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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Thiago Tremonte de Lemos
Cultura e política: a natureza da guerra moderna no pensamento de Carl von
Clausewitz
MESTRADO EM HISTÓRIA
Dissertação apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de
MESTRE em História Social, sob a orientação do
Professor Doutor Antonio Pedro.
São Paulo
2008
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Banca examinadora:
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total e/ou
parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura: ___________________________________________
Local e data: __________________________________________
4
Agradecimentos
Aos meus filhos, Ludovic e Valentina, e a minha mulher, Juliana, pelo amor e pela
força que nunca faltou para fazer este trabalho.
Aos meus queridos pais, Nei e Cida, e ao meu estimado irmão Carlos, que sempre
estiveram do meu lado, apoiando-me das mais diversas formas.
A Dimas, Júlia e Polliana, por se tornarem parte significativa de minha vida.
Aos meus grandes amigos Caio, Ronaldo, Carolina e André.
Aos meus colegas de pós: Eduardo, Salvador, Maurício e Nilo.
Aos professores do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica,
em especial Helenice Ciampi, Yone de Carvalho, Maria Odila, Antonieta Antonacci
e Fernando Londoño.
Aos professores membros da minha banca de qualificação, Prof. Dr. Maurício
Broinizi Pereira e Prof. Dr. Reginaldo Nasser, pelas valiosas contribuições.
Finalmente, agradeço ao meu grande mentor, Antonio Pedro, pela paciência,
disposição e generosidade de me acolher como orientando.
À CAPES, pela bolsa que possibilitou levar adiante esta pesquisa.
5
RESUMO
A proposta deste trabalho é discutir a natureza da guerra no pensamento de Carl von
Clausewitz, a partir de sua obra Da guerra. A partir da modernidade, a política
passou a caminhar, através do Estado nacional, articulada à guerra como um
continuum. As experiências militares vividas por Clausewitz, entre o final do século
XVIII e o início do século XIX, foram a fonte de sua reflexão, ao passo que a
tradição aristocrática oferecia um prisma controverso e singular para enxergar a nova
Europa que surgia: burguesa e nacionalista. Entre a decadência dos privilégios de sua
classe e a constituição de uma nova estrutura política, Clausewitz disse o que é a
guerra moderna. Seus críticos atribuem a seu pensamento a causa de muitos conflitos
do século XX. O conceito moderno da guerra se multiplica, foge ao seu contexto
social, reproduz-se em outras idéias e ações.
Palavras-chave: Clausewitz, Prússia, Europa, guerra, moderna, conceito, história
conceitual, política, História, cultura.
6
ABSTRACT
The purpose of this thesis is to argue the nature of the war in the thought of Carl von
Clausewitz, from its workmanship On war. From modernity, the politics started to
walk, through the national State, articulated to the war as one continuum. The
military experiences lived by Clausewitz, at the end of century 18
th
and the beginning
of century 19
th
, had been the source of its reflection, to the step that the aristocratic
tradition offered a controversy and singular prism to observe the new Europe that
appeared: bourgeois and nationalistic. Between The decay of the privileges of its
class and the constitution of a new structure politics, Clausewitz said what it is the
modern war. Its critics attribute to its thought the cause of many conflicts of century
20
th
. The modern concept of the war multiplies, runs away to its social context, and
reproduces in other ideas and action.
Keywords: Clausewitz, Prussia, Europe, war, modern, concept, conceptual history,
politics, History, culture.
7
Sumário
Introdução ............................................................................................................................08
Capítulo I: General Clausewitz............................................................................................26
Capítulo II: O conceito de guerra........................................................................................51
Capítulo III: A guerra contra Clausewitz ...........................................................................86
Considerações finais ..........................................................................................................111
Fonte....................................................................................................................................117
Bibliografia.........................................................................................................................118
8
Introdução
9
Nevava, mas o tempo estava muito
claro. Ao alto das ruas sujas e quase em
trevas, por cima dos telhados negros,
alastrava um céu escuro salpicado de
estrelas. Só a contemplação dessas
altas esferas permitia a Pedro evadir-se
do aflitivo contraste entre a baixeza do
que é humano e os nobres sentimentos
que lhe enchiam a alma.
L. Tolstoi.
A guerra é fascinante. Entre a romantização e a condenação, a guerra é tida
como uma característica crônica da humanidade, uma espécie de doença
irremediável. De fato, nem todos a apreciam – na verdade, a maioria, como nós, a
abomina – mas nem por isso deixam de ver nela traços culturais e políticos
fundamentais de diversas sociedades. Michel de Montaigne (1533-1592), por
exemplo, no famoso ensaio sobre os canibais, viu na guerra dos tupinambá uma
interessante forma de se discutirem os conceitos de “barbárie” e “cultura”:
“Portanto bem podemos chamá-los [os tupinambá] de bárbaros com relação às regras
da razão, mas não com relação a nós, que os sobrepujamos em toda a espécie de
barbárie. Sua guerra é totalmente nobre e generosa, e tem tanta justificativa e beleza
quanto pode receber essa doença humana: seu único fundamento é o zelo pela
virtude… Não estão em luta pela conquista de novas terras, pois desfrutam ainda da
fecundidade natural…” (MONTAIGNE, 2000: 316)
Entretanto, atualmente, em tempos em que todos desejam a paz
1
, falar em
guerra ou somente pensar nela pode sugerir algum tipo de fixação anormal em algo
tão cruel. Porém, apesar de seu horror, a guerra é produzida e significada pelas
culturas e, ainda que utilizemos constantemente o adjetivo desumana para descrevê-
la, não podemos negar que é uma forte expressão humana, reprovável, mas humana.
E é este o paradoxo que nos intriga: em uma atividade que tem por fim a destruição
do outro – pelo menos deixar o adversário impotente para continuar lutando –, como
podemos dizer o que é e o que não é moralmente humano?
1
Para Norberto Bobbio, “A guerra é um dos problemas centrais de nosso tempo: há quem diga que é o
problema central” (BOBBIO, 2003: 117).
10
Foi exatamente o desconforto promovido pela moralização da guerra que nos
induziu ao estudo de um tema tão “desagradável”. Como articular violência e valores
culturais sem cair em um juízo maniqueísta?
Até pouco tempo atrás, a guerra na Europa podia representar a força de um
paradigma, hoje bastante questionável: a guerra é a defesa de um povo pelo seu
modo de vida. Que povo? Que país? A resposta vem de outro paradigma da
modernidade: um Estado, um povo, uma nação… e um exército.
O paradigma, às vezes, não parece anacrônico, basta olharmos para alguns
conflitos recentes e para as justificativas dos representantes dos contendores para
vermos que, muitas vezes, o discurso da defesa do modo de vida é reproduzido. Em
todo caso, atualmente, não falamos da guerra da mesma forma que se falava no início
do século XIX, quando o Estado-nação burguês se transformou no modelo político
hegemônico da Europa
2
e valores que estão em xeque antes eram incontestáveis para
os políticos da época. Ainda que possamos perceber no plano das relações exteriores
entre os países alguns princípios do modelo, as dinâmicas políticas, econômicas e
sociais parecem ter superado antigos critérios definidores do Estado. É certo que o
Estado Nacional não desapareceu; sua força e sua estrutura política, contudo, são
hoje extremamente discutidas, e vestir a farda da soberania nacional soa, no mínimo,
um pouco conservador. Em todo caso, a guerra contemporânea – se é possível defini-
la – está, pelo menos em conceito, diretamente ligada à guerra moderna – essa sim,
pensamos poder definir. Conceito esse fortemente manifestado do início do século
XIX até meados do XX.
Após a Revolução Francesa de 1789, a guerra passou a ser um assunto do povo,
que era representado tanto pelo governo “democraticamente” constituído, como pelo
exército, que defendia sua liberdade política. O indivíduo que representava o ideal de
excelência humano era tanto cidadão quanto soldado, apto a exercer política e
2
Talvez o momento exato não seja este, mas por causa da Revolução Francesa de 1789 e após o
período napoleônico, até 1815, acreditamos que o início do século XIX seja o momento mais claro da
instituição do modelo político do Estado-nação.
11
militarmente as funções que a pátria generosamente lhe concedia. Esse vínculo entre
política e guerra, no plano que não envolve apenas os de sangue nobre
3
, mas também
o cidadão comum, é o aspecto mais interessante sobre a guerra no início da
modernidade. A guerra também passava a ser democrática e não privilégio da
nobreza – se é que há algum privilégio na guerra.
Evidentemente, sabemos que nobreza não é uma condição inata de classe, e sim
um critério hegemonicamente construído. E, por isso, podemos investigar o
surgimento da guerra em termos outros que vão para além da honra e da glória da
aristocracia. Na Europa moderna, a guerra ganhou um significado em que a tríade
governo-exército-povo se estabeleceu como norma e que guerrear não era uma
condição exclusiva de classe. Tal alargamento da prática militar está diretamente
relacionado com a mudança política promovida pela Revolução Francesa. Guerrear
pela nação é guerrear pelo povo e pela liberdade de ser francês, inglês, alemão…
Eric Hobsbawm, em A era das revoluções, traça um quadro que julgamos ser correto
acerca da relação entre política e guerra, durante os primeiros anos da Revolução
Francesa, e de como o indivíduo comum se inseria num universo de ações onde antes
era ignorado:
“No decorrer de sua crise, a jovem República Francesa descobriu ou inventou a guerra
total: a total mobilização dos recursos de uma nação através do recrutamento, do
racionamento e de uma economia de guerra rigidamente controlada, e da virtual
abolição, em casa e no exterior, da distinção entre soldados e civis. Só foi em nossa
própria época histórica que se manifestaram as tremendas implicações desta
descoberta… Somente hoje em dia podemos ver quanto do que se passou na República
Jacobina em “Terror” de 1793-4 faz sentido apenas nos termos de um moderno esforço
de guerra total” (HOBSBAWM, 1977: 85).
Conceitos como os de “guerra” e “nação
4
” não são em si valores deploráveis
da história burguesa recente, que teve como ápice lastimável desses fatores as duas
3
Tradicionalmente, a aristocracia européia (de modo geral) atribui seu status nobre aos seus
antepassados guerreiros.
4
Os termos guerra, política, Estado e nação estarão entre aspas quando forem tratados como
conceitos.
12
grandes guerras mundiais do século XX. Ganharam este sentido extremado, que
Hobsbawm chama deguerra total
5
”, em decorrência do contexto histórico-cultural
da Revolução Francesa de 1789. Lutar pela República e pela nação, na década de
1790, segundo o governo revolucionário francês, era uma obrigação patriótica e a
destruição do inimigo deveria ser implacável:
“Nossa nação já tem um caráter nacional próprio. Seu sistema militar deve ser
diferente devido ao nosso ardor e capacidade e, se nossos inimigos são desastrados,
lentos e frios, então nosso sistema militar deve ser impetuoso” (Saint-Just, Rapport
présenté à la Convention Nacionale au nom du Comité de Salut Public, 19 du premier
mois de l’an II – 10 de outubro de 1793)
6
.
A Revolução Francesa não se limitou ao legado político da “Igualdade,
Liberdade e Fraternidade”. A guerra pela pátria livre, igual e fraterna era uma entre
tantas outras heranças deixadas pela Revolução e disseminadas pela Europa durante
as guerras napoleônicas. Bertrand de Jouvenel, por ocasião do prefácio da edição de
1976, de As origens do Estado moderno, descreve bem o sentido de pensarmos as
conseqüências políticas da Revolução Francesa para os países europeus:
“Não representa a Revolução Francesa um grande começo? Que acontecimento
formidável não constitui essa tempestade que se abate sobre o maior poder político do
Ocidente daqueles dias, que é também seu centro de cultura, sobre sua sociedade mais
brilhante, no sentido ‘mundano’ do termo! E, sob um ângulo mais positivo, esse
acontecimento trouxe a consagração do princípio de soberania popular e deificação da
nação. Por certo a faceta da destruição de um regime tradicional e o advento de novos
princípios constitui um marco inicial de importância universal, uma mudança que se
repetirá nos mais diversos lugares do mundo, a intervalos mais ou menos longos, até
nossos dias” (JOUVENEL, 1978: 10).
5
Para Antonio Pedro, no capítulo sobre a Segunda Guerra Mundial de História das guerras, o
conceito de guerra total tem dois exemplos fundamentais, a Guerra de Secessão dos Estados Unidos
da América (1861-1865) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945): “Na Guerra de Secessão… já
havia sido aplicado o princípio de guerra total… Para o general Sherman… guerra total significava
que qualquer indivíduo do outro lado deveria ser considerado um combatente, e não uma simples
pessoa… A Segunda Guerra foi uma guerra total no sentido lato da palavra” (MAGNOLI, 2006: 356).
6
Apud HOBSBAWM, 1977: 95.
13
Deste modo, perceber a construção histórica do conceito de “guerra”, dentro
do contexto europeu pós-revolucionário francês, de 1789, é fundamental para
entender as experiências políticas e sociais decorrentes desse processo.
Guerra será tratada aqui como conceito moderno, assim como nação. Pois
afirmamos que são historicamente construídos e que seus significados são
transformados e valorados diversamente ao longo do tempo e de espaços diferentes.
Para isso nos apoiamos na idéia de história conceitual, uma vez que nada é
inexorável às transformações do tempo, nem mesmo os conceitos. Isso não significa
que elementos do passado não perduram. Mas intactos? É difícil de aceitar. Uma
mesma palavra pode e tem diversos conceitos em culturas e tempos diferentes.
Perceber suas nuanças e entender a força de seus múltiplos significados num
determinado contexto são a tarefa do historiador. Segundo Reinhart Koselleck,
“A história conceitual… trabalha, portanto, sob a premissa teórica da obrigatoriedade
de confrontar e medir permanência e alteração, tendo esta como referência daquela”
(KOSELLECK, 2006: 115).
No entanto, não se faz história sem recuperar as marcas deixadas pela ação
humana. Entender que as experiências vividas na modernidade serviram para cunhar
os conceitos de “guerra” e “nação” é afirmar a íntima relação que se deu entre as
análises das condições humanas de existência ao modelo político fundante da própria
modernidade: o Estado
7
. Sem este conceito, necessariamente moderno, falaríamos de
qualquer coisa sem o rigor que a história exige, bem como as conseqüências
articuladas a esse modelo de organização política apareciam-nos de modo a-
7
Segundo Quentin Skinner, em Fundações do pensamento político moderno, o Estado Civil é uma
criação européia que tem, no final do século XVI, sua invenção e, posteriormente, sua teorização.
Skinner percebe este ser o conceito fundamental para o pensamento político moderno: “Em fins do
século XVI, numa obra como Os seis livros da república, de Bodin, não só encontramos o termo
‘Estado’ numa acepção visivelmente moderna, mas também constatamos que os direitos e poderes do
Estado começam a ser analisados no estilo que será característico da modernidade… Bodin concebe o
Estado como detentor do supremo poder político em seu próprio território… por fim concebe o Estado
como uma autoridade puramente civil… Como análise do estado como um poder onipotente, porém
impessoal, podemos afirmar que adentramos o mundo moderno [grifo nosso]: a teoria moderna do
Estado ainda está por ser elaborada, mas tem agora seus alicerces assentados” (SKINNER, 1996:
625).
14
histórico, permitindo interpretações simplórias e, até mesmo, deturpadoras da
história ocidental contemporânea. Para Koselleck,
“Um conceito pode ser claro, mas deve ser polissêmico. ‘Todos os conceitos nos quais
se concentra o desenrolar de um processo de estabelecimento de sentido escapam às
definições. Só é passível de definição aquilo que não tem história’ (Nietzsche). O
conceito reúne em si a diversidade da experiência histórica…” (KOSELLECK, 2006:
109).
Portanto, para discutirmos o conceito de “guerra” temos de mapear o seu
sentido histórico. Isto significa que pensamos a história como a interpretação de
conceitos, percebendo as permanências e as rupturas simbólicas e culturais pelas
quais passou e sofreu o conceito em questão.
Nesta dissertação, apresentaremos um sentido possível do conceito de
“guerra”, entre seus múltiplos significados históricos. Sentido moderno, cunhado
num momento de profunda turbulência política e militar da história européia: as
primeiras décadas do século XIX ou, simplesmente, o período napoleônico.
Refirimo-nos, mais especificamente aqui, à definição da natureza de guerra, segundo
o primeiro livro da obra do general prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831) Da
guerra. Acreditamos que a análise minuciosa desse documento nos permite a
compreensão do conceito
8
.
Clausewitz ficou conhecido pela máxima de que a guerra seria a continuação
política por outros meios
9
. Entretanto, o significado de seu aforismo não é
imediatamente compreendido se não tivermos a cautela de saber que guerra e
política são essas.
8
“O historiador se instala na fronteira onde a lei de uma inteligibilidade encontra seu limite como
aquilo que deve incessantemente ultrapassar, deslocando-se, e aquilo que não deixa de encontrar sob
outras formas. Se a ‘compreensão histórica não se fecha na tautologia da lenda ou se refugia no
ideológico, terá como característica… tornar pensáveis séries de dados triados…” (CERTEAU, 2006:
92).
9
“A guerra é uma simples continuação da política por outros meios” (CLAUSEWITZ, 1996: 27).
15
Não é difícil de admitir que o conceito de “guerra” tenha sentidos históricos e
culturais distintos, mas o mesmo critério não parece ser tão evidente ao conceito de
“política”. A “política” – em sua acepção conceitual – também tem história e traz
consigo significados diferentes e profundos. Exemplo significativo desta afirmação é
a de que, na Europa, os Estados Civis modernos cunharam uma nova forma de
organização política, diferente dos reinos medievais. É elementar dizermos que
trazem consigo valores da antiguidade e da própria Idade Média, mas a idéia de um
Estado organizado por um único povo, de uma única cultura, habitando um território
naturalmente seu e governado por um regime que, de fato, expressasse e defendesse a
vontade geral
10
de sua nação, é absolutamente original, ainda que sua autenticidade
seja artificial e fundamento algum consiga dar legitimidade aos fatores acima
mencionados
11
.
Sendo assim, as relações entre política e guerra num contexto moderno
europeu, do final do século XVIII e início do XIX, necessitam da compreensão do
conceito moderno de “Estado”, bem como o de “nação” (justificativa primeira para a
formulação concreta da estrutura de um Estado). Evidentemente que esses não são
conceitos puros e sim históricos – como já foi dito. Todavia, Clausewitz, ao se
preocupar com a definição da Natureza da guerra (título do Livro I de Da guerra),
procurou dar-lhe um significado universal, atemporal, metafísico e definitivo. O que
implica em também recuperarmos o que o general prussiano entendia por
conhecimento, pois sua obra trata exatamente de ser um conhecimento teórico e
prático para o assunto. Mais do que isso, a formação intelectual de Clausewitz estava
diretamente ligada à sua experiência de vida e ao contexto político-cultural da
Prússia do antigo Reich e da Confederação Germânica (pós-Congresso de Viena,
1815), bem como à invasão da Prússia, em 1806 e da Rússia, em 1812, pelas tropas
de Napoleão Bonaparte.
As guerras, do século XIX em diante, tiveram motivações que iam para além
dos valores simbólicos e sociais de conduta nas diversas e plurais sociedades
européias. Com a idéia de cidadania e pertencimento a um plano maior de identidade
10
Ver Rousseau, 1979.
11
Ver BOBBITT, 2003: partes 2 e 3, Livro I.
16
social, o que estava em jogo nas guerras era mais do que a vitória contra outro país e
a defesa dos interesses nacionais, era a prova concreta de superioridade de um povo
sobre outro; era a demonstração de que o indivíduo somente se auto-reconhece no
serviço cívico e militar de sua pátria. Era essa, também, a forma de se marcar os
limites culturais entre os Estados nacionais europeus. Para Hobsbawm, o critério
histórico de nacionalidade implicava a diferenciação e a superação da outra
nacionalidade:
“Havia um forte elemento não igualitário e talvez um elemento mais forte de
patrocínio especial em tais argumentos. Algumas nações – as maiores, as ‘avançadas’,
as estabelecidas… – estavam destinadas pela história a prevalecer… a triunfar na luta
pela existência; outras não” (HOBSBAWM, 1996: 131).
Sabemos, pelo trabalho de tantos – principalmente pelos intelectuais da
Inglaterra filiados aos Estudos Culturais, como Edward P. Thompson e Raymond
Williams (de uma geração mais antiga) e Stuart Hall e Homi Bhabha (de uma mais
recente), que tal constituição cultural, delimitada pela estrutura estatal-nacional é
absolutamente artificial. Não há em si natureza nenhuma de povo ou cultura. Toda e
qualquer cultura
12
nacional é forjada, na afirmação de certos princípios hegemônicos
e na sua diferenciação em relação à outra cultura. Todavia, não podemos deixar de
entender que esse era o discurso hegemônico do século XIX, em quase toda a Europa
e durante o século XX em quase todo o mundo.
“O universalismo pós-iluminista, liberal, racional e humanista da cultura ocidental
parece não menos significante historicamente, mas se torna menos universal a cada
momento. Muitas grandes idéias – liberdade, igualdade, autonomia, democracia –
foram aperfeiçoadas na tradição liberal. Entretanto, é evidente que o liberalismo hoje
não é ‘a cultura das culturas’, mas a cultura que prevaleceu: aquele particularismo que
se universalizou com êxito e se tornou hegemônico em todo o globo” (HALL, 2003:
77).
12
Para entendermos a cultura do contexto social de Clausewitz, adotaremos como chave conceitual,
de Norbert Elias, Kultur, apresentada na obra O processo civilizador, antitética ao conceito de
Zivilisation e seus sentidos nas sociedades inglesa, francesa e alemã, do século XVIII: “A palavra pela
qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra lhes expressa orgulho em suas
próprias realizações e no próprio ser, é Kultur” (ELIAS, 1994a: 24).
17
O soldado-cidadão não é uma invenção moderna, e sim da antiguidade
grega
13
. Entretanto, sob os conceitos de “Estado”, “pátria” e “nação”, a idéia do
cidadão que também lutaria pelo seu país ganhou um significado diferente, realizava-
se culturalmente na prática dos valores de sua sociedade e na defesa e na ampliação
destes, universalmente falando. A cultura, no século XIX, era uma questão de
Estado. Assim como a guerra, evidentemente, era. A combinação entre os dois
elementos produziu um sentido historicamente novo nas relações interestatais:
guerrear era também uma forma de universalizar culturas nacionais.
Se as relações entre política, cultura e guerra foram experiências que
marcaram profundamente europeus contemporâneos de Clausewitz, incluindo o
próprio general, é porque havia como intermediário desses aspectos o Estado e o
sentido que este tinha para sua nação. Destarte, cabe a este trabalho entender por que,
pela primeira vez na história ocidental, a guerra se tratava de opor não mais soldados
de um príncipe que, contratados, desejavam, para além das pilhagens e despojos de
guerra, honra e glória pessoal, mas de soldados-cidadãos que lutavam pelo ideal
patriótico e pela manutenção de seu modo de vida nacional. Para Norbert Elias, em
Os alemães – uma referência fundamental para esta dissertação,
“Seja qual for o modelo de sua organização, a maioria das nações-Estados [Elias
inverte os termos do conceito que usualmente aparecem escritos como “Estado-
nação”]… produz um duplo código de normas cujas exigências são inerentemente
contraditórias… o indivíduo humano como tal; e um código nacionalista derivado do
código maquiavélico dos príncipes e da aristocracia dominante, de caráter não-
igualitário, e cujo valor supremo é uma coletividade – o Estado, o país, a nação a que
um indivíduo pertence” (ELIAS, 1997: 146).
Clausewitz é o autor da guerra moderna. Foi filósofo e estrategista. O
conceito de “guerra” de Clausewitz procurou responder à demanda histórica de sua
13
“Na pólis, o estado de soldado coincide com o de cidadão: quem tem seu lugar na formação militar
da cidade igualmente o tem na sua organização política” (VERNANT, 1994: 43).
18
época e serviu, possivelmente, de alimento teórico, ideológico e estratégico para as
gerações dos governos europeus até 1919:
“Daí o entusiasmo com que o governo prussiano aceitou suas idéias – transmitidas por
seus pupilos e seguidores da Academia de Guerra e no Estado-maior – na metade do
século XIX. Da Guerra era um livro de estopim lento. Porém, o exército prussiano
travou suas guerras pela hegemonia na Alemanha, suas idéias tinham-no impregnado e
as vitórias em 1866 e 1870-71 garantiram que a partir de então elas orientariam
também a diplomacia do novo Império Germânico. Por um processo irresistível de
osmose, elas se infiltraram no establishment militar de toda a Europa, de tal forma que,
em 1914, ele era tão clausewitziano quanto a coalizão de movimentos socialistas e
revolucionários do continente era marxista
(KEEGAN, 1995: 365).
Além da interdependência dos conceitos de “guerra” e “política” (esta
entendida a partir do Estado Civil), outro aspecto parece-nos ser relevante para o
entendimento do pensamento clausewitziano sobre a essência da guerra: a separação
das esferas do conhecimento humano, que tivera no século XIX um momento
decisivo de sua história, bem como a transformação do estatuto de alguns desses
campos para a condição de ciência. A própria guerra era, até Clausewitz, uma arte.
Não é possível esquecer que este é um fator decisivo e característico da
modernidade: a independência das diversas áreas do conhecimento e a elaboração de
métodos autônomos de objetos singulares de análise que conferem a cada uma das
especificidades epistêmicas tal autoridade (experimental e teórica). Seus campos de
pesquisa tornam-se tão específicos e especializados que qualquer outra forma de
interação entre estas esferas poderia ferir seu rigor científico.
A revolução copernicana de Kant acabava por tirar as últimas vendas para
um mundo completamente esclarecido, mas agora desencantado. Nada mais de
explicações morais-teológicas sobre os eventos humanos e físicos. O mundo tornava-
se absolutamente racionalizado. O projeto iluminista vingara e a razão instrumental
em suas diversas ramificações explicava-nos tudo o que havia no Universo. Segundo
Jürgen Habermas, em O discurso filosófico da modernidade,
19
“As modernas ciências empíricas, a autonomização das artes e as teorias da moral e do
direito fundamentadas a partir de princípios levaram aí à formação de esferas culturais
de valores que possibilitaram processos de aprendizagem segundo as leis internas dos
problemas teóricos, estéticos ou prático-morais, respectivamente” (HABERMAS,
1998: 13).
Com a guerra não foi diferente. Era urgente que fosse racionalizada,
esquematizada e estruturada, de tal modo que pudesse ser metodicamente utilizada
pelos técnicos que dela tratavam. O pensamento de Clausewitz não foi
exclusivamente fruto de sua criatividade. Mas também não pode ser pobremente
reduzido ao determinismo histórico de sua época. Esses elementos evidentemente
têm um papel fundamental na elaboração do conceito de “guerra” do prussiano. Só
não é possível indicar a primazia de um em relação ao outro.
Também não é correto julgar ideologicamente o pensamento de Clausewitz,
limitando-nos a uma abordagem da guerra a partir de noções mais ou menos
humanistas, ou, ainda, mais ou menos belicosas. A compreensão do conceito de
“guerra” deve, ao mesmo tempo, levar em conta os aspectos acima indicados, como
também não envolver elementos partidários deste ou daquele lado. Ainda mais
porque o interesse pelo objeto de nossa dissertação surgiu exatamente de uma
dificuldade de compreensão ampla e segura do pensamento de Clausewitz.
O contato com Uma história da guerra, de John Keegan, foi extremamente
influente na escolha deste objeto de pesquisa. Keegan se propôs, entre outras coisas,
a mostrar as falhas da doutrina clausewitziana, principalmente no que se refere à
natureza da guerra:
“Clausewitz pode ter acreditado que a guerra era continuação da política. A política,
no entanto, é praticada para servir à cultura e os polinésios, em seu amplo mundo,
tinham criado a cultura mais benéfica que se conhecia… Clausewitz, em sua exaltação
do ato dramático – a batalha decisiva – e do indivíduo egoísta – o líder, Napoleão em
20
particular –, era tão romântico quanto qualquer inimigo do ancien regime” (KEEGAN,
1995: 44).
A leitura de Keegan provocou-nos mais pela sua tese fundamental – de que a
guerra é, antes de política, cultural – do que pelo visionário recado aos governos
contemporâneos de que as guerras do final do século XX e início do XXI são contra
forças culturais e não entre Estados opostos
14
. Tese esta também afirmada por
Samuel Huntington, para pensarmos a guerra no mundo contemporâneo:
“À medida que o mundo sai da sua fase ocidental, as ideologias que tipificaram a etapa
final da civilização ocidental entram em declínio, e seu lugar é tomado por religiões e
outras formas de base cultural de identidade e engajamento… O choque
intracivilizacional de idéias políticas gerado pelo Ocidente está sendo substituído por
um choque intracivilizacional de cultura e religião” (HUNTINGTON, 1997: 62).
Podemos afirmar que o pensamento de Keegan foi mais presente em nossa
formação que o de Clausewitz. Mas ainda não havíamos entendido o centro de sua
crítica: o que pensava, de fato, Carl von Clausewitz, para haver uma negação tão
contundente como a de Keegan? Seria mesmo ele um incentivador da violência? A
causa de muitas das agressões que os países cometeram entre si até o século XX seria
a influência de sua doutrina nas políticas externas dos governos europeus? E a teoria
clausewitziana seria a matriz de todo o desrespeito moral aos elementos que antes
eram excluídos dos objetivos militares?
Parecia-nos que, antes de qualquer juízo de valor sobre estes pontos a respeito
de Clausewitz, deveríamos estudar sua obra Da guerra. Contudo, três problemas se
apresentaram a este trabalho. Primeiro: Como desenvolver uma dissertação
analisando toda Da guerra? Lembrando da obra de Raymond Aron, esse trabalho já
foi feito com perfeição e qualquer outro texto com o mesmo objetivo soaria
14
Uma das conclusões de Keegan, que vão para além da crítica ao pensamento de Clausewitz (como
veremos no terceiro capítulo), é a de que a guerra contemporânea é diferente daquela praticada até a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para ele, não é possível ter a crença de que viveremos num
mundo sem guerras, mas que esta não se desenvolverá apenas contra Estados, e sim contra grupos que
têm na cultura e na identidade étnica seus principais valores.
21
necessariamente pretensioso. Segundo: Como abordar assuntos tão diferentes, apesar
de necessariamente se relacionarem – natureza da guerra, recursos militares, tática e
estratégia militar, diferença entre guerra absoluta e guerra real – sem ficar apenas na
superfície de temas tão complexos e profundos? Terceiro: Como estudar
historicamente um objeto em que sua documentação seria basicamente a obra do
próprio Clausewitz, já que a documentação referente à vida do general encontra-se
em arquivos europeus e/ou parte dela foi destruída
15
?
Clausewitz dividiu Da guerra em oito livros. Cada um tratou quase que
exclusivamente de um único tema, evidentemente relacionado à guerra. Os livros
foram intitulados da seguinte forma: Livro I, A natureza da guerra; Livro II, A teoria
da guerra; Livro III, Da estratégia em geral; Livro IV, O recontro; Livro V, As
forças militares; Livro VI, A defesa; Livro VII, O ataque, e Livro VIII, O plano de
guerra. Sendo esta a divisão e dado que nossa preocupação está relacionada
exatamente com o conceito de “guerra” e como este (para nós) responde a uma
urgência histórica, optamos pela leitura e análise do Livro I. Este trata de nossa
problemática e, sem nenhuma coincidência fortuita, é o trecho da obra em que está
cunhada a máxima de Clausewitz, de que “a guerra é a continuação da política por
outros meios”.
A escolha deste corpus textual como fonte primária de nossa dissertação não
resultou necessariamente no abandono dos outros sete livros, mas em virtude da
dificuldade contingencial de sua leitura, restringimo-nos a fazer apenas pequenas e
pontuais referências a trechos dos outros livros, devido à pertinência de algumas de
suas passagens e a citação de exemplos históricos. Desse modo, acreditamos que o
Livro I, principalmente o primeiro capítulo – intitulado “O que é a guerra?” – foi
analisado a fundo, e as relações estabelecidas entre a teoria de Clausewitz e o
contexto histórico em que viveu, bem como os vínculos e as rupturas com a tradição
política européia dos séculos XVI, XVII e XVIII, foram contemplados.
15
A dificuldade em se recuperar o vocabulário de Clausewitz é acrescida da perda dos arquivos
Clausewitz: “É preciso que entremos nas controvérsias filológicas que, em essência, iniciaram-se
durante os anos 1930 e que a perda dos arquivos durante a guerra não mais permitirá resolver com
certeza” (ARON, 1986a : 91).
22
Agora, isso não significa que o trabalho tenha sido completamente realizado.
Sabendo que os estudos históricos atuais tendem a jamais concluírem e fecharem
definitivamente as discussões acerca de um determinado assunto, a dissertação em
questão não teve a pretensão de romper com este paradigma. Todavia, evitamos cair
em qualquer tipo de relativismo extremado em que aceitaríamos toda e qualquer
interpretação do pensamento de Clausewitz.
Para tratar da documentação, entendida aqui como fonte primária, adotamos o
texto de Da guerra publicado nos três primeiros tomos das obras completas de
Clausewitz, publicadas entre 1832 e 1834, intituladas Hinterlassene Werke, sendo
esta cotejada junto à tradução para o português realizada por Maria Teresa Ramos,
para a editora Martins Fontes, e junto à tradução para o inglês da editora Pinguin
Books. Realizamos a leitura estrutural do Livro I de Da guerra, a partir da análise
filológica de alguns termos e percebendo suas relações com outros conceitos e
valores do universo cultural da aristocracia prussiana do final do século XVIII e
início do XIX, do Renascimento Italiano do XVI, do contratualismo inglês do XVII,
da tradição iluminista francesa do XVIII e do idealismo alemão do XIX. Esse
extenso período serve-nos apenas como referencial – sendo impossível investigá-lo
corretamente. Centramo-nos em dois períodos: de 1806 a 1815, momento de maior
intensidade das experiências militares vividas por Clausewitz; e de 1816 a 1831,
início provável da redação de Da guerra e o falecimento de Clausewitz.
Sendo-nos difícil acessar os documentos pessoais e todos os outros escritos de
Carl von Clausewitz, guardados e organizados após o seu falecimento, por sua
esposa Marie von Clausewitz, devido à distância que temos do que restou de seu
arquivo localizado na Europa, adotaremos como fonte para isso o que Raymond
Aron selecionou para a escrita de sua obra Pensar a guerra, Clausewitz. Aron é
extremamente generoso na quantidade de documentos (cartas, artigos, textos não
publicados) de Clausewitz, que se tornou uma fonte fundamental para essa
23
dissertação
16
. Mas como não temos por objetivo escrever a biografia de Clausewitz,
sua documentação privada será tratada aqui de forma auxiliar na compreensão de seu
conceito de “guerra”.
Dividimos o presente trabalho em três capítulos – que buscarão interpretações
históricas a partir das problemáticas aqui suscitadas –, além dessa introdução e das
considerações finais acerca daquilo que produzirmos ao longo destes.
Os capítulos em questão são: I. General Clausewitz; II. O conceito de guerra
e III. A guerra contra Clausewitz.
Quanto ao primeiro, intitulado General Clausewitz, discutiremos a conjuntura
prussiana durante o período pós-revolucionário francês de 1789, época em que
Clausewitz formava-se nos círculos militares, e o das guerras napoleônicas
(principalmente a que opôs França e Prússia e a Invasão francesa de 1812 na Rússia,
já que Clausewitz lutou contra os franceses nos dois casos); suas referências teóricas
e a cultura aristocrática prussiana do final do século XVIII e início do XIX. Desse
modo, esperamos contemplar dois aspectos históricos fundamentais: a experiência de
vida de Clausewitz e seu olhar em relação ao mundo.
Quanto à vida de Clausewitz, não procuraremos realizar um estudo
biográfico, sendo possível que muitos eventos importantes para sua história privada
sejam ignorados por essa pesquisa, tendo em vista que buscamos apenas sua
formação militar e política. Para este trabalho utilizaremos os documentos privados
de Clausewitz, disponibilizados nas citações de Raymond Aron, nos dois volumes de
Pensar a guerra, Clausewitz, bem como outras informações trazidas nessa obra que
permitem a recuperação da trajetória pessoal de Clausewitz.
Em relação ao universo cultural prussiano (entre os séculos XVIII e XIX) e os
valores sociais da aristocracia alemã, basear-nos-emos também nas obras de Norbert
Elias, O processo civilizador (os dois volumes) e Os alemães, e a de Reinhart
16
Ao final do segundo volume da edição brasileira, Aron faz uma longa explanação sobre o material
que ele pesquisou para a redação de sua obra.
24
Koselleck, Futuro Passado. Procurando ter destes não apenas a fonte para
resgatarmos informações para a pesquisa histórica que se desenvolve nessa
dissertação, mas sustentando-nos em referenciais conceituais fundamentais, como as
noções de Kultur e Zivilization (ainda que não exploremos a antítese dos conceitos
exposta nas obras citadas acima) e de história da cultura e história política, de Elias,
e de história conceitual, de Koselleck.
O segundo capítulo – O conceito de guerra – é o núcleo da pesquisa. Este é o
momento do trabalho em que serão apresentadas as interpretações que temos sobre o
conceito de “guerra” em Da guerra. Significativamente, buscaremos a formulação
histórica da teoria de Clausewitz, sem tentarmos reduzi-la a qualquer determinismo
histórico.
Para isso, nos centraremos exclusivamente em duas proposições do capítulo I
do Livro I: “A guerra nada mais que um duelo em uma escala mais vasta”
(CLAUSEWITZ, 1996: 7) e “A guerra é uma simples continuação da política por
outros meios” (CLAUSEWITZ, 1996: 27). A análise destas nos permitirá penetrar
num sentido profundo do conceito.
Tomaremos como fundamento para essa análise, além do método filológico, a
tradição política européia que tem em Maquiavel seu primeiro cientista, passando por
Hobbes (entendemos ser este, mais do que Maquiavel, o filósofo que fornece as
bases do pensamento político moderno no que se refere à formulação teórica da
sociedade e do Estado Civil, a partir da natureza violenta do ser humano
17
) e,
finalmente, chegando ao próprio Clausewitz. Com isso não pretendemos afirmar que
a obra de Clausewitz tenha sido escrita deliberadamente como uma continuação de
Leviatã. Veremos, no capítulo I, que Montesquieu foi o pensador que mais
influenciou Clausewitz. Todavia, num arranjo artificial da história da teoria política
17
O filósofo Michel Foucault (1926-1984), num de seus cursos ministrados no Collège de France
entre 1975 e 1976, que originou a obra Em defesa da sociedade, não concordava com essa
formulação. Para ele, o pensamento de Clausewitz não poderia ser compreendido como continuação
do de Hobbes, nem mesmo o de Maquiavel. No entanto, sabia que o assunto era controverso e gastou
muitas aulas defendendo e demonstrando sua posição. Ver FOUCAULT, 1999, aulas 1, 2, 5 e 7.
25
que toma a violência humana como fundamento, entendemos que Clausewitz está
mais próximo de Hobbes que de Montesquieu.
O terceiro e último capítulo, A guerra contra Clausewitz, trará o debate
bibliográfico acerca do pensamento de Clausewitz a partir de dois autores
anticlausewitzianos: B. H. Liddell Hart e John Keegan. Controvérsias, polêmicas e
análises acerca do sentido de sua teoria. Dividiremos este capítulo em duas partes:
“B. H. Liddell Hart contra Clausewitz
18
”, a partir da obra de Liddell Hart, As grandes
guerras da história, e “John Keegan contra Clausewitz”, sobre o livro de Keegan,
Uma história da guerra.
18
O subtítulo em questão é inspirado na introdução do II volume de Pensar a guerra, Clausewitz – a
era planetária, de Aron, intitulado exatamente da mesma forma. Ver ARON: 1986b.
26
Capítulo I: General Clausewitz
27
Os germanos são muito diferentes nos
seus hábitos... Toda a sua vida consiste
em caçadas e dedicação à arte militar:
desde pequenos dedicam-se ao esforço e
à dureza.
Caio Júlio César (VI 21-3)
A descrição da Germânia feita por César (100-44 a.C.) no século I a.C. dista
não apenas em tempo, mas também em espaço de Carl Philipp Gottlieb von
Clausewitz (1780-1831). É sabido que a região da Prússia, ainda que conhecida,
estava distante da Germânia ocupada pelos romanos. Na época do Império Romano,
por volta do século II d.C., a Germânia foi dividida em duas partes: a oeste e a sul do
Reno, Germânia Interior (subdividida em duas províncias: Germânia Inferior: Países
Baixos, e Germânia Superior: Suíça e Alsácia) e a leste do Reno, Germânia livre. No
entanto, do passado resgatado pelos nacionalistas alemães do século XIX, no
contexto de Clausewitz, eram exatamente as memórias dos romanos que serviam
como fonte para marcar as origens dos povos alemães, inclusive dos prussianos.
Tácito (55-120), por exemplo, ao descrever a terra e as gentes
19
da Germânia,
disse que o povo da região onde se situava a Prússia – Germânia livre – surgiu “…
como uma tribo de bárbaros de origem eslava, que habitava as margens do rio
Weichsel, na região dos lagos. Seus membros eram chamados pelos romanos de
pruzi ou borussi” (BARROS, 2002: 15).
Evidentemente, que falamos de tempos e espaços diferentes, mas,
principalmente, de culturas diferentes. Certamente, os borussi de Tácito não são os
mesmos prussianos do final do século XVIII e início do XIX – época de Clausewitz.
Os germanos diferentes de César, talvez, entre 1750 e 1850 fossem mais parecidos
com os italianos modernos. Contudo, há algo de revelador na fala do general romano:
19
Os germanos eram vistos como bárbaros por Tácito. Ele descreveu da seguinte forma alguns hábitos
da família germânica de sua época: “Limitar o número de filhos ou matar algum dos agnados é tido
por ignomínia e têm mais valor aí os bons costumes do que em outro lugar as boas leis… Em toda
casa vão crescendo os filhos até estes membros, estes corpos que admiramos. A cada um alimenta-o
nos seios a própria mãe, nem são entregues os filhos a escravas ou amas. Não se pode distinguir o
senhor do escravo por refinamentos de educação: vivem no meio dos mesmos rebanhos, no mesmo
chão, até que a idade separe os livres e o valor os distinga” (TÁCITO, 19-20 apud NOVAK, 1999:
173-175).
28
os germanos dedicavam toda a sua vida à arte da guerra. É possível que esse aspecto
da cultura alemã tenha perdurado até os dias do general Clausewitz e, quem sabe, ter
seguido adiante como uma marca que permanece ao longo dos anos.
Apesar disso, não pensamos que a cultura de um povo é imutável. De modo
algum afirmaríamos que os povos têm identidades fixas. Por exemplo, Friedrich
Schiller (1759-1805), que entendia cultura como cultivo e transformação da natureza
pela humanidade, acarretando em “evolução” – portanto, de uma forma distinta da
nossa –, olhava para a história alemã de sua época com um avanço frente ao passado:
“Assim éramos nós. César e Tácito nos encontraram num estado não muito diferente
do desses povos primitivos de há mil e oitocentos anos atrás. O que somos agora? O
mesmo povo habitando a mesma região apresenta-se incomensuravelmente diferente
se o observarmos em diferentes períodos de tempo” (SCHILLER apud ELIAS, 1997:
120).
Contudo, mesmo que distante do passado dos “primitivos” borussi, a
Alemanha do XIX guardava consigo o espírito guerreiro. Perceber esse traço
característico dos alemães ajuda a entender um pouco os modos de se educar e de se
formar socialmente um germânico nos primórdios da Idade Contemporânea. Sem
dúvida, ao tratarmos da Alemanha e observarmos o processo de formação de seu
Estado (1871), temos de prestar atenção ao que Norbert Elias destacou como
fundamental da cultura e entender que o habitus alemão difere dos outros. E que o
espírito guerreiro do alemão, certamente construído historicamente, tem um grande
valor para as populações alemãs que, desde o final do século XVIII e início do XIX,
desejam um Estado Nacional – principalmente os prussianos e, entre estes, sua
aristocracia.
Elias, ao assinalar em sua obra Os alemães duas das três peculiaridades da
formação do Estado alemão, nos mostra o seguinte:
“O processo de formação do Estado entre os alemães foi profundamente
influenciado pela sua posição como bloco intermediário na configuração desses três
29
blocos de povos [tribos germânicas, tribos de língua derivada do latim e tribos
orientais de línguas eslavas]. Os grupos latinizado e eslavo sentiram-se
reiteradamente ameaçados pelo populoso grupo germânico. E com igual freqüência,
os representantes do nascente Estado alemão sentiram-se ameaçados de vários lados
ao mesmo tempo.
O segundo aspecto do processo de formação do Estado alemão que deixou sua
marca peculiar no habitus alemão está intimamente relacionado com o primeiro. Até
hoje, no desenvolvimento da Europa e, a bem dizer, da humanidade, um papel
central tem sido desempenhado pelas lutas de eliminação entre grupos, estejam eles
integrados ao nível de tribos ou ao de Estados. É possível que, para a espécie
humana, as lutas de eliminação na forma de guerras estejam hoje chegando ao fim,
mas não se pode ter certeza disso ainda. Com muita freqüência, unidades sociais
estatais ou tribais foram derrotadas nesses confrontos violentos e tiveram daí por
diante de viver com a certeza de que nunca mais voltarão a ser Estados ou tribos de
suprema categoria; provavelmente serão sempre unidades sociais de categoria
inferior. Vivem à sombra de seu grandioso passado” (ELIAS, 1997: 16-7).
A Prússia, enquanto Estado, foi formada somente no início do século XVIII,
em 18 de janeiro de 1701, com a unificação dos ducados da Prússia e de
Brandemburgo em um reino sob a dinastia dos Hohenzollern, tendo na figura de
Frederico, o Grande (1712-1786), um símbolo para a definição do espírito guerreiro
da nação que surgira nos séculos da Luzes, reunindo a imagem do guerreiro e do
homem letrado – o déspota esclarecido. Um Estado militarizado, oriundo das
tradições germânicas e dos guerreiros teutônicos que habitaram a região após as
Cruzadas medievais. De tal modo a prática guerreira foi valorizada na Prússia que o
conde de Mirabeau a definiu da seguinte forma:
“A Prússia não é um Estado que dispõe de um exército, e sim um exército que possui
um Estado” (BARROS, 2002: 97).
Para Reinhart Koselleck,
“Estava totalmente ausente na Prússia o pressuposto histórico de uma tradição comum
constituída pelos estamentos territoriais que, no Ocidente, já comprovara seu poder de
30
integração no processo de formação do Estado nacional. A Prússia, um território
incompleto e fragmentário carecia de núcleo histórico constituído pela representação
popular, devendo sua constituição antes ao Exército real e à administração estatal. ‘Na
Prússia é o governo, portanto, que, também no que diz respeito à conservação,
representa quase que exclusivamente o elemento constitutivo do Estado’”
(KOSELLECK, 2006: 89).
Nesse contexto nasce Clausewitz, autor de Da guerra. Entendemos como
fundamental para esse trabalho a recuperação do universo cultural em que
Clausewitz foi educado até se transformar general e pensador e entender o habitus
alemão do início da Idade Contemporânea, apontando para as relações entre a classe
média e a aristocracia alemãs, no processo de construção de seu Estado Nacional
20
.
Bem como a conjuntura internacional da Europa que esteve intimamente ligada à
biografia de Clausewitz: o império de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e as guerras
desse período. Assim, não pretendemos escrever a história da vida privada de
Clausewitz, nem mesmo sua biografia. Mas entender como a sua vida afetou sua
reflexão e contribuiu na construção de sua teoria político-militar.
Como recurso para costurar o pensamento de Clausewitz e as suas
experiências, seguiremos os caminhos percorridos por Raymond Aron em sua obra
Pensar a guerra, Clausewitz, principalmente a Primeira Parte do volume 1 (a era
européia), “Do homem à obra”. Aron apresenta uma posição significativa
envolvendo teoria e prática
21
, recuperando a relação estabelecida por Clausewitz no
prefácio de sua obra:
20
“Em 1740, para o enciclopedista Johann Heinrich Zedler, a nação, em seu sentido realmente
original, significava um número unido de Bürger (na Alemanha da metade do século XVII, é melhor
deixar a palavra com sua notória ambigüidade), os quais partilhavam um corpo de costumes, valores e
leis. Disto se segue que a palavra não pode ter significado territorial, desde que os membros de
diferentes nações (divididos por ‘diferenças nos modos de vida – Lebensarten – e costumes’) podiam
viver juntos em uma mesma província, intrínseca com o território os wends (um dos povos eslavos da
Alemanha do Leste) da Alemanha teriam que ser chamados de alemães, o que eles patentemente não
são… Para Zedler, a palavra que descreve a totalidade das pessoas de todas as ‘nações’ vivendo em
uma mesma província ou Estado, é Volck” (HOBSBAWM, 1990: 30).
21
No segundo capítulo desta dissertação, veremos que para a confecção do conceito de guerra,
Clausewitz se valeu da relação entre teoria e prática para melhor entender a guerra como fenômeno
histórico e como conceito, tanto que estabeleceu dois tipos de guerra: a ideal – aquela sobre a qual
trata em seu primeiro livro de Da guerra, “A natureza da guerra”, chamada no Livro VIII de guerra
verdadeira (mas traduzida por “guerra absoluta”, segundo a edição da Martins Fontes) e a guerra real,
31
“Que o conceito de ciência não se resume unicamente nem essencialmente num
sistema ou num método de ensino totalmente acabados, eis o que nos nossos dias não
carece de explicações. À primeira vista, não se encontrará nesta exposição nenhum
sistema, e em lugar de um método definitivo de ensino apenas se descobrirão matérias
coligidas.
O seu lado científico reside na vontade de perscrutar a essência dos fenômenos da
guerra e de demonstrar a sua ligação com a natureza do fato. O autor nunca se
esquivou às conclusões filosóficas; mas, quando viu o fio adelgaçar-se
exageradamente, preferiu quebrá-lo e uni-lo aos fenômenos que correspondem à
experiência. Porque, assim como algumas plantas só dão frutos na condição de não se
desenvolverem excessivamente, também é preciso não deixar crescer demasiado as
folhas e as flores teóricas das artes práticas, mas reaproximá-las da experiência, que é
seu terreno natural” (CLAUSEWITZ, 1996: 3).
Em trecho que compara Da guerra à Guerra do Peloponeso do historiador
grego Tucídides (460?-400 a.C.), Aron demonstra exatamente a ligação entre a
história vivida por Clausewitz e a construção de seu pensamento teórico sobre a
guerra:
“Podemos comparar Vom Krieg à Guerra do Peloponeso? Sim, mas para os opor,
Tucídides narrou a grande guerra e inseriu as lições que tirava: a interpretação dos
homens e do acontecimentos constitui a articulação da própria narração. Clausewitz
narrou várias campanhas de Napoleão: O Traité utiliza as narrações para construir
um edifício conceitual, uma teoria da estratégia. Na medida em que esta teoria se
fundamenta em uma experiência histórica e tende a ultrapassá-la para formular
proposições eternamente verdadeiras ou válidas, o intérprete deve evocar a
experiência vivida pelo teórico e os dados materiais que este último não lembrava a
cada momento porque os tinha como já conhecidos” (ARON, 1986a: 33).
que deriva da ideal, mas assume aspectos próprios e muitas vezes imprevisíveis. Este assunto,
entretanto, será desenvolvido adiante, cabendo-nos agora simplesmente pontuar que Aron tomou o
mesmo cuidado em sua obra ao analisar a vida e a obra do general prussiano. “Que a teoria seja capaz
de lá chegar hoje eficazmente, isso devo-o às últimas guerras. Sem esses exemplos que nos advertiram
cerca da força destruidora do elemento desencadeado, ela ter-se-ia esforçado em vão”
(CLAUSEWITZ, 1996: 832).
32
Aron, na tentativa de estabelecer os laços entre a vida e a formação do
pensamento de Clausewitz, é-nos extremamente generoso e nos fornece inúmeros
trechos de cartas e artigos produzidos pelo militar que se formava general. Alguns
desses documentos são fundamentais para entendermos as convicções políticas de
Clausewitz, seus valores morais e suas expectativas em relação ao mundo e,
principalmente, a Alemanha. Também nos revela de forma ilustrativa a conjuntura
política e intelectual da Europa nos arredores do período napoleônico: a difusão das
idéias iluministas, o crescimento do sentimento nacionalista, a afirmação social da
burguesia e o declínio político da aristocracia.
No entanto, não pensamos parafrasear Aron. Seu brilhante trabalho – com
profunda preocupação histórica e teórica –, em nosso modo de ver, não aborda
diretamente o habitus aristocrático alemão do século XIX (pelo menos, não segundo
a nossa perspectiva teórica). Para isso, Elias parece-nos mais adequado. Para este,
em suas obras O processo civilizador e Os alemães, não é possível compreender o
processo de formação da sociedade moderna na Europa de uma só forma. A
burguesia alemã, por exemplo, passa por um processo de construção cultural de sua
identidade razoavelmente diferente do inglês e do francês – em termos
comparativos. Do mesmo modo, a nobreza alemã sofre um processo diferente de
conformação durante os anos do século XIX
22
.
22
Neste caso, não estamos fazendo qualquer juízo comparativo sobre os trabalhos de Elias e Aron.
Aron não fez o que apontamos acima porque não era sua preocupação, ou mesmo, se quisermos
inferir, sua forma de pensar. Para o intelectual francês, que consideramos o autor da maior obra sobre
a teoria de Clausewitz, interessava interpretar como o prussiano absorveu e dialogou com o contexto
de sua época. Elias não se interessava por Clausewitz – pelo menos nas obras aqui consultadas –, e
sim com a sociedade alemã em seu processo de formação como nação, evento que somente se
consolida em 1871, de uma forma singular. Elias preocupou-se exatamente nas peculiaridades da
história e da cultura alemã, atribuindo-lhes um status que se distingue dos modelos históricos
hegemônicos habitualmente adotados para se estudar a história européia do século XIX da Europa: o
francês e o inglês. Estes se constituíram como padrões da história moderna, e romper com sua
imposição é extremamente complicado, ainda mais se lembrarmos que durante boa parte deste
período, o domínio político-cultural anglo-francês foi, até a unificação alemã, quase que exclusivo no
mundo europeu. Deste modo, a reflexão de Elias nos leva a notar as peculiaridades da burguesia, da
nobreza e do nacionalismo alemão durante a época, bem como seu processo histórico-político e a
produção intelectual.
33
Mesmo assim, este assunto não é desconhecido de Aron. A origem nobre de
Clausewitz é parte essencial para a compreensão de sua perspectiva político-moral,
tanto que no início de seu texto chama atenção ao fato de que o pai de Carl não era
legitimamente aristocrata, ao verificar que seu nome não continha originalmente a
preposição “von” (ARON, 1986a: 33). A cautela com o termo “von” é reveladora
para se entender a origem social de Carl von Clausewitz (este sim com “von”). Uma
mera preposição e falamos de classes sociais diferentes? Evidentemente que não,
mas em uma sociedade culturalmente hierarquizada e atravessada por valores que
dão à aristocracia lugar de destaque, ter o “von” no nome, politicamente falando,
significa muita coisa, não apenas no plano dos privilégios pessoais dada a origem,
mas a forma de pensar o mundo e de se colocar frente ao processo social vivido.
A origem questionável de Clausewitz o incomodou, não porque para ele fosse
necessariamente importante ser aristocrata, mas porque no universo de relações
sociais da Europa do final do século XVIII e início do XIX, ter “von” no nome o
colocava num patamar de trânsitos culturais extremamente vertiginoso: O que é ser
nobre numa sociedade em que o povo pega em armas e a tradição da nobreza é
desvalorizada? Ser nacionalista e não confraternizar com os outros segmentos
sociais de sua nação? Submeter-se politicamente aos produtores de riqueza, que
compram sua Kultur
23
. Em verdade, o reconhecimento da nobreza de seu pai e de
seus antepassados veio com seu padrasto, o Major von der Hundt, por quem foi
educado após se tornar órfão de pai aos nove anos de idade
24
, e esta ambigüidade em
relação à origem social afetou a formação de sua personalidade. Em uma carta à sua
noiva, Marie von Brühl (1779-1836) – esta, sim, de uma reconhecida linhagem
nobre –, depois, Marie von Clausewitz, em 13 de dezembro de 1806, Carl revela o
paradoxo que o atormentava, uma vez que ser nobre em um universo dominado pela
ética burguesa não lhe renderia nenhum tipo de satisfação,
23
O conceito de Kultur, para Elias, é nevrálgico nas interpretações acerca da formação da burguesia e
da aristocracia alemãs do século XIX e início do XX.
24
“[o Major von der Hunt] fez [Clausewitz] reconhecer uma nobreza à qual seus pais e avós,
professores de filosofia e teologia ou pastores, tinham renunciado. Esta reivindicação de nobreza se
fundamentava em relações com um Freiherr von Clausewitz, da Silésia, remontando ao final do século
XVII” (ARON, 1986a: 34). O termo que designa nobreza em alemão foi acrescentado ao nome do pai
de Clausewitz após a sua morte, ficando Friedrich Gabriel von Clausewitz.
34
“Eis aqui então toda a verdade sobre as minhas origens… [descendo] de uma família
nobre da Alta Silésia cujo último representante vivia em Jägerndorf, no final do século
XVII. [os filhos deste] parecem ter escolhido a condição de plebeu, pois meu avô foi
professor de universidade em Halle… A família não teria mais sonhado com a
nobreza, somente meu pai, que era o caçula da família, tinha uma opinião diferente.
Preocupado em evitar a prescrição definitiva de nossos antigos privilégios, escreveu a
Frederico, o Grande e, usando de sua qualidade de fidalgo, solicitou um emprego
militar para o qual apresentava todas as aptidões necessárias. O rei, dando
prosseguimento a seu requerimento, afetou-o no regimento de Nassau…[em seguida o
pai participa da Guerra dos Sete Anos, é ferido na mão direita e tem que deixar o
exército. O filho primogênito estuda Teologia e entra na administração civil], para os
outros três filhos, o pai reservou a decisão e escreveu ao rei e foi assim que três irmãos
caçulas que éramos, devemos à nossa qualidade de fidalgos, o fato de termos sido
engajados no exército; meu irmão e eu mesmo, nos encontramos em um regimento
(trazendo o nome do príncipe Ferdinando) onde só se aceitavam membros da nobreza.
Ora, como tínhamos parentesco que não parecia ser de origem nobre, naturalmente
chegamos a temer que nos tomassem por usurpadores se, por ventura, essa situação
chegasse ao conhecimento das pessoas. Não saberíamos dizer o quanto esta idéia nos
desagradava, pois sentíamos bem que não havia dentro de nós uma só gota de sangue
mentiroso; de fato não tínhamos a menor apreensão: a todo aquele que estivesse mal-
intencionado a ponto de contestar nosso título de nobreza, teríamos respondido com
uma espada que nos abrigava de qualquer humilhação; mas em relações em que fosse
necessário mais delicadeza, qualquer alusão a uma usurpação nos era insuportável
enquanto uma exposição detalhada das circunstâncias não podia descartá-la (como
neste instante) e nos mostrar tão puros de qualquer suspeita quanto nos sentíamos no
fundo do nosso coração” (SCHWARTZ apud ARON, 1986a, 34-35).
É importante enfatizar a noção de Clausewitz sobre sua nobreza; esta era dada
pela prática militar, ainda que fosse para utilizar a espada contra qualquer desaforo
de sua origem, remetendo-nos ao primeiro critério da instituição aristocrática em
seus princípios, os mesmos hábitos destacados por Júlio César na epígrafe deste
capítulo, ou seja, ainda que Clausewitz não fosse por ascendência nobre, o seu ser
guerreiro era condição suficiente para tal, a ponto de lhe dar tranqüilidade e desafiar
até mesmo a dúvida que sua noiva poderia ter quanto ao seu caráter. A afirmação de
35
Clausewitz reflete significativamente que ser nobre na Prússia desse período não era
uma condição secundária nas relações políticas.
Para Aron, ao analisar o mesmo documento e de acordo com a conjuntura
européia do início do século XIX, Clausewitz não deveria se sentir tão melindrado
quanto à sua nobreza “bastarda”, mesmo porque seu grande mestre, Gerhard Johann
David Scharnhorst (1755-1813), não era nem prussiano e nem nobre. Apesar disso,
reconhece a importância de ser aristocrata no exército prussiano dessa época:
“…o próprio Clausewitz, em função de seu próprio sistema de valores, devia descartar
com desprezo a obsessão pelo ‘sangue azul’… Ora, no exército prussiano do início do
século XIX, tal como se manteve em grande medida até o início do século seguinte,
Clausewitz não podia testemunhar com indiferença com relação a sua ascendência
sem passar por um aventureiro, sem sair moralmente do universo prussiano no qual
seu pai tinha educado seus três filhos. Marie von Brühl pertencia a uma grande família
saxônica de nobreza imperial: como é que a mãe de Marie teria facilmente consentido
o casamento com este oficial pobre se nem sequer possuía título legítimo de nobreza e,
ao mesmo tempo, usurpava seus galões?” (ARON, 1986a: 36).
Sem dúvida, Aron percebeu aqui que o lugar político da nobreza no conjunto
das relações de força da Europa estava sendo progressivamente perdido, ainda que
no caso prussiano o nome aristocrático se mantivesse forte nas fileiras de oficiais do
exército. Instituição essa que Clausewitz serviu desde os doze anos de idade,
primeiro no 34º Regimento de Infantaria da Prússia
25
, depois, aos vinte e um, passou
25
John Keegan aponta para a importância do fato de Clausewitz ser um oficial de regimento:
“Clausewitz era um oficial de regimento. Isso exige uma explicação. Um regimento é uma unidade de
força militar, tipicamente um corpo de cerca de duzentos soldados. O regimento era uma característica
estabelecida da paisagem militar na Europa do século XVIII… ao surgir no século XVII, o regimento
não foi um elemento apenas novo, mas também revolucionário da vida européia. Sua influência se
tornou tão significativa quanto a das burocracias autônomas e autoridades fiscais equânimes, e
entrelaçou-se com elas… O regimento… foi um expediente para assegurar ao Estado o controle das
forças armadas… Eles se tornaram instituições reais – posteriormente nacionais – permanentes,
ganhando amiúde quartéis-generais fixos numa cidade de província, recrutando na região
circunvizinha e retirando seus oficiais de uma corterie de famílias aristocráticas. O 34º Regimento de
Infantaria da Prússia, para o qual Clausewitz entrou em 1792… era exatamente um regimento deste
tipo. Fundado em 1720 e destacado para vila brandemburguesa de Neu Ruppin, a 65 quilômetros de
Berlim, tinha um príncipe real como coronel; seus oficiais vinham da pequena nobreza prussiana,
enquanto os soldados – recrutados por tempo indeterminado dentre os mais pobres da sociedade –
36
a estudar na Escola Geral de Guerra, onde recebeu a maior parte de sua formação
intelectual, sendo principalmente influenciado pelo “plebeu” Scharnhorst. No
entanto, na carta de Carl a Marie, em que parece estar se livrando de um grande
fardo, ele não deixa dúvidas quanto à importância do assunto, uma vez que o habitus
alemão, como pensava Elias, ainda se segurava nos modos e valores da cultura
aristocrática e não burguesa, como, por exemplo, o caso francês.
É fundamental anotar essa diferença, pois assim poderemos prosseguir no
debate sobre as experiências vividas por Clausewitz, sua formação intelectual e a
produção teórica de Da guerra, entendendo que a cultura alemã desse período ainda
privilegiava um modo de ser nobre, em detrimento ao aburguesamento político pelo
qual a França acabara de passar com a Revolução de 1789, e que na Inglaterra já
havia ocorrido em meados do século XVII, com as Revoluções Puritana e Gloriosa.
De modo que o universo de valores políticos da Prússia fosse absolutamente peculiar
em relação às outras potências da época – mesmo que estivesse envolvida até o
pescoço nos acontecimentos europeus do período napoleônico. Ao comparar o
conceito de “civilisation” francês ao de “Kultur” alemão, Elias diz o seguinte:
“Talvez pareça paradoxal que na Alemanha, onde as barreiras sociais entre a classe
média e a aristocracia eram mais altas, menos numerosos contatos sociais e mais
consideráveis as diferenças em maneiras, durante muito tempo as discrepâncias e
tensões entre as classes não tenham tido a expressão política, ao passo que na França,
onde eram mais baixas as barreiras de classe e incomparavelmente mais íntimos os
contatos sociais entre elas, a atividade política da burguesia tenha se envolvido mais
cedo e chegado a uma precoce solução política a tensão entre elas.
O paradoxo, no entanto, é apenas aparente. A longa recusa da política real a conceder o
exercício de funções políticas à nobreza francesa, o envolvimento desde cedo de
elementos burgueses no governo e na administração, o acesso deles até mesmo às mais
altas funções governamentais, sua influência e promoções na corte, tudo isto teve duas
conseqüências: por um lado, o contato social íntimo e contínuo entre elementos de
origem social diferente e, por outro, a oportunidade de elementos burgueses se
formavam, com suas esposas e filhos e camaradas inválidos, mais da metade da cidadezinha”
(KEEGAN, 1995: 29-31).
37
empenharem em atividade política logo que amadureceu a situação social e, antes
disso, um forte treinamento político e uma tendência a pensar em termos políticos. Nos
Estados alemães, de modo geral, aconteceu quase exatamente o oposto. Os mais altos
cargos do governo eram, via de regra, reservados à nobreza. No mínimo, ao contrário
de sua contrapartida francesa, a nobreza alemã desempenhou um papel decisivo na
mais alta administração do Estado. Sua força como classe autônoma nunca foi tão
rapidamente quebrada como na França. Em contraste, a força de classe da burguesia,
em conformidade com seu poder econômico, permaneceu relativamente fraca na
Alemanha até bem dentro do século XIX. A separação mais radical entre elementos de
classe média e a aristocracia de corte refletia-lhes a fraqueza econômica comparativa e
a exclusão dos cargos mais importante do Estado” (ELIAS, 1994a: 53).
Sendo assim, não é possível interpretar da mesma forma sujeitos históricos
que, apesar de contemporâneos e talvez socialmente idênticos, sejam culturalmente
similares, uma vez que os processos históricos locais se particularizam e se
relativizam frente ao panorama geral da História dos grandes acontecimentos. Ser
nobre alemão, no início do século XIX, é significativamente diferente de ser um
nobre “aburguesado” francês ou inglês. Mesmo que os valores produzidos pela
cultura burguesa tenham afetado as camadas nobres na Prússia, estas mantinham
seus códigos e dispunham de um espaço político ainda definitivamente mais
privilegiado que a burguesia.
Atreladas ao espírito guerreiro e à nobreza de Clausewitz estavam as
experiências vividas durante o período pós-1789, não apenas pela sua atuação em
vários e decisivos momentos das guerras do início do século XIX, principalmente
contra Napoleão em 1812, 1813 e 1815 – o que em si já são suficientemente ricas –
mas que, ao mesmo tempo, formava-se intelectualmente na Escola Geral de Guerra
e pela influência de Scharnhorst e, também de August Neidhart Gneisenau
26
(1760-
1831). Muitos exemplos utilizados em Da guerra são frutos desse agitado período
militar da Europa, e Clausewitz não foi apenas espectador, mas um ator com grandes
papéis. É necessário destacar, também, a posição política de Clausewitz nesse
26
Importante marechal-de-campo prussiano, no início do século XIX. Com Scharnhorst, se tornou um
dos mentores intelectuais de Clausewitz.
38
período, ao observar as transformações sociais pelas quais o mundo conhecido
começava a desaparecer.
Clausewitz poderia afirmar contundentemente que teve uma grande rival: a
França. Toda sua biografia dos campos de batalha está inevitavelmente vinculada aos
franceses. Sua primeira campanha foi aos treze anos de idade, entre 1793 e 1794,
como soldado de um punhado de exércitos que defendiam as nações européias contra
as ameaçadoras idéias e práticas revolucionárias surgidas em Paris; sua última
experiência, já como coronel, em 1815, “aniquilava” o sonho tirânico da burguesia.
De fato, as tensões entre França e Prússia (e depois de 1871, com a
Alemanha) só aumentariam nos 150 anos seguintes, até a Segunda Guerra Mundial,
uma vez que a rivalidade constituída nesse período não era cultivada exclusivamente
por Clausewitz ou pelos alemães. Em todo caso, foi a ação francesa transformadora
radical das estruturas políticas européias que desencadeou, por parte dos Estados
monarquistas, reações profundamente conservadoras contra o desenrolar dos
acontecimentos pós-revolucionários. Ora, Clausewitz era nobre e prussiano, leal ao
monarca, o rei Frederico Guilherme III (1770-1840), e à tradição aristocrática,
confiava na hierarquia como forma de organização social (era militar).
Evidentemente, Clausewitz não poderia apoiar a causa revolucionária francesa ou
qualquer coisa que se aproximasse a uma idéia de subversão social. Além do mais,
como a maioria dos europeus, era nacionalista – ao seu modo, é bem verdade – a
ponto de entender que toda e qualquer agressão à Prússia, ou a não realização dos
desejos políticos prussianos encarnados na figura de seu príncipe, era uma agressão
contra seu povo, contra seu modo de vida e, acima de tudo, contra seu sentimento
nacionalista, como escreveu em 1807:
“O senso nacional (Nationalsinn), escreve Clausewitz, não se confunde com o caráter
nacional nem com a nacionalidade. O que falta aos alemães é o senso nacional. ‘E é
esta tendência de nosso espírito que destrói o senso nacional e faz de nós uns
cosmopolitas, o que é precisamente um elemento constitutivo de nossa nacionalidade.
Temos muito poucos preconceitos salutares; este espírito crítico verdadeiro que está
dentro de nós, onde quer que se aplique, está atento tanto para o bem como para o mal;
39
quer dizer que ele reconhece os méritos das outras nações e desmascara os defeitos da
nossa, o que destrói o senso nacional, que busca força nos preconceitos. É preciso
acrescentar que a racionalidade em nosso país, longe de se contentar em aí abolir
preconceitos benéficos, também minou o caráter na medida em que se abusou
limpamente deste” (ARON, 1986a: 46).
O rancor contra os franceses cresceu insuportavelmente quando Napoleão
Bonaparte, após 1799, passou a liderá-los. Em 1806 – um dos anos mais trágicos
para o exército, governo e, acima de tudo, para a moral prussiana –, além da derrota
para as tropas napoleônicas e a dissolução do Sacro Império Romano Germânico,
Clausewitz foi aprisionado após a batalha de 11 de setembro. Em uma carta à Marie,
de 1° de dezembro desse ano, no entanto, ainda mantém a crença patriótica:
“Tive experiências dolorosas, e minha alma trouxe ferimentos sangrentos, mas a rocha
sobre a qual se fundamentam minhas esperanças, sobre a qual, sozinho, contei com
certeza, esta rocha continua de pé, sólida e intacta… no que concerne às minhas
disposições interiores, se eu não trouxer muita riqueza de grandes façanhas, fico pelo
menos livre de qualquer fardo de culpabilidade; e posso dizer que não fui indigno com
relação às mais modestas esperanças que você, minha amiga generosa, colocou em
mim. Posso voltar para você de cabeça erguida…” (ARON, 1986a: 42).
Durante o período de cativeiro, até 1807, escreveu um artigo intitulado
Français et Allemands, em que compara o povo francês ao alemão
27
. Aron entende
que o artigo, na ocasião de sua reflexão, interessava pouco, sendo matéria “ao
historiador das idéias e ao especialista de preconceitos e estereótipos nacionais”.
“Qual seria, desde então, o resultado final destas observações? Somos obrigados a
constatar que o francês, de natureza limitada e de pouca ambição, além de vaidoso, é
bem mais fácil de se integrar em um conjunto uniforme, se submete bem melhor aos
objetivos de seu governo e é, conseqüentemente, um instrumento político bem melhor
do que o é o alemão, com seu espírito impaciente com qualquer limitação, com a
27
“[Clausewitz] desprezava os franceses, considerava-os inferiores em qualidades nacionais –
dissimulados e falastrões onde os prussianos eram confiáveis e nobres… No entanto, seus poderes
nacionais diziam-lhe que fora o fervor revolucionário dos exércitos franceses que lhe trouxeram a
vitória” (KEEGAN, 1995: 34).
40
diversidade e a originalidade dos caracteres individuais, com seu gosto pelo raciocínio
e a infatigável aspiração que o faz tender a um objetivo sublime a que ele próprio se
propôs” (ARON, 1986a: 47).
Não nos incluímos em nenhum dos dois casos desprestigiados por Aron; no
entanto, a revelação do sentimento de Clausewitz sobre seus inimigos estrangeiros dá
o tom de suas decisões nos acontecimentos militares futuros de 1812, na campanha
francesa de invasão da Rússia, uma vez que a Prússia, nesta ocasião, se aliou às
tropas de Napoleão e Clausewitz abandonou a instituição que o criara, para se unir ao
exército do czar.
Não podemos restringir a vida de Clausewitz ao sentimento vingança, porém
também não podemos descartá-lo.
O que passa a estar em jogo agora não é apenas o conjunto de impressões de
um jovem oficial frente às mazelas da guerra e a demonstração de suas virtudes
guerreiras tão cultivadas pela nobreza alemã. É também sua noção política acerca do
mundo que se torna uma empresa de vida a ser realizada. Clausewitz – que já
demonstrara desde cedo qualidades intelectuais que o levavam a ir além do soldado
comum – parecia projetar sua vida de maneira estratégica, supondo, talvez, que a
possível derrota de Napoleão, na Rússia, poderia restabelecer a força prussiana de
outrora e dar-lhe o devido troco, não apenas por rancor, e sim para a reposição da
antiga ordem política da Europa, pré-Revolução Francesa.
John Keegan, por exemplo, em sua Uma história da guerra, interpreta a
atitude de Clausewitz não como uma deserção, mas como um ato patriótico
desesperado, uma vez que, em 1813 e 1815, retornaria às fileiras do exército
prussiano, novamente para combater Napoleão.
“Em 1806, Napoleão voltou sua atenção para a Prússia e derrotou seu exército no
furacão de poucas semanas. Clausewitz viu-se prisioneiro em solo francês e, quando
teve permissão para voltar para casa, era oficial de um esqueleto de exército que
existia somente pela tolerância francesa. Durante alguns anos, ele conspirou com seus
41
superiores, os generais Scharnhorst e Gneisenau, fazendo planos para dar carnes a esse
esqueleto embaixo do nariz de Napoleão, mas em 1812 rebelou-se contra o
gradualismo e tomou o caminho do ‘duplo patriota’. O duplo ‘patriotismo’ impeliu-o a
desobedecer às ordens de seu rei e servir a Napoleão em sua invasão da Rússia,
levando-o a se unir ao exército czarista em nome da liberdade da Prússia. Como
oficial czarista, lutou em Borodino e, ainda usando uniforme russo, voltou à Prússia
para participar de sua guerra de libertação, em 1813” (KEEGAN, 1995: 33).
A repulsa de Clausewitz aos franceses estava, sem dúvida alguma, além do
preconceito xenófobo. Apesar de compartilhar idéias liberais, como pensa Aron
(1986a: 65), era defensor do poder monárquico independente das tendências políticas
modernas e, ainda que uma mudança de regime viesse a ser mais adequada no
contexto político europeu do início do século XIX, já que era nacionalista, rejeitava a
prática parlamentar; não via no Estado outra representação que não fosse a do
monarca e detestava, portanto, a democracia. Evidentemente, um aristocrata alemão
como Clausewitz, mesmo que percebesse o declínio político de sua classe, estava tão
arraigado em seus valores, que seu senso político – ainda que crítico – não
dimensionava a revolução de forma alguma como positiva e não via na subversão
social outra coisa senão o caos. Napoleão, seu exército, seu império representavam
exatamente essas ameaças.
“Carl mantém uma lealdade incondicional com relação ao soberano, lealdade ao
Estado encarnado no rei ou lealdade quase feudal com relação à própria pessoa do
monarca. Por outro lado, possui muita sagacidade histórica para desconhecer a
importância da crise revolucionária. Assim, dividiu o destino dos Reformadores;
também contribuiu para a criação do exército que, finalmente, em 1815, perseguiu
Napoleão até Paris. Depois de 1815, a reação o venceu. O exército prussiano, e em
seguida o alemão, que dominou a Europa no século XIX, parou a revolução que num
dia de 1809, sob o golpe da exasperação que despertava nele a passividade de seus
compatriotas, Clausewitz descrevia tal como uma onda irresistível levando os
indivíduos como fossem feitos de palhas” (ARON, 1986a: 54).
A posição de Clausewitz, sem dúvida, não era unitária na Prússia. Muitos
viam em Napoleão um difusor dos ideais da Revolução Francesa de 1789, e os
42
interesses prussianos na Polônia e na Alemanha, além de sua rivalidade contra a
Áustria, encontravam um terreno fértil no contexto das guerras napoleônicas para se
realizarem. Tal divisão aguçou seu pensamento para o seguinte dilema: o povo
armado é um perigo revolucionário, mas, e se não estiver armado, aumenta-se o risco
de uma invasão? Nesse sentido, Clausewitz não só pôde manter-se conservador,
como também absorver em sua maneira de pensar os resultados do processo
revolucionário
28
. Ao perceber a relação trinaria entre Estado-exército-povo
29
, diz o
seguinte no capítulo XXVI, do Livro VI de Da guerra:
“A guerra do povo é, na Europa civilizada, um fenômeno surgido no século XIX. Ela
tem seus defensores e os seus adversários; estes últimos consideram-na, de um ponto
de vista político, como um meio revolucionário, um estado de anarquia legalizada, tão
perigosa para a ordem social no interior como para o inimigo, ou consideram do ponto
de vista militar, que os seus êxitos não são proporcionais ao dispêndio da força. O
primeiro ponto não nos diz aqui respeito, pois encaramos uma guerra popular como
um simples meio de combate, e por conseguinte em relação com o inimigo; mas a
respeito do segundo ponto deve-se notar que uma guerra do povo deve em geral ser
considerada como uma conseqüência da maneira como o elemento guerreiro quebrou
nos nossos dias suas velhas barreiras artificiais… Nesse caso, a única questão é saber
se essa nova intensificação do elemento guerreiro é, no conjunto, salutar ou não para a
humanidade, questão à qual não seria mais fácil responder do que à da própria guerra.
Confiemo-las ambas aos filósofos. Mas pode-se adiantar a opinião de que os recursos
28
Em A era das revoluções, Eric Hobsbawm traça um quadro interessante das disposições políticas
dos países no contexto das guerras napoleônicas: “As outras potências antifrancesas [além da
Inglaterra] estavam engajadas em uma espécie menos assassina de luta. Todas elas esperavam
derrubar a Revolução Francesa, embora não à custa de suas próprias ambições políticas, mas depois
de 1792-5 isto se tornou claramente impraticável. A Áustria, cujos laços familiares com os Bourbon
foram reforçados pela ameaça francesa direta a suas possessões e áreas de influência na Itália, e a sua
posição de liderança na Alemanha, era o país mais consistentemente antifrancês, e tomou parte em
todas as principais coalizões contra França. A Rússia foi intermitentemente antifrancesa, passando à
guerra somente em 1795-1800, 1805-7 e 1812. A Prússia achava-se dividida entre uma simpatia a
favor do lado contra-revolucionário, uma desconfiança em relação à Áustria e suas próprias ambições
na Polônia e na Alemanha, que se beneficiavam da iniciativa francesa. De forma que entrou em guerra
contra a França apenas ocasionalmente e de uma maneira semi-independente: em 1792-5, 1806-7
(quando foi pulverizada) e 1813” (HOBSBAWM, 1977: 102).
29
Martin van Creveld, em The transformation of war, afirma que o povo é o terceiro elemento vital,
junto ao exército e ao Estado, na guerra. “Como postulado de Da guerra, o terceiro elemento vital da
guerra consiste no povo. Entre 1648 e 1789 juristas e especialistas militares entendiam que, desde que
a guerra se tornou uma questão de Estado, o povo deveria ser excluído para mais longe possível…
Contudo, Clausewitz percebeu a influência decisiva deste elemento após 1789. Assim a Trindade
clausewitziana consiste no povo, no exército e no governo” [tradução nossa] (CREVELD, 1991: 39-
40).
43
de uma guerra do povo poderiam ser empregados mais proveitosamente se servissem
para alimentar outros meios de combate. No entanto, não é necessário um exame
muito aprofundado para nos convencermos de que na sua grande maioria essas forças
não estão à nossa disposição e não podem ser utilizadas à vontade… quanto custa à
nação a resistência que todo o povo em armas pode oferecer? Mas: que influência
pode ter essa resistência? Quais são as suas condições, e como podemos nos servir
delas?” (CLAUSEWITZ, 1996: 669-670).
A cultura de Clausewitz não foi sua venda, que o impediu de ver o mundo
que se transformava: foi sua perspectiva para interpretá-lo. É inevitável dizer que
Clausewitz não foi como pensador um sujeito conservador; suas idéias estavam
absolutamente sintonizadas com a conjuntura política de sua época. Foi o manancial
de experiências que viveu contra o político-general Napoleão e os franceses a fonte
de suas reflexões – que devem ser predicadas como modernas e não defensoras de
um status quo do Antigo Regime. Portanto, não é difícil afirmar que foram seus
inimigos que lhes abriram os olhos para os novos tempos; para o que é a guerra e a
política, ainda que pessoalmente se mantivesse como um aristocrata.
A guerra moderna experimentada por Clausewitz deu-lhe matéria não apenas
para as ilustrações de suas idéias em Da guerra; mas foi a análise dos conflitos
vividos que possibilitou sua redação. No livro VII – A defesa, ao tratar da retirada de
um exército em desvantagem no campo de batalha, se refere a dois momentos
distintos na luta contra Napoleão: em 1812, na batalha de Borodino, junto às tropas
russas do czar Alexandre (1777-1825) e, em 1813, regressado ao exército prussiano,
lutando contra as já enfraquecidas forças de Napoleão:
“Se em 1812 os russos tivessem efetuado a sua retirada segundo um plano preciso,
eles teriam muito bem podido tomar direção de Kaluga a partir de Smolensk, quando a
tomaram unicamente a partir de Moscou. É possível que nessas condições Moscou
tivesse sido inteiramente poupada.
Pois em Borodino os franceses tinham uma força de cerca de 130.000 homens; não há
razões para crer que tivessem estado mais fortes a meio caminho de Kaluga se os
russos tivessem aceitado a batalha naquele lugar… Depois dos recontros de Smolensk,
44
Bonaparte dispunha de cerca de 160.000 homens; admitamos que nesse momento ele
tenha acreditado poder atrever-se a enviar um dos seus corpos sobre Moscou, antes
mesmo de iniciar uma grande batalha e que este destacamento fosse composto de
40.000 homens ter-lhe-iam restado 120.000 para enfrentar o exército principal dos
russos. Estes 120.000 homens só teriam sido aproximadamente 90.000 na batalha, por
conseguinte 40.000 a menos que em Borodino. E, conseqüência, os russos teriam tido
uma superioridade de 30.000 homens. Admitindo que Borodino nos serve de padrão, é
provável que esta superioridade lhes tivesse assegurado a vitória. A força relativa teria
sido apesar de tudo mais favorável aos russos do que foi em Borodino. Mas a retirada
russa não era fruto de um plano longamente meditado…
O que provoca ainda menos dúvida é que em 1813 Bonaparte teria podido evitar o
ataque de Paris, se tivesse tomado posição mais a leste, atrás do canal da Borgonha,
por exemplo, deixando só em Paris alguns milhares de homens ao mesmo tempo que
suas numerosas guardas nacionais. Os aliados nunca teriam tido coragem de dirigir
sobre Paris um corpo de 50.000 a 60.000 homens, sabendo que Bonaparte estava em
Auxerre com 100.000 homens. Inversamente, ninguém teria aconselhado um exército
aliado, na situação de Bonaparte, a abandonar o caminho da sua própria capital, se este
exército tivesse tido Bonaparte por adversário. Com uma superioridade semelhante,
ele não teria hesitado um único instante em marchar sobre a capital. Esta é a diferença
de resultado que a diferença moral pode ocasionar, mesmo quando as circunstâncias
são idênticas
30
” (CLAUSEWITZ, 1996: 661-662).
30
Um resumo informativo das guerras napoleônicas se encontra na obra História das guerras, em
artigo escrito por Marco Mondaini, dedicado ao tema. Dos casos citados acima – a invasão da Rússia
pelas tropas de Napoleão, em 1812, e sua defesa na França, em 1813 –, podemos citar a seguinte
passagem: “... a 24 de junho de 1812, um impressionante exército composto de algo em torno de
650.00 homens de 20 nações, falando 12 línguas, dá início à longa marcha sobre a Rússia,
encontrando pelo caminho imensas planícies desertas, totalmente queimadas pelo mujiques
(camponeses pobres) russos. Diante dessa política deliberada de terra arrasada, um esfomeado exército
napoleônico entra em 14 de setembro numa Moscou em chamas, concisa, não disposto a qualquer
espécie de negociação.
Diante disso, e com a sombria perspectiva do rigoroso inverno russo, Napoleão ordena a
retirada dos seus já esgotados exércitos. Esse retorno passaria a ser lembrado como um dos maiores
desastres da história militar mundial. Cercados pelos exércitos russos, com suprimentos de víveres
totalmente inadequados e sob um frio precoce de -20°C, apenas 100.000 conseguiram ultrapassar. Do
total de mortos, apenas 1/5 havia morrido nos campos de batalha. O restante padecera de fome, frio,
doenças, exaustão, além dos desertores e capturados.
Na verdade, o mito de que Napoleão teria sido derrotado pelo ‘General Inverno’ foi, em
grande parte, obra do próprio Napoleão a fim de justificar sua gigantesca derrota. Gigantesca derrota
esta, diretamente proporcional à sua ilimitada ambição. Ademais, nas intermináveis planícies russas, a
revolucionária estratégia da ofensiva veloz era completamente inócua, e tal fato foi muito bem
percebido pelo marechal Kutuzov, comandante das tropas russas. Depois de derrotado no avanço do
45
Napoleão não foi apenas o inimigo burguês e francês de um aristocrata
prussiano, foi seu modelo. A partir do contraste entre dois mundos que se
encontravam nos primeiros anos do século XIX, Clausewitz vislumbrou uma nova
condição para a guerra. O relato e a análise acima é um entre tantos casos que
permeiam sua obra. A posição política de Clausewitz e seu nacionalismo,
aparentemente, permaneceram intactos; ainda que a influência de pensadores como
Charles de Montesquieu (1689-1755) e Immanuel Kant (1724-1804) ampliassem seu
repertório, sua forma de ver as coisas ainda continuava genuinamente aristocrática.
A configuração do pensamento de Clausewitz, pós-1815, acompanha sua
interpretação de mundo, atravessada pelos valores aristocráticos, mas também pela
decadência de sua classe social. A posição política assumida pelo general revela um
ambíguo sentimento de admiração e repulsa pela Filosofia das Luzes e da Razão e
dos intelectuais que surgiam das classes burguesas. A Filosofia na Alemanha, assim
como na Inglaterra e na França, não era mais exclusiva dos nobres.
Como afirmamos, Clausewitz era um aristocrata com tendências liberais
bastante peculiares, pois rejeitava as práticas parlamentares e democráticas, mas via
no novo modelo de desenvolvimento econômico capitalista do Estado uma
possibilidade de avanço político – “o dinheiro deve ser considerado como um
lubrificante que, reduzindo todos os choques naturais, permite maior diversidade e
mobilidade de todas as forças” (ARON, 1986A: 62). Tornava-se, assim, um feroz
crítico de sua classe nobre. Esta seria decadente exatamente por não perceber as
mudanças advindas do processo revolucionário, tornando-se ociosa e um fardo para o
Estado, ainda que, na Prússia, o príncipe reservasse muitos cargos públicos para os
Grande Exército, Kutuzov ‘recorreu ao tempo, ao espaço e ao clima como aliados para exaurir
Napoleão como uma alternativa a derrotá-lo em combate’. Com o auxílio dessas ‘forças naturais’,
restava apenas perseguir as esgotadas tropas napoleônicas transformadas em verdadeiros ‘farrapos
humanos’.
Desde então, a situação do Império Francês e do poder napoleônico entram em declínio
acelerado. Por um lado, na volta da desastrosa Campanha Russa, Napoleão teve de concentrar suas
energias na repressão à tentativa de golpe de Estado encabeçada pelo general Malet. Por outro lado, a
partir de junho de 1813, teve mais uma vez de se contrapor militarmente a uma coligação de países
inimigos. Dirigidas pela velha rival Inglaterra, Prússia, Rússia e Áustria formam a Sexta Coalização
antinapoleônica” (MAGNOLI, 2006: 210-211).
46
membros da aristocracia. Em trecho de um texto escrito entre 1815 e 1818, intitulado
Umtriebe (Manobras subversivas), Clausewitz posiciona-se contra o parasitismo
aristocrático e a necessidade de mudança seguindo os novos tempos burgueses,
segundo a análise de Aron:
“As classes superiores são corrompidas, os funcionários da corte e do Estado o são
mais do que todos os outros” (CLAUSEWITZ, Bekenntnisse, fevereiro de 1812 apud
ARON, 1986a: 48).
“A nobreza se condenava ao declínio por sua maneira de viver, gastar muito e não
trabalhar. Por sua maneira de viver, trabalhar e poupar, a classe média, assim como o
campesinato, ganharam força em número e riqueza. Estando de fato mais próximas
umas das outras, unidas no interior do Estado, as classes entravam em conflito pelo
próprio fato da desigualdade de direitos e deveres que resultavam da história. Os
estudiosos e os filósofos que outrora pertenciam à nobreza emanavam da classe média.
Tornaram-se os porta-vozes desta última e dos camponeses. Inspiravam-se na
humanidade e seus direitos: os camponeses por seu número e a classe média por sua
indústria e cultura, representavam melhor a humanidade do que a nobreza. Assim, os
direitos da nobreza se apresentavam ‘como privilégios exorbitantes e sua posição no
Estado como uma verdadeira usurpação’” (ARON, 1986a: 61).
Seria inevitável, nesse sentido, uma aproximação com Alexis de Tocqueville
(1805-1859), autor de A democracia na América. Contudo, o francês era um
aristocrata ainda mais liberal que o prussiano, uma vez que se encantara pelo modelo
democrático. No entanto, esta relação não seria suficiente para se entender a cultura
aristocrática de Clausewitz. Como dissemos anteriormente, a Prússia do século XIX
ainda era mais nobre que burguesa. A aristocracia, mesmo que passasse a se inspirar
em alguns valores liberais, continuava ocupando o topo da hierarquia política. Para
Norbert Elias, por exemplo, o crescimento da produção intelectual da classe média
alemã nesta época – apontado na citação de Aron acima – se deve exatamente ao fato
de haver uma severa restrição aos grupos não-nobres de ocuparem cargos na política
dos Estados alemães. A formação desta intelligentsia era resultado de seu
afastamento político. Diferentemente do caso francês em que, desde o final do século
XVIII, a classe dominante era a burguesia:
47
“[A intelligentsia alemã] constituía um estrato muito distante da atividade política,
mal pensava em termos políticos, e apenas experimentalmente em termos nacionais;
sua legitimação consistia principalmente em suas realizações intelectuais, científicas
ou artísticas. Em contraposição a ela uma classe superior que nada ‘realiza’, no
sentido em que as outras o fazem, mas para cuja auto-imagem e autojustificação a
modelagem de seu comportamento característico é fundamental. E é nessa classe em
que pensa Kant quando fala de ser ‘civilizado a tal ponto que estamos
sobrecarregados’ de mero ‘decoro e decência social’, e de ‘analogia de moralidade
com amor à honra’. E é na polêmica entre o estrato da intelligentsia alemã da classe
média e a etiqueta da classe cortesã, superior e governante, que se origina o contraste
entre Kultur e Zivilisation” (ELIAS, 1994a: 28).
Não nos interessa aqui desenvolver a antítese entre Kultur e Zivilisation,
conceitos-chave na reflexão de Elias sobre a formação das sociedades modernas da
Europa, em especial a alemã. Contudo, vale a pena ressaltar que os processos
históricos passados por França e Inglaterra, de um lado, e Alemanha, de outro, são
absolutamente diferentes. Enquanto os primeiros Estados passaram por revoluções
burguesas, o segundo somente se formou como Estado unificado em 1871, sem
passar por uma transformação radical. A aristocracia alemã, de um modo geral, e a
prussiana, em particular, foi o núcleo cultural hegemônico da Alemanha no século
XIX. Clausewitz, por mais que se aproximasse dos pensamentos de Montesquieu e
Kant, e tivesse esse caráter liberal destacado por Aron, era ainda mais aristocrata que
burguês
31
. Entendia os novos tempos, mas assegurava-se de que não se podia
simplesmente abandonar a fidelidade de súdito ao monarca e doar o poder político do
Estado ao povo, mesmo que entendesse a importância da lealdade popular ao
príncipe. Pensava que os debates democráticos enfraqueciam o Estado em suas
posições nas relações externas com outros Estados – talvez porque a lógica militar se
31
Elias destaca ainda que os hábitos e o código de conduta da aristocracia guerreira alemã se
mantiveram por muito tempo, mesmo com o crescimento do capitalismo durante o século XIX: “Além
disso, a localização da Prússia, ameaçada como era de todos os lados, com fronteiras difíceis de
defender, possibilitando sempre a renovação da guerra e sua concomitante devastação no interior do
país, basicamente só permitia que os guerreiros fossem moderadamente civilizados. Sem dúvida,
também sob esse aspecto, a nobreza guerreira foi transformada com a crescente monopolização da
violência pelos reis e a estreitamente associada comercialização e monetarização da sociedade: mas
essa transformação no código da aristocracia prussiana ainda deixa os padrões militares predominando
de longe sobre os padrões civis da corte” (ELIAS, 1997: 68).
48
colocasse como um paradigma político para aquele que formulou a idéia de que a
guerra é a continuação da política por outros meios.
Aliás, a influência do Iluminismo francês e do Esclarecimento alemão no
pensamento de Clausewitz é relativa. Fora leitor de Kant e Montesquieu. Pretendeu
com Da guerra o mesmo que Montesquieu com O espírito das leis, segundo Aron,
mas não era partidário da intelligentsia alemã de sua época a quem acusava de se
deixar impressionar pela política e filosofia francesas, e que foram afobados na
adesão às idéias da Revolução Francesa:
“Evidentemente, Clausewitz critica os homens de cultura, culpados por terem
simpatizado com as idéias da Revolução e, numa primeira fase, com os próprios
franceses. Mas exprime também uma filosofia que, resultante do racionalismo das
Luzes (se refere muitas vezes ao gesunder Menschenverstand, ao senso comum), dá
ênfase às singularidades dos tempos e lugares. O Traité inteiro, como L’Esprit des
Lois tende a ultrapassar a antinomia do universal e do histórico” (ARON, 1986a: 63).
“A ambição de Clausewitz, assim como a de Montesquieu e a de todos os sociólogos,
é de tornar a história e a ação racional (meios adaptados aos fins) inteligíveis. Esta
inteligibilidade resulta de um vai-e-vem entre abstração e história ou conceito e
experiência vivida, típica do método clausewitziano” (ARON, 1986a: 342).
A influência de Montesquieu serviu inclusive para a estruturação de Da
guerra, assim como em O espírito das leis, alguns volumes são compostos por
capítulos curtos. Kant foi outro referencial do pensamento racional para Clausewitz,
segundo Aron, menor que Montesquieu; no entanto, parece enxergar, em duas obras
do alemão, fontes importantes para o pensamento de Clausewitz, mas não
determinantes
32
: um artigo sobre as relações entre teoria e prática (Uber den
32
No segundo capítulo dessa dissertação, analisaremos o conceito de “guerra” de Clausewitz e
traremos uma reflexão sobre a teoria política de alguns filósofos, procurando encaixar Da guerra em
um conjunto de obras que historicamente confeccionaram os conceitos modernos de “natureza
humana”, “política”, “Estado” e “guerra”. Com isso, abdicamos das relações teóricas entre
Clausewitz, Montesquieu e Kant e optamos por verificar a construção do conceito de “política” de
Thomas Hobbes, por entender ser este o primeiro a formulá-lo de forma moderna e dar às ações
violentas do homem – a guerra de todos os homens contra todos os homens – um papel decisivo na
organização da sociedade e do Estado Civil. Com isso, não ignoramos a importância de Montesquieu
49
Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugh aber für die Praxis) e a
Crítica da razão prática:
“Clausewitz leu o opúsculo de Kant sobre as relações entre teoria e prática? Certas
expressões incitam supor que sim. A relação entre as regras e o julgamento e o papel
atribuído ao tato do julgamento são semelhantes no opúsculo de Kant e no Traité… O
conceito de Wechselwirkung, ação recíproca, pertence, como sabemos à tábua
kantiana das categorias.
… Clausewitz conheceu provavelmente, pelo menos indiretamente, o pensamento
kantiano. Será que podemos ir além e ver nele um discípulo de Kant e discernir em
seu sistema a aplicação de um modo kantiano de pensamento? As razões de duvidar
ganham de longe, ao que me parece, dos argumentos a favor da tese.
“A moral clausewitziana, se podemos empregar este termo, não se insere
absolutamente nas categorias da Critique de la Raison Pratique” (ARON, 1986a:
338).
Não podemos afirmar, entretanto, que Clausewitz foi um pensador
absolutamente original e independente das referências das Luzes, mesmo porque,
ainda que criticamente, via no racionalismo da modernidade um valor importante
para se olhar o mundo. E foi exatamente no empirismo de suas experiências em vida,
na ação do combate, que pôde tirar os axiomas e fundamentos da guerra e buscar a
construção de uma teoria universal sobre um assunto que viveu intensamente.
Mas, além de pesquisador e cientista, se sentia realmente vivo quando estava
em combate. Para as pessoas próximas, Clausewitz começou a adoecer dos nervos e
a definhar quando parou com as suas atividades de soldado e se dedicou
exclusivamente ao ofício de pensar.
e Kant para o pensamento clausewitziano, mas como o objetivo desta dissertação não é a análise
filosófica de Da guerra, e sim construção histórica do conceito de “guerra”, entendemos não ser
possível realizar as duas reflexões.
50
Clausewitz morreu em 16 de novembro de 1831, de cólera. Para sua mulher
Marie, assim como os testemunhos médicos, morreu mais pelo estado de seus nervos
do que propriamente pela cólera, abalado por uma forte tristeza em sua alma. Talvez,
porque não conseguisse ver em curto prazo o alcance de sua inacabada obra, uma vez
que sua ambição – similar à de Montesquieu – não tivesse sido realizada, ou mesmo
porque via a Europa e, também, sua Prússia, passar por transformações que em breve
poderiam encerrar o modo de vida que ambigüamente desprezava e valorizava.
Enfim, Clausewitz morreu antes de ser reconhecido como um teórico e prático
general, fama que veio apenas quarenta anos mais tarde com Bismarck e Moltke.
51
Capítulo II: O conceito de guerra
52
Evidentemente todo conceito tem uma
história
Deleuze e Guattari
O sentido histórico de um conceito é, às vezes, mais profundo que a sua
definição e, outras vezes, mais superficial que a sua adoção pelo senso comum. A
palavra guerra carrega justamente esta ambigüidade. Todos sabem o que uma guerra
significa – mesmo aqueles que jamais vivenciaram uma –, mas apenas alguns se
propuseram a pensá-la, criando sistemas de explicação de sua natureza, inventando
teorias filosóficas, antropológicas e psicológicas. Entre os teóricos da guerra,
destaca-se Carl von Clausewitz.
Este, como foi apresentado no capítulo I, não viu as guerras de longe ou fora
um observador capaz de analisar as piores coisas que um homem pode fazer. Esteve
mais próximo do que isso. Foi um dos atores da guerra. Lutou contra um dos maiores
expoentes militares da História, Napoleão Bonaparte, e aprendeu o que é a guerra
moderna. A partir daí escreveu sua teoria.
Seu esforço rendeu a obra Vom Krieg (Da guerra) – provavelmente escrita
entre os anos de 1816 e 1830
33
. Esta, dividida em oito livros, apresenta uma série de
reflexões, tratando a guerra em seu conceito, em sua história, em suas formas táticas
e estratégicas e, por fim, em sua realidade
34
.
A guerra está definida – pelo menos em conceito – no primeiro capítulo do
primeiro livro de Da guerra, avaliada por Aron como “... a obra-prima do escritor”
(ARON, 1986a: 71), um dos últimos textos redigidos, entre 1829 e 1830. Assim, nos
interessaremos por este trecho da obra, mais especificamente por duas proposições
nevrálgicas na definição do conceito de “guerra
35
”:
33
“[Talvez] o Traité [como Aron chama Da guerra] tivesse sido redigido em diversos momentos,
entre 1816 e 1830.” (ARON, 1986a: 91).
34
Segundo o conceito de “guerra real” do próprio Clausewitz.
35
Em princípio, podemos aparentar certa letargia ao não nos ocuparmos de outras questões que
surgem não apenas ao longo de todos os oito livros da obra de Clausewitz, mas no próprio capítulo I
do Livro I. No entanto, por acreditarmos que tratar deste tema não é tarefa que se faz rapidamente –
nem mesmo a leitura da obra de Clausewitz o é, dado o profundo estilo prolixo de sua escrita –,
optamos pela análise histórica única e exclusivamente destas proposições, sendo a própria obra de
53
“A guerra nada mais é que um duelo em uma escala mais vasta” (CLAUSEWITZ,
1996: 7);
“A guerra é uma simples continuação da política por outros meios” (CLAUSEWITZ,
1996: 27).
A história de um conceito
36
não deve ser apenas o exercício etimológico ou
filológico de explicação de um termo qualquer, no nosso caso a explicação do
vocábulo guerra, ou em alemão, Krieg. Não que este trabalho seja pequeno, mas o
desafio desta dissertação não está propriamente no desvendamento da palavra
guerra
37
, mas na discussão histórica acerca da produção da guerra como conceito.
Isto significa, de um lado, entender o referencial teórico e, de outro lado, a cultura de
Clausewitz.
Segundo Anatole Rapoport, o referencial teórico e experimental de Clausewitz
era próprio da Europa, no período de transição do sistema internacional:
“A estrutura intelectual de Clausewitz manifesta-se com lucidez com que viu este
período como uma transição entre duas eras históricas. De um lado encontrava-se o
sistema internacional europeu de 1648-1789, que Clausewitz olhou sob uma
elucidativa perspectiva histórica. Do outro, o sistema internacional de 1815-1914, do
qual Clausewitz se tornou o profeta. Usando conceitos fundamentais do século XVIII,
lançou alicerces do edifício conceitual que dominou o XIX”.
Clausewitz a fonte de nossas pesquisas. Além disso, para Raymond Aron, este trecho da obra de
Clausewitz é o de maior propriedade do escritor: “Se, conforme penso, Clausewitz só dominou seu
próprio sistema no momento em que escrevia a versão atual do capítulo I, [do livro] 1…” (ARON,
1986a: 29).
36
Como o cuidado com os termos e conceitos, tanto de nossa língua vernácula quanta da Língua
Alemã, é matéria fundamental desta pesquisa, adotamos dois textos como fonte de nossas análises da
obra de Clausewitz, um é a tradução em português, feita pela tradutora Maria Teresa Ramos, para a
Editora brasileira Martins Fontes; o outro é a edição do século XIX, com a redação original, publicada
em suas obras completas Hinterlassene Werke.
37
O rigor teórico exige que tomemos cuidado com as palavras. O fato de não nos preocuparmos
primordialmente com a explicação etimológica da palavra “guerra” e seus correlatos, não significa que
não abordaremos algumas explicações dos vocábulos. Estas ainda assim servirão como base reflexiva
de algumas análises do próprio conceito de “guerra” de Clausewitz, como será visto adiante.
54
“Os agentes, no paradigma clausewitziano, das relações internacionais são… Estados
soberanos que, para todos os efeitos práticos, podem ser considerados como pessoas”
(Prefácio de Anatole Rapoport. CLAUSEWITZ, 1996: XVIII).
A conjunção entre a produção conceitual acerca da guerra e a experiência
vivida de guerras – de um autor como Clausewitz, que teve como fonte para seu
trabalho sua própria biografia militar – é a chave para a compreensão da guerra no
contexto da produção de Da guerra, em uma perspectiva histórica. A produção
histórica do conceito permite questionar os sentidos da guerra para o mundo
moderno, inferindo a própria noção que esta tem para a modernidade, além de
alimentar os debates teóricos que buscam a essência da guerra.
Para Clausewitz e seus contemporâneos aristocratas, o mundo que conheciam
estava desabando e sendo substituído de uma maneira tão rápida que precisariam de
muita atenção para perceber suas mudanças. O general prussiano parece ter
absorvido o momento histórico e a necessidade de se pensar a guerra em termos
diferentes daqueles que a tradição nobre prussiana sustentava
38
. A noção da virtude
guerreira se alterara, não cabia mais apenas aos nobres. Era necessário que alguém
perspicaz pudesse apontar para os novos tempos:
“A guerra é uma carreira precisa. E por mais gerais que sejam suas interferências, até
mesmo se todos os homens de uma nação aptos para o serviço abraçassem essa
carreira ela não deixaria de ser menos diversa e distinta das outras atividades humanas.
Ser atingido pelo espírito e pela essência dessa carreira, despertar, exercer e absorver
38
Clausewitz apontava criticamente para a obra de Heinrich Dietrich von Bülow, Lehrsätze des
neueren Krieges oder reine und angewandte Strategie aus dem Geist des neueren Kriegssystems,
hergeleited vom dem Verfasser des neueren Kriegssystems und des Feldzuges von 1800 [Teoremas da
guerra moderna ou estratégia pura e aplicada, tirados do Espírito da guerra moderna, pelo autor do
Sistema da guerra moderna e da Campanha de 1800]. “Bülow é o teórico que não apenas deduz as
regras da conduta das operações a partir das novas exigências de abastecimentos suscitadas pelo
armamento (descoberta da pólvora, donde os fuzis, os canhões, a necessidade não mais somente de
pão, mas de balas etc.). É também o homem que fundamenta sobre os progressos técnicos do
armamento uma teoria dos fatores do poder, uma perspectiva diplomática e, em última análise, uma
antecipação da paz perpétua segundo o sonho dos filósofos – sonho ao qual ele mesmo deixou de
acreditar após tê-lo transfigurado numa pretensa ciência. Contra todos aqueles – e que ainda subsitem
– que contam com o progresso técnico para conduzir a humanidade à paz, Clausewitz encarna a
sabedoria implacável ou a recusa da esperança do pensador sem ilusão: a guerra toma diversas formas
através do tempo sem mudar de natureza ou de essência. Os instrumentos, da lança às armas
nucleares, modificam os fenômenos guerreiros sem eliminar a própria guerra” (ARON 1986a: 76).
55
em si as forças chamadas a nela se manifestarem, aplicar nela toda a sua inteligência,
adquirir por seu intermédio a segurança e a facilidade devidas ao treino, desabrochar
todas as suas faculdades entregando-se a ela, passar da função de ser humano para a de
maquinismo, que nos é destinada, tais são no indivíduo as virtudes guerreiras do
exército.
Por mais que nos dediquemos a imaginar a existência do guerreiro e do soldado no
mesmo indivíduo, a nacionalizar cada vez mais as guerras, a fazer delas uma idéia tão
perfeita quanto se gostaria no sentido oposto ao das condições de outrora, jamais
aboliremos as características próprias à rotina. E, visto que é impossível, aqueles que
se consagram à guerra considerar-se-ão sempre, enquanto a ela se dedicarem, como
uma espécie de guia eminentemente apto a exprimir as ordens, as leis e os hábitos da
guerra. É com efeito o que acontece. Por mais decididos que estejamos a considerar a
guerra do mais elevado ponto de vista, cometeríamos um enorme erro em desprezar
este ‘espírito de unidade’ que pode e deve existir em maior ou menor grau em
qualquer exército. Este espírito de unidade forma de certo modo o cimento das forças
naturais que abrem caminho naquilo a que chamamos a virtude guerreira do exército.
Graças ao espírito de unidade as virtudes guerreiras cristalizam-se mais facilmente”
(CLAUSEWITZ, 1996: 189-190).
E é nessa apreensão do que se tornava a guerra, que Clausewitz escreveu sua
tese: A guerra possui uma essência? Para o general, sim, e os tempos modernos a
manifestavam de um modo que apenas um filósofo empirista amparado em métodos
de observação experimental e em generalizações conceituais poderia estabelecer um
conhecimento teórico universal.
Mas, ao tentar entender o conceito de Clausewitz, tenderíamos a aceitá-lo como
verdadeiro?
O estudo das essências sempre foi um trabalho dos metafísicos. A análise de
um estudo desta perspectiva, também, pois a busca do conhecimento da origem ou do
ser das coisas é, em qualquer circunstância, um exercício sem fim. Umberto Eco, em
Kant e o ornitorrinco, ironizou esta tarefa inglória de filósofos e de historiadores da
filosofia:
56
“Fazer perguntas sobre o fundamento do ser é como fazer perguntas sobre o
fundamento do fundamento, e depois sobre o fundamento do fundamento do
fundamento, numa regressão infinita: quando, extenuados, paramos, estamos de novo e
já no próprio fundamento da nossa pergunta” (ECO, 1998: 25).
39
Os pesquisadores deste campo procuram, antes de tudo, entender o autor
dentro de sua própria obra e chegar à tautológica constatação de que a partir do texto
analisado não há contradições e, por isso mesmo, as idéias ali expostas, logicamente
relacionadas, nos levam a uma verdade incontestável. Assim, pesquisador e objeto
pesquisado produzem uma mesma verdade.
O trabalho do historiador – e não nos referimos aos historiadores da filosofia
– está para além da constatação. O texto, ou melhor, a fonte pesquisada não é um
limite, mas um universo de meios para a discussão e a desconstrução do objeto
pesquisado. Segundo Deleuze e Guattari, os filósofos preocuparam-se pouco com o
conceito daquilo que produziram como noções, idéias ou fatos. “Eles preferiram
considerá-lo como um conhecimento ou uma representação dados, que se explicam
por faculdades capazes de formá-lo… ou de utilizá-los. Mas o conceito não é dado, é
criado…” (DELEUZE, 1992: 20).
A definição do ser, da coisa em si mesma, não é para o historiador uma
verdade universal. Um conceito é histórico e culturalmente produzido e, portanto,
“… é… ao mesmo tempo absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes,
aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe
deva resolver, mas absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o
plano, pelas condições que impõe ao problema” (DELEUZE, 1992: 33-34).
39
“Em O que é a metafísica?, Heidegger nos lembra que perceber a totalidade do ente em si é
diferente de sentir-se no meio do ente em sua totalidade. O primeiro é impossível, o segundo acontece
com freqüência. E, como prova de que isto ocorre, cita os estados de tédio (que se aplicam ao ente na
sua totalidade)…” (ECO, 1998: 375)
57
O sentido de um conceito está em sua análise histórica e no valor que adquire
em determinados ciclos sociais, de forma a estar sempre comprometido com certo
universo de significados culturais, mesmo que este não seja homogêneo. Nietzsche,
em Genealogia da moral, ao tratar o conceito de “bom”, nos orienta para termos
cautela ao estudarmos a construção dos conceitos que nos propomos a analisar,
procurando observar que um vocábulo nem sempre tem o mesmo significado, ou
seja, pode sofrer diversas valorações em diversos contextos histórico-culturais:
“Todo o respeito, portanto, aos bons espíritos que acaso habitem esses historiadores
da moral! Mas infelizmente é certo que lhes falta o próprio espírito histórico, que
foram abandonados precisamente pelos bons espíritos da história! Todos eles
pensam, como é velho costume entre filósofos, de maneira essencialmente a-
histórica; quanto a isso não há dúvida. O caráter tosco da sua genealogia da moral se
evidencia já no início, quando se trata de investigar a origem do conceito e do juízo
‘bom’” (NIETZSCHE, 1998: 18).
De um lado, a história conceitual exige rigor ao abordar um conceito. Sempre
há contexto, este não pode ser desprezado jamais. De outro, a mesma história obriga-
nos a abdicar de qualquer juízo conceitual prévio.
A suspensão de toda e qualquer noção tida como verdade, como forma de
evitar este possível problema e ser julgado mais pelas conclusões do que
propriamente pelo desenvolvimento de reflexões e, ainda sim, perceber seu sentido e
validade dentro de um determinado universo cultural, é um expediente seguro para
todo e qualquer pesquisador que opte pela história conceitual. Destarte, discutiremos
o conceito
40
de “guerra”, sem nos imaginarmos toscos ao discorrer sobre o assunto.
Para Reinhart Koselleck, há três grupos de compreensão conceitual: um que
abarca os conceitos tradicionais da doutrina aristotélica, em que se percebe a
40
“Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem, portanto,
uma cifra. É uma multiplicidade, embora nem toda multiplicidade seja conceitual. Não há conceito de
um só componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo qual uma filosofia ‘começa’, possui
vários componentes, já que não é evidente que a filosofia deva ter um começo e que, se ela determina
um, deve acrescentar-lhe um ponto de vista ou uma razão” (DELEUZE, 1992: 27).
58
permanência de seus significados; outro que, ao longo do tempo, tem os conteúdos
dos conceitos que reúne alterados. “Pense-se na diversidade de sentido do conceito
de ‘história’… ou então, pense-se ainda em ‘classe’” (KOSELLECK, 2006: 106-
107), e há ainda um terceiro grupo de conceitos: o dos neologismos.
Koselleck entende ser possível estabelecer articulações, rupturas e transições,
dado que um conceito pode se deslocar conceitualmente e, não necessariamente,
fazê-lo socialmente
41
. Utiliza como exemplo a história do conceito de “democracia”,
mas poderíamos fazer (e tentaremos fazer), analogamente, com o conceito de
“guerra”, objeto desta dissertação:
“Assim, a história do conceito “democracia” pode ser considerada sob os três
aspectos. A antiga democracia como forma de constitucional e possível da polis: ela
conhece determinações, procedimentos ou regularidades que são encontradas ainda
hoje na democracia. No século XVIII, o conceito de democracia foi utilizado para
designar novas formas de organização dos grandes Estados Modernos. No que diz
respeito ao governo das leis ou ao princípio de igualdade, os velhos significados são
retomados e modificados… Finalmente, ‘democracia’ se torna um arquilexema, um
conceito generalizante…, tomando o lugar de ‘república’ (politeia)…”
(
KOSELLECK, 2006: 107).
Ao produzir um conceito, o autor está comprometido com o seu contexto, mas
isto não implica estar determinado por ele, ainda que as experiências de vida sejam o
fundamento do pensamento de Clausewitz, não só pelos exemplos históricos que
ilustram suas idéias, mas a sua própria causa. Sua teoria avança conceitualmente para
além da conjuntura empírica de sua época. A definição de guerra é, para Clausewitz,
atemporal. Nosso trabalho é pesquisar seu significado, que é historicamente
construído, ainda que as máximas de Da guerra nos levem a pensar diferente:
41
“A história conceitual põe em evidencia, portanto, a estratificação dos significados de um mesmo
conceito em épocas diferentes. Com isso ela ultrapassa a alternativa estreita entre diacronia ou
sincronia, passando a remeter à possibilidade de simultaneidade e não simultaneidade que pode estar
contida em um conceito. Dito de outra maneira, ela problematiza algo que faz parte das premissas
teóricas da história social, ao avaliar as diferenças de curto, médio ou longo prazos, ao sopesar as
diferenças entre acontecimentos e estruturas. A profundidade histórica de um conceito, que não é
idêntica à seqüência cronológica de seus significados, ganha com isso uma exigência sistemática, a
qual toda investigação de cunho social e histórico deve ter em conta.” (KOSELLECK, 2006: 115).
59
“Não comecemos por uma definição da guerra, difícil e pedante; limitemo-nos à sua
essência, ao duelo. A guerra nada mais que um duelo em uma escala mais vasta”
(CLAUSEWITZ, 1996: 7).
42
De forma simples, Clausewitz nos mostra a essência da guerra. Isto é, a
guerra é um duelo.
Duelo em Alemão é Zweikampf. Esta palavra, como muitas da Língua
Germânica, vem da aglutinação de duas outras palavras, Zwei e Kampf, que
significam respectivamente dois e luta. Numa definição simples, em nossa Língua
Portuguesa, a palavra luta vem do latim lucta e significa combate corpo a corpo, sem
armas, entre dois atletas que, limitados por regras, procuram derrubar um ao outro, e
não, necessariamente, destruí-lo. Para enfatizar o combate entre dois contendores, e
chegarmos à idéia de duelo, a Língua Alemã utiliza como prefixo a Kampf a palavra
Zwei. O próprio termo duelo da Língua Portuguesa – levando em conta seu radical
duo – indica o confronto entre dois sujeitos. Ou seja, o termo luta, estritamente
falando, pode ser entendido também como algo individual; por exemplo, a luta
interna de um homem contra suas paixões e desejos moralmente prejudiciais,
segundo o juízo de sua razão. Mesmo os termos duelo ou Zweikampf não indicam
decisivamente que o confronto entre dois indivíduos deve resultar na aniquilação
total de um e a vitória triunfante do outro.
Segundo Norbert Elias, ao abordar os valores da sociedade alemã, a prática
do duelo era comum entre os jovens aristocratas prussianos do século XVIII e XIX,
como elemento fundamental do código social dessa cultura
43
, ou seja, dentro do
42
“Wir wollen hier erst in eine schwerfällige publizistische Definition des Krieges hineinsteigen,
sondern uns an das Element desselben halten, an den Zweikampf. Der Krieg ist nichts als ein
ermeiterter Zweikampf
42
” (CLAUSEWITZ, 1832: 3). Pretendemos aqui pesquisar o conceito de
“guerra” na obra de Clausewitz e, como havíamos dito, sua definição ontológica encontra-se no Livro
I – a definição em questão reaparece em outros momentos de toda a obra, como nos livros II e VIII.
Contudo, O Livro I é o texto per excellence de Clausewitz no que consiste a sua definição do conceito
de “guerra”.
43
Segundo Elias, o próprio pensamento de Nietzsche trata deste universo cultural do duelo; para ele a
obra de Nietzsche dialoga diretamente com a prática nobre e “boa” do ser guerreiro dos duelos:
“Acredito poder interpretar o latim bônus como ‘o guerreiro’, desde que esteja certo ao derivar bônus
60
contexto histórico do próprio Clausewitz, a noção de duelo estava para além da
guerra como atividade. O duelo servia como experiência social, dando significados e
valores para determinados segmentos sociais alemães:
“Aí, sobretudo na Prússia e na Áustria, o código de honra dos guerreiros – a obrigação
de arriscar a vida em um duelo para provar que se é digno de pertencer à elite social,
àquela que possui ‘honra’ – manteve seu papel crucial até as primeiras décadas do
século XX” (ELIAS, 1997: 57).
Nesse sentido, não seria estranho pensar a guerra exclusivamente como um
ritual cultural, mesmo para Clausewitz, segundo o que vimos sobre o termo duelo, e
o significado semântico e social que esse pode ter.
Isso, se tomarmos cultura por sua definição mais simples: um conjunto de
hábitos, rituais e costumes de um determinado grupo étnico homogêneo (e sabemos
que Elias não entende cultura desta maneira simplória). John Keegan, crítico de
Clausewitz, entende a guerra como uma expressão cultural e, talvez, até tenha razão.
Todavia, se lermos o conceito de “guerra” de Clausewitz apenas por esta abordagem,
é possível que não alcancemos seu significado histórico.
Keegan, ao mesmo tempo em que definia o conceito de “guerra”, fazia a
seguinte crítica ao conceito de Clausewitz:
“Para nos afastarmos da pregação de Clausewitz [de que a guerra é a continuação
política por outros meios] não precisamos acreditar, como Margaret Mead, que a
guerra é uma ‘invenção’. Nem precisamos estudar os meios de alterarmos nossa
herança genética, um processo que leva intrinsecamente ao fracasso. Não precisamos
buscar a libertação de nossas circunstâncias materiais… Tudo o que precisamos aceitar
que… a guerra tornou-se um hábito” (KEEGAN, 1995: 397).
de um mais antigo duonus (compare-se bellum=duelum=duen-lum, no qual me parece conservado o
duonus). Bônus, portanto como homem da disputa, da dissensão (duo), como o guerreiro: percebe-se o
que na Roma antiga constituía a ‘bondade’ de um homem. Mesmo o nosso alemão Gut: não
significaria ‘o divino’ [den Göttlichen], o homem ‘de linhagem divina’ [göttlichen Geschlechts]? E
não seria idêntico ao nome do povo (originalmente da nobreza), os godos [Goten]?” (NIETZSCHE,
1998: 23).
61
Poderíamos supor uma guerra desta forma? Simplesmente como um hábito?
Reduzindo-a a um aspecto exclusivamente antropológico? É possível que sim.
Porém, se levarmos em conta o contexto cultural do próprio Clausewitz (entendendo
cultura como um modo de vida dinâmico e heterogêneo) e a construção histórica do
conceito de “guerra”, conseguiremos nos afastar de uma suposta contradição da
teoria clausewitziana.
Clausewitz percebeu a possível fragilidade de sua proposição, pois, se a
guerra
44
é um duelo, este tem objetivos.
“Cada um tenta, por meio de sua força física, submeter o outro à sua vontade; o seu
objetivo imediato é abater o adversário a fim de torná-lo incapaz de toda e qualquer
resistência” (CLAUSEWITZ, 1996: 7).
45
Assim,
“A guerra é, pois, um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à
nossa vontade” (CLAUSEWITZ, 1996: 3).
O acréscimo aqui à proposição inicial não é apenas a de que o duelo seja
violento. A violência está implícita na própria idéia de duelo; mesmo que tenhamos
duelos não violentos, a prerrogativa para tal é a de que um indivíduo vença o seu
oponente, ou seja, o prive do sucesso da disputa, pois este caberá a apenas um dos
dois contendores. E não há violência maior do que privar alguém de sua vontade. E é
exatamente a noção de vontade (Wille) que modula a proposição de Clausewitz de
modo mais rigoroso:
44
Não cansaremos o leitor com uma exposição longa e enfadonha das origens etimológicas dos
termos guerra e Krieg, já basta o que foi feito aqui com os termos luta e Kampf – esta exposição foi
feita apenas por nos ser favorável na discussão e definição do conceito de “guerra” em Clausewitz.
Mas os vocábulos são relevantes, afinal, são eles que estão sendo conceituados.
45
Ver também Livro II: “No sentido estrito, a guerra é uma luta. Com efeito, a luta é o único princípio
atuante desta atividade tão variada que, num sentido mais vasto, se chama guerra” (CLAUSEWITZ,
1996: 91).
62
“A violência – isto é, a violência física (uma vez que a violência moral não existe fora
dos conceitos de Estado e Lei) – constitui, portanto, o meio, o fim será impor a nossa
vontade ao inimigo. Para se atingir com total segurança este fim, tem de se desarmar o
inimigo, sendo este desarmamento, por definição, o objetivo propriamente dito das
operações de guerra. Acaba por vir a constituir o próprio fim, que afasta, por assim
dizer, como se tratasse de algo que não fizesse parte da própria guerra”
(CLAUSEWITZ, 1996: 8)
.
A passagem acima não é absolutamente original. Basta recordarmos o
capítulo XIII de Leviatã, em que Thomas Hobbes (1588-1679) expõe a condição
natural do homem, ou seja, sua essência, para percebermos a filiação do pensamento
de Clausewitz ao do contratualista inglês e notar a origem teórica de seu conceito
metafísico de “guerra”
46
:
“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito…
Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de
atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo
tempo em que é impossível ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no
caminho para seu fim (que é principalmente sua conservação e, às vezes, seu próprio
deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro… Com isto se torna
manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder capaz de
mantê-los a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama
guerra… Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele
lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente
conhecida… a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida
disposição para tal, durante todo o tempo que não há garantia do contrário. Todo o
tempo restante é de paz” (HOBBES, 1979: 75, 76, 77 e 78).
Certo de que esta relação é válida, assegurado o fundamento primeiro da guerra
– ainda que metafísico – e afastada a crítica da possível contradição intrínseca ao
46
Mais uma vez, não afirmamos com isso que a teoria de Clausewitz seja deliberadamente uma
continuação do pensamento hobbesiano, mas, ao compreendermos os pressupostos do conceito de
“guerra”, percebemos a relação entre os dois autores.
63
próprio texto de Clausewitz, dois aspectos geram curiosidade
47
. O primeiro é a
ênfase dada ao fator da violência como princípio legítimo da guerra, e o segundo é o
fim da guerra.
Quanto ao primeiro aspecto, o general prussiano faz uma distinção entre dois
tipos de violência: a física e a moral, sendo apenas a física critério para a guerra. A
outra, a violência moral, não serve para tal fim, “… uma vez que a violência moral
não existe fora dos conceitos de Estado e Lei”.
Raymond Aron trata deste assunto em pelo menos dois capítulos de sua obra
Paz e guerra entre as nações. Sendo os Estados corpos políticos, dentro desses
Estados se constituem regimes de leis determinantes para que as práticas sociais
sejam normatizadas. Além disso, as múltiplas conjunções culturais desse corpo
político valoram julgamentos morais de suas atitudes internas, algo que não poderia
ser feito fora dele:
“O Estado é uma personalidade – no sentido jurídico e também no sentido moral e
histórico. Como personalidade, tem uma vontade própria (Wille) – a mais autêntica de
todas as vontades… Se o Estado é uma personalidade, disto resulta a pluralidade dos
Estados, necessária e conforme a razão (Vernuft-gemässe). ‘Da mesma forma como
entre os homens o eu pressupõe a existência do não-eu, entre os Estados é igual… A
guerra e a administração da justiça são tarefas primordiais mesmo do Estado bárbaro
mais grosseiro… o ideal de um Estado que abranja toda a humanidade não é um
ideal’” (CORNELLIUS, 1872).
48
Contudo, esse é um ponto de difícil apreciação; uma vez que parte do
reconhecimento da teoria de Clausewitz, vem de sua atenção às grandezas morais e
da importância que estas têm na guerra, como é exposto nos capítulos III e IV do
Livro III e mencionado no capítulo III, do Livro II de Da guerra
49
. Clausewitz
47
Observaremos estes aspectos separadamente apenas para facilitar o entendimento do assunto, pois,
de fato, são interdependentes.
48
Apud ARON, 2002: 711-712.
49
“Temos de voltar a este tema mencionado no capítulo III do livro II, encontrando-se as grandezas
morais entre os mais importantes elementos da guerra. É o espírito que impregna toda a guerra. Ele
impõe-se antecipadamente à vontade que guia e move toda a massa de forças… O espírito, assim
64
estaria se contradizendo? Pois a Definição dada no capítulo I do Livro é enfática: não
há moral na guerra! Poderia ser apenas um problema de tradução? Pois o termo
“moral
50
” pode ter dois significados próximos, mas sutilmente distintos: o primeiro, e
já apresentado acima, é o mesmo de ética, ou seja, guiar-se por juízos de valores que
estabelecem o bom e o mau
51
, normatizando a conduta humana; o segundo é relativo
ao domínio espiritual, ou, ainda, a força psicológica e a disposição, que de certa
forma caracteriza o sujeito virtuoso. Mesmo que próximas, há uma leve diferença,
uma vez que o sujeito virtuoso pode ser entendido como aquele que está para além da
ética universal, como Nietzsche apresentou em Além de bem e mal:
“Os nobres e bravos… estão muito longe da moral que vê o sinal distintivo do que é a
moral na compaixão… a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical
hostilidade e ironia frente à ‘abnegação’ pertencem tão claramente à moral nobre
quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o ‘coração quente’”
(NIETZSCHE, 2001b: 173).
Assim, conseguiríamos estabelecer que, no caso da Definição, a moral é
definida pelo conjunto de normas que controlam a conduta humana e, desse modo,
“… não existe fora dos conceitos de Estado e Lei”. No caso da importância das
grandezas morais na guerra, seu significado é o da presença espiritual, da força
psicológica, em suma, da virtude guerreira do exército e de seu general:
“[Os principais poderes morais]… são os seguintes: os talentos do chefe de guerra, as
virtudes guerreiras do exército e o seu sentimento nacional. Ninguém pode determinar
de uma maneira geral qual é o maior desses valores, pois já é difícil dizer o que quer
que seja da sua força e muito mais difícil ainda compará-los uns aos outros”
(CLAUSEWITZ, 1996: 187).
como qualquer qualidade moral do exército, de um general, dos governos, o estado de espírito da
população onde a guerra se desenrola, o efeito moral de uma vitória ou de uma derrota, são fatores de
natureza muito diferente e que, relativamente à nossa finalidade e à nossa situação, podem exercer
uma influência também ela muito diferente” (CLAUSEWITZ, 1996:183).
50
A publicação Hinterlassene Werke des Generals Carl von Clausewitz über Krieg und Kriegführung,
Erster, de 1832, traz o mesmo termo no texto da Definição do capítulo I, do Livro I e nos títulos dos
capítulos III e IV, do livro III: “… denn eine moralische giebt es ausser dem Begrieffe die Staates und
Gesetz nicht” (CLAUSEWITZ, 1832: 3); “Moralische Gröβen” (“Grandezas morais”) e “Die
moralische Hauptpotenzen” (“As principais potências morais”).
51
Ver o verbete “moral” em ABBAGNANO, 2007: 795.
65
Desse modo, a noção de “moral” aqui é aquela que tem como significado o
ânimo, a determinação, a Wille. Além disso, não podemos esquecer que, segundo
Aron, o capítulo I do Livro I foi escrito após os outros, quando Clausewitz teve o
maior domínio sobre seu pensamento
52
. Sabia bem a diferença entre os significados
do conceito de “moral” e pôde atribuir à guerra uma condição amoral, mas não
imoral, de modo que o valor em questão estava para além dos princípios éticos
reguladores da vida social, podendo se identificar muito mais com a determinação
dos sujeitos envolvidos na guerra (Estado, povo e exército).
“A virtude guerreira é para as partes aquilo que o gênio do comandante é para o todo…
O comandante é eleito proporcionalmente à reputação e excelência das suas
qualidades; os mais eminentes chefes das largas massas são selecionados depois de um
minucioso exame… É justamente o papel que desempenham as qualidades naturais de
um povo preparado para a guerra: a valentia, a habilidade, a resistência e o
entusiasmo” (CLAUSEWITZ, 1996: 191).
Se o problema acima parece estar resolvido, o segundo objeto de análise
recoloca-nos a dificuldade de compreensão do pensamento de Clausewitz, pois,
como havíamos pensado, a vontade é o fim e não é a guerra, embora seja a
motivação para sua prática, o que nos leva a entender que há uma separação entre a
vontade (Wille) para guerra e a própria guerra em si. Novamente, poderíamos dizer
que Clausewitz se contradisse. Se a guerra é um ato de violência destinado a
submeter o outro à nossa vontade, como a vontade é um fim fora da guerra? Ainda
agora que chegamos à conclusão de que o ânimo dos sujeitos envolvidos é um
fundamento determinante para a guerra.
Para evitar esta apressada conclusão, bastaria resgatarmos a tese inicial de
que a guerra é um duelo, e a seguinte seria complementar à primeira, mas não a
substituiria. Pois, ainda que haja esta vontade, ela se coloca na disposição de lutar
por uma finalidade e não como a própria motivação do combatente. A vontade de se
iniciar a guerra é política. A determinação de quem guerreia é de outra natureza.
52
Ver página 53 e nota 36 desta dissertação.
66
Nesse caso, o continuum – política e guerra – precisa ser separado para uma análise
mais pormenorizada dos conceitos que o envolvem. Trataremos deste assunto em
breve, antes, retomemos a primeira inquietação acerca da guerra
53
; esta somente pode
ser pensada no âmbito da violência física e jamais da moral.
A inspiração maquiaveliana
54
nesse caso é notável, já que Clausewitz opta por
uma reflexão absolutamente empírica e crua da guerra. Anatole Rapoport também
entende a aproximação entre esses dois pensadores, ao relacionar os contextos
políticos europeus de Maquiavel e de Clausewitz:
“O século 1815-1914 é convencionalmente… descrito como um século de relativa
paz… Vários séculos antes houve uma era tranqüila na Itália, quando as guerras entre
as cidades-estados mercantis… eram quase totalmente isentas de sangue… Essa era
terminou quando os franceses invadiram a Itália, em 1494, e deram pouca importância
ao ‘sistema’, muito à maneira como procedeu Napoleão três séculos mais tarde.
Alguns anos após a invasão francesa, expunha Maquiavel as mesmas ‘lições’ que
Clausewitz viria expor três séculos depois” (Prefácio de Anatole Rapoport.
CLAUSEWITZ, 1996: XXIX e XXX).
53
É notável que as duas inquietações destacadas mais do que se relacionam, se interdependem. Os
códigos morais de um Estado, à época de Clausewitz, eram frutos do povo que compunham o próprio
Estado e, este, era entendido como uma massa homogênea, por isso corpo político. As vontades desse
povo-Estado não se referiam necessariamente às vontades particulares, mas coletivas e, portanto,
moralmente legítimas. Sem dúvida que, para outro Estado, tal vontade poderia ser vista como ilegal,
pois este teria outro código moral por ser exatamente outro povo. Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), em seu Do contrato social aborda o tema: “Não sendo o Estado ou a Cidade mais que uma
pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é
de sua própria conservação, torna-se-lhe necessária uma força universal e compulsiva para mover e
dispor cada parte da maneira mais conveniente a todos” e “ ... o Estado deve dar a si mesmo uma certa
base para ter solidez, para resistir aos reveses, que não deixará de experimentar, e aos esforços a que
estará obrigado para sustentar-se, pois todos os povos têm uma espécie de força centrífuga pela qual
agem continuamente uns contra os outros e tendem a crescer a expensas de seus vizinhos, como os
turbilhões de Descartes. Eis como os fracos arriscam a ser em breve devorados e nenhum poderá de
forma alguma se conservar senão se colocando, juntamente com todos, numa espécie de equilíbrio que
torna mais ou menos igual a compreensão em todos os pontos” (ROUSSEAU, 1979: 48 e 63).
54
Nicolau Maquiavel (1469-1527), ao assegurar que seu objetivo é legítimo ao tratar dos principados
e das formas de manutenção do poder do governante, diz o seguinte: “… como é meu intento escrever
coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das
coisas, do pelo que delas se possa imaginar… Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por
que se deveria viver, que quem se preocupar com o que deveria fazer em vez do que se faz aprende
antes a ruína própria, do que o modo de se preservar; e um homem que quiser fazer profissão de
bondade é natural que se arruíne entre tantos que são maus” (MAQUIAVEL, 1979: 63).
67
Se Clausewitz optou em primeiro lugar por uma definição metafísica da
guerra, não foi porque esta criaria uma idealidade utópica para o conceito, e sim por
dar-lhe um fundamento tão abrangente que não ignoraria jamais as mazelas que a
guerra, em qualquer situação, produziria. Somente assim, em vísceras, a guerra
poderia aparecer em sua realidade. Destarte, expressou sua desconfiança contra
qualquer um que pudesse propor formas pacíficas de resolver os conflitos bélicos:
“As almas filantrópicas poderiam então facilmente julgar que existe uma maneira
artificial de desarmar e derrotar o adversário sem verter demasiado sangue, e que é
para isso que tende a verdadeira arte da guerra. Por mais desejável que isso pareça, é
um erro que é preciso eliminar” (CLAUSEWITZ, 1996: 8).
55
Além da influência de Maquiavel para se ponderar apenas a realidade,
Clausewitz parecia desdenhar das arquitetações militares que buscavam, através de
meios nobres, diminuir a quantidade de sangue derramado em uma guerra. Manuais
sobre a guerra, observando-a como arte, foram escritos antes de Da guerra.
Maquiavel tinha um
56
e, se talvez pudesse ter lido o de Clausewitz, orgulhar-se-ia de
si. Assim como Maquiavel fez da política uma ciência, Clausewitz, talvez, tentou
transformar o conhecimento teórico, tático e estratégico da guerra para a mesma
condição.
“A diferença essencial reside no fato de que a guerra não é uma atividade da vontade
aplicada a uma matéria inerte, como é o caso das artes mecânicas, nem à matéria viva,
mas sim passiva e submissa, como é o caso da sensibilidade e do espírito humano… E,
no entanto, foi precisamente às artes mecânicas que se quis assimilar a arte da
guerra… Será que um conflito do elemento vivo como o que se vê constituir e resolver
na guerra está submetido a leis gerais e será que estas podem fornecer uma regra de
55
Ver nota anterior.
56
“As idéias de Clausewitz não eram inteiramente originais, como ele mesmo admitia. Maquiavel,
disse ele, tinha um raciocínio muito correto em assuntos militares. Tratava-se de um elogio tímido. A
arte da guerra, que teve 21 edições apenas no século XVI, foi um texto revolucionário, por ser o
primeiro manual que ligou diretamente o guerrear com a arte de governar. Escritores clássicos
anteriores, como Fílon, Políbio e Vegécio, tinham meramente descrito como os assuntos militares
podiam ser regulados da melhor maneira. Maquiavel demonstrou como um exército bem
organizado… poderia realizar os objetivos de um governante. Isso foi de enorme valor para os chefes
de Estado” (KEEGAN, 1995: 364).
68
conduta útil à ação? É o que esta obra em parte se propõe a examinar”
(CLAUSEWITZ, 1996: 127-128).
Se Clausewitz tentou transformar o conhecimento da guerra numa ciência
57
,
essa deveria ter seu próprio estatuto epistemológico. Como já adiantamos em nossa
introdução, o século XIX foi o momento de desencantamento do mundo. As esferas
do conhecimento se tornaram independentes (pelo menos, em teoria), com o status
de ciências. Logo, estas deveriam estar imunizadas contra os valores morais alheios a
elas. O objetivo da ciência, segundo o discurso comum do século XIX, era fazer
conhecer as coisas como teórica e empiricamente são. Desse modo, não competia ao
general dizer o que era bem ou mal na guerra, ou ainda que guerra fosse justa ou
injusta, mas dizer o que a guerra era em sua anatomia.
“Num assunto tão perigoso como é a guerra, os erros devidos à bondade da alma são
precisamente a pior das coisas… Repetimos, pois, a nossa afirmação: a guerra é um
ato de violência e não há nenhum limite para a manifestação dessa violência”
(CLAUSEWITZ, 1996: 8-10).
Como as ciências do século estavam baseadas em princípios epistemológicos
empíricos, a teoria da guerra de Clausewitz não poderia fugir à regra. Em primeiro
lugar, já havia definido seu estatuto ontológico: “a guerra é um duelo”; em segundo
lugar, estabeleceu a medida para avaliar os eventos: a violência física empregada.
O laboratório de Clausewitz foi sua rica experiência militar. Portanto, não
haveria lugar na guerra para “almas filantrópicas”. Para o general prussiano, como os
cientistas do século XIX, a guerra somente pode ser pensada no plano da realidade
empírica
58
:
57
Sobre a guerra como ciência, Aron aponta para o Barão Antoine-Henri de Jomini (1779-1869) e sua
obra Précis de l’art de la guerre, de 1838, o qual também destaca como um dos grandes inspiradores
do século XX, mas distante de Clausewitz: “… Jomini e Clausewitz. O primeiro, menos perigoso do
que o prussiano, quisera reduzir a conduta da guerra a uma ciência: os princípios da estratégia
permaneceriam imutáveis. A manobra sobre linhas interiores, segundo ele, torna-se o segredo único e
constante da vitória” (ARON, 1986b: 8). Ver também JOMINI, 1949.
58
O título do primeiro capítulo do Livro VIII é Absoluter und wirklicher Krieg, em nossa tradução
“Guerra absoluta e verdadeira”. O primeiro tipo de guerra foi conceituado, equivocadamente, como
guerra total (o conceito de absoluto diz-nos outra coisa) e a guerra verdadeira de real. Neste segundo
69
“Seria um erro incontestável o de querermos nos servir dos componentes químicos de
um grão de trigo para estudar a forma de uma espiga; basta ir ao campo para ver as
espigas já feitas. A investigação e a observação, a filosofia e a experiência não devem
nunca desprezar-se nem excluir-se mutuamente; elas são defensoras uma da outra. As
proposições da presente obra e a arquitetura cerrada da necessidade interna repousam
na experiência, ou no próprio conceito de guerra, como ponto de referência exterior,
de tal modo que elas não deixam de ter fundamento” (CLAUSEWITZ, 1996: 3).
A ciência da guerra de Clausewitz tem como paradigma a realidade que se
impõe independente dos desejos, hábitos ou mesmo dos valores morais dos agentes
beligerantes. Não é possível desejar uma guerra sem violência. A guerra é violência;
portanto, os agentes devem dispor da maior capacidade possível de praticar a
violência física contra o inimigo para atingirem as suas vontades
59
. Se há uma
virtude moral na guerra, esta é a do guerreiro.
Considerado isso, retomemos o segundo aspecto: o fim da guerra está fora da
guerra.
“Se começarmos por nos apoiar, uma vez mais, no puro conceito de guerra, seremos
obrigados a dizer que na realidade, o objetivo político da guerra não é do seu domínio;
pois, se a guerra é um ato de violência destinado a forçar o inimigo a executar nossa
vontade, então tudo se reduziria sempre e exclusivamente ao fato de vencer o inimigo,
isto é, ao seu desarmamento” (CLAUSEWITZ, 1996: 31).
Admitindo esta condição sobre o conceito de “guerra” de Clausewitz, este se
torna ainda mais complexo: supor que o fim pelo qual se guerreia seja também a sua
motivação inicial. Mas, como o próprio Clausewitz nos alertou, não é possível supor
que os objetivos que motivam sejam os mesmos que desanimam à prática da
caso, optamos pela tradução real nas assertivas que fazemos acerca das proposições de Clausewitz,
pois, apesar de o termo real estar impregnado de um sentido determinante forte, não é tão intenso
quanto o vocábulo verdade.
59
“A teoria tem de admitir tudo isso, mas o seu dever é o de dar o primeiro lugar à forma absoluta da
guerra como a um ponto de referência, de modo que aquele que quer aprender alguma coisa em teoria
nunca se habitue a perdê-lo de vista, e o considere como medida fundamental das suas esperanças e
receios, a fim de se aproximar dele aí onde o pode, ou aí onde o deve” (CLAUSEWITZ, 1996: 832).
70
guerra
60
. Sem nos esquecermos de que estaremos observando o papel da vontade na
definição conceitual de “guerra” de Clausewitz, vale perguntar se a vontade de um
Estado
61
é necessariamente o fim para a guerra.
Para tratar desta questão, apoiemo-nos um instante na leitura do artigo de
Oliveiros Ferreira, intitulado Clausewitz e a política. Segundo Ferreira, devemos
pensar a guerra numa perspectiva da ação política forte:
“A finalidade da ação política forte (da guerra)… é impor nossa vontade ao
adversário… O meio para tanto é a violência física… O importante é assinalar que a
guerra não se limita a meio ou fim; ela tem objetivo” (FERREIRA, 1994: 31).
A guerra é uma forma da política e, se seu fim também o é, recolocar-se-á
este novamente no interior do conceito de “guerra”. No entanto, ao apontarmos para
este vínculo continuum entre guerra e política, não devemos tomar o conceito de
“política” de modo a retirar-lhe sua história. O conceito de “política” também é
histórico e culturalmente produzido. Desse modo, formulamos uma segunda
pergunta: qual é a noção de política adotada por Clausewitz? – uma vez que
precisamos conhecer a natureza da vontade política pela qual se guerreia.
A relação entre política e guerra é o ponto crucial de nossas preocupações
62
.
Por isso temos de investigar qual era o sentido de política para Clausewitz, antes
mesmo de relacionar os conceitos em questão. Novamente, a afirmação de que
Clausewitz estuda a guerra em sua realidade – como uma ciência – a partir de um
60
Para observar mais de perto o problema aqui identificado, ver o capítulo II, do Livro I de Da
guerra, intitulado O fim e os meios da guerra.
61
O termo Estado (e seu significado histórico) é fundamental para entendermos mais profundamente o
conceito de “guerra”, também em seu significado histórico: “é reconhecidamente pequeno o alcance
de uma investigação que, repetindo um exemplo, derive do emprego da palavra ‘Estado’ o fenômeno
do Estado moderno… A linguagem do direito prussiano, a despeito da burocracia administrativa e de
um exército há muito tempo estabelecidos, somente em 1848 legalizou a união dos Estados prussianos
em um só Estado” (KOSELLECK, 2006: 117).
62
Rodrigo Passos, em sua tese de doutorado, intitulada Clausewitz e a política – uma leitura de Da
guerra, apresentou preocupação semelhante: “… nos parece… que a análise da guerra é
intrinsecamente ligada à política, e nos permite, em um certo sentido, até mesmo aplicar parte da
conceituação clausewitziana sobre a guerra à política. Isso permite dizer que estamos tratando
essencialmente de coisas muito semelhantes ao abordarmos a guerra e a política?… Não exatamente.
Há pontos em que ambas podem ser aproximadas e outros que as diferenciam” (PASSOS, 2005: 10).
71
modelo idealizado e abstrato, nos permitirá não somente realizar a relação entre
guerra e política, como também o vínculo deste último conceito com a noção de
“vontade”. Devemos recordar que a guerra em teoria não é propriamente a guerra em
sua realidade
63
e, portanto, não é possível tomar uma pela outra:
“A razão pela qual o objetivo da guerra, deduzido do seu conceito, nem sempre se
adapta à guerra real reside na diferença entre uma coisa e outra… Segundo o seu puro
conceito, qualquer guerra entre Estados cujas forças apresentem uma desigualdade
notável surgiria um absurdo e, portanto, como uma impossibilidade. A desigualdade
de forças físicas não deverá ultrapassar o nível em que possa ser contrabalançada pelas
forças morais
64
… Se existiram guerras entre Estados de potência desigual, isso se deve
ao fato de que, na realidade, a guerra se afasta do seu conceito original”
(CLAUSEWITZ, 1996: 31).
Mesmo após expor a sua mais conhecida máxima, a de que a guerra seria a
continuação da política por outros meios, Clausewitz sentiu-se no dever de mais uma
vez esclarecer que as guerras assumem duas formas: uma ideal e outra real – o
conceito de “guerra” com o qual trabalhamos nesta dissertação e a guerra real
65
. Mas,
por enquanto, nos esquivaremos do problema, seguindo a orientação da proposição
25, do capítulo I, do livro I de Da guerra: há uma diferença entre as formas da guerra
e, naquele momento, Clausewitz observaria apenas a “guerra” em seu conceito e não
em sua realidade. Também faremos deste modo:
63
Para Clausewitz, é a noção de “fricção” que pode teoricamente se aproximar da guerra em sua
realidade: “A noção de fricção é a única que corresponde, de uma maneira bastante geral, àquilo que
distingue a guerra real da que se pode ler nos livros. A máquina militar, isto é, o exército e tudo o que
faz parte dele, é no fundo muito simples e parece, por conseguinte, fácil de manejar. Mas é preciso
lembrarmos de que nenhuma dessas partes é feita de uma só peça, que nela tudo se compõe de
indivíduos em que cada um conserva a sua própria fricção, sob todos os seus aspectos. Em teoria, é
tudo muito bonito: o chefe do batalhão é responsável pela execução da ordem dada, e como o batalhão
está unido num só bloco pela disciplina e o seu chefe tem de ser um homem de um zelo notório o
pêndulo oscila sobre o seu eixo de ferro com o mínimo de fricção. Mas a realidade é bem diferente e,
na guerra, a ausência de verdade e o exagero com o qual as coisas se apresentam revela-se
instantaneamente. O batalhão é sempre a agregação de um certo número de homens em que o mais
insignificante é capaz, por pouco que o acaso intervenha, de provocar um parada ou irregularidade. Os
perigos a que a guerra conduz e os esforços físicos que exige agravam o mal a tal ponto que podemos
considerá-los como as suas principais causas” (CLAUSEWITZ, 1996: 84).
64
Aqui força moral significa a vontade de lutar (Wille zu Kampf).
65
Ver capítulo 1, Livro VIII de Da guerra.
72
“Mas, para que o leitor não alimente idéias falsas, teremos de observar aqui que, ao
falarmos da tendência natural da guerra, pensamos apenas em sua tendência filosófica,
na sua lógica pura, e de modo nenhum nas forças realmente comprometidas no
conflito…” (CLAUSEWITZ, 1996: 28).
Apesar de Clausewitz afirmar que a guerra real difere do conceito de
“guerra”, seu postulado contempla esta alteração, pois a primeira vontade é a de
derrotar (desarmar) o inimigo, que se interpõem entre o fim último e o Estado que
deseja alcançá-lo. Portanto, o conceito de “guerra” não é fruto de um exercício de
especulação metafísica. Já sabíamos disso ao afirmar a influência do pensamento
maquiaveliano na teoria de Clausewitz. O que ainda não conhecemos é o conceito
que está por trás dessa vontade (Wille) – ou fim –, que faz da guerra um meio para
alcançá-la.
Dada a natureza de um Estado
66
, sua vontade
67
é política e, como corpo, tem
necessidade de manutenção e expansão
68
. Diferentemente do que pode parecer aqui,
este não é um argumento do conceito de “guerra” de Clausewitz, mas do conceito de
“homem” ampliado para a definição da natureza de um Estado Civil (político) de
Thomas Hobbes. Novamente, percebemos a relação entre os dois autores. A “guerra
de todos contra todos”, conceito de Hobbes que exprime uma fase humana pré-
política, é análoga à condição dos Estados Civis nas relações que estabelecem uns
66
A noção de Estado para Clausewitz parece-nos óbvia: é a mesma da dos contratualistas, corrente
esta iniciada por Hobbes ao afirmar que o Estado é um pacto entre homens que buscam viver em paz.
Mas que não significa que este Estado não tenha desejo de destruir outro Estado. Ver Hobbes, Leviatã,
Livros I e II e Rousseau, Do contrato social.
67
“Não sendo o Estado ou a cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus
membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, torna-se-lhe
necessária uma força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais
conveniente a todos. Assim, como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus
membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo
poder que, dirigido pela vontade geral, ganha… o nome de soberania” (ROUSSEAU, 1979: 48).
68
“… a guerra pode ser compreendida à luz das relações humanas, sociais, políticas e, em um certo
sentido, dentro das relações econômicas. Um dos aspectos mais importantes – que contribui para o
sentido referido – da definição da ação guerreira é exatamente a reciprocidade de seu caráter, a
interação entre as vontades em choque como uma manifestação necessariamente concreta, em que um
dos lados em luta busca impor-se ao outro. Esse é um dos sentidos em que julgo ser possível
aproximar a ação guerreira de uma ação política, que entendo ser um comportamento social
desempenhado por um indivíduo ou coletividade em um contexto que envolva um conflito ou algo
relacionado à disputa pelo poder” (PASSOS, 2005: 10) [grifo nosso].
73
com os outros
69
desprovidos de um poder superior que os submeta à paz. Assim, em
princípio, estão todos os Estados naquela condição humana pré-política. Mas,
contraditoriamente à natureza humana, os Estados são corpos políticos. Nesse
sentido, Clausewitz formulou a máxima que o tornaria conhecido:
“A guerra é uma simples continuação da política por outros meios” (CLAUSEWITZ,
1996: 27).
70
E prossegue:
“Vemos, pois, que a guerra não somente é um ato político, mas um verdadeiro
instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas
por outros meios. O que se mantém sempre característico da guerra releva puramente
da especificidade dos meios que ela põe em prática. A arte da guerra em geral, e a do
comandante em cada caso específico, pode exigir que as tendências e as intenções da
política não sejam incompatíveis com esses meios, exigências seguramente a não
desprezar. Mas, por mais poderosamente que reaja, em certos casos, sobre as intenções
políticas, isso terá de ser sempre considerado somente como uma modificação destas;
pois que a intenção política é o fim, enquanto a guerra é o meio, e não se pode
conceber o meio independentemente do fim” (CLAUSEWITZ, 1996: 27).
Este é o ponto fundamental da definição do conceito de “guerra” em
Clausewitz: o vínculo entre guerra (meio) e política (fim). Já adiantamos que o
conceito de “guerra” entre os Estados é análogo ao conceito de “guerra de todos
contra todos
71
”, de Thomas Hobbes; desse modo, examinaremos, a partir da
concepção contratualista, o que é a política.
“A definição inicial de guerra, na primeira página do Traité, implica que os Estados,
para imporem a sua vontade uns sobre os outros, recorrem eventualmente à violência.
69
Apesar de haver uma série de alianças políticas e tratados econômicos entre diversos Estados na
época em que Clausewitz viveu, jamais um tribunal internacional teve poder para arbitrar de fato
qualquer disputa política entre os Estados.
70
“Der Krieg ist eine bloβe Fortsetzung der Politik mit andern Mitteln” (CLAUSEWITZ, 1832: 28).
71
“O estado dos homens fora da sociedade civil é um simples estado de guerra… É fácil julgar como
uma guerra perpétua é inadequada a conservação, quer da espécie humana, quer de cada homem
individualmente considerado” (HOBBES, 2002: 33, 34)
74
Tal definição não apresenta nenhuma originalidade, ela retoma a hipótese comum dos
filósofos clássicos das relações entre Estados, de Hobbes à Montesquieu e de
Rousseau à Hegel” (ARON, 1986a: 13).
Poderíamos recorrer aos dois pensadores influentes na teoria clausewitziana:
Montesquieu e Kant. Mas queremos incluir a obra de Clausewitz numa perspectiva
histórica e não filosófica, nem sociológica, a ponto de verificar os laços teóricos que
a liga aos autores das Luzes. Assim, procuraremos autores inauguradores das
interpretações políticas que articulam a natureza humana à instituição da sociedade e
suas disputas internas e externas, no âmbito da paradoxal relação guerra e paz.
Naturalmente, poderíamos, ainda, iniciar esta digressão do conceito de
“política” até o pensamento de Aristóteles (384-322 a.C.), ou até mesmo ao de
Maquiavel. Quanto à filosofia política aristotélica, seria impossível o debate do
conceito moderno de “Estado”. De acordo com Quentin Skinner, o conceito de
"Estado" em questão data entre o final do século XVI e o início do século XVII:
“O mais claro indício de que uma sociedade tenha ingressado na posse consciente de
um novo conceito… está na geração de um novo vocabulário, em termos do qual o
conceito passa a ser articulado e debatido. Considero, assim, que minha tese central se
vê confirmada pelo fato de em fins do século XVI, pelo menos na Inglaterra e na
França, encontrarmos as palavras State e État começando a ser utilizadas no sentido
que terão na modernidade” (SKINNER, 1996: 10).
Portanto, se lembrarmos da máxima de Clausewitz de que a guerra é a
continuação da política por outros meios, veremos que esta noção de “Estado” será o
fundamento primeiro do conceito de “política”
72
.
72
“Afinal, o que vem a ser, por sua vez, a política conforme Clausewitz? Ele não faz uma definição
sistemática e pontual desse conceito. A política está presente em todo o raciocínio referente à guerra
no que se refere à destruição, submissão e desarmamento do inimigo, conquista de territórios e
objetivos limitados, além da inteligência personificada da direção de um Estado, ou seja, de seu
governo, bem como a própria política da instituição estatal, à qual a manifestação do fenômeno
guerreiro serve” (PASSOS, 2005: 9).
75
Maquiavel
73
– que dá às ações militares um papel de primeira ordem nas
questões políticas de um estado – interessava-se menos pelas questões metafísicas do
que seria um Estado em essência e mais pelas possibilidades dos jogos do poder, bem
como pelas estratégias políticas para se alcançar ou se manter no e com o poder de
um Estado. O próprio termo estado, segundo nota de Renato Janine Ribeiro, na
tradução da obra de Skinner As fundações do pensamento político moderno, no que
se refere ao florentino, deve ser escrito com letra minúscula:
“No que se refere a Maquiavel, usamos ‘estado’ com minúscula mesmo nos casos em
que é preferível a maiúscula, para enfatizar a idéia de que o objetivo essencial do
príncipe – ‘manter seu estado’ – está antes de mais nada na defesa de sua condição de
príncipe, que é requisito para ele governar o seu ou os seus Estados” (SKINNER,
1996: 151).
Evidentemente que Maquiavel sabia bem o que era um Estado, no sentido
moderno de seu termo; não é à toa que o último capítulo de O príncipe é uma
exaltação ao povo italiano para a unificação de seu país. Maquiavel entendia o que
era o Estado moderno (Estado-nação), mas não o formulou teoricamente. Quem o
fez, primeiramente, foi Hobbes, fundador da corrente filosófica contratualista e
desconstrutor das máximas aristotélicas acerca da natureza política humana.
Segundo a tradição aristotélica, a natureza humana é predicada, entre outras
coisas da condição política, ou seja, o homem é um animal político e, portanto, a
sociedade civil é efeito imediato da disposição natural humana em viver
coletivamente com seus pares. Para tanto, é fundamental a organização de um código
social capaz de arbitrar as possíveis disputas que, por ventura, pudessem surgir entre
os indivíduos dessa sociedade:
“… a cidade é uma criação natural e que o homem é por natureza um animal social, e
um homem por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma,
seria desprezível ou estaria acima da humanidade… a característica específica do
73
“Não há dúvida… de que Maquiavel confere excepcional importância ao papel que a força bruta
desempenha na direção dos negócios de governo” (SKINNER, 1996: 151).
76
homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do
bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de
seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade” (ARISTÓTELES, 1253a,
1985: 15).
74
Dentro desse aspecto, a construção de uma cidade é, por assim dizer, inata à
condição humana. Todavia, essa disposição natural não tem como fim a organização
de uma cidade mundial; esta seria impossível pela própria natureza dos povos,
segundo Aristóteles. Desse modo, de povos diferentes emergem cidades diferentes e
politicamente independentes. Homem e cidade se confundem. São a mesma coisa.
Mas cidades diferentes não são necessariamente sociáveis como os membros de uma
mesma sociedade. Assim, a disputa entre cidades, a guerra propriamente dita, não
seria de fato uma disposição da natureza humana – dada que esta é política, ou se
preferirmos, sociável –, mas sim das relações entre as cidades. Estas sem nenhuma
força prévia que as force à paz.
A guerra para os gregos era uma preocupação que estava para além da órbita
estritamente política das relações humanas. E não poderia ser diferente: a guerra era
um hábito dos antigos gregos – como Keegan gosta de pensar.
Para Pedro Paulo Funari, a guerra era um aspecto cotidiano das sociedades
gregas da antiguidade. A guerra estava para além da sua própria atividade, servia
como base da educação e dos valores desta cultura. Mas a guerra se fazia contra o
estrangeiro, contra o cidadão de outra polis, na defesa dos valores daquela sociedade:
“Num mundo de cidades gregas muitas vezes rivais, a guerra era uma atividade não
apenas corriqueira, como essencial. O fisofo Heráclito (540-475 a.C.) observou que
‘a guerra é o pai de todas as coisas’ (pólemos patér pantõn)… O historiador e
arqueólogo francês Yvon Garlan bem constatou que a “onipresença da guerra” no
mundo grego, algo que se expressa no volumoso vocabulário usado pelos gregos para
74
A palavra pólis foi traduzida ao longo de todo o texto da Política como cidade, pelo tradutor Mário
da Gama Kury. Optamos pela manutenção do termo cidade para designar a sociedade civil,
normativamente organizada, segundo o contexto histórico de Aristóteles, para que não haja confusões
com o conceito de “Estado”, que é moderno.
77
ser referir à guerra e ao conflito militar: pólemos (guerra), ágon (competição), mákhe
(batalha)… A virtude grega por excelência, areté, era a coragem… A luta era elemento
central na educação dos meninos gregos, e parte integrante da vida em sociedade,
como atividade essencial para definir as subjetividades, para a formação dos
indivíduos e dos coletivos humanos” (MAGNOLI, 2006: 22).
A filosofia política aristotélica estava voltada quase que exclusivamente para as
questões internas da pólis
75
. Nesse sentido, a guerra está para além da natureza
humana, dado que a condição humana, política como é, prefere a ordem e a paz de
sua cidade (pólis).
Maquiavel
76
, apesar de não definir nenhuma natureza humana, entendeu que a
perspectiva de Aristóteles baseava-se em princípios de uma moral civil, de uma
vontade a um bem comum social que não passam de imaginação. “Vai tanta
diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver…”
(MAQUIAVEL: 1979, 63), que toda e qualquer suposição de uma certa disposição
natural para a política arruinaria todo aquele que optasse por fazer política. Os
adeptos da teoria aristotélica, nos Quatrocentos e no início dos Quinhentos
77
,
ampliaram as noções dessa doutrina ao tema da guerra. Todavia, como essa
perspectiva estava intimamente ligada às acepções moral-religiosas da política, sua
fundamentação científica (pensando a política como ciência) era absolutamente
frágil.
75
“Todas as artes e ciências que não se dedicam a um objetivo parcial, mas a um gênero inteiro e de
forma completa, devem estudar tudo que convém a cada gênero… cabe à ciência [política] averiguar
qual a melhor entre as constituições, quais as características que uma delas deve ter para ser a melhor
se não ocorrerem impedimentos externos a ela, e qual a constituição adequada a cada povo
(ARISTÓTELES, 1288b. 1985: 121) [grifo nosso].
76
Maquiavel viveu durante uma época em que a Itália, fragmentada, caracterizava-se pelos constantes
conflitos militares e das habituais mudanças de regimes políticos nos territórios italianos. Era a época
dos condonttieri. Somente em Florença, durante a vida de Maquiavel, as mudanças de poder na
cidade, ocasionadas pelas guerras, retratavam a constante instabilidade de um Estado desarmado. Um
momento em que era fundamental a um Estado e ao seu líder político disporem de uma força militar
contra as possíveis tentativas externas de conquista de seu território: “…é necessário a um príncipe
estabelecer sólidos fundamentos; sem isso é certa sua ruína. E as principais bases que os Estados têm,
sejam novos, velhos ou mistos, são boas leis e boas armas. E como não podem existir boas leis onde
não há boas armas, convém que existam boas leis, referir-me-ei apenas às armas” (MAQUIAVEL,
1979: 49).
77
Ver SKINNER, 1996: 141, 143, 144 e 149.
78
“… os novos Estados da Europa necessitaram de algum princípio que justificasse suas
heresias e regulasse suas relações. O encontraram nos conceitos de razão de estado e
de equilíbrio de poder. Cada um dependia do outro. A razão de estado afirmava que o
bem-estar do Estado justificava quaisquer meios de se empregar para promovê-lo; o
interesse nacional suplantou o conceito medieval de moral universal” (KISSINGER,
1995: 53).
O fundamento racional da política é um divisor de águas. E se encontra
exatamente na independência da política enquanto ciência, a possibilidade de uma
outra compreensão para a natureza da política. Maquiavel não disse qual é, não a
especulou e, assim, a afastou de uma suposta qualidade nata do homem
78
. Indivíduos
escolhem, ou mesmo são escolhidos para a vida política, como ação humana, mas
longe de ser um elemento fundamental de sua natureza.
A política seria, assim, histórica e ganhou uma nova dimensão na razão do
estado.
E somente no pensamento de Hobbes, o Estado Civil tem a razão como
fundamento para os homens se afastarem da guerra
79
– esta, sim, natural. Hobbes,
que presenciou a guerra civil de sua pátria (1642-1660), definiu aquilo que chamou
por “estado de natureza humana” da seguinte forma:
“Com isto se torna manifesto que, durante o tempo que os homens vivem sem um
poder comum capaz de mantê-los a todos em respeito, eles se encontram naquela
condição que se chama guerra” (HOBBES, 1979: 75).
78
“Maquiavel assim divorcia a política da moralidade, enfatizando, em conseqüência, a ‘autonomia
política’” (SKINNER, 1996: 155).
79
Para Foucault: “Hobbes, que aparece como, à primeira vista, quem pôs a relação de guerra no
fundamento e no princípio das relações de poder. No fundo da ordem, por trás da paz, abaixo da lei,
no nascimento do grande autômato que constitui o Estado, o soberano, o Leviatã, não há somente para
Hobbes, a guerra, mas a mais geral de todas as guerras… ‘ a guerra de todos contra todos’. E essa
guerra de todos contra todos, Hobbes não a situa simplesmente no nascimento do Estado… ele a
segue, ele a vê ameaçar e manar, depois mesmo da constituição do Estado, em seus interstícios, nos
limites e nas fronteiras do Estado” (FOUCAULT, 1999: 102).
79
Hobbes concebeu esse estado de natureza tomando como princípio o próprio
indivíduo (analisando-o isoladamente). E, entendendo como é a essência humana,
observou o indivíduo em interação com outros semelhantes
80
. Para Hobbes, se dois
homens desejam (ou melhor, têm vontade de) a mesma coisa, ao mesmo tempo em
que é impossível ela ser aproveitada por ambos, eles se tornam inimigos. E no
caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação e, às vezes,
apenas seu deleite), esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.
“… os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no
estado de natureza, ou seja, de guerra… Por conseguinte o ditado da reta razão… é que
procuramos a paz, quando houver qualquer esperança de obtê-la e, se não houver
nenhuma, que nos preparemos para a guerra [grifo nosso]” (HOBBES, 2002: 36).
O estado de guerra proposto por Hobbes como modelo de estado de natureza
é entendido como uma “guerra de todos os homens contra todos os homens”. Nessas
condições, a justiça e a injustiça, o bem e o mal não têm lugar, tendo em vista que
esses atributos somente podem ser compreendidos onde há um poder comum, pois
“(…) onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça”
(HOBBES, 1979: 76). Do mesmo modo Clausewitz enunciou que a guerra é uma
violência física e não moral, pois esta se situa apenas na esfera do Estado de Leis.
Contudo, Hobbes aponta para o fato de que o homem prefere, antes de tudo, a
paz. Nesse caso, o filósofo compreendeu que, apesar de seu estado de natureza, o
homem, também por natureza, buscará a paz. Essa natureza tem, para Hobbes, leis
fundamentais. Para entender a relação entre guerra e paz e, finalmente, a formação
do Estado Civil, apenas as duas primeiras expostas em sua obra Leviatã (capítulo
XIV) nos interessa. A primeira é de que os homens devem procurar a paz e segui-la:
80
“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito (…) a diferença
entre um homem e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com
base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele”
(HOBBES, 1979: 74).
80
“Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de
consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da
guerra” (HOBBES, 1979: 78).
A segunda é a de que por todos os meios que pudermos, devemos defender a
nós mesmos:
“Que um homem concorde, quando os outros também o façam, e na medida em que
tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu
direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma
liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo” (HOBBES, 1979:
78).
Logo, renunciar a esse direito é privar-se da liberdade, e quando os homens o
fazem, ou, ainda, o transferem, é com o intuito de haver algum bem para si mesmos.
A essa transferência, que visa a outro direito, Hobbes chamou-a de contrato:
“… o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia e transferência do direito
não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto à sua vida e quanto aos
meios de preservá-la de maneira tal que não acabe por dela se cansar” (HOBBES,
1979: 79).
Hobbes, portanto, entende que a instituição do Estado Civil é condição
fundamental para a paz entre os homens:
“O fim último, causa final e desígnio dos homens (…), ao introduzir aquela restrição
sobre si mesma sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria
conservação e com uma vida mais satisfeita (…), o desejo de sair daquela mísera
condição de guerra que é a conseqüência necessária (…) das paixões naturais dos
homens, quando não há um poder visível capaz de mantê-los em respeito, forçando-os,
por meio do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito [das] leis da
natureza…” (HOBBES, 1979: 103).
81
Essas leis, por sua vez, não possuem poder algum que obrigue os homens a
respeitá-las, ou melhor, são contrárias às paixões humanas. Portanto, “(…) os pactos
sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a
ninguém” (HOBBES, 1979: 87).
Para Hobbes, a política é histórica e não é natural. Mesmo que seja a história
da própria condição humana; mesmo que não houvesse uma data de fato em que se
pudesse localizar a invenção da política, esta, por não ser inata, é, necessariamente,
histórica e, se assim quisermos prosseguir, a cidade é, por sua vez, um evento
histórico (o Estado moderno, então, seria uma forma de manifestação histórica da
organização social entre indivíduos de uma mesma comunidade).
A guerra é uma disposição natural do homem, segundo Hobbes; a política
não. Então, como podemos pensar que o conceito de “guerra” de Clausewitz está
diretamente relacionado ao conceito moderno de “política” que, por sua vez, permite
a elaboração do conceito moderno de “Estado”, já que a base teórica adotada para
tratar tais questões é exatamente a hobbesiana
81
, uma vez rejeitada a concepção
aristotélica?
Talvez, nesse caso, a resposta seja a assertiva mais simples de todo este
trabalho. Em primeiro lugar, se tomarmos o Estado Civil como uma segunda
natureza (dado que a sociabilidade não é um predicado natural, mas não deixa de ser
uma característica humana), este tem um papel a cumprir:
“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões
dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam
81
É claro que muitos outros pensadores opuseram-se a Hobbes, inclusive Kant, de quem Clausewitz
era leitor. Mas os princípios modernos do conceito de política estão, indubitavelmente, na obra de
Hobbes. O vocabulário utilizado, bem como o trajeto analítico (de supor um certo estado de natureza
humana, precedente ao surgimento da política), foi adotado por Locke, por Rousseau e também por
Kant, ainda que as caracterizações e as durações dos períodos naturais e históricos variassem de autor
para autor. Nesse sentido, é fundamental dizer que Hobbes, para a nossa comodidade, é o autor per
excellence para falarmos dos fundamentos da ciência política moderna dos séculos XVII, XVIII e
meados do XIX, pois, com o surgimento da teoria marxista e sua ontologia, outros sentidos foram
dados à história do homem político.
82
alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou uma
assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de
votos, a uma só vontade” (HOBBES, 1979: 105).
Inclusive Montesquieu, quem Clausewitz admirava, faz uma aproximação
muito parecida com esta de que Estados agem como homens e, por isso, guerreiam:
“A vida dos Estados é como a dos homens; estes têm direito de matar em caso de
defesa natural; aqueles têm direito de fazer a guerra para sua própria conservação…
No caso de defesa natural tenho direito de matar porque minha vida me pertence,
como a vida de que me ataca lhe pertence; do mesmo modo, um Estado faz a guerra
porque sua conservação é justa como qualquer outra conservação” (MONTESQUIEU,
1979: 135).
Em segundo lugar e, por fim, resgatando o prefácio de Clausewitz: a guerra
tem sua definição teórica, mas a manifestação real da guerra escapa à própria
conceituação. Ao falar da guerra, em sua condição real e não absoluta, a lógica
hobbesiana é restabelecida na filosofia de Clausewitz. E assim o faz quando,
preocupado não apenas com a forma, mas também com a matéria da guerra, aponta
para sua diversidade. Aqui retomamos novamente a proposição 25, do capítulo 1 do
Livro I, complementando a citação já referida nessa dissertação:
“… para que o leitor não alimente idéias falsas, teremos de observar… que, ao
falarmos da tendência natural da guerra, pensamos apenas na sua tendência filosófica,
na sua lógica pura, e de modo nenhum na tendência das forças realmente
comprometidas no conflito, que englobam, por exemplo, as paixões e emoções dos
combatentes. É verdade que, em muitos casos, tais paixões e emoções poderiam ser
excitadas a um tal grau que seria difícil mantê-las na via política; mas, a maior parte
das vezes, semelhante contradição não se produz, porque a existência de tão poderosas
emoções implicará a existência de um plano grandioso que estará em harmonia com
elas” (CLAUSEWITZ, 1996: 28).
Clausewitz utilizou bem o repertório conceitual de Hobbes – mesmo sendo
um amante da filosofia de Montesquieu e ter adotado alguns fundamentos
83
kantianos
82
–, invertendo a ordem dos fatores políticos: o Estado não é criado para
evitar a guerra, ele a promove. A guerra é, portanto, ao mesmo tempo apolítica, pois
está fora da política (como um meio) e a precede no sentido da condição humana,
num estado de isolamento naturalmente violento, e política, na medida em que serve
aos anseios e à vontade geral de uma sociedade civil, legitimamente representada
pelo Estado.
Somente no século XIX podemos perceber a guerra e a política vinculadas
dessa forma. O conceito de “política” se alterara, o de “guerra” também precisava ser
reformado, atendendo, assim, à urgência histórica de sua época.
Não se tratava mais de se lutar pela própria honra, ou mesmo pela vontade de
um representante de Deus, transfigurado no corpo de um rei. A partir do século XIX,
a guerra era produto de toda uma nação, de um Estado. Clausewitz percebeu
inteiramente esta condição
83
.
Eric Hobsbawm, em Nações e nacionalismo desde 1780, nos dá um panorama
histórico mais aprofundado sobre o tema:
“O Estado moderno típico, que recebeu sua forma sistemática na era das revoluções
francesas – embora de vários modos ele tivesse sido antecipado pelos principados
europeus que evoluíram a partir dos séculos XVI e XVII –, era uma novidade em
muitos aspectos” (HOBSBAWM, 1990: 101).
Esse novo modelo de organização política, ao passo que se construía
historicamente, filosoficamente era conceituado, principalmente por autores que
presenciaram de perto sua formação – como é o caso de Thomas Hobbes. Aliado à
artificialidade do Estado estava o conceito de “nação”, elemento fundamental para a
fórmula: um território, uma língua, uma legislação, um exército, um governo e um
povo.
82
Ver capítulo I. Para Gallie,“[Clausewitz] foi general e filósofo, conhecido admirador de Kant, e
analista objetivo, para não dizer apologista, da guerra” (GALLIE, 1979: 46).
83
Ver CLAUSEWITZ, 1996: 187.
84
Para Philip Bobbitt, autor de A guerra e a paz na história moderna, o Estado-
Nação do final do século XVIII e de todo o século XIX gera um tipo de estrutura
política capaz de ter como meta – e a tem – beneficiar a nação por ele governada.
“O Estado possui duas funções primárias: distribuir as questões de maneira apropriada
pelos diversos métodos de alocação internos da sociedade, determinando que tipos de
problemas serão solucionados de que tipos de formas; e de defender esses padrões
exclusivos de alocação por meio da afirmação de sua jurisdição territorial e temporal
em face dos demais Estados… A História não fornece exemplos de Estados que
tenham abdicado da autoridade constitucional de comandar a violência doméstica ou
internacional sem terem deixado de ser Estados” (BOBBITT, 2003: 192).
O autor de Da guerra pode ser criticado por ter apresentado uma definição
metafísica da guerra, mas sua teoria nos leva para além disso. Ela nos permite
caracterizar sua visão histórica da guerra. Assim, W. B. Gillie concluiu sobre a
contribuição do pensamento de Clausewitz à teoria política contemporânea:
“Em primeiro lugar, ele não tem nenhuma teoria política ou sociológica sobre as
causas primordiais da guerra. Pelo contrário, baseia todas as suas discussões gerais na
extraordinária variedade de objetivos, significados, intensidade e níveis de sofisticação
das guerras que a História relata. Uma das passagens mais importantes de Da guerra,
um brilhante e rápido esboço da história da guerra, da Grécia clássica à época de
Napoleão, inicia com as seguintes palavras: ‘Os tártaros semi-bárbaros, as repúblicas
da antiguidade, os senhores feudais e as cidades comerciais da Idade Média, os reis do
século XVIII e os legisladores e povos do século XIX, todos guerrearam à sua própria
maneira, de formas diversas, com meios e objetivos diversos’. A isto se segue que
cada guerra deve ser estudada dentro do seu contexto social particular; do mesmo
modo, precisamos buscar causas permanentes, elementos ou princípios da guerra, e
mantê-los maleáveis em nossa mente – assim como se encontram na mente de todos os
grandes comandantes – e nunca devemos permitir que se tornem rijos como dogmas.
Em segundo lugar, tendo em vista o futuro da guerra, simplesmente não ocorreu a
Clausewitz considerar a possibilidade do desaparecimento da guerra do mundo…
[Isto] não prova que a guerra seja uma permanente necessidade para os estados
85
amantes da liberdade; mas ajuda a explicar por que o papel da guerra na História é
muito mais do que destrutivo ou retroativo” (GALLIE, 1979: 68-69).
O general prussiano deu ao conceito de “guerra” um sentido moderno, talvez
o primeiro a fazer isso na História ocidental do século XIX. Mesmo que se tenha
proposto a dar uma definição ontológica, sua teoria percebeu os desdobramentos
históricos da noção de guerra. E não se limitou a uma justificativa teórica. Ele
apresentou a guerra, em sua anatomia, de um modo originalmente histórico.
86
Capítulo III: A guerra contra Clausewitz
87
É indispensável a guerra –
É um sonho vão de belas almas
ainda esperar muito (ou só então realmente muito
da humanidade), uma vez que tenha desaprendido
de fazer a guerra.
Nietzsche
A influência do pensamento sobre o pensamento
é, na história, o fator mais importante.
B. H. Liddell Hart
As guerras que Clausewitz conheceu,
as de que participou, foram as da Revolução Francesa
e o “motivo político” que ele sempre considerou
um fator de precipitação e controle da guerra
estava sempre presente, ao menos no início.
Keegan
É difícil atribuir a responsabilidade de qualquer guerra a um único homem.
Sabemos que muitos conflitos dos séculos XIX e XX tiveram início nas decisões às
vezes pouco acertadas de governantes que pretendiam realizar feitos que os
deixassem para História como grandes heróis. Quase todos se tornaram vilões.
Culpar Napoleão pelas guerras do início do século XIX, Bismarck pelos conflitos de
unificação alemã, Hitler pela Segunda Guerra Mundial é uma eficiente estratégia
para explicar aos não-iniciados na história a causa desses acontecimentos. Não
queremos dizer que foram inocentes, mas alguém poderia dizer que foram os únicos
“culpados”?
Também sabemos que reduzir qualquer guerra aos desejos de algumas
pessoas é um exagero, ainda que esse tipo de esclarecimento tenha lá seu
fundamento. Esses homens (ou mulheres) precisariam estar em uma posição política
capaz de decidir isoladamente pela realização de algo tão caro como a guerra e que
todos submetidos ao seu poder, ou pelo menos a maioria, aceitasse a sua decisão.
Como dissemos, é difícil responsabilizar só um pela guerra. O que dizer quando esse
homem não exerce nenhum papel na esfera prática da política? E nem ao menos está
vivo?
Alguns dos adversários intelectuais de Clausewitz atribuem a influência de
suas idéias como a causa central das duas grandes guerras do século XX. O livro Da
guerra também serviu de manual das políticas externas de algumas das potências
88
militares mundiais (como França e Alemanha até 1914) e de revolucionários
socialistas
84
(como Lenin, que foi leitor de Clausewitz), desde a segunda metade do
século XIX, quando o general alemão Helmuth von Moltke
85
(1800-1891), ao lado
do chanceler Otto von Bismarck (1815-1898) – considerados os principais
articuladores da unificação alemã –, incorporaram aspectos de sua teoria
86
. A
Weltpolitik alemã, a partir de então, era clausewitziana:
“Batizando de clausewitzianos o pensamento e a prática bismarckiana no que se refere
ao tema decisivo das relações entre política e guerra, arrisco-me a suscitar pelo menos
diversos movimentos… Pode o tratado de Frankfurt passar como moderado? A
anexação da Alsácia-Lorena não cavava um fosso entre Alemanha e França que nada
poderia preencher? Não semeava os germes de um ódio que deveria explodir mais
cedo ou mais tarde?
… para julgar eqüitativamente o chanceler de ferro, é conveniente conformar-se com
as regras clausewitzianas da ‘crítica’… sim, sem dúvida, Bismarck julgava que as
guerras, em sua época, constituíam um meio normal de se atingir as metas da política.
Na conduta das operações ele não se perturbava com as considerações humanitárias,
mas também não imaginava o equivalente ao massacre dos prisioneiros ou das
populações civis” (ARON, 1986b: 24-25).
84
“… é extremamente significativo que Clausewitz tenha sempre gozado de prestígio entre os
intelectuais marxistas, com destaque para Lênin” (KEEGAN, 1995: 34). “[Da guerra] foi apreciada
por Engels (‘ um estranho caminho para filosofar, mas, muito bom, em si mesmo’) e lida por Marx.
Lênin durante sua estadia em Zurique fez anotações sobre o texto. Hitler disse que era fundamental e
Eisenhower se ateve firmemente a sua leitura em seus dias no US Army War College” (CREVELD,
1991: 34).
85
Da guerra revelou-se um livro de efeito retardado. Somente depois de quarenta anos de sua
publicação, em 1832-35, é que se tornou amplamente conhecido, e de uma forma indireta. Helmuth
von Moltke, chefe do Estado-Maior prussiano, tinha aparentemente dons mágicos de comando que
haviam derrubado o poder do Império austríaco e depois do francês, numa campanha de poucas
semanas, em 1871. O mundo queria evidentemente conhecer seu segredo, e quando Moltke revelou
que, além da Bíblia e de Homero, o livro que mais o influenciara fora Da guerra, a fama póstuma de
Clausewitz estava garantida. O fato de que Moltke fora aluno da escola de guerra da Prússia quando
Clausewitz era seu diretor não foi notado e, de qualquer forma, era irrelevante; o mundo interessou-se
pelo livro, leu-o, interpretou amiúde mal, mas desde então acreditou que ele continha a essência da
guerra bem-sucedida” (KEEGAN, 1995: 37).
86
“… o marechal Hindenburg, depois da guerra de 1914-1918, pagara seu tributo de admiração e de
reconhecimento àquele que havia se transfigurado em pai fundador da teoria alemã da guerra pelas
vitórias de Moltke: ‘Existe um livro, De la Guerre, que jamais envelhecerá. Seu autor é Clausewitz.
Ele conhecia a guerra e os homens. Devíamos escutá-lo e, quando seguíamos suas prescrições, era
para nosso bem. O inverso significava a infelicidade’” (HINDENBURG. Aus meinen Leben. Leipzig,
1930, p. 101 apud ARON, 1986b: 9-10).
89
Bismarck foi criação de Clausewitz, ainda que o chanceler de ferro tenha
ascendido mais de trinta anos após a morte do autor de Da guerra? Bismarck
encarnou o hábil político que convencia o rei de seus desejos e realizava-os quase
sempre. Clausewitz é o culpado?
Conseqüentemente, outros países adotaram concepções similares
87
, não
apenas no sentido de conhecer melhor a máquina de guerra alemã, mas também por
ver no pensamento de Clausewitz uma fonte segura para o sucesso das ações
político-militares, como foi o caso do marechal francês Ferdinand Foch (1851-1929):
“O futuro marechal Foch entrara na Escola de Guerra em 1885, ano em que Cardot
88
apresentava pela primeira vez as idéias clausewitzianas aos futuros chefes do exército
francês. A descoberta do ‘deus da guerra’ andava de par com seu profeta. A
comparação entre a campanha de 1806 e a de 1870, entre o gênio do mestre e o talento
do discípulo, tornara-se um tema de moda da história e da crítica militares” (ARON,
1986b: 27).
Clausewitz, pelo fato de ter formulado um determinado pensamento, ousado é
verdade, foi acusado por alguns dos eventos mais terríveis do século XX. Isso parece
um juízo descomedido. Ao adotarmos a história conceitual, reconhecemos a força de
um conceito para além de seu contexto social. Não limitamos a produção intelectual
de um pensador, ou o significado de determinado termo apenas no âmbito de uma
época específica. Os conceitos são ampliados e teorias tornam-se fórmulas em outros
momentos, sem que o autor tivesse qualquer dimensão de seu alcance – ainda que o
desejasse, como foi o caso de Clausewitz. Mas não pretendemos cair na investigação
moral de qualquer pensamento deslocado de seu tempo.
87
“Na França, a descoberta de Clausewitz se situa após as derrotas de 1870, acompanhando a
descoberta, ou a redescoberta, de Napoleão, exigindo assim um estudo particular. Pode ser que o
Traité, bem ou mal compreendido (mal compreendido, a meu ver) carregue uma parte de
responsabilidade nas concepções dos generais franceses de 1914” (ARON, 1986b: 10).
88
Lucien Cardot (1838), general do exército francês.
90
“Os conceitos não nos instruem apenas sobre o caráter singular de significados
passados; a par disso, eles contêm possibilidades estruturais e simultaneidades como
não-simultaneidades, as quais não podem ser depreendidas por meio da seqüência dos
acontecimentos na história. Conceitos que abarcam fatos, circunstâncias e processos
do passado…” (KOSELLECK, 2006: 116).
A condenação de Clausewitz não é apenas retórica. Nem sua exaltação. Ainda
que alguns não vejam nenhum problema de os eventos mais trágicos da humanidade
estarem vinculados ao pensamento clausewitziano, vêem na teoria do pensador-
general fórmulas eficientes para a defesa dos interesses de Estado.
Mesmo assim, pensamos que todo e qualquer tribunal da História não parece
legítimo nesse caso. Entendemos que suspender juízos de valor não é negligenciar
um posicionamento frente ao passado, mas conseguir analisá-lo sem o compromisso
moral que macula a reflexão, permitindo-nos observar pontos que excedam a
avaliação maniqueísta da história das guerras.
Também não desconsideramos o poder das teorias e a influência do
pensamento na materialização das ações humanas. Vemos uma íntima relação entre
os dois, mas não os articulamos de maneira dedutiva e mecânica. Um não determina
o outro, em nenhum tipo de equação. Também não somos partidários do
determinismo histórico, que vê as idéias como estritos resultados de impressões
empíricas. Pensamos na relação substancial entre teoria e prática. Não há primazia de
uma sobre a outra, como também não é possível deixar de perceber que uma está
diretamente implicada à outra.
Marx, em sua obra A ideologia alemã ridicularizou seus colegas que
acreditavam fazer, no pensamento, uma revolução maior que a Francesa
89
. Não
89
“Segundo anunciam ideólogos alemães, a Alemanha passou nos últimos anos por uma revolução
sem paralelo. O processo de decomposição do sistema de Hegel, iniciado com Strauss, transformou-se
numa fermentação universal para a qual são arrastados todos os ‘poderes passados’. No caos geral,
poderosos impérios se formaram para logo de novo ruírem, emergiram momentaneamente heróis para
serem de novo remetidos para a obscuridade por rivais ousados e mais poderosos. Foi uma revolução
ao pé da qual a Revolução Francesa é uma brincadeira de crianças; uma luta universal face à qual as
lutas dos Diádocos aparecem mesquinhas. Os princípios expulsaram-se uns aos outros, os heróis do
91
retirou, por assim dizer, a importância das idéias, apenas colocou a sua origem na
práxis. Por mais força que tenha uma idéia, não deveria ela somente ser responsável
por discussões? Mesmo que seja uma idéia sobre o que é e como se faz a guerra? Se
aceitarmos isso, teremos de concordar com Kant em sua Uma história universal sob
o ponto de vista cosmopolita, ao afirmar que o impacto das idéias da Revolução
Francesa no mundo foi mais forte do que os próprios acontecimentos de 1789.
Escolhemos o meio-termo. Optamos por não separar teoria de prática, fatos
de pensamento, matéria de forma; por isso, entendemos que a adoção de idéias, em
contextos diferentes de sua produção, significa outras idéias, resultando em outras
ações, ainda que a teoria de Clausewitz tenha a pretensão de ser universal, pois sua
manipulação é sempre conjunturalmente histórica.
Aliás, se Clausewitz pudesse se defender no tribunal que o condenou,
evocaria seus aforismos de Da guerra e a sua própria biografia como provas de que
os que o acusaram estavam equivocados, pois afirmava exatamente a associação
entre teoria e prática. Ainda que desejasse uma obra atemporal, foi a partir de sua
experiência de vida que Da guerra foi escrita e, portanto, a adoção de sua teoria em
outros tempos esteve diretamente relacionada com as mais diversas conjunturas e não
com seus desejos em 1815. Esta fórmula serve-nos para suspender o julgamento de
Clausewitz – que é mais moral que histórico – e discutirmos algumas das reflexões
sobre a teoria clausewitziana.
O debate sobre as idéias do autor de Da guerra é bastante exaltado. Há quem
entenda ser necessária uma revisão urgente do conceito de guerra de Clausewitz;
outros preferem conhecê-lo a fundo antes de recusá-lo, e ainda outros buscam na
relação entre guerra e política, exposta por Clausewitz, alternativas para pensar a
sociedade, num profundo exercício filosófico.
pensamento derrubaram-se uns aos outros com uma pressa inaudita, e nos três anos, entre 1842 e
1845, varreu-se mais do passado na Alemanha do que anteriormente em três séculos… Tudo isto teria
ocorrido no pensamento puro” (MARX, s/d: 9).
92
Dos historiadores da guerra que se opuseram, acusaram e condenaram a teoria
de Clausewitz como a responsável pelas duas guerras mundiais do século XX,
destacamos os ingleses B.H. Liddell Hart e John Keegan. Liddell Hart atribui pelo
menos a crueldade dos eventos da Primeira Guerra Mundial ao pensamento
clausewitziano. Keegan vai mais longe e inclui a Segunda também na acusação e
condenação do general prussiano, por sua influência no pensamento de Hitler:
“Clausewitz rejeitava a idéia de que ‘há uma maneira engenhosa de desarmar e vencer
o inimigo sem grande derramamento de sangue e essa é apropriadamente a tendência
da Arte da Guerra’. Desprezava-a, como sendo uma noção nascida da imaginação de
‘filantropos’. Não levava em conta que essa idéia talvez tivesse sido ditada por alguém
esclarecido, interessado em servir a pátria e não apenas por apreciadores de uma luta
de gladiadores. Os seus ensinamentos, manejados por discípulos irrefletidos, serviram
para incitar generais a procurarem a batalha a todo custo, em lugar de criarem uma
oportunidade vantajosa para disputá-la. Em conseqüência, a arte da guerra foi reduzida,
em 1914-18, a um processo de carnificina mútua” (LIDDELL HART, 1982: 273).
“… o deus da guerra não é um arremedo. Quando os regimentos de recrutas da Europa
marcharam para a guerra, em 1914, carregando sua retaguarda de reservistas, a guerra
que os enredou foi, de longe, a pior que os cidadãos pudessem esperar. Na Primeira
Guerra Mundial, a ‘guerra real’ e a ‘guerra verdadeira’ logo se tornaram indistintas; as
influências moderadoras que Clausewitz… declarara sempre entrarem em ação para
ajustar a natureza potencial e o propósito real da guerra reduziram-se à invisibilidade;
alemães, franceses, ingleses e russos descobriram-se aparentemente travando uma
guerra pela guerra” (KEEGAN, 1995: 38).
“Hitler deve ser visto retrospectivamente como o líder guerreiro mais perigoso que
jamais atormentou a civilização… Hitler concebia a vida como luta e guerra, portanto,
como meio natural pelo qual a política racial alcançaria seus objetivos. Em 1934,
afirmou em Munique: ‘Nenhum de vocês leu Clausewitz, ou, se o fez, não aprendeu a
relacioná-lo ao presente’. Em seus últimos dias de vida em Berlim, em abril de 1945,
quando sentou-se para escrever seu testamento político ao povo alemão, o único nome
que citou foi o do ‘grande Clausewitz’, ao justificar o que tentara realizar” (KEEGAN,
1995: 383-384).
93
Porém, ainda que anticlausewitzianos e severos juízes do pensamento e das
conseqüências [atribuídas] ao pensamento do prussiano, possuem trabalhos que
investigaram profundamente a teoria de Da guerra
90
.
90
Ao longo dessa dissertação lemos outro pensador, a quem somos mais simpáticos. Raymond Aron –
que procurou nas idéias do Traité não apenas orientações para pensar a política das relações
internacionais, mas o pesquisou em sua própria originalidade e na dimensão histórica de sua redação –
absteve-se de fazer juízos de valor ao analisar a obra de Clausewitz. Aron, como o leitor deve ter
notado, serviu-nos mais do que uma referência bibliográfica (assim como Norbert Elias); sua obra,
Pensar a guerra, foi fonte para este trabalho.
94
B. H. Liddell Hart contra Clausewitz
Quem presenciou a Primeira Guerra Mundial avalia que não houve, até então
na história da humanidade, experiência mais brutal. A Primeira Guerra trouxe o que
há de mais terrível nos seres humanos, por duas causas: a primeira, porque é guerra;
a segunda, porque o motivo político ou era incompreensível ou tão explícito que a
guerra era a pior forma de resolver as antipatias entre as partes envolvidas. Sem
dúvida que a guerra é sempre a pior das soluções, mas no caso europeu de 1914,
parecia tão evidente, mas, paradoxalmente, completamente absurda, que os
resultados do conflito deixaram o mundo todo estarrecido, como pensa Hobsbawm
em sua A era dos impérios:
“A possibilidade de uma guerra generalizada na Europa fora, é claro, prevista, e
preocupava não apenas os governos e as administrações, como também um público
mais amplo… Na década de 1890, a preocupação com a guerra foi suficiente para gerar
o Congresso Mundial (Universal) para a Paz… Nos anos 1900, a guerra ficou
visivelmente mais próxima e nos anos 1910 podia ser e era considerada iminente.
E contudo sua deflagração não era totalmente esperada. Nem durante os últimos dias
da crise internacional – já irreversível de julho de 1914, os estadistas, dando os passos
fatais, acreditavam que realmente estivessem dando início a uma guerra mundial. Uma
fórmula seria com certeza encontrada, como tantas vezes no passado” (HOBSBAWM,
1988: 419-420).
A experiência da Primeira Guerra, para todos os envolvidos, foi extremamente
marcante. Como conseqüência imediata, na Inglaterra, por exemplo, houve uma forte
reação contra tudo e todos que eram simpáticos a qualquer tipo de guerra. Sir
Winston Churchill (1874-1965), em suas memórias sobre a Segunda Guerra
Mundial, ao descrever o ambiente inglês pós-Primeira Guerra, destacou o sentimento
pacifista que tomou um país abismado com o que ocorrera com o mundo e que,
segundo o ex-primeiro-ministro inglês, levou à acomodação e à negligência quanto
ao crescimento militar da Alemanha de Hitler:
95
“Nesse período obscuro, os sentimentos mais vis eram aceitos sem questionamento
pelos líderes dos partidos políticos. Em 1933, os estudantes da União de Oxford,
inspirados por um certo Mr. Joad, aprovaram sua vergonhosa resolução: ‘Esta Casa
não lutará, em nenhuma situação, por seu Rei ou País’. Mal sabiam os tolos rapazes
que aprovaram essa resolução que muito em breve estariam destinados a vencer ou
tombar gloriosamente na guerra que viria…” (CHURCHILL, 2005a: 48).
Nosso interesse aqui não é discutir a relação entre as duas Grandes Guerras,
mas como anunciamos no início do capítulo que alguns pensadores atribuem a
Clausewitz a culpa pelos conflitos, entendemos que a sua menção seja pelo menos
relevante para se entender esta contradição: para Churchill, o que promoveu a
tragédia da Segunda Guerra foi a paz do entreguerras, ou seja, o afrouxamento da
violência foi exatamente a causa de uma violência ainda maior que a da Primeira
Guerra.
O pacifismo, como ironiza Chuchill, não se restringiu à população civil. Parte
dos militares ingleses que participaram da Primeira Guerra Mundial passou a pensar
em formas mais econômicas de se guerrear. Entre eles estava Sir Basil Henry Liddell
Hart (1895-1970), capitão do exército inglês. Atuou na Primeira Guerra Mundial
desde 1914. Em 1916, foi ferido por um ataque de gás, sendo obrigado a dar baixa.
Crítico feroz da concepção clausewitziana de estratégia e tática de guerra,
Liddell Hart entendia que a guerra deveria ser feita por gente mais especializada e,
portanto, em menor número. Dava às manobras de guerra de ações indiretas um lugar
destacado nas operações militares. Em sua obra Strategy, traduzida para o português
pela IBRASA como As grandes guerras da história, relata eventos desde Alexandre
da Macedônia até a Segunda Guerra Mundial que, segundo pensava, demonstravam
não só a eficiência da ação indireta, mas também como os princípios da doutrina de
Clausewitz estavam equivocados. Aron – que em sua pesquisa sobre o pensamento
de Clausewitz entendeu que boa parte de seus intérpretes e discípulos o interpretou
mal – julgou Liddell Hart, apesar de adversário teórico do general prussiano, como
um conhecedor autorizado de seu pensamento e também como o “maior escritor
militar de nosso tempo”:
96
“… ele me parece o mais inteligente e o mais típico dos anticlausewitzianos de língua
inglesa… reteve duas contribuições do Traité: a importância das forças morais e a
supremacia da política. O resto ele condena: a prescrição implícita da luta até a morte,
a recusa pela manobra, a busca do choque brutal dos exércitos de massa” (ARON,
1986b: 9).
Talvez o panorama antibelicoso inglês após a Primeira Guerra Mundial tenha
afetado excessivamente um militar calejado como Liddell Hart, mas, novamente, não
pretendemos cair no determinismo histórico do contexto em que viveu. Liddell Hart
parece ser mais profundo do que a rejeição emotiva de uma guerra levada ao extremo
da violência. Podemos supor que a experiência da guerra é inesquecível e que a
repulsa aos seus aspectos mais explícitos seja comum. Agora, um historiador das
guerras e também soldado, como Liddell Hart, tem um entendimento menos
emocionado desse evento. Sua noção sobre a diminuição de derramamento de sangue
nas guerras não é um manifesto contra guerra, mas uma teoria que envolve uma
relação entre teoria e política que difere frontalmente da de Clausewitz.
Em outra obra, The ghost of Napoleon, Liddell Hart critica a tese de
Clausewitz, mirando em seu centro: o continuum política e guerra:
“É estranho que ele não tenha percebido que ele próprio se contradizia, já que, se a
guerra é a continuação da política, ela deve necessariamente ser conduzida pensando-
se nas vantagens do pós-guerra. Um Estado que gasta suas forças até o limite do
esgotamento condena sua própria política ao fracasso” (LIDDELL HART, 1937: 121).
Muito da crítica de Liddell Hart a Clausewitz também se concentra no
paradigma da superioridade numérica como fator decisivo para as guerras. O capitão
inglês apontava diretamente para isso como, além de um equívoco estratégico, um
custo humano muito alto, não só para os exércitos, mas para a população dos países
de um modo geral, já que para aumentar o contingente militar, os alistamentos em
massa mandavam homens absolutamente despreparados para o front. Evidentemente,
Liddell Hart não está se preocupando com as relações entre política e guerra que
contaminaram os países europeus desde o século XIX, ainda que as veja. Tanto é que
97
os exemplos utilizados antecedem as guerras napoleônicas vividas por Clausewitz, de
onde tirou suas reflexões teóricas. Ao destacar as campanhas de Alexandre, Aníbal,
Cipião, César e Belisário, na Antiguidade e no início da Idade Média, procurou
demonstrar que, em muitas ocasiões, esses generais se encontravam em menor
número que seus adversários e, valendo-se de ações indiretas, saíram-se vitoriosos.
Em contrapartida, aponta inversamente para campanhas militares em que o general
possuía um exército mais numeroso que o do inimigo, como o caso do próprio
Napoleão e, por isso mesmo, acreditando no paradigma da superioridade numérica,
saiu derrotado.
Clausewitz atribuía à superioridade numérica um dos princípios mais
importantes para o sucesso de um exército na guerra moderna. Todavia, apresenta
algumas exceções, como a vitória de Frederico com 30.000 homens sobre 80.000
austríacos em Leuthen. Segundo Clausewitz, essa tese, que lhe parecia evidente,
ainda não era tratada de modo tão aberto pela literatura militar. Cita, por exemplo, o
livro História da Guerra dos Sete Anos, do também general prussiano George
Friedrich von Tempelhoff (1737-1807), como o primeiro trabalho a tratar da
superioridade numérica na guerra, ainda que de forma superficial, como elemento
fundamental para o sucesso de uma campanha. Dessa forma, Clausewitz realmente
definiu este como norte para a condução da guerra:
“Se estamos firmemente convencidos de que uma superioridade considerável permite
obter tudo pela violência, esta convicção não pode deixar de influenciar os
preparativos da guerra; pois tentaremos nos impor com maior força possível e alcançar
esta preponderância para nós próprios ou pelo menos nos precavermos contra a do
adversário. Eis o que pode dizer acerca da força absoluta com a qual a guerra tem de
ser conduzida” (CLAUSEWITZ, 1996: 206).
É indubitável que a perspectiva de Clausewitz envolve um cenário de
paridade tecnológica e de união entre governo, exército e povo – podendo remeter à
idéia já tratada no capítulo 1 dessa dissertação, do armamento do povo. Talvez, nesse
sentido, a experiência vivida por Liddell Hart na Primeira Guerra Mundial seja uma
amplificação daquela vivida pelo prussiano. Liddell Hart preocupou-se em contestar
98
a proposta tática-estratégica de Clausewitz e a relacionou com os horrores de uma
guerra total. Para isso, utilizou-se de um outro pensador da guerra, para ele,
absolutamente diferente do prussiano, a quem se referia como Mahdi das massas e
dos massacres mútuos: Sun Tzu (544-496 a.C.).
Sun Tzu, a quem é atribuída a obra A arte da guerra – conhecido manual
chinês sobre natureza da guerra, tática e estratégia militar – apresentou, para Liddell
Hart, teorias mais consistentes sobre o que e como um general deveria agir no campo
de batalha. Segundo o inglês, os aforismos de Tzu eram mais eficientes do que os do
prussiano. Para averiguar isso bastaria enumerar a quantidade de citações do autor
chinês no início de Strategy, entre elas:
“O ideal, na guerra, é quebrar a resistência do inimigo sem luta” (LIDDELL HART,
1982: 13).
A contraposição de Clausewitz e Tzu é artificial. Mesmo porque não é
possível afirmar que Clausewitz conhecesse A arte da guerra de Tzu, apesar de esta
ter sido traduzida para o francês em 1776
91
. Não há problema nesse artifício de
Liddell Hart; seu propósito é fundamentar-se em outro referencial que o afaste dos
paradigmas do prussiano. Tzu demonstrava que era desejável a utilização da menor
violência possível, pois a vitória – política como é – deveria ser sobre alguém
minimamente preservado, em que os efeitos da derrota não repercutam nem como
ressentimento, nem mesmo o custo para a reconstrução do que foi destruído seja
muito alto. Em tese, parece ser um pensamento mais racional que o do prussiano.
“… alcançar cem vitórias em cem batalhas não é o ápice da excelência. Subjugar o
exército inimigo sem lutar é o verdadeiro ápice da excelência” (TZU, 2002: 62).
Curiosamente, quanto à finalidade da guerra, Tzu e Clausewitz se parecem:
ambos defendem a guerra submetida à política, ainda que entendam a sua execução
por meios distintos (Clausewitz, se leu Tzu, o incluiu no rol das almas ingênuas e
91
Segundo Sueli Barros Cassal, na edição de A arte da guerra, de Sun Tzu, pela L&PM (TZU, 2001:
7).
99
filantrópicas que desejam uma guerra sem violência). Tirando esse aspecto, Tzu e
Clausewitz têm paradigmas absolutamente diferentes, o que facilitou a adoção dos
princípios do pensador chinês por Liddell Hart como fundamento para sua crítica a
Clausewitz. Michael I. Handel, em sua obra Masters of war, traz um significativo
estudo comparativo entre as teses principais de Clausewitz e Tzu
92
, em que as
perspectivas quanto ao ideal de vitória e à utilização de forças, por exemplo, são
absolutamente divergentes. Enquanto Clausewitz, como já vimos, defende a
utilização de todas as forças possíveis para desarmar o inimigo, Tzu opta por uma
via mais econômica e, teoricamente, menos violenta. Nesse ponto Liddell Hart traz o
seu estudo sobre a ação indireta e se opõe vigorosamente ao pensamento
clausewitziano, como no exemplo dos combates da Primeira Guerra Mundial, no
Oriente Médio:
“É difícil precisar se essas operações [combates entre britânicos e turcos] na Palestina
devem ser classificadas como uma campanha ou como batalha, completada com uma
perseguição, porque embora com as forças em contato ela terminou antes que esse
contato fosse rompido, o que a classificaria como batalha, porém a vitória foi obtida,
principalmente, por ações estratégicas e a parte da luta armada foi insignificante.
Isso motivou uma depreciação do seu resultado final, especialmente por parte daqueles
cuja escala de valores é governada pelo dogma de Clausewitz, de que o sangue é o
preço da vitória” (LIDDELL HART, 1982: 241).
A leitura de Liddell Hart do “dogma” tem fundamento, mas é
substancialmente mais exagerada do que pensava Clausewitz:
“O que significa dominar o inimigo? É quase sempre a destruição da sua força militar,
por morte ou ferimento, ou qualquer outro meio, de modo que a destruição seja
integral ou simplesmente suficiente para impedi-lo de continuar a combater”
(CLAUSEWITZ, 1996: 258).
92
Ver HANDEL, 1996: 19, Table 2.1.
100
Clausewitz, com isso, não defende a destruição total do inimigo, mas a
realização do objetivo de desarmá-lo. Entretanto, Liddell Hart está correto ao
entender que, se o inimigo pensar como Clausewitz, os combatentes provavelmente
se destruirão, caso haja igualdade de forças.
Liddell Hart, ainda assim, não deixa de reconhecer as contribuições de
Clausewitz para os estudos sobre as guerras, principalmente a ênfase dada pelo
prussiano ao ânimo e aos aspectos psicológicos. Contudo, para Liddell Hart, não
foram os méritos de Clausewitz seu legado, e sim seus erros, em especial o
paradigma da superioridade numérica. Sem dúvida, Clausewitz atribui a esse fator
um papel determinante, mas no âmbito da guerra moderna. Enquanto Liddell Hart vê,
de outras épocas até a Segunda Guerra Mundial, a ação indireta como a estratégia
mais eficiente do que os paradigmas clausewitzianos:
“Foram seus erros, entretanto, que exerceram maior influência no curso subseqüente da
História… ‘a superioridade em número se torna dia a dia mais decisiva’. Esse
‘mandamento’ serviu para reforçar o instinto conservador dos militares em sua
resistência às possibilidades da nova forma de superioridade que a invenção mecânica
cada vez mais proporcionava. Deu, também, poderoso impulso à extensão universal e
ao estabelecimento permanente do método de conscrição, como um meio simples de
aumentar os efetivos dos exércitos. A aplicação desse processo, por falta de adaptação
psicológica, tornou entretanto os exércitos mais sujeitos ao pânico e a colapso
repentino” (LIDDELL HART, 1982: 427-428).
A contestação de Liddell Hart, contudo, nesse sentido, parece não dar crédito
ao pensamento de Clausewitz em toda sua extensão. No capítulo III, do Livro V de
Da guerra, intitulado “A relação de força”, retoma o tema da superioridade
numérica, mas acrescenta aí a determinação dos combatentes e dos recursos
tecnológicos dos exércitos:
“No capítulo VIII do livro III sublinhamos a importância da superioridade numérica…
Se examinarmos com total imparcialidade a história militar moderna, precisaremos
reconhecer que a superioridade numérica se torna dia após dia mais decisiva… A
101
coragem e a moral do exército aumentaram em todos os tempos a sua força física, e
será sempre assim; mas existiram épocas na história em que a superioridade dependia
da organização e do equipamento dos exércitos, e outras em que a superioridade moral
dependia da sua maior mobilidade” (CLAUSEWITZ, 1996: 346).
Ora, o fato de Clausewitz presenciar o nivelamento dos recursos tecnológicos
utilizados pelos exércitos não implica que seja possível projetar a manutenção dessa
igualdade. Lembremos que Clausewitz teve como fonte para seu trabalho sua própria
experiência de vida, o que revela, pelo menos para termos de entendimento de sua
obra, uma localização temporal e, conseqüentemente, uma evidência: o maior
vencedor militar da época de Clausewitz, ainda que contra o seu desejo, foi Napoleão
(como cônsul e imperador) e este utilizou a superioridade numérica como fiel da
balança nas batalhas que disputou. Mesmo a derrota do exército francês é encarada
por Clausewitz como o resultado de uma relação de forças em que Napoleão se
encontrava mais fraco:
“As relações numéricas entre os exércitos russo e francês opostos um ao outro no
início da campanha de 1812 eram ainda mais desfavoráveis à Rússia do que a relação
entre Frederico e os seus inimigos durante a Guerra dos Sete Anos. Mas os russos
tinham a perspectiva de reforçar muito no decurso da campanha. Bonaparte tinha toda
a Europa em segredo contra ele” (CLAUSEWITZ, 1996: 887).
Outro aspecto a ser ressaltado na crítica de Liddell Hart à teoria de
Clausewitz é a sua noção da finalidade da guerra. Para o capitão inglês, talvez
sentindo na própria carne os efeitos da Primeira Guerra Mundial, a guerra tem por
fim garantir a paz
93
. Nesse sentido, faz um juízo moral sobre as nações,
diferenciando as que são pacíficas e as que são agressoras. Liddell Hart não discorre
muito sobre esse assunto, no entanto, fica evidente que o critério para a distinção é
frágil. O discurso que serve para justificar a defesa de uma nação pode ser visto
também como justificativa para se antecipar e atacar um possível inimigo que
demonstre ser agressor. A conjuntura política não se mantém imóvel. Talvez quem é
93
“A finalidade da guerra, em nosso ponto de vista, é assegurar uma paz em melhores condições”
(LIDDELL HART, 1982: 425).
102
defensor da paz num primeiro momento pode continuar defendendo esse discurso
para conquistar e anexar territórios de inimigos agressores ou submetê-los
politicamente, mantendo-os sempre vigiados. Os papéis se alteram conforme o
desenrolar dos eventos. Quanto a isso não há previsão. Talvez, nesse sentido,
Clausewitz tenha sido explícito demais, ao não declarar o que seria uma vontade
política legítima para se começar uma guerra, pois, segundo seu sistema, fazer isso
seria coroar os argumentos daqueles que vêem na política uma pureza de espírito
incapaz de sair do plano da sociabilidade natural. Ora, se a guerra é a continuação da
política por outros meios é porque atende à vontade política de um Estado e não a um
princípio moral superior que seria a manutenção da paz. Algumas passagens do Livro
VIII trazem a posição de Clausewitz:
“O objetivo da guerra deveria sempre ser, segundo o seu conceito, a derrota do
inimigo.
… já admitimos que a natureza do objetivo político, a vastidão das nossas próprias
exigências ou das do inimigo e o conjunto das nossas condições políticas têm uma
influência mais decisiva sobre a guerra.
Sabe-se evidentemente que só as relações políticas entre governos engendram a
guerra; mas imagina-se geralmente que essas relações cessam com a guerra e que uma
situação totalmente diferente, submetida às suas próprias leis e só a elas, se estabelece
nesse momento.
Nós afirmamos, pelo contrário: a guerra nada mais é senão a continuação das relações
políticas, com o complemento de outros meios. Dizemos que se lhe juntam novos
meios, para afirmar ao mesmo tempo que a guerra em si não faz cessar essas relações
políticas, que ela não as transforma em algo inteiramente diferente, mas que estas
continuam a existir na sua essência, quaisquer que sejam os meios de que se servem, e
que os principais filamentos que correm através dos acontecimentos de guerra e aos
quais elas se ligam não são mais que contornos de uma política que prossegue através
da guerra até a paz”(CLAUSEWITZ, 1996: 853-865-870).
103
Ao pensar o objetivo na guerra, Liddell Hart seguiu o mesmo expediente de
Clausewitz: percebeu o continuum entre política e guerra e que os objetivos, político
e militar, eram diferentes, mas inseparáveis. A tese de Clausewitz não é exatamente
esta? A diferença reside no olhar moral que se tem em relação ao meio e não ao fim.
O propósito, ainda que não falado por Clausewitz, é o mesmo que formulado por
Liddell Hart, mas os valores são diferentes. A cultura de Clausewitz, bem como a
conjuntura política em que viveu não lhe dava nenhuma oportunidade para pensar na
paz.
104
John Keegan contra Clausewitz
O historiador inglês John Keegan, diferentemente de Clausewitz e Liddell Hart,
não foi um guerreiro, mas seu pai foi soldado durante a Primeira Guerra, e a região
onde estavam estacionados os exércitos para a invasão do Dia D na Segunda Guerra
foi o lugar em que cresceu. De modo que, mesmo sem ter experimentado no front os
horrores da guerra, a sua presença o ronda desde criança. Seu envolvimento com a
história militar foi além de sua graduação, Na faculdade, a maioria de seus amigos
havia feito o serviço militar, ele, por sua vez, foi declarado incapaz para o exército
devido a uma doença contraída na infância que o deixou, segundo suas palavras,
aleijado. Mas enquanto seus pares resolveram seguir carreira como médicos,
engenheiros e advogados, ele tornou-se historiador militar.
Talvez a frustração por não se ter envolvido, na prática, com a guerra, tenha-o
moldado como um grande pensador que prefere ver a guerra através mais de seus
valores simbólicos e de seus mecanismos de funcionamento, do que pela sua trágica
realidade. Isso não significa que seja ignorante nos assuntos táticos e estratégicos;
pelo contrário, dispõe de um vasto repertório, sem contar suas vigorosas pesquisas
dos acontecimentos militares e descrições minuciosas sobre guerras. Em suma, para
nós, Keegan é atualmente a maior autoridade para assuntos da história militar.
Foi sua obra Uma história da guerra que nos cativou para a pesquisa. Portanto,
seria evidente que, ao tratarmos do pensamento de Clausewitz, adotaríamos o estudo
de Keegan. E, de fato, isso ocorreu. Contudo, suas conclusões e críticas que, no
primeiro momento em que tivemos contato com seu livro, nos pareciam tão
verdadeiras, passaram a ser questionadas. Por isso, sua importância para nós é ainda
maior. A leitura de Uma história da guerra não foi apenas a contemplação e a
aceitação passiva de suas teses, mas a provocação para se estudar Clausewitz, tão
criticado por Keegan e que, honestamente falando, conhecíamos apenas pela máxima
– e por ouvir dizer – de que a guerra é a continuação da política por outros meios.
105
Keegan é categórico ao abrir com a seguinte frase sua antítese fundamental: a
guerra não é a continuação da política por outros meios
94
. Desse modo, sentíamo-nos
obrigados a pelo menos entender, além da crítica, o objeto criticado. E, em vez de
reforçarmos as posições anticlausewitzianas de Keegan, ficamos desconfortáveis a
tomar algum partido. Indecisos, não! Nosso estudo sobre a produção histórica do
conceito de “guerra”, ainda que sem juízo de valores, ou mesmo sem concordar com
este ou aquele pensador, demonstra nossa preocupação em compreender o
pensamento político e cultural que forjou a teoria de Clausewitz. Mas já não
podíamos mais nos manter completamente fiéis ao que disse Keegan. Se a guerra não
é a continuação da política, o que é? Sua tese: a guerra é, antes de política, cultural.
“Em resumo, é no plano cultural que a resposta de Clausewitz à pergunta ‘o que é a
guerra’ é falha. Isso não é de forma alguma surpreendente. Todos nós achamos difícil
tomar distância suficiente de nossa própria cultura para perceber como ela faz de nós,
como indivíduos, o que somos. Para o homem ocidental moderno, com seu
compromisso com o credo da individualidade, essa dificuldade é tão grande quanto o
foi para gente de outros lugares e épocas. Clausewitz era um homem de seu tempo,
filho do Iluminismo, contemporâneo dos românticos alemães, um intelectual e um
reformista prático, um homem de ação, um crítico de sua sociedade e um apaixonado
crente na necessidade de mudá-la. Era um observador perspicaz do presente e um
devoto do futuro. No que fracassou foi em ver quão profundamente enraizado estava
em seu próprio passado, o passado de um oficial prussiano de um Estado centralizado
europeu. Se sua mente tivesse apenas mais uma dimensão intelectual – e se tratava de
uma mente já muito sofisticada –, talvez pudesse ter percebido que a guerra abarca
muito mais que a política, que é sempre uma expressão da cultura, com freqüência um
determinante de formas culturais e, em algumas sociedades, é a própria cultura”
(KEEGAN, 1995; 28).
Para Keegan, Clausewitz não percebeu essa condição porque não quis. Sua
experiência junto aos cossacos, na Rússia, contra a invasão de Napoleão, em 1812,
seria suficiente para ver que não se guerreia apenas por um Estado, mas por
elementos de uma cultura guerreira que está para além da política. Essa é, para
94
“A guerra não é a continuação da política por outros meios. O mundo seria mais fácil de
compreender se esta frase de Clausewitz fosse verdade” (KEEGAN, 1995: 19).
106
Keegan, assim como a guerra, um outro aspecto das diferentes culturas
95
. A guerra é
cultural e não política, pois a própria política é uma manifestação da cultura. Ora,
cultura também não é um conjunto de hábitos e costumes intransponíveis, que
servem como critério identitário das sociedades. Cultura é um processo dinâmico; é
fluxo. Momentos de ruptura social são também momentos de rupturas simbólicas,
psicológicas e de valores. A cultura também se transforma. Ainda que a máxima de
Keegan, “homem é um animal cultural”, seja válida, só o é exatamente por conter
uma pluralidade de culturas
96
. Lembremos a distinção de civilização e cultura
apresentada por Elias; mesmo no ocidente, tomar uma pela outra é um equívoco. O
que dizer se há o estabelecimento de uma cultura universal? Um contra-senso e nada
mais.
É curioso que Keegan não tenha citado sequer uma só vez o trabalho de Aron
em sua obra. Talvez, se o tivesse utilizado, perceberia o quão importante foram as
crises pelas quais Clausewitz passou. Não há dúvidas quanto à qualidade da pesquisa
de Keegan, mas o diálogo com outro intelectual autorizado para falar de Clausewitz,
como Raymond Aron, renderia um aprofundamento sobre as questões pessoais do
prussiano, ao mesmo tempo em que envolveria suas perspectivas políticas e os
valores de classe.
Vimos no capítulo I desta dissertação exatamente o dilema político-cultural que
se colocava para Clausewitz: o que é ser um nobre “bastardo”, no momento em que a
Europa de um modo geral rompia com os valores sustentados pela nobreza e passava
a valorizar o modo de vida e a política liberal? E a sua Alemanha, que ainda não era
um país, ia para o outro lado e a nobreza continuava a determinar a vida política dos
diversos estados germânicos. A contradição social era, segundo Elias, maior que a
francesa e, como resultado dessa tensão, não houve revolução, e sim a manutenção
95
“Clausewitz foi incapaz de reconhecer uma tradição militar alternativa no estilo de guerrear dos
cossacos porque só podia reconhecer como racional e valendo a pena uma única forma de organização
militar: as forças pagas e disciplinadas do Estado burocrático. Ele não admitia que outras formas
também pudessem servir bem suas sociedades, e defendê-las – ou ampliar seu poder, se fosse esse o
objetivo” (KEEGAN, 1995: 235).
96
A não ser que o homem seja um animal de uma determinada cultura e não é o caso, o próprio
Keegan, em sua Uma história da guerra, mostrou a guerra através das mais diferentes culturas e nem
por isso julgou o que era mais ou menos cultural.
107
da tradição germânica, incorporada, desde a época de Clausewitz, ao nacionalismo.
A cultura de Clausewitz era a do nobre guerreiro, mas que conseguiu ir além de um
mero representante de classe e passou a pensar nas transformações políticas que
estava vivendo. Ainda assim, era um aristocrata, fiel ao monarca e contrário à
democracia. Foi a cultura de Clausewitz que o levou a pensar no continuum da guerra
e da política.
O modelo do Estado nacional colocava-se de forma impetuosa como a única
forma de sobrevivência das sociedades européias, e a guerra, tanto para Clausewitz
como para Keegan, refletia isso. Então, por que o prussiano poderia pensar que o
futuro seria diferente? Por que desejaria ele a paz? Por que se preocupar com um
desejo apenas e não com o que de fato acontece nas relações humanas? Keegan
também concorda com o fato de que há guerra e haverá guerra, mesmo que não a
desejemos. Clausewitz não notou que a cultura era a essência da guerra?
Evidentemente que não! Não era sua preocupação; contudo, jamais negou a
importância da virtude guerreira, e isso não é um aspecto da política.
Keegan não foi ingênuo e, certamente, leu Da guerra mais e melhor do que
nós, mas tinha um propósito: apresentar uma definição do conceito de “guerra” mais
ampla e verdadeira que a de Clausewitz. Desse modo, não era possível fazer tantas
concessões. Mesmo assim, não pode ser acusado de forma alguma de ter sido leviano
na análise do pensamento de Clausewitz, já que apresenta de forma franca e aberta
suas referências para pensar a guerra, a política e a cultura e suas contraposições à
teoria do prussiano. No entanto, o plano de Keegan é aparentemente o mesmo que o
do prussiano: escrever uma obra atemporal sobre a guerra, seus fenômenos e sua
essência. Nesse caso, temos de verificar como se dá o afastamento de seu
pensamento em relação ao de Clausewitz.
Como dissemos, para Keegan, a guerra não é a continuação da política por
outros meios. Portanto, precederia a própria idéia de Estado. Mas, por que a política
seria exclusivamente uma manifestação do Estado Civil? É verdade que Keegan não
disse isso, mas apontou para esta definição do conceito de “política” adotado por
108
Clausewitz. E está certo. Da guerra trata da guerra entre Estados e, logo, a guerra é a
continuação da política dos Estados. Contudo, o conceito de “Estado”,
historicamente moderno – nós também tratamos disso – e, conseqüentemente, fruto
do universo social de onde e quando surgiu, não é universal. A isso não é necessária
nenhuma petição de princípio a Clausewitz quanto ao seu estatuto conceitual de
política, pois pensa a guerra como sua extensão apenas depois de anunciar que a
guerra é a ampliação de um duelo (é a própria cultura de Clausewitz que fala aqui e
não sua frieza analítica e dedutiva). Mas a urgência histórica o pressionava, não
havia motivos para tratar da guerra em outros termos e, mesmo assim, somente trinta
anos após a escrita de Da guerra, é que temos a utilização de seus preceitos de forma
prática entre os Estados beligerantes.
A filiação que Keegan faz de Clausewitz ao pensamento aristotélico
97
parece-
nos também descontextualizada da tradição filosófica à qual o prussiano estava
vinculado. O paradigma do homem como animal político já havia caído por terra
com o pensamento hobbesiano. Não havia mais lugar para acreditar na sociabilidade
natural do ser humano. Mesmo Kant, de quem Clausewitz era leitor, formulou a idéia
de “insociável sociabilidade”
98
, ou seja, é fundamental que os homens vivam em
sociedade, mas estarão sempre em competição uns com os outros. Hobbes fundou
teoricamente a filosofia do Estado Civil, a partir de uma natureza humana não-
política e, se a noção de “política” de Clausewitz estava diretamente ligada ao
conceito de “Estado”, ele não poderia pensar em termos aristotélicos.
A crítica de Keegan seguiria assim por um caminho aparentemente muito
seguro. Ao enunciar contrariamente a Clausewitz que o homem é, antes de ser um
animal político, um animal cultural, Keegan re-funda a natureza humana em outros
termos. Em primeiro lugar, questiona-se se o sentido aqui não seria apenas
semântico, pois um homem isolado produz cultura? Se retomarmos o fundamento
teórico de Hobbes quanto à confecção do Estado, aquilo que é pensado como cultural
97
“‘O homem é um animal político’, disse Aristóteles. Clausewitz, herdeiro de Aristóteles, disse
apenas que um animal político é um animal que guerreia. Nenhum dos dois ousou enfrentar o
pensamento de que o homem é um animal que pensa, em quem o intelecto dirige o impulso de caçar e
a capacidade de matar” (KEEGAN, 1995:19).
98
Ver KANT, 1986.
109
somente pode ser visto com o surgimento da política: o pacto entre indivíduos
deliberando um árbitro capaz de pô-los em paz, detentor legítimo da violência,
pacificador e portador legal das armas. É evidente que estivesse sobre este registro o
pensamento de Clausewitz, de modo que a noção de cultura na prática humana da
guerra fosse apenas uma mera curiosidade para as discussões etnográficas do século
XIX. Na própria teoria hobbesiana – contratualista e apolítica da natureza humana –,
o estágio pré-estatal do homem é uma fase da guerra de todos contra todos os
homens. A crítica de Keegan, nesse sentido, vai atrelada a esta confirmação
antropológica hobbesiana de que a guerra antecede a própria política. Contudo, o
princípio de Hobbes é antiaristotélico; portanto, ainda que a dimensão apolítica da
guerra esteja privilegiada por Keegan, não a é em detrimento da teoria
clausewitziana. O general prussiano ponderou com cautela a importância dos
aspectos morais na guerra e, portanto, deu ênfase à cultura do guerreiro, que também
era sua cultura.
Em segundo lugar, para haver cultura, conceito tão caro e tão maltratado
atualmente, é necessário mais do que um único indivíduo isolado e isento de
relações; é fundamental que este se relacione com outros, com o espaço e o tempo
em que vive e com elementos que permeiam também sua história
99
.
Keegan, ao criticar os pressupostos metafísicos de Clausewitz, parece
entender a sociabilidade como condição natural do ser humano (numa aproximação
muito mais evidente ao princípio aristotélico de substância humana do que aquela
que é feita pelo prussiano). Mesmo que o homem esteja vivendo nas mais distintas
formas de organização social pré-política – clã, tribo, família, horda –, pressupõe-se
certa sociabilidade imanente ao homem capaz de produzir cultura sem que algum
Estado o regule. No entanto, o paradigma da sociabilidade se instaura como uma
verdade indemonstrável, compreensível, mas indeterminada. Logo, não compete
saber a ontologia da guerra em termos metafísicos – estaríamos jogados num
99
“O pensamento de Clausewitz… ao olhos de alguns intérpretes, como prisioneiro de ilusões,
alimentadas pelo meio, pelo espírito do tempo… uns viram aí uma sobrevivência do racionalismo,
outros dão realce à vontade mais do que à racionalidade e desvendam a constância do pensamento
clausewitziano” (ARON, 1986a: 82).
110
processo infinitamente repetitivo, como alertamos no capítulo II desta dissertação –,
mas entender que, ao atribuir o fundamento político da guerra, Clausewitz
manifestou o que viveu, em toda sua cultura e, por que não dizer, em sua política.
Talvez a definição de Florestan Fernandes (1920-1995), apresentada na
introdução de sua obra A função social da guerra na sociedade tupinambá, responda
melhor à pergunta de Keegan, “o que é a guerra?”, num plano mais amplo que o
cultural e político. E isso não implica abandonar o que pensou Clausewitz, nem
mesmo o próprio Keegan:
“A GUERRA É UM FENÔMENO HUMANO. Não se pode dizer precisamente como
e quando ela surgiu, no passado remoto da humanidade. Nem tampouco se pode
presumir a que ‘necessidades’ existenciais ela correspondeu originariamente. Até onde
alcança a investigação empírico-indutiva, através da reconstituição arqueológica, da
reconstrução histórica e da observação direta, a guerra se apresenta como fato social,
no sentido restrito de existir como uma das instituições sociais incorporadas a
sociedades constituídas…” (FERNANDES, 2006: 21).
Em suma, a guerra é um hábito, como gostaria Keegan, mas também é
política – para o habitus de Clausewitz. A cultura ou a política não podem ser
entendidas como origem de nada. Já dissemos do exagero ontológico ao procurar um
fundamento último para qualquer coisa. Porém a história nos ensina a entender que
as práticas sociais são construções humanas e não valores etéreos ou universais. A
guerra para Clausewitz, ainda que não conseguisse dimensionar a confusa forma de
os cossacos lutarem – para seus valores –, somente poderia ser entendida no plano da
política. Enfim, Clausewitz viu a guerra com os olhos de quem foi soldado e a viveu
numa conjuntura absolutamente impregnada de política. Teorizou sobre o que
poderia narrar e não sobre o que desejaria ver e, mesmo assim, não se esqueceu de
que a virtude do guerreiro é um dos aspectos determinantes da guerra.
111
Considerações Finais
112
O poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios.
Foucault
A guerra não é a continuação da política por outros meios. O mundo seria
mais fácil de compreender se esta afirmação fosse absolutamente verdadeira. Pelo
menos para Clausewitz. O general-filósofo que produziu uma das obras mais
marcantes sobre a guerra descreveu as experiências mais intensas que viveu da
guerra real, em momentos quase absolutas, e pensou sobre a natureza de seu
conceito.
Poderia constatar outra coisa senão a guerra como política? Ou no mínimo a
guerra como um instrumento da política? A Europa do século XIX poderia ser
compreendida por outro tipo de guerra senão aquela que obrigava os Estados a
lançarem mão do maior número possível de soldados, obstinados em desarmar o
adversário de qualquer jeito, como um duelo? Poderia ter força se não estivesse
apoiada na trindade povo-exército-Estado
100
? A guerra moderna não foi isso?
O conceito de “guerra”, ontologicamente falando, apenas expressa as
impressões de um homem que conseguiu traduzir em palavras sua vida nos campos
de batalha. Este homem, contudo, não era uma folha em branco. Sua leitura de
mundo era atravessada e manipulada pelos valores de sua cultura. Uma cultura que,
apesar de seu forte apego à tradição, jogava-o contra os eventos que presenciava;
obrigava-o a ter jogo de cintura para não sofrer de esquizofrenia. Se, de um lado, os
valores da nova e moderna Europa desprestigiavam seus antigos mandatários, ainda
havia bastiões de resistência da antiga aristocracia em lugares como a Prússia. Nos
paradoxos da modernidade e da tradição; da fidelidade vassálica e do sentimento
nacionalista, Clausewitz teve a perspicácia de perceber que, se o mundo não seria
mais o mesmo, a guerra também não poderia ser. Mas as transformações não
100
“A trindade que caracterizaria a guerra real e completaria sua definição como fenômeno total,
comportaria três componentes que expressariam suas tendências dominantes. O primeiro componente
englobaria uma violência original, uma hostilidade e uma animosidade, considerados como um
impulso natural cego, todos ligados ao povo. Nesse contexto, as paixões que se manifestariam na
guerra seriam inerentes ao povo. O segundo componente diria respeito ao jogo de probabilidades e do
acaso que movem a livre alma criativa, que dependerá das características de seu comandante e de seu
exército. Por fim, a subordinação da guerra à política e aos objetivos políticos, assunto de decisão
exclusiva do governo de um Estado” [grifo nosso] (PASSOS, 2005: 8).
113
aniquilam o passado. Este é traduzido para os novos tempos. A guerra moderna
aceitaria os valores do guerreiro, porque, no front, são estes que ainda contam.
Mesmo racionalizada matematicamente, a guerra continua a ser uma ação do homem.
E este, por mais que deseje, não consegue se emancipar por completo de suas
paixões e afetos, ainda que seja possível transcrevê-los em um tratado político-
militar.
Da guerra é um livro histórico e de História. Também é de Ciência Política.
Mas, acima de tudo, é um livro de Filosofia; de Filosofia da guerra, de sua natureza
atrelada à forma e matéria das sociedades modernas do século XIX; da guerra do
Estado nacional (que é a pessoa política fruto da vontade política de todo um povo-
nação, artificialmente confeccionado), em uma mistura de nostalgia pelo passado
supostamente glorioso e ansiedade pelo futuro que quer se materializar em seu
presente como sucesso. Não do cavaleiro, mas de todo o exército de comuns, de
franceses, ingleses, alemães… de concidadãos-soldados, de camaradas de lutas
(políticas ou bélicas).
Procurar a origem de um conceito é uma tarefa ingrata; não para quem a
realiza – na maior parte dos casos, o investigador se regozija por acreditar tê-la
encontrado –, mas para quem procura entender a teoria formulada desse investigador.
Não é à toa que Raymond Aron chamou de formule o aforismo de Clausewitz sobre o
continuum guerra e política. Não podia ser de outro jeito. A forma moderna da guerra
era aquela anunciada no primeiro capítulo do Livro I de Da guerra. Fugir à fórmula
era errar grosseiramente contra seus inimigos políticos, pois, se estes fossem hábeis e
observadores de seu tempo, a seguiriam credulamente. Não é de se estranhar,
contudo, a permanência da idéia de afirmação humana através do sucesso de uma
campanha militar vitoriosa, apesar da mudança de sentido da guerra, na época
moderna, submetido aos interesses de um Estado Civil. O exército que derrota o
inimigo de seu Estado conquista para todo o seu povo a glória e o poder, antes
restritos aos poucos cavaleiros nobres que lutavam em nome próprio ou de um
príncipe.
114
É inegável que o tempo dos cavaleiros havia passado. Quem percebeu a
transformação foi exatamente um membro dessa classe, em um lugar onde esse
tempo não queria passar. Clausewitz capturou a transformação histórica de sua
época. Talvez não tenha sido mesmo original em suas proposições, mas certamente
materializou em texto o que seriam idéias no ar. Idéias que, curiosamente, tardaram a
ser valorizadas. Somente após quarenta anos de sua morte e do surgimento de uma
Alemanha unificada – provavelmente do jeito que desejava – foi reconhecido pelos
arquitetos políticos e militares dessa potência que desequilibrou o jogo de forças de
uma Europa que, para alguns (Keegan, por exemplo), vivera quase um século de paz,
entre 1815 e 1914.
Nesta dissertação falamos quase que exclusivamente sobre a guerra. A
palavra paz não deve ter aparecido mais uma dezena vezes e, nessas ocasiões,
provavelmente para ser afastada ou ironizada. Não é que sejamos contrários, mas, se
ao estudarmos a obra de um teórico militar, estivéssemos envolvidos com soluções
para a guerra e vias para a paz, provavelmente o compreenderíamos pouco.
Recuperando um pouco o caminho que seguimos para entender a natureza do
conceito de “guerra”, vimos que o homem, em seu estado de natureza, segundo o
pensamento de Hobbes, não é político; ao contrário, se sente ameaçado pela presença
do outro. A sociedade civil seria assim a forma encontrada pelos homens para se
protegerem de si mesmos. Ora, mas jamais fora feito qualquer pacto universal. A
condição de guerra permanece, agora entre indivíduos políticos chamados de
Estados. Por outro lado, poderíamos inverter a lógica hobbesiana: a sociedade civil
não é o modo que os homens encontraram para fundar a paz, mas sim a guerra. Mais
do que isso: a guerra – condição da natureza do homem – é amplificada e
institucionalizada com o Estado, uma vez que o poder constituído nesta instituição
recebe o direito de ser o portador legítimo das armas
101
. O povo, portanto, deveria ser
desarmado. Mas o exército, na guerra moderna, é o próprio povo. Com efeito, os
sentimentos de nação, pátria, identidade, língua servem como cola para união de
pessoas, em tese, inimigas. O outro, o estranho, o estrangeiro, não é mais qualquer
101
Foucault propõe outra reflexão do continuum política e guerra. O aforismo de Clausewitz sofre
uma inversão: a política é a continuação da guerra por outros meios.
115
outra pessoa, e sim aquele que não comunga dos mesmos valores, hábitos, leis,
pátria, nação e identidade.
Por outro lado, mesmo para Hobbes, os homens desejam a paz acima de tudo;
apenas quando não a alcançam é que lançam mão da guerra. Ora, sinceramente
falando, a paz não passa de desejo, ou de um acordo que não extingue as relações de
poder e, portanto, não elimina os conflitos.
A suposta igualdade natural é pervertida artificialmente, com a instituição do
Estado. Este, que promove a guerra, pois é o legítimo detentor das armas, protege
aqueles privilegiados pelo pacto. Do mesmo modo, os Estados não são iguais entre
si, e se percebem diferentes em força quando se deparam uns com os outros para
tratarem de questões políticas. Na época de Clausewitz ainda não havia “sólidos
tratados internacionais” como os de hoje e que, ainda assim, não são sempre
respeitados. Para ele, não havia tribunal capaz de julgar as celeumas entre os
Estados. Fatalmente, estariam envolvidos em uma guerra.
A política é a continuação da guerra por outros meios, como queria Foucault
ao inverter o aforismo de Clausewitz
102
. Mas, institucionalizada na forma do Estado,
a máxima de Clausewitz retorna à sua formule original: a guerra é a continuação da
política por outros meios. O Estado é uma invenção moderna. A guerra que pratica
também é.
O que é a guerra moderna? Um duelo. Uma luta entre dois contendores
ampliados na condição de povo, de exército e de Estado (de uma nação). A guerra de
Clausewitz era assim.
102
“… o mecanismo de poder é, fundamental e essencialmente, a repressão… o poder é a guerra, é a
guerra continuada por outros meios… as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade
como a nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força estabelecida
em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra. E, se é verdade que o poder
político pára a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo
algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na
batalha final da guerra. O poder político, nessa hipótese, teria como função reinserir perpetuamente
essa relação de força…” (FOUCAULT, 1999: 22-23).
116
Hoje, talvez, não seja possível dizer o mesmo.
117
FONTE:
Adotamos como fonte para esta pesquisa a obra de Carl von Clausewitz intitulada
Vom Krieg (em Português, Da guerra). Os textos utilizados foram o “original”,
publicado entre 1832 e 1834, nos três primeiros tomos – em um total de dez – das
obras completas de Clausewitz; a tradução da editora Martins Fontes de 1996, e a
tradução inglesa da editora Penguin Books, de 1968:
CLAUSEWITZ, Carl von. Vom Krieg. Berlin: Ferdinand Dümmler, 1832-1837
(Hinterlassene Werke des Generals Carl von Clausewitz über Krieg und
Kriegführung), Erster Band, 1832; Zweiter Band, 1833; Dritter Band, 1834.
Disponível em: www.galica.bnf.fr/Catalogue/notices.Ind/FRBNF30248103.htm.
__________________. On war. Londres: Penguin Books, 1968.
__________________. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BIBLIOGRAFIA
118
ARISTÓTELES. Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
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