número de
62
respostas dadas pelo sujeito e o intervalo de linhas da entrevista a que se refere a unidade
de análise citada. Desse modo por exemplo, uma fala de Nascimento que corresponda à
resposta número 249, e que esteja presente no intervalo de linhas 1648 a 1651, vai aparecer
da seguinte forma: R.249, L.1648-1651, conforme Quadro acima.
Para a construção do capítulo que se segue a este, construímos o seguinte Quadro:
Objetivo
específico
Método de
coleta de dados
Instrumento
utilizado para
coleta
Conceito-chave
a ser trabalhado
Identificar
atividades
comunitárias
realizadas no
PRECE.
Diário de
campo
Observação
Participante
Atividade
Comunitária
Formas de
participar dos
“precistas”
Entrevista e
diário de campo
Entrevista
Observação
Participante
Participação
Relacionar
modo de
participar de
atividades
comunitárias à
conscientização
Entrevista e
diário de campo
Entrevista
Observação
Participante
Conscientização
Quadro construído para que cada objetivo específico pudesse ser cumprido
Assim, cada tópico apresentado no capítulo a seguir é abordado, de modo a que
corresponda a cada um dos objetivos específicos propostos para este trabalho. A cada
objetivo específico corresponde uma forma de coleta de dados, bem como um instrumento
e um conceito a ser analisado, conforme Quadro acima.
Compreendemos que os discursos precisaram de articulação “com o processo
histórico que [os] constitui (...) para sim explicitar como o sujeito transformou o social
em psicológico e assim constituiu seus sentidos” (AGUIAR, 2001, p. 137). Isto justifica sua
utilização juntamente com os registros de campo efetuados da observação- participante.
Dessa forma, quando da comparação dos dados obtidos na entrevista dirigida (anexo C) e
nos encontros periódicos para realização da atividade comunitária (anexo A), objetivamos
entender como o modo de participação em atividades comunitárias atua no processo de
conscientização.
63
A devolutiva dessa pesquisa se dará a partir de uma oficina a ser ainda programada
e agendada, juntamente com a coordenação do PRECE, em uma reunião do Conselho de
EPCs, da qual pudemos participar durante aproximadamente dois meses, de forma que as
reflexões produzidas nesta pesquisa não apenas sejam apresentadas, mas que possam ser
debatidas por todos os que estiverem presentes. Além disso, no que diz respeito à
socialização acadêmica, uma adaptação do primeiro capítulo deste trabalho será publicada
ainda nesse ano (2008), em livro cujo título é “Estado e políticas públicas”, da Série
Percurso, da Editora da UFC, organizado pela professora Elza Maria Franco Braga.
Enviamos também uma versão adaptada do segundo capítulo desta pesquisa à Revista
Psicologia Argumento, vinculada à PUC-PR, que foi aceita para publicação no v. 26,
número 52, referente a jan./mar. de 2008.
64
5. O PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO DE NASCIMENTO A PARTIR DE
SUA ATIVIDADE E SUAS SIGNIFICAÇÕES
Neste capítulo, abordamos o processo de conscientização de Nascimento, escolhido
para ser entrevistado para a pesquisa, tomando como base as atividades que desenvolveu ao
longo de sua história de vida, conforme metodologia exposta no capítulo anterior. Neste
momento, tentamos nos esforçar para que a práxis possa se fazer presente, ao mesmo tempo
em que o discurso de nosso entrevistado deve ser preservado, no sentido de não tentarmos
encaixá-lo em nossas teorias.
Para tanto, em princípio, a partir dos diários de campo que produzimos ao longo de
sete visitas e de nossa inserção no PRECE, fazemos um breve relato de como se deu nossa
inserção no projeto. Isto se justifica pelo fato de querermos deixar claro como ocorreram a
escolha do sujeito desta pesquisa e a atividade que ele desenvolveu como atividade a ser
por nós investigada.
Em seguida, analisamos a participação realizada na atividade investigada.
Destacamos, em especial, a participação de Nascimento, sujeito de nossa entrevista,
caracterizado logo em seguida. Adotamos por base o tipo de participação, a importância das
decisões que o grupo toma, sua pertinência como atividade comunitária e outros fatores que
compõem o fenômeno da participação, descrito no primeiro capítulo deste estudo.
Na seqüência, fizemos uma caracterização de Nascimento, pessoa que dá vida a este
trabalho a partir de seu discurso. Pensamos ser necessário este momento, devido à análise
do modo de participação não abordar diversos outros aspectos significativos e, portanto,
não deixar claro quem é essa pessoa que nos fala.
Por fim, apresentamos uma análise temática da entrevista que realizamos com
Nascimento. Nesse momento, de acordo com essa entrevista, procuramos fazer como nos
propõe Vigotski (2004), ou seja, um estudo semiótico, e, portanto, de produção de sentido,
de nosso entrevistado, articulando com seu modo de participação em atividades
comunitárias.
65
5.1. Conhecendo o cotidiano do PRECE para identificar espaços em que se realizem
atividades comunitárias.
Quando fomos a campo, percebemos que o objetivo acima deveria ser modificado.
Em princípio, tratava-se de conhecer o modo de vida de uma comunidade para, então,
identificarmos que atividades comunitárias eram realizadas. Contudo, verificamos que
estávamos numa instituição que atuava não apenas em uma, mas em várias comunidades, o
que nos demandava conhecer que atividades os “precistas” desenvolviam e se estas
poderiam ser consideradas comunitárias.
Para tanto, a partir de 12 de setembro de 2007, passamos a compartilhar de todas as
reuniões do Conselho das Escolas Populares Cooperativas (EPCs) até outubro de 2007, o
que totalizou oito reuniões, além de participar de outras reuniões de grupos mais
específicos. O objetivo era observar quais “precistas” colaboravam de maneira mais ativa e
desenvolviam atividades comunitárias, pois, segundo Góis (2005), quanto mais ativa fosse
a participação, mais haveria a possibilidade de ampliação do trânsito da consciência
(conscientização), e estávamos investigando como o modo de cooperar influencia nesse
processo, julgamos ser mais adequado buscar alguém que tivesse esse perfil mínimo:
estudante do PRECE, que contribuía de maneira mais ativa (conforme definição dada
anteriormente) das reuniões do conselho e que desenvolvesse uma atividade em sua
comunidade que pudesse ser considerada comunitária, consoante à definição de Góis (1994;
2005).
Assim, no período de 14 de setembro a de dezembro de 2007, realizamos um
total de sete visitas a Pentecoste, todas registradas em diário de campo (ver anexo A). O
objetivo era nos aproximarmos o máximo possível do cotidiano das atividades executadas
pelos “precistas” e identificar o modo como eles tomavam parte delas, bem como conhecer
os detalhes, em especial, seus objetivos, e suas dimensões instrumental e comunicativa
(explicitadas no segundo capítulo deste trabalho), até para sabermos se a atividade que
investigada era ou não uma atividade comunitária.
A primeira visita à EPC Cipó tinha o intuito de estabelecer o primeiro contato mais
próximo com a instituição e com aquele que seria o sujeito de minha pesquisa, que, até ali,
não estava claro. Até então, havíamos participado de uma reunião semanal do Conselho
66
do PRECE, não sabíamos bem que tipo de atividades os “precistas” executavam além do
pré-vestibular.
Descobrimos, nessa visita, que ainda são poucos os “precistas” que desenvolvem
atividades comunitárias. Uma vez que o PRECE ainda é muito vinculado ao pré-vestibular
trabalho que mantém com bastante vigor até os dias atuais –, ainda são poucos, apesar de
ser um número cada vez mais crescente, os que se arriscam a realizar algo mais, mesmo
com o discurso muito presente da coordenação e dos próprios “precistas” de que o pré-
vestibular é insuficiente.
Mesmo assim, já na primeira visita, conhecemos Nascimento, estudante de um
curso do Centro de Ciências Agrárias da UFC, que participou como sujeito desta pesquisa e
deu todo o apoio de que necessitamos. Nesse dia, ele mostrou, durante toda a tarde daquele
quinze de setembro, com uma empolgação contagiante, um projeto sobre o qual, até então,
não havíamos ouvido falar: o Unidos Venceremos
15
. Era um projeto diferenciado, que não
mais levava em consideração o pré-vestibular, pois ia na direção de auxiliar o
desenvolvimento das comunidades que compunham o entorno do município de Pentecoste.
Nascimento disse que este projeto não era apenas tecnicista, mas envolvia toda uma
questão de organização comunitária que ele e seus colegas das Ciências Agrícolas,
perguntando-nos, inclusive, a respeito da possibilidade de ser firmada uma parceria com o
Núcleo de Psicologia Comunitária da UFC (NUCOM), no intuito de dar conta dessa
dimensão interpessoal. Ao final da conversa, fomos convidados a participar, no dia
seguinte, de uma reunião numa associação de Pentecoste na qual o projeto foi exposto por
Nascimento.
No decorrer das reuniões do Conselho das EPCs, chamou-nos atenção a colaboração
muito ativa de Nascimento e mais alguns “precistas”. Contudo, como desconfiamos, na
primeira visita que fizemos a Pentecoste, em Cipó, comunidade distante 18 quiilômetros da
sede do município de Pentecoste, poucos eram os “precistas” que realizavam atividades
comunitárias e que estavam presentes à reunião do Conselho de EPCs.
Nesse sentido, a segunda ida a Pentecoste, dessa vez à sede do município, ocorrida
em 29 de setembro de 2007, ainda cumpria o objetivo de conhecer um pouco mais de perto
15
Visando preservar a identificação de Nascimento, não nos referiremos ao real nome do projeto que
coordena.
67
o comportamento dos “precistas” num local que não fosse apenas o de sua reunião de
Conselho de EPCs. Acompanhamos a eleição do Fórum de Segurança do Município, uma
idéia iniciada em 2006, pelo PRECE e pelo NUCOM, por meio da promoção de mini-
fóruns, em diversas comunidades de Pentecoste, e de um fórum municipal. A participação
do PRECE como instituição, pelo seu coordenador, principalmente, foi decisiva e teve
várias de suas propostas aprovadas.
Conforme se passaram as reuniões do Conselho de EPCs, pudemos perceber que,
dos que participavam daqueles encontros, apenas dois “precistas” se aproximavam do perfil
que havíamos estabelecido para a pesquisa. Um deles, que aqui chamaremos Desafio
16
,
desenvolvia em sua comunidade uma atividade que envolvia esporte com crianças, o outro
era Nascimento e seu projeto chamado Unidos Venceremos..
A terceira visita, realizada em 6 de outubro de 2007, deu-se no intuito de visitarmos
as atividades realizadas por nossos dois potenciais entrevistados. Contudo, foi uma
tentativa frustrada, já que a atividade desenvolvida por Desafio ia até às 8h:30min e,
quando chegamos (por volta das 9h:30min), ela havia se encerrado. Assim,
conversamos um pouco a respeito do trabalho, que consistia, em linhas gerais, em aulas de
futebol para crianças da região e o oferecimento de um lanche e seguida, todos os sábados e
domingos pela manhã. Em seguida, iríamos visitar uma ação referente ao projeto Unidos
Venceremos, que consistia em uma visita a uma liderança comunitária que havia articulado
produtores numa comunidade das mais pobres de Pentecoste: Arisco. Contudo, a liderança
não se encontrava em casa, o que nos possibilitou apenas conhecer a comunidade.
Nesse período, descartamos a atividade desenvolvida por Desafio como atividade
a ser investigada, pois consistia em reunir um grupo de crianças para jogar futebol, todos os
sábados pela manhã, com o oferecimento de um lanche em seguida, mas não havia qualquer
discussão mais profunda em torno da realidade em que estavam inseridas as crianças.
Retomando a definição de Góis (2005, p.89), temos que a atividade comunitária
...é a atividade prática e coletiva realizada por meio de cooperação e
diálogo em uma comunidade, sendo orientada por ela mesma e pelo
significado (sentido coletivo) e sentido (significado pessoal) que a
própria atividade e a vida comunitária têm para os moradores da
comunidade. Ela é uma rede de interações sociais, instrumental e
16
Todos os nomes das pessoas aqui utilizados são fictícios.
68
comunicativa, direcionada para a autonomia do morador e da própria
comunidade, na perspectiva do fortalecimento de uma identidade social
[...] de comunitário, do desenvolvimento da consciência social e pessoal,
e da construção da responsabilidade comunitária. Assim, o uso de
instrumentos e a comunicação fundam e desenvolvem a vida
comunitária.
Não conseguimos observar, portanto, na atividade desenvolvida por Desafio, algo
além do caráter cooperativo pertinente ao jogo futebol. Pelo que nos foi informado, em de
conversas com Desafio, não havia uma ligação mais profunda da atividade de futebol com a
vida comunitária, nem qualquer momento em que essa vida comunitária fosse tematizada.
No que pesem os estudos de Góis (2005) apontarem que o fato de participar de atividades
coletivas possui uma forte correlação com o processo de conscientização, não escolhemos
essa atividade como a que seria investigada, visto que sua execução não condiz com esse
conceito tão central para nosso estudo.
Já no caso do projeto Unidos Venceremos, ficou mais evidente a possibilidade de
pensar esta atividade como comunitária. Tomemos a descrição dada por Nascimento a
respeito de como acontece o trabalho do Unidos Venceremos:
A idéia é essa pra gente abranger mais comunidades e trabalhando
dessa forma e na primeira discussão a gente faz essa discussão dessa,
sobre, nesse primeiro encontro, a discussão sobre os pontos positivos,
pontos negativos, aplica uma ficha, né, pegando os dados sócio-
econômicos da comunidade, aí a gente fecha o dia por aí, no outro
encontro a gente faz a parte de apresentação desses dados, que é
justamente aquela idéia de mostrar que eles juntos eles têm muito mais
recursos, se eles trabalhassem juntos eles conseguiam muito mais coisas,
entendeu, eo terceiro encontro já seria pra encaminhar um projeto que
pudesse potencializar ou fortalecer aquela atividade que é pertinente ali.
(R.217, L.417-425).
Ora, a descrição dada por nosso entrevistado, de quem se faz uma caracterização
mais adiante, traz diversas características do que é uma atividade comunitária.Trata-se de
uma atividade prática, voltada para a resolução de problemas concretos e contextualizados,
realizada por um grupo de modo cooperativo, pois, nas discussões a que Nascimento se
refere acima, todos têm oportunidade de participar e suas colocações são levadas
igualmente em consideração. Assim, cada um é convidado a se posicionar acerca das
69
questões que Nascimento levanta nos encontros, fortalecendo o significado dessa atividade
para o grupo e o sentido dela para cada um dos participantes.
A dimensão comunicativa do Unidos Venceremos envolve a discussão em grupo e
as decisões daí decorrentes. Já seu aspecto instrumental (LEONTIEV, 1978) diz respeito ao
levantamento de dados, bem como no desenvolvimento de trabalhos para a realização do
projeto a ser desenvolvido juntamente com cada comunidade. Um outro aspecto importante
a se considerar é o fato de, mesmo sendo um projeto padronizado, em números de encontro
e método de abordagem, o Unidos Venceremos procura fortalecer um potencial local, após
uma discussão com o grupo sobre que potencial seria esse. Todos, universitários e
moradores, são convidados a colaborar com a construção do projeto a ser desenvolvido na
comunidade. Para que possamos melhor compreender e visualizar como essa atividade
acontece, prossigamos com as descrições das visitas por nós realizadas.
Na quarta visita, realizada em 13 de outubro de 2007, pudemos finalmente observar
a realização de uma atividade comunitária. Tratava-se de um encontro do Unidos
Venceremos, numa comunidade chamada Canafístula. Era o terceiro de uma série de três,
em que os produtores de duas comunidades (Canafístula e Carrapato) decidiram que
potencial econômico da comunidade trabalhar. Essa escolha se deu mediante um amplo
debate a respeito de dados levantados pelos “precistas” sobre os produtores e as atividades
que estes desenvolviam. A postura era expor os dados e perguntar qual era o
posicionamento deles. Todos eram convidados a expor seus pontos de vista. Nascimento
estimulava o debate. Decidiu-se que a potencialidade a ser trabalhada, nas duas
comunidades, seria a criação de ovinos e caprinos, o que exigiria visitas de universitários a
cada um dos produtores para a construção de uma capacitação referente à
ovinocaprinocultura.
