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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
JOSUÉ BERLESI
HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E A CRONOLOGIA DO ÊXODO: HISTORIOGRAFIA E
PROBLEMATIZAÇÕES
São Leopoldo
2007
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2
JOSUÉ BERLESI
HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E A CRONOLOGIA DO ÊXODO: HISTORIOGRAFIA E
PROBLEMATIZAÇÕES
Dissertação de Mestrado para obtenção
do grau de Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
Área: Teologia História
Orientador: Prof. Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero
São Leopoldo
2007
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3
RESUMO
Recentes pesquisas acadêmicas colocaram em xeque determinadas parcelas da
história do antigo Israel. O que se pode afirmar, ao certo, é que um consenso sobre
a história do povo hebreu parece distante. Tendo em vista esses dados, a presente
pesquisa aborda uma considerável parte da historiografia sobre um importante
evento da história do povo em questão, a saber: o êxodo. A primeira parte do estudo
ocupa-se em investigar como o referido evento foi interpretado nos ambientes
teológicos. Para tanto são utilizadas as obras de pesquisadores maximalistas,
nitidamente conservadores e dos exegetas histórico-críticos. A segunda parte, por
sua vez, ocupa-se em investigar como o êxodo foi abordado na academia por
autores não vinculados à teologia, dando ênfase, sobretudo, as obras de
historiadores e arqueólogos. De modo geral, em ambas as partes são considerados
aspectos como os antecedentes do êxodo, as evidências deste e sua rota. A última
parte, trata especificamente da cronologia do êxodo, abordando as principais datas
propostas para este evento. Não obstante, é perceptível um esforço de pesquisa na
tentativa de detectar a plausibilidade histórica do êxodo. De modo semelhante tenta-
se esclarecer como o referido evento assumiu tão grande importância na tradição do
antigo Israel.
Palavras-chave: História dos Hebreus, Êxodo, Historiografia.
4
ABSTRACT
Recent academic researches brought doubts to certain parts of the History of ancient
Israel. And also, there isn’t an agreement about the History of Hebrew people. Thus,
this research is taking into consideration a significant part of the historiography of an
important event of their history: the exodus. The first part of this research concerns
about how this event was interpreted in theological environments. Aiming for that,
books from maximalists researchers, notably conservatives, and books from the
historical critical method followers are used. The second part investigates how the
exodus was interpreted outside the theological environment, emphasizing mainly
historians and archaeologists’ books. In both parts it’s considered aspects like the
previous events of the exodus, it’s evidences and it’s route. The last part, however,
concerns specifically about the exodus’ cronology emphasizing the main dates
proposed for this event. Althoug, above that, it’s recognizable the effort to detect the
historical possibility of the exodus. And also, the effort to explain how did the exodus
assume such great importance in the ancient israelite tradition.
Key words: Hebrew History, Exodus, Historiography.
5
SUMÁRIO
Introdução 1
1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
1.1 Tópicos gerais sobre o método histórico-crítico e sobre a formação
do pentateuco
5
13
2 O ÊXODO EM PERSPECTIVA HISTÓRICO-TEOLÓGICA 17
2.1 Interpretações críticas 17
2.1.1 Os antecedentes do êxodo
17
2.1.2 Evidências do Êxodo
21
2.1.3 A rota do Êxodo
29
2.2 Os maximalistas 37
3 O ÊXODO SEGUNDO HISTORIADORES E ARQUEÓLOGOS 50
3.1 Os Minimalistas 56
4 A CRONOLOGIA DO ÊXODO 64
4.1 A data do século XV a.C. 67
4.2 A data do século XIII a.C. 70
Conclusão 75
Referências 81
6
INTRODUÇÃO
O êxodo é um dos elementos que definem a identidade de Israel e
corroboram a determinação de Yahweh/Javé como seu deus. Em diversas
passagens do Antigo Testamento, faz-se presente a memória de que o povo hebreu
foi libertado do Egito mediante o poder de seu deus especial, Yahweh. Dessa
maneira, o referido evento fornece sustentação teológica e histórica para o judaísmo
e, em certa medida, para o cristianismo. Conforme as informações
veterotestamentárias, é por meio do êxodo que Yahweh estabelece uma aliança
com seu povo, configurando, assim, um projeto de nação.
A imagem do êxodo foi e permanece sendo lembrada e ressignificada desde
a antiguidade até os dias atuais, na tradição judaica, na propaganda anti-semita do
mundo antigo, na teologia cristã e até mesmo em Hollywood, por meio do filme de
Paul Newman
1
. Autores gregos de diferentes épocas, por exemplo, utilizaram a
saída do Egito para empreender uma propaganda difamatória contra os judeus.
Lisímaco é um destes casos. Na obra Contra Apionem I, 304-311, de Flávio Josefo,
são citadas as seguintes palavras de Lisímaco:
No reinado de Bocoris, rei do Egito, o povo judeu, que estava afligido com
lepra, escorbuto e outras doenças, refugiou-se nos templos e vivia uma
1
ROMER, John. Testamento: os textos sagrados através da história. São Paulo: Melhoramentos,
1991, p. 271.
7
existência mendicante. As vítimas de doenças sendo muito numerosas, uma
escassez tomou conta do Egito
.
2
Além de Lisímaco, autores como Diodoro Sículo, Apião, Queremon e outros
usaram a imagem do êxodo para veicular uma mensagem anti-semita, afirmando
que os judeus, na verdade, eram leprosos e/ou impuros expulsos do Egito
3
.
A saída do país dos faraós é constantemente lembrada na tradição judaica
através do ritual de Páscoa. Todavia, o referido evento também logrou grande
utilização no cristianismo, sobretudo, com o advento da Teologia da Libertação.
Mediante esta, o êxodo foi ressignificado; sendo assim, os povos oprimidos da
América Latina representavam os hebreus oprimidos no Egito. Nesse sentido, as
palavras de Croatto são ilustrativas:
[...] o Êxodo é um acontecimento cheio de sentido (como revelam o relato
bíblico e a experiência de Israel) e que ainda não foi concluído. [...] Se
nossa leitura do querigma bíblico serve para algo, a memória” do Êxodo se
converte para nós – povos oprimidos do Terceiro Mundo – em Palavra
provocadora, em anúncio de libertação. [...] Em uma linha hermenêutica, é
perfeitamente viável que nos entendamos baseados em nossa situação de
povos “escravizados” econômica, política, social ou culturalmente.
4
Dessa forma, é possível se ter noção da importância que o êxodo adquiriu.
Entretanto, até que ponto o referido evento bíblico é historicamente pertinente? Essa
é uma das questões a serem abordadas na presente pesquisa. Para tanto, serão
utilizados pesquisadores de distintas correntes de estudo. De modo semelhante,
tentar-se-á explicar como o acontecimento em questão assumiu considerável
importância, principalmente, na tradição do antigo Israel.
De modo geral, dar-se-á ênfase aos estudiosos de três correntes de
interpretação, a saber: os minimalistas, os exegetas histórico-críticos e os
2
Contra Apionem I. Quem eram os judeus? Disponível em
<http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>. Acessado em 30 nov. 2006.
3
SILVA, Airton José. Os Minimalistas. Disponível em <http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>.
Acessado em 30 nov. 2006.
4
CROATTO, José Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981,
p.40-41.
8
maximalistas. Estes últimos se caracterizam pelo intento de legitimar a narrativa
bíblica – desenvolvem um esforço de pesquisa para comprovar a autenticidade
histórica do texto bíblico. Os minimalistas, por sua vez, possuem uma visão tica
quanto ao emprego da Bíblia como fonte histórica; dessa maneira, recorrem,
principalmente, à arqueologia. Por fim, os exegetas histórico-críticos se caracterizam
por uma detalhada e criteriosa análise da narrativa bíblica pressupondo que o atual
texto preserva memória histórica confiável.
Diferentes aspectos acerca do êxodo serão abordados nessa pesquisa, tais
como os antecedentes desse evento, suas evidências extra-bíblicas, sua rota e sua
cronologia. De certo modo, será possível tomar conhecimento de uma significativa
parcela da historiografia sobre o êxodo.
Tendo em mente essas informações, fazem-se necessários alguns
esclarecimentos finais. Por exemplo, é preciso mencionar que o termo “israelitas”
será usado entre aspas (“”) devido à compreensão de que Israel se forma na
Palestina
5
; assim, não poderia haver israelitas no Egito. Determinada parcela de
pessoas que esteve em território egípcio acabou se incorporando posteriormente ao
grupo que deu origem aos israelitas de fato.
No mais, também é preciso mencionar que todas as passagens bíblicas
citadas ao longo do estudo foram extraídas da Bíblia de Jerusalém. A sigla AT será
utilizada como forma abreviada de Antigo Testamento.
Por último, cabe salientar que a preocupação primária desta pesquisa é
historiográfica, não exegética, nem teológica, de modo que se faz necessário alertar
quanto a limitações da pesquisa que se referem a essa parcela do conhecimento.
5
A esse respeito pode-se consultar, por exemplo: GUNNEWEG, Antonius H. J. História de Israel:
dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até nossos dias; Tradução Monika Ottermann.
São Paulo: Teológica/Loyola, 2005, p.50. (a).
9
Entretanto, o estudo revelar-se-á significativamente instigante, possibilitando
compreender que a aproximação entre historiadores e teólogos tende a ser
ricamente produtiva.
10
1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
A presente pesquisa se ocupa de um tema específico: o êxodo. Contudo,
algumas considerações teóricas mais gerais se fazem necessárias, em decorrência,
sobretudo, de a História de Israel estar recebendo profunda revisão na atualidade. O
pressuposto teológico de que Israel é o “povo escolhido por Deus” orientou a maior
parte da produção historiográfica sobre o povo hebreu. Desse modo, a Bíblia sempre
foi considerada fonte principal para o estudo do Israel antigo. As recentes pesquisas
conduzidas pelos minimalistas colocaram em xeque essa postura. Atualmente
questiona-se o uso da Bíblia como fonte histórica; porém, ainda mais alarmante,
questiona-se a possibilidade de se “fazer” a história de Israel.
O uso dos escritos veterotestamentários tem sido amplamente questionado.
De outra parte, as evidências arqueológicas e extra-bíblicas crescem em
importância. Em consonância, o termo “História de Israel” está sendo combatido.
Propõe-se em seu lugar uma “História do Levante” ou “História da Síria/Palestina”
6
.
Contudo, uma tradicional história dos hebreus, alicerçada nas informações
bíblicas, continua a persistir com vigor, sobretudo, em duas frentes. A primeira delas
é conduzida pelos discípulos de Albright, a chamada escola americana, que tem no
estado do Texas a sua principal base. Os pesquisadores pertencentes à referida
6
SILVA, Airton José. Os Minimalistas. Disponível em <http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>.
Acessado em 30 nov. 2006.
11
escola preservam uma postura nitidamente conservadora. A segunda frente, por sua
vez, mais progressista, é fruto da influência de Martin Noth, exegeta alemão que
inspirou um amplo número de pesquisadores. Entretanto, cabe salientar que uma
considerável diferença na argumentação das referidas linhas.
De modo geral, os pesquisadores que se valem da Bíblia como fonte histórica
consideram que evidências extra-bíblicas confirmam a legitimidade do referido
testemunho religioso. Mesmo assim, é necessário considerar que a narrativa
veterotestamentária sofreu várias interpolações ao longo dos anos, muitas vezes
para atender as exigências de um pensamento religioso, como é o caso da reforma
feita pelo rei Josias
7
.
Segundo Schreiner, a existência de algumas fontes extra-bíblicas, como o
arquivo da residência real de Mari, no Médio Eufrates, com mais de 20 mil tabuinhas
cuneiformes; o arquivo da cidade hurrita de Nuzi, com 300 tabuinhas; as tabuinhas
do Tel el-Amarna, etc., permitem que se analise o contexto da narrativa bíblica e, às
vezes, auxiliam a identificar a pertinência histórica da Bíblia
8
, legitimando o uso
desta como fonte.
Entretanto, para Schreiner:
É um erro pôr uma questão sobre a verdade onde os autores bíblicos não a
puseram. Eles querem, sem dúvida, dar testemunho sobre o que aconteceu;
mas não lhes interessa registrar simplesmente um fato e transmiti-lo por si
mesmo.
9
Já Robin Lane Fox diz que:
A uma distância de 2 mil anos ou mais, pode parecer impossível decidir o
que um autor pretendia, e irrelevante aplicar à sua obra nossas idéias
modernas de verdade e falsidade. Discordo. Os israelitas não tinham uma
teoria da verdade, mas seria condescendente presumir que um povo pré-
7
FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão; Tradução Tuca
Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003, p.370-396.
8
SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. Tradução Benôni Lemos. 2. ed.
São Paulo: Editora Teológica, 2004, p.44.
9
SCHREINER, 2004, p. 70.
12
filosófico não pudesse se preocupar com os indícios ou em saber se algo
era verdadeiro ou falso.
10
Portanto, ao se tomar a Bíblia como fonte válida para a história de Israel,
deve-se levar em conta algumas considerações. Se, por um lado, a pertinência
histórica do texto bíblico pode consistir na coerência com um sistema geral de
crenças (coerência interna do relato); por outro, pode consistir na correspondência
do relato aos fatos
11
.
Frente a isso, entende-se que um texto pode não ser fiel aos fatos que narra;
contudo, fornece indícios e informações significativas sobre o seu contexto de
produção. Portanto, auxilia a descrever a cultura e sociedade do povo que o
produziu.
Interpretada de outra forma, a validade histórica do texto bíblico é vista como
a maior adequação possível ao fato narrado: em que medida o texto é factual, ou
melhor, em que medida corresponde aos fatos que apresenta.
Com base nesses elementos, faz-se necessário um esclarecimento no que
concerne aos fatos históricos. Como devem ser estes abordados? Como é possível
identificá-los?
Antes de tudo, deve-se saber quais fenômenos podem ser considerados fatos
históricos: um acontecimento, algo que aconteceu uma vez; processos com
regularidades; instituições e seu papel na vida social; produtos materializados de
acontecimentos/processos; cultura material? Em princípio toda a manifestação da
vida social do homem pode configurar um fato histórico, mas é preciso que tenha
relevância para o processo histórico, a fim de se tornar objeto da ciência da história.
Contudo, a resposta a essa pergunta não advém do que concerne um mero
10
FOX, Robin Lane. Bíblia verdade e ficção. Tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993, p. 151.
11
FOX, 1993, p.15.
13
acontecimento, mas do que o discerne um objeto incluso em um sistema de
referência, em um contexto determinado que faz de algo vulgar um “fato histórico”.
Para qualificar um fato como histórico, é preciso analisar o contexto do
acontecimento, suas relações com outros acontecimentos considerados, com uma
certa totalidade, o sistema de referência em que se expressa
12
.
Para Ranke, um dos fundadores da história científica na Alemanha e um dos
fundadores do historicismo, a tarefa do historiador consistia apenas na exposição
dos fatos “puros”, sem interpretação nem comentários: “se alguém estabelecer de
maneira competente um fato histórico, estabeleceu-o para todos os investigadores
interessados”.
13
No entanto, tendo a consciência de que os fatos “puros” são
inalcançáveis, torna-se um dever do historiador verificar a exatidão dos fatos. “Ele
deve procurar focalizar todos os fatos conhecidos, ou que possam ser conhecidos, e
que tenham alguma importância para o tema em que está empenhado e para a
interpretação a que se propôs
14
”.
Levando em consideração os elementos mencionados, cabe salientar que
um fato se torna fato histórico mediante a interpretação do historiador. Sendo
assim, o essencial da história seria a interpretação e não o fato; pensando desse
modo, a história seria subjetiva por depender dos critérios e da escolha do
historiador
15
. Outro fator relevante está na impossibilidade de alcançar o realmente
acontecido devido à natureza parcial dos documentos e dos fatos. Segundo
Hobsbawm, tendo em mente que a história pode ser (mal) usada para inúmeras
ações, torna-se importante tentar estabelecer a diferença entre fato e ficção,
12
SCHAFF, Adam. Os fatos históricos e a sua seleção. História e verdade. São Paulo, Martins
Fontes, 1978. p.208-209.
13
SCHAFF, 1978, p.204.
14
CARR, Edward H. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.27.
15
Veja-se em: VEYNE, Paul. Como se Escreve História. Tradução Alda Baltar e Maria A. Kneipo.
Brasília: Editora da UNB, 1982.
14
embora, muitas vezes, não seja uma tarefa fácil. No que concerne a história dos
hebreus, o relato bíblico, tal como se apresenta, ou seja, sem interpretação crítica, é
utilizado como suporte para o argumento sionista, o qual reivindica a posse do
Estado de Israel apenas para os judeus. Nesse sentido, Hobsbawm defende a idéia
de se tentar estabelecer a fronteira entre o acontecimento e o fictício, uma vez que a
história pode ser usada para legitimar ações políticas de diferentes cunhos
16
.
No que concerne à identificação dos fatos na Bíblia, além do auxílio da
história e da arqueologia, pode-se tentar estabelecer a fronteira entre fato e ficção
através da análise do gênero literário, pois em todo Antigo Testamento é
absolutamente possível detectar sagas, novelas, historiografia dentre outros
gêneros. Porém, neste caso, torna-se necessária uma noção mínima do processo de
formação do texto bíblico.
Dessa forma, revela-se perceptível que a Bíblia agrega informações
históricas, mitos, etiologias, etc. Contudo, para os que insistem em interpretar o
testemunho religioso como mera literatura vale salientar que:
Essa oposição entre literatura e as coisas realmente sérias rui no momento
em que nos damos conta de que em qualquer cultura é exceção a invenção
literária ser uma atividade puramente estética. Os escritores agrupam
palavras em certa ordem agradável, em parte, porque a ordem agrada, mas
também, muitas vezes, porque a ordem os ajuda a refinar os significados,
torná-los mais memoráveis, mais satisfatoriamente complexos, de modo que
o que é bem elaborado na linguagem pode envolver mais poderosamente o
mundo dos eventos, valores [...].
17
Sendo assim, torna-se necessário dispensar atenção para a fonte da
pesquisa. Entretanto, é fundamental se ter a noção de que qualquer documento
refletirá apenas uma visão parcial do fato, sem contar as possíveis marcas deixadas
pelo autor. “Nenhum documento pode nos dizer mais do que aquilo que o autor
16
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
17
ALTER, Robert e KERMODE, Frank. (Org.) Guia literário da Bíblia. Tradução: Raul Fiker. São
Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. p.27.
15
pensava [...] ou talvez apenas o que ele queria que os outros pensassem que ele
pensava, ou mesmo apenas o que ele próprio pensava pensar”.
18
Desse modo, é
importante reconhecer o contexto no qual a fonte foi produzida.
Tentar buscar a correspondência de um relato com o acontecimento não se
caracteriza como uma obsessão positivista. É bem verdade que o fato histórico
constitui-se no âmago da história positivista e que esta se alimenta de fatos.
Contudo, o acontecimento recobrou seu lugar na pesquisa histórica; “[...] hoje em
dia, o acontecimento, que se tornou sintoma, ponto de observação, reflexo das
estruturas e agente de sua evolução, não é mais incompatível com a ambição
científica da história”.
19
os que acusam a História de ser incapaz de responder sobre o passado,
mesmo que parcialmente. Afirmam ainda que os “fatos” não passam de construções
intelectuais e ideológicas desacreditando, assim, a pesquisa histórica. Entretanto,
em contraponto, Hobsbawm afirma:
Defendo vigorosamente a opinião de que aquilo que os historiadores
investigam é real. O ponto do qual os historiadores devem partir, por mais
longe dele que possam chegar, é a distinção fundamental e, para eles
absolutamente central, entre fato comprovável e ficção, entre declarações
históricas baseadas em evidências e sujeitas a evidenciação e aquelas que
não o são.
20
Sabe-se que o testemunho religioso veterotestamentário possui sua origem
em um passado que só se conhece de forma parcial. Logo, é significativa a
contribuição da arqueologia, história e lingüística comparada.
Importante salientar que levando em consideração o que se conhece da
história literária dos povos do Oriente próximo antigo, as origens e desenvolvimento
18
CARR, 1978, p.18.
19
BURGUIERE, André (org). Dicionário das Ciências Históricas. Traduzido por Henrique de Araújo
Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 315.
20
HOBSBAWM, 1998, p.08.
16
dos textos passam por uma fixação oral, que, pouco a pouco, resultam na fixação
por escrito. Com isso, nos casos em que se apresenta a ausência de informações do
contexto externo da Bíblia, deve recorrer-se à análise do próprio texto. De qualquer
forma, o fato é que um considerável número de estudiosos permanece utilizando as
informações veterotestamentárias como fonte segura para a história dos hebreus.
Porém, as recentes pesquisas minimalistas
21
parecem rejeitar as chaves
hermenêuticas expostas até o momento. Para determinados pesquisadores não
se pode trabalhar dentro das categorias de fato e ficção na abordagem do Israel
antigo. Mario Liverani, por exemplo, afirma que na realidade presente um grande
fluxo de informação, a informação instantânea, a qual leva a duvidar da existência
do fato
22
. Barstad, por seu turno, defende que é necessário se acostumar a uma
história com diferentes verdades, marcada pela multiplicidade de métodos. Além
disso, o referido pesquisador afirma que o futuro pertence à história narrativa
23
.
De modo geral, os minimalistas consideram que não há uma história
acadêmica de Israel. Philip Davies, por sua vez, trabalha com a hipótese de três
“Israéis”
24
. Segundo o referido autor, existe um Israel literário (o Israel da Bíblia),
outro histórico (a população que habitou parcela do território palestinense durante
certo tempo da Idade do Ferro) e, por fim, o “antigo Israel”, fruto do cruzamento
entre os dois primeiros.
