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Patrick de Oliveira Almeida
Filosofia e espírito do tempo no sistema de Hegel
Mestrado em Filosofia
UECE-CE
Fortaleza, 2007
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Universidade Estadual do Ceará
Centro de Humanidades
Mestrado Acadêmico em Filosofia
Filosofia e espírito do tempo no sistema de Hegel
Dissertação apresentada por Patrick de
Oliveira Almeida à Banca Examinadora da
Universidade Estadual do Ceará, como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof.
Dr. João Emiliano Fortaleza de Aquino.
UECE-CE
Fortaleza, 2007
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Agradecimentos
A mim, por ter me dado este presente.
A Rosanna, Galba, Lívia, Lia e Raul, que são minha segunda família como a “segunda
natureza”. Sem vocês não seria possível, já que me proporcionaram a matéria e o espírito a um
só tempo.
Às minhas mães, Dona Regina e Maria; ao meu pai, Valdir; à minha tia, Rejane. A eles devo
minha educação fundamental.
A João Emiliano, meu orientador, a quem admiro muito pela inteligência e sensibilidade, que
me conduziu até à compreensão essencial da questão, a “teleologia retrospectiva”, cuja
amplitude da letra aparece limitada pelo “espírito metafísico” deste trabalho.
Aos meus amigos dialéticos: Alexandre, que tem grande responsabilidade na minha introdução
nos estudos de Hegel, e que me ajudou com sua “sutil ironia” durante todo o processo
dissertativo; Ericsson, o “coxinha”, cujo espírito “erístico” promove constantemente as
melhores discussões filosóficas. Aos dois devo o prazer imenso de suas companhias,
principalmente pelos encontros regados por vinhos, em que lemos com uma sagrada dedicação
os textos fundamentais de nossa educação filosófica: os Diálogos de Platão.
Aos meus “mestres” da graduação e do mestrado: Ilana Amaral, que me alertou para a
perspectiva da crítica na apropriação dos textos filosóficos; Sylvia Leão, a “parteira”, cujos
questionamentos me inquietaram e ressoaram fortemente no decorrer do processo de confecção
do texto, fazendo com que muitos momentos de minha argumentação se transformassem em
tentativas de respostas a estes questionamentos.
Aos meus irmãos, Diego, David e Patrícia, pelo respeito e carinho que me dedicam.
Aos meus amigos, André e Arnaldo, companheiros “de longe”, que souberam entender esta
relativa ausência.
A Raul Ângelus novamente, por ter brincado comigo. Babau te ama!
À professora Tereza Callado, que me recebeu “gregamente”, com toda a consideração, e
apostou na minha pesquisa quando eu ainda tinha somente esboços. Obrigado professora
Tereza.
Aos meus companheiros de UECE: Ivânio, o analítico da turma; Karol, nossa amiga
“chiquérrima”.
Ao professor Manfredo que, além de aceitar o convite para participar da banca examinadora,
topou transformar a presente discussão numa pesquisa mais aprofundada de doutorado.
À FUNCAP-CE que financiou esta pesquisa, o que possibilitou a aquisição de material
bibliográfico, viagens a congressos e encontros etc., enriquecendo o desenvolvimento da
questão.
4
Para Maria, a me’Réia.
5
Ei; ge avi<dion mhqe,n evstin,
Ouvde. ge,nesin ei-nai dunato,n.
6
Aristóteles.
7
Resumo
Nesta dissertação está presente uma discussão acerca da relação entre a
constituição da ciência, tomando em consideração o seu percurso sistemático, e o tempo
presente, com base na filosofia de G. W. F. Hegel. A problematização de tal relação
torna-se central para a compreensão do movimento espiritual da formação científica, na
medida em que pretende explicitar a inteligibilidade subjacente a este movimento e,
através de uma recensão conceitual de categorias como “presente”, “efetividade”,
“espírito do tempo”, “eternidade”, a partir dos escritos do próprio autor temático,
estabelecer uma argumentação que tem como objetivo desvincular a formação científica
de um processo regido por uma “má-infinitude”, assim como pensá-la à luz de um
desenvolvimento espiritual necessário. Em acordo ao referido propósito, esta pesquisa
se obrigou tanto a expor o nexo de inteligência que unifica a seqüência das principais
obras de Hegel (Fenomenologia do Espírito, Ciência da lógica e Enciclopédia das
ciências filosóficas), pondo esta seqüência em “paralelo” com o movimento lógico-
conceitual da constituição sistemática da própria ciência, quanto deslindar a
“perspectiva” sob a qual deve ser entendida a per-feição e o acabamento da própria
formação científica do espírito. Destarte, tornou-se necessário abordar o elemento
“histórico-concreto” imanente à natureza deste desenvolvimento espiritual e, em
decorrência, fornecer elementos para que seja possível inteligir o sentido da formação
científica fundada numa “teleologia retrospectiva” ou, precisando melhor, como será
feito no desenrolar argumentativo, fundada no movimento “introspectivo” do
rememorar do espírito.
Palavras-chaves: Espírito, Formação Científica, Tempo Presente e Espírito do
Tempo.
8
Abstract
In this dissertation is present an argument about the relation between the
constitution of the science, taking in consideration his systematic journey, and the
present time, on the basis of the philosophy of G. W. F. Hegel. The system of the
problem of such relation becomes central for the comprehension of the spiritual
movement of the scientific formation, in the basis in that intends to explain the latent
intelligibility to this movement and, through a concept analyze of categories as
“present”, “effectiveness”, “spirit of the time”, “eternity”, from the writing of the own
thematic author, establish a line of argument that has as objective to free the scientific
formation of a process ruled by a “bad-infinity”, as to the light of a necessary spiritual
development. According to the referred purpose, this research obliges itself to expose
the connection of the intelligence that unifies the sequence of Hegel main works
(Phenomenology of the spirit, Science of the logic e Encyclopedia of the philosophical
sciences), putting this sequence in “parallel” with the logical-concept movement of the
systematic constitution of the science itself, to reveal the “perspective” under the which
should be understood the perfection of the finish of the scientific formation of the spirit.
However, it became necessary to approach the element “concrete-historical” immanent
to the nature of this spiritual development and, in consequence, supply elements to be
possible to intelligible the sense of the scientific formation based on a “retrospective
teleology” or, better, as will be done into an argument development, base in the
“introspective” movement of the remembrance of the spirit.
Key-words: Spirit, Scientific formation, Present time, Spirit of the time.
9
Sumário
Observações para a leitura, 10.
Introdução, 11.
1. A Fenomenologia do espírito e a constituição do “saber puro”, 24.
1.1 Considerações introdutórias sobre o conceito de espírito, 24.
1.2 Fenomenologia do espírito e o movimento imanente da formação da
consciência científica, 39.
1.3 A crítica das concepções empirista e transcendental do conhecimento
e a superação do ponto de vista fenomenológico, 54.
2. A Ciência da lógica e o desenvolvimento das determinações do puro
pensar, 65.
2.1 A passagem da Fenomenologia para Ciência da lógica: o momento
de constituição do elemento científico, 65.
2.2 Juízo de entendimento e juízo do conceito, 69.
2.3 O “problema” do começo na ciência, 86.
2.4 O problema da demonstração (Beweis) na ciência, 94.
3. A Enciclopédia das ciências filosóficas e recuperação do particular,
100.
3.1 Significado geral da Enciclopédia, 100.
3.2 O proceder das ciências de entendimento, 104.
3.3 A recuperação do particular e o “fechamento” do percurso
sistemático da ciência, 112.
10
4. A constituição da ciência e o tempo presente: o espírito do tempo e a
filosofia, 122.
4.1 A exigência posta na época de Hegel da unidade especulativa da
razão, 122.
4.2 O histórico e o desenvolvimento do espírito, 130.
4.3 A história da filosofia, o espírito do tempo e a formação científica,
136.
4.4 Eternidade e tempo presente, 145.
5. Considerações finais, 153.
6. Fontes bibliográficas, 159.
6.1 Obras de Hegel, 159.
6.2 Obras de comentadores, 161.
6.3 Textos de comentadores (em livros, atas de encontros ou periódicos),
162.
6.4 Outras fontes consultadas, 163.
6.5 Obras complementares, 163.
6.6 Dicionários, 164.
11
Observações para a leitura
Para facilitar a assimilação das referências bibliográficas utilizamos, para as
obras de Hegel citadas neste trabalho, um sistema de abreviação indicado entre
colchetes ao final da referência de cada obra na seção fontes bibliográficas. Todas as
citações retiradas de textos versados em idioma francês, espanhol ou alemão, sejam eles
textos de comentadores ou do próprio Hegel, e inseridos no corpo desta dissertação, são
traduções diretas nossa. A indicação de tradução, portanto, fica restrita às obras
originalmente escritas em outro idioma que não o português, e que já se encontram
vertidas neste último idioma. A indicação de tradução de tais obras constam, também,
na seção fontes bibliográficas.
No caso da obra Ciência da lógica, como não dispomos ainda de uma tradução
em português, nos preocupamos em cotejar o original (em alemão) com as traduções
francesa e argentina, de modo que a maioria das referências que se reportam à referida
obra apresenta as páginas das citações utilizadas a partir destas três fontes, aparecendo
em negrito a fonte que nos orientou na tradução que foi efetuada no corpo do texto deste
trabalho.
Não utilizamos o recurso da grafação maiúscula para marcar a centralidade de
certas “noções” na reflexão hegeliana, tais como espírito, idéia, conceito, razão, pensar
etc. Acreditamos que o próprio uso recorrente patente nos escrito de Hegel destas
determinações lógicas e, conseqüentemente, nos trabalhos de seus estudiosos, já as
tornam obrigatoriamente centrais. Além de que, a “definição” que cada noção acima
anunciadas recebe no pensamento de Hegel é já, por si só, aquilo que confere a
importância e o “valor sistemático” a cada uma delas.
12
Introdução
Nas Lições da história da filosofia diz Hegel:
tudo o que acontece no céu e na terrao que acontece eternamente –, a
vida de Deus e tudo o que sucede no tempo, tende somente a um fim:
que o espírito se conheça a si mesmo, que se faça objeto para si
mesmo, que se encontre, devenha para si mesmo, conflua consigo
mesmo; começa sendo duplicação, alienação [Entfremdung], mas só
para encontrar-se a si mesmo, retornar a si mesmo.
1
Estas palavras contêm as linhas gerais do pensamento de Hegel. Com base nelas
podemos afirmar que o autoconhecimento consiste na meta suprema daquilo que Hegel
entende por “espírito”, e mais precisamente, que o espírito não é senão este
conhecimento-de-si realizado. Se substituirmos “tudo o que acontece no céu e na terra”
pela expressão mais conceitual ‘a totalidade do que é’, ou ainda, pela simplicidade da
categoria ser, temos então que o conhecimento é a dimensão absoluta do ser. Um outro
aspecto que esta passagem indica é que esta meta está posta como o termo de um
movimento “processual” do espírito, que ao partir do estranhamento ou da alienação
recobra sua unidade no mencionado autoconhecimento, cuja efetividade tem por base o
movimento de autoprodução do espírito.
Entretanto, quando exprimimos que o “ser é conhecer”, esta definição preliminar
que apresenta o sentido absoluto do todo, e que constitui a natureza do espiritual em
geral, não pode ser compreendida sem as necessárias ressalvas. A primeira é a de que o
ser deve transpor os limites de uma objetividade externa à consciência e de ser uma
imediatidade contraposta ao próprio conhecer. A segunda é que o conhecer só tem
validade absoluta enquanto estabelece a relação auto-referente do todo e, portanto,
1
LHF I, Introducción, p. 28.
13
interioriza a objetividade que é considerada no mero conhecer da consciência
propriamente finita. Em terceiro lugar, esta relação proposicional não se torna
inteligível pelo regime de uma atribuição exterior, mas o que sua verdade expressa só
emerge quando aquilo que se quer como predicado se depreende do desenvolvimento do
próprio sujeito, e como passagem do sujeito para o interior do predicado. Estas
observações prévias, porém, só podem aparecer, no momento, como antecipações, cuja
explicitação está reservada ao interior mesmo deste trabalho.
Poder-se-ia dizer, preliminarmente, conforme o primeiro elemento ressaltado da
passagem inicial, que também compõe a finalidade deste trabalho subministrar a
compreensão de como, na reflexão de Hegel, o espírito é concebido como o sentido
absoluto, de modo que a presente dissertação poderia ser intitulada da seguinte forma:
“sobre o conceito de espírito”, e pela implicação pressuposta do espírito com o
autoconhecimento, ela também poderia se chamar “sobre o conceito de conhecer”, e
mais precisamente, por fim, “sobre o conceito de ciência”. Elucidar o conceito de
“espírito” se mostra como uma tarefa muito genérica, se não indicarmos o ponto de
articulação a partir do qual tal elucidação se constrói, já que a constituição sistemática
do pensamento de Hegel nos oferece uma multiplicidade de pontos de partidas
igualmente legítimos. Assim é que o enfoque dado neste trabalho, embora carregue para
dentro de si esse fim mais amplo do “sobre o conceito de espírito”, realiza-o, contudo,
através da problematização de uma relação temática mais específica. Tendo em vista
explicar esta delimitação que o tema efetua, passemos a considerar o segundo elemento
fundamental que a passagem inicial nos apresenta: o caráter “processual” e deveniente
do espírito.
Ao espírito é imanente o princípio perfectivo segundo o qual sua unidade
absoluta se produz. Deste modo, o espírito aparece como aquele que se perfaz por meio
14
de sua própria atividade, é o sujeito de si, por assim dizer. Mas em sua manifestação
imediata o espírito não consiste ainda nesse si que se sabe como ato de autodeterminar-
se, ele é inicialmente, como o diz Hegel, duplicação (Verdoppelung), alienação ou
estranhamento. O espírito põe defronte a si mesmo uma objetividade, que no momento
de sua autoconsciência absoluta aparece como algo que foi produzido por ele mesmo, a
quê ele mesmo conferiu exterioridade e relativa independência. Esse estranhamento, no
qual o espírito figura é o modo de ser da consciência finita, e este âmbito em que o
espírito está inserido, enquanto duplicação e alienação, a cultura em geral, a qual tem o
significado para Hegel de ser o espaço da cisão do absoluto. Cultura e consciência
remetem mutuamente uma à outra quando consideramos o espírito e o seu
desenvolvimento concreto. A cultura, ao mesmo tempo, nos apresenta os momentos do
processo histórico pelo qual o espírito supera sua “extraneidade”. Tais momentos,
quando plasmados no elemento do saber, assumem suas figuras essenciais na forma da
filosofia. A filosofia eleva o fato do conhecimento, que no âmbito da cultura aparece
como relação exterior, à determinação absoluta da autoconsciênscia do conceito, ou
como diz Hegel, promove o reconhecimento do bekannt (o bem-conhecido, ou o
implicitamente conhecido) elevando-o ao erkannt (o re-conhecido, ou o explicitamente
conhecido). Nesta tarefa de reconhecimento a filosofia apresenta e forja, em detrimento
do ponto de vista da consciência, o ponto de vista do absoluto ou do espírito, ou ainda,
para marcar a relação reflexa presente na determinação da autoconsciência, o ponto de
vista do especulativo.
A cultura histórica integraliza uma multiplicidade de manifestações espirituais
que têm na filosofia, por consistir na consideração do pensamento enquanto tal, a
manifestação essencial do espírito. Isto porque a filosofia, em sendo o desenvolvimento
do espírito a realização do conceito de conhecer, portanto, da própria cientificidade,
15
somente com a qual o pensamento se torna liberdade efetiva, ou seja, referência a si e
não-dependência de uma alteridade absoluta, confere ao pensar sua existência
verdadeira através da reflexão. Conforme o procedimento de reconhecimento a filosofia
se revela como elemento de purificação das determinações do pensar tais como elas se
encontram imediatamente oferecidas na cultura em geral. Esse procedimento de
purificação que representa a filosofia, quando configurado na forma de graus da
atualização do espírito, ordenados necessariamente em acordo com uma série evolutiva
do pensamento universal, oferece à nossa consideração, então, a história da filosofia, a
qual nos mostra o desenvolvimento, em termos de puros pensamentos, do princípio
universal que perpassa e concede unidade às diversas manifestações sistemáticas do
saber filosófico no “curso das épocas”.
Ora, quando se atribui a algo uma história, deve-se entender que este algo é um
existente, para que a história apareça como processo constitutivo deste algo. Destarte, a
questão que se insinua, quando falamos de uma história da filosofia é: a filosofia é? E
quando pensamos com Hegel, deve ser precisada a questão e se perguntar: o “saber
absoluto”, ou o que Hegel denomina de “filosofia especulativa pura” é? Uma história da
filosofia, para ter validade, deve estar fundada na existência efetiva da própria
cientificidade, pois caso contrário, seria impossível, já que seria uma história de algo
que não é.
Se este critério não é considerado – a existência efetiva da ciência filosófica –,
teríamos que assumir a objeção kantiana quanto à inexistência da metafísica como um
saber último, em decorrência da multiplicidade de doutrinas que, no decurso do tempo
histórico, nos oferece senão o teatro de enfrentamentos das posses particulares da
16
verdade dos objetos metafísicos. Para escapar da epistemologia finita,
2
que é para onde
nos conduz o criticismo kantiano, Hegel põe para si mesmo a complexa exigência de
apresentar a prova da necessidade da filosofia como ciência absoluta. Toda a obra de
Hegel não é senão a expressão afirmativa ao questionamento sobre a existência da
ciência. Mas algumas dificuldades se antepõem ao projeto hegeliano de uma
epistemologia absoluta.
A primeira dificuldade diz respeito à vinculação categórica da filosofia com o
“seu tempo”, ou com a época histórica na qual se encontra circunscrita. Na obra
Princípios da filosofia do direto, Hegel afirma que “no que se refere aos indivíduos,
cada um é filho de seu tempo; assim também para a filosofia que, no pensamento, pensa
seu tempo”.
3
A relação entre filosofia e tempo presente foi, e continua sendo, fonte para
leituras que reivindicam assentar nela a dimensão aporética, ou mesmo contraditória, da
reflexão de Hegel, de modo que a observação crítica que se endereça a seu sistema, em
grande parte, consiste no problema da constituição da ciência absoluta com base num
momento particular da história: como a realização do saber absoluto que implica a
filosofia pode ocorrer quando tal realização se acha situada numa época determinada?
De acordo com o ponto de vista que enxerga na relação acima referida o ponto frágil do
2
O criticismo kantiano concedeu à ciência filosófica, de um modo mais decisivo, o status de
uma epistemologia restrita, ao redimensioná-la enquanto uma teoria da estrutura subjetiva do
conhecimento. A autocrítica da razão produziu o resultado negativo de que os objetos situados no
domínio do trans-empírico não são passíveis de um conhecimento. O conhecimento filosófico, para
permanecer um conhecer objetivo, segundo a filosofia crítica, se encontra destituído do procedimento
metafísico que durante uma história secular aparecia como o seu aspecto mais essencial, e não raro, como
a dimensão pura de tal conhecimento. Esta transformação da filosofia em uma epistemologia finita foi
acolhida criticamente por alguns pensadores, situados entre o final do século XVIII e meados do século
XIX. Entre os seus mais eminentes representantes estão Fichte, Schelling e Hegel, os quais constituíram
suas reflexões em meio a discussões com importantes interlocutores, também leitores e críticos de Kant,
tais como Jacobi e Reinhold. A recepção dada à filosofia kantiana, mormente pelos três primeiros
pensadores supracitados, contém um “espírito restaurador” em comum, que consiste em re-identificar a
filosofia a um saber absoluto e re-introduzir, no âmbito desta ciência, os objetos metafísicos que se
encontravam dela alijados. É neste contexto que aparecem os escritos fichteanos sobre a Doutrina da
ciência (Wissenschaftslehre), e a construção de um idealismo transcendental absoluto em Schelling. A
este movimento progressivo de retomada do saber metafísico ou, como entendia Hegel, da filosofia
especulativa pura, costuma-se denominar de “Idealismo alemão”.
3
PFD, Prefácio, p. XXXVII.
17
projeto filosófico de Hegel, a ciência deixaria de ser o saber-de-si do espírito como
absoluto e se transformaria na formação particular de uma época que, por ser
condicionada historicamente, agregaria à ciência que se constituiu as limitações próprias
de ser apenas o saber geral desta época determinada e, portanto, um saber deficiente e
finito, o que equivaleria a dizer que, se é possível uma ciência filosófica, ela ou é um
saber relativo que uma época efetua sobre si mesma, ou um saber que tem sua
efetividade indefinidamente prorrogada segundo o curso das épocas; no primeiro caso, a
filosofia não poderia se distinguir da opinião, e no segundo, a formação científica se
transformaria num processo infinito.
A problemática da relação da filosofia com o tempo presente parece ser apenas
um deslocamento do problema mais geral da aparente contradição entre história e
pensamento filosófico: “se o pensamento, que é essencialmente isto, pensamento, é em
si e para si e eterno, e o verdadeiro somente está contido no pensamento, como explicar
que este mundo inteligível tenha uma história?”,
4
já que “a história expõe o mutável, o
que se uniu à noite do passado, o que já não existe, e o pensamento, quando é
verdadeiro e necessário [...] não é suscetível de mudança”.
5
A pretendida incompatibilidade entre o estatuto da história e o do saber
filosófico, ou entre o saber que requer a “perspectiva” da consideração sub specie
aeternitatis e o domínio do perecível e da finitude imanente à história, a qual parece ter
somente como fio condutor o tempo no modo da passagem, é o que sustenta, por
exemplo, segundo Jean-Marie Vaysse, uma interpretação do tipo de Koyré, que “afirma
que o tempo hegeliano é um tempo histórico orientado para o futuro [avenir]”, e “que
um tal pensamento (o de Hegel) desemboca necessariamente numa contradição, na
medida em que, sendo o sistema somente possível se o tempo se encontra acabado
4
LHF I, Introducción, p. 11.
5
Ib, loc. cit.
18
[achevé], a condição de possibilidade da inteligibilidade da história é sua auto-
supressão”.
6
O presente trabalho intervém nessa problemática da relação da formação
científica com o tempo presente, tentando ressaltar que a mencionada contradição entre
tempo presente e saber absoluto só se faz valer para uma perspectiva de leitura que
pensa o processo de formação científica como um desenvolvimento que tem o sentido
(orientação) unilateral de um passado que atualiza no presente aquilo que era somente a
tendência e a potência do pensar desde o princípio dos tempos: a ciência absoluta. De
fato há que se conceder que, como informa a passagem inicial, se o sentido ultimo de
tudo o que acontece no tempo é o autoconhecimento, a existência efetiva de uma ciência
absoluta, a filosofia, nos permite considerar que a própria história, enquanto está
identificada ao puro vir-a-ser do que está submetido a esta passagem do tempo, deve
encontrar na constituição da filosofia seu ponto de dissolução e seu limite lógico.
Faz-se necessário re-compreender a orientação que o processo de formação
científica persegue. Para isto, é preciso colaborar para que a linha de inteligibilidade que
dirige a formação espiritual da ciência não seja observada ou delineada linearmente do
passado em direção ao futuro onde esta formação se completaria e se atualizaria, o que
realmente nos traria um universo de contradições e problemas. Na filosofia de Hegel, ao
contrário, a constituição da filosofia é um fato que diz respeito ao seu presente histórico,
fato diante do qual o retorno ao passado e a reconstrução do processo necessário que
desembocou na ciência efetiva é apenas uma retrospecção de fundo rememorativo,
tendo por objetivo apresentar o resultado (a ciência presente) juntamente com o seu vir-
a-ser (o processo de formação); estes dois elementos, o resultado e o vir-a-ser,
6
VAYSSE, Jean-Marie. Hegel: temps et histoire. Paris: PUF, 1998. p. 6.
19
compõem a totalidade da forma autêntica na qual, para Hegel, está apresentada a
verdade e possibilitada a “demonstração” da ciência.
Seria possível empreender diretamente a abordagem do tema da formação
científica no pensamento de Hegel a partir do movimento da história do pensamento,
história que Hegel compreende como desenvolvimento determinativo da idéia una, e de
suas manifestações progressivas orientadas para o cumprimento da autoconsciência
absoluta do pensar; contudo, a história do pensamento filosófico, por sua vez, só pode
ser efetuada, sob a pressuposição de que o espírito tenha se constituído como ciência,
possibilitando que os momentos de sua realização sejam apresentados segundo o
desenvolvimento unitário da razão. Mas esta abordagem pressupõe, como já o dissemos,
que o espírito científico já esteja constituído, o que implica a necessidade de demonstrar
o fato da formação científica, quer dizer, a existência de um saber absoluto.
Hegel reclama para sua própria época o momento em que o movimento
formativo do espírito alcança sua “completude” e realiza a filosofia como “saber
efetivo”: “o tempo do hegelianismo é o ser-aí do conceito como conceito”,
7
como diz
Bourgeois. O esforço da reflexão filosófica de Hegel tomou a seu encargo mostrar que
seu tempo era o tempo da ciência, para tanto seria necessário que suas obras fossem a
expressão e a consecução da exigência que ele mesmo impôs, que consiste em realizar a
tarefa da “elaboração científica”. Neste sentido, cabe a este trabalho, primeiramente,
explicitar como o sistema da filosofia de Hegel se identifica com a própria apresentação,
no elemento do saber, do princípio científico. Tendo em vista esta explicitação,
procuramos perseguir o próprio curso das obras que constituem o núcleo sistemático de
sua reflexão (Fenomenologia do espírito, Ciência da lógica e Enciclopédia das ciências
7
BOURGEOIS, Bérnard. A enciclopédia das ciências filosóficas de Hegel. Tr.: MENESES,
Paulo. São Paulo: Loyola, 1995. pp. 373-443. (Texto contido no apêndice da tradução brasileira de Paulo
Meneses para a Enciclopédia das ciências filosóficas).
20
filosóficas). O tratamento destas obras, aqui, se resume à pretensão de revelar a
inteligência e, portanto, a necessidade que obrigou estas obras a aparecerem na
seqüência em que foram escritas, pondo em paralelo com o próprio método (caminho)
que a constituição da ciência exige. Ao revelar a conexão necessária e o fio condutor
que faz das obras supracitadas o núcleo sistemático da filosofia de Hegel, podemos
formar uma compreensão de totalidade sobre a produção da exposição do saber
reivindicada pela filosofia especulativa hegeliana.
A divisão desta dissertação obedece a duas perspectivas de abordagem existentes
para a formação científica: a) a formação científica como elaboração de um sistema de
saber e como transformação da filosofia em saber absoluto; b) a formação científica
como desenvolvimento e determinação do princípio universal que atravessa a cultura
histórica e as múltiplas manifestações que lhes são pertinentes. Como primeiro
momento da argumentação (correspondente ao primeiro, segundo e terceiros capítulos),
então, consideramos a construção do sistema de Hegel como resposta à exigência
(Forderung) de “adquirir e afirmar o princípio em sua intensidade ainda não
desenvolvida”,
8
ou seja, como a obra de Hegel expressa essa cientificidade constituída
mais ainda não apresentada até então. Na segunda parte, a ciência constituída em um
todo sistemático, será problematizada na sua relação com o tempo presente e com o que
Hegel denomina de espírito do tempo (Geist der Zeit).
9
8
CL, Prefacio-1812, p. 38; SL, p. 4.
9
O espírito do tempo (Geist der Zeit) não é uma noção recorrente nos escritos filosóficos de
Hegel; tem, ela, uma aparição mais expressiva nas Lições sobre a história da filosofia, onde se encontra
identificada com o princípio universal presente nas diversas manifestações do universo espiritual,
constituindo aquilo que a elaboração da ciência estabelece como a inteligibilidade que orienta as
múltiplas manifestações e para onde converge a diversidade aparentemente irracional contida no decurso
do desenvolvimento concreto, quer dizer, histórico-cultural do pensamento.