Em 27 de outubro, efetuamos a quinta visita a Pentecoste. Dessa vez, não para
visitar uma atividade comunitária específica, mas para participar dos festejos dos 13 anos
do PRECE. Nossa presença se justificava pelo enfoque etnográfico que compõe nossa
pesquisa. Assim, fazia-se necessário que conhecêssemos de perto a relação do PRECE com
os munícipes de Pentecoste. O que constatamos foi uma repercussão fora do comum desse
projeto na população daquele município. Por livre e espontânea vontade, mais de duas mil
pessoas se fizeram presentes no ginásio “Carneirão”, localizado na sede do município, para
70
participar da solenidade em comemoração ao aniversário do projeto. Foi possível ter uma
pequena dimensão de quão significativo aquele projeto é para muitas famílias de
Pentecoste, pois, por ser uma solenidade, com presença de diversas autoridades, tanto do
âmbito municipal, quanto estadual, além de pessoas ligadas à UFC, havia uma atmosfera de
muita festa no local.
Nos dias 3 e 4 de novembro, realizamos nossa sexta visita ao município de
Pentecoste. Dessa vez, com um foco mais específico: observar a participação de
Nascimento em duas atividades comunitárias. A primeira era uma reunião ordinária da
associação de sua comunidade, na qual ele falaria do projeto Unidos Venceremos.
Nascimento deu o informe de que estava montando esse projeto e convidou os produtores a
participarem de uma reunião numa outra data para melhor discutir a proposta do projeto.
Além disso, participou da reunião propondo soluções para a problemática do abastecimento
d’água, pauta única da reunião. Sua participação era bastante propositiva, mas preservava
também o direito de os outros presentes também colocarem suas idéias. Não houve,
contudo, muita efetividade, pois, repentinamente, a presidenta da associação encerrou a
reunião, que se encaminhava para a formação de um grupo de moradores para resolver a
problemática da água.
No dia seguinte, 4 de novembro, fomos visitar uma ação referente ao Unidos
Venceremos. Tratava-se de uma série de visitas a criadores de gado caprino e ovino, das
comunidades de Canafístula e Carrapato. Durante a visita, todos os espaços das
propriedades eram observados e Nascimento, acompanhado por mais dois colegas
“precistas”, por nós, e da equipe do NUCOM, perguntava detalhes técnicos para a criação
de ovinos e caprinos. Chamou nossa atenção o fato de que, mesmo fazendo perguntas mais
próximas de um ponto de vista técnico, Nascimento conseguia ouvir pacientemente os
produtores e tentava compreender em que contexto eles estavam desenvolvendo sua prática.
Na verdade, parecia tentar fazer dialogar saber popular e saber científico. Feito o
levantamento das demandas e características de três propriedades, encerrou-se essa visita.
A sétima e última visita a Pentecoste aconteceu em de dezembro de 2007. Mais
uma vez, fomos participar de um encontro do projeto Unidos Venceremos. Dessa vez, era o
segundo da série de três encontros na comunidade de Parnaíba, dando seqüência ao
primeiro, quando Nascimento fez um levantamento dos equipamentos sociais, bem como
71
das condições materiais de vida daquelas pessoas, envolvendo questões de infra-estrutura e
produção de determinado bem de consumo por parte dos moradores.
O curioso naquele encontro foi o fato de que, num primeiro levantamento, os
moradores não identificaram nenhuma potencialidade para o local, conseguindo
enxergar dificuldades. Nascimento, então, começou a problematizar a situação,
apresentando dados colhidos e perguntando se nada daquilo poderia ser visto como
potencial. Falou-se, então, da quantidade de bordadeiras da comunidade e da qualidade dos
trabalhos por elas realizados. O grupo decidiu, então, serem as bordadeiras o potencial a ser
trabalho no local. Assim, agendou-se uma outra visita, com a presença de bordadeiras, para
o final de dezembro de 2007, no intuito de conversar acerca de um projeto que pudesse
fortalecer essa atividade.
Desta forma, conseguimos identificar o Unidos Venceremos como atividade
comunitária desenvolvida por um “precista” e pudemos, ao longo de, aproximadamente,
noventa dias observar seu modo de participar dessa atividade. A seguir, a análise da
participação na atividade aqui investigada, com especial atenção para o modo de
Nascimento fazê-lo.
5.2. Quem é Nascimento?
O sujeito dessa pesquisa é um jovem que tem entre 25 e 30 anos, filho de
agricultores, é casado e pai de uma criança, sempre morou num distrito de Pentecoste,
distante em torno de 20 km da sede. Filho de pais pobres, Nascimento, no início de sua
vida, teve que dividir seu tempo entre a escola e o trabalho, desenvolvendo atividades
deveras importantes para a sobrevivência da família:
Muitas vezes, é necessário arrancar o mato com a mão. Eu fiz muito isso
quando era criança. Aliás, eu trabalhei mesmo na roça dos quatro até os
quinze anos de idade... (R. 9, L. 56-58).
A infância de Nascimento, portanto, era marcada sobretudo pelo trabalho e pelo
estudo, com ênfase para o primeiro, do qual, inclusive, pensou em desistir, por conta das
dificuldades pelas quais a família passava:
72
Eu achava, assim, que era tão difícil....que eu achava que tinha que ajudar
meu pai. Eu dizia pra ela [a mãe], nas discussões que eu dizia pra ela,
assim: “Eu não posso estudar, estudar não me dá retorno.”, entendeu? “E
eu preciso ajudar o pai, porque a mãe tá vendo a situação... (R.78, L-431-
343).
Sua realidade foi marcada pelas dificuldades que acompanham os mais diversos moradores
do Sertão do Ceará. Dentre elas, a mais determinante, sem dúvida, a seca. Uma, em especial,
marcou a vida de Nascimento; a de 1993, segundo nosso entrevistado,
É até difícil de relembrar que foi a seca de noventa e três. Então, eu vivi a
seca de noventa e três... (R.65, L.351-352).
A própria ida à escola era penosa pela distância de seu local de origem e a sede do
município de Pentecoste, o que, juntamente com outras prioridades que elegera e a
desmotivação dos professores, tornava esse ambiente extremamente desestimulante:
Eu enfrentei a escola... e, assim, tinham professores muito
desestimulados e a gente era, extremamente, desestimulado, fazia tudo
pra matar aula, pra ficar ali brincando, brincando ou paquerando com as
meninas (R. 47, L. 269-272).
Dessa forma, Nascimento concluiu seu ensino fundamental aos dezoito anos e durante
um certo tempo mais se empenhou em freqüentar a escola. Seus interesses, em termos de atividades,
eram divididos entre jogar futebol e auxiliar o pai na sobrevivência, sem qualquer envolvimento
com questões coletivas.
Aos quinze anos, contudo, Nascimento começou a desenvolver um trabalho
comunitário, na Igreja Católica de seu local de origem. Além disso, pouco depois de
concluir o ensino fundamental, passou a fazer parte do grupo que compõe o PRECE e
continua até hoje. No início, era um estudante do pré-vestibular. Aos poucos, como
pudemos constatar mais adiante, envolveu-se numa série de atividades coletivas e
cooperativas que tiveram profundo impacto na constituição do que ele é hoje.
73
Atualmente, é estudante de um curso do Centro de Ciências Agrárias da UFC,
participa de todas as reuniões do Conselho de EPCs, semanalmente, em Fortaleza, ministra
aulas de uma determinada disciplina na EPC, onde foi aluno por 5 anos, e coordena um
projeto que tenta aproximar o PRECE das comunidades do entorno de Pentecoste. Sua
escolha para tomar parte dessa pesquisa deveu-se à forma bastante ativa com que participa
tanto do Conselho de EPCs, quanto das reuniões do projeto Unidos Venceremos, ademais
o fato de podermos classificar, pelo que já expusemos anteriormente, a atividade que
desenvolve no Unidos Venceremos como atividade comunitária.. Isto se justifica por
estarmos pesquisando a relação entre a maneira de participar de atividades comunitárias e o
processo e conscientização, que, segundo Góis (2005), é fortalecido a partir de um modo de
participação mais ativo no desenvolvimento dessas atividades.
5.3. Analisando a participação social de Nascimento no desenvolvimento de atividades
comunitárias
Analisamos aqui a forma de participação de Nascimento, como também dos
integrantes do projeto Unidos Venceremos, ao longo do período em que pudemos
acompanhar o desenvolvimento dessa atividade, nas sete visitas ao município de Pentecoste
para a realização desta pesquisa. Foram levados em conta os aspectos levantados por
Bordenave (2002), como o tipo de participação, o modo de participar, os níveis de
participação e a importância das decisões. Além disso, observou-se que o modo de
Nascimento participar é mais ou menos ativo, de acordo com a definição de Góis (2005),
apresentada antes. Também nos será útil o conceito de participação social definido por
Amman (1978).
Retomemos a definição de participação social de Amman (1978, p.61) segundo a
qual “participação social é o processo mediante o qual as diversas camadas da sociedade
tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade
historicamente determinada”. Podemos interpretar a atividade aqui investigada, em sua
tentativa de mobilizar os produtores das diversas regiões de Pentecoste e fortalecer sua
produção, cooperação mútua e o desenvolvimento local, como participação social. Isto
porque uma clara intenção de os produtores poderem tomar parte na cadeia produtiva,
74
que, segundo Nascimento, em diversas conversas que mantivemos durante as visitas, está
concentrada nas mãos de poucos produtores.
No que tange ao tipo de participação (BORDENAVE, 2002) presente no Unidos
Venceremos, pudemos verificar que se trata de uma microparticipação e não de uma
macroparticipação. Afirmamos isso pelo fato de os encaminhamentos tirados nos encontros
dos grupos do Unidos Venceremos não terem uma incidência direta sobre a sociedade
como um todo, a não ser tentar fortalecer o desenvolvimento de comunidades específicas,
que, sequer, dialogam entre si. Vale ressaltar que isso não diminui o valor da atividade,
apenas constata que seu desenvolvimento tem uma implicação do ponto de vista local,
como pode ser percebido no seguinte trecho da entrevista com Nascimento:
A gente vai lá, faz uma investigação cio-econômica da realidade local
e ambiental da realidade local e a gente, a partir daí a gente começa a
ver uma, um projeto, né, pra potencializar uma atividade que seja
pertinente àquela realidade, qual a cultura, né, a atividade produtiva que
seja pertinente aquela comunidade, então a partir disso aí a gente vai
tentando ver também as relações de, entre grupos, pra que eles possam se
ajudar enquanto organização pequena, né. (R.213, L.1356-1361).
Já em relação ao modo de participar (BORDENAVE, 2002) do Unidos
Venceremos, podemos dizer que este se encontra entre a participação voluntária e a
provocada. Senão, vejamos: o grupo é formado pelos próprios produtores das comunidades
que participam da atividade, sem qualquer obrigatoriedade por parte de Nascimento e o
grupo de estudantes que com ele executa o Unidos Venceremos.
Por outro lado, ressaltamos que é do tipo provocada, porque, ao mesmo tempo em
que vão aos encontros por vontade própria, os produtores locais são estimulados pelos
estudantes, que participam do PRECE. Estes promovem os encontros juntamente com
lideranças locais, além de haver um objetivo definido de se construir um projeto de
desenvolvimento econômico para o local, mesmo que o conteúdo desse projeto seja
passível de sugestões dadas pelos produtores. Com relação a este aspecto da participação de
Nascimento, podemos dizer que é do tipo espontânea, pois, como observamos adiante, foi
inclusive dele a concepção do projeto Unidos Venceremos, no PRECE, não havendo uma
incidência direta de algum agente externo para provocar sua participação.
75
No que concerne aos níveis de participação, que, segundo Bordenave (2002), vão da
informação à auto-gestão, podemos relatar que os grupos que compõem o Unidos
Venceremos praticam uma política de auto-gestão. Afirmamos isto devido, nesses grupos,
não haver uma autoridade externa com quem devam prestar contas acerca das decisões
tomadas. Assim, suas opiniões e decisões dão de fato direcionamento ao processo, não
possuindo apenas uma faceta consultiva. Mesmo em relação a Nascimento, que atua como
uma espécie de facilitador do processo, sua opinião não é a que prevalece, senão que é
buscado nos encontros o consenso entre os diversos pontos de vista.
Como afirma Demo (1988), a auto-gestão envolve uma conquista progressiva em
direção a uma maior participação na solução de problemas. Assim é que, comparando
diferentes localidades que visitamos, foi possível encontrarmos locais em que havia um
hábito de participar bastante desenvolvido, enquanto em outros as pessoas pareciam passar
por aquele tipo de experiência pela primeira vez. Conforme afirmam Souza (1996) e Freire
(1984a), a participação envolve necessariamente a questão da educação.
Em seu estágio atual, ainda iniciante, podemos declarar que, no que tange à
importância das decisões, que Bordenave (2002) divide em seis níveis, podemos dizer que
o projeto em questão se encontra no nível três. Neste nível, de acordo com Bordenave
(2002), aborda-se a elaboração de planos, projetos e programas, estágio em que se
encontram muitos dos grupos visitados pelas Unidos Venceremos. Por não haver ainda uma
ação concreta sendo desenvolvida, não é possível se falar, por exemplo, em avaliação das
ações, o que diria respeito ao sexto e último nível da importância das decisões tomadas.
No que concerne especificamente ao modo de Nascimento participar, podemos
afirmar que se trata de uma participação mais ativa, que, segundo Góis (2005, p. 155), seria
um modo em que o sujeito “[...] participa das reuniões e da execução da ação decidida pelo
grupo ou o coletivo”. Além de facilitar os encontros, Nascimento participa de toda a
viabilização dos encontros através de contatos com as lideranças das localidades em que
estes se realizam, conforme aponta o seguinte trecho de sua entrevista:
Um outro aspecto que chama atenção com relação ao modo de Nascimento fazer
parte da atividade em questão é sua postura em todas as ações que a compõem. Observamos
(ver anexo A) que se trata de uma postura guiada pelo diálogo-problematizador, em que,
76
conforme Góis (2005, p.156), “...a palavra circula e o intercâmbio de idéias se constitui
como eixo da prática comunitária”. Sua postura sempre foi a de levar em consideração
aquilo que cada um dos participantes dizia nos encontros do Unidos Venceremos, assim
como problematizar em torno dos dados que levava para os encontros com eles. Ao mesmo
tempo, propunha, não apenas ouvia, e tentava mostrar outras possibilidades ao grupo, como
pode ser visto na seguinte passagem de sua entrevista:
Eu mostrava pra eles que se eles trabalhassem juntos, eles tinham
uma possibilidade muito maior de conseguir muito mais coisas, né,
a produtividade deles podia dobrar, podia triplicar, entendeu, se eles
trabalhassem juntos, né, então eu ia mostrando isso e aí depois, nós,
que esse grupo aconteceu, eu aprendi muitas coisas, a gente
percebeu que teve muitos erros também (R.216, L.1395-1399).
Assim, conforme percebemos de modo mais claro adiante, Nascimento não se
coloca como agente externo neutro, porém reconhece ser o seu posicionamento em favor da
organização coletiva e sua conseqüente transformação social. Caracterizemo-lo, pois, para
uma melhor compreensão de quem é Nascimento, que, logo a seguir, fornecerá, a partir de
seu discurso, elementos para cumprirmos com o objetivo geral deste estudo.
5.4. Relacionando o modo de participação em atividades comunitárias com o processo
de conscientização de Nascimento
Feita a contextualização acerca de nossa pesquisa, é chegado o momento de dar voz
a Nascimento, personagem que passa, a partir de agora, a ter seu modo de participar de
atividades comunitárias e seu processo de conscientização analisados de acordo com sua
história de vida. Conforme já explicitamos alhures, este método permitiu que pudéssemos
ver as diferentes formas de Nascimento participar de atividades comunitárias, bem como o
seu modo de perceber e agir sobre a realidade.
Segundo nosso entrevistado, antes do quinze anos, ele não costumava fazer
trabalhos comunitários. Suas atividades se resumiam à escola e ao trabalho no campo,
ajudando seu pai no sustento da família: “Logo naquele período da adolescência, eu me
77
sentia meio forçado pra trabalhar na roça... mas, quando eu fui crescendo, eu via que era
uma forma de ajudar meu pai, ele precisava do trabalho familiar também, né?” (R. 11, L.