Contudo, entre os minimalistas existem significativas divergências. quem
considere ser impossível a elaboração de uma história de Israel, em contrapartida,
os que discordam dessa posição defendem uma história de Israel baseada,
21
Não somente as pesquisas “minimalistas” mas também alguns estudiosos vinculados ao Seminário
Europeu sobre Metodologia Histórica contestam a tradicional historiografia sobre o Israel antigo.
22
LIVERANI, Mario.
Nuovi sviluppi nello studio dell’Israele Biblico.apud SILVA, Airton José. Os
Minimalistas. Disponível em <http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>. Acessado em 30 nov.
2006.
23
GRABBE, Lester L. (ed.). Can a ‘History of Israel’ Be Written, Sheffield, Sheffield Academic
Press, 1997, pp. 37-64.
24
DAVIES, Philip R.,In Search of ‘Ancient Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1992.
17
principalmente, nas evidências arqueológicas e extra-bíblicas, minimizando, assim, o
papel dos escritos veterotestamentários, pois estes circularam longo tempo na
oralidade até o momento de sua fixação por escrito. Desse modo, os minimalistas
optam por utilizar fontes contemporâneas aos eventos a serem reconstruídos.
Lamentavelmente essas informações mais recentes acerca da historiografia
do Israel antigo ainda o desconhecidas no Brasil. Embora, é verdade, uma tímida
reação aos minimalistas tem sido desenvolvida por alguns teólogos. Ao que parece
a alternativa emergente, levada a cabo por um ainda pequeno grupo de exegetas
bíblicos, está sendo investigar o Israel antigo sob o enfoque da história cultural.
Originalmente os referidos teólogos são herdeiros do método histórico-crítico
e da influência de Martin Noth. Porém, cada vez mais os citados pesquisadores
parecem se aproximar de pensadores como Chartier e Ginzburg. Ao procederem
desse modo almejam combater o descrédito dos minimalistas no que se refere ao
uso da Bíblia como fonte histórica.
Consideram que os textos bíblicos constituem-se em fonte incomparável para
a pesquisa historiográfica, pois oferecem os testemunhos escritos dos processos de
formação da identidade dos antigos hebreus. Desse modo, defendem que a
construção da identidade é elemento integrante da consciência histórica, logo, a
Bíblia, por ser a representação escrita desse processo, deve servir de fonte para a
reconstrução da história de Israel.
Os referidos teólogos brasileiros se utilizam, por exemplo, de Roger Chartier,
o qual afirma: “a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler”
25
. Com base nessas palavras os
25
CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 16s.
18
citados pesquisadores defendem que através, mas não unicamente, dos textos
bíblicos é possível analisar as diferentes maneiras mediante as quais o povo hebreu
construiu, pensou e deu a ler a sua realidade social.
1.1 Tópicos gerais sobre o método histórico-crítico e sobre a formação do
pentateuco
Após as considerações mais voltadas a história, cabe tentar esclarecer alguns
elementos referentes à teologia, com o objetivo de analisar determinados aspectos
acerca do método histórico-crítico e ao tema da saída do Egito no AT. Quanto ao
primeiro tentar-se-á apresentar sua origem e morfologia, no que concerne ao
segundo a tentativa será de demonstrar, de forma geral, uma parcela da pesquisa
sobre o pentateuco e algumas peculiaridades referentes ao tema do êxodo, que se
fazem presentes na narrativa bíblica. Evidentemente, não se tratará de uma grande
análise do texto sobre a saída do Egito, outrossim, serão aprofundados alguns
detalhes dessa narrativa.
Com base nessas informações deve-se dizer que a preocupação com a
interpretação da Bíblia é um elemento presente desde a antiguidade tardia. Na
história da igreja, Orígenes foi pioneiro ao expor uma teoria hermenêutica para o
testemunho religioso em questão. Tal cuidado com a análise bíblica percorreu a
Idade Média, a Reforma e atualmente continua a persistir com vigor.
Interessa neste momento tentar compreender os elementos que
possibilitaram a origem do chamado método histórico-crítico. Sem dúvida, a gênese
deste está relacionada a uma pretensão de imprimir um caráter científico aos
estudos da Bíblia. Na Europa ocidental algumas mudanças determinantes no
19
pensamento da época possibilitaram o surgimento do referido método, destaca-se o
iluminismo na Alemanha, o deísmo inglês e o ceticismo francês.
26
Um elemento de importância refere-se ao fato de que o método histórico-
crítico constitui-se de vários métodos de análise de um determinado texto. Os
passos essenciais do referido método residem na tradução e crítica textual, crítica
literária, história traditiva, história redacional, história da forma, história temática,
análise de detalhes, conteúdo teológico e escopo.
27
Tendo tais informações básicas sobre o todo histórico-crítico, cabe
apresentar alguns aspectos referentes ao pentateuco. Mesmo considerando que o
estudo acerca do êxodo conte com outras fontes
28
além do texto bíblico, tentar-se-á
proceder a uma análise exclusiva desse último, reconhecendo-o,
conseqüentemente, como fonte privilegiada ou principal. É fundamental para o
historiador questionar sua fonte para construir interpretações, entretanto, é também
importante conhecer a origem da mesma e sua ligação com a sociedade que a
produziu.
No estudo do êxodo, o pentateuco destaca-se como parcela principal de
análise, porém, a tradição da saída do Egito é um elemento presente em várias
outras passagens do AT
29
. Considerando essas informações tentar-se-á
compreender as origens dos cinco primeiros livros da Bíblia.
Conforme a tradição judaica e também cristã, Moisés teria sido o autor do
pentateuco. No entanto, em Deuteronômio 34.5-12 está descrita a morte de tal
personagem, como então os cinco primeiros livros bíblicos poderiam ser atribuídos a
26
MUELLER, Enio R., O Método Histórico-Crítico: uma avaliação, in: FEE, Gordon / STUART,
Douglas, Entendes o que Lês?. São Paulo, Vida Nova, 1984, p.237-318.
27
Para maiores informações dos passos citados veja-se: MUELLER, 1984, p. 256-260.
28
As eventuais fontes arqueológicas, por exemplo.
29
RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento: teologia das tradições históricas de Israel.
São Paulo: Aste, 1973-1974. vol 1, p. 183.
20
sua autoria? Segundo pensavam Josefo e lon, Moisés teria sido inspirado a ponto
de poder descrever, antecipadamente, sua própria morte.
30
Na tradição cristã mais conservadora, Moisés é considerado o autor de
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, sobretudo, pelo fato do próprio
Cristo reconhecer sua autoria, conforme consta em algumas passagens
neotestamentárias
31
. Mas, no culo XV, estudos teológicos passaram a refutar a
autoria mosaica, intitulando Esdras como o verdadeiro autor, tal hipótese envolveu
uma série de pesquisadores e permaneceu longo tempo em discussão. Uma
significativa contribuição foi dada pelo deísta inglês Thomas Hobbes, segundo o
qual: “O Pentateuco é em si mesmo um livro pós-mosaico, apesar de que uma ou
outra perícope (como por exemplo Dt 11-27) deva remontar a Moisés”.
32
Essas contradições do texto bíblico conduziram a se pensar em uma autoria
plural. Note-se que o texto apresenta algumas duplicações, como, por exemplo: dois
relatos da criação (Gn 1.26-27 e 2.4b-25), dois relatos da aliança com Abraão (Gn
15 e 17), duas menções do calo (Ex 20, 2-17 e Dt 5, 6-21), etc. Além disso, para
falar de Deus, o texto alterna-se empregando os termos “Javé” e “Elohim”.
O ministro protestante alemão, H. B. Witter (1711), foi pioneiro ao afirmar que
o pentateuco era fruto de autores diferentes, os quais produziram seus escritos em
períodos também diferentes.
33
Entretanto, Jean d´Astruc, médico de Luís XV,
recebeu notoriedade por ter dividido a narrativa do Gênesis em duas colunas, uma
contendo as passagens onde Deus era chamado Elohim e outra em que era
chamado Javé. Contudo, a teoria explicativa das fontes que formaram o pentateuco,
30
Veja-se: PURY, Albert de (org). O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco
primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.
Petrópolis: Vozes, 1996 , p. 18.
31
Veja-se: Mc 7.10; 12.26; Lc 20.37; Jo 5.46,47; 7.19, 22-23.
32
PURY, 1996, p.19.
33
Veja-se: FOX, 1993, p. 20.
21
que ficou conhecida por teoria JEDP, foi concebida por Julius Wellhausen (1880), o
qual distinguiu não dois, mas sim quatro elementos separados nos cinco primeiros
livros bíblicos, e pela análise de suas características individuais tentou estabelecer a
época e o lugar de seus autores.
34
Para Wellhausen, o pentateuco era o produto de
períodos do exílio e pós-exílio.
35
As recentes pesquisas sobre as fontes que compõem os referidos textos
bíblicos parecem estar longe de um consenso. São muitos os estudiosos, por
exemplo, que contestam o caráter de fonte do documento E.
36
De fato, uma análise criteriosa da narrativa bíblica revela-se instigante.
Evidentemente trata-se de um texto que possibilita interpretações dúbias, sobretudo,
pelo fato de ter sofrido interpolações ao longo dos anos.
37
Por último, se faz necessário afirmar que na presente pesquisa a Bíblia será
interpretada, unicamente, como uma escrita humana. Como uma das heranças
culturais dos hebreus. Sendo assim, a Bíblia encontrar-se-á desprovida de seu
caráter sagrado.
34
Maiores informações sobre a teoria JEDP e seus desdobramentos podem ser obtidas na obra de
PURY, 1996.
35
ROMER, 1991, p. 267.
36
PURY, 1996, p. 164.
37
PURY, 1996, p. 261.
22
2 O ÊXODO EM PERSPECTIVA HISTÓRICO-TEOLÓGICA
2.1 Interpretações críticas
2.1.1 Os antecedentes do êxodo
Na presente parcela do estudo serão apresentadas as informações advindas
dos teólogos que se utilizam do método histórico-crítico. Far-se-á aqui uma
exposição e análise geral dos argumentos de tais autores, se necessário,
comentários isolados das peculiaridades de determinado pesquisador.
Dito isso, deve-se partir do consenso de que o êxodo bíblico foi
experimentado apenas por uma parcela do povo que constituiu Israel. Isso não
significa que a saída do Egito resulte em mera ficção. Tentar-se-á nesse estudo
desenvolver um esforço de pesquisa com o fito de resgatar os indícios que
possibilitam a constatação de que parte do povo que formou Israel esteve em
território egípcio. Ao que parece a memória do êxodo contida nos textos bíblicos
surge na Palestina no decorrer do processo de formação da unidade Israel. Sendo
assim, o que ocorre é uma retrojeção, pela qual tal unidade passa a adotar um
passado comum
38
.
38
Confira, por exemplo, Gunneweg, o qual afirma: “[...] historicamente se constata um ente de nome
Israel apenas no território de Canaã. As tradições contidas no Pentateuco acerca de uma saída de
23
Segundo informa o texto bíblico de Gn 37, 39-50 José tendo sido vendido
como escravo por seus irmãos é levado para o Egito onde alcançou uma
importante função administrativa. Entretanto, é evidente que o testemunho religioso
acerca desse personagem possui uma forte carga teológica
39
. O gênero literário
desta narrativa constitui uma novela, sendo que a mesma demonstra claramente o
objetivo de ensinar uma lição, ou seja, para os que são fiéis a Deus amesmo o
mal se converte em bem.
Contudo, a história de José revela-se importante por ser um resquício da
tradição de que os “israelitas” estiveram no Egito. Do mesmo modo, o contato com
este país é evidenciado em Gn 12.10-20. Tais passagens presentes na tradição
veterotestamentária constituem-se em importantes rastros da relação
40
com o Egito,
muito embora, uma carência de maiores indícios não permita que se ateste com
clareza a historicidade desses escritos. Essa é a situação dos antepassados das 12
tribos, os quais, segundo afirma o texto bíblico, teriam imigrado para o país dos
faraós. Frente a isso, deve-se partir, primeiramente, do fato de que os 12
antepassados não refletem necessariamente personagens históricos. Issacar é o
exemplo mais elucidativo, pois não designa uma pessoa, mas sim um grupo
sociológico
41
.
Considerando essas informações, se faz necessário partir em busca de
elementos que possibilitem explicar os antecedentes do êxodo. Sendo assim,
Israel do Egito, uma migração de Israel pelo deserto, uma ocupação da terra por Israel em Canaã e
finalmente acerca de uma revelação e celebração de pacto no monte Sinai (Horebe, o monte de
Deus) são tradições que Israel elaborou no território cananeu”. GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia
Bíblica do Antigo Testamento: uma história da religião de Israel na perspectiva bíblico teológica;
Tradução Werner Fuchs. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005, p. 85 (b).
39
Para uma análise mais apurada ver: SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento.
São Leopoldo: Sinodal/IEPG, 1994, p. 72.
40
Para uma idéia do “lado bom da relação com o Egito (casamentos, alianças etc) ver:
ECHEGARAY, J. G. O Crescente Fértil e a Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 83.
41
DONNER, H. História de Israel e dos povos vizinhos. São Leopoldo: Sinodal-IEPG/Petrópolis:
Vozes, 1997, vol I, p. 164.
24
reveste-se de importância o dado de que as autoridades egípcias, de diversas
dinastias, preocupavam-se com as instalações de defesa nas fronteiras para
controle dos nômades. sob o rei Amenemhet I (1991-1962), no começo do Reino
Médio, se registram instalações de defesa no Delta Oriental
42
para repelir os
nômades.
Desse modo, é possível pensar que grupos dos referidos nômades formaram
os antepassados do povo de Israel. Os textos egípcios apontam a presença desses
grupos sob o coletivo sh’sw (shasu), isso não significa que tenham sido esses os
elementos constitutivos dos primeiros “israelitas”, mas, servem para demonstrar a
existência da imigração de grupos nômades ao Egito.
Mural de Beni Hasan que demonstra a imigração de semitas ao Egito
.
43
42
DONNER, 1997, p.99.
43
MURAL DE BENI HASAN. Disponível em http://ccat.sas.upenn.edu/cgi-bin/ames150?slide=1.
Acessado em 30 nov. 2006.
25
Entretanto, tendo por constatada a presença desses grupos, deve-se partir
em busca dos motivos que os levaram a imigrar. Nesse ponto, o mais plausível
parece residir no fato da atratividade hidrográfica do Delta do Nilo. O referido local
certamente possibilitava melhores condições para o gado e para as pessoas, ainda
mais quando as variações climáticas os afetavam em seus locais de origem.
Passagens do livro de Gênesis, como por exemplo a de Gn 26.1, servem para
ilustrar a questão da fome e, conseqüentemente, a necessidade de mudar de
ambiente.
Tendo por base essas informações é possível identificar o motivo que levou
os nômades ao Egito, porém, cabe agora tentar explicar por quais razões saíram, ou
seja, o que de fato poderia ter proporcionado o êxodo
44
. De forma lamentável, este
não é um terreno em que se possa pisar com segurança. Supõe-se que,
possivelmente a organização social dos nômades não permitiu sua “egipcização”
45
;
o texto de Gn 46.31-34 contribui para uma compreensão nesse sentido. A narrativa
bíblica do êxodo, por sua vez, apresenta como motivo a opressão
46
dos “israelitas”.
47
Também são escassas as informações quanto à natureza desse grupo que saiu do
Egito. A informação advinda de Ex 12.38 pode aludir a uma mistura étnica. O
importante reside em desacreditar o romantismo dos textos bíblicos que apresentam
Israel como uma unidade no país dos faraós. A redação bíblica que menciona
44
Alguns autores sugerem não apenas um, mas sim, vários êxodos, veja, por exemplo: PEREGO,
Giacomo. Atlas Bíblico Interdisciplinar: escritura, história, geografia, arqueologia, teologia: análise
comparativa. São Paulo: Paulus, 2001, p. 22.
45
DONNER, 1997, p. 103.
46
Tradicionalmente se associa a opressão dos israelitas” com os trabalhos de construção e o feitio
de tijolos, contudo, em um estudo baseado nos termos hebraicos de Ex 5.19, Cazelles sugere que:
Temos aquí elementos de outra tradição na qual não se fala de trabalhos de construção no Egito,
mas sim trabalhos forçados de transporte (sibelôt) em Can sob controle egípcio, embora sem
inspetores (tradução própria). “Tenemos aqui elementos de outra tradición en la que no se habla de
los trabajos de construcción em Egipto, sino de trabajos forzados de transporte (sibelôt) em Canaán
bajo domínio egipto, aunque sin inspectores CAZELLES, Henri. En busca de Moisés. Editora Verbo
Divino, 1981, p. 76-77.
47
Esta é uma informação discutível se for levado em consideração o status jurídico dos trabalhadores
estrangeiros no Egito. Para maiores informações ver: HERRMANN, S. Historia de Israel en la época
del Antiguo Testamento. Salamanca, Sígueme, 1979, p. 87-88.
26
esse período consiste em um esforço posterior de amarrar diferentes tradições.
Evidentemente, no decorrer desse processo apresentam-se as contradições, como o
caso de Gn 47.11, segundo o qual os irmãos e o pai de José receberam propriedade
fundiária, o que conseqüentemente implica sedentarização, assim, se isso tivesse
acontecido possivelmente não haveria êxodo
48
.
2.1.2 Evidências do Êxodo
Segundo os exegetas histórico-críticos é possível constatar a plausibilidade
do êxodo com elementos extraídos do próprio texto bíblico, ou seja, recorre-se às
informações fornecidas unicamente pelo texto, ainda sem incorporar na análise a
história e a arqueologia. Através de um estudo de exegese bíblica contata-se a
possível historicidade do êxodo
49
devido a sua marcante presença em várias partes
do AT
50
. A saída do Egito constituiu uma fortíssima tradição nos escritos
veterotestamentários, sendo assim, sugere-se que as passagens sobre tal evento
possuem, de fato, um núcleo histórico, desse modo, evidencia-se uma
correspondência entre o relato e o acontecimento.
48
DONNER, 1997, p. 103.
49
Comentando sobre a tradição do êxodo, Gunneweg afirma: “As tradições do êxodo refletem em
forma lendária e de testemunho um acontecimento mais abrangente, porém não tangível de caso
para caso: a formação e constituição de Israel como livramento e êxodo da opressão, e desde os
primórdios como redenção através do Deus redentor. Nas histórias sobre a saída do Egito adensam-
se as próprias experiências de Israel, feitas durante as muitas décadas de sua evolução. A
experiência do grupo do Egito sob Moisés torna-se paradigma individualizado daquilo que todo o
Israel havia vivenciado. O inarrável evento de uma lenta transferência de poder para longe das
cidades cananéias e para fora do Egito se torna dizível e testemunhável nas lendas do êxodo,
verbaliza-se nelas, descobre nelas sua linguagem de testemunho, gratidão e louvor”, GUNNEWEG
(b), 2005, p. 92.
50
Schmidt aponta para a significativa presença do êxodo no AT: “[Eu sou teu Deus desde a terra do
Egito], diz Javé conforme Oséias (12.10). Com isto o profeta motiva a exclusividade do amor de Deus
(13.4; cf. 3.1; 11.1s.) Para o profeta, a estada no deserto- após o êxodo e antes da imigração na
Palestina- é um período de comunhão imperturbada com Deus. Jeremias (cap. 2) e especialmente
Ezequiel (20; cf. 23) retomam essa idéia de maneira modificada. Ano após ano, a festa da páscoa
deve lembrar o êxodo [...]. Este é interpretado com conceitos novos e cambiantes: Deus [resgata,
liberta] (no Dt: 7.8; 9.26 e outras), [redime] (Ex 6.6P; 15.13 e outras[...])” SCHMIDT, Werner H. A
do Antigo Testamento; tradução de Vilmar Schneider. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2004, p. 73.
27
Fica evidente que a fixação literária do texto se deu muitos anos após o
possível evento. Dessa maneira, o conteúdo de Ex. 1-15 é predominantemente
teológico, não tendo por objetivo manter fidelidade ao acontecido. As passagens
bíblicas como o crescimento do povo no Egito, as sagas sobre as parteiras, o
nascimento e salvação de Moisés possuem o significado de que Deus não
abandona os seus fiéis mesmo na perseguição. Da mesma forma, o ciclo das dez
pragas é perceptivelmente de cunho teológico, querendo demonstrar a batalha entre
o Deus do povo oprimido e o poder do grande império.
Esse processo de depuração do texto bíblico é característico do método
histórico-crítico. Quanto ao relato do êxodo, através de uma análise embasada em
tal método, torna-se possível distinguir entre a carga teológica e um possível cerne
histórico. E, de fato, é o que acontece. Determinadas passagens da narrativa sobre
o êxodo possivelmente trazem informações que podem ser consideradas memórias
historicamente autênticas.
Conforme afirmado, apenas parte dos hebreus
51
que formaram Israel
estiveram em território egípcio. Afirma-se, sem muitas evidências concretas, que o
“grupo de Raquel” possivelmente seja a parcela que experienciou a escravidão.
