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UNISC
UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL
PROGRAMA DE PÒS-GRADUAÇÂO EM LETRAS – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LEITURA E COGNIÇÃO
Roberto Teodoro Jung
RETÓRICA E PREGAÇÃO RELIGIOSA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA DO PADRE
ANTONIO VIEIRA
Santa Cruz do Sul, julho de 2008
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ROBERTO TEODORO JUNG
RETÓRICA E PREGAÇÃO RELIGIOSA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA DO
PADRE ANTONIO VIEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Mestrado, Área de Concentração em Leitura
e Cognição, Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Molina
Santa Cruz do Sul, julho de 2008.
2
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Bibliotecária Fabiana Lorenzon Prates CRB 10/1406
3
J95r Jung, Roberto Teodoro
Retórica e pregação religiosa no Sermão da Sexagésima do Padre
Antonio Vieira / Roberto Teodoro Jung. - 2008.
164 f.
Orientador: Jorge Molina.
Dissertação (mestrado) Universidade de Santa Cruz do Sul,
Programa de Pós-graduação em Letras, Área de Concentração em
Leitura e Cognição, 2008.
Bibliografia.
1. Literatura Portuguesa Sermões História e crítica. 2. Retórica.
3. Análise do discurso literário. 4. Vieira, Antonio, 1608-1697. 5.
Literatura Barroca. I. Molina, Jorge. II. Título.
CDD 869.509
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Jorge Alberto Molina
Orientador
Prof. Dr. Eunice Terezinha Piazza Gai
Prof. Dr. Norberto Garin
4
DEDICATÓRIA
Dedicado às pessoas que semeiam o bem
através da palavra e da vida
5
AGRADECIMENTOS
A todos os professores do Curso de Mestrado em Letras, tão diferentes entre
si, mas todos muito solícitos e sumamente responsáveis na administração das aulas.
Ao professor Jorge Molina, meu orientador e incentivador, antes e durante o
processo de elaboração da presente pesquisa.
Às queridas colegas de aula, pelo companheirismo e acolhimento, sempre
prontas para o diálogo e troca de experiências; declinando o nome da Diane, da
Lovani e da Sheila, incluo a todas no círculo da amizade que criamos.
A minha família, motivo de satisfação na jornada da vida.
A Maria Ester, minha incansável esposa, que vivenciou comigo todo o Curso
e as etapas da confecção deste trabalho.
A Deus, princípio e fim de todas as coisas, porque sempre me fortalece, cria
circunstâncias favoráveis e coloca boas pessoas no meu caminho.
6
RESUMO
Pela presente pesquisa é feita uma abordagem detalhada das doutrinas da
pregação religiosa do Padre Antônio Vieira, conforme estão expressas no Sermão
da Sexagésima. O presente trabalho mostra a inconfundível relação da sua
pregação com a retórica da Antiguidade clássica e medieval e sua incorporação à
paidéia dos jesuítas. Verificamos que, a partir do seu trabalho como pregador
religioso e de homem do século XVII, Vieira apropria-se daquelas fontes clássicas e
medievais da retórica e as integra a sua parenética. Destacado pelo próprio autor
como modelo de seus sermões, estamos demonstrando a importância do
supracitado Sermão como padrão da forma de pregar na época barroca, uma vez
que naquele texto se expõe as regras para a elaboração de um sermão, cujo estilo
influenciou grande parte da retórica colonial. Evidenciamos também, que o uso
extensivo de figuras retóricas tem o objetivo de produzir um colorido especial ao
tópico do Sermão, sem deixar de estar a serviço da persuasão através de uma
linguagem altamente expressiva.
Palavras-chave: retórica, jesuíta, sermão, Escrituras, pregação.
7
ABSTRACT
The purpose of this paper is to carry out a detailed description of Father
Antônio Vieira’s doctrines as they are expressed in: Sermão da Sexagésima. The
present study shows the close relationship between his preaching with the classical
ancient and medieval rhetoric, as well as its embodiment to the paideia of the
Jesuits. We have verified that from his work on as a religious preacher and a citizen
in the XVII century, Vieira had grasped those classic and medieval sources in order
to integrate them into his sacred oratory. The author pointed the quoted Sermon out
as a model among others he wrote. So, we are showing its outstanding position as
an example of the kind of preaching in baroque times, because that text contains the
rules to elaborate a sermon; Vieira’s style affected deeply the rhetoric of the colonial
period. We have also remarked that a great deal of figures was used in order to
produce a special coloring to the subject, without giving up the persuasion, thanks to
a very expressive language.
Key words: rhetoric, Jesuit, sermon, Scriptures, preaching.
8
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Função da Retórica 16
Quadro 2 – Diferença entre convencer e persuadir 18
Quadro 3 – Os três gêneros do discurso do sistema retórico 23
Quadro 4 – Figuras associadas à metáfora 26
Quadro 5 –Comparação entre as crenças da Contra-Reforma e a
Reforma Protestante 45
Quadro 6 – A parábola do semeador em forma de alegorias 59
Quadro 7 – Flores do outono da vida 60
Quadro 8 – Elementos da conversão 61
Quadro 9 – A semente que se perdeu 61
Quadro 10 – Semelhança entre a árvore e o sermão 63
Quadro 11 – Diferença entre a árvore e o sermão 64
Quadro 12 – Semelhança entre a nuvem e o pregador 65
Quadro 13 – O diabo tentou a Jesus 66
Quadro 14 – As “criaturas” que resistem ao pregador 81
Quadro 15 – Semelhança entre o trigo e os missionários 82
Quadro 16 – Comparação entre antigamente e hoje 91
Quadro 17 – Estilo dos pregadores do céu e os da terra 98
Quadro 18 – As regras da disposição 101
Quadro 19 – Comparação entre a pregação certa e a errada 115
Quadro 20 – Os piores ouvintes da Igreja 131
Quadro 21 – A figura da rede 136
Quadro 22 – Modos de cair para o sermão “nascer” 148
9
SUMÁRIO
Resumo 05
Resumen 06
Lista de quadros 07
INTRODUÇÃO
1 O CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA 13
1.1 Retórica 13
1.2 Racionalidade retórica 13
1.3 Função da retórica 14
1.4 Convencer e/ou persuadir 17
1.5 Os primórdios da retórica 18
1.6 A retórica dos sofistas 19
1.7 A retórica de Aristóteles 20
1.7.1 O sistema retórico 22
1.7.2 As figuras da retórica 25
1.8 A retórica no Ocidente 31
1.8.1 A retórica latina 31
1.8.2 A retórica na Europa cristã 34
1.9Portugal do século XVII 38
1.9.1O Barroco 39
1.9.2 O Maneirismo 41
1.9.3A Contra-Reforma 43
1.9.4 A Companhia de Jesus 45
1.9.5 O Padre Antônio Vieira 50
2. O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA E SUAS FONTES 55
2.1 Resumo do Sermão 55
2.2Aspectos externos do Sermão 55
2.3. A parábola do semeador 56
2.4 O conteúdo do Sermão 58
2.5 As partes do Sermão 68
10
2.6 As fontes teológicas do Sermão 70
3. ANÁLISE RETÓRICA DO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA 72
3.1 O pregador e o ouvinte do Sermão 72
3.2 Os argumentos do Sermão 76
3.3 O estilo usado no Sermão 124
3.3.1 Figuras 126
3.3.2 Linguagem 140
CONCLUSÃO 157
REFERÊNCIAS 162
11
“Vejo que na vida dos homens é a palavra, e não a ação que conduz tudo”
(Sófocles, Foloctetes)
“Se fosse odioso não poder se defender com seu corpo, seria absurdo não poder
fazê-lo pela palavra, cujo uso é mais próprio ao homem que do seu corpo”
(Aristóteles, Retórica, 1355b 23-25)
“Deve-se usar a retórica com justiça, assim como todas as armas”.
(Platão, Górgias, 457b)
“Quem ousaria dizer que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores
desarmados? Como? Esses oradores que se esforçam por persuadir do falso
saberiam desde o exórdio tornar o auditório dócil e benevolente, enquanto os
defensores da verdade seriam incapazes disso?”
(Sto. Agostinho. Doutrina Cristã, IV, 2-3)
“Vieira é o mais vigoroso sermonista do barroco e o primeiro intelecto literário de
vulto francamente internacional das nossas letras”.
(José Guilherme Melquior, citado por Marcelo Backes, in: VIEIRA, 1999)
Para Vieira, o pregador seria também um profeta (...) nunca anda muito longe do seu
parônio poeta. Todas as três atividades têm em comum um grande investimento na
linguagem, isso as une.
(Margarida Vieira Mendes, in: VIEIRA, 1978)
12
INTRODUÇÃO
O Padre Antônio Vieira é considerado um dos maiores prosadores da Língua
Portuguesa de todos os tempos. A sua doutrina bíblica religiosa, o seu fervor
patriótico e a sua força argumentativa presentes nos cerca de 200 Sermões e 500
Cartas, continuam impressionando leitores e estudiosos dessas obras, que são de
caráter religioso e de questões várias da época, mas elas também têm um grande
valor literário; seus escritos evidenciam recursos argumentativos de grande poder de
persuasão, cuja influência foi notória na religião, na literatura, na política e no
aspecto sócio-cultural.
No Sermão da Sexagésima, o Padre Vieira apresenta sua visão da pregação
religiosa, adaptando a seus propósitos, muitas das doutrinas dos grandes retóricos
da Antiguidade Clássica, como Aristóteles, Quintiliano, Cícero, bem como da retórica
medieval. A sua concepção de pregação religiosa está articulada com detalhes
naquele Sermão. Como texto representativo de uma época, justifica-se o estudo do
referido Sermão da Sexagésima, a fim de identificar os recursos retóricos e
estilísticos, que por sua vez, remetem ao “método português” de pregar. Vieira foi
um exemplo da pedagogia dos jesuítas que misturava aspectos renascentistas,
como o gosto pela literatura da Antiguidade clássica, e medieval, como a sujeição ao
pensamento escolástico. Numa época que assiste a uma ruptura da concepção da
episteme, com o surgimento da Filosofia e da Ciência Moderna, Vieira se encontrava
preso à antiga concepção epistemológica que concebia a realidade a partir do uso
irrestrito da categoria da semelhança e do contraste, o que se reflete nos seus
Sermões. Por outro lado, Vieira foi um homem do Barroco, o que também se
percebe no seu estilo.
No presente trabalho debruçamo-nos sobre o sermão que desponta entre os
mais de 200 escritos por Vieira. Foram examinados diversos aspectos, como
conteúdo, argumentos e estilo, incluindo figuras e linguagem. Estes aspectos estão
intimamente ligados e implicados entre si; mas como não é possível olhar em
diversas direções ao mesmo tempo, esses elementos foram tratados
separadamente, a fim de se poder melhor avaliar a sua importância e função.
13
Entretanto, mesmo correndo o risco de ser repetitivo, reiteramos a tese de que todos
esses aspectos foram apenas separados para analisá-los, mas eles formam uma
síntese, um todo integrado para servir de argumentação, que em última análise, visa
ao convencimento. O conjunto dos aspectos focados, por sua vez, mostra o mais
característico nos sermões de Vieira: o “método português” de pregar.
A fim de dar conta da abordagem acima referida, a dissertação foi organizada
em três capítulos. No primeiro apresentamos o contexto histórico-cultural do Sermão
da Sexagésima, acompanhando a trajetória da retórica, desde os gregos, passando
pelos latinos e pela Idade Média, até chegar ao Barroco dos Jesuítas da Península
Ibérica.
No segundo capítulo descreveremos o Sermão da Sexagésima, como
circunstâncias externas e do conteúdo do texto em si, bem com indicamos as fontes.
No terceiro capítulo fizemos um trabalho de leitura retórica de intensa
atividade de investigação, relacionado ao pregador, ouvintes, argumentos, estilos,
figuras e linguagem, todos integrados em função da arte de convencer.
Finalmente, na ultima parte, a guisa de conclusão, após uma breve retomada
da abordagem da presente pesquisa, caracterizamos o “método português” de
pregar, de Vieira, mostrando a singularidade da sua oratória.
14
1 O CONTEXTO HISTORICO-CULTURAL DO SERMAO DA SEXAGESIMA
“A retórica com suas ciências afins era para os antigos o complemento
indispensável de uma existência legalmente livre e bela, de suas artes, de
sua poesia.”
E. R. Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, (1996, p. 101).
A primeira parte do presente trabalho apresenta um panorama geral da
retórica. A caracterização histórica mostrará seu surgimento na Grécia, chegando à
Europa através do Império Romano. O estudo lança luz sobre a forma que a
disciplina assumiu, e o papel que desempenhou nos diversos períodos analisados;
também é preciso caracterizar o autor e os aspectos determinantes do entorno da
época da pregação do Sermão.
1.1 Retórica
A retórica era uma das sete artes liberais do programa de ensino na tradição
clássica greco-romana; junto com a gramática e a dialética, formava parte do trivium,
que eram as disciplinas humanísticas. Conforme Curtius (l989, p. 101), retórica quer
dizer arte de falar e método de construir o discurso artisiticamente. Para Reboul
(2000, p.XVI-XVI), é a arte de persuadir pelo discurso. A retórica, portanto, seria
aplicável aos discursos que tem como objeto a persuasão. Esse autor ainda explica
que o termo arte, techné em grego, unido à retórica, possui vários significados,
como: uma habilidade espontânea, uma competência adquirida, uma simples técnica
ou a criação da obra de um gênio, e conclui que a arte retórica pode ter relação com
todas elas.
1.2 Racionalidade Retórica
Apoiado em Enrico Berti (1998), Rohden (l997) verificou várias racionalidades
desenvolvidas por Aristóteles, alem da lógica dedutiva, estudada muito tempo.
Por isso Rohden fala em racionalidade dialética e racionalidade retórica. Não
significa isto que os argumentos usados sejam a base para o raciocínio lógico, pois
15
Enquanto o ensinamento e a demonstração científica são extraídas das
verdades necessárias e que se impõem em todo lugar, as “demonstrações”
1
dialéticas e retóricas fundamentam-se em verdades da opinião aceitas pela
maior parte das pessoas e o mais frequentemente. Verdade para a ciência,
probabilidade para as duas artes conjuntas, que não se movem no domínio
do necessário, mas do provável e verossímil. (ROHDEN, 1997,p.152).
A racionalidade retórica, portanto, baseia-se em opiniões, idéias e crenças
comumente aceitas, assuntos estes que não podem ser tratados com o rigor
cientifico, e que são de cunho racional e emocional, de caráter subjetivo. Logo,
usando-se no presente trabalho as expressões empregadas por Rohden, não é no
sentido de se estabelecer uma oposição entre os dois domínios, o da razão e o da
emoção, mas se trata de distinguir entre vários tipos de discursos racionais: o
científico, o dialético e o retórico.
1.3 Função da retórica
Reboul (2000,p.XIII-XXIII) questiona-se sobre a função da retórica, sobre os
serviços que ela presta aos que fazem uso dela. Nos seus arrazoados desenvolve
quatro pontos.
A primeira função, para ele, está relacionada com a definição de retórica, a
arte de persuadir. Os meios pelos quais um discurso é persuasivo são de ordem
racional e afetiva, sendo que os de competência da razão são os argumentos, que
são de dois tipos: os de raciocínio silogístico (entimemas) e os que têm por base o
exemplo; os meios da afetividade são o ethos (caráter do orador) e o pathos
(tendências, desejos, emoções). O persuasivo do discurso, portanto, inclui o aspecto
argumentativo e o oratório (gestos do orador, tom e flexão da voz, entre outros, além
das figuras de retórica).
A segunda função é a hermenêutica, a arte de interpretar textos, refere-se à
relação do discurso com outros discursos e oradores, concordando ou discordando
com eles. Significa compreender o discurso do outro e detectar as suas ciladas, bem
como captar o não dito.
1
Grifo do autor.
16
A terceira função é heurística, de descoberta a respeito de coisas da vida que
não estão sujeitas à exatidão científica, onde não verdadeiro ou falso a priori.
Nesse caso temos que apelar para o verossímil. A retórica desempenha aqui um
papel importante na procura de uma resposta por meio do debate contraditório.
A última função referida pelo supracitado autor é a pedagógica, sendo que a
importância desse ponto reside no fato de o discurso persuasivo implicar a arte de
compreender, possibilitando a arte de inventar, ligado à cultura geral. Os professores
de língua e filosofia fazem retórica quando, numa redação, avaliam o assunto, o
plano, a argumentação, o estilo e a personalidade, critérios presentes, com outros
nomes, na retórica clássica; mesmo havendo outras culturas fora da escola, Reboul
concluiu que não existe cultura sem formação retórica, e arremata afirmando que
apreender a arte de bem dizer é já e também apreender a ser.
17
As considerações de Reboul sobre a função da retórica, podem ser reunidas
no seguinte resumo:
argumentação
Função persuasiva figuras de estilo
oratória
gestos, voz...
silogismos
ordem racional (entimemas)
Meios de competência (logos) exemplos
(argumentos) ethos (caráter)
ordem afetivos
pathos (emoções)
Função hermenêutica Arte de interpretar textos
dos discursos
Relação e interpretação dos oradores
Função heurística descoberta
de verdadeiro
sem critério científico
Fatos da vida de falso
aspecto verossímil
Função Pedagógica
na escola
Presença da arte retórica
Na cultura em geral
Aprender é ser
Quadro 1 – Função retórica, segundo Reboul (2000).
18
1.4 Convencer e/ou persuadir
Uma vez que o persuadir é a principal função da arte retórica, impõe-se
verificar a diferença que os estudiosos fazem entre convencer e persuadir.
Dos vários significados que o dicionário de Fernandes (1965,p.319 e 823),
as duas palavras aparecem como sinônimos, mas também significados e usos
diferentes. Assim, para convencer temos: levar alguém, por meio do raciocínio ou
provas, a reconhecer-se culpado; certeza; exemplo: convenceram-me da injustiça.
Para persuadir, encontramos: levar a crer ou aceitar; decidir a fazer alguma
coisa; estar ciente; formar juízo; exemplo: persuadiu-me a continuar os estudos.
Em vista da preocupação dos resultados diante de um auditório, para
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.30-33), persuadir é mais do que convencer,
porque persuadir é a primeira fase que redunda em ação; havendo, porém, maior
interesse no aspecto racional da ação, convencer é mais do que persuadir. No
aspecto racional, a convicção depende dos meios utilizados e das faculdades que o
orador tem em vista. Os autores preferem aplicar a palavra persuadir à
argumentação referente a um auditório particular, e convencer, em se tratando de
adesão de todo ser racional. A convicção, portanto, estaria ligada à inteligência e a
persuasão, à ação e à vontade. Mas eles chegam à conclusão de que as fronteiras
entre convencer e persuadir sempre serão indefinidas, pois esta é a característica
dos diversos auditórios face à retórica, havendo a presença de aspectos racionais e
volitivos.
Conforme Rohden (1997, p.16), todos os seres racionais são atingidos pelo
convencimento; quem ouve fica consciente de algo ligado à mente, mas não é
movido à ação. Na persuasão, o alvo são as capacidades sensoriais e emotivas, o
que leva o ouvinte à ação. Ele cita Kant, que ligava o convencer à objetividade e o
persuadir à subjetividade; afirma ainda que usara o termo persuadir, que para ele
caracteriza a racionalidade retórica.
Por outro lado, Reboul (2000, p.XV-XVI) ensina que persuadir é levar alguém
a crer em alguma coisa; quando se age de acordo a essa crença, há retórica; agindo
19
por coação, não retórica. Ele rejeita a idéia da distinção rigorosa entre os dois
termos em questão.
Embora os termos se possam confundir, dependendo dos matizes
semânticos, poder-se-ia resumidamente, estabelecer duas áreas ou domínios, sob
os quais as duas palavras se subordinam, segundo as diversas opiniões de
estudiosos, conforme o seguinte quadro:
Convencer (convencimento) Persuadir (persuasão)
Está relacionado à inteligência e à razão Está relacionado às capacidades
sensoriais e emotivas, de cunho
irracional
Significa compreender, reconhecer Significa levar alguém a crer, a querer e
agir
É de caráter objetivo É de caráter subjetivo
Implica auditório universal, de seres
racionais
Implica auditório particular
Quadro 2 – Diferença entre convencer e persuadir, segundo diversos autores.
1.5 Os primórdios da Retórica
A mitologia conta que, sensibilizado com a miséria dos homens, Júpiter,
guiado por Mercúrio, teria mandado a deusa Eloqüência à Terra para ajudar aos
mortais a resolverem seus problemas (ROHDEN,1997,p.20). Isto significa que a arte
de bem falar era inicialmente considerada uma dádiva divina com a qual os homens
se beneficiavam. Mas, o supracitado autor afirma mais adiante (p.26) que no século
V a.C. na Sicília, a eloqüência passou a ser uma técnica humana de persuasão, uma
arte, a retórica.
Dados históricos dão conta de que, naquela região grega ao sul da Itália,
cidadãos pleiteavam na justiça a devolução de suas terras que lhes haviam sido
tomadas injustamente pelos tiranos. Na ausência de advogados, recorria-se aos
“logôgrafos”, espécie de escrivães públicos. Os discursos por eles escritos eram
20
lidos no tribunal pelos litigantes; surgiram então os retóricos. Estes, segundo Solis
(1999, p.30), colocaram à disposição dos defensores e logógrafos, um instrumento
de persuasão que tinha a pretensão de convencer a qualquer pessoa de qualquer
coisa; argumentava-se não a partir do verdadeiro, mas do provável. Ao reproduzir
esta idéia, Reboul (2000, p.2) usa o termo verossímil (eikos), em lugar de provável.
Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e Tísias são conhecidos como os
primeiros retores. O manual Arte retórica foi redigido para ir ao encontro de uma
necessidade, pois eles recolheram um conjunto de técnicas, exemplos e artifícios
que podiam ser usados no discurso judiciário. Córax distingue quatro partes no
discurso: o exórdio, o momento de captação da atenção do auditório; a narração dos
fatos e apresentação da tese; discussão, momento de apresentação dos
argumentos; a peroração, que consistia na recapitulação e na conclusão. Mas
Antifonte divide o discurso jurídico em cinco partes
Podemos perceber, pelos dados acima apresentados, que a retórica teve
início quando pessoas injustiçadas foram orientadas na busca dos seus direitos. Ao
lado do discurso judiciário, que tinha a finalidade de acusar e de defender, surgira,
mais tarde, o deliberativo e o epidítico.
1.6 A Retórica dos Sofistas
O apogeu de Atenas dos séculos V e VI a.C., conhecido como período
clássico, coincide com a atuação dos grandes filósofos e com o ensino dos sofistas,
entre eles: Protágoras de Abdera, Górgias de Leôncio, Híppias de Elis, Trasímaco,
Pródico e Hipódamos, entre outros. Os sofistas, por definição, eram professores de
sabedoria, mas o termo passou a assumir conotação pejorativa, como alguém que
usa sofismas com o intuito de enganar. Eles eram mestres itinerantes e muito bem
pagos por suas aulas.
Aranha (2001, p.43) afirma que os sofistas exerciam um grande poder sobre a
juventude com o brilhantismo da sua retórica; ensinavam a arte da persuasão, do
convencimento pelo discurso, recurso bem aproveitado em praça pública, que era a
sede da assembléia; esses mestres tornavam-se educadores na formação
21
intelectual, fazendo com que a própria paidéia (educação da criança) seja ampliada
atingindo a educação do adulto; aumentaram o currículo incluindo a gramática, a
retórica e a dialética, entre outras disciplinas, o que acabou estabelecendo a divisão
das sete artes liberais.
Com relação ao ensino dos sofistas, Rohden (1997,p.31,32) também destaca
o fato de eles terem ensinado seus discípulos a argumentar bem, a fim de
persuadirem seus ouvintes; os jovens aprendiam com esses mestres a ciência da
vida prática, a política, a moral e a retórica; tornaram-se odiosos a boa parte dos
gregos porque pretendiam ter sempre razão; o seu discurso assumiu uma feição
relativista e subjetiva, pois o homem com sua linguagem passou a ser medida de
todas as coisas; não houve mais o dever moral de se buscar a verdade.
Protágoras foi o criador da erística, que mais tarde viria a ser dialética. O
termo erística significa controvérsia; era a arte de vencer uma discussão
contraditória; recorreu-se aos piores sofismas. Reboul (2000, p.9,10) declara que o
mundo do sofista foi um mundo sem verdade, sem realidade objetiva; o logos, o
discurso do homem, ficou sem referência e não houve outro critério senão o próprio
sucesso; o discurso não pretendia ser verdadeiro, nem mesmo verossímil, apenas
eficaz para vencer, deixando o interlocutor sem réplica; a retórica, com a sofística,
tornou-se rainha despótica porque ilegítima.
Apesar dos pontos negativos acima mencionados, os sofistas deram uma
enorme contribuição à educação ao não limitá-la às crianças, ao ampliar o currículo
e ao terem inserido os jovens nas discussões políticas relacionadas a sua cidade;
com isto houve um grande desenvolvimento do discurso deliberativo.
1.7 A Retórica de Aristóteles
Platão, o mestre de Aristóteles, usou Sócrates como protagonista para
compor os diálogos contra os sofistas. Para Reboul (2000, p18), Platão rejeitou a
confiança que os sofistas tinham na linguagem, lhe reconhecendo valor se a
serviço do pensamento, o único que atinge as idéias, a verdade inteligível. O autor
cita as palavras de Platão: “A autêntica arte do discurso, desvinculada do
22
verdadeiro, não existe e não poderá jamais existir” (Fedro, 260e). Platão, segundo
Aranha (2001, p.46), pensava que o bem falar ou escrever era secundário; antes do
aprendizado da retórica para convencer um oponente, seria preciso o esforço para
conhecer a verdade; pois o conhecimento poderia dar estrutura orgânica e
ordenação lógica ao discurso, caso contrário seria um amontoado de banalidades.
Idéias bem diferentes e mais perto da realidade tinha Aristóteles sobre a
retórica, as quais ele explicou na sua Retórica. Isócrates, mestre em retórica muito
conceituado, unificou a retórica com a filosofia. Aristóteles não concordava com
muitas idéias de Isócrates e com algumas de seu próprio mestre Platão; tomou
posição própria na sua obra; estabeleceu leis para a retórica; esta, para ele, era uma
rigorosa técnica de argumentação. A lógica usa silogismos e chega a conclusões
irrefutáveis; os silogismos da retórica são chamados de entimemas, baseados em
opiniões (doxa); são opiniões verossímeis, convincentes, mas refutáveis. Aristóteles
afirma:
Seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos simplesmente
persuasivos quanto exigir de um orador (retor) demonstrações invencíveis.
(Ética a Nicômaco, I, 109b).
Segundo Aristóteles, o bom uso de qualquer faculdade humana pode ser útil
ou prejudicial, conforme o uso que se faz; isto também vale para utilidade da
retórica. Quanto ao aspecto moral, o princípio é o mesmo. A retórica não é moral
nem imoral, ela é amoral; depende do seu uso.
O Estagirita também aproxima a dialética da retórica. Solís (1999, p.37)
informa que a dialética se apresenta como uma espécie de jogo intelectual, no qual,
seguindo certas regras, procura-se rejeitar ou aprovar uma tese. É, portanto, um
jogo especulativo baseado no provável, podendo ser usado para persuadir.
Aristóteles define a dialética como a arte de raciocinar a partir de opiniões
geralmente aceitas (PELERMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.II). Mas a
retórica é uma técnica do discurso persuasivo. Tanto a retórica como a dialética
apóiam-se no verossímil.
1.7.1 Sistema retórico
23
Aristóteles voltou-se à retórica, adaptou as partes dessa disciplina em voga
naquela época e criou um sistema organizado e coeso ao qual deu forma e
conteúdo na sua Retórica. Seguindo Reboul (2000, p.43-69), serão apresentados os
principais aspectos da obra citada.
O filósofo divide a retórica nas seguintes partes: Invenção (heurésis), é a
busca do orador por argumentos para persuasão. Disposição (taxis) é a organização
interna, o plano discursivo. Elocução (lexis) refere-se ao aspecto da escrita, ao estilo
e às figuras. Ação (hipocrisis) é a proferição do discurso, onde podem incluir-se os
aspectos da oratória.
Relacionado à invenção, Aristóteles confirmou os gêneros do discurso que
tinham sido estabelecidos na época, levando em conta o tipo de auditório, isto é, a
quem o discurso era dirigido, são eles:
- Gênero deliberativo (ou político), que era proferido na Assembléia (Senado),
referia-se ao futuro, feito para persuadir ou dissuadir, tendo em vista o útil ou o
nocivo; era dirigido a um público menos especializado; estava centrado no ethos,
com o uso abundante de exemplos; predominava o clima da democracia.
- Gênero judiciário (ou forense), ligado ao passado; era feito para acusar ou
defender, tendo em vista o justo ou o injusto, dirigido a um auditório especializado;
predominava o raciocínio silogístico na forma de entimema, centrado no ratio.
- Gênero epidítico, era proferido nos funerais e diversas comemorações;
podia ter como objeto uma pessoa, uma categoria de pessoas ou uma cidade;
estava relacionado ao presente; feito para elogiar (por isso também chamado de
laudatório) ou para censurar, inspirava-se nos valores do nobre e/ou vil; procurava-
se despertar efeitos emocionais nos ouvintes, assumindo tonalidade apreciativa e
predicativa; estava, portanto, relacionado ao pathos.
Os três gêneros do discurso podem ser visualizados no quadro abaixo:
24
Gêneros Auditório Finalidade Objeto Tempo Raciocínio Lugares
Comuns
Deliberativo Membros de
uma
Assembléia
Persuadir/
Dissuadir
Aconselhar/
Desaconselhar
Útil/
Nocivo
Futuro Exemplos Possível/
Impossível
Judicial Juízes Acusar /
Defender
Justo/
Injusto
Passado entimemas Real /
Irreal
Epidítico Espectadores,
Público
Elogiar /
Censurar
Nobre/
Vil
Presente Comparação/
Amplificação
Mais/
Menos
Quadro 3 – Os três gêneros do discurso do sistema retórico.
Entre os recursos persuasivos que Aristóteles apontou na sua retórica, temos
os seguintes: o ethos, de ordem afetiva, relacionado ao caráter necessário ao orador
a fim de inspirar confiança no auditório. Mesmo dependendo muito do auditório,
exigiam-se as condições mínimas de credibilidade do orador, ao mostrar-se sensato,
sincero e simpático; pelo menos no nível do parecer ele deveria ter o caráter moral
exigido. O phatos também de ordem afetiva, referia-se a um conjunto de emoções,
paixões e sentimentos que o orador deveria despertar no auditório; estava ligado ao
caráter psicológico de quem falava; deveria ser capaz de adaptar-se aos diversos
auditórios com o objetivo de persuadir. O logos referia-se à própria argumentação,
ao discurso. Aristóteles distinguiu dois tipos de argumentos: o entimema, que era o
silogismo baseado em premissas prováveis, de aspecto dedutivo, fundados em
opiniões verossímeis. O outro argumento era o exemplo, que de fatos passados
concluía os futuros; podiam incluir também parábolas e fábulas, e eram de caráter
indutivo. Os entimemas podiam ser demonstrativos (o adversário aceitava) ou
refutativos (o adversário não aceitava).
Outro tipo de argumento ainda eram os lugares (topoi); o termo lugar pode
assumir diversos significados, como: um argumento pronto, as frases feitas, como:
“Os melhores são os que partem”. Em sentido técnico é um argumento-tipo, como o
25
lugar do mais e do menos, cujo exemplo muito conhecido diz: “Quem pode o mais
pode o menos”. O termo também pode significar uma questão típica para encontrar
argumentos e contra-argumentos, argumentos que sirvam à tese, inventando
premissas de uma conclusão.
A disposição era um plano-tipo para construir o discurso, que estava dividido
em quatro partes: Exórdio, narração, confirmação e peroração. O exórdio, a
introdução, iniciava o discurso e tinha função fática, fazendo com que o auditório
seja dócil, atento e benevolente. A narração era a exposição objetiva dos fatos;
precisava de três qualidades para ser eficaz: clareza, brevidade e credibilidade;
assumia grande importância no gênero epidítico. A confirmação tinha a função de
destruir os argumentos adversários; recorria-se ao pahtos, que seria a ação do
orador sobre o auditório a fim de persuadir pela emoção. A peroração (ou digressão)
era usada no discurso judiciário como um momento de relaxamento para distrair o
auditório, mas também para despertar piedade ou indignação. A peroração, no fim
do discurso, podia assumir a forma de amplificação, paixão ou servir de
recapitulação.
A elocução é a redação da peça oratória; referia-se à língua e ao estilo que
incluía escolha de palavras, a construção de frases, a correção e a beleza de estilo,
a clareza nas colocações, entre outros. Aqui também estava incluída a apresentação
e a dinamicidade do orador, fazendo com que o discurso seja marcante, agradável,
cativante e marcado pela autenticidade.
A ação era a finalização do trabalho retórico, a proferição do discurso;
desempenhava uma função fática. O orador até podia não sentir o que queria
demonstrar, mas seu público não podia saber disso. Para os clássicos, a ação
incluía: o tom da voz, a forma de respiração, as mímicas do rosto, bem como a
gestualidade do corpo. A memória influía muito no desempenho do orador,
principalmente no caso da memorização. Após escrito e memorizado, o discurso era
lido com clareza e vivacidade na sua apresentação.
1.7.2 As figuras de retórica
26
As figuras de retórica fazem parte da invenção; na procura de argumentos, o
orador lança mão desse recurso de estilo para convencer. Górgias, um dos
primeiros sofistas da Grécia, mestre da retórica, estabeleceu a técnica da retórica
em três figuras: a antítese, o paralelismo de frases e a assonância.
Aristóteles divide a sua Retórica em três partes: as provas, o estilo e a ordem
do discurso. Dentro do que ele chama de expressão, o estilo (grego: lexis, latim:
elocutio), aparecem com destaque as figuras de retórica, fazendo parte da
demonstração; tudo o que não convergir para esse fim foi considerado supérfluo
(1404a 12-16). O filósofo trata das seguintes figuras:
A metáfora
A metáfora, junto com os nomes específicos e os apropiados, é uma das
únicas formas de expressão singela. Essa figura veicula clareza, prazer e
estranheza ao discurso; esta estranheza produz admiração e está ligada à
educação. A metáfora deve ajustar-se adequadamente ao objeto para ser eficaz e
fundamentar-se na analogia; devem extrair-se de coisas belas, cuidando o som e o
significado das palavras; com os enigmas bem estruturados podem construir-se
metáforas, porque estas apontam para os enigmas (1405b 5-7). As imagens são
metáforas quando se elimina a preposição, como no exemplo: Aquiles “se lançou
como um leão”, a frase transformou-se numa metáfora (1406b 21-23). As
expressões elegantes procedem da metáfora por analogia e fazem com que o objeto
fique evidente (1411b 22-24). Os provérbios e as hipérboles, usadas
adequadamente, também são metáforas que acentuam a elegância retórica; o
mesmo pode-se afirmar dos refrães.
Diversas figuras estão associadas à metáfora, conforme o quadro infra:
27
Figuras associadas à metáfora
Enigmas
Imagens
Hipérboles
Refrães
Provérbios
Quadro 4 – Figuras associadas à metáfora, segundo Aristóteles.
A hipérbole
Para Aristóteles, a hipérbole também é uma metáfora, bastando fazer uma
comparação com o acréscimo do termo “como”; mas deve possuir um aspecto
juvenil, como tendência ao exagero e ao predomínio do pathos. No exemplo citado,
alguém diria:
Nem que me desse tantos presentes como grãos que no pó e areia, nem
sequer assim tomaria por esposa à filha do Atrida Argamenon, ainda que ela
rivalizasse em beleza com a dourada Afrodite e em seus trabalhos com
Atenea (1413a 32-35).
A Retórica de Aristóteles define a amplificação e a diminuição como
entimemas que servem para demonstrar que algo é grande ou pequeno, bom ou
mau, justo ou injusto (1402a 18-23). De acordo com Racionero (In: ARISTÓTELES,
1990, p.251), como meio de intensificar a importância qualitativa dos fatos, a
ampliação constitui um dos recursos principais da oratória antiga. O exagero pode
ser considerado uma forma de ampliação retórica.
A sinonímia
Aristóteles dedica apenas uma frase na Retórica à sinonímia, afirmando que
ela é útil para o poeta (1404b 39).
A interrogação
28
O filósofo trata da interrogação no final da sua Retórica (1418b 40; 1419a 1-
35); embora ele tivesse em mente a persuasão retórica no discurso forense, essa
forma de argumentar tornou-se comum para os três gêneros do discurso. Entre os
seus diversos usos, a interrogação pode ser usada como meio de desenvolver o
raciocínio ou para criar embaraços ao oponente. Aristóteles também alerta sobre o
perigo de fazer perguntas demais, a fim de impedir que o adversário possa formular
a conclusão; no caso de uma pergunta capciosa composta de duas respostas, deve-
se mostrar a diferença e desfazer a ambigüidade desse caso de anfibologia.
A antítese
Aristóteles discorre sobre a antítese na sua Retórica (1410a 1-39) ao tratar
dos períodos simples e do composto; este pode ser equilibrado quando houver
antíteses, e membros divididos, no caso contrário. No exemplo apresentado de
antítese é o seguinte: “De modo que para os que necessitam de riquezas e para os
que pretendem desfrutar (...)”, o desfrutar se opõe à possessão. No isólogo (isokolon
ou parisoris) os períodos dos membros são iguais. Se os seus extremos forem
semelhantes, denominam-se parimoiosis; o homoioteleuton, por sua vez, consiste na
igualdade dos sons finais dos membros consecutivos, que podem ser de extensão
desigual. Nesse contexto, a antítese é considerada um silogismo.
O apotegma
O apotegma, como dito sentencioso e ilustre, foi mencionado por Aristóteles
de passagem. Aparece associado às máximas e aos enigmas, que facilmente
podiam ser transformados em entimemas; mas o apotegma é uma figura de retórica
ligada à elegância do estilo.
O assíndeto
Aristóteles aconselha o uso de conjunções, mas quando se requer a
concisão, que não se use, quando não prejudicar a articulação da frase (1407b 39-
40) Assim, referente ao assíndeto, isto é, à omissão das conjunções, ou o uso delas,
depende do discurso e do efeito que o orador quer conseguir do auditório. Com
29
relação à função do assíndeto, Racionero (In: ARISTÓTELES, 1990, p. 511) garante
que ele cumpre duas funções na retórica de Aristóteles: confere brevidade ao estilo
(lexis) e o torna um meio de expressão das emoções.
A ironia
O filósofo destaca a ironia como um importante recurso oratório e refere
alguns usos retóricos. Na Ética a Nicômaco (VI, 7, 1127b 24), a ironia é apresentada
como uma tendência do homem veraz, que consiste em diminuir seus méritos
próprios. No aspecto retórico, segundo Racionero (In: ARISTÓTELES, 1990, p.593),
ela pode ser vista como uma precaução na hipótese de uma acolhida desfavorável
do auditório, e por outro lado, como um recurso expressivo de um temperamento
(talante) virtuoso, isto é, sincero.
O epíteto
O epíteto, como palavra ou frase que se junta a um nome para qualificá-lo ou
realçar a sua significação, conservou o mesmo sentido, desde Aristóteles até nossos
dias. Para o filósofo, uma das causa da esterilidade da expressão é o emprego de
epítetos extensos, inoportunos e repetidos; não todos os usados na poesia são
adequados na prosa (1406a 10). Para Racionero (In: ARISTÓTELES, 1990, p.496),
os epítetos servem para o adorno da expressão, sendo que sem eles a referida
expressão seria pobre; rebuscada, quando usados em demasia; estéril, quando
empregados de forma inadequada.
O refrão
Refrães e/ou provérbios, muito usados por Aristóteles, são expressões
elegantes muito conhecidas, provenientes de metáforas (1413a 16-26).
A repetição
30
Racionero (In: ARISTÓTELES, 1990, p. 550), reproduzindo idéias de
Aristóteles, conclui que a repetição é uma figura de retórica pela qual o orador
ênfase à idéia ou fórmula, cuja relevância para a persuasão fica em evidência; a
repetição geralmente é considerada como um procedimento de estilo (lexis) afetivo.
A figura foi muito estudada após Aristóteles.
O exemplo
Aristóteles, na sua Retórica, dividiu as provas de persuasão comum aos três
gêneros do discurso em: entimemas, exemplos e máximas; estas pertencem aos
primeiros. O entimema, de caráter dedutivo, é um silogismo retórico, baseado em
premissas prováveis e freqüentes; mesmo que suas conclusões não sejam prova
cabal de veracidade, são totalmente verossímeis.
O exemplo, por sua vez, é de caráter indutivo, um princípio de raciocínio,
apóia-se sobre uma relação de semelhança. Ainda que Aristóteles apresente o
exemplo como um caso de analogia com a indução, esta inclui todos os casos
individuais na demonstração para o geral, enquanto que o exemplo é um caso
particular; tratando de estabelecer uma relação de semelhança para indicar
generalizações prováveis, as premissas persuasivas dos exemplos podem tornar-se
elementos silogísticos. Segundo Aristóteles, dois tipos de exemplos. O primeiro
refere-se a fatos anteriores, sucedidos; partindo-se do passado, infere-se o futuro;
o outro tipo, invenção do orador, é a parábola e a fabula (1393a 30-31). Segundo
Racionero (In: ARISTÓTELES, 1990, p. 406), na parábola uma comparação com
algo que tem semelhança e da qual expressa uma ilustração. Um dos exemplos de
Aristóteles é a respeito dos magistrados que não devem ser escolhidos por sorteio;
isto seria o mesmo que eleger os atletas também por sorteio, sem levar em conta se
são capazes ou não (1393b 3-7). Com relação às fábulas, Aristóteles viu nelas uma
vantagem no discurso político, alegando que seria fácil encontrar exemplos de
fábulas para determinado caso, bastando para isso descobrir as semelhanças
(1394a 1-6). O filósofo também afirmou que os exemplos podem ser usados na falta
dos entimemas como forma de demonstração; mas havendo esse tipo de silogismo,
os exemplos servem de testemunhos, pois eles são persuasivos em todas as
circunstâncias (1394a 2-13).
31
Segundo Reboul (2000), ao comparar os silogismos com os exemplos,
Aristóteles afirmara que os últimos são mais afetivos que os primeiros, dirigidos
preferencialmente ao grande público, enquanto que os silogismos visavam a um
auditório especializado (p. XVII); o autor também sustenta que Górgias argumentava
através de exemplos (p.14); ele anda afirma que a Idade Média constituiu uma nova
retórica, desligando-se do gênero judiciário e incorporou-se à pregação religiosa; os
exemplos tinham a finalidade de ilustrar o tema do sermão (p.57). Os exemplos, sem
a menor sombra de dúvida, possuem um grande potencial persuasivo na
argumentação pelo poder da linguagem, naturalmente, quando servem de prova
com vistas à generalização.
A máxima
Na Retórica, Aristóteles define a máxima da seguinte forma:
Uma máxima é uma asseveração; mas não, certamente, de coisas
particulares (...) mas em sentido universal; e tampouco de todas as coisas
(...) mas daquelas precisamente que se referem a ações e são suscetíveis
de adesão ou rejeição na ordem da ação (1394a 22-26).
Algumas máximas convertem-se em entimemas ao acrescentar-se sua
conclusão ou seus princípios. A máxima: “Entre os homens nenhum que seja
livre”, pode transformar-se em entimema, acrescentando-se: “Porque ou é escravo
das riquezas ou da sorte” (1394b 4-6). outras máximas são entimemas
completos, porque tratam de algo conhecido por todos ou são de fácil compreensão,
como por exemplo: “Não é amante aquele que ama para sempre” (1394b 1-16).
Recomenda-se usar máximas que são de domínio público, a fim de facilitar a adesão
do auditório.
As máximas têm grande utilidade, como no caso de pessoas simples que
ficam contentes ao ouvirem uma máxima universal de assuntos que coincidem com
suas opiniões particulares. Outra utilidade está ligada ao caráter, à integridade do
orador, evidenciado no tipo de máximas usadas; deve haver clareza para se
32
conhecer as intenções do orador, pois se as máximas são honestas, indicarão que
também é honesto aquele que as profere (1395b 13-17).
Racionero (1990, p. 409) conclui que a doutrina de Aristóteles define a
máxima como uma asseveração ou confirmação de âmbito geral, que verifica o
parecer do orador a respeito de um caso particular, pelo fato de ela (a máxima)
exercer sobre o auditório a autoridade e saber geralmente aceito. Esta adesão
comum tem a força de um decreto, coloca a máxima na área das provas
demonstrativas gerais; acrescenta que com essas características a máxima passou
sem muitas variações à retórica posterior.
1.8A retórica no Ocidente
A filosofia, no sentido amplo, foi o legado que os gregos deixaram para o
Ocidente. O fundamento do pensamento dos helenos cunhou em grande parte a
civilização ocidental até nossos dias. Como mestra, junto com todo o conhecimento,
os gregos nos ensinaram o poder da palavra mediante provas logicamente
encadeadas, como no caso do silogismo; mas também aprendemos que na falta de
provas demonstrativas, o logos pode igualmente ser convincente, tendo como base
opiniões geralmente aceitas, de caráter verossímil. A retórica, portanto, como parte
do conhecimento dos gregos, tornou-se objeto de difusão e estudo durante mais de
2000 anos.
1.8.1 A retórica latina
Com referência à pedagogia, Aranha (2001, p.61-62) afirma que, tanto em
Atenas como em Roma, os educadores estavam interessados em formar o homem
racional que pense corretamente e que saiba expressar-se de forma convincente; na
pedagogia grega houve duas posições, a de Platão, com uma visão filosófica
sistematizada e a outra de Isócrates, com o predomínio da retórica sobre a filosofia;
em Roma, mesmo de forma diferente, a filosofia dava lugar à retórica; as reflexões
filosóficas restringiam-se a questões práticas de assuntos éticos e morais.
33
Conforme Giordani (1972, p. 166), Cícero mencionou alguns fins que os
romanos tinham em vista na educação de seus filhos; o domínio de si, a obediência
a toda autoridade paterna e pública, bem como a benevolência para com o próximo;
a força de Roma, para ele, firmava-se nos seus velhos costumes e na força de seus
filhos. Giordani cita dois autores: H.J. Marrou e F. Apuleio; o primeiro afirmara que
os romanos imitavam as escolas gregas, tendo havido três graus sucessivos de
ensino: a escola primária, a secundária e os estudos superiores; Apuleio atribui ao
litterator os rudimentos, ao gramático os ramos gerais e ao retórico os preceitos da
eloqüência, respectivamente (p. 171).
Aranha (2001, p. 65) lembra que a retórica exigiu o aprofundamento do
conteúdo e da forma do discurso, motivo pelo qual surgiu a necessidade de um
terceiro grau de educação, representado pela escola do retor, que era o respeitado
professor de retórica.
O retor, rhetor ou orator em latim, tinha a atribuição de transmitir o
ensinamento formal no ensino superior. Deveria ensinar as regras da oratória e a
sua utilização, que muitas vezes consistia apenas na tradução da técnica da retórica
grega para o latim. Nos treinos, os alunos apresentavam discursos de assuntos
fictícios de inspiração helenística, declarando-os mais como um espetáculo público.
No entanto, Marrou, novamente citado por Giordani (1972, p. 176), argumenta que
esse trato com a retórica não afastou os jovens da vida real, mas que desenvolveu
sua agudeza de espírito e agilidade de raciocínio, fato que pôde ser constatado na
preparação de quadros aptos para desempenhar cargos administrativos e
governamentais.
A eloqüência teve grande desenvolvimento em Roma, atingindo seu apogeu
no século I a.C. Para Giordani (1972, p. 237-239), entre os seus cultores, a exemplo
de Hortensius, estavam César, Pompeu, Catão de Utica e Marco Antônio; a todos,
porém, superou Cícero, que marcou para sempre uma época na história romana.
Interessado desde a sua mocidade na arte retórica e tendo inclusive, mais
tarde, feito estudos de retórica na Grécia, Cícero escreveu os três livros Do orator,
exposição clara, sob forma de diálogos, de uma série de qualidades necessárias a
34
um bom orador e de aspectos culturais que devem ser levados em conta para atingir
os objetivos no discurso.
Para ele, educação integral do educador requer cultura geral, formação
jurídica, aprendizagem da argumentação filosófica, bem como o
desenvolvimento de habilidades literárias e até teatrais, igualmente
importantes para o exercício da profissão. (ARANHA, 2001, p. 63)
A influência de Cícero foi além da sua época. O ceceronismo converteu-se em um
dos principais modelos dos pedagogos do Renascimento.
No tempo do Império desenvolveu-se o ensino do terceiro grau com a criação
dos cursos de filosofia e retórica, com o incentivo dos imperadores. Vespasiano
criou uma escola de retórica em Roma e contratou Quintiliano como professor.
Durante vinte anos ele exerceu sua profissão e influenciou as novas gerações.
Grande orador e advogado do século I a.C,. Quintiliano estudou a eloqüência,
esperando que fizesse parte da educação civil. Ele foi notório por suas obras:
Instituição oratória e Formação do orador. Este último livro tem o educando desde
criança como objeto. Aranha (2001, p. 63) informa que, tomando Aristóteles como
base, Quintiliano fez uma análise dos aspectos físicos, psicológicos e morais que
formam o orador, destacou a importância da instrução geral e dos exercícios que
converterão a aprendizagem em uma segunda natureza.
Reboul (2000, p. 73-76) observa que o mais importante é que, como
educador, Quintiliano esforçara-se para conciliar a retórica e a ética, ao contrário de
Aristóteles que as dissociava; ao definir a retórica como arte do bem falar, o mestre
da retórica romana associava o referido bem, tanto ao bem estético com ao bem
moral; a retórica, portanto, e a injustiça foram consideradas irreconciliáveis para
Quintiliano. Leoni (1969, p. 107) também faz referência à ênfase que o retórico em
tela dava, não apenas à técnica do falar, mas ao desenvolvimento dos dons
naturais, como a honestidade da alma e a integridade de caráter. A exemplo de
Cícero, Quintiliano seria muitas vezes lembrado na Renascença.
Nas páginas acima citadas, Reboul comenta que houve forte resistência ao
ensino da retórica nas escolas depois de Quintiliano, a pretexto da diferença entre a
sociedade de Roma e da Grécia, berço da retórica. Assim, em Atenas houve
35
democracia, vivência dos cidadãos ouvindo os discursos em praça pública e
tomando partido, Roma era um império e as lições de retórica ensinadas nas
escolas apresentavam casos fictícios. Mas Reboul questiona tais afirmações de
desalento em relação à retórica, argumentando que essa disciplina continuou
durante todo o Império Romano e Bizantino, resistiu ao Islamismo e à Idade Média;
mesmo sem grandes debates políticos que surgiram nas democracias modernas,
ele criou outros gêneros, como: a epístola, a descrição, o testamento, o discurso de
embaixada, a consolação, o conselho ao príncipe, entre outros; o “fim da retórica”
não passaria de lugar comum, não retórico.
Relacionado a um contexto cultural mais amplo, Aníbal Ponce, citado por
Aranha (2001, p. 67), conta que, seguindo as tropas romanas de ocupação, os
retores instalavam suas escolas junto às tendas dos soldados; seguiam os
comerciantes, seja nas areias da África ou na Bretanha. Refere ainda que
Plutarco descrevera a habilidade com que foi usada a educação para conseguir a
paz dos espanhóis com os romanos, acrescentando: “As armas não tinham
conseguido submetê-los, a não ser parcialmente; foi a educação que os dominou”.
1.8.2 A retórica na Europa cristã
A decadência do Império Romano acelerou-se sempre mais no começo da
era cristã. No início do século III surgiu um novo elemento: o cristianismo, unido ao
estado. Da união entre o espírito da antiga Roma e da nova religião, nasceu a
cultura da Europa Ocidental.
Auerbach, citado por Salomão (In: VIEIRA, 2001, p. 52), em face da
apreciação de um texto de Santo Agostinho, argumenta que desde os primeiros
séculos, o cristianismo tinha necessidade da pregação, acabando por encontrar-se
com a tradição clássica, sendo que esta última teve que modificar-se devido ao
conteúdo religioso; mas não houve sempre uma concordância entre as duas formas,
pois o pregador partia do anúncio de uma verdade, contida no texto bíblico; o uso
da retórica, nesse caso, apresentava-se como uma tentação diabólica, um artifício
associado às técnicas de argumentação e persuasão; mesmo que tenha sido um
36
recurso na evangelização, era ao mesmo tempo a exaltação de um jogo de
habilidades, em oposição à simplicidade do texto da Bíblia em questão.
Para uma breve exposição sobre a presença da retórica na era cristã até a
época do Padre Vieira, ponto de chegada da presente pesquisa, será tomado como
referência a obra de Curtius (1996). Este autor declara que a Antiguidade está
presente na Idade Média como recepção e transformação, que pode significar
empobrecimento, degeneração, atrofia, equívoco; mas também, compilação erudita,
cópia rudimentar, assídua imitação de modelos formais, apropriação de conteúdo
cultural, empatia entusiástica; que, nas palavras de Ernst Troeltsch, o mundo
europeu compõe-se do Antigo e Moderno, separados em sentido e evolução
histórica, mas também entrelaçados e ligados em memória e continuidade históricas,
apesar da atuação de um espírito totalmente novo e próprio (p. 52).
Marciano Capela era um pagão africano; seus escritos, redigidos entre 410 e
439 d.C, serviam de parâmetro para toda a Idade Média. A sua obra Bodas da
Filologia com Mercúrio é uma alegoria significativa. Filologia era uma sapientíssima
donzela, representava o amor à razão e aos conhecimentos; Mercúrio era o símbolo
da eloqüência. Esse casamento simbolizava a união entre o saber e a eloqüência,
pois separados nada podem. Revestido de um significado especial, assistem ao
casamento as sete ninfas (acompanham os atos que lhes foram atribuídos na Idade
Média): a Gramática (fala), a Dialética (ensina a verdade), a Retórica (ministra
palavras), a Música (canta), a Aritmética (conta), a Geometria (mede) e a
Astronomia (estuda os astros). O que concerne à Retórica era uma bela dama, de
elevada estatura, usando um vestido ornado com todas as figuras do discurso e
portava armas para ferir seus adversários (p. 73-74). O fato é que, com a gramática,
também a retórica chegou à Idade Média, junto com as artes liberais (gramática,
retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia), mas ela começava a
mostrar sintomas de adulteração, perda de substância e atrofia; nessa época de
transição, notaram-se elementos diferentes no valor e no caráter estilístico (p. 111).
Jerônimo, pioneiro da moderna ciência bíblica, acreditava existir um paralelo
entre a tradição pagã e cristã; assim, o livro de encerraria todas as leis da
dialética e o salmista seria “nosso Simônides, Píndaro, Alceu, Horácio e Catulo”; ele
37
era tido como humanista que preferia a arte e a literatura, considerado um dos
“filólogos por paixão” (p. 112-113).
Ao contrário de Jerônimo, Agostinho foi afetivo, de alma ardente, um
pensador; ele confrontou o mundo pagão ao cristão, foi um mestre de retórica; para
ele, a Bíblia contém uma retórica de gênero especial; sua interpretação era
alegórica; as técnicas da velha retórica são aplicadas à vida espiritual cristã, usando
três recursos sugeridos por Cícero: Isokolon (reunião de membros da proposição de
igual extensão), antitheton (ligação de dois membros da proposição que encerram
uma contradição de idéias) e homoioteleuton (isokolon com rima no final do kolon
2
);
o autor mostra como a retórica se converteu em poesia, como acontece na liturgia
romana (p. 113-114).
No século VII, Cassiodoro ainda relacionava a antiga retórica à vida política
na Itália. Somos informados que por incumbência do Imperador, Cassiodoro chamou
ao advogado, diplomata e poeta Arátor ao serviço do Estado, por causa da sua
excelente cultura retórica, e que no cargo, ele serviu-se “não de palavras comuns,
mas de um caudaloso rio de eloqüência”; o próprio Imperador Atalarico considerava
a gramática, o estudo dos autores antigos e a eloqüência como uma necessidade
para o Estado; afirmou que, enquanto os reis bárbaros tinham armas, “a eloqüência
estava a serviço apenas dos senhores romanos”. Na sua obra Institutiones,
Cassiodoro dedicou uma passagem à retórica. Para Isidoro, por sua vez, a retórica
limitava-se ao discurso forense, dando destaque à doutrina das figuras de retórica,
de cunho estilístico (p. 114-115).
No século XI surgiu um novo tipo de retórica, para ir ao encontro de uma
necessidade nas práticas administrativas; consistia em criar modelos de cartas e
documentos para as chancelarias reais e eclesiásticas; a retórica se transformou em
gênero epistolar. no fim da antiguidade grega houve instruções para redigir
cartas, padrões retóricos epistolares e coleção de cartas com modelos para diversos
ofícios e profissões. Digno de nota é o fato de que no século XI houvesse a tentativa
de subordinar toda a retórica à epistolografia; com isso a retórica adquiriu um cunho
2
Conforme página 27.
38
mais atual e distanciou-se do sistema de educação retórico e tradicional (p. 115-
116).
Conforme Curtius, Wibald de Korvey afirmara que na época, século XII, houve
uma contradição entre a teoria e a prática retórica, como no caso dos conventos,
onde faltava oportunidade para sua utilização prática. Outro aspecto importante
daquela época era a conservação do ideal antigo da retórica que fazia parte de toda
a cultura. João de Salisbury reagiu contra Cornifício e a corrente dialética que
considerava a retórica supérflua e que seria possível filosofar sem ela; mas João
argumentou que a retórica foi a graciosa e fecunda união entre a razão e a palavra,
entre teoria e retórica e estudos filosóficos, que separar isso seria destruir toda a
cultura superior do espírito. Com isso, João remonta aos gregos (Posidônio e
Isócrates), para os quais a Razão e a Oração são a base da moral e da sociedade.
Essas idéias ele expressa na seguinte citação, segundo Curtius (p. 117):
Se alguém conhecer perfeitamente a arte da eloqüência, será perito em
qualquer disciplina em que o interroguem. É desses estudos que parte a
juventude operosa e se envereda, filosofando, em vários caminhos, que, no
entanto, chegam ao mesmo fim, pois a Filosofia tem uma só cabeça.
No auge da escolástica do século XIII, o ideal humanista cultural não
avançou, mas o humanismo italiano do século XIV ganhou novo sopro de vida (p.
116-118).
L.B. Alberti é citado como alguém que aconselhou os pintores para que se
familiarizassem com os poetas e retóricos, pois eles poderiam inspirá-los para a
invenção (inventio) e para a criação de temas pictóricos. Também estabeleceu-se
estreita relação entre a música e a retórica; para Arnold Schering, o sistema musical
fora trasladado da retórica. Curtius garante que a adoção da antiga retórica
contribuiu, até muito além da Idade Média, para a auto-expressão artística no
Ocidente (p. 118).
Nos séculos XVII e XVIII a retórica era uma ciência de grande prestígio e
necessária, inclusive com posição muito firme na Companhia de Jesus. O autor
conclui que a Europa tinha a convicção de que não podia prescindir de um programa
39
de retórica, em constante renovação, que acompanhasse as modernas produções
das belas artes (p. 118-119).
1.9 Portugal do século XVII
Com a morte de D. Sebastião na expedição militar contra Marrocos, em 1578,
e após o falecimento do cardeal D. Henrique, o trono português foi reivindicado por
Filipe II; Portugal e suas colônias passaram para o domínio espanhol. A língua e a
literatura da Espanha tiveram muita influência nesse período, que durou até a
Restauração Portuguesa, em 1640. Grandes nomes brilharam nas letras na terra de
Cervantes, mas a Espanha começava a declinar, impedindo a entrada de novas
idéias vindas, principalmente, da França. O despotismo da Igreja e do Estado
dominaram os espíritos. A literatura, segundo Ferreira (1971, p. 468), consumia-se
no gosto das frases, um pobre recurso dos cérebros sem alimento; foi a época do
império da fraseologia gongórica, com o uso de palavras ocas.
O esgotamento provocado pelas colônias e a dependência política foram
causas da penúria de Portugal no século XVII. Esta época também se caracterizou
pela decadência moral da nobreza e do clero, enquanto o povo, por sua vez, vivia na
miséria, ignorância e fanatismo, onde a intolerância religiosa e o medo da Santa
Inquisição pairavam como uma séria ameaça sobre todos.
Num ambiente assim, a produção das letras sofreu uma inevitável
decadência, pois toda publicação tinha que ter a concordância da censura
eclesiástica e civil; esta censura foi um grande obstáculo para o progresso, pois
limitava a livre manifestação do espírito criativo. O absolutismo não permitia que os
cérebros pensassem. No lugar da literatura original, surgiu a extravagância do estilo,
responsável pela perversão do gosto literário, segundo Ferreira (1971, p. 481).
40
1.9.1 O Barroco
O Barroco surgiu em conseqüência de uma série de acontecimentos do
Renascimento, como o antropocentrismo, o materialismo, o sensualismo. A Reforma
Protestante tinha por objetivo trazer a Igreja de volta à simplicidade da e da
prática cristã, o que provocou um grande cisma na cristandade. A Contra-Reforma
foi a reação católica, no sentido de impedir o avanço da Reforma Protestante, e ao
mesmo tempo, propôs o retorno à espiritualidade medieval, em oposição ao
paganismo do Renascimento.
Essa postura teocêntrica, porém, criou um conflito no homem barroco, pois
ele não queria perder as conquistas renascentistas, mas por outro lado, ansiava
recuperar a religiosidade medieval. A tensão entre o antigo (tese) e o novo (antítese)
forçou a procura de uma conciliação (síntese), muitas vezes difícil de conseguir. Por
isso houve essa dualidade, a tentativa de conciliar e razão, espiritualismo e
materialismo. A própria arte barroca refletiu esse dualismo; primeiro se manifestou
nas artes plásticas, passando depois a outras formas de expressão e influenciando
toda a vida social.
O conhecimento da realidade, no Barroco, operava-se através dos sentidos,
mediadores das impressões sensoriais transmitidas pelas palavras que designam
sensações ligadas aos olhos, aos ouvidos, ao tato, ao olfato e ao gosto. A
efemeridade, a transitoriedade da vida, foi um tema constante; tendo consciência da
sua fragilidade, o homem barroco cedia ao apelo do carpe diem (aproveite o dia
presente), ou tornava-se pessimista, vendo apenas o lado trágico da vida, ou ele
também podia voltar-se à religião; tudo isso podia ser motivo de angústia e
incertezas.
A procura da síntese determinava uma série de características decorrentes
desse fato: largo uso de antíteses e paradoxos; oposição entre realidade material e
espiritual; conflito entre e razão; gosto pelo uso de frases interrogativas; culto ao
contraste e jogo de cores do claro-escuro; dualidade estética expressa pelo
conceptismo e o cultismo. A inversão e a repetição violenta da ordem das palavras,
a ordem indireta, a exuberância de formas, o detalhismo, o gosto pelos raciocínios
41
complexos desenvolvidos a partir de alegorias e narrativas bíblicas, o emprego de
grande número de palavras semelhantes quanto à grafia e à sonoridade, a descrição
de cenas trágicas e grandiosas, tudo isso fazia parte do ideário e dos recursos
amplamente usados para dar expressividade à arte e ao empírico do Barroco.
Pelo que se observa no acima exposto, a arte barroca apresentava algumas
características, no caso da literatura, ligadas ao conteúdo e outras fortemente
marcadas pelo aspecto formal; a ênfase de um ou outro desses aspectos pode ser
constatado no conceptismo e no cultismo, as duas grandes correntes estético-
estilísticas do Barroco.
O cultismo e o conceptismo eram dois estilos literários opostos que se
desenvolveram nessa época na Espanha, passando depois para Portugal. A
realidade abordava-se de duas maneiras diferentes; uma era sensorial e descritiva;
a outra conceptual; a atitude diante do ser era: como é?; a outra, indagava: o que é?
Díaz Plaja (1960, p. 227) declara que o cultismo preocupava-se com a forma,
a riqueza e a ordem das palavras e seu principal fundamento estava voltado aos
sentidos; o conceptismo, por sua vez, tinha como base o fundo, as idéias, deixando
as palavras reduzidas ao indispensável, e os escritos visavam atingir a inteligência.
A linguagem do cultismo foi preciosa e rebuscada, abusava das hipérboles,
hipérbatos, metáforas, antíteses e paradoxos; consistia em um jogo de palavras
dirigido aos sentidos, criando, por vezes, uma falsa realidade. O espanhol Luís de
Gôngora foi um dos grandes poetas cultistas, motivo pelo qual o cultismo também é
conhecido com o nome de gongorismo, embora este termo tenha até sido usado
como sinônimo de Barroco na Espanha. Ferreira (1971, p. 521) assinala que os
gongóricos não estavam interessados em esclarecer a inteligência do auditório, mas
em deslumbrá-lo com antíteses, ambigüidades e fraseologia pomposa dos
conceitos.
O conceptismo era um jogo de idéias e sutilezas, um rebuscamento do
raciocínio, o uso de técnicas de argumentação. Era comum o emprego de antíteses,
paradoxos ou analogias para criar realidades que, mesmo quando contrárias ao
42
senso comum, o raciocínio tinha aparência de verossimilhança pela arte. Um grande
nome do conceptismo na Espanha foi Quevedo. Ele combateu o cultismo por achá-
lo excessivamente carregado de palavras e vazio de idéias.
Outro conceptista espanhol de renome, jesuíta como o P. Vieira em Portugal,
foi Baltazar Gracián. Díaz-Plaja (1960, p. 240) opina que, se Quevedo foi o primeiro
conceptista, Gracián foi o mais extremado, pois converteu esse estilo em doutrina
literária no seu livro Agudeza y arte de ingenio. Por meio de uma alegoria, ele
apresenta o discurso como uma árvore; as vozes seriam as folhas; o conceito, o
fruto. Contra o abuso das vozes do cultismo, o conceptista propunha que o verso
seja extensivamente profundo; significa dizer as coisas mais elevadas e filosóficas
com o mínimo de linguagem. Para Gracián, mais pesam as quinta-essências (o éter,
as coisas mais essenciais) do que farragens (miscelâneas de coisas).
Contudo, ainda que vigorassem esses dois estilos, o cultismo e o
conceptismo podiam coexistir e interpenetrar-se; isto criava um efeito ambíguo e
contraditório, característico da visão barroca de mundo em constante conflito.
1.9.2 O Maneirismo
Sendo que o Barroco espanhol, com o nome de Maneirismo, firmou suas
raízes na época medieval, é mister fazer uma breve retrospectiva desse estilo
literário.
Há os que consideram o Maneirismo um estilo cronologicamente situado entre
o Renascentismo e o Barroco; para outros, a poesia maneirista da Itália e da
Espanha, assim como o preciosismo na França, são fenômenos semelhantes ao
Maneirismo nas artes plásticas.
Curtius (1996, p. 341-374), por sua vez, declara que o Maneirismo foi uma
manifestação artística oposta ao Classicismo e que perpassou os períodos desde a
Antigüidade Clássica; do latim medieval passou às literaturas em língua vulgar,
chegou ao século XVII e enraizou-se firmemente na Espanha; portanto, não surgiu
como produto acabado, mas teve uma história de dois mil anos. O Maneirismo era
43
certa maneira artística que podia expressar-se nas mais diversas formas, sufocando
a norma clássica. Esse estilo é visto como uma tendência literária que estava em
oposição ao equilíbrio de Classicismo e que o degenerava.
Muito do que se chama de Maneirismo, hoje se considera Barroco; por isso
Curtius prefere o termo Maneirismo, pois a palavra Barroco contém muitos
elementos históricos, de aspecto geral. O clássico normal se expressa de forma
natural, adequado ao tema; o risco do Maneirismo tornar o discurso excessivamente,
sem ordem e sentido. Na retórica manifestou-se um germe de Maneirismo
constatado no uso de muitas figuras como hipérbatos, perífrases e metáforas. O
maneirista transgredia as formas normais de expressão; privilegiava artifícios, pois
desejava surpreender, assombrar, deslumbrar. Esse estilo podia manifestar-se na
forma lingüística ou no conteúdo intelectual engenhoso.
Curtius não concorda com a separação entre cultismo e conceptismo;
argumenta que a expressão bem-cuidada é condição preliminar para a eficácia de
idéias engenhosas; ele cita Gracián, que recomendara a agudeza de espírito como
meio para exprimir culturalmente seus conceitos.
Conforme o autor, para a compreensão das palavras arte e engenho, a
invenção, o rigor e a faculdade como as mais valiosas qualidades de um orador;
mas esse engenho pode tornar-se um defeito se não estiver unido ao discernimento,
ao juízo. O maneirismo do fim da Antigüidade e da Idade Média, entretanto,
enfraqueceu a influência de Quintiliano, principalmente na Espanha, de forte
influência medieval. Marciano Capela, como mestre do Ocidente latino, relatou a
introdução da matrona Retórica numa alegórica assembléia dos deuses,
descrevendo o efeito do seu discurso e admirava o engenho inventivo, a eloqüência,
a memória, a ordem, a modulação da pronúncia e movimentos dos gestos
3
;
aparecem aqui os aspectos mais brilhantes da retórica, a essência da invenção
(procura por argumentos) no engenho, dois conceitos fundamentais do maneirismo.
1.9.3 A Contra-Reforma
3
Conforme página 35
44
A perda de fiéis, em conseqüência da Reforma Protestante, levou a Igreja
Católica a se organizar num movimento denominado Contra-Reforma, partindo
principalmente da Espanha (onde o catolicismo e a pátria formavam uma unidade
inseparável) e Portugal, países que ainda conservavam uma forte tradição do
cristianismo medieval.
Frente a aquilo que se considerava uma ameaça à unidade do mundo
católico, a Igreja católica expressou claramente os limites que a separavam das
novas doutrinas; confirmou o princípio da unidade com a conservação do latim para
o culto em todos os países; reafirmou o poder supremo do sumo pontífice como
pastor universal e único intérprete das Escrituras; corruptos foram expulsos da Igreja
e a venda das indulgências proibida; foram fundadas ordens religiosas com severas
disciplinas que dependiam diretamente do Papa; foi criada a Comissão do Index,
encarregada de examinar os livros publicados e elaborar um catálogo de obras, cuja
leitura ou posse era vedada.
Para tomar posição frente à Reforma Protestante, a Igreja Católica convocou
o Concílio de Trento, uma grande assembléia de prelados, cujas sessões
realizaram-se, com grandes intervalos, de 1545 a 1563. Embora decidisse a favor de
uma melhor preparação do clero e a depuração dos costumes, o Concílio manteve
os dogmas medievais e aquilo que causou a Reforma Protestante.
O Concílio de Trento também revigorou o Tribunal do Santo Ofício ou Santa
Inquisição, criado no século XII; tinha o objetivo de investigar e combater as
heresias. O costume de queimar os hereges em autos-de-fé fora instituído pelo Papa
Inocêncio IV, em 1252. Eram crimes para o Santo Ofício: judaísmo, heresia
protestante, feitiçaria, usura, blasfêmia, bigamia, entre outros. Aquele que tinha
ciência da prática desses fatos e não denunciava, também sofria a punição. Até
denúncias anônimas, de testemunhas de ouvida ou denúncias de meros indícios ou
presunções eram aceitas. Ao preso não era comunicado o motivo da prisão, nem o
nome do denunciante; o defensor era nomeado pelo próprio Tribunal; os réus que se
declaravam arrependidos eram absolvidos, sob o juramento de jamais declarar o
que acontecera portas adentro da Instituição; quebrar esse segredo era comparado
45
ao crime de heresia. Os que persistiam em negar a Cristo eram queimados vivos. A
pena dos condenados recaía também sobre os descendentes por algumas
gerações, sendo que não poderiam exercer funções na Igreja, no Estado, usar jóias
valiosas, nem andar a cavalo; a conseqüência da transgressão de uma falta grave
resultava em confisco de bens. Os autos públicos eram realizados com grandes
pompas festivas na praça da cidade, às vezes em homenagem aos monarcas.
O Tribunal da Santa Inquisição foi muito ativo na Espanha a partir de 1480, e
em Portugal foi instituído em 1536. O solo espanhol foi regado com muito sangue
nos 18 anos do comando de Torquemada. Nos Países Baixos, o Santo Ofício, sob o
comando do Duque de Alba, executou 1800 indivíduos em 3 meses e após a tomada
de Haarlem, foram massacrados 15000 sitiados.
Referente à perseguição em Portugal, Ferreira (1971, p. 470) sustenta:
Ninguém estava forro de tão sanguissedento tribunal. Os espiões não
afrouxavam a vigilância, os fanáticos acorriam a declarar os suspeitos. Por
um vago dito de anos, um gesto inconsiderado, qualquer pessoa poderia
ver-se sepultada viva nos ergástulos do Santo Ofício. Estão publicados nos
processos contra alguns homens eminentes da literatura nacional. Neles se
descobrem a mesquinhez das acusações e o perigo que a todos cercava.
Um terror pânico devia estrangular as almas.
Um exemplo, entre muitos outros, foi o julgamento e condenação do P. Vieira,
após um longo processo, porém, absolvido posteriormente.
Esse implacável Tribunal, poderoso instrumento da Contra-Reforma,
espalhava medo, castigo e morte, com o objetivo de dominar as consciências dos
desprotegidos mortais.
No quadro abaixo são comparadas crenças e práticas reapresentadas pela
Contra-Reforma com as que foram propostas pela Reforma Protestante:
46
Crenças e/ou
práticas religiosas
Contra-Reforma Reforma Protestante
Número de sacramentos 7 2
Transubstanciação: presença efetiva do
corpo e sangue de Cristo na hóstia
Consubstanciação: presença espiritual de
Cristo nos elementos e na Palavra
Transubstanciação Consubstanciação
Elementos da comunhão para os fiéis Hóstia Hóstia e vinho
Imagens da Virgem Maria e dos santos Sim Não
Norma de fé: Bíblia e tradição (Resoluções
dos Pontífices e concílios)
Bíblia e tradição Bíblia
Tradução da Bíblia na língua do povo Não Sim
Idioma do culto religioso Latim Língua do povo
Casamento do clero Proibido Livre opção
Index de livros proibidos Sim Não
Tribunal para reprimir hereges Sim Não
Autoridade infalível Sumo pontífice Cristo, presente na
Igreja
Meio de alcançar a salvação Fé, graça, obras Fé, graça
Quadro 5 Comparação entre as crenças religiosas da Contra-Reforma e da
Reforma Protestante, conforme Astolfi (1964) e outros.
1.9.4 A Companhia de Jesus
As ordens religiosas preconizavam um estilo de vida em comunidade para
alcançar uma maior espiritualidade pela disciplina moral. Seus membros assumiam
livremente votos de obediência, castidade, pobreza, mendicância, estudos
teológicos, educação ou outros, conforme a finalidade de cada ordem.
Assim, surgiram muitas ordens com seus mosteiros. São Bento de Núrcia
(480-547) fundou a ordem dos beneditinos, cujos monges eram ordenados como
clérigos e enviados como missionários a vários países. No final do século XI foi
criada a ordem dos cartuxos e a dos cistercienses. As primeiras ordens mendicantes
datam do século XIII; preconizavam o retorno às fontes evangélicas e a luta contra
os hereges; foram as seguintes: carmelitas (1207), trinitários descalços (1209),
franciscanos (1218), Servitas de Maria (1233), agostinianos (1256), mínimos (1435)
e hospitaleira de São João de Deus. As ordens mendicantes tiveram privilégios
especiais, sem obrigações paroquiais. Os beneditinos eram da corrente ascética e
47
defendiam o isolamento do mundo; os trinitários davam ênfase nas diferentes ações
no mundo.
A Companhia de Jesus, cujos membros eram chamados jesuítas, foi fundada
por São Inácio de Loyola (1491 1556). Ele foi um gentil-homem vasco de Loyola
(Espanha), chamado Ignácio Lopes de Recalde. Ferido gravemente em ambas as
pernas na luta contra os franceses, durante sua longa convalescença dedicado à
leitura e meditação sobre a vida dos santos, decidiu consagrar-se inteiramente à
religião. Uma vez restabelecida sua saúde, depositou sua espada aos pés de Nossa
Senhora de Monserrat, foi a Paris, onde obteve o diploma de doutor em teologia,
após seis anos de estudo. Junto com outros seis companheiros de grande ardor
religioso, no dia 15 de agosto de 1534, fundou a Ordem, confirmada pelo Papa em
1540. Além dos votos de obediência, castidade e pobreza houve o compromisso da
submissão total ao papa e uma rigorosa disciplina de caráter militar, sob as ordens
de um superior, o general, além de exigências de ordem intelectual. Os Exercícios
espirituais, formulados por Loyola, impunham uma atitude de meditação sobre os
sofrimentos de Cristo e as penas do inferno; visavam formar certa mentalidade de
luta contra os adversários da Igreja e foram uma poderosa ferramenta psicológica de
adestramento e submissão.
Os jesuítas tiveram forte atuação na Europa e nas suas colônias. Ao Brasil,
chegaram em 1549, desenvolveram intensas atividades de evangelização e
educação, primeiro em São Paulo, depois na Bahia e Maranhão. Mais tarde, devido
ao surgimento de forte oposição religiosa e política, os jesuítas foram expulsos de
Portugal e Brasil (1759), França (1764), Espanha (1767) e finalmente, a ordem foi
suprimida pelo papa Clemente XIV (1773), mas foi restaurada por Pio XII (1814).
Como não se retiravam em conventos, seus padres eram chamados seculares.
Dentre todas as ordens surgidas a partir do século XVI, como os lazalistas ou
padres da missão (1625), os sulpicianos (1641) e os lassalistas (1680), nenhuma
delas teve influência tão marcante na religião, na política, na educação e na
sociedade em geral, na época da Contra-Reforma, como a Companhia de Jesus.
48
Aos objetivos originais, a luta contra os hereges e a expansão missionária, os
jesuítas acrescentaram outros, pois fundaram casas de noviciados, asilos e
hospitais. Mas foi através da ação pedagógica desenvolvida nas suas escolas e
seminários, por eles criados, que os resultados foram de maior alcance e
visibilidade. Inúmeras gerações de jovens foram moldados durante mais de 200
anos. Como conseqüência da sua luta pelo monopólio do ensino, em 1749, havia
669 colégios jesuítas espalhados no mundo. A educação esmerada compartida aos
filhos das famílias ricas, resultou na formação de pedagogos, professores, capitães,
confessores, cardeais e altos dignatários da Cúria. Até futuros papas estavam entre
os ilustres egressos dessas prestigiosas instituições de ensino.
Salomão (In: VIEIRA, 2001, p. 54) salienta que os jesuítas tomaram para si a
responsabilidade de formar um elite européia, cujo denominador comum foi o estudo
de Aristóteles, a retórica ciceroniana e a prática dos exercícios espirituais de Inácio
de Loyola, o fundador da Ordem. Marc Fumaroli, citado pela autora a continuação
(p. 54-55), opina que, com relação ao processo pedagógico dos jesuítas, é possível
falar de uma “arma pedagógica”, à semelhança de um quartel-general em Roma que
tinha por objetivo a instrução e a ocupação de territórios conquistados; isto seria
feito pelos seguintes agentes e meios: os príncipes, com as armas; os núncios, com
a diplomacia; os missionários, com a eloqüência, enraizando a cultura e a
romanas; o espaço geográfico desse grande projeto incluía não apenas a Europa,
mas o mundo todo.
A rede de colégios criados em Roma com o incentivo dos papas Gregório XIII
e Sixto V, foram, de fato, de fundamental importância para poder atingir seus
objetivos, ainda mais, se for analisada a forma de sua ação pedagógica.
A eficiência da pedagogia dos jesuítas, própria aos seus interesses, tinha dois
eixos principais: o preparo rigoroso dos mestres e a uniformização da ação. Quanto
aos cursos, o aluno vencia os estudos inferiores, composto de duas etapas de três
anos cada uma; primeiro cursava letras humanas de grau médio e depois, filosofia e
ciências. No estudo superior, estudava-se teologia e ciências sagradas, em quatro
anos, destinadas à formação dos padres. As práticas e conteúdos foram
determinados pelas normas dos planos de estudos e pela pedagogia próprias.
49
O Colégio Romano, em Roma, centralizava os relatórios das experiências
pedagógicas de todas as partes do mundo. Tomando como base essas informações,
foi elaborado o Ratio Studiorum, uma espécie de plano de ensino, introduzido em
todas as instituições de ensino, em 1599, orientando todo o período de educação.
As diversas experiências foram avaliadas e codificadas; prescrevia-se os conteúdos
e a normatização de todo o processo pedagógico. O documento era acessível a
todos, desde o provincial, até o mais humilde ajudante que não pertencia à Ordem.
Outros dois fatores relevantes da tentativa de atingir o ideal de unidade do
pensamento e ação, foi o intenso intercâmbio de correspondências entre os
membros da Companhia, e a divulgação de um manual completo, contendo normas
gerais e informações bibliográficas para o ensino, do Padre Jouvency.
A didática era rigorosa e exigia-se muito esforço do aluno; a repetição dos
exercícios tinha por objetivo facilitar a memorização. Os melhores alunos ajudavam
ao professor a tomar as lições dos seus colegas, havendo registro dos acertos e
erros. Aos sábados, nas classes inferiores aconteciam as sabatinas, repetições de
lições da semana; houve também competições entre alunos e classes, que eram
torneios de erudição, orais e escritos, desenvolvendo o espírito de competição e
aguçando a capacidade dialética, não faltando premiações em solenidades
pomposas.
O latim era um instrumento de universalização da cultura clássica e medieval,
motivo pelo qual era estudado de forma exaustiva, até que o aluno tivesse o domínio
completo da língua para poder usá-la em qualquer ocasião. A disciplina era rígida a
fim de garantir a proteção e a vigilância; as férias eram curtas para evitar as
influências contrárias aos comportamentos esperados. O cumprimento das rígidas
normas de disciplina tinha sucesso porque a base do comportamento de todo
militante jesuíta estava na obediência irrestrita e incondicional. Ferreira (1971, p.
529) reproduz um arrazoado a esse respeito, do jesuíta Afonso Rodrigues, nos
seguintes termos:
Nenhum meio é tão eficaz para alcançar a perfeição na obediência como
fazermos de conta que Deus é o Superior e que Ele nos manda; e que
50
obedecendo nós ao Superior não obedeceremos a um homem senão a
Deus.
A retórica foi mantida como uma disciplina maior que incluía as outras, pois o
ensino visava à preparação do orador. Houve preocupação com a pedagogia da
oratória sacra. Existiam índices textuais, a retórica das citações, com máximas e
conceitos organizados de forma sistemática para melhor manuseio.
Mendes (In: VIEIRA, 1978, p. 19) chama a atenção para a diferença entre um
sermão lido e a sua efetiva apresentação, quando pregado, que ela chama
espetáculo teatral da pregação. A autora, para descrever os recursos da oratória que
se desenvolvem na formação nos noviciados, os técnicos da eloqüência, ela a
palavra a J.L. de Azevedo:
Diariamente exercícios de memória, com textos decorados do Antigo e Novo
Testamento; e os de declamação, que na língua da Companhia se
denominavam repetição dos tons para as inflexões do púlpito. Instrução
sobre o porte e ademanes, sobre o andar, o riso, a voz, a posição das
mãos, a direção do olhar, o modo de compor o vestido. Os lábios não
devem estar contraídos nem em demasia nem abertos. Evite-se o franzir da
testa ou do nariz, pois cumpre que se leia no rosto, espelho da alma, a
serenidade interior. Tudo isso se acha especificado em regras escritas que
o noviço tem de conhecer e praticar.
A prática dos jesuítas foi determinante na segunda metade do século XVI até
a primeira metade do século XVIII; eles foram agentes da nova política religiosa e
cultural em consonância com as deliberações do Concílio de Trento. Os seus
sacerdotes eram aguerridos militantes, ao ponto de sofrerem certa
despersonificação, mas dispostos a vencer. Uma parte da epopéia na intervenção
política, na evangelização, na pedagogia, na literatura, foi escrita pela vida e obra do
Padre Antônio Vieira, de quem tratará o próximo ponto.
1.9.5 O Padre Antônio Vieira
Nascido em Lisboa, em 1608, o P. Vieira veio ao Brasil, à Bahia, em 1614.
Iniciou seu noviciado no colégio dos jesuítas, em Salvador, aos 15 anos; em 1626
assumiu uma cadeira de retórica em Olinda, e aos 27 anos foi ordenado sacerdote.
51
Durante 5 anos esteve no sertão adentro ensinando os índios na sua própria língua.
Em 1641 partiu para Portugal, tornando-se pessoa de confiança do novo rei, D. João
IV. Voltou ao Brasil, em 1652, como missionário; expulso do Maranhão, retornou a
Portugal, onde sofreu perseguições políticas, e a condenação religiosa por parte da
Inquisição; após sua absolvição, pregou com sucesso em Roma, de 1669 a 1675.
Os seus últimos 16 anos viveu no Brasil, onde foi nomeado Visitor da Província do
Brasil, dedicando-se ao preparo dos seus sermões para serem publicados; faleceu
na Bahia, com 89 anos de idade.
O P. Vieira foi, sem a menor sombra de dúvida, uma das maiores figuras do
século XVII, seja como escritor, orador sacro, missionário ou como estrategista
econômico e político. Dotado de uma inteligência privilegiada, foi capaz de
compreender os problemas cruciais da sua época. Tratava com desenvoltura,
maestria e firmeza as questões religiosas, morais, políticas, sociais e econômicas.
Sendo polêmico, de gênero combativo, enfrentava seus adversários com coragem e
redobrada energia; homem de ação, estava sempre pronto para atacar ou se
defender dos seus opositores. Por se tornar pregador da corte e confidente do rei,
atribuindo-lhe certos encargos diplomáticos, despertou a inveja e ambição de
políticos e cortesãos.
O manuscrito As esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, foi a
base para Vieira ser condenado pela Inquisição. Ele aceitava o mito do
Sebastianismo, baseado nas trovas de Bandarra, um sapateiro de Troncoso;
segundo essa crença, D. Sebastião (morto na luta contra os mouros em 1578)
ressuscitaria, se bem que Vieira mais tarde transferiu essa volta para D. João IV, e
depois para o seu sucessor. Em conseqüência do seu pragmatismo, o jesuíta queria
tolerância para os cristãos-novos, a fim de conseguir apoio financeiro para Portugal;
a imigração dos judeus traria grandes fortunas ao país, o que realmente aconteceu.
O processo do julgamento de Vieira durou vários anos; em 1667 foi condenado pelo
Tribunal do Santo Ofício por heresia judaizante. A respeito dos fundamentos e da
própria condenação, Ferreira (1971, p. 27) expressa sua desaprovação com as
seguintes palavras:
52
Isto se narra no processo do mais ilustre orador do século XVII, inteligência
profunda e glória da Companhia de Jesus! Ficou prisioneiro do Santo
Ofício... Assim pagava o réu a generosa e patriótica defesa que votara à
nação judaica. A tolerância, filha dileta de Jesus, era então crime expiável
nos calabouços.
No Brasil, Vieira dedicou-se totalmente ao trabalho missionário; atuou
incansavelmente no Maranhão, chegando até Pará; tinha em mira a conversão do
gentio na sua própria língua, tendo, inclusive, redigido os rudimentos do Catecismo
em seis dialetos indígenas; granjeou-se a confiança dos nativos, que o chamavam
“pai grande”, na língua deles. A preocupação pelo Brasil levou-o a buscar solução
para problemas de âmbito geral, como a invasão holandesa; engajou-se com sua
palavra na luta pela expulsão dos invasores; mais tarde, porém, pensando no
desenvolvimento econômico do país, ele propôs um acordo comercial com os
holandeses, em troca de sua permanência em Pernambuco. Outra proposta era a
criação de duas companhias de comércio, uma para o Oriente e a outra para o
Ocidente. Esta última foi criada e favoreceu muito o comércio.
Um grave problema enfrentado, cuja solução Vieira se empenhou com uma
tenacidade ímpar, foi a questão da escravidão dos negros e índios. Com relação aos
primeiros, denunciou o aviltamento das péssimas condições humanas, embora ele
se rendesse ao princípio da época do cativeiro justo, pois as leis civis e religiosas
impediam a liberdade, mas isto era compensado, segundo ele, com a sua
conversão. Quanto aos índios, Vieira advogava a favor da sua liberdade, mas
temporariamente deviam estar nas colônias dos jesuítas, para depois, como
cristãos, serem integrados na sociedade. Isto não agradou aos colonos, pois nas
entradas aos sertões os índios foram caçados aos milhares e vendidos como
escravos aos colonos. O “pai grande” teve que pagar caro pela defesa aos índios,
pois a sede dos jesuítas foi invadida e os missionários expulsos, temporariamente.
Vieira levou todos esses fatos ao púlpito.
Como prosador, Vieira é considerado o maior, o mais rico, o mais fluente e o
mais expressivo. O vigor do seu pensamento está materializado nos seus pareceres,
tratados proféticos, discursos, cartas e, principalmente, nos seus Sermões, estes em
torno de 200. Na falta de outros meios de divulgação, o púlpito foi a tribuna
53
privilegiada do destemido orador, que ele usava com liberdade; funcionava como
uma fortaleza da qual Vieira, com suas alegorias, lançava seus dardos de fogo
contra seus adversários, motivo pelo qual, os Sermões são um retrato da época, que
para esse lúcido pregador estavam dominados pela ambição econômica, pela
insensibilidade ante o sofrimento do escravo, pelo espírito de intriga, pelo abuso do
poder, pelo jogo de interesses e pelo relaxamento dos costumes (AMORA, in:
VIEIRA, 1975, p. 11).
Mesmo que se considere a prosa de Vieira ainda não superada, devesse
levar em conta que ele não era um intelectual livre; estava preso ao absolutismo real
e eclesiástico e pelo rigorismo da sua Ordem; seus escritos (como de resto sua vida
e obra) mostram um vassalo fiel, um católico convicto e um jesuíta dedicado.
Seguindo os meandros da dialética, esmerava-se em harmonizar os textos bíblicos
com suas teses, sempre empenhado numa ardente luta em defesa do reino, da
Igreja e da sua Ordem.
Vieira possuía a singular capacidade de converter suas idéias em fortes
argumentos teológicos por meio de um rebuscado processo de harmonização de
analogias entre textos da Bíblia e o fato histórico do seu tempo em apreço; usava
essas explicações tanto para pregar a respeito do maravilhoso e sobrenatural, como
para corrigir os costumes da época. Nas suas pregações valia-se da aplicação literal
das Escrituras, mas principalmente, das interpretações figurativas. Notamos casos
nos quais Vieira força a interpretação de textos, na sua incansável procura por
autoridade para sua argumentação. Outras vezes, o raciocínio torna-se tão sutil que
compromete a sua compreensão; também aparecem casos insólitos, difíceis de
aceitar. Em face desse método de interpretação de Vieira, Gomes (In: VIEIRA, 1975,
p.8) assim se expressa: “... apesar dos excessos a que foi consecutivamente
impelido pela imaginação poética, o pregador nunca sacrificava a base fundamental
de seus raciocínios, cuja lógica subsiste a todas as audácias.”.
Quanto à linguagem, Ferreira (1971, p. 529-530) caracteriza a oratória da
prosa de Vieira, afirmando que sua linguagem é aprazível, viril; o estilo flui enérgico,
de ritmos fortes, expressões vigorosas; seus lábios não se emocionavam, mas
discutiam, expunham raciocínios, demonstravam; as criações era vivas e envolviam
54
os sentidos; o vocabulário era abundante e próprio, usado de forma precisa, numa
sucessão rítmica de idéias.
Mendes (In: VIEIRA, 1978, p. 21-22) aponta certas características da
linguagem de Inácio de Loyola, presentes nos seus Exercícios espirituais, que foram
incorporadas e assimiladas no sermonário de Vieira. Para Mendes, é uma linguagem
freqüentemente interrogativa, como no discurso da oratória, seja para manter o
contato com o auditório, para fazer progredir o discurso ou para questionar; o próprio
Deus é muitas vezes questionado ou algum interlocutor fisicamente ausente. Outra
característica, reflexo dos Exercícios, a serviço do parenética (discurso moral,
exortação) consiste na divisão em partes com excessivas delimitações da matéria,
seguindo o exemplo escolástico; esse impulso incontido da divisão de todas as
partes tinha em vista a ocupação de todo o espaço mental, transformando o discurso
numa árvore com ramificações binárias, como um organograma, segundo Barthes,
citado aqui pelo autor. Os Exercícios também sugerem o uso de imagens sensoriais,
que dariam suporte concreto às meditações sobre cenas bíblicas ou da tradição
religiosa; a origem dessas imagens, portanto, não se reveste de um caráter
espontâneo, resultado da imaginação, mas em Vieira funcionam como alegorias.
Das imagens sensoriais, a da visão recebe maior destaque.
O processo imagístico define o estilo retórico de Vieira; suas metáforas
desdobram-se em diversas alegorias; o orador ornava seus discursos com recursos
da língua como hipérboles, homonímias, trocadilhos, perífrases, causando impacto
no auditório, tudo cuidadosamente calculado para conseguir o efeito da persuasão.
Vieira foi considerado conceptista. No prefácio do primeiro volume dos
Sermões, ele aconselhava que não o lessem os que gostavam da afetação, da
pompa das palavras e do estilo chamado culto. Lançava duras críticas contra o
cultismo, como fizera no Sermão da Sexagésima, conforme será mostrado mais
adiante. Mas, apesar da violenta condenação, o próprio Vieira não estava imune aos
vícios desse estilo, conforme é possível verificar nos artifícios formais por vezes
utilizados, prejudicando a clareza do seu estilo.
55
Os Sermões converteram-se em modelos a serem seguidos do “método
português” de pregar, oposto a outros, como o “método francês” representado por
Bossuet; esses sermões foram exaustivamente estudados nos colégios e publicados
em numerosas edições.
2 O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA E SUAS FONTES
56
Vieira: “Profundo e seguro foi seu saber das doutrinas em que se fundou,
para defender suas teses; muito claras foram suas idéias e nítidos os seus
raciocínios”.
Antônio Soares amora (In: VIEIRA, 1975)
Nesta parte da presente pesquisa do Sermão da Sexagésima, serão
apresentados aspectos relacionados a circunstâncias e ao conteúdo do Sermão,
bem como será feito um levantamento das fontes, que por sua vez, servirão como
argumentos de autoridade.
2.1 Resumo do Sermão
O texto de Pécora (In: VIEIRA, 2001, p. 27-52, v.1), adotado no presente
trabalho, é precedido pelo seguinte resumo daquele estudioso:
O sermão volta-se para sua própria composição e examina os 3 concursos
essenciais que nele (Graça, pregador e ouvinte), para saber qual deles
pode ser causa de falta de eficácia dos sermões contemporâneos na
reforma dos cristãos. Admitida que a falta apenas pode ser do pregador,
examina as suas 5 “circunstâncias” (pessoa, estilo, ciência, matéria e voz) e
admite em todas a existência de faltas graves, embora nenhuma delas
possa ser tomada como causa principal do fracasso do sermão. Este deve-
se sobretudo ao “falso testemunho” do pregador que, embora utilizando
palavras de Deus, não as toma em seu sentido original, mas distorce-as
segundo seus interesses e o propósito de agradar ao auditório, em vez de
denegá-lo e reformar os seus costumes como é sua obrigação.
4
2.2 Aspectos exteriores ao Sermão
Consta no próprio cabeçalho, antes do texto bíblico, que o sermão foi pregado
na Capela Real, Lisboa, em 1655, após a chegada de seu autor da missão do
Maranhão e antes de ele voltar para lá com novas ordens reais.
Na época da restauração portuguesa com D. João IV, em 1640, Vieira partiu
da Bahia para Portugal e durante 13 anos ele atuou como uma espécie de ministro
de extrema confiança junto a El-Rei, tendo desempenhado diversas funções
políticas e diplomáticas na Europa.
4
Grifo do autor.
57
Após ter sido impedido de viajar por ordem do próprio monarca, finalmente,
em 1653, o padre jesuíta iniciou seus árduos trabalhos missionários entre os índios
do Maranhão. Nesses dois anos de permanência na missão indígena, até a
pregação do sermão da Sexagésima, ele enfrentou problemas muito difíceis.
O nome do sermão teve sua origem na época em que foi pregado durante o
calendário eclesiástico. O domingo de Páscoa era precedido pelos 40 dias da
Quaresma, que iniciava na Quarta-Feira de Cinzas. A Sexagésima ocorria duas
semanas antes do primeiro domingo da Quaresma. No fim do presente sermão, o
auditório foi lembrado dessa circunstância quando o pregador declarou: “Estamos às
portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de
Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios (...)”.
2.3 A Parábola do Semeador
Para Aristóteles, como referido
5
, a parábola, junto com a fábula, faz parte
dos exemplos.
C.H. Peisker (IN: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
DITNT, 1983, p. 449) cita a afirmação de Aristóteles, de que o símile e a pura
parábola serviriam como meios introdutórios de prova, acrescentando que, por meio
da comparação entre o conhecido e o desconhecido, o próprio ouvinte deveria
descobrir a semelhança, para chegar ao ponto essencial da analogia.
Tendo em vista as parábolas bíblicas, Júlio P. T. Zabatiero, na obra supra
mencionada (p. 452), define a parábola nos seguintes termos:
A parábola é um gênero literário que, formalmente, consiste de uma história
‘típica’
6
, tirada da realidade cotidiana do ouvinte e lhe oferecendo um
exemplo de comportamento ao qual reagir. Pode, também, consistir da
natureza. Mas a parábola é mais do que uma mera forma. Tem uma força
persuasiva muito grande (...). Três elementos são essenciais na parábola:
um ponto de contato com a realidade do ouvinte, a resposta (ou reação) do
5
Conforme página 29
6
Grifo do autor.
58
ouvinte, e um conjunto de temas teológicos no âmbito da história ou
comparação que forma o ponto de contato entre as duas esferas da
realidade representadas na narrativa.
A parábola, portanto, é uma história ou expressão de caráter espiritual,
exemplos tirados da vida humana normal. Na alegoria todos os detalhes têm
significação, o que geralmente não acontece na parábola.
No método de ensino de Jesus predominava o uso de parábolas; estas
podem ser divididas em dogmáticas, morais e proféticas. Os evangelhos registram
aproximadamente 40 parábolas e não menos de 20 declarações parabólicas. As
parábolas de Jesus, segundo o Dicionário da Bíblia ecumênica (1980, p. 107)
(...) são fantásticas, são vivas, insinuantes, fáceis de serem guardadas na
memória (...) eram um modo de ensinamento perfeito e eficaz, ao mesmo
tempo que revelavam a doutrina para os que ainda não estavam preparados
para recebê-la.
O texto bíblico do Sermão é de São Lucas, o terceiro Evangelho sinótico,
capítulo 8; refere-se a uma das parábolas mais conhecidas de Jesus, a do
semeador. O versículo 11: “A semente é a palavra de Deus”, foi constantemente
repetido, em latim, no sermão. Enquanto o semeador espalhava os grãos na terra,
algumas sementes caíram no caminho e foram comidas pelos pássaros; as que
caíram nas pedras com pouca terra, nasceram, mas logo o sol as secou por falta de
raízes; as que caíram nos espinhos, nasceram, mas foram sufocadas; finalmente, os
grãos que caíram em boa terra tiveram um ciclo de desenvolvimento normal, com
resultados diferenciados.
A parábola do semeador está registrada nos Evangelhos de S. Mateus, S.
Marcos e S. Lucas. Vieira cita a passagem de S. Lucas, capítulo 8, do versículo 5 ao
15. O teor da parábola e o seu significado alegórico, contada por Jesus, é o
seguinte:
Saiu o que semeia, a semear o seu grão: e ao semeá-lo, uma parte caiu
junto ao caminho, foi pisada, e a comeram as aves do céu. E outra caiu
sobre o pedregulho: e quando foi nascida se secou, porque não tinha
umidade. E a outra caiu entre os espinhos, e logo os espinhos que
nasceram com ela, a afogaram. E outra caiu em boa terra: e depois de
nascer, deu fruto, cento por um. Dito isto, começou a dizer em alta voz:
Quem tem ouvidos de ouvir, ouça.
59
A semente é a palavra de Deus. A que cai à borda do caminho, são aqueles
que a ouvem: mas depois vem o diabo, e tira a palavra do coração deles,
porque não se salvem crendo. Quanto à que cai em pedregulho, significa os
que recebem com gosto a palavra quando a ouvirem: e estes não têm
raízes: porque até certo tempo crêem, e no tempo da tentação voltam atrás.
E a que cai entre espinhos: estes são os que a ouviram, porém indo por
diante, ficam sufocados dos cuidados, e das riquezas, e deleites desta vida,
e não dão fruto. Mas a que cai em terra boa: estes são os que ouvindo a
palavra com coração bom, e muito são, a retêm e dão fruto pela paciência.
(Bíblia Sagrada, Edição Ecumênica, 1972).
Pelo exposto por Jesus a seus discípulos, em particular, esta parábola trata
do efeito da palavra de Deus na vida do ouvinte, decorrendo daí quatro atitudes
diferentes, ou melhor, apenas duas: os que não dão frutos e que dão, isto é, os que
não se emendam e os que abandonam seus vícios, e consequentemente, praticam a
virtude.
2.4 O conteúdo do Sermão
Desmontando o sermão, pode-se afirmar que, tendo como base o texto
bíblico citado, Vieira tem como alvo os pregadores (como ele) e seus sermões;
questionava o motivo de tão pouco resultado das muitas pregações. Mas antes de
abordar diretamente o assunto, ele faz uma longa introdução preparatória de
fundamentação, constante de várias páginas.
Assim se apresenta a parábola do semeador, com suas divisões em forma de
alegorias, conforme foi reproduzida por Vieira no Sermão:
LUGAR ONDE A TIPOS DE CORAÇÕES DESTINO DA PALAVRA
60
SEMENTE CAIU
Espinhos Embaraçados com
cuidados, riquezas,
deleites
Afogou-se
Pedras Duros, obstinados Sem raízes, secou-se
Caminho Inquietos, perturbados Pisada, desatendida,
desprezada
Terra boa Bons Prende-se, frutifica
Quadro 6 – A parábola do semeador em forma de alegorias.
Nessa introdução cita-se o início da parábola, que diz: “Saiu o que semeia, a
semear seu grão (...)”. Disto foi destacada a idéia de sair e semear. No dia do juízo
será levado em conta se o pregador apenas semeou (pregou) ou se também fez
muitos passos (saiu) como missionário entre outros povos. Do mesmo versículo
Vieira enfatiza o verbo sair e o aplica aos missionários, sugerindo que saiam a
pregar, mas que não voltem. Ilustrou isso com a descrição da visão do profeta
Ezequiel da carruagem que seguia somente para frente em direção aos quatro
pontos cardeais. Pode haver toda sorte de resistências, como no caso do semeador;
são dificuldades impetradas por criaturas racionais (homens), sensitivas (animais),
vegetais (plantas) e insensíveis (pedras). A desgraça do trigo foi que os homens o
pisaram, as aves o comeram, os espinhos o afogaram e as pedras o secaram.
Todas estas “criaturas”, porém, representam pessoas às quais deve ser pregado,
conforme a ordem de Jesus em Marcos, capítulo 15.
Vieira volta ao trigo da parábola que foi mirrado, afogado, comido e pisado.
Tudo isto também sofreram os pregadores durante anos (1643-1665) no Maranhão,
onde ele também atuara e para onde ele voltaria. os missionários passaram
fome, perseguição e muitos deram sua vida pela causa. Diante disso, o que fazer?
Sair da missão e voltar, como no seu caso, não significa abandono, mas
instrumentalizar-se para retirar os obstáculos quando voltar. O pregador, portanto, a
exemplo do semeador da parábola, continua a “semear” com esperança. Como o
semeador não desistiu apesar de ter sucesso apenas em uma das quatro partes
semeadas, assim Vieira anima os pregadores a arriscarem o último quartel de suas
vidas para que possam ver flores e frutos.
61
O semeador colheu muito da quarta e última sementeira; assim, o outono da
vida pode dar muitos frutos.
FLORES NO OUTONO
SEPARADAS DO TRONCO PEGADAS AO TRONCO
Não dão frutos
DESTINO
caem
secam
murcham
levadas pelo vento
Dão frutos
CARACTERÍSTICAS
venturosas
discretas
duram
aproveitam
assustam o mundo
Quadro 7 – Flores do outono da vida, segundo Vieira.
No final da quarta página da introdução segue a pergunta central que será
respondida no decorrer do sermão: se a palavra de Deus é tão eficaz e poderosa,
por que vemos tão poucos frutos? Diz o texto bíblico que a semente que caiu em
terra boa deu fruto, cento por um, significando isto para Vieira, que de cada cem
sermões pregados, uma pessoa será salva; mas ele afirma que se contentaria se um
homem se convertesse a cada 100 sermões; lamenta que no seu tempo não haja
tantas conversões como antigamente; finalmente declara que vai aprender a pregar
e que o auditório aprenda a ouvir.
Preparado para a resposta à pergunta do sermão, o seu autor ensina que a
conversão de uma alma é uma forma de se ver a si mesmo. Para isso são
necessários: espelho, é o pregador persuadindo com a doutrina; olhos, é o ouvinte
entendendo, percebendo; luz, é Deus iluminando por sua graça. O quadro abaixo
resume essas idéias:
62
É NECESSÁRIO PARA UM HOMEM
SE VER SE CONVERTER
AÇÃO MEIO
espelho pregador persuadindo doutrina
olhos ouvinte percebendo entendimento
luz Deus iluminando graça
Quadro 8 – Elementos da conversão, segundo Vieira.
Não podemos culpar a Deus pela falta de conversão do homem. A semente
nasceu em três dos quatro casos. O clima ou falta de chuva não influíram para não
haver frutos nos espinhos e nas pedras. Deus é generoso; como manda chuva e sol
a todos, assim Ele concede a sua graça para a salvação. Mesmo que a palavra de
Deus não produza frutos nos ouvintes, ela faz efeito, como a semente que caiu nos
espinhos e nas pedras. Isto significa que nos ouvintes de entendimento agudo
(espinhos) e nos de vontades endurecidas (pedras) a palavra de Deus faz efeito,
pois nasce e poderia dar fruto se encontrasse as condições propícias.
“Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se
perderam” (cap. III), pode ser visualizado no seguinte quadro:
A SEMENTE PERDEU-SE
LUGAR ONDE A
SEMENTE CAIU
MOTIVOS CONSEQUENCIAS
espinhos embaraços afogaram
pedras dureza secaram
caminho descaminho pisaram os homens
comeram os pássaros
Quadro 9 – A semente que se perdeu, segundo a parábola do semeador.
O pregador deu por provado que a culpa dos poucos frutos recai sobre o
pregador. Ele passa a analisar o que chama de “circunstâncias” do pregador, que
são:
63
A pessoa do pregador – A vida e o exemplo o definem. É significativo no texto
o verbo semear, pois implica ação; antigamente pregavam-se palavras e obras, hoje
pregam-se palavras e pensamentos, comparado a tiros sem balas, atroam mas não
ferem; para falar ao vento bastam palavras, mas para falar ao coração são
necessárias obras. Diversos exemplos da Bíblia e das crenças religiosas seguem:
Davi matou o gigante com um tiro da sua funda; Deus mandou seu Filho; enquanto
Deus, é palavra, enquanto homem, é obra; no céu todos amam a Deus, porque Ele
é visto, na terra poucos o amam, porque Ele é ouvido; o relato da paixão de
Cristo pode despertar certos sentimentos, mas a encenação dos mesmos fatos
ouvidos causa grande emoção; João Batista pregou e viveu uma vida de
simplicidade e desprendimento. Os pregadores atuais pregam aos ouvidos e não
aos olhos. Mas, apesar de todos os exemplos a favor, o caso de Jonas houve
conversões mesmo diante do mau exemplo do profeta mostra que outras
causas a serem investigadas.
O estilo do pregador aqui uma crítica violenta contra o estilo usado nos
púlpitos, chamado culto, caracterizado como empeçado, dificultoso, afetado,
violento, tirânico e encontrado em toda arte e toda a natureza; faz uso abusivo de
oposições e antonomásias, algo inadequado para o púlpito. Oposto a isso, sugere-
se o estilo fácil e natural, como a semente que cai na terra; o cair deve ser com
queda para as coisas, com cadência para as palavras e com caso para a disposição.
O céu é o mais antigo pregador, conforme o Salmo 18:1 informa: “Os céus
manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos”.
7
As
palavras são as estrelas e os sermões são as composições, a ordem, a harmonia e
o seu curso. O estilo do céu é semear estrelas e o de Cristo na terra, semear trigo; o
estilo do semeador é ordenado como as estrelas, faz influência, é o da disposição
das palavras; é como as estrelas que são distintas, claras e altas; mesmo altas, são
guias para letrados e também iletrados. O sermão é como as estrelas que todos
vêem. Mas o pregador lista mais queixas, a seguir.
A matéria do pregador Como o semeador que semeou um gênero (tipo)
de semente, assim o pregador deve escolher uma matéria, um assunto, uma
7
Todas as citas bíblicas de aqui em diante seguirão a Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira
de Almeida. Ed. Revisada e corrigida. Brasília: Editora Vida, 1981.
64
cor, um objeto. uma crítica contra o “apostilar”, que consiste em tomar
muitas matérias, muitos assuntos. Usando muitas variedades de sementes, não
pode haver colheita; o resultado será mata brava ou confusão verde. Uma nau não
avança tentando navegar em mais de uma direção ao mesmo tempo; Jonas e João
Batista tiveram cada um uma única matéria. Esta deve ser definida, dividida,
provada pela Escritura, declarada pela razão, confirmada com o exemplo e
ampliada; deve-se também responder às dúvidas, satisfazer às dificuldades,
impugnar e refutar os argumentos contrários; depois vem a hora de colher, apertar,
concluir, persuadir e acabar. A alegoria da árvore, chamada de “árvore da vida”,
apresenta uma ilustração concreta no sermão, cujas partes são: as raízes sólidas e
fortes (fundamento no Evangelho), o tronco (uma matéria o assunto), os ramos
(diversos discursos), as folhas (palavras), as varas (repreensão dos vícios), as flores
(sentenças), os frutos (a finalidade do sermão); sem estes elementos não haverá
frutos. Clássicos greco-romanos, padres, doutores e santos da Igreja são
testemunhas e exemplos evocados. Mas a verdadeira causa que se procura vai
além do aqui exposto.
A árvore é uma ilustração articulada em alegorias com relação ao sermão:
ÁRVORE SERMÃO
raízes Evangelho
tronco matéria
ramos discursos
folhas palavras
varas vícios
flores sentenças
frutos finalidade do sermão
Quadro 10 – Semelhança entre a árvore e o sermão, segundo Vieira.
As partes da árvore não representam o sermão, devido à ausência das
qualidades exigidas, relacionadas à matéria do pregador.
ÁRVORE SERMÃO
troncos madeira
ramos maravalhas
folhas versas
65
varas feixe
flores ramalhete
Quadro 11 – Diferença entre a árvore e o sermão, segundo Vieira.
A ciência do pregador Muitos pregadores pregam o alheio, motivo pelo qual
não aparecem frutos. O semeador semeou a sua semente. Pregar significa entrar na
batalha contra os vícios, onde as armas alheias não dão vitória. Dois exemplos, um
da Bíblia e outro da mitologia confirmam isso: Davi não conseguiu lutar com a
armadura do rei, mas derrubou o gigante com a sua funda; Pátroclo com as armas
de Aquiles foi vencido e morto. Os futuros apóstolos de Jesus foram chamados a
serem pescadores de homens, enquanto estavam fazendo (na verdade
consertando) suas redes; significa que a pesca deve ser realizada com redes feitas,
não por outros, mas pelos próprios pescadores. Pregar não é recitar. As razões
próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória; a conversão
opera-se pelo entendimento. No Pentecoste, as línguas de fogo, símbolo do Espírito
Santo, desceram sobre a cabeça de cada um dos apóstolos; da cabeça sai a
pregação passando pela boca. Os diferentes estilos decorrem do fato de cada um
ter recebido a sua língua; assim temos diversos estilos dos apóstolos, como por
exemplo: fácil, o de Mateus; misterioso, o de João; grave, o de Pedro; forte, o de
Jacó (Tiago); sublime, o de Tadeu, “e todos com tal valentia no dizer que cada
palavra era um raio, e cada razão um triunfo” (cap. VII). Mas, para mostrar que
outras causas, João Batista serve como contra-exemplo, pois ele usava o conteúdo
das pregações de Isaías, assim como faziam outros santos da Igreja.
A voz do pregador Antigamente pregava-se bradando, hoje prega-se
conversando; os brados às vezes dão mais resultado por causa do predomínio dos
sentidos sobre a razão. Um bom resultado dos brados foi a pregação de João
Batista; o brado do povo e dos escribas, porém, levaram Jesus à cruz. Vieira dava
preferência à voz que arrazoa; mas, se os brados podem tanto no mundo, é bom
que os pregadores gritem. Isaías chamou os pregadores de nuvens; nelas
relâmpagos para os olhos, iluminam a muitos; trovões para os ouvidos,
assombram a todos; raios para o coração, podem matar uma pessoa. A voz do
pregador de ser como um trovão do céu que assombra e faça tremer. Se Isaías,
66
em outro capítulo, referindo-se a Cristo profetizou que ele não bradaria, é porque
diferença entre falar aos ouvidos e falar ao ouvido. Em conclusão, nenhuma das
circunstâncias apontadas é determinante para estabelecer causa do pouco fruto das
pregações; diversos estilos e modos de agir dos pregadores podem ser
encontrados, mas todos falavam, persuadiam e convenciam. A procura da
verdadeira causa continua.
“Por isso Isaías chamou aos pregadores nuvens”. (Cap. VIII).
A NUVEM TEM MEMBROS DO
CORPO
ENVOLVIDOS
EFEITOS QUE
CAUSA
NÚMERO DE
ATINGIDOS
relâmpago olhos alumia muitos
trovão ouvidos assombra todos
raio coração mata um
Quadro 12 – Semelhança entre a nuvem e o pregador, segundo Vieira.
A questão central, a causa de tão pouco fruto da palavra de Deus, apesar de
tantas pregações, está agora sendo respondida de forma unívoca: as palavras dos
pregadores não são palavras de Deus. A expressão tirada das profecias de Oséias
(8:7) de que, quem semeia ventos colhe tempestades, encontra eco nos pregadores
que, pregando vaidades, é natural que os frutos não apareçam. Eles pregam
palavras de Deus, mas não são a palavra de Deus. As palavras de Jeremias (23:28),
exortando a que o servo fale a palavra de Deus, com verdade, significa que pregar
no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; pregados como nós
queremos (Vieira se inclui), podem ser palavras do demônio; isto está ilustrado na
tentação de Jesus (Mateus 4:1-11).
Toda a Escritura é palavra de Deus; Jesus defendeu-se com as Escrituras,
tomando a palavra de Deus no verdadeiro sentido; o diabo, por sua vez, usou-a no
sentido alheio e torcido. As mesmas palavras, no verdadeiro sentido são palavras de
Deus, tornaram-se defesa; no sentido alheio são armas do diabo, convertendo-se
em tentação. As tentações aconteceram em diversos lugares e foram de vários
67
tipos. No deserto, a tentação estava relacionada à gula; no monte, à ambição e no
templo à Escritura mal interpretada. Esta última é a tentação de que mais padece a
Igreja e em muitos lugares tem derrubado a fé. Pregadores indignos, ou pregam o
que não está nas Escrituras, ou não pregam conforme o sentido que davam os
padres da Igreja e conforme o uso correto da “gramática das palavras”. O resultado
disto só pode ser a falta de frutos e o desinteresse dos ouvintes.
“E chegando-se a ele (Jesus) o tentador lhe disse: Se és filho de Deus (...)”.
(Mateus 5:3)
JESUS FOI TENTADO PELO DIABO
LUGAR DA TENTAÇÃO TIPO DE TENTAÇÃO
deserto gula
monte ambição
templo Escrituras mal interpretadas
Quadro 13 – O diabo tentou a Jesus (Mateus 4: 1-11)
A crítica aos pregadores vai além, pois são acusados de levantar falso
testemunho, do texto, do Santo, do entendimento e do sentido. Jesus desafiou os
judeus a destruírem o templo, que ele reconstruiria em três dias. As duas
testemunhas que repetiram isto durante o julgamento de Jesus, disseram a verdade.
No entanto, são chamados de falsas testemunhas porque, enquanto Cristo falava do
templo místico do seu corpo, “reedificado” pela ressurreição, essas pessoas tinham
em mente o templo material de Jerusalém; as palavras eram verdadeiras, mas as
testemunhas eram falsas, porque Cristo as dissera em outro sentido do que as
testemunhas. Assim, levantar falso testemunho significa referir as palavras de Deus
em sentido diferente do que foram ditas; é atribuir a Deus palavras que Ele não
disse; é dizer que são palavras de Deus, quando são imaginações humanas. Nesses
casos é natural que as imaginações, vaidades e fábulas não tenham eficácia de
palavra de Deus.
Aqui, diante de grave situação, o pregador exclama: “Miseráveis de nós, e
miseráveis dos nossos tempos, pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo.”
68
(Cap. IX); isto porque fora citado 2 Timóteo 4:3, onde o apóstolo fala dos últimos
tempos; os pregadores dirão aquilo que os ouvidos querem ouvir e fecharão os
ouvidos à verdade, voltando-se às fábulas. Destaca-se que nas fábulas
fingimento, sutilezas sem fundamento na verdade; o comportamento dos ouvintes é
como se assistissem a uma comédia. Ao contrário do que se dizia, as comédias não
acabaram em Portugal; passaram do teatro ao púlpito; se pelo menos tivessem as
qualidade positivas das comédias clássicas, pois estas superam a muitas pregações
de um orador cristão. O pior disto é que muitos sermões não são comédias, são
farsas; mesmo com hábito de religioso, a voz é afetada, polida e as pregações
vazias, sem sentido.
O desafio é pregar a doutrina que os ouvintes não gostam, mas precisam
ouvir. Da doutrina, o diabo teme, porque significa salvação; por isso a doutrina deve
ser pregada com fama ou sem fama (2 Coríntios 6:8). Pregar o que convém, mesmo
com descrédito, é ser pregador de Jesus Cristo. O fato de os ouvintes gostarem ou
não, não deve ser levado em conta. Diante do médico é levado em conta a saúde do
paciente, não o seu gosto; o importante é sarar e os pregadores são os médicos da
alma. A semente que caiu nas pedras são as pessoas que ouvem com gosto a
palavra, mas não dão fruto; entre ouvir com gosto e não dar fruto, é melhor não
gostar, mas que as pedras se abrandem, quebrem e haja fruto.
A semente que caiu na boa terra frutificou em paciência; o gosto não foi
decisivo, mas o padecer. A pregação que convém, que dá fruto, é a que lhe dá pena;
o ouvinte treme a cada palavra, o seu coração é atingido e ele sai confuso e atônito.
Portanto, é importante que os pregadores saibam como pregar e os ouvintes, como
ouvir. Os pregadores não devem fazer com que os ouvintes saiam contentes dos
pregadores (nós), mas descontentes consigo e lhes pareçam mal os seus costumes,
vidas, passatempos, ambições e pecados, segundo Gálatas 1:10, o pregador não
deve preocupar-se em contentar os homens, mas agradar a Deus. Que o pregador
saiba que deve prestar contas a Deus (Isaías 6:5), o julgamento também atinge o
ouvinte. Que em face da proximidade da Quaresma, a Igreja pregue contra todo tipo
de vícios.
69
Recado final: ao céu, que ainda os que estão do Seu lado; ao inferno, que
ainda os que se lhe opõem com a palavra de Deus; à terra, que ainda está em
tempo de reverdecer e dar fruto, pois a terra boa “deu fruto, cento por um”.
2.5 As partes do sermão
O sermão em tela pode ser considerado um dos modelos no âmbito da
parenética barroca, que teve em Vieira seu maior representante; apresenta uma
teoria da arte de pregar; pode-se verificar nele a fórmula da estrutura dos sermões
do grande pregador; também mostra a relação com a retórica clássica aristotélica e
com a eloqüência religiosa. Seu título foi formulado em latim: “Semen est verbum
Dei”, isto é, “A semente é a palavra de Deus” (Lucas 8:11). O tema gira em torno à
resposta a uma pergunta, qual seja: o motivo do pouco efeito da palavra de Deus. O
texto divide-se em dez partes, chamados de capítulos pelos estudiosos.
Segue, de forma sucinta, o conteúdo de cada capítulo: capítulo I – Introdução:
apresentação do assunto (a matéria), com forte ação sobre o auditório; Capítulo II
Questionamentos, queixas e comparações, relacionados com o fraco desempenho
da palavra de Deus; Capítulo III Possíveis motivos de produzir pouco fruto a
palavra de Deus, concluindo que não é por culpa de Deus, nem do ouvinte, mas do
pregador; capítulo IV - Trata da pessoa do pregador, a primeira das cinco
“circunstâncias” relacionadas com a pregação; Capítulo V O estilo do pregador; VI
A matéria do pregador; VII A ciência do pregador; VIII A voz do pregador; IX
Queixa contra os pregadores por não pregarem a palavra de Deus, acusando-os de
serem falsas testemunhas; X A obrigação de pregar a palavra de Deus,
independente do gosto dos ouvintes, pois os pregadores deverão prestar contas a
Deus.
Ao ensinar a arte de pregar, Vieira segue os passos da retórica clássica, que
ele mesmo lecionara e que soube adaptar com suprema maestria à eloqüência
religiosa nos seus sermões, tendo em vista o convencimento do seu auditório. Com
relação às cinco “circunstâncias” (pessoa, ciência, matéria, estilo e voz), Mendes (In:
VIEIRA, 1978, p. 33) assinala:
70
Estas partes correspondem por sua vez às tradicionais divisões dos tratados
de retórica: a invenção e a disposição integravam a matéria e sua divisão, o
estilo dizia respeito à elocução, a memória tratava da ciência, e a
pronunciação incluía a voz.
Assim, conforme exposto
8
, a invenção (heurésis, inventio), trata da procura
de argumentos relacionados ao ethos ou ao pathos; a disposição (taxis, dispositio),
por sua vez, refere-se à elaboração do plano do discurso; ambos, portanto, estão
ligados à matéria, no caso, à arte de pregar a palavra de Deus. A elocução, a
terceira parte da retórica, refere-se à redação, à língua e ao estilo, este último
colocado aqui em evidência por Vieira. A memória supunha conhecimento, saber e a
pronunciação é uma atividade da voz, tudo isto ligado à ação. Portanto, as quatro
partes da retórica (invenção, disposição, elocução e ação) estão presentes.
No capítulo VI, por sua vez, estão expostas as regras da disposição de um
sermão. Segundo A. Pinto de Castro, citado por Mendes (In: VIEIRA, 1978, p. 33-
34), são as regras do “método português” de pregar, que são: o tema, a proposição,
a divisão, a prova ou confirmação com os textos das Escrituras (o “conceito
predicável”), a amplificação com recurso dos lugares comuns, a confutação e a
peroração, local onde ser deveria colocar a conclusão e insistir na persuasão.
É possível aplicar as referidas regras ao trecho do capítulo VI que trata da
matéria: “Há de tomar o pregador uma matéria” o tema; “há de defini-la para
que se conheça” a proposição; “há de dividi-la para que se distinga” a divisão;
“há de prova-la com a Escritura” a prova ou confirmação das Escrituras; “há de
declara-la com a razão, de confirmá-la com o exemplo, de amplificá-la com as
causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de
seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, de responder às dúvidas,
de satisfazer às dificuldades” amplificação com recurso aos lugares comuns; “há
de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência os argumentos contrários” a
confutação; “e depois disto de colher, de apertar, de concluir, de
persuadir, há de acabar” – a peroração, com ênfase na persuasão.
O que foi verificado aqui com relação às regras propostas para a elaboração
de um sermão, também pode ser conferido na composição do presente Sermão
8
Conforme página 22.
71
como um todo. Suas partes, a grosso modo, formam o modelo retórico, integrados a
uma unidade maior, ao sermão, sempre a serviço da arte do convencimento.
2.6 As fontes teológicas do Sermão
O presente sermão, que trata da arte de pregar, além de refletir a
personalidade do pregador, revela também o seu grau de comprometimento com a
doutrina teológica da tradição católica, expressa no Concílio de Trento e revigorada
pelo espírito dos jesuítas. O versículo bíblico da parábola, “A semente é a palavra de
Deus”, serve de base para centralizar nele as partes do discurso; todas essas partes
são carregadas de conteúdo bíblico e servem como inferências, seja de forma
literal ou figurativa. No “Sermão no Sábado Quarto da Quaresma”, usando uma
linguagem figurada para expressar seu apreço pelas Escrituras, Vieira afirma: “As
Escrituras Sagradas (como notou S. Gregório) são os armazéns de Deus”
(PÉCORA, in: VIEIRA, 2001, p. 211, v. 1). No presente sermão ele declara: “Todas
as Escrituras são palavra de Deus” (cap. IX). Toda a Bíblia, Antigo e Novo
Testamento, considerava-se inspirada, e portanto, fundamento sólido para e
conduta, sendo que suas verdades não podiam ser questionadas, por isso Vieira a
usava com profusão como autoridade na defesa das suas teses. Neste sermão, as
referências vão de Gênesis ao Apocalipse; são 24 citações de 15 livros (dos 46) do
Antigo Testamento e 27 citações de nove livros (dos 27) do Novo Testamento.
Também foram evocados para confirmar ou redimensionar a interpretação de pontos
ou aspectos da discussão, ensinamentos de padres, doutores e mestres da Igreja.
Assim, referências neste sermão a Santo Agostinho, S. Jerônimo e S. Cristóvão,
S. Bernardo, S. Gregório, S. Ambrósio, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Santo
Antônio de Pádua, entre outros; personagens da Antigüidade Clássica, como
Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Plauto, Terência e Sêneca fazem parte da lista; até
elementos da mitologia estão presentes como em outros sermões. Uma fonte
teológica da época do orador, e que lhe conferia um enorme potencial de autoridade,
foi a referência ao Concílio de Trento (cap. III).
Assim, valendo-se do maior argumento de autoridade conferido pelo uso
extensivo das Escrituras, aceita por todos como sinal de ortodoxia, apoiado por toda
a tradição cristã e clássica, Vieira tinha a credibilidade e autoridade para, mediante o
72
uso próprio da linguagem, conseguir o efeito de persuadir seus ouvintes, ou pelo
menos, de fasciná-los.
3 Análise retórica do Sermão da Sexagésima
“O Sermão da Sexagésima discute a atividade sermonística em si,
conceitua-a em metáforas deslumbrantes e critica, por tabela, a oratória do
seu tempo, estipulando um ideal parenético que garantirá a eficácia na
edificação das almas.”
Marcelo Backes (In: VIEIRA, 1999)
Uma leitura retórica do Sermão da Sexagésima mostrará aspectos, como:
relação pregador-ouvinte, argumentos e estilo, que agem poderosamente sobre o
ouvinte.
3.1 O pregador e o ouvinte
73
Dois elementos compõem a retórica: o argumentativo e o oratório.
Argumentos são um conjunto de proposições que levam à admissão de outra
proposição; os argumentos podem ser demonstrativos ou argumentativos (Reboul,
2000, p.92). Apoiado em Perelman e Olbrechts-Tyteca, Reboul ensina que a
diferença entre a argumentação e a demonstração é que esta considera os fatos
como são, parte de premissas necessárias e verdadeiras, como por exemplo: o
indício resulta numa prova para a polícia; a argumentação por sua vez, se expressa
em língua natural, suas premissas são verossímeis, sua progressão depende do
orador e suas conclusões são sempre contestáveis; o autor acrescenta ainda, que
todas essas características incluem o componente oratório da retórica. Nesse
aspecto retórico estão os meios extralingüísticos, presentes no discurso.
Com relação ao auditório, uma vez que a retórica tem o objetivo de persuadir,
a relação entre o orador e seus ouvintes assume um papel de fundamental
importância; a fim de ter sucesso devia-se além de organizar o discurso de forma
convincente, “tornar o auditório dócil, atento e benevolente” (Reboul, 2000. p. 55),
para que a ação sobre os espíritos seja, de fato, efetiva.
O Sermão da Sexagésima foi pregado na presença de muitos pregadores,
dirigido aos cristãos, motivo pelo qual pode ser considerado um caso de auditório
particular, mesmo que tenha sido pregado na igreja, que é um espaço público. Como
em todo auditório no contexto do Barroco, os ouvintes tiveram certas expectativas, e
o pregador, por sua vez, esforçava-se para criar, por meio de malabarismos
retóricos, um ambiente favorável à aceitação da sua tese, resultando isto num
acordo tácito. Em face disso, a pregação convertia-se num espetáculo teatral, onde
houve ator (o pregador), palco (o púlpito) e público (os fiéis). Aspectos, como a voz e
a postura correta do pregador jesuíta, como suporte oratórios, foram usados para
conseguir adesão, recursos ligados ao pathos. No presente Sermão, um diálogo
constante com o auditório e um esmero muito grande em influenciá-lo. Isto foi feito
de diversas formas num processo integrado.
Na primeira frase, Vieira dirige-se a “este tão ilustre e tão numeroso auditório”;
fazendo referência ao pregar e ao pregador, inicia o comentário na primeira pessoa
do plural (nós), para dizer que “no dia da messe hão-nos de medir a semeadura, e
74
hão-nos de contar os passos”. Desde logo uma forte tentativa de interação no
processo de comunicação entre emissor (Vieira) e receptor (auditório). A
continuação foi usada a segunda pessoa do plural (vós): “O mundo aos que lavrais
com ele, nem vos satisfaz o que despendeis, nem vos paga o que andais”. O
emprego desse tratamento perpassa todo o texto. Às vezes o orador se inclui, em
parte, tal vez, para amenizar a severa acusação, como no seguinte exemplo:
“Sabeis, cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos
pregadores. Sabeis pregadores, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa
nossa” (cap. III). O uso desse recurso também mostra o grau de envolvimento com
os presentes. O eu da primeira pessoa de singular foi usado com freqüência, como
no exemplo a seguir, de grande apelo no sentido de ganhar a adesão do auditório,
dando a impressão de falsa modéstia: “Quero começar pregando-me a mim. A mim
será e também a vós: a mim para aprender a pregar: a vós para que aprendais a
ouvir” (final do cap. II). Nesse “começar pregando” houve certa demora em anunciar
a matéria do sermão, recurso que foi usado para criar suspense do auditório.
Vocativos como no exemplo acima citados: cristãos, pregadores repetem-se
ao longo do texto em apreço; assim Vieira dirige-se aos “Padres Pregadores” (cap.
IV), ou simplesmente “Padre” (cap.V), ou “pregadores” (cap.IX), por último aparece o
vocativo “Semeadores do Evangelho” (cap.X); inclusive um caso de referência
indireta, cujas palavras rezam: “Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-
me” (cap.IX).
O constante uso de exclamações revela certo grau de emoção transmitida ao
auditório. no segundo parágrafo, referindo-se à prestação de contas dos
pregadores no Juízo Final, Vieira exclama: “Ah, dia do Juízo! Ah Pregadores! Os de
cá, achar-vos-eis com mais Paço; os de com mais passos”. Ainda no capítulo l, a
exemplo do semeador que aproveitou a quarta e última parte do semeado, segue-se
a exclamação: “Oh que grande esperança me esta sementeira! Oh que grande
exemplo dá este semeador”. Referente a uma queixa contra os pregadores, que não
pregam a palavra de Deus, o orador dirige-se a Deus, exclamando:
Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam: Quantas vezes ouço
dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são
75
palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir
deste número! Que muito logo que as nossas imaginações e as nossas
vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
(cap. IX ).
Outra forma de manter vivo o contato com o auditório, foi o constante
emprego de perguntas. Referida como figura na argumentação por Aristóteles
9
, a
interrogação, além dessa função, foi usada neste Sermão como meio de interação
com o auditório, e uma forma de agir sobre ele; trata-se de uma técnica que Vieira
dominava plenamente. Aparece a pergunta feita pelo orador e respondida por ele
mesmo, é a hipófora; por outro lado também diversos casos de interrogação
retórica; mesmo que seja uma forma de argumentar, está sendo mencionado aqui
como forma de manter o contato com o auditório. Um exemplo dos numerosos casos
de hipófora é a seguinte pergunta-resposta: antigamente convertia-se o mundo, hoje
por que se não converte ninguém? Por que hoje se pregam palavras e
pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras” (cap. IV). A seguinte
pergunta não se responde por que a resposta presume-se óbvia: Neste púlpito
pregou São Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou São Francisco de Borja,
e eu que tenho o mesmo hábito, porque não pregarei a sua doutrina, que me falta
o se espírito? (cap. IX).
Outro aspecto característico do Barroco, fielmente seguido por Vieira neste
Sermão, é a referência aos sentidos, para captar a atenção do auditório,
especialmente o da visão. Assim, a representação do julgamento e da crucificação
de Jesus é muito mais convincente do que o simples relato dos acontecimentos
(cap. VI). Ao explicar a “circunstância” da matéria do Sermão, o pregador pergunta:
“Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede” (cap. VI ). Então a seguir, ele
compara o sermão a uma árvore, criando analogias correspondentes às partes da
árvore com o sermão.
A referência à guerra é outra constante nas homilias. Sua afiada língua não
poupava ninguém; suas palavras, como setas de fogo, atingiam os alvejados com
seus tiros certeiros. O espírito aguerrido, polêmico, crítico, desafiador, e até
sarcástico de Vieira, também se revelam neste Sermão. Assim, ele diz que “pregar é
entrar em batalha com os vícios” (cap. VII); no fim do discurso declara: “Saiba o
9
Conforme página 27.
76
inferno que ainda tem na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus” (cap.
X). O ataque aos representantes do estilo culto intensifica-se muito durante o
sermão, embora em momentos de maior crítica, Vieira usa o nós; acusa os
pregadores de levantarem falso testemunho e que pregam somente o que os
ouvintes gostam de ouvir; finalmente ameaça a todos com o juízo divino.
Tudo o que foi acima referido, sendo um meio de fazer progredir o discurso,
não podia deixar o auditório indiferente; todas essas técnicas e recursos utilizados
obrigavam à tomada de posição; mesmo que seu alvo fosse persuadir seu auditório,
Vieira não foi nada otimista com o resultado de suas pregações, nas suas
experiências passadas, e lamenta: “Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento
por um, e eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se eu em cada
cem sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo” (cap. II).
Por outro lado, o festejado pregador preferia que os ouvintes saíssem, não
contentes com o pregador, senão descontentes de si, “não que lhes pareçam bem
os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas,
os seus passatempos, as suas ambições, em fim, todos os seus pecados” (cap. X).
Mas para que isto possa acontecer, a adesão do auditório era uma condição sine
qua non a fim de conseguir esse resultado.
3.2 Os argumentos do Sermão
Na argumentação em geral, ao contrário da demonstração, o orador tenta
convencer seu auditório usando um raciocínio baseado em provas verossímeis.
Estas provas provenientes de opiniões e enunciados prováveis, e portanto de
caráter questionável, tornam-se para Vieira, verdades inquestionáveis, por serem
originadas de fontes irrefutáveis. A principal base para a doutrina, a e a vivência
cristã foi a Bíblia, Antigo e Novo Testamento. No Sermão da Nossa Senhora do Ó,
Vieira comunga sua em todo o conteúdo da Bíblia, quando sentencia: “Uma das
excelências das Escrituras Divinas, é que não haver nelas nem palavras, nem
sílabas, nem ainda uma letra, que seja supérflua, ou careça de mistério” (VIEIRA,
2001, p. 644, v. 1); e no Sermão das chagas de São Francisco, ele é categórico ao
afirmar: “a palavra de Deus, ou prometendo, ou negando, é inviolável” (VIEIRA,
2001, p. 416, v.2).
77
O emprego constante da expressão “palavra de Deus” tinha o propósito,
entre outros, de reforçar a mensagem central do Sermão: “A semente é a palavra de
Deus”, e sendo palavra de Deus, deve ser obedecida; a “palavra de Deus”, por tanto,
converte-se em argumento retórico de autoridade para o pregador, em face da
aceitação tácita de sua verdade. Se o ouvinte não aceitar a pregação decorrente
dessa palavra, pode ser considerado impenitente, não disposto a abandonar os
vícios e a praticar a virtude.
Pregar a palavra de Deus foi uma arte, uma vez que todo o conteúdo do
sermão devia ter seu fundamento nas Escrituras; para isto foi preciso ter um amplo
conhecimento bíblico. As diversas disciplinas encarregavam-se de iluminar o texto;
assim, pela exegese fazia-se a interpretação gramatical e histórica que foi a base da
hermenêutica textual, referente ao sentido; tudo isto foi usado pelo pregador na
elaboração e apresentação do sermão, seguindo as regras da homilética. Por um
processado de ajustamento por analogia entre o texto e o assunto fazia-se a
interpretação.
Santo Tomás tinha fixado quatro modos de interpretar as escrituras, o literal:
toda a Bíblia é a palavra de Deus, tudo o que está escrito deve ser aceito, pois para
Deus nada é impossível; o simbólico: ao fazer comparações entre a linguagem do
poeta e a das escrituras, Santo Tomás declara: “o poeta serve-se da linguagem
figurada para clareza da expressão; as Sagradas Escrituras, porém, de imagens e
parábolas por necessidade e utilidade” (In: CURTIUS, 1966, p. 286); o místico:
nessa abordagem os escritos são interpretados à luz de um relacionamento
espiritual, pessoal e íntimo com Deus, dá-se ênfase à vida contemplativa; o moral:
tudo o que está escrito pode ser aplicado à vida, segundo o texto sagrado que
afirma: “toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar: para
redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja
perfeito, e perfeitamente instruído para toda boa obra” (2 Tm 3:16-17). Com essa
ampla gama de possibilidades cabia ao pregador, mediante rebuscadas sutilezas e
acomodações, encontrar os textos que podiam ser aplicados ao assunto da
pregação.
78
Essa forma de argumentar e pregar, uma característica inconfundível de
Vieira, foi chamado de “conceito predicável”. Ferreira (1971, p. 531) afirma que
foram abusos do conceptismo do grande pregador, e acrescenta:
Folhar a Sagrada Escritura e trazer de a previsão dos factos que se
queria demonstrar no púlpito, ou fundamentar no texto bíblico a verdade do
que se afirmava: tal o processo retórico dos “conceitos predicáveis”. Vieira
usou e abusou desse malabarismo lógico, resvalando às vezes na ridicularia
com as mais insensatas demonstrações
10
.
Conforme Antônio Sérgio, citado por Mendes (In: VIEIRA, 1978, p. 45-49), o
procedimento do “conceito predicável” de Vieira foi empregado em todo tipo de
argumentação, da sua época, na Península Ibérica, não apenas na área religiosa.
Esse “método português” de pregar, sem recorrer a doutrinas filosóficas, fatos
psicológicos, históricos, da experiência ou de outros princípios, senão através de um
artifício, de uma imagem trazida de um fato ou frase da Bíblia, apresentava-se como
sendo uma alegoria, figura ou símbolo da proposição tratada; tudo isto se conseguia
pelo uso habilidoso de uma “agudeza do engenho”. Mendes acrescenta que o
pregador devia encontrar e mostrar a similitude, a analogia que transforma os textos
em alegorias das verdades morais, religiosas, políticas ou ideológicas que se queria
provar.
Na análise dos argumentos do Sermão em estudo, inúmeros exemplos
daquele método parenético; como referido, consistia fundamentalmente em partir
do princípio de que tudo o que se prega está prefigurado nos textos sagrados e que,
por um processo intrincado do raciocínio, devia ser aplicado à realidade atual,
apoiado no campo dos tropos e da analogia; as interpretações desse método, no
entanto, eram muitas vezes questionáveis ou de difícil compreensão.
O argumento central do Sermão é a preocupação sobre a arte de pregar a
palavra de Deus, em vista dos resultados insatisfatórios. Na parábola em estudo,
desdobrada em alegorias, a ênfase se nos tipos de solo em que a semente cai,
determinando a presença ou ausência de frutos; isto é, refere-se a atitude dos
ouvintes de Jesus, após ouvirem os seus ensinos. A relevância de ouvir e guardar,
ou cumprir, está presente nos Evangelhos, como por exemplo, na parábola que
10
Grifo do autor.
79
Cristo usa no fim do Sermão da Montanha, onde ele caracteriza dois tipos de
ouvintes, o que ouve e pratica suas palavras e o que não as pratica; o primeiro é
semelhante a um construtor que edifica sua casa sobre a rocha; o segundo tipo,
constrói sobre a base instável da areia (Mt 7: 24-27).
Para Vieira, no entanto, o fator determinante dos escassos resultados não
está no solo (ouvintes), mas no semeador (pregador) que não semeia (prega)
corretamente, pois faz uso inadequado da semente (palavra de Deus). Nas
“circunstâncias” (pessoa, estilo, ciência, matéria e voz), causas secundárias do
pouco resultado da pregação, na verdade, nessa parte (cap. IV-VIII), ele uma
lição de homilética: como elaborar e pregar um sermão. A frase: “A semente é a
palavra de Deus”, ao Sermão uma unidade temática; pela sua constante
repetição fica implícito a mensagem: os pregadores estão lidando, não com palavras
de homens, mas com a palavra de Deus, por isso eles devem ter muita
responsabilidade e pregá-la corretamente e de forma convincente, para que haja
resultados.
Segue a continuação, um levantamento de argumentos da cada capítulo,
usado por Vieira neste Sermão.
Capítulo I Vieira convida o auditório a ouvir o texto bíblico, dizendo:
“Ouçamos o Evangelho, e ouçámo-lo todo, que todo é o caso que me levou e trouxe
de tão longe”. Antes mesmo da leitura do texto, traça um paralelo entra as
palavras a serem lidas e o Maranhão, de onde recentemente tinha vindo, e para
onde logo voltaria. A palavra todo aproxima o ouvir o Evangelho e o empenho no
trabalho missionário, que exigia as medidas legais, sacrifícios e dedicação total,
conforme relata mais adiante.
Da primeira frase da parábola: “Saiu o que semeia, a semear o se grão”,
tomou os verbos semear e sair, para aplicá-los aos missionários que vão a outras
terras, como Índia, China e Japão (o Brasil não foi citado, mas está incluído), para
“semear”, isto é, para evangelizar os nativos. O mundo é ingrato, mas Deus vai
recompensar os “passos”; para Vieira, o sair é semear; os que pregam na pátria
(Portugal) recebem seu salário e têm “Paços”, isto é, estão nos palácios dos reis,
80
mas aos que saem será levado em conta os “passos”, referindo-se às distâncias
percorridas e o resultado do trabalho realizado, a conversão dos infiéis. Então, de
sair e semear foram identificadas dois tipos de pregadores: os que ficam em
Portugal e os que saem como missionários a outras terras, antecipando o elogio que
fará depois aos últimos. uma dupla identificação: o que semeia com o pregador;
a atividade do primeiro é semear, a do segundo, pregar; ambos tinham que sair,
embora no caso dos pregadores, os que semeiam sem sair. Digno de nota é a
oposição que se cria por meio da aliteração das palavras “Paços” e “passos”, para
caracterizar os dois tipos de pregadores, dando destaque aos que “saem” sem
voltar. Esta última circunstância não era possível deduzir do texto, pois o semeador
não ficava indefinidamente no campo, após a semeadura; para argumentar que os
pregadores, os missionários, não deviam voltar, Vieira procurou apoio na visão de
Ezequiel; este profeta do Antigo Testamento escreveu seu livro enquanto estava
exilado durante o cativeiro na Babilônia, uns 600 anos antes de Cristo. Dentro de
uma nuvem de fogo, representando a glória do Senhor, na sua visão, ele viu quatro
seres que andavam para frente, “não se viravam quando andavam” (Ez 1:12).
Vieira quer convencer seu auditório de que os animais são os pregadores do
Evangelho; com este texto ficava provado que, à semelhança desses animais, os
pregadores vão aos campos missionários e não voltam a Portugal.
Usando uma prolepse, antes que os seus ouvintes pudessem cobrar dele,
que ele foi ao Brasil, mas que voltara, Vieira antecipa-se e responde com uma
pergunta: ” E se esse semeador Evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado;
e se se armassem contra ele os espinhos; se levantassem contra ele as pedras, e
se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?” A resistência dos elementos,
espinhos e pedras, bem como a obstrução do caminho, refere-se ao conflito no
Maranhão, pois houve uma revolta de colonos e a invasão da sede missionária dos
jesuítas, porque estes mantinham os índios nas reduções da missão, não permitindo
que fossem escravizados. Vieira foi a Portugal, de onde logo voltou (após pregar o
presente Sermão) com medidas do rei que ampliariam os poderes dos jesuítas.
Na interpretação que Jesus faz da parábola, o semeador parece estar no
segundo plano; mesmo que tudo se desenvolva a partir da sua ação, tem-se a
impressão de que seu trabalho ocorreu sem oposição; as dificuldades surgiram
81
após, pois a semente, após lançada, não encontrara o solo adequado para, não
apenas nascer (o que ocorreu em três das quatro partes), mas também para dar
frutos (o que se deu apenas em um dos casos). Vieira coloca o semeador (pregador)
em primeiro plano, resgata a alegoria dos espinhos, das pedras e do caminho,
usando-as como meios para expressar os obstáculos que lhe foram interpostos aos
pregadores nos campos missionários. O jesuíta trabalha aqui com duas categorias,
o que ele também fará ao longo do texto, da semelhança e da diferença. Pedras,
espinhos e caminho são elementos que frustraram a esperança de colheita na
parábola. Da mesma forma os pregadores sofrem resistência em conseqüência
daqueles elementos; a diferença é que, o semeador teve, aparentemente, um
trabalho tranqüilo, enquanto que os pregadores das missões sofrem forte
resistência ao semear.
Em face da ordem de Jesus: “Ide por todo mundo, pregai o evangelho a toda
criatura” (Mc 16:15), questiona-se se os pregadores deveriam pregar também aos
troncos e aos animais. O termo era entendido como ser metafísico, aquilo que é, o
que existe, incluindo nisso tudo o que foi criado por Deus. Apoiado em Santo
Agostinho e São Gregório, Vieira resposta afirmativa, mas no sentido figurativo,
afirmando tratar-se de pessoas bárbaras e incultas, com diferenças, mas todos
seres humanos. Ele aproxima o sentido literal e alegórico da parábola, fazendo a
relação com uma característica específico das “criaturas” a quem deve ser pregado
o evangelho. O quadro está organizado em uma unidade, onde as partes
interdependentes estão integradas num sistema racional, graças à possibilidade de
combinar elementos reais e imagísticos.
As quatro “criaturas” que resistem ao pregador, mas que são objetos da sua
atuação:
Gênero de
“Criaturas”
Características
Das Criaturas
Origem dos
Obstáculos
Tipos de
Agravos
Objetos da
Pregação
homens racionais homens pisaram homens homens
animais sensitivas aves comeram homens brutos
plantas vegetativas espinhos afogara
m
homens troncos
pedras insensíveis pedras secaram homens pedras
82
Quadro 14 – As “criaturas” que resistem ao pregador, segundo Vieira.
Nota-se que o elemento que unidade ao argumento é o termo todo (ou
suas flexões). A pregação deve ser dirigida a toda criatura, a todo ser que Deus
criou; todas as criaturas, metaforicamente identificadas, resistem ao pregador; há,
portanto, novamente a semelhança criada pelo termo em destaque; por outro lado,
porém, revela a oposição de toda criatura ao pregador. O que foi dito aqui referia-se
à pregação do Evangelho em geral. Vieira exclama: “Grande desgraça!” Mas,
intensificando seus argumentos, ele quer dar mais destaque a sua própria
experiência, por isso afirma: “Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi
a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui e para onde
venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores”.
Se, conforme foi visto, Vieira identificara os obstáculos no trabalho
missionário do Brasil, pedras, espinhos e caminhos, agora ele passa a relatar algo
das dificuldades e sacrifícios sofridos pelos pregadores nas missões do Maranhão e
Pará; encontra uma semelhança entre os sofrimentos desses missionários e o trigo
da parábola; mas essa aproximação foi possível pela condução da interpretação
alegórica; o quadro abaixo visualiza isso:
PADECIMENTOS
DO TRIGO MEIO
DOS
MISSIONÁRIOS MEIO
Mirrado Falta de umidade Mirrados Sede
Fome
Doenças
Afogados Espinhos Afogados Águas dos rios
Comidos Pássaros Comidos Bárbaros
Pisados Homens Pisados Homens
Quadro 15 – Semelhança entre o trigo e os missionários, segundo Vieira.
83
Em face da narração dramática das adversidades enfrentadas durante doze
anos, mostrando um gesto de humildade, Vieira acrescenta que está revelando tudo
isso, não por causa dos pregadores, pois tudo é feito com amor, mas que sente pela
seara, isto é, pelo trabalho missionário, que para os pregadores são glórias. Essa
atitude de desprendimento, não podia deixar de comover o auditório e convencê-lo
pelo pathos.
A esta altura, o pregador pensa no semear em termos de tempo cronológico;
o trabalho aparentemente infrutífero corresponderia às três primeiras partes; na
quarta e última, houve muitos frutos, essa ainda falta vivenciar. Por isso pergunta, se
o pregador devia desistir ou continuar, sugerindo a última opção. Mas novamente
menciona sua volta a Portugal e seu rápido retorno aos campos missionários; ele
pergunta e responde: “Mas se tornasse muito depressa à casa buscar alguns
instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto
desistir?Seria isto tornar atrás? Não por certo!” Essa ida a Portugal e volta ao Brasil,
de forma apressada, mencionada, foi justificada com um texto da visão do profeta
Ezequiel, através de um processo inusitado de interpretação figurada, da seguinte
forma:
Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz, o mesmo texto que
aqueles animais tornavam, à semelhança de um raio ou corisco (...) Pois se
os animais iam e tornavam, à semelhança de um raio, como diz o texto que
quando iam não tornavam? Porque quem vai, e volta como um raio, não
torna. Ir, e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim fez o
semeador do nosso exemplo.
Pelo uso desta ipôfora, que é uma forma de argumentar, pois se faz a
pergunta e se a resposta, fica justificada a viagem de ida e volta a Portugal,
fazendo com que o texto bíblico de mais de 2200 anos sirva de prova para seus
argumentos, apesar da estranha interpretação.
No final do capítulo I, o padre jesuíta se mostra esperançoso com relação à
quarta e última sementeira e exalta o grande exemplo do semeador; incentiva os
pregadores a continuar, pois o último quartel da vida promete muitos frutos; com isso
faz um vigoroso apelo ao auditório; expressa seu desejo de que apareçam flores no
outono, e pergunta: “Porque não terão também os anos o que tem o ano?” Ele
raciocina por semelhança, comparando os anos transcorridos, como sendo o tempo
84
em que não houve frutos, à semelhança da semente que caiu nas pedras, nos
espinhos e no caminho; assim também o ano tem quatro estações, e no outono,
após a floração, aparecem os frutos, e pergunta: “Será bem que os últimos dias se
passem flores?”
11
Ele destaca que, sem flores não frutos, mas adverte que nem
todas as flores dão fruto. Aqui Vieira desenvolve uma figura apenas com as flores,
para ressaltar as que dão e as que não dão fruto; as que dão fruto estão pegadas ao
tronco, são as venturosas, discretas, duradouras, que aproveitam e assistem o
mundo; as que não dão fruto não estão pegadas ao tronco, elas caem, secam,
murcham e são levadas pelo vento. Observa-se que o aspecto decisivo que
determina o aparecimento de frutos é o fato de as flores estarem unidas ao tronco.
Isto faz lembrar as palavras de Jesus do Evangelho de João, capítulo 15; após
afirmar que ele era a videira, seu pai o agricultor e os discípulos os ramos, Cristo
acrescenta: “Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora como vara, e
secará” (v. 6).
Entretanto, no presente Sermão (cap. VI), na metáfora da árvore,
12
o tronco é
a matéria ou o assunto do sermão, que por sua vez pressupõe as raízes do
Evangelho, ou da palavra de Deus em sentido geral, que é a boa nova da salvação
através de Cristo Jesus; assim, o “pegar ao tronco” das flores, pode ser entendido
como uma união incondicional aos dogmas, crenças e práticas da igreja, conforme a
versão jesuíta, centrado na salvação em Cristo; outra maneira de se salvar não
,que são as flores não pegadas ao tronco; nestes podem estar incluídos os
seguidores da Reforma Protestante, contra os quais Vieira pregou em outros
sermões, uma vez que eles se separaram do “tronco”, de diversos dogmas e
tradições da igreja que se consideravam de origem apostólicas. A interpretação das
alegorias decorrentes desta figura, Vieira deixou para seus ouvintes, pois dentro de
dado contexto situacional, não lhes era difícil identificar ou concluir.
Concluindo esse primeiro capítulo, o pregador fez uma ponte para o próximo,
assedia o auditório com modéstia: “vindes enganado como pregador”, isto é: não
sou tão importante como vocês pensam, embora tenha informado da sua abnegação
e grande empenho nos campos missionários, junto a seus pares. Finalmente
11
Conforme quadro 7.
12
Conforme quadro 10.
85
anuncia que tratará de uma “matéria de grande peso e importância. Servirá como
prólogo aos Sermões que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes desta
Quaresma”. Ainda que agora se voltasse ao assunto do Sermão, os quinze por
cento de todo o texto, à guisa de introdução, serviu para aplicar a parábola ao seu
trabalho no Maranhão, e para justificar sua ida a Portugal, uma vez que ele defendia
a permanência dos pregadores nos campos missionários no exterior. São fortes
seus argumentos e usara diversos recursos para conseguir a adesão do auditório,
para o assunto que estava tratando, e prepara-o para o que havia de vir no Sermão.
Assim, nota-se que a argumentação é eficaz, ou seja, o logos é forte, quando se
consuma a adesão do auditório, fato que Vieira soube engenhosamente explorar.
Capítulo II Após repetir: “A semente é a palavra de Deus”, frase que
encabeça todo o Sermão, e constantemente repetida, Vieira reproduz a explicação
de Jesus da parábola, desdobrada em alegorias; ele chama a atenção para a
semente que caiu na boa terra, que “são os corações bons, ou homens de bom
coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e
abundância, que se colhe cento por um”. Diante desse fato repete a pergunta que
tenta responder durante o Sermão: “Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão
poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?” O enigma está
desvendado nos próximos capítulos, mas neste, a questão torna-se candente,
fazendo com que o auditório fique interessado na resposta, pois o problema parece
ser de difícil solução.
Todo raciocínio é construído sobre um fato que se considerava provado na
parábola, o referente à semente que caiu em boa terra e que deu frutos, cem por
um. A experiência do passado confirmou isso, segundo o pregador:
Vede as Histórias Eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis
efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos,
tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes
desprezando as riquezas e vaidades do mundo; os reis renunciando os
cetros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos
desertos e pelas covas.
Em face do efeito da palavra de Deus narrado na parábola e confirmado na
vida dos cristãos no passado, o que se podia esperar foi que hoje ainda seja assim,
pois: “Assim como Deus não é hoje menos Onipotente, assim a sua palavra não é
86
hoje menos poderosa do antes era”. Mas Vieira constata com tristeza que, apesar de
tudo isso, e mesmo vendo hoje muitos pregadores e muitas pregações, ele se
queixa: “Não um homem que num Sermão entre em si e se resolva; não um
moço que se arrependa; não um velho que se desengane”, e exclama: “Que é
isto?”
Diante dessa realidade justifica-se a pergunta do porquê. Digno de nota é o
topos: antes e hoje, antíteses que funcionam como oposição entre a eficácia da
palavra de Deus no passado e a sua ineficácia no presente. Outro fato importante
que chama a atenção é o uso freqüente da expressão “palavra de Deus”; são 15
vezes em 26 linhas neste capítulo; a sua repetição enfatiza a mensagem decorrente
dessa palavra que estava sendo tratada como objeto da pregação. O pregador
projeta a resposta a sua pergunta para frente, o que aumenta a expectativa dos
ouvintes. Novamente, no fim deste capítulo, o pregador dirige-se ao auditório,
fazendo um apelo indireto, a fim de que se preste atenção; ciente de que pregador e
ouvinte são uma via dupla, ele inclui-se nessa relação ao dizer: “Quero começar
pregando a mim. A mim será, e também a vós: a mim para aprender a pregar: a vós
para que aprendais a ouvir”. Mas, após todo o repertório, antes de abordar de fato o
assunto central do Sermão, incita a curiosidade do auditório, tentando conseguir a
total atenção, primeiro passo do convencimento, objetivo final da sua apresentação.
Capítulo III Neste capítulo o padre jesuíta começa a analisar as três
possíveis causas, que ele chama de “princípios”, responsáveis pelo fraco
desempenho da palavra de Deus: o pregador, o ouvinte ou Deus. Sempre
preocupado com a apresentação de um sistema coerente, ele cria uma figura para
organizar esses “princípios”. Partindo de uma observação natural, ele afirma: “Para
um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz”.
Com esses elementos, ele cria alegorias que ilustram a conversão.
13
Cada um
desses três elementos está ligado a um dos três “princípios” acima mencionados.
Conforme Vieira: “O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus
concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o
conhecimento”. As alegorias criam um círculo que completa o processo: o pregador
tenta persuadir o pecador da necessidade da salvação; Vieira talvez tinha em mente
13
Conforme quadro 8.
87
as palavras de São Paulo: “Logo a é pelo ouvido, e o ouvido pela palavra de
Cristo” (Rm 10:17). Ao ouvir corretamente a palavra de Deus, a pessoa, objeto da
pregação, percebe seu estado e entende o plano de Deus para sua salvação, mas
tudo isso é possível porque Deus ilumina àquela pessoa com sua graça. Esta figura,
na verdade, ainda não faz parte da resposta na pergunta central. É apenas um
recurso para visualizar mentalmente todos os elementos do processo e suas
reações entre si. Pode ser considerado um meio para facilitar a argumentação.
Na abordagem de cada um dos “princípios”, Deus foi inocentado de
responsabilidade pelos poucos resultados da pregação. No início da sua
argumentação, Vieira declara: “Esta proposição é de fé, defendida no Concílio
Tridentino, e no nosso Evangelho a temos”. O Concílio de Trento reafirmou os
dogmas católicos tradicionais e tomou posição frente ao protestantismo. A doutrina
calvinista da predestinação, por exemplo, foi rejeitada; aquela posição do Concílio
estava de acordo com São Paulo ao declarar, referindo-se a Deus, que “quer que
todos os homens se salvem e que cheguem a ter o conhecimento da verdade” (1 Tm
2:4). As palavras “no Evangelho a temos”, referem-se ao poder da semente na
parábola, identificada com a palavra de Deus, que nasceu nas pedras, nos espinhos
e na terra boa. Apenas em um dos casos, a semente que caiu no caminho, foi
comida pelos pássaros e pisada pelos homens, não nasceu. Isto é mais uma prova
do poder da palavra de Deus; logo Deus não pode ser responsabilizado pelos
poucos frutos.
Outro argumento que isenta a Deus conclui-se da omissão de fatores
climáticos, como chuva e sol, que poderiam prejudicar as plantas e frustrar a
colheita. A falta de menção de qualquer prejuízo por causa daqueles fatores,
encontra apoio nas palavras de Cristo do Sermão da Montanha, onde ele declara
que Deus “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuva sobre justos e
injustos” (Mt 5:45). O pregador corrobora sua argumentação com as palavras do
profeta Isaias, que conta uma parábola, na qual o povo de Israel foi identificado com
uma videira, preparada por Deus para dar frutos. O Senhor, pelo profeta, pergunta:
“Que coisa que eu devesse ainda fazer à minha vinha, que lhe não tenha feito?”
(Is 5:4). A resposta a esta pergunta retórica é que Deus tinha feito tudo o que
podia fazer, e que agora dependia do seu povo para produzir frutos; de forma
88
semelhante, é o argumento implícito: Deus disponibilizou a salvação a todos. Por
todos esses argumentos, portanto, Vieira provou que Deus não pode ser culpado
pelo fraco rendimento na hora da colheita, isto é, das poucas conversões como
resultado da pregação da palavra de Deus.
Analisando outro “princípio”, Vieira afirma que os pregadores dão a culpa aos
ouvintes pelo pouco efeito da palavra de Deus. Mas ele não concorda e,
decididamente, sentencia: “Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de
Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto, e nenhum efeito, não é por
parte dos ouvintes. Provo”. Para discutir o caso, este pregador segue um recurso
utilizado tantas vezes: ele desdobra o assunto, dividindo os ouvintes em bons e
maus, que ele vai demonstrar na própria parábola: as três primeiras partes
semeadas representam os maus,
14
a quarta, os bons ouvintes. Mas, se os ouvintes
são maus ou bons por que discordar com a opinião dos pregadores que culpam os
ouvintes? Foi necessário introduzir um outro elemento, para manter a coerência do
texto: nos bons a palavra de Deus produz muitos frutos, nos maus não produz frutos,
nem faz efeitos. Se a palavra de Deus não faz efeito, como ele de fato constata,
então a culpa pode ser do pregador, o que ficará evidente nos próximos
capítulos. Para reforçar a idéia de que a referida palavra deveria fazer efeito, Vieira
volta a citar o poder da semente na parábola, que nasceu em três dos quatro tipos
de solo, sendo que em um secou-se, em outro afogou-se e no último frutificou. E,
retomando o argumento conclui: “O trigo que caiu na terra, não frutificou, mas
nasceu; porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito fruto, e é
tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito”.
Antes de avançar na avaliação da terceira hipótese levantada, o pregador
detém-se em dois tipos de maus ouvintes, aos quais dedica grande parte deste
capítulo; são os de vontades endurecidas, semelhantes às pedras.
15
Ao caracterizar
os primeiros, afirma:
Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vem a
ouvir sutilezas, a esperar galanterias, a avaliar pensamentos, e às vezes
também para picar a quem não os pica (...) vós sóis os que picais o Sermão.
Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos.
14
Conforme quadro 9.
15
Conforme quadro 20.
89
Aqui Vieira o motivo da sua avaliação negativa, pois esse tipo de ouvintes
gostam das sutilezas gongóricas, especulações dialéticas, procura de novidades,
busca de relações sutis entre conceitos e palavras; assistiam às pregações para
serem vistos, receberem homenagens e reconhecimento; iam movidos pela
curiosidade do sermão, como estrutura, conteúdo, articulações, a fim de expressar
um juízo de valor do sermão como tal, mas sem aplicá-lo a suas próprias vidas; a
crítica ao sermão e ao pregar não estava excluída nessa apreciação. Vieira,
seguindo sua avaliação, mas agora com relação aos ouvintes de vontades
endurecidas, considera-os piores que os anteriores, pois nos ouvintes de
entendimentos agudos, pode-se vencer uma agudeza com outra maior,
acrescentando: “Mas contra vontades endurecidas nenhuma cousa aproveita a
agudeza, antes dana mais, porque quando as setas são mais agudas, tanto mais
facilmente se desponta na pedra”, e finalmente vem a exclamação: “Oh! Deus nos
livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras!”
No primeiro momento foi estabelecido semelhança entre a semente que caiu
entre as pedras e os ouvintes de vontades endurecidas. Mas agora o pregador
mostra com outro texto da Bíblia que as pedras podem abrandar-se, enquanto que
os corações ficam endurecidos; portanto, da semelhança passou-se à diferença. O
primeiro texto refere-se a Moisés, que após ferir a rocha com sua vara, saiu muita
água (Nm 20:11), mas o coração de Faraó endureceu-se e não deixou sair o povo
de Israel da escravidão no Egito (Ex 7:13). Dirigindo-se aos corações embaraçados
como espinhos e aos corações secos e duros como pedras, Vieira faz um apelo,
para que sigam o exemplo dos espinhos e das pedras; mesmo que ainda resistam,
“mas virá o tempo em que essas mesmas pedras o aclamem, e esses mesmos
espinhos o coroem”. Os textos referem-se ao martírio de Jesus; o dos espinhos é o
seguinte: “E tecendo uma coroa de espinhos lha puseram sobre a cabeça, e na sua
mão direita uma cana. E ajoelhando diante dele, o escarneciam dizendo: Deus te
salve, rei dos judeus” (Mt 27:29). Relacionado às pedras, alusão a um episódio
narrado por São Mateus, acontecido após a morte de Jesus na cruz: “Eis que se
rasgou o véu do templo em duas partes do alto a baixo: e tremeu a terra, e partiram-
se as pedras” (Mt 27:51).
90
No final deste capítulo, Vieira deu por provado que “não triunfar dos alvedrios
hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por
indisposição dos ouvintes”. De tudo o dito acima, conclui-se que o responsável pela
carência de fruto e efeito da palavra de Deus, é o pregador; Vieira pergunta e
responde: “sabeis, Cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos
Pregadores. Sabeis, Pregadores, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa
nossa”.
Neste capítulo houve várias digressões, sem que se comprometesse a
unidade do ponto em discussão; ligado a isto está a divisão em partes, uma certa
atomização, mas voltando novamente a se fazer a síntese. O raciocínio focando a
semelhança ou a diferença, como alhures, é uma constante neste capítulo. O
processo de acomodação resulta bastante forçado em certos textos bíblicos, como
no caso da afirmação: “Moisés abrandou as pedras”, encontra seu contrário no
coração de Faraó, que se endureceu. Isto também se constata com relação aos dois
últimos textos referentes ao martírio de Jesus; os espinhos se curvaram para fazer
uma coroa, mesmo que a coerência fique comprometida, pois a coroa não era para
honrar a Cristo, mas para injuriá-lo, para escarnecê-lo; as pedras se racharam,
abrindo-se para deixar passar os corpos que estavam ressuscitando, serviriam como
sinal que elas não resistem à vontade e poder de Deus. Mas todo esse raciocínio
sutil faz parte da forma de argumentar do pregador jesuíta, preocupado em fechar
todos os espaços, e impedindo qualquer contestação em contrário. Mesmo assim,
não deixa de ser sintomático que os ouvintes de entendimentos agudos e os de
vontades endurecidas, sejam considerados os “piores”, mas a culpa da falta de
frutos e efeitos da palavra de Deus recaia sobre os pregadores.
Capítulo IV Uma vez que ficou provado que o pregador é culpado, o
assunto passa a ser dividido, enfocando cinco “circunstâncias” do pregador, que
são: “A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a
voz com que fala”. O presente capítulo é dedicado à pessoa do pregador.
O argumento deste capítulo estrutura-se sobre dois eixos temporais:
antigamente versus hoje. Em face da ausência de frutos da palavra de Deus hoje,
fazendo concessões ao auditório, o jesuíta pergunta: “Será porque antigamente os
91
Pregadores eram santos, eram Varões apostólicos e exemplares, e hoje os
pregadores são eu e outros como eu? Boa razão esta”. À medida que o texto
progride, surgem as diferenças entre o antigamente e o hoje. Desde Vieira
antecipa que a vida e o exemplo definem o pregador, ou seja, esses elementos
fazem parte da essência do pregador verdadeiro. Diversas passagens da Bíblia são
mencionadas, as primeiras para provar que a diferença entre ter o nome de
pregador e pregar a palavra de Deus; o primeiro estaria prefigurado na parábola.
Segundo Vieira, não consta o termo semeador, mas o texto diz: “Saiu a semear o
que semeia”. Assim, há diferença entre o soldado e o que peleja, entre governador e
governar. Aqui, a profissão ou cargo, representado por um substantivo, opõe-se à
função, ou execução de uma atividade; o verbo implica ação, daí a conclusão:
“Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as
ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O
melhor conceito que o Pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o
conceito que de sua vida têm os ouvintes”.
Novamente surge a pergunta pelas conversões que houve antigamente, cuja
resposta é que antigamente pregavam-se palavras e obras; hoje, ao contrário,
pregam-se palavras e pensamentos. As obras equivalem à ação, definido pelo verbo
semear, ou seja, pregar. Com isto criaram-se semelhanças e oposições: tanto
antigamente como hoje pregam-se palavras, mas no passado eram acompanhadas
de obras; hoje, porém, pregam-se palavras e pensamentos, conforme o seguinte
quadro:
OPOSIÇÃO ENTRE ANTIGAMENTE E HOJE
PREGAÇÃO ANTIGAMENTE HOJE
CONVERSÕES Sim Não
CONTEÚDO DA
PREGAÇÃO
Palavras e obras Palavras e pensamentos
Quadro 16 – Comparação entre antigamente e hoje, segundo Vieira.
A metáfora: “Palavras sem obras são como tiro sem bala, atroam, mas não
ferem”, serve de introdução aos textos que confirmam a necessidade das ações.
Segundo Vieira, a funda de Davi derrubou o gigante, mas não o derrubou com o
92
estalo, senão com a pedra; seguem as palavras do texto sagrado:”Davi meteu a mão
no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na
testa; e a pedra se lhe cravou na testa, e caiu sobre o seu rosto em terra” (1 Sm
17:49). O outro texto, também relacionado com Davi, conta que quando Saul estava
possuído de um espírito mau, “Davi tomava a harpa, e a tocava com sua mão; então
Saul sentia alivio, e se achava melhor, e o espírito mau se retirava dele” (1 Sm
16:23). Relembrando que Cristo comparou o pregador ao semeador, Vieira arrasou-
a: “o pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é semear, faz-se com a
mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias
obras”.
Como o objetivo foi mostrar, não apenas a importância, mas também a
necessidade das obras, da ação, além das palavras, o pregador teve que
desenvolver um raciocínio de acomodação mais elaborado do texto bíblico
mencionado. Se na primeira abordagem as palavras foram, de uso comum, tanto
dos pregadores de antigamente como os de hoje, a partir de determinado momento,
palavras e obras se opõem; por isso o esforço de adaptação. A harpa era um
instrumento de cordas que Davi dedilhava. O Salmo 150, referindo-se a uma época
posterior, menciona diversos instrumentos musicais, entre eles a harpa. Conforme a
Bíblia de estudo Almeida (1999, p. 670): “Estes eram os instrumentos musicais
habitualmente usados no acompanhamento dos cânticos entoados no culto do
templo”. O próprio Davi compôs inúmeros Salmos, e como rei de Israel, tomou as
seguintes providências: “E disse Davi aos príncipes dos levitas que constituíssem a
seus irmãos, os cantores, com instrumentos músicos, com alaúdes, harpas e
címbalos, para que se fizessem ouvir, levantando a voz com alegria” (1 Cr 15:16).
Pelos textos pode-se concluir que o som da harpa e do canto conjugavam-se,
mas Vieira precisava enfatizar o uso das mãos como metonímia para a ação, e para
isso teve que excluir a voz, pois esta opunha-se ao seu argumento. Uma vez
estabelecido que o sucesso de Davi na expulsão dos demônios de Saul em
conseqüência da sua habilidade produzida foi por suas mãos, Vieira voltou para a
parábola, dando destaque ao ato de semear, que naquela época era feita com a
mão. Ainda seguem mais provas com o seguinte comentário: “Diz o Evangelho, que
a palavra de Deus frutificou cento por um (...) Quer dizer, que de poucas palavras
93
nasceram muitas obras, vede se podem ser palavras!” Discute-se a continuação
a questão da maior relevância teológica do Cristianismo, qual seja, a vinda do filho
de Deus, para a salvação da humanidade.
Do dogma a respeito de Jesus, Filho de Maria, verdadeiro homem, e ao
mesmo tempo Filho de Deus, verdadeiro Deus, o célebre pregador tira uma prova
que confirma sua proposição; afirma ele que Deus, para converter o mundo, mandou
seu Filho feito homem. Baseado no Evangelho de São João, que diz: “E o Verbo se
fez carne” (Jo 1:14), mostra as duas realidades: Jesus é o Verbo, gerado do Pai, e
esse Verbo se fez carne; o verbo fazer é considerado ação, por isso a declaração:
“O Filho de Deus enquanto Deus, é palavra de Deus, e não é obra de Deus (...) O
Filho de Deus enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus
juntamente” (...) . A conclusão é a seguinte: “De maneira que até de sua palavra
desacompanhada de obra, não fiou Deus a conversão dos homens”. Sendo que
para a consumação da salvação do mundo Deus juntou sua palavra com sua maior
obra, o verbo se tornando carne. A idéia deste raciocínio intrincado, fundado na
linguagem, é esta: como na salvação do mundo, além da palavra de Deus (Verbo
Divino), foi necessário que ele se faça gente (ação), assim a pregação sem a prática
das obras é ineficaz.
Após mostrar a importância das obras, em oposição às palavras, ou além
delas, agora o assunto é retomado, associando palavras e obras aos sentidos, o que
irá determinar a eficácia da pregação; como de resto em Vieira, aqui ele prioriza o
sentido da visão, quando observa: “(...) as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as
palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-
se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos”. O sentido da visão também é
determinante com relação aos sentidos para com Deus, como o amor. Prova disto
seria que, no céu todos amam a Deus, na terra, no entanto, poucos o amam, por
quê? Vieira responde:
A razão é, porque Deus no céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido.
No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos (...); na terra
entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos (...); e o que entra pelos
ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita.
94
Parte do primeiro texto bíblico mencionado, é de São João: “Amados, agora
somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas
sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim
como é o veremos”. (1 Jo 3:2). Outro texto citado em latim é do Apóstolo Paulo aos
Romanos: “De sorte que a é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm
10:17).
O argumento destes textos relaciona-se ao cerne da atitude religiosa. A é
“o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se
vêem” (Hb 11:1). Logo, uma vez alcançado o que se esperava e vendo o que era
invisível, a não existirá mais. É necessário fazer um considerável esforço mental
para associar o acima referido ao argumento de que o ver é mais convincente do
que o simples ouvir, e que o ver remete a ações, a obras, enquanto que o ouvir está
relacionado apenas a palavras. Pode-se encontrar também de forma subjacente
uma teoria de ensino e de aprendizagem, que privilegia o visual em detrimento do
auditivo. Isto fica mais evidente no próximo parágrafo.
A ênfase no sentido da visão é ilustrada por uma cena hipotética sobre o
martírio de Jesus. O pregador pode narrar os acontecimentos, mesmo de forma
dramática conseguindo apenas a atenção do auditório; mas se esses mesmos
episódios narrados forem representados num cenário, a reação dos ouvintes será de
grande emoção e ou comoção. Embora este exemplo mostre a supremacia do
sentido da visão sobre o da audição, apontando para as obras do pregador, a
ilustração também revela a maneira jesuíta de pregar, e de Vieira, em especial,
conforme ele mesmo reclama: “Sabem, Padres Pregadores, por que fazem pouco
abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos aos
ouvidos”.
O pregador faz desfilar personagens da Bíblia em apoio à importância do ver.
Assim, João Batista convertia muitos pecadores porque, ao mesmo tempo em que
suas palavras pregavam aos ouvidos, o se exemplo pregava aos olhos. Enquanto
pregava penitência, dizendo: “Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus”,
ele mesmo era “retrato da penitência e da aspereza”; suas palavras pregavam o
jejum, e “repreendiam os regalos e demasias da gula”, e ao mesmo tempo, seu
95
exemplo mostrava um homem que se alimentava de gafanhotos e mel silvestre;
suas palavras pregavam “composição e modéstia, e condenavam a soberba e a
vaidade das galas”, e pelo exemplo mostrava um homem vestido de peles de
camelo, “com as cerdas e silício à raiz da carne”; enquanto as palavras do Batista
pregavam “desapegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões dos homens”, o seu
exemplo revelava alguém que abandonou as cortes dos palácios e as cidades, para
viver no deserto e em cova. O pregador arremata com uma pergunta retórica: “Se os
ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão de converter?” A resposta é
evidente, pois é justamente esse o teor deste capítulo: mostrar que apenas as
palavras que chegam aos ouvintes, não convertem ninguém; o que converte são as
palavras acompanhadas dos respectivos exemplos que são as obras, as ações.
O último exemplo usado para reforçar as provas, vem de um episódio da vida
do patriarca Jacó, de difícil compreensão, mas que Vieira usa a seu favor. Jacó
serviu a Labão, primeiro pelas duas filhas e depois como parceiro do rebanho; pelo
acordo feito entre ambos, todos os cabritos e carneiros malhados e com manchas,
eram de Jacó (Gn cap.30). A isto se refere o texto do Sermão: “Jacó punha as varas
manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os
cordeiros nasciam malhados”.que levar em conta que naquela época acreditava-
se que a cor das crias era determinada pela cor do objeto para o qual a fêmea
estivesse olhando no momento de cruzar. Destacando o verbo conceber, Vieira
conclui:
Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos
as nossas manchas, como hão de conceber virtudes! Se a minha vida é
apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão refutadas
nas minhas obras, se uma coisa é o semeador, e outra o que semeia, como
se há de fazer fruto?
No final do capítulo, prevendo que poderia ser contestado, Vieira apresenta
como contra-exemplo o profeta Jonas, que fugiu de Deus e tinha todos os defeitos
que se possa imaginar, foi “desobediente, contumaz, iracundo, impaciente, pouco
caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da
honra de Deus e salvação das almas”, mesmo assim, foi convincente com seu
sermão, a ponto de converter “o maior Rei, a maior Corte e o maior Reino do mundo
96
(...) e de gentios idólatras”. Finalizando, observa que esta não é a única causa que
responde à pergunta, e anuncia que há outra.
O foco desta parte são os argumentos, todo o Sermão rende tributos ao
logos. No presente capítulo, centrado na pessoa do pregador, forte ação do
ethos, que por sua vez, tem reflexos no pathos, no auditório. Se na retórica clássica
o orador, para ser convincente, tinha obrigação de dar a impressão de possuir um
caráter íntegro, na oratória sacra Vieira exige que o caráter do pregador seja no
nível do ser e da ação, não apenas do parecer. Por isso, ele vai além da aparência
do sensato, sincero e simpático, relacionados ao pathos.
Capítulo V Este capítulo trata do estilo do pregador. Vieira estabelece uma
oposição entre o estilo adequado e o impróprio para o púlpito. uma forte crítica
ao estilo culto. Vale recordar que o cultismo, ou gongorismo, ocupava-se mais com a
forma, empregava uma linguagem rebuscada, saturada de figuras e usava os mais
diversos recursos expressivos. Nesta parte do Sermão, encontramos diversas
expressões desabonadoras contra o cultismo; é considerado um estilo: “violento,
tirânico e desventurado”. O pregador declara que o que querem honrar, chamam-no
de culto, mas para os que o condenam, é escuro, acrescentando que para ele é
“negro, boçal e muito cerrado”; comenta que se chega ao extremo de, portugueses
ouvirem um sermão em português, e não entenderem; defende o emprego de um
vocabulário próprio para o púlpito; exemplos do uso abusivo de perífrases, como
por exemplo: Cetro Penitente, para Davi; Apelis, para São Lucas; Favo de Claraval,
para São Bernardo; Águia de África, para Santo Agostinho, entre outros.
Vai também uma severa crítica contra os pregadores que criam oposições ao
nível da linguagem, uma característica geral do barroco, assumida pelo cultismo, e
que Vieira chama de “xadrez de palavras”:
Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os Pregadores fazem o
sermão em xadrez de palavras. Se uma parte está Branco, de outra de
estar Negro; se de uma parte está Dia, de outra de estar Noite; se de
uma parte dizem Luz, de outra hão de dizer Sombra; se de uma parte dizem
Desceu, da outra hão de dizer Subiu. Basta que não havemos de ver num
sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira
com o seu contrário?
97
aqui uma crítica contundente contra o emprego abusivo e indiscriminado de
antíteses, por vezes forçadas.
Como homem de confiança do rei e como afamado pregador, Vieira
despertou a inveja de cortesãos e religiosos de outras ordens, principalmente, dos
dominicanos gongóricos encarregados da Inquisição. A crítica ao estilo culto,
portanto, tem esses pregadores em mente. Neste Sermão o padre lança fortes
ataques contra a parenética deficiente, que são os exageros gongóricos, como por
exemplo, a linguagem afetada. Além disso, refere-se a eles como frades palacianos,
fazendo um trocadilho com Paço e passos, critica sua maneira de pregar e
considera-os suspeitos pela falta de dedicação missionária, conforme será
evidenciado mais adiante.
Ao contrário do estilo culto, Vieira propõe um estilo muito natural e muito fácil.
Argumenta que, enquanto na música, na arquitetura, na aritmética e na geometria há
muita arte, o semear tem mais natureza do que arte, é uma arte sem arte, “cair onde
cair”, isto é, o semeador simplesmente semeou, fazendo cair a semente. Dá-se
novamente realce ao nascer da semente em três dos quatro tipos de solo em que a
semente caiu. Com o verbo cair
16
, cria-se oposição entre o “estilo violento e tirânico
que hoje se usa”. Personificando o texto bíblico, Vieira considera-o injustiçado, pois
afirma:
Ver vir os tristes Passos da escritura como quem vem ao martírio; uns vêm
acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm
torcidos, outros vêm despedaçados; atados não vêm! tal tirania?
Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no
levantar, está no cair.
Entre outros defeitos, aquele estilo carece de unidade temática e de síntese; falta-
lhe aquele aspecto ao qual, Vieira se refere no próximo capítulo, ao determinar: “(...)
e depois disto de colher, de apertar, de concluir, de persuadir, de
acabar”. A expressão: “que bem levantado está aquilo”, refere-se ao estilo
grandilocuente e que pretendia impressionar com seus malabarismos formais; tudo
isso se opõe ao estilo natural e simples, que deixa a semente cair. Aproveitando o
16
Conforme quadro 22.
98
verbo levantar usado, Vieira o contrapõe ao verbo cair, levando em conta toda a
carga semântica nele depositado.
A construção da figura alegórica do cair da semente continua sendo
aperfeiçoada. Na argumentação supra dava a impressão de que o semeador
simplesmente deixava a semente cair sem se importar, onde caia, mostrando certa
indiferença, tanto é que três lugares semeados eram impróprios: caminho, espinhos
e pedras; mas aqui o semeador exige três modos de cair “para o sermão vir
nascendo”. Ele deve cair com queda, para as coisas, “bem trazidas e em seu lugar”;
de cair com cadência, para as palavras, porque “não hão de ser escabrosas nem
dissonantes”; deve também cair com caso, para a disposição, “porque de ser
natural é tão desafetada que parece caso e não estudo”. Tudo isto se refere a
aspectos formais, onde se localizam os pecados mortais do cultismo, que o insigne
pregador queria corrigir, daí essas orientações.
Diferente dos pregadores de hoje, o padre jesuíta apresenta o mais antigo
pregador que ouve; ele apóia-se no Salmo 19, onde se lê: “Os céus manifestam a
glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Sem linguagem, sem
fala ouvem-se as suas vozes, em toda a extensão da terra, e as suas palavras até
do fim do mundo” (Sl 19:1.3.4). Personificando o céu, isto é, o cosmo ordenado,
torna-se pregador exemplar, que possui palavras e sermões, que são ouvidos. A
figura passa a ser composta em alegorias: “As palavras são as estrelas; os sermões
são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas”. O céu como metáfora do
semeador da terra, semeia estrelas; o da terra, semeia trigo, conforme o seguinte
quadro:
ESTILO DOS PREGADORES
PREGADORES ATIVIDADE
DO CÉU Semeiam estrelas
DA TERRA Semeiam trigo
Quadro 17 – Estilo dos pregadores do céu e os da terra, segundo Vieira.
Segue a afirmação: “O pregador de ser como quem semeia, e não como
quem ladrilha, ou azuleja. Ordenado, mas com as estrelas”; continua com uma
99
citação do Livro dos Juízes: Desde os céus pelejaram: até as estrelas desde os
lugares dos seus cursos pelejaram contra Sísera” (Jz 5:20); Vieira conclui: “Todas as
estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça
lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os Pregadores fazem o
sermão em xadrez de palavras”. O versículo da Bíblia citado foi tirado do contexto de
um cântico, presidido pela líder Débora, após a vitória contra Sísera durante a posse
da Terra de Canaã por parte do povo de Israel. Em tom poético, é como se as
estrelas tivessem participado da luta, e garantindo a vitória, mas sem sair do seu
curso. Por um minucioso exercício de raciocínio, chega-se à conclusão que, como o
objetivo foi mostrar o estilo do céu semeando estrelas, este semear não é algo
passivo, de brilho, de luxo, muito elaborado e trabalhoso, cansativo; ao contrário,
é uma atividade que tem ordem, harmonia e o curso delas, sem se desviar dos seus
cursos, mas desde lá, como no texto bíblico pelejaram a favor de Israel, assim
continuam semeando e são um exemplo para o semeador.
Uma vez que as palavras são estrelas, o céu o exemplo da disposição e
também das palavras, que não devem estar em xadrez; a exemplo das estrelas, o
estilo deve ser muito claro, muito distinto, mas não baixo, pois as estrelas são
altíssimas; mesmo assim, tanto o letrado como o analfabeto, “entendem as estrelas”;
assim deve ser o sermão, ficando claro que esse pregar não é o estilo culto. Vieira
pergunta aos ouvintes, se eles confiariam sua causa a um advogado que usasse
aquele estilo por ele proscrito, ou se considerariam normal que alguém empregasse
aquele estilo na fala do dia-a-dia.
Antes de finalizar o capítulo, Vieira apresenta exemplos contrários a sua tese,
citando cultistas famosos, mas ele observa: “(...) não podemos negar a reverência a
tamanhos Autores, posto que desejáramos nos que se prezam de beber destes rios,
a sua profundidade”.
Enfatizando o cair neste capítulo, Vieira deu por provado que a “circunstância”
do estilo é em parte responsável pela falta de fruto da palavra de Deus. O estilo
censurado, conforme acima comprovado, foi o cultismo, uma das abordagens,
quanto à forma, do Barroco. Mas, por mais contundente que esse pregador jesuíta
tenha sido, os seus argumentos mostram empregos formais por ele criticados, isto é,
100
ao fazer reparos ao cultismo, ele mesmo rende-lhe culto. Assim, uma das práticas
denunciadas, é a apresentação do contrário de um termo usado; constata-se que o
emprego das oposições também é freqüente nele. Neste capítulo, por exemplo,
encontram-se oposições, como: céu e terra, arte e natureza, pregadores de hoje e
pregador antigo, estilos modernos e estilo do mais antigo pregador, luz e sombra,
cair e elevado; fala do rústico que não sabe ler e do matemático que tem lido quanto
escreveram; trata do estilo dificultoso e do estilo fácil; o estilo culto é escuro, é
negro, mas o estilo da pregação do céu é muito claro. O pregador de ser como
quem semeia e não como quem ladrilha ou azuleja, onde um é deixar cair a semente
naturalmente, e o outro modo é elaborado, polido, estudado, estilo muito trabalhado.
Tratando dos modos de cair, lê-se que as palavras devem ter cadência, não devem
ser escabrosas nem dissonantes; o caso, que é para a disposição, deve ser “tão
natural e tão desafetado que pareça caso e não estudo”. Sobre a ordem das
estrelas, afirma-se que ela faz influência, não labor. Deus não fez o céu em xadrez.
A diferença com relação aos cultistas escancarados, é que Vieira critica a
oposição de termos como algo obrigatório daquela escola, enquanto que ele não
sempre apresenta os contrários; por outro lado, a oposição não fica apenas no nível
lexical, mas por vezes estende-se ao campo semântico que ele expressa por
paráfrases. Por tanto, o uso extensivo de antíteses foi uma prática, tanto no
cultismo, como no conceptismo de Vieira.
Capítulo VI Na procura à resposta, Vieira pergunta: “Será pela matéria ou
matérias que tomam os pregadores?” Do texto da parábola: “Saiu o que semeia, a
semear o seu grão”, foi dado ênfase a palavra grão, ou semente, que é a palavra de
Deus. Na abordagem desta “circunstância”, a matéria do pregador, não será
questionado se o pregador realmente prega a palavra de Deus, isto será feito mais
tarde; por ora, pressupõe-se que o sermão tenha sua base na palavra de Deus. Aqui
se estabelecem as regras da disposição do sermão, conforme os passos
expostos,
17
que são: o tema, a proposição, a divisão, a prova ou amplificação, a
confutação e a peroração. No quadro abaixo pode-se visualizar a abordagem da
matéria na elaboração do sermão:
17
Conforme capítulo VI.
101
A MATÉRIA DO SERMÃO – REGRAS DA DISPOSIÇÃO
PROCEDIMENTOS
FINALIDADE/
AÇÂO
INSTRUMENTO/
MEIO
O QUÊ?/
OBJETO
Definir Conhecer
Dividir Distinguir
Provar Escrituras
Declarar Razão
Confirmar Exemplo
Amplificar
Causas
Efeitos
Circunstâncias
Seguir Conveniências
Evitar Inconvenientes
Responder Dúvidas
Satisfazer Dificuldades
Impugnar/refutar Força/eloqüência Contra-argumentos
Colher
Apertar
Concluir
Persuadir
Acabar
Quadro 18 – As regras da disposição, segundo Vieira.
102
Antes da apresentação dessas regras, o padre pregador fundamenta a
necessidade da unidade temática do sermão, isto é, escolher e pregar sobre “um
assunto, uma matéria, uma cor, um objeto”. O argumento encontra sua
prova na própria parábola, de onde se depreende que o semeador semeou um
gênero, um tipo de semente; essa simples dedução é tomada como prova cabal
para a defesa de sua posição a respeito do sermão, que deve girar em torno de um
único assunto. A ação de “refutar com toda força da eloqüência os argumentos
contrários”, conforme Vieira assinala depois, ele está aplicando em este ponto, pois
condena o contrário daquela unidade temática, denunciando novamente os
pregadores de hoje, cujo método era “apostilar”, tomar “muitas matérias, muitos
assuntos”; justifica essa crítica, o fato de o semeador da parábola, não semear,
conforme aqui se argumenta: trigo, centeio, milho e cevada, tudo junto, pois fazendo
isso, não haveria possibilidade de colheita de frutos.
Foi trazido o caso hipotético de uma experiência humana; metaforicamente foi
criada uma semelhança entre a diversidade de assuntos do sermão, com alguém
que tentasse dirigir sua nau em diversas direções ao mesmo tempo, não chegando a
lugar algum. Com estas figuras, o auditório foi desafiado na sua imaginação a
posicionar-se; chegaria à inevitável conclusão do absurdo de tais procedimentos;
aplicados ao sermão, a tese da unidade temática torna-se verossímil, e portanto,
sem obstáculos para ser convincente.
Mas, ainda foi oportuno apresentar dois pregadores exemplares da Bíblia, um
do Antigo e outro do Novo Testamento; eles foram evocados como autoridades
divinas para confirmar aquilo que o texto-base dava a entender, e o que as
experiências humanas confirmam. Tanto Jonas como João Batista, pregavam sobre
um único assunto. A idéia da matéria única, durante a pregação, encontra um
paralelo entre ambos os pregadores da Bíblia, pois Jonas anunciava a destruição de
Nínive, a não ser que haja arrependimento (Jn 3:4); João Batista, igualmente,
chamava ao arrependimento e à prática da virtude. Esta dupla identidade, ou
semelhança, faz o argumento irrefutável, ainda mais quando se levar em conta que
ambos tiveram sucesso na sua missão que lhes fora confiada.
103
Após ter ficado provado pela parábola, o que o semeador fez e o que não fez;
de se ter demonstrado o que não é normal acontecer nas atividades humanas,
ficando o contrário evidente, aquilo que Vieira defendia; após ter corroborado tudo
isto com o exemplo de dois pregadores que tinham um só conteúdo, que nesse caso
indicavam a necessidade de arrependimento, chegou então o momento de proceder
à apresentação das regras da disposição, enfocando as partes, conforme o quadro
supra. Vieira salienta que pode haver variedade de discursos, “mas esses hão de
nascer todos da mesma matéria, e continuar e acabar nela”. Dentro do domínio do
sentido da visão, presente no Barroco, especialmente no seu representante máximo
da oratória sacra, esse pregador apresenta a famosa árvore invertida dividida em
sete partes, que correspondem a sete divisões do sermão
18
; inicialmente aproxima a
imagem aos sentidos, depois a imagem e o conceito se fundem, árvore e sermão;
cada parte da árvore representa alegoricamente um dos requisitos que presidem o
sermão: as raízes é o Evangelho; o tronco, a matéria; os ramos, os discursos; as
folhas, as palavras; as varas, os vícios; as flores, as sentenças; os frutos, a
finalidade do sermão. Isto não é uma simples enumeração, pois cada um dos
aspectos representados tem um significado que Vieira explicita em parte, pois
seus ouvintes, pelo conhecimento religioso prévio, entendiam o sentido alegórico da
linguagem do púlpito. O pregador caracteriza as partes, identificadas pelas
alegorias, da seguinte forma:
Assim de ser o sermão: de ter raízes fortes e sólidas, porque de
ser fundado no Evangelho; de ter um tronco, porque de ter um
assunto e tratar uma matéria; deste tronco hão de nascer diversos
ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma mataria, e
continuados nela; estes ramos não hão de ser secos, serão cobertos de
folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras.
de ter esta árvore varas, que são as repreensões dos vícios, de ter
flores, que são as sentenças, e por remate de tudo, de ter frutos que é o
fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão.
A enumeração citada progride, começando pelas raízes e termina nos frutos;
a enumeração é retomada, para enfatizar que todos esses componentes, tanto da
árvore, como do sermão, são condições indispensáveis para sua existência. Mas
nessa retomada, a enumeração segue uma ordem inversa da anterior, começa pelos
frutos, que é a finalidade do sermão, e termina nas raízes, que é o Evangelho;
nenhum desses elementos pode faltar, do contrário, não haverá sermão. A
18
Conforme quadro 10.
104
importância de cada parte enumerada, bem como do seu conjunto, é apresentado
agora de forma negativa, para dizer que, nesse caso, não haverá sermão, pois a
árvore e suas partes não mais servirão de metáfora para o sermão e a articulação
em alegorias estaria desfeita; nesse caso os troncos são apenas madeira; os ramos,
maravalhas (lascas, gravetos); as folhas, versas (amontoado de folhas); as varas,
feixe; as flores, ramalhete; a última opção é descartada, “porque não frutos sem
árvore”. A figura é retomada mais uma vez, reiterando-se suas partes, com a
seguinte explicação:
Assim que nesta árvore a que podemos chamar de Árvore da vida, de
haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o
vestido das folhas, o estendido dos ramos, mas tudo isto nascido e formado
de um tronco, e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do
Evangelho (...).
Menciona partes do texto em latim: Seminare sêmen, isto é, a semear o seu grão;
acrescenta que assim devem ser os sermões, tendo também mostrado o que não
são sermões e que a falta de fruto não deve estranhar, se tais requisitos não forem
aplicados na pregação.
Com o fecho deste capítulo sobre a matéria, Vieira garante que tudo que
dissera sobre as normas propostas para a elaboração de um sermão, são os
preceitos ensinados pelos retóricos clássicos, como Aristóteles, Cícero e Quintiliano;
porém, o mais importante deste argumento é que os referidos preceitos foram
colocados em prática pelos santos e doutores da Igreja, como São João Crisóstomo,
“o príncipe dos Oradores Evangélicos”, São Gregório, santo Agostinho, São
Gregório Nazianzeno e outros. Referente a seus escritos, observa que “se acham os
Evangelhos apostilados com nomes de sermões e homilias”, quando não sempre
fazem jus a essa classificação. Não aqui nenhuma crítica quanto á forma de eles
comporem os seus escritos, tanto é que eles foram evocados para mostrar que
aplicavam os preceitos da retórica que também ele, Vieira, estava propondo para a
pregação. A questão em discussão é a de fazer a diferença entre aquilo que foi
exposto acima: a distinção entre “apostilar” e pregar; pois no primeiro são tratados
diversos assuntos numa exposição, e no sermão deve haver apenas um único, e
dele derivar todo o sermão. Essa dicotomia leva a outra oposição: o “apostilar” pode
estar ligado a expor, ensinar, enquanto que o pregar tem a finalidade de convencer.
105
Este é o ponto nevrálgico de toda a questão; o ensinar, expondo diversos temas,
tem seu lugar na Igreja, mas o pregador estava falando à pregadores sobre a arte de
pregar, sendo que o sermão deve tratar de apenas uma matéria, segundo foi
articulado neste capítulo. O pregar também é diferente, e isso o pregador deve levar
em conta no se sermão: o convencimento do auditório; sem esse objetivo em vista, o
próprio ato de pregar não se justifica.
Também neste capítulo pode se constar uma prática comum em Vieira: a
divisão do assunto em partes; após a ampla discussão com provas e contraprovas,
volta-se a fazer a síntese conclusiva. Assim, argumentando a favor da necessidade
de tratar apenas uma matéria ele expôs todas as outras partes do sermão, mas
sempre voltando ao ponto inicial, aproximando o ponto de partida com o da
chegada, fechando desta forma o círculo. Sem espaço para contra-argumentar, o
auditório era levado a aderir às preposições do pregador.
Capítulo VII Aborda a ciência do pregador, que corresponde à memória na
retórica clássica, como uma possível causa procurada; pregar o próprio opõe-se a
pregar o alheio; esta antítese acompanha toda esta parte do Sermão. Na procura de
argumentos uma constante tentativa de ligar esses conceitos às Escrituras, com
inúmeras ilações racionais e sutilezas interpretativas, algumas muito originais. no
começo vai uma crítica dirigida a muitos “pregadores que vivem do que não
colheram e semeiam o que não trabalharam”. No aspecto semântico pode se pensar
num paralelo entre as duas orações, pois a colheita é o resultado final de um árduo
trabalho; se aplicados aos pregadores, estes pregam sermões, que não lhes custou
trabalho na sua elaboração; semear o que não foi trabalhado equivale ao anterior,
isto é, eles pregam o que não exigiu esforço para preparar. As duas sentenças são
uma denúncia “contra pregar o alheio”.
Essa idéia é largamente comentada com passagens da Bíblia e citações de
lugares-comuns. Na referência à parábola a ênfase é: o semeador saiu para semear
à sua semente, não a alheia; a seguir alude-se ao texto de Gênesis, referente à
sentença de Deus, após a queda: “espinhos e cardos também, te produzirá (...) no
suor do teu rosto comerás o teu pão (...) (Gn 3:18-19). A referência a esta metonímia
faz parte do argumento, de que o pregador deve pregar o que ele mesmo elaborou
106
com o sacrifício do seu trabalho. Esta idéia leva Vieira a uma expressão de caráter
geral, de que o alheio ou furtado, não é bom para semear, acrescentando: “ainda
que o fruto seja de ciência”; isto, porque logo a seguir alusão à Eva, que comeu
do fruto proibido, da árvore da ciência do bem e do mal. Eva não guardou a
semente, para perpetuar a árvore até hoje. Por quê? “Porque o pomo era furtado, e
o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear; é bom para comer, porque
dizem que é saboroso; não é bom para semear porque não nasce”.
Talvez inspirado no princípio jurídico do furto famélico, que não considera
crime tomar o alheio em caso de fome extrema, a idéia passou para o senso
comum, indicando que o alheio é bom para saciar a fome do momento, mas não
deve ser guardado para o futuro; no caso da semente, ela não nasce, pois foi usada
alheio à necessidade e propósitos iniciais. Vieira avança mais ainda no seu
raciocínio, e deixando a crença popular de lado, acrescenta: “Alguém terá
experimentado que o alheio nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não
de deitar raízes, e o que não tem raízes, não pode dar fruto”. Para ficar com a
hipótese da semente, se ela for plantada no fundo do quintal, por exemplo, ela pode
até nascer, mas não tendo espaço suficiente para se desenvolver e criar raízes, não
frutificará. A esta altura a metáfora começa a ser explicitada com esta afirmação:
“Eis aqui porque muitos pregadores não fazem fruto, porque pregam o alheio, e não
o Seu”; segue novamente a expressão em latim: Sêmen suum, isto é, o pregador da
parábola, semeou sua semente. No desenvolvimento minucioso da figura descrita
acima, o alvo a ser atingido são os que pregam sermões de outros, não os seus; o
sermão é preparado, ele “nasce em casa”, mas sem as raízes pesquisadas,
adaptadas e meditadas com base no Evangelho; o resultado negativo era
esperado como conseqüência da falta de autenticidade; seria isto, parte da resposta
procurada ao longo do sermão.
Vieira revela outra vez o seu espírito combativo; através de uma linguagem
arrojada lança ataques aos pregadores, dizendo: “O pregar é entrar em batalha com
os vícios; e as armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram
vitória”. Dois exemplos, um da mitologia e outro das Escrituras sustentação ao
argumento; Pátroclo foi vencido com as armas de Aquiles; Davi, porém, venceu o
gigante Golias, justamente por rejeitar a armadura do rei Saul, ficando com sua
funda e o seu cajado, que eram armas suas. A semelhança com o pregador é
107
taxativa: “Pregador que peleja com armas alheias, não hajais medo que derrube
gigante”. A figura não foi levada a outras conseqüências, pois a pedra de Davi
apenas derrubou o gigante, ficando prostrado o tempo suficiente para o jovem herói
decapitá-lo com a espada que não era sua, mas a do inimigo.
O chamamento dos discípulos, os futuros apóstolos, para serem “pescadores
de homens”, enquanto consertavam as suas redes
19
, deu ensejo a outro argumento,
criando uma figura com detalhes minuciosos, na função de analogias, aplicados ao
pregador. São Mateus narra que Jesus viu os irmãos Tiago e João “num barco com
seu pai Zebedeu, consertando as redes, e chamou-os” (Mt 4:21). A tradução latina
da Bíblia usada por Vieira diz: reficientes retia sua, que ele traduz: refazendo as
redes suas. O verbo reficiere (refazer) tem diversas acepções em latim, como:
refazer, restaurar, reparar, fabricar de novo, conforme Faria (Dicionário Escolar
Latino-Português, 1967). Mas o sermonista queria enfatizar que as redes eram suas,
dos pescadores, e nesse caso, com a eliminação do prefixo o verbo ficou fazer; era
tudo o que ele precisava para poder afirmar:
Eram as redes dos apóstolos, e não eram alheias (...). Não diz que eram
suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam, não
eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes
custavam o seu trabalho (...) eram suas, por isso eram redes de pescadores
que haviam de pescar homens.
Das traduções da Bíblia consultadas, quatro em português, três em inglês,
cinco em alemão e quatro em espanhol, todas dão ao termo reficiere (refazer), que
Vieira muda para fazer, o sentido de consertar, remendar, preparar e termos
equivalentes; nenhuma tradução usa refazer, e menos ainda, fazer.
Ao forçar o sentido do texto, fazendo com que se leia que os pescadores
estavam fazendo suas redes, os argumentos tornam-se poderosos para se fazer a
analogia com o pregador, com uma dupla significação, mas uma dependendo da
outra: as redes eram suas, dos pescadores, porque eles as fizeram. A semelhança
com os pregadores é que, eles devem pregar sermões que eles mesmos fizeram,
que lhes custou trabalho. O arremate é dado com as seguintes palavras: “com redes
19
Conforme quadro 21.
108
alheias ou feitas por mão alheia, podem se pescar peixes, homens não se podem
pescar”.
Vieira não esquece que este capítulo trata da ciência do pregador; até aqui
salientou que o pregador deve pregar o seu e não o alheio. De agora em diante fica
em evidência o conhecimento, o saber do pregador. Para isso a figura da rede dos
pescadores, analogia do sermão dos pregadores, foi explorada nos seus detalhes
para acomodá-la ao caso concreto em tela; assim, o motivo alegado de não se
poder pescar homens com redes alheias, o pregador faz as seguintes ponderações:
A razão disto é, porque nesta pesca de entendimentos, quem sabe fazer
a rede, sabe fazer o laço. Como se faz uma rede? Do fio e do que se
compõe a malha; quem não enfia nem ata, como de fazer a rede? E
quem não sabe enfiar e nem atar, como há de pescar homens?
Uma vez que deu como provado que os pescadores fizeram suas próprias
redes, do qual dependia seu sucesso na pesca, passa-se agora a explicar que fazer
a rede implica não conhecimento teórico, mas também habilidade prática, motivo
pelo qual aparecem as expressões com verbos de ação: saber fazer rede, saber
fazer o laço, compor a malha, saber enfiar, saber atar; todas as etapas destas
atividades foram atribuídas ao pescador na confecção da sua rede. Não maiores
desdobramentos para se determinar o sentido alegórico de cada ação, mas idéia
central foi dada, que a elaboração do sermão é uma arte que o pregador deve
dominar plenamente, para conseguir os resultados esperados, que é pescar
homens, isto é, convencer os ouvintes a aderirem às verdades do Evangelho que
estavam sendo pregadas.
Vieira ainda continua com a figura da rede, em busca de mais analogias com
o saber e o cuidado do pregador, ao afirmar:
A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da
água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e têm
outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, o
sabe fazer quem faz a rede.
A analogia entre a chumbada da rede que atinge o fundo e os aspectos mais
superficiais, está claramente expressa; o mesmo se com a cortiça, que fica na
109
superfície da água, e “as coisas de mais peso e mais fundo”. Isto é, o pregador deve
saber fazer a distinção daquilo que não é essencial, ou até optativo na religião, e por
outro lado, dos dogmas e tradições consagradas como determinantes, que foram
estabelecidos pela Igreja como condição para a salvação dentro do catolicismo.
Mas, essa distinção apenas sabe fazer quem elabora seu próprio sermão, tendo em
vista objetivos específicos, na presença de determinados ouvintes. Quando o
pregador não sabe fazer essa distinção, porque simplesmente decorou um sermão
alheio, acontece o seguinte:
Na boca de que não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As razões não
hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As
razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à
memória, e os homens não se convertem pela memória, senão pelo
entendimento.
A questão da unidade temática volta a ser lembrada aqui; o que for tratado no
sermão deve estar subordinado ao texto; não devem haver simplesmente junções
sem coerência. A memória, por outro lado, mesmo valorizada em outros contextos,
aqui ela deve dar lugar ao conhecimento, que, por sua vez, tem uma dupla função:
preside a preparação do sermão do pregador e é fator de conversão, fruto da
pregação.
Argumentando ainda a favor da prática de o pregador pregar o seu próprio
sermão e não o alheio, Vieira comenta, relacionado ao dia de Pentecostes, o
seguinte texto: E foram vistas por eles línguas repartidas, como de fogo, as quais
pousaram sobre cada um deles” (At 2:3). Ato seguido, S. Lucas disse que todos os
apóstolos foram cheios do Espírito Santo, falando em línguas. Tendo este
acontecimento como pano de fundo, o pregador deste Sermão aplicou o seu sistema
acomodatício para que o texto lhe sirva de argumento. Ele interpreta que o Espírito
Santo, tomando a forma de uma chama, ou língua de fogo, pousou sobre a cabeça
de cada um, e não uma língua para todos; cada um com sua língua; cada um com
seu estilo. Nenhuma tradução consultada, nem aquela que Vieira cita em latim,
menciona a palavra cabeça; simplesmente diz que o Espírito Santo desceu, na
forma do que pareciam pequenas línguas de fogo, que pousaram sobre cada um
110
dos apóstolos. Mas o pregador, no seu argumento, precisava fazer uma oposição
entre aquilo que sai da boca e o que vem da cabeça; com base nisso ele raciocina:
Pois por que na cabeça e não na boca que é o lugar da língua? Porque o
que de dizer o pregador, não lhe de sair da boca; não há-lhe de
sair pela boca, mas da cabeça. O que sai da boca, pára nos ouvidos; o
que nasce do juízo penetra e convence o entendimento.
Pelo que se vê, criam-se antíteses entre as palavras que saem da boca, que
atingem o ouvido; por outro lado há o oposto: o que vem da cabeça, que é sinônimo
de juízo, atinge o entendimento, que é a base do convencimento, sinônimo de
conversão.
Como conseqüência da chama sobre cada um dos apóstolos, foram
mencionados exemplos dos cinco apóstolos que deixaram escritos e que mostram
os diferentes estilos. Por isso a declaração: “As penas todas eram tiradas das asas
daquela Pomba; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um,
que bem mostra que era seu”. A menção à Pomba pode ser uma alusão ao Espírito
santo, que desceu sobre Jesus em forma de pomba, por ocasião do seu batismo
(Mc 1:10). A referência a esse fato significa que, mesmo havendo diversos estilos,
todos foram inspirados pelo Espírito Santo. Os exemplos citados são: O estilo de
Mateus é fácil; o de João, misterioso; o de Pedro, grave; o de Jacó ou Tiago, forte; o
de Tadeu, sublime; Vieira acrescenta: “(...) e todos com tal valentia no dizer, que
cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio, e cada razão um triunfo”. Aos
cinco citados sugere-se o acréscimo de mais dois: São Lucas e São Marcos. Agora
os sete citados são comparados aos sete trovões do Apocalipse; a passagem bíblica
é a seguinte: “E clamou com grande voz, como quando brama o leão: e havendo
clamado, os sete trovões fizeram soar as suas vozes” (Ap 10:3). Tirado das visões
de São João no Apocalipse, portanto fora do contexto, foram aproveitados alguns
elementos; o Padre jesuíta declara: “Eram trovões que falavam e desarticulavam as
vozes, mas essas vozes eram suas”; acrescenta ainda que não eram alheias,
porque “com o alheio nunca se fez coisa boa”.
Chama a atenção, neste capítulo, o acúmulo de argumentos e ou alusões
bíblicas, algumas adaptadas e outras ampliadas, tudo isto para dizer que o pregador
111
deve pregar seu próprio sermão, não o alheio; também se ênfase ao fato de que
a elaboração do sermão exige conhecimento, para fazê-lo autêntico e convincente.
Mas, para mostrar que a ciência do pregador não é a única causa que está
procurando, Vieira exemplos contrários aos seus argumentos; cita João Batista,
que não teria pregado seu próprio sermão, mas o alheio, pois ele mencionava o que
o profeta Isaías tinha dito mais de seiscentos anos antes da era cristã. Personagens
religiosas mais recentes também teriam tomado dos escritos de santos e doutores
da Igreja.
Capítulo VIII A voz do pregador é analisada como uma das causas
procuradas; corresponde à pronunciação, parte da ação, na retórica clássica. No
início afirma-se que “Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando”.
O bradar passa a ser o fio condutor desta parte do Sermão; como o mundo na
atualidade se rege mais pelos sentidos, os brados se justificam para Vieira. Diversos
textos da Bíblia são trazidos para fundamentar o argumento. Como não foi possível
provar esse argumento na figura do semeador, foi necessário recorrer ao próprio
relato da parábola, narrada por São Lucas; após Jesus ter explicado a parábola, o
evangelista comenta: “Dizendo ele estas coisas, clamava: Quem tem ouvidos para
ouvir, ouça” (Lc 8:8). O termo latim clamabat, Vieira traduz como bradou. Conforme
Faria (In: Dicionário escolar Latino-Português, 1967) o campo semântico pode variar,
como por exemplo: gritar, chamar em altas vozes, proclamar, declarar; mas o
pregador do presente preferiu usar um termo mais forte. Ao fazer isto, ele opôs o
bradar ao arrazoar, dando a sua própria explicação: “Bradou o Senhor, e não
arrazoou sobre a Parábola, porque era tal o auditório, que ficou mais dos brados que
da razão”. É evidente que falar ao ar livre na presença de centenas, ou milhares de
pessoas, exigia um tremendo esforço da voz para se fazer ouvir. Após ter Jesus
proferido o Sermão da Montanha, o evangelista informa que “a multidão se admirou
da doutrina; porquanto os ensinava como tendo autoridade, e não como escribas”
(Mt 7:28-29). Não podemos imaginar a Jesus convencendo a multidão com gritos
irracionais, subordinados aos sentidos; mas o pregador deste Sermão precisava de
palavras que ele transforma em conceitos, necessários para sua argumentação, por
isso o bradar opõe-se ao arrazoar nos textos aqui citados.
112
Outro texto apresentado é sobre João Batista; perguntando quem era, ele
respondeu: “Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitarei o caminho do
Senhor, como disse o profeta Isaías” (Jô 1:23). Referente a esta passagem, vem a
pergunta com a resposta de Vieira:
“Pois por que se definiu o Batista pelo bradar, e não pelo arrazoar: não pela
razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem
podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Batista
pregava”.
Nota-se que com essa interpretação o texto enquadra-se perfeitamente nas
pretensões argumentativas propostas pelo pregador.
A próxima abordagem é sobre o pedido de condenação de Jesus, após a
multidão ter sido persuadida pelos dirigentes judaicos para que peçam a
condenação de Jesus: “O governador, porém, disse: Mas que mal fez ele? E eles
mais clamavam, dizendo: Seja crucificado” (Mt 27:23). Também aqui o bradar torna-
se a chave para criar a oposição desejada, conforme a seguinte declaração:
De maneira que Cristo tinha por si a razão, e tinha contra si os brados. E
qual pode mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu
para o livrar, os brados bastaram para o pôr na cruz. E como os brados no
mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é
que gritem.
O terceiro texto citado, dentro de um extenso parágrafo, é do profeta Isaías. A
passagem faz parte de um contexto maior que fala da futura glória de Jerusalém;
abandonada e destruída naquela época, o profeta prediz a volta dos cativos e a
reconstrução da cidade; os povos vizinhos virão para reconhecer a grandeza e
majestade de Sião. Dentro dessa euforia incontida, Isaías, numa linguagem
figurativa, faz a pergunta apenas como recurso expressivo: “Quem são estes que
vem voando como nuvens, e como pombas as suas janelas?” (Is 60:8). Mas para
Vieira, o profeta chama os pregadores de nuvens. E uma vez identificados como
nuvens, o caminho ficou aberto para criar uma figura
20
, em si coerente, mas que
compromete o sentido original do texto, ou lhe atribui um sentido particular. Ele
explica o que a nuvem tem, quais os membros do corpo envolvidos na sua
percepção, os efeitos que causa e o número de pessoas atingidas. Assim, na nuvem
20
Conforme quadro 12.
113
relâmpago, percebido pelos olhos, o efeito é que alumia e atinge muitos; na
nuvem há trovão, percebe-se pelos olhos, assombra as pessoas e atinge a todos; na
nuvem também raio, sentido no coração, que mata e atinge apenas um. A nuvem
desencadeia uma série de relações metonímicas, com distribuições simétricas, que
criam diversas semelhanças e antíteses. Toda esta elaboração minuciosamente
articulada foi deflagrada para tirar a seguinte inferência: “Assim de ser a voz do
pregador: um trovão do Céu, que assombra e faça tremer o mundo”.
Como foi feito na abordagem das outras “circunstâncias”, também nesta são
apresentados contra-exemplos, por isso a pergunta: “Mas que diremos à Oração de
Moisés?” Refere-se ao seguinte texto: “Goteje a minha doutrina como a chuva,
destile o meu dito como o orvalho, como chuvisco sobre a erva e como gotas de
água sobre a relva” (Dt 32:2). Diferente de qualquer tradução, inclusive da versão
em latim usada neste texto, nenhuma faz alguma referência ao silêncio, ou sem
ruído, como Vieira traduz as últimas palavras e à calma descida do orvalho, que
equivale a uma fala mansa e sem ruído, para Vieira.
Outro contra-exemplo apresentado é um versículo, considerado uma profecia
de Isaías de Cristo, reza: “Não clamará, não se exaltará, nem fará ouvir a sua voz na
praça” (Is 42:2). A respeito destes exemplos, contrários ao bradar, que tanto foi
defendido com fartos exemplos, Vieira assume um tom conciliador com as seguintes
palavras: “Não dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que
aos ouvidos, não concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se
insinua, entra, penetra e se mete na alma”.
Vieira recapitula as “circunstâncias” tratadas, afirmando que nenhuma delas
é responsável pelo pouco resultado das pregações, nem todas elas juntas; nomeia-
as uma por uma, acrescenta mais exemplos contrários; sobre a última
“circunstância”, e das outras, declara:
Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salomão multiplicava e
variava assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha
ciência e, contudo todos estes falando, persuadiam e convenciam.
114
A mencionada retomada de tudo o que fora colocado como possível resposta
à questão principal, deixando sempre possibilidade de outras causas, também foi
uma maneira de argumentar, mantendo assim o interesse do auditório para o que
ainda viria; o mesmo vale com relação à demora em dar definitivamente a resposta à
pergunta proposta; retardando todo o tempo possível o que se alegava ser o mais
importante, mantinha o suspense até o final do Sermão. Isto foi um meio para
alcançar o objetivo final, tanto enfatizado no sermão, e que Vieira perseguia com
extrema tenacidade: levar ao convencimento, e deste, à ação.
Capítulo IX Neste capítulo um retorno ao versículo que preside todo o
Sermão: “A semente é a palavra de Deus”. Neste lugar, porém, o texto serve de
resposta à questão levantada desde o início, e constantemente repetida. Pelas
inúmeras divisões e subdivisões, a chamada atomização da matéria tratada, houve
várias ocasiões, nas quais se propunha a exigência de se pregar a genuína palavra
de Deus por parte do pregador. Mas Vieira, além de responder após ter tratado de
fatores, alguns não totalmente decisivos, ele quer dedicar um generoso espaço à
questão central do Sermão. Sobre o pouco fruto da pregação de hoje, responde: “É
porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus”.
Aqui está a tão procurada resposta, que Vieira corrobora com várias provas ao longo
deste capítulo.
Desde o pregador argumenta que a ausência de fruto não deve ser
surpresa para ninguém; talvez lembrando que “tudo o que o homem semear isso
também ceifará” (1 Co 6:7), segue a referência ao profeta Oséias: “Porque
semearam ventos, e segarão tormentas: não seara; a erva não dará farinha: se a
der, tragá-la-ão os estrangeiros (Os 8:7). Diante disso a pergunta do pregador se
justifica: “Seus pregadores semeiam ventos, se o que se prega é vaidade, senão se
prega a palavra de Deus, como não a Igreja de Deus correr tormentas em vez de
colher fruto?”
Mas, prevendo a reação da contra-argumentação, de que os pregadores de
hoje pregavam do Evangelho, Vieira antecipa a resposta, dizendo que precisamente
naquilo residia o mal, pois eles pregam palavras de Deus, mas não pregam a
palavra de Deus; cita a seguir o profeta Jeremias: “O profeta que tem o sonho, conte
115
o sonho; e aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra. Que tem a
palha com o trigo? diz o Senhor” (Jr 23:28). O que define se é a palavra de Deus,
é que essas palavras de Deus sejam pregadas conforme o sentido que Ele as disse;
pregadas conforme nós queremos, podem até ser palavras do Demônio. Este
pensamento é minuciosamente desenvolvido fazendo-se referência à narração da
tentação de Jesus pelo diabo; após Jesus ter jejuado quarenta dias, o tentador o
desafia, dizendo-lhe que, ser for Filho de Deus, que transforme as pedras em pães,
ao que Jesus responde: “está escrito: Nem de pão viverá o homem, mas de toda
a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4:4). Na segunda tentação, o diabo pediu
que Jesus se atirasse do pináculo do templo; usando a passagem bíblica de Salmo
90:11, disse-lhe: “Porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu
respeito: e tornar-te-ão nas suas mãos para que nunca tropeces em alguma pedra”
(Mt 4:6). Vieira observa que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura, mas o
diabo tentou a Jesus com a mesma Escritura; o motivo está exposto da seguinte
maneira:
A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro
sentido, e o diabo tomava as Escrituras em sentido alheio e torcido: e as
mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de
Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do diabo. As mesmas palavras
que tomadas em sentido em que Deus as disse são defesa, tomadas no
sentido em que Deus as não disse, são tentação.
Em síntese, com relação à pergunta: o que significa pregar a palavra de
Deus? Vieira argumenta da seguinte maneira:
PREGAR CERTO PREGAR ERRADO
Pregar A palavra de Deus Palavras de Deus
Pregar no sentido Que Deus disse Que nós queremos
Tomar as
escrituras no
sentido
Verdadeiro, são:
- palavras de Deus
- defesa
Alheio, torcido, são:
- armas do diabo
- tentação
Quadro 19 – Comparação entre a forma certa de pregar e a errada, segundo Vieira.
Continuando seu raciocínio, Vieira afirma que, da mesma forma que o diabo
queria derrubar a Jesus, assim ele tenta hoje os pregadores; mas a semelhança não
termina aqui: o pináculo do templo, onde Jesus foi tentado referente às Escrituras,
116
era um lugar muito alto; o lugar, onde os pregadores hoje são tentados, é o púlpito.
Este paralelo é compreensível, porque os templos jesuítas tinham as grandes naves
centrais; as igrejas eram semelhantes a salões, com o púlpito à frente, num lugar
mais elevado, tinha todo o destaque. A importância do sermão se notava na
representação visível de onde era proferido. Vieira apresenta todas as tentações,
dando realce à segunda, como forma de reiterar o argumento apresentado. O diabo
tentou Jesus no deserto, com a gula; no monte, com a ambição; no templo, com as
Escrituras mal interpretadas.
21
A seguinte frase serve de fecho a este argumento: “E
essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem
derrubado dela, senão Cristo, a sua fé”.
A esta altura Vieira dirige-se aos pregadores, dizendo que são indignos desse
sagrado nome, e pergunta “se os assuntos inúteis” e as “empresas que lhes
parecem agudas”, que tanto perseguem, encontram-se nas diferentes partes da
Bíblia, que ele nomeia, apoiado em D. Hieronymus; e respondendo, vem a
declaração: “É certo que não”. Com base nisso argumenta que, nesse caso, os
pregadores podem alegar que estão pregando a palavra de Deus; mas, mesmo que
pregassem como afirmam, ele questiona: “Esse o dasafio em que os entendem os
Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma Gramática das palavras”; e
acrescenta, que eles muitas vezes tomam as palavras pelo som e não pelo que
significam, e outras vezes, nem isso é levado em conta. Em face dessa realidade, a
acusação de que se aquilo que os pregadores pregam não são palavras de Deus,
nesse caso, os poucos frutos não devem surpreender; basta fazer dizer as palavras
de Deus o que “nós queremos”, isso significa não querer dizer o que elas dizem.
Segue esta censura contundente: “E então ver cabecear o auditório a estas coisas,
quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir”, Vieira afirma que
não sabe de que se espantar mais, dos conceitos ou dos aplausos. Em tom de
ironia, declara: “Oh que bem levantou o pregador!” Lembrando da linguagem cultista
rebuscada e pretensiosa, e aproveitando o verbo levantar, disse que, o que
realmente levantou o pregador, foi um falso testemunho do sentido do texto e do
Santo. O argumento torna-se sempre mais forte, e questiona: “Então, que se
converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus?” Mesmo que não
baixasse o tom da crítica no resto do sermão, o pregador dialoga com o auditório, e
21
Conforme quadro 13.
117
declara: “Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me”. Este ponto será
potencialmente desenvolvido e cercado de mais provas argumentativas.
A idéia do falso testemunho é ampliada agora com base nas falsas
testemunhas no julgamento de Jesus, que precedeu a sua crucificação. Diz o texto
de São Mateus:
Ora os príncipes dos sacerdotes, e os anciãos, e todo o conselho,
buscavam falso testemunho contra Jesus, para poderem dar-lhe a morte; e
não o achavam, apesar de se apresentarem muitas testemunhas falsas;
mas por fim chegaram duas, e disseram: Este disse: Eu posso derrubar o
templo de Deus, e reedificá-lo e três dias (Mt 26:59-61).
De fato, Jesus tinha dito o que as duas testemunhas falaram; após a expulsão dos
vendilhões do templo, os judeus contrários a Jesus, pediram-lhe um sinal da sua
autoridade; a resposta de Jesus foi: “Derrubai este templo, e em três dias o
levantarei” (Jo 2:19). Porém, o próprio evangelista informa: “Mas ele falara do templo
do seu corpo” (Jo 2:21). O uso metafórico do termo templo com o corpo, é freqüente
no Novo Testamento. O templo foi considerado a morada de Deus, portanto, um
lugar santo; nesse sentido São Paulo questiona aos corintios: “ou não sabeis que o
nosso corpo é o templo do Espírito Santo que habita em nós, proveniente de Deus, e
que não sóis de vós mesmos?” (1 Co 6:19). E em outra carta à mesma Igreja, o
apóstolo sentencia: “E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Porque
vós sóis o templo de Deus vivente (2 Co 6:16). Essa analogia, no entanto, não foi
feita pelos acusadores, nem pelo sinédrio, seja por ignorarem o seu sentido
figurativo ou pelo desespero de encontrar um motivo que justifique a condenação de
Jesus, qual seja, a profanação do santo templo de Deus. Tendo esses fatos em
mente, Vieira argumenta que, mesmo que as palavras das testemunhas fossem
verdadeiras, como de fato foram, as testemunhas eram falsas, porque Cristo proferiu
aquelas palavras em um sentido, e as testemunhas, em outro. A afirmação do
pregador é categórica: “(...) referir as palavras de Deus em diferente sentido do que
foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às
escrituras”. Neste ponto do Sermão, numa espécie de desabafo, Vieira simula dirigir-
se a Deus, e exclama:
Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço
dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são
palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir
deste número!
118
Convencido ele, e convencendo os presentes de que a situação é realmente essa
que foi descrita, o pregador repete a idéia de que não o que estranhar se “as
nossas imaginações e as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a
eficácia de palavra de Deus”.
As lamentações continuam, expressas nas seguintes palavras: “Miseráveis de
nós, e miseráveis de nossos tempos”. Vieira na situação por ele comentada, o
cumprimento das palavras de São Paulo ao jovem pastor Timóteo; primeiro usa
algumas frases em latim, depois ele reproduz todo o texto em português como
segue:
Virá o tempo, diz S. Paulo, em que os homens não sofrerão a doutrina sã;
mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão, e
sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas; fecharão
os ouvidos à verdade, e abrir-lhas-ão às fábulas (2 Tm 4:3-4).
Vieira recolhe a palavra fábula, ponderando que o termo tem duas significações:
quer dizer fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento
de verdade; quer dizer comédia, porque os ouvintes assistem à pregação como se
fosse uma comédia; voltando-se aos pregadores, diz que eles vêm ao púlpito como
comediantes. O padre jesuíta comenta que, conforme a opinião geral, não haveria
mais comédias em Portugal; mas ele não concorda; afirma que elas passaram do
teatro ao púlpito, com a diferença de que as pregações, ora chamada de comedis,
não possuem nenhuma qualidade, se comparadas às clássicas de Plauto, Terêncio
ou Sêneca. Argumenta que os assuntos dessas comédias têm muitos pontos em
comum com as pregações de um orador cristão, como “muitos desenganos e
vaidades do mundo, e muitos pontos de doutrina moral”, com a vantagem de serem
“muito mais verdadeiros e sólidos, do que hoje se ouve nos púlpitos”. Lamenta como
sendo uma “grande miséria”, que “se achem maiores documentos para a vida nos
versos de um profeta profano e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e
muitas vezes, sobre cristão, religioso!”
A denominação de comédia é atribuída a S. Paulo no texto acima referido,
mas Vieira opina que muitos sermões não são comédias, são farsas. A narração de
119
um caso hipotético a respeito de um pregador com hábito de penitência e aparência
de renúncia e pobreza, chamaria a atenção do auditório, que com reverência
esperaria “a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a espectação
de silêncio; e quando este se rompe, que é o que se ouve?” Antes de responder,
descreve-se a impressão que esta cena patética causaria em um estrangeiro que
não conhecesse a forma aqui denunciada, ele:
Cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua
havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e
com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações
havia de fazer em e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o
estrangeiro.
Mas, ao contrário da aparência exterior daquele pregador e da expectativa do
auditório quanto a sua fala, a realidade apresentada é outra, pois da boca daquele
pregador sai, o que? A resposta é decepcionante:
Uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro,
a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a
lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar
jasmins, a toucar primaveras, e a outras mil indignidades destas.
Para Vieira seria uma farsa para rir, se não fosse motivo para chorar; descreve a
comédia, em que cada personagem assume as características da vestimenta e da
fala, conforme o papel a desempenhar; contrapondo isso ao pregador, ele disse:
“Mas um pregador, vestir como religioso e falar como...”; não completa a frase, por
respeito ao lugar, segundo suas palavras; ele chega a dizer que, “já que o púlpito é
teatro, e o sermão comédia, sequer, não faremos bem a figura?”; isto é, pelo menos
assumam o papel representado com coerência; alega que as palavras e a
vestimenta remetem ao ofício; menciona S. Paulo, os patriarcas; se o pregar deles é
admirado e louvado, ele pergunta: “Por que não pregamos como eles pregaram?”
Lembra que nesse púlpito que ele estava pregando, pregou S. Francisco Xavier, S.
Francisco de Borja, e ele, Vieira, que tem o mesmo hábito, e, lançando um gesto de
modéstia para o auditório, conclui: “Por que não pregarei a sua doutrina, que me
falta o seu espírito?”
Nenhuma das “circunstâncias” pesa tanto contra os pregadores, como a
crítica constante deste capítulo; aqui eles são acusados de levantar falso
120
testemunho. Os principais pontos da argumentação cerrada, não deixando espaços
abertos, podem ser resumidos da seguinte maneira: Os pregadores não pregam a
palavra de Deus; eles atribuem a Deus, o que Ele não falou; pregadores que
pregam palavras de Deus, mas não a palavra de Deus; se pregam a palavra de
Deus, não a referem no sentido que Deus as disse; em vez de pregar a palavra de
Deus, os tais pregadores pregam fábulas; o fingimento e o caráter de comédia,
decorrente das fábulas, é aplicado aos pregadores; como maus comediógrafos,
tornam-se farsantes; são inautênticos na sua representação; a sua linguagem
afetada e rebuscada, bem como a sua aparência exterior, não convence ninguém; o
caráter anacrônico dos pregadores tem relação direta com o pouco resultado da
pregação. Isto acontece porque a palavra de Deus não está sendo pregada por
pregadores cristãos dignos desse nome, que preguem a referida palavra no
verdadeiro sentido. A aplicação de textos da Bíblia, adaptados ao assunto, confere
ao argumento a autoridade necessária para convencer, que é o objetivo que o
grande pregador jesuíta nunca perdeu de vista.
Capítulo X Nesta última parte do Sermão um chamamento à ação;
Vieira faz um derradeiro apelo para que seja pregada a palavra de Deus,
independente do gosto do ouvinte. O olhar é voltado aos ouvintes, que resistem à
pregação; aos pregadores, que não pregam a palavra de Deus; e a Deus, que faz
exigências e julgará a todos. Os argumentos desdobram-se em pequenas unidades,
mas que se integram num todo organizado.
O primeiro segmento tem seu ponto de partida na atitude dos ouvintes que,
não gostando de ouvir, zombam dos pregadores que pregam conforme proposto no
Sermão. Vieira argumenta que da doutrina que eles zombam, é justamente a mais
proveitosa e da que mais precisam. A semente caída no caminho foi comida pelos
pássaros, são os demônios que tiraram à palavra de Deus dos corações dos
homens. Opondo estes ouvintes a aqueles comparados com a semente que caiu
nos espinhos e nas pedras, que nasceu, Vieira pergunta por que o diabo não comeu
a semente que caiu nos dois lugares citados; a sua resposta é unívoca, afirmando
que o trigo que caiu no caminho foi pisado pelos homens, e sentencia: “E a doutrina
que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o
diabo se teme”. Voltando às pedras e aos espinhos, afirma:
121
Desses ouros conceitos, desses outros pensamentos, dessas outras
sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme, nem se
acautela o diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão
de tirar as almas das unhas.
Mas a semente do caminho, da doutrina que é comum, trivial, trilhada, que “nos põe
em caminho, e em via de nossa salvação”, a essa os homens pisam e desprezam,
“essa é a de que o demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e
tirar do mundo”. Diante disso, segue a categórica afirmação: “E por isso mesmo
essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes”.
Mas se estes zombarem como reação à pregação, recomenda-se a mesma atitude:
“Zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos”.
S. Paulo comenta as adversidades sofridas no seu ministério; seu trabalho
exigia muita abnegação; a certa altura, numa de suas cartas, ele afirma que, sem
levar em conta as perseguições e sofrimentos, continuava pregando o Evangelho:
“Por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama: como abnegadores, e sendo
verdadeiros” (2 Co 6:8). As palavras por infâmia e boa fama, tornam-se uma
exigência para os pregadores. Recolhendo os termos infâmia e fama, Vieira faz um
jogo de palavras por assonância , que se opõem, e continua: “Pregar o pregador
para ser afamado, isso é mundo; mas infamado, e pregar o que convém, ainda que
seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo”. Os termos
que aqui se opõem são afamado e infamado; tudo, porém, está em função de
sentido, como parte do argumento.
Outra pequena unidade dinamizadora gira em torno do verbo frutificar, cuja
idéia é introduzida por uma figura, na qual um paralelo entre o médico,
encarregado da cura do corpo, e o pregador, o médico da alma. O médico não pode
levar em conta o gosto do paciente no tratamento, ele vai fazer o que é correto para
salvar o paciente; da mesma forma, o pregador pregará o que deve, sem atentar
para desaprovação do ouvinte, por isso a declaração: “Sarem, e não gostem;
salvem-se, e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas”. A esta altura
é mostrado o contrário; segundo o texto da parábola, a semente que caiu nas
pedras, para Vieira, “são aquelas que ouvem a pregação com gosto”. Mesmo
122
gostando, sem raízes, voltam atrás no tempo da tentação, e não dão fruto. Em face
disso, surge a pergunta do pregador: “Pois será bem que os ouvintes gostem, e que
no cabo fiquem pedras? Não gostem, e abrandem-se; não gostem, e quebrem-se;
não gostem e frutifiquem”. Então, uma vez que o ouvir com gosto não trouxe frutos,
é melhor o ouvir sem gosto, e trazer frutos. É evidente que este argumento é
composto por oposição, pois o próprio Vieira poderia trazer muitos exemplos da
Bíblia relativo ao ouvir com alegria, e ao mesmo tempo verifica-se o aparecimento
de frutos.
O trigo que caiu na boa terra são os que dão fruto pela paciência, Vieira
subentende que o termo paciência forçosamente remete a sofrimento; ele é
categórico ao dizer que o frutificar não se associa com o gostar, mas com o padecer,
por isso a declaração: “Frutifiquemos nós, e tenham eles paciência”. Mais uma vez
essa idéia antitética é reforçada: “A pregação que frutifica, a pregação que aproveita,
não é aquela gosto ao ouvinte, é aquela que lhe pena”. A pregação que
convém, fruto, a que faz efeito, no ouvinte, é a que o faz tremer, que atinge seu
coração, que faz com que ele para casa confuso e atônito, “sem saber parte de
si”.
Depois de anunciar que vai acabar, o pregador apresenta dois termos que
reforçam a argumentação. Para isso, ele conta o episódio relacionado a um doutor
de universidade, que devia dar seu parecer sobre dois pregadores famosos; a
avaliação do lente baseou-se sobre sua experiência: “Quando ouço um, saio do
sermão muito contente com o pregador; quando ouço o outro saio muito descontente
de mim”. Vieira recolhe os dois termos opostos, contente e descontente, que
remetem a duas posturas diante do sermão, e recomenda a segunda; expressa seu
desejo de que os seus ouvintes saiam descontentes com ele, e. dirigindo-se aos
pregadores faz o seguinte apelo:
Semeadores Evangélicos, eis aqui o que devemos pretender nos nossos
sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam
muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos,
mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus
passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os seus pecados
123
Vieira acrescenta que, com tanto que os ouvintes fiquem descontes de si, não
importa que “descontem-se de nós”; recorre a um texto de São Paulo, onde o
apóstolo diz: “Porque, persuado eu agora a homens ou a Deus? Ou procuro agradar
a homens? Se estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo”
(Gl 1:10); lembra que isso falou o maior de todos os pregadores, e exclama: “Oh
contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso aos homens!” A seguir faz
alusão ao seguinte texto de São Paulo: “Porque tenho para mim, que Deus a nós,
apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois somos feitos
espetáculo ao mundo, aos anjos, e aos homens” (1 Co 4:9). Em face desse texto
faz-se a seguinte recomendação: “Advirtamos que nesta mesma Igreja tribunais
mais altos do que as que vemos”. Na verdade, este texto não se refere ao tribunal
de julgamento, mas o pregador do presente Sermão precisava das palavras mundo,
anjos e homem, para construir o argumento do julgamento, prestação de contas
pelos pregadores a Deus, cujo tribunal está acima dos reis e anjos; este assunto é
mais uma pequena unidade do capítulo e do Sermão. Além dos pregadores, no
julgamento também serão incluídos os ouvintes; o ouvinte poderá defender-se e
alegar que o pregador não pregou conforme o exigido; mas para o pregador não
haverá desculpas. A dramaticidade do apelo chega ao auge com o texto de Isaías,
quando este teve uma visão da santidade de Deus, e exclama: “Ai de mim, que vou
perecendo! Porque eu sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um
povo de impuros lábios: e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is
6:5). Vieira parafraseia o texto e diz: “Ai de mim que não disse o que convinha! Não
seja mais assim por amor de Deus e de nós”. A última idéia das pequenas unidades,
e a reiteração do conceito de guerra, de luta; afirma que no tempo da Quaresma
semeia-se mais do que nunca a palavra de Deus e que a igreja se arma contra os
vícios. Segue o imperativo:
Preguemos e armemos-nos todos contra os pecados, contra as soberbas,
contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra a cobiça,
contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe
da sua parte. Saiba o inferno que ainda na terra quem lhe faça guerra
com a palavra de Deus; saiba a mesma terra, que ainda está em estado de
reverdecer, e dar muito fruto: fecit fructum centuplum.
As palavras em latim referem-se à semente que caiu em boa terra, que depois de
nascer, “deu fruto, cento por um”.
124
Nas cinco “circunstâncias” relacionadas ao pregador, este foi considerado
responsável por uma considerável dose de culpa. Houve reparos associados à
pessoa, à ciência, à matéria, ao estilo e à voz do pregador; os argumentos trazidos
tinham o condão de convencer o pregador que as referidas “circunstâncias” eram
parte da resposta procurada; como o pregador não foi poupado, ele tinha que sentir-
se culpado pelo pouco resultado das pregações.
Mas o inteligente e experiente pregador deixou para o fim o argumento mais
importante: mesmo pregando a palavra de Deus, elas são falsas testemunhas,
porque não as pregam no sentido que Deus as disse; são farsantes e indignos, que
serão julgados por Deus; a ameaça da condenação paira sobre os pregadores
desde o início do Sermão. Todas as provas que dão sustentação aos argumentos
são tomadas de textos bíblicos, ou inferidos quando não interpretados por um
artifício rebuscado na ânsia de adaptá-los ao caso tratado. A argumentação é
cerrada, verossímil, que guia o raciocínio para o caminho indicado na exposição;
sem saída racional, a aceitação da tese apresentada, tinha todas as chances de
acontecer.
3.3 - O estilo usado no Sermão
O estilo junto com as provas e a ordem do discurso, foi uma das partes da
Retórica de Aristóteles; não se referia à oralidade, mas à redação escrita do
discurso; as figuras estavam incluídas no estilo. No livro III, da Retórica, de 1404 a
até 1414 a, o Estagirita aborda os seguintes títulos: virtudes da expressão: a clareza,
a esterilidade na expressão, sobre o uso das imagens, a correção na expressão, a
solenidade na expressão, a expressão adequada, sobre o ritmo, sobre a construção
das frases, a elegância na retórica, análise formal da elegância retórica, a expressão
e os gêneros oratórios. Por esses títulos é possível verificar-se quais são os
aspectos que o filósofo inclui no estilo, bem como o grau de importância dispensado
à linguagem no nível de expressão. Nota-se, outrossim, nos assuntos abordados,
que uma preocupação de fazer a distinção entre o estilo da retórica com o da
poética; por outro lado, revela que a expressão na retórica segue determinado
padrão, por certo diferente da linguagem descuidada do dia-a-dia.
125
Na retórica clássica, o estilo referia-se à Elocução, a lexis dos gregos. A
oratória, segundo Reboul (2000, p. 61-66), devia seguir determinadas regras
relacionadas à escolha das palavras e à construção das frases, tendo em vista um
discurso correto e bonito; seria uma estética funcional, pois a sua finalidade foi
persuadir, excluindo-se, portanto, todo artifício gratuito; isto correspondia aos três
aspectos do discurso, que foram: o assunto, o auditório e o orador. A clareza foi
outra regra, corresponderia à adequação do estilo ao auditório; são citadas as
palavras de Quintiliano, nas quais ele declara que a primeira qualidade da fala é a
clareza, acrescentando que quando menos talento se tem, maior o esforço para
guindar-se; compara essa atitude com os nanicos que se põem sobre as pontas dos
pés para ficarem mais altos. A última regra que o autor menciona está relacionada
ao orador, que no seu discurso, deve mostrar-se colorido, aberto, dinâmico,
imprevisto, engraçado ou caloroso, isto é, vivaz; a vivacidade é fator fundamental
para o ethos, tornando o discurso marcante, agradável, cativante e autêntico. Após
citar Cambell, pastor do século XVIII, que fazia depender a vivacidade de figuras,
Reboul, afirma: “Durante muito tempo os antigos trataram as figuras como meios de
exprimir-se de modo marcante, com encanto e emoção”. Reboul passa a rebater a
idéia de que a figura seja um desvio, conforme muitos estudiosos sustentam; ele
chega à conclusão de que a noção de desvio é relativa, pois depende do tipo de
discurso, dos seus objetivos, do auditório, e finalizando, ele conclui:
A figura eficaz pode ser definida como algo que se desvia da expressão
banal, mas precisamente por ser mais rica, mais expressiva, mais
eloqüente, mais adaptada, numa palavra mais justa do que tudo que se
poderia sustituir. E, se fizermos questão de falar em desvio, é a figura bem-
sucedida, que constitui a norma. (p.66).
Ao analisar uma das “circunstâncias”, Vieira mostra os aspectos que
considerava relevante no estilo; ao criticar os pregadores cultistas, ele propõe como
deve ser o estilo do pregador. Assim, o padre jesuíta condena esse estilo,
qualificando-o de empeçado, dificultoso, afetado, violento, tirânico, desventurado,
escuro, negro, boçal, incompreensível; é o estilo que abusa das antíteses e
antonomásias. O ideal proposto é um estilo muito fácil e muito natural; é um estilo
com queda para as coisas, com cadência para as palavras, com caso para a
disposição; sendo um estilo que tem ordem e harmonia, ele faz influência; é distinto,
126
claro, alto, compreensível a todos; o vocabulário é adequado ao púlpito. O estilo, em
sentido geral, pode ser considerado a maneira ou arte de escrever e falar; pode
referir-se às características próprias de expressão de um escritor e de um orador;
além de revelar a maneira peculiar da pessoa, também está sujeito a refletir a
tendência de uma escola ou de uma época.
Após essa rápida visão sobre o estilo, impõe-se a necessidade de a presente
investigação voltar-se ao estilo usado no presente Sermão. As figuras e a linguagem
serão tratadas em separado, apenas para dirigir um olhar a cada um desses
aspectos do nível de expressão, levando-se em conta, porém, que uma
implicação mútua, em função do conteúdo, que por sua vez, remete aos
argumentos.
3.3.1 – Figuras
Segundo Foucault (1995, p. 33-46), a semelhança foi o princípio organizador
de todo o conhecimento do século XVI e XVII no Ocidente, antes da ruptura do
processo no período clássico. A semelhança guiou em grande parte a interpretação
textual, e “foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das
coisas visíveis e sensíveis, guiou a arte de interpretá-las”. Por essa visão, a terra era
considerada um espelho do céu, as coisas semelhantes eram infinitas. Das quatro
figuras associadas à semelhança, a primeira foi a conveniência; são convenientes as
coisas que se aproximam umas das outras; a extremidade de uma designa o
começo da outra; o mundo é a conveniência universal das coisas, as que terminam
assemelham-se às que seguem. A segunda forma de similitude foi a emulação, uma
espécie de conveniência, atuando à distância; as coisas dispersas se juntam, como
numa imagem de espelho; o rosto, por exemplo, é êmulo do céu e os dois olhos
refletem a claridade do sol e da lua. A terceira similitude foi a analogia, incluída nela
as duas anteriores; refere-se às relações mais sutis; por ela as duas figuras
anteriores podem aproximar-se. A quarta semelhança foi a simpatia; ela transforma,
altera em direção ao idêntico; mas essa figura é contra balançada pelo seu contrário,
que foi a antipatia; com esse equilíbrio, as coisas permanecem como são.
127
Conforme Rohden (1997, p. 202), a analogia surgiu na Idade Média, como
resultado da preocupação de formular um discurso unitário sobre as realidades
diferentes, uma eterna, criadora, e a outra, temporal, criada; ele conclui que “a
analogia seria uma forma de pensar uma intersecção entre o ser e suas muitas
significações”.
Para Reboul (2000, p. 185), o raciocínio por analogia como argumento
fundado na estrutura do real, consiste em provar uma verdade mediante a
semelhança de relações; o que se quer provar é o tema, e o que serve de prova é o
foro; o autor toma por empréstimo o seguinte exemplo de Perelman: “O homem em
relação à divindade é tão pueril quanto a criança em relação ao homem”. Neste
caso, o tema é: o homem (A) e a divindade (B); o foro é: a criança (C) e o homem
(D). Aqui uma dupla relação: a condição da criança, e o homem adulto, que são
fatos concretos, conhecidos, e do outro lado, o ser humano em relação à divindade;
o que se quer provar é que a relação homem/divindade é semelhante à relação
adulto/criança. O autor também afirma que a metáfora é uma forma de analogia
abreviada, onde certos elementos, subentendidos, foram omitidos, como no exemplo
de Aristóteles: “A velhice é a noite da vida” (Poética 1457 b 16 ss). A metáfora, por
sua vez, condensa um símile, que usando o exemplo acima, ficaria: “A velhice é
como a noite da vida”. A alegoria é definida por Reboul (p. 243), como uma
“descrição ou narrativa de que se pode tirar, por analogia, um ensinamento abstrato,
geralmente religioso, psicológico ou moral”; o provérbio, a fábula e a parábola são
citados como exemplos de alegorias.
No processo imagístico das figuras uma transformação de uma sensação
ou percepção experimentada em uma imagem que expressa isso; na imagem
uma representação viva de alguma coisa que serve para ilustrar uma idéia abstrata;
aparecem dois termos na imagem, um real e outro ideal; seja o verso camoniano:
“Amor é fogo que arde sem se ver”; amor, termo real, expressa-se pela imagem
fogo, termo ideal (COELHO, 1974, p. 75-77).
As figuras no Sermão, não são simples ornamentos expressivos exteriores do
discurso que ficam no nível estético, mas elas têm um caráter funcional no plano da
argumentação. De fato, todo o Sermão estrutura-se em torno de uma figura: “A
128
semente é a palavra de Deus”; esta definição unidade a todo o discurso; essa
figura perpassa todo o Sermão. Nessa definição se estabelece uma identidade entre
semente e palavra de Deus: o termo definido é substituído pelo que o define; as
palavras semente ou trigo, e palavra de Deus, são usados indistintamente, conforme
o critério do pregador. Por outro lado, a frase faz parte da explicação, tornando-se
metáfora; estabelecendo-se uma semelhança entre a semente do semeador e a
palavra pregada, considerada palavra de Deus, pode-se afirmar que o leitor está na
presença de uma analogia. O elemento imagístico perpassa todo o Sermão, com o
uso em profusão de símiles, metáforas, e alegorias, entre outras. Na construção de
figuras, expressas pelo uso rebuscado da linguagem, Vieira seguiu, portanto, o
critério da semelhança e a diferença, elementos que dão certa unidade ao Sermão.
O aspecto formal também revela a presença de outras figuras, como
antíteses, trocadilhos, homonímias, inversões e de tropos; a analogia, no entanto,
com todas as figuras dela derivadas, presentes em grande número, funcionam como
meio de prova com grande força argumentativa, à semelhança do que acontecia na
tradição retórica. Durante a análise dos argumentos do Sermão, isto foi em parte
constatado. Porém, após o estudo das principais figuras de cada capítulo, esse
aspecto poderá ser melhor avaliado; há que lembrar que forma e conceito se fundem
para construir argumentos com vistas ao convencimento, objetivo final do Sermão.
Capítulo I Após pronunciar a frase em latim “Eis que saiu o semeador a
semear”, Vieira comenta: “Diz Cristo, que saiu o Pregador Evangélico a semear a
palavra divina”.O desdobramento da metáfora em alegorias será esclarecido mais
adiante pelo pregador, mas aqui a interpretação da figura fica por conta do auditório;
este tinha que identificar ou pregador com o semeador, ambos substantivos, e o
verbo semear, com pregar. O mesmo acontece com a frase: “Porque no dia da
messe hão-nos de medir a semeadura, hão-nos de medir os passos”; a semeadura,
ou seara, é identificada com o lugar da pregação, o campo missionário dos jesuítas.
Os passos é uma metonímia que significa o trabalho árduo, conforme será relatado
mais adiante no Sermão. As expressões: “Entre os semeadores do Evangelho
uns que saem a semear, outros que semeiam sem sair”, é um trocadilho, que por
meio de uma antítese, forma um quiasma; reproduz uma aliteração de sons com a
letra S, e por outro lado, cria uma oposição de idéias.
129
A visão do profeta Ezequiel da glória de Deus, torna-se uma alegoria dos
pregadores que vão e não voltam dos campos da missão. A ação dos espinhos, das
pedras e a resistência do caminho contra o semeador, formam uma metáfora do que
acontecia no Maranhão.
As criaturas do mundo que se armam contra o semeador, conforme exposto
nos argumentos
22
, deram ensejo para criar uma metáfora, desdobrada em alegorias,
um sistema perfeitamente organizado, conforme a visão da classificação dos seres
na época; empregando o sistema acomodatício, houve o cuidado de fazê-lo
coerente com a parábola e com as Escrituras em geral. Os seres da natureza,
plantas e pedras, simbolizam certos tipos de pessoas, que resistem ao semeador,
mas que devem ser objetos da pregação do Evangelho. aqui um exemplo típico
do fato de que em Vieira a figura está em função do argumento.
Através de uma adaptação, Vieira introduz os missionários do Maranhão e a
si mesmo na alegoria do semeador e da sementeira. O trigo, metáfora da palavra de
Deus, que foi mirrado, afogado, comido e pisado, passa agora a ser aplicado
alegoricamente aos pregadores
23
, seus companheiros, que sofreram tudo o que a
semente sofreu: mirrados, afogados, comidos e pisados, “mas por amor de vós”,
segundo o pregador jesuíta, tentando captar a benevolência do auditório com esse
gesto.
Fazendo uma analogia entre as sementes do pregador que não vingaram e
do trabalho missionário, Vieira afirma:
que se perderam as três primeiras partes da vida, que uma parte da
idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras,que
outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última
parte, este último quartel da vida, por que se perderá também? Por que não
darão fruto? Por que não terão também os anos o que tem o ano? O ano
tem tempo para as flores, e tempo para os frutos. Por que não terá também
o seu outono a vida?
22
Conforme quadro 14.
23
Conforme quadro 15.
130
O ano dividido em estações torna-se uma metáfora da vida, no caso, do trabalho do
pregador. Se o semeador da parábola colheu da quarta e última parte, essa parte
corresponde à época da maturação dos frutos, que é o outono, após a floração,
condição necessária para o aparecimento desses frutos; esse é o motivo pelo qual a
figura é desenvolvida em alegorias
24
, pois não todas as flores se transformam em
frutos, uma vez que as que secam, ou murcham, ou são levadas pelo vento; as
poucas que se convertem em fruto, são as que estão pegadas ao tronco; são
qualificadas como: venturosas, discretas, que duram, que aproveitam, que
sustentam o mundo; essas qualidades talvez representem as virtudes dos
pregadores, pois a pergunta: “será bem que o mundo morra de fome?”, pode referir-
se á falta da pregação da palavra de Deus.
Capítulo II a comparação entre o passado e o presente, relativo ao pouco
resultado das pregações de hoje, cria uma antítese que será retomada mais vezes
no transcorrer da exposição do presente Sermão, servindo de elemento para a
argumentação.
Capítulo III Na imagem criada a partir dos elementos: espelho, olhos e luz,
constroem uma figura que mostra todo o processo da conversão de uma pessoa
25
;
assim, o espelho remete ao pregador, que persuade com a doutrina; os olhos
associam-se ao ouvinte, que percebe, pelo entendimento; a luz liga-se a Deus, que
ilumina, pela graça. A exploração dos sentidos, principalmente o da visão, está
claramente formulada nesta figura.
Vieira condena os ouvintes identificados na parábola com a semente que caiu
nos espinhos e nas pedras
26
; os primeiros são chamados de ouvintes de
entendimento agudo e os últimos, ouvintes de vontades endurecidas, que são piores
que os anteriores. Constata-se aqui a criação de duas figuras por analogia. Os
ouvintes de vontades endurecidas são como pedras e contra eles “nenhuma coisa
aproveita a agudeza”, os de entendimento agudo, em tese, podem ser convencidos
com uma agudeza maior. O termo “picar”, segundo Fernandes (1960, p. 827), pode
assumir o sentido de ferir com objeto pontiagudo, causar sensação de dor ou
24
Conforme quadro 7.
25
Conforme quadro 8.
26
Conforme quadro 20.
131
desconforto, entre outros. Com sutilezas de raciocínio ímpar, o pregador jesuíta
constrói uma figura pela qual critica os que alegavam que Vieira os picara, mas que,
na verdade são eles que “picam” o sermão. Por outro lado, “picar” também pode
significar: jactar-se, gabar-se, ações que foram atribuídas aos gongóricos. O quadro
abaixo mostra os piores ouvintes da Igreja:
OS PIORES OUVINTES DA IGREJA
ORIGEM TIPO DESCRIÇÃO
Espinhos Entendimentos agudos
Dado a sutilezas
Esperam galanterias
Avaliam pensamentos
São maus ouvintes
Picam
Pedras Vontades endurecidas São insensíveis
São os piores que há
Quadro 20 – Os piores ouvintes da Igreja, segundo Vieira.
Capítulo IV Vieira argumenta a favor da necessidade da prática de obras
por parte do pregador; em face da ausência delas, ele afirma: “Palavras sem obras,
são tiros sem bala: atroam, mas não ferem”. Trata-se aqui de estabelecer uma
analogia por semelhança entre um soldado armado e um pregador; a arma daquele,
no caso de dar um tiro, atroa, retumba, o som do tiro é ouvido; as palavras
proferidas pelo pregador também são perceptíveis ao ouvido; há, portanto, uma
semelhança entre os dois casos. Mas o soldado porta a arma para o ataque e a
defesa; usando sua arma, ele tenta atingir o inimigo, causando-lhe lesões que
podem ou não levar à morte; essas balas da arma que ferem, ao som do tiro, são
subentendidas como sendo as obras a serem praticadas pelo pregador, que atingem
o pecador; caso o soldado atire apenas com uma bala de festim, haverá o estrondo,
o som, mas ninguém será atingido; este é o caso do pregador, cujo som das
palavras são ouvidas, mas em cuja vida falta a prática das boas ações, que
convencem. Esta figura com sua dupla semelhança, insere-se perfeitamente nos
argumentos do insigne pregador.
132
Outro exemplo que reforça os conceitos da figura supra, é o que segue: “Para
falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”. A
expressão popular “falar ao vento”, pode ser uma metáfora referente a alguém que
fala muito, sem que se preste atenção a suas palavras, ou a alguém que fala, sem
que haja um interlocutor; neste caso um falante, mas não ouvinte; essa fala é
inócua. Por outro lado, “para falar ao coração”, é uma metonímia, pois o coração é
parte do corpo, que simboliza a pessoa em si, mas o coração também é considerado
sede das emoções e da vontade, portanto, a condição para se conseguir essa
adesão interior do ouvinte, é a necessidade das obras, identificadas com o exemplo
de vida do pregador; essas são as obras que junto com as palavras convencem.
Os cordeiros manchados pertenciam a Jacó, eram o resultado das varas
manchadas paras as quais as fêmeas olhavam quando concebiam. O incidente é
tomado em sentido figurado, centrado no conceber e manchas. Nesta metáfora, os
ouvintes são as ovelhas que olham para as manchas, os pecados, dos pregadores
na hora da pregação, mas não “concebem” virtudes, pois as manchas dos
pregadores são uma apologia contra as virtudes, como Vieira explica. Ao sentido da
visão, novamente é dado destaque nesta figura.
Capítulo V Ao contrapor o estilo do passado ao do presente, o pregador
jesuíta lamenta a forma como hoje se procede com o texto bíblico, imaginando-o
uma pessoa que está sendo levada ao martírio; passos que são acarretados,
arrastados, estirados, torcidos ou despedaçados, dizendo que é um estilo violento e
tirânico; esses atributos negativos podem ser aplicados a um governante injusto.
Nessa personificação, o texto é a vítima, oprimida pelo estilo de hoje, que não
concede liberdade para o texto se expressar livre e naturalmente.
Quando condena o estilo culto, Vieira usa uma figura, epanartose, para dizer
que esse estilo chamado de escuro, “não é escuro, e negro boçal”.
Para Vieira, o céu é o primeiro pregador, baseado no salmista Davi, afirmando
que o céu manifesta a glória de Deus e anucia a obra da suas mãos. As ações aqui
expressas atribuem-se a pessoas. Há, portanto, uma personificação nessas
declarações. A partir do texto, desenvolveu-se um conjunto de idéias que darão
133
sustentação ao argumento. Há uma semelhança entre “a terra semeada de trigo” e o
“céu semeado de estrelas”. O céu espelha a terra, porque as estrelas se identificam
com as palavras
27
; os sermões do céu são a composição, a ordem, a harmonia e o
curso das estrelas. Outros elementos incorporados à figura são: as estrelas são
claras, distintas e altas. O pregador deve seguir o reflexo do estilo do céu
prefigurado nas estrelas, no uso da língua. Nota-se que a construção da figura teve
seu ponto de partida na oposição entre céu e terra, que, por sua vez, fez surgir outra
antítese: “semear trigo” e “semear estrelas”, com todas as demais derivações da
figura.
Para os cultistas que se defendiam, citando vultos da Igreja do passado, para
justificar o seu estilo, o padre jesuíta afirma: “Posto que desejáramos nos que se
prezam de beber destes rios, a sua profundidade”. Nesta metáfora, o beber equivale
a ouvir, ler, aceitar, internalizar, apreciar os seus ensinos, idéias, escritos, forma de
exposição. Se isso realmente acontecia, então Vieira sugere que essas pessoas
também tenham a profundidade daqueles santos ou pregadores. A profundidade
pertence ao campo semântico de rio, mas figurativamente aqui significa que os
apreciadores do estilo oculto tenham grande penetração de espírito, conhecimento
intenso, que não sejam superficiais, que tomem cuidado para o discurso não se
perder em ornamentos, mas que expresse a essência das coisas.
O texto também relaciona uma série de antonomásias, como por exemplo: “A
Águia de África”, para se referir a Santo Agostinho; mas as perífrases, consideradas
figuras de escolha por alguns estudiosos, são atribuídos em excesso a aqueles, cujo
estilo Vieira desaprova. Elas pouco aparecem no estilo de Vieira.
Capítulo VI - Um dos vários provérbios e ditos populares usados por Vieira é
o seguinte: “Quem levanta muita caça e não segue nenhuma, não é muito que se
recolha com mãos vazias”. Isto foi proferido com relação ao fato de muitos
pregadores não se limitarem a um único assunto na pregação, mas escolhiam vários
como matéria do seu sermão. Nesta figura semelhança entre o pregador e o
caçador; este deve seguir apenas uma presa; se tentar atingir mais de uma, não terá
sucesso na sua caçada. O mesmo acontece com o pregador que tenta abordar mais
27
Conforme quadro 17.
134
de uma matéria no mesmo sermão; fazendo isso, esse pregador não convencerá a
ninguém. Colocado no início da “matéria do pregador”, essa parábola serve de
prova para a argumentação que será a seguir desenvolvida.
O semeador da parábola semeou um tipo de semente, assim o pregador
deve escolher apenas um assunto. Ao voltar ao semeador, Vieira afirma:
Se um lavrador semeara o primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e
sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, sobre o milho semeara
cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde.
Cria-se aqui uma superposição de imagens visuais nesta figura, que impressiona o
auditório, pois consegue “ver” o absurdo dessa hipótese.
A terceira figura no terceiro parágrafo deste capítulo também é um caso
hipotético, como o anterior, em que se mostra o absurdo de alguém tentar navegar
com a nau nas quatro direções ao mesmo tempo; seria um trabalho sem resultado.
Explicando a metáfora, o pregador sentencia: “Por isso nos púlpitos se trabalha
tanto, e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para
outro vento, que se de colher senão vento?” As imagens visuais são ampliadas;
agora o vento que move o barco assume um significado ampliado. Se a nau for
levada por um vento numa direção, depois para outra direção, não chegará a
destino. Esta figura é uma aproximação por semelhança, referente ao pregador que
prega um pouco sobre um assunto, depois sobre outro, sem um tema central para
unir as partes do discurso. A última frase: “que se de colher senão ventos?”, faz
alusão a outro dito: “Quem semeia vento, colhe tempestade”.
Com relação a Jonas, que pregou um assunto, Vieira afirma: “De maneira
que Jonas, em quarenta dias pregou um assunto, e nós queremos pregar
quarenta assuntos em uma hora?” Este quiasma, com a inversão de seus termos, é
um jogo de palavras, mas com sentido, e se integra aos argumentos em defesa do
assunto único na pregação.
O pregador apresentou todas as partes do sermão, mas para não apenas
ficar nos conceitos abstratos, ele pergunta: “Quereis ver tudo isso com os olhos?” A
135
seguir, ele formula a figura da árvore, identificado com o sermão, com as sete
partes, criando alegorias que representam as partes do sermão
28
: as raízes
representam o Evangelho; o tronco, a matéria; os ramos, os discursos; as folhas, as
palavras; as varas, os vícios; as flores, as sentenças; os frutos, a finalidade do
sermão, que é convencer. Esta metáfora também tinha a finalidade de trazer
imagens familiares ante os olhos dos ouvintes, para veicular os conceitos, as idéias
que se desejava inculcar.
Capítulo VII Neste capítulo várias figuras, conforme se constatou na
análise dos argumentos; estes são trazidos pelas figuras, que lhe dão sustentação.
Vieira pergunta se teria sido bom, se tivesse chegado até nós a semente da
árvore, de cuja fruta Eva comeu, “já que nos chegaram os encargos dela?” Nesses
encargos ou responsabilidades herdados pela humanidade, estão subentendidos os
pecados de Adão e Eva, que passaram a todos os mortais; trata-se do pecado
original, ao qual todos estão submetidos. A metonímia, referida nos “encargos”,
significa a perdição do ser humano, que por sua vez necessita de salvação. Esta
figura foi apresentada porque Viera dirá depois que Eva não guardou a semente
“porque o alheio e o furtado não é bom para comer”.
Após mostrar com exemplos a necessidade de lutar com armas próprias, o
pregador diz: “Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que
derrube gigante”. Esta declaração está associada a esta outra: “O pregar é entrar
em batalha com os vícios, e as armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a
ninguém deram vitória”. A aproximação por semelhança entre a atividade de pregar
e a guerra era uma prática comum entre os jesuítas, e de Vieira, em particular; os
exemplos citados apontam para o aspecto bélico da atividade sermonística; as
alegorias criadas procedem de práticas guerreiras, ondeinimigos, que devem ser
enfrentados; batalhas devem ser ganhas; as armas devem ser próprias. O “gigante”
a ser derrubado, não é mais Golias vencido por Davi; ele torna-se símbolo da
resistência ao sermão, caso este não for elaborado pelo próprio pregador.
28
Conforme quadro 10.
136
A rede de pesca dos apóstolos torna-se uma figura riquíssima em alegorias,
cuja articulação é a seguinte:
FIGURA DA REDE
APÓSTOLOS PREGADORES
Pescavam com suas redes Devem pregar os seus sermões
Faziam suas redes Devem elaborar seus sermões
Sabiam enfiar e atar Devem saber como elaborar sermões
Suas redes tinham:
- chumbada
- cortiça
Os sermões devem ter:
- coisas de mais peso e fundo
- coisas mais superficiais e leves
Pescavam peixes Devem pescar homens
Quadro 21 – A figura da rede, segundo Vieira.
O pregador jesuíta sustenta que uma língua de fogo pousou sobre a cabeça
de cada um dos apóstolos; ele explica que aquilo que nasce do juízo penetra e
convence o entendimento. Como a cabeça é uma parte do corpo, que simboliza
pessoa, um ser racional que pensa, entende e decide, pode-se então dizer que
aqui uma metonímia; no entanto, dependendo do ponto de vista que se analisa a
figura, há quem veja aqui uma metáfora.
Cada apóstolo recebeu sua língua, mas os estilos são diferentes; dá-se
destaque aos cinco apóstolos que deixaram escritos; neles “cada palavra era um
trovão, cada cláusula um raio, e cada razão um triunfo”. Como o Apocalipse faz
referência a sete trovões, Vieira acrescenta mais dois para completar o número
desejado. Desta forma, os sete trovões do Apocalipse converteram-se em uma
metáfora dos pregadores, presentes no Pentecoste, uma vez estabelecida a
semelhança entre os trovões e os santos em destaque, esta figura converte-se em
argumento, que ele precisava: “Eram trovões que falavam e desarticulavam as
vozes, mas essas vozes eram suas”, e fazendo alusão às palavras de São João,
arremata: “(...) os sete trovões fizeram soar as suas vozes” (Ap 10:3).
137
Capítulo VIII O bradar, como se pregava antigamente, preferido por Vieira,
opõe-se ao arrazoar; na sua generalização, cria-se uma antítese, onde os sentidos
se opõem à razão. No caso de João Batista, de quem se afirma que bradava no
deserto, vem a pergunta: “Pois porque se definiu João Batista pelo brado, e não pelo
arrazoar; não pela razão, senão pelos brados?” A resposta é: “Porque muita
gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão”. Essa antítese
aparecerá em cada referência bíblica apresentada, como sustentação de
argumentação.
Para Vieira, Isaías chamou os pregadores de nuvens; a partir dessa
interpretação cria-se uma figura complexa com diversas associações
29
. A nuvem
origem a diversas metonímias, pois na nuvem relâmpagos, trovões e raios, que
podem atingir os olhos, os ouvidos ou o coração, respectivamente. Os trovões,
perceptíveis pelos ouvidos, assombram e alcançam a todos. A identificação do
trovão com a voz do pregador, repete-se novamente no Sermão; por isso a
afirmação: “Assim de ser a voz do pregador: um trovão do Céu, que assombra e
faça tremer o mundo”.
Capítulo IX O diabo tentou a Jesus no deserto, no monte e no templo.
Referente à tentação no pináculo do templo, Vieira afirma:
Eis aqui a tentação com que então quis o diabo derrubar a Cristo, e com
que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do
templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele.
A metáfora do pináculo do templo, identificado com o púlpito, é muito sintomático e
implica uma série de significados dentro do contexto religioso da época do domínio
jesuíta. O aspecto arquitetônico das igrejas e o púlpito centralizado mais alto remetia
figurativamente para a posição elevada do pregador, em comparação aos demais
cristãos; pode ainda simbolizar a proximidade dos religiosos de Deus, sendo
conseqüentemente, intermediários entre Deus e os fiéis; isso legitimava a autoridade
da sua palavra; tendo tudo isso presente, é compreensível a preocupação do padre
jesuíta, referente às “Escrituras mal interpretadas”
30
, sendo essa “a tentação que
mais padece a Igreja”, e que tem levado à perda da fé.
29
Conforme quadro 12.
30
Conforme quadro 13.
138
A descrição de um pregador, como se representasse uma comédia, e que
depois se torna farsa, é uma paródia de uma representação teatral, atribuída a
pregadores gongóricos, narrado de forma viva e penetrante; o caráter burlesco fica
evidente nas descrições desse patético personagem, travestido de pregador; está
“vestido ou amortalhado em um hábito de penitência”; quanto ao mais, sua “vista é
de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo
(...)”, e com uma voz “muito afetada e muito polida”. Todos esses elementos
remetem para a representação de uma personagem teatral, que faz um papel de
faz-de-conta; isto equivale a uma sátira. Quanto a sua fala, Vieira pergunta, “e logo
começar com muito desgarro, a quê?” A resposta inscreve-se no panorama descrito:
“A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear
precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins (...)”. Evidencia-
se que na descrição do estilo desse “ator”, o uso dos verbos próprios do padrão
literário da caricatura, como: motivar, requintar, brilhar, etc.
Ainda que presente em todo o Sermão, o diálogo fictício do pregador com o
ouvinte fica mais evidente neste capítulo. Devido à relevância do assunto para
Vieira, esse dialoguismo faz a comunicação mais intensa. Com o uso de hipóforas,
ele pergunta e responde, como neste exemplo:
Pois se nas Escrituras não o que dizeis e o que pregais, como cuidais
que pregais a palavra de Deus? Mais. Nesses lugares, nesses Textos que
alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É
esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido
da mesma Gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as
tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que
toam.
Em outros casos o pregador questiona, deixando a resposta para o ouvinte, por dois
motivos: a resposta é evidente, ou a pergunta serve de desafio, como o caso desta
pergunta: “Já que o púlpito é teatro, e o sermão-comédia, sequer, não faremos bem
a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício?”.
Contudo, convém repetir: mais do que simples uso de figuras ou interrogação
retórica, este estilo converte-se, em Vieira, numa forma muito poderosa de
argumentar.
139
Capítulo X – Vieira antecipa-se aos argumentos contrários à pregação por ele
proposta no Sermão, referente à alegação dos pregadores presentes, de quem
seriam objeto de zombaria; a isso ele responde: “Dir-me-eis o que a mim me dizem
(...), que se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir.
Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo!” Portanto, através de uma prolepse,
os eventuais argumentos são refutados. Quanto à aparente concordância em se
deixar intimidar pelas zombarias, é apenas um recurso, uma ironia, no sentido de
expressar o contrário do que se quer dizer. Com isto Vieira queria mostrar o absurdo
dessa submissão de um pregador autorizado por Cristo para exercer o seu alto
ofício. Que ele queria dizer precisamente isto, e não o que expressara, confirma-se
na próxima declaração: “Zombem, e não gostem embora, e façamos nós nosso
ofício”.
O médico trata do doente, não se importando com o gosto do enfermo. Este
fato serve de aproximação entre o médico e o pregador; este deve pregar a palavra
de Deus, mesmo que o ouvinte não goste. A esse respeito o jesuíta recomenda:
“Sarem, e não gostem; salvem-se, e amargue-lhes, que para isso somos médicos
das almas”. O comum nesta parábola é o composto por um elemento: os dois
objetivam a cura, sem se importar com o gosto da pessoa. O elemento de oposição,
criando uma antítese, consiste no fato de o médico curar o corpo e o pregador, a
salvação da alma; portanto, tudo está perfeitamente integrado no plano
argumentativo do discurso.
Com o episódio de um ouvinte que, após ouvir um determinado pregador
ficava muito contente com esse pregador, e após ouvir o outro, ficava descontente
consigo mesmo, Vieira cria uma antítese com: contente versus descontente. O
contente se associa ao pregador, que neste caso, não é considerado importante. O
que se realça como fundamental, inserido na tese que se defende, é que o ouvinte
deve sair descontente consigo, o que equivale ao ato de arrependimento, de
conversão; caso contrário, o pecador fica sabendo que o juízo de Deus é uma
virtual ameaça que paira sobre ele.
140
Com relação às figuras referidas, dentre as muitas que o Sermão
eventualmente suportaria, constata-se que elas realmente estão profundamente
implicadas com os argumentos. Vieira foi buscar nelas o fundamento necessário
para sua argumentação, com vistas ao convencimento. Essa é a função que o
estudo dessas figuras confirma, uma vez que o objetivo da presente análise não tem
a finalidade de fazer um simples levantamento exaustivo de recursos estilísticos,
apenas no nível de expressão.
3.3.2 – Linguagem
A reelaboração da tradição religiosa medieval pelos jesuítas não impediu que
Vieira se ligasse ao Classisismo pela linguagem. Os períodos dos seus escritos são
mais curtos, as frases são harmoniosas e o estilo é disciplinado, mas direto. As
descrições realistas se alternam com alegorias bíblicas, numa relação constante
entre o real e o imaginário. A escolha vocabular, a eufonia da expressão, a
imaginação poética e a variedade de discursos, tudo isso brilho a sua prosa
precisa e fluente. Ele reprovava o discurso pesado e artificial dos gongóricos,
prontos “a motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear
precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar
primaveras, e outras mil indignidades destas”, conforme denuncia no capítulo IX.
Sendo um sermão sobre o sermão, a presente exposição de Vieira é toda
metalinguagem. Por outro lado, considerações sobre a gramática da pregação,
da língua, das palavras, e outros.
Mesmo usando um discurso erudito, o jesuíta advoga a favor de um estilo
natural, oposto ao trabalhoso e artificial. Também afirma que as palavras são
estrelas; os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas,
conforme articulado no capítulo V. Isso pode indicar que a linguagem deve espelhar-
se no céu e incorporar a qualidade das estrelas, que têm ordem e são claras, altas e
distintas. Estes e outros aspectos serão analisados nos capítulos do sermão.
Capítulo I – Assim começa o Sermão:
141
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse
hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador!
Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou
e me trouxe de tão longe.
Este primeiro parágrafo, no condicional e imperativo, apresenta uma certa
equivalência sintática dos seus termos; a repetição do advérbio tão tem um efeito
expressivo de eufonia nos ouvidos dos ouvintes, e intensifica a mensagem; o
mesmo se com o imperativo do verbo ouvir, repetido; no emprego do termo todo,
duas vezes, no primeiro caso se pede que se ouça o sermão todo, do início ao fim,
com atenção; o segundo todo refere-se a sua missão que o trouxe a Portugal, para
reverter a questão legal com os índios do Maranhão, pois os jesuítas estavam
perdendo o controle devido à revolta dos colonos.
No próximo parágrafo, a forma “hão-nos de” aparece duas vezes, reforçando
a idéia do juízo. O verbo lavrar foi usado no sentido conotativo, significando
trabalhar; o “colher fruto” refere-se à obtenção de resultados como conseqüência do
esforço dispensado. As orações são as seguintes:
Porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura, e hão-nos de
contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o
que despendeis (...) Para quem lavra com Deus até o sair é semear (...).
As frases simétricas fazem lembrar a poética, que na época de Vieira
começou a migrar para a prosa. São representativos disso, as seguintes frases:
Aos que têm a seara em casa,
Pagar-lhes-ão a semeadura:
Aos que vão buscar a seara tão longe,
Hão-lhes de medir a semeadura, e
Hão-lhes de contar os passos.
um paralelismo sintético, no seguinte: “Os de cá, achar-vos-eis com mais
Paço; os de lá, com mais passos.”
Pela oposição: e , e Paço e passos, conseguiu-se formular duas orações
de sentido contrário; a rima entre Paço, corte do rei, e passos, trabalho missionário,
tinha o objetivo de provocar prazer no ouvinte; essa assonância também se
consegue, em parte, com as palavras: pregar e propagar, usadas no contexto.
142
Frases simétricas de alto potencial expressivo encontram-se relacionadas ao
domínio de todo o campo cognitivo, como em:
Todas as criaturas que há no mundo se reduzem a quatro gêneros:
Criaturas racionais, como os homens:
Criaturas sensitivas, como os animais:
Criaturas vegetativas, como as plantas:
Criaturas insensíveis, como as pedras (...)
O paralelismo sintático continua na construção do quadro, fechando todos os
flancos, agora percorrendo o caminho inverso, onde o verbo perseguir foi eludido,
pois está subentendido:
A natureza insensível o perseguiu nas pedras;
A vegetativa nos espinhos;
A sensitiva nas aves;
A racional nos homens.
A construção do quadro foi completamente consumado, mencionando-se os agravos
sofridos, com sintagmas da mesma estrutura:
As pedras secaram-no,
Os espinhos afogaram-no,
As aves comeram-no, e
Os homens? Pisaram-no.
É digno de nota, a elaboração do sistema racional feito por partes,
semelhante a diversos círculos com intersecções; são repetições com a
incorporação de elementos novos, até completar o quadro. No próximo parágrafo
essa técnica é repetida, ao dizer-se que os missionários, à semelhança da semente,
usando termos no sentido conotativo, foram mirrados, afogados, comidos e pisados,
descrevendo-se as circunstâncias em que isso aconteceu; com isso se fecha o
círculo do raciocínio:
Para os semeadores, isto são glórias:
mirrados sim, mas por amor de vós mirrados:
afogados sim, mas por amor de vós afogados:
comidos sim, mas por amor de vós comidos:
pisados sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
143
A grave situação é expressa pela intensificação da mensagem por meio da repetição
de termos, fazendo com que a primeira e a última palavra de cada unidade seja a
mesma.
Falando das flores, necessárias para que apareçam frutos, a estrutura das
frases curtas, incisivas, introduzidas por anáforas, dá certo ritmo ao texto:
As flores,
umas caem,
outras secam,
outras murcham,
outras leva o vento.
As poucas flores que se transformam em fruto, são as que se pegam ao tronco:
Só essas são as venturosas,
só essas são as discretas,
só essas são as que duram,
só essas são as que aproveitam,
só essas são as que sustentam o mundo.
Capítulo II As palavras: tempos passados e antes, de um lado, e hoje, do
outro, criam uma oposição que remete à questão central do sermão. Ao passado
está associado o advérbio que intensifica o conteúdo:
Tantos pecadores convertidos,
tanta mudança de vida,
tanta reformação de costumes.
Os gerúndios, nas seguintes orações, mostram o potencial das ações, como
resultado do efeito da palavra de Deus:
Os grandes desprezando as riquezas e vaidades do mundo;
os reis renunciando os cetros e as coroas;
as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas.
Além do conteúdo, as estruturas, por outro lado, denunciam uma certa passividade,
um estado de coisas que no hoje de Vieira se apresentavam estanques, imutáveis,
introduzido por orações negativas:
Não há um homem em que o Sermão entre em si e se salva;
não há um moço que se arrependa;
não há um velho que se desengane.
144
Nos sintagmas: “Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também
a vós: a mim para aprender a pregar: a vós para que aprendais a ouvir”, pode-se
criar as seguintes oposições com os seguintes termos: “A mim versus a vós,
Aprender a pregar versus aprender a ouvir.”.
Esses termos são a base para o discurso que influencia os ouvintes, e para o
pregador fazer a sua inserção nesse auditório.
Capítulo III Para inocentar a Deus da causa tanto procurada, Vieira usa
orações alternativas, de estruturas semelhantes, isto para dizer o motivo pelo qual a
semeadura deixara de frutificar, que foi :
Ou pelo embaraço dos espinhos,
ou pela dureza das pedras,
ou pelos descaminhos dos caminhos.
Usando orações introduzidas por preposições, de instrumento e finalidade, o
pregador proclama que Deus ajudou o semeador:
Com o sol para aquentar, e
com a chuva para regar;
com o sol para iluminar, e
com a chuva para amolecer.
Introduzido por particípio, o paralelismo sintético das seguintes orações
surpreende pela equivalência dos termos, quando se trata da semente, que:
Lançada nos espinhos, não frutificou,
mas nasceu até nos espinhos;
lançada nas pedras, não frutificou,
mas nasceu até nas pedras.
As seguintes orações condicionais são paralelas, e portanto, semanticamente
intercambiáveis: “E se a palavra de Deus até nos espinhos e nas pedras triunfa; se a
palavra de Deus até nas pedras e até nos espinhos nasce (...)”.
Capítulo IV O pregador jesuíta, começando a responder a questão
proposta, volta ao antigamente e ao hoje; no capítulo anterior houve referência a
145
essa dicotomia antitética para fundamentar a resposta à diferença entre o passado e
o presente. Neste capítulo chega-se a essa oposição, partindo da classe gramatical
de palavras. Afirma-se que no texto da parábola não consta o substantivo semeador,
senão o texto diz que saiu a semear o que semeia, que sugere ação, sendo isto o
que realmente define o pregador. A idéia de ação associa-se ao eixo temporal:
antigamente houve conversões porque ouve ação, que são as obras; palavras e
obras devem andar juntas, e as obras devem ser vistas. Os substantivos palavras e
obras, relacionados aos sentidos, são portadores dessas idéias, segundo expresso
nos seguintes sintagmas:
As palavras ouvem-se,
as obras vêem-se;
as palavras entram pelos ouvidos,
as obras entram pelos olhos.
A oposição céu/terra, repetido alhures, serve aqui de veículo para a
construção da idéia de que no céu todos amam a Deus, dizendo o por quê:
Deus no céu é Deus visto;
Deus na terra é Deus ouvido.
No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos (...)
Na terra entra-lhe o conhecimento de Deus à alma pelos ouvidos (...)
o que entra pelos ouvidos crê-se,
o que entra pelos olhos necessita.
É significativo, a imaginação, o lirismo, a emoção e a plasticidade com que as
cenas são descritas pela linguagem por Vieira; exemplo disto é quando ele narra os
efeitos que a encenação do martírio de Cristo provoca nos ouvintes; a reiteração
anafórica adverbial conduz com força a mensagem; ao correr-se a cortina, a imagem
de Cristo é vista, provocando a seguinte reação nos expectadores:
Eis todos prostrados por terra,
eis todos a bater no peito,
eis as lágrimas,
eis os gritos,
eis os alaridos,
eis as bofetadas.
Pela oposição olhos e ouvidos, o pregador constrói seu argumento a favor “dos
olhos”, pois o mesmo episódio, apenas ouvido pela narração, teve pouco efeito no
146
auditório; por isso a conclusão: “A relação do pregador entra pelos ouvidos, a
representação daquela figura entra pelos olhos”.
E respondendo a sua própria pergunta, “por que fazem pouco abalo os
nossos sermões?”, a oposição olhos/ouvidos, é reiterada mais uma vez: “Porque
não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos.”.
Capítulo V a linha de tempo perpassa todo o Sermão; Vieira pergunta se
não seria o estilo “que hoje se usa no púlpito?”, a causa procurada. Sua predileção
pelo paralelismo apresenta um acúmulo de elementos caracterizadores,
interrogando:
Um estilo tão empeçado,
um estilo tão dificultoso,
um estilo tão afetado,
um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza?
Comparando esse estilo a outro que é fácil, e muito natural, o pregar é semelhante
ao semear; ao se deixar cair a semente, ela nasce. Para descrever isso, usa-se o
pretérito imperfeito, dando a idéia de algo que se processa de forma duradoura e
constante; o gerúndio, no final, tem o mesmo efeito:
Caia o trigo nos espinhos e nascia;
caia o trigo nas pedras e nascia.
caia o trigo na terra boa e nascia.
ia o trigo caindo e ia nascendo
O verbo cair, usado no sentido conotativo, continua a centralizar a comparação entre
os estilos do passado e do presente. Vieira vai e volta, fala de um, depois do outro,
sempre incorporando novos elementos que reforçam a argumentação. O estilo que
defende é como o cair da semente, com seu resultado acontecendo naturalmente,
conforme acima exposto. Novamente são trazidos aspectos do estilo de hoje, no
qual o texto está sendo violentado, a língua sofre maus tratos, conforme se a
seguir:
Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa?
ver vir os tristes Passos da Escritura, como quem vem ao martírio;
uns vêm acarretados,
outros vêm arrastados,
147
outros vêm estirados,
outros vêm torcidos,
outros vêm despedaçados;
só atados não vêm!
Há tal tirania?
Assim, o estilo, com todos os seus embaraços, contrário ao proposto, ainda
sofre o agravante da falta de unidade, pois o “só atados não vem”, remete para os
elementos dispersos, onde falta de integração e adequação ao tema. A falta de
unidade do discurso desce às unidades menores. Fazendo referência à semente
que em três lugares nasceu, Vieira transporta esse fato à língua, estabelecendo três
modos de “cair”, para o sermão “nascer”:
Há de cair com queda,
há de cair com cadência,
há de cair com caso.
A queda é para as coisas,
a cadência para as palavras,
o caso para a disposição.
A queda é para as coisas, porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar,
hão de ter queda.
A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas,
nem dissonantes,
hão de ter cadência.
O caso é para a disposição, porque de ser tão natural e tão desafetada
que pareça caso e não estudo.
As palavras queda, cadência e caso, embora tenham o mesmo étimo, Vieira as
adapta a aspectos referentes a língua: coisas, palavras e disposição, para que
expressem o que ele pretendia. Cabe salientar que essas recomendações ele
próprio aplicava com esmero no uso da linguagem. Os três modos de cair é exposto
em círculos que se completam na sua relação:
OS TRÊS MODOS DE CAIR PARA O SERMÃO NASCER
1º CÍRCULO 2º CÍRCULO 3º CÍRCULO
148
Com queda Para as coisas Bem trazidas
Em seu lugar
Com cadência Para as palavras Não escabrosas
Não assonantes
Com caso Para a disposição Natural
Desafetado
Não é estudo
Quadro 22 – Modos de cair para o sermão nascer, segundo Vieira.
Dá-se especial ênfase à ordem das estrelas, mas “não é uma ordem que
lavor”; a ordem das palavras, portanto, deve estar subordinada a um estilo que não
seja trabalhoso, como por exemplo, a busca desenfreada de pares de termos que se
opõem, o que é chamado de “xadrez de palavras”. Neste ponto Vieira poderia ser
acusado de fazer o mesmo, pois é uma característica que pode ser verificada em
todo o Sermão. Apenas neste capítulo, ele opõe os estilos do passado e do
presente; quando descreve o estilo violento e tirânico, ele usa frases afirmativas e
negativas, diz como é e como não é; fala em estilo do céu e estilo da terra; nos três
modos de cair para o sermão nascer, conforme o quadro acima, ele usa expressões
afirmativas e negativas; apesar da violenta censura ao estilo gongórico, no fim do
capítulo reconhece o mérito de santos e mestres do passado, recomendando aos
pregadores do seu tempo que tenham também a profundidade daqueles. Entretanto,
no caso de Vieira, a oposição de termos não é um simples jogo verbal; a partir das
diferenças ele cria figuras, conceitos e ou raciocínios que se incorporam aos
argumentos. Portanto, longe de ser apenas um palavreado para agradar os ouvidos,
aquele recurso tornou-se uma forma eficaz de argumentar em Vieira.
Capítulo VI Na apresentação da matéria do pregador, a linguagem torna-se
poderosa para expor o processo da elaboração do sermão. É metalinguagem que se
impõe como exigência ao pregador; por isso o uso do verbo haver repetido quinze
vezes torna-se um imperativo, reforçado pelas frases curtas, incisivas e de
estruturas equivalentes:
Há de tomar o pregador uma só matéria,
há de defini-la para que se conheça,
há de dividi-la para que se distinga,
149
há de prová-la com a Escritura,
há de declará-la com a razão,
há de confirmá-la com o exemplo,
de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as conseqüências,
com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se
devem evitar,
há de responder as dúvidas,
há de satisfazer às dificuldades,
de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência os argumentos
contrários, e depois disto
há de colher,
há de apertar,
há de concluir,
há de persuadir,
há de acabar.
Para indicar que não outra fórmula, nem alternativa plausível, confirma-se com o
demonstrativo isto, indicando proximidade, e excluindo o contrário: “Isto é sermão,
isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto.”.
Verifica-se que, para apresentar as partes do sermão mediante a figura da
árvore, Vieira segue o mesmo esquema, apresentando as partes em círculos com
intersecções, até completar o todo organizado; ele diz o que o sermão é depois
passa a nomear todas as suas partes de novo, declarando que havendo uma das
partes, haveria apenas o elemento denotativo da árvore. Fechando o círculo,
apresenta a figura completa, usando novamente o verbo haver, mas apresenta
frases sintéticas e sintaticamente equivalentes:
Assim que nesta árvore, a que podemos chamar Árvore da Vida,
há de haver o proveitoso do fruto,
o formoso das flores,
o rigoroso das varas,
o vestido das folhas,
o estendido dos ramos,
mas tudo isso nascido e formado de um só tronco, e
esse não levantado no ar,
senão fundado nas raízes do Evangelho.
Capítulo VII Para Vieira, o pregador deve pregar o seu sermão, e não o
alheio. O possessivo seu, com suas necessárias flexões, é a categoria gramatical
que unifica as provas. Assim, o semeador semeou a sua semente; Davi derrotou o
gigante com suas armas; os apóstolos faziam suas redes; em Pentecostes, cada um
dos apóstolos recebeu a sua língua; as vozes dos trovões eram suas. O termo
alheio, com suas variações, opõe-se ao seu. Conforme as estruturações, esses
150
termos podem presidir sintagmas substantivos ou adjetivos. No possessivo acima
em destaque, a forma usada é a afimativa. Seguem exemplos:
Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto, porque pregam o
alheio.
Com as alheias ninguém pode vencer.
Refazendo as redes suas; eram redes dos apóstolos, e não eram alheias.
De maneira que eram as redes suas.
Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes
eram as suas.
Capítulo VIII - João Batista faz eco das palavras de Isaías, quando se
identifica a si mesmo como “voz que clama no deserto”; Vieira devolve essas
palavras por neste deserto”. A mudança para essa contração, não é apenas formal,
mas pode ser semântica. O deserto não é necessariamente o da Judéia, pode ser o
de Vieira e seus companheiros, que por sua vez podem identificar-se com João
Batista. O desenvolvimento do raciocínio de Vieira processa-se novamente por
partes ou etapas, na figura da nuvem, usando ao mesmo tempo frases
sintaticamente paralelas; a cada etapa acrescenta-se novos elementos
31
:
Primeira etapa: “A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio.”.
Segunda etapa:
Relâmpago para os olhos,
trovão para os ouvidos,
raio para o coração.
Terceira etapa:
Com o relâmpago alumia,
com o trovão assombra,
com o raio mata.
Quarta etapa:
Mas o raio fere um,
o relâmpago a muitos,
o trovão a todos.
31
Conforme quadro 12.
151
Na última etapa houve inversão, deixando o trovão por último, porque dele vai-se
comentar; os outros elementos figuram apenas como partes necessárias para a
apresentação do quadro completo.
Nesta parte do Sermão, pelo que se pode constatar, aparecem as seguintes
palavras chaves: antigamente, hoje, bradar, ou brado, sentidos, arrazoar ou razão,
trovão. Todo o capítulo foi elaborado com a combinação por associação, dissociação
ou oposição destes termos.
Assim:
Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando.
E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem
às vezes mais os brados que a razão.
Assim há de ser a voz do pregador: um trovão do Céu, que assombre e faça
tremer.
Constata-se, pois, que as palavras referidas são geradoras dos fortes argumentos
aqui apresentados.
Capítulo IX A estruturação formal deste capítulo segue um esquema
determinado, com orações afirmativas, concessivas e adversativas. Como a questão
é a pregação da palavra de Deus, Vieira nega que “os pregadores de hoje” estejam
fazendo isso; o pouco fruto: “É porque as palavras dos pregadores são palavras,
mas não são palavras de Deus.”
Segue a concessão com uma frase afirmativa: “Pregam palavras de Deus
(...).”
A oração adversativa negativa, porém, anula a concessão: “(...) mas não
pregam a palavra de Deus.”.
Pela diferença do singular e plural, procura-se confirmar novamente, que pregar
palavras de Deus é “apostilar”; pregar a palavra de Deus é tomar um único e
definido assunto para o sermão. Mas aqui, tacitamente se admite a possibilidade de
152
pregar a palavra de Deus, porém agora afirma-se em que condições: “As palavras
de Deus pregadas no sentido que Deus as disse, são palavras de Deus.”.
Vieira continua com uma adversativa para dizer o que significa a falta dessa
condição: “Mas as pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de
Deus, antes podem ser palavras do demônio.”.
Com esse esquema chega a provar que os pregadores dão falso testemunho,
tornando-se culpados da falta de resultados esperados.
Repete-se o esquema de completar o quadro por etapas, embora aqui haja só
duas; cada uma é apresentada com frases paralelas na morfologia e na sintaxe, mas
semanticamente diferentes. O exemplo trata da tentação de Jesus:
Primeira etapa:
O diabo tentou a Jesus no deserto,
tentou-o no monte,
tentou-o no templo.
Segunda etapa:
No deserto tentou-o com a gula,
no monte tentou-o com a ambição,
no templo tentou-o com as Escrituras mal interpretadas.
Merecem destaque as orações interrogativas e exclamativas usadas com
profusão no Sermão, mas principalmente neste capítulo. Uma vez que nesta parte é
respondida definitivamente a questão, levantada no início, a censura aos
pregadores é tão severa, que as perguntas revelam certa inquietação ou
nervosismo, diante de acusações tão graves. O texto mostra o profundo
descontentamento de Vieira frente ao fracasso dos pregadores. Seguem alguns
exemplos:
Se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr
tormenta, em vez de colher frutos?
Pois se nas Escrituras não o que dizeis e o que pregais, como cuidais
que pregais a palavra de Deus?
É esse o sentido da mesma Gramática das palavras?
E se não são palavras de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto
as pregações?
153
Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de
Deus?
Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes!
Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam!
Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos
conceitos, se dos vossos aplausos!
Além do como, muitas perguntas são feitas com o interrogativo por quê? Fato
este verificado em todo o sermão. Além de manter o contato com o auditório,
desafiando-o a antecipar a resposta, essa técnica deu motivo ao pregador a explicar
seu ponto de vista, usando para isso, na seqüência, a conjunção porque. Aqui
aparecem os dois termos, o da pergunta e o da resposta:
Sabeis (Cristãos) a causa por que se faz, hoje, tão pouco fruto com tantas
pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não
são palavras de Deus.
Outras vezes o porque segue a uma explicação mais ampliada após uma
afirmação. Quando as testemunhas apareceram ao sinédrio para acusar a Jesus de
ter dito que destruiria o templo e que o edificaria em três dias, essas palavras foram
tomadas em sentido literal; ele falava da sua morte e ressurreição; fazendo
referência a esse episódio, Vieira comenta: “Ainda que as palavras eram
verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas porque Cristo as dissera em
um sentido, e eles as referiram em outro.”.
O uso extensivo do se, em forma de pergunta ou não, também é uma
característica marcante neste texto. Geralmente uma afirmação, provada ou
aceita como verdadeira no condicional, seguido de uma conseqüência ou uma
conclusão, sendo isso uma forma de ampliar o assunto, como nos seguintes
exemplos:
Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade,
se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr
tormenta, em vez de colher fruto?
Pois se cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o
diabo a Escritura para tentar a Cristo?
Se alguém perceber demasiada a censura, ouça-me.
154
Capitulo X Mencionando o texto de São Paulo, no qual ele se refere ao
pregar “por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama”, Vieira, mediante um
jogo de palavras, cria assonâncias e opõe termos com as seguintes expressões:
pregar com fama e sem fama; com fama e com infâmia; ser afamado e infamado.
Com estes elementos foi elaborada esta parte, revelando um discurso altamente
expressivo, soante, de argumentação cerrada e potencialmente persuasiva.
O pregador há de saber pregar com fama.
Mais diz o Apóstolo.
Há de pregar com fama e com infâmia.
Pregar o pregador para ser afamado, isto é mundo;
mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de
sua fama,
Isso é ser pregador de Jesus Cristo.
Os ouvintes comparados com a semente que caiu sobre as pedras, ouviram a
palavra de Deus com gosto, mas não trouxeram frutos: pedras, gostar e frutificar
formam orações imperativas afirmativas, precedidas por uma negativa,
perfeitamente construídas, formalmente paralelas e anafóricas; primeiro Vieira
pergunta se fosse bom que os ouvintes gostem de ouvir, e no entanto, fiquem
pedras; diante dessa realidade, referente aos corações de pedra, ele afirma:
Não gostem, e abrandem-se;
não gostem, e quebrem-se,
não gostem e frutifiquem.
Três ações verbais: gostar, dar pena e frutificar comandam orações, dando-se realce
ao frutificar; como no caso anterior, são orações condicionais, formalmente
parecidas e simetricamente paralelas, tudo para dizer que o frutificar equivale a dar
pena, com duas conclusivas:
Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme;
quando cada palavra do pregador é um torcer para o coração do ouvinte;
quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber
parte de si,
então é a pregação qual convém,
então se pode esperar que faça frutos.
155
O vocabulário relacionado à guerra esta presente até o fim do Sermão. O
desafio é tomar a ofensiva na luta contra os vícios, este termo geral é desdobrado
numa série de sintagmas prepositivos, atribuindo-lhes significados definidos:
Preguemos e armemos-nos todos
contra os pecados,
contra as soberbas,
contra os ódios,
contra as ambições,
contra as invejas,
contra as cobiças,
contra as sensualidades
É impressionante o ritmo que se imprime ao texto, fazendo lembrar o passo dos
soldados e ou a sucessão de tiros das armas contra os inimigos. Isto se corroborou
com a última oração: “Saiba o Inferno que ainda há na terra que lhe faça guerra com
a palavra de Deus”.
Mesmo que sua linguagem seja muito rica, a presente abordagem de várias
passagens do Sermão confirma que para Vieira, a função das palavras não é
apenas “vestir” as idéias. A atividade do seu raciocínio funde-se com a formulação
lingüística. A sua pergunta: “Quereis ver tudo isto com olhos?” (Cap. 10), exemplifica
a sua preocupação em tornar as idéias visíveis através da linguagem. Esta é a razão
do porquê do seu grande investimento na atividade lingüística: a sua ação sobre o
público, que tinha a finalidade de persuadir pela linguagem, e quando mais
apropriada e precisa fosse, maior a possibilidade de atingir o sagrado objetivo.
O ensino da retórica prepara o orador com muitas técnicas persuasivas no
nível do expresso, precisamente para mover o auditório, também pelo
deslumbramento, pelo deleite intelectual, como conseqüência da engenhosidade do
orador. Este é o motivo pelo qual o Sermão também pode ser considerado uma obra
literária, pregado, recebido e posteriormente estudado como tal.
Vieira, na sua erudição brilhante e sua argumentação sagaz, dominava as
técnicas expressivas e emotivas do cânon da eloqüência sacra; não comungava da
idéia da arte pela arte, do uso do verbo para satisfazer o gosto por jogos dialéticos
ou verbais. Todo seu arsenal lingüístico e conceitual estava única e exclusivamente
156
a serviço da arte de convencer, sempre preocupado em acomodar os textos das
Escrituras ao assunto tratado, tudo isto mostra a retrospectiva supra.
CONCLUSÃO
A fim de compreender a oratória de Vieira a partir da leitura do Sermão
analisado, não é suficiente fazer um recorte do contexto da época do pregador; é
157
mister voltar às fontes clássicas, das quais o pregador bebeu, intermediado pela
tradição cristã ocidental.
Assim, a retórica, que é a arte de convencer pelo uso dos recursos da
linguagem, foi ensinada e praticada por grandes mestres da antiguidade clássica,
primeiro pelos gregos e depois pelos latinos. Os oradores estabeleceram regras
para a composição e apresentação do discurso; a clareza, a elegância do estilo e a
adequação dos recursos expressivos foi uma preocupação dos teóricos, desde
Aristóteles. Na sua Retórica, este filósofo reelaborou as bases do sistema retórico e
estabeleceu os três métodos de persuasão ou argumentos: o ethos, que é caráter
ético do reitor; o pathos, de ordem emocional ante o auditório, e o logos, referente à
própria argumentação. Ao contrário dos sofistas, que apenas estavam interessados
em sair vencedores, Aristóteles sustenta que a retórica deve estar a serviço da
verdade. O exemplo, as máximas e os entimemas são as três provas de persuasão;
os entimemas são uma espécie de silogismo. duas espécies: os demonstrativos,
que são a base para a ciência de hoje, e os retóricos ou refutativos, que se baseiam
em opiniões, premissas prováveis, mas totalmente verossímeis.
Entre os latinos, Cícero e Quintiliano foram dois grandes mestres da retórica,
e enfatizavam seu aspecto moral; suas obras influenciaram os tratados posteriores;
incorporado ao trivium, a retórica manteve, na Idade Média, as cinco partes:
invenção, disposiçao, elocução, memória e pronunciação. Com o surgimento do
Cristianismo, a retórica foi praticada pelos teólogos cristãos, imitando os clássicos,
apenas com relação ao estilo.
A retórica sobreviveu no mundo ocidental, assumindo diversos matizes, até
chegar à época barroca. Com Vieira tornou-se um poderoso instrumento na arte da
eloqüência sacra. É significativa a alegoria de Marciano Capela (CURTIUS, 1996, p.
73-74) referente à dama formosa, alta, com suas vestimentas ornadas com as
figuras do discurso, portando armas para ferir seus opositores; simbolizava a retórica
que assistia ao casamento de Mercúrio com a Filologia, representando a eloqüência,
e o amor à razão e ao conhecimento, respectivamente. Pois bem, esta dama muito
distinta, para ficar com a figura de Capela, foi carinhosamente recebida pelos
jesuítas; o padre Vieira foi um dos seus maiores admiradores, rendendo-se
158
incondicionalmente aos seus encantos. Isto se deu no contexto do século XVI e
XVII, em pleno Barroco na Península Ibérica, caracterizado pela contra-reforma, pelo
Concílio de Trento, pela Inquisição, pela influência da poderosa Companhia de
Jesus, pelas guerras e pela instabilidade política de Portugal. Nesse cenário
localiza-se o autor do presente Sermão.
O padre Antonio Vieira, nascido exatos 400 anos, foi uma personagem
marcante da sua época, como português, como católico, como jesuíta e como
pregador; os testemunhos históricos e, principalmente, seus Sermões e Cartas,
atestam isso. Como mestre da oratória sacra, os seus sermões, muitos deles
pregados na presença de nobres e autoridades reais, tiveram um efeito prodigioso.
Sendo um dos homens mais cultos do seu tempo, dominava os conhecimentos
antigos e modernos, os profanos e os sagrados; movia-se com grande desenvoltura
nos mais diversos ambientes; sua linguagem clara e impecável, tinha grande poder
de penetração; com agudeza de raciocínio fazia multiplicar os argumentos tirados
das Escrituras, diretamente, ou mediante um sistema de acomodação alegórica; os
seus sermões, engenhosamente planejados e desenvolvidos, próximos do cânon da
retórica clássica, são monumentos perenes do “método português” de pregar; são
sinais visíveis da arte da palavra a serviço de uma visão de mundo, mas que não
se esgota no aspecto religioso.
Esse método pode ser rastreado nos sermões de Vieira, mas ele definiu seu
estilo parenético, de maneira clara e inconfundível, na estrutura, no conteúdo e no
estilo artístico do presente Sermão, considerado a profissão de da oratória sacra,
pelo seu valor histórico e literário; colocado no início de uma coleção pelo seu autor,
serviu de modelo no ensino dos jesuítas. A articulação do Sermão é feita de forma
semelhante às divisões da retórica da tradição clássica. As regras da disposição
fazem parte do “método português” de pregar, quando se afirma: “Há-de tomar o
pregador uma matéria (...)”, no capítulo IV do Sermão; ao tema seguem: a
proposição, a divisão, a prova, ou confirmação com textos da Bíblia ou dos doutores
do magistério da Igreja, a amplificação com recursos dos lugares-comuns, a
confutação ou refutação, a peroração, onde se enfatiza a persuasão.
159
No capítulo III e X, conforme constatamos, uma forte ação sobre o
auditório, o que faz parte da teoria retórica tradicional; em todo Sermão aplicam-se
meios para mover o auditório pela emoção, pelo deslumbramento e levá-lo, se
possível, à persuasão; os recursos expressivos são os mais variados possíveis:
perguntas, exclamações, apóstrofes, vocativos, mudança de discursos, suspenses,
imagens visuais, súbitas mudanças de registro, variedade de cenas, silogismos,
sutilezas de raciocínio, citações, paródias, lirismo, figuras em geral e ameaças com
o juízo de Deus; tudo isso era um, apelo a pathos.
O conceito predicável fazia parte do padrão referente à eloqüência sacra da
Península Ibérica; integrado ao “método português”, tinha em Vieira seu
representante máximo. Esse método de argumentar e de pregar expõe, pela
agudeza de engenho do orador, uma alegoria, figura ou símbolo da proposição
apresentada; um fato bíblico está prefigurando um acontecimento histórico
contemporâneo ou futuro. Nesse código oratório, o aspecto lógico, histórico,
lingüístico ou estético, torna-se uma técnica de argumentação no nível do discurso;
o ajustamento por analogia pode ser literal, simbólico, místico ou moral. Há,
portanto, uma similitude entre duas verdades relacionadas à ética, à religião ou a
política, proposta no Sermão. O orador esforça-se para encontrar essa similitude
para que os textos se tornem alegorias. Assim, o relato dos animais que iam e não
viravam quando andavam, na visão de Ezequiel, é uma alegoria dos pregadores que
devem ir, mas não devem voltar dos campos missionários. Essa excessiva
preocupação, no sentido de traçar um paralelo entre as verdades bíblicas e o fato
presente em análise, levou o padre jesuíta a criar, em alguns casos, construções
fantasiosas que comprometem o sentido do texto.
O Antigo e o Novo Testamento, padres da Igreja, concílios, escritores latinos
e personalidades mais recentes da Igreja, são autoridades que se evocam
seguidamente. Quanto à Bíblia, no Sermão Nossa Senhora do Ó, Vieira declara
categoricamente: “Uma das maiores excelências das Escrituras Divinas, é não haver
nelas nem palavras, nem sílaba, nem ainda uma letra, que seja supérflua, ou que
careça de mistério” (VIEIRA, 2001, p. 466).
160
O aspecto formal e os conceitos se intensificam e se fundem, criando
semelhanças e dessemelhanças. A argumentação não é linear; ela é vigorosa,
múltipla, rodeada de uma constelação de provas e contra-provas; estas são muitas
vezes paralelas, que conferem certo grau de circularidade ao pensamento; uma
imagem sensorial ou uma palavra pode funcionar como base para trazer de longe,
mediante um complicado processo de raciocínio, a prova argumentativa;
digressões e divisões, sem comprometer a unidade do discurso; segue-se a antiga
norma da disposição: unidade na diversidade. Muitos argumentos são verdadeiros
silogismos retóricos, como no capítulo IX, quando Vieira conclui: “Pois se não é esse
o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus”. A idéia
geral da premissa maior é: os pregadores devem pregar a palavra de Deus. Na
premissa menor constata-se que eles pregam palavras de Deus, mas num sentido
diferente que Ele as disse. Sendo assim, a conclusão é que, na verdade, os
pregadores não pregam a palavra de Deus.
Vieira profere qualificações negativas contra o estilo culto; muito em moda no
seu tempo; é um estilo complexo, escuro, rebuscado e afetado, abusa de antíteses
forçadas, perífrases, enigmas e outros malabarismos formais. O jesuíta, ao
contrário, propõe um estilo natural, espontâneo, que se opõe ao artifício. As palavras
têm harmonia, ordem, influenciam, têm suas leis próprias à semelhança das
estrelas; as palavras dizem, revelam, aproximam as idéias, como se fossem visíveis.
Como a ação sobre o público visa a persuasão, uma intensa atividade lingüística;
essa metalinguagem faz do trabalho formal uma atividade literária. Uma vez que
houve grande investimento na linguagem, o presente Sermão também passa a ser
considerado uma obra literária, que tem servido para diversas análises estilísticas;
o seu autor não ficou imune a certos recursos cultistas, pois o argumento de
autoridade é feito com brilho. Com certa ostentação, com grande erudição e com
sutilezas de raciocínio. O ouvinte deleita-se com a exibição de recursos conceituais
e verbais da eloqüência; o fascínio provocado no auditório também é uma forma de
convencer.
Outra característica destacada é o vocabulário do campo semântico
relacionado à guerra, como: batalha, luta, armas, vitória. Uma vez que para Vieira
“pregar é entrar em guerra com os vícios”, o seu aguerrido, incansável e polêmico
161
espírito encontra formas de expressão, que inclusive, refletem o clima de
beligerância e instabilidade política, religiosa e social do seu entorno.
Associados a linguagem está também o uso de uma série de tropos; opostos
entre si, criam antíteses, como: céu e terra, antigamente e hoje, palavras e obras,
razão e emoção, sim e não, o que é e o que não é, Deus e homem, etc.
A referências supra, em seu conjunto, retomam os aspectos do “método
português’ de pregar, presente no Sermão, que serviu de modelo, no apenas em
Portugal, mas em toda a Península Ibérica, no domínio do Barroco. Os sermões de
Vieira como parâmetros para a pregação foram disputados; até versões em
espanhol não autorizadas apareceram, fenômeno que hoje chamaríamos de cópias
piratas.
Assim, concluímos o presente estudo do Sermão da Sexagésima à luz da
oratória sacra da época de Vieira, enraizada na retórica da Antiguidade clássica.
Pela leitura retórica, sem pretender esgotar o assunto, conseguimos fazer o
levantamento e análise de alguns aspectos que consideramos relevantes no Sermão
do insigne e inigualável pregador, que marcou uma época para sempre.
Outros estudos poderão aprofundar-se em cada um dos aspectos levantados,
ou em outros não contemplados, pois a riqueza do Sermão pode ensejar leituras que
proporcionem conhecimentos nos diversos campos, como: teológico, político,
sociológico, histórico, lingüístico, literário, e outros.
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