62-64). A necessidade da família e a interação com o trabalho fizeram com que Nascimento
desse outro significado a uma atividade que, a princípio, era vista como mais uma
obrigação.
Este outro sentido construído fez com que fosse possível ele visualizar outras
possibilidades de sobrevivência naquele meio, por vezes, tão hostil, a ponto de, por
exemplo, Nascimento e uma irmã serem os únicos que permaneceram, vendo os outros
irmãos irem embora para Fortaleza:
Eu tive sorte de não ter saído do interior, eu não migrei do interior e meu
irmão, meus irmãos, eles todos migraram...do interior, entendeu? Meu
irmão veio trabalhar numa padaria acho que com uns quatorze anos...e as
minhas irmãs, quase todas, vieram trabalhar em casa de família em
Fortaleza, né? E eu e minha irmã que estava casada fomos os únicos
que não saímos (R.39, L. 200-204).
Para continuar no interior, contudo, muito cedo teve que encarar a dura realidade do
trabalho pesado, por muitos momentos substituindo o pai no ofício, conforme se pode
perceber na seguinte passagem acerca da participação em um mutirão promovido pelo
governo do estado às famílias do Interior que passavam privações: “Eu cheguei a fazer
[trabalho de mutirão] pelo meu pai...ou, então, eu ia com ele pra ele terminar mais rápido.
Mas eu não cheguei a eu mesmo receber” (R.69, L.399-400).
Depois dos quinze anos, teve sua carga horária de trabalho reduzida, o que
possibilitou que se dedicasse a outras atividades. Seu primeiro trabalho comunitário foi na
Igreja Católica de sua comunidade, depois de participar de um seminário ofertado por
pessoas ligadas à Renovação Carismática:
com quinze anos eu me envolvi na igreja. Eu, eu me lembro que foi num
grupo da renovação carismática pra comunidade da Capivara e eles
falaram que ia ter um seminário de...um seminário, né? Pra jovens que
quisessem se aprofundar e quisessem saber um pouco mais de...sobre a
Bíblia e sobre a igreja mesmo, né? E eu participei de seminário. Fui pro
seminário os dois dias e, aí, eu comecei ter uma atuação (R.81, L.457-
462).
78
Até então, Nascimento tinha vergonha de participar, quando era convidado a estar
presente em outras atividades. O seminário para o qual foi convidado mudou esta
concepção:
Eu tinha vergonha de participar. Depois que eu fiquei, que eu fiz o
seminário foi que eu quebrei esse negócio, entendeu? E, aí, eu comecei a
participar. E, daí, eu tive uma participação por...por uns três anos (R.81,
L. 462-466).
A partir do momento em que “quebrou esse negócio” a timidez –, ele passou a
atuar nas atividades da Igreja. Mas como era essa participação? Sua atuação, a princípio,
era ligada à participação em um grupo de louvor, uma participação espontânea e voluntária,
em que já se exercia uma participação mais ativa (BORDENAVE, 2002; GÓIS, 2005) :
Eu cheguei a fazer algumas reflexões da palavra, entendeu? Eu
participava do grupo de louvor. Isso, no primeiro ano, eu tinha 15 anos.
(R.84, L.473-475).
Em seguida, seu modo de estar ligado à Igreja mudou. Já não era mais participar
do grupo de louvor, pois Nascimento assumiu outras funções dentro da instituição:
Dos dezessete aos vinte anos, aí, eu fiquei...eu fui, fiquei responsável
pela igreja. Aí, era uma liderança comunitária. Porque eu cuidava da
igreja...aí, eu fazia várias junto com o outro grupo –, eu fazia
várias...um grupo de louvor, um grupo de jovens, que a gente...Eu tive
muitos problemas. Assim, eu caí até pelas dificuldades... Eu, eu não tinha
conhecimento, mas eu achava que as coisas tinham que funcionar em
grupo. Eu precisava de um grupo, mas eu não conseguia ter um grupo e
eu também não sabia como fazer um grupo. Mas...foi, nesse período, que
eu fique à frente da igreja, entendeu? Dos dezessete aos vinte anos, que
eu fiquei com a igreja e tal... (R.84, L. 473-483).
Conforme podemos constatar, não era executar outra ação, mas, sobretudo,
exercer uma outra atividade, pois essa ação era permeada por significados e apreendida a
partir de um sentido atribuído por Nascimento. Conforme Leontiev (1978, p. 93), “todo o
reflexo psíquico resulta de uma relação, de uma interacção (sic) real entre um sujeito
material vivo, altamente organizado, e a realidade material que o cerca.”.
79
Assim, podemos compreender que, a partir das interações que Nascimento
estabelece com sua realidade material, exercendo a função de “responsável pela Igreja”,
um impacto profundo no modo como ele se percebe. A partir dessa atuação, passa a não
mais se perceber apenas como mais um participante de um grupo de louvor, mas demarca
esse momento como o de uma passagem a tornar-se uma liderança comunitária.
Dessa forma, questões que, até bem pouco tempo, não se apresentavam como
significativas passam a ganhar importância, como, por exemplo, saber fazer um grupo
funcionar. Podemos entender este processo com Leontiev (1978, p. 94) quando afirma que
“[...] o reflexo consciente é psicologicamente caracterizado pela presença de uma relação
interna específica, a relação entre sentido subjetivo e significação.”. Assim, como
estudiosos da consciência, interessa-nos compreender que, por meio dessa interação, ao
mesmo tempo em que atua sobre sua realidade, Nascimento transforma-se, percebe-se de
um modo diferente, atribui a si o sentido de liderança comunitária.
Pela sua ação no mundo, outras demandas foram criadas, não só a questão da
sobrevivência trabalho na roça e a obrigação de estudar. Já não era mais apenas o
estudante e o filho que ajudam o pai no trabalho, pois, a partir de então, tornava-se também
uma liderança, pois ficou “à frente” da Igreja. Uma vez que, conforme afirmamos em
capítulo anterior, a interação homem-mundo é o que proporciona a construção de sentido,
podemos perceber que, quanto mais Nascimento exercia as atividades da Igreja, mais se
envolvia afetivamente, preocupando-se com o desenvolvimento dos trabalhos:
Então, toda noite, quando eu ia pra igreja ou outra atividade lá...eu
chegava em casa, eu chorava. E a minha mãe ficava bastante preocupada,
entendeu? “Porque que...tu faz esse negócio, eu acho até que tu
gosta...Mas por que que toda noite, quando tu chega, tu chora?
(Perguntava a mãe). Eu não sabia porque eu chorava, mas eu tinha
uma...uma ansiedade, tinha alguma coisa que me...que achava que não
era perfeito, que não dava certo, entendeu? (R.90, L.535-540).
Como explicitamos, o sentido pessoal carrega consigo uma dimensão afetiva.
Assim, conforme a interação com as atividades da Igreja se fortalecia, ganhava força
também o envolvimento de Nascimento com estas atividades. Acerca da interpretação dos
sentidos produzidos pela ação do sujeito no mundo, Luria (1987, p. 197) afirma que ela
“[...] não se correlaciona indefectivelmente com a análise lógica do sistema superficial de
80
significados, senão que depende principalmente da sensibilidade emocional do sujeito, mais
do que seu intelecto formal.”
17
.
Desse modo, chama-nos atenção o modo como Nascimento se compromete com
essa atividade, a ponto de chorar por conta doo-andamento dos trabalhos do modo como
gostaria. Era-lhe, portanto, deveras significativo que o trabalho na Igreja desse certo; não
apenas executava uma tarefa, mas se dedicava e envolvia-se no desenvolvimento dessa
atividade.
Uma outra metamorfose ocorrida no modo de Nascimento se perceber. Nosso
entrevistado fala de um “toque espiritual” pelo qual passou a partir de sua participação no
seminário ofertado pelo grupo da Renovação Carismática:
Eu acho que foi um toque, assim, espiritual. Algo me tocou naquele dia,
me quebrou...aquela coisa de não falar em público...entendeu? E isso, aí,
foi...foi de lá pra cá, pronto! Então hoje eu não tenho problemas. Se eu
falando na frente do Governador ou do presidente da república ou
do...presidente dos Estados Unidos. Pra mim, não faz diferença. Acho
que são pessoas iguais a qualquer um (R.86, L. 491-496).
Paulo Freire (1984a, p.110), quando se refere à auto-imagem de um gari que
participou de um trabalho de educação popular, com base em sua metodologia de trabalho,
fornece-nos o seguinte relato:
“Amanhã”, disse certa vez um gari da prefeitura de Brasília, ao discutir o
conceito de cultura, “vou entrar no meu trabalho de cabeça para cima”. É
que descobrira o valor de sua pessoa. Afirmava-se. “Sei agora que sou
culto”, afirmou enfaticamente um idoso camponês. E ao se lhe perguntar
por que sabia, agora, culto, respondeu, com a mesma ênfase: “Porque
trabalho e trabalhando transformo o mundo”.
Assim, atentamos, a partir da fala de Nascimento e da citação de Paulo Freire
exposta acima, que a atividade de Nascimento no e com o mundo, por meio do trabalho na
Igreja, teve uma incidência direta sobre seu valor pessoal e seu poder pessoal, definidos por
Góis (2003, p. 51) da seguinte maneira:
17
Compreendemos que esta passagem abre margem para que possamos discutir a questão da afetividade na
constituição da consciência. Contudo, por uma questão de foco, não o faremos aqui.
81
[...] o valor pessoal é um sentimento de valor intrínseco que se manifesta
quando a pessoa entra em contato com o seu núcleo de vida, uma
tendência natural para a realização. Sentir-se capaz de viver, de gostar de
si mesmo, acreditar na sua capacidade de conviver e realizar trabalho são
expressões do valor pessoa. Quando ao poder pessoal, é a capacidade de
influir na construção de relações saudáveis com os outros e com a
realidade. É a potência com que se vive a cada momento, buscando o
crescimento de si e do outro, e a transformação da realidade.
Pensamos ser a isto, também, que Paulo Freire se refere em citação anterior, quando
fala do gari que com ele dialogou sobre o conceito de cultura e se percebeu como produtor
dela e descobriu seu valor como pessoa. Assim, também, podemos compreender o toque
espiritual a que se refere Nascimento, quando de sua participação no seminário da Igreja.
Percebeu-se como capaz de falar em público e tornar-se, como ele mesmo se denominou,
uma liderança
18
, alguém que podia coordenar o trabalho da Igreja de sua comunidade e que
atualizou esta possibilidade.
Próximo ao fim de seu trabalho na Igreja, Nascimento aproximou-se de um projeto
decisivo em sua vida: o Programa de Educação em Células Cooperativas (PRECE). A
princípio, não era algo que chamasse tanto sua atenção, o que fez com que ele deixasse o
grupo:
Eu comecei assim, participei dos cursos, não gostei muito. Lógico, os
cursos eram interessantes, mas, assim, tinha algo muito mais interessante
que era a brincadeira, a juventude, naquele momento ali, era o mais
importante. Então, eu saí. (R.98, L.588-591).
Um ano depois de sair, Nascimento retornou ao PRECE. Dessa vez, regressou e
ficou naquele projeto até os dias de hoje. As atividades no PRECE aconteciam em paralelo
às da Igreja. No PRECE, ao contrário da Igreja, encontrou um grupo que lhe deu apoio,
conseguiu encontrar pessoas que, no que pesem as diferenças, compartilhavam objetivos e,
nos dizeres de Nascimento, eram extremamente motivadas:
era muito mais fácil [trabalhar em grupo], assim, tinha muito mais
apoio, tinha muito mais gente ali do seu lado, tinha um grupo, entendeu,
tinha uma idéia de trabalhar junto, entendeu, da gente se ajudar, então...
18
Uma discussão aqui a respeito do tema da identidade poderia ser levantada, convergindo com a construção
do percurso de uma liderança comunitária. Contudo, não se trata do foco desta pesquisa, o que não nos
permite aprofundamento acerca do tema. A este respeito, consultar Ribeiro (2003).
82
foi muito mais fácil em termos [incompreensível], lá foi muito mais
fácil viver essa experiência, entendeu (R.161, L1014-1018).
Compartilhar o dia-a-dia, ver os outros cooperando em torno de objetivos comuns,
sem o intermédio da presença do professor, serviram como estímulos para que Nascimento
se dedicasse integralmente às atividades do grupo do PRECE:
Eu acho que o espaço era motivante, porque você não tinha professor,
mas você tinha um grupo ali que travava altas discussões. Você montava
lá um grupo de cinco pessoas ali, cinco jovens ali...e, aí, meu amigo, cada
um estava como seu módulo, com livro e, aí, tome discussão sem
professor por perto (R.111, L.685-688).
As discussões que compunham o “espaço motivante” a que Nascimento se refere na
passagem anterior não aconteciam apenas nos momentos de discussão das matérias que o
grupo estudava, até porque, a princípio, o vestibular não era o seu objetivo:
Ás vezes, eu não precisava nem de reunir em grupo não. Deu a hora do
almoço, a gente ia junto e discutindo. Era sempre assim, nós, na
verdade...Se a gente não estava discutindo educação em si ou um texto,
um assunto, a gente tinha que estar discutindo alguma coisa. (R.119,
L.757-760).
Como se pode perceber, o diálogo fazia parte do cotidiano desse grupo. Assim, as
pessoas que dele faziam parte eram estimuladas a se colocar, a cooperar no sentido de que o
grupo pudesse se posicionar diante de algum tema, fosse ele parte do conteúdo formal, ou
não. A dimensão cooperativa e dialógica da comunicação entre os membros do grupo
também se estendia a sua organização burocrática:
[O grupo do PRECE formava] Uma espécie de conselho, de
coordenação, sei lá...Nada fechado, era a impressão que a gente tinha.
Então, eu me sentia bem...eu comecei a me sentir bem nessa época assim.
E, aí, foi onde eu fui me aprimorando mais, fui tendo mais conhecimento.
Fui...depois dessa época aí, eu...(R.123, L.799-801).
As atividades de que Nascimento começava a participar no PRECE, um grupo que
“travava altas discussões”, como ele se refere em passagem anterior, mudaram a forma
como Nascimento se percebia. O “toque espiritual” a que se aludiu, quando falou de seu
trabalho à frente da Igreja, deu lugar a uma convivência cooperativa, que lhe dava a
83
oportunidade de participar ativamente do cotidiano do grupo, tanto em sua esfera formal de
grupo de pessoas que estudavam, quanto de seres humanos que conviviam juntos.
Góis (2003), ao se referir ao modo de facilitação da vida comunitária, fala da
criação de um clima facilitador do crescimento pessoal e social. Este clima, conforme
expusemos em capítulo anterior, é composto por: consideração positiva incondicional,
empatia, autenticidade, diálogo, luta reivindicatória e política e organização comunitária.
Mesmo o PRECE não sendo uma comunidade, podemos constatar que vários desses
elementos se encontravam presentes naquela realidade, na qual cada um tinha a
oportunidade de participar da construção de seu cotidiano. Podemos nos perguntar: e que
efeito essa organização tinha no modo de Nascimento perceber o mundo a leitura de
mundo de que nos fala Paulo Freire (1980)? Quando se refere a uma atividade atual, que
desenvolve com produtores de diversas localidades de Pentecoste, Nascimento deixa claro
seu ponto de vista:
Eu acho que é extremamente importante [decidir as demandas do
cotidiano coletivamente], é porque assim, porque a gente vê que os
produtores têm muitas limitações, né, muitos não sabem nem ler nem
escrever, então você pedir pra ele escrever um projeto é complicado, mas
a nossa idéia, assim, que nós façamos toda essa trajetória de pegar os
dados, de fazer a discussão, de mostrar, de criar um momento pra eles
dizerem qual é a atividade que eles querem (R.235, L.1553-1558).
Como falamos no primeiro capítulo desta pesquisa, participar é, sobretudo, um
processo educativo. Evidentemente, não se trata de transmitir apenas por meio de conteúdos
formais a importância da participação, mas, principalmente, fazê-lo a partir de uma
convivência cotidiana que valorize e fomente a participação. É nesse sentido que Paulo
Freire (1984a, p.80) afirma que
A democracia, que, antes de ser política, é uma forma de vida, se
caracteriza sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no
comportamento do homem. Transitividade que não nasce e nem se
desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem seja
lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas
comuns. Em que o homem participe.
De acordo com o relato de Nascimento, é possível denotar que ele, mesmo
reconhecendo a limitação técnica que caracteriza o público com quem trabalha, considera
84
por demais importante a participação coletiva nas tomadas de decisão de um grupo que,
como vemos adiante, atualmente coordena.
Mesmo não havendo a presença constante de um professor, uma pessoa foi
marcante na trajetória de Nascimento no PRECE: o coordenador do projeto. Nascimento
descreve-o da seguinte forma:
Então, ele [o coordenador do PRECE] foi um cara que, assim, pela
própria história dele, também me incentivava bastante. Ele já chegava,
me contava...pessoa que me estimulou muito a estudar (R. 105, L. 642-
644).
Assim, o coordenador do PRECE aparece como alguém cujo sentido é incentivar e
acreditar no potencial de Nascimento. Essa “crença” não era apenas um sentimento
desconectado de ação. Era demonstrada e renovada por meio de ações, pois, como pudemos
ver, ao longo do tempo, Nascimento, assim como outros membros do PRECE, assumiram
várias funções no projeto, delegadas pelo coordenador:
Ele [o coordenador do PRECE] mostrava que era importante você se
envolver, mesmo que você não soubesse e outra coisa, ele não
perguntava se você tinha doutorado, mestrado, doutorado naquilo ali não
e assim foi que a gente foi construindo muitas coisas, entendeu, tendo
uma vaga noção do que que era e aí estudando e aprendendo sobre
aquilo.” (R. 194, L. 1241-1245).
O coordenador do PRECE mantém uma postura de facilitação em relação ao grupo
do qual Nascimento faz parte, no sentido de proporcionar oportunidade para que os
membros do grupo possam aprender fazendo, sem necessidade de títulos específicos.. O
que se como reação de Nascimento é um desejo cada vez maior de aprender e de fazer
com que seu aprendizado tenha alguma utilidade para sua comunidade. O sentido atribuído
ao coordenador do PRECE é bastante visível na seguinte passagem:
O [coordenador do PRECE] sempre trazia uma palavra muito forte,
assim, sabe, de muito... de desafio, sabe. Os cânticos que ele trazia
também, assim, pro louvor, eram cânticos de desafio, entendeu, era tipo
assim lhe perguntando ‘você vai passar no vestibular pra quê?’,
entendendo, ‘pra que mais um que passou’, pra... (R.170, L.1096-1098).
85
Sua postura, então, era muito similar à de um facilitador de um grupo popular, que
prima, entre outras coisas, pela habilidade de problematizar, ou seja, “[...] gerar situações
nas quais as pessoas se vêem forçadas a revisar suas ações ou opiniões acerca dos fatos de
sua vida diária vistos como normais [...]” (MONTERO, 2006, p.231) . Nesse sentido, não
cabe ao facilitador apresentar respostas prontas, ou ensinar o modo correto de perceber a
realidade, mas colocar o sujeito diante de um questionamento que deve ser respondido por
si mesmo.
Tal postura, segundo Montero (2006, p. 231), “[...] é uma estratégia para
desenvolver a consciência crítica que, uma vez que se desenvolva na reflexão e na ação,
produz através de ambas a transformação das circunstâncias naturalizadoras e alienadoras”.
O estímulo a que cada um se colocasse diante das discussões do grupo, fossem elas
referentes à educação formal, ou à convivência, produzia em Nascimento um sem-número
de idéias:
Cara...eu ficava, assim, no final da tarde, assim...Porra, as idéias tudo
...entendeu? Tudo...(Risos) Minha cabeça tentando organizar as idéias,
eram muitas idéias. (R.114, L.724-726).
Como falamos anteriormente, a partir de Luria (1987), a tentativa de organizar
idéias a que se refere Nascimento, no trecho acima, pode ser compreendida como a
formação de novas necessidades, bem como de novas informações advindas da interação
com o grupo que compunha o PRECE. Como mostra Leontiev (1982), a atividade é a base
da formação da consciência e não o contrário.
No caso de Nascimento, a interação com os outros membros do PRECE, conforme
já explicitada anteriormente, de modo dialógico, gerava novas idéias, saltos qualitativos em
seu modo de apreender os conteúdos abordados durante o dia, as idéias que, segundo o
entrevistado, tentava organizar. A respeito de novas elaborações no desenvolvimento
psicológico, Colaço (2001, p. 67) afirma que “[...] novas construções são elaboradas no
espaço mediacional que é criado na situação de interação social, onde é possível ir além do
desenvolvimento real, através dos intercâmbios interpsicológicos que, por sua vez,
promovem as reconstruções interpsicológicas.”.
Vale ressaltar que não estamos falando de qualquer tipo de interação, senão a que
Nascimento se refere quando descreve, ou seja, o cotidiano do PRECE. Estas podem ser
86
classificadas como dialógicas, de acordo com a definição de diálogo dada por Freire (1981)
em capítulo anterior. A forma como Nascimento descreve o modelo de educação, por ele
vivenciado no PRECE, aproxima-se daquele descrito por Freire (1984a, p. 90), que propôs
uma abordagem desta que colocasse o homem “[...] em diálogo constante com o outro. Que
o predispusesse a constantes revisões. A análises críticas de seus ‘achados’. A uma certa
rebeldia, no sentido mais humano da expressão. Que o identificasse com métodos e
processos científicos”.
Por se caracterizar como um grupo que não se limitava à questão da educação
formal, o grupo que compunha o PRECE, com o passar do tempo, começou a oferecer
diversas possibilidades de atuação. Com Nascimento, não foi diferente. A princípio, exercia
a função de aluno. Em seguida, passou a atuar como monitor, realizando a seguinte
atividade:
O papel do monitor era tirar dúvida, era puxar discussão, era...fazer
a...fazer o estudo se tornar mais...Sair ali do individual e passar pela
discussão coletiva. (R.141, L.901-903).
A seguir, exerceu, mesmo não estando na Universidade, a função de professor de
uma das disciplinas ministradas numa EPC. E sobre a importância dessas mudanças de
funções, ele afirma:
Eu num tenho noção de qual a importância assim [de passar de estudante,
pra monitor e depois pra professor], mas eu achava que eu tava
adquirindo conhecimento e que tinha uma oportunidade de usá-lo,
entendeu, então a partir do momento que eu ia, a gente ia demonstrando
que tinha capacidade pra fazer aquilo, as oportunidades apareciam
também, e talvez até por necessidade de pessoas pra, de recursos
humanos, entendeu, então a gente ia assumindo aquelas funções e era
assim que ia acontecendo (R.150, L.942-947).
Percebemos que, na fala de Nascimento, encontra-se presente um forte sentimento
de ser capaz de executar as atividades com seu grupo, de modo que algo que se ressalta é
seu valor pessoal e seu poder pessoal (GÓIS, 1994) fortalecidos a partir da interação com o
grupo do PRECE. Ali, onde Nascimento e seus companheiros de projeto eram incumbidos
das mais diversas funções (até mesmo coordenações de projetos), era desenvolvido por eles
um sentimento comum de se reconhecerem capazes das mais diversas atividades.
87
Neste sentido, foi que, depois de alguns anos, o coordenador do PRECE apresentou
a Nascimento uma proposta para cultivar uma horta no espaço em que funcionava a EPC na
qual ele atuava:
aí, cara, pois é, nessa época, nessa época aí de 2004 a gente queria construir
uma horta orgânica, na casa mesmo, tinha água, tinha os recursos e tal, e
ele [o coordenador do PRECE] queria fazer uma espécie de cartão postal,
entendeu, assim, pro PRECE, assim, e também um espaço pra gente fazer
as aulas muito mais atrativas, entendeu, então eu comecei mais uns meninos
lá, nessa época era outra turma, tinha outros estudantes que tavam
ficando na casa também, nós começamos a horta, deu certo, entendeu, a
gente produziu de tudo, de tudo mesmo assim, que era necessário (R.156,
L.992-999).
Trabalhar na horta não significava para Nascimento apenas produzir comida, por
mais importante que seja isso. Essa atividade ganhou um outro sentido para ele, pois gerou
um questionamento a respeito das outras que desenvolvia no PRECE, referentes ao espaço
da sala de aula, mas com pouca ligação ao que se passava fora do ambiente institucional,
em especial, sua comunidade:
N: A idéia era essa de voltar, né, pra comunidade, entendeu, pra retomar
esse trabalho [com os grupos da Igreja], e a horta me abriu muito a mente,
sabe, cara, eu fiz a horta lá, eu achava assim que..(R177 , L1130).
E: Abriu a mente como, assim, que tu diz? (P178 , L1133).
N: Assim, eu achava... pra gente fazer, assim, um trabalho mais na área
produtiva, entendeu? (R178 , L1134).
A interação de Nascimento com o mundo decorrente dessa atividade lhe
proporcionou a criação de um outro sentido que não aquele condizente com o significado,
compartilhado socialmente, de que plantar serve exclusivamente para se alimentar.
Nascimento desenvolveu, a partir de então, conforme constatamos adiante, uma concepção
de que o conhecimento que era adquirido pelos “precistas” deveria servir também para
contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade de origem.
Kozulin (1994, p. 115), falando com o referencial da Teoria Histórico-Cultural da
Mente e discorrendo acerca da formação da mente originada de uma atividade socialmente
significativa, postula que [...] o desenvolvimento não é um desdobramento ou maturação
de ‘idéias’ pré-existentes. Pelo contrário, consiste na formação dessas idéias a partir do
88
que originalmente não era uma idéia no curso de atividades socialmente significativas.”.
Assim, foi possível a Nascimento, juntamente com seu grupo, desnaturalizar a atividade de
cuidar de uma horta, pois ela serviu tanto como recurso didático, quanto para lhe instigar, a
partir daquela interação, a “abrir a cabeça”. Esse “abrir a cabeça,” a que se refere nosso
entrevistado, concretizou-se, como verificamos adiante, na realização de um trabalho mais
voltado à área produtiva, superando a função de pré-vestibular em que muitas vezes é
pensado o PRECE, até mesmo pelos próprios “precistas” (RODRIGUES, 2007).
Após algum tempo, Nascimento submeteu-se ao vestibular três vezes. Nas duas
primeiras, não obteve êxito, apesar do esforço que empreendeu com o grupo com que
convivia. Alguns colegas, entretanto, conseguiram aprovação e contaram com a
colaboração de Nascimento, como professor de uma das disciplinas, na preparação para a
segunda fase daquele concurso. Isto o fazia sentir o conforto de um grupo que demonstrava
acreditar em seu potencial:
você também tinha a oportunidade de ajudar aquelas pessoas, né, era a
idéia, essa que a idéia bacana, entendeu, porque como eu tinha sido
desclassificado [no vestibular], se eu tivesse talvez em outra turma, “pô,
esse cara num tem capacidade nenhuma”, mas aquela turma ali entendia
que mesmo eu não tendo passado numa prova, eu tinha capacidade de
ajudar eles, entendeu, então isso era, era muito bom, assim, também dava
uma... um certo conforto, né, saber que mesmo, que a questão não era
você (R.166, L.1054-1060).
Mais uma vez, na fala de Nascimento, o grupo que compõe o PRECE aparece como
cooperativo, oportunizando a todos participarem dele de diversos modos. Nos dizeres de
Nascimento, o grupo do PRECE é um grupo que “não tem concorrência”:
É, porque pra gente não, pra gente não faz diferença, cara. A gente quer
passar e quer que todo mundo, os colegas da gente, passe também, num
tem concorrência, num tinha concorrência, num tem concorrência, a
gente quer que todo mundo passe, a gente passa e fica muito feliz
(R.180, L.1155-1158).
Podemos dizer que, até então, não se desenvolviam atividades comunitárias no
PRECE, pois, de acordo com a definição de is (2005), utilizada para esta pesquisa e
explanada em capítulo anterior, seria necessária uma dimensão comunitária em seu
desenvolvimento para que fosse considerada como tal. Com isso, queremos relatar que, em
89
nenhum momento, os “precistas” eram convidados a pensar sobre sua relação com seus
locais de origem.
Por outro lado, é possível afirmarmos que se desenvolviam atividades, uma vez
que são seres humanos cooperando, compartilhando e construindo significados e sentidos,
ainda que não mediados por significados comunitários. Estas atividades, conforme
passagem acima, eram marcadas, sobretudo, pela colaboração e pelo diálogo. Não era o
resultado de Nascimento que mais importava para avaliá-lo dentro do grupo, mas as
capacidades que demonstrava na convivência cotidiana com aquelas pessoas.
Como se pode perceber, de acordo com a análise feita no tópico anterior deste
capítulo, a participação no PRECE era voluntária e espontânea, além de um elevado nível
de auto-gestão.
Qual a vantagem de um grupo com tais características? Ora, um grupo que
demonstra abertura à participação coletiva e valoriza as produções de seus componentes
cria a possibilidade de que estes contribuam de modo ativo na construção do grupo.
Assim, como demonstram Góis (2003) e Rogers (2001), ao se sentir aceito e
compreendido, é possível ao sujeito considerar-se capaz de agir mais sobre o mundo e,
dessa forma, transformar-se. A forma de Nascimento participar, portanto, e as
transformações que essa participação, cada vez mais ativa, proporcionava-lhe, estavam
ligadas às interações que são oferecidas pelo coletivo de que fazia parte, que lhe dava
abertura para atuar de forma cada vez mais participativa e interativa com sua realidade.
Na terceira vez em que prestou vestibular, ele conseguiu entrar em um curso ligado
às Ciências Agrárias. Momento de grande alegria, Nascimento refere-se a este como um
desafio:
Num era nem uma vitória, era um desafio pra mim, certo, principalmente
prum cara que teve uma trajetória que eu tive, né, assim, de escola
pública e muita dificuldade, entendeu, e eu conseguir aquilo ali então era
uma experiência e tanto, uma vitória e tanto e eu agradeci realmente,
por eles terem, não terem deixado eu desistir, foram muito importante,
entendeu, quando eu pensei em desistir e.. (R.183, L.1176-1181).
O desafio a que alude Nascimento tem sentido de uma conquista que não serve
apenas para seu próprio benefício. Conforme disse Nascimento, em relação ao trabalho
desenvolvido na horta da EPC em que atuava, havia de sua parte um desejo de realizar
90
um trabalho mais voltado para a área de produção. Isto fica bastante evidenciado em sua
fala quando se refere ao que significou para ele o vestibular:
Pra mim, cara, passar no vestibular significava além de eu entrar na
universidade, significava também, cara, sabe, ter acesso a um
conhecimento, entendeu, que eu pudesse ajudar a minha comunidade,
que eu pudesse me preparar pra fazer os trabalhos que eu tinha feito
anteriormente com... assim... com menos, sei lá, menos preparo,
entendeu, então eu achava que vir pra universidade significava isso, é
adquirir mais conhecimento pra fazer aquilo que eu já tinha tentado fazer
com melhor qualidade. (R.172, L.1103-1110).
Assim, os conhecimentos que Nascimento poderia adquirir com a entrada na
Universidade ganharam o sentido de poder também colaborar com o desenvolvimento de
sua comunidade, um modo de aperfeiçoar trabalhos que desenvolvia, como ele mesmo
relata, na citação acima. Contudo, o que talvez Nascimento não perceba, mesmo sendo um
elemento presente em sua trajetória, é que a Universidade nem sempre cumpre um papel de
transmissora de conhecimento, tornando-se, muitas vezes, fornecedora de algumas
informações. Cabe àqueles envolvidos no processo educativo a vinculação entre os
conteúdos dados em sala de aula e a realidade social na qual os envolvidos fazem parte.
Fica evidente, nas palavras de Nascimento, uma vinculação muito forte com as
questões de seu tempo e lugar, advinda de sua interação com a realidade. Essas
características se assemelham bastante às descritas por Luria (2005) sobre o processo de
mudança ocorrido no Uzbequistão quando moradores do local se submeteram à
coletivização do trabalho, ao planejamento conjunto do trabalho e à escolarização básica.
De acordo com Luria (2005, p. 216), estas atividades criaram motivações
complexas, que não só ligadas a atividades práticas concretas, que
[...] assumem a forma de planejamento consciente do próprio trabalho
individual [...], interesses que ultrapassam as impressões imediatas e a
reprodução de formas concretas de atividade prática. Essas motivações
incluem o planejamento do futuro, os interesses da coletividade e,
finalmente, uma quantidade de tópicos culturais importantes intimamente
ligados à alfabetização e aquisição de conhecimento teórico.
Podemos declarar, então, que as interações de que Nascimento participou no
PRECE foram apropriadas e significadas por ele, mudando sua compreensão da realidade,
assim como da própria utilização dada aos conhecimentos por ele adquiridos. Segundo
91
Nascimento, sua percepção de que a utilização dos conhecimentos que adquiria poderia
auxiliar no fortalecimento de atividades produtivas, em sua comunidade, aconteceu da
seguinte maneira:
Quando eu comecei a estudar, quando eu comecei a estudar eu comecei a
perceber que se a gente comar a colocar os nossos conhecimentos ali
dentro, até pela minha experiência na horta também, se a gente
começasse a usar alguns conhecimentos naquelas atividades, elas
poderiam se tornar muito mais lucrativas e aí eu desde cedo, antes
mesmo de eu entrar na universidade, eu já incentivava as pessoas a
mudar e hoje eu coordeno um grupo [...], que em final de 2006 nós
começamos uma [unidade], [...] de bovino de leite. (R.. 204, L. 1308-
1314).
Assim, dada sua experiência com a horta desenvolvida na EPC em que atuava, ele
passou a atribuir às informações a que tinha acesso o sentido de instrumento auxiliar no
desenvolvimento de sua comunidade, ou seja, transformava-a em conhecimento. Portanto,
seu modo de significar a realidade, o que podemos compreender, de acordo com o capítulo
em que versamos acerca do tema da consciência, como o movimento de sua consciência
(conscientização), é mediado por sua ação no mundo, no caso, sua interação, ocorrida a
partir do processo educativo.
Freire (1979) traz uma discussão acerca dessa concepção de educação, quando
discute os termos “extensão” e “comunicação”. Para este autor, o primeiro termo
diferencia-se do segundo, pelo fato de que, na comunicação, o reconhecimento de que,
pronunciando o mundo junto com o outro, podemos transformá-lo. E assim a educação
apareceria como situação gnosiológica, diferentemente de um modelo bancário, reprodutor
de idéias e situações que se apresentam como acabadas, em que muitas vezes ela é
pensada.
A educação, portanto, no discurso de Nascimento, aparece muito próxima do
sentido de comunicar, ao invés de estender, pois não se lhe apresenta como algo que lhe
coloque num patamar superioridade em relação a seus conterrâneos, senão que funciona
como um mediador para alterar seu modo de compreensão da realidade e dos mecanismos
para superar as dificuldades que a compõem. Freire (1981, p.7) concebia o processo de
conhecer na Educação Libertadora da seguinte forma:
92
Conhecer não é o ato através do qual um sujeito transformado em objeto,
recebe dócil e passivamente os conteúdos que outro lhe ou lhe impõe.
O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito
em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade.
Demanda uma busca constante, implica em invenção e reinvenção.(...)No
processo de aprendizagem, aprende verdadeiramente aquêle que se
apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode,
por isso mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-
apreendido a situações existenciais concretas. Pelo contrário, aquele que
é enchido por outros de conteúdos cuja inteligência não percebe, de
conteúdos que contradizem a própria forma de estar em seu mundo, sem
que seja desafiado, não aprende.
Como podemos perceber, o conhecimento implica numa apropriação e
resignificação de si por parte de nosso entrevistado. Afirmamos isso com base no fato de
Nascimento dizer que, quando passou a estudar e até por sua experiência na hora do
PRECE, transformou sua atuação e, por conseqüência, também sua percepção, de sua
relação com o conhecimento, que passou a ser atravessada por questões coletivas. É nesse
sentido que Kozulin (1994, p. 118) relata que “os processos mentais superiores não se
adquirem nem mediante um processo de compreensão súbita em um momento dado, nem
mediante uma cópia da conduta adulta. As operações simbólicas surgem de condutas que
inicialmente não são simbólicas.”.
No começo, não havia qualquer ligação, para Nascimento, entre o PRECE e um
trabalho que se aproximasse mais da realidade do município de Pentecoste. Tal sentido
foi construído devido sua atuação na horta orgânica, na qual percebeu que seus
conhecimentos poderiam ser empregados para outros fins que não só passar no vestibular
19
.
Este projeto foi sugestão do coordenador do PRECE e, nele, era possível aos “precistas”
observar no cotidiano e na prática boa parte dos conteúdos a que tinha acesso em sala de
aula, conforme pode ser notado na seguinte passagem:
Mas eu ia todo sábado para o Pentecoste, na hora do estudo eu tava
[onde funcionava o projeto estudante ativo], eu ficava conversando com
um, com outro, vendo com os facilitadores as formas melhor, analisando
alguns trabalhos, reunindo no final da atividade pra ver como, tá vendo
(R.213, L.1349-1352)
19
Não queremos aqui denegrir o que representa, para um estudante da escola pública, vindo do interior,
passar no vestibular. Quando falamos “só” passar no vestibular, designamos apenas o caráter exclusivo deste
sentido na vida de Nascimento.
93
Assim, Nascimento, após entrar na Universidade, desenvolve um projeto chamado
Unidos Venceremos. Este projeto, como descrevemos anteriormente, possui uma
proposta de assessorar produtores do município de Pentecoste, que atuam em diversos
segmentos, no desenvolvimento de projetos que têm por base a cooperação entre esses
produtores e os “precistas” dos mais diversos cursos, mas principalmente os ligados às
Ciências Agrárias, com o intuito de proporcionar o desenvolvimento e a sustentabilidade
das comunidades.
Consoante já analisamos em tópico anterior, a participação de Nascimento nessa
atividade, por nós acompanhada durante três meses, acontece com ele no papel de
facilitador dos encontros. É concedida aos produtores que participam dos encontros a
oportunidade de tomarem parte em diversas instâncias que compõem o projeto,
contribuindo com propostas e relatando quais os entraves e potencialidades de suas
comunidades. Nascimento descreve a participação dos moradores da seguinte forma:
A idéia da gente fazer essa discussão sobre a realidade assim e tal e a
coisa parte muito deles, a gente procura logo saber o que eles pensam, o
projeto, a idéia de fazer o projeto também tem que passar por eles,
entendeu, assim, a idéia de dizer o que é o potencial daquela realidade
não somos nós, nós podemos muito bem como técnicos chegar lá e medir
todos os aspectos, “tem solo bom? Tem. Tem água? Tem. Tem energia?
Tem. Tem muitos ovinos e caprinos ou tem muito gado? Isso tudo pode
ser transformado em dinheiro? Pode.”. Mas pra gente é interessante que
eles digam, entendeu, o que que é potencial naquela comunidade, o que
que eles gostariam de fazer. (R.230, L. 1530-1540).
Nascimento expõe em sua fala o caráter dialógico da atividade que desenvolve
atualmente no PRECE, pois permite (em ato) aos outros o direito de dizerem as suas
palavras e tenta, a partir daí, construir um projeto coletivo. Freire (1981) fala do diálogo,
com condição sine qua non, para a superação da realidade opressora em que vivem as
maiorias em nosso país. É nesse sentido que Freire (1981, p. 149) postula que “o diálogo
com as massas populares é uma exigência radical.”.
Mais uma vez, evidencia-se no discurso de Nascimento uma concepção muito
próxima da de comunicação de Freire. Seu método de trabalho não é tecnicista, não
reconhece nos executores os detentores da verdade sobre o lugar, mas reconhece a
necessidade de se comunicar com eles.
94
O contexto aberto e problematizador, com o qual Nascimento se relacionava, deu-
lhe condições propícias para o desenvolvimento de uma consciência crítica, cada vez mais
inquieta, indagadora e dialógica, como descreve Freire (1984b). Sua participação, num
contexto em que é cada vez mais estimulada a se dar de um modo indagador, encorajada a
ser criativa, internaliza-se, é por ele apropriado, e modifica seu modo de apreender a
realidade.
É nesse sentido que Freire (1984a, p.43) afirma que “a partir da relação do homem
com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação
e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo,. Vai dominando a realidade. Vai
humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é fazedor.”. Acrescentaria
à fala de Paulo Freire que Nascimento, ao mesmo tempo em que acrescenta algo de si à
realidade, apropria-se de elementos da realidade que não apenas influenciam, mas
reorganizam sua leitura de mundo.
No desenvolvimento do projeto Unidos Venceremos, ele não se reconhece como
detentor da verdade, como se pode perceber na passagem acima. Freire, referindo-se à
participação de todos os envolvidos no processo educativo, compreende esee tipo de
postura, próprio da consciência crítica, da seguinte maneira:
(...) defender a presença participante de alunos, pais de alunos, de
mães de alunos, de mães de alunos, de vigias, de cozinheiras, de
zeladores nos estudos de que resulte a programação dos conteúdos das
escolas (...) não significa negar a indispensável atuação dos
especialistas. Significa apenas não deixá-los como ‘proprietários’
exclusivos de um componente fundamental da prática educativa.
Significa democratizar o poder da escolha sobre os conteúdos a que se
estende, necessariamente, o debate sobre a maneira mais democrática de
tratá-los (...).Não é possível democratizar a escolha dos conteúdos sem
democratizar o seu ensino (FREIRE, 1992, p.111).
Nascimento refere-se aos encontros do “Unidos Venceremos” como momentos que
produzem uma transformação em sua vida, no sentido de cada vez mais se apegar à
realidade:
Toda vida que eu me encontro com um grupo de produtores, pra mim
acontecendo uma transformação, então eu não posso dizer qual é a mais
importante, mas eu acredito assim, que todas têm, todas têm um
[incompreensível], é uma transformação assim, eu acho assim, que a cada
dia eu me apego mais à realidade, entendeu, e acho que é possível
95
transformar aquela realidade, entendeu, então é a transformação assim,
pelo fato de eu tá na universidade hoje... (R. 225, 1482-1487).
A ação de Nascimento no mundo é internalizada e significada de modo a ver como é
possível a transformação de sua realidade e de seus conterrâneos, a quem se sente
intimamente ligado. Luria (2005, p.106), descrevendo sua pesquisa no Uzbequistão com
pessoas que produziam de modo coletivo e que haviam passado por um processo educativo
mínimo, comparadas a pessoas que julgava culturamente atrasadas
20
, geralmente
analfabetos e que não haviam aderido ao novo modo de produção implementado pela União
Soviética, comenta: “uma quantidade mínima de instrução e de trabalho em fazenda
coletiva que requer contato organizado com pessoas, discussões em grupo sobre
problemas econômicos e participação na vida comunitária foi suficiente para provocar
mudanças fundamentais em seus hábitos de pensamento.”.
Assim também podemos entender o que nos diz Nascimento. A convivência, nos
moldes de uma atividade comunitária, tal como definida por Góis (2005) e explicitada
anteriormente, com o grupo de produtores, que compõem o projeto Unidos Venceremos,
rearranja o modo como Nascimento se percebe e sua realidade, o que ele nomeia, na
passagem acima, de “transformação”.
Freire (1984b) e Góis (1994), quando se referem à consciência crítica, apontam a
vinculação com o outro como uma característica desta. Nos dizeres de Freire (1984b, p.
41), a consciência crítica “ama o diálogo, nutre-se dele”. É exatamente isso que Nascimento
nos apresenta em seu discurso. A possibilidade de se encontrar com os produtores e
dialogar em torno de um projeto comum é, como ele diz, na passagem de sua entrevista
citada anteriormente, transformadora para si, pois essa interação cooperativa, além de
permitir-lhe um relativo distanciamento da realidade para pensar seus nexos, permite-lhe
reconhecer-se incompleto e vinculado à concretude de sua realidade.
Na seqüência de sua fala, Nascimento é questionado a respeito de onde vem essa
transformação a que ele se refere na passagem anterior:
20
Van der Veer e Valsiner (1996) trazem uma interessante discussão acerca do comprometimento dessa
pesquisa com o projeto político da União Soviética, bem como das discordâncias que hler, que
acompanhou Luria a algumas expedições ao Uzbequistão, tinha das interpretações que Luria deu a seus
estudos e que muito entusiasmaram Vigotski
, quando foram divulgados por Cartas de Luria ao precursor da
Teoria Histórico-Cultural da Mente. Contudo, por não ser nosso foco, não abordaremos tal discussão.
96
E (P226 , L1488): E ela [a transformação a que Nascimento se refere
quando fala dos encontros com os moradores] vem desse encontro com
eles?
SE (R226 , L1489): Vem desse encontro. Eu poderia muito bem me
afastando um pouco das comunidades, entendeu, na universidade eu
poderia pensando “eu tenho que me dar bem”, eu tô adquirindo
conhecimento e os conhecimentos que eu adquiro na universidade são
muito voltados pra multinacionais, pra grandes empresas, eu poderia
muito bem dizer assim “eu vou me dar bem, esse povo aqui que se lixe”,
mas esses encontros aqui é que é essa transformação na minha vida,
entendeu, de que eu tenho que, tenho essa consciência de que eu tenho
que usar meus conhecimentos ali e fazer com que aquela terra árida e tal
e aquele povo sofrido gerem muito resultado, então quando eu vou
praquele encontro ali eu me sinto com essa esperança de que pode dar
certo e que...
Nascimento mostra, por meio de seu discurso e de suas ações, quão significativa é
esta atividade para si. Aprofunda sua consciência em relação aos problemas locais e
reconhece a força do diálogo na superação deles, trazendo para um debate efetivo, com os
conhecimentos que adquire na Universidade, os agricultores, que, a partir de sua vivência
do lugar, buscam apontar soluções.
Há, contudo, um dado que merece destaque: o começo dos trabalhos do Unidos
Venceremos depende muito da iniciativa de Nascimento, o que nos faz indagar que
transformações se operam nos moradores participantes dessa atividade. Afinal, a
transformação aqui referida é a de Nascimento, mas sabemos que a transformação social
necessariamente passa por um processo coletivo (DEMO, 1988). Qual o impacto, por
exemplo, de uma eventual ausência de Nascimento na execução dessas atividades? Esta é
uma questão que, num estudo posterior, mereceria uma aprofundada investigação.
A partir de Luria (1987, p.21-22), podemos compreender a fala de Nascimento
como um desdobramento da atividade humana. De acordo com este autor,
A atividade vital humana caracteriza-se pelo trabalho social e este,
mediante a divisão de suas funções, origina novas formas de
comportamento, independentes dos motivos biológicos elementares. A
conduta já não está determinada por objetivos instintivos diretos [...]. O
trabalho social e a divisão do trabalho provocam a aparição de motivos
sociais de comportamento. É precisamente em relação com todos esses
fatores que no homem criam-se novos motivos complexos para a ação e se
constituem essas formas de atividade psíquica específicas do homem.
Nestas, os motivos iniciais e os objetivos originam determinadas ações e
97
essas ações se levam a cabo por meio de correspondentes operações
especiais.
Assim, as atividades que Nascimento desenvolveu ao longo de sua trajetória
proporcionaram-lhe a criação do que Luria (1987) chama acima de “motivos sociais de
comportamento”. O sentido que Nascimento atribui a sua atividade – o motivo social
gerado a partir da interação de sua atividade é de se importar com sua comunidade, bem
como com as vizinhas.
Pensando-se de modo natural, não haveria razão para que ele desenvolvesse o
trabalho com os produtores das regiões de seu município. É assim que podemos, a partir da
Teoria Histórico-Cultural da Mente, a razão que Nascimento desenvolve para se dedicar a
essa atividade coletiva. A interação com os produtores, portanto, cria novas necessidades e
faz com que ele acredite que a mudança do quadro em que muitos deles se encontram
(produzindo no sistema de subsistência) é possível.
A ansiedade dele para formar um grupo e facilitar seu funcionamento ganhou uma
outra faceta, bem diferente daquela que fazia com que ele chorasse por conta do andamento
dos trabalhos. Nascimento refere-se a este aspecto do trabalho com os grupos da seguinte
forma:
E (P237, L1562): E me diz uma coisa, com o passar do tempo, tu
percebeu alguma mudança na tua forma de participar das atividades?
SE (R237 , L1564): Sim.
E (P238, L1565): Como?
SE (R238, L1566): Por exemplo, eu era muito ansioso, eu vejo assim,
talvez o que deu errado na igreja, a minha na igreja é porque eu
tinha uma ansiedade, eu queria logo, queria decidir logo. Hoje eu tenho
muito mais paciência, assim, entendeu, assim, a questão da paciência
histórica, né, então eu tenho muito mais paciência hoje, eu espero que as
pessoas se coloquem, que as pessoas falem, pra depois a gente poder, né,
entrar principalmente nesse grupo dos produtores, é importante esperar
que eles falem, eu acho que a gente tem que falar instigando eles a falar a
se colocar, porque não é muito fácil, né?
Assim, as diversas experiências por que passou Nascimento deram-lhe uma ação e
uma percepção diferenciadas do processo de trabalho em um grupo. Se, em seu primeiro
trabalho, ele se angustiava com o fato de não conseguir unir o grupo em torno de um
98
objetivo comum, hoje, tendo passado por outros trabalhos semelhantes, percebe que este
tipo de trabalho exige “paciência histórica”, ou seja, uma mudança cultural e, portanto,
lenta, como foi sua própria mudança. Tal dado é consoante ao que afirmam Van der Veer e
Valsiner (1996, p. 278) quando assinalam que “práticas culturais diferentes levam a
diferentes modos de pensar.”. Ora, sabemos, a partir da Teoria Histórico-Cultural da Mente
e da Educação Libertadora, que ninguém nasce pensando de uma forma ou de outra, que
nos construímos a partir do convívio social.
Nascimento não sabia trabalhar com grupos no sentido de conhecer que este tem um
processo longo, que foge ao controle do facilitador (ROGERS, 1978), mas também nunca
havia sido educado na perspectiva de aprender a fazê-lo. Sua convivência cooperativa
diária no PRECE internalizou-se num modo de proceder com grupos bem diferentes
daquele praticado na época da Igreja, pois, ao se compreender no grupo que facilita, como
alguém cuja função é principalmente instigar os outros a se colocarem no ato de ler a
realidade, assume um princípio-básico da atividade comunitária, qual, seja, estimular esses
processos de leitura do mundo (FREIRE, 1981).
Diferentemente de outros projetos dos quais Nascimento participou no PRECE, o
Unidos Venceremos foi uma criação dele próprio, sem a influência tão direta do
coordenador do PRECE. De acordo com nosso entrevistado, isso fortaleceu sua autonomia:
Com [o Unidos Venceremos], eu descobri que eu tenho autonomia de
criar um projeto, eu tenho autonomia de executar esse projeto, entendeu,
eu tenho autonomia pra agregar a esse projeto outras pessoas, que
ninguém vai me criticar por isso, entendeu, que as pessoas vão valorizar
essa atitude, entendeu, me sinto a vontade pra fazer isso, aí eu acho
assim, que é uma questão de autonomia, coisa que no nosso país, num
sei, no nosso país não existe muito, entendeu, assim, a própria escola não
autonomia às pessoas, né, a própria escola cria um sistema que vai,
sei lá, tirando essa autonomia das pessoas, né, e por outro lado a gente tá
tendo essa capacidade de decisão, de sair da universidade, de sair do
nosso espaço acadêmico com uma ação mais atuante na comunidade e
essa outra mudança é uma mudança assim, de reconhecimento na
comunidade, de ser respeitado (R.240, L.1590-1600).
Nascimento reconhece, portanto, a autonomia que ganhou do PRECE ao poder
executar seu projeto, sentindo-se autorizado para tal. Não apenas pensa, mas, sobretudo,
percebe-se como possível autor de sua própria vida, a partir de seu modo de atuar no
mundo, criando um projeto que difere do que geralmente se faz dentro do próprio PRECE.
99
Esta atitude para consigo e com o outro é descrita por Góis (2005) como característica do
sujeito da comunidade. Segundo este autor (2005, p. 52)
Na construção do sujeito da comunidade está implicada a compreensão
do morador de que ele é responsável pela realidade histórico-social na
qual vive e que, também, é capaz de transformá-la em seu próprio
benefício e no da coletividade. Por reconhecer seu valor pessoal e seu
poder pessoal [...], o morador-sujeito descobre-se capaz de influir no
sistema de ação histórica [...] de sua coletividade e da sociedade maior.
A partir do relato de Nascimento, é notório como este se sente responsável e capaz
de intervir em sua realidade, de modo cooperativo. Interessante destacar que, mesmo
recebendo estímulos do coordenador do PRECE, ele nos deixa claro que esse processo não
ocorreu por um convencimento a respeito de qual conduta correta a ser adotada por ele,
mas, sim, por uma significação acontecida a partir da internalização de uma interação com
a concretude de seu mundo.
Assim, reforça-se na fala de Nascimento um desejo de que as informações
adquiridas na Universidade possam se tornar conhecimento que colabore com o
desenvolvimento de sua comunidade. Esse sentido fica bastante evidente, quando nosso
entrevistado é questionado sobre o que significa para ele participar dos encontros do
Unidos Venceremos:
Desde que eu saí da escola pública e fui pro Cipó, eu fui estudar no
PRECE e tal, foi uma construção, então eu acho que agora é hora de
fazer um retorno, entendeu, e esse retorno tem, eu vejo assim, tem que
gerar resultados, então é hora da gente mostrar o resultado prático de
tudo aquilo que minha mãe diz “olha, estudar”, então esse estudo,
então agora é hora de mostrar os frutos dele, entendeu, então eu acho que
[o Unidos] é um projeto de vida que eu tenho, eu acho que...(R.227, L.
1501-1506).
Conforme nos expõe Leontiev (1978; 1982), a atividade, diferentemente da ão,
traz consigo uma série de significados, que podem ser apropriados de modo singular por
quem a exerce. Assim, a fala acima evidencia que estudar, para Nascimento, adquire o
sentido de não apenas acumular informações, mas, também, auxiliar na transformação de
sua realidade.
100
Porém o que explicaria a produção desse sentido para o aprendizado na
Universidade? Vale lembrar que, em passagem anterior, referindo-se ao trabalho na horta
do PRECE, Nascimento afirma que aquele trabalho “abriu sua cabeça” para trabalhos na
área de produção. Sua intervenção na realidade, a partir da atuação no PRECE, sempre
muito propositiva e engajada no projeto, resignificou a educação para ele, pois, até então, a
escola não lhe fazia muito sentido, no contexto de desigualdade, e até mesmo privações no
qual estava inserido:
Eu achava, assim, que era tão difícil....que eu achava que tinha que ajudar
meu pai. Eu dizia pra ela [a mãe], nas discussões que eu dizia pra ela,
assim: ‘Eu não posso estudar, estudar não me retorno.’, entendeu? ‘E
eu preciso ajudar o pai, porque a mãe vendo a situação.. (R.78, L-431-
343).
Naquele período, estudar era visto como uma coisa que “não dá retorno”. Estudar no
PRECE, cooperando com um grupo que compartilhava de significados e se apoiava de
modo mútuo, produziu uma mudança acerca do que significava estudar. Assim, o que antes
se apresentava como algo que não dava retorno passou a ganhar o sentido de algo que pode
auxiliar na superação de questões como a seca, por exemplo. Tanto que, quando
questionado a respeito de o que falta para que ocorra o desenvolvimento de sua
comunidade, Nascimento responde:
Falta os conhecimentos tecnológicos que sendo gerado, sendo
pensado, produzido dentro da universidade, chegar ao campo, entendeu,
tem muito conhecimento dentro da universidade, mas esse conhecimento
não chega até o produtor rural, entendeu, tem muitas instituições, como a
EMBRAPA, outras instituições de pesquisa, elas também têm se
aproximado muito pouco, entendeu, o poder público local, as secretarias
locais, né, de agricultura, outras secretarias também são assim, são, sei lá,
são algo representativo do poder público local, mas que não tem muita
força na comunidade, então essas coisas precisam ser transformadas,
entendeu, no dia em que isso realmente se transformarem, começarem a
atingir de forma de incentivo ao produtor, as pessoas da comunidade,
num precisa ser o produtor rural, mas pode ser outra área, área de
cosmético, área de, sei lá, outras áreas que gerem desenvolvimento, né,
na própria parte educacional mesmo, na parte de cultura também,
entendeu, então eu acho que isso causa o desenvolvimento comunitário,
né, mas eu acho que falta esse bando de coisa ainda, assim, que poderiam
realmente alavancar esse desenvolvimento (R.252, L.1676-1690).
101
Apesar da crítica pertinente de Nascimento às instituições produtoras de
conhecimento, como a Universidade e órgãos afins, falta-lhe, talvez, a clareza de que a
questão vai além. Afinal de contas, por que não chega? A que tipo de interesses está
atrelada a produção de conhecimento nestas instituições?. Como nos afirma Martin-Baró
(1998), os currículos universitários na América, e aqui podemos incluir a produção de
conhecimento de um modo geral, estão atrelados aos interesses de grupos dominantes e
trazer à tona o direcionamento social do conhecimento significa enfocar também as
desigualdades sociais a que estão submetidos os povos latino-americanos.
Nascimento vê a si e ao grupo que compõe como responsáveis por utilizar os
conhecimentos tecnológicos, a que se refere acima, em prol do benefício de sua
comunidade. Segundo nosso entrevistado, suas experiências foram fundamentais para que
se implicasse na resolução das problemáticas que seu contexto apresenta:
Porque não dá pra sair dali passando tudo que eu passei e, assim, tendo a
transformação que a gente teve em termos de consciência, e dizer assim
“eu não ligo praquele negócio”, “eu não ligo praquela comunidade”, “eu
não ligo praquelas pessoas”, entendeu, num pra você dizer assim “a
próxima seca vem”, que ela virá mesmo, nós vivemos numa região que
está sujeita a qualquer momento, qualquer ano, né, vir uma seca, então
ela vem, isso eu sei, como evitar que ela, eu num posso evitar que ela
venha, mas eu posso evitar que os danos causados por ela sejam muito
menor e eu deixar que as pessoas passem por isso se eu posso contribuir
com, pra que ela não passe por isso, então, assim, é algo que a gente
recebeu e num pode acabar, entendeu. (R.267, L.1770-1779).
Por meio do processo educativo e da atuação nas comunidades que compõem o
município de Pentecoste, Nascimento analisa a questão da seca, que tanto castiga o
sertanejo de nosso país ao longo de séculos, como algo perfeitamente mutável mediante
utilização de tecnologias desenvolvidas na Universidade. Aliado a essa tecnologia, ele
aponta o compromisso dos “precistas” que passaram pelos problemas que a seca
proporciona e que agora possuem, em diversas áreas do conhecimento, instrumentos que
podem diminuí-los. É nesse sentido que o entrevistada afirma:
Quem teve acesso à educação como nós tivemos, nós temos que dar
nossa colaboração. Se nós temos acesso a essa tecnologia, a esse
desenvolvimento tecnológico da universidade, de tecnologia, nós temos
que levar isso, né, até a comunidade. (R.254, L.1700-1702).
102
Do ponto de vista da Psicologia Comunitária, é possível compreender a postura de
Nascimento diante da realidade como conseqüência de suas oportunidades de interagir de
modo mais ativo sobre sua realidade. Góis (2005, p.52), ancorado nos trabalhos de
Vigotski, Freire e Lane, explica este processo da seguinte maneira:
O indivíduo, ao transformar a realidade, apropria-se cada vez mais dela e,
por conseguinte, passa a conhecê-la muito mais, torna-se, assim, sujeito de
sua história, de sua realidade, quer dizer, percebe-se responsável por seu
caminho, junto com os demais e, também, mediatizado por eles em sua
relação com o mundo. O sujeito da realidade tem uma consciência
aprofundada de seu mundo histórico-cultural e adota uma atitude reflexivo-
afetiva frente à sua realidade.
Foi oferecida a Nascimento a possibilidade de interagir de maneira mais ativa nas
atividades das quais participou e, a partir de então, percebeu-se como capaz de mudar sua
realidade. O PRECE, portanto, manifesta-se, no discurso de Nascimento, como uma
Instituição que fortaleceu sua atividade comunitária e sua consciência diante desta, não a
partir de uma série de regras a respeito do modo correto de lidar com as demandas do
cotidiano. Cabe, contudo, a ressalva de que, pelo modo como Nascimento coloca a questão,
de que ele, ao mesmo tempo em que atua de modo dialógico, conforme observamos em
nossas visitas, posiciona-se, em seu discurso, de modo “extensionista” (nos dizeres de
Paulo Freire), quando enfatiza que o conhecimento deve ser levado às comunidades.
Em um ambiente em que tudo era decidido de modo coletivo e a todos era dada a
oportunidade de participar das decisões, a possibilidade do desenvolvimento de uma
consciência crítica é bem maior do que num contexto que Freire (1984a; 1984b) descreve
como sociedade do tipo fechado. Numa cultura de tipo aberto, no que pese a existência de
conflitos, há um convite – até mesmo um estímulo – para que o sujeito se posicione.
Se a visão de si mudou a partir das atividades que Nascimento desenvolveu, o
mesmo podemos dizer a respeito de sua visão em relação às comunidades com que
trabalha. De acordo com nosso entrevistado, a mudança foi a seguinte:
Cada dia mais minha visão vem mudando em termo de comunidade,
entendeu, porque antes a gente tinha uma visão, eu tinha uma visão muito
de criticar, entendeu e eu acho que esse não é, não é a melhor coisa a
fazer, eu acho que devemos criar mecanismos, criar algumas ações que
possam vir a transformar essa realidade, em vez de ficar criticando,
103
porque o presidente da associação não faz nada, num sei quem num faz
nada, entendendo, a gente poder criar alguns mecanismos de
transformação dessa realidade, entendeu... (R.245, L.1621-1627).
Apesar de reconhecer a responsabilidade dos poderes públicos na resolução de
problemas, ele reconhece a si como alguém capaz de transformar a realidade em que vive,
mediante o que chama de mecanismos de transformação, como o trabalho que desenvolve
no projeto Unidos Venceremos, seu “projeto de vida”. Com base em Freire (1984a),
podemos dizer que o modo como Nascimento agia se assemelhava a uma postura ingênua
diante dos fatos, conforme descrição dada em capítulo anterior, e adotou, a partir dessa
interação mediada por seu trabalho, uma postura crítico-transformadora, mesmo que
limitada pelo alcance do projeto que desenvolve. Afinal, até onde podem ir essas
transformações? Como elas podem se dialogar com uma mudança macro-social?
Dessa forma, a partir de seu modo de atuar, ele consegue vislumbrar um futuro
promissor, talvez não para si, mas que, certamente, conta com sua colaboração e daqueles
que compõem o PRECE:
Eu vejo assim, por exemplo, a [minha comunidade], no futuro, entendeu,
como toda essa organização, tem grupos se organizando, né, educação
melhorando da proposição da própria comunidade, entendeu, porque hoje
tem um monte de jovem da [minha comunidade] que entraram no
PRECE, que tão entrando na universidade, que tão com um sonho
também de retornar pra lá, significa que daqui uns dias essas pessoas vão
começar a mobilizar mais comunidades e exigir esses bens, entendeu e aí
vamos chegar a um momento em que a comunidade vai se
transformando, vai se transformando e eu vejo no futuro meu filho
morando lá, nessa comunidade, morando numa comunidade muito
melhor do que a minha, no dia em que vier uma seca como a de 93,
entendendo, que ele precise irrigar com balde, mas que ele tenha todo um
sistema de irrigação, entendeu, com bombas e tal, tudo mecanizado,
porque é isso que é feito em Israel, é isso que é feito na Califórnia,
entendeu, as pessoas lá não precisam irrigar com balde, entendeu, porque
existe tecnologia e essa tecnologia tá sendo usada mesmo, é pra ser usada
por todo mundo e muitas dessas tecnologias são descobertas dentro de
uma universidade pública, dentro de empresas públicas que precisam
o retorno pra sociedade, então eu vejo isso, entendeu, eu vejo uma
comunidade no futuro, assim, principalmente pro meu filho e dos filhos,
os que tão nascendo aí, que tem esses bens, talvez a gente não
conseguir...(R.261, L.1723-1741).
A construção da visão de futuro de Nascimento não é um epifenômeno, senão que é
fruto de uma caminhada de transformações do mundo e de si, intensas interações que o
104
apenas influenciaram, mas configuraram de modo decisivo sua leitura de mundo e de si. A
comunidade de seus sonhos, que trabalha dia-a-dia para construir, é uma comunidade
transformada por aqueles que vivem moradores e “precistas” e sobre a qual
Nascimento hoje reconhece seu papel de estimulador do desenvolvimento a todos aqueles
que lá queiram viver.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos, neste estudo, em primeiro lugar, compreender os diversos elementos que
constituem o fenômeno da participação, atentando para discursos que fossem ou não da
Psicologia e que tivessem esta como seu tema principal. Em seguida, procuramos
compreender a partir da Teoria Histórico-Cultural da Mente, da Educação Libertadora e da
Psicologia Comunitária de que modo poderia ser entendida a participação e a formação da
consciência.
Os dados colhidos nas visitas a campo vieram enriquecer as discussões a respeito da
formação social da mente, pois encontrarmos nos mais diversos discursos dentro da
Psicologia uma ênfase na necessidade de uma contextualização em qualquer trabalho que se
faça, ainda são poucos os que de fato tentam realizar um estudo genético como o que
tentamos empreender neste estudo. Dessa forma, a partir do discurso de Nascimento, foi
possível percebermos como seu modo de participar de atividades comunitárias atuou em
seu modo de significação da realidade.
Vimos que uma participação mais ativa, como a que Nascimento desenvolveu no
PRECE, em especial, propicia oportunidades de que a consciência avance cada vez mais
em sua interação com o meio. Essa interação, ao mesmo tempo em que tem a presença da
transformação do mundo, traz a mudança da leitura da realidade por conta de Nascimento,
o que, a partir de Paulo Freire, chamamos de conscientização.
Acreditamos, portanto, que os objetivos propostos para esta pesquisa que passam
por uma observação das formas de participação e de como esse modos de participação
influenciam nos processos de conscientização foram contemplados, como sintetizamos a
seguir.
Foi possível convivermos, baseados numa perspectiva etnográfica, com o grupo do
PRECE de modo cotidiano, participando de encontros promovidos tanto em Fortaleza,
quanto em Pentecoste. Essa aproximação nos deu condições de observar a participação de
“precistas”, nas diversas atividades por eles desenvolvidas, bem como conhecê-los mais de
perto e saber que tipo de atividades eles desenvolviam em suas respectivas comunidades.
Podemos destacar que o PRECE é bem mais do que no começo nos parecia. Se a
metodologia diferenciada de educação foi que chamou nossa atenção, em princípio, o
106
convívio cotidiano mostrou que, para a população de Pentecoste, é um projeto por demais
importante. Além disso, foi possível observarmos que, atualmente, há um movimento, que
cresce cada vez mais, de ampliar o raio de ações para outras frentes que não o pré-
vestibular, como o caso do Projeto Unidos Venceremos e outros atualmente em elaboração,
por parte de membros do grupo.
Ademais, chamou-nos atenção a convivência do grupo, que nos pareceu propiciar
condições que não favorecem o movimento da consciência, como cria entre si um clima
cooperativo. Isto, como pudemos verificar no discurso de Nascimento, fortalece o valor
pessoal e o poder pessoal de cada pessoa que compõe esse grupo, de modo que um
sentimento coletivo de apoio a cada uma das iniciativas que se tomam no grupo.
A inserção em diversos momentos coletivos no PRECE deu-nos condições de
observar muito perto os diversos modos de cada um dos “precistas” participarem das
atividades que são desenvolvidas. Apesar de nosso enfoque ter-se dado a partir de uma
pessoa que participa de modo bastante ativo, são várias as formas de os membros daquele
projeto interagirem em seu cotidiano, o que, sem dúvida, deixa-nos a seguinte questão:
como será que pessoas, que quase nunca se manifestam durante os encontros do grupo,
percebem sua realidade?
De que forma essa interação cooperativa, por nós identificada, é apropriada por
esses membros? Sem dúvida, esta questão mereceria uma investigação mais aprofundada,
até porque Góis (2005) aponta que uma participação menos ativa favorece a gênese de uma
consciência ingênua. Será, então, que estes outros membros desenvolvem uma consciência
ingênua, em sua apreensão do mundo, mesmo participando do mesmo contexto de que
participa Nascimento? A tensão entre singularidade da significação do mundo e os
contextos em que esta singularidade é produzida é, sem dúvida, outra questão que
mereceria atenção, em um futuro estudo comparativo, por exemplo.
A participação de Nascimento vai sempre na direção de um fortalecimento de sua
interação com a realidade, de modo que, ao transformá-la, sente-se e percebe-se cada vez
mais transformado. Sua construção como sujeito de sua história está diretamente ligada a
uma forma ativa de participar das atividades comunitárias, como por diversas vezes é
possível notar em seu discurso.
107
Contudo, nem sempre nos encontros realizados nas comunidades é possível
encontrarmos esta forma de participação presente, pois, por uma série de razões pelas quais
não nos deteremos, os moradores costumam esperar que Nascimento ou uma liderança
local tome a iniciativa. Isto nos leva ao seguinte questionamento: que impacto esses
encontros produzem na leitura da realidade por parte desses moradores? Que diferenças
esse impacto guarda em relação ao que é vivenciado por Nascimento em sua convivência
com o grupo? Afinal, qual o impacto de diferentes formas de participação?
Um outro aspecto não abordado no trabalho, mas que também mereceria uma outra
investigação, que não é nosso foco, diz respeito à questão da educação. Nos estudos de
Luria (2005), por exemplo, quando investiga as transformações ocorridas nas funções
psicológicas superiores, não só novas formas de interação, presentes na produção coletiva
implementada pela União Soviética no Uzbequistão, são levadas em consideração, como
também um mínimo de instrução recebida pelos agricultores participantes da pesquisa.
Assim, por exemplo, podemos nos perguntar a respeito de até que ponto a educação
recebida por Nascimento fortaleceu esta perspectiva de leitura crítica da realidade.
Evidentemente, não se trataria de argumentar a respeito de toda e qualquer instrução
recebida por Nascimento, senão que o modelo de uma educação mais dialógica, como a que
o PRECE busca desenvolver.
Isto, inclusive, aponta-nos para a necessidade de se criarem políticas públicas que
possam favorecer uma maior interação do sujeito com seu contexto concreto. Afinal, como
pudemos observar na fala de Nascimento, sua concepção de educação era completamente
outra antes de passar pelo modelo de educação dialógico desenvolvido pelo PRECE, pois
ela não se conectava a seu contexto, nem se apresentava como algo que pudesse fornecer
ferramentas para a superação das dificuldades que esse contexto apresentava.
Como já apontava Paulo Freire, durante diversas vezes em sua obra, a educação que
as políticas públicas praticam diz muito do homem que elas esperam que conviva no país.
Qual seria o impacto de um trabalho que valorizasse a cooperação e a problematização nos
diversos espaços educacionais do país? Lutar pela construção desta utopia já seria um
grande começo para se buscar esta resposta.
Nascimento apropriou-se desses contextos de cooperação de um modo cada vez
mais crítico. Pudemos observar, ao longo do trabalho, a dimensão do impacto que estas
108
interações têm tido nos modos de Nascimento significar sua realidade, de maneira que,
quanto mais oportunidades de participar de um modo mais ativo, mais aprofundava sua
leitura a respeito da realidade. Além de sua iniciativa própria, sem dúvida, contribuiu para
tanto o contexto em que esteve, pois lhe foram ofertadas oportunidades de coordenar
atividades, tanto na Igreja de sua comunidade, quanto nas atividades do PRECE.
O trabalho com Psicologia Comunitária tem a contribuir com espaços como o
PRECE, pois as duas perspectivas se assemelham no sentido de colaborar para o fomento
de interações coletivas e cooperativas. Pensamos que, também no âmbito das políticas
públicas, seria de grande relevância implementar trabalhos que tivessem essa perspectiva
como fundamento.
Seria interessante pesquisar, então, de que forma as interações propiciadas por um
grupo facilitado por psicólogos comunitários pode contribuir de fato para o fortalecimento
da atividade comunitária e da consciência de moradores. Da mesma forma, esperamos que
este estudo possa servir de provocação para que não só a Psicologia Comunitária, mas
todos aqueles que buscam um trabalho que tenha como horizonte ético o desenvolvimento
da autonomia dos sujeitos envolvidos e que os instigues na busca de construção de formas
em que cada área dessa pode contribuir nesse intento.
109
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113
ANEXOS
114
ANEXO A – DIÁRIOS DE CAMPO
Diário de campo – visita a Pentecoste em 14/09/07
Finalmente, depois de muitos meses de pesquisa teórica, fui a campo, fazer a
pesquisa do meu mestrado. Ano passado, fui com os membros do NUCOM e fiquei na
mesma localidade em que fiquei nesta minha primeira ida a campo após a qualificação:
Cipó. Devo confessar que o sentimento era de apreensão e estranheza. Apreensão, porque
eu não fazia a menor idéia do que encontraria ali, podendo haver ou não receptividade por
parte dos “precistas” e dos coordenadores da instituição. Eis que chego num local em que a
grande maioria das pessoas nunca tinha me visto e me recebe de uma maneira muito
hospitaleira. Sem dúvida, que ajudou bastante a que me sentisse em casa, mesmo que
distante 100 km de onde eu moro e sem qualquer possibilidade de contato, que em Cipó
não há sinal para funcionamento adequado de celular. Procurei agir da maneira mais cordial
e educada possível, tentando ouvir com atenção as pessoas e me colocar não como o
pesquisador apenas, mas como alguém interessado em conhecer e me relacionar com o
lugar. Na manhã do sábado, ainda meio perdido no local, fui à sede a EPC de Cipó e
acompanhei uma reunião da coordenadora da EPC com um grupo de agricultores
assentados num município próximo a Pentecoste que queriam voltar a estudar e gostariam
de abrir uma EPC onde moram. Emocionou-me bastante o fato de vê-los, “àquela altura do
campeonato”, tentando algo mais, buscando outras conquistas, enfim, sonhando. Após a ida
daqueles agricultores, procurei observar as atividades que estavam sendo desenvolvidas na
EPC e vi que havia poucos alunos (em torno de 11) e apenas a facilitadora, esperando que
algum dos estudantes viesse lhe pedir para tirar dúvidas. Fui chegando, me apresentei e,
como ela estava presente na reunião em que fui pedir autorização para fazer a pesquisa,
sabia o motivo de minha ida a Pentecoste, mas nem por isso se sentiu intimidada e
começamos a conversar sobre as atividades que desenvolve ali, ou melhor, a atividade, pois
uma precista com quem conversei, dá aulas de biologia todos os sábados, na EPC Cipó. Ela
falou da dificuldade que enfrentou para entrar na Universidade, inclusive relatando que
iniciou o curso de Economia Doméstica na UFC e não gostou, trocando pelo de Educação
Física, que cursa atualmente. Falou também sobre o processo de conseguir uma vaga na
residência universitária, local onde mora em Fortaleza. Segundo ela, nesse processo, há
115
uma fiscalização agressiva da Universidade, que vai às residências dos universitários que
moram no interior e verifica se são “bem pobrezinhos” (nos dizeres dela), se precisam
mesmo morar na residência universitária. Falou pra mim de como acha insuficiente apenas
dar aulas de cursinho e que gostaria de montar um projeto que envolvesse algo mais
próximo de seu curso na sua comunidade, tendo em vista, inclusive, a falta de áreas de lazer
em sua comunidade. Falou-me também da vinculação que tem aos estudantes, de como é
bom quando eles são aprovados, e do cada manhã que os facilitadores de aprendizagem
preparam para o vestibulando no dia da prova inclusive me convidou para estar presente
neste dia. Durante à tarde, conversei com Nascimento a respeito de um projeto que ele está
desenvolvendo junto ao instituto Coração de Estudante: o “Unidos Venceremos”, um
projeto que me pareceu muito ousado, no sentido de superar a dimensão de pré-vestibular a
partir da qual por vezes o PRECE costuma ser pensado. Trata-se de um trabalho que
envolve desenvolvimento econômico e organização comunitária, pois tenta aglutinar os
produtores de uma determinada região, no sentido de que possam produzir juntos,
reduzindo custos e aumentando a produtividade. Um desafio que Nascimento colocou a
respeito deste trabalho foi a dificuldade em conseguir articular os produtores, dimensão que
seu trabalho (do ramo das ciências agrárias) não consegue dar conta, e que espera a
cooperação dos nuconianos para seja possível. O que mais me impressionou, sem dúvida,
foi a implicação de Nascimento em todo esse processo. A princípio, poderia pensar que se
trata de um projeto tecnocrático, mas, na verdade, é algo que envolve Nascimento como
pessoa, muito mais do que como técnico que, aliás, ainda não é. Levamos a tarde inteira,
pois Nascimento o parava de me mostrar fotos e idéias sobre o projeto, sonho que tinha
em ver a comunidade se desenvolvendo e criando condições para que precistas que hoje são
universitários em breve se tornem profissionais que não precisarão sair de sua terra natal
para que exerçam seu ofício. Ali, visualizei o quão interessante seria entrevistar
Nascimento para minha pesquisa. Claro, ainda havia outros trabalhos para conhecer, mas
alguém que desenvolvesse uma atividade muito próxima do que concebemos como
atividade comunitária e com um nível de participação tão alto quanto o dele, eu sabia que
não seria tão simples de achar. Na verdade, saí encantado, senti que aquela conversa havia
valido por toda a minha viagem, pois tinha uma idéia de que o PRECE se resumia ao pré-
vestibular. De fato, o pré-vestibular é o braço mais forte desse projeto, mas estudantes,
116
como Nascimento, que tentam desenvolver projetos que vão além desse que deu origem ao
trabalho precista. Nascimento me convidou a, no dia seguinte, pela manhã, irmos a uma
reunião da União dos Agricultores do Vale do Rio Canindé (UAVRC), na qual ele
explanaria sobre o projeto para rias lideranças comunitárias de localidades que fazem
parte do Vale do Rio Canindé. Evidentemente, topei na hora.Inclusive, como em seguida, à
noite, me encontrei com o pessoal do NUCOM, contei com sua companhia nessa reunião da
UAVRC. No domingo, então, pela manhã, fomos à reunião da UAVRC, na comunidade de
Irapuá. Lá chegando, conheci Sr. Gilberto, presidente da associação e parceiro do NUCOM
no trabalho feito pela equipe que trabalhou, anteriormente. Por isso mesmo, nos recebeu
muito bem ao saber que eu e as pessoas do NUCOM éramos da Universidade, perguntando
pelas pessoas da equipe anterior, com as quais, segundo ele, mantinha um bom
relacionamento. A reunião não tinha um caráter de muito debate, limitando-se a uma rie
de informes das lideranças das diversas localidades que compõem a UAVRC, mas serviu
para que pudesse ter uma noção de como são as localidades em que Nascimento
desenvolverá o projeto Unidos Venceremos e as lideranças que atuam. Aliás, a este
respeito, posso dizer que pareceram bem abertas ao trabalho e disposta a trabalhar junto,
pois vão exercer o papel de articuladores, no projeto das Unidos Venceremos, articulando
os moradores para que estes possam participar dos encontros do Unidos Venceremos em
suas comunidades. Terminada a reunião, almoçamos juntos, eu, Nascimento, sua esposa e a
equipe do NUCOM, em Pentecoste, onde começou a se desenhar uma reaproximação entre
PRECE e NUCOM através do Unidos Venceremos. Encerrado o almoço, pude retornar a
Fortaleza, ainda encantando com a ousadia da atividade que Nascimento pretende
desenvolver e fazendo os contatos para uma visita ao desenvolvimento de uma dessas
atividades, em breve.
Diário de campo – visita a Pentecoste em 28/09/07
Fui informado numa reunião do PRECE que, nessa data, seria realizada uma reunião no
Centro de Pesquisas Ictiológicas, em Pentecoste, para a formação do Conselho Municipal
de Segurança, o primeiro do Ceará. Esse conselho foi desenvolvido através do trabalho que
o NUCOM desenvolveu juntamente com o PRECE ano passado. Como haveria a
participação de precistas, fui participar do evento. Chegando lá, vi que era um evento que
117
contava com a participação de diversos membros da sociedade daquele município. Havia
pessoas de setores das Igrejas, Imprensa, agricultores, precistas, órgãos públicos
municipais, enfim, parecia que a coisa ali era bem recheada de representantes. Depois de
muita discussão sobre os critérios para escolher os setores representados, na qual o PRECE,
através de seu fundador, Manoel Andrade, foi decisivo, escolheram-se os representantes e
Jocélio (como titular) e Andrade (como suplente) foram escolhidos para representar o
PRECE e ficou marcada a primeira reunião do grupo para o dia 19 de outubro. Encerrada a
reunião, fui almoçar com os precistas e Andrade, com o qual ainda não havia conversado
sobre a pesquisa que quero desenvolver no PRECE. Andrade mostrou-se muito aberto,
falou de suas perspectivas para o PRECE como movimento social suas idéias sobre
educação e, quando soube que tenho leituras acerca de Paulo Freire e Carl Rogers disse que
minha presença ali seria estratégica no sentido de trocar idéias para o desenvolvimento de
um projeto que o Instituto Coração de Estudante está desenvolvendo para as escolas de
Pentecoste. Aceitei contribuir com idéias, uma vez que seria até mesmo uma forma de
observar mais de perto o cotidiano de trabalho daquelas pessoas. Para tanto, ficou marcado
um encontro na sexta-feira, dia 05 de outubro na sede do PRECE em Fortaleza.
Diário de campo – visita a Pentecoste em 06/10/07
O objetivo desta visita era conhecer duas atividades comunitárias desenvolvidas por
“precistas”. A primeira, por Desafio, um ex-agricultor de 47 anos, atualmente estudante de
um curso de ciências agrárias.Sua história me interessou demais, por sua luta e persistência.
Até os 37 anos, Desafio tinha até a série do ensino fundamental. Resolveu, então,
juntamente com sua esposa, voltar a estudar, concluindo o ensino fundamental no sistema
EJA. Deu continuidade, concluindo o segundo grau pelo telecurso, onde, segundo ele
mesmo, não aprendeu nada, mas a partir do qual concluiu seu ensino médio. Deslocava-se
vários quilômetros de sua comunidade para a comunidade de Cipó, onde ficava a única
sede do pré-vestibular do PRECE, durante três anos, até passar no vestibular para seu atual
curso. Nesse meio tempo, ouvia piadinhas de seus colegas agricultores, como: “vai estudar
pra morrer sabido?”, “vai se formar pra aprender a cortar capim?”, etc. Fiquei muito
comovido ao ouvir a história de Desafio. Pensei: “tenho diante de mim, um lutador”.
118
Soube, a partir de minha presença numa reunião do PRECE, que Desafio desenvolve uma
atividade no fim de semana com um grupo de crianças nos moldes de uma escolinha de
futebol. Perguntei-lhe se poderia ir e ele autorizou minha ida. Fui, então, no sábado pela
manhã, chegando às 9:30 em Boa Vista, mas para minha frustração, essa atividade havia
se encerrado, pois era de 7:00 às 8:30 e Desafio não me avisou. Ficamos, eu, Nascimento,
sua esposa, e a equipe do NUCOM, tomando um cafezinho e conversando sobre a Escola
Popular Cooperativa (EPC) que funciona em uma palhoça em frente à casa de Desafio e me
foi pedido que desse uma palavra de apoio aos pré-vestibulandos, o que, mesmo de modo
tímido, fiz. Impressionou a luta e a persistência daquelas pessoas. Era, jovens do interior do
Ceará, que, do ponto de vista objetivo, teriam tudo para não sonhar em entrar na
Universidade. Esse era o caso de uma jovem que andava ou ia de bicicleta 14 km da
comunidade onde morava até Boa Vista para participar do pré-vestibular no fim de semana.
Acho que a capacidade de sonhar unia aquelas pessoas ali. Seguimos nossa visita, indo a
uma comunidade onde Nascimento realizou um encontro e que, segundo ele, era muito
precária em termos de acesso a bens e serviços. Trata-se da comunidade Arisco, onde não
sequer energia elétrica. A idéia de Nascimento era visitar uma liderança da comunidade
no intuito de agendar um encontro do Unidos Venceremos. Infelizmente, a líder não estava
lá, mas um morador foi logo nos falando da necessidade de professor, que não há, na escola
que, mesmo possuindo apenas uma sala de aula, se encontrava fechada. Nascimento fez
dois encontros do “Unidos” e identificou que o potencial do local era mandioca e milho.
Foi-nos oferecida, inclusive, uma borra da tapioca, junto com café. Nascimento fez questão
de nos falar da luta da comunidade, mesmo nas condições adversas em que se encontravam
ali, mostrando, inclusive, uma cisterna conseguida pela comunidade, bem como a inclusão
do local num programa de energia solar. Dali, encerramos nossa visita, pois a equipe do
NUCOM tinha uma atividade agendada para a sede do município, às 14 horas e não havia
mais atividade para ser visitada.
Diário de campo – visita a Pentecoste em 13/10/07
Finalmente, visitei uma atividade comunitária propriamente dita e que aconteceu. Tratava-
se de um encontro do Unidos Venceremos na comunidade de Canafístula, o terceiro de uma
série. Estavam presentes, além de mim, 7 produtores das comunidades de Canafístula e
119
Carrapato, Nascimento e mais cinco “precistas”. Nascimento conduziu o encontro,
apresentando dados colhidos nas duas primeiras reuniões com o grupo, que indicaram,
inclusive, serem ovinos e caprinos o potencial do local. Nascimento, ao mesmo tempo em
que apresentava os dados, jogava-os para que os agricultores os discutissem, abrindo a
possibilidade de diálogo em torno daqueles temas. Naquele momento, senti que a Ciência
dialogava com o saber popular, que os dados que Nascimento havia tirado de seus livros da
faculdade se confrontavam, e o grupo, em torno daquela discussão, resolveu investir
coletivamente na criação de ovinos e caprinos. A postura de Nascimento era sempre
propositiva, debatedora, de modo que, mesmo em posse de dados “cientificamente
comprovados”, fazia questão de saber como os agricultores se colocavam diante deles. Um
exemplo bem claro aconteceu quando informou a quantidade de forragem de que um boi se
alimenta diariamente. Não me lembro bem da quantidade, mas sei que era um número
bastante expressivo, o que gerou muita polêmica favoreceu a que, inquietos, os pecuaristas
se manifestassem. Os outros precistas, principalmente o mais veterano, se colocavam numa
posição de um certo saber superior em face dos pecuaristas ali presentes, dando conselhos
mais do que ouvindo. Ficou acordado que o PRECE formaria uma equipe para visitar cada
produtor, para saber das potencialidades e necessidades de cada um com fins de montar
uma capacitação que envolva tanto o aspecto técnico, quanto o da caracterização do grupo
como grupo, bem como de sua união, aspectos que dificultam um trabalho como o do
“Unidos”. As visitas ainda ficaram de ser agendadas. Terminado o encontro, fomos a um
almoço oferecido por Sr. Gilberto, líder comunitário e pecuarista de Canafístula, que muito
bem nos recebeu em sua casa. De lá, seguimos para uma reunião que haveria em Muquem,
que fica depois de Canafístula, e cuja líder comunitária nos esperava, acompanhada de
apenas mais uma pessoa. Não houve a reunião, pois os agricultores não compareceram. A
líder demonstrou toda sua insatisfação com a situação de não-ida dos moradores à reunião e
quis, inclusive, desistir do processo. Nascimento tentou demovê-la da idéia e perguntou
com quem seria possível contar. Ficou combinado, então, que outra reunião seria marcada
para a semana que vem, e a líder comunitária, junto com a outra pessoa da comunidade que
lá estava presente convidaria os outros a se fazerem presentes.
120
Diário de Campo 03/11/2007
Hoje, Nascimento nos convidou, a mim e à equipe do NUCOM, para visitarmos
uma reunião da associação de moradores de sua comunidade. Aceitamos o convite e,
quando lá chegamos, a reunião ainda não havia sido iniciada. Nascimento havia nos
advertido de que não haveria muitas oportunidades para participar da reunião da
associação, pois, segundo ele, a presidenta teme perder espaço para ele na comunidade.
Esperamos o início da reunião e Nascimento falou sobre o projeto Unidos Venceremos e da
vontade de se reunir com os moradores daquela comunidade para uma discussão sobre a
viabilidade de o projeto ser desenvolvido lá. Foi tirada a data de 17 de novembro para o
acontecimento desse encontro, juntamente com o agente agrícola da prefeitura para que
pudesse conversar com os produtores locais acerca do plantio de mamona, que vem sendo
incentivado pelo governo federal devido ao biodiesel. Iniciada a reunião, a presidenta
levanta a problemática do abastecimento d’água na comunidade, pois nem todos têm pago a
taxa de modo integral (custa R$ 12,00, mas alguns só pagam R$ 10,00), além de outros que
nada pagam. Isso tem gerado problemas, como o atraso de pagamento da pessoa
responsável pela manutenção, além do atraso para a compra de material para a manutenção.
Além disso, os canos têm se entupido, o que necessitaria que os moradores se reunissem
para cavar os canos de modo coletivo. Os moradores, inclusive Nascimento, começaram a
discutir alternativas para resolver essas problemáticas, como uma cobrança mais efetiva aos
moradores, bem como a formação de uma comissão para discutir alternativas. A discussão
se encaminhava para a proposição de soluções, até que a presidenta da associação, esposa
de um vereador que é fundador da instituição, levanta-se e diz que a próxima reunião será
no mês seguinte. Ninguém questionou por que ela estava deixando o local, simplesmente,
encerraram o encontro mensal e saíram da escola onde funciona associação. Devo confessar
que fiquei muito assustado, nunca tinha visto aquilo e, inclusive, não entendi o motivo.
Perguntei a Nascimento por que aquele comportamento por parte da presidenta, e ele me
respondeu que se devia ao fato de ela ver naquele momento a comunidade tentando se
organizar e isso iria contra seus interesses, que o déficit deixado pela dívida da
manutenção do motor seria coberto pelo marido e ele utilizaria essa “caridade” pra obter
votos em troca. Saí abismado com o modo repentino como a presidenta da associação
121
encerrou a reunião, bem como com a apatia das pessoas que participavam da reunião:
ninguém questionou a saída dela. Por quê? Parecia algo natural. Fomos embora e, no dia
seguinte, faríamos visitas aos produtores da comunidade de Canafístula com os quais
havíamos nos reunido em minha visita anterior, já para preparar a capacitação deles, a partir
de suas necessidades. Assim, no domingo pela manhã, visitamos um total de três
produtores. Durante as visitas, Nascimento pedia para conhecer a propriedade, analisando o
tipo e solo, a proximidade em relação a um cacimbão ou açude, a periodicidade com o que
os animais da propriedade eram vacinados, e outros aspectos técnicos. O que me chamou
atenção durante a visita foi o modo como Nascimento interagia com os produtores. Não era
a postura de um técnico que mantém a distância de quem sabe e acha que o outro não tem
possui qualquer conhecimento a respeito da criação de animais. Ele ouvia atentamente o
que era dito e anotava. Além disso, trocava idéias, interagia de um modo dialógico,
buscando estar o mais próximo possível daqueles produtores, mostrando-se um parceiro
disponível a auxiliar na resolução das problemáticas do local. Assim, não se limitava a
dizer o que os produtores deveriam fazer, senão que também buscava saber que medidas
eles costumava tomar diante de determinadas problemáticas. Lembrei-me muito de Paulo
Freire, quando ele nos fala de comunicação, contrapondo-a a extensão, e o que eu via ali
era uma comunicação, pois ambos dialogavam em torno de um tema comum, sem
sobreposição de um saber sobre o outro. Havia uma preocupação de coletar informações,
mas também de se aproximar de cada um daqueles produtores. Após as visitas, seguimos
para Fortaleza.
Diário de Campo 01/12/07
Hoje, participei de uma reunião na comunidade de Parnaíba, onde seria realizado o
segundo da série de três iniciais do Projeto Unidos Venceremos na capela daquela
comunidade. No primeiro, os produtores haviam conversado sobre a comunidade e, em
seguida, Nascimento aplicou questionários aos produtores para fazer um levantamento da
comunidade em termos de equipamentos sociais, infra-estrutura, população, produtores de
autoria dos moradores, número de propriedades, número de cabeças de animais de cada
122
produtor, etc.. Nascimento apresentou, num laptop, os dados coletados na discussão do
encontro anterior, bem como os obtidos através dos questionários. Cada dado que era
apresentado, era confirmado e, se necessário, corrigido, com as pessoas participantes do
encontro. Nascimento levou muito tempo corrigindo os dados, que muitos deles estavam
incorretos, pouco se discutindo sobre eles, além de haver uma centralização da fala, entre
Nascimento e um morador. Após muito tempo corrigindo os dados, foi conversado sobre as
potencialidades e problemas da comunidade. A princípio, Nascimento nada encontrou,
tendo por base os questionários preenchidos pelos produtores. Como problema, Nascimento
mostrou que os questionários apontaram a falta de organização. Ele, então, começou a
problematizar com o grupo se, de fato, não havia naquele local qualquer tipo de
potencialidade, falando que tinha ouvido dizer que, ali, havia um grande número de
bordadeiras. Perguntou, então, quem, das mulheres que ali estavam (em torno de seis), era
bordadeira. Eis que apenas uma não exercia essa atividade. Os moradores começaram a
falar da quantidade de bordadeiras que havia na comunidade, contando, de casa, em casa, e
falando que elas aceitavam encomendas intermediadas por uma senhora do local para uma
fábrica de Fortaleza. Nascimento sugeriu que fosse tirada como potencialidade a grande
presença de bordadeiras no local. Depois, começou a falar sobre como sonhava com um
galpão cheio de máquinas, com todas aquelas produtoras tendo seu local de trabalho e
ganhando muito mais. Até porque os rendimentos são mínimos, sendo raras as vezes em
que ultrapassam os 100 reais. Viu-se, então, que o potencial presente ali eram as
bordadeiras, e Nascimento pediu que cada um dos produtores presentes, bem como as
bordadeiras que também ali estavam, chamassem as outras bordadeiras da comunidade para
participar de uma reunião dia 22 de dezembro para discutir um projeto para elas.
123
ANEXO B
ROTEIRO PARA ENTREVISTA INDIVIDUAL
1) Você poderia me contar a história da sua vida a partir de quando você era criança,
até os dias e hoje?
2) Que aspectos foram significativos nessa história?
3) Que coisas você costumava fazer na sua infância?
4) Como era seu relacionamento com as pessoas da sua família?
5) Além da família, havia outras pessoas com quem você se relacionava? Se sim, como
eram esses relacionamentos?
6) O que você costumava fazer com essas pessoas?
7) Que momentos mais são mais significativos em sua história na comunidade?
8) Que atividades ocorrem na sua comunidade que você considera mais significativas?
9) De qual (is) você participa?
10) Como essa (s) atividades (s) funcionam?
11) Há quanto tempo você participa dessa (s) atividade(s)?
12) Por que você começou a participar?
13) Como você começou a participar dessa (s) atividade(s)?
14) Que momentos você acha que foram mais significativos na sua trajetória nessas
atividades?
15) O que significa para você participar dessa(s) atividade(s)?
16) Como as decisões costumam ser tomadas nesta atividade?
17) O que você acha dessa forma de decidir?
18) Como você costuma participar desta atividade?
19) Com o passar do tempo você percebeu alguma mudança na sua forma de participar
dessa atividade?
20) Houve alguma mudança na sua vida desde que você começou a participar dessa
atividade? Se sim, qual(is)?
21) E o modo de você perceber a comunidade é o mesmo de quando você começou a
participar?
22) Se não, o que mudou no seu modo de perceber a comunidade?
23) Como você acha que a comunidade lhe percebe?
24) E o seu relacionamento com o grupo que compõe, como é?
25) Como esse grupo se relaciona com a comunidade?
26) Que dificuldades você identifica para o desenvolvimento da comunidade?
27) Que soluções você aponta?
28) De que modo você poderia contribuir?
29) Diante desse modo de contribuir, como você se vê no futuro?
124
APÊNDICE
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