21
No primeiro momento seguimos o curso das obras sistemáticas de Hegel,
apresentando o movimento imanente que torna inteligível a constituição da exposição
da ciência. A argumentação segue o fio das resenhas abaixo:
Primeiro capítulo: antes de me dirigir diretamente à primeira obra – a
Fenomenologia –, introduzimos a questão com uma breve explanação do conceito de
espírito e a implicação deste com o processo de formação científica. Logo em seguida
aparece tematizada a Fenomenologia, obra em que Hegel apresenta a “demonstração”
da necessidade da ciência como resultado do desenvolvimento da própria consciência
natural, expondo os momentos de apreensão pela consciência de sua substância, assim
como sua elevação à espiritualidade efetiva, a qual apresenta o princípio da
cientificidade através da superação do modo relacional no qual se encontra o ponto de
vista da consciência. O processo de mediação que delineia a Fenomenologia aparece
como a via de acesso da consciência ao interior absoluto da ciência, segundo uma
progressão que a própria consciência percorre em sua experiência. O alcance da
Fenomenologia se limita à imediatidade do “saber puro”, onde se dá a passagem para a
Ciência da lógica.
Segundo capítulo: na Ciência da lógica o saber encontra seu espaço de
“expansão” e de desdobramento, através de um movimento autodeterminativo do
conceito, movimento que é possibilitado pela superação da exterioridade presente no
percurso fenomenológico e pela eliminação da relação de oposição. São desenvolvidas e
problematizadas, neste capítulo, questões estreitamente relacionadas com a constituição
deste “elemento lógico”, tais como: a distinção entre o juízo especulativo e o juízo de
entendimento; a compreensão de “demonstração dialética” e a reflexão metodológica
concernente ao “problema do começo” da ciência. O tratamento destas questões está
22
submetido ao intuito de ressaltar na Ciência da lógica o momento do desenvolvimento
da estrita universalidade do pensar segundo o dinamismo da totalidade do conceito.
Terceiro capítulo: a abordagem do percurso sistemático da filosofia de Hegel
é integralizada com o tratamento metodológico da Enciclopédia. A Enciclopédia, ao
trazer o momento da exposição da “filosofia real”, completa o circuito da formação
científica como produção do sistema do saber, na medida em que incorpora os
momentos particulares (lógica, natureza e espírito) que compõem o conceito em sua
autoconsciência absoluta, conferindo à “relativa abstração” do saber lógico em sua
simplicidade (Ciência da lógica) os momentos que compõem a sua realidade concreta.
A Enciclopédia concede um acabamento à constituição do sistema através de um
terceiro movimento: a exposição da ciência em suas instâncias “particulares” reais, a
saber, lógica, natureza e espírito. Este “terceiro movimento” dá seqüência aos dois
movimentos precedentes: a ascensão da experiência da consciência à universalidade
(Fenomenologia) e a “expansão” especulativa das “essencialidades puras” do pensar
(Ciência da lógica), encerrando o circuito de constituição sistemática da ciência.
O segundo momento da argumentação, que corresponde ao quarto capítulo,
tem como ponto de partida o saber que veio a constituir-se numa totalidade sistemática,
encetando então a consideração do mesmo em sua forma científica absoluta, como ser-
aí efetivo do conceito. Ante esta elaboração científica que aparece, por fim, efetuada,
resta a consideração do problema que emerge da “aparente contradição” na relação do
estatuto “absoluto” do saber com a indissociabilidade deste com o princípio universal
que reside no tempo presente. Cabe argumentar, então, a forma como este processo de
formação da ciência se arranca da “má infinitude” do eterno pensado em termos de
sucessão quantitativa do tempo. Trata-se da problematização da relação da formação
científica com o que Hegel denomina de “espírito do tempo”. Sob a perspectiva do
23
espírito do tempo, a formação científica, que é propriamente o processo de constituição
da filosofia, nos remete ao problema da filosofia com o tempo presente, condição
ineliminável para a compreensão do saber filosófico, tendo em vista que, para Hegel, a
filosofia se estabelece como o universal do pensamento que é imanente à apofania da
idéia no tempo.
Podemos nomear dois textos que nos serviram de fonte de instigação e de ponto
de partida para a abordagem que ora apresentaremos, como lugares privilegiados da
obra de Hegel em que essa relação da constituição da ciência filosófica com o tempo
presente aparece com uma certa dose de insistência e de maneira explícita. O primeiro é
o prefácio de 1812 da Ciência da lógica. Nesse texto, Hegel nos informa sobre uma
“defasagem” instalada em sua época entre o desenvolvimento efetivo do espírito e o
ponto de vista que o saber alcançou com respeito a esse desenvolvimento. O estar
consciente desta não-correspondência entre o saber do espírito e seu real
desenvolvimento, punha para Hegel a necessidade de produzir a equivalência destes
dois aspectos, e neste sentido, fazer com que o espírito se perfaça em sua efetividade
completa enquanto saber-de-si. O segundo texto que originou nossa discussão se trata
do prefácio da obra Princípios da filosofia do direito, onde Hegel se mostra
extremamente categórico quanto à vinculação da filosofia com o tempo presente.
Segundo ele, a filosofia se mostra necessariamente indissociada do horizonte histórico
da qual ela emerge.
A problematização da relação da filosofia com o tempo presente nos oferece a
possibilidade de compreensão de um conjunto de outras relações e questões que estão
diretamente ligadas a esta relação mais central. Uma das questões, para a qual nos
conduz este ponto de articulação que tomamos para este trabalho de dissertação, reside
na aporia que se encontra na constituição da ciência absoluta da filosofia atrelada à
24
determinação do tempo histórico, na medida em que este é entendido como o espaço do
finito e do contingente. Um outro problema decorrente, cujo interior tem a mesma
natureza da questão precedente, está em explicar em que sentido um sistema absoluto do
saber se realiza numa determinada época, em que medida Hegel faz este saber suplantar
o momento particular da história em que ele aparece, e apresentá-lo como saber
“atemporal”. Se a filosofia suplanta a determinação histórico-temporal que a
condiciona, configurando-se como uma espécie de sublimação do próprio “espírito do
tempo”, mas, ao mesmo tempo, se exime da ocupação com todo e qualquer porvir
histórico, como pode ela permanecer ciência absoluta frente a esta residualidade do
porvir? Todas estas questões e problemas podem ser considerados como reverberações
ou derivações da relação temática deste estudo.
O que se propõe, aqui, com esta dissertação, não é bem a resolução destas
questões, o que pressuporia uma discussão com uma vasta literatura de comentadores,
mas recolher, na obra de Hegel, elementos que tornem compreensível o significado de
ser a filosofia “filha de seu tempo” e de ser a relação da filosofia com o tempo presente
não o foco aporético da reflexão hegeliana, mas a chave de leitura a partir da qual a
constituição da ciência se torna, ela mesma, inteligível para si.
25
I A Fenomenologia do espírito e a constituição do “saber
puro”
1.1 Considerações introdutórias sobre o conceito de espírito
O ponto mais importante para a natureza do espírito não consiste
somente na relação do que ele é em si com o que ele é em efetividade,
senão em como ele se sabe a si [sich weiss]; este saber-de-si
[Sichwissen], por fim, dado que o espírito é essencialmente
consciência, constitui a determinação fundamental de sua
efetividade.
10
Esta passagem, contida no prefácio de 1831 da Ciência da lógica, nos oferece
um ponto de partida para nos introduzir na compreensão geral do conceito de espírito,
na ausência da qual o movimento espiritual da formação científica não adquire
inteligibilidade. Hegel anuncia, na passagem citada, a necessidade do deslocamento da
perspectiva sob a qual deve ser considerada a relação de conhecimento no interior do
espírito. A relação de conhecimento que o espírito comporta não se resolve na separação
entre uma aparente efetividade e uma dimensão essente a ser revelada pela atividade do
conhecer, pois, deste modo, a atividade do conhecimento soçobraria como uma
unilateralidade com respeito à totalidade do espírito; a efetividade do espírito, ao
contrário, assume em si mesma o conhecer como determinidade fundante e
fundamental, em outras palavras, a essência do espírito é a própria atividade do
conhecimento e, mais precisamente, o autoconhecimento.
10
WL I, Vorrede-1831, S. 27; CL, p. 49, grifos de Hegel.
26
Na introdução da Filosofia do espírito,
11
Hegel expõe a distinção própria do
espiritual frente ao natural e seu locus conceitual na relação com a idéia lógica. Segundo
Hegel, a natureza apresenta a idéia na forma do “ser-fora-de-si”
12
(Aussersichsein). O
subsistir junto no espaço e o seguir a outro no tempo, são afecções que conferem a um
determinado ser natural a sua relativa existência autônoma diante de outro ser natural,
deste modo, os seres naturais se encontram inter-relacionados como “existências postas
umas diante das outras”.
13
A contradição na natureza aparece justamente porque ela,
embora sendo manifestação da idéia una, promove a “dispersão” desta última no
elemento da exterioridade. Na natureza a idéia cobra seu momento de diferenciação,
entretanto, a relação de exterioridade em que permanecem os seres naturais não
proporciona à idéia sua verdade como interioridade (Innerlichkeit), como unidade
conceitual de seu si. No espírito a idéia retorna a si suprassumindo a exterioridade
natural na atividade do conhecimento. Hegel descreve, na mesma introdução, a
progressiva “vitória sobre a exterioridade”
14
que, passando pelo ser vegetal e animal,
culmina no ser-aí da idéia como efetividade espiritual, como reflexão absoluta.
Seguindo a explanação que Hegel efetua na introdução de sua Filosofia do
espírito, tal progressiva vitória tem como primeiro momento de distanciamento da
natureza – entendida como pura exterioridade – o ser vegetal, pois neste já está presente
uma mediação interna, a qual Hegel denomina impulso (Trieb), que condiciona o
vegetal a um desenvolver-se-de-dentro-para-fora (Sich-von-innen-heraus-Entwickeln),
distinguindo-o do ser puramente natural, no qual as transformações e alterações estão
condicionadas por um princípio “externo”. Os fenômenos de crescimento e reprodução
mostram-nos, segundo Hegel, uma relativa autonomia do ser vegetal com respeito à
11
Cf. ECF III, § 381 e adendo.
12
EphW III, § 381, Suzatz.
13
Ib, loc. cit.: „einander selbständige Existenzen“. Uma tradução literal seria: “existências
mutuamente autônomas”.
14
ECF III, § 381, adendo.
27
exterioridade estrita, pois nos apresenta a existência vegetal como contendo em si um
princípio de autodeterminação. Porém, o vegetal não alcança uma perfeita unidade,
dado que seu des-envolvimento apresenta apenas o momento unilateral de um ir-fora-
de-si (Aussersichkommen). Num grau mais elevado, o animal opera o momento de
retorno desse “ir-fora-de-si”, apresentando-se como subjetividade que sente e, como tal,
atinge um modo mais perfeito, em comparação com o vegetal, de ser-junto-a-si
(Beisichsein). Por outro lado, no animal, embora a sensação implique uma reflexividade
do seu si, sua subjetividade permanece unilateralmente contraposta a um exterior, na
medida em que a sensação lhe confere apenas uma reiterada relação com a
singularidade do que é sentido; o animal não alcança, por isso, a relação superior que
consiste na identidade da interioridade subjetiva com a exterioridade da natureza que se
lhe contrapõe, quer dizer, não chega a ser subjetividade universalizante. A alma humana
ultrapassa essa relação com a singularidade na qual o animal está encerrado; no homem,
em contraste com o que Hegel afirma do animal, a alma é para a alma. Nesta referência
a si a idéia se põe como eu (Ich), como identidade infinita, reflexividade do si,
alcançando sua unidade perfeita na universalidade que se sabe. A suprema relação que
está presente no espírito posto como eu, que diz respeito ao retorno da idéia a si, pondo
fim a qualquer exterioridade remanescente que subsista, suplanta a relação cíclica da
existência singular do homem a qual a negatividade da morte vem dissolver, pois como
eu o homem é conhecimento de pertencimento ao gênero (Gattung), ao universal, assim
sendo, o espiritual encontra sua verdade mais alta: é conceito de si.
15
O ser puramente natural, portanto, não apresenta o conceito de si ou a auto-
interiorização (Selbstverinnerlichung) que Hegel entenderá como sendo a dimensão
propriamente efetiva do espírito. Tem, a natureza, o espírito como o seu em-si, mas ele
15
Cf. ib, § 381, adendo.
28
se encontra nela apenas na condição de dormente (schlafende), posto que a natureza
existe como universalidade imediata e a-consciente, por isso, podemos dizer que essa
manifestação “natural” do espírito o apresenta ainda em sua “inefetividade”, pois na
natureza, o espírito aparece somente no modo da pura potência ou possibilidade.
16
O
momento do para si, da idéia que veio a ser interioridade, referência a si, reside
propriamente no espírito como já desperto. O despertar (Erwachen) do espírito implica
em sua “libertação” da natureza carente-de-consciência (Bewusstlosen); neste momento
de sua apofania, o espírito aparece em sua auto-referência ou, como expressa Hegel,
aparece na forma do manifesto-a-si (Sichoffenbaren). Se considerarmos o espírito no
modo como imediatamente está posto nessa relação a si, neste seu situar-se imediato em
seu elemento, a saber, o ser da idéia refletido em si, estamos diante apenas de sua
“simplicidade” ainda não desenvolvida. A dificuldade de apontar esse momento
conceitual distintivo que separa o espírito da idéia fora-de-si na natureza se explica pela
razão de que o espírito emerge conceitualmente da natureza não apenas como
simplicidade, mas como simplicidade e distinção (Unterscheidung),
17
pois aquilo que
constitui o seu em si é já um para-si. Se tomarmos em consideração o espírito como
desperto, como ultrapassagem efetuada sobre a natureza, já o encontramos como
atividade, imediatamente situado no âmbito do vir-a-ser de seu conceito. “Liberto” do
16
É importante ressaltar que o espírito, na filosofia de Hegel, é compreendido como o momento
próprio em que a idéia ganha interioridade e confere a si mesma o retorno conceitual do para-si. A
passagem do natural ao espiritual consiste não numa continuidade ou num desenvolvimento baseado na
homogeneidade destas duas esferas (a natureza e o espírito), mas num “corte” qualitativo em que a idéia
exteriorizada na natureza efetua o desdobramento dos elementos que compõem sua concretude, o em si e
o para si, vindo a constituir, assim, a sua existência como reflexão e si. Este distanciamento qualitativo-
determinativo que o espírito apresenta frente à natureza é ressaltado por Hegel na sua polêmica com
Schelling, cuja filosofia não chega a promover tal distinção qualitativa. Segundo Hegel, para Schelling, a
natureza “não é outra coisa que o modo externo da existência do sistema das formas do pensamento, do
mesmo modo que o espírito é a existência do mesmo na forma da consciência” (LHF III, pp. 504-505). O
espírito aparece, no idealismo schellinguiano, como um outro nível do natural, e como desenvolvido
absolutamente a partir dele, em contrapartida, em Hegel, o vir-a-ser do espírito a partir da natureza, só
pode ser estabelecido no interior absoluto do espírito, que põe esta passagem como condição de sua
inteligibilidade, mas como algo que é abstraído de sua totalidade mesma, “a serviço” de sua
autocompreensão.
17
Optei, neste contexto, pelo correspondente termo português “distinção”, reservando o termo
“diferença” ao correlato mais preciso Differenz.
29
simplesmente natural, o espiritual manifesta-se como um “fazer-se”, como atividade
efetivante de si ou, noutros termos, como a interioridade eidética que cobra
progressivamente seu dimensionamento absoluto. Quando se significa o espírito como
atividade, ele deve figurar, neste contexto, como produção de si mesmo, pois sua
essência reside em ser para-si.
O ponto de vista do especulativo que Hegel reclama como o ponto de vista
supremo da filosofia e, portanto, da consideração científica enquanto tal, conduz a esta
conversão lógico-ontológica da substância em sujeito. A substância deixa de ser uma
instância universalmente abstrata em relação à totalidade essente e passa a ser re-
compreendida, então, sob a forma de sujeito: autoprodutividade absoluta. Ao situar a
substância no automovimento da subjetividade infinita, Hegel, pretende estabelecer a
unidade concreta da idéia, reunindo o momento da universalidade abstrata com o
movimento de exteriorização e de retorno ao universal. Esta dimensão especulativa é o
que já estava contido virtualmente, segundo Hegel, no idealismo spinozano, onde a
substância é entendida como causa de si ou causa imanente, cujo produto não é externo
ao agente produtor, como se dá na causa transitiva, mas tem no efeito, e no que vem a
se determinar, manifestação do elemento determinante e reposição da unidade da
substância. O que aparece como problema na filosofia de Spinoza é a falta de um
desenvolvimento imanente negativo, no qual o movimento determinativo da substância
apareça em sua demonstração conceitual necessária, para que se constitua a homologia
especulativa entre a progressão substância-atributo-modo e a progressão universalidade-
particularidade-singularidade.
18
18
Podemos nos remeter, a este respeito, às palavras de Emiliano Aquino quando diz que,
“segundo Hegel, Spinoza não teria desenvolvido este que é seu próprio ponto de partida, este que é seu
conceito fundamental e sobre o qual ele constrói todo seu sistema: o conceito de causa sui. Na ausência
deste desenvolvimento, desenvolvimento que exigiria [...] a concepção de uma imanência, sim, contudo,
negativa, Spinoza teria retido, aprisionado este conceito altamente especulativo numa unidade originária,
30
A falta de desenvolvimento imanente é o que permanece presente no idealismo
schellinguiano e o que faz com que a identidade entre ser e pensar, entre idealidade e
realidade permaneça no plano da universalidade abstrata e não apresente o processo de
diferenciação interna que compete à substância, estabelecendo tal identidade em termos
de “indiferença” (Indifferenz), o que na linguagem filosófica de Hegel é o mesmo que
conceber a substância como não-concreta, carente de diferenciação interna.
19
O espírito é em si mesmo ser-para-si. Para podermos expressar que o despertar
é, por assim dizer, o “começo” do espírito, ou melhor, o seu imediato situar-se na sua
atividade efetivante, temos que compreendê-lo neste início como espírito “incompleto”
e, deste modo, ainda não efetivo. Mas no despertar esse ser-refletido-em-si do espírito
não está estabelecido em sua absolutez, pois esta reflexão processa-se primeiramente em
sua forma puramente subjetiva. Enquanto a reflexão é somente operada na
subjetividade, a objetividade exterior que a natureza opõe ao espírito não é ainda
suprassumida e, nesta medida, o espírito ainda não faz justiça à infinitude de seu
conceito, mas se apresenta como limitado, como espírito finito, limite que circunscreve
o ser consciencial do espírito. Neste momento, encontramos o “espírito que apenas
primária, não-desenvolvida e não-diferenciada, Spinoza se mantém num âmbito certamente fundamental
ao pensamento filosófico e especulativo (o da afirmação da unidade), nível porém insuficiente para o
desenvolvimento de sua verdade mais rica [...], para o que, antes de tudo, seria necessária a própria
concepção de movimento imanente pelo qual o uno se distingue de si e em si mesmo, isto é, se subcinde”
(AQUINO, Emiliano. Diferença e singularidade: notas sobre a crítica de Hegel a Spinoza. Philosophica,
Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, n. 28, 2006).
19
Segundo Manfredo Oliveira, em Schelling, “o absoluto não é demonstrado, mas intuído,
revelado, conhecido imediatamente por meio da abstração do pensamento categorial. As determinações
do absoluto não são desenvolvidas e demonstradas na esfera do conceito; falta, portanto, em sua
exposição, a necessidade lógica do processo: o absoluto não passa assim de um princípio abstrato, incapaz
de pensar as diferenças da realidade, o que impossibilita a realização da filosofia como sistema. [...] Na
Fenomenologia do espírito, Hegel vai romper, definitivamente, com a postura de Schelling com a
afirmação de que, acima de tudo, importa pensar a estrutura do absoluto como uma unidade articulada,
que se desenvolve. O movimento de mediação completo é, então, o espírito, por isso o verdadeiro deve
ser pensado não só como substância, mas como sujeito” (Cf. OLIVEIRA, Manfredo. Para além da
fragmentação. São Paulo: Loyola:, 2002. pp. 177-178).
31
começa a ser para si”.
20
O espírito se apresenta, nesse despertar que é o seu “começo”,
na figura do ser-junto-de-um-outro.
Sendo um para-si, o espírito é para si mesmo um outro ou, noutra expressão,
contém em si mesmo uma distinção. Para Hegel, o espírito “não é o abstratamente
simples, mas em sua simplicidade, ao mesmo tempo, é um diferenciar-se de si mesmo
[Sich-von-sich-selbst-Unterscheiden]”.
21
Esta “contradição” inerente ao espírito, essa
sua relação interna entre simplicidade e distinção estabelece a inquietude (Unruhe) que
o impele à resolução de tal “contradição”. Compreender o espírito exige que não
reduzamos sua essência à formulação de uma definição simples que o considere apenas
como uma “coisa-substância”, pois o seu conceito é efetivado com base em sua própria
atividade. Uma definição que apenas atribuísse determinações fixas não contemplaria o
movimento que o espírito apresenta, que é o de “produzir” sua própria verdade, de ser
na forma de sujeito.
22
Diz Hegel: “o espírito não é algo em repouso; antes, é o
absolutamente irrequieto, a pura atividade, o negar ou a idealidade de todas as fixas
determinações-do-entendimento”.
23
Por ser desenvolvimento de si em direção a si, o
resultado do espírito como conceito efetivo vem-a-ser através de uma mediação interna
ao próprio espírito.
Quando finito, o espírito chega somente ao grau de desenvolvimento que
corresponde à unidade puramente subjetiva de seu si, e se põe como consciência
reflexiva finita, permanecendo, deste modo, ad-posto em relação à objetividade exterior
do ser natural. Neste nível o espírito já se apresenta como interiorização da natureza,
como reflexão efetuante sobre esta última, entretanto, a consciência se relaciona com o
20
ECF III, § 384, adendo.
21
Ib, § 378, adendo.
22
Como afirma Hegel: “tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro não como substância,
mas também, precisamente, como sujeito” (cf. FE, Prefácio, p. 29).
23
ECF III, § 378, adendo.
32
natural como algo que precede seu próprio operar reflexivo e, embora nesta relação o
ser natural seja já um ser-posto do espírito, o primeiro permanece uma alteridade sobre
a qual se efetua somente uma apropriação do segundo.
O espírito põe aqui a natureza como algo refletido-sobre-si-mesmo,
como seu mundo; tira da natureza a forma de um outro perante ele;
faz do outro, que se lhe contrapõe, algo por ele posto. Mas ao mesmo
tempo, permanece esse outro algo ainda independente dele, algo
imediatamente presente; não posto pelo espírito, mas apenas
pressuposto por ele, e assim uma coisa tal que seu ser-posto precede o
pensamento reflexivo.
24
A alteridade residual da natureza somente é totalmente suprassumida na manifestação
do espírito como absoluto. Neste grau o espírito reconhece o ser-posto do natural como
algo estabelecido a partir de sua automediação, desta maneira a natureza, enquanto
aquilo que é idealizado e interiorizado, desaparece do seu lugar de “fora do espírito” e
se revela como uma mediação interna ao espírito. Na reflexão puramente subjetiva ou
na consciência reflexiva, o espírito aparece ainda como atividade efetuante sobre um
“material estranho”, permitindo que subsista um substrato independente a partir do qual
a natureza era o ser-posto e o “espiritualizado”. A subjetividade permanecia, ali, como
um dos termos da relação, e o espírito, por seu lado, figurava na finitude de ser-junto-
de-um-outro. No conceito de espírito, onde veio-a-ser a apropriação espiritualizante do
relativamente “outro”, no caso a natureza, não pode ter lugar definitivo uma atividade
unilateral investida sobre
um objeto simplesmente passivo; mas a atividade espiritual dirige-se
a um objeto ativo em si mesmo – a um objeto que se elaborou a si
mesmo para ser aquilo que deve ser produzido por aquela atividade;
de modo que no objeto e na atividade está presente um só e mesmo
conteúdo.
25
Se no espírito finito a subjetividade e o objeto se apresentam contrapostos, em sua
manifestação absoluta o espírito liberta completamente da natureza seu conceito que
24
Ib, § 384, adendo.
25
Ib, § 381, adendo.
33
estava nela escondido na forma do essente. A alteridade de uma natureza subsistente por
si mesma é eliminada e o espírito conduz para a sua própria interioridade a natureza
como seu pressuposto e como aquilo a que somente seu conceito confere verdade. Nessa
forma suprema de sua manifestação, o espírito absolutizado corresponde sua efetividade
ao seu conceito e se mostra como objeto suprassumido em si mesmo em seu saber-de-si.
Aquilo que constitui seu desenvolvimento como o vir-a-ser do seu para-si encontra
atualidade completa na unidade do autoconhecimento, pois, como expressa Hegel,
“conhecer o seu conceito pertence à natureza do espírito”.
26
Aqui, o espírito assume sua
figura própria, tornando-se “a idéia efetiva que se sabe a si mesma”.
27
A espiritualização da natureza pelo espírito implica na suprassunção da
autonomia do ser natural perante o espiritual. Quando interiorizada, a natureza, que era
apenas a pura exterioridade, se revela como um momento conceitual da efetivação do
espírito, assim também se passando com o momento puramente abstrato da idéia em sua
indeterminidade. Idéia e natureza se revelam como instâncias internas ao absoluto que é
espírito.
28
Em última análise, o movimento conceitual eidético se converte no
movimento espiritual, mas que só ganha esse sentido no final da apresentação do
processo de efetivação, que retorna aos momentos abstratos do espírito para inteligir sua
constituição concreta. O resultado do desenvolvimento eidético põe o espírito como a
autonomia absoluta da idéia. A primazia do espiritual marca uma importante distinção
da reflexão de Hegel em relação ao pensamento iluminista e, também, mais uma vez, ao
idealismo schellinguiano. A natureza, em Hegel, não é concebida como substrato ou
26
Ib, § 377, adendo.
27
Ib, § 381, adendo.
28
Embora a “idéia” seja uma das formas de expressar (definir) o absoluto, o próprio Hegel
compreende o espírito em sua manifestação absoluta como aquele que reconhece na idéia e na natureza
pressuposições estabelecidas através de sua própria mediação: “o espírito essente em si e para si não é o
simples resultado da natureza, senão, na verdade, seu próprio resultado: a si mesmo produz, das
pressuposições que para si mesmo faz – da idéia lógica e da natureza externa, e é a verdade tanto de uma
como de outra” (ECF III, § 381, adendo). Para Hegel o espírito é a suprema definição do absoluto (cf. ib,
§ 384).
34
base para o universo espiritual, mas um momento suprassumido na totalidade do
espírito.
29
Resumindo o desdobramento apofânico que acaba de ser apresentado, podemos
observar que o mesmo é constituído por três momentos, que poderíamos chamar graus
do conceito de espírito: o primeiro seria o espírito “natural” ou dormente, o segundo o
espírito desperto na subjetividade finita e, por fim, o espírito totalmente manifesto-a-si
ou absoluto. A inteligência teleológica imanente a esse des-envolvimento dirige o
espírito para a resolução da contradição que reside no seu si. Na expressão para-si está
presente, como já o dissemos, a auto-referência do espírito, a compreensão de que ele é
um outro para si mesmo. A alteridade que para o próprio espírito, em seu início, se
apresenta como o está-posto-diante de algo estranho, aparece ao final como alteridade
suprassumida, de modo que o espírito está no outro estando em-si-mesmo (Beisich).
30
O conceito de conhecer se identifica com o de espírito justamente porque a
essência do espírito está em ser um ser-para-si. Aquilo que é na forma do para-si-
mesmo só pode ser aquilo que se reflete em si e que, portanto, se conhece. A produção
de conhecimento pelo espírito não se baseia numa atividade que se investe sobre um
exterior, como se de um lado a atividade de conhecer subsistisse numa relativa
29
Lukács chama atenção para essa inversão hegeliana em comparação com as ontologias
naturalistas, principalmente advindas do período iluminista, que conferiam às esferas da natureza e do
espírito uma “indiferença qualitativa”, numa fundamentação homogênea do espírito sobre a natureza: “a
filosofia do iluminismo é um prosseguimento, um desenvolvimento das tendências que, a partir do
Renascimento, têm como meta construir uma ontologia unitária imanente, para com ela suplantar a
ontologia transcendente-teleológica-teológica. Por trás dessa tentativa está a grandiosa idéia de que a
ontologia do ser social só pode ser edificada sobre o fundamento de uma ontologia da natureza. O
iluminismo, como todas as correntes que o precederam, fracassa porque pretende fundar a primeira sobre
a segunda de modo demasiadamente unitário, demasiadamente homogêneo e direto, não sabendo captar
conceitualmente o princípio ontológico da diferença qualitativa no interior da unidade que se dá em
última instância” (LUKÁCS, György. A dialética de Hegel em meio ao “esterco” das contradições. In:
Ontologia do ser social. Tr.: COUTINHO, Carlos. São Paulo: LECH, 1979. pp. 09-64).
30
A alteridade está presente não somente no espírito em relação ao ser-aí exterior da natureza,
mas também no espírito posto como consciência e como eu em geral. No interior deste último esta relação
está posta idealmente, no eu que se sabe enquanto tal, que faz de si mesmo um outro. Mas esta relação
com um outro no interior do eu, para Hegel, já se apresenta como interiorização que suprassume a relação
com o outro enquanto natureza.
35
autonomia. Porque o espírito é um para-si, essa relação consigo mesmo já o põe, desde
seu despertar, como seu próprio objeto, fazendo com que ele figure inicialmente como
duplicação, por essa razão o conhecimento é a atividade que tem como sujeito e objeto o
próprio espírito, é autoconhecimento (Selbsterkenntnis). A atividade espiritual do
conhecimento não se reduz somente à apreensão formal e exterior da objetividade, mas
compreende o momento da exteriorização e objetificação (Vergegenstandlichung), onde
o espírito está apresentado na relação de contraposição entre consciência e imediatidade,
o que significa que ele mesmo se exterioriza como objeto de conhecimento.
Podemos agora retornar à passagem inicial deste tópico e procurar compreender
em que sentido Hegel afirma que o mais importante para o espírito “não consiste
somente na relação do que ele é em si com o que ele é em efetividade”. A relação entre
os termos em si e efetividade se mostra insuficiente porque aquilo que o conhecimento
revela como dimensão essente do espírito é que ele é um para si, ou seja, que ele é
conhecimento. Ora, aquilo que o espírito revela para si na atividade do conhecer é que
seu em si é precisamente o próprio conhecer, ser-para-si, logo, o conhecimento não é
somente o meio que busca o essente, mas, inclusive, o objeto-essência buscado; por essa
razão o espírito, expressando com as palavras de Hegel, “é o que implementa sua
revelação em seu próprio elemento”.
31
O em si não se encontra separado da efetivação,
pois, imediatamente ativo, o espírito é já a atividade de se auto-revelar. Já que o espírito
não é “uma essência morta, separada de sua efetivação”,
32
seu conhecimento se produz,
antes, numa apresentação da sua atividade de autoconhecimento, do “como ele se sabe a
si”.
Na natureza carente-de-consciência o espírito se encontra dissolvido e inativo. O
ser vegetal se apresenta como um começo do “arrancar-se” à pura exterioridade natural,
31
ECF III, § 383, adendo.
32
Ib, § 379, adendo.
36
na medida em que lhe pertence um princípio de autodeterminação que faz dele um
desenvolver-se-de-dentro-para-fora. Entretanto, a unidade que alcança o ser vegetal se
mostra incompleta, posto que seu desenvolvimento se conclui no sair-para-fora-de-si-
mesmo, sem retorno. O animal se situa num grau mais determinado e opera uma relação
a si através da faculdade de sensação. Tal operação que está pautada na subjetividade-
que-sente é processada apenas na imediatidade da relação do animal com o sensível
singular; para o animal, por estar preso ao singular imediato, esta relação a si é
constituída e dissolvida reiteradamente, num recomeçar cíclico que a forma exclusiva
do sentimento lhe confere. Por operar esse retorno somente no sentir, o modo do seu
ser-para-si não corresponde ainda à forma do conhecer, portanto, no animal o espírito
se perde nessa sucessão indefinida de “relações” com o singular, não alcançando a
consciência genérica, pois de acordo com Hegel, o animal apenas “sente o gênero”; isto
se dá apenas na relação entre sexos, onde o animal chega a “reconhecer” no outro o seu
si, mas como este reconhecer é um reconhecimento efetuado apenas no âmbito do
instinto (Instinkt), o animal não chega a saber-de-si como gênero.
33
Na Pequena lógica,
a propósito, diz Hegel: “o animal é também em si um universal, mas o universal não é,
enquanto tal para ele, mas é para ele o singular, somente e sempre”.
34
Somente na
figura do homem, como ser consciente, a contradição que é pertinente a esses momentos
“precedentes” do vir-a-ser do espírito se resolve na unidade autoconsciente do conceito
de espírito: “só o homem se duplica [doppelt] de modo a ser o universal para o
universal”.
35
Todo homem, enquanto ser dotado de consciência, é um eu em geral que
sabe a si mesmo enquanto tal. No simples ato de expressão que consiste na emissão da
palavra “eu”, assoma imediatamente a relação reflexa que nesse ato de fala está
implicada. O ser puramente natural se mantinha na contradição de ser ao mesmo tempo
33
Cf. ib, § 381, adendo.
34
ECF I, § 24, adendo.
35
Ib, loc. cit, itálico nosso.
37
posto pela idéia una e de subsistir na exterioridade imediata, “a natureza não traz por si
o ‘nous’ à consciência”.
36
No espírito que chegou ao nível do ser consciente se efetua
uma duplicação da universalidade, “de modo a ser o universal para o universal”.
37
Tal
duplicação e auto-referência da universalidade são constitutivas do espírito que
começou a ser-para-si, portanto, esta relação a si com base na universalidade reflexa já
é apresentada no espírito finito; mas tomado nesta sua imediatidade finita o espírito não
é ainda o que deve ser segundo seu conceito: reflexão infinita.
O eu imediatizado na figuração finita do espírito é apenas a certeza de si mesmo
abstrata e, nesse “começo”, o espírito já confere a si mesmo a forma do saber, tendo em
vista que esta relação a si é estabelecida como uma certeza de si. O desenvolvimento
ulterior do espírito põe a necessidade de que essa certeza de si do eu, da consciência-de-
si imediata, referente a uma subjetividade abstrata, alcance a plena identificação de sua
interioridade e da objetividade exterior, que ela se transforme em verdade no e para o
espírito que veio-a-ser.
38
Tal identificação processada, a qual implica o todo
desenvolvido do espírito, é o que Hegel concebe como ciência (Wissenschaft). O saber
(Wissen) presente na manifestação abstrata do espírito, a certeza, contém em si a ciência
somente como
um interior, não como espírito, mas somente como substância
espiritual. Esse em-si deve exteriorizar-se e vir-a-ser para-si mesmo, o
que não significa outra coisa que: deve pôr a consciência-de-si como
uma só consigo.
39
Neste sentido, apresentar a tarefa da ciência como um “pôr a consciência-de-si como
uma só consigo” significa suplantar este âmbito abstrato em que o espírito enquanto
consciência reflexiva se encerra em direção ao para-si infinitizado, onde alcançam sua
36
ECF I, § 24, adendo.
37
Ib, loc. cit.
38
“O saber formal da certeza eleva-se ao saber determinado e conforme ao conceito, porque a
razão é concreta” (cf. ECF III, § 445).
39
FE, Prefácio, p. 35.
38
unidade conceitual a subjetividade simplesmente consciencial e a objetividade exterior,
enquanto resultado da auto-exteriorização e auto-objetivação do espírito.
Não sendo o desenvolvimento do espírito somente um desenvolvimento no
modo simples de uma substância se per-fazendo, mas de uma autoprodução do seu ser-
sujeito, compõe a totalidade de seu desenvolvimento o próprio saber desse
desenvolvimento. “O espírito, que se sabe desenvolvido assim como espírito, é a
ciência. A ciência é a efetividade do espírito, o reino que para si mesmo constrói em seu
próprio elemento”.
40
Na cientificidade o espírito cobra em si mesmo seu conceito, e o saber filosófico
se depreende daqui como a autoconsciência do espírito como absoluto.
41
Isto implica
dizer que na ciência o espírito se torna o essente para-si ou o para-si efetivado. Se o
movimento espiritual que se dirige à sua completa efetividade pode ser entendido como
um processo gradual em que esta relação a si do espírito se absolutiza através de seu
autoconhecimento, este movimento, então, deve ser concebido como um movimento de
formação para a ciência.
Do autoconhecimento espiritual deve ser afastada a estreita compreensão de que
ele seja um conhecimento que tem por objeto as particularidades e peculiaridades que
dizem respeito somente a cada indivíduo enquanto tal. Os conteúdos singulares
correspondentes a cada individualidade, isto é, as “paixões, fraquezas, que se dizem
refolhos do coração humano”,
42
somente são dignos de interesse quando neles a
consideração da ciência revela a universalidade que preside a suas manifestações.
O autoconhecimento, no sentido trivial costumeiro, de uma
investigação das fraquezas e vícios próprios do indivíduo só tem
40
Ib, loc. cit., p.34.
41
Diz Hegel: “o absoluto é o espírito: esta a suprema definição do absoluto. Encontrar essa
definição e conceber seu sentido e conteúdo, pode-se dizer que foi essa a tendência absoluta de toda
cultura e filosofia” (cf. ECF III, § 384).
42
ECF III, § 377.
39
interesse e importância para o singular – não para a filosofia; e
mesmo em relação ao singular tem tanto menos valor quanto menos
se dedica ao conhecimento da natureza moral e intelectual, universal
do homem.
43
A consciência é já a manifestação do espírito posta como reflexão da
universalidade e se mostra como uma superação da relação à qual permanece presa a
subjetividade do animal, pois para esta “é (...) o singular, somente e sempre”.
44
Embora
em seu começo abstrato o espírito não seja, ainda, reflexão absolutamente efetiva, pois
aparece restrito a uma reflexão simplesmente subjetiva, a auto-referência do universal é
já para a atividade consciencial o princípio determinante de seu operar. Quando
abordamos a consciência em seu ser imediato revela-se como lhe sendo co-originária a
potência universalizante de sua atividade. Isto se mostra já na forma mais abstrata de
consciência, onde reside a relação da consciência com o sensível em geral. A
consciência abstrai do conteúdo sensível visado, do múltiplo que aparece na
manifestação deste ou daquele outro sensível e se apresenta como atenção que se fixa no
universal que constitui tais manifestações; se ela, a consciência, “considera uma coisa
qualquer, considera-a sempre como algo universal”.
45
O autoconhecimento espiritual se move dentro da duplicação-reflexiva da
universalidade, e o movimento do espírito na sua formação científica contém a
necessidade interna de desenvolver a amplitude conceitual, quer dizer, a infinitude que
está contida no conceito de consciência.
Ao dizermos que a formação do espírito tem como escopo a ciência não deve ser
elidida a cientificidade na qual se situa o próprio desenvolvimento desta formação, de
modo que não seria inútil um redobro se expressarmos o movimento do espírito como
uma formação científica para a ciência. Para o espírito, o seu vir-a-ser está
43
Ib, § 377, adendo.
44
Cf. supra, nota trigésima quarta.
45
ECF I, § 24, adendo 1.
40
necessariamente posto como um movimento perfectivo do científico: é a própria
cientificidade vindo-a-ser, pois o conceito de conhecer já está “contido na idéia lógica
simples”,
46
mesmo que somente como o completamente essente e formal, como
possibilidade lógica.
47
Para compreender a formação para a ciência do espírito, é preciso tematizar
primeiramente como para a própria consciência o conceito de ciência vem-a-ser, ou
melhor, é preciso explicar a inteligibilidade do movimento que conduz o espírito desde
sua manifestação imediata como consciência até sua forma científica. O conceito de
ciência se situa no fim de um complexo e necessário caminho que o espírito atravessa,
desde sua aparição mais imediata e “concreta”, como consciência sensível, até o saber
absoluto da consciência filosófica.
1.2 A Fenomenologia do espírito e o movimento imanente da formação
da consciência científica
Hegel expõe a ascensão da consciência à sua essência espiritual através de um
movimento conceitual que ele denomina “fenomenologia do espírito”, denominação que
corresponde ao próprio título da obra que apresenta o processo fenomenológico. O
46
ECF III, § 381, adendo.
47
O conhecer é a potência puramente formal da idéia enquanto abstração pura de tudo o que é,
nesta perspectiva o conhecer está completamente dissolvido nesta indeterminidade que constitui a idéia,
pela razão lógica da idéia “ser” em seu começo apenas a forma pura do todo. Na natureza, o conhecer não
é ainda o conhecer efetivo, não é o para-si, entretanto, constitui a potência adormecida do ser natural. A
natureza pode ser encarada, assim, como a passagem desta potencialidade lógico-ideal para a
potencialidade lógico-efetiva. Portanto, o conhecer, na natureza, não é mais uma potência simplesmente
abstrata, nem ainda uma potência ativa, mas a potência dormente.
41
primeiro título pensado por Hegel para a Fenomenologia do espírito denominava-se
“Ciência da Experiência da Consciência”.
48
A Fenomenologia não foi uma obra
produzida de um só fôlego. Hegel enviou seus manuscritos para edição por partes, à
medida que as circunstâncias permitiam a confecção da obra. Segundo Hyppolite,
inicialmente, o plano da obra compreenderia somente o movimento da consciência até o
momento da razão. O desenvolvimento progressivo do conteúdo da obra apresentou,
para Hegel, a exigência de que este plano inicial fosse suplantado ou, melhor dizendo,
estendido, de modo que a obra foi integrada pela apresentação das figuras concretas do
espírito posto como consciência, até o momento do saber absoluto. Daí a necessidade de
que o título contivesse o objetivo em sua totalidade, já que o conteúdo apresentava não
somente as figuras formais da consciência em seu movimento dialético imanente, mas
também as figuras concretas da consciência moral, ética, estética e religiosa:
o ponto de vista do saber filosófico é em si ao mesmo tempo o mais
rico de conteúdo e o mais concreto; por conseguinte, ao desprender-se
como resultado ele pressupunha também as figuras concretas da
consciência, como, por exemplo, as figuras da moral, da ética, da arte,
da religião.
49
Esta ampliação do domínio da experiência da consciência integraliza a experiência total
da manifestação do espírito como consciência. Trata-se aqui de figuras espirituais, mas
que recaem na forma da consciência. Um dos argumentos que Hyppolite utiliza para
apontar esta discrepância entre o plano inicial da obra e o conteúdo integral da mesma,
diz respeito à diferença entre o objetivo delimitado na introdução da Fenomenologia,
48
A respeito de tal informação ver: LIMA VAZ, Cláudio de. Apresentação: o significado da
Fenomenologia do espírito. In: “Fenomenologia do Espírito”. Tr.: MENESES, Paulo. 6 ed. Petrópolis:
Vozes, 2001.
49
ECF I, § 25.
42
que foi escrita ao início da obra, e o domínio de conteúdo mais amplo ao qual se reporta
o prefácio, que foi escrito após a confecção total da obra.
50
O que a Fenomenologia do espírito se propõe como meta, partindo da
consciência abstrata, é a inserção desta na verdadeira universalidade, a qual constitui o
saber-de-si do espírito enquanto tal; saber que pode ser entendido também como o re-
conhecimento de sua natureza absoluta. O verdadeiro saber, para o espírito, se produz
no reconhecimento da universalidade que lhe dá subsistência. Quando esta residência do
espírito no universal se eleva, em sua clareza conceitual, em sua completa
determinidade, a ponto de vista da autoconsciência (Selbstbewusstsein),
51
a ciência se
apresenta, então, em seu elemento, o que representa o momento em que a consciência se
re-concilia com sua verdade, quer dizer, se sabe como espírito; desta forma, “o absoluto
não mais estará, então, para além de todo saber; será saber de si (sic) no saber da
consciência”.
52
Trata-se de uma “re-conciliação” porque a consciência já parte da
verdade, mesmo ela não o sabendo. Pode-se dizer que mesmo a consciência em sua
forma mais abstrata, como consciência sensível, encontra-se “conciliada” previamente
com a verdade, embora este vínculo se apresente apenas como uma relação
inconsciente.
Podemos, em certa medida, caracterizar a Fenomenologia como uma obra
pedagógica, como um processo educativo que conduz a consciência ao saber científico,
mas para tanto, é preciso afastar o sentido de edificação que os termos “pedagogia” e
50
Para o detalhamento desta questão cf.: HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da
Fenomenologia do Espírito. Tr.: ROSA FILHO, Sílvio. 2 ed. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. pp.
19-90.
51
Precisamente como figura da consciência a Fenomenologia apresenta a Selbstbewustsein como
o momento da experiência da consciência em que esta reflete em si mesma a certeza do verdadeiro que,
precedentemente, estava posta como certeza de um objeto exterior ou de um relativamente outro. Para
além deste sentido estrito que a Fenomenologia confere ao termo Selbstbewustsein, Hegel parece utilizá-
lo também para marcar, em geral, o caráter reflexivo do pensamento e a dimensão autoconsciente do
conceito. Sobre este uso mais amplo podemos conferir o primeiro parágrafo do prefácio de 1812 da
Ciência da lógica.
52
HYPPOLITE, Jean, op. cit., p. 23.
43
“educação” podem, eventualmente, denotar. Neste sentido, Hyppolite observa duas
tarefas que estão presentes na Fenomenologia: “por um lado, a passagem da consciência
empírica à ciência; por outro lado, a elevação do indivíduo singular à consciência do
espírito de seu tempo, da humanidade nele presente”.
53
Se nos reportarmos ao primeiro
prefácio da Ciência da lógica, poderemos atribuir uma outra característica à
Fenomenologia: sua dimensão catártica.
54
A elevação da consciência à ciência
desenrola-se como um despojar-se de todas as suas “concreções sensíveis”
55
(sinnlichen
Konkretion), ou melhor, de sua falsa concreção, e de seu caráter de exterioridade, até
que ela se afigure como puro pensamento.
A consciência, enquanto ela é o espírito se manifestando, que em seu
caminho se libera de sua imediatidade e de sua concretude, atinge o
nível do puro saber que tem por objeto essas puras essencialidades
mesmas, tais como são em e para si.
56
A consciência é o ser do espírito desperto na forma do ser-para-si, portanto, é
imediatamente saber. A apresentação do percurso fenomenológico equivale,
conseqüentemente, à formação da consciência para a universalidade do saber, formação
esta que tem no saber limitado da consciência imediatamente manifesta seu ponto de
partida, e se orienta ao saber automediado do espírito absoluto.
53
Id, ib, p. 59. O teor pedagógico da obra de Hegel, segundo Hyppolite, aproxima esta última de
obras como Emílio de Rousseau, e Os Aprendizados de Wilhelm Meister de Goethe, as quais, certamente,
exerceram determinada influência sobre a formação do pensamento hegeliano. Segundo a leitura de
Bourgeois, que vai criticamente de encontro a esta dimensão pedagógica, a Fenomenologia tem como
ponto de partida uma consciência já cultivada e não faz mais que apresentar, através de um procedimento
anamnético, os momentos integrantes e constituintes da consciência filosófica. Diz Bourgeois: “De fato, a
consciência à qual Hegel se endereça é a consciência cultivada que, em realidade, tem tão pouco de se
elevar, a partir da certeza sensível às figuras mais concretas e mais verdadeiras do espírito, que ela já
chegou, em seu ser mesmo, ao termo do processo fenomenológico” (Cf. BOURGEOIS, Bérnard. Sens et
intention de la Phénoménologie de l’esprit. Paris: Librarie Philosophique, 1997. p. 18).
54
É o que pensa também Philonenko: “a experiência completa de si é uma purificação, uma
‘cartarsis’ total da alma, somente a qual a autoriza a penetrar o Logos em sua interioridade”. Cf.:
PHILONENKO, Alexis. Lecture de la Phénomenologie de Hegel – préface et introduction. Paris:
Librairie Philosophique, 1993. pp. 134-135.
55
WL I, Einleitung, S. 55; SL, p. 32; CL, p. 76.
56
WL I, Vorrede-1812, S. 17; SL, p. 7; CL, p. 39.
44
Na Fenomenologia, os momentos da formação da consciência estão organizados
segundo o desenvolvimento progressivo de unidades complexas, as quais Hegel
denomina “figuras” (Gestaltungen). Cada figura da consciência retém em si um
princípio de inteligibilidade e de unidade que a determina enquanto tal. A ascensão
fenomenológica nos mostra a conexão das figuras que organizam em totalidades
parciais a estrutura móvel e dialética de todo o processo. O que distingue uma figura da
outra é o modo de relação da consciência ao objeto. A “figurabilidade consciencial” nos
informa da desigualdade ou da defasagem que a substância espiritual, tomando por base
a relação de oposição consciência/objeto, compreende internamente entre a certeza e a
verdade, de modo que a série das figuras revela as necessárias démarches sucessivas, ou
atitudes, como expressa Labarrière,
57
que conduzem a consciência, em sua experiência,
ao ponto em que esta mesma “figurabilidade”, enquanto nos indica uma desigualdade da
substância, vem a perder sua legitimidade de manifestação, desaparecendo, por fim, no
saber absoluto.
É necessário desenvolver, agora, com mais atenção, como este elemento de
desigualdade, presente na experiência da consciência, se relaciona diretamente com o
dinamismo interno da referida experiência e como a consciência resolve em cada nova
figuração a defasagem substancial que competia à figura precedente.
A consciência, esta “proto”-manifestação ativa do conhecer, aparece em seu
começo estabelecida na relação do ser que põe para si mesmo um algo na forma do
saber: a consciência é sempre consciência de um algo. No saber de um algo a
consciência pretende que este saber do em-si deste algo, o ser deste algo para a
consciência, corresponda ao essente subsistente fora da consciência. O em-si que parece
subsistir fora da relação com a consciência, pois que a consciência não permanece no
57
Cf. LABARRIÈRE, Jean-Pièrre. Structures et mouvement dialectique dans la
Phénoménolgie de l’esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1968. pp. 41-44.
45
conhecer que é somente saber unilateral do algo que é para ela, mas requer que o
essente mesmo corresponda ao seu saber, pois bem, diz Hegel, este em-si é “o momento
da verdade”.
58
Esta distinção entre saber da verdade do objeto e o saber do objeto para a
consciência é uma relação interna à própria consciência, isto porque a consciência não é
somente consciência do objeto, mas também consciência de si, ou seja, “é consciência
do que é verdadeiro para ela, e consciência do seu saber da verdade”.
59
Já que algo se
oferece à consciência, isto é, “a consciência sabe em geral de um objeto, já está dada a
distinção”,
60
pois algo que é sabido em geral pela consciência deve necessariamente ser
e está posto na forma do essente, pois, caso contrário, seria um nada; por outro lado, o
acesso da consciência ao objeto que se lhe oferece dá-se através de seu saber desse
objeto, logo, para a consciência, o outro termo é o seu saber do objeto que é. Na medida
em que a diferenciação do saber da consciência é produzida pela sua própria atividade, e
a própria consciência tem para si mesma a clareza de semelhante distinção, ela opera em
si mesma uma relação de comparação e de correspondência entre o ser-para-um-outro
(für-ein-Anderes-Sein), o objeto que é para o saber da consciência, e o ser-em-si-mesmo
(Ansich-selbst-Sein), o objeto essente que a consciência requer.
No corresponder (entsprechen) destes dois saberes que residem na consciência, a
verdade do objeto e o ser deste para a consciência, é que ela fornece para si mesma um
“padrão de medida”. A desigualdade que o seu comparar eventualmente possa revelar
entre a verdade e o saber para a consciência do objeto é o que a faz operar a passagem
de um momento, onde o em si do objeto que era para ela se dissolve em sua inverdade, a
um momento superior, em que o próprio objeto que era para ela sofre uma alteração em
atendimento à correspondência que ela vem a efetuar. Deste modo, tanto o seu saber do
58
FE, Introdução, p. 70.
59
Ib, loc. cit.
60
Ib, loc. cit.
46
objeto como o próprio objeto são modificados substancialmente segundo o curso
dialético deste processo. Em relação ao objeto anterior que era para a consciência o
novo objeto “é a experiência feita sobre ele”.
61
No vir-a-ser do novo em-si, aquele primeiro em-si que era para a consciência se
apresenta então como a inverdade da qual a consciência se mostra agora como liberta. A
alteração que a experiência da consciência nos mostra na relação entre o seu saber e a
verdade do objeto é um processo imanente à mesma e, por este meio, a consciência
chega a operar, em si mesma, a passagem (Übergang) de uma figura (Gestalt) sua a
uma outra. A progressão destas figuras compõe em sua totalidade “a história detalhada
da formação [Bildung] para a ciência da própria consciência”.
62
A necessidade do
movimento progressivo decorre da própria consciência que abriga em si a contradição
entre o saber que é para ela, a certeza, e o saber propriamente do algo essente, a
verdade. O procedimento da consciência promove, na experiência que ela realiza, a
identificação dos dois momentos do saber, o saber que é seu, a certeza (Gewissheit), e o
saber da verdade. Esta condução que a consciência opera do seu saber ao saber
verdadeiro faz do saber anterior à experiência que se efetuou, o saber do em-si do
objeto, apenas o saber para a consciência desse em-si, quer dizer, transforma o saber
precedente em aparência (Schein) de saber, ou em saber que se tornou um saber não-
verdadeiro (Unwahre). É desta forma que a passagem da consciência de uma figura a
uma outra subseqüente, em seu desenvolvimento, destitui a consciência da
fenomenalidade contida na sua figura antecedente.
61
Ib, loc.cit., p. 71.
62
Ib, loc. cit., p. 67. O termo alemão Bildung e seu derivado Ausbildung aproximam-se
semanticamente do termo grego paidéia, enquanto designam também o processo de formação, ou de
educação, tanto de um povo, ou cultura, quanto de um indivíduo, processo no qual se subtende também
uma perfectibilidade progressiva daquilo que está em formação. Por isso o termo é empregado, também,
no sentido de “aperfeiçoamento” e “aprimoramento”.
47
O caráter fenomenal do qual a consciência se despoja, representa aquilo sobre o
que a negatividade da consciência se investe no caminho rumo ao seu ser-aí verdadeiro,
onde essência e aparência aparecem completamente identificadas. Mas há que se
ressaltar que a consciência como saber imediatamente se experimentando, ou seja, como
consciência engajada, não é para si mesma consciente da meta que persegue, mas se
move “inconscientemente” até ela. A meta está posta somente para a consciência
filosófica que, tendo já percorrido todo o processo fenomenológico, o apresenta para si
mesmo como momento de sua autocompreensão.
63
Por esse motivo, a consciência
diretamente enredada na experiência espiritual não pode formular para si mesma a
necessidade que a compele à sua realização (Ausführung). Isto se torna mais claro
quando nos reportamos ao interior propriamente do desenvolvimento conceitual da
Fenomenologia. Explicitemos, pois, para este propósito, como se processa a primeira
passagem que é apresentada nesta obra, a saber, a passagem da certeza sensível à
percepção.
A exposição do processo de “desfenomenalização”, ao qual a consciência está
submetida, deve necessariamente tomar como ponto de partida a consciência que é
saber e, ademais, deve apresentá-la em sua imediatidade (Unmitelbarkeit) fenomenal
inicial. O começo da Fenomenologia não pode ser senão o próprio saber, pois, como já
o dissemos, a essência da consciência está em ser ela atividade do para-si, de ser
imediatamente saber. No saber, a consciência põe e, ao mesmo tempo, distingue de si
mesma algo que é. Por esse motivo, a consciência em seu começo é “saber do imediato
ou do essente”.
64
63
Para esta consciência filosófica que já se educou para a ciência, Hegel utiliza a expressão
para-nós (für-uns).
64
Ib, Consciência, p. 74.
48
Para a consciência-saber, o conteúdo primeiro que nela se produz vem-a-ser para
a mesma na forma da certeza sensível. Pela via da sensibilidade algo está “dado”
imediatamente à consciência. Este começo da fenomenologia deve, certamente, ser
compreendido epistemologicamente diverso daquele que, em geral, representa o começo
numa teoria empirista do conhecimento. Para o empirismo, a atividade do conhecer é
condicionada por uma afecção primordialmente sensível, postulada na forma de
impressões. A impressão do empírico no espírito fornece o material sobre o qual se
investe a atividade de elaboração epistêmica. De acordo com esta concepção,
permanece exterior ao espírito um “substrato” que seria a origem ou a fonte da afecção
sensível. A consciência aparece nessa relação como o originariamente passivo e,
enquanto saber, deixa fora de si um “objeto” que transcende à experiência, a saber, a
fonte da afecção, a qual, contraditoriamente, deve ser pressuposta e postulada e, ao
mesmo tempo, se apresenta na relação imediatamente empírica como um álogon. A esta
origem que o empirismo atribui ao conhecer, Hegel opõe o ser-ativo no qual se põe
imediatamente o espiritual. Quando o eu abarca esse material, diz Hegel, este “se torna
ao mesmo tempo contaminado e transfigurado pela universalidade do eu; perde sua
subsistência singularizada, autônoma, e recebe um ser-aí espiritual”.
65
É certo que o “algo”, que logo acima mencionamos, se reporta à consciência
como um ainda não mediatizado, como algo simplesmente essente e singularizado, na
medida em que este primeiro saber da consciência se produz na relação imediata com
um algo. O conteúdo da certeza sensível se encontra inteiramente estabelecido diante da
consciência através de seu visar. Entretanto, a riqueza e a infinitude desse conteúdo
permanece adstrito ao ato de visar e não acede, em toda sua determinidade e
multiformidade, à certeza subjetiva da consciência. Toda a diferenciação que a
65
ECF III, § 381, adendo.
49
consciência visa, se eleva indistintamente ao saber abstrato que se produz na
consciência, à certeza simples de coisas existentes (existierenden Dinge). O
“preenchimento” que corresponde a este primeiro momento da experiência do saber da
consciência, o material visado, é o conteúdo abstraído do “puro ser que constitui a
essência dessa certeza”.
66
Os dois termos que estruturam a relação sensível, o eu e o “objeto”, assumem, ao
final do curso da experiência dessa figura da consciência, o modo da universalidade que
lhes subsiste. O eu e o objeto vêm a se revelar, ambos, como um puro este (ein reines
Dieses) em geral. Isto significa que mesmo tomada em seu relacionamento imediato de
singulares, a certeza sensível está fundada na relação entre dois universais, pois que,
tanto os objetos possíveis, em suas absolutas singularidades, que se ofereçam à
consciência, adquirem para a mesma a forma de um existente em geral, de uma
singularidade pura, quanto o eu, se apresenta como eu subsistente em cada experiência
singular.
O conteúdo que o visar “capta” na presença absoluta e imediata do objeto frente
à consciência, a singularidade,
67
transmuta-se, com base na apreensão formal da
consciência, na universalidade, pois “o conteúdo da consciência sensível é, em si
mesmo, dialético. Ele deve ser o singular – mas, justamente por isso, não é um singular,
e sim todo o singular”.
68
Esta inversão que se processa para a consciência, da imediatidade singular para a
universalidade mediata, configura a passagem da consciência sensível para a
66
FE, Consciência, p. 75.
67
Fazendo nota juntamente com Hyppolyte: “tal singularidade inefável não é a singularidade que
tem a negação em si mesma, ou a mediação; portanto, encerra a determinação para negá-la; será preciso
um longo processo antes que venhamos a atingir a singularidade autêntica, aquela que é o conceito e que
será expressa no vivente ou no espírito; trata-se, aqui, da singularidade imediata ou positiva que se opõe
ao universal” (op. cit., p. 101).
68
ECF III, § 419, adendo, grifos de Hegel.
50
consciência percipiente. Inicialmente, a presença absoluta e imediata do objeto sensível
e o seu “conteúdo concreto”
69
aparecem como a verdade e o em-si no saber da
consciência, contudo, no caminho de sua experiência a consciência chega à
impossibilidade de apreender, através da linguagem, esta singularidade que é seu objeto
imediato. O objeto que a certeza sensível tem diante de si, “em toda a sua plenitude”,
70
não pode ser expresso na dimensão universalizante da linguagem, sendo somente
passível de uma descrição (Beschreibung), e esta, por sua vez, se mostra como uma
tarefa interminável.
71
O primeiro objeto que a certeza sensível tem como sua verdade
torna-se, a partir do resultado que o movimento experiencial da consciência alcança,
uma aparência de saber da consciência, um saber fenomenal.
Com isso vem-a-ser para a consciência: o que era antes o em-si não é
em-si, - ou seja, só era em-si para ela. Quando descobre portanto a
consciência em seu objeto que o seu saber não lhe corresponde,
tampouco o objeto se mantém firme.
72
Como ressalta Hegel, o que resulta do devir da consciência, quando se produz
essa passagem de uma figura para outra, assume o duplo aspecto de ser, ao mesmo
tempo, para a consciência implicada diretamente no processo, novo objeto, e “para nós,
[...] movimento e vir-a-ser”.
73
Para a consciência filosófica o que surge de uma
determinada experiência da consciência fenomenal é um resultado particular a ser
suprimido numa subseqüente figura da consciência, tendo em vista que a consciência
filosófica está “situada” no momento onde a série das figuras da consciência está
69
FE, Consciência, p. 74.
70
Ib, loc. cit., p. 74.
71
Diz Hegel: “falam do ser-aí de objetos externos, que poderiam mais propriamente ser
determinados como coisas efetivas, absolutamente singulares, de todo pessoais, individuais; cada uma
delas não mais teria outra que lhe fosse absolutamente igual. Esse ser-aí teria absoluta certeza e verdade.
Visam este pedaço de papel no qual escrevo isto, ou melhor, escrevi; mas o que visam, não dizem. Se
quisessem dizer – isso será impossível, porque o isto sensível, que é visado, é inatingível pela linguagem,
que pertence à consciência, ao universal em si. Ele seria decomposto numa tentativa efetiva para dizê-lo,
os que tivessem começado sua descrição não a poderiam completar, mas deveriam deixá-la para outros,
que no fim admitiriam que falavam de uma coisa que não é” (Ib, loc. cit., pp. 81-82, grifos de Hegel).
72
Ib, Introdução, p. 71.
73
Ib, loc. cit., p. 72
51
completa. A verdade insurgente de cada experiência determinada da consciência é
novamente dissolvida na fenomenalidade que o seu caminhar faz revelar. O limite
conceitual de uma figura é o início de outra, por isso a série se apresenta como um
movimento progressivo. Mas a preocupação metodológica de Hegel com relação à
Fenomenologia consiste em apresentar o “movimentar-se” da própria consciência em
direção à igualdade de sua certeza com a verdade. Trata-se, para Hegel, de mostrar
como a consciência engajada, em seu próprio percurso, alcança esses resultados que lhe
foram necessários. Para a consciência diretamente implicada na experiência, o novo
objeto que se lhe apresenta não está ainda em seu saber como algo que será
necessariamente suprimido, mas somente como objeto que veio-a-ser. Com isto
podemos entender as seguintes palavras de Hegel:
só essa necessidade mesma – ou a gênese do novo objeto – se
apresenta à consciência sem que ela saiba como isso lhe acontece.
Para nós, é como se isso lhe transcorresse por trás das costas. Portanto
no movimento da consciência ocorre um momento do ser-em-si ou
ser-para-nós, que não se apresenta à consciência, pois ela mesma está
compreendida na experiência.
74
Para a consciência científica a Fenomenologia expõe os momentos de sua
formação, mas para a consciência enredada na experiência do conhecer, estes momentos
para ela são inconscientes e lhe advém, considerando a sua perspectiva, de modo um
tanto casual. Hegel prescreve que, para compreender e “demonstrar” o movimento da
consciência natural, é preciso afastar “de nosso apreender (Auffassen) o conceituar”.
75
O
desenvolvimento da consciência natural deve ser apresentado a partir do desdobramento
e movimento da própria consciência natural, perseguindo a trajetória que sua
experiência vai traçando. No caso da consciência sensível, é a não correspondência
encontrada, em seu próprio “experimentar”, entre o seu saber do objeto e o em-si do
74
Ib, loc. cit., p.72.
75
Ib, Consciência, p. 74.
52
mesmo que a faz transladar para uma consciência que tem na universalidade do objeto
sua nova verdade.
Segundo o aspecto formal deste movimento da consciência, ela se mostra
“diversamente determinada segundo a diversidade do objeto, e sua formação
progressiva aparece como uma mudança das determinações do seu objeto”.
76
A relação
dialética de mútua trans-formação progressiva da consciência e do objeto, cuja
apresentação a Fenomenologia reconhece como sua meta, aparece, ao final do processo
fenomenológico, como identidade estabelecida entre os dois termos em questão,
resultando na destituição de suas unilateralidades recíprocas.
No ser ativo do eu, no ser do eu que veio-a-ser e está posto, se produz a relação
espiritual do ser refletido em si mesmo. Em sua imediatez o eu é primeiramente reflexão
abstrata como certeza de si mesmo. A diferença que lhe é inerente está presente somente
como idealidade internamente suprassumida. A relação formal presente no ser do eu, de
uma alteridade interna e imediatamente conduzida à identidade, deriva do fato de que
para o eu é substancial o saber-de-si e, como saber, está marcado por uma distinção, já
que o saber implica uma relação de dois termos, o sujeito que sabe e o objeto sabido;
contudo, na certeza de si do eu, estes dois termos constituem uma diferenciação da qual
não resulta nenhuma relação de exterioridade concreta.
77
A certeza de si do eu, pelo que
dissemos, se conclui em um saber meramente subjetivo e, por isso, ainda abstrato, pois
que o eu nessa relação, ainda não sabe de nenhuma exterioridade ao seu universo
interno, de nenhum ser efetivamente que lhe esteja contraposto, em suma, não sabe
ainda de nenhum objeto (Gegenstand).
76
ECF III, § 414, adendo.
77
Segundo Hegel, “o eu não pode existir sem diferenciar-se de si, e estar junto de si no
diferenciado dele; o que justamente significa: sem saber de si, sem ter – e sem ser – a certeza de si
mesmo” (Cf. ECF III, § 413, adendo) .
53
O eu certo de si mesmo é assim, no começo, ainda o subjetivo
totalmente simples, a liberdade totalmente abstrata, a completamente
indeterminada idealidade ou negatividade de toda limitação.
Repelindo-se de si mesmo, o eu chega pois, antes de tudo, apenas a
algo diferenciado dele formalmente, e não efetivamente.
78
A diferença presente no espírito tomado como eu formal representa apenas a
condição lógica que se funda no conceito de eu, não se trata ainda de uma diferença
ontológica, de uma diferenciação real. Somente para o eu concreto a diferença está
posta como algo concreto. O eu que aparece como concreção do espírito é o que Hegel
concebe como consciência.
79
Para a consciência a diferença se lhe refere não mais como
idealidade interna e formal, mas como diferença real e contraposta, efetivamente dada,
diferença que ganha, perante o eu concreto, autonomia e se põe como exterioridade
essente. Tal essente defrontado à consciência é justamente a positividade imediata que
ela toma por seu objeto. Por estar junto a um algo “estranho”, por estar referida a uma
alteridade efetiva, a consciência “constitui o grau da reflexão ou da relação do
espírito”.
80
A distinção real concernente ao espírito enquanto consciência faz com que ele
se torne uma relação fundada na cisão (Teilung), na separação da objetividade e
subjetividade. Por outro lado, o espírito se eleva de sua condição puramente subjetiva,
de seu saber formal que o põe como eu abstrato, à condição de certeza objetiva. A
contradição que emerge para o espírito, no modo do ser consciencial, consiste no fato
de o objeto essente ser uma positividade não mediatizada, uma imediatez, ao mesmo
tempo em que é algo que aparece estabelecido pela consciência.
81
Enquanto a relação de
separação faz subsistir o objeto como autônomo e independente, o espírito se faz passar
78
Ib, loc. cit.
79
„Das Bewusstsein ist der Geist als Konkretes“ (“A consciência é o espírito enquanto
concreto”, cf. WL I, Vorrede-1812, S.17).
80
ECF III, § 413.
81
A contradição diz respeito ao fato de que o “objeto, por um lado, está em mim e, por outro
lado, fora de mim tem uma subsistência tão autônoma quanto as trevas fora da luz” (ECF III, § 413,
adendo).
54
ainda pela sua forma não-verdadeira, pois as partes de tal relação não constituem a
totalidade que condiz com a realidade do espiritual. A consciência, por exprimir este
corte que concede à subjetividade e ao objeto uma exterioridade interveniente, fazendo
com que ambos permaneçam em suas relativas independências, compreende a dimensão
aparente do espírito, o “espírito como fenômeno [Erscheinung]”.
82
Na separação o
espírito se configura como o ser ao lado de um outro, conseqüentemente sua unidade
conceitual se mostra dissolvida e ele não chega a ser para si mesmo o que é em si. A
diferença que se efetuou como algo de real não se tornou para ele, neste momento ainda,
algo conduzido ao seu interior para constituir sua identidade concreta.
Esta conexão exterior que está presente na existência fenomenal do espírito, no
ser consciencial, faz com que no começo concreto do espírito, o objeto se apresente
como um dado, como um autônomo subsistente. A consciência apreende primeiramente
o objeto como algo previamente posto e sua certeza se produz como certeza de um algo
subsistente por si mesmo. O modo como o objeto aparece na relação de conhecimento,
este “oferecimento imediato”, faz com que o objeto se passe por um “fato da
consciência”, mas isto não é senão o começo aparente em relação à consciência que
permanece sujeito de conhecimento abstrato, e tem em consideração o objeto como um
absolutamente outro.
A manutenção da separação absoluta entre subjetividade cognoscente e
objetividade externa permanece sendo o resultado de grande parte dos esforços
filosóficos da época moderna, mormente do empirismo e da filosofia transcendental de
Kant. À Fenomenologia compete a tarefa de suprimir esta separação que se instala ainda
no interior do momento fenomenológico do espírito. O conceito de conhecer, limitado
ao ponto de vista fenomenológico, adquire uma validade restrita, deixando sempre
82
Ib, loc. cit.
55
como resíduo um elemento a-lógico (álogon), seja uma coisa-em-si seja um substrato
inatingível pela consideração empírica.
1.3 A crítica das concepções empirista e transcendental do
conhecimento e a superação do ponto de vista fenomenológico
Postular um essente não mediatizável é justamente o erro que Hegel encontra na
mentalidade teórica das doutrinas empiristas, pois, ao mesmo tempo em que estas
últimas consideram o objeto como uma interpretação ou representação da consciência,
não podem deixar de conferir a ele um substrato e uma dimensão originária que a
consciência não seria capaz de atingir epistemicamente.
O empirismo trouxe uma importante contribuição para o pensamento filosófico,
na medida em que se pôs a examinar a validade objetiva das determinações-de-
pensamento com as quais operava a metafísica antiga, a qual concebe a realidade de
forma acrítica, baseando-se na validez imediata de seus conceitos.
83
Em contraste com o
83
Hegel não se reporta, por meio da denominação “metafísica antiga”, à filosofia antiga clássica,
não deixando de fazer, inclusive, uma eminente ressalva: “Platão não é um metafísico dessa espécie, e
menos ainda Aristóteles, embora habitualmente se acredite no contrário” (ECF I, § 36, adendo). Hegel
tem em vista, aqui, principalmente, a escolástica e a reprodução direta ou indireta do procedimento
metodológico desta metafísica na reflexão filosófica moderna. O que caracterizava tal metafísica era o seu
“proceder ingênuo” que se baseava na crença de que as determinações-de-pensamento presentes na
consciência correspondiam imediatamente às “determinações fundamentais das coisas”
(Grundbestimmungen der Dinge), “ de que o pensar captava o em-si das coisas, de que as coisas só são o
que são verdadeiramente, enquanto pensadas” (ECF I, § 28). Através da operação lógico-formal de
atribuição predicativa, a metafísica antiga aplicava a seus objetos (Deus, alma, mundo etc.), como se se
tratasse de sujeitos fixos e carentes de conteúdos, determinações conceituais advindas diretamente da
elaboração representacional da consciência, na busca de estabelecer definições de conhecimento. Hegel
reprova esta atribuição exterior e reivindica como tarefa da filosofia “demonstrar” a gênese conceitual dos
próprios predicados por meio do desenvolvimento imanente dos próprios objetos, os quais, são em
verdade, no caso da metafísica, essencialidades puras.
56
método metafísico, que se move na “simplicidade” abstrata de seus conceitos, o
empirismo tem por critério do conhecimento a experiência e toma em consideração,
primeiramente, o objeto que se oferece à faculdade percipiente da consciência, o objeto
imediatamente dado – o que, nesta doutrina, vale como “concreto”. No entanto, para
Hegel, esta objetividade requerida pela filosofia empirista moderna recai no terreno da
finitude e da mais completa abstração. Primeiro porque ela erige em objetos legítimos
do pensamento os dados sensíveis, aquilo que produz afecção na sensibilidade, tanto de
origem exterior quanto interior; desta maneira, os objetos metafísicos antigos, como
Deus, alma, redundam em conceitos abstrusos não passíveis de uma verificação
empírica: “aqui se tem diante de si material finito”
84
apenas. Segundo, porque o objeto
que resulta da atividade de conhecimento se constitui a partir de uma reunião de
determinações abstratas, numa justaposição exterior que a análise empírica efetua: “na
percepção tem-se algo variadamente concreto, cujas determinações devem ser separadas
umas das outras; como uma cebola cujas cascas se tiram”.
85
O procedimento analítico do método empirista estabelece o objeto percebido
como um conglomerado de propriedades que se ligam apenas de forma extrínseca;
quando percebe um pedaço de metal, por exemplo, observa que nele ressaltam o brilho,
a cor, a opacidade, a dureza e diversas outras propriedades, entretanto, a unidade que
comporta e sustém o múltiplo destas propriedades, que seria, por assim dizer, a
“propriedade essencial” do objeto, não se oferece à percepção, depreendendo-se, daqui,
que o segundo momento requerido para a atividade do conhecer, a síntese, não é
efetuada, e o objeto se configura apenas como superposição de elementos abstratos.
Isto leva Hegel a afirmar que “o empirismo ao analisar os objetos encontra-se em erro,
se acredita que deixa como são; pois de fato ele transforma o concreto em abstrato. Por
84
ECF I, § 38, adendo.
85
Ib, loc. cit.
57
isso ocorre ao mesmo tempo, que se mata o que é vivo, porque vivo é só o concreto, o
uno”.
86
A unidade do objeto entra em contradição com a perspectiva epistemológica do
empirismo, pois ele não pode admiti-la sem retornar ao ponto de vista da antiga
metafísica e reinstaurar o elemento supra-sensível que aparentemente estava elidido.
Além do que, as categorias presentes na reflexão empirista, tais como “matéria, força, e
também uno, múltiplo, universalidade, infinito etc.”, citadas por Hegel, manifestamente
dotadas de um teor metafísico, são utilizadas pelo empirismo “de uma maneira
completamente acrítica e inconsciente”.
87
A filosofia transcendental de Kant não se distancia do horizonte do empirismo.
Apesar da distinção feita por Kant entre começo empírico, a dimensão a posteriori, e
origem transcendental, a dimensão a priori, no que diz respeito ao conhecimento,
persiste, em sua filosofia, um substrato não mediatizável do objeto, a coisa-em-si. As
determinações do objeto, segundo o criticismo kantiano, resultam em determinações
subjetivas e fenomênicas. O objeto que se oferece à consciência é imediatamente uma
produção da organização estrutural da subjetividade cognoscente. A essência ou
“objetividade” do objeto resta além dessa relação epistêmica, como algo não
determinável. Esta restrição do conhecimento a uma experiência condicionada pelas
formas puras da sensibilidade e pela estrutura categorial do entendimento estabelece,
para Hegel, uma separação entre o conhecer e o absoluto; em outras palavras,
subjetividade e objetividade se encontram radicalmente contrapostas. Segundo
Manfredo Oliveira, “Hegel questiona esta contraposição entre subjetividade e
86
Ib, loc. cit.
87
Ib, loc. cit.
58
objetividade e pretende pensa as categorias como adequadas, como expressão da
identidade entre sujeito e objeto, que ele considera o princípio da especulação”.
88
Ao impossibilitar o conhecimento objetivo da natureza e do espírito – isto é, do
ponto de vista do absoluto – o idealismo subjetivo kantiano culmina na absolutização do
conhecimento finito, pois o conhecimento se afigura como uma produção relativa e
condicionada pelo aspecto subjetivo. Conseqüentemente, o conhecimento científico se
faz valer apenas como um conhecimento possível e, enquanto conhecimento humano,
apenas como nosso conhecimento. Embora a universalidade e necessidade sejam
critérios pertinentes ao conhecimento, tal como o entende Kant, contudo, os referidos
critérios estão presentes somente como determinações formais do pensar subjetivo, as
quais Kant denomina categorias, e que são inerentes à “espontaneidade do pensar”
89
posto como eu.
A atividade do conhecimento, em Kant, acaba constituindo para si uma
objetividade fenomenal. A substancialidade do real se encontra tolhida e sem acesso ao
saber científico, de maneira que, como expressa Hegel, a coisa em si se permite ser
pensada como “o completamente abstrato, o totalmente vazio, ainda determinado
somente como algo além; o negativo da representação, do sentimento, do pensamento
determinado”.
90
O problema que surge para esta epistemologia finita, apontado por
Hegel, é que, ao privar o conhecer da coisa em si, Kant acaba fenomenalizando o
próprio entendimento – que é a faculdade inteligível presente na subjetividade e
responsável por operar a unificação do múltiplo da experiência –, já que nem mesmo a
88
OLIVEIRA, Manfredo, A filosofia na crise da modernidade, p. 41. Compartilhamos da mesma
leitura de Manfredo Oliveira quando afirma que “para Hegel, a posição de Kant tem em comum com o
empirismo a consideração da experiência como único campo do conhecimento humano. Não passa de
uma fenomenologia” (cf, ib, p. 40).
89
Ib, § 40.
90
Ib, § 44.
59
ele, ao entendimento, seria possível conceder a “dignidade de uma coisa em si”.
91
Destarte, aquilo que Kant explicita como sendo o funcionamento da estrutura cognitiva,
não pode ser concebido senão como fenômeno da mesma, ou melhor, como a forma sob
a qual a faculdade de conhecimento aparece para nós mesmos; em decorrência disso, o
nosso conhecimento de nossa potência gnosiológica, seria apenas o conhecimento da
aparência dessa potência, e neste sentido, o conhecimento dessa aparência seria
também, portanto, apenas aparência.
A filosofia crítica, ao pretender conhecer a estrutura do conhecer, abstraiu do
fato de que essa tarefa só se realiza no interior do conhecimento propriamente, que o
conhecimento, em última instância, tem a si mesmo como objeto. “Decerto, as formas
do pensar não devem ser utilizadas sem exame: mas esse próprio exame é já um
conhecimento. É preciso, assim, que estejam reunidas no conhecimento a atividade das
formas-de-pensamento e sua crítica”.
92
Como resultado, a filosofia crítica impõe um
limite ao conhecimento ou uma restrição do mesmo ao mundo fenomenal, e ao tentar
explicar a natureza do conhecimento teve que, mesmo a contragosto, admitir o
paradoxal resultado, que se volta contra esta postura metodológica, de que este
conhecimento não tem diante de si a “verdade da coisa”, e ao tentar expressar sob que
condições e validez o conhecimento se realiza, acaba dizendo o contrário do que
pretende expressar, pois o conhecer objetivo, como saber último do real, estando
obsedado, os resultados que a filosofia transcendental estabelece através da crítica da
faculdade de conhecimento não podem ser considerados também no horizonte desta
objetividade negada.
91
CL, Introducción, p. 62; SL, p. 15.
92
ECF I, § 41, adendo 1. Esta objeção epistêmico-metodológica que Hegel faz a Kant já tinha
sido efetuada com mais precisão na introdução da Fenomenologia, e se situa num esforço de crítica bem
mais amplo endereçado, de um modo geral, à perspectiva da filosofia moderna, a qual, na quase
totalidade de suas expressões, se encontrava fundamentada ora numa concepção instrumental ora numa
concepção que toma o conhecimento exclusivamente como meio.
60
É por isso a maior inconseqüência: de uma parte, conceder que o
entendimento só conhece fenômenos; e, de outra parte, afirmar esse
conhecimento como algo absoluto, quando se diz que o conhecer não
pode ir além, que esse é o limite absoluto, natural do saber humano.
93
Em detrimento desta objetividade absoluta, Kant faz valer a objetividade
empírica condicionada pelas formas subjetivas, ou objetividade “possível”. Por causa
desse estranhamento que está posto entre o em-si do objeto e a subjetividade
cognoscente, Hegel acusa Kant de não ter ultrapassado a consciência fenomenológica e
de ter permanecido na aparência de separação que o ser consciencial do espírito
implica.
A filosofia kantiana pode ser considerada, com todo o rigor, como a
filosofia que apreendeu o espírito como consciência e que contém
unicamente as determinações da fenomenologia e não da filosofia do
espírito. Ela considera o eu como relação a algo que está além, que se
chama, na sua determinação abstrata, a coisa em si.
94
Deste ponto de vista, o posicionamento teórico de Kant, ao permanecer aquém de uma
objetividade absoluta, compartilha com o empirismo desta separação entre objetividade
e subjetividade ou, em outros termos, persiste em ambos um elemento não mediatizável
pelo conhecer. Como corolário comum a ambos dá-se a impossibilidade de aceder a
uma relação de verdade, limitando-se ambos a uma relação de conhecimento baseada na
certeza subjetiva: ao mesmo tempo em que põem para si um exterior essente, só chegam
a expressar o que ele é para a consciência.
95
Porém, “a certeza subjetiva não pode ter
limite no objeto: deve adquirir verdadeira objetividade”.
96
A Fenomenologia pretende justamente expor o trânsito da relação de certeza
para a relação de verdade e, partindo da própria consciência, chega a mostrar como se
opera a desfenomenalização do espírito. O processo fenomenológico tem
93
Ib, § 60.
94
ECF III, § 415.
95
Em Fé e saber Hegel afirma que a filosofia kantiana “se limita mesmo ainda ao interior do
projeto de Locke”, quer dizer, “à consideração do entendimento finito” (Cf. FS, p. 105).
96
ECF III, § 416, adendo.
61
necessariamente, por isso, que culminar na eliminação da cisão sujeito-objeto, e assim a
consciência vem a reconhecer que o estranho, que antes lhe era um subsistente
autônomo, constitui com ela uma identidade, a qual se estabelece como o termo do
desenvolvimento imanente da consciência em sua experiência. Como superação da
exclusão que a consciência impõe à objetividade restrita, que ela põe como lhe sendo
um absolutamente outro, desaparece da relação sujeito-objeto esta interação excludente
que os punha em sua separação radical, no que diz respeito ao conhecimento absoluto.
Com a dissolução da relação fenomenal, a diferença concreta que marca a ad-posição do
subjetivo ao objetivo é suprimida na interioridade espiritual produzida. O espírito se
despoja do seu modo de ser-junto-de-outro, e a objetividade restrita e contraposta
compõe com a subjetividade a totalidade objetiva estrita do pensamento.
A “demonstração” da destituição do caráter fenomenal do espírito, da superação
do ser consciencial, deve atender, contudo, à necessária prescrição que Hegel conclui de
sua análise da filosofia kantiana, que é a de reunir na exposição, como já o citamos mais
acima, “a atividade das formas-de-pensamento e sua crítica”. A Fenomenologia
“descreve”, portanto, o processo pelo qual a própria consciência, desde sua forma mais
abstrata, como certeza simples do essente, em seu movimento de autocrítica, ou de
autodiscernimento, se eleva progressivamente a uma realidade automediada: o espírito.
Elevação que se processa segundo a supressão paulatina da diferença que se instala em
cada figura consciencial, entre o saber que é para a consciência e o saber que a
experiência da consciência revelou como sendo o verdadeiro, como também já
indicamos mais acima. Para a Fenomenologia não se trata simplesmente de apresentar o
em-si das formas do conhecer, mas de mostrar o como da atividade inteligente imanente
ao movimento dessas “formas”.
62
No primeiro parágrafo da seção da certeza sensível Hegel adverte que é preciso
afastar de “nosso apreender o conceituar”,
97
o que Hegel pretende exprimir com tais
palavras é que a experiência do conhecer do espírito se dá como uma autocondução do
ser-aí imediato do espírito à sua forma científica, até que ele se efetue como um todo
que se reflete em si mesmo a partir de seu outro. A Fenomenologia contém, neste
sentido, o movimento de apreensão (Auffassung) pela consciência de sua essência. A
consciência, porém, não deve ser considerada como ponto fixo e inerte, no qual viriam
se sobrepor os resultados dos raciocínios feitos por um sujeito filosofante que se pusesse
a investigar a essência dela. A essencialidade presente em cada momento da experiência
da consciência é resultante da própria atividade interna do modo relacional do espírito.
É desta perspectiva que Hegel informa que para nós, para a consciência científica, só
resta o “puro observar”.
98
Por outro lado, no interior da Fenomenologia, a atividade espiritual ínsita à
experiência da consciência está disposta na forma de figuras da consciência, de modo
que os momentos dessa experiência estão organizados segundo uma sucessão inteligível
apresentada na forma de um desenvolvimento de determinações lógicas que faz de cada
configuração da relação sujeito-objeto um momento necessário. A casualidade e o
caráter acidental que o “experimentar-se” da consciência possa eventualmente assumir e
comportar é somente uma consideração do ponto de vista da consciência que não
completou sua formação, pois ela, decerto, se move na inconsciência de sua meta,
enquanto consciência engajada. Ao contrário, no saber da consciência que elidiu a
desigualdade com a objetividade restrita, este movimento se lhe revela como
movimento de efetivação de sua própria essência.
97
FE, Consciência, p.74.
98
Ib, Introdução, p. 70.
63
Já explanamos como a consciência concede ao espírito sua autodiferenciação
concreta, e na medida em que ela é saber, confere à diferença essente, posta no exterior
da simples certeza de si, “inicialmente, a determinação do ser”.
99
Nesta particularização
mutuamente excludente a universalidade não se faz valer porque o saber da consciência
encontra um limite na positividade imediata do objeto. Neste âmbito a ciência se
encontra em sua existência fenomenal, na contradição não resolvida do saber cindido da
consciência, como certeza de si e como certeza de um absolutamente outro não
conciliadas ainda. Se abstrairmos nossa consideração e nos determos exclusivamente no
eu consciencial, poderemos observar de que modo a universalidade já lhe diz respeito.
A existência do eu estando condicionada pela sua autodiferenciação, pois que o “eu não
pode existir sem diferenciar-se de si, e estar junto de si mesmo no diferenciado dele”,
100
faz com que o eu seja idêntico a si mesmo em sua diferença. Mas esta universalidade
que preside à unidade do eu, deve recuperar também a diferença concreta do espírito
estranhado na relação consciencial. “Ao mesmo tempo, deve se observar que a
substancialidade inclui em si não só o universal ou a imediatez do saber mesmo, mas
também aquela imediatez que é o ser, ou a imediatez para o saber”.
101
Ao conciliar a subjetividade abstrata e a imediatidade objetiva, a Fenomenologia
desemboca na identidade de ser e pensar requerida pela cientificidade do espírito. A
razão se manifesta, nesse momento, como a “potência ativa do conceito tanto no sujeito
como no objeto”.
102
Ser e saber se destituem de suas mútuas unilateralidades e
relatividades e vêm a se constituírem como determinações internas do puro pensar. A
interioridade absoluta produzida faz com que o saber-de-si do espírito – precisamente: o
saber absoluto ou o saber de totalidade – se constitua na relação de verdade onde o
99
ECF III, § 418.
100
Ib, § 413, adendo.
101
FE, Prefácio, p.29.
102
ECF III, § 417, adendo.
64
objeto não oferece mais um “limite” para o conhecer. A ciência emerge, aqui, “no
elemento da universalidade – que inclui em si o particular”
103
– ou, melhor dizendo,
universalidade que contém suprassumida em seu interior, a determinação da diferença.
Desta forma é que a Fenomenologia nos “apresenta o vir-a-ser da ciência em geral ou
do saber”.
104
Da consciência, como perda do espírito, à igualdade de ser e saber, de
subjetividade e objetividade, o desenvolvimento fenomenológico nos põe diante do
processo genético do conceito de ciência, que tem a mesma significação da passagem da
ciência enquanto substância espiritual, uma interioridade somente potencial, à sua
existência efetiva na identidade do puro pensar ou, segundo a expressão de Hegel, à sua
“essencialidade transfigurada”.
105
Mas, ao mesmo tempo em que a Fenomenologia promove a identidade que
suprassume a diferença, eliminando a aparência de contradição que se instalava no
modo inefetivo do espírito, quer dizer, no modo da consciência, ao produzir como
resultado a plena correspondência entre o saber da consciência e a verdade objetiva,
fazendo com que essência e fenômeno se interpenetrem na unidade absoluta do
pensamento, este resultado estabelece, também, a completa carência de distinção que
esta unidade implica, pois que as determinações, antes abstratas, de sujeito e objeto,
estão, agora, dissolvidas na pura indeterminação da determinação identitária do pensar.
O ponto de vista que considera a dimensão absoluta desta unidade, a independência do
pensar perante toda e qualquer exterioridade, e sua completa referência a si mesmo,
103
FE, Prefácio, p. 21. Manfredo Oliveira, em seu livro A filosofia na crise da modernidade,
discutindo a questão da normatividade e da eticidade em Hegel, pontua muito precisamente o estatuto do
conceito de particularidade em Hegel, que é estabelecido, em sua discussão, no afastamento crítico para
com a compreensão de “particular” dos saberes empíricos que se preocupam com a taxonomia abstrata
dos seres vivos. Afirma Manfredo: “a particularidade revela-se [...] como o próprio desdobramento da
inteligibilidade originária, que se deu imediatamente no nível do universal” (p. 206).
104
Ib, loc. cit., p. 35.
105
Ib, loc. cit., p. 34.
65
deve concluir, então, que o ponto de chegada da Fenomenologia é a simples
imediatidade (einfache Unmittelbarkeit).
66
II A Ciência da lógica e o desenvolvimento das determinações
do “puro pensar”
2.1 A passagem da Fenomenologia para Ciência da lógica: o momento
de constituição do elemento científico
A constituição da universalidade do pensar introduz a cientificidade no seu ser-
aí verdadeiro, contudo, devido à forma como aquelas determinações fenomenológicas se
encontram transfiguradas na igualdade indeterminada que tal universalidade implica, a
ciência está presente aí somente em seu começo efetivo. A totalidade constituída do
pensar, ou o conceito de ciência, a que nos conduz a Fenomenologia, não consiste no
termo do trabalho científico, do labor espiritual orientado para o autoconhecimento. A
auto-inserção do espírito na universalidade, por meio de sua fenomenologia, fornece o
conceito de ciência como sua verdade no simples (Einfach), como sua natureza
elementar e, portanto, como pura indeterminidade ainda. Lembremos o que diz Hegel a
propósito do conteúdo da Fenomenologia: “o que o espírito nela se (sic) prepara é o
elemento do saber”.
106
Para ratificar esse caráter propedêutico e introdutório da
Fenomenologia no que diz respeito ao saber científico, à verdadeira mundanidade do
espírito, podemos nos valer, também, de uma outra passagem contida nesta obra: “o
primeiro despontar é, de início, a imediatez do mundo novo – o seu conceito: como um
edifício não está pronto quando se põe seu alicerce, também esse conceito do todo, que
106
FE, Prefácio, p. 41.
67
foi alcançado, não é o todo mesmo”.
107
A formação científica não se completa enquanto
está ainda isenta de “uma efetividade perfeita”
108
(vollkommene Wirklichkeit).
A experiência da consciência a conduz a este estado científico em que se
encontra a identidade de ser e saber. Trata-se de um movimento mediato que chega a
superar a própria mediação e tem como termo o começo da ciência em sua pura
imediação, a qual é resultado imanente ao desdobramento que alçou o espírito à sua
“relação” de verdade. Nesta imediatidade absoluta em que se coloca o espírito, vem-a-
ser o princípio científico em sua incondicionalidade e, exatamente aqui, se situa o
pressuposto lógico da ciência enquanto tal. Neste imbricamento entre pressuposto
(Voraussetzung) e resultado é que se opera a passagem da Fenomenologia para a
Ciência da lógica. A ciência se encontra estabelecida não como fundamento do pensar
exclusivamente subjetivo, mas constituída internamente ao pensar que se elevou à sua
unidade. Daí a razão por que Hegel insistir na falta de necessidade em justificar a
insurgência do conceito de ciência na Ciência da lógica, “porquanto a Fenomenologia
do espírito não é mais que a dedução [Deduktion] deste conceito”.
109
A propósito, diz
ainda:
na Fenomenologia do espírito foi apresentada a consciência em seu
movimento progressivo [Fortbewegung], desde sua primeira oposição
imediata com respeito ao objeto, até o saber absoluto. Este caminho
passa através de todas as formas das relações da consciência com o
objeto, e tem como seu resultado o conceito de ciência. Este conceito,
pois, não carece aqui de justificação [Rechtfertigung] alguma (se
prescindimos do fato de que ele surge dentro da lógica mesma),
porque já a obteve na própria Fenomenologia; nem, tampouco, é
suscetível de nenhuma justificação que não seja sua produção por
meio da consciência, cujas próprias formas se resolvem todas naquele
conceito, como em sua verdade.
110
107
Ib, loc. cit., pp. 26-27.
108
Ib, loc. cit., p. 26.
109
CL, Introducción, p. 65; SL, pp. 18-19.
110
CL, p. 64; SL, pp. 17-18.
68
O desenvolvimento da consciência outorga à ciência a necessidade de sua
emergência sob a forma abstrata do saber puro (das reine Wissen), ou da certeza que
não tem mais o objeto como um algo que lhe esteja ad-posto. A identidade que deveio
elimina do saber seu aspecto exclusivamente subjetivo com base na reflexão da
objetividade estrita que se resolveu na imediação, na unidade pura: o todo veio a se
produzir como o indistinto (Unterschiedslose). O puro saber carrega em si a completa
fusão do conhecer formal, enquanto atividade apenas subjetiva, na unidade do começo
que constitui a ciência; por esta via, a diferença concreta com respeito ao objeto está
suplantada enquanto se dava como referência a um exterior. Com a carência de
distinção resultante, a relação fenomenológica foi submetida à totalidade indiferenciada
do pensamento, a qual encontra no puro ser (reine Sein), por revelar justamente esta
indistinção e esta imediação, a sua melhor expressão. Eis aí a razão porque o ser é a
primeira determinação do conceito.
O puro ser, esta determinação que comporta em sua significação a totalidade
abstrata do pensar, igualmente “como o absolutamente vazio”,
111
exprime, também, a
ausência de oposição na qual se conclui o desenvolvimento da consciência. O
desenvolvimento das determinações lógicas, no interior do puro saber, se apresenta
como conhecimento científico absoluto, não mais condicionado pelo saber fenomenal
que caracterizava a consciência, na medida em que o saber do objeto, no curso da
experiência da consciência, desvanecia reiteradamente em um saber para a consciência
da dimensão essente do objeto. O conhecer formal da consciência é superado na
amplitude absoluta do saber puro, o qual se apresenta como
a certeza convertida em verdade, a certeza que, por um lado, não está
mais frente ao objeto, senão que o converteu em interior e o conhece
como a si mesma; e que, por outro lado, renunciou ao conhecimento
de si mesma como de algo situado frente à objetividade e que é sua
111
CL, La doctrina del ser, p. 97.
69
negação; desprendeu-se (a certeza) desta subjetividade e constitui
uma unidade com este seu desprendimento.
112
A fundamentação do começo científico se distingue, em Hegel, do procedimento
axiomático das ciências modernas, precisamente porque ele emerge como resultado
necessário do processo fenomenológico, consistindo num ponto de partida que não
necessita de uma justificação exterior, mas é co-originário ao saber puro. Esta ausência
de necessidade de uma demonstração no modo de uma fundamentação de uma
proposição absoluta como começo é ressaltada por Hegel quando afirma que compete a
nós, do ponto de vista metodológico, “apenas aceitar o que está em nossa presença”,
113
quer dizer, o resultado que se produziu como verdade. Como o começo da ciência se
inscreve na unidade indistinta (ununterschiedene Einheit) que veio-a-ser, onde a
oposição não mais interfere na relação de conhecimento, o saber se desdobra então,
nesta configuração que lhe é essencial, conforme um movimento de determinação
interna ao conteúdo que se absolutizou. Podemos ressaltar, aqui, as palavras de
Hyppolite quando afirma que “a lógica especulativa, o saber absoluto, é a reflexão das
determinações no meio universal, e não mais a reflexão subjetiva da consciência
enquanto tal”.
114
No intuito de expressar esta autodeterminação do conteúdo, que diz
respeito ao desenvolvimento imanente das determinações do pensar, podemos nos valer
das seguintes palavras de Hegel, quando ele afirma, a propósito do puro saber, o
seguinte:
agora se expandem nesse elemento os momentos do espírito na forma
da simplicidade, que sabe seu objeto como a si mesma. Esses
momentos já não incidem na oposição entre o ser e o saber,
separadamente; mas ficam na simplicidade do saber – são o
verdadeiro na forma do verdadeiro, e sua diversidade é só diversidade
de conteúdo.
115
112
Ib, loc. cit., p. 90.
113
Ib, loc. cit., p. 90. Cf. WL I, S. 68: “[...] nur auszunehmen, was vorhanden ist”.
114
HYPPOLITE, Jean. Logique et existence. Paris: Presses Universitaires de France, 1991. pp.
111-112.
115
FE, Prefácio, p. 41.
70
A passagem “ficam na simplicidade do saber” se refere ao modo como o
desenvolvimento do pensar se processa no âmbito da filosofia especulativa pura, onde
cada momento aparece como autodiferenciação da universalidade constituída, como
exteriorização determinativa do interior absoluto. O saber não é mais, agora, o ato de
sair de si em direção a uma heterogeneidade, a um além, mas permanece ainda em si
mesmo na diferença que lhe insurge através de um movimento de autoposição. Aqui se
funda o procedimento de demonstração próprio da ciência, tão caro ao pensamento
hegeliano, designado pelo termo alemão Darstellung – a ex-posição.
O caráter auto-apresentativo do pensamento, reivindicado pela concepção
hegeliana de exposição é mais bem compreendido no interior da discussão teórico-
metodológica que Hegel estabelece com a filosofia moderna e com alguns interlocutores
que lhes são mais próximos, tais como Reinhold e Fichte, a propósito de suas
perspectivas epistemológicas.
2.2 Juízo de entendimento e juízo do conceito
Uma característica que se atribui constantemente às manifestações do
pensamento filosófico na modernidade, que poderia ser tida como aquilo que reúne a
diversidade de filosofias num ponto comum, situadas entre Descartes e Kant, é a
preocupação com o comportamento (Benehmen) do conhecer. Por esta via, o saber
filosófico sofreu uma inflexão no que diz respeito ao horizonte do método. Em
71
contraposição ao modo de filosofar da Antigüidade, que consistia no esforço de revelar
e explicitar o princípio absoluto da totalidade do real, o filosofar dos modernos se
ocupava com os limites e a objetividade que circunscrevem a atividade de
conhecimento, mas na medida em que esta objetividade podia ser julgada enquanto tal,
ou apenas como produto da subjetividade ou do arbitrário.
116
Recai no eu o interesse da
investigação, e as doutrinas e tratados situados nesse período, que alcançaram uma
posteridade, contêm, em sua maioria, reflexões referentes à gênese, funcionamento e
natureza da faculdade do conhecer, motivo pelo qual, estas filosofias receberam também
a denominação comum de teoria do conhecimento. Esta tomada em consideração da
estrutura interna do conhecer, enquanto uma potência subjetiva, teve, para Hegel, o
mérito de pôr a “atividade subjetiva” como um
momento essencial da verdade objetiva, surgindo, portanto, a
necessidade de que se unam o método com o conteúdo, a forma como
o princípio. Assim, pois, o princípio tem que ser também começo, e o
que é anterior (prius) para o pensamento tem que ser também
primeiro no curso do pensamento.
117
A divergência com relação à questão da origem do conhecimento dividiu as
concepções em duas grandes linhas de pensamento. Por um lado, o racionalismo que,
baseado numa metafísica da subjetividade, conferia ao juízo de conhecimento uma
necessidade irrestrita, fundada na anterioridade lógica dos princípios constitutivos do
pensamento; de outro lado, o empirismo, que na sua expressão mais acabada e genuína,
116
Como diz Hegel: “foi essencialmente nos tempos modernos que foi suscitada a dúvida – e
sustentada a diferença – entre o que seriam os produtos do nosso pensar e o que seriam as coisas nelas
mesmas” (ECF I, § 22, adendo).
117
CL, La doctrina del ser, p. 88.
72
estabelecida pela crítica de Hume,
118
destitui o conhecer humano dos critérios de
validez absoluta (a universalidade e a necessidade), fazendo com que o conhecimento se
assente apenas numa universalidade finita que se erige arbitrariamente pelo hábito, a
partir da faticidade reiterada dos eventos da experiência. A filosofia crítica permanece
na tensão dessas duas grandes linhas e pode ser encarada como uma tentativa de síntese,
exatamente porque, para Kant,
119
a dimensão a priori do conhecimento está presente na
“origem transcendental” da síntese cognitiva, assim como a dimensão a posteriori está
salvaguardada no “começo empírico” da produção do conhecer.
Em ambas as vertentes, assim como no criticismo kantiano, há uma centralidade
na abordagem do juízo como operação fundamental do conhecimento, com respeito ao
qual a análise filosófica se prestava ora a mostrar a necessidade de conexão de conceitos
por síntese, ou por desdobramento tautológico, ora a desautorização do caráter a priori
de tal conexão presente no ato judicativo.
Como sabemos, a estrutura genérica do juízo se expressa na formulação A é B.
Nesta relação está implicada a atribuição de um predicado a um sujeito (subjectum),
uma conexão de “conceitos”. A forma do juízo se configura conforme a operação
gnosiológica que o produziu: quando o predicado se mostra apenas como um
desdobramento no conceito do sujeito, como um “prolongamento” conceitual de algo
118
A filosofia cética humeana se assenta fundamentalmente na crítica ao princípio de
causalidade, reivindicando a impossibilidade de que os eventos empíricos sejam constituídos por uma
conexão necessária passível de uma demonstração lógico-dedutiva. Segundo Hume, o que determina a
sucessão dos fatos empíricos é apenas o hábito, o qual produz a expectativa da repetição do evento,
sendo, para a razão, impossível apresentar esta conexão como uma constituição a priori das coisas
mesmas. O juízo de conhecimento revelaria somente uma conexão de conceitos a posteriori, da qual está
ausente uma rigorosa universalidade, dado que a generalização dos casos não passa de uma elevação
arbitrária do particular ao universal, baseada no método indutivo.
119
Kant afirma na introdução da Crítica da razão pura: “se, porém, todo conhecimento se inicia
com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio
conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e
daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis)
produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa
atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos para separá-los” (Cf. CRP, Prefácio, p.
36).
73
que estava necessariamente implicado no sujeito, o juízo é dito analítico; e quando no
juízo está conferida ao sujeito um atributo necessário que resida fora da definição
conceitual desse sujeito, de modo que o juízo produza uma real ampliação, e não apenas
um esclarecimento ou desdobramento de conceitos, ele é dito sintético. Grosso modo, a
polêmica epistemológica entre empiristas e racionalistas se construiu tendo em vista a
explicação da natureza desta ampliação implícita no ato sintético do conhecer. Na
célebre questão que Kant se pôs, como são possíveis juízos sintéticos a priori?, está
subtendida a pretensão da filosofia crítica em demonstrar a identidade originária
expressa na conexão conceitual do juízo não tautológico, que, em outros termos, se
apresenta como a pretensão de fundar, através de um procedimento reflexivo da
faculdade de conhecimento, a indissociabilidade dos termos “heterológicos” de um
juízo sintético.
A primeira observação crítica que Hegel endereça a esta concepção de
conhecimento que tem em seu centro a operação judicativa é o modo exterior como as
partes constituintes do juízo se relacionam:
no juízo, pensa-se ordinariamente primeiro na autonomia dos
extremos – do sujeito e do predicado; que o sujeito é uma coisa ou
uma determinação para si, assim como o predicado é uma
determinação universal fora do sujeito, por exemplo na minha cabeça;
depois essa determinação é reunida por mim com a primeira, e assim
se faz o juízo.
120
Os elementos do juízo, ordenados conforme esta lógica, se conectam como se fossem
identidades abstratas e independentes – sujeito em relação ao predicado –, que a
identidade judicativa só viria a pôr em contato extrinsecamente, como se, fora dessa
relação, ambos subsistissem autonomamente. O estado de estranhamento em que se
encontram imediatamente as determinações do juízo faz com que a necessidade da
conexão seja atinente apenas ao ato intelectivo da faculdade de conhecimento.
120 ECF I, § 166.
74
No contexto acima aludido, os conceitos que se combinam no juízo de
conhecimento são produzidos pela reflexão do intelecto sob a forma de determinações-
de-pensamento fixas. Tais determinações, derivadas da faculdade representativa que
estabelece o universal que lhes compete, dá-se através de uma mediação e de uma
negação da imediatidade dos dados da consciência, através da reflexão do sujeito na
coisa. A verdade do conhecimento aparece, aqui, na adequação entre a coisa e o
intelecto subjetivo (adaequatio rei et intellectus). Mas na medida em que a
representação deixa a coisa para o sujeito apenas na condição de coisa sua, a
universalidade que se efetua é apenas relativa e uma determinação exclusivamente
subjetiva. A universalidade fica restringida ao âmbito do pensar formal, o qual, nessa
postura, alija das determinações conceituais do entendimento o conteúdo que consiste
somente numa matéria externa. O pensar assume, desta maneira, o status de um
instrumentário categorial vazio responsável por elaborar a conformação do múltiplo
presente na objetividade em identidades abstratas, engendrando simplicidades
conceituais. O proceder formal, embora se apresente como um acolhimento e elevação
das determinações do empírico à forma da universalidade do pensar, se mostra
insuficiente ao tratar dos objetos supra-sensíveis que não se encontram na forma de uma
imediatidade empírica. Assim, ao tentar fazer a consideração verdadeira de
determinações lógico-ontológicas tais como infinito, finito, subjetividade, objetividade,
forma e conteúdo, tomando-as cada uma de per se, isoladamente, e conferindo a cada
uma um conteúdo conceitual autônomo, o entendimento as transforma em
determinações finitas, cujo teor antinômico promove a impossibilidade de estabelecer a
relação interna, já que uma radical separação e distinção, no tocante às mencionadas
determinações, garante a cada uma um estatuto lógico isolado e fixo, fazendo com
75
fiquem presas dentro de uma relação contraditória onde não é possível efetuar a
passagem de uma a outra.
A crítica à atividade abstrativa do entendimento, de transformar as
determinações-de-pensamento em conceitos autônomos, que são postos em equivalência
segundo o “padrão de medida” da consciência representativa, é desenvolvida por Hegel
até alcançar seu ponto de sustentação: a concepção formalista da lógica. Segundo esse
formalismo as determinações lógicas estão presentes na atividade de conhecimento
como formas vazias às quais vêm-a-ser preenchidas por um conteúdo exterior, numa
interação conformativa em que estes determinantes inteligíveis devem antes ser
encarados como “forma(s) inconsistente(s) indeterminada(s)”.
121
A separação entre
forma e matéria (Stoff) ocorre no interior desta concepção porque a lógica é entendida
como ciência que considera o pensamento reduzido exclusivamente à dimensão formal
da relação de conhecimento.
122
Sob esta perspectiva, a lógica se mostra pretensamente
constituída na ausência do segundo elemento (zweiter Bestandstück), o conteúdo
propriamente dito, o qual, por sua vez, tem existência autônoma “como um mundo
acabado, em si e por si, fora do pensamento”.
123
Para Hegel, a pretensão de
conhecimento levantada com base nesta compreensão da ciência lógica, enquanto esta
“faz abstração de qualquer conteúdo”,
124
resulta nula, pois esta diversidade da forma e
121
CL, Introducción, p. 59; SL, p. 12. O adjetivo presente no texto original que corresponde a
“inconsistente” é weich, que numa tradução literal figuraria no sentido de “mole”. O que Hegel pretende é
dar uma conotação plástica, no interior da concepção que ele critica, dessa relação entre forma e matéria
(cf. a respeito WL I, S. 37).
122
A título de ilustração podemos retomar a definição que Kant concede à ciência lógica: “os
limites da lógica estão rigorosamente determinados por se tratar de uma ciência que apenas expõe
minuciosamente e demonstra rigorosamente as regras formais de todo o pensamento” (Cf. CRP, Prefácio
da segunda edição, p. 16). Diz também Kant: “o problema que aqui levanto é simplesmente de saber até
onde posso esperar alcançar com a razão, se me for retirada toda a matéria e todo o concurso da
experiência” (Cf. Ib, Prefácio da primeira edição, p. 7).
123
CL, loc. cit.; SL, loc. cit.
124
Ib, loc. cit., p. 58; ib, pp. 10-11. Criticando esta completa abstração, Hegel complementa: “é
inapropriado dizer que a lógica faz abstração de qualquer conteúdo, que ensina somente as regras do
pensar, sem penetrar no que foi pensado, e sem poder considerar a sua natureza; posto que são o
pensamento e as regras do pensar que devem constituir seu objeto, neles a lógica tem o seu conteúdo
76
da matéria não é conciliada numa relação de verdade, e o amoldar-se do pensamento ao
segundo elemento, “que deve ser oferecido trazendo-o de outra parte”,
125
consiste, por
isso, somente numa modificação do próprio intelecto, sem que a atividade gnosiológica
adentre o interior do objeto em questão – “este permanece sendo, como uma coisa em
si, um absolutamente mais além do pensamento”.
126
Como no caso do isolamento mútuo de sujeito e predicado na formação do juízo,
a separação de forma e conteúdo do conhecer é proveniente do mesmo regime
abstrativo da atividade determinativa do entendimento. A mesma coisa acontece com a
determinação da infinitude que é posta em consideração numa relação de exclusão com
o finito. No dualismo finito-infinito, o próprio infinito vem a perder sua verdade
enquanto se encontra interrompido por um finito, deixando de ser aquilo que deve ser;
do outro lado, o puramente finito necessita de uma limitação imposta por um outro, e
este, por sua vez, se remete a um outro de si mesmo enquanto deve ser igualmente ser-
em-si determinado, no prosseguimento desta cadeia resulta que o finito requer para o
preenchimento de sua limitação sempre o além-de-si, que se revela inesgotável perante
toda e qualquer finitude.
Na condição de reflexão subjetiva sobre as coisas (Dinge) o trabalho do
entendimento consiste em submeter o concreto sensível a representações universais e,
através dessa operação, “superar o concreto imediato, determiná-lo e dividi-lo”.
127
Na
aplicação à finitude da esfera da sensibilidade, o conteúdo assoma, para o entendimento,
como o material sensível que acima indicamos, obrigando o objeto de conhecimento a
se decompor “na forma e no conteúdo, [...], em um vazio em-si e na determinidade que
característico imediato, e neles tem também aquele segundo elemento do conhecimento, a saber, uma
matéria, com cuja natureza deve preocupar-se”.
125
Ib, loc. cit.; Ib, p. 10.
126
Ib, loc. cit., p. 59; Ib, p. 12.
127
Ib, loc. cit., p. 61; Ib, p. 14.
77
a ele chega de fora; e assim, no pensar do entendimento o conteúdo é indiferente para
com a forma”.
128
Além deste aspecto de finitude do conhecer de entendimento, no qual a forma
está encerrada na unilateralidade do subjetivo, Hegel acrescenta uma outra razão que faz
com que o entendimento se reduza a uma potência que limita o conhecer: conduzir as
determinações-de-pensamento a uma relação de oposição inultrapassável. Cada
determinação de pensamento é delimitada em seu locus conceitual isoladamente, de
modo que subjetividade e objetividade, finitude e infinitude, forma e conteúdo recaem
cada uma fora da outra, fixados segundo a definição do intelecto “que só chega ao
subsumir do singular e do particular sob o universal”,
129
porém, relega cada
universalidade a um subsistir para-si-mesmo autônomo. “O pensar enquanto
entendimento fica na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação a outra
determinidade; um tal abstrato limitado vale para o pensar enquanto entendimento como
para si subsistente e essente”.
130
Na operação de predicação, tais determinações são
atribuídas a objetos, reconhecidos como entes de razão, tais como alma, mundo, Deus,
entretanto, justamente porque estas determinações já se encontram elaboradas pela
reflexão, seu emprego ocorre “exteriormente ao objeto”.
131
Além de que, como cada
determinação está inscrita no interior de um limite que é o seu, ao sujeito é agregado
apenas uma das determinações opostas.
“Na oposição ainda não resolvida”,
132
se observa as reverberações da metafísica
antiga no filosofar moderno. Esse procedimento epistemológico é denominado por
Hegel de dialética negativa, pois através da falsidade de uma determinação faz a
128
ECF III, § 467, adendo.
129
Ib, § 541.
130
ECF I, § 79.
131
ECF I, § 28 adendo.
132
Ib, § 27.
78
passagem imediata para a outra. Hegel relembra, a este respeito, a dialética de Zenão,
que argumentava a favor da imobilidade do ser baseado na impossibilidade do
movimento. Da mesma maneira, quando a investigação sobre a alma revelava a
contradição de pensá-la como uma entidade composta, acorria-se imediatamente à
determinação oposta e promovia-se a simplicidade a predicado necessário do elemento
psíquico. O conhecer, aqui, fica restrito ao “abstrato ou-ou”.
133
A Dialética transcendental de Kant teve, para Hegel, o mérito de apresentar a
insuficiência das determinações finitas do entendimento. Na seção “Antitética da razão
pura” da Crítica da razão pura, Kant nos mostra como cada determinação se aplica com
igual direito aos objetos da razão, e como esse antagonismo dos argumentos não pode
ser resolvido pelo entendimento, cuja aplicação se refere somente ao universo da
sensibilidade. A relação antinômica na qual as provas a propósito dos objetos da razão
incidem, revela a indiferença quanto à atribuição das determinações enquanto estas
padecem de uma distinção conceitual absoluta, que as fixa e as isola em suas
unilateralidades.
Ao passo que na velha metafísica, no exame dos objetos cujo
conhecimento metafísico importa, aplicava-se a eles de modo que
determinações abstratas do entendimento eram empregadas com
exclusão das determinações a elas opostas, Kant, ao contrário,
procurou demonstrar como às afirmações, que se produzem de tal
maneira, podem-se sempre contrapor afirmações de conteúdo oposto,
com igual justificação e necessidade igual.
134
Na medida em que os objetos supremos do conhecimento racional restam
injustificados, não acedendo ao interior absoluto do conhecer, permanecendo estranhos
ao pensar, como ideais da razão, a abordagem finita do entendimento se mostra
metodologicamente inadequada e, portanto, não constitui “decerto algo de último”.
135
133
Ib, § 80, adendo.
134
Ib, § 48, adendo.
135
Ib, § 80, adendo.
79
Contudo, isto vale apenas como o resultado negativo, estabelecendo a impossibilidade
para o entendimento de realizar plenamente o conceito de conhecer. O entendimento, “a
atividade do dividir”, elabora a “matéria” do conhecimento para o conhecer da razão, ao
produzir as determinidades e diferenciações que o conhecer requer. “Para o filosofar
requer-se antes de tudo que cada pensamento seja apreendido em sua precisão completa,
e que não se fique no vago e no indeterminado”,
136
pois, “onde não há determinidade,
também não é possível conhecimento. A pura luz é pura escuridão”.
137
Para Kant, embora estivesse conforme o agir natural da razão pretender alcançar
o termo da série de condicionamentos que falta ao conhecimento puramente empírico,
estava reservado ao saber especulativo desembocar necessariamente nas contradições
que a “Dialética transcendental” nos indicou. O que está ausente em Kant, de acordo
com Hegel, é a compreensão de que a contradição constitui a própria essência dos
objetos da razão. Em contraposição ao ou-ou da separação do entendimento, a razão se
posiciona como a potência conciliadora do nem somente isso, nem somente aquilo, ou, o
que é o mesmo, como a potência do também, tal como afirma Hegel na Enciclopédia:
o dogmatismo da metafísica-de-entendimento consiste em fixar em
seu isolamento as determinações unilaterais de pensamento, quando,
ao contrário, o idealismo da filosofia especulativa possui o princípio
de totalidade, e se mostra como dominando a unilateralidade das
determinações abstratas do entendimento. Assim, o idealismo dirá: a
alma nem é só finita nem é só infinita, mas é essencialmente tanto
uma coisa quanto também [als auch] a outra, e, por isso, nem [weder]
é uma coisa nem [noch] é outra. Quer dizer: tais determinações não
são válidas em seu isolamento, e só valem como suprassumidas.
138
Os resultados da filosofia kantiana dão margem ao aparecimento do ceticismo
com respeito ao poder da razão de conhecer o em-si dos objetos. Hegel considera que
este ceticismo é um momento necessário ao próprio constituir-se da razão, aparecendo
como momento dialético da negatividade do pensar frente às determinações-de-
136
Ib, loc. cit.
137
Ib, § 36, adendo.
138
Ib, § 32, adendo.
80
pensamento abstratas do entendimento. Deste modo, é premente para Hegel que a razão
não se conforme de modo a acolher imediatamente o ponto de vista limitado do
entendimento, mas que suprassuma os resultados deste último numa “unidade
orgânica”
139
(organische Einheit). O momento dialético da razão emerge justamente
como negação do modo como tais determinações se encontram autonomizadas. O
aspecto positivo que está implícito na dialética de Kant nos conduz necessariamente a
essa via conciliadora, onde não mais é possível para o pensar conservar-se na oposição.
Como nos diz Manfredo Oliveira,
a dialética tem como tarefa detectar contradições nessas categorias
assim pensadas, mas seu resultado é num primeiro momento apenas
negativo. Só o pensamento especulativo desenvolve uma concepção
afirmativa, que dissolve a contradição justamente porque é capaz de
conceber a unidade das determinações em sua contraposição.
140
Um dos desígnios da Fenomenologia reside nessa tarefa de conciliação. A
separação entre ser e saber, entre forma e conteúdo, entre sujeito e objeto, tem na
Fenomenologia o espaço de seu desaparecimento, assim como a Ciência da lógica
circunscreve o espaço em que estas determinações surgem no desenvolvimento do
conceito enquanto tal.
Inicialmente, a experiência do conhecer, tal como se processa na
Fenomenologia, põe a consciência diante de um material externo que ela toma como o
seu conteúdo, mas este conteúdo carente de forma não vale mais que um dado
indeterminado, portanto, no seu ser-em-si, ele é um nada. Em contrapartida,
na lógica especulativa, prova-se que na verdade o conteúdo não é
apenas algo essente-em-si, mas algo que entra através de si mesmo,
em relação com outro; assim como, inversamente, na verdade a forma
não só deve ser compreendida como algo não-autônomo, estranho ao
conteúdo, mas antes como o que faz do conteúdo o conteúdo, algo
essente-em-si, diferente de outro. O verdadeiro conteúdo contém,
139
CL, Introducción, p. 63; SL, p. 17.
140
OLIVEIRA, Manfredo. Para além da fragmentação. São Paulo: Loyola, 2002. p. 219.
81
pois, em si mesmo a forma; é a verdadeira forma e seu próprio
conteúdo.
141
A supressão do ponto de vista da consciência na Fenomenologia, ao alijar o
espírito do “essente estranho” que lhe afetava, faz com que, para a perspectiva do saber
puro, esse conteúdo que restava como que “subtraído” se apresente apenas como uma
aparência no caminho do desenvolvimento da forma absoluta: o conceito de ciência. É
preciso ter em mente que o desenvolvimento da forma aqui não se confunde com o
desenvolvimento unilateral da consciência, mas com a progressão em que a totalidade
da relação de conhecimento, que compreende sujeito e objeto, na sucessão de seus
momentos, faz a passagem para a identidade dos particulares envolvidos no processo.
Na Fenomenologia, o desenvolvimento do saber se apresentava como um
movimento negativo: o processo de constituição da verdade do novo objeto ocorria de
modo que a consciência se consolidava numa figura subseqüente porque a inverdade da
anterior revelava-se imediatamente para o seu comparar, quer dizer, cada nível que a
consciência alcança em sua experiência vem a se estabelecer como verdade somente
como destituição do caráter fenomenal do seu saber. Já na Ciência da lógica a
progressão do saber se processa como desenvolvimento interno do conteúdo, pois o
saber se destaca da determinação exclusivamente subjetiva que a consciência lhe
conferia. E se a forma se mostra como o conteúdo absolutizado, a passagem de um
momento do saber para o outro se produz segundo a autodeterminação da forma. Na
inexistência da relação de exterioridade, que é pertinente ao fenomenológico, a
inteligibilidade deste movimento está agora, no âmbito lógico do absoluto, “fundada” na
própria coisa (Sache): o absoluto em seu elemento simples do próprio pensar; e o des-
envolvimento desta se perfaz conforme uma auto-apresentação, que por estar isenta de
um conhecer exterior, é simplesmente uma Darstellung, uma ex-posição.
141
ECF III, § 383, adendo, itálicos nossos.
82
Os momentos da cientificidade, doravante, se depreendem do desdobramento
imanente da coisa. Cada determinação lógica advém como fracionamento da
simplicidade do pensar, mas de forma que esta separação se opera como um passar-
para-um-outro-grau do próprio pensamento, pautada na verdadeira atividade judicativa.
Neste momento, Hegel retoma o significado autêntico de juízo, tal como está indicado
na etimologia do termo Urteil, enquanto ursprüngliche Teilung, que expressa
justamente um corte ou divisão originária.
142
A relação entre os termos do juízo assume
uma outra configuração, já que os predicados que competem ao sujeito são atribuições
verdadeiras que ex-plicam o conceito, e não introduzidos na maneira de um
preenchimento de um sujeito vazio; não tem mais lugar, aqui, a conexão exterior de
conceitos. Aliás, para Hegel, o entendimento se equivoca ao afirmar que promove uma
síntese de conceitos diferentes, pois o que se revela no juízo é somente o ato de
particularização do conceito, portanto, da exteriorização de uma diferença que lhe é
interna.
Na distinção que Hegel apresenta com relação à concepção de juízo, está
presente o seu esforço para afastar o seu sentido de “conceito” (Begriff) da compreensão
moderna que faz com que este se reporte, sobretudo, às universalidades da
representação. Para o entendimento, o conceito significa, sobremaneira, “a abreviação
frente à singularidade dos objetos, tais como se apresentam numerosamente à intuição e
à representação”.
143
Em contraponto, Hegel incorpora ao Begriff o sentido grego de
lógos, como a inteligência que perpassa e unifica a totalidade do que é, no sentido de ser
a “razão do que é, a verdade do que leva o nome das coisas”.
144
142
Cf. a respeito ECF I, § 166.
143
CL, Prefacio-1831, p. 51.
144
Ib, loc. cit.
83
A reestruturação do juízo foi reivindicada, por parte de Hegel, já na sua
Fenomenologia. A predicação tal como ressalta imediatamente dos juízos empíricos,
que consiste na elaboração do material da intuição e da representação, concede ao
sujeito a significação de um substrato inerte e fixo ao qual os predicados vêm se aderir.
O sujeito da predicação figura, nesse esquema, como um suporte vazio que tem seu
conteúdo estabelecido somente no momento em que o predicado se lhe é superposto. O
termo do juízo que funciona como o subjacente (subjectum) é o pressuposto da
atribuição, mas, ao mesmo tempo, deve ser forçosamente, nessa operação, o carente de
conteúdo, conseqüentemente um nada de determinação. Hegel chama a atenção para
este elemento não mediatizado pelo pensar, o ser do qual se enuncia alguma coisa, que
redunda, ao final, numa palavra sem significação.
No juízo de entendimento não se efetua a passagem necessária do interior do
objeto do conhecimento para a sua determinação contida no predicado. A essência do
objeto permanece sendo uma “a-posição” do subjetivo: o objeto não chega a
“determinar-se livremente a partir de si mesmo”.
145
“Ao contrário, o verdadeiro
conhecimento de um objeto deve ser do tipo que se determina de si mesmo e não recebe
de fora seus predicados”.
146
Hegel reclama o predicado para o interior do sujeito, de
modo que a cópula “é” não institua uma relação de ligação externa, mas que expresse a
plena incorporação do predicado pelo sujeito, como sua substância indissociável. O
juízo, deste modo, fornece, somente aparentemente, a forma da cisão, pois que ele
constitui, em sua essência, o ato determinativo do si do conceito. Para isso,
necessariamente, o sujeito deve se encontrar libertado da sua existência enquanto um
essente indeterminado e tornar-se a fonte do movimento que parte de si mesmo em
direção a uma determinação que é sua. A condução da relação de atribuição exterior do
145
ECF I, § 31, adendo.
146
Ib, § 28, adendo.
84
juízo à atividade de diferenciação imanente ao conceito, marca a transformação dele em
proposição especulativa (spekulaiver Sätz).
Já explanamos como na crítica das determinações fixas do entendimento a
autoconstituição da razão tem seu momento dialético de negatividade frente às mesmas.
O resultado desta negatividade, porém, não se mantém no ceticismo, o que seria
rigorosamente de se esperar das conclusões que nos fornecem a dialética transcendental
de Kant, o que representaria somente uma negação abstrata que conduziria a um nada de
resultado, quando se tem em vista o uso puro da razão. A filosofia de Hegel, em linhas
gerais, corresponde ao intuito de apresentar o momento positivo compreendido nesta
negação, ou melhor, resultante dela, o que inclui necessariamente a compreensão da
potencialidade dessa negação. Esse momento em que o saber assume sua positividade é
o que Hegel concebe como sendo o momento especulativo da autoconstituição da razão,
a ciência posta em seu elemento, movendo-se na ausência de oposição. Por esse motivo,
a Fenomenologia constitui esse primeiro momento da filosofia de Hegel, como
superação das formas do entendimento e de positivação do científico, como negação
determinada das categorias fenomenológicas, que tem como resultado o puro saber.
A unidade do puro saber se põe como a totalidade do pensar que agora não sai
mais de si, pois que “converte o princípio lógico em um elemento”.
147
O desdobrar-se
do conceito deriva da plasticidade
148
que lhe é inerente, consistindo numa totalidade
autoformante, que ao se dar uma distinção, a conduz imediatamente para dentro de si,
quer dizer, introduz o sujeito no interior do predicado. A síntese que se realiza no juízo
garante sua necessidade justamente por ocorrer nessa imanência. “A divisão”, escreve
147
CL, Introducción, p. 79; SL, p. Com o termo Element Hegel pretende expressar o “meio”
universal no qual o conceito se move.
148
Hegel utiliza o termo plastisch tanto na Fenomenologia quanto na Ciência da lógica para
realçar o sentido do movimento de desdobramento imanente do pensamento.
85
Hegel, “é o juízo do conceito, ou seja, a afirmação da determinação que lhe é
imanente”.
149
Hegel, na esteira de Fichte, já havia reprovado Kant por não ter demonstrado
rigorosamente a gênese das categorias a partir do próprio pensar. As categorias seriam,
segundo a filosofia crítica, constitutivas da dimensão não intuitiva do conhecimento,
que teriam uma função mediativa perante o material da afecção sensível. O problema
que Hegel aponta é que somente a matéria sensível conferiria aos conceitos puros do
intelecto seus respectivos conteúdos. Hegel critica Kant por não ter observado que as
categorias, mesmo isentas desse substrato empírico, possuem, pelo fato de serem
determinadas, um conteúdo próprio. Kant introduz as categorias na consciência de si, o
que faz com que toda a multiplicidade que se reporta a tal reflexividade seja subsumida
na identidade do eu. As categorias seriam as espécies determinadas de referência que a
apercepção originária da consciência de si entretece com essa multiplicidade de
representações que provêm da experiência sensível; deste modo, a realidade objetiva das
categorias, enquanto conceitos puros do entendimento, está condicionada à sua
aplicação e, portanto, circunscritas pelo pensar subjetivo: resultando que se trata apenas
de “algo somente nosso [ein mir Unsriges]”.
150
A operação sintética produzida
imediatamente pela espontaneidade do eu torna-se, com tanto mais razão, para Hegel,
uma atividade completamente subjetiva, na medida em que não somente a forma
conceitual é atinente ao eu como também a própria matéria se mostra como uma
formatação da estrutura espaço-temporal da sensibilidade. Assim, tanto forma quanto
conteúdo se revelam como determinações, ou melhor, como produções da subjetividade
149
Ib, loc. cit.
150
ECF I, § 45, adendo. É oportuno considerar, no entanto, que por objetivo, Kant não entende
aquilo que se reporta imediatamente à exterioridade correlata da faculdade da percepção, mas aquilo que
é conforme à necessidade e universalidade do pensar. O problema é que, para Hegel, a universalidade e a
necessidade do pensar, na filosofia de Kant, são critérios, em última análise, atinentes somente à
dimensão subjetiva do pensar, constituintes da estrutura categorial da subjetividade transcendental.
86
transcendental. Enquanto essa matéria assoma na forma representativa, ela deve
necessariamente ser concebida como elaboração de uma afecção, cuja fonte não é senão
o próprio elemento incognoscível, a coisa-em-si. Os limites da síntese originária da
apercepção estão demarcados por esta substancialidade empírica inatingível. Por isso
que Hegel afirma que a identidade constitutiva da subjetividade transcendental se
transforma numa identidade relativa, que deixa como resíduo a coisidade mesma que ao
pensamento importa, positivando-se abstratamente, quer dizer, pressupondo, mesmo que
na forma de um absolutamente inacessível, aquilo que pretendia subtrair ao
conhecimento.
151
O juízo de conhecimento permanece preso a esta relação fenomenal, e a
incondicionalidade do pensar se encontra na dificuldade de se legitimar perante a
substância que está externada da empiria. Embora Kant tenha se preocupado em
demonstrar a dimensão a priori do conhecimento, pretensão a qual Hegel devota um
elogioso reconhecimento, no entanto, em seu pensamento a predicação contida no juízo
não acede à forma de uma síntese absoluta de sujeito e predicado. Está ausente em Kant
“a progressão do conceito [Begriff] para o juízo”
152
, isto é, o pensar permanece reduzido
151
Segundo Juan Bonaccini, a crítica hegeliana à abstração da coisa-em-si kantiana foi, em
grande parte, antecipada pelas considerações críticas de Jacobi no que se refere ao que ficou conhecido
como “o problema da afecção”. Em seu estudo Kant e o problema da coisa em si no idealismo alemão,
Bonaccini afirma que Jacobi imputava ao idealismo transcendental de Kant uma contradição que diz
respeito à origem da afecção dos objetos na sensibilidade. Embora a Crítica limitasse o conhecimento ao
universo das representações, ao mesmo tempo, no entanto, pressupunha indiretamente a fonte de onde
partem as impressões que afetam a sensibilidade, sendo esta última compreendida por Kant, antes de
tudo, como receptividade. Mas ao abrir espaço para se pensar a fonte das representações, permite-se ao
pensamento considerar a idéia de um fundamento da representação, e desta maneira, transpor, de alguma
forma, o domínio da representação, o que em estrita conformidade com o idealismo de Kant, não é
objetivamente legítimo. Nas palavras de Bonaccini, o problema, para Jacobi, se formula da seguinte
forma: “a incompreesão, o terrível mal-entendido consiste para Jacobi em falar em representação sem
poder admitir o que ela re-apresenta (por causa da tese da incognoscibilidade das coisas em si mesmas), a
não ser como outra representação. Representar, porém, supõe um representado que não se confunde com
a representação e que só poderia ser admitido, dito enquanto tal, se se admitisse que nosso acesso a ele
não é mediado por representação: caso contrário, jamais teríamos um critério seguro para distinguir o
objeto da sua representação” (cf. BONACCINI, Juan. Kant e o problema da coisa em si no idealismo
alemão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003. pp. 47-49).
152
ECF I, § 166, adendo.
87
à sua manifestação subjetiva, e o juízo se encerra nos limites do ato representacional do
entendimento.
2.3 O “problema” do começo na ciência
Fichte, numa postura polêmica para com o criticismo, reivindicava a
necessidade de demonstrar a emergência das categorias na imanência da atividade do
pensar posto como eu, já que este continha idealmente a identidade entre sujeito e
objeto implicada na relação reflexa da consciência de si. Hegel, entretanto, reprova
Fichte por ter tomado a consciência-de-si enquanto tal como ponto de partida, e por tê-
la mantida enquanto consciência pura em oposição à consciência empírica. A identidade
que Fichte alcança se configura como uma identidade sujeito-objeto subjetiva, na
medida em ela reside apenas na consciência pura. Segundo Hegel, Fichte permanece no
interior da filosofia da reflexão, e a identidade que ele postula degenera em identidade
relativa fixada na oposição absoluta ao não-eu objetivo.
Na Ciência da lógica Hegel chamará a atenção para o fato de que Fichte não
apresenta a progressão necessária da consciência empírica à consciência-de-si, percurso
que seria o adequado se ele desejava fazer com que o começo da ciência fosse um
imediato, no sentido de um ponto de partida incontestável e bem conhecido por todos.
Para que o eu seja o começo e fundamento da filosofia, é preciso sua
separação deste concreto, quer dizer, o ato absoluto por meio do qual
o eu se purifica de si mesmo e penetra em sua consciência como eu
abstrato. Sem embargo, este eu puro não é mais um imediato, nem o
eu conhecido; não é o eu ordinário de nossa consciência, à qual
poderia desvelar-se diretamente e para todos a ciência. Aquele ato
88
realmente não seria mais que o elevar-se à posição do saber puro,
onde desaparece a diferença entre o subjetivo e o objetivo.
153
Hegel denuncia que este começo pelo puro eu não constitui o verdadeiro imediato mas
que é produto de um movimento de mediação pautado na abstração da consciência
imediatamente empírica. As proposições que a intuição intelectual do eu engendra não
são adequadas para a fundamentação da ciência, posto que elas, em última instância,
constituem princípios relativos de uma subjetividade abstrata que se firma na cisão
absoluta para com a objetividade concreta, a qual está presente somente para a
consciência empírica. Na Fenomenologia, Hegel toma o caminho inverso ao de Fichte,
ao partir da consciência imediata para chegar à consciência-de-si, e desta última ao
conceito de saber, por entender que a consciência pura se constitui através do
desenvolvimento da consciência empírica.
154
A intuição intelectual se baseia no procedimento transcendental que consiste em
expor a intuição do intuir imediato da consciência empírica, no entanto, na filosofia de
Fichte, o ato transcendental supremo do pensar está restrito a uma reflexão subjetiva.
Seria válido, nesse contexto, se fazer perceber uma ligação, não menos importante, que
a Fenomenologia entretém com a Ciência da lógica, que reside no fato de que a
primeira se revela como o espaço de “preparação” para a introdução da consciência no
elemento lógico, tomando como tarefa a purificação da consciência empírica, enquanto
a segunda nos apresenta propriamente o espaço de construção ou, como diz Hegel, da
“reconstrução daquelas (determinações-de-pensamento) que têm sido postas em relevo
pela reflexão e fixadas por ela como formas subjetivas e exteriores à substância e ao
153
CL I, La doctrina del ser, p. 98.
154
Pontuamos esta diferença no que diz respeito ao ponto de partida do saber científico para
Hegel e para Fichte juntamente com Hyppolite, quando este afirma: “a diferença com Fichte ou Schelling
radica em que Hegel não parte da consciência-de-si, do eu = eu, mas chega a ela ao pretender seguir as
próprias marches da consciência não filosófica” (Gênese e estrutura, p.93).
89
conteúdo”;
155
nesse espaço em que a ciência se constrói efetivamente no seu
desdobramento especulativo, a consciência pura está presente sob a forma da intuição
transcendental absoluta, como consciência-de-si do absoluto.
Toda tentativa de fundamentar a ciência, ao partir da reflexão subjetiva, tal como
ocorre na filosofia fichteana, onde a diferença está presente somente idealmente ou,
melhor dito, subjetivamente, degenera numa construção expositiva finita. A finitude
desta fundamentação está baseada na oposição da identidade sujeito-objeto subjetiva à
identidade sujeito-objeto objetiva tal como esta última está presente na relação da
consciência empírica com a realidade objetiva que se lhe reporta. Quando a validade da
intuição transcendental está inscrita nesse âmbito relativo, a pretensão de fundar a
ciência através de uma proposição-fundante (Grundsatz) apresenta a contradição de
conformar o princípio absoluto dentro de uma limitação. Quando a reflexão se entende
positivando o absoluto, ela aparece ao mesmo tempo como somente um lado da relação,
e o que é posto como produto seu ressalta como distinto da atividade produtora, ficando
patente a carência de absolutez na proposição. “O absoluto deve ser refletido, posto;
mas deste modo ele não é posto, mas sim suprimido, pois, ao ser posto, tornou-se
limitado”.
156
Cabe à razão destituir a limitação que a reflexão subjetiva manifesta no seu
ato de fundar, “pois ela (a reflexão) permanece apenas no absoluto, mas, como reflexão,
opõe-se-lhe; portanto, para permanecer, deve dar a si mesma a lei de seu auto-
aniquilamento”.
157
Na proposição-fundante deve estar expressa a igualdade de forma e matéria do
pensar, mas sabendo que o ser-posto do princípio absoluto pela “mera reflexão”
158
155
CL I, Prefacio-1831, p. 52.
156
Diferença, p. 41.
157
Ib, p. 43.
158
Ib, p. 50. Com o uso do adjetivo blosse, Hegel pretende marcar a distinção, que ele tem
sempre em mente, entre a “mera” reflexão subjetiva e a reflexão infinita.
90
(blosse Reflexion) é o resultado de uma operação de aplicação da forma pensante à
matéria, a proposição redunda como produto unilateral do agir da forma, de onde se dá
o retorno para o ponto de vista do entendimento, e a identidade requerida para pensar
decai novamente à condição de uma abstração. Nesta proposição deveria estar
enunciada a originariedade do pensar, contudo, o que se conclui é que ela permanece
oposta ao absoluto e, assim sendo, seu ser-posto deve ser tomado como um
condicionado.
Em atenção ao caráter condicionado das proposições da reflexão, enquanto esta
se comporta como um instrumento de aplicação (Anwendung) ao absoluto, ocupada em
providenciar que o “absoluto seja construído para a consciência”,
159
e na tentativa de se
esquivar ao processus in infinitum para o qual apontava a reflexão, Reinhold propõe que
o começo da filosofia deva consistir em um ponto de partida provisório que viesse a
auferir verdade através de uma ulterior progressão da atividade do pensamento. O
princípio do filosofar se assentaria no desenvolvimento problemático que reside neste
procedimento de fundamentação.
160
O verdadeiro originário (Urwahren) que se alcança
segundo o curso desta progressão do pensar, já que acerca do ponto de partida o valor
de verdade deve estar em suspenso, só pode estar baseado numa escolha arbitrária, e se
ocorre em algum momento o acesso eventual à verdade que estava ausente, este
resultado não pode subtrair-se à medida de acaso que lhe consolidou,
conseqüentemente, a necessidade da originariedade se encontra elidida deste começar
159
Ib, p. 41.
160
O problemático, segundo a lógica geral, diz respeito àquelas espécies de juízos cuja cópula
expressa uma possibilidade apenas: A pode ser B. Tais juízos se distinguem dos juízos categóricos (A é
B) e dos juízos apodíticos (A deve ser B).
91
hipotético. “O que no final não deve mais ser hipotético, não pode mais sê-lo no começo
ou, o que é no começo hipotético, não saberia tornar-se categórico no final”.
161
Uma outra dificuldade que levou Reinhold a instaurar este modo de começar a
ciência tem a ver com o tratamento da faculdade de conhecimento como um
instrumento, e a necessidade que se tinha em fazer o exame desse instrumento com a
finalidade de mostrar o poder desse instrumento, enquanto ele deve ser capaz de
produzir verdades objetivas. Contudo, observa Hegel,
o exame do conhecimento não pode ser feito de outra maneira a não
ser conhecendo; no caso deste assim chamado instrumento, examinar
significa o mesmo que conhecê-lo. Ora, querer conhecer antes que se
conheça é tão absurdo quanto o sábio projeto daquele escolástico, de
aprender a nadar antes de arriscar-se na água.
162
O projeto reinholdiano, embora revele essa intenção de procurar uma solução para a
aporia da concepção instrumental do conhecimento, ao fazer do começo um ponto
neutro com relação ao conteúdo de verdade do mesmo, deixa espaço para que se possa
pensar com a mesma parcela de razão o ponto de partida como sendo algo não-
verdadeiro, ou melhor, uma falsidade, na medida em que a verdade está atrelada à
contingência que sucede ao começar, já que neste último está posto imediatamente
somente uma possibilidade de alcançar o verdadeiro. Estando a constituição do
verdadeiro às expensas dessa arbitrariedade e da falta de necessidade que esse começo
“sem outra pretensão”,
163
porém vazio, encerra, a ciência se encontra assentada numa
conexão que venha a se revelar eventualmente correta, quer dizer, está isenta da
161
L’éssence, p. 93. Neste mesmo texto Hegel endereça um comentário mordaz a esta
compreensão de Reinhold acerca do “fundar”: “inicialmente é preciso começar com uma forma
reconhecida como finita, ela não deve representar nada além de um ponto de partida aparentemente
arbitrário, que, em verdade, não tem valor por si mesmo, mas que se deve admitir momentaneamente,
pois que logo se verá sua utilidade, que se admitiu aceitar como provisória, problemática e hipotética sem
outra pretensão; este ponto de partida será legitimado antes na seqüência. Se ele nos permite chegar ao
verdadeiro, a gratidão pela indicação do caminho reconhecerá por necessário este ponto de partida
arbitrário e o observará verificado. Mas o verdadeiro não tem, absolutamente, nenhuma necessidade de
andadeiras, ele deve trazer em si o poder de defender-se por si mesmo” (cf. ib, p. 92).
162
ECF, § 10.
163
Cf. nota 130.
92
necessidade rigorosa que lhe imprescindível, pois o seu caminhar é um tatear que
depende do acaso, o qual unicamente possibilita a necessidade posterior de um retorno
ao começo, que não é mais aquilo do que se partiu, mas recebe, na fundamentação
retrospectiva, justamente aquilo que não constitui sua determinação por si mesmo, a
verdade. Por outro lado, Hegel reconhece que a investida de Reinhold não está
desprovida de um “verdadeiro interesse referente à natureza especulativa do começo
filosófico”,
164
pois apresenta, um tanto inconscientemente, a necessidade de que o
desenvolvimento do pensar seja um retorno ao fundamento.
Toda a discussão acerca do problema do começo do conhecer está pautada na
dificuldade que se oferece para a consciência de alcançar um posicionamento absoluto
frente às múltiplas manifestações do conhecimento, um ponto de apoio no qual deva
está sustentado a verdade do seu conhecer. Na consecução de tal fim, fica
impossibilitado para a consciência que ela se perca e se demore em considerações
prévias que procurem se esquivar ao interior imediato do saber; o conhecer só pode ser
fundamentado por si mesmo, pois como já o dissemos, nenhum exame é capaz de se
subtrair a esse condicionamento e permanecer científico. Muito menos pode a ciência
começar com o falso, tal como é comumente compreendido o falso, enquanto um
elemento absolutamente abstraído da verdade, o negativo puramente fixado e exterior.
O mero procedimento analítico, do qual faz uso a consciência representativa ao abordar
a imediatidade do ser que lhe contrapõe, também não é suficiente para fundamentar a
inteligibilidade do conhecer, já que conserva a relação de conhecimento na oposição
limitante. Ora, é certo que a consciência constitui a expressão imediata do conhecer,
portanto, é pertinente a ela essa preocupação com a constituição e com o desdobramento
do saber. Mas logo se coloca a dificuldade de que a consciência se manifesta também
164
CL, La doctrina del ser, p. 91.
93
multiplamente em seu ser ativo, podemos dizer que a consciência se mostra, em sua
relação com o objeto, ora como intuição imediata, ora como sentimento, ora como
elaboração representativa, ora como conceituante, de modo que não seria sem razão se a
pesquisa pelo fundamento último do conhecer se transformasse na tentativa de
demonstrar qual faculdade, ou qual modo de agir da consciência condiciona sua relação
com o objeto – seja o objeto um essente ou o próprio eu –, enquanto uma relação de
conhecimento. Mas o que se busca com essa demonstração é menos o princípio do saber
do que “um critério”
165
atinente à subjetividade.
Toda tentativa da subjetividade restrita de instaurar um começo esbarra na
imediatidade que todo começar comporta; por isso, Hegel afirma que “o começo é só
uma relação para com o sujeito”.
166
Esta imediatidade se encontra na consciência
segundo a sua necessidade de está referida a um outro, e essa referência aparece
originariamente como saber. Resta, para a consciência, apreender, no circuito de sua
experiência, a verdade condicionante deste seu conhecer imediato. Na Fenomenologia,
o começo do saber é justamente a imediatidade na qual ele se manifesta, que para a
consciência significa uma imediatidade que é para ela, mas do ponto de vista da relação
total de saber, a imediatidade é constituída pela relação obrigatória da consciência com
o objeto. A aparição do saber deve necessariamente circunscrever-se na imediatidade,
mas o saber irrompe nessa relação positiva sem conter ainda o movimento que produz
sua justificação.
A consciência está desobrigada de tomar para si um ponto de partida falso, pois
é impossível que o inteiramente falso se movimente em direção à verdade. O começo
hipotético também está renegado pela falta de necessidade que comporta. A consciência
reflexiva do eu também não nos pode oferecer esse ponto de partida, pois que se faz
165
Ib, loc. cit., p. 88.
166
ECF I, § 17.
94
necessário “o ato absoluto, por meio do qual o eu se purifica de si mesmo e penetra em
sua consciência como eu abstrato”.
167
O começo, contudo, se deve ser um imediato,
deve antes de tudo ser uma introdução à ciência que esteja ao alcance de toda e qualquer
consciência, deve ser um principiar universal e que esteja no conhecimento imediato das
consciências. Para Hegel, o começo como esse ponto de acordo universal só pode
consistir nessa relação mais “rudimentar” que a consciência entretece com o singular
sensível, a certeza imediata da consciência de ter diante de si um ser sensível. Como foi
dito, contudo, esse começo como imediato, deve obrigatoriamente se revelar
insuficiente para um saber absoluto, enquanto está carente do desenvolvimento que
supera a positividade imediata da relação sensível da consciência com o objeto. O
elemento da complexidade da imediatidade logo se introduz nessa primeira
manifestação do saber se lembrarmos que a consciência está constituída na relação com
o objeto não exclusivamente como saber espontâneo do mesmo, mas como saber deste
saber. Para a consciência esta diferença que lhe é interna compele-a ao movimento de
mediação que a faz sair dessa imediatidade inicial abstrata. O entrar em cena do saber,
na medida em que está vinculado à relação consciencial, e de acordo com a
imediatidade que acabamos de ressaltar, só pode significar a existência incompleta da
ciência, ou, nas palavras de Hegel: “pelo fato de entrar em cena, é ela mesma um
fenômeno [Erscheinung]: seu entrar em cena não é ainda a ciência realizada e
desenvolvida em sua verdade”.
168
A superação da imediatidade é um dos modos de se compreender a
Fenomenologia. A consecução dessa superação, tal como a obra referida nos ensina,
consiste no processo mediativo da experiência da consciência que se conclui em uma
nova imediatidade: o puro saber. O movimento fenomenológico aparenta partir do e
167
CL, la doctrina del ser, p. 98.
168
FE, Introdução, p. 65.
95
chegar ao mesmo ponto: a imediatidade. Porém, a imediatidade que está presente
inicialmente no saber da consciência é uma imediatidade que é para o saber, enquanto a
imediatidade do final, é imediatidade do saber que se fez totalidade essente, a
imediatidade da unidade absoluta do pensar. Na Ciência da lógica, podemos verificar
também semelhante movimento, que vai, dessa vez, da imediatidade do ser para a
imediatidade em si e para-si do conceito. Esta circularidade é a via que Hegel reconhece
como o movimento da verdade. O movimento circular do pensar é aquilo que estava
inconscientemente presente, acreditava Hegel, no “interesse especulativo” que movia
Reinhold em sua problematização do começo. O que Hegel reclama para a
compreensão do ponto de partida, em detrimento do problemático, é o fato de que a
verdade só pode consistir nesse movimento que tem sua fonte em si mesma e, embora
todo começo seja uma imediatidade, ele é, a despeito disso, o modo primeiro como a
verdade se posiciona, a “primeira verdade”.
169
Trata-se de uma primeira verdade porque
é ainda unilateral e indeterminada quanto à totalidade do conteúdo, podemos observar
essa incompletude durante todo o desenrolar do saber fenomenal, enquanto este se
conserva fenomenal. É por essa incompletude que ao começo compete também a
falsidade – com a significação de ser a existência do “conceito irrealizado”.
170
2.4 O problema da demonstração (Beweis) na ciência
Hegel insiste que um dos fatores que continua obsedando a compreensão do
procedimento demonstrativo da ciência é o fato de que o conceito de demonstração
169
CL, La doctrina del ser, p. 92.
170
FE, Introdução, p.66.
96
permaneceu atrelado ao método da filosofia da consciência, inclusive no idealismo
alemão, e requeria freqüentemente para a fundação do conhecimento a forma abstrata de
uma proposição do entendimento, cuja estrutura já explicitamos mais acima, e cujo
resultado vem a dar na busca infinita de fundamentação da proposição, pois uma
proposição exige sempre uma outra mais fundamental: “os fundamentos que utiliza (a
demonstração do entendimento) precisam por sua vez de uma fundamentação, e assim
por diante até o infinito”.
171
Quando Hegel nos informa que a Fenomenologia deve ser
compreendida como algo distinto de uma fundamentação da ciência, ele tem em vista tal
modo de demonstrar empreendido pelo entendimento, pois se conserva numa relação de
exterioridade com a coisa (Sache), e permanece na literalidade do projeto de construir o
absoluto para a consciência. É sabido que a constituição do saber absoluto, tal como se
depreende do desenvolvimento fenomenológico, desemboca no próprio
desaparecimento do ponto de vista da consciência, conseqüentemente, a consciência se
libera desta tarefa que não lhe compete, enquanto reflexão finita, que é a de conceber o
incondicionado.
O movimento da consciência, entretanto, é reassumido como momento
constitutivo do conceito na Lógica, não mais no sentido estrito de um desenvolvimento
fenomenológico, mas como momento necessário do desdobramento especulativo do
conceito. A incorporação da fenomenologia, como uma determinação que concerne ao
próprio movimento do conceito, como momento da totalidade do pensar, transforma a
imediatidade do começo, que antes era para a consciência o ponto de partida, num
elemento posto pela mediação do próprio pensar. O começo imediato da consciência é
condicionado a ser produto de uma mediação da atividade do pensar. Ora, se partirmos
da imediatidade do saber da consciência chegaremos à imediatidade do saber lógico, se
171
Ib, Prefácio, p. 58.
97
continuarmos o trajeto, em determinado momento retornaremos a esta imediatidade
inicial da consciência, mas agora no interior da cientificidade mesma, como
condicionado pelo pensar. Assim, a imediatidade unilateral do começo recebe sua
verdade e condicionamento no próprio pensar. O tocar-se do começo com o resultado é
conditio sine qua non da demonstração dialética. Só por este método a imediatidade
inicial da consciência pode ser justificada como uma relação que tem sua positividade
fundamentada no movimento do conceito.
O movimento do conceito não tem mais diante de si, segundo essa liberação da
imediatidade consciencial, qualquer exterioridade, mas aparece como o movimento
plástico da totalidade. Não cabe mais à consciência o labor de deduzir os momentos
necessários do conceito, e se falamos mais precisamente de uma consciência individual,
a reflexão pela qual ela capta este automovimento do todo, no qual ela mesma, enquanto
consciência, se encontra doravante inserida, não é mais que um simples apreender
(Auffassen), “uma reflexão, no sentido de um pensar superveniente [nachfolgend]”.
172
Em respeito a esse comportamento reflexivo absoluto da ciência, ou ao “meio absoluto”
no qual se resolveu o pensar, é que Hegel compreende movimento de dedução
(Deduktion) da ciência, a constituição de sua necessidade, como uma auto-apresentação
da coisa, isto é, uma Darstellung – a ex-posição.
Já tivemos a oportunidade de dizer, e agora voltamos a insistir, que a Ciência da
lógica apresenta a ciência em sua existência especulativa, e neste seu ser-aí, o
desenvolvimento da cientificidade se processa como desdobramento do afirmativo.
Estando o pensar circunscrito ao âmbito especulativo, as determinações que lhe
sobrevêm não insurgem mais em meio à oposição; cada momento para o qual o pensar
efetua uma passagem, está sujeito a conter a totalidade do pensar que acedeu, em sua
172
ECF I, Prefácio à segunda edição, p. 19.
98
progressão, a uma dada determinação. Em cada momento determinativo, o pensar repõe
sua universalidade e sua “inteireza”: “cada parte é ao mesmo tempo o todo, pois
consiste na relação com o absoluto”.
173
Tal método, pelo qual o pensar forja sua
necessidade, deve ser considerado, portanto, como uma gradual universalização do
conceito, que nada mais é do que uma unidade que comporta em si o princípio de
autodiferenciação: o conceito posto como sujeito. A graduação conceitual, enquanto
implica a recuperação reiterada da universalidade do pensar, em cada momento de seu
vir-a-ser puro, nos indica, por fim, por um lado, a particularização do conteúdo na
formalização totalizante, por outro, a “formalização” determinativa da totalidade do
conteúdo. Somente aqui está o espaço próprio do “juízo do conceito” ou da proposição
especulativa. Tal juízo realiza a démarche reclamada por Hegel, por se tratar de um ato
de conhecimento que expressa a totalidade da coisa, ou melhor, contém a identidade do
conteúdo e da forma, transformando o predicado no elemento ex-plicativo do sujeito.
Somente esta auto-atividade se mostra como a relação verdadeira em que o atributo
assume em si a significação de ser a essencialidade mesma e de conter, em sua
enunciabilidade, a natureza do sujeito absolutamente apresentada, ou seja, o sujeito se
transporta para o interior do predicado – se quisermos, ao afirmar isso, estabelecer um
contraste com a proposição de entendimento –, que é o que ressalta claramente das
seguintes palavras de Hegel:
o pensar representativo tem essa natureza de percorrer acidentes e
predicados; e com razão os ultrapassa, por serem apenas predicados e
acidentes. Mas agora é freado em seu curso, pois o que na proposição
tem a forma de um predicado é a substância mesma: sofre o que se
pode representar como um contrachoque. Tendo começado do sujeito,
como se esse ficasse no fundamento em repouso, descobre que – à
medida que o predicado é antes a substância – o sujeito passou para o
predicado, e por isso foi suprassumido; e enquanto o que parece ser
predicado se tornou uma massa inteira e independente, o pensamento
já não pode vaguear livremente por aí, mas fica retido por esse
lastro.
174
173
Diferença, p. 44.
174
FE, Prefácio, p.55.
99
O princípio que orienta em geral a divisão temática de uma obra filosófica, na
medida em que ele se reporta à arbitrariedade de um autor que projeta previamente toda
a economia interna do tratamento de um determinado objeto, segundo uma conexão que
se funda na expectativa subjetiva de que seja a via mais inteligível e adequada para a
tarefa da exposição, e que considera a possibilidade de outros percursos metodológicos
para a execução de mesma tarefa, não pode ter lugar na exposição do pensar enquanto
tal. O desenvolvimento do pensar produz suas determinações através de uma “gênese
imanente” (immanente Entstehung).
175
O curso dedutivo-apresentativo da ciência está
submetido à atividade judicativa absoluta, pois que “a divisão é o juízo do conceito”.
176
As divisões do conceito não podem estar, deste modo, previamente projetadas e, se por
acaso, são oferecidas como informação preliminar num prefácio, ou numa introdução,
aparecem, no entanto, como uma antecipação fornecida pelo o autor “que percorreu
todo o conjunto da elaboração e que, por conseguinte conhece de antemão a sucessão de
seus momentos e os informa [angeben], antes que se promovam [herbeiführen] por
meio da coisa mesma”.
177
Este é o motivo por que, para Hegel, o método se comporta
segundo o movimento da coisa, e é esse próprio movimento, de forma que, o objeto
constrói-se a si mesmo: para o provar (Beweisen) não resta mais nada do que “mostrar
[aufzeigen] como o objeto se faz – por si mesmo e de si mesmo –, o que ele é”.
178
A completa identificação entre o método e o progredir do pensamento está
vinculada à natureza do desenvolvimento científico que se estabelece como o
175
CL, Introducción, p. 72; SL, p. 27.
176
Ib, loc. cit., p. 79. Hegel critica a falta de necessidade imanente que se revela no modo de
exposição que se quer filosófica, a qual não chega a deduzir verdadeiramente os momentos do objeto
(Objekt), segundo uma rigorosa progressão lógica. Diz Hegel: “o ordenamento consiste em algo assim
como agrupar o análogo, antepor o mais simples ao composto, e outras considerações extrínsecas. Porém,
no tocante ao necessário nexo interior, se limita ao índice de determinações dos capítulos, e a passagem
de um ponto pra outro só se efetua porque logo se diz: Segundo capítulo; ou melhor: nos compete agora
considerar os juízos, e outras expressões similares” (cf. ib, loc. cit.).
177
Ib, loc. cit., p. 72; Ib, p. 26.
178
ECF I, § 83, adendo.
100
dinamismo da autoconsciência do absoluto, a qual toma sua interioridade como objeto,
mas cuja interioridade, ou sua dimensão simplesmente essente, se revela no aspecto
“complexo” do movimento conceitual que captura pelo saber o em-si da coisa ao
mesmo tempo em que mostra que esse em si é o saber. Em outras palavras, trata-se aqui
da reflexão absoluta que faz do saber sobre a coisa a coisidade mesma. Esta
diferenciação interna da substância enquanto tal, de conter no em-si a alteridade para-si-
essente, ou seja, a existência geral do saber, outorga à consideração da lógica uma
dificuldade característica, e que consiste no fato de que à medida que são postas as
determinações puras do pensar pelo saber, produz-se a imediata recuperação do saber
em tais determinações postas, o que significa que as determinações não são apenas
produtos na forma abstrata do externar positividades, mas “fatos de saber”: as próprias
determinações contêm em si o elemento positivante da cientificidade, o saber como
“superposição” da atividade e do produto.
101
III A Enciclopédia das Ciências Filosóficas e a recuperação do
particular
3.1 Significado geral da Enciclopédia
A Ciência da lógica apresenta a unidade eidética por meio da exposição dos
momentos que compõem a universalidade per-feita do conceito. Primeiramente o ser
aparece como a imediatidade simples depreendida do resultado produzido pela
superação das determinações fenomenológicas. A essência concede o momento da
mediação e da relação ao conceito, o qual efetua a per-feição desta “evolução” na
determinação da autoconsciência absoluta, isto é, no conceito enquanto tal. Porquanto
este movimento da idéia opera a universalização concreta que condiz ao ser-aí
verdadeiro do conceito, obedecendo a uma progressão que enriquece a imediatidade
inicial por meio de determinações necessárias e advindas conforme o movimento
interno de desdobramento, mostra-se, então, o movimento antes anunciado, como um
movimento de “complexificação” e, por conseguinte, como um movimento de “des-
abstração” do conceito, pois que tem como princípio de orientação, precisamente, o
afastamento, ou melhor, o comportamento “refutativo” para com a simplicidade e
imediatidade do começo lógico. Desta forma, o desenvolvimento do saber lógico-
especulativo coincide obrigatoriamente com a constituição da concretude essencial do
102
conceito.
179
Por outro lado, enquanto o lógico puro apresenta a “estrutura de totalidade”
do pensar sob a “forma” de “essencialidades puras” (reine Wesenheite),
180
compete,
também, ao lógico, tal como reconhece Hegel, sua dimensão “relativamente abstrata”.
181
Enquanto concretização do universal, o desenvolvimento especulativo que nos
oferece a lógica efetua, antes, a “des-particularização” do conceito, na medida em que
os momentos particulares correspondentes aos momentos da universalidade ainda
inconclusa, pois ainda não absolutamente concreta, a saber, o universal ser e o universal
essência, são negados em detrimento do “momento particular” no qual reside a
reconciliação per-feita do particular com o universal: a absolutez concreta do conceito
propriamente. Em verdade, não compete à lógica, ainda, o movimento que consiste na
recuperação do particular, e que será o desígnio da Enciclopédia. O saber em seu
substrato essencial, em sua unidade que se construiu em leis gerais do pensar puro, se
abstrairmos da expressão “leis do pensar” o aspecto instrumental e subjetivo que possa
transparecer, é o que nos apresenta a exposição da Ciência da lógica. Mas esta
exposição científica não compreende em si o “o desenvolvimento minucioso de sua
particularização”
182
efetuado pelo momento enciclopédico da ciência, que tem o sentido
de promover o acolhimento dos conteúdos dos saberes particulares em sua forma
conceitual, e de conduzir cada saber determinado a seu locus sistemático próprio.
179
Para Hegel, a refutação (Widerlegung) é o que impele o conceito à sua progressão (Fortgang)
e ao seu desenvolvimento, refutação esta que tem sua fonte ou seu fundamento na constituição
contraditória da idéia, que por meio do elemento negativo que ela contém em si põe a necessidade do “ir-
adiante” (Fortgehen) e do movimento que se realiza no sentido contrário ao que é abstratamente simples e
indiferenciadamente universal.
180
CL, Prefacio-1812, p. 39; SL, p. 7.
181
ECF III, § 377, adendo.
182
ECF I, § 16. A Enciclopédia, segundo Hegel, se restringe aos conceitos introdutórios e
fundamentais (Grundbegriffe) que dizem respeito a este movimento de particularização (Besonderung),
sendo que tal particularização é somente completada por suas obras subseqüentes e que não são mais do
que extensões do conteúdo que é apresentado de forma condensada e elementar pela Enciclopédia, tal
como a obra Princípios da filosofia do direito na qual está contido um “desenvolvimento minucioso”
(ausführlichen Entwicklung) que corresponde ao momento do “espírito objetivo” da Filosofia do espírito.
103
Enquanto o puramente especulativo presente na Ciência da lógica nos mostra os
momentos do universal concreto através da conexão essencial das determinações do ser,
da essência e do conceito, a Enciclopédia estabelece a relação necessária entre o saber
especulativo e as ciências particulares, deste modo, “reconhece o universal dessas
ciências – as leis, os gêneros, etc. – e o utiliza para seu próprio conteúdo; mas também,
além disso, nessas categorias introduz e faz valer outras”.
183
Assim, após a constituição
do ponto de vista do saber puro pela Fenomenologia, e a apresentação das
determinações de pensamento
184
inerentes a este saber puro pela Lógica, o percurso
sistemático da exposição da ciência exige que seja contemplada esta terceira etapa
metodológica baseada no acolhimento explícito, pela especulação filosófica, das
ciências que se encontram, ainda, como que “dispersas” em seus diversos “registros”
185
e em sua multiplicidade ainda não ordenada e não recambiada à unidade sistemática do
saber absoluto.
Obviamente a organização expositiva da Enciclopédia permanece em
prosseguimento em relação ao curso metodológico da Lógica. Isto significa que o
princípio de divisão interno do tratamento teórico-especulativo do “objeto” impõe uma
correlação conceitual e, portanto, estrutural à progressão determinativa dos momentos
da universalidade observados na Ciência da lógica: ser, essência e conceito. A
183
Ib, § 9.
184
A expressão “determinação-de-pensamento” (Denkbestimmung) Hegel a retoma de Schelling.
Nesta expressão está contida a compreensão de que as determinações do pensar não são somente os
produtos da atividade intelectiva da subjetividade restrita, mas concernem também às determinações das
coisas (Dinge). Por esse motivo, a categorialidade de tais determinações tem uma valência lógico-real
(Logish-Reell). Toda determinação-de-pensamento, entenda-se com isso algo subjetivo ou objetivo, ou
mais acertadamente, algo subjetivo-objetivo, é imanente à totalidade do lógos.
185
Termo utilizado por Marcos Lutz Müler na apresentação de sua tradução para a introdução da
obra Linhas fundamentais da filosofia do direito (Grundilinien der Philosophie des Rechts). Na
apresentação da referida tradução, argumenta Lutz Müller: “este é o título da obra (Enciclopédia das
ciências filosóficas) que procura sistematizar os conceitos fundamentais e os princípios racionais que
articulam os modos de explicação dos diferentes saberes nos seus respectivos registros e no todo do
saber, conceitos e princípios que são, para Hegel, ao mesmo tempo, as determinações essenciais da
realidade efetiva” (Cf.: MÜLLER, Marcos Lutz. Apresentação: um roteiro de leitura da introdução.
In: “Introdução à filosofia do direito”. Tr.: MÜLLER, Marcos Lutz. São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005.
p. 5, grifo nosso).
104
elaboração do sistema do saber, que prescinde também das formas científicas
particulares, submete a recuperação do particular ao mesmo “ritmo imanente dos
conceitos”
186
(immanentes Rhythmus der Begriffe), que não é senão o “pulso vital”
(Lebenspuls) da coisa mesma. Desta forma, a tripartição da Enciclopédia em Lógica,
Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito presta atendimento à mesma seqüência
lógica do conceito: 1) a imediatidade (ser), ou a forma pura do ser em-si; 2) a relação
(essência), ou ser exteriorizado como natureza; 3) o ser em-si-e-para-si (conceito), ou a
imediatidade automediada do espírito.
187
O tratamento dado às formas diversas do
saber, ou o ato de coligir que o método especulativo implica, distancia-se, pelo motivo
acima explicado, do procedimento enciclopédico vulgar que consiste na construção de
uma “arquitetônica” do conhecimento que se baseia na mera disposição e
arregimentação externa das ciências particulares, que nada mais é que “um agregado das
ciências, que são acolhidas de modo contingente e empírico, e entre as quais há algumas
que de ciência têm apenas o nome, embora elas mesmas sejam uma simples coleção de
conhecimentos”.
188
O liame extrínseco que a conexão enciclopédica não-especulativa introduz na
dispersão dos registros científicos resulta do acolhimento imediato que ela efetua dos
saberes, sem que o conteúdo dos mesmos tenha se sujeitado à atividade de negação
(Negation) e de elevação (Erhebung) própria à “consideração pensante” (denkende
Betrachtung) do saber filosófico. Esta unidade dada pela simples reunião (Sammlung)
não promove nenhuma alteração na relativa autonomia que os múltiplos saberes
estabelecem entre si e, sobretudo, não produz a necessária “mudança das categorias”,
189
quer dizer, permite que os conceitos abstratos com os quais trabalham as ciências
186
FE, Prefácio, p. 54.
187
Para detalhamento das distinções lógicas concernentes aos momentos eidéticos – lógica,
natureza e espírito – pode-se retornar à primeira parte do primeiro capítulo da presente dissertação.
188
ECF I, § 16.
189
Ib, § 9.
105
empíricas e formalizantes permaneçam inalterados em seu estatuto lógico. Sem a
purificação (Reinigung) e o reconhecimento do conteúdo de tais saberes, o princípio
enciclopédico não produz nada mais que uma operação de agregação das diversas
espécies (Arte) do conhecer de entendimento.
190
3.2 O proceder das ciências de entendimento
Ora, o conteúdo do conhecer em geral aparece primeiramente à consciência
como um dado (Vorhandenen), isto porque a matéria do conhecimento está previamente
dada no sentimento e na intuição, antes de ser formatada em gênero ou numa noção
universal. Nesta relação entre a subjetividade cognoscente e o objeto, o produto do
conhecimento consiste numa transformação do imediato que se opõe à consciência. A
elaboração, processada pela subjetividade, da matéria dada, de forma a constituir
conceitos universais, que a rigor, são somente noções genéricas, é o que se entende
comumente por conhecimento. Entretanto, através deste método de conhecer, o
imediato mesmo, ou, por assim dizer, a “matéria bruta” não acede mais ao âmbito do
conhecimento tal como era originalmente, a saber, pura imediatidade, mas corresponde
ao produto da atividade mediativa do conhecer, como algo que sofreu a interferência da
subjetividade. Por essa razão, o entendimento se reduz a produzir representações das
190
Ao final da introdução da Enciclopédia, Hegel chama atenção justamente para a má-
compreensão que pode resultar do fato de se pensar o desenvolvimento do conceito a partir da noção de
“divisão” (Einteilung). O movimento da idéia recupera em cada momento de seu desenvolvimento a sua
totalidade sob uma determinidade especial, isto se distancia da compreensão que reparte a idéia em
momentos independentes, uns em relação aos outros, pois que cada momento, ou círculo, como denomina
Hegel, contém em si a necessidade da passagem para um outro, sendo incorreto “colocar as partes ou
ciências particulares umas ao lado das outras, como se fossem apenas imóveis e substanciais em sua
diferenciação” (cf. ib, § 18).
106
coisas, e o saber que assim procede é, em essência, teoria representacional dos objetos.
O conhecimento, neste contexto, se apresenta como a atividade unilateral de um sujeito
filosofante que tem fora de si o conteúdo a ser transformado em determinação pensada.
Esta apropriação universalizante do “mundo” constitui, como o afirma Hegel, o “poder
absoluto”
191
(absolute Macht), na medida em que submete a multiplicidade infinita à
categorialidade e universalidade do pensar e, deste modo, a divide e a determina. Por
outro lado, enquanto esta universalidade respeitante ao “conceito” do entendimento põe-
se como “representação abstrata que pode ser atribuída aos casos singulares que lhe
estão subsumidos”
192
ou como a “nota comum
193
dos singulares , ela se limita ao
estatuto de noção genérica e, como tal, estabelece-se ao lado de infinitos outros
conceitos, com igual justiça, também genéricos, portanto, limita a universalidade à
condição de particular. “O universal, tomado formalmente e posto ao lado do particular,
torna-se ele mesmo também algo particular”.
194
Trata-se, aqui, para Hegel, da produção
do gênero (Gattung) pela reflexão subjetiva, a qual representa, em última instância,
apenas o primeiro movimento do pensar, aquele atinente à primeira negação da
consciência frente ao imediato.
A relação consciência-“mundo”, ou melhor, subjetividade-empiria nos mostra
que, primeiramente, o conteúdo do conhecimento é “captado” sob o modo do
sentimento ou da intuição sensível, contudo, na medida em que a universalidade é o
elemento da ciência,
195
a mediação da atividade cognitiva opera negativamente em
relação a este primeiro conteúdo e confere ao mesmo a forma representativa do gênero,
ou a do universal de entendimento. Ao julgar ser esta conexão sensível, presente na
191
PhG, Vorrede, S. 36.
192
Cf. MÜLLER, Marcos Lutz, op. cit., p. 8.
193
Id, ib, loc. cit.
194
ECF I, § 13.
195
Como expressa Hegel: “além do que, por residir a filosofia essencialmente no elemento da
universalidade – que em si inclui o particular [...]” (FE, Prefácio, p. 21).
107
relação imediata da consciência com os objetos, uma conexão original do
conhecimento, o entendimento, o que é mais patente nas filosofias ditas empiristas,
acaba identificando o conhecer e o representar, já que a elevação do conteúdo do
sentimento e da intuição não é senão a negação do imediato que subsiste fora do pensar.
A preocupação da razão não está em negar esta originalidade do conhecimento,
quando se considera o condicionamento da consciência na experiência. De fato, o
conhecer, do ponto de vista da consciência tem seu começo, ou sua “origem primeira”
(erste Entstehung) na experiência, esteja esta referida externa ou internamente à
consciência. O problema é que este começo não constitui a originariedade absoluta do
pensar, mas representa apenas, como o diz Hegel, “a relação para com o sujeito,
enquanto este quer decidir-se a filosofar”.
196
Sob esta perspectiva da subjetividade finita
a relação de conhecimento encontra-se instalada no âmbito da cisão, Hegel chama
atenção para fato de que nesta relação da consciência com o objeto está presente
somente “o primeiro conceito – e, por ser o primeiro, contém a separação [Trennung],
que o pensar é objeto para um sujeito filosofante (de certo modo exterior)”, ou seja, à
consciência se oferece previamente o ponto de vista segundo o qual o pensar se encontra
cindido na forma de um objeto que é para o sujeito. Em decorrência disso, pode-se dizer
que a consciência se põe a conhecer, certamente, por meio da excitação e do estímulo
(Reiz) externo.
197
A representação emerge como a expressão última deste conhecer que pressupõe
fora de si o conteúdo figurado na forma de um “fato de experiência” (erfahrenen
Tatsache), de um fato da consciência: o puro dado (Gegebenes). Mas enquanto o dado
196
ECF I, § 17.
197
Diz Hegel: “o nascimento da filosofia, [...] tem a experiência, a consciência imediata e
raciocinante, por ponto de partida. Excitado por ela, como por um estímulo, o pensar procede
essencialmente de modo a elevar-se acima da consciência natural, sensível e raciocinante ao sem mistura
elemento de si mesmo, e outorga-se, assim, inicialmente uma relação negativa de afastar-se, para com
esse começo” (ib, § 12, grifos de Hegel).
108
não pode porfiar-se na condição de um mero algo pré-existente encontrado-aí pela
consciência, sob pena de que para o pensar se constitua a contradição de um conhecer
finito, que tem ante si um elemento alógico, então à consideração pensante, isto é, à
razão, é dada a tarefa de subsumir esta cisão na imediatidade do conceito, subsumir este
que aparece como uma segunda negação, a negação da negação.
A segunda negação, por significar a auto-estruturação absoluta da razão, se
investe contra aquilo que o entendimento construiu de modo a recolher criticamente o
universo de representações no qual culminou o seu (do entendimento) agir.
O agir de entendimento encontra na multitude de fenômenos da experiência o
liame essencial e a universalidade que lhe concerne, reduzindo a experiência intra e
extra consciencial, conforme a potência da produção do gênero que lhe é ínsita, ao
mundo das leis e das causas universais.
198
O escopo universalizante do entendimento
acaba transformando todas as determinações de pensamento em conceitos fixos e
autônomos, de modo que a diferença de cada conceito é determinada de forma absoluta
em sua respectiva unilateralidade.
A ciência de entendimento ao lançar mão desse formalismo abstratamente
universalizante, divide a realidade em interior e manifestação, tal como expõe
detalhadamente Hegel na Fenomenologia quando fala de força e exteriorização. A
duplicação do mundo em fenômeno e lei que repõe, claramente, a lógica da
representação, está estruturada com base na relação de conceitos cujos teores já são
pressupostos imediatamente de maneira rígida e formal no momento da investigação. É
o caso, por exemplo, da física moderna que outorga leis universais à natureza baseada
numa concepção abstrata de espaço e de tempo, conceitos nos quais se revelam, quando
relacionados estruturalmente em teoremas, somente o aspecto quantitativo de suas
198
De acordo com Bourgeois, o entendimento age “seguindo a identidade redutora da
diversidade do conteúdo” (cf. Bourgeois, Bérnard, op. cit.).
109
significações. A crítica de Hegel à ciência de entendimento, ao se dirigir ao
procedimento de construção de conceitos da última, problematiza, assim, os elementos
basilares da sustentação axiomática das ciências, mormente na modernidade, tendo em
vista que o axioma não é senão uma relação entre conceitos.
Com a crítica à dimensão axiomática da ciência de entendimento, Hegel
pretende pôr em cheque o recolhimento imediato das determinações pensadas
diretamente da representação e, assim fazendo, reivindicar a necessidade de um saber de
totalidade que recupere em sua unidade, de um modo orgânico, a diferenciação
processada pelo entendimento e, “mediante o suprassumir dos pensamentos
determinados e fixos, efetivar e espiritualizar o universal”.
199
Uma ciência particular, ao se autonomizar frente a outras ciências particulares
de igual direito, institui sua unidade disciplinar através do mero ordenamento de seus
teoremas sem que suas próprias pressuposições se mostrem como justificadas segundo a
necessidade (Notwendigkeit), o que, para Hegel, só se dá quando a elaboração
(Umarbeitung) do saber persegue o nexo imanente do movimento do princípio
científico, buscando estabelecer cada saber “regional” em seu locus determinado
conforme a progressão do desenvolvimento do conceito. Dissociadas da unidade
conceitual que concede a cada qual sua posição (determinidade) na organização total do
saber, as ciências ditas particulares, tanto aquelas que contêm um momento
explicitamente empírico em seu proceder, como é o caso da física, da química e da
biologia, quanto aquelas que operam numa dimensão abstratamente formal, tal como a
lógica e a matemática, estabelecem entre si uma relação puramente externa. Isto porque
são manifestações do conhecimento que, por se manterem dispersas, carecem de uma
estruturação una que legitime a especificação de seus objetos e leis, estruturação que
199
FE, Prefácio, p. 39.
110
Hegel só admite enquanto uma teoria onto-lógica do ser, isto é, uma metafísica
especulativa que acolha em seu interior as distintas configurações do saber em si.
As ciências formais e empíricas mostram-se isentas da dimensão propriamente
fundante do saber, pois que seus princípios e leis são provenientes do operar
representativo do entendimento. A ausência do princípio científico que viria a dar uma
unidade à diversidade dos conhecimentos ressalta, muito notadamente, da separação
promovida entre empiria e metafísica, principalmente com o desenvolvimento do
empirismo e do criticismo modernos. Esta separação atinge sua maior clareza com a
ratificação da concepção construtivista da ciência por Kant, segundo a qual
a razão só entende aquilo que produz segundo seus próprios planos,
que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os
seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a
responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de
outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano
prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura
e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios,
únicos a poderem dar aos fenômenos concordantes a autoridade de
leis e, por outro, a experimentação, que imaginou segundo esses
princípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada,
é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita tudo que o mestre
afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as
testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta.
200
Nesta afirmação de Kant, a natureza aparece identificada ao conjunto de fenômenos
naturais, e não é senão um outro termo equivalente à empiria, cujas leis não expressam
mais que a verificação experimental das pressuposições prévias do entendimento, e que
têm por base a mesma fixidez acima indicada. O procedimento da construção abre
margem, por isso, à arbitrariedade e contingência daquilo que é hipotetizado, se
resumindo à mera constatação corroborativa ou não do objeto. A natureza, considerada
desta maneira, torna-se o grande “laboratório” do entendimento, ou seja, é transformada
no espaço de legitimação “das pressuposições e asseverações”
201
de uma dada teoria e
interpelada com base no pré-conceito do entendimento. Além de que, na formulação da
200
KANT, Immanuel, CRP, Prefácio, p. 18.
201
ECF I, § 1.
111
lei está enunciado um relacionamento estritamente analítico de conceitos, isto porque o
seu conteúdo é a expressão tautológica na qual a conexão é fundada numa falsa
diversidade, na oposição abstrata.
202
Assim, o movimento de demonstração da lei
aparece como o resultado acidental a partir de uma consideração exterior.
203
Neste procedimento ingênuo da ciência de entendimento, principalmente aquelas
que contêm uma dimensão expressamente empírica, o que se faz notar é o
condicionamento ao dado e ao previamente achado (Vorfindens), e o conhecimento se
produz, como já dito mais acima, através de uma elaboração representativa do imediato
oferecido pela experiência, sendo digno do estatuto restrito de uma simples elaboração
teórica pautada nos “pensamentos sobre o dado”.
204
Mas, se o dado é o “pré-
encontrado”, o “achado-aí”, então, o conhecer assume de chofre a significação de ser
uma operação imediata da consciência, e a sua necessidade não pode ser legitimamente
apreendida, que dizer, não pode ser mostrada a mediação que está implicada neste
operar.
205
202
Hegel tem em vista principalmente, com a crítica ao mundo abstrato das leis que o
entendimento forja, as ciências modernas da natureza, que na elaboração do conhecimento não chega a
mostrar o nexo imanente dos conceitos relacionados na lei e, quando pretende explicar (erklären) a
“realidade fenomênica” da natureza, não faz mais que deixar as coisas na oposição indiferenciada (“o frio
é a ausência de calor”), ou definir o objeto tomado em consideração pela mera re-denominação de sua
mesmidade (“o peso é a força que atrai os corpos para baixo” / “os corpos caem porque são dotados de
peso”). Sobre essa discussão da relação entre força e exteriorização, podemos nos remeter ao excelente
acompanhamento expositivo feito por Hyppolite (cf. Gênese e estrutura da Fenomenologia, pp. 133-154).
203
Esta crítica ao construtivismo da ciência do entendimento é bem explícita no pensamento de
Hegel, principalmente quando este critica o procedimento demonstrativo da matemática e da geometria,
as quais fundamentam suas conclusões e resultados por um método (caminho) que se revela externo à
própria coisa de que se partiu. A propósito, na Fenomenologia (pp. 43-46), Hegel chama atenção, a título
de exemplo, para a demonstração do teorema matemático que põe em relação os catetos e a hipotenusa do
triângulo, teorema que é demonstrado com base num prolongamento e projeções das semi-retas que
compõe a figura do triângulo, sem que tal construção contenha em si uma necessidade imanente expressa,
embora ela resulte numa conclusão correta, o que evidencia, para Hegel, a arbitrariedade do procedimento
demonstrativo. Afirma Hegel: “sem dúvida, como resultado, o teorema é reconhecido como teorema
verdadeiro. Mas essa circunstância, que se acrescentou depois, não concerne ao seu conteúdo, mas só à
relação para com o sujeito. O movimento da prova matemática não pertence àquilo que é objeto, mas é
um agir exterior à coisa [Sache]” (cf. ib, p. 43, grifos de Hegel).
204
ECF I, § 7.
205
Pois, afirma Hegel: “esse pensar da maneira filosófica de conhecer precisa, ele mesmo, tanto
de ser apreendido segundo sua necessidade como também de ser justificado por sua capacidade de
conhecer os objetos absolutos” (ib, § 10).
112
O conhecimento, circunscrito à representação, ainda que opere a negação da
multiplicidade “infinita” da empiria, produzindo as identidades dos juízos genéricos,
abandona o conteúdo da ciência ao relacionamento externo, o que pode ser observado
no caráter fixo de tais universalidades construídas e estabelecidas em suas autonomias
relativas, deixando-as figurar umas ao lado das outras, como identidades estáticas. O
limite deste conhecer, então, está posto neste esquadrinhamento abstrato do ser-aí da
realidade imediata que a consciência experimenta. Hegel reserva ao entendimento, em
razão desse seu procedimento, o epíteto de “tabelador”, por se obstinar nesta produção
ilimitada de definições e compara a sua obra (do entendimento) “a um esqueleto, com
cartõezinhos colados, ou uma prateleira de latas com suas etiquetas penduradas num
armazém”.
206
Esta mesma estaticidade das determinações finitas do entendimento é o
que “cristaliza” e retém no isolamento e na oposição conceitual os objetos supra-
empíricos do pensar, para o qual se endereça o supremo interesse do pensar (finito,
infinito, forma, conteúdo, sujeito, objeto, Deus, mundo, alma, substância, universal,
particular etc.). Este domínio metafísico do pensar não pode ser considerado tal como a
consciência considera as realidades imediatamente sensíveis e a multiplicidade de
fenômenos que a empiria comporta.
O conhecimento representativo situa-se, para o pensar verdadeiro, no âmbito da
cisão e da separação entre a subjetividade e a objetividade, pois se revela na relação
entre o elemento cognoscente e a imediatidade dada. A representação, enquanto se
funda numa alteração (Veränderung) do que é dado, deixa subsistir o indeterminado
fora do conhecer, se limitando a uma “interpretação” cognitiva das coisas. Os
pensamentos representados valem por subtrações (abstrações), no sentido de
determinações desprendidas da totalidade orgânica do conceito. A representação
206
FE, Prefácio, p. 49.
113
encontra sua finitude por ter como ponto de partida a referida separação, pois que o
sujeito de conhecimento lida precisamente com fatos da consciência. Mas a separação
não é senão a manifestação do próprio conceito num determinado momento de seu
automovimento, pois o que é concreto, como diz Hegel, “só porque se divide e se faz
inefetivo é que se move”.
207
A representação é, portanto, a síntese ainda imperfeita, mas
necessária, de sujeito e objeto, em relação a qual o conceito, em sua forma própria,
aparece como o perfazimento da unidade.
3.3 A recuperação do particular e o “fechamento” do percurso
sistemático da ciência
Embora o procedimento representativo das ciências de entendimento tenda a
finitizar os objetos supremos do pensar em noções genéricas, conduzindo o próprio
pensar a antinomias,
208
graças ao limite opositivo a que chega o entendimento, constitui
essa atividade abstrativa a posição do primeiro conceito – ainda que na forma
representativa, como “metáfora dos pensamentos e conceitos”
209
mesmos – “e, por ser o
primeiro, contém a separação, que o pensar é o objeto para um sujeito filosofante (de
certo modo exterior)”.
210
A reflexão do conceito está condicionada à necessidade desta
duplicação de si opositiva, como condição de sua diferenciação interna e de seu retorno.
207
Ib, loc. cit., p. 38.
208
Como já tivemos oportunidade de discutir no segundo capítulo deste trabalho.
209
ECF I, § 3.
210
Ib, § 17.
114
A subjeto-objetividade atinge perfeição sintética, tendo como momento de sua
realização o pôr-se do próprio conceito como objeto do conhecimento, destarte, como
alteridade a ser recuperada em sua efetividade concreta. “O ato livre do pensar é isto,
colocar-se no ponto de vista em que é para si mesmo, e por isso se engendra e se dá seu
objeto”.
211
A ciência de entendimento, em seu trabalho, expressa em seu conhecimento
representativo, este momento do recorte infinito que só ulteriormente aparece integrado
à organicidade do todo; atividade de recorte
212
que deve ser tomada como
particularização – ainda abstrata, é certo, pois que não aparece imediatamente em sua
associação substancial com a universalidade concreta – do conceito posto como
conhecimento e, ao mesmo tempo, como submissão inicial da “multiplicidade disposta
lado a lado”,
213
fornecendo, por esta via, o material sobre o qual a razão opera a síntese
especulativa.
As ciências empíricas, de um lado, não ficam no perceber das
singularidades do fenômeno; mas, pensando, elas elaboram o
material para a filosofia, enquanto descobrem as determinações
universais, os gêneros e as leis: preparam assim aquele primeiro
conteúdo do particular para que possa ser acolhido pela filosofia.
214
Para a apropriação representativa, o conteúdo do pensar funciona ainda como o
“seu”, ou seja, como determinação produzida por uma reflexão da consciência sobre a
coisa dada, por esse motivo, como conceito finito, conceito do entendimento, como uma
alteração subjetiva da coisa, permanecendo a universalidade produzida como identidade
formal que deixa subsistir o imediato. Eis a razão por que Hegel afirma que “o
211
Ib, loc. cit.
212
O termo “recorte” parece muito apropriado para exprimir o significado do agir de
entendimento, na medida em que tal atividade consiste no destacamento, isolamento e fixação das
determinações do pensar, na medida também em que nos remete à compreensão de um operar
instrumental e repetitivo, assim como à limitada perspectiva de seu foco: “o entendimento lança uma vista
geral sobre o todo, e vem pairar sobre um ser-aí singular do qual fala; quer dizer, não o enxerga de modo
nenhum” (FE, Prefácio,p. 51).
213
ECF I, § 12.
214
ECF, § 12.
115
representado se torna propriedade da pura consciência-de-si; mas essa elevação à
universalidade em geral não é ainda a formação cultural completa: é só um aspecto”.
215
As ciências do entendimento, enquanto lançam mão deste identitarismo formal,
só podem ser chamadas de particulares no sentido negativo do termo; deve-se, antes,
dizer que elas se encontram “particularizadas”, isto é, isoladas e externadas umas das
outras, não lhe competindo uma autêntica particularidade, tendo em vista que lhes falta
a reunião na totalidade orgânica de uma saber sistemático, que é a expressão verdadeira
do conceito que a si mesmo move, pois a pretensão de ser saber particular carrega
ineliminavelmente em si a relação de pertencimento ao saber mesmo, sem outras
determinações, ou se se quer, ao saber de totalidade. As ciências do entendimento não
são por si só capazes de se darem essa unidade, primeiramente pela essencial
particularidade que lhes compete, que diz respeito à determinidade de seus objetos,
segundo, porque esta unidade é dada na própria auto-fundação do saber, o que, devido a
tais ciências ter na representação o ser ponto de partida, não pode ser efetuada sem que
elas decaiam numa dogmática ou numa axiomática teórica.
A tarefa da Enciclopédia se justifica na retirada das manifestações determinadas
do conhecer do conceito desta dispersão, e no acolhimento, por meio de uma negação
conservadora (Aufhebung) sobre o que foi abstratamente particularizado, do concreto do
conceito que, até então, só acedeu à forma da representação. Esta negação não é a
destruição plena do universal do entendimento, mas a universalização concreta dos
conceitos unilaterais, na forma de uma identificação que supera a fixação opositiva. Esta
negação pressupõe uma recompreensão
216
dos significados limitados dos conceitos do
215
FE, Prefácio, p. 39.
216
Esta “recompreensão” atinge todo o domínio dos saberes que se tornaram reféns do
entendimento, e se pauta na reelaboração dos estatutos lógicos dos conceitos representativos,
reelaboração que Hegel denomina de reconhecimento. Antes de tudo este reconhecimento opera a
passagem (Übergang) de uma determinação estabelecida pelo entendimento à determinação oposta
116
entendimento e o estabelecimento da referência das determinações pensadas ao
universal verdadeiro, enquanto este é o lógico que perpassa a totalidade d’o que é, o
conceito (razão) do “conceito” (entendimento).
O trabalho enciclopédico consiste na assunção crítica das determinações
concretas do conhecer do conceito que o entendimento reteve na relação exterior.
O acolher desse conteúdo – no qual, graças ao pensar, são
suprassumidos a imediatez ainda aderente e o ser-dado – é ao mesmo
tempo um desenvolvimento do pensar a partir de si mesmo. Enquanto
a filosofia deve, assim, seu desenvolvimento às ciências empíricas,
dá-lhes ao conteúdo a mais essencial figura da liberdade (do a priori)
do pensar e a verificação da necessidade em lugar da constatação do
achado, e do fato-de-experiência; de maneira que o fato se torna a
apresentação e a reprodução da atividade originária e perfeitamente
autônoma do pensar.
217
Trata-se de “um desenvolvimento do pensar a partir de si mesmo” precisamente porque
o entendimento constitui um momento da própria autoconstituição da racionalidade do
conceito. A permanência na abstração e a decorrente contradição que acomete o pensar
que se demora no entendimento, põe a necessidade mesma da passagem dialética para o
momento positivo da especulação, realizada na identificação dos opostos, como
destituição de suas unilateralidades, logo, de seus estatutos “conceituais” fixos.
218
Por
correspondente, de modo que, por exemplo, finito-infinito, subjetividade-objetividade etc., são elevados a
uma unidade concreta, não sendo possível à razão manter estas determinações em suas oposições
limitantes, ou considerá-las individualmente em suas relativas autonomias, sem desembocar em
antinomias. Na lógica, esta unidade se processa entre forma e conteúdo, propiciando sua superação
enquanto saber puramente formal e instrumental. Na matemática, o que Hegel põe em cheque é a
inefetividade de seus conceitos e objetos, na medida em que esta ciência se atém ao que Hegel denomina
de “sensível abstrato e carente-de-ser-aí” (ECF I, § 19, adendo 2). Nas ciências da natureza,
principalmente na física moderna, Hegel problematiza os conceitos de tempo e espaço e o modo como
estes são empregados no relacionamento equacionário da lei, onde suas diferenças qualitativas não são
observadas. Mas o que há de comum, e o que perpassa todo esse domínio do saber carente de razão, é a
finitude que a “conceitologia” do entendimento incute nas determinações do pensar. O agir do
entendimento pode ser resumido nas seguintes palavras de Hegel: “o pensar enquanto entendimento fica
na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação à outra determinidade; um tal abstrato limitado
vale para o pensar enquanto entendimento como para si subsistente e essente” (ECF I, § 80).
217
ECF I, § 12.
218
A propósito, diz Hegel: “a dialética é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a
limitação das determinações do entendimento é exposta como ela é, isto é, como sua negação. Todo finito
é isto; suprassumir-se a si mesmo. O dialético constitui, pois, a alma motriz do progredir científico; e é o
único princípio pelo qual entram no conteúdo da ciência a conexão e a necessidade imanentes, assim
como, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação – não exterior – sobre o finito” (ib, § 81).
117
aqui se processa a reivindicada alteração das categorias e a introdução das “formas
peculiares”
219
do conceito.
Este “acolher do conteúdo e de suas determinações (do pensar)”
220
representa,
em verdade, um segundo acolhimento pelo pensar, portanto, deve-se dizer mais
exatamente que se trata de um re-colhimento, ou melhor de uma recuperação do
particular presente nas manifestações do conhecer, enquanto saberes determinados,
dispersos em seus registro e abstratamente particularizados e que, doravante englobados
e “trans”-situados no locus especulativo que o conceito impõe a cada um, aparecem, por
fim, como diz Bourgeois, como “particularização interior”
221
da totalidade.
Em contraste com a particularização externada do entendimento, a Enciclopédia
apresenta a particularização imanente do conteúdo, o que para Hegel equivale à
autodeterminação do conceito em seu movimento de desenvolvimento próprio. Nesta
autodeterminação estão implicados o re-ordenamento e a re-significação das próprias
ciências comumente denominadas de particulares, pois que a transformação do sentido
da particularização leva consigo a exigência de adequação à seqüência verdadeira dos
momentos particulares do conceito, como já o dissemos mais acima, de modo que não
só as “rubricas” dos saberes devem ser recompreendidas e, quando necessário, até
redenominadas – é o caso, por exemplo, da Psicologia, a qual Hegel afasta da
compreensão de uma mera teoria empírica das faculdades relativas à alma,
aproximando-a muito mais, com as devidas distinções, da Pneumatologia clássica, que
Hegel denomina de Psicologia racional. O saber que o conceito abrange e “posiciona”,
então, não é a disposição exterior e arbitrária da simples ordem, nem, igualmente, o
219
Ib, § 9.
220
Ib, § 12, parêntese nosso.
221
221
BOURGEOIS, Bérnard. A enciclopédia das ciências filosóficas de Hegel. Tr.:
MENESES, Paulo. Loyola: são Paulo, 1995. p. 410. (Texto contido no apêndice da tradução brasileira de
Paulo Meneses da Enciclopédia das ciências filosóficas).
118
recolhimento desordenado da totalidade dos saberes positivos, mas o reconhecimento da
particularidade positiva de sua efetividade. Em suma, “todo” saber é conduzido, pela
Enciclopédia, aos círculos, ou aos ciclos, que expressam a correta “determinização” do
saber aos particulares reais: o saber do saber puro (Lógica), o saber do saber na natureza
(Filosofia da Natureza), e o saber do saber no espírito (Filosofia do Espírito).
A organização enciclopédica mostra-se como o momento em que o saber assume
internamente em sua exposição a concretude que para a consciência aparecia como um
outro de si. No processo da construção sistemática, este terceiro momento se apresenta
em prosseguimento ao primeiro momento da superação da finitude da consciência
estritamente empírica, marcada por uma subjetividade unilateral, efetuada na
Fenomenologia, e ao segundo momento, onde é efetuado a tematização das
determinações puras do universal, condizente à Ciência da lógica, onde o saber se
expõe na dimensão depurada enquanto “idéia da idéia”.
222
O princípio que ordena este percurso sistematizante da ciência permite que,
oportunamente, possamos nos remeter à conhecida compreensão platônica do processo
metodológico necessário e destinado ao filosofar que tem por verdade ser a ciência
(epistéme) do absoluto (idéa). O método dialético tão bem delineado em sua forma
metafórica por Platão, através da narrativa alegórica da caverna, parece consistir no
próprio caminho tomado por Hegel, isto de acordo com a inteligibilidade que a
seqüência dos momentos de formação do sistema, na filosofia do segundo, revela.
Assim, poderíamos dizer que a constituição da ciência, em Hegel, apresenta
aquele duplo movimento representado na República, de ascensão e descensão dialéticas
ou, como nos faz lembrar o próprio Platão, a dupla passagem: “da luz à sombra, e da
222
Bourgeois, Bernard, op. cit., p. 420.
119
sombra à luz”.
223
Correspondendo a Fenomenologia ao momento da ascensão, da saída
da caverna, promovendo a destituição da fenomenalidade e da perspectiva finita atinente
à consciência presa às representações, às sombras, assim como também é posto fim na
separação entre mundo fenomenal (caverna), e realidade efetiva (o sol). A Enciclopédia,
por sua vez, nos mostra a descensão da filosofia e o retorno ao mundo finito, mas neste
retorno, o representar é posto em seu limite, enquanto produção imagética do
verdadeiro, – lembremos que Hegel confere à representação a qualidade de metáfora do
conceito –; porém, a descida resgata o representado, negando a finitude abstrata que lhe
impede a transformação em conceito, iluminando o mundo escuro da contradição
nadificante (o entendimento persistente).
224
Na “articulação” destes dois momentos
“situa-se”, necessariamente, a própria contemplação do sol, o momento da forma (idéa)
suprema, condizente com a Ciência da lógica, na qual o conceito se apresenta como
totalidade da forma, o conteúdo absoluto em sua simplicidade.
A comparação efetuada, contudo, tem uma função meramente “pedagógica” e
ilustrativa, como é característico aliás da utilização da imagem para compreensão do
conceito, já que “a ciência [...] só pode ser julgada a partir do conceito, enquanto sobre
o conceito repousa”;
225
o imperfeito que reside nesta explicação imagética do
verdadeiro método é a redução do movimento conceitual a uma figuração topológica, e
não apresentar os momentos do conceito como divisão que se funda em sua atