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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
MESTRADO EM DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO
VINÍCIUS MAGALHÃES PINHEIRO
CIDADANIA E DIREITO EM GALVANO DELLA VOLPE.
São Paulo
2007
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VINÍCIUS MAGALHÃES PINHEIRO
CIDADANIA E DIREITO EM GALVANO DELLA VOLPE.
Qualificação de dissertação apresentada na
Universidade Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito Político e Econômico.
Orientador: Prof. Dr. Alysson Leandro Barbate Mascaro
São Paulo
2007
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VINÍCIUS MAGALHÃES PINHEIRO
CIDADANIA E DIREITO EM GALVANO DELLA VOLPE.
Qualificação de dissertação apresentada na
Universidade Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito Político e Econômico.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Alysson Leandro Barbate Mascaro – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Gilberto Bercovici
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Márcio Bilharinho Naves
Universidade Estadual de Campinas
A todos os lutadores
e lutadoras do povo
por um mundo justo!
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Antônio Crisóstomo Pinheiro e Maria Termutes Magalhães Pinheiro,
pela confiança em mim depositada, pelo socorro de todas as horas e pelo apoio
incondicional aos estudos.
A minha irmã, Valéria Magalhães Pinheiro, pela fraternidade singular nos momentos de
maior dificuldade.
Ao Professor Doutor Alysson Leandro Barbate Mascaro, orientador, mestre e amigo,
farol de um pensamento crítico e de uma ação revolucionária.
Ao Professor Doutor Márcio Bilharinho Naves, figura humana ímpar, por suas
indispensáveis colaborações.
Ao Professor Doutor Gilberto Bercovici, observador astuto das minhas pesquisas, pelas
recomendações preciosas durante os estudos.
Ao Professor Doutor Ari Marcelo Solon, por ter despertado, definitivamente, a
inquietação intelectual.
À amiga Vanessa Mastrocessario Silva, por sua indispensável ajuda bibliográfica.
A todos os colegas de sala, pela colaboração crítica durante as aulas e os debates.
A CAPES pela bolsa de estudos oferecida.
Resumo
A presente pesquisa tem como objeto a obra do marxista italiano Galvano Della Volpe,
tentando construir seu conceito de direito e sua crítica da legalidade. Nesta construção,
buscou-se entender a obra do autor como um todo, a partir da leitura de seus diversos
textos. Ainda, procurou-se contrastar o pensamento de Galvano Della Volpe às
concepções de outros filósofos e juristas, com consulta às obras dos mesmos.
Palavras-chave: crítica da legalidade, direito, Galvano Della Volpe, marxismo.
Abstract
The present research has as object the investigation of the work of the Italian Marxist
Galvano Della Volpe, in order to reconstruct his concept of law and his legalist’s critic. In
this construction, it was aimed at to study the author’s works as a whole, in reading of
his diverse texts. Still, it was looked to contrast the thought of Galvano Della Volpe ideas
of other philosophers and lawyers, consulting with the works of the same ones.
Keywords: legalist’s critic, law, Galvano Della Volpe, Marxism.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................... 9
2. GALVANO DELLA VOLPE E O MARXISMO ............................................... .... 12
3. O MÉTODO MARXISTA DE GALVANO DELLA VOLPE ............................. .... 17
3.1. Questão Epistemológica em Galvano Della Volpe................................... .... 17
3.2. Duas Formas de Marxismo Anti-Hegeliano: Um Diálogo entre Galvano
Della Volpe e Louis Althusser.................................................................... .... 19
3.2.1. A influência de Feuerbach no jovem Marx ............................................. .... 20
3.2.2. A questão do “corte epistemológico” em Althusser ................................ .... 25
3.3. Marx e Hegel em Galvano Della Volpe .................................................... .... 29
3.3.1. Crítica marxiana ao hegelianismo .......................................................... .... 30
3.3.2. As “tautologias reais” de Hegel .............................................................. .... 30
3.3.3. Reenquadramento do materialismo histórico ......................................... .... 36
3.3.1.1. Aristóteles............................................................................................ .... 37
3.3.1.2. Galileu ................................................................................................. .... 40
3.4. A Unidade Metodológica entre Ciência e Filosofia em Della Volpe: “Círculo
Metódico”; “Abstração Determinada”; “Postulado da Matéria”................... .... 43
3.5. Uma Nova Metodologia Dialético-Materialística: A “Chave da Dialética
Histórica” .................................................................................................. ....
44
4. ESTADO, DIREITO E CIDADANIA EM GALVANO DELLA VOLPE ............ .... 53
4.1. Entre Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx: A Questão Democrática em
Galvano Della Volpe................................................................................ .... 53
4.1.1. Galvano Della Volpe e Rousseau: a questão do “homem abstrato” e do
“regresso à natureza” rousseaunianos.................................................... .... 53
4.1.2. Galvano Della Volpe e Jean-Jacques Rousseau: contrato social,
igualdade e liberdade ........................................................................... .... 54
4.1.3. A atualidade rousseauniana em face da questão democrática .............. .... 59
4.1.4. Kant: crítica dellavolpiana ao jusnaturalismo racionalista kantiano........ .... 61
4.1.5. Locke: crítica dellavolpiana da justificação jusnaturalista lockeana do
trabalho ................................................................................................. .... 67
4.1.6. Rousseau, Marx e a liberdade igualitária ............................................... .... 68
4.2. A Questão da Legalidade em Galvano Della Volpe: Um Diálogo
Necessário com Evgeni Pachukanis ......................................................... .... 73
4.2.1 A legalidade socialista em Galvano Della Volpe .................................... .... 73
4.2.2. Um diálogo necessário com Evgeni Pachukanis.................................... .... 82
5. CONCLUSÃO............................................................................................... .... 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. .... 98
9
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se propõe a trazer ao pensamento jurídico brasileiro
aspectos da crítica da legalidade presente em Galvano Della Volpe, filósofo italiano
contemporâneo. Certamente, tratar de suas conceituações jurídicas e, mesmo, esboçar
uma teoria jurídica dellavolpiana implicará numa análise da leitura de sua questão
democrática e cidadã. Ainda, será necessário desbravar o oceano filosófico oferecido
pelos seus desafios metodológicos, em especial no que se refere a sua peculiar leitura
da relação entre o pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Karl Marx.
O estudo da obra de Della Volpe traduziu duas espécies de desafios. O primeiro
desafio foi o acesso às obras. Na Itália, terra natal do filósofo, suas obras estão
esgotadas, tanto na editora Riuniti, principal veiculadora dos livros de Galvano Della
Volpe, com quem travamos longos contatos sobre uma forma de aquisição, quanto em
livrarias italianas, inclusive nas lojas de livros usados. Certamente, seus textos
completos podem ser encontrados em várias bibliotecas das universidades italianas,
mas nos faltou a oportunidade de seguir até lá, a fim de ter acesso aos mesmos.
Vasculhando as bibliotecas das principais universidades brasileiras, a grande maioria
não possui por completo os textos dellavolpianos, o que impôs uma empreitada de
buscas pontuais de cada obra. De toda forma, poucas obras suas traduzidas para o
português e a imensa maioria delas se encontra indisponíveis no mercado livreiro. No
Brasil, algumas edições pela Paz e Terra e outras pela editora Mandacaru.
algumas publicações pela editora 70, de Portugal, cujas traduções não são de todo
ruins, mas talvez com algumas dificuldades no que se refere à disposição das palavras
no discurso.
De toda forma, traduzir Della Volpe não é tarefa das mais fáceis, o que escusa
qualquer imprecisão. E aqui se encontra o segundo desafio na abordagem do
pensamento de Galvano Della Volpe: sua atividade intelectual é das mais vastas e o
contato com suas idéias não pode se dar a partir de uma leitura acomodada,
confortável; mas sim a partir de uma verdadeira ginástica mental das mais laboriosas. O
10
pensamento dellavolpiano é ágil e realiza profundos mergulhos na história da filosofia.
Mas não apenas, Della Volpe adentra vários mares do conhecimento e em todos se sai
muito bem, como um grande capitão destemido e incansável. É espantosa a intimidade
do pensador italiano com a obra de alguns gigantes da história da filosofia, Aristóteles,
Hegel, Rousseau, Marx são tratados de forma próxima, numa demonstração de
domínio, que pode causar, até mesmo, certo temor em quem se dispõe a estudar
Galvano Della Volpe. O texto dellavolpiano é repleto de digressões e longas reflexões
paralelas, o que implicou em um grande trabalho de sistematização. Todavia, é desta
dificuldade que nasceu a satisfação de enfrentar o desafio. uma série de críticas
possíveis ao conjunto de suas concepções filosóficas, políticas e jurídicas - o que
tornou suas provocações intelectuais ainda mais instigantes. Assim, este foi o mais
compensador dos desafios: incomodados com novas perspectivas filosóficas
fundamentadas exaustivamente, fomos obrigados a oferecer uma contra-leitura (em
especial no que se refere às questões jurídico-políticas) perante um autor de enorme
envergadura e cujo tratamento exige grande respeito e uma postura de absoluta
humildade. Por fim, reconhecemos nossa insatisfação intelectual por sermos obrigados
a meditar sobre as idéias de um autor tão complexo num período tão curto de
elaboração de dissertação de mestrado e condensarmos sua obra intelectual num único
texto, pois, a bem da justiça com o filósofo italiano, seriam necessários vários volumes
(e um bom par de anos), a fim de nos aproximarmos da inteireza de sua construção
teórica.
Traçando um breve plano do presente trabalho, apresentamos aspectos da
bibliografia de Della Volpe. Foram trazidas algumas notas sobre a vida do autor, sua
formação e carreira acadêmica, alguns traços de seus debates com outros pensadores,
sua ligação com o partido político (ligação essa que se presta a fonte de algumas das
nossas críticas) e, de uma forma geral, o mapeamento de seu pensamento filosófico.
Encerrada esta etapa, partimos para um dos pontos de maior dificuldade: as
propostas metodológicas dellavolpianas. Aqui se verificam as questões de maior
polêmica, em especial por conta das peculiaridades da leitura marxista de Galvano
Della Volpe. Enquanto a maioria dos estudiosos de Marx afirma ser ele um herdeiro
11
filosófico de Hegel e de Ludwig Andreas Feuerbach, Della Volpe navega contra a
corrente e constrói uma forma anti-hegeliana de se pensar o marxismo. Segundo o
autor italiano, Marx não parte do pensamanto de Feuerbach e Hegel, mas sim, de
Aristóteles e Galileu, o que vai exigir do pensador italiano uma contundente
fundamentação teórica, a qual nos leva a uma grande viagem pela história da filosofia.
Assim, se faz necessário um diálogo com um outro gigante: Louis Althusser, filósofo
franco-argelino, igualmente marxista anti-hegeliano, cuja obra é de grande repercussão
na atualidade.
Chegando a última etapa - na qual, seguramente, ensaiamos conclusões, ainda
que convictos de que os assuntos aqui tratados não estão, de forma alguma,
esgotados, procuramos esboçar aspectos de uma teoria da democracia e do direito em
Galvano Della Volpe. Procuramos abordar a leitura dellavolpiana de Jean-Jacques
Rousseau, com atenção à problemática da liberdade, enquanto face da justiça social.
Ainda, são feitas referências à polêmica entre Della Volpe e Norberto Bobbio, jurista
italiano de orientação liberal, em especial, no que se refere à democracia e liberdade.
Por fim, talvez um dos pontos de maior interesse do trabalho: chegamos à crítica da
legalidade em Galvano Della Volpe e a indispensável contraposição de sua leitura à
obra de Evgeni Pachukanis, jurista russo de grande fidelidade ao legado marxista
1
.
1
A despeito da suposta crise do marxismo enquanto concepção teórica da economia e da sociedade,
cabe uma breve nota. Descartar automaticamente o marxismo por conta da ruína - ou profundas
modificações - de regimes que se diziam e dizem-se socialistas (sem necessariamente o serem na
forma autenticamente marxista, frise-se bem) acaba sendo certo exercício de má-fé intelectual,
equívoco dos maiores. Se há controvérsias teóricas no conjunto da obra marxiana e marxista, estas não
decorrem dos eventuais erros de interpretação de alguns estadistas. Tais controvérsias decorrem das
inúmeras polêmicas inerentes à obra de Karl Marx e Friedrich Engels e de toda tradição marxista. De
toda forma, talvez, ainda, o espectro do comunismo e da metodologia marxiana e marxista rondem o
mundo - tão carente de justiça -, provocando temores naqueles que se beneficiam da exploração
capitalista. E, seguindo essa lógica, todo e qualquer expediente apto a desacreditar o marxismo é e se
utilizado (...)
12
2 GALVANO DELLA VOLPE E O MARXISMO
É possível fixarmos dois períodos em Galvano Della Volpe: uma juventude
historicista e neo-hegeliana, portanto, não-marxista, contraposta a uma maturidade
marxista
2
.
Num primeiro momento, nos idos da cada de 1920, Galvano Della Volpe fora
um historiador da filosofia. Seus estudos versaram sobre filologia, história das idéias,
oferecendo explicação de textos filosóficos e comparação entre sistemas filosóficos.
Também se voltou à análise de filósofos positivistas e empiristas, tais quais: Auguste
Comte e Émile Durkheim, na qual faz uma reavaliação dos fundamentos do
conhecimento experimental
3
. Por fim, debruçou-se, de 1930 a 1943, sobre questões de
lógica e estética. Nesta etapa, faz uma “recusa sistemática tanto em arte, quanto nos
procedimentos científicos de qualquer tipo de apriorismo ou de valorização unilateral da
fantasia, em detrimento da instância racional”.
4
Assim, empreende estudos de Nietzche,
Heidegger, Kant, Hegel, Schiller e Croce. São suas obras dessa fase “Fundamentos de
uma filosofia da expressão”; “Crise crítica da estética romântica” e Crítica dos
princípios lógicos”.
2
quem diga - notadamente Perry Anderson (em Considerações sobre o marxismo ocidental. 1.ed.
São Paulo: Brasiliense, 1989), que Galvano Della Volpe, assim como todo um grupo de outros filósofos,
compõe o denominado “marxismo ocidental”, com a justificativa de que teria havido, a partir do fim da
Segunda Guerra Mundial e o advento da Guerra Fria, com cisão bipolariaza da Europa, um suposto
sucesso do modelo capitalista e o fracasso da expansão do projeto revolucionário russo para além das
fronteiras, ocasionando uma revisão da abordagem do marxismo e “o
abandono progressivo de
estruturas econômicas ou políticas como objetos centrais da teoria, foi acompanhado por um
deslocamento básico de todo o eixo gravitacional do marxismo europeu no sentido da filosofia”
(ANDERSON, op. cit. p.75). Apesar da respeitabilidade de Perry Anderson, preferimos nos aproximar
de Gisela da Conceição, para quem “o conceito de marxismo ocidental é teoricamente inconsistente (...)
Os critérios habitualmente invocados na defesa da sua constituição, valência e vigência carecem do
limiar nimo de rigor, susceptível de garantir contornos de um território do pensamento autônomo.
Trata-se de uma ficção, cuja existência se prolonga alimentada pelo artifício de um processo cumulativo
de conteúdo que mais não é sinal manifesto de uma irreparável ausência. (...) leituras,
interpretações, desenvolvimentos criativos do marxismo a leste e a oeste. Em termos hermenêuticos, a
questão central é a da averiguação da sua co-possibilidade com o aparelho categorial nuclear que,
explicitamente, designam como seu referente. Esta perspectiva não dá, assim, acolhimento à
concepção vulgarizada da existência de marxismos ou de um neomarxismo integrador de correntes
plurais” (CONCEIÇÃO, Gisela da. Ler Althusser, leitor de Marx. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.48).
3
PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES, Florestan. Galvano Della Volpe. PEREIRA, Wilcon Jóia.
(Coord.). São Paulo: Ática, 1979, p.11.
4
Ibid., p.11.
13
De 1943 a 1950, dá-se o segundo momento dellavolpiano: a assimilação
marxista. Escreve “A teoria marxista da emancipação humana”, “A liberdade comunista”
e “Pela teoria de um humanismo positivo”, obras nas quais se volta à ética marxiana,
refletindo sobre a revolução proletária e a liberdade, assim como sobre a questão da
igualdade e o valor de um socialismo democrático e humanista, bem como a
possibilidade de uma autêntica comunidade humana na futura sociedade sem classes.
O contexto sócio político italiano gira em torno da Segunda Guerra Mundial, envolvendo
a luta contra o fascismo e a esperança de reconstrução nacional.
De 1950 a 1968, data de seu falecimento, Galvano Della Volpe atinge sua
maturidade marxista. Nesta fase, são publicadas algumas de suas obras vitais:
“Rousseau e Marx” (com amplo debate sobre ética e política), “Lógica como ciência
histórica” (com questões referentes à dialética materialista), “O verossímil fílmico e
outros estudos de estética” (ensaios sobre a filosofia materialista da arte) e “Crítica da
ideologia contemporânea” (no qual Della Volpe expõe seus debates e polêmicas com
outros filósofos). E é esta terceira fase dellavolpiana que mais nos interessa no
presente trabalho.
Mas façamos algumas observações mais precisas de sua trajetória intelectual.
Galvano Della Volpe representou a retomada da produção teórica marxista após sua
interrupção pelo governo de Mussolini. É Norberto Bobbio quem revela, para o qual
De fato, na principal cidade do Estreito de Messina, entre 1943 e 1946
5
, no
clima inquieto e turbulento de uma guerra que dividiria a Ilia ao meio,
manifestaram-se, por obra de Della Volpe, os primeiros sinais de retomada do
marxismo teórico depois da interrupção de seu desenvolvimento, provocada
pelo fascismo. O regime de Mussolini, por quase vinte anos, erradicou o
marxismo da vida social e cultural italiana, cortando brutalmente sua história em
um ‘antes’ e um ‘depois’, representados, respectivamente, por duas
personalidades profundamente distintas por formação e inspiração, separadas,
além do mais, por divergências radicais sobre suas ‘visões’ de Marx: Rodolfo
Mondolfo e seu aluno Galvano Della Volpe.
6
5
Referente, portanto, à segunda fase por nós aludida.
6
BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2004,
p.11 e 12.
14
A partir do contexto exposto, com o fim do regime de Mussolini e a possibilidade
de retomada dos estudos marxistas, Della Volpe fora atuar junto à Universidade de
Messina. Talvez, referida nunca tenha sido visada, realidade essa transformada a partir
das atividades de Della Volpe. Continuando com Bobbio:
A Universidade de Messina sempre foi uma ‘encruzilhada’ de docentes ilustres,
que por ali passavam à espera de postos definitivos em outros centros, muito
mais cobiçados do que a pequena universidade de província. Diferentemente
de muitos de seus colegas, Galvano Della Volpe foi o único professor
universitário italiano a não ter conseguido uma transferência, e por isso
concluiu, em 1965, por ter alcançado o limite de idade, a carreira universitária
em Messina, onde Giovanni Gentile, seu antigo professor, o havia ‘confinado’
em 1939. Graças à presença de Della Volpe e do grupo de estudiosos
marxistas reunidos no correr de diferentes ocasiões em torno dele - entre os
quais devem ser recordados Raniero Panzieri, Mario Rossi, Giulio Pietranera,
Lucio Colletti e Nicolao Merker -, a Universidade de Messina foi, entre a
segunda metade da década de 1940 e a primeira metade da década de 1960,
um ‘centro de produção teórica de primeiro plano, em nível não
somente
nacional mas também europeu e internacional’
7
, e representou então, para os
jovens intelectuais de esquerda, ‘o ponto de referência mais alto e mais
orgânico para uma aproximação com o marxismo
8
.
Se Della Volpe significou a retomada do pensamento marxista italiano,
esquecido durante a ditadura fascista de Benito Mussolini, haverá de serem imaginados
antecedentes. Diz-se se tratar de uma retomada, pois “a última voz ouvida antes da
forçada interrupção da tradição marxista, começada por Labriola no início do século, foi
precisamente a de Mondolfo, com quem Della Volpe havia se formado na Universidade
de Bolonha em dezembro de 1919”
9
. Entretanto, com o fim da Segunda Grande Guerra,
o marxismo de Rodolfo Mondolfo será criticamente revisado por Della Volpe, o qual
identificou naquele um “equívoco ideológico”
10
, inserindo-o na história do revisionismo.
7
ALCARO, Mario. Il marxismo della scuola di Messina. In: VV.AA. Il marxismo e la cultura meridionale.
Ensaios reunidos e apresentados por Piero Di Giovanni. Palermo: Palumbo, 1984. Apud BOBBIO,
2004, p.12.
8
VACCA, Giuseppe. Scienza Satto e critica di classe. Galvano Della Volpe e il marxismo. Bari: De
Donato, 1970. Apud BOBBIO, 2004, p.12.
9
BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Fundação Editora da Unesp. 2004,
p.13.
10
Ibid., p.13.
15
Galvano Della Volpe não aderiu ao marxismo pela via mais rotineira, qual seja, a
militância antifascista
11
. Sua introdução ao pensamento de Karl Marx se deu “através de
um longo e inusitado percurso filosófico”: a “longa viagem” do atualismo ao marxismo
mediante a crítica do idealismo hegeliano, a descoberta do empirismo de Hume e do
existencialismo como “filosofia do finito”. Uma viagem que lhe permitiria reabrir o
discurso sobre Marx e reivindicar a “autonomia problemática, filosófica e ética” do
marxismo.
12
A postura mais típica e uma de suas teses centrais é a auto-suficiência marxista
enquanto corpo doutrinário. Se em outros países o marxismo acabou e teve relevante
composição com o existencialismo, o neopositivismo, o pragmatismo e a
fenomenologia, na “Itália, Della Volpe buscava em Marx, liberado de todo contágio com
a filosofia clássica e pós-clássica alemã, não o continuador de Hegel, mas sim, o de
Galileu”.
13
Della Volpe, assim, toma distância da tradição italiana de “’retorno a Marx’, à
qual pertence também Mondolfo: somente com Della Volpe começa uma nova história,
ainda que em meio a muitos contrastes’”
14
.
Dentro do contexto intelectual italiano, cabe, por fim, dois contrastes. O primeiro
contraste refere-se ao pensamento de Antonio Gramsci e o segundo, à obra de
Benedetto Croce.
Em Della Volpe, conforme visto, e em Gramsci, uma diversidade de
interesses teóricos. Em Gramsci, particularmente, verifica-se interesse por literatura,
línguas, educação, religião, arte, psicanálise, economia, cultura, história particular e
universal.
15
11
BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Fundação Editora da Unesp. 2004,
p.13.
12
MATTEUCCI, Nicola. La cultura italiana e il marxismo dal 1945 al 1951. Rivista di filosofia, v.44, n.1,
1953. Apud BOBBIO, 2004, p.13.
13
Ibid., p.13.
14
MONDOLFO, Rodolfo. Umanismo di Marx. Studi filosofic 1908-1966. Introdução de Norberto Bobbio.
Torino: Einaud, 1968. Apud BOBBIO, 2004, p.13.
15
SEMERARO, Giovanni. O marxismo de Gramsci. Disponível em:
<http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv144.htm>. Acesso em: 3 Dez. 2007.
16
Gramsci fora político e intelectual numa mesma proporção. Della Volpe, por sua
vez, concentrara-se mais nas atividades acadêmicas que políticas propriamente ditas, a
despeito de sua filiação ao Partido Comunista Italiano, quando de sua maturidade
intelectual marxista. Todavia, em ambos uma clara intenção de conhecer a fundo o
pensamento de seus adversários teóricos, estabelecendo com os mesmos intensos
diálogos. Especificamente, sobre Gramsci,
Esta versatilidade e abertura de horizontes o levou a não desqualificar
sumariamente o ponto de vista dos outros e a não menosprezar seus
adversários políticos, mas a entrar no seu próprio campo e a instaurar com eles
uma arriscada interlocução dialética, capaz, ao mesmo tempo, de desvendar
contradições e de incorporar elementos que ampliaram anda mais os horizontes
marxistas.
16
No que se refere a Benedetto Croce, trata-se de “um pensamento fascinante e o
mais representativo das classes dominantes”
17
, sendo necessário sempre enfrentá-lo.
Inicialmente, próximo ao marxismo, Croce passa a sua oposição, todavia o faz de forma
vulgar, desfigurando-o por inteiro. Segundo Della Volpe,
Toda ‘Lógica’, toda a filosofia de Croce, não é mais que a exposição do
contraste entre propósitos críticos e resultados dogmáticos. O Croce insatisfeito
de Hegel nem por isso deixa de cair, (...), na concepção hegeliana - e pré-crítica
- do sentido como pensamento implícito, indistinto, confuso.
18
16
SEMERARO, 2007, loc. cit.
17
Ibid.
18
DELLA VOLPE, Galvano. Logica com scienza storica: a cura di Ignazio Ambrogio. Roma: Riuniti, 1969,
p.228.
17
3 O MÉTODO MARXISTA DE GALVANO DELLA VOLPE
Façamos um breve e modesto mapeamento intelectual de Della Volpe com fins à
compreensão do seu pensamento filosófico, antes mesmo de adentrarmos em seus
estudos políticos e jurídicos. Assim, teremos uma análise da questão epistemológica
dellavolpiana, com interessante contraste de seu pensamento com as idéias de Louis
Althusser, em especial nas suas divergências e convergências. Na seqüência,
observaremos as peculiaridades do modo como Karl Marx e Georg Wilhelm Friedrich
Hegel se relacionam na ótica de Galvano Della Volpe. Este será o mais complexo
trecho de nossa jornada. Aqui, procuraremos apresentar algumas teses dellavolpianas,
no que se refere à crítica marxiana ao hegelianismo, procurando demonstrar o total
afastamento um do outro (Hegel e Marx), o que faz o filósofo italiano assumir a
polêmica postura de marxista anti-hegeliano. Serão apresentadas as observações
marxianas a respeito das “tautologias reais” de Hegel, assim como o necessário (na
ótica de Della Volpe, frise-se) reenquadramento do materialismo histórico.
3.1 Questão Epistemológica em Galvano Della Volpe
Em Galvano Della Volpe, é gritante o esforço teórico em demonstrar a
cientificidade do marxismo, a validade cognoscitiva do materialismo histórico.
19
E tal
esforço contou, no filósofo, com um expediente de afastamento de qualquer
interpretação hegeliana da obra de Marx. Segundo Galvano Della Volpe,
19
PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES, Florestan. Galvano Della Volpe. PEREIRA, Wilcon Jóia.
(Coord.). São Paulo: Ática, 1979, p.14.
18
Pode conjecturar-se que a concepção do sentido, que permanece
substancialmente romântica, em que se nos apresenta, (...) na Fenomenologia,
a juvenil concepção metafísica - também ela romântica - da ‘bela’ unidade
primitiva indiscriminada, seja ela que impede a Hegel, e a todo o hegelismo,
fundamentar o entendimento (e com este um conceito crítico integral da razão),
obscurecendo a natureza positiva das relações do entendimento com o sentido
ou sentimento, com o múltiplo.
20
Em Della Volpe, os mais relevantes escritos marxianos, referentes às suas
questões metodológicas são “Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito“ e Manuscritos
Econômico-Filosóficos de 1844”. Entre ambos, o próprio Della Volpe destaca a
importância do primeiro (Crítica...). Segundo ele,
É o mais importante porque contém as premissas mais gerais de um novo
método filosófico - sob o aspecto daquela crítica da lógica hegeliana (mediante
a crítica da filosofia ético-jurídica hegeliana) com que Marx desmascara as
‘mistificações’ da dialética apriorística, idealista e especulativa em geral, ou
seja, as suas constitucionais petições de princípio ou tautologias substanciais
(não meramente formais), conseqüentes da natureza genérica (apriorística) das
construções conceituais de tal dialética; contrapondo-lhe ao mesmo tempo
aquela revolucionária ‘dialética científicca’ para que se apelará explicitamente
na Miséria da Filosofia (1847) e que aplicará no Capital, depois de ter tomado
consciência específica dela no que se refere aos problemas econômicos na
Introdução de 1857 e a Para a crítica da economia política (1859).
21
Por sua vez, os “Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844” apresentam um
interesse filosófico só na última parte, dedicada à crítica da filosofia hegeliana, aliás não
compreensível sem a Crítica da filosofia hegeliana do direito público
22
, e constam
quanto ao resto de uma espécie de ‘miscelânea’ econômico-filosófica, episodicamente
rica de acenos brilhantes de raciocínios e teorias só mais tarde desenvolvidas.
23
20
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.57.
21
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.134.
22
Della Volpe também se refere à “Crítica da filosofia hegeliana do direito” enquanto “Crítica da filosofia
hegeliana do direito público” ou, ainda, “Crítica da filosofia hegeliana do direito do estado”. Ibid., p.133.
23
Ibid., p.134.
19
Há ainda outros textos importantes para a tratativa das questões filosóficas
marxianas, na interpretação dellavolpiana, tais como: “Miséria da Filosofia”, “Introdução
de 1857” e “Para a crítica da economia política”, os quais serão abordados eventual e
oportunamente.
3.2 Duas Formas de Marxismo Anti-Hegeliano: Um Diálogo entre Galvano Della
Volpe e Louis Althusser
Louis Althusser possui um projeto teórico tão peculiar e autêntico quanto Della
Volpe. Ambos assemelham-se no que se refere à ênfase na originalidade
epistemológica de Marx, em especial no que tange à postura comum de rejeição
completa da influência do idealismo hegeliano na formação da dialética materialista
marxiana.
24
Ambos voltam-se à necessidade contudente de se ler a obra original de
Marx. Sobre Althusser, Gisela da Conceição, em Ler Althusser, leitor de Marx, afirma
O projeto de Louis Althusser é um projecto de regresso. De regresso a Marx. De
regresso ao texto.(...). Trata-se, pois, de invocar o nome do texto para dissolver
a opacidade dos equívocos, para libertar o sentido aprisionado ou, de modo
mais radical, para viver a experiência singular, não individual.
25
Louis Althusser e Galvano Della Volpe Ambos filósofos firmam certo diálogo, pois
o marxismo anti-hegeliano e a exigência crítico-científica viabilizam-no. Conforme
Gisela da Conceição,
24
Há, ainda outras perspectivas anti-hegelianas de Marx. Conforme Bottomore, ao tratar do
austromarxismo, escola de pensamento marxista com forte influência, entre outros, do nekantianismo,
“para Adler, o conceito fundamental da teoria da sociedade de Marx era a ‘humanidade socializada’
ou ‘associação social’, que Adler tratou, à maneira neo-kantiana, como ‘transcendentalmente dado
como categoria do conhecimento (...), isto é, como um conceito proporcionado pela razão e não
deduzido da experiência, que é a precondição da ciência empírica”. In: BOTTOMORE, Tom. (editor).
Dicionário do pensamento marxista. 1. ed. Rio de Janeiro, 1988, p.21.
25
CONCEIÇÃO, Gisela da. Ler Althusser, leitor de Marx. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.45.
20
No exclusivo âmbito dos posicionamentos preliminares abrangidos pela
antecipação de sentido, afigura-se cita a admissão de um certo parentesco
privilegiado com a concepção de Della Volpe (sic) sobre o lugar da dialética no
universo marxista, reforçado por um projecto similar de demanda de
cientificidade.
26
Todavia, ainda que ambos firmem certo diálogo, é de se notar que um não fora
objeto específico de pesquisas do outro. Ainda acompanhando Gisela da Conceição,
Impõe-se, a este respeito, uma consideração acautelada. A conjecturada
afinidade com o modelo della volpeano (sic), no que se refere ao problema
regional do estatuto da dialética, decorre menos do reconhecimento explícito de
Althusser que da investigação comparada dos dois dispositivos de leitura. Della
Volpe não é, de facto, objecto de análises críticas pormenorizadas que
sustentem expressivamente a analogia sugerida. Mas é invocado (com Colletti)
como caso paradigmático ‘das interpretações sérias, sistemáticas, que
assentam em conhecimentos filosóficos, epistemológicos e históricos reais, e
em métodos de leitura rigorosos’ (cf. Louis Althusser, ‘Aujourd´hui’, PM, p. 30).
E a importância da sua obra (tal como a de Colletti) é ainda sublinhada por ‘pôr
conscientemente no centro das suas investigações a distinção teórica
irreconciliável que separa Marx de Hegel’ (cr. Louis Althusser, ibidem).
27
3.2.1 A influência de Feuerbach no jovem Marx
Segundo Althusser, fora Feuerbach o responsável pela solução de um impasse
teórico sofrido pelos jovens hegelianos
28
. Mas a qual impasse se referiu Althusser? Nas
suas próprias palavras
(...) em particular para os jovens intelectuais radicais que, nos anos 40, se
debatiam nas contradições da ‘miséria alemã’ e da filosofia neo-hegeliana. Por
que nos anos 40? Porque foram a prova dessa filosofia. Em 1840, os jovens
hegelianos que acreditavam que a história tem um fim: o reino da razão e da
liberdade esperavam do pretendente ao trono a realização de suas esperanças:
o fim da ordem feudal e da autocracia prussiana, a abolição da censura, o
26
CONCEIÇÃO, Gisela da. Ler Althusser, leitor de Marx. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.60.
27
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.65.
28
Ibid., p.34.
21
enquadramento da igreja na razão, em suma, a instauração de um regime de
liberdade política, intelectual e religiosa. Pois, esse pretendente que se dizia
‘liberal’, que veio a ser Frederico Guilherme IV, apenas tomou lugar no trono
iniciou o despotismo. A tirania confirmada, reafirmada, era o fim da teoria deles,
que fundava e resumia as suas esperanças. A história era, de direito, antes de
tudo razão e liberdade; mas de fato não passava de desrazão e
de servidão.
Era necessário aceitar a lição dos fatos: essa contradição mesma
29
E diante de tais contradições, do desencontro entre teses hegelianas e a
verdade histórica diante de seus olhos, conforme Althusser, esses jovens hegelianos
contaram com A essência do cristianismo (1841) e ainda a Reforma da Filosofia, textos
feuerbachianos que lhes foram de extrema importância.
30
A contribuição feuerbachiana,
nas palavras de Althusser, consistiu no fato de que,
Feuerbach era precisamente essa ‘Filosofia Nova’ que fazia tábua rasa de
Hegel e de toda filosofia especulativa, que repunha sobre os pés o mundo que
a filosofia fazia marchar sobre a cabeça, que denunciava todas as alienações e
todas as ilusões, assim como dava também as suas razões, e permitia pensar e
criticar a desrazão da história em nome da própria razão, e, enfim, punha de
acordo a idéia e o fato, e fazia compreender a necessidade da contradição de
um mundo e a necessidade de sua libertação. Eis que os neo-hegelianos
foram, como dizia o velho Engels, ‘todos feuerbachianos’. Eis por que
receberam os seus livros como Manifestos, que anunciava os caminhos do
futuro.
31
A importância histórica de Feuerbach, segundo Althusser, advém do papel
histórico de seus escritos.
32
Althusser chega mesmo a afirmar que Feuerbach fora
“testemunha e agente da crise de crescimento teórico do movimento jovem hegeliano”
33
e que a leitura dos textos feuerbachianos é condição para o entendimento da obra dos
jovens hegelianos entre 1841 e 1845.
34
E, talvez mais importante do que isso, Althusser
sinaliza o impregnamento das obras de juventude do Marx com o pensamento de
29
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.34.
30
Ibid., p.34.
31
Ibid., p.34.
32
Ainda que referido papel histórico tenha incidido num meio restrito - a intelectualidade jovem e
hegeliana alemã da primeira metade do século XIX -, mas sem deixar de ser “rico em futuro” (Ibid.,
p.35).
33
Ibid., p.35.
34
Ibid., p.35.
22
Feuerbach
35
, tanto no que se refere à terminologia marxiana, quanto a sua própria
problemática. Nas palavras de Althusser:
Em particular, pode-se ver até que ponto as obras de juventude de Marx estão
impregnadas do pensamento de Feuerbach. Não somente a terminologia
marxista dos anos 42-44 é feuerbachiana (a alienação, o homem genérico, o
homem total, a ‘conversão’ do sujeito em predicado, etc) como também - o que
é sem dúvida mais importante: o fundo da problemática filosófica é
feuerbachiano. Artigos como A Questão Judaica ou Crítica da Filosofia do
Estado de Hegel são inteligíveis senão no contexto da problemática
feuerbachiana. Decerto, os temas da reflexão de Marx vão além das
preocupações imediatas de Feuerbach, mas são os mesmos os esquemas e a
problemática teóricos.(...) O estudo comparado dos textos de Feuerbach e das
obras da juventude de Marx pode, portanto, permitir uma leitura histórica dos
textos de Marx, e uma inteligência melhor de sua evolução.
36
E Althusser avança em suas colocações. Segundo ele, Marx “toma emprestado”
a Feuerbach, fórmulas, conceitos e terminologias bastante específicos: “’o devir-mundo
da filosofia’, a conversão sujeito-atributo’, ‘a raiz do homem é o homem’, ‘o Estado
político é a vida genérica do homem’, ‘a supressão e a realização da filosofia’, ‘a
filosofia é a cabeça da emancipação humana’, (...), etc, etc.”
37
Segundo, Althusser, “são
fórmulas diretamente tomadas de empréstimo a Feuerbach ou diretamente inspiradas
por ele. Todas as fórmulas do ‘humanismo’ idealista de Marx são fórmulas
feuerbachianas”
38
.
Marx, assim, nada mais faz que retomar ou repetir Feuerbach, o qual sempre
pensa em política, segundo Althusser, mas sem a ela se referir com constância.
Althusser inflige a Feuerbach uma análise centrada na crítica da religião, do “disfarce
profano da teologia”
39
, o que não ocorria com o jovem Marx. Este, por sua vez, sempre
esteve “obcecado pela política.”
40
O jovem Marx, segundo Althusser, contudo, não
35
Como veremos, influência essa que não há na leitura dellavolpiana (o filósofo italiano chega mesmo a
propor o afastamento de Feuerbach para o entendimento de Marx).
36
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.35.
37
Ibid., p.35.
38
Ibid., p.35.
39
Ibid., p.35.
40
Ibid., p.35.
23
deixa de ser um “feuerbachiano de vanguarda”
41
, pois aplica uma “problemática ética à
inteligência da história humana”, mesmo em obras tais quais: “A Questão Judaica” ou
“Filosofia do Estado de Hegel” e, ainda, “A Sagrada Família”.
42
Na perspectiva de Althusser, Marx, então, valeu-se da teoria feuerbachiana da
alienação para aplicá-la “à política e à atividade concreta dos homens, antes de
estendê-la (em grande parte) dos Manuscritos à Economia Política.”
43
E, destaca
Althusser a necessidade de justiça a ser feita com Feuerbach, pois não se pode atribuir
a “Marx a invenção de conceitos e de uma problemática que ele não fez mais do que
tomar emprestado”.
44
E mais: é bom ter em mente, segundo Althusser, que Marx não
tomou emprestado conceitos feuerbachianos de forma estanque e isolada; mas sim “em
bloco, como um todo: esse todo sendo justamente a problemática de Feuerbach”.
45
Assim, conclui Althusser, que a influência de Feuerbach no pensamento do jovem Marx
não pode ser considerada “acidental e secundária”, segundo Althusser
Creio que a comparação dos Manifestos com as obras da juventude de Marx
mostra, como muita evidência, que Marx literalmente esposou durante 2-3 anos
a problemática de Feuerbach, que se identificou profundamente com ela, e que
para compreender o sentido da maior parte das afirmações desse período, até
daquelas que incidem sobre a matéria da reflexão ulterior de Marx (por
exemplo, a política, a vida social, o proletariado, a revolução, etc) e que, por
isso mesmo, poderiam parecer de pleno direito marxistas - é preciso situar-se
no próprio coração dessa identificação e perceber bem toda as suas
implicações teóricas.
46
Todavia, como se sabe, Marx rompe com Feuerbach e funda uma “nova
problemática”, ainda que esta integre alguns conceitos da antiga, feuerbachiana, mas
de uma forma que a antiga problemática assume feições radicalmente novas. Assim,
nas palavras de Althusser, a revolução teórica de Marx consiste precisamente em
41
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.36.
42
Ibid., p.36.
43
Ibid., p.36.
44
Ibid., p.36.
45
Ibid., p.36.
46
Ibid., p.36.
24
fundar sobre um novo elemento seu pensamento teórico liberado do antigo elemento: o
da filosofia hegeliana e feuerbachiana”.
47
E Marx se separa de Feuerbach quando toma
consciência de que a
crítica feuerbachiana de Hegel era uma crítica feita ‘do próprio seio da filosofia
hegeliana’, de que Feuerbach (...), decerto, tinha ‘invertido’ o corpo do edifício
hegeliano, mas que dele tinha conservado a estrutura e os últimos
fundamentos, isto é, as pressuposições teóricas.
48
Em Della Volpe, não se identifica esta proximidade entre Feuerbach e Marx.
Chega mesmo o filósofo italiano a comentar, neste sentido, Althusser. Segundo
Galvano Della Volpe, o papel feuerbachiano na formação intelectual de Marx não lhe
reduz a originalidade e importância, pois o “precedente de Feuerbach (...) não pode ser
sobrevalorizado (como faz Althusser)”
49
, pois Feuerbach não compreendera a fundo as
“tautologias ontológicas” de Hegel, ou seja, “(...) não conseguiu ver o termo último, o
resultado efetivo vicioso dos processos hegelianos, idealísticos, de hipostatização”
50
.
Assim, Feuerbach não toma ciência de que o universal hegeliano” é “viciosamente
cheio, ou seja, produtivo de petições de princípio”.
51
Ainda alega Galvano Della Volpe
É a crítica feuerbachiana que, com o seu nítido eco kantiano, ‘permanece
escrava da própria problemática idealista’ e não a marxiana (como julga
Althusser), que opera, desde 1843, a ‘rotura
52
epistemológica’ (de que tanto fala
Althusser) e opera precisamente enquanto crítica materialista da razão pura, e
portanto viciosidade e infecundidade de qualquer raciocínio (1a priori’) que não
tenha na devida conta o multíplice ou ‘matéria’ ou extra-racional, como quer que
47
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.37.
48
Ibid., p.38.
49
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica. In: Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. Lisboa: Edições 70, 1974, p.49.
50
Ibid., p.49.
51
Ibid., p.49.
52
No original, em italiano, Galvano Della Volpe usa o termo “rottura”, cuja tradução mais literal é
justamente “rotura” ou “rompimento”. Por respeito à letra do autor, ainda que o termo usualmente mais
conhecido seja “corte” (de corte epistemológico”), mantivemos a expressão mais próxima do original.
Todavia, em outras ocasiões, faremos uso de “corte epistemológico”.
25
se chame, se infere por hipótese - epistemologicamente - a ineliminabilidade da
própria ‘matéria’ para vantagem da consciência real (ou do real) e da ação.
53
Por fim, traz Della Volpe que “nada que ‘deslocar’ na ‘periodização’ do
pensamento marxiano”
54
. Para tanto, o filósofo italiano convida a perceber que
Althusser age apressadamente ao atribuir a Feuerbach tamanha relevância para
Marx
55
, pois o enfoque althusseriano é “pura viragem do ângulo visual idealista-criticista
de Feuerbach”
56
. E segue Della Volpe
A data, (...), de 1845-1846, ou seja, a data aliás da crítica da ‘Ideologia’ alemã,
não pode ser substituída, como data da ‘rotura’, pela de 1843, que é a data
(conjectural) da (póstuma) crítica das hipóstases, quer porque esta crítica de
‘ideologismos’, quer porque a mesma é também, com a sua final instância
positiva de uma ‘abstração determinada’, a indispensável premissa teorética do
pragmatismo, digamos assim, das teses sobre Feuerbach (sempre 1845-1846),
teses essas que são ‘falsamente límpidas’ (como diz Althusser) apenas se se
apóiam na pura e simples Ideologia alemã; e não se detém aqui (neste espaço
de esquema de periodização interna) sobre a óbvia influência, tácita mas
determinante, da crítica das hipóstases perante ‘as obras da maturação’ e da
‘maturidade’, sobretudo a Miséria da filosofia, a Introdução à Contribuição para
a crítica da economia política e por fim O Capital com a sua peculiar estrutura
histórico-dialética.
57
3.2.2 A questão do “corte epistemológico” em Althusser
Em Althusser, verifica-se uma interpretação segundo a qual, existe um
afastamento entre o Marx da juventude e o Marx da maturidade. Afastamento este de
53
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica. In: Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. Lisboa: Edições 70, 1974, p.49 e 50.
54
Ibid., p.50.
55
Galvano Della Volpe reproduz Althusser: “desenvolvimento e aplicação [por parte de Marx] da genial
crítica da filosofia de Hegel formulada por Feuerbach”. DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética
histórica. In: Crítica da ideologia contemporânea: ensaios da teoria dialética. Lisboa: Edições 70, 1974,
p.50.
56
Se Galvano Della Volpe está ou não com a razão, haveremos de desenvolver tal questão mais a frente.
Ibid., p.50.
57
Ibid., p.50.
26
tal monta que o filósofo franco-argelino chega a expressar um “corte epistemológico” na
obra marxiana. Assim coloca Gisela da Conceição, em obra mencionada
À perspectiva de continuidade sem ruptura, de certo modo dominante na
análise da relação teórica entre Marx e Hegel, Althusser vai opor uma
perspectiva de ruptura radical.
58
Althusser, ele próprio, avaliando os resultados de suas pesquisas, confirma que
“a questão da diferença específica da filosofia marxista toma, (...), a forma da questão
de saber se existia ou não, no desenvolvimento intelectual de Marx, uma cesura
epistemológica”
59
sinalizando, desta maneira, “o surgimento de uma nova concepção da
filosofia, assim como o lugar preciso dessa cesura”
60
.
O referido “corte epistemológico”
61
, na leitura althusseriana de Marx, no ponto
indicado pelo filósofo alemão, qual seja, na obra A ideologia alemã, assim como nas
Teses sobre Feuerbach.
62
E com tal “corte”, Marx, segundo Althusser, viabilizou duas
disciplinas teóricas distintas: uma teoria da história, na forma de “materialismo
histórico”, e uma nova filosofia (“materialismo dialético”)
63
. Argumenta Althusser que
Retomo propositadamente a terminologia consagrada pelo uso (materialismo
histórico, materialismo dialético) para designar essa dupla fundação em uma
única cesura. E assinalo dois problemas importantes inscritos nessa condição
excepcional. Que uma nova filosofia tenha nascido da fundação de uma ciência,
e que essa ciência seja a teoria da história, põe, naturalmente, um problema
teórico capital: graças a que necessidade de princípio a fundação da teoria
científica da história deveria implicar e encerrar ipso facto uma revolução teórica
na filosofia? A mesma circunstância traria também uma consequência prática
que não se poderia negligenciar: a nova filosofia estava tão bem implicada pela
e na nova ciência que poderia ser tentada a se confundir com ela. A Ideologia
alemã consagra muito bem essa confusão ao fazer, como nhamos notado, da
58
CONCEIÇÃO, Gisela da. Ler Althusser, leitor de Marx. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.58.
59
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.22. A edição
brasileira traz a expressão “cesura” e o “corte” (de corte epistemológico”) como é mais usualmente
utilizado. Assim, em respeito ao original da edição por nós consultada, mantivemos “cesura”.
60
Ibid., p.22.
61
Aqui, fizemos uso da expressão mais usual, em detrimento da expressão da edição brasileira.
62
Ibid., p.23 e 24.
63
Ibid., p.24.
27
filosofia nada mais do que a frágil sobra que promana da ciência, ou a
generalidade vazia do positivismo. Essa consequência prática é um das chaves
da história singular da filosofia marxista, de suas origens aos nosso dias.
64
Althusser, assim, divide o pensamento de Marx em dois grandes períodos
essenciais. Um, é o período ainda “ideológico”, prévio à Ideologia alemã e a Teses
sobre Feuerbach, ambas de 1845, e outro, posterior a referidas obras, tido como
“científico”, em contraposição ao primeiro
65
. E este segundo pode ser, também, dividido
em duas fases, sempre na leitura althusseriana: “um momento de maturação teórica e o
momento da maturidade teórica de Marx.”
66
. Assim, em Marx, Althusser aponta, na
verdade, quatro períodos distintos: um inicial, com temáticas ainda não científicas;
outro, de “corte epistemológico”; um seguinte de maturação teórica; e um último, de
plena maturidade.
Dessa forma, Althusser propõe algumas terminologias. As obras do primeiro
período marxiana, da “dissertação de doutorado aos Manuscritos de 1844, inclusive A
Sagrada família
67
podem ser tratadas por obras da juventude de Marx”.
68
Os escritos
da “cesura” de 1845, “isto é, as Teses sobre Feuerbach e a Ideologia ale, onde de
pela primeira vez aparece, ainda que com frequência numa forma parcialmente
negativa e fortemente polêmica e crítica, a nova problemática de Marx”, foram por
Althusser nomeados de “obras da cesura”.
69
As obras de 1845 a 1857 foram denominadas de “obras da maturação”. A
justificativa de Althusser é bastante coerente:
64
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.24.
65
Ibid., p.24.
66
Ibid., p.24.
67
Ibid., p.25.
68
Nesta fase, Althusser propõe uma subdivisão: há no “jovem Marx” um “momento racionalista-liberal dos
artigos da Gazeta Renana (até 1842)” e um “momento racionalista-comunitário dos anos 40-45”. Ibid.,
p.25.
69
Ibid., p.25.
28
Se de fato podemos indicar a data crucial das obras de 45 (...) para a cesura
que separa o ideológico (anterior a 45) do científico (posterior a 45), devemos
ter em vista que a sua mutação não poderia produzir de vez, de forma acabada
e positiva, a nova problemática teórica que ela inaugura tanto na teoria da
história como na teoria da filosofia.
70
E a quais obras se refere Althusser enquanto “obras de maturação teórica”? São
o Manifesto comunista, a Miséria da filosofia, Salários, preços e lucro, etc. E,
posteriores a 1857, todas os demais escritos de Marx são por Althusser chamados de
“obras da maturidade”.
71
Conforme Gisela da Conceição
À concepção de um Marx progredindo no desenvolvimento, sem sobressalto, de
uma filosofia da alienação do sujeito abstracto, Althusser vai opor um
pensamento articulado sobre uma estrutura autopoiética sem suporte
subjectivo.
72
E contrastando com Galvano Della Volpe, Wilcon Jóia Pereira afirma que
Inversamente, na perspectiva dellavolpiana não se encontra nenhuma solução
de continuidade entre as produções de juventude, a fase de maturação e
plenitude final. Mas ainda: as últimas obras pressupõem necessariamente as
colocações realizadas nas primeiras, e somente adquirem plena inteligibilidade
quando iluminadas por descobertas formuladas em escritos fragmentários e
inacabados, de um Marx tão juvenil como clarividente. Aflorariam nesses
esboços, com vigor e clareza, as premissas filosóficas que fundamentarão e
inspirarão as futuras análises políticas, ideológicas e econômicas. As
concepções éticas e humanísticas do jovem Marx - sempre segundo Della (sic)
Volpe, bem entendido - é que se encarregariam de atribuir unidade e sentido à
progressiva estruturação e aplicação da dialética científica. Por isso mesmo,
junto com a originalidade epistemológica dos ensinamentos marxianos, dever-
se-ia recuperar igualmente a sua visão global do mundo.
73
70
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.25.
71
Ibid., p.25.
72
CONCEIÇÃO, Gisela da. Ler Althusser, leitor de Marx. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.58.
73
PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES, Florestan. Galvano Della Volpe. PEREIRA, Wilcon Jóia.
(Coord.). São Paulo: Ática, 1979, p.15.
29
E então, Althusser destaca e acentua o total afastamento entre Hegel e Marx,
numa forma de pensar o marxismo de forma anti-hegeliana, próxima a de Della Volpe.
Dessa forma,
Excetuando o exercício ainda escolar da dissertação, chega-se ao resultado
paradoxal de que, para falar com propriedade, salvo no quase último texto do
seu período ideológico-filosófico, o jovem Marx jamais foi hegeliano. De início,
kantiano-fichtiano; depois, feuerbachiano. A tese, tão correntemente
espalhada,
do hegelianismo do jovem Marx, em geral, é, pois, um mito. Em compensação,
às vésperas da ruptura com a sua ‘consciência filosófica de outrora’, tudo se
passa como se Marx tivesse produzido, recorrendo uma só e única vez, em sua
juventude, a Hegel, uma prodigiosa ‘ab-reação teórica indispensável à
liquidação de sua consciência ‘delirante’. Até não deixou de se distanciar
cada vez mais de Hegel, e se se deseja pensar no movimento que o tinha feito
passar de seus estudos universitários hegelianos para uma problemática
kantiano-fichtana, e depois de uma problemática feuerbachiana, é necessário
dizer-se que, longe de se aproximar de Hegel, Marx não parou de se distancia
dele.
74
3.3 Marx e Hegel em Galvano Della Volpe
A crítica dellavolpiana a Hegel implica no seu total afastamento de Marx.
Conforme Galvano Della Volpe, Hegel não repercute em nada na consolidação da
dialética materialista
75
. De uma forma geral, sem prejuízo de releituras da obra de Della
Volpe, podemos identificar algumas teses dellavolpianas bastante específicas a partir
de sua análise da relação entre Hegel e Marx. A primeira dessas teses refere-se às
críticas marxianas aos apriorismas hegelianos. A segunda, refere-se, assim, às
74
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.26.
75
Todavia, mesmo sem oferecer contribuições ao método de Marx, segundo Wilcon ia Pereira, Della
Volpe não afirma que Marx não assimilou elementos do sistema hegeliano. Segundo este autor “a
estrutura que os reorganiza, porém, é absolutamente distinta e autônoma. Isso permite, justamente,
um salto e uma superação, no sentido técnico dessa palavra: compreender a instância precedente,
apropriar-se dos elementos positivos e transcendê-la na direção de algo qualitativamente superior”.
PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES, Florestan. Galvano Della Volpe. PEREIRA, Wilcon Jóia.
(Coord.). São Paulo: Ática, 1979, p.15.
30
“tautologias reais
76
de Hegel. A terceira tese refere-se à necessidade de
reenquadramento do materialismo histórico, com substituição da usual sucessão de
influências no pensamento de Marx, comumente tida pela sucessão de Feuerbach e
Hegel, por Aristóteles e Galileu.
3.3.1 Crítica marxiana ao hegelianismo
Segundo a lição de Wilcon Jóia Pereira, Galvano Della Volpe procura se situar
no pólo oposto aos pensadores que procuram enfatizar as dependências metodológicas
marxianas em relação a Hegel. E, em Della Volpe importa assinalar a originalidade do
método de Marx em sua dialética científica, com a qual Hegel em nada contribuiu.
77
Ainda, Della Volpe atenta-se à demonstração da precocidade dessa ruptura em
Marx, conforme Wilcon Jóia Pereira,
Ela não se teria produzido lentamente, num processo gradual de liberação. Ao
contrário, em 1843, ao redigir (por volta dos seus vinte e cinco anos) sua
Crítica da filosofia hegeliana do direito, Marx toma consciência dos equívocos
básicos do sistema que examinava. Essa é uma das mais ousadas formulações
dellavolpianas e talvez sua contribuição mais notável aos estudos marxianos.
78
3.3.2 As “tautologias reais” de Hegel
No que se refere a segunda das teses dellavolpianas por nós elencadas,
encontramos, na sua crítica a Hegel, uma expressão que lhe foi bastante cara. Os
76
O filósofo italiano ainda se vale de “tautologias substanciais” ou tautologias ontológicaspara tratar
dos mesmos assuntos.
77
PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES, Florestan. Galvano Della Volpe. PEREIRA, Wilcon Jóia.
(Coord.). São Paulo: Ática, 1979, p.15.
78
Ibid., p.16.
31
conceitos universais e abstratos de Hegel, na ótica de Della Volpe, foram
desmascarados por Marx, quando este lhes percebeu a substancialidade (Wilcon Jóia
refere-se a “determinações” ‘cheias’ de Hegel)
79
em desfavor das supostas
“essencialidades” abstratas aduzidas por Hegel.
Della Volpe promove uma profunda reflexão, trazendo massivamente as palavras
de Marx, quando este oferece uma análise do conceito hegeliano de Estado. Conforme
o filósofo italiano, o Estado hegeliano não é a expressão da vontade racional e geral”,
mas sim uma “transfiguração especulativa” do Estado alemão.
Assim, segundo Della Volpe e citando Marx, em “Crítica da filosofia hegeliana do
direito”, analisando a passagem da família e sociedade civil ao Estado, Marx percebe
que a relação real é ‘que a atribuição da matéria estatal é mediada no singular pelas
circunstâncias, pelo arbítrio e pela própria escolha da sua determinação’”.
80
Conforme
Della Volpe, assim, Marx identifica aqui, que “a realidade não é expressa como ela
própria, mas como uma realidade diversa”.
81
E continua Della Volpe, sempre citando
Marx
A idéia [o predicado] é reduzida a sujeito [=hipostatizada]. E a real relação da
família e da sociedade civil ao Estado é entendida como interna [...] atividade do
Estado (...). Família e sociedade civil são pressupostos do Estado, são
propriamente eles os ativos [porque, enquanto ‘sujeitos reais’ são ‘entes reais’].
Mas na especulação verifica-se o contrário: ao passo que a idéia [o predicado]
é transformada em sujeito, os sujeitos reais, a sociedade civil, a família, as
‘circunstâncias, o arbítrio’, etc., tornam-se momentos objetivos da idéia [tornam-
se predicados], irreais, alegóricos (...). A atribuição da matéria estatal ‘ao
singular mediante as circunstâncias [...]’, tudo isto não é simplesmente expresso
como o que é verídico, necessário e justificado em e por si mesmo; não é dado
como tal pelo racional; e por outro lado é, no entanto; mas de tal maneira
que ele é dado como mediação aparente: é deixado tal qual é mas recebe a um
tempo o significado de uma determinação da idéia, de um resultado, de um
predicado da idéia [...].
82
79
“As noções universais, empregadas por Hegel, estriam longe de ser, pura e simplesmente, vazias e
abstratas; exatamente ao contrário, eram determinações ‘cheias’, substancializadas com os conteúdos
que o filósofo retirava da própria realidade histórico-social que o cercava”. Ibid., p.15.
80
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.120.
81
Ibid., p.121.
82
Ibid., p.121.
32
Assim, Galvano Della Volpe começa a destacar as pistas no texto de Marx, sobre
a nova dialética a surgir. Continua Della Volpe expondo Marx, ao firmar que o
Estado político não pode existir sem a base natural da família e a base artificial
da sociedade civil, que são sua conditio sino qua non. Mas a condição torna-se
condicionado, o determinante o determinado, o que produz o produto do seu
produto [isto é, o Estado].
83
Della Volpe acentua que Marx detecta em Hegel um afastamento do real e um
mergulho no pensamento “místico”. O fato, de que se parte, o é entendido como tal,
mas como resultado místico. “O que é real torna-se fenômeno [da idéia], mas a idéia só
tem por conteúdo este fenômeno”
84
, destaca Della Volpe no texto de Marx.
Neste momento, Della Volpe oferece uma de suas contribuições mais relevantes
no sentido de afastar completamente Hegel de Marx. Parte ele de duas teses. A
primeira afirma que o “universal hegeliano” é hipostatizado” e, por isso é confundido
com a “existência empírica” (expressão dellavolpiana para se referir ao”sujeito real” de
Hegel). E mais: o “ilimitado” (também referido por Hegel enquanto “sujeito real”) é
tomado, de modo acrítico, pela expressão da idéia (a que Hegel se refere enquanto
“produto” ou “predicado”) como ela é na sua particularidade, emprestando-lhe, na sua
“figura limitada”, o significado oposto a essa limitação, de onde o “significado da coisa
particular não é a sua determinação, mas sim uma determinação alegórica (...)”.
85
Desta tese, decorrem dois desdobramentos. O primeiro é aquele segundo o qual,
na medida em que se verifica uma “hipostatização”, o universal (ou predicado) é
confundido com a “existência empírica”
86
, no sentido de que o universal substitui como
“substrato-essência” e “substrato-matéria”
87
, trocando a “realidade-imediatividade” deste
83
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.121.
84
Ibid., p.122.
85
Ibid., p.124.
86
Galvano Della Volpe também se refere a “existência particular” ou “substrato real”. Ibid., p.125.
87
Segundo Galvano Della Volpe, é o mesmo que “substrato-particular” ou o “sujeito real” hegeliano. Ibid.,
p.125.
33
pela realidade-mediação”
88
própria, trazendo, assim, a equívoca premissa metafísica
do realismo absoluto. O segundo desdobramento, decorrente do primeiro, nas palavras
do próprio Della Volpe
(...) por isso, o caráter de mera alegoria do universal, que adquire o
substrato real ou sujeito, é devido à natureza da interpolação teológica
com hipostatização, porquanto esta última pretende esgotar a matéria na
essência ou forma, de modo que - com a renúncia e substituição da
coisa ou sujeito real - à matéria resta apenas um valor de expressão ou
manifestação simbólica, ou finalmente de predicado mistificado, da
forma ou idéia universal.
89
A segunda tese referente à independência teórica e metodológica de Marx em
relação a Hegel é expressa por Della Volpe
Consequentemente à primeira tese, ou seja, em consequência da referida
troca
90
(...) da empiria em especulação, verifica-se, simultaneamente, o seu
inverso (ou seja, troca da especulação por empiria), ou seja, o desenvolvimento
sempre parte do predicado mistificado (na expressão de Marx, ‘não se ganha
deste modo nenhum conteúdo, mas apenas muda a forma do velho
conteúdo’).
91
Também esta tese apresenta alguns desdobramentos. São três, ao total. Pelo
primeiro deles,
Em consequência da supracitada troca (da empiria por especulação), troca que
é hipostatização em sentido estrito enquanto ‘decomposição filosófica’ da
empiria’, verifica-se simultaneamente uma outra troca, da especulação por
empiria, que é, por sua vez, uma filosófica restauração da empiria.
92
88
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.125. Ibid., p.125.
89
Ibid., p.125.
90
Della Volpe faz algumas considerações sobre o vocabulário de Hegel. Segundo ele, Hegel utiliza
“Umkehrung” e “Umschlag”, respectivamente, como “inversão” e “reviramento”. Ibid., p.125.
91
Ibid., p.125.
92
Ibid., p.125.
34
Pelo segundo desdobramento, tal “restauração”
93
é “viciosa e inevitável”: viciosa
“enquanto restauração de uma empiria que é, pelo pressuposto apriorístico, gratuita
(uma empiria, portanto, tacitamente assumida ou sub-receptícia)”
94
; e inevitável
(...) na medida em que esta empiria é também o irremissível substrato-sujeito do
juízo, ou seja, aquilo de que se procura o motivo no juízo; e, em suma, tal
restauração é a restauração de uma empiria que é abstrata e porque não-
mediada, e não-mediada, e portanto gratuita e sub-receptícia.
95
Por fim, pelo terceiro desdobramento da segunda tese, esta “restauração-sub-
recepção” apresenta-se afinal com a sua “infecundidade” característica como o
“resultado-contrapasso” da “decomposição filosófica” (da empiria), em que consiste a
“hipostatização” hegeliana (própria da dialética de pensamentos puros, que é a dialética
ou tauto-heterologia triádica).
96
Arremata Galvano Della Volpe, que referido “resultado-contrapasso da
hipostatização” não se verifica apenas na “Ciência da Lógica” de Hegel, mas sim no
conjunto de sua obra. E retomando Marx, para quem “não se deve censurar Hegel
porque descreve o ser do Estado moderno tal como ele é, mas porque faz passar aquilo
que é, como essência do Estado”
97
, Della Volpe passa a desferir alguns duros ataques
a Hegel. Segundo ele, Hegel acaba evidenciando suas próprias contradições, pois
(...) tendo Hegel acabado por fazer passar a monarquia constitucional prussiana
(e européia) de 1820, e a sociedade civil classista a ela organicamente ligada,
como essência do Estado de caráter universal, testemunha com isso - contra si
próprio apriorista - que é entretanto a sociedade civil em geral, ou seja, o
mundo do ‘particular’, das necessidades e relações materiais da existência, que
as premissas acríticas, idealistas e espiritualistas, de Hegel justificam,
93
“Que consiste no fato de que o desenvolvimento ou progresso ou articulação do universal procede da
parte do predicado mistificado, ou seja, do empírico substrato real ou sujeito desvirtuado em
predicado”. Ibid., p.125.
94
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.125.
95
Ibid., p.125.
96
Ibid., p.125.
97
Ibid., p.126.
35
precisamente, elas sim, o crasso materialismo de uma sociedade civil classista
e do respectivo tipo de Estado.
98
E ainda
(...) crasso materialismo sub-reptício que, como exemplo típico de empiria
abstrata, nociva, isto é, não mediada, revela-se exatamente como o resultado
da hipostatizações em que tais premissas se baseiam: o resultado-contrapasso
de que atrás se falou, que é a troca da especulação por empiria, como
recíproca da troca de empiria por especulação, ou seja da hipostatização.
99
Della Volpe ataca Hegel, considerando a vacuidade”, a “infecundidade científica
e prática” da “dialética apriorística” hegeliana, enquanto “móbil mistificado do
pensamento abstrato”.
100
Aponta também o conservadorismo de Hegel, “algo de bem
mais profundo e orgânico do que se suspeita”
101
, bem como, aproveitando a crítica
marxiana, ataca o “positivismo acrítico” hegeliano. Referido “positivismo acrítico” é
(...) característico, portanto, não das barrocas filosofias ‘da natureza’ e ‘da
história’, com as suas manifestamente infecundas cadeias de decomposições
especulativas e restaurações-sub-repções de dados científicos-naturais ou
historiográficos.
102
98
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.127.
99
Ibid., p.127.
100
Ibid., p.127.
101
Ibid., p.128.
102
Ibid., p.128.
36
3.3.3 Reenquadramento do materialismo histórico
Outra tese dellavolpiana de grande envergadura refere-se à necessidade de
reformatação do materialismo histórico por inteiro.
103
Assim, Wilcon Jóia Pereira expõe que, na interpretação dellavolpiana, a juvenil
crítica marxista do sistema idealista-hegeliano teria sido, portanto, a condição prévia da
elaboração, por Marx, de sua própria metodologia.
104
E a partir do deslocamento
marxiano da dialética hegeliana (“mística e mistificada”) a uma dialética própria e
autêntica
105
, é que se dará uma longa construção teórica de consolidação de uma
dialética materialista e marxiana. E referida dialética, em Della Volpe faz exigir nova
formatação em substituição a tradional forma de se atribuir herança feuerbachiana e
hegeliana a Marx.
Em Galvano Della Volpe, uma metodologia original, autêntica e não dogmática
exige uma “crítica materialista marxiana” das “mistificações da dialética apriorística
moderna (hegeliana)” a partir das “anteriores críticas capitais”: a aristotélica e a
galileiana.
106
Mas quais seriam os atributos de cada uma destas “anteriores críticas
capitais”?
Ambas apontam, ainda, segundo Della Volpe, para a “viciosidade gnosiológica,
isto é, substancial, e não meramente lógico-verbal ou formal, do raciocínio a priori”.
107
Especificadamente sobre cada uma, apresenta Della Volpe, comparativamete à
metodologia proposta por Marx que no
103
Uma nova linhagem precisa ser traçada, para ajudar a bem compreendê-lo. Em vez da sucessão
Hegel-Feuerbach-Marx, tradicionalmente apontada, propôe-nos então aquela que seria, a seu ver,
mais correta e explicativa: Aristóteles-Galileu-Marx.” PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES,
Florestan. Galvano Della Volpe. Org. Wilcon Jóia (coord) São Paulo: Ática, 1979, p.17.
104
Ibid., p.17.
105
PEREIRA, Wilcon Jóia. In: FERNANDES, Florestan. Galvano Della Volpe. PEREIRA, Wilcon Jóia.
(Coord.). São Paulo: Ática, 1979, p.17.
106
DELLA VOLPE, Galvano. Esboço sumário de um todo in Rousseau e Marx: a liberdade igualitária.
4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.171.
107
Ibid., p.172.
37
(...) caso da crítica marxiana, esde fato em jogo o conceito de Estado vigente
ao tempo de Hegel, e nas críticas aristotélica e galileiana estão em jogo, quer
as empíricas e concretas espécies de ‘poder régio’ e semelhantes, quer a teses
físico-geocêntricas.
108
Por fim, ambas auxiliam para o entendimento de que
(...) a epistematicidade ou cientificidade do método é imperativa e imprescritível
em todo o campo de pesquisa, seja ele ‘moral’, humano (crítica marxiana e
aristotélica) ou ‘físico’ (crítica galileiana), sob pena de cair, se assim o for, na
viciosidade e carência (esterilidade) cognoscitiva de que acima se fala, na
infencundidade da pesquisa, em suma.
109
3.3.3.1 Aristóteles
Em Aristóteles, a questão, tratada de forma específica, refere-se, nas próprias
palavras do filósofo italiano a: “1. crítica da platônica divisão metafísica
(tauto=heterológica, ‘dialética’) dos gêneros concretos; 2. princípios lógicos ‘comuns’ de
(não-)contradição e terceiro excluído”.
110
Pela primeira, Galvano Della Volpe toma a
crítica aristotélica à “diairese” platônica no sentido desta “postular, (...), que se lhe
conceda o que deve demonstrar”.
111
Assim, Platão cairia sempre, na leitura
dellavolpiana da crítica aristotélica, numa petição de princípio,
108
DELLA VOLPE, Galvano. Esboço sumário de um todo in Rousseau e Marx: a liberdade igualitária.
4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.172. Ibid., p.172.
109
Ibid., p.172.
110
DELLA VOLPE, Galvano. Aristóteles in Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa:
Edições 70, sd., p.168 e 169.
111
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.96.
38
Portanto é preciso que seja pressuposta ou conhecida antes a natureza ou
espécie do demonstrandum e definiendum para poder escolher as diferenças
(‘opostas’) do gênero (...) sob uma das quais (...) deveria cair aquela
natureza.
112
Pela segunda crítica, Della Volpe afirma que a crítica aristotélica à “diairese”
platônica e conclui sempre algum predicado mais geral que o permitido, isto é, Platão
aplica sua dialética
113
atingindo um conteúdo que é conhecido. Segundo Galvano
Della Volpe
(...) a ‘diairese’, em vez de provar ‘homem(ou seja, animal racional’) prova a
noção ‘superior’ de ‘animal’ (‘racional’ ou ‘irracional’); donde é patente que ela
toma como termo dio o gênero em vez da espécie, contra a regra do
silogismo que exige que o termo médio seja sempre ‘menor que o grande
extremo e não mais geral’ e com o resultado de que a conclusão não conclui
mas é uma sugestão’ (e dependente da ‘concessão’ feita em princípio), como
se pode ver pela formalização de um resultado da divisão: o animal é racional
ou irracional; mas numa ‘demonstração genuína’ a conclusão, longe de ser uma
questão, deve seguir-se ‘necessariamente’ das premissas.
114
Ainda sobre a questão da petição de princípio recorrida por Platão, Della Volpe
argumenta que o filósofo grego é obrigado à mesma pela “sua incapacidade em sair
efetivamente do ‘mais geral’”.
115
Assim, em Platão, a relação “’mesmo-outro’, na medida
em que é ‘oposição dialética’ ou mútuo ‘compenentrar-se’ de tais gêneros supremos,
não pode, por si mesma, fundamentar a ‘separação’, a alternativa-exclusiva, das
espécies”.
116
Assim o é, pois a “antinomicidade dos seus termos é indissociável do seu
compenetrar-se ou harmonizar-se”
117
, não havendo como, dessa forma, “traduzir-se
112
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.96.
113
Frise-se bem que a dialética platônica é bem diversa da dialética hegeliana e, ainda, da dialética
marxista.
114
Ibid., p.96.
115
Ibid., p.96 e 97.
116
Ibid., p.97.
117
Ibid., p.97.
39
direta e simplesmente na contrariedade incomponível ou contraditoriedade requerida
para superar a crítica aristotélica e atingir o verdadeiro médio, a espécie”.
118
A “divisão” referida pelo filósofo italiano
119
implica um “distinguir como puro
totalizar ou universalizar”
120
ou, ainda, um “distinguir meramente aparente”
121
, na
medida em que a “‘oposição’ dos gêneros ‘supremos’, do ‘mesmo’ e do ‘outro’, sendo
uma ‘comunhão’ dos gêneros que é sinônimo de um mútuo compenetrar-se’ dos seus
termos, e em suma uma dualidade-unidade ou antinomia dialética, é incapaz, por si
própria, de operar a ‘separação’ das espécies ou diferenças do gênero (participante),
diferenças ditas, de fato, ‘opostas’”
122
Em virtude desta incapacidade de o concluir senão o mais geral, ou pura
forma, Platão é obrigado a recorrer, para dividir, ou seja, distinguir ou pensar
concretamente (como se propôs com o problema da ‘doxa’), a um material
específico, a um conteúdo, ou múltiplo, que é sub-reptício, enquanto gratuito,
gratuito enquanto não mediado pela forma, não mediado enquanto
precisamente deduzido, ou seja, ultrapassado pela preconcebida tauto-
heterologia ou dialética: e é obrigado, em suma, a uma petição de princípio que
é mesmo uma carência ontológica, e não somente lógico-verbal ou
formalística
123
Galvano Della Volpe, assim, confere à dialética platônica a alcunha de “petição
de princípio ontológica”.
124
E talvez, aqui, tenhamos chegado ao “fio dellavolpiano entre Aristóteles e
Marx”
125
: Della Volpe atribui a reação à dialética platônica, na forma de uma “crítica do
racionalismo dogmático”, não a Kant
126
, mas sim, a Aristóteles e, depois deste, a Marx.
Segundo Della Volpe, “é de Marx, de fato, a intuição profunda (...) de que neste Platão
118
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.97.
119
“Divisão”, segundo Galvano Della Volpe, é “entendida platonicamente como ‘oposição’”. Ibid., p.98.
120
Ibid., p.98.
121
Ibid., p.98.
122
Ibid., p.98.
123
Ibid., p.98.
124
Ibid., p.98.
125
Numa expressão nossa, com a licença do uso do termo.
126
O que afasta, entre outras, qualquer influência de Hegel sobre Marx, pois Hegel, de uma forma geral,
não deixa de ser herdeiro de Kant.
40
(...) o ‘positivo’ ou concreto (...) torna-se um medium através do qual brilha a luz
absoluta”.
127
Por fim, arremata Della Volpe que
que proceder à inferência coerente ou resultado efetivo (psicologista, no
fundo) e totalmente insuficiente. E que preceder à inferência coerente ou
resultado efetivo do inicial constatado processo daquele platônico não pode
concluir senão ‘o mais geral’ e tomar este pelo ‘médio’ (segundo a observação
aristotélica), ou seja, de tomar o finito ou particular como um símbolo do
universal ou infinito, e em suma trocar empiria por especulação (segundas
observações marxianas anti-platônicas e anti-hegelianas): o resultado final que
é uma petição de princípio (segundo Aristóteles anti-platônico), ou seja, uma
troca por sua vez da especulação por empiria (segundo Marx anti-hegeliano,
porque antiplatônico).
128
3.3.3. 2 Galileu
Compreender a relevância de Galileu para o pensamento marxiano, conforme
Galvano Della Volpe, implica em abordar a “crítica galileiana dos fundamentos
apriorísticos da física peripatética”.
129
Tal crítica é oriunda da refutação galileiana da
tese aristotélico-escolástica geocêntrica a partir da crítica do “método do discurso a
priori seguido por seus adversários
130
, culminando na imputação final de
“paralogismos” (ou petição de princípio, como prefere expressar Della Volpe).
Expondo as palavras dos adversários de Galileu, o filósofo italiano afirma que a
eles era ininteligível a possibilidade de um movimento circular, haja vista o testemunho
de Aristóteles
131
e que, por isto, não haveria como o planeta Terra “circular” ao redor do
127
DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70, sd., p.98.
128
Ibid., p.100.
129
“Galileu e o princípio da não-contradição”. Ibid., p.221.
130
Galvano Della Volpe destaca Simplício in “Galileu e o princípio da não-contradição”. Ibid., p.221.
131
É curioso perceber que Galvano Della Volpe se vale de Aristóteles e Galileu, em especial pois este
último propõe uma revisão do pensamento do primeiro. Certamente, Della Volpe referiu-se a cada um
naquilo que lhes de comum: a busca de um método seguro de conhecimento. De resto, várias das
41
sol. Assim, só haveria movimentos retos, “simples pela simplicidade da linha reta,
embora ele seja feito para qualquer lado, (...), para cima, para baixo, para frente, para
trás, para a direita, para a esquerda (...), desde que seja reto”.
132
E destaca Galvano Della Volpe que “neste revelar-se - à análise crítica galileiana
- de sub-reptícios resíduis qualitativos ou empírico-abstratos, como o ‘em cima’, o ‘em
baixo’ e o ‘no centro’ terrestre”
133
fica evidente, para Galileu, a “viciosidade gnosiológica
(epistemológica), não meramente verbal-formal (...), e a infecundidade orgânica de toda
a ilação subsequente, fundada num discorrer a priori”.
134
Della Volpe, assim, traz quatro
traços característicos do, por ele chamado, “galileiano discurso sobre o método”.
O primeiro deles é que o “sistema conceitual da física escolástica carece de
fecundidade e progressividade no terreno do conhecimento”
135
, haja vista estar
fundamentada em fatos aprioristicamente supostos (o mesmo que uma “experiência
não mediada, irresolvida”
136
). O segundo traço, conforme o filósofo italiano,
A crítica galileiana renova e aprofunda (...) a crítica dirigida pelo mais profundo
e genuíno Aristóteles ao racionalismo dialético abstrato da classificação
(‘diairese) platônica.
137
O terceiro refere-se às descobertas galileianas dos “paralogismos não
meramente formais da lógica apriorística dos escolásticos”.
138
Referidas descobertas é
que levarão a uma revolucionária recusa de Galileu à metafísica e aos “porquês
observações “científicas” de Aristóteles mostraram-se falhas, resguardando, contudo, sua contribuição
científica por conta do uso, em especial, da observação enquanto método de conhecimento.
132
Della Volpe narrando as palavras do principal interlocutor de Galileu, Simplício in “Galileu e o princípio
da não-contradição”. Ibid., p.222.
133
“Galileu e o princípio da não-contradição”. DELLA VOLPE, Galvano. Lógica como ciência histórica.
Lisboa: Edições 70, sd., p.222.
134
Ibid., p.222.
135
Ibid., p.223.
136
Ibid., p.223.
137
Ibid., p.223.
138
Percebe-se que, a exemplo de Aristóteles, tais críticas assemelham-se ás “tautologias ontológicas”
hegelianas apontadas por Marx.
42
últimos”.
139
O quarto traço, por fim, é aquele segundo o qual - conforme Galvano Della
Volpe - surge a partir de Galileu um método de pesquisa essencialmente crítico, apto a
proporcionar “uma nova dimensão do rationale entendido como não-
contraditoriedade”.
140
Assim,
(...) contra a ciência dedutiva aristotélico-escolástica, Galileu faz valer uma
dedução e propriamente uma razão que, se por um lado opera uma ‘resolução
e uma ‘composição’ matemática ou quantitativa do qualitativo ou empírico (...)
por outro lado, tem a prova da verdade da sua hipótese, (...) não por força
própria (da razão) (...); mas especificamente tem a sua prova por força da
experiência técnica, que, na medida em que fornece a desprova e eliminação
(...) de outros fatos concorrentes, (...), com essa desprova permite à razão
superar realmente a dificuldade fundamental.
141
Dessa forma, o filósofo italiano aponta para as novas perspectivas da razão, a
partir de Galileu
A razão ou é funcional ou não é razão, ou seja, não é produtiva de verdade; e
que ao colocar tal instância reconhece implicitamente um novo significado, não
formalístico e antimetafísico, ao princípio da (não) contradição.
142
E por que motivo a ciência galileiana oferece uma racionalidade do tipo novo?
Galvano Della Volpe mesmo responde
139
Percebe-se, aqui, aquele evento da história da filosofia em que o saber passou de qualitativo”
(ontológico, metafísico) para “quantitativo” (cientificista).
140
DELLA VOLPE, Galvano. Galileu e o princípio da não-contradição in Lógica como ciência histórica.
Lisboa: Edições 70, sd., p.223.
141
Ibid., p. 224 e 225.
142
Ibid., p.225.
43
Pois a funcionalidade recíproca de hipótese e dado empírico institui uma
racionalidade ou necessidade que é, de fato, não-contradição, mas é uma não-
contradição que é devida não ao absoluto parmenidiano de espécie-
essências aristotélico-escolásticas, mas sim, especificamente, à instância de
discrição (contingência) do dado empírico, já que é da experiência (da hipótese)
que brota exatamente a necessidade, mas do fato: e veja-se precisamente
neste sentido a científica ou galileiana ‘conclusão [que] é necessariamente
deste modo, [donde] não se pode produzir de outro modo razão válida.
143
3.4 A Unidade Metodológica entre Ciência e Filosofia em Galvano Della Volpe:
“Círculo Metódico”; “Abstração Determinada”; “Postulado da Matéria”
Segundo Galvano Della Volpe, fazem-se necessários três recursos. O primeiro é
“um movimento do concreto para o abstrato e deste para o concreto”
144
para fins de
uma estrutura de raciocínio correta. Assim, refere-se Della Volpe a um “círculo metódico
concreto-abstrato-concreto”. Para Della Volpe, referido círculo (também, chamado por
ele de “círculo de indução e dedução”) é um “contínuo e rigoroso ajustamento
experimental
145
ou histórico das abstrações econômicas, morais, lógicas e semelhantes
(além das ‘físicas’)”.
146
O segundo recurso metodológico dellavolpiano, ainda, se refere a uma
“abstração concreta”, “determinada”, “exata”, “não-unilateral”, de qualquer conteúdo;
abstração aquela de natureza histórica, “onde as abstrações mais gerais são dotadas
de verdade” por conta de uma característica que “se apresentam como reunindo uma
multiplicidade de fenômenos e como sendo comum a todos”.
147
O terceiro recurso metodológico a que se refere Della Volpe resgata o “círculo
metódico”, mas sob a perspectiva do “postulado da matéria”. Aqui, o “círculo metódico”
“se revela como uma dialética de abstrações determinadas ou históricas” e como uma
143
DELLA VOLPE, Galvano. Galileu e o princípio da não-contradição in Lógica como ciência histórica.
Lisboa: Edições 70, sd., p.226.
144
DELLA VOLPE, Galvano. Esboço sumário de um todo in Rousseau e Marx: a liberdade igualitária.
4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.174.
145
É o que nos levará, entre outros, ao “galileísmo moral” dellavolpiano.
146
Ibid., p.174.
147
Ibid., p.174.
44
“dialética científica” na medida em que “a instância da dialeticidade ou concialidade dos
opostos” se concilie com a instância da “in-concialidade dos opostos”.
148
Deste terceiro recurso metodológico, derivado da reestruturação do materialismo
histórico, proposto por nosso filosófo italiano, surge uma conclusão polêmica em
Galvano Della Volpe. Entende ele, que o “postulado crítico da matéria”, assim sendo,
não comporta diferentes metodologias para a filosofia e para as ciências. Uma única
“lógica” é admitida para ambas e “lógica” essa, denominada por Della Volpe, de “lógica
materialista da ciência moderna”.
149
Essa nova “dialética científica” ou dialética como
história-ciência” alcança autonomia (“adquire plena consciência de si”, na expressão
dellavolpiana) na medida em que “aplica às suas próprias categorias o critério do
ajustamento histórico” e “salva o caráter filosófico, sendo lógica enquanto gnosiologia
(ou, antes, epistemologia), exatamente pelo postulado crítico da matéria”.
150
3.5 Uma Nova Metodologia Dialético-Materialísta: A “Chave da Dialética Histórica”
Um dos textos capitais para a exposição de sua essência filosófica, em Galvano
Della Volpe, é “A chave da dialética histórica”. Nele, o marxista italiano convida a refletir
sobre “a categoria fundamental do ‘trabalho’ ou ‘trabalho produtivo’”. Por trabalho,
Galvano Della Volpe, na análise de Marx, em “O Capital”, refere-se a todo processo
decorrente da relação entre homem e natureza. Mas isto o é numa perspectiva
abstrata, sem se considerar as formas históricas específicas do trabalho. Todavia, caso
se considere todo o processo de trabalho, do ponto de vista do seu resultado, meio e
148
DELLA VOLPE, Galvano. Esboço sumário de um todo in Rousseau e Marx: a liberdade igualitária.
4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.175.
149
Ibid., p.175.
150
Ibid., p.176.
45
objeto de trabalho são duas formas de meios de produção e o próprio trabalho
apresenta-se enquanto trabalho produtivo.
151
Desta forma, segundo Galvano Della Volpe, o processo de trabalho é simples
processo individual, “o próprio trabalhador reúne em si todas as funções que, mais
tarde [isto é, historicamente], se separam(...)“.
152
E completa Della Volpe:
Assim como no organismo natural, a mente e o braço estão em conexão, assim
também o processo de trabalho reúne trabalho intelectual e trabalho material.
Mais tarde, estes cindem-se até ao antagonismo e à hostilidade. O produto
transforma-se em geral de produto imediato do produtor individual em produto
social, produto comum de um trabalhador de conjunto, isto é, de uma
combinação pessoal de trabalho (...) Portanto, com o caráter cooperativo
[=’social’] do processo de trabalho amplia-se necessariamente o conceito de
trabalho produtivo e do seu veículo, isto é, do trabalhador produtivo (...) Mas,
por outro lado, o conceito de trabalho produtivo se restringe. A produção
capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção
de mais-valia. O operário não produz por si, mas pelo capital.
153
Demonstrando essa cisão entre trabalho intelectual e trabalho material e a
conseqüente ampliação (enquanto trabalho social e não individual) e restrição
(enquanto produção de mais-valia e não de mercadoria) do conceito de trabalho
produtivo, Della Volpe vai afirmar que, historicamente, não vai bastar que “o operário
produza em geral”: ele deve “produzir mais-valia”.
154
Assim, é considerado produtivo
aquele operário que sirva para a autovalorização do capital. Segundo Galvano Della
Volpe,
151
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.17.
152
Ibid., p.18.
153
Ibid., p.18.
154
Ibid., p.18.
46
O conceito de operário produtivo não implica, portanto, apenas uma relação
entre atividade e efeito útil, entre operário e produto do trabalho, mas implica
também uma relação de produção especificamente social, de origem histórica,
que imprime ao operário a marca de meio direto de valorização do capital.
Portanto, ser operário produtivo não é uma sorte, mas uma desgraça.
155
O filósofo italiano, neste ponto, acentua dois aspectos metodológicos específicos
de Marx. O primeiro refere-se a categoria da “produtividade do trabalho”, considerada
de forma específica e histórica (e não abstrata, “uma geral e eterna relação natural”,
como fariam os economistas burgueses, conforme Galvano Della Volpe
156
) e a
segunda, a obrigação metodológica de se fundar cada teoria sobre a história, ou, em
outras palavras, sobre uma análise histórico-dialética, articuladas “em abstrações
determinadas enquanto históricas: ou seja, abstrações ‘científicas’ e não de tipo
metafísico (a ’metafísica da economia política‘).
157
Galvano Della Volpe passa a expor as contribuições específicas da economia
política clássica, no que se refere ao conceito de trabalho e operário produtivo na
consolidação do método preconizado por Marx, de uma definição não abstrata do
trabalho produtivo, presente em Teorias sobre a mais-valia. Em específico, os
contributos dos fisiocratas e dos smithianos.
Especificamente tratando dos contributos dos fisiocratas, Della Volpe o faz,
todavia sob uma perspectiva bastante sagaz. Tais contributos o o pela “via
negativa”, ou, nas palavras do filósofo italiano, “a convalidação de tais contributos
fisiocráticos é condicionada pelas negações (nos sistemas sucessivos de Smith a
Ricardo e a Marx), do que de negativo e contraditório é historicamente co-natural a
esses contributos. Assim, duas principais contribuições e suas respectivas
contrariedades apontadas por Marx na perspectiva de Della Volpe. O primeiro deles é
terem os fisiocratas,
155
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.18.
156
Ibid., p.19.
157
Ibid., p.19.
47
(...) ‘transferido a pesquisa sobre a origem da mais-valia da esfera da circulação
[em que a tinham mantido os mercantilistas] para a esfera da produção
imediata’ estabelecendo desse modo as bases para a análise da produção
capitalista’ e estabelecendo ‘o princípio fundamental de que é apenas produtivo
o trabalho que cria mais-valia’.
158
A este, Galvano Della Volpe apresenta a objeção marxiana, segundo a qual
Este sistema (...) não concebe o valor em geral como uma forma do trabalho
social e mais-valia como sobretrabalho [como de fato é], mas concebe o valor
como simples valor de uso, como simples matéria, e a mais-valia como simples
dom da natureza, que restitui ao trabalho, em vez de uma dada quantidade
orgânica, uma quantidade maior.
159
A segunda contribuição dos fisiocratas, e sua respectiva contrariedade, na
citação dellavolpiana de Marx, refere-se a
(...) terem os fisiocratas evitado a acusação de ‘terem separado, como todos os
seus sucessores, os modos objetivos de existência do capital, como
instrumentos de trabalho, matérias-primas etc, das condições sociais em que
eles apareciam na produção capitalista’.
160
E a objeção marxiana apresentada por Della Volpe, refere-se a
O erro dos fisiocratas consiste apenas em ter concebido a lei material de uma
determinada fase histórica da sociedade como lei abstrata que domina
uniformemente em todas as formas socias’, pecando, por fim, por (...) anti-
historicismo iluminista.
161
158
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.20. Ibid., p.20.
159
Ibid., p.22.
160
Ibid., p.21.
161
Ibid., p.22.
48
Especificamente tratando dos contributos dos smithianos, Galvano Della Volpe
aponta dois aspectos essenciais. O primeiro é a descoberta científica da produtividade
industrial moderna, da manufatura’“.
162
O segundo, a distinção capitalista de trabalho
‘produtivo’ e trabalho ‘improdutivo’”.
163
O filósofo italiano lança um olhar mais
aprofundado sobre esta segunda contribuição smithiana para a consolidação da
metodologia marxiana. Segundo ele, e retomando o que foi exposto, o trabalho
gerador de capital pode ser considerado trabalho produtivo. Entretanto, mercadoria ou
dinheiro também podem vir a ser considerados uma forma de capital, haja vista que
podem ser trocados diretamente pela capacidade de trabalho, isto, é, podem ser
trocados com o fim de serem substituídos “por um trabalho maior do que está contido
na própria mercadoria (...)”.
164
A grande contribuição smithiana, assim, é
Ter definido o trabalho produtivo como trabalho que se troca diretamente com o
capital, isto é, mediante uma troca em que as condições de produção do
trabalho e o valor em geral, dinheiro ou mercadoria, se transformam em capital
(e o trabalho transforma-se em trabalho assalariado no sentido científico do
termo).
165
Desse modo, Galvano Della Volpe consegue fixar, na leitura marxiana de Adam
Smith, pela via contrária, o que seja o trabalho improdutivo, tratando-se, justamente, de
“trabalho que não se troca com o capital, mas que se troca diretamente com o
rendimento”.
166
Entretanto, Marx oferece críticas às referidas concepções smithianas,
cuja essência se refere a questão da materialização do trabalho enquanto relação de
162
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.20. Ibid., p.22.
163
Ibid., p.22.
164
Galvano Della Volpe, também, se refere, ainda que neste trecho o tenha o mencionado, não só à
mercadoria, mas também ao dinheiro. Ibid., p.23.
165
Ibid., p.23.
166
Ibid., p.23.
49
troca numa realidade social, distinta da concepção smithiana, pois sem relação com a
realidade corpórea da mercadoria.
167
E, daqui, surge um desdobramento metodológico apontado por Della Volpe em
Marx: o fetichismo. Assim o é, pois, tendo em vista a crítica marxiana a Smith retro
referida, “os meios de produção não aparecem subsumidos pelo operário, mas é este
que aparece subsumido por eles”
168
, o que resulta em “personificação da coisa e uma
coisificação da pessoa”.
169
Galvano Della Volpe passa a adentrar naquilo por ele referido como “o coração
da lógica de O Capital”, conduzido por Teorias da mais-valia. Referido centro nervoso
metodológico marxiano refere-se a “categoria econômica da produtividade do
trabalho”.
170
Para tal, o filósofo italiano elenca três tópicos metodológicos. O primeiro
deles é o “círculo concreto-abstrato-concreto” ou “círculo de indução-dedução”.
171
Os
estudos críticos dessa primeira realidade histórico-concreta (o primeiro “concreto” do
“círculo concreto-abstrato-concreto”), ainda complexa, ampla e de difícil percepção mais
adequada, induzem a uma “abstração determinada” (o “abstrato” do “círculo concreto-
abstrato-concreto”), a qual pode ser interpretada enquanto uma desconsideração de
todas as peculiaridades da referida realidade histórico-concreta (ainda ampla e de difícil
compreensão), sendo relevados apenas os aspectos comuns da mesma. Por fim,
“refazendo a viagem ao inverso”, com a licença de apropriação de uma expressão do
próprio Marx, Galvano Della Volpe aponta para o entendimento de “conceitos históricos
precisos”, o último “concreto” da expressão círculo concreto-abstrato-concreto”, uma
“rica totalidade de determinações e relações” e não a “caótica noção de um todo”.
172
O segundo tópico metodológico referente ao “coração da lógica de O Capital”,
aludido por Della Volpe relaciona-se a “obrigação de partir sempre do ‘resultado’ (de um
processo histórico) que é o presente ou ‘concreto‘, ou seja, conjunto de ‘genérico’, ou
167
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.25.
168
Ibid., p.26.
169
Ibid., p.26.
170
Ibid., p.28.
171
Ibid., p.28.
172
Galvano Della Volpe faz uso de expressões de Marx. Ibid., p.28.
50
que-não-é-comum-a-outras-épocas, e de ‘específico’ e problemático)”.
173
O terceiro
tópico metodológico, nas palavras de Galvano Della Volpe
A obrrigação de precisar as razões ou causas do presente naquelas categorias
‘genéricas’, ou que-não-são-comuns-a-outras-épocas (por exemplo, a categoria
‘trabalho em geral’), que não sejam simples precedentes cronológicos do
presente mas que sejam precedentes ‘não-acidentais’, mas sim essenciais do
presente, e precisar a sua problemática e, portanto, os verdadeiros
antecedentes históricos - porque antecedentes lógicos - do consequente
presente, que é depois produtor e história (e não mera crônica), futura mediante
a realização dialético-prática. (...). enfim, o método dialético próprio enquanto
(...) método lógico-histórico de abstrações determinadas.
174
Assim, é o caráter não abstrato, e sim complexo, concreto, histórico, da definição
alcançada por Marx e apresentada pelo filósofo italiano que precisa ser reconsiderada
para compreender o grande final dialético, presente em O Capital. E a que definição se
chegou? Segundo Della Volpe, “a definição que se chegou é propriamente a definição
da produtividade do trabalho como produtividade capitalista do trabalho social”.
175
Definição histórica esta que, para Galvano Della Volpe, possibilita a visualização
de duas contradições, uma interna e outra externa. Por contradição (ou antinomia, no
uso de Della Volpe) interna, o filósofo italiano entende a contradição entre o caráter
privado do capital e o caráter social do trabalho na produção capitalista”.
176
A
contradição externa, por sua vez é o “(...) oposto que nos obriga a ultrapassar e superar
o que é antinômico e impõe-nos uma passagem para outro”.
177
E então, Della Volpe passa a apontar os alcances da dialética materialística de
Marx:
173
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.29. Ibid., p.29.
174
Ibid., p.29.
175
Ibid., p.30.
176
Ibid., p.30.
177
Ibid., p.30.
51
E note-se, acima de tudo, que a demonstração da necessidade da passagem e
desenvolvimento histórico em questão é confiada, nada mais, nada menos, ao
instrumento cognoscitivo, que é a análise dialética, que sendo historicamente
discriminatória de contraditórios - em especial da antinomia entre forças
produtivas sociais e relações de produção privadas capitalistas - pode resolver
por isso tal antinomia - ou melhor aquele complexivo significado antinômico - no
seu oposto ou contrário, igualmente histórico, que, com a sua negação do
aspecto contraditório negativo (isto é, as relações produtivas capitalistas)
daquele significado global antinômico, ‘eo ipso’, se compõe com - e desenvolve
- o outro aspecto contraditório, positivo (isto é, as forças produtivas sociais), do
mesmo significado antinômico - e assim por diante sem fim, segundo as novas
antinomias históricas, reais, que a análise dialética discriminará. Tudo depende,
portanto, da abstração determinada, enquanto historicamente específica, que é
o significado antinômico de que deve partir a análise - para ser resolutiva.
178
Galvano Della Volpe destaca, na seqüência e no que se refere à dialética da
produtividade” relacionada à “contradição interna” e contradição “externa”. Segundo ele,
Mas o que mais interessa observar - na última fórmula da definição dialética da
‘produtividade’ - é a necessidade nela da co-presença e do recíproco
condicionamento de contradição interna (naquele dado fenômeno histórico), ou
seja, contradição antinômica e problemática, ou oposição de contrários in-
compostos, ou autêntica ‘contrariedade’ - e contradição ou oposição, digamos
assim, a partir do exterior, resolutiva, que nega a primeira no seu contraditório
negativo, mas conserva-a e desenvolve-a pelo que respeita ao contraditório
positivo recíproco condicionamento, repitamo-lo, que de outra forma aquela
fórmula marxiana não tem qualquer sentido ou pelo menos não tem o sentido
que procura ter: de enunciação de uma necessária ou lógica passagem e
desenvolvimento histórico de uma sociedade para outra, com o relativo ritmo de
negação do negativo (...) e conservação do positivo.
179
Assim, “ quando se transfere o princípio dialético do céu para a terra, do
espaço metafísico, platônico e hegeliano, para baixo para a historicidade”
180
, analisa
Della Volpe
178
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.31.
179
Ibid., p.32 e 33.
180
Ibid., p.34 e 35.
52
É que a dialética revela a sua validade perene de instrumento cognoscitivo:
enquanto a irremissível necessidade da nossa razão de unidade real da nossa
vida se satisfaz apenas com a nunca interrompida restituição (dialética) da
unidade, após a violação do princípio de não-contradição, continuamente
perpetrada pelos conflitos do diverso ou multíplice real, histórico: um diverso
não ‘transeunte e ilusório como o diverso ‘criado’ - nas teologias antigas e
modernas - pelo Uno ou Idéia, que se autodegradou no mundano multíplice e
que se recuperou a si mesmo no céu - de tipo plotiano - de descida-regresso.
181
E mais: “por seu lado, o princípio de não-contradição demonstra as virtudes
germinais dialéticas se aplicando (também ele) ao conhecimento dos fenômenos
históricos”.
182
Desta forma,
Enquanto a sua violação na historicidade não significa de fato o estéril
escândalo lógico-formal que é a indeterminadíssima, abstratíssima e puramente
simbólica equação ‘A é não-A’, mas aquele escândalo lógico fecundo (de
dialeticismo ou movimento) que é um determinadíssimo significado histórico
contraditório e antinômico, suscitador por isso do seu determinadíssimo oposto
ou contrário que o resolve.
183
E conclui Galvano Della Volpe que
Por fim, tal oposto de um conceito contraditório, atrás caracterizado, para
imediata clareza, como oposto ou contraditório ‘externo’ (em relação à ‘interna’
contrariedade ou contradição in-composta que é o significado autocontraditório
de um dado fenômeno), não é outra coisa senão aquele (dialético) ‘tertium’
proscrito e menosprezado compreeensivelmente (‘tertium no datur’) do
abstratismo da lógica formal.
184
181
DELLA VOLPE, Galvano. Chave da dialética histórica in Crítica da ideologia contemporânea: ensaios
da teoria dialética. s. ed. Lisboa: Edições 70, 1974, p.34 e 35.
182
Ibid., p.34 e 35.
183
Ibid., p.34 e 35.
184
Ibid., p.34 e 35.
53
4 ESTADO, DIREITO E CIDADANIA EM GALVANO DELLA VOLPE
4.1 Entre Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx: A Questão Democrática em
Galvano Della Volpe
Galvano Della Volpe identifica em Jean-Jacques Rousseau um anteparo teórico
dos mais relevantes para o estudo da democracia a partir de uma perspectiva marxista.
No entanto, antes de adentrarmos nestas leituras dellavolpianas de Rousseau, vamos
observar algumas construções teóricas de Della Volpe de grande apelo. Para tanto,
vamos consultar uma de suas obras mais relevantes (Rousseau e Marx), texto
relativamente breve, mas de grande densidade. É o texto dellavolpiano de melhor
expressão para uma teoria política e da democracia. Consultando sua Opere, no
volume quinto, podemos verificar, ainda, textos complementares extremamente ricos às
questões que agora serão abordadas.
4.1.1 Galvano Della Volpe e Jean-Jacques Rousseau: a questão do “homem
abstrato” e do “regresso à natureza” rousseaunianos
Lembrando sempre, que Della Volpe faz uma análise da democracia a partir de
Rousseau, mas sempre com seu olhar metodológico marxista, o filósofo italiano oferece
uma crítica ao que ele se refere como “homem abstrato” em Rousseau. E o que seria o
referido conceito? Esclarece o filósofo italiano que, por conta de um “egotismo religioso
rousseauniano”
185
, há no filósofo franco-suíço uma concepção de homem enquanto
185
Indo a fundo no estudo de Rousseau, Della Volpe identifica referido conceito nos seguintes termos:
“Nada menos (mas também nada mais) do que um egotismo, diríamos, religioso e, neste sentido,
moral, apresenta-se a nós, portanto, na conhecida declaração rousseauniana: ‘Quando a força de
uma alma expansiva me identifica com o meu semelhante, e eu me sinto, por assim dizer, nele, é para
54
(...) indivíduo-valor (...), pessoa originária, ou seja, a priori, pré-social ou pré-
histórica, sendo essa pessoa unidade (gratuita, dogmática) do indivíduo ou
particular, em lugar de unidade com o universal histórico que é o gênero
humano”.
186
Ainda, Della Volpe continua suas críticas e classifica o ideal
rousseauniano de “regresso à natureza” como um axioma dogmático do
homem da natureza, do indivíduo livre.
187
E mais: o filósofo italiano apresenta as dificuldades de Rousseau em
(...) fundamentar a sociedade política
188
, ou seja, aquele organismo histórico
temporal que ela é, em elementos tão refratários como os ‘imprescritíveis’
direitos originários, pré-sociais, absolutos, do homem da natureza, isto é, do
indivíduo que é o indivíduo-valor ou pessoa, e por isso tem direitos, pela união
com um universal ou gênero que transcende a historicidade, por uma espécie
de investidura extra-temporal, extra-histórica; e não pela união com o seu
gênero histórico: o humano.
189
4.1.2 Galvano Della Volpe e Jean-Jacques Rousseau: contrato social, igualdade e
liberdade
Galvano Della Volpe, ainda, tece críticas à teoria do contrato social em
Rousseau. Segundo ele, no contrato social rousseauniano, uma exigência de se
estabelecer uma forma de associação protetora daquelas instâncias de valor
concebidas como direitos individuais racionais puros, corolários do jusnaturalismo (daí,
consequentemente, serem apriorismas referentes à desigualdade).
190
Segundo ele
não sofrer
que quero que ele não sofra e interesso-me por ele por amor a mim próprio”. DELLA
VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.
186
DELLA VOLPE, Galvano. Crítica da ideologia contemporânea: ensaios da teoria dialética. s. ed.
Lisboa: Edições 70, 1974, p.20.
187
DELLA VOLPE, op. cit., p.20.
188
“Sociedade política” no contexto das perpectivas teóricas do contratualismo em Rousseau, para quem
o “homem da natureza”, indivíduo livre, tem sua natureza e liberdade suprimidas por conta da
instauração, justamente, da sociedade política.
189
Ibid., p.21.
190
Ibid., p.30.
55
(...) parece evidente que o formalismo contratualísto-político, que deveria
mediar a ‘naturezaou razão e história, realizando assim o homem comum, a
pessoa humana, acaba por mostrar-se um meio demasiado extrínseco (é, de
fato, ‘artificial’, não-natural, segundo a expressão que afirma serem os Estados
‘grandes corpos artificiais’) para poder justificar mais que uma mera liberdade
política como cópia histórica ou tradução ‘a posteriori’ das liberdades naturais
ou ‘a priori’. Com a conseqüência final da proposta de uma ‘igualdade’ do
gênero daquela estabelecida pela cláusula do contrato social: pelo que o
‘pacote social’ institui tal ‘igualdade moral e legítima’ entre os homens que
estes, ‘podendo embora ser desiguais em força e talento, tornam-se todos
iguais por convenção e de direito (Contrato social, I, IX).
191
Todavia, ainda que desconsidere, enquanto forma de entendimento do homem e
da sociedade, por inteiro a teoria do contrato social de Rousseau, Galvano Della Volpe
atribui a ele relevantes créditos. Segundo o filósofo italiano, é certo que a tentativa de
solucionar tão grande dificuldade, mediante a cláusula do contrato’, (...), contribuiu
historicamente para realizar a igualdade humanitária”.
192
E por qual mecanismo
conceitual Della Volpe atribui créditos a teoria de Rousseau? Trata-se do incisivo
discurso da igualdade, ainda que formal e abstrato, em Rousseau mais que, em Marx,
atingiria sua máxima expressão enquanto “liberdade igualitária”. Qual teria sido o
grande equívoco de Rousseau?
Ainda que elogiado tanto por Marx e Della Volpe por conta de seu discurso
igualitário, Rousseau concentrou-se num aspecto menor da igualdade, ou seja, “uma
igualdade extrínseca, formal, abstrata e jurídica
193
, no sentido de ser apenas a tradução
‘legal’ ou ‘artificial’ de pretensões ou direitos naturais’: em suma, a legitimação de uma
liberdade ou independência originária, extra-histórica, mítica”.
194
E contrapõe-se Della Volpe, enquanto pensador marxista, a este tipo de
liberdade formal rousseauniana, propondo uma liberdade baseada numa
191
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.30.
192
Ibid., p.21.
193
Ponto de extrema sensibilidade para os juristas, a questão será retomada devidamente neste trabalho
(Capítulo 3, Subtítulo 3.3. - A questão da legalidade em Galvano Della Volpe: um diálogo necessário
com Evgeni Pachukanis).
194
Ibid., p.22.
56
(...) igualdade intrínseca, substancial, real, que é a liberdade social, isto é,
requerida pelo ato histórico, da convivência que caracteriza aquele ser humano
concreto, não separado do seu gênero; aquela igualdade real que por si
comporta uma liberdade real enquanto liberdade social, a qual, sendo liberdade
na e pela comunidade, é verdadeiramente liberdade de todos.
195
Assim, Galvano Della Volpe ataca a sociedade política rousseauniana, cuja
função de emancipação humana é parcial e não total. Segundo o filósofo italiano,
Compreende-se, (...), o desequilíbrio de liberdade e de justiça ou igualdade que
atinge esta sociedade política rousseauniana e, por reflexo, a ‘democracia
burguesa’. Daí aconteceu que Rousseau (...) forneceu (..) as razões ideais da
emancipação não de todo o povo, (...), mas apenas da burguesia, de toda
burguesia, pequena e grande, de uma classe somente; com base justamente
(do ponto de vista ideológico) na sua concepção fundamental do indivíduo
humano como indivíduo-valor, ou pessoa, enquanto aquele homem da
natureza, cujo caráter absoluto ou independência originária (donde a ‘livre
iniciativa’, etc) é caráter peculiar: enquanto, em concreto, homem comum-
burguês.
196
Segundo Galvano Della Volpe, Rousseau exclui, assim, o proletariado, cujas
características histórico-econômicas (“homem social por excelência, em virtude de se
manifestar com ele, de modo emitente, a natureza orgânica e organizadora do
trabalho”
197
) não são corroboradas pelo “homem abstrato rousseauniano”. E mais, Della
Volpe avança e identifica, mesmo em Rousseau, uma justificativa ideológica para a
divisão em classes sociais. Segundo Galvano Della Volpe, em Rousseau
(...) parece claro que os limites ideológicos desta sua democracia se resumem
na carência peculiar do princípio do ‘sentimento da humanidade’ ou do
humanitarismo, e do implícito conceito do homem como ‘homem da natureza’,
ou homem a priori, ou pessoa originária.
198
195
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.22.
196
Ibid., p.22.
197
Ibid., p.22.
198
Ibid., p.22.
57
De onde conclui o filósofo italiano, em forma de uma pergunta retórica
199
, que
(...) se uma sociedade classista comporta, em geral, uma concepção de direitos
que são em grande parte privilégios alargados, como negar que estão
destinados a ser privilégios aqueles direitos que querem ser tal enquanto
deduzíveis da dignidade originária de um indivíduo abstraído - por isso - da
sociedade histórica com o seu gênero?
200
E, exemplifica Della Volpe, com uma questão de apelo aos estudiosos críticos do
direito. Galvano Della Volpe critica os pressupostos apriorísticos de Rousseau a partir
do direito de propriedade. Segundo ele, a propriedade privada é justificada por via do
direito natural, isto é, por um conceito apriorístico ou teológico de caráter “sacro” (na
expressão dellavolpiana) da pessoa humana. Por força da conseqüência, deve-se
admitir que a propriedade privada é muito mais uma fonte de privilégios que um direito.
E assim o é, segundo Galvano Della Volpe, pois a consciência humana continua (e
continuará) a exigir direitos, mas a teologia (mesmo a mais laica) o pode garantir
senão privilégios”.
201
No entanto, as conclusões dellavolpianas sobre Rousseau não se esgotam aí. A
partir dessa interpretação crítica do contratualismo em Rousseau, Della Volpe parte
para a análise da teoria política rousseauniana. Segundo ele, a desigualdade moral (ou
“civil”) legitimada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre
que não acompanhe na mesma proporção à desigualdade física (ou seja, desigualdade
imediata, de “força” e “talento”, etc.)
202
. Conforme o próprio Della Volpe:
199
Ainda que reconheça que Rousseau não tivesse talvez como perceber que a sociedade permaneceria
fragmentada em classes sociais.
200
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.23.
201
Ibid., p.23.
202
Ibid., p.29 e 30.
58
Ela
203
coloca, portanto, a instância da conformidade na (pura) razão (no ‘direito
natural’) de uma desigualdade moral, isto é, civil ou soci1al, que seja
proporcional à desigualdade imediata, ou empírica, de força, de talento, etc.,
entre indivíduos. E com isto a conformidade racional de uma igualdade ou
justiça, que consiste numa proporcionalidade de desigualdades de valor e
individuais-empíricas (...), é entendida como conformidade com o direito natural:
isto é, com a racionalidade de uma igualdade que se articula com as
desigualdades proporcionais supracitadas em que consiste cada uma das
liberdades naturais, ou liberdade do homem independente por natureza’ (ou
seja, segundo a sua pura essência racional), ou pessoa a priori , meta-histórica,
pré-social, para que nos entendamos.
204
E então Galvano Della Volpe chega a um conceito que lhe será particularmente
caro. Nesta instância de “proporcionalidade das desigualdades de valor e individuais-
empíricas”, o filósofo italiano critica a igualdade concebida em função da liberdade.
Segundo ele:
A pessoa, da qual toda liberdade natural é atributo, é o homem independente,
abstrato, pré-social, isto é, o homem, por essência, alheio a aquele modo de
existência que é a coexistência ou convivência ou socialidade, em que tem um
sentido positivo e específico a instância da igualdade ou justiça.
205
Dessa forma, ainda segundo o filósofo italiano, a igualdade moral e legítima em
Rousseau só se enquanto “convencional-artificial” (Della Volpe ainda se utiliza de
outra expressão com o mesmo sentido: “direito positivo ou público”). Ou seja, igualdade
formal ou política presente em Rousseau é a “cópia” das liberdades naturais, o que
implica numa igualdade em função da liberdade, mas não o contrário
206
(uma liberdade
em função da igualdade, o que nos remeterá à “liberdade igualitária”, portanto, uma
liberdade sob perspectiva marxista). E por tudo isto, segundo Galvano Della Volpe
203
A teoria política em Rousseau.
204
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.29 e 30.
205
Ibid., p.30.
206
Ibid., p.31.
59
Revela-se, hoje, o simplismo, e a conseqüente infecundidade, da solução
rousseauniana, apriorística, do problema (capital) da igualdade como
proporcionalidade de desigualdades de valor e individuais empíricas: isto é, da
concepção de tal igualdade-proporcionalidade como direito natural ou
liberdades naturais, pré-sociais, do indivíduo; porque uma igualdade assim
concebida está longe de poder justificar uma igualdade legítima de todos
quantos está longe de poder ser liberdade real, ou seja, de todos, a liberdade
político-natural a que ela se reduz, isto é, a liberdade abstrata pré-social que é a
‘livre iniciativa’ casual ou do burguês, a liberdade classista-burguesa, parcial, ou
não-liberdade substancial.
207
E conclui o filósofo italiano, que a liberdade referida
(...) equivale a admitir, afinal, a carência de mediação de valor e empiria - ou
seja, a insuficiente explicação da constituição do indivíduo empírico, concreto,
como indivíduo-valor ou pessoa - que é a supracitada proporcionalidade de
igualdades, se entendida jusnaturalisticamente, aprioristicamente.
208
4.1.3 A atualidade rousseauniana em face da questão democrática na perspectiva
de Galvano Della Volpe
Apesar de tecer uma série de críticas, Della Volpe não deixa de oferecer certo
elogio a Rousseau. Assim, questiona-se o filósofo italiano em que o pensamento
rousseauniano ultrapassa suas limitações burguesas e contribui para a questão
democrática.
209
verificamos que, segundo Galvano Della Volpe, Rousseau atinge um conceito
de igualdade baseado numa “proporcionalidade universal de desigualdades ou
diferenças de valor (civil ou social) e individuais-empíricas”. Assim, ainda que Rousseau
não tenha conseguido escapar das perspectivas burguesas individualistas e abstratas,
207
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.31 e 32.
208
Ibid., p.31 e 32.
209
Ibid., p.36.
60
o que concretamente Marx conseguira, na perspectiva de Della Volpe, é justamente
aquele conceito rousseauniano de igualdade, a principal contribuição para o socialismo
científico no tratamento da questão democrática.
Para Della Volpe, a igualdade rousseauniana é “não niveladora”
210
baseada, de
forma geral, em três aspectos. O primeiro
211
deles é a igualdade (ou justiça) baseada
na proporcionalidade universal de diferenças sociais e de diferenças pessoais de
mérito; o segundo
212
, a manutenção da referida proporcionalidade universal a partir do
instrumento (um tanto quanto abstrato, segundo Della Volpe, mas acudindo fielmente à
expressão de Rousseau) da força comum do “corpo social” (ou “verdadeiro
soberano”); o terceiro
213
, a garantia de méritos (e, portanto, de direitos) apenas a uma
parte dos indivíduos membros do corpo social, garantia essa empreendida justamente
pela “originária formulação resolutiva contratualista” de Rousseau
214
, conforme Galvano
Della Volpe.
Então, o filósofo italiano atinge a grande questão cuja formulação, em traços
gerais, pode ser atribuída a Rousseau e cuja solução, todavia, e ressalte-se bem, está
em curso desde a época de Marx até os dias de hoje: a questão da liberdade igualitária.
Questão essa que justamente a obra de Marx e seguidores procurará oferecer algumas
respostas. Segundo o próprio Della Volpe
E temos de ver como é que, no complicado contexto do desenvolvimento
histórico-ideal da democracia moderna, tal problema será inteiramente resolúvel
em virtude de um método muito diferente do método racionalista-abstrato ou
espiritualista-humanitário de Rousseau. Tal método resolutivo, atrás enunciado
como o de um racionalismo concreto, ou seja, materialista, é o método do
socialismo científico, o método sociológico marxista-leninista, que substitui o
princípio do classicismo (a luta de classes) ao ineficaz princípio do
interclassismo, justificado exatamente pelo humanitarismo rousseauniano e
210
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.38.
211
Ibid., p.38.
212
Ibid., p.38.
213
Ibid., p.38.
214
Contradição essa muito bem destacada por Della Volpe, pois, segundo o mesmo, como ser “vontade
geral” se a análise histórico-concreta afirma ser vontade de parte dos indivíduos?
61
racional
(donde, depois, todo o ‘socialismo’ utópico e todo ‘marxismo’
revisionista ou social-liberalismo.
215
4.1.4 Immanuel Kant: crítica dellavolpiana ao jusnaturalismo racionalista kantiano
Contraposta às concepções rousseaunianas, Della Volpe aponta aspectos do
pensamento de Immanuel Kant e John Locke.
No que se refere a Kant, o filósofo italiano não lhe poupou críticas. Entretanto,
antes delas, passemos por alguns aspectos teóricos de nosso particular interesse, em
especial naquilo a que se referem os pressupostos gerais dos imperativos categóricos
kantianos. Assim, Galvano Della Volpe a entender que, em Kant, “o bem moral
pode ser constituído pela ‘representação da lei em si mesma’”.
216
No que se refere ao
homem enquanto ser moral, temos, em Kant e, segundo Galvano Della Volpe, o “homo
noumenon”, significando que o homem pertence ao “supra-sensível” ou ao mundo
inteligível ou puramente racional”.
217
E, assim sendo, é “’ente racional’ e ‘eu verdadeiro’
(...), que o homem como simples animal rationale não é, pelo contrário, senão o
homem fenômeno ou indivíduo empírico, econômico”.
218
Assim, considera Galvano
Della Volpe que o “bem moral” pode ter por origem a “representação da lei em si
mesma”, na expressão kantiana, o que se verifica, justamente, no “ente racional” de
Kant (ou, como diz Galvano Della Volpe, “ente puro”).
219
E dessa forma o é, pois a
“vontade é determinada pela ’representação imediata da lei’” (ou, como diz Galvano
Della Volpe, pelo “universal puro”).
220
E o que serviria de princípio à vontade kantiana, segundo Galvano Della Volpe?
“É a simples conformidade genérica à lei que serve de princípio à vontade e deve servir
215
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.39 e 40.
216
Ibid., p.22.
217
Ibid., p.22.
218
Galvano Della Volpe não deixa de conduzir do céu a terra o homem kantiano. Ibid., p.22.
219
Ibid., p.22.
220
Ibid., p.22.
62
de princípio, se o dever não é um sonho vão e um conceito quimérico’”.
221
Por via de
conseqüência, desenvolve-se o conceito, em Kant, de “intenção desinteressada”,
também, tratado por Galvano Della Volpe enquanto “boa vontade” ou, simplesmente,
“intenção”.
222
”Intenção” esta fundada de modo “surpra-sensível” no puro inteligível,
conforme Galvano Della Volpe. E logo é desferida sua crítica a Kant:
(...), a ‘interioridade’ kantiana é de tipo apriorístico ou teológico em geral: esta
inerência originária, isto é, imediata, indemonstrada, do valor ou universal no
indivíduo, com a conseqüência de uma desvalorização radical da exterioridade,
da ação, daquela conquista do mundo, em geral, que constitui o ser humano
enquanto ser mundano, histórico. Esta abstrata interioridade tradicional,
platônica-cristã.
223
Assim, Della Volpe faz acusações à debilidade do moralismo kantiano, mas não
uma crítica sob as perspectivas da “tradição ética pós-kantiana, romântica e
autodenominada histórica-dialética, de Schiller e Croce)”.
224
Segundo Galvano Della
Volpe, a debilidade não reside no “rigorismo moral, num abstratismo que sacrificaria o
indivíduo, a paixão, o concreto hedonístico”
225
, pois justamente este foi, numa
perspectiva generosa, segundo o filósofo italiano, o mérito histórico kantiano: o
moralismo kantiano, neste sentido, fora “o corretivo do hedonismo e empirismo prático
iluminista e, é claro, corretivo interior ao iluminismo”.
226
A verdadeira debilidade do
moralismo kantiano decorre um “abstratismo” diferenciado do anterior. O “abstratismo” a
que se refere Galvano Della Volpe é o abstratismo da interioridade originária do valor,
da pessoa originária, meta-histórica”.
227
Explica Galvano Della Volpe:
221
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.23.
222
Ibid., p.23.
223
Ibid., p.23.
224
Ibid., p.24.
225
Ibid., p.24.
226
Ibid., p.24.
227
Ibid., p.24.
63
O abstratismo de quem, concebendo a constituição do indivíduo como pessoa
por uma investidura extra-histórica do valor, pretende separar a pessoa humana
e a sua dignidade, assim como os correlativos direitos do valor ou universal que
é o único que pode investi-la realmente como pessoa, do valor ou universal
histórico que se baseia no gênero ou universal humano, a que pertence o
indivíduo e se baseia especificamente na comunidade ou sociedade não
metafórica ou stica dos interesses humanos; daí que, no fim de contas, a
pessoa extra-histórica, originária, não pode ser senão um indivíduo privilegiado,
na medida em que sai da norma, isto é, abstrato, liberto da nora do seu gênero;
e os seus direitos originários, extra-históricos (‘eternos’), ‘naturais’, nada mais
são do que justificaçõpes de privilégios reais, de fato.
228
E Galvano Della Volpe arremata afirmando que a “dignidade do homem” em Kant
nada mais é do que a dignidade do homem burguês. E assim o é, “na medida em que a
obrigação para com a ‘humanidade na pessoa’”
229
é a obrigação para com o “ser
inteligível” ou, ainda, o “racional-puro”.
230
Assim, a dignidade em Kant o é para uma
“humanidade numa pessoa a-histórica, associal” e, portanto, não humana. A dignidade
kantiana, segundo Della Volpe, é a “dignidade da interioridade pura, abstraída da
exterioridade e mundanidade que é a convivência ou socialidade pica do trabalho”.
231
Segundo Galvano Della Volpe
Donde a moral do dever pelo dever, ou do universal pelo universal, o
moralismo, é a moral não do homem humano, social, total, mas do homem
parcial que é o homem individualista, o homem-de-classe, precisamente o
homem comum-burguês.
232
A “dignidade abstrata” em Kant acarreta uma liberdade igualmente abstrata.
Segundo o filósofo italiano,
228
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.24.
229
Ibid., p.27.
230
Ibid., p.27.
231
Ibid., p.27.
232
Ibid., p.27.
64
que esta formulação da dignidade ou valor absoluto do indivíduo humano
pressupõe o seguinte conceito de liberdade do mesmo indivíduo segundo Kant
(e é dele inseparável): ou seja, pressupõe a concepção daquela liberdade
abstrata, ‘a priori’, pré-social, anárquica, que é própria da doutrina dos ‘direitos
por natureza’ ou jusnaturalismo e que culmina justamente nos (...) coerentes
postulados-imperativos da kantiana Doutrina do Direito.
233
Referidos “postulados-imperativos” referem-se à manutenção das estruturas
sociais
234
e a igualdade do indivíduo inspirada na sua liberdade.
235
Galvano Della Volpe chega até a oferecer certo elogio da “liberdade abstrata”,
pois julga incontestável que as mesmas conduzirão a uma vitória da “consciência
moderna (burguesa)” sobre o despotismo e privilégios absolutistas.
236
Todavia,
reconhece Della Volpe que referida liberdade sofreu o “desgaste histórico”, com
demonstração, tanto na sua estrutura, quanto na sua constituição sistemática, de seus
“limites históricos” (referentes a critérios morais e políticos de classe propriamente,
segundo Della Volpe
237
).
Se, por um lado, a dignidade em Kant é a dignidade do homem burguês,
Galvano Della Volpe logo deixa provado o “caráter limitativo classista” da “dignidade
privilegiada” da menor parcela da humanidade, ao escancarar que, kantianamente
tratando, o trabalhador não possui dignidade.
238
Se Kant preceitua que o homem é fim
e nunca meio”, Della Volpe traz outra passagem dos textos kantianos que deixa à vista
suas contradições. Kant, segundo o filósofo italiano, afirma que “a habilidade e a
diligência no trabalho têm um preço de mercado”
239
, ao passo que a “benevolência por
princípio e a fidelidade às promessas m valor intrínseco”
240
, o que faz entender que
233
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.62.
234
Ibid., p.62.
235
“A igualdade inata é o mesmo que dizer a independência [...], e por isso a qualidade que o homem tem
de ser o seu próprio senhor”. Ibid., p.62.
236
Daí certo elogio dellavolpiano ao jusnaturalismo, enquanto promovedor de uma série de garantias
individuais contra arbítrios estatais. Ibid., p.62.
237
Ibid., p.63.
238
Ibid., p.63.
239
Ibid., p.63.
240
Ibid., p.63.
65
estas últimas são “virtudes” e, portanto, “dizem respeito à ‘dignidade’ do homem’”.
241
Assim, segundo Della Volpe
(...), explicando o implícito, o homem trabalhador, enquanto tal, só tem um
‘preço’, é uma ‘mercadoria’, não tem valor intrínseco, é simples meio e não fim e
si mesmo, numa palavra, não tem ‘dignidade da humanidade’, não é ‘pessoa’,
não tem personalidade.
242
E quais seriam as análises dellavolpianas referentes ao jusnaturalismo, em
especial ao “jusnaturalismo racionalista kantiano”? Logo de imediato, Galvano Della
Volpe pondera que o direito kantiano é “formal e negativo”.
243
Formal” no sentido de
que cuida de dignidades e liberdade abstratas”, de um homem a-histórico”, conforme
exposto, com votos de que o tenhamos feito de forma clara. “Negativo” no sentido de
um direito destinado, unicamente, à tutela da liberdade individual. Della Volpe expõe
que
(...) conclusão esta, a kantiana, em que se recapitula perfeitamente a parábola
do homem independente ‘por natureza’ ou pessoa a priori: que é,o seu
constituir-se - através do apriorismo (a independência-igualdade inata!) e da
consequente pré-socialidade (‘entra, se não podes evitar a sociedade’, etc
244
) -
como pessoa privilegiada: que cada qual possa conservar, na sociedade, o que
lhe pertence! De onde é claro que se a sociedade é um posterius, e algo de
inessencial, não ‘todos’, não cada qual, mas só alguns poderão conservar nela
(enquanto sociedade ‘aparente’) o que de fato lhes proporciona a
independência natural (...) com as suas diferenças individuais absolutizadas.
245
241
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.63.
242
Ibid., p.63.
243
Ibid., p.30.
244
Della Volpe refere-se a citações do próprio Kant.
245
Galvano Della Volpe refere-se a textos kantianos por ele não nomeados, mas cujos conteúdos, para
total esclarecimento, são o que seguem: “A igualdade inata é o mesmo que dizer independência”;
“Entra (se não podes evitar a sociedade) com os outros em uma sociedade tal, que nela cada qual
possa conservar o que lhe pertence”; e, por fim, “Todo o direito consiste unicamente na delimitação
da liberdade de cada um”. Ibid., p.29 e 30.
66
Assim sendo, o direito natural” decorrente do pensamento de Kant, tal como a
liberdade e dignidade “abstratas”, igualmente dele decorrentes, conseguem sobreviver
em Della Volpe por um determinado e bastante específico período histórico. Galvano
Della Volpe oferece, assim, um certo elogio ao jusnaturalismo por conta da “função
revolucionária exercida durante séculos (...) em geral ao contribuir, no plano da
ideologia, para mudar uma realidade social caracterizada, acima de tudo, pela sujeição
política”.
246
De toda forma, no balanço histórico, o “direito natural” de origem moderna (leia-
se: kantiano) de um “esgotamento histórico” incontornável, segundo Galvano Della
Volpe, pela,
(...) sua (...) incapacidade de mediar (...), através das suas hipóstases, a razão
e a história, e assim espicaçar esta última, a função revolucionária da ideologia
não pode competir doravante senão a um racionalismo concreto, ou seja,
materialista, que elabore um conceito histórico-experimental, sociológico, do
homem e da pessoa.
247
Desta forma, em Kant, segundo Galvano Della Volpe, um direito bastante
específico,
Um direito que se revela agora como privilégio, enquanto negação daquela
instância de valor ou universalidade, ou instância que diz respeito a cada qual,
que constitui a justiça, virtual essência do direito. A pessoa privilegiada revela,
portanto, para o crítico moderno, a mais típica e resumidora contradição em
termos da ideologia ético-jurídica classista burguesa: a pessoa, o indivíduo-
valor, que é a privilegiada, ou seja, é negação de valor!
248
246
Della Volpe faz referência ao Absolutismo. DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade
igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.31.
247
Ibid., p.31.
248
Ibid., p.30.
67
4.1.5 John Locke: crítica dellavolpiana da justificação jusnaturalista lockeana do
trabalho
Galvano Della Volpe identifica em John Locke novos elementos para o “culto do
homem abstrato”. Refere-se especificamente, o filósofo italiano, à justificação
jusnaturalista lockeana do trabalho. Segundo Della Volpe, para Locke, “o próprio
trabalho é propriedade da pessoa humana enquanto sujeito de direitos naturais ou
inatos ou racionais puros, que antecedem à constituição (histórica) do homem em
sociedade”.
249
Destaca Galvano Della Volpe que no conceito lockeano-jusnaturalista da força
de trabalho (...) como propriedade-direito da pessoa humana”
250
encontra-se o
assentamento filosófico da
(...) concepção econômica burguesa da força de trabalho como algo de privado,
ocasião, portanto, de relações de indivíduo a indivíduo, e numa palavra objeto
de troca, mercadoria (e não apenas a base da propriedade privada da terra
trabalhada, segundo Locke).
251
E, também, em Locke, Galvano Della Volpe tem seus motivos para oferecer
crítica ao jusnaturalismo. Argumenta ele a respeito da “antinomia do trabalho” enquanto
mercadoria, ou seja, “algo de desumano”.
252
E faz uma interessante inserção: critica
Galvano Della Volpe o projeto reformista (referido por ele enquanto “social-reformista”
ou “social-liberal” de fazer do socialismo um “apêndice” da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão
253
). Seguindo seu raciocínio
249
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.31.
250
Ibid., p.32.
251
Ibid., p.32.
252
Ibid., p.32.
253
Ibid., p.32.
68
que é óbvio que se partir, (...), do conceito lockeano do trabalho como direito
‘originário’, natural, da pessoa, e por isso do conceito do mais-trabalho e mais-
valia como ‘ofensa a um direito natural’ não se chegará senão a reivindicações
que se referem apenas à medida da exploração capitalista do trabalho ou à
contenção de tal exploração (as ‘barreiras de leis’ reformistas sobre as horas de
trabalho, o vel do salário e outros objetivos humanitários), mas nunca
referentes à própria exploração e à sua abolição: o direito natural do proprietário
do capital, do contrapeso ao direito natural do proprietário da força de trabalho
ou seu vendedor.
254
De tal deriva a insustentabilidade teórica lockeana, segundo Galvano Della
Volpe. E o filósofo italiano detecta tal insustentabilidade a partir, ainda, de outra via.
Parte ele de um problema indissolúvel, se pensarmos nestes termos reformistas.
255
Galvano Della Volpe questiona-se como a mais-valia e o lucro podem ser declarados
uma ‘injustiça de repartição’ dos produtos, se a força de trabalho produtora é
jusnaturalisticamente privada”.
256
Seguindo o raciocínio reformista mencionado, o
trabalhador enquanto titular do seu direito de propriedade sobre o próprio trabalho,
poderia muito bem alienar-se do seu trabalho, numa simples operação de venda do
mesmo, sem que isto implicasse numa injustiça.
4.1.6 Rousseau, Marx e a liberdade igualitária na perspectiva da revolução
emancipatória integral: revolução burguesa e revolução proletária
A questão da “liberdade igualitária” em Della Volpe, pode ser abordada a partir
da questão da revolução. Della Volpe aborda a questão da revolução enquanto projeto
de emancipação humana. Assim sendo, Della Volpe destaca duas espécies
revolucionárias e suas respectivas características e amplitudes: são por ele
contrapostas a revolução burguesa e revolução proletária. Segundo o filósofo italiano, a
254
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.32.
255
Atribuídos, entre outros, a Rodolfo Mondolfo, antigo professor de Galvano Della Volpe.
256
Ibid., p.32 e 33.
69
revolução burguesa é um projeto emancipatório deficitário, pois por meio dele se
apenas emancipação parcial da sociedade. Consultando-o diretamente:
Na Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito blico, a sua obra capital póstuma
de 1843, Marx escreve, por exemplo: a revolução francesa levou ao seu
termo a transformação das classes sociais, ou melhor, fez das diferenças de
classe da sociedade civil apenas diferenças sociais, diferenças da vida privada,
que não têm significado na vida política. (...). Mas dentro da mesma sociedade
a diferença [de classe] desenvolveu-se em círculos móveis, não fixos, cujo
princípio é o arbítrio’.
257
Galvano Della Volpe, assim como Karl Marx, identificam, acertadamente, na
Revolução Francesa de 1789, o mais típico caso de revolução burguesa. Contudo,
quais lições poderíamos extrair de tal constatação? Trazendo as palavras de Marx, o
filósofo italiano identifica um conceito de revolução política bastante específico.
Revolução política é aquela em que uma parte da sociedade civil se emancipa e chega
à hegemonia
258
; e referida emancipação é parcial na medida em que mencionada
classe social, partindo da sua situação particular, emancipará toda a sociedade a
partir do pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação dessa classe.
259
Acompanhando Marx, Della Volpe conclui que referida classe social não emancipa toda
a sociedade
260
E a propósito destes critérios da sociedade burguesa Marx traça, em Para a
Crítica da filosofia Hegeliana do Direito. Introdução (1844), o seguinte conexo
conceito de ‘revolução política’ ou burguesa: ‘Em que consiste uma revolução
parcial, apenas política? No seguinte: em que uma parte da sociedade civil se
emancipa e chega à hegemonia; e que uma determinada classe leva por diante,
partindo da sua situação particular, a emancipação geral da sociedade. E esta
classe emancipa toda a sociedade, mas com o pressuposto de que toda a
sociedade se encontre na situação dessa classe: que ela possua, portanto, por
257
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.267.
258
Ibid., p.267.
259
Ibid., p.267.
260
Ibid., p.267.
70
exemplo, dinheiro e cultura, ou possa adquiri-los’. E portanto, subentende Marx,
essa classe não emancipa toda a sociedade.
261
Por outro lado e em oposição à primeira, Galvano Della Volpe identifica a
revolução proletária. São suas palavras:
E note-se, um pouco adiante, a conclusão sobre o ‘papel libertador’ que compete
afinal ao proletariado como classe, ‘organizando todas as condições da
existência humana no pressuposto da liberdade social’, e não ‘meramente
política’, supera a emancipação ‘parcial’ ou burguesa para uma emancipação
‘geral e humana’ do homem (cf. Para a Questão Hebraica, 1844, etc.).
262
Dessa forma, Galvano Della Volpe deixa bastante claro a maior e mais completa
amplitude da revolução proletária, por força da mesma se prestar à emancipação
integral da sociedade através da abolição das classes sociais. Todavia, o filósofo
italiano coloca diante de si se
(...), será toda a verdade que e indiscriminadamente a revolução ‘social’ (a
revolução que realiza a liberdade ‘social’, ou seja, a livre expansão da
sociedade em todos os seus extratos) leva a cabo uma emancipação ‘geral e
humana’ do homem?
263
Questionando-se se e exclusivamente a revolução proletária é apta à
emancipação humana, Galvano Della Volpe convida a uma análise da questão
democrática no que tange ao embate entre liberdade civil (política) e liberdade
igualitária (social). Identifica,
261
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.85.
262
Ibid., p.85 e 86.
263
Ibid., p.86.
71
A dupla face, as duas almas, da liberdade e da democracia modernas: a
liberdade civil (política) instituída pela democracia parlamentar ou política e
teorizada por Locke, Montesquieu, Kant, Humboldt, Constant, e a liberdade
igualitária (social) instituída pela democracia socialista e teorizada
primeiramente por Rousseau e depois, mais ou menos explicitamente, por
Marx, Engels e Lênin.
264
E o que seria a liberdade civil? O filósofo italiano é bastante direto, pois, segundo
ele, liberdade civil, “dita burguesa, é, no seu sentido histórico, a liberdade ou conjunto
das liberdades dos membros da ‘sociedade civil’ enquanto sociedades (de classe) de
indivíduos produtores”.
265
Não o necessárias maiores explicações, pois Della Volpe é
bastante preciso:
É o conjunto das liberdades ou direitos da iniciativa econômica individual, da
segurança da propriedade privada, dos meios de produção, do habeas corpus,
de culto, consciência e imprensa, etc. (...). Instrumentos jurídico-políticos da
liberdade civil: a separação dos poderes do Estado e o aparelho do poder
legislativo como representativo da soberania nacional, etc., o parlamentarismo
do Estado liberal burguês.
266
E contraposta à liberdade civil, burguesa, temos, sempre acompanhando o
raciocínio de Della Volpe, a liberdade igualitária, “expressão de uma instância universal
incondicionada”.
267
Segundo ele, a liberdade igualitária
Significa o direito de qualquer ser humano ao reconhecimento social das suas
pessoais capacidades e possibilidades; em resumo é a instância genuinamente
e absolutamente democrática do mérito de quem quer que seja e portanto do
seu direito ao trabalho garantido: a instância, em suma, do fortalecimento social
do indivíduo humano em geral enquanto pessoa. É exatamente a liberdade
igualitária, mais que liberdade porque também justiça (social), uma espécie de
libertas maior (enquanto liberdade das grandes massas).
268
264
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.269.
265
Ibid., p.269.
266
Ibid., p.269.
267
Ibid., p.269 e 270.
268
Ibid., p.269 e 270.
72
Galvano Della Volpe, assim, aponta para o aproveitamento do protesto de
Rousseau
269
por Engels, o qual nos aponta a necessidade de um “sistema (social) que
assegure a possibilidade de desenvolvimento de cada homem e de todas as suas
disposições físicas e morais”.
270
Assim, fica evidenciado o contraste entre o liberalismo
e o socialismo, cujos critérios dialético-históricos de solução foram triplamente divididos
por Della Volpe. O primeiro é a dupla face da liberdade e da democracia moderna
apontado por Galvano Della Volpe; o segundo, a própria questão da liberdade
igualitária; e, por último, o terceiro, a integração das liberdades civis com a progressiva
satisfação de instâncias igualitárias na época presente ou idade das novas democracias
e da competição pacífica resultante da existência de um sistema mundial do
socialismo.
271
Por fim, a questão da integração das liberdades civis com a progressiva
satisfação de instâncias igualitárias, segundo Della Volpe, é parte do “novo fecundo
gradualismo que se impõem, na luta política dos grandes partidos de massa europeus,
para construir vias nacionais para o socialismo, com uma nova instrumentalidade, além
do mais, dos parlamentos burgueses para fins da realização de reformas democráticas
de estrutura, antimonopolistas, etc”.
272
A abordagem dos referidos três critérios, em especial dos dois últimos, nos
revela algumas características típicas do pensamento de Della Volpe. Trata-se de um
filósofo que identifica uma certa permanência do espírito liberal burguês no socialismo:
“mas, por outro lado, como negar o fato da continuidade - num novo plano histórico,
decerto - do espírito liberal lockeano e kantiano, na primeira fase da sociedade
comunista, que é o atual Estado socialista russo e, em suma, na legalidade socialista
soviética?”
273
269
“Eu pensava que ser dotado de talento fosse o mais seguro recurso contra a miséria”. DELLA VOLPE,
Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.270.
270
Ibid., p.269 e 270.
271
Lembrar que Galvano Della Volpe vivera o período pleno da Guerra Fria, no qual, ainda que sob fortes
distorções, existia um projeto socialista institucionalizado, especialmente em vários países do leste
europeu, de expansão do regime político-econômico socialista.
272
Ibid., p.63.
273
Ibid., p.270.
73
4.2 A Questão da Legalidade em Galvano Della Volpe: Um Diálogo Necessário
com Evgeni Pachukanis
4.2.1 A legalidade socialista em Galvano Della Volpe
Della Volpe apresenta certo interesse pelas garantias político-jurídicas do
pensamento burguês. Lembra que o próprio Marx, também, demonstrou interesse,
quando de sua crítica ao caráter parcial da emancipação gerada pela revolução
burguesa, à questão da superestrutura. Segundo Della Volpe, o próprio Marx apontou o
prolongamento da superestrutura burguesa no Estado socialista, justamente a partir de
uma necessidade de igualdade de direitos quando da repartição da riqueza socialmente
produzida. Todavia, Della Volpe aponta que Marx fora limitado neste sentido.
Certamente, sob este olhar dellavolpiano, deve haver, sim, isonomia na distribuição da
riqueza socialmente produzida
274
, mas não só: Marx deixou de destacar, da mesma
forma, a necessidade de prolongamento, no Estado socialista, do “garantismo” jurídico,
presente, em geral, nas teorias políticas e jurídico-constitucionais burguesas. Marx
deixou de fazê-lo, mas Della Volpe o fez.
275
Assim, a título de esclarecimento dessas reflexões, fazem-se necessárias as
próprias palavras de Della Volpe:
274
Diferentemente do que se no modelo capitalista, em que se privatizam as riquezas socialmente
produzidas.
275
Os riscos teóricos assumidos por Della Volpe é questão a ser tratada adiante, em especial no que se
refere à coerência metodológica marxista, quando se aproxima destes traços da teoria jurídico-político
burguesa.
74
Marx (...) que, todavia, teve um sentido tão agudo da necessidade histórica da
superestrutura jurídica burguesa, a ponto de mostrar seu prolongamento no
próprio Estado socialista sob o aspecto da medida ‘igual’ da repartição dos bens
produzidos pelo trabalho social, ou residual direito econômico ‘burguês’ (...),
nunca se preocupou em sublinhar de igual modo a necessidade de prolongar-
se, no mesmo Estado socialista, do ‘garantismo’ jurídico, constitucional, de cada
pessoa-cidadão. É verdade que o problema da revolução ‘social’ o absorvia
demasiado para permitir-lhe reconhecer a herança substancial irrecusável da
revolução ‘política’, ou seja, a medida da duração de certos valores burgueses
no futuro. E Lênin, (...), acompanhou-o também quanto a isto na sua teoria da
‘ditadura do proletariado’. Lênin, para quem, (...), ‘democracia significa
igualdade’ social apenas: porque, explicam-nos eles, compreende-se quão
grande importância tenham a luta do proletariado pela igualdade e a palavra de
ordem da igualdade se compreender esta exatamente no sentido da eliminação
das classes (Estado e Revolução, v. 4).
276
E mais: Della Volpe chega mesmo a apontar algumas conclusões sobre aquilo a
que ele se refere como “premissas da herança jurídica burguesa no Estado socialista”.
Segundo ele, é no “garantismo constitucional socialista” (na expressão dele próprio)
que se renovam as liberdades civis, assim como, os “conselhos populares” (sovietes)
são renovações dos parlamentos burgueses e, por fim, é na regra do “para uma parte
igual de trabalho efetuado, uma parte igual de produto”, que se renova o direito
econômico burguês.
277
São suas palavras sobre esta primeira conclusão a respeito do
mencionado “garantismo constitucional socialista”:
É preciso ter em mente que no ‘garantismo constitucional socialista são
renovadas as liberdades civis, assim como o parlamentarismo nos conselhos
populares que são os sovietes ou o direito econômico-burguês na ‘para uma
parte igual de trabalho efetuado, uma parte igual de produto’.
276
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.85 e 87.
277
É recorrente notar que, apesar de algumas concessões teóricas ao liberalismo-burguês, Della Volpe
jamais o acolhe sem as devidas ressalvas. Fizemos questão de repetir o uso do verbo “renovar”, em
seus variados tempos verbais, neste trecho justamente para destacar que Della Volpe refere-se não a
um resgate simples e incondicionado de institutos jurídicos liberal-burgueses, mas sim a um
reavivamente dos mesmos. Tanto é assim, que no que se refere à mencionada norma de caráter
econômico, Della Volpe faz questão de destacar o caráter eminentemente socialista da norma
mencionada por conta de sua natureza social ao oferece reconhecimento ao trabalho e seu produto.
75
Ressalte-se, ainda, que em Della Volpe,
As normas do Estado de direito são conservadas, isto é, são ao mesmo tempo
transformadas, transvaloradas - e em suma, renovadas - no peculiar registro
progressista econômico-social-político de um Estado socialista enquanto
‘Estado de todo o povo’ (Khruchtchev).
278
A segunda conclusão dellavolpiana refere-se à instância igualitária,
fundamentada de maneira materialista, enquanto sustentáculo do Estado socialista.
Della Volpe não é ingênuo e compreende que não deixará de ser burguês o modelo
econômico-político que não se desfizer de um modo de produção baseado na
privatização da riqueza socialmente gerada. Assim, compreende o filósofo italiano que
o assentamento de toda organização política possui fundamento econômico. E, aqui,
Della Volpe é autenticamente marxista. Todavia, como veremos adiante e com os votos
de que nos façamos claros, a forma de se projetar a consolidação do referido
fundamento econômico não foi, aparentemente, dos mais autenticamente marxistas em
Galvano Della Volpe.
A terceira conclusão dellavolpiana referente às premissas da herança jurídica
burguesa no Estado socialista (ou, usando outra expressão do autor, “garantismo
constitucional socialista”) é aquela na qual o mesmo Estado (e direito, diga-se de
passagem) socialista, em que Della Volpe admite o prolongamento da superestrutura
jurídica (portanto, elemento de concepção e prática burguesa-liberal), é aquele que será
extinto com o fim da luta de classes e o surgimento do comunismo. Della Volpe, assim,
apesar de ter feito suas concessões à teoria político-jurídico de garantismo
constitucional (cuja origem e desenvolvimento, como procuramos apontar em Della
Volpe, é, repita-se, notadamente burguês-liberal) ainda se mantém próximo ao
278
Observe-se que estas referências dellavolpianas (no caso, a Khruchtchev primeiro secretário do
Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética dão a entender um certo grau de
comprometimento ideológico com certas repercussões em seu pensamento. De toda forma, as
palavras de Della Volpe procuram esclarecer que ele, como destacado acima, não admite
incondicionalmente a técnica jurídica burguesa-liberal. DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a
liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd., p.272.
76
marxismo ao prever a extinção do Estado (e, por via de conseqüência, do direito). São
suas palavras neste sentido:
(...) o Estado destinado (segundo a hipótese conclusiva formulada pela teoria
clássica marxista-leninista) a ‘extinguir-se’ naquela ‘sociedade de livres e iguais’
que é a sociedade comunista propriamente dita, ou sociedade sem classes, em
que as ‘funções públicas perderão o seu caráter político e tornar-se-ão simples
funções administrativas para a assistência dos interesses da sociedade
(Engels, citado Lênin em Estado e Revolução), é este mesmo Estado socialista.
Como temos verificado, Galvano Della Volpe visualiza a hipótese da manutenção
de uma certa herança jurídica burguesa no Estado socialista. Mas qual teria sido o
percurso intelectual de Della Volpe a tal?
O próprio Galvano Della Volpe admite que, de uma certa forma, o resultado de
seus diálogos com Norberto Bobbio lhe permitiu alguma formulação teórica. Bobbio,
segundo Della Volpe, cria o conceito de “funcionalidade das normas técnicas burguesas
num Estado proletário”, segundo o qual, o direito, enquanto técnica, é um instrumento
apto a ser utilizado tanto em países capitalistas, quanto por socialistas. E assim o seria,
ainda, acompanhando a leitura dellavolpiana de Bobbio, haja vista existirem em todos
os homens, burgueses ou proletários, fins comuns decorrentes de sua sociabilidade.
Segundo Galvano Della Volpe
A este fato nos reporta, ao menos indiretamente, a questão levantada por
Norberto bobbio (em Política e Cultura, Turim, 1955) acerca da funcionalidade
das ‘normas técnicas jurídicas’ (do ‘garantismo’ burguês) mesmo para um
Estado proletário. Bobbio procura simplesmente demonstrar a legitimidade da
‘exigência de convidar os defensores da ditadura do proletariado a considerar
as formas de regime liberal-democrático pelo seu valor de técnica jurídica mais
requintada e mais avançada. E para Bobbio, numa palavra, ‘o importante é que
se comece a conceber o direito não como fenômeno burguês, mas como
conjunto de normas técnicas que podem ser empregadas tanto por burgueses
como por proletários para conseguir certos fins que são comuns a uns e a
outros, como homens sociáveis.
279
279
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.270.
77
Certamente, a reflexão de Bobbio é passível de severas críticas. Vamos nos
concentrar nas críticas de Della Volpe. O marxista italiano, a partir da “funcionalidade
das normas técnicas burguesas num Estado proletário”, de Bobbio, lança um olhar
sobre a Constituição Soviética de seu tempo. Nela, Della Volpe identifica tanto o
princípio jurídico liberal-burguês da isonomia, em especial no que se refere à igualdade
de direitos de todos os cidadãos soviéticos, independemente de suas características e
condições peculiares, quanto o direito à “inviolabilidade da pessoa”. Segundo ele
Sabemos que a constituição soviética atual, da época pós-staliniana -
promulgada em 1960, mas conferir com a constituição idêntica de 36, traz os
artigos 123-8 referentes à igualdade dos direitos dos cidadãos
independentemente da sua nacionalidade e raça, a liberdade de consciência,
de palavra, de imprensa, de reunião, de organização dos sindicatos, assim
como o direito de habeas corpus, ou seja (diz-se nela) da ‘inviolabilidade da
pessoa’, pelo que ‘ninguém pode ser preso a não ser por decisão de um tribunal
ou com a sanção de um procurador’, etc.
280
Se Della Volpe tivesse encerrado suas observações neste ponto, bastante,
provavelmente, ele estaria de acordo com Bobbio. Mas Galvano Della Volpe,
acertadamente, induz que as mesmas normas técnicas burguesas” não são tão
funcionais assim, quer num Estado burguês, quer num Estado proletário, como
pretensamente imaginava Bobbio. Della Volpe aponta para a necessidade de uma
fundamentação bastante específica para a legalidade socialista. Assim, a simples
existência da constituição soviética, ainda que técnica normativa jurídica (portanto,
legatária da tradição político-jurídica do tipo liberal-burguesa) num Estado que se dizia
socialista, não creditava razão automática de Della Volpe a Bobbio. Segundo Galvano
Della Volpe
280
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.270.
78
(...) ficam por ver as razões específicas profundas disto
281
, razões que o
podem coincidir com as razões específicas do Estado liberal ou democrático
burguês; quanto mais não seja porque aquelas liberdades e direitos subjetivos,
aquelas normas técnicas constitucionais, inscrevem-se no registro social e
político do primeiro Estado socialista, que tem novos e peculiares fundamentos.
Para precisar a validade da exigência formulada por Bobbio não basta, por
certo, aduzir aqueles fatos que são as constituições soviéticas em questão, em
que é quase supérfluo notar, acima de tudo, a abolição daquele ‘racionamento
da liberdade’ (civil) ‘a favor da liberdade’ (igualitária) que é, segundo uma
expressão de Lênin, a ditadura do proletariado em sentido estrito.
282
Della Volpe, então, visualiza dois objetos principais, justamente o modo e a
causa, para aquilo que ele se referiu como “reconstituição socialista de normas jurídicas
burguesas”.
283
E o que seria o modo em Della Volpe? Numa sentença: a abolição do
direito de propriedade privada dos meios de produção. E qual seria a causa? A
necessidade de manutenção de um Estado de direito, mesmo no socialismo.
Vamos aos argumentos de Della Volpe. No que se refere à abolição do direito de
propriedade, só será verdadeira a reconstituição socialista” da legalidade burguesa se
referido direito, o qual “historicamente se revelou antieconômico, anti-social e
desumano”
284
for abolido, na medida em que nunca fora um direito, mas sim, uma
“categoria do privilégio”.
285
Quanto à causa aludida por Galvano Della Volpe para a manutenção de um
Estado de direito no socialismo, suas palavras bastam por si somente
281
Para não se perder o raciocínio, uma breve nota: o filósofo está se referindo fundamentação da
constitucionalidade soviética.
282
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.270 e 271.
283
“(...); mas é necessário estabelecer o como e o porquê daquela abolição e da correlativa
reconstituição socialista de normas jurídicas burguesas, ou seja, de normas do ‘Estado de direito’”.
Ibid., p.271.
284
Ibid., p.217.
285
Ibid., p.271.
79
E quanto ao porquê desta reconstituição socialista de normas do Estado de
direito, basta recordar que enquanto houver Estado, mesmo um Estado
democrático avançado ao máximo como Estado socialista, enquanto houver
uma sociedade organizada segundo a relação governantes-governados, o
princípio fundamental do Estado de direito, isto é, o princípio de um limite do
poder do Estado relativamente às pessoas dos cidadãos, permanece
insuperado - e só inviolável à custa de iniquidades e sofrimentos humanos
incalculáveis: pense-se apenas naquele corolário capital desse princípio que é o
direito do habeas corpus e nas violações sofridas por este na época
stalinista.
286
Assim, Della Volpe admite o liberalismo, desde que este implique no controle do
poder estatal. E assim, num Estado socialista é que se verifica o aproveitamento de
uma série de normas liberal-burguesas, em especial, daquelas referentes ao controle
da ão estatal, responsáveis pela “inviolabilidade da pessoa humana”, havendo
supressão unicamente do direito à propriedade dos meios de produção. Segundo ele,
E então não é inobjetável que - como diz Bobbio - “é muito fácil
desembaraçar-se do liberalismo se ele é identificado com uma teoria e prática
da liberdade como poder da burguesia, mas é bastante mais difícil
desembaraçar-se dele quando ele é considerado como a teoria e a prática dos
limites do poder estatal [...] porque aqueles que são os seus felizes
possuidores, a liberdade como ‘não-impedimento(...); mas deve também ter-se
presente a razão mais profunda de tal verdade, que foi formulada no princípio
ético kantiano do ‘homem fim e nunca meio’ ou instrumento. Um princípio que,
por outro lado, verdadeiramente universal, somente (embora pareça paradoxal)
num Estado socialista digno desse nome, somente na legalidade socialista
soviética, exatamente em virtude daquela renovatio socialista dos direitos
subjetivos ou liberdades civis inspirados naquele princípio que atrás se viu e
que consiste na supressão, dentre aqueles direitos unicamente do direito de
propriedade privada dos meios de produção - com todas as alienações
humanas que ele atualmente comporta. E eis a consciência liberal, tão profunda
quanto original, da recente história (socialista), destinada a surpreender o
filósofo liberal mais autocrítico.
287
E complementa Della Volpe, referindo-se à perfeita viabilidade da legalidade
socialista enquanto agregadora de ideologia operária e ideologia burguesa:
286
Note-se que, apesar das concessões à teoria liberal-burguesa, Della Volpe não fora um acatador
pleno do stalinismo. DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa:
Edições 70, sd., p.272.
287
Ibid., p.272 e 273.
80
Quanto à legalidade socialista, resolve-se nela, parece-nos, o conjunto dos
problemas econômicos e sociais enquanto problemas essencialmente políticos
que se acumularam desde o advento do Estado de direito em diante: e resolve-
se numa ntese histórica de Rousseau e Kant (=liberdade em função da
igualdade e vice-versa) não já reduzida a uma soberania popular-nacional-
burguesa mas realizada numa soberania popular-proletária (operária) pode
acolher e conciliar no seu centralismo (democrático-operário) aquelas
liberdades civis do ‘ordenamento jurídico’ burguês que não estejam em
desarmonia (habeas corpus, etc.) com a liberdade das massas, ou imensa
maioria, pela escravidão do salário; e onde, por outro lado, o ordenamento
jurídico do segundo (Kant), renovado, como se viu, no seio do centralismo
democrático, adquire, somente assim, a validade universal a que em vão
aspirava na sua originária estreita rigidez burguesa.
288
Della Volpe vai apresentar, assim, sua tese da “dialética das liberdades”, ou seja,
a legalidade socialista enquanto superação da antinomia entre liberdade burguesa e
liberdade proletária. Considera Galvano Della Volpe, que somente num Estado
socialista é que se realiza a harmonização das liberdades “civil” (ou burguesa, por ele
expresso enquanto “liberdade como garantia de não-impedimento estatal de cada
pessoa”
289
) e “igualitária” (ou proletária, por ele expresso enquanto “liberdade social das
humanas possibilidades de cada pessoa”
290
). São cristalinas suas palavras:
Mas, por outro lado, é de ter presente que estas duas liberdades - tão diversas
como claramente se vê a partir de qualquer das respectivas fórmulas utilizáveis,
por exemplo, a de liberdade social das humanas possibilidades de cada
pessoa, cada uma, e a de liberdade como garantia de não-impedimento estatal
de cada pessoa, para a outra, estas liberdades só se harmonizam na legalidade
do Estado socialista, e propriamente na sua renovação ou redução ao essencial
humano da segunda liberdade dentro da expansão da primeira liberdade
(mediante o centralismo democrático-operário) se dilui aquela sua antinomia
que atormenta toda história da liberdade e da democracia modernas.
291
Resgatando suas concepções referentes à questão democrática, Galvano Della
Volpe menciona Rousseau e Kant. Segundo ele, a legalidade socialista atua enquanto
288
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.274 e 275.
289
Ibid., p.278 e 279.
290
Ibid., p.278 e 279.
291
Ibid., p.278 e 279.
81
autêntica síntese dialética, resultante da contraposição entre a “liberdade em função da
igualdade” rousseauniana e a ”igualdade em função da liberdade” kantiana, reforçando
o papel de vanguarda do proletariado.
292
Segundo ele,
Donde, na legalidade socialista (soviética) coexistem ao mesmo tempo a
instância da liberdade-em-função-da-igualdade ou liberdade maior (Rousseau)
e a instância da igualdade-em-função-da-liberdade ou liberdade menor (Kant).
De modo que o proletariado (soviético) torna-se o libertador do gênero humano,
na medida em que o consinta a política; conseguindo também - na legalidade
socialista - assegurar a efetividades das liberdades civis mediante o adequado
expoente igualitário (socialista) que lhes é conferido.
293
E, tratando desta questão atinente à “dialética das liberdades”, vale sempre
ressaltar que entre a “liberdade maior” (“liberdade igualitária” ou “material”) e a
“liberdade menor” (“liberdade formal”), Galvano Della Volpe ênfase, certamente, à
primeira liberdade. Assim o é, pois apenas o igualitarismo, nascido de Rousseau e
exponenciado pelo “socialismo científico” de Marx, Engels e Lênin, na perspectiva
dellavolpiana, é apto a contagiar as liberdades civis com valores tais que não lhe
permitam a conversão ideológica em privilégios.
294
Segundo Galvano Della Volpe,
Como tal, finalmente, toda a liberdade civil digna desse nome é comparável a
uma quantidade que tenha um expoente não inferior a ela: isto é, é o expoente
igualitário semelhante que lhe confere a qualquer liberdade ou direito civil
aquele grau de valor que impede a sua queda na categoria de privilégio; e
assim, a liberdade maior garante a liberdade menor, valha a verdade.
295
Assim sendo, a “dialética das liberdades” só terá encontrado sua síntese
histórica com a legalidade socialista, ainda que, Della Volpe reconheça haver outras
292
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.278 e 279.
293
Ibid., p.278 e 279.
294
Ibid., p.279.
295
Ibid., p.279.
82
fases a serem alcançadas, quando os próprios Estado e legalidade socialistas forem
superados. Segundo Galvano Della Volpe, uma dialética das duas modernas
instâncias de liberdade, a igualitária e a civil. Assim,
Dialética essa, cujo momento historicamente mais avançado é a legalidade
socialista, embora não se encerre com ele o alcance histórico da primeira e
maior instância; que esta tende para uma igualdade social mediadora de
pessoas e como tal condiciona a segunda em toda a sua história até que se
chegue a um conjunto de liberdades civis essenciais, ou seja, reduzidas ao
essencial humano com a abolição da liberdade-privilégio da posse privada dos
meios de produção (legalidade socialista); isto significa que a primeira
transcende pela sua plena atuação a segunda e com ela o Estado em geral,
incluindo o socialista, com as suas classes, por um lado, e as pessoas-cidadãos
e que consta, por outro, e a metapolítica, com suas bases econômicas
adequadas ao objetivo (um destino paradoxal, ou simplesmente o destino
histórico, daquela liberdade concebida primeiramente pelo moralismo
espiritualista, humanitário e portanto, interclassista de Rousseau).
296
4.2.2 Um diálogo necessário com Evgeni Pachukanis
As conclusões dellavolpianas relativas ao direito e à questão da legalidade não
poderiam passar incólumes a uma leitura crítica. Certamente, diferentes formas de
se interpretar a obra de Marx e Engels, tanto no que tange às temáticas (a partir dos
textos marxianos e engelsianos, é possível a extração de estudos variados, da
economia à filosofia, da política e sociologia à estética), quanto na questão
metodológica. A obra de Galvano Della Volpe é, na história do marxismo, das mais ricas
em variedades de assuntos abordados. Certamente, Galvano Della Volpe teve seus
temas mais recorrentes, em especial no que se refere às questões filosóficas. Sua
leitura do direito é rica, sim, todavia, na tradição marxista, houve outros pensadores
mais (e mesmo melhores) inclinados no estudo do direito a partir da metodologia
marxiana.
296
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. 4. ed. Lisboa: Edições 70, sd.,
p.278.
83
Dentro deste grande universo de pensadores marxistas do direito, façamos um
corte bastante cirúrgico e tragamos à cena a obra de Evgeni Pachukanis. A importância
do referido jurista russo decorre de sua metodologia rigorosamente marxiana, ou seja, o
uso fiel à leitura dos textos originais de Marx, e das possibilidades de resistência a
formas de dominação de classe efetivadas através de mecanismos institucionais
jurídicos, “em especial por intermédio de uma representação jurisdicista do Estado”.
297
Conforme o professor Márcio Bilharinho Naves, na sua obra “Direito e marxismo:
um estudo sobre Pachukanis”, o jurista russo parte de uma “análise teórica da forma
jurídica enquanto forma histórica, permitindo compreender o direito como fenômeno
real.
298
E é o que se identifica em Pachukanis, entre tantas outras passagens do seu
livro “A teoria geral do direito e o marxismo ”(...) um conceito tão complexo como o de
direito não pode ser explicitado exaustivamente por uma definição feita segundo as
regras da lógica escolástica”.
299
Ainda segundo o autor, o jurista soviético baseia-se no princípio metodológico
marxiano, segundo o qual o movimento (histórico-social) vai do abstrato ao concreto e
do simples ao complexo
300
, de modo que “devemos começar pela análise da forma
jurídica na sua figura mais abstrata e pura, para passar depois pelo caminho de uma
gradual complexidade até a concretização histórica”.
301
Dessa forma, a história do
direito (e suas abstrações) não se a partir de um sistema de idéias, mas sim do
desenvolvimento social.
302
Conforme Pachukanis,
(...), o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais não nos
oferece apenas a forma jurídica em seu pleno desenvolvimento e em todas as
suas articulações, mas reflete igualmente o processo real da evolução
histórica.
303
297
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. 1. ed. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2000, p.12.
298
Ibid., p.40.
299
PASUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.20.
300
NAVES, op. cit., p.40 e 41.
301
Ibid., p.47.
302
Ibid., p.42.
303
PASUKANIS, op. cit., p.23.
84
Aponta Naves, a tese pachukaniana da forma jurídica constituída quando da
dominância do princípio da equivalência. Ainda, segundo ele, “Pachukanis mostra que o
direito é uma forma que reproduz a equivalência (...)”
304
e que a mercadoria é a forma
social que necessariamente deve tomar o produto quando realizado por trabalhos
privados independentes entre si, e por meio da troca realizam o seu caráter
social”.
305
Dessa forma, ainda acompanhando a leitura do professor Márcio Bilharinho
Naves, “o processo de troca, (...), demanda, para que se efetive um circuito de trocas
mercantis, um equivalente geral, um padrão que permita ‘medir’ o quantum de trabalho
abstrato que está contido na mercadoria”.
306
Assim sendo, o fenômeno do direito,
necessariamente, é ligado à existência de uma sociedade, que exige a mediação de
um equivalente geral, para que os diversos trabalhos privados independentes se tornem
trabalho social”.
307
Dessa forma, chegamos a um dos pontos mais críticos em Pachukanis. Aqui,
podemos compreender melhor o esforço pachukaniano em fixar a tese da
especificidade burguesa do direito. E alerta Márcio Bilharinho Naves que este é um dos
aspectos mais suscetíveis da obra pachukaniana de interpretação unilateral.
308
Pachukanis não “interdita a compreensão da forma jurídica nas formações sociais pré-
burguesas”.
309
Todavia, é no capitalismo que se verifica de forma mais contundente a
mercantilização dos produtos do trabalho, “em virtude não de que praticamente
todos os produtos são mercadorias, mas também, em virtude de que a própria força de
trabalho se constitui mercadoria”.
310
E o que fez Pachukanis ser um crítico dos desdobramentos do processo
revolucionário russo? O que fez Pachukanis ser atacado e obrigado a renunciar,
coercitavemente, a fim de se encaixar nas prerrogativas ideológicas do stalinismo ainda
incipiente, mas contundente? O que se verificou na União Soviética, pelos anos 30,
304
PASUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e marxismo ? Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.57.
305
Ibid., p.57.
306
Ibid., p.57 e 58.
307
Ibid., p.58.
308
Ibid., p.62.
309
Ibid., p.62.
310
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. 1. ed. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2000, p.62.
85
fora a reprodução do capitalismo, ainda que bastante diferenciado do modelo
tradicional, numa forma bastante específica, denominada, de uma forma comumente
aceita, por capitalismo de Estado sob a égide do stalinismo.
Fernando Haddad aponta que o sistema soviético pode, também, ser
interpretado de forma diversa da questão do capitalismo de Estado. Assim, elenca o
referido autor duas grandes perspectivas interpretativas, tendo como referência a
questão da manutenção ou abolição de uma sociedade de classes. Pela primeira, o
sistema soviético implicou na abolição das classes sociais.
311
Segundo Haddad, entre
tantos outros, fora esta a concepção de Josef Stálin, sobre a qual apontaremos alguns
traços relevantes. Pela segunda perspectiva, mais crítica e com a qual melhor
assentimos, manteve-se na antiga União Soviética uma sociedade de classes. São
várias as correntes doutrinárias que procuram tratar desta perspectiva, conforme nos
traz Fernando Haddah
312
, todavia, entendemos ser a mais adequada aquela, expressa
por Charles Betelheim, sobre a qual igualmente iremos traçar alguns aspectos.
Ainda que não se pretenda, de modo algum, encerrar o assunto nestas ginas,
são cabíveis algumas considerações sobre o stalinismo. Charles Bettelheim e Bernard
Chavance expõem que “o stalinismo é uma formação ideológica, produto de uma
transformação da formação ideológica bolchevique, que leva à negação do conteúdo
revolucionário do marxismo”.
313
Mas como teria se dado a gênese da mencionada formação ideológica? O
stalinismo surgiu de uma autêntica luta de classes, iniciada no final dos anos 20 e
começo dos 30 e consolidada a partir da década de 50, século XX, por meio de uma
série de transformações ideológicas bolcheviques. Tais transformações fizeram da
burguesia de Estado uma classe em si e exploradora da classe operária.
314
311
HADDAD, Fernando. O sistema soviético: relato de uma polêmica. São Paulo: Scritta Editorial, 1992,
p.14.
312
Ibid., p.14.
313
BETTELHEIM, Charles. O stalinismo como ideologia de Estado. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.).
Análise marxista e sociedade de transição. 1. ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2005, p.75 e 76.
314
Ibid., p.76.
86
Assim, no que tange à revolução, a mesma passa a ser encarada enquanto uma
“revolução pelo alto”. A mesma decorre da ação burocrática e “seu surgimento
corresponde à contra-revolução política, ao desencadeamento da acumulação primitiva
do capital por meio da expropriação em massa dos camponeses e da industrialização
acelerada: ela é o reflexo do processo complexo, mas muito real, da constituição da
burguesia de Estado em classe para si”.
315
Na mesma medida, a expropriação das
massas camponesas, a qual se por meio de uma “pseudo-coletivização”, por meio
da coerção e da repressão do Estado intervindo contra as massas trabalhadoras.
316
Charles Bettelheim e Bernard Chavance demonstram, no texto mencionado, que
as relações de classe, então consolidadas, caracterizam-se pela “ruptura da aliança
operária e camponesa (isto é, pela destruição de uma das condições essenciais que
permitem à classe operária jogar um papel dirigente e de progredir em direção ao
socialismo), e pelo estabelecimento do poder político da burguesia de Estado”.
317
O
rompimento implica, dessa forma, na destruição do poder político da classe operária e
do campesinato, propiciando as condições para um processo capitalista de
desenvolvimento das forças produtivas, que conduz à reprodução alargada da
burguesia de Estado e do capitalismo de Estado.
318
Instala-se uma forma muito específica de capitalismo - no qual a acumulação se
dá por conta da centralização estatal da mais valia e dos produtos do sobretrabalho. Tal
centralização sobrepesa largamente o fetichismo do Estado, o qual parece ser dotado
de um “poder sobrenatual”.
319
Combinado com outras formas de fetichismo - fetichismo
da mercadoria, da moeda e do crédito - o fetichismo do Estado é de extrema
importância para o entendimento da ideologia staliniana. Decorre então, uma
concentração extrema do poder estatal na classe burocrática. Dessa forma, “por causa
dessa concentração, a fração hegemônica da burguesia de Estado é constituída por
315
BETTELHEIM, Charles. O stalinismo como ideologia de Estado. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.).
Análise marxista e sociedade de transição. 1. ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2005, p.79.
316
Ibid., p.80.
317
Ibid., p.80.
318
Ibid., p.80.
319
Ibid., p.80.
87
aqueles que se encontram no cume dos aparelhos do partido e do Estado, e que
controlam a utilização dos meios de produção e da mais-valia”.
320
Contraditoriamente ao fetichismo de Estado, existe uma identificação entre
reforço do Estado e reforço do socialismo, fazendo entender o gradual
desaparecimento do Estado. Trata-se, rigorosamente, da “dissimulação entre
contradições sociais por meio da apologia direta do aparelho da ditadura”.
321
E mais,
Charles Bettelheim e Bernard Chavance argumentam que, o dogma do
‘desaparecimento através do reforço’ é, aliás, revelador dos dois aspectos da formação
ideológica staliniana, que tendem em geral a se combinar de modo desigual: aquele em
que tende, sobretudo, a negar ou a mascarar a realidade existente e sua natureza
contraditória, e aquele em que, ao contrário, tem como função principal, justificar essa
realidade tal como ela é”.
322
No stalinismo, nega-se cegamente a existência de classes. Assim, a luta de
classes não existiria e o Estado dela não teria origem. O Estado, então, passaria a uma
espécie de “mediador” entre indivíduos considerados abstratamente como “iguais”,
como “cidadãos”.
323
Charles Bettelheim e Bernard Chavance arrematam: “nessas
condições, os efeitos das contradições econômicas e socais reais tendem a ser
relacionadas cada vez menos com as lutas de classes. No entanto, estas não deixam
de se desenvolver, a despeito de todas as negações, e de todas as declarações sobre
o surgimento de uma sociedade de trabalhadores ‘cooperando’ fraternalmente”.
324
A ideologia stalinista procura, todavia, amenizar, ainda que apenas num aspecto
formal, o esgotamento das posições políticas proletárias por meio de certo discurso
“obreirista”. Esse “obreirismo” idealiza as “qualidades”, supostamente, inerentes ao
operário enquanto indivíduo.
325
É o que explicam Charles Bettelheim e Bernard
Chavance, pois nos anos 30, a exaltação abstrata de algumas ‘qualidades’ reais ou
320
BETTELHEIM, Charles. O stalinismo como ideologia de Estado. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.).
Análise marxista e sociedade de transição. 1. ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2005, p.81.
321
Ibid., p.83.
322
Ibid., p.84.
323
Ibid., p.88.
324
Ibid., p.88.
325
Ibid., p.89.
88
supostas dos operários da indústria funciona como uma compensação imaginária à
deterioração objetiva da situação da classe operária, à queda do seu nível de vida e ao
aumento da autoridade que a direção das empresas e os quadros exercem sobre os
trabalhadores, pois as qualidades reconhecidas nos operários são a disciplina e o
espírito de sacrifício; a partir de então, aqueles que - segundo o critério dos funcionários
do partido e dos quadros - não demonstram possuir em grau suficiente dessas
‘qualidades’, podem ser denunciados como não sendo verdadeiros operários’, mas
elementos estranhos’ ou mesmo hostis’ à classe operária, em razão, por exemplo, de
sua ‘origem de classe’ (especialmente se ela é camponesa)”.
326
O “obreirismo” resulta
da luta de classes e de uma diminuição da combatividade operária, por meio da
exaltação unilateral do espírito de disciplina e de sacrifício dos operários.
327
Ocorre, ainda, um conflito entre novos quadros politicamente incultos e os
antigos quadros científicos e técnicos, cunhado de “antiintelectualismo” stalinista. Os
antigos quadros - compostos por intelectuais - passam a ser acusados de afastamento
da classe operária. Assim, Charles Bettelheim e Bernard Chavance concluem que “esse
‘antiintelectualismo’ é reforçado pelas práticas da direção do partido que - executando
uma política voluntarista - passa a se apoiar em quadros de origem operária,
supostamente, possuindo as qualidades de ‘verdadeiros operários’, notadamente, o
‘espírito de disciplina’, inexistentes nos antigos ‘intelectuais’. Admite-se, mais ou menos,
que essas ‘qualidades’ devam ser geralmente inerentes aos que as possuem, mesmo
quando eles deixaram anos de ser operários. O ‘antiintelectualismo’ desenvolve-se
principalmente no começo dos anos 30 e, então, passa a servir de instrumento de
unificação da fração dominante da burguesia de Estado, que é, em parte, de origem
operária”.
328
Por sua vez, o “anti-igualitarismo” vem a se compor, contraditoriamente, com a
concepção fundamental da homogeneização social. A acentuação da desigualdade dos
salários operários constitui uma reação ao descontentamento da classe operária, na
326
BETTELHEIM, Charles. O stalinismo como ideologia de Estado. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.).
Análise marxista e sociedade de transição. 1. ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2005, p.89.
327
Ibid., p.89.
328
Ibid., p.91.
89
medida em que a referida diferenciação tende a dividir a classe operária e a reduzir,
assim, a sua capacidade de exprimir o seu descontentamento. Conforme Charles
Bettelheim e Bernard Chavance ”(...), a ideologia anti-igualitarista acompanha,
sobretudo, o crescimento das desigualdades de renda e dos privilégios de que se
beneficia, cada vez mais, a burguesia de Estado: salários elevados, gratificações,
pagamentos ‘por fora’, lojas especiais reservadas aos quadros de um certo nível,
apartamentos espaçosos construídos para eles, enquanto os operários amontoam-se
em barracões ou em cômodos únicos compartilhados por muitas famílias”.
329
Outro instrumento típico do stalinismo é o mito da unidade do partido. Tal decorre
da proclamação do caráter homogêneo da sociedade soviética e o domínio, no seu
seio, da unidade sobre a contradição”.
330
As divergências e oposições ou são cessadas
ou são aceitas aquelas que substancialmente o irrelevantes. Nas palavras de
Charles Bettelheim e Bernard Chavance, “o partido deixa então inteiramente de ser
uma organização revolucionária a serviço dos trabalhadores, cuja unidade é
assegurada pela existência de uma linha e de uma prática revolucionária, e pela
adesão a uma concepção científica e a uma ideologia, cujo desenvolvimento implica,
necessariamente, o desenvolvimento de suas próprias contradições. O partido torna-se
cada vez mais um aparelho de Estado privilegiado. A unidade relativa desse aparelho
repousa sobre a solidariedade dos que gozam de privilégios semelhantes
(independentemente deles variarem segundo o nível que cada um ocupa na hierarquia),
e pela submissão de todos a uma direção, que só pode se manter exigindo que todos
manifestem a lealdade e a disciplina’ mais absoluta ao seu chefe (‘void’). Essa
‘disciplina’ deve ser aceita em troca de privilégios crescentes, mas que continuam
sendo, sempre, revogáveis por simples decisão do chefe e dos aparelhos de controle
postos - em princípio - sob sua direção”.
331
O primado da unidade sobre a contradição, referido no parágrafo anterior, faz
com que a teoria e a prática deixem de ser revolucionárias para se tornarem uma
329
BETTELHEIM, Charles. O stalinismo como ideologia de Estado. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.).
Análise marxista e sociedade de transição. 1. ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2005, p.83.
330
Ibid., p.93.
331
Ibid., p.94.
90
ideologia conservadora e apologética, que privilegia a identidade e não a contradição, e
ressalta mais a repetição do que a mudança.
332
Assim, o “evolucionismo” surge
enquanto “sistematização das etapas e das leis do desenvolvimento histórico.
333
Na
prática imediata, essa sistematização apresenta o partido e o Estado como simples
instrumentos das exigências históricas”. Esses “instrumentos” são considerados como
os únicos capazes de jogar um papel decisivo, em virtude do conhecimento que têm
das leis do desenvolvimento histórico”.
334
Assim, é possível se associar a crítica pachukaniana da legalidade com a
questão do capitalismo de Estado. Extremamente crítico à manutenção da legalidade
no socialismo. Pachukanis entendia ser a própria forma jurídica, em si mesma,
conservadora. O direito, assim, seria intrinsecamente um instrumento de dominação da
classe burguesa, não por conta apenas do seu conteúdo, mas também, por conta de
sua forma. Pachukanis, em seus argumentos, apresentou, em algumas ocasiões,
menção à questão do capitalismo de Estado. A presente monografia, assim, procurou
traçar algumas considerações sobre o tema, focando, em especial, o modelo soviético.
As críticas ao modelo soviético são vastas e, de uma forma geral, concentram-se
em dois aspectos. Um primeiro aspecto, econômico, decorre das características do
modelo soviético: estatização dos meios de produção e planificação econômica.
Referidas características, contudo, não foram o bastante para a completa superação do
capitalismo. Um segundo aspecto, político-ideológico, decorre do stalinismo enquanto
ideologia do capitalismo de Estado. Nele, as relações de dominação permanecem por
conta da alienação da classe operária junto aos órgãos de decisão.
O que se pode pensar a respeito de ambas iniciativas versa sobre os rumos
deturpados seguidos pelo movimento revolucionário iniciado em 1917. A luta dos
trabalhadores, bem como seu fortalecimento político-ideológico, acabou atrelada ao
resultado de medidas jurídico-burocráticas, comprometendo definitivamente a
emancipação operária.
332
BETTELHEIM, Charles. O stalinismo como ideologia de Estado. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.).
Análise marxista e sociedade de transição. 1. ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2005, p.94.
333
Ibid., p.95.
334
Ibid., p.95.
91
Seguramente, diversos outros aspectos imprescindíveis a serem tratados a
respeito do pensamento de Pachukanis. Todavia, não o fizemos por dois motivos:
primeiro, por o ser objeto central deste trabalho. Segundo, pois o trabalho do
professor Márcio Bilharinho Naves esgota o assunto, o que exige gigantescos esforços
de outros que queiram analisar Pachukanis sem incidir na mediocridade. De toda forma,
para fins de análise crítica da teoria do direito e da legalidade socialista em Della Volpe,
diremos já ser o suficiente, ainda que continuemos a tomar licença pelo uso das
palavras do professor e filósofo brasileiro.
Qual leitura pachukaniana, e, portanto, crítica, podemos lançar sobre Della
Volpe? Pachukanis, diferentemente da postura reinante entre demais juristas marxistas,
esforçou-se no sentido de criticar não apenas o conteúdo do direito burguês, mas
também sua forma. Assim, havendo um vínculo indissolúvel entre forma jurídica e forma
da mercadoria, Pachukanis procurou demonstrar que o próprio direito, em sua forma,
possui uma natureza burguesa. Daí, consequentemente, ser inaproveitável, numa
sociedade socialista, as estruturas teóricas e institucionais do direito, por conta das
especificidades liberais e burguesas deste último. Dessa forma, Pachukanis passa a
atacar toda e qualquer possibilidade de existência de um “socialismo jurídico”,
defendendo a hipótese de extinção da forma jurídica. Assim o é por conta da formação
de uma forma bastante específica de capitalismo na União Soviética - o capitalismo de
Estado - o que passou a exigir justamente o incremento das relações jurídicas.
Assim, pachukanianamente falando, Galvano Della Volpe talvez não tenha
percebido este vínculo umbilical entre direito e capitalismo. Talvez Della Volpe não
tenha pensado o direito a partir de uma leitura de Pachukanis (“É muito claro que a
lógica dos conceitos jurídicos corresponde à lógica das relações sociais de uma
sociedade de produção mercantil
335
). Ainda que se referisse a uma “legalidade
socialista” totalmente diferenciada da “legalidade burguesa”, mesmo assim, Galvano
Della Volpe acolhe a possibilidade de continuidade das estruturas jurídicas (e estatais)
burguesas no socialismo.
335
PASUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.66.
92
Entretanto, aqui cabem algumas indagações bastante pertinentes. Não teria
mesmo percebido, o filósofo italiano, o relacionamento intrínseco e íntimo entre direito e
capitalismo? Certamente, a melhor análise a ser feita pode levar a entender que não.
Ou seja, perspicaz como fora, Della Volpe, teria, sim, plenas condições de perceber a
inviabilidade de uma “legalidade socialista”. Galvano Della Volpe não fora um pensador
ingênuo. Mas também não agira de má-fé.
336
O que se deu para Galvano Della Volpe
acolher o direito e o Estado, mesmo no socialismo?
Certamente, não podemos correr o risco de especulações ou julgamentos em
torno das convicções intelectuais alheias. O que se pode é destacar alguns eventos da
biografia do filósofo italiano, assim como, alguns elementos do contexto histórico em
que vivera. Com o seu período de assimilação e amadurecimento marxista, no auge de
sua carreira e reconhecimento, Della Volpe ingressara e fora muito bem acolhido no
Partido Comunista Italiano (PCI).
Segundo Walquíria Leão, em “A liberdade como tema: um debate italiano”, ao se
referir a um debate entre Norberto Bobbio e intelectuais do PCI - Della Volpe, inclusive -
tratou-se do “maior partido de massas do Ocidente, aa muito pouco tempo. Não
novidade alguma em dizer que este partido sempre se apresentou no cenário mundial
ostentando diferenças marcantes, organizativas e políticas, em relação ao padrão
comum imperante nos demais partidos comunistas da Europa Ocidental”.
337
E
intelectuais do partido, tais como Palmiro Togliati e o nosso Galvano Della Volpe
defendiam-se, fervorosamente, da “crítica à ausência do Estado de direito democrático
na União Soviética e à crença dos comunistas, de que a verdadeira democracia estava
se realizando ali”.
338
Assinala, ainda, Walquíria Leão, citando Paolo Spriano, o comprometimento do
PCI com o liberalismo, em especial, no que se refere à reorganização do Estado italiano
no período posterior à Segunda Guerra, justamente no que se refere à
institucionalização do processo democrático pela via eleitoral. Segundo a autora
336
Como já procuramos assinalar ao longo do texto (pg 23, quando falado de BOBBIO).
337
REGO, Walquiria D Leão. A liberdade como tema: um debate italiano. Rev. Bras. Ciên. Soc., São
Paulo, v.17, n.48, 2002.
338
Ibid.
93
Paolo Spriano, na sua monumental História do Partido Comunista Italiano,
registra que o compromisso liberal dos comunistas, como partido, se refez
depois da guerra, durante a fundação da primeira república, cujo momento
emblemático foi o encontro entre Togliatti e Croce. Tratou-se de um encontro ao
mesmo tempo pessoal e político, porque realizado em meio à tempestade
própria dos grandes momentos da história. Em suma, estavam discutindo os
modos de edificação do novo ordenamento estatal, daí a importância de se
estabelecer claramente os procedimentos legais para o funcionamento
democrático das instituições.
339
Assim, a proximidade entre o PCI e o Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) significou, para o primeiro, uma contradição extremamente embaraçosa.
Nestes tempos difíceis, o PCI voltara-se, justamente, para a solução dos problemas
sócio-políticos italianos, mas sob uma nova perspectiva: agindo consoante as regras
(políticas e legal-eleitorais) da democracia burguesa. Novamente nos socorremos de
Walquíria Leão,
Nesse sentido, as ligações do partido comunista com Moscou constituíam uma
ambigüidade muito difícil de ser contornada no debate e nas disputas internas
da política italiana. Defender e praticar a democracia no âmbito interno do país,
e, do mesmo modo, ser aliado de um Estado despótico como o da União
Soviética, representara, por vezes, certa esquizofrenia política. É importante,
por isso, que se tenha em mente que aqueles foram tempos duros e
extremamente polarizados no cenário internacional, e que, portanto, era muito
difícil não se fundir na bruma geral que embaciava todos os olhares do espectro
político. Talvez, por isso, o discurso e a prática política do PCI foram impelidos
ao resgate das grandes tradições nacionais, buscando apontar os caminhos
para equacionar e resolver, por vias democráticas, os antigos dilemas políticos
e sociais italianos. Dessa forma, defendendo ardorosamente a Constituição
republicana de 1948, os comunistas tornaram-se uma das forças políticas que
mais defenderam o regime democrático.
340
E assinala Walquiria Leão, que nos enfrentamentos teóricos entre liberalismo e
socialismo, Galvano Della Volpe porta-se como o “típico intelectual de partido comunista
sobre o regime soviético nos anos de 1950”
341
: na defesa da democracia socialista da
339
REGO, Walquiria D Leão. A liberdade como tema: um debate italiano. Rev. Bras. Ciên. Soc., São
Paulo, v.17, n.48, 2002.
340
Ibid.
341
Ibid.
94
União Soviética, seria por completo desnecessária a “liberal divisão dos poderes e,
portanto, da ação dos contrapesos montesquianos, porque seu poder executivo origina-
se diretamente do povo”.
342
Certamente, como procuramos demonstrar ao longo do
texto, esta justificativa dellavolpiana se baseia na sua “liberdade igualitária”, ou seja,
não só o exercício da liberdade, mas também da justiça social.
Ainda, assinala o professor Camilo Onoda Caldas, em “Perspectivas para o
direito e a cidadania - o pensamento jurídico de Cerroni e o marxismo”, que Galvano
Della Volpe fora, sim, um intelectual tendente às concessões políticas.
343
Assim, enquanto intelectual de um partido ligado à PCUS, Della Volpe acaba
assumindo uma postura diversa à de Pachukanis, afastando-se de uma interpretação
marxista autêntica e crítica do direito: a impossibilidade de uma legalidade socialista,
justamente, pois, o direito se identifica diretamente com o capitalismo.
De toda forma, haja vista a dificuldade de se imaginar uma sociedade de
transição ao socialismo, na qual se aboliu por inteiro o fenômeno jurídico, o professor
Márcio Bilharinho Naves faz uma relevante observação
(...) também discordo (de Pachukanis, MBN) sobre a avaliação do processo de
extinção do direito. O camarada Pachukanis descreve esse processo como uma
passagem direta do direito burguês ao o-direito. Da minha parte, eu creio
que, como escreve Lênin, citando Marx, há um “Estado burguês sem burguesia”
e, assim como esse Estado se constitui na ditadura proletária ou poder
soviético, assim também se constitui inevitavelmente um direito soviético
temporário do período de transição.
344
Referida observação, ao contrário do que possa fazer crer qualquer intérprete
mais afoito, não anula o pensamento de Pachukanis. Pelo contrário: reafirma sua tese
342
REGO, Walquiria D Leão. A liberdade como tema: um debate italiano. Rev. Bras. Ciên. Soc., São
Paulo, v.17, n.48, 2002.
343
CALDAS, Camilo Onoda. Perspectivas para o direito e a cidadania - o pensamento jurídico de Cerroni
e o marxismo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 2006.
344
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. 1. ed. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2000, p.97 e 98.
95
central - a extinção do direito no processo de transição socialista. Talvez Pachukanis,
no ardor do clima revolucionário, tenha imaginado, por alguns instantes, a abolição
imediata das estruturas jurídicas, ainda que eventualmente tivesse condições de saber
que as relações mercantis (o que vincula a manutenção da forma jurídica) não seriam
imediatamente superadas nos primeiros momentos, logo após Revolução de 1917. Mas
mesmo essa nossa hipótese, passível de erros e revisões, do “ardor revolucionário”
pachukaniano, o invalida as teses do jurista russo, pois fora ele, de toda forma e
constantemente (desconsiderando-se suas correções sob coação do stalinismo, nas
últimas etapas de sua vida), bastante leal à metodologia marxiana. E as palavras de
Márcio Bilharinho Naves (referentes à existência de um “direito soviético temporário”,
citando Marx e Lênin), por sua vez, também não reabilitam o pensamento jurídico
dellavolpiano. A postura de Della Volpe, no sentido de defesa teórico-ideológico de um
partido contraditório, como o PCI - com um discurso de defesa da democracia
simultâneo ao apoio ideológico do PCUS - faz entender que entre os ditames oficiais do
PCI e a tese de um jurista russo perseguido e criticado pelo regime soviético, é bastante
provável Della Volpe ficasse com o primeiro. E, por fim, Della Volpe faz uma única
referência a Pachukanis, referência essa que, ao menos naquilo que cabe ao nosso
entendimento do pensamento pachukaniano (entendimento esse, ainda, parcial e
passível de melhor refinamento com os anos vindouros de meditação sobre seus
escritos) faz crer que Della Volpe não tomou ciência adequada da amplitude do
pensamento de Pachukanis.
96
5 CONCLUSÃO
O presente trabalho procurou apresentar traços do pensamento de Galvano
Della Volpe, com especial atenção para a sua crítica da legalidade.
Trata-se de um pensador que oferece uma série de desafios. Seu vasto
conhecimento da história da filosofia, assim como sua franca disponibilidade ao debate,
fizeram dele um fecundo filósofo em diversas áreas do conhecimento.
A importância de Della Volpe decorre de seu discurso de intransigência com o
ecletismo metodológico, ainda que ele próprio, aparentemente, tenha sido vitimado por
tal. Não se pode negar que o filósofo aderiu a algumas teses liberais e as razões para
tanto foram apresentadas, em especial, mas sem se excluir outras, quando tratamos da
questão da legalidade e a necessidade de um diálogo com Evgeni Pachukanis.
Assim, Galvano Della Volpe pode ser alvo de todo tipo de crítica. Todavia, a
crítica mais aguda relaciona-se às concessões dellavolpianas a teses liberais, as quais
acabaram por comprometer seu projeto inicial de uma leitura estritamente marxiana,
sem práticas metodológicas ecléticas. No que tange, especialmente, à crítica da
legalidade, assunto de nosso maior interesse, talvez tenha faltado a Della Volpe a
devida oportunidade de leitura atenta da obra de Pachukanis. É certo que se pode
alegar que Della Volpe fora filósofo e professor, não necessariamente um jurista e,
assim, não estaria obrigado a conhecer o pensamento de Pachukanis. Entretanto,
Pachukanis, em sua crítica do direito, nada mais fez do que proceder á leitura jurídica
do próprio Marx, na qual o direito está condenado à extinção, por conta de sua natureza
estritamente capitalista. Assim, além de faltar a Della Volpe um estudo completo dos
juristas (em especial os soviéticos), o filósofo italiano acabou se afastando dos termos
próprios a Marx, quanto a questão do direito.
No que se refere à União Soviética, entendemos que na URSS, ainda que tenha
vivido momentos de natureza autenticamente revolucionária socialista, em certo
momento de sua história, notadamente após o falecimento de Lênin e a ascensão de
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Stálin, os rumos da transição socialista sofreram abalos insanáveis, desembocando
numa nova modalidade de capitalismo, o capitalismo de Estado, o qual procuramos
esboçar em algumas notas. Galvano Della Volpe acaba atribuindo ao sistema soviético,
o exemplo autêntico de transição socialista, contra o qual nos opomos, apresentando
(ainda que de forma um tanto quanto sumária) nossa tese de capitalismo de Estado
soviético.
As razões para Galvano Della Volpe não ter percebido tal, pode decorrer de um
aspecto biográfico seu. Verificando os anos de sua produção intelectual, o filósofo tivera
um curto período, se comparado à totalidade da sua carreira acadêmica (da década de
20 ao final da década de 60) de produção marxista amadurecida (de 1950 a 1968).
Certamente, apenas isto não explica, suficientemente, a questão, mas auxilia no
entendimento das referidas peculiaridades teóricas. Cabe lembrar, que Della Volpe fora
militante do Partido Comunista Italiano, o PCI, partido um tanto quanto contraditório,
conforme procuramos expor no texto: por um lado, alinhado ao Partido Comunista da
União Soviética e, por outro lado, no projeto de edificação nacional italiana,
comprometido com a legalidade liberal (em especial no que se refere ao processo
eleitoral).
Todavia, enquanto medida de justiça, não podem ser negadas as contribuições
de Della Volpe. Seja pela sua original crítica ao idealismo - e o total afastamento de
qualquer influência hegeliana em Marx, numa medida de afirmação teórica do marxismo
- seja pela nova composição do materialismo histórico, com substituição da tradicional
sucessão Hegel-Feuerbach-Marx, por Aristóteles-Galileu-Marx, cuja disposição não
deixa de despertar curiosidade, Galvano Della Volpe fincou indelevelmente seu sinal de
distinção intelectual. E, ainda que tenhamos apresentado algumas críticas a suas
concepções democráticas, políticas e jurídicas, não se pode afastar a razoável leitura
dellavolpiana de Rousseau. Ainda que considerado um pensador liberal e burguês,
envolvido nos ares do Iluminismo, fora Rousseau um dos pensadores basilares para a
elaboração da crítica socialista científico” (a expressão dellavolpiana envolve Marx,
Engels e Lênin) aos conceitos de “liberdade” e “igualdade” burgueses.
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