Indícios dessa informação podem ser encontrados na lista do censo das tribos de
Efraim e Manasses, onde são encontrados nomes egípcios, atestando assim uma
51
Quanto ao uso do termo hebreu Werner Schmidt afirma: “Numa carta da época de Ramsés II [...]
fala-se de [´pr, que transportam pedras para o grande pilone de...Ramsés]. Com essa designação,
encontrada como [habiru] também na Mesopotâmia (hab/piru) e na Síria (Ugarit: ´pr), provavelmente
está relacionado o nome [hebreus]. Este termo aparece no início do livro do Êxodo (1.15ss.; 2.6ss. e
outas; cf. Gn 39.14ss), quando israelitas se relacionam com egípcios, e mais tarde (! Sm 4.6ss.),
quando se relacionam com os filisteus, p. ex., como designação de israelitas por estrangeiros ou
como autodesignação dos próprios israelitas. Mas será que esse termo se refere a uma camada
social com direitos reduzidos como, p. ex., seminômades, pessoas fracassadas economicamente,
imigrantes estrangeiros – ou a uma grandeza étnica? Provavelmente ocorreu uma mudança de
significado desse conceito no decorrer do longo tempo em que foi usado no Antigo Oriente, sobretudo
em regiões tão distantes entre si. No AT, pelo menos em seus textos mais recentes, o conceito
refere-se preponderantemente à filiação a Israel (compare Dt 15.12ss. com Ex 21.1ss.; também Js
1.9).” SCHMIDT, 2004, p. 68-69. Confira também em NOTH, M. Historia de Israel. Barcelona: Garriga,
1966, p. 114, DONNER, 1997, p. 80 e em Israel e Judá: textos do antigo Oriente Médio/ VV.AA.
Tradução Benôni Lemos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985, p. 36.
28
possível convivência entre “israelitas” e egípcios no mesmo território. Entretanto,
Martin Noth afirma que:
[...] na realidade, é de pouca utilidade perguntar-se quais foram as tribos
israelitas que viveram no Egito, pois essas tribos não se constituíram em
unidades definidas até o seu assentamento na Palestina. Então atribuiu-se
um nome a elas, circunstancia que pode ser provada para algumas dessas
tribos, enquanto que para as outras fica no terreno da hipótese. É evidente
que no Egito não pôde existir tribos que não tenham se criado
posteriormente, e assim resulta mais difícil saber quais foram as tribos que
residiram verdadeiramente em tal país. Só é possível afirmar que se tratava
de elementos que logo figuraram entre os componentes das tribos depois
da ocupação da Palestina, mas com toda probabilidade não foi uma tribo
isolada nem mesmo um grupo de tribos, mas sim certos elementos que se
infiltraram no conjunto de todas as tribos israelitas (tradução própria).
52
De fato, a tradição do êxodo é demasiadamente marcante no AT, o que
supostamente pode indicar que o referido evento não configura apenas de mera
ficção
53
. A informação citada sobre nomes egípcios no censo de Efraim e
Manassés possivelmente preserva um conteúdo histórico. Os textos de Js 24.33
54
e
1Sm 2.34
55
trazem os nomes Hofni e Finéias, ambos de raiz egípcia. Além disso, a
tradição do êxodo é perceptivelmente forte no Reino do Norte
56
o que pode indicar
que foram os grupos estabelecidos nessa região os quais participaram da saída do
52
[...] en realidad, resulta ocioso preguntarse cuáles fueron las tribus israelitas que vivieron en
Egipto, porque dichas tribus no se constituyeron en unidades definidas hasta su asentamiento en
Palestina. Entonces se les asignó un nombre, circunstancia que puede probarse para algunas de
ellas, mientras que en otras queda en el terreno de la hipótesis. Es evidente que en Egipto no
pudieron existir unas tribus que no se crearon hasta más tarde, y todavía resulta más difícil saber
quiénes fueron las que verdaderamente residieron en tal país. Sólo es posible afirmar que se trataba
de elementos que luego figuraron entre los componentes de las tribus después de la ocupación de
Palestina, pero con toda probabilidad no fue una tribu aislada ni tampoco de un grupo de tribus, sino
ciertos elementos que se infiltraron en el conjunto de todas las tribus israelitas. NOTH, 1966, p. 118.
53
G. von Rad em uma análise da Teologia do Antigo Testamento, afirma que: “Javé conduziu Israel
para fora do Egito. [...] Na realidade esta declaração tem sempre o sentido de uma máxima,
proveniente, em muitos casos, de um hino. Por outro lado, oferece a particularidade de ser
extremamente variável e elástica, como podemos ver pela diversidade de suas formulações. Esta
confissão pode resumir-se em três palavras ou expressar-se num hino de certa amplitude. O extremo,
em que se esgotam todas as suas possibilidades de desenvolvimento, é a exposição do Hexateuco
em Ex 1ss. o tema foi elevado ao nível de perfeita composição polifônica, mediante a introdução
de todas as tradições acessíveis. Israel viu na saída do Egito a garantia do futuro, qualquer que fosse
ele, garantia inviolável essa da vontade salvadora de Javé e um penhor para a nos períodos de
tribulação (Sl 74.2)” RAD, 1973-1974, p. 183.
54
Segundo a Bíblia de Jerusalém: “Morreu depois Eleazar, filho de Aarão, e spultaram-no em Gaabá,
cidade de seu filho Finéias, que lhe foi dada na montanha de Efraim”.
55
Conforme a Bíblia de Jerusalém: “O que acontecerá aos teus dois filhos Hofni e Finéias será para ti
o sinal destas coisas: morrerão ambos no mesmo dia”.
56
Confira, por exemplo, em: SCHMIDT, 2004, p. 67.
29
Egito. Nesse sentido, os escritos proféticos do Norte e do Sul revelam-se
demasiadamente elucidativos. Os profetas do sul, Miquéias e o primeiro Isaías, não
mencionam o êxodo, ao contrário dos profetas do norte, Amós e Oséias
57
, os quais
deixam transparecer, em seus escritos, a tradição da saída do Egito. Cabe salientar
que os profetas citados são todos de uma mesma época.
Um fator bastante relevante encontra-se no nome “Moisés”. Uma análise
filológica deste nome também é utilizada como argumento favorável à historicidade
do êxodo. É bem verdade que há uma tentativa de vincular o nome Moshe ao verbo
hebraico masha (“tirar”, Moshe: “das águas o tirei”), de acordo com Ex 2.10.
Contudo, esta tentativa é fruto de uma etimologia popular posterior. O fato é que
Moisés possui a raiz egípcia msy, a qual significa “gerar, dar à luz”. Sendo assim, é
possível estabelecer uma analogia com Ra-msés (“gerado por Ra”) e Tut-mósis
(“gerado por Tut”), Moisés, no caso, seria a forma abreviada “filho de...”
58
. Caso
tenha existido Moisés, apesar de seu nome egípcio, provavelmente não tenha sido
desse povo, mas sim um estrangeiro imigrado ao Egito, pois segundo a tradição
bíblica possuía uma mulher midianita
59
.
Entretanto, os autores da chamada corrente minimalista e demais
pesquisadores de postura crítica a Bíblia, contestam a existência histórica de Moisés
devido às características de seu nascimento.
Moisés estava destinado a ser um grande líder no futuro, e assim a origem
deste herói devia se dar fora de uma família normal, para que depois
pudesse voltar a fim de conduzir seu povo. Contos sobre o abandono na
infância de um líder futuro eram conhecidos em outras sociedades, da Índia
(Chandragupta) à Inglaterra (o rei Arthur), passando pela Pérsia (Ciro), a
Grécia (os primeiros tiranos) e Roma (Rômulo). Por trás da infância de
Moisés, assim, podemos encontrar a história de como muitos povos
pensavam. No entanto, o se trata de história propriamente dita. Nunca
57
A titulo de exemplo Os 12.10 afirma: “Eu sou Iahweh teu Deus, desde a terra do Egito [...]”, também
Os 13.4: “Mas eu sou Iahweh teu Deus, desde a terra do Egito[...]”.
58
Para mais informações sobre o nome Moisés ver: DONNER, 1997, p. 127.
59
Ver, por exemplo, em: Ex 2.21-22; Ex 18.1-3.
30
existiram as cestas, as donzelas que se banhavam, os juncos e, talvez, nem
mesmo Moisés.
60
Contudo, é preciso buscar os elementos extra-bíblicos que possibilitam
atestar a pertinência histórica do êxodo. Nesse sentido, o conteúdo do papiro
Anastasi VI reveste-se de um caráter extremamente significativo
61
. O citado
documento permite ilustrar as condições e motivos que teriam levado os “israelitas”
ao Egito em épocas ainda mais remotas, descrevendo informações semelhantes às
contidas no Antigo Testamento.
Porém, ainda permanece a carência de indícios extra-bíblicos que permitam
visualizar o êxodo. Quanto à falta de evidências arqueológicas apresentam-se
algumas hipóteses explicativas. Uma delas reside no fato de que os registros
egípcios não conteriam a informação referente a um pequeno grupo que tivesse
abandonado o país. As entradas e saídas de seus vizinhos asiáticos eram
freqüentes no território egípcio. Até mesmo a suposta vitória dos “israelitas” sobre
um destacamento do exército de Faraó, segundo relata o texto bíblico, consistiria em
um evento de pouca importância não sendo, assim, incorporada aos registros da
potência Egito. Donner apresenta ainda outra informação:
Desde a elucidação científica dos textos egípcios, no séc. 19, foram feitos
repetidos esforços para encontrar em textos egípcios vestígios da imigração
daqueles que posteriormente seriam os israelitas. Essa empreitada não teve
sucesso, e por diversos motivos não tem perspectiva de êxito. “Israel”
surgiu depois da chamada tomada da terra na Palestina, e nós não
reconheceríamos em textos egípcios as pessoas cujos descendentes mais
tarde chegaram nem mesmo se seus nomes fossem citados
nominalmente como imigrantes no Delta do Nilo
62
.
60
FOX, 1993, p. 337.
61
No conteúdo deste papiro consta: “Outra comunicação para meu senhor: Terminamos de fazer
passar as tribos dos shoshus de Edom pela fortaleza de Merneptah-hotep-her-Maat, vida, saúde,
força, que está situada em Tjeku, até os lagos de Pitom de Merneptah-hotep-her-Maat que estão em
Tjeku, a fim de mantê-los em vida e de manter em vida seus rebanhos segundo o beneplácito do
faraó, vida, saúde, força, o sol perfeito do país todo, no ano 8”. ISRAEL e JUDÁ, 1985, p. 38.
62
DONNER, 1997, p. 99.
31
Devido à carência de evidências externas, deve-se considerar ainda algumas
informações advindas do testemunho religioso veterotestamentário. Conforme Ex.
1.11 a mão-de-obra “israelita” foi empregada na construção das cidades-armazéns
Pitom e Ramsés. Estas cidades teriam sido construídas durante o reinado de
Ramsés II (1290-1224)
63
, o que permite identificá-lo com o “Faraó da opressão”
64
.
Segundo atestam as escavações de Tell el- Mashutah
65
, Ramsés II teria
empreendido a construção de Pitom com a finalidade de armazenar o trigo. Por seu
turno, (Pi) Ramsés, construída no Delta, seria a cidade residencial que levou o nome
do Faraó. Pitom está vinculado com um local de nome Tkw (Tjeku), sendo
possivelmente encontrado no atual Tell Retabe, no Wadi Tumelat, entre o delta e o
lago Timash. A cidade de Ramsés, por seu turno, compreendia uma extensão de
10Km
2
, situada entre Tell ed-Daba (Avaris) ao sul e Qantir ao norte, cerca de 20km
ao sul de Tanis
66
.
63
Data encontrada em: SCHMIDT, 2004, p. 68.
64
Herrmann apresenta algumas hipóteses explicativas para esse conceito de “opressão”, segundo
ele: [...] o que parece certo é que nômades livres tiveram que considerar como desonra e opressão o
fato de trabalhar em construções no Egito, logo, procuraram esquivar-se. Assim, se nas tradições
veterotestamentárias relativas a opressão e êxodo se trata de uma memória histórica, deve entender-
se sobre a base da situação conflitiva entre os grupos nômades e a administração encarregada da
construção da residência dos raméssidas. Estes fatos podem ser explicados ainda melhor, se o grupo
dos que se retiraram estava caracterizado não por um destino comum mas também por um certo
espírito nacional, logo, era difícil ambientar-se a nova situação de uma grande potência estrangeira
(tradução própria). “[...] lo que si parece cierto és que nómadas libres tuvieram que considerar como
ignominia y opresión el trabajar en la construcción en Egipto y procuraron esquivarlo. Así pues, si em
las tradiciones veterotestamentarias relativas a opresiones y éxodo se trata de un recuerdo histórico,
debe entenderse sobre la base de la situación conflictiva entre los grupos nomádicos y la
administración encargada de la construcción de la residencia de los ramésidas. Estos hechos se
pueden explicar además mejor, si el grupo de los que se retiran estaba caracterizado no sólo por un
destino común sino también por un determinado espíritu nacional, al que se le hacía penoso
aclimatarse a la nueva situación de una gran potencia extranjera. HERRMANN, 1979, p. 89.
65
NOTH, 1966, p. 120.
66
DONNER, 1997, p. 104.
32
Fabricação de tijolos no antigo Egito.
67
É possível atestar que Ramsés II foi um faraó construtor. Conforme o Papiro
Leyde 348
68
, um texto egípcio, percebe-se que este governante estava envolvido em
construções: “Distribui rações aos homens de tropa e aos apirus que fazem o
transporte de pedras para o grande portal de Ramsés Miamun”. Quanto à natureza
dos referidos apirus, pode-se dizer que possivelmente tratava-se de prisioneiros de
guerra, aprisionados
69
na Palestina, ou de trabalhadores assalariados de origem
estrangeira
70
. É possível constatar que muitos estrangeiros (shasu) recorriam ao
Egito para sobrevivência própria e também de seu gado de pequeno porte. Nesse
sentido, recorde-se o conteúdo do citado Papiro Anastasi VI. Mesmo tratando-se
de um texto posterior a Ramsés II, é capaz de revelar como os grupos de pastores
67
ISRAEL E JUDÁ, 1985, p.34.
68
ISRAEL E JUDÁ, 1985, p. 35.
69
Com o intuito de explicar a origem dos trabalhadores semitas no Egito, Herrmann afirma: No
império médio o delta oriental veio a ser a porta de ataque para as grandes operações militares dos
reis egípcios rumo a uma autentica “estrada militar”, que estava fortificada e protegida principalmente
nas proximidades dos lugares providos de água, esta estrada discorria a certa distancia da costa
desde a zona do delta oriental até a região da estepe da Palestina meridional. Por isso então também
foram capturados numerosos prisioneiros de guerra, os quais, se possível, eram estabelecidos no
Egito. Isto produziu um notável aumento da população semita no Egito (tradução própria). “En el
imperio medio el delta oriental vino a ser la puerta de ataque para las grandes operaciones militares
de los reyes egipcios hacia una auténtica calzada militar”, que estaba fortificada y protegida sobre
todo en las proximidades de los lugares provistos de agua; esta calzada discurría a cierta distancia de
la costa desde la zona del delta oriental hacia la comarca esteparia de la Palestina meridional. Por
aquel entonces se capturaron también numerosos prisioneros de guerra, a quienes se establecía en
Egipto, si era posible. Esto produjo un notable aumento de la población semítica en Egipto”.
HERRMANN, 1979, p. 84.
70
Confira em: DONNER, 1997, p. 56 e em ISRAEL E JUDÁ, 1985, p. 35.
33
nômades “asiáticos” que vieram ao Egito poderiam ter sido recrutados para o
trabalho forçado.
De fato, dispõe-se de indícios que atestam a entrada de nômades em
território egípcio, sobretudo, na tentativa de buscar alimento para seus rebanhos.
Assim, torna-se possível conceber como os elementos que formaram os posteriores
israelitas entraram no Egito. Porém, a permanência desses grupos na terra dos
faraós possivelmente o foi muito duradoura, o que contrasta com a informação
bíblica, a qual aponta para um período de 430 anos de permanência no Egito.
Segundo Herrmann, um longo período de permanência em território egípcio não
seria possível, principalmente na época de Ramsés II, quando havia projetos de
construção de grandes proporções no delta oriental.
71
Infelizmente não se pode afirmar com segurança uma provável data para a
saída do Egito. Contudo, o que se pode atestar é que, por volta de 1220 a.C., existia
um determinado “Israel” na Palestina. Essa informação é comprovada pela estela do
faraó Merneptah
72
. Porém, o grupo do êxodo seria parte integrante do referido
Israel? Esse é um questionamento pertinente, que ainda está sem resposta.
Entretanto, possivelmente o Israel de Merneptah não englobasse o grupo que saiu
do Egito
73
.
71
HERRMANN, 1979, p. 81.
72
A referida estela afirma: “Os príncipes estão prostrados dizendo: paz. Entre os Nove Arcos nenhum
levanta a cabeça. Tehenu es devastado; o Hatti está em paz. Canaã está privada de toda sua
maldade; Ascalon está deportada; Gazer foi tomada; Yanoam está como se não existisse mais; Israel
está aniquilado e não tem mais descendência. O Haru está em viuvez diante do Egito”. ISRAEL E
JUDÁ, 1985, p. 37.
73
Para maiores informações ver: HERRMANN, 1979, p. 92 e DONNER, 1997, p. 106 e 107.
34
Parcela da estela de Merneptah onde é citado Israel.
74
2.1.3 A rota do êxodo
Tomando por base o texto bíblico, torna-se complexo determinar uma
trajetória pela qual teriam seguido os “israelitas”. O testemunho religioso fornece
informações distintas e as interpretações não são pacíficas. Têm-se possivelmente
três tradições, que apresentam dados divergentes. Trata-se de J, P e, talvez, E.
Conforme a fonte Javista (Ex 12.37; 13.20), os “israelitas” partiram de
Ramsés para Sucot; e tendo saído deste lugar, acamparam em Etam, na periferia do
deserto. A segunda localidade citada, Sucot, talvez possa ser identificada com Tkw
(Tjeku), ou seja, Tell Retabe. Etam, por sua vez, permanece completamente
desconhecida
75
.
A contestada fonte Eloísta não oferece indicações precisas. No entanto,
afirma que Deus não guiou o povo pelo caminho da terra dos filisteus, embora fosse
74
Parcela da Estela de Merneptah. Disponível em
http://www.egiptologia.com/images/stories/biblica/exodo/frag_estela_merneptah.jpg. Acessado em 30
nov. 2006.
75
DONNER, 1997, p. 109.
35
mais curto. Assim, a vontade divina
76
conduziu o povo a dar a volta pela rota do
deserto do Mar dos Juncos (Ex 13.17s)
77
.
Por seu turno, o Escrito Sacerdotal, presente em Ex 14.2, apresenta novas
localidades. Dentre elas, Migdol, que talvez possa ser identificada com Tell el-Her, e
Baal Zefon
78
, a qual possivelmente tivesse sua localização na entrada do Mar
Sirbônico, 15km ao norte de Pelúsio.
Dadas essas informações, são necessários alguns apontamentos quanto ao
termo hebraico Yam Suf. Tradicionalmente considera-se que o povo saído do Egito
atravessou o Mar Vermelho, sendo milagrosamente liberto pela ação divina.
Entretanto, Yam Suf
79
deve ser traduzido por Mar dos Juncos e não Mar Vermelho.
Na passagem bíblica de 1Rs 9.26, Yam Suf é identificado com o Golfo de Ácaba.
Dessa forma, as informações levantadas remetem a três rotas distintas: uma rota
ao norte beirando o Mar Sirbônico, coincidindo com o caminho dos filisteus; uma
outra ao sul, pelo Golfo de Suez, um braço do Mar Vermelho e, por fim, uma rota
central pelos lagos amargos (possivelmente Lago do Crocodilo).
76
Quem é o Deus do êxodo? Um comentário a esse respeito pode ser encontrado em GUNNEWEG
(b), 2005, p. 90.
77
Sobre a relação entre êxodo e Mar dos Juncos, Gunneweg afirma: “[...] a pesquisa moderna e mais
recente parece ter mostrado que a pergunta: para onde foi o grupo do Egito e em que parte do delta
do Nilo ele foi salvo?, é equivocada, pois pressupõe um vínculo original entre o êxodo e o milagre no
Mar dos Juncos. Este, porém, é duvidoso em termos de crítica da tradição, com base nas seguintes
considerações: 1. A designação “mar” ou “Mar dos Juncos” como local da salvação milagrosa é
antiga, mas não combina com a datação desta logo após a saída do Egito, pois o Mar dos Juncos fica
na região do Golfo de Acaba. 2. A festa da Páscoa, com a lenda festiva contida em Êxodo 1-14,
celebra e atualiza o período da escravidão no Egito e o êxodo, mas não uma salvação no Mar dos
Juncos. 3. O Cântico de Miriã (Ex 15,21), o hino mais antigo preservado, louva somente o milagre no
Mar dos Juncos, e não o êxodo. 4. O Cântico de Miriã celebra Yahweh como o Deus que interveio no
Mar dos Juncos, e essa intervenção é compreendida de modo militar, como é típico da mais antiga
em Yahweh. Em comparação, a estadia no Egito e o êxodo não são necessariamente, desde o início,
temas javistas”, GUNNEWEG (a), 2005, p. 53-54.
78
Maiores informações sobre a localização de Baal-Zefom podem ser encontradas em GUNNEWEG
(a), 2005, p. 53.
79
Confira em: NOTH, 1966, p. 116 e DONNER, 1997, p. 110.
36
Mapa apresentando as distintas possíveis rotas do êxodo.
80
Da mesma forma como existem três rotas distintas, as fontes J, P e E
apresentam versões divergentes quanto ao milagre junto ao mar. Segundo Herbert
Donner, é possível dividir o relato de modo que à fonte J pertencem os trechos de
Ex 12.37s; 13.20-22; 14.5b-6; 10bα, 13, 14, 19b, 20, 21aβ, 24, 25b, 2aβb, 30, 31. À
fonte P pertencem Ex 14.1-4, 8-10a, 15-18, 21aαb, 22, 23, 26, 27aα, 28, 29. Por sua
vez à fonte E cabem os trechos de Ex 13.17-19; 14.5a, 7, 11, 12, 19a, 25a
81
. Para
ilustrar esses dados pode-se dizer de forma sintetizada que, conforme a fonte
Javista, a ação de um forte vento oriental, durante toda noite, represou o mar
possibilitando a passagem dos “israelitas”. Quanto aos egípcios, pela manhã, um
pânico entre os mesmos lançou-os ao encontro das águas que, no momento,
voltavam ao seu leito normal. segundo o Eloísta, as rodas dos carros egípcios
foram freadas de modo que não conseguiram avançar. O Escrito Sacerdotal, por sua
80
PEREGO, 2001, p.23.
81
Ver: DONNER, p. 109. Para outra opinião sobre o assunto, confira em:RAD, 1973-1974, p. 184.
37
vez, apresenta uma visão mais miraculosa onde Moisés teria estendido seu braço
fazendo com que as águas formassem dois muros, possibilitando a passagem dos
“israelitas”, entretanto, voltando-se as águas sobre os perseguidores mandados pelo
faraó. O Escrito Sacerdotal comprova uma característica importante da tradição
bíblica, a qual reside no fato de que, quanto mais distante no tempo estiver o relato
do acontecimento, mais extraordinário e espetacular este se torna.
“A passagem do Mar Vermelho.” Raffaello Sanzio (1483-1520).
Galeiras Vaticanas, arcada 8 n. 3.
82
Tendo por base as informações aqui citadas, cabe salientar que os
praticantes do método histórico-crítico compartilham o pensamento de que houve
um êxodo independente da rota e quantidade de participantes. Contudo, afirmam ser
complexo estabelecer o local do sucesso dos “israelitas” sobre os egípcios. Para
82
PEREGO, 2001, p. 23.
38
Martin Noth o acontecimento deu-se na fronteira oriental do Delta, o local exato não
se pode localizar uma vez que o canal de Suez deturpou o mapa da região.
Seguindo a informação de Ex 14.2, sugere-se a rota do Mar Sirbônico, assim
conhecido na época helenística e atualmente correspondendo a Sibhat Bardawil.
83
O
historiador romano Diodoro
84
, comentando acerca deste mar, afirmou haver
banhados nessa região. Dessa forma, considerando a informação de Diodoro, o
conteúdo da fonte Eloísta reveste-se de um caráter plausível, uma vez que as rodas
dos carros egípcios poderiam ter ficado atoladas na zona dos banhados.
Segundo a informação bíblica, os “israelitas” que saíram do Egito rumaram
para o Sinai
85
. Entretanto, conforme estudos direcionados pelo método histórico-
crítico, a saída do Egito e o Sinai
86
representam tradições distintas
87
, ou seja, a
parcela do povo que saiu do território egípcio não precisa ser necessariamente a
mesma que esteve no monte.
83
NOTH, 1966, p. 115.
84
Veja: Biblioteca Histórica, livro I, cap. 30.
85
Schmidt salienta uma peculiaridade do Sinai no que concerne a relação do povo com Deus.
Compara como se essa referida relação antes e depois do Sinai: “Até agora Deus se revelara
essencialmente como aquele que acompanha e conduz o povo nas peregrinações. Na tradição do
Sinai, pelo contrário, existe desde o início, uma vinculação a um lugar, o que, na tradição patriarcal
ocorria apenas secundariamente. A perícope do Sinai testifica Javé como um Deus que mora ou se
revela junto a uma montanha” SCHMIDT, 2004, p. 78.
86
Um estudo da história das tradições, uma análise do Sinai nas fontes J, E e P, encontra-se em:
RAD, 1973-1974, p. 193-195. Quanto a este assunto, confira ainda em NOTH, 1966, p. 131-137.
87
Fohrer diverge dessa opinião e afirma: “A interpretação das narrativas do êxodo e do Sinai como
lendas festivas leva os estudiosos a separá-las e a atribuir não as tradições como também os
eventos a diferentes grupos de israelitas. Uma causa adicional disto é a divisão esquemática do
Pentateuco em “temas” individuais, embora apenas o Cântico de Moisés (Ex 15, 1-19, interpolação
posterior) a impressão de um desvio maior entre o êxodo e os eventos seguintes. Quando não se
atenção ao Cântico de Moisés, pode-se ver imediatamente que estamos tratando não com dois
“temas” mas com um único complexo. Mesmo que as narrativas do êxodo e do Sinai tivessem sido
transmitidas em diferentes contextos, isto não significaria necessariamente que elas derivam de
diferentes grupos e que não tem fundo histórico. [...] Todos os elementos essenciais da tradição são
inseparáveis do próprio princípio: a permanência de Moisés em Madiã, a revelação no Sinai ou na
montanha de Deus, a libertação prometida aí, a designação de Moisés para proclamar ou executar
essa libertação[...] As tradições do êxodo e do Sinai constituem um único complexo”. FOHRER, G.
História da Religião de Israel. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 76.
39
Algumas passagens do AT permitem supor que a tradição do monte de Deus
no deserto, originalmente, tenha sido independente e apenas posteriormente foi
combinada com a tradição do êxodo e da tomada da terra.
A isso conduzem sobretudo numerosos textos cúltico-religiosos que
recapitulam os acontecimentos da época salvífica clássica de Israel, desde
o êxodo até a tomada da terra, e nos quais falta o monte de Deus no
deserto: p. ex. Dt 6.20-24; 26.5-9; Js 24.2-13; Ex 15; Sl 78; 105; 135; 136 e
outros mais. Com isso, naturalmente, nada se decide com respeito à
antiguidade da tradição do monte de Deus. Trata-se tão-somente da
independência histórico-traditiva dessa tradição, que possibilitou falar sobre
a história da salvação de Israel sem sequer mencionar o monte de Deus.
88
A pesquisa sobre tal tradição reveste-se de complexidade, também porque as
passagens bíblicas apresentam informações distintas quanto à localização e ao
nome do monte
89
. Para algumas rotas apresentadas pelo texto bíblico se propõe
determinadas localizações, no entanto, o caminho apresentado em Nm 33.11-15 não
se pode localizar. Do mesmo modo, as designações do livro do Êxodo tais como
deserto de Sur, Sin, Refidim, Massa, Meribá, Mara, Elim carecem de uma
localização exata
90
. O nome do monte também não é preciso, se modifica conforme
a fonte consultada. De modo geral a designação “Sinai” é utilizada nas fontes J e P e
o nome Horebe nas fontes E e Dt/dtr.
91
88
DONNER, 1997, p.113.
89
As informações bíblicas também divergem quanto a idéia de Deus habitar um monte. Note-se, por
exemplo, que segundo o Javista: “Deus não habita na terra, nem na sarça nem no monte Sinai, mas
“desce” (yarad: Gn 11.5,7; 18.21, Êx 3.8; 19.11, 18, 20 e outras), para intervir nos acontecimentos”,
SCHMIDT, 1994, p. 83.
90
Quanto a isso Gunneweg afirma: “[...] o deserto de Sur (Êx 15.22), a fonte, ou seja, o oásis de Mara
(Ex 15.23), Massa e Meribá (Êx 17.7), o oásis Elim com 12 fontes e 70 tamareiras (Ex 15.22; 16.1).
Nem todos os nomes podem ainda ser identificados, mas a menção do deserto de Sur e de Massa e
Meribá deixa claro que se faz referência ao deserto entre Egito e o Neguebe, a saber, em parte a
mesma região onde se fixaram as tradições de Abraão e Isaque. Como não se trata de narrativas
inventadas livremente, elas podem e devem ser analisadas historicamente. Certamente estão
baseadas em experiências muito antigas do modo de vida nômade e preservam memórias de fontes
e oásis cuja origem milagrosa era conteúdo de histórias. Como ainda mostram alguns dos nomes
(Meribá vem da raiz rib = processo; Massá de nasah = provar = investigação de tribunal), essas
localidades serviam, sobretudo, para resolver casos jurídicos. Aparentemente, os oásis tinham fontes
de tribunais e juízo (cf. Gn 14.7)” GUNNEWEG (a), 2005, p. 59.
91
Quanto aos diferentes nomes do monte sagrado encontram-se informações em: NOTH, 1966, p.
128, DONNER, 1997, p. 113 e SCHMIDT, 2004, p. 83.
40
Quanto à localização do monte apresentam-se, sobretudo, quatro
possibilidades. Considerando que o texto de Ex 19.18 pode preservar memória de
um fenômeno vulcânico, tentou-se encontrar uma determinada região de possível
atividade vulcânica, podendo ser a mesma identificada ao leste do Golfo de Ácaba
(Hedjaz, deserto da Arábia). Entretanto, segundo as indicações de Jz 5.4s; Dt 33.2;
Sl 68.8s, constata-se que Javé vem de Seir (Edom). Por sua vez, Hc 3.3 e Nm 10.12
mencionam o deserto de Fará/Parã, embora essa não seja uma interpretação
pacífica. Fará/Parã é geralmente identificado com Djebel Faran, 80km a oeste de
Petra
92
.
Essas referidas localizações o são consideradas pelos cartógrafos, uma
vez que a ampla maioria dos mapas apresenta o monte de Deus ao sul da península
do Sinai. Entretanto, essa indicação não está baseada em textos bíblicos, mas,
remete a uma tradição cristã do século IV d.C.
Desde o séc. 4 d.C. o monte de Deus está firmemente ancorado na
montanha central da parte meridional da Península do Sinai. Trata-se do
Djebel Musa (2.292m), na vizinhança imediata de outros picos que
igualmente foram incluídos na malha da tradição cristã, em especial Djebel
Qaterin (2.606m) e Djebel el-Munadja (2.097m). Em fins do séc. 4 a
peregrina Etéria visitou a região; sobre o pico do Djebel Musa viu uma
igreja e relata a respeito da presença de monges. Entre 548 e 562 o
imperador Justiniano fundou o mosteiro de Santa Catarina. [...] Na região do
Djebel Serbal (2.060m), distante uns 40 Km do maciço central, foram
encontradas numerosas inscrições nabatéias do séc. 2-3, grafitos breves de
peregrinos [...] Testemunham a sacralidade dessa região montanhosa em
época pré-bizantina, e é possível imaginar que a tradição monacal cristã se
tenha reportado a isso.
93
Mesmo sabendo da possibilidade de um local sagrado ser preservado ao
longo do tempo, mais de mil anos separam a tradição cristã, que identifica o monte
com o Djebel Musa, e a pré-história de Israel. Sendo assim, o monte de Deus carece
de uma localização definitiva. Ainda assim, é possível concluir que tal monte se
92
DONNER, 1997, p. 116.
93
DONNER, 1997, p. 114.
41
encontra em uma região desértica ao sul da Palestina. Além do mais, conforme
determinadas passagens bíblicas (Ex 18.12; 19.18) constata-se que originalmente
tratava-se de um monte sagrado
94
(não de tribos pré-israelitas) também dos
midianitas/edomitas. Considerando o conteúdo de Ex 18.12, pode-se sugerir que até
mesmo o deus Javé
95
tenha sido, na origem, uma herança midianita.
Até o presente momento, a tentativa foi de apresentar as possíveis rotas da saída
do Egito. Sendo assim, cabe agora comentar algo a respeito da caminhada pelo
deserto. A geografia citada nessa parcela do texto bíblico não se pode localizar com
precisão. Apesar da narrativa conter lugares conhecidos como Parã (Wadi Feran)
96
e Kadesh/Cades
97
(‘En Qdes e ‘En Quderat)
98
, permanece a carência de indícios
para reconstruir uma rota segura. No mais, as passagens sobre a caminhada no
deserto possuem, nitidamente, um cunho teológico: note-se, por exemplo, o caso
dos 40 anos de andanças necessárias para a morte da geração que desobedeceu a
Javé.
Frente a esses elementos se pode afirmar que o “Israel” no deserto,
possivelmente, está mais comprometido com a literatura do que com a história.
falta de indícios extra-bíblicos referentes a este “evento”, sendo assim, restam
94
Schmidt aponta para os temas relacionados à perícope do Sinai em sua forma atual, a saber: a
teofania (Êx 19.16ss.); a firmação da aliança (Êx 24; 34) e o anúncio do direito divino (Ex 20-23; 34).
Para maiores informações ver: SCHMIDT, 1994, p.22.
95
Para um estudo mais detalhado acerca do nome Javé, consulte: RAD, 1973-1974, p. 186-192.
96
Veja em Nm 10.12; 12.16.
97
Gunneweg afirma: “Ao que parece, a localidade chamada de Cades teria uma importância especial,
uma região de fontes no deserto meridional onde fica também a fonte Meribá. Na narrativa de
Abraão, Cades é mencionado como oásis em alguma parte do sul (Gn 16.14; 20.1). É o local onde
pararam os israelitas quando enviaram espiões para a terra prometida (Nm 13.26; cf. Dt 1.19, 46; Js
14.6s), ou o local onde Israel permaneceu por muito tempo, após os acontecimentos do Sinai.
Números 20 menciona Cades diversas vezes, como ponto de partida da peregrinação que contornou
a Transjordânia”, GUNNEWEG (a), 2005, p. 60. Salientando outro aspecto relativo a Cades, Fohrer
afirma que para tal localidade foram levados levitas: [...] tinham de sair de Cades, embora não sem
levar em sua companhia alguns sacerdotes do famoso santuário local, os quais eram levitas (cf. Ex
32, 26-29; Dt 33, 8-11). Esses sacerdotes se tornaram adeptos do javismo, seja diretamente seja por
meio da identificação de Iahweh com a divindade de Cades”. FOHRER, 1982, p. 80.
98
Confira nos textos bíblicos de Nm 13.26; 20.1. Mais informações em DONNER, 1997, p. 118-119.
42
apenas algumas hipóteses
99
. Batalhas, vitórias, derrotas, provisão divina, enfim, uma
série de elementos marca a caminhada pelo deserto que, conforme o texto bíblico,
conduziu o povo à terra prometida
100
.
2.2 Os Maximalistas
O termo usado no título da presente parcela do estudo pode não ser o mais
apropriado. Em princípio, os maximalistas se caracterizam por assumirem uma
postura de defesa da narrativa bíblica. Entretanto, o termo é também utilizado para
fazer contraponto aos minimalistas. Sendo assim, a posição maximalista é aquela
que defende:
que tudo nas fontes que não pode ser provado como falso deve ser
aceito como histórico e a postura minimalista [...] defende que tudo
que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos a
serem reconstruídos deve ser descartado
101
.
99
Donner apresenta duas hipóteses: “1. Na Palestina o Israel posterior retrojetou etiologicamente
para a época salvífica clássica instituições e ocorrências que lhe eram importantes, a fim de lhes
atribuir o peso e a dignidade de uma origem mosaica e, assim, torná-las sacrossantas [...] e 2. Não se
pode excluir de todo a hipótese de que grupos que posteriormente se integraram em Israel tenham
trazido consigo tradições avulsas do deserto. Para tanto entram em cogitação associações como a
dos nômades sh´sw. Isso significaria: nem tudo o que se relata da caminhada no deserto foi
transferido mais tarde para lá; também existem tradições que originalmente cabem no deserto”.
DONNER, 1997, p. 121.
100
Na tentativa de explicar a unificação de diferentes tradições, Herrmann aponta: [...] deve deduzir-
se que as memórias, que aparecem dentro da composição pentatêutica como tradições de todo o
povo unido em sua marcha pelo deserto a partir do Egito, possui sua origem histórica em distintos
pontos da região sinaítica, mas não porque se caminhou sucessivamente de um lugar ao outro, e sim
porque cada um dos grupos aramaicos teve separadamente suas especiais experiências naquelas
regiões, e em tempos posteriores as recolheram em uma global tradição do deserto”. O que
aconteceu em Kadesh, no monte de Deus ou nos montes de Seir teve sua importância independente
para os interessados, que procediam das estepes da zona desértica arábico-síria. Mas não
necessariamente as mesmas pessoas estiveram primeiramente no Egito (tradução prórpia). [...] debe
deducirse que los recuerdos, que aparecen dentro de la composición pentatéuquica como tradiciones
de todo el pueblo unido em su marcha por el desierto a partir de Egipto, tienen su origen histórico en
distintos puntos de la región sinaítica, pero no porque se caminara sucesivamente de un lugar a otro,
sino porque cada uno de los grupos aramaicos tuvo separadamente sus especiales experiencias en
aquellas comarcas, y en tiempos posteriores las recogieron en una golbal tradición “del desierto”. Lo
que acaeció en Kadesch, en el monte de Dios o en los montes de Seir tuvo su importancia
independiente para los interesados, que procedían de las estepas de la zona desértica arábigo-siria.
Pero no es preciso que las mismas personas hayan estado primeramente en Egipto”. HERRMANN,
1979, p. 99.
101
SILVA, Airton José. Os Minimalistas. Disponível em <http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>.
Acessado em 30 nov. 2006.
43
De certa forma, os pesquisadores de postura maximalista podem ser também
classificados como fundamentalistas, pois em seus estudos deixam transparecer
nitidamente um sentimento religioso conservador, o que será perceptível em
algumas citações ao decorrer dessa pesquisa.
No presente item do estudo serão analisadas distintas obras e autores, e
devido a essa diversidade é que o termo “maximalistas” pode ser inapropriado. É
bem possível que se cometa injustiça ao classificar determinado autor como
maximalista, dentre os autores analisados alguns são mais flexíveis, outros, porém,
ortodoxos. Note-se o exemplo de John Bright, que nesse estudo constará entre os
maximalistas. No caso do referido autor, o critério para classificá-lo encontra-se em
uma declaração sua acerca do êxodo: “Não se trata de nenhum episódio épico e
heróico de migração, mas da recordação de uma servidão vergonhosa da qual
somente o poder de Deus poderia livrar”
102
. Na presente pesquisa, de modo geral,
todo autor que se referir à ação de Deus nos possíveis fatos históricos se
classificado como maximalista.
As obras de autores que assumem uma postura de defesa da narrativa bíblica
são geralmente uma simples paráfrase do texto religioso ou uma tentativa de
comprovar cientificamente os fatos bíblicos. Contudo, alguns pesquisadores
proclamam a infalibilidade da Bíblia, sendo assim, é sempre a evidência científica
que deve se moldar ao testemunho religioso.
No que concerne ao êxodo, céticos e fundamentalistas se assemelham ao
abordarem determinados aspectos referentes a esse tema. Ambos utilizam, por
exemplo, explicações de cunho naturalista ao tratarem das 10 pragas do Egito.
Evidentemente, no caso dos céticos, tais explicações o utilizadas para
102
BRIGHT, John. História de Israel; Tradução Euclides Carneiro da Silva. São Paulo: Paulinas,
1978, p. 154.
44
desqualificar o caráter milagroso do suposto evento. Por seu turno, os maximalistas
mais flexíveis, ao recorrerem às explicações naturalistas, desejam comprovar a
plausibilidade dos eventos narrados pela Bíblia, os ortodoxos, por fim, se recusam a
negar a ação divina em qualquer suposto acontecimento.
Para os autores de cunho fundamentalista, o êxodo é um acontecimento
singular. Foi o evento através do qual Israel tornou-se uma nação. As palavras de
Eugene Merrill são ilustrativas nesse sentido:
O êxodo é o evento teológico e histórico mais expressivo do Antigo
Testamento, porque mostra a magnificiente ação de Deus em favor de seu
povo, uma ação que os conduziu da escravidão à liberdade, da
fragmentação à unidade, de um povo com uma promessa os hebreus- à
uma nação estabelecida Israel. No livro de Gênesis encontram-se a
introdução e o propósito, seguindo-se então todas as revelações
subseqüentes do Antigo Testamento. Um registro que é ao mesmo tempo
um comentário inspirado e uma exposição detalhada. Em última análise, o
êxodo serve como um tipo de êxodo promovido por Jesus Cristo, de forma
que ele se torna um evento significativo tanto para a Igreja quanto para
Israel.
103
Na presente parcela do estudo a ampla maioria dos autores analisados possui
formação teológica, entretanto, conta-se com exceções, dentre elas não poderia
faltar o jornalista alemão Werner Keller. A obra do referido jornalista (E a Bíblia tinha
razão), indubitavelmente, marcou época. Chegou a ser usada como livro didático em
escolas, vendeu mais de 10 milhões de exemplares e foi traduzida em 24 línguas
104
.
Metodologicamente alguns maximalistas se assemelham aos ticos ao
analisarem a tradição bíblica à luz das evidências materiais, até então descobertas.
Entretanto, apesar de objetivos opostos, maximalistas e minimalistas persistem no
erro de interpretar a Bíblia literalmente, utilizam-se de uma parca exegese bíblica
não atentando para gênero literário, filologia, entre outros fatores.
103
MERRILL, Eugene H. História de Israel no Antigo Testamento: O reino de sacerdotes que Deus
colocou entre as nações; Tradução Romell S. Carneiro. Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 49, 50.
104
FOX, 1993, p.204.
45
Alguns argumentos são compartilhados por representantes das distintas
correntes interpretativas, sobretudo, maximalistas e os praticantes do método
histórico-crítico. Um caso dessa natureza encontra-se nas evidências da presença
“israelita” no Egito, como por exemplo, os nomes de raiz egípcia presentes entre os
hebreus, segundo atesta o texto bíblico. Tais nomes revelariam uma possível ligação
com o país dos faraós.
Contudo, frente à escassez de evidências diretas do êxodo, os maximalistas
também recorrem ao fato de que a memória da escravidão egípcia é algo
demasiadamente marcante no AT, logo, possivelmente contenha um cerne histórico.
Conforme afirma Bright:
Do próprio êxodo nós não temos nenhuma evidência extra-bíblica, mas o
próprio testemunho da Bíblia é tão impressionante que não deixa a menor
dúvida de que se tenha realizado esta libertação admirável. Israel lembra-se
do êxodo durante toda sua existência no futuro como o acontecimento que o
constituiu como povo. Esta libertação do Egito ficou no centro de sua
confissão de desde o começo, como é testemunhado por certos poemas
antigos (Ex 15, 1-18) e credos (Dt 6,20-25;26, 5-10; Js 24,2-13) que
remontam até o período primitivo de sua história.Uma crença tão antiga e
tão arraigada não admite explicações, salvo a de que Israel realmente se
livrou do Egito sob as circunstâncias de acontecimentos tão estupendos que
ficaram impressos para sempre na sua memória
105
.
Em relação à falta de evidências materiais, os exegetas histórico-críticos e os
maximalistas, assemelham-se novamente, apresentando argumentos similares.
Ambos afirmam que seria irrelevante ou até mesmo vergonhoso para o Egito
registrar uma derrota militar para um contingente de escravos. Porém, Randall Price
complementa:
Como os patriarcas antes deles, os israelitas viveram um estilo de vida
nômade durante o êxodo. As exigências da vida no deserto do Sinai
requeriam que nada fosse descartado, que todo item fosse usado até sua
capacidade máxima – e então reciclado. Até os ossos de uma refeição
seriam completamente reutilizados em várias aplicações industriais. Os
acampamentos temporários em tendas dos israelitas não teriam deixado
105
BRIGHT, 1978, p. 156.
46
quaisquer vestígios, especialmente nas sempre móveis areias do deserto.
Pode haver traços de grafito em rochas do Sinai que sugiram a presença
dos israelitas nesta região, mas em sua maior parte, por causa das
condições do deserto, os israelitas teriam que ser “arqueologicamente
invisíveis”.
106
Entretanto, um ponto em que os próprios maximalistas divergem reside no
período de permanência dos “israelitas” na terra dos faraós. As divergências se
devem ao fato da Bíblia apresentar informações conflitantes; note-se, por exemplo, o
conteúdo de Ex 12,40 e Gn 15,13.
Eugene Merrill dedicou-se com maior intensidade ao tema da duração do
“cativeiro egípcio”. Segundo o referido autor, o tempo de permanência dos
“israelitas” no país dos faraós depende da opção que se faz pela data do êxodo.
Tradicionalmente são propostas duas datas para o possível evento da saída do
Egito, uma no século XV a.C. e outra no século XIII a.C. A opção pela data mais
antiga remete a um período de 430 anos de “cativeiro”, sendo que com a data mais
recente o período seria de 215 anos. Conforme esta última proposta a história de
José teria se passado no contexto hicso
107
, mas optando pela duração mais longa
José estaria situado em uma dinastia egípcia
108
.
Em sua análise, Merrill apresenta evidências a favor dos dois períodos, o
curto e o longo. Porém, seguindo a tendência da ampla maioria fundamentalista, o
autor prefere o período de 430 anos e para sustentar o mesmo utiliza-se dos
106
PRICE, Randall. Pedras que clamam; Tradução Sérgio Viúla e Luís Aron de Macedo. Rio de
Janeiro: CPAD, 1996, p. 116.
107
De fato alguns autores afirmam que a história de José seria mais plausível no período em que os
hicsos dominaram o Egito, pois dificilmente um estrangeiro assumiria cargos de poder em uma
dinastia genuinamente egípcia. A cerca desse fato Schultz comenta: “Nos dias de José, os israelitas,
que tinham interesses pastoris, receberam as áreas mais férteis do delta do Nilo. Os invasores
hicsos, que também eram um povo pastoril, provavelmente se dispuseram favoravelmente em relação
aos israelitas. Com a expulsão dos hicsos, os governantes egípcios adquiriram maior poder, e com o
tempo deram início à opressão contra os israelitas. Um novo governante, não familiarizado com José,
não se interessava pessoalmente por Israel, mas introduziu regras cujo desígnio era aliviar seus
temores de um levante israelita. Em resultado, o povo escolhido foi consignado a trabalho árduo,
tendo de edificar cidades-tesouro como Pitom e Ramsés (Ex 1:11)” SCHULTZ, Samuel J. A História
de Israel no Antigo Testamento; Tradução João Marques Bentes. o Paulo: Vida Nova, 1977, p.
49.
108
MERRILL, 2001, p. 69.
47
versículos presentes em Ex 12. 40,41, os quais conteriam uma declaração explícita
de Moisés. Dessa forma, o autor revela compactuar com a autoria mosaica do
pentateuco, um elemento extremamente presente no pensamento maximalista
109
.
Quanto ao período de 215 anos de permanência no Egito, Eugene afirma que:
“A teoria de uma peregrinação de apenas 215 anos tem atraído muitos estudiosos
porque acomoda mais facilmente as [quatro gerações] descritas em Gn 15. 16 e as
quatro gerações de Levi até Moisés (Ex 6.16-20)”
110
. Entretanto, um dos principais
argumentos que utiliza para refutar o referido “curto período” encontra-se no fato de
que 215 anos seria pouco tempo para os “israelitas” passarem de setenta e cinco
pessoas (família de Jacó) a seiscentos mil homens, sem contar mulheres e crianças.
Conforme Merrill, mesmo 430 anos seria pouco tempo para tamanho crescimento
populacional, logo, afirma que uma multiplicação nessas proporções foi possível
devido à ação divina.
Dessa forma entra-se em outra questão conflitante, ou seja, a quantidade de
participantes do êxodo. A maioria dos maximalistas valida o número indicado pela
Bíblia, porém, sabe-se que a informação bíblica é absolutamente improvável.
Entretanto, estudos de longa data esforçam-se para comprovar a plausibilidade da
quantia descrita pela Bíblia. Em um de seus escritos, Césare Cantú trazia a seguinte
referência:
Segundo WALLACE (Dissertação sobre as populações dos tempos
primitivos, Amsterdã, 1769), um único casal, em treze períodos, isto é, em
433 anos e 1/3, produz 24.576 indivíduos. Supondo que as sessenta e sete
pessoas entradas no Egito com Jacó ali tivessem ficado 430 anos, teríamos
1.646.592 indivíduos. Tirai a metade de mulheres, tirai mais um quarto de
109
Além de legitimarem a autoria mosaica do Pentateuco os fundamentalistas também consideram a
Bíblia como uma unidade infalível. Dessa forma, se utilizam de versículos do Novo testamento para
reforçar ou complementar informações do AT. Um exemplo disso encontra-se nos elementos
referentes a vida de Moisés, ou seja, o versículo de At 7:22 é utilizado para comprovar que Moisés
teria sido educado em toda a sabedoria egípcia. Veja-se SCHULTZ, 1977, p. 49.
110
MERRILL, 2001, p. 71.
48
crianças e velhos incapazes de pegar em armas e tereis 617.472
combatentes. A Bíblia dá apenas 600.000.
111
Tal informação é demasiadamente ilustrativa por refletir nitidamente a
intenção de defender/comprovar a narrativa bíblica.
Entretanto, independente da quantidade de participantes, qual caminho teriam
seguido os “israelitas” saídos do Egito? Diferentemente dos praticantes do método
histórico-crítico, os quais afirmam ser o êxodo e o Sinai tradições distintas, os
autores fundamentalistas defendem que os hebreus fugidos da escravidão teriam se
dirigido ao citado monte. Porém, antes disso, qual teria sido o local exato da
travessia do mar? A complexidade do assunto não permite maiores conclusões,
comentando a esse respeito Bright afirma: “A localização precisa do Êxodo tem
importância tão pequena para a religião de Israel como a localização do santo
sepulcro para o cristianismo”
112
.
Porém, a maioria dos autores maximalistas parece concordar que a travessia
do “Mar Vermelho” é um equívoco. Ao que tudo indica o termo hebraico “yam suf”
refere-se ao Mar dos Juncos. Lamentavelmente a construção do Golfo de Suez
deturpou a região impossibilitando maiores definições.
Os exegetas histórico-críticos apresentam mais de uma rota de fuga para o
êxodo, incluindo a travessia de uma região pantanosa. De certa forma, Eugene
Merrill rivaliza com essa posição afirmando:
Embora saibamos que o local tenha sofrido muitas dragagens para a
construção e manutenção do Canal de Suez, o lago Menzalé sempre foi
fundo o suficiente para impedir a passagem a sob quaisquer
circunstâncias. A passagem de Israel pelo mar, que antecedeu o
afogamento dos exércitos e carruagens egípcias, não pode ser explicada
como uma “travessia de um pântano”. Foi preciso a poderosa ação de
Deus, uma ação tão expressiva em sua extensão e significado que, a partir
daquele momento, na história de Israel, ela seria para sempre um
paradigma por meio do qual os atos salvíficos e redentores de Deus seriam
111
CANTÚ, Césare. História Universal; tradução Savério Fittipaldi. São Paulo: EDAMERIS, 1967,
vol. II, p.14.
112
BRIGHT, 1978, p. 157.
49
evocados. Se não existiu um milagre real nas proporções aqui descritas,
todas as demais referências ao êxodo como arquétipo do poder soberano e
salvífico da graça de Deus tornam-se vazias e sem significação real.
113
Na rota do êxodo, a localização do Sinai é outro ponto de divergência entre os
autores. Parcela majoritária desses acaba optando pela localização tradicional
(Jebel Musã). Os autores de conotação maximalista discordam da idéia que
apresenta o êxodo e o Sinai como tradições distintas, conforme afirmam os estudos
direcionados pelo método histórico-crítico. A este respeito Bright comenta:
Alguns especialistas, notando que certos credos antigos (Dt 6,20-25;26,5-
10; Js 24,2-13) não fazem nenhuma menção do Sinai, separam o Êxodo e
os acontecimentos do Sinai e afirmam que eles pertencem a grupos
diferentes em épocas diferentes. Mas isto, além do fato de que se baseia
em pressuposições relativas à história da tradição que não oferece
nenhuma confiança, é entender mal a função desses credos com relação à
cerimônia da aliança. Estes credos eram muito provavelmente destinados à
recitação em cerimônias de renovação da aliança, quando serviam como
prelúdio para a reafirmação da aliança que por sua vez era um
restabelecimento dos acontecimentos do Sinai. De qualquer modo, a
tradição do Sinai era tão antiga como a tradição do Êxodo e não razão
para duvidar que as duas estavam ligadas desde o começo.
114
Com base nessas informações, torna-se perceptível que a rota do êxodo é um
assunto revestido de complexidade. Ampla maioria dos locais citados na narrativa
bíblica carece de uma localização pertinente. Contudo, o principal acampamento dos
“israelitas” no deserto, Cades-Barnéia, teria sido identificado como Tel el-Qudeirat
localizado a cerca de 80Km a sudoeste de Berseba, no deserto de Zin
115
. Cades-
Barnéia teria sido o local habitado durante a maior parte da estadia no deserto.
Conforme o relato bíblico, no quadragésimo ano, Moisés teria feito planos para
retomar a marcha rumo a Canaã.
Dito isso, se faz necessário salientar alguns aspectos da trajetória
historiográfica fundamentalista. Torna-se perceptível que os autores mais antigos
113
MERRILL, 2001, p. 59.
114
BRIGHT, 1978, p.161-162.
115
MERRILL, 2001, p. 77.
50
dessa tendência e os maximalistas atuais destoam nos enfoques. As obras com
mais idade costumam contemplar de modo mais destacado, dentre outros, quatro
assuntos, a saber: José, Moisés, as 10 pragas e os milagres no deserto. Os
fundamentalistas atuais parecem ter descartado alguns itens dessa pauta, Randall
Price, por exemplo, não enfatiza em sua obra os aspectos concernentes à história
de José. De forma distinta, Werner Keller preocupa-se com tal relato e procede a
uma apuração do mesmo traçando paralelos entre o testemunho
veterotestamentário e as fontes extra-bíblicas.
Em relação à narrativa sobre José, Keller traça um paralelo com a história de
Ben Aquiba (“A história dos dois irmãos”) contida no Papyrus Orbiney.
116
Segundo o
referido autor, o conto sobre Aquiba teria se difundido no tempo da XIX dinastia. As
semelhanças com a versão bíblica são nítidas, sobretudo, no ponto que se refere ao
convite para relações sexuais proferido por uma mulher.
Entretanto a questão mais instigante no relato sobre José refere-se ao fato de
um jovem semita obter importante função político-administrativa e, tratando-se do
Egito, seria mais plausível que isso tivesse ocorrido num período de dominação
estrangeira
117
. Conforme atesta o egípcio Mâneto: “Surgiram de improviso homens
de nascimento ignorado, vindos das terras do Oriente”
118
, tais homens eram os
hicsos que por volta de 1730 a.C., segundo Keller, puseram fim ao domínio das
dinastias egípcias. Para Keller, a história bíblica de José e a estada do povo hebreu
no Egito inserem-se no período do domínio hicso. Vale salientar que, conforme
afirma o autor, o cerimonial de investidura de poder pelo qual José passou e que
116
Veja-se: KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão; Tradução João Távora. São Paulo:
Melhoramentos, 1979, p. 89.
117
Baseado nos nomes próprios de origem egípcia descritos no livro do Gênesis, Merrill discorda da
possibilidade da história de José ter ocorrido durante a dominação hicsa. Para maiores informações
ver: MERRILL, 2001, p. 44.
118
MÂNETO apud KELLER, 1979, p. 91.
51
está descrito em Gênesis 41.42 pode ser confirmado pelos quadros murais e relevos
egípcios.
119
Ritual de investidura de um Vizir egípcio.
120
Utilizando-se do versículo de Gênesis 46.34, Keller afirma que José
poderia ter sido vice-rei sob o governo de uma dinastia estrangeira, pois os egípcios
não concederiam este cargo a um “habitante da areia”. Contudo, a hipótese de José
ter governado durante o período hicso caiu por terra
121
. Quanto ao cerimonial da
investidura [de José], este possivelmente foi introduzido no Egito por
Assurbanipal (669/8 630 a.C.). Destarte, o José do Egito de que relata a Bíblia
permanece sem sustentação no registro material.
As 10 pragas e os milagres do deserto aparentam ser os pontos de maior
distinção entre os fundamentalistas mais antigos e os maximalistas recentes. No
119
KELLER, 1979, p. 92.
120
ROMER, 1991, p.41.
121
KELLER, 1979, p. 97.
52
caso desses últimos, as 10 pragas são apenas citadas, contudo, não há um esforço
no sentido de explicá-las. A cerca desse assunto Merrill comenta:
Cada praga era uma afirmação da superioridade de Jeová sobre a
divindade (ou deuses) responsável pela área da natureza que estava sendo
particularmente atingida. Os céticos consideram as pragas como um relato
bastante exagerado de fenômenos naturais perfeitamente compreensíveis,
ainda que incomuns. [...] É preciso entender que elas eram autênticos
derramamentos da ira de um soberano Deus que desejou mostrar, para
todo o Egito e também para o seu povo, que Ele é o senhor de toda terra e
céu [...].
122
Ao tratar desse mesmo tema, Keller desenvolve uma argumentação distinta,
ou seja, utiliza-se das explicações de cunho naturalista. Estas explicações abrangem
tanto as 10 pragas quanto os milagres no deserto. O referido autor argumenta, por
exemplo, que no verão africano bandos de aves migram para a Europa, tanto pela
ponta ocidental da África para a Espanha, como pela parte oriental do Mediterrâneo
para os Bálcãs. Com isso o “povo escolhido por Deus” conseguiu obter as aves que
caíam cansadas antes de passarem os montes até o Mediterrâneo. Flávio Josefo
(Ant., III, 1,5) relata algo similar, sendo que ainda hoje na região é possível
acompanhar o fenômeno durante a primavera e o outono. Em relação ao maná, este
se deve à secreção de árvores e arbustos da tamargueira (Tamarix mannifera),
quando picados por uma espécie de cochonilha característica do Sinai
123
.
O relato de Ex 17.6, conforme o qual Moisés faz brotar água da rocha,
também é descrito por Keller como um fenômeno natural. Trata-se de uma rocha
calcária que armazena água e a faz brotar de seus poros. Para Keller, Moisés teria
aprendido esta técnica durante o seu exílio com os midianitas.
122
MERRILL, 2001, p. 58.
123
KELLER, 1979, p. 120.
53
Outro fato relacionado com o líder do êxodo seria a sarça ardente, também
explicada de forma natural. Segundo estudos de botânica
124
, uma planta toda
coberta de minúsculas glândulas oleaginosas (Dietamnus albus) que permitem que o
óleo se evapore continuamente, somado a rama vermelho-carmesim (Loranthus
accaciae) que cresce em diferentes moitas e pequenas árvores espinhosas da
família das acácias, dariam a impressão da planta estar envolta em fogo.
Há, entretanto, um ponto em que fundamentalistas de todas as épocas
esforçam-se em defender, a saber: a historicidade de Moisés. Esta é uma questão
que interessa também aos praticantes do método histórico-crítico. A raiz egípcia do
nome de Moisés é um forte argumento a favor de sua existência histórica e também
compartilhado pelas referidas correntes de estudo.
Eugene Merrill esforça-se para encaixar o relato bíblico de Moisés na história,
chegando inclusive a apontar Hatchepsute como a mãe adotiva do pequeno semita
abandonado nas águas. O citado autor afirma:
Se, de fato, Moisés foi filho de criação de Hatchepsute, probabilidade de
haver ele sido uma forte ameaça ao jovem Tutmose III, visto que
Hatchepsute não tinha filhos naturais. Isso significa que Moisés era um
candidato a ser faraó, tendo apenas como obstáculo sua origem semítica.
Parece-nos que houve uma real animosidade entre Moisés e o faraó. Isto
fica claro em virtude de Moisés, após matar um egípcio, ter sido forçado a
fugir para salvar a vida. O fato de ter o próprio faraó considerado a questão
que, em outra situação, seria pouco relevante sugere que este faraó
especificamente tinha interesses pessoais em se livrar de Moisés. O exílio
auto-imposto por Moisés ocorreu em 1486, quando ele tinha 40 anos de
idade (At 7.23). Tutmose III estava no poder havia 18 anos; e a idosa
Hatchepsute, que faleceria três anos mais tarde, não tinha mais condições
de interditar a vontade de seu enteado/sobrinho.
125
Mais uma vez torna-se nítido o interesse em defender a narrativa bíblica, no
caso acima, tentando encaixá-la na história. Essa é a coluna dorsal da postura
fundamentalista/maximalista. Conforme afirmado, autores mais flexíveis,
124
KELLER, 1979, p. 129.
125
MERRILL, 2001, p. 54.
54
outros, porém, mais ortodoxos, entretanto, compartilham a intenção de demonstrar
que as histórias bíblicas refletem acontecimentos reais, ou seja, para os referidos
autores o texto bíblico não é mera ficção ou mera construção literária. É bem
verdade que pesquisadores com essa postura existem por todas as partes do globo,
contudo, é absolutamente perceptível que os Estados Unidos permanece sendo o
maior produtor de estudiosos com esse pensamento. A chamada “escola americana”
continua a produzir discípulos convictos de que “a Bíblia tinha razão”
126
e, sem
dúvida, William Albright pode ser classificado como um dos precursores dessa
tendência, embora ele próprio não tenha sido tão sectário como alguns de seus
discípulos.
126
Parafraseando a obra de Werner Keller.
55
3 O ÊXODO SEGUNDO HISTORIADORES E ARQUEÓLOGOS
A análise da pertinência histórica da Bíblia é uma prática de longa data no
mundo ocidental. Paralelamente a uma postura fundamentalista de defesa do texto
religioso desenvolveu-se uma postura de crítica, de contestação dos escritos
bíblicos. Com o êxodo, por ser parte significativa do Antigo Testamento, não poderia
ser diferente. O referido evento foi e permanece em análise sob diferentes enfoques
e olhares. Na presente parcela do estudo tentar-se-á demonstrar como o êxodo foi
interpretado fora dos ambientes teológicos, sendo assim, serão utilizadas,
sobretudo, as obras de arqueólogos e historiadores.
127
Novamente se fará notável que alguns argumentos são compartilhados pelas
distintas correntes de estudo. Entretanto, cabe salientar que a argumentação dos
pesquisadores aqui analisados possui maior similaridade com a escola do método
histórico-crítico. Evidentemente, no decorrer do estudo se farão perceptíveis os
contrastes inclusive entre os estudiosos da área de arqueologia e os especialistas
em história antiga.
127
Os pesquisadores analisados nesta parte do estudo não configuram uma escola teórica. Trata-se
de pesquisadores que abordaram isoladamente algumas temáticas acerca da história antiga de
Israel. Situação diferente ocorre no item 3.1, onde serão analisados alguns estudiosos considerados
de postura “minimalista”. ”. Entretanto, mesmo os chamados “minimalistas” são, em sua maioria,
“biblical scholars”.
56
Não se pode negar que a produção intelectual dos estudiosos que contestam
a historicidade das passagens bíblicas é, em grande parte, estimulada pela
necessidade de combater a literatura de cunho fundamentalista. Nesse sentido as
palavras de Fox são ilustrativas:
Os fundamentalistas também tentam explorar conhecimentos do tipo
histórico. O ponto de contato mais fácil é a arqueologia, a disciplina em que
a história parece fazer o uso máximo da ciência e que para todos os efeitos
trabalha com indícios diretos, e portanto nada ambíguos. A arqueologia
pode ser apreciada por seu público sem a interposição de qualquer barreira
lingüística, e à medida que este público vai crescendo os fundamentalistas
encontram cada vez mais razões para invocar seus achados como provas
de que a narrativa bíblica é verdadeira. Exemplos particulares são usados
como base para a ampla difusão de uma convicção geral de que todo o
conteúdo das escrituras poderia ser confirmado caso fosse possível escavar
suas relíquias. Os indícios escritos, porém, são mais refratários. Também
neste caso, os fundamentalistas enfatizam os textos exteriores à Bíblia que
confirmam nomes, lugares e fatos mencionados em certas passagens de
sua narrativa. Em seguida, dão a entender que o que ocorre com esses
exemplos poderia aplicar-se a tudo que ela nos conta. Quando os textos
não confirmam a Bíblia, questionam o valor desses indícios discordantes: a
convicção popular de que os historiadores podem encontrar a verdade final
é menor do que a nos cientistas. Naturalmente, esta vida nunca é
voltada contra os próprios autores da Bíblia.
128
Os pesquisadores que assumem uma postura crítica em relação à Bíblia
procuram enfatizar em seus estudos as incoerências do texto religioso tais como os
dobletes das narrativas, os anacronismos
129
e as informações contrastantes. É bem
verdade que as pesquisas sobre o antigo Israel assumem cada vez mais um caráter
interdisciplinar, porém, ainda é necessário avançar nesse sentido. Os críticos da
128
FOX, 1993, p. 41.
129
Em relação ao êxodo Dever argumenta: Logo no início de sua caminhada, os israelitas
escolheram entrar em Canaã pelo “caminho da terra dos Filisteus”, isso é, a rota da costa ou a
posterior Via Maris (Ex. 13: 17-18). Esta rota parecia fazer sentido, é a mais direta do Egito ao seu
destino. Mas a referência aos filiteus é um anacronismo. Este povo não estava assentado em Canaã
até a época de Ramsés III, c. 1180 a.C. Os escritores bíblicos não teriam sabido disto, mas eles
tinham conhecimento que o estabelecimento dos filisteus nos sítios ao longo da costa teriam sido
uma barreira. Assim a referência é inserida dentro de Êxodo, da mesma forma que a rota alternativa
descrita em Números (tradução própria)”. “Near the very beginning of their wanderings, the Israelites
contemplate entering Canaan [by way of the land of the Philistines], that is, the coastal route or the
later Via Maris (Exod. 13: 17-18). This route would seem to make sense; it is the most direct one from
Egypt to their destination. But the refence to Philistines is an anachronism. That people did not settle
in Canaan until the time of Ramses II, ca. 1180 B.C. The biblical writers would not have know this, but
they were aware that the Philistines establishment at sites along the coast would have been a barrier.
Thus the reference is inserted into the Exodus account, and thus the alternate route described in
Numbers. DEVER, William G. Who Were the Early Israelites and Where Did They Come From?.
Wm. B. Eedmans Publishing Co., 2003, p. 23.
57
Bíblia mais antigos, por falta de um maior contato com a teologia, costumavam
cometer mais equívocos no que concerne ao trato, à interpretação dos textos
bíblicos.
São poucos os arqueólogos e historiadores com suficiente capacidade de
analisar os escritos veterotestamentários em sua forma original. Resulta disso uma
parca exegese bíblica que é, muitas vezes, a responsável pela produção de um
raciocínio ilógico, ou, até mesmo, adaptações forçadas. Exemplo deste gênero pode
ser verificado na obra de Louis Frédéric, quando o mesmo tenta explicar as distintas
versões sobre a saída do Egito:
Um grupo dos Habiru, mais indisciplinado do que os outros, pôde se revoltar
abertamente, sendo perseguido pelas tropas do faraó. Um outro grupo
preferiu fugir; daí, a existência, na Bíblia, de duas versões: uma dizendo que
os Hebreus foram perseguidos, e outra segundo a qual eles fugiram apesar
da oposição das tropas do faraó, que os teriam perseguido. Isto explicaria,
também, as duas rotas seguidas pelos hebreus no deserto: a do norte,
pelas tribos que foram perseguidas; e a do sul, pelas que teriam fugido, ou
vice-versa.
130
Contrastar as informações bíblicas com as fontes extra-bíblicas é metodologia
comum entre os autores aqui analisados. Verifica-se a que ponto a Bíblia
corresponde às evidências materiais, sejam elas artefatos encontrados em
escavações arqueológicas, fontes escritas, ou ainda a ausência de ambas, o que
promove o descrédito da informação bíblica pela falta de sustentação no registro
material. Evidentemente, também se procede a uma análise do contexto histórico ao
qual a narrativa bíblica se refere, nesse sentido, John Romer afirma, por exemplo,
que a história de José é plausível pelo fato de estrangeiros terem migrado ao Egito
em busca de melhores condições de vida. Contudo, o citado autor compactua com a
130
FRÉDÉRIC, Louis. A Arqueologia e os Enigmas da Bíblia. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores,
1978, p. 128.
58
idéia de que uma história como a de José seria mais aplicável ao período de
dominação hicsa
131
.
Entretanto, o próprio Romer adverte:
É evidente que existe muita coisa nas narrativas bíblicas sobre o Egito que
as coloca com firmeza em um ambiente egípcio genuíno, como acontece
com as narrativas sobre a Mesopotâmia. Porém, por mais coerentes que
sejam essas semelhanças culturais, o fornecem a prova de que tais
narrativas relatam acontecimentos históricos verdadeiros ou que seus
personagens existiram da mesma forma que as cuidadosas descrições
que Tolstoi faz do exército de Napoleão em Guerra e Paz não provam que
os personagens do romance tenham existido realmente.
132
É também característica dos estudiosos críticos da Bíblia, valerem-se de
explicações naturalistas
133
para desqualificar os supostos milagres relativos ao
êxodo. A esse respeito Frédéric comenta:
Quanto aos prodígios, provavelmente, são uma extrapolação do redator do
livro do Êxodo para confirmar o poder de Yahwé, se bem que várias
explicações científicas tenham sido apresentadas para explicá-los:
fenômeno cósmico (passagem de um cometa muito próximo da terra),
fenômeno geológico (conseqüências da erupção do vulcão da ilha de
Santorim por volta de 1447 a.C.), fenômenos naturais devidos a uma
enchente excepcional do Nilo e que teria provocado as pragas. Todas as
explicações são possíveis, mas em nenhuma hipótese poderiam ter servido
para castigar o faraó, porque estes fenômenos teriam sido interpretados de
outra forma pelos egípcios. Se ao contrário, admitimos tratar-se de um
acréscimo tardio (o que poderia explicar a composição do texto, a
duplicidade de algumas passagens e os absurdos), os prodígios teriam sido
acrescentados apenas com um fim religioso, o que parece ter sido o
propósito do redator.
134
De forma geral, os autores analisados na presente parcela do estudo,
absorvem a narrativa sobre o êxodo de forma literal e procedem a uma análise da
historicidade da mesma. Sendo assim, as investigações iniciam-se com José e se
estendem até depois do acampamento, em Kadesh-Barnea. Neste ponto o contraste
com o método histórico-crítico é absolutamente gritante, para os praticantes do
131
ROMER, 1991, p. 40.
132
ROMER, 1991, p. 43.
133
Explicações desse cunho sobre as pragas e os milagres no deserto são encontradas em DEVER,
2003, p. 15 e 21.
134
FRÉDÉRIC, 1978, p. 130.
59
referido todo, determinados trechos do êxodo possuem um sentido simplesmente
teológico, assim, não motivos para resgatar a historicidade de um texto que foi
formulado com outros objetivos. Para citar um exemplo, os exegetas histórico-
críticos, de modo geral, não se preocupam em auscultar o relato sobre José, pois o
consideram uma novela.
De fato, como afirmado, alguns argumentos que percorrem as distintas
correntes de estudo. Dentre esses encontram-se as evidências de que grupos
semitas migraram ao Egito em busca de melhores condições. Desse modo, conta-se
com um contexto plausível para o relato do êxodo. Entretanto, os eventos
posteriores à migração dos semitas à terra dos faraós carecem de sustentação, de
evidências fora do AT.
Determinadas parcelas do relato sobre o êxodo são absolutamente
inaplicáveis ao contexto histórico ao qual a narrativa tenta se referir. Independente
das datas propostas para a saída do Egito, se no século XV a.C ou XIII a.C., a
quantidade de participantes do referido evento é, sem dúvida, descabida.
Comentando a esse respeito Dever afirma:
Algumas das informações são claramente fantasiosas, assim como a lista
de censo tribal (Num. 1) que totaliza 603.550; similarmente a contraditória
alegação de que as tribos poderiam formar um exército de 600.000 homens
(Ex. 12.37) os quais defenderiam uma população de 2.5-3 milhões. É
simplesmente impossível que o deserto do Sinai, naquela época ou agora,
pudesse suportar mais do que poucos milhares de nômades (tradução
própria).
135
Porém, os problemas vão além da quantidade de participantes descrita na
Bíblia. Antes mesmo da própria saída do Egito, John Romer, comenta quanto à
concepção de opressão:
135
Some of the information is clearly fanciful, as for instance the tribal census lists (Num.1), wich total
603,550; similarly the contradictory claim that the tribes could field a fighting force of 600,000 men
(Exod. 12:37), wich would work out to a total population of some 2.5-3 million. There is simply no way
that the Sinai Desert, then or now, could have supported more than a very few thousand nomads.
DEVER, 2003, p. 18-19.
60
A escravidão em tal escala e do tipo descrito no Livro do Êxodo não existia
no antigo Egito nem em parte alguma daquele mundo antigo, onde a
humanidade estava estabelecida em uma ordem sagrada, na qual todos,
desde um faraó até um camponês escravizado, estavam à disposição dos
deuses e do Estado. Nesse mundo, as concepções modernas de
escravidão e de liberdade, e mesmo de propriedade e compra e venda,
tinham pouco sentido. Além disso, prova documental explícita do antigo
Egito demonstra que os estrangeiros que viviam naquele país, quer como
prisioneiros de guerra quer como pacíficos imigrantes, eram cuidadosa e
rapidamente integrados à massa da população [...] As idéias antigas sobre
raça e cultura eram muito diferentes, e o tema da liberação da opressão
contido no Êxodo é inteiramente incompatível com a realidade antiga [...].
136
A falta de registro extra-bíblico do êxodo é, sem dúvida, um dos pontos mais
enfatizados pelos autores analisados nessa parcela do estudo. Conforme afirmam, a
perda de um significativo contingente de trabalhadores teria provocado um abalo
econômico e social o que certamente constaria nos registros egípcios
137
. Ao que
tudo indica os autores de postura crítica ao texto bíblico ainda não se sensibilizaram
com os argumentos que tentam explicar a ausência de evidências extra-bíblicas do
êxodo.
138
Entretanto, apesar das improbabilidades de certos trechos do relato em
questão, é raro encontrar algum pesquisador que considere o referido evento como
mera ficção. Sendo assim, os estudiosos compactuam com a idéia de que a
narrativa bíblica da saída do Egito contém um cerne histórico, mesmo que mínimo.
Robin Lane Fox, por exemplo, preocupa-se com o processo de elaboração do
relato sobre o êxodo. Nesse sentido comenta a dificuldade da referida narrativa ser
historicamente fidedigna uma vez que seu(s) redator(es) não contava(m) com
indícios primários, sem mencionar o fato de que até o momento de sua fixação por
escrito a versão bíblica do êxodo circulou longo tempo na oralidade. Dessa forma,
Fox afirma
136
ROMER, 1991, p. 52.
137
ROMER, 1991, p. 48.
138
Confira em PRICE, 1996, p.116.
61
Como é que uma tradição oral poderia ter preservado detalhes verdadeiros
por tanto tempo? No máximo, podia recordar um grande acontecimento, ou
um novo início: como a Guerra de Tróia dos gregos, o Êxodo dos israelitas
do Egito foi um grande acontecimento desse tipo, que seus herdeiros
supunham ser verdadeiro. Talvez fosse de fato uma memória histórica: não
temos como saber, mas acho difícil acreditar que nenhum israelita jamais
tenha deixado o Egito sob a condução de seu deus especial, Jeová, embora
o Êxodo talvez não tenha sido a migração de todo um povo.
139
3.1 Os Minimalistas
Na cada de 90 do século XX começaram a surgir determinadas obras
absolutamente inovadoras acerca do Israel antigo. O tom da crítica destinava-se a
toda metodologia então usada para produzir conhecimento sobre a história de Israel.
Essa tendência agregou um grupo de pesquisadores que foi pejorativamente
classificado como “minimalista”. Estes pesquisadores uniram-se em torno de suas
frustrações quanto ao debate sobre o Israel antigo. Não contestavam apenas a
historicidade dos eventos bíblicos, mas sim o próprio uso da Bíblia como fonte
histórica.
A primeira reunião desses estudiosos aconteceu em 1996, em Dublin na
Irlanda. Este evento marcou a constituição do Seminário Europeu sobre Metodologia
Histórica.
140
A partir de então, acontecem reuniões freqüentes que abordam distintos
temas da história dos hebreus.
Dentro do citado seminário um grupo que ficou conhecido por sua postura
iconoclasta, a chamada Escola de Copenhague. Porém, o termo “minimalistas”
passou a ser empregado aos adeptos da referida escola. A este respeito George
Athas comenta:
139
FOX, 1993, p. 163.
140
SILVA, Airton José. Os Minimalistas. Disponível em <http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>.
Acessado em 30 nov. 2006.
62
A Escola de Copenhague, popularmente conhecida como “Minimalismo” é
um reconhecido método de estudo na área dos estudos bíblicos. Surgiu
pela necessidade dos estudiosos de explicar as discrepâncias entre os
textos bíblicos e as descobertas dos arqueólogos. Ela propõe ver a literatura
bíblica como mera estória ao invés de literatura historiográfica a qual remete
a verdadeira história. O método minimalista propõe usar apenas a
arqueologia para o propósito de reconstruir a história. Esta abordagem
possui muitas características atrativas mas falha para apresentar um
método de investigação que seja inteiramente livre de problemas, inclusive
de interpretações tendenciosas. Este é apenas um paradigma dentre outros
que podem ser usados para investigar a história da Síria-Palestina
(tradução própria).
141
Em princípio o grupo continha apenas pesquisadores europeus, entretanto,
estudiosos de todas as partes do globo passaram a compactuar e colaborar com a
argumentação da Escola de Copenhague.
Os autores de postura “minimalista”
142
representam, sem vida, um novo
paradigma no estudo da história dos hebreus. Algumas de suas obras são de fato
iconoclastas e apresentam interpretações inovadoras. O conteúdo de seus escritos
possibilitou que certos pesquisadores fossem classificados como anti-semitas, em
contrapartida, os ofendidos rotularam seus opositores de sionistas.
William Dever é um dos autores que constantemente tem atacado a postura
minimalista, comentando acerca de seus adeptos ele afirma:
Eles freqüentemente se denominam revisionistas; outros os descrevem
como minimalistas. Eu tenho sugerido que eles são mais exatamente
141
The Copenhagen School of Thought, popularly known Minimalsim”, is an identifiable method of
scholarship within biblical studies. It arose out of the need for scholars to account for the
discrepanices between the biblical texts and the discoveries of archaeologists. It proposes seeing the
biblical literature as purely story rather than as historiographical literature which can shed light on
actual history. The “Minimalist” method proposes using archaeology alone for the purpose of
reconstructing history. This approach has many attractive features but fails to present a method of
investigation which is entirely free of problems, including bias. It is just one paradigm among others
which can be used to investigate the history of Syria-Palestine. ATHAS. George. Minimalism' The
Copenhagen School of Thought in Biblical Studies. Disponível em
http://web.archive.org/web/20010609222329/members.nbci.com/gathas/copensch.htm. Acessado em
02 nov. 2006.
142
Nesta parcela do estudo serão analisados pesquisadores como Finkelstein e Liverani que, na
verdade, o são completamente minimalistas e sim configuram uma “tercera via”. SILVA, Airton
José. Os Minimalistas. Disponível em <http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm>. Acessado em 30
nov. 2006.
63
niilistas quando eles acabarem de reescrever a história de Israel, cedo ou
tarde, não restará nada que a maioria de nós possa reconhecer como
história. É assim que eles tem feito, porém, sua conclusão fundamental (ou
é isso uma pré-concepção?) é que ninguém mais pode escrever a história
antiga de Israel, ao menos não uma história baseada nos textos bíblicos
(tradução própria).
143
Recentemente a obra de Finkelstein e Silberman
144
causou grande impacto
dentro e fora da academia. Na referida obra os autores chegam a uma conclusão
distinta da tradicional interpretação acerca do êxodo.
Antes mesmo de abordarem a saída do Egito em si os pesquisadores em
questão apontam para as incoerências do texto bíblico referente a José
145
. Segundo
afirmam, a presença de camelos na história do citado personagem reflete um
anacronismo
146
.
Feita esta consideração, Finkelstein e Silberman preocupam-se em
demonstrar a pertinência da situação básica contida no relato do êxodo, ou seja, as
143
They often call themselves revisionists; others describe them as minimalists. I have suggested that
they are more accuretely nihilists for when they are finished rewriting Israels history, early or late,
there is nothing left that most of us would recognize as history. That is as they would have it, however,
for their fundamental conclusion (or is it a preconception?) is that one can no longer write a history of
ancient Israel, at least not one based on the biblical texts. DEVER, 2003, p. 137.
144
FINKELSTEIN, Israel & SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão; Tradução Tuca
Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
145
A respeito de José, Liverani afirma: “A história de José (Gen. 37-48) é completamente diferente em
sua estrutura e ambiente. [...] Mas a história, com os seus principais valores morais encontra
paralelos que se concentram todos à época do Império Persa. Basta recordar a história de Ahigar,
ambientada na corte assíria, mas de redação posterior (o homônimo “Romanzo” é do século V), onde
se narra sobre o sábio que ascende desde uma origem humilde ao posto de conselheiro privilegiado
e Visir de Esarhaddon. Ou a história de Democede (in Hdt. III 129-137), médico grego levado como
escravo à corte de Dario e depois erguido à posição de comensal do rei. [...] A história de José
pressupõe a presença de significativos núcleos de emigrantes palestinos no Egito, inseridos em um
mundo de diversas estruturas e costumes econômicos, e não pode estar concebida e redigida antes
do Século V” (tradução própria). La storia di Giuseppe (Gen. 37-48) è completamente diversa per
struttura e ambientazione. [...] Ma la storia con sue principali valenze morali trova paralleli che si
addensano tutti all’epoca dell’impero persiano. Basti ricordare la storia di Ahiqar, ambientata alla corte
assira ma di redazione posteriore (l’omonimo “Romanzo” è del V secolo), in cui si narra del sapiente
Che assurge da umili origini al ruolo di consigliere privilegiato e visir di Esarhaddon. Oppure la storia
di Democede (in Hdt. III 129-137), medico greco portato schiavo alla corte di Dario e poi assurto al
rango di commensale del re.[...] La storia di Giusepe presuppone la presenza di cospicui nuclei di
emigrati palestinesi in Egitto, inseriti in um mondo dalle diverse strutture e consuetudini economiche, e
non può essere stata concepita e redatta prima del V secolo”. LIVERANI, Mario. Oltre la Bibbia.
Storia Antica di Israele. Roma-Bari, Laterza, 2003, p. 295-296.
146
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p 58-59.
64
migrações de Canaã para o Egito são seguramente sustentadas pela evidência
arqueológica tornando assim plausível esta parcela do relato bíblico.
147
Com base nos paralelismos entre a narrativa religiosa da saída do Egito e a
história dos hicsos escrita por neto, os referidos autores apontam para a
possibilidade do êxodo. Nesse sentido afirmam:
[...] fontes arqueológicas e históricas independentes relatam a imigração de
semitas de Canaã para o Egito, e os egípcios expulsando-os com o uso da
força. Esse resumo básico da imigração e do retorno violento para Canaã é
paralelo ao relato bíblico do Êxodo
148
.
Entretanto, essa interpretação gera complicações principalmente no tocante à
cronologia. Tradicionalmente duas datas são propostas para o êxodo, uma no século
XV a.C. e outra no século XIII a.C., sendo assim, os hicsos expulsos por volta de
1570 a.C. não poderiam ser os participantes do êxodo que a Bíblia se refere.
A data do século XIII a.C. é a mais aceita pela maioria dos estudiosos, desse
modo, o êxodo teria ocorrido na época de Ramsés II. Contudo, Finkelstein e
Silberman esforçam-se para desacreditar esse pensamento. Conforme afirmam,
havia no período do citado faraó um sistema de controle de fronteiras muito bem
estruturado o que tornaria impossível a fuga de um contingente de trabalhadores.
Pondo de lado a possibilidade de milagres inspirados divinamente, o é
razoável aceitar a idéia de fuga de um grande grupo de escravos do Egito,
através de fronteiras fortemente vigiadas por guarnições militares, para o
deserto e depois para Canaã, numa época com colossal presença egípcia
na região. Qualquer grupo escapando do Egito contra a vontade do faraó
teria sido rapidamente capturado, não apenas por um exército egípcio que o
perseguiria desde o delta, mas também por soldados egípcios dos fortes no
norte do Sinai e em Canaã.
147
“Há uma boa razão para se acreditar que nos tempos de fome em Canaã – do exato modo como a
narrativa bíblica descreve pastores e lavradores igualmente iam para o Egito a fim de se
estabelecer no leste do delta e aproveitar a sua confiável fertilidade. [...] Em outros períodos, os
semitas podem ter ido para o Egito apenas porque o país lhes oferecia a perspectiva de comércio e
de melhores oportunidades econômicas. [...] Sabemos que alguns foram designados escravos nas
terras cultivadas dos templos do Estado; outros terminaram subindo na escala social, chegando a se
tornar funcionários do governo, soldados e até mesmo sacerdotes.”, FINKELSTEIN & SILBERMAN,
2003, p.82.
148
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p. 85.
65
De fato, a narrativa bíblica sugere o perigo da experiência de fugir pela
estrada da costa. Assim, a única alternativa seria através das terras
desérticas e desoladas da península do Sinai; mas a possibilidade de um
grande grupo de pessoas caminhando por essa península também é
contestada pela arqueologia
149
.
Relevo egípcio mostrando a estrada internacional do Egito a Canaã protegida por fortes.
150
ainda outras razões que tentam desacreditar o êxodo no século XIII a.C.
Dentre essas, evidencia-se a ausência de registros arqueológicos, ou seja, na época
de Ramsés II não nenhum sinal de ocupação do Sinai, assim como não
nenhuma evidência arqueológica do referido evento nos locais de acampamento
citados na Bíblia como, por exemplo, Kadesh-barnea
151
. Entretanto, Finkelstein e
Silberman enfatizam que uma das mais importantes indicações da imprecisão
histórica do relato sobre o êxodo reside no fato de não existir referência nominal ao
“faraó da opressão”, diferente de outros textos bíblicos posteriores onde constam os
nomes dos monarcas egípcios como, por exemplo, Sesac e Necau.
Desse modo, os referidos autores vão concordar com o egiptólogo Donald
Redford, o qual relacionou a narrativa do êxodo ao século VII a.C. A intenção é
demonstrar que o relato do êxodo reflete o contexto da época em que foi escrito,
149
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p. 91-92.
150
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p. 92.
151
A conclusão de que o Êxodo não aconteceu na época e da forma descrita na Bíblia parece
irrefutável quando examinamos a evidência de sítios específicos, onde os filhos de Israel
supostamente acamparam por longos períodos, durante sua caminhada pelo deserto (Números 33), e
onde alguma indicação arqueológica se existente –, é quase certo, seria encontrada. [...] Da longa
lista de acampamentos no deserto, Kadesh-barnea e Ezion-geber são os únicos que podem ser
identificados com segurança, mas não indicaram nenhum traço dos nômades israelitas”.
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p.94-95.
66
embora, é verdade, reconheçam que a saga da libertação do Egito tem origens
anteriores ao citado século.
É impossível dizer se a narrativa bíblica foi ou não uma ampliação e uma
elaboração de memórias imprecisas da imigração do povo de Canaã para o
Egito e de sua expulsão do delta no segundo milênio a.C. Mesmo assim,
parece claro que a história bíblica do Êxodo auferiu seu poder não apenas
das tradições antigas e dos detalhes geográficos e demográficos
contemporâneos, mas ainda e mais diretamente das realidades políticas
contemporâneas
152
.
Sendo assim, os autores vão concluir que o pano de fundo da narrativa do
êxodo se deu, na verdade, durante o período do rei Josias. Tendo em vista a
situação política da época (crescente conflito com o Egito), o relato do êxodo teria
sido estruturado como um apelo à unidade nacional.
A saga do Êxodo de Israel do Egito não é uma verdade histórica nem ficção
literária. É uma poderosa expressão da memória e da esperança, nascida
num mundo em plena mudança. A confrontação entre Moisés e o faraó
espelhava o significativo confronto entre o jovem rei Josias e o faraó Necau,
recentemente coroado. Fixar essa imagem bíblica em uma data é trair o
significado mais profundo da história
153
.
Embora exista uma pequena divergência nas questões cronológicas, a
estratégia minimalista para desqualificar a historicidade dos eventos bíblicos
consiste em datar o testemunho religioso o mais recente possível. Mario Liverani,
por exemplo, é um historiador que caminha nessa direção.
No que concerne ao êxodo o referido autor se utiliza de paralelos entre a
Bíblia e textos extra-bíblicos para justificar uma datação mais recente da narrativa
veterotestamentária. Ao tratar do itinerário da saída do Egito o autor afirma:
A imagem do deserto, no complexo Êxodo-Números não é de tipo pastoral,
onde a tribo vive em conforto; ao contrário é do tipo zona de refúgio” ou
“terra de exílio”, em uma perspectiva urbana de agudo desconforto. A
estrada é difícil e perigosa pela presença de armadilhas e falta d’água. A
travessia: o deserto grande e terrível, de serpentes ardentes e de
152
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p.103.
153
FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p. 105.
67
escorpiões e de sede, onde não há água (Deut.8:15) é semelhante às
preocupações logísticas do exército assírio para atravessar o deserto, como
na expedição de Esarhaddon a Baza: um distrito remoto, uma distância
desértica de terra salgada, uma região de sede… (com) serpentes e
escorpiões que revolvem a terra feito formigas. (IAKA, pp. 56-57). Também
os exércitos da monarquia de Judá haviam atravessado o deserto,
exemplarmente na expedição contra Mo’ab; e a busca por água da parte de
Moisés, que a fez brotar da rocha (Es. 17:1-6), os ecos da busca d’água
pelos “profetas” alertaram o exército naquela ocasião: Assim disse Yahweh:
escavarás nesta ribanceira poços e poços, por que assim disse Yahweh:
não verás vento nem chuva, contudo, esta ribanceira se encherá de água e
vós bebereis, vós e vossas tropas e vossos animais (de carga)! (2Re 3:16-
17) (tradução própria).
154
Desse modo, o período a partir das deportações assírias e também o período
persa seriam o contexto histórico onde a oralidade do êxodo foi textualizada
155
.
Entretanto, ainda faltam evidências para esclarecer o que teria dado base para essa
oralidade; ou melhor, como teria surgido a memória do êxodo? Como já visto,
Finkelstein e Silberman apresentam uma sugestão para sanar esse questionamento
assim como os autores, contrários aos minimalistas, que defendem a idéia de que o
êxodo foi um acontecimento histórico do século XV a.C. ou XIII a.C.
Segundo Lemche:
Percebe-se que o Israel do Antigo Testamento é um produto da
imaginação literária. Sua história escrita não foi a história de um
mundo real, mas em sua organização foi baseada nas exigências de
dois mitos fundantes, o primeiro deles o Êxodo, e o segundo o Exílio
Babilônico. Se partes dessa história realmente aconteceram ou não
no mundo “real” é um problema da mentalidade que formou esta
história imaterial (tradução própria).
156
154
L’immagine del deserto, nel complesso Esodo-Numeri non è di tipo pastorale, dove le tribù vivono
a loro ágio; è invenc del tipo “zona di rifugio” o “terra di esilio”, in uma prospettiva cittadina di acuto
disagio. La strada è difficile e pericolosa per presenza di insidie e mancanza d’acqua. Il paso: il
deserto grande e terribile, di serpenti brucianti e di scorpioni e di sete, dove non c’è acqua (Deut.8:15)
è símile alle preoccupazioni logistiche per l’attraversamento del deserto da parte degli eserciti assiri,
come nella spedizione di Esarhaddon a Baza: un distretto remoto, una distesa desertica di terra
salina, una regione di sete…(con) serpenti e scorpioni che ricoprono la terra come formiche. (IAKA,
pp. 56-57). Anche gli eserciti della monarchia di Viuda avevano attraversato il deserto, ad esempio
nella spedizione contro Mo’ab; e la recerca dell’acqua da parte di Mosè, che la fa scaturire dalla rocía
(Es. 17:1-6), echeggia la recerca dell’acqua da parte dei “profeti” annesi all’esercito in quell’occasione:
Così dice Yahweh: scavate in questo wadi pozzi e pozzi, perchè così dice Yahweh: non vedrete vento
pioggia, eppure questo wadi si riempirà d’acqua e voi berrete, voi e le vostre truppe e le vostre
bestie (da soma)! (2Re 3:16-17). LIVERANI, 2003, p. 309-310.
155
VEJA-se em LIVERANI, 2003, p. 305-308.
156
The Israel(s) of the Old Testament showed itself to be a product of a literary imagination. Its history
was not one of the real world, but in its organization was directed by the requirements of the two
foundation myths, the first of the Exodus, and the second of the Babylonian exile. Wether or not parts
68
Como se pode notar, as pesquisas de cunho minimalista possibilitaram novas
interpretações sobre todo o Israel antigo, conseqüentemente, também, sobre o
êxodo. Ao que tudo indica, os estudos do Seminário Europeu sobre Metodologia
Histórica e da Escola de Copenhague assumirão maior importância na interpretação
sobre a história de Israel, de modo que, cada vez mais, será perceptível um
rompimento com a tradicional historiografia acerca dos hebreus.
of this history really happened in the “real” world is to the mind that formed this history immaterial.
LEMCHE apud DEVER, 2003, p. 140.
69
4 A CRONOLOGIA DO ÊXODO
As dificuldades em estabelecer uma data para o êxodo ameaçam a
historicidade deste evento. A validade histórica da saída do Egito fica abalada com a
indefinição de uma única cronologia para o acontecimento. Tendo em vista esse
quadro alguns autores afirmam que o êxodo foi, na verdade, um processo em que
vários pequenos grupos deixaram o Egito em períodos diferentes
157
.
Entretanto, os que defendem o êxodo como um evento único, apresentam
duas datas para o referido acontecimento. A data mais antiga, situada no século XV
a.C., apresenta maior harmonia com a cronologia interna do AT, sendo assim, é
defendida pelos pesquisadores de orientação fundamentalista. Em contrapartida, a
data mais recente, situada no século XIII a.C., é sustentada pela maioria dos
pesquisadores, sejam teólogos, arqueólogos e/ou historiadores. Tradicionalmente
essas são as alternativas mais consideradas, embora existam outras sugestões de
data.
Porém, antes de abordar especificamente a cronologia do êxodo, se fazem
necessários alguns esclarecimentos quanto aos métodos de datação. Sendo assim,
existem, geralmente, duas maneiras de medir o tempo: a datação relativa, que
157
Consultar p. 22 nota 49.
70
permite saber se algo é mais antigo (ou mais recente) em relação a outro elemento,
e a datação absoluta, que permite fixar uma data exata em anos cronológicos
158
.
Dentro da datação absoluta, um método bastante utilizado é a cronologia
comparada que se baseia nas conexões arqueológicas com as cronologias e
calendários estabelecidos pelas sociedades antigas, as quais registraram sua
própria história em documentos escritos. No caso da história antiga, a cronologia
egípcia é a espinha dorsal para estabelecer as cronologias de outros povos antigos,
inclusive Israel. No entanto, Amihai Mazar apresenta mais informações sobre esse
método:
A cronologia comparativa é assegurada por seqüências tipológicas de
objetos, particularmente de cerâmica, estabelecidas por estudos
comparativos de conjuntos estratificados de diversos sítios em uma
determinada região. A confrontação de conjuntos dentro das regiões nos
capacita a definir uma seqüência comparativa em cada área e a estabelecer
uma ordem cronológica para o país inteiro
159
.
No que concerne especificamente ao povo hebreu, as primeiras tentativas de
estabelecer uma cronologia do Israel antigo foram realizadas durante a Idade Média
e o Renascimento. Para a verificação da cronologia interna da blia utilizaram-se
fontes externas, eventualmente encontradas entre os remanescentes arqueológicos
do Egito e da Mesopotâmia. Um exemplo dos paralelos entre o texto bíblico e a
evidência material pode ser encontrado em uma parede do templo de Amon, em
Karnak, no Alto Egito, onde há registro de uma campanha realizada pelo faraó
Sheshonq I, da XXII dinastia, o qual é identificado como sendo o monarca Sesac,
conforme atesta a passagem bíblica presente em 1 Reis 14.25. Contudo, Peter
James contesta esse dado e afirma que o único elemento que permite identificar
158
RENFREW, C. e BAHN, P. Arqueología: Teorias, Métodos y Tecnicas. Madrid: Ed. Akal, 1993.,
p.107.
159
MAZAR, Amihai. Arqueologia na terra da Bíblia 10 000-586a.C. Tradução de Ricardo Gouveia.
São Paulo: Paulinas, 2003, p. 49.
71
Sheshonq I como sendo Sesac é a semelhança dos nomes
160
, mas para grande
parte dos egiptólogos e estudiosos bíblicos tal identificação permanece válida. Ainda
no que concerne ao estabelecimento da cronologia de Israel, cabe informar que na
Mesopotâmia descobriram-se lugares como Nínive e Babilônia, conhecidos
originalmente da Bíblia. Devido ao trabalho de artistas e escribas que registraram as
campanhas militares e os acontecimentos políticos de sua época foram
identificados, nos arquivos cuneiformes da Mesopotâmia, os reis de Israel, Amri,
Acab e Jeú, e os reis de Judá, Ezequias e Manassés. Tais referências externas
possibilitaram ajustar os reinados dos monarcas bíblicos com os sistemas de dados
mais completos acerca do antigo oriente próximo
161
.
Em sua obra “Siglos de Oscuridad”, Peter James, levanta questões
pertinentes sobre a dependência da cronologia egípcia para o estabelecimento da
cronologia de outros povos. Segundo o referido autor, as bases utilizadas para a
elaboração das datas do antigo Egito não são cientificamente sólidas. Conforme
afirma, a cronologia egípcia foi estabelecida mediante observações astronômicas,
mas, também, tendo por referência as dinastias estipuladas por Mâneto, sacerdote
160
James apresenta ainda outros motivos para desqualificar a identificação de Sheshonq I como
sendo o Sesac descrito na Bíblia: [...] esta identificação segue apresentando muitos problemas. Uma
inscrição de Biblos indica que se deve rebaixar a data para Sheshonq I de fins do século X a.C. até c.
800 a.C., possibilidade que excluiria automaticamente qualquer conexão com Sesac. Fora os
problemas cronológicos, a identificação falha por causas geográficas. Jerusalém, o objetivo da
campanha de Sesac segundo a Bíblia, não é mencionada na lista de cidades palestinas elaborada
por Sheshonq I. Roboão reforçou quinze cidades para prevenir-se do ataque egípcio, “cidades
fortificadas” que foram capturadas por Sesac antes de chegar a Jerusalém. Mas só uma delas,
Aijalom, consta na lista de Sheshonq I (tradução própria). “[...] esta identificación sigue planteando
muchos problemas. Una inscripción de Biblos indica que debe rebajarse la fecha para Sheshonq I de
finales del siglo X hasta c. 800a.C., posibilidad que excluiría automáticamente cualquier conexión con
Shishak. Al margen de los problemas cronológicos, la identificación falla por causas geográficas.
Jerusalén, el objetivo de la campaña de Shishak según la Biblia, no aparece mencionada en la lista
de ciudades palestinas elaborada por Sheshonq I. Roboan reforzó quince ciudades para prevenir el
ataque egipcio, [ciudades fortificadas] que fueron capturadas por Shishak antes de llegar a Jerusalén.
Pero sólo una de ellas, Aijalón, figura en la lista de Sheshonq I. JAMES, Peter. Siglos de
Oscuridad: Desafío a la cronología tradicional del mundo antiguo. Barcelona: Editora Crítica, 1993, p.
225. David Rohl, por sua vez, sugere que Sesac seria, na verdade, Ramsés II. Para maiores
informações, veja-se em: ROHL. David M. A Test of Time. The Bible: From Myth to History. London:
Century, 1995.
161
FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p. 34.
72
egípcio que escreveu durante o período dos Ptolomeus, no século III a.C.
162
. Desse
modo, para os interessados em saber como se deu o estabelecimento da cronologia
do mundo antigo a obra de James é uma boa recomendação.
No tocante a elaboração da cronologia que diz respeito também ao Israel
antigo, Mazar complementa:
A partir de aproximadamente 3000a.C a cronologia absoluta da Palestina é
baseada, em grande parte, na do Egito. Objetos egípcios encontrados na
Palestina incluindo inscrições reais, sinetes de escaravelho e outros e
artefatos exportados da Palestina para o Egito e encontrados em contextos
datados fornecem a base para uma estrutura cronológica. A dependência
da cronologia egípcia é tão forte que qualquer mudança nesta última produz
um desvio paralelo no que diz respeito à Palestina. Os achados egípcios
podem, contudo, ser enganadores, pois escaravelhos, estátuas e outros
artefatos egípcios eram considerados objetos preciosos ou sagrados e
podem ter sido conservados como heranças de família durante gerações.
[...] Para o período da monarquia israelita, as correlações entre os
fenômenos arqueológicos e os dados históricos conhecidos através da
Bíblia e de documentos assírios e babilônios são de especial importância
para a datação, mas essas correlações devem ser conduzidas com cuidado,
pois diversos erros graves já foram cometidos nessa esfera do passado
163
.
Feitas as devidas considerações preliminares torna-se possível, a partir de
então, analisar as tradicionais datas propostas para o êxodo.
4.1 A data do século XV a.C.
Como dito anteriormente, essa proposta de uma datação mais antiga para o
evento da saída dos “israelitas” do Egito é a que mais agrada aos pesquisadores de
conotação fundamentalista. Evidentemente essa opção de data implica a indicação
de outro “faraó do êxodo”, tendo em vista que a maioria dos pesquisadores aponta
para Ramsés II, o qual, se encaixa na proposta cronológica do século XIII a.C.
162
JAMES, 1993, p.217-219.
163
MAZAR, 2003, p.50.
73
Com base nesses elementos, Eugene Merrill sugere o nome de Amenotepe II
e para isso afirma:
Nossa identificação de Amenotepe II como o faraó do êxodo está baseada
em duas [...] considerações. Em primeiro lugar, embora a maioria dos reis
da 18ª Dinastia tenha estabelecido sua principal residência em Tebas, bem
ao sul dos israelitas no Delta, Amenotepe morava em Mênfis e,
aparentemente, reinou daquele local por um bom tempo. Isto o colocava em
grande proximidade com a terra de Gósen, fazendo-o bastante acessível a
Moisés e Arão. Em segundo lugar, evidências sugerem que o governo de
Amenotepe não passou para seu filho mais velho, mas para o caçula
Tutmose IV. Esta é uma informação subentendida na chamada “estela do
sonho” [...] que registra um sonho no qual Tutmose IV [...] viria a ser rei [...]
mediante [...] a morte prematura do irmão mais velho. [...] não como
deixar de especular se tal morte prematura não tenha ocorrido por
intermédio do juízo de Jeová que, na décima praga, matou todos os
primogênitos do Egito que estavam sem a proteção do sangue da Páscoa
[...]
164
.
As principais evidências em defesa de uma data mais antiga para o êxodo se
baseiam na cronologia interna do Antigo Testamento. Tendo por fundamento o
versículo de 1 Reis 6.1, estipulou-se o ano de 1446 a.C. para a saída dos hebreus
do Egito. No citado versículo de 1 Reis consta que o êxodo ocorreu 480
165
anos
antes da fundação do Templo de Salomão, logo, tendo em vista que o referido
monarca deu início à construção do templo em 966 a.C., torna-se possível apontar o
ano de 1446 a.C. para o evento em questão
166
.
A respeito de uma data no século XV a.C., Randall Price apresenta as
seguintes informações:
O clássico estudo cronológico feito por Edwin Thiele fixou a antiga data de
1447 a.C. para o êxodo. De acordo com esta data, o faraó da opressão era
Tutmose I ou Tutmose III e o faraó do êxodo foi Tutmose III ou Amenotepe
II. A biografia antiga de um oficial naval egípcio chamado Amenemhab, que
serviu sob diversos faraós deste período, nos mostra que aquele Tutmose
III morreu no tempo da Páscoa no início de março de 1447 ou 1446 a.C.
Assim, sua morte ocorreu exatamente no tempo certo para encaixar-se com
a cronologia bíblica e os acontecimentos do êxodo. Todavia, William Shea
164
MERRILL, 2001, p. 56.
165
Cabe dizer que alguns autores não fundamentalistas consideram o número 480 como unicamente
simbólico, querendo representar o tempo de vida de 12 gerações cada uma com duração de 40 anos.
Veja-se, por exemplo: FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p. 86.
166
MERRILL, 2001, p. 60.
74
recentemente argumentou num documento não publicado que Tutmose I e
um recém-instalado filho co-regente a princípio Tutmose II morreram
juntos perseguindo os escravos israelitas (como talvez implícito em Êxodo
15. 4,19). Ele c que seus corpos não tenham sido recuperados (daí as
múmias designadas a eles no Museu Egípcio no Cairo estarem
erroneamente identificadas). Ele baseia seu argumento em novas
fotografias de Oral Collins das inscrições do Vadi Nasb do Sinai,
descobertas pelo professor Gerster muitas décadas atrás, que pretendem
registrar o nome de Tutmose I e desenhar imagens tanto dele como de seu
filho e os eventos relacionados ao êxodo
167
.
Dentre os autores fundamentalistas aqui analisados, Samuel Schultz parece
ser um dos mais prudentes no que se refere ao estudo da cronologia do êxodo.
Embora demonstre leve concordância com a proposta de data situada no século XV
a.C., o referido autor argumenta que a falta de evidências sólidas não permite que
se crédito total a uma data mais antiga
168
. Entretanto, de modo diferente, Merrill
esforça-se para defender a legitimidade de uma data no século XV a.C. e, desse
modo, afirma:
A [...] prova em defesa do ano 1446 aparece em uma mensagem do juiz
Jefté aos seus inimigos amonitas. Jef afirmou o ter eles razão para
qualquer hostilidade contra Israel, uma vez que durante os 300 anos após a
vitória de Israel sobre Seom, os amonitas nunca haviam contestado os
direitos de Israel sobre a Transjordânia. Uma simples leitura desse longo
memorando (Jz 11.15-27) deixa claro que Jef se referia ao período da
história de Israel pouco antes da conquista, que ocorreu cerca de 40 anos
após o êxodo. A vitória de Israel sobre os amonitas ocorreu por volta de
1100 a.C., uma data largamente reconhecida. Neste caso, Jefté se referia a
acontecimentos que haviam ocorrido perto de 1400 a.C.
169
Como visto no decorrer de boa parcela da pesquisa, a utilização de
argumentos de cunho naturalista é comum a diferentes linhas de estudo. Sendo
assim, explicações desse gênero tentam relacionar a erupção do Santorini com os
eventos do êxodo o que, conforme se notará, gera uma data ainda mais antiga do
que o tradicional ano de 1446 a.C. Segundo consta, a erupção do citado vulcão teria
167
PRICE, 1996, p.114-115.
168
SCHULTZ, 1977, p. 47.
169
MERRILL, 2001, p. 61.
75
provocado a praga das “trevas espessas” (Ex 10. 21-23) e também a divisão das
águas na travessia do mar. Nesse sentido:
[...] a evidência geológica da erupção vulcânica do Santorini pode ser usada
para datar os acontecimentos do Êxodo, os arqueólogos Hendrick J. Bruins
e Johannes van der Plicht ofereceram nova evidência que eles crêem
confirmar a história do êxodo. Comparadas as duas datas de radiocarbono
dos grãos de cereal encontrados entre os detritos da destruição de Jericó
com as datas deles de 1628 a.C. para a erupção do Santorini (que foi
baseada na contagem de anéis na madeira das árvores). Baseado em seus
achados, eles concluíram que o desastre do Santorini aconteceu 45 anos
antes da destruição de Jericó, um lapso de tempo que eles acreditam que
se encaixaria nos eventos do Êxodo e na caminhada dos israelitas por 40
anos pelo deserto. Isso tornaria a data deles para a destruição de Jericó em
1583 a.C. (sic!) e para o êxodo em cerca de 1543 a.C. (sic!), antiga demais
até mesmo para a data tradicional mais antiga [...]
170
.
O grande problema de uma data no século XV a.C. é que esta entra em
contraste com as evidências arqueológicas, conforme será possível detectar a
seguir.
4.2 A data do século XIII a.C.
Aceitar que o êxodo tenha ocorrido no século XIII a.C., necessariamente
implica aceitar Ramsés II como o “faraó do êxodo”, embora, é verdade, como
sugerem alguns pesquisadores, Ramsés II teria sido o “faraó da opressão” e
Merneptah o “faraó do êxodo”
171
. Possivelmente a razão para indicar este último
faraó como tendo sido o “faraó do êxodo” se baseia no versículo encontrado em Ex
2.23 onde se relata a morte do rei opressor, no caso Ramsés II, sendo assim, é
possível imaginar que a saída do Egito tenha ocorrido durante o reinado de seu
sucessor, Merneptah.
170
PRICE, 1996, p. 122.
171
KAUFMANN, Yehezkel. A religião de Israel: do início ao exílio babilônico. São Paulo: Perspectiva,
1989, p.229. Entretanto ainda outras sugestões, Bright, por exemplo, afirma: Embora não
tenhamos certeza absoluta, é plausível que Setos I que iniciou a restauração de Avaris, foi o faraó
que deu início à opressão de Israel, e que Ramsés II foi o faraó em cujo reinado se deu o Êxodo”.
BRIGHT, 1978, p. 158.
76
Entretanto, antes de apontar algum “faraó do êxodo” se faz necessário
apresentar os motivos que permitem datar o referido evento no século XIII a.C. Em
tempos remotos um dos argumentos utilizados na defesa da referida data
encontrava-se na evidência arqueológica de uma devastação maciça de cidades e
vilarejos na parte central de Canaã durante o final do século XIII a.C. Esta
devastação era identificada como sendo o fruto da conquista militar da Palestina
empreendida pelos “israelitas”. Tendo por base as evidências arqueológicas dessa
destruição, acreditava-se que o êxodo teria ocorrido poucos anos antes. Entretanto,
esse argumento foi sendo gradativamente abandonado, sobretudo pelas dúvidas
levantadas quanto a uma invasão militar da Palestina. Atualmente a chamada
“Teoria da Conquista” tem sido amplamente desacreditada.
Um dos argumentos ainda utilizados para sustentar o êxodo no fim do século
XIII a.C. foi elaborado a partir da informação bíblica presente em Ex. 1.11, onde
consta que os “israelitas” submetidos à escravidão construíram para o faraó as
cidades-armazéns de Píton e Ramsés
172
. Dessa forma considera-se a referência ao
nome Ramsés como uma memória histórica autêntica, resultando disto um dos
motivos que permite identificar Ramsés II como o “faraó do êxodo”.
Ao que tudo indica a construção da cidade de Pi-Ramsés, no delta, contou
com a mão-de-obra semita
173
. Porém, estes semitas podem ser identificados com os
“israelitas”? Outro fator importante reside na mais antiga menção extra-bíblica ao
nome Israel encontrada na estela de Merneptah. Tal estela descreve a campanha
militar do faraó Merneptah em Canaã no final do século XIII a.C. O fato é que o
citado documento arqueológico indica um grupo chamado Israel vivendo em Canaã
172
O autor maximalista Eugene Merrill contesta essa informação e afirma que não é seguro identificar
a cidade citada em Ex. 1.11 com a Per-Ramesse de Ramsés II. Merrill afirma que, na verdade, os
“israelitas” recosntruíram a referida cidade citada na Bíblia e que os Raméssidas têm uma origem
anterior a 19ª Dinastia. Mais informações ver: MERRILL, 2001, p.64.
173
FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003. p. 86.
77
naquele período. Também frente a esse dado é válido perguntar: o Israel da estela
de Merneptah conteria os participantes do êxodo?
174
.
.
Estela de Merneptah
175
Conforme visto, Finkelstein e Silberman esforçam-se para vincular a
narrativa do êxodo ao século VII a.C. Sendo assim, apresentam argumentos para
desqualificar tanto a data do século XV a.C. como a do século XIII a.C. Utilizando-se
da referência à cidade de Pi-Ramsés descrita em Ex. 1.11, os autores afirmam que
um êxodo no século XV a.C. seria inconcebível, tendo em vista que o primeiro faraó
chamado Ramsés chegou ao trono apenas em 1320 a.C.
176
. No que concerne à data
174
Consultar página 30 nota 78.
175
ROMER, 1991, p.41.
176
Merrill, porém, contesta essa informação. Utilizando-se de Albright, cita uma pintura da época de
Amenotepe III na qual aparece o nome Ramose, logo, procura indicar que nomes como Ramsés m
datas anteriores a 19ª Dinastia. MERRILL, 2001, p.64.
78
do século XIII a.C., os pesquisadores em questão tentam combatê-la afirmando que
uma fuga do Egito na época de Ramsés II seria algo improvável, devido ao bem
estruturado sistema de controle de fronteiras existentes naquele período
177
.
Finkelstein e Silberman apresentam ainda outros argumentos que tentam
desqualificar a data do século XIII a.C.
178
. Para estes autores determinados
aspectos da narrativa do êxodo, como, por exemplo, os detalhes geográficos e
demográficos
179
permitem que o século VII a.C. seja identificado como sendo o
contexto que possibilitou o relato bíblico da saída do Egito. Dessa forma afirmam:
A identificação de Ramsés II como o faraó do Êxodo resulta de suposições
eruditas modernas, baseadas na identificação do nome do lugar Pi-Ramsés
com Ramsés (Êxodo 1,11; 12,37). Mas existem alguns elos indiscutíveis
com o século VII a.C. Além da vaga referência ao medo dos israelitas seguir
pela estrada da costa, não menção dos fortes egípcios ao norte do Sinai
ou das suas guarnições em Canaã. A Bíblia pode refletir a realidade do
Novo Império, mas também pode refletir as condições posteriores na Idade
do Ferro, mais próximas da época em que a narrativa do Êxodo foi
escrita.
180
De modo geral, os autores que defendem a data do século XIII a.C. para o
êxodo não chegam a mencionar um ano específico
181
. Entretanto, afirma-se que a
possível saída do Egito tenha ocorrido da metade para o fim do citado século.
177
Ver página 61 nota 152.
178
Ver páginas 61-62.
179
Um contraponto a essa informação pode ser obtido na obra fundamentalista de Keller, quando
este faz uso de Albright, o qual afirma: “Segundo o nosso conhecimento atual da topografia do Delta
oriental, a narrativa do começo do Êxodo, feita no Ex. 12.37 e Ex 13.20, é absolutamente exata
topograficamente. Novas provas sobre o caráter essencialmente histórico da narrativa do Êxodo e a
peregrinação pelas regiões do Sinai, Made Cadés, não serão difíceis de obter graças aos nosso
conhecimentos arqueológicos e topográficos cada vez maiores. Por enquanto devemos contentar-nos
com a segurança de que a posição hipercrítica que ainda predomina, como a que existia sobre as
primitivas tradições históricas, não tem mais justificação”. ALBRIGHT apud KELLER, 1979, p.113.
180
FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p.97-98.
181
Segundo Noth: “[…] temos de considerar Ramsés II como o faraó da opressão. Devido a
prolongada duração de seu reinado, não é possível estabelecer datas muito exatas, e temos de nos
dar por satisfeitos supondo que a permanência no Egito e a saída deste país aconteceriam no
transcurso do século XIII a.C. (tradução própria)” [...] hemos de considerar a Ramsés II como el
faraón de la opresión. Debido a la prolongada duración de su reinado, no es posible establecer fechas
muy exactas, y hemos de darnos por satisfechos suponiendo que la estancia en Egipto y la salida de
dicho país acaecerían en el transcurso del siglo XIII a.C.” NOTH, 1966, p.120.
79
Alguns autores habilitam-se a estipular datas aproximadas
182
, as quais apresentam
uma diferença de mais de 30 anos, algo plenamente compreensível quando se trata
de um período tão antigo. De qualquer forma, pesquisadores de distintas correntes
de estudo seguem legitimando o século XIII a.C. como o possível período em que
teria ocorrido a saída dos “israelitas” da terra dos faraós.
182
Veja-se, por ejemplo: ROMER, 1991, p. 48 e FREDÉRIC, 1978, p. 86.
80
CONCLUSÃO
Tendo em vista os aspectos abordados, se faz necessário levantar alguns
questionamentos, assim como resgatar determinadas interrogações tratadas
parcialmente no decorrer da pesquisa. Conforme visto, as distintas correntes de
estudo analisadas neste trabalho delimitam e interpretam o evento do êxodo de
formas também distintas. No entanto, tornou-se perceptível que determinados
argumentos são compartilhados pelas diferentes linhas de interpretação.
Maximalistas e minimalistas assemelham-se ao estabelecerem as fronteiras
para o estudo do êxodo, ou seja, para as referidas correntes de pensamento as
investigações iniciam-se com José e se estendem até depois do acampamento em
Kadesh-Barnea, embora, é verdade, essa delimitação não é uma regra. Alguns
pesquisadores, por exemplo, não se preocupam em auscultar o relato sobre José.
Por sua vez, os exegetas histórico-críticos, em sua maioria, afirmam que a saída do
Egito e o Sinai representam tradições distintas, dessa maneira, a parcela do povo
que saiu do território egípcio não teria sido a mesma que esteve no citado monte.
Torna-se evidente que essas diferenças ao delimitar o êxodo implicam métodos,
interpretações e resultados destoantes.
Conforme foi possível notar, os maximalistas interpretam a informação bíblica
de forma literal e recorrem à história e à arqueologia no intuito de confirmar as
81
informações veterotestamentárias. Os minimalistas, de modo geral, promovem o
descrédito da informação bíblica, mas para isso também procedem a uma
interpretação literal do AT. Dessa forma, como foi possível perceber ao longo da
pesquisa, maximalistas e minimalistas, embora com objetivos distintos, cometem o
mesmo erro. Os exegetas histórico-críticos, por seu turno, procedem a uma crítica
interna e externa do texto bíblico, entretanto, consideram válidas determinadas
parcelas da narrativa sobre o êxodo, mesmo quando estas não contam com
evidências externas. Seria isso consistente? Recorde-se, por exemplo, que os
citados pesquisadores legitimam a historicidade de Moisés
183
.
Um elemento importante que não pode deixar de ser mencionado reside em
dois pontos centrais de disputa entre minimalistas e maximalistas, a saber: a
veracidade bíblica e a questão política do Estado de Israel. Conforme afirmado,
ambas correntes interpretam a Bíblia de forma literal, os maximalistas no intuito de
confirmar a narrativa bíblica e os minimalistas na intenção de desqualificar o referido
testemunho religioso. Porém, torna-se perceptível que as citadas correntes travam
um combate ideológico. Os maximalistas, geralmente, perfilam-se com o argumento
sionista; dessa maneira, defendem a posse do território de Israel somente para os
judeus. Por sua vez, os minimalistas demonstram-se contrários ao argumento
sionista.
Dito isto, se faz necessário direcionar a atenção para um questionamento
pertinente abordado de forma parcial no decorrer da pesquisa. Com base nessas
palavras resgata-se a seguinte interrogação: O que teria dado base para a memória
do êxodo? Conforme visto, a situação básica descrita na narrativa do êxodo dispõe
de evidências externas, ou seja, a migração de semitas ao Egito e a utilização
183
A historicidade de Moisés é amplamente questionada pelos historiadores. Para uma idéia a
respeito desse assunto consultar páginas 26-27 nota 65.
82
destes nas construções e obras daquele país torna plausível o referido relato bíblico,
assim, é possível imaginar que a memória da saída do Egito esteja baseada em um
acontecimento histórico.
De fato, semitas migravam ao Egito por diversas razões, seja em busca de
pastagens ou atrás de melhores condições de vida
184
. Contudo, os motivos que
levaram estes indivíduos a sair da terra dos faraós, configurando o êxodo, ainda
carecem de informações mais pertinentes.
Há, porém, os que discordam da idéia de que o êxodo foi um acontecimento
histórico. Desse modo, buscam alternativas para explicar o surgimento da memória
do êxodo. Alguns minimalistas tentam vincular algumas parcelas do relato da saída
do Egito ao período das deportações assírias e também ao período persa
185
,
entretanto, frente a esses dados cabe perguntar: qual seria o sentido de formular um
mito de libertação do território egípcio em um período onde o Egito não era uma
grande potência?
Finkelstein e Silberman, por sua vez, recorrem a outra interpretação: o relato
do êxodo estava vinculado à disputa entre o rei Josias e o faraó Necau
186
. Os
citados autores tentam explicar o surgimento da memória do êxodo utilizando-se de
Redford. Dessa maneira afirmam:
O egiptólogo Donald Redford argumentou que os ecos dos grandes
acontecimentos relacionados com a ocupação do Egito pelos hicsos e sua
violenta expulsão do delta ressoaram durante séculos, para se
transformarem numa memória central e partilhada do povo de Canaã. Essas
histórias dos colonos de Canaã, estabelecidos no Egito, atingindo a
dominância no delta e depois sendo forçados a retornar a sua terra natal,
poderiam servir como foco de solidariedade e resistência, enquanto o
controle egípcio sobre Canaã se tornou mais firme ao longo da Idade do
Bronze posterior. Como veremos, com a eventual assimilação de muitas
comunidades de Canaã na cristalização da nação de Israel, aquela forte
imagem de libertação pode ter se tornado relevante para uma comunidade
cada vez mais ampla. Durante o período dos reinos de Israel e de Judá, a
184
A esse respeito veja-se, por exemplo, as páginas 21 e 22.
185
Liverani, como visto, é um autor que argumenta nesse sentido. Veja-se páginas 63-64 nota 157.
186
A esse respeito veja-se a página 63 nota 156.
83
história do Êxodo teria resistido e, então, sido elaborada como saga
nacional, um chamamento à unidade da nação diante das ameaças
contínuas dos grandes impérios
187
.
Independente de ter sido ou não um acontecimento histórico é impossível
negar que o êxodo assumiu significativa importância na tradição do antigo Israel. Se
o referido evento for considerado um fato histórico, se deve também considerar que
este não aconteceu conforme as proporções apresentadas na Bíblia, ou melhor, não
teria sido uma multidão de 2 milhões de pessoas que saiu do Egito, mas sim um
pequeno grupo. Contudo, é justamente este o fator intrigante: se o êxodo pode ter
sido um acontecimento histórico de pequenas proporções, que elementos explicam
a tamanha importância que este evento assumiu?
Antes de responder a este questionamento se faz necessário esclarecer
alguns elementos que diferenciam o antigo Israel de seus povos vizinhos no Oriente
Antigo. Israel é portador de uma consciência histórica peculiar, pois tem noção de
que sua existência como povo se dá no decurso da história
188
, numa história terrena,
diferentemente de outras mitologias do Oriente Próximo como, por exemplo, as
mitologias do Egito e Mesopotâmia. Desse modo, Israel formou sua identidade
baseado em “fatos históricos” e o êxodo, sem dúvida, nesse sentido revela-se
paradigmático.
Dito isso, é possível tentar explicar como a saída do Egito assumiu tão grande
importância na tradição do antigo Israel. Cabe lembrar que a memória do êxodo se
faz presente em diversas passagens do AT, seja nos textos legais, nos proféticos,
nos hinos e cânticos, nos prólogos das alianças, entre outros. Ao que tudo indica o
referido evento converteu-se em sinônimo de libertação, através da frase “Eu sou
187
FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p. 102-103.
188
DONNER, 1997, p.25
84
Yahweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão.”
189
é
possível compreender o processo pelo qual Israel foi definido Yahweh como
salvador e libertador, dessa maneira, toda expressão de e culto a Yahweh
implicava uma lembrança implícita do êxodo.
Croatto observa que:
A consciência nacional e religiosa de Israel esteve marcada originalmente
por experiências de opressão e sofrimento e de libertação e gozo. Sua
leitura, desde uma ótica da fé, foi constituindo uma linguagem religiosa que
se fez tão central como essas mesmas vivências históricas. Por
concomitância, Israel foi afirmando uma consciência de liberdade como
parte de seu ser e reclamou por libertação toda vez que se encontrava
oprimido, o que foi freqüente em sua história (tradução própria)
190
.
No entanto, a própria Bíblia apresenta outros exemplos onde o povo
encontrava-se oprimido e obteve libertação, como é o caso do exílio babilônico. Ora,
se outras imagens de libertação na narrativa veterotestamentária novamente é
preciso perguntar: por que o êxodo adquiriu tamanha importância na tradição de
Israel? Um dos elementos que pode contribuir para esclarecer esse questionamento
reside no fato de que a saída do Egito foi, conforme o texto bíblico, um evento
original, ou melhor, foi um evento fundante, por isso assumiu prestígio único. Fora
isso, o êxodo foi conectado com o ritual das primícias da colheita e também com a
Páscoa, o que o fixou e/ou fortaleceu na memória israelita. Sendo assim, a
historicidade deste evento resultou de pouca importância no processo pelo qual o
êxodo adquiriu significativa notoriedade.
Discorrendo acerca desta temática, Donner comenta:
189
Ex. 20.2.
190
“La conciencia nacional y religiosa de Israel estuvo marcada originalmente por experiencias de
opresión y sufrimiento y de liberación y gozo. Su lectura, desde una óptica de la fe, fue constituyendo
un lenguaje religioso que se hizo tan central como esas mismas vivencias históricas. Por
concomitancia, Israel fue afirmando una conciencia de libertad como parte de su ser y reclamó la
liberación toda vez que se encontraba oprimido, lo que fue frecuente en su historia”.
La relevancia
sociohistorica y hermenéutica del éxodo. Disponível em www.severinocroatto.com.ar. Acessado
em 24 dez. 2006.
85
Os acontecimentos por ocasião da saída do Egito e junto ao Mar dos
Juncos estão totalmente envoltos pela saga e imersos na luz da história da
salvação, e isso possivelmente em grau ainda maior do que em outros
materiais da pré-história de Israel. Historicamente não é mais possível
apreender e expor tudo isso. Correndo o risco da trivialidade, poder-se-ia
destacar o seguinte cerne: um grupo de nômades que prestava trabalho
forçado no Egito conseguiu evadir-se dos egípcios e, na margem do Delta,
interpor um barreira de água entre si e seus perseguidores. Mas o que quer
dizer isso em comparação com os tons com os quais Israel celebrou os
acontecimentos em prosa e verso! “Os israelitas partiram de Ramsés em
direção a Sucote, aproximadamente 600 mil homens a pé, contando apenas
os homens, fora mulheres e crianças” (Ex 12.37) ... “A profetisa Miriã, a irmã
de Aarão, pegou o tamborim na mão, e todas as mulheres foram atrás dela
com tamborins e com danças de roda. E Miriã cantou para elas: Cantai a
Javé! Pois ele é muito excelso! Cavalos e condutores lançou ao mar!” (Ex
15.20s) Vê-se: na consciência de todos não está o que outrora, de fato,
ocorreu, mas o que as sagas e os cânticos de Israel fizeram desse fato.
Ficamos impressionados com o modo como a história da interpretação
triunfou sobre a história
191
.
Por fim, cabe alertar para a necessidade de um maior diálogo entre diferentes
áreas do saber (teologia, história, arqueologia, dentre outras). A amplitude do tema
exige um esforço de pesquisa nesse sentido. Um assunto como o êxodo requer,
necessariamente, um estudo interdisciplinar.
191
DONNER, 1997, p.107.
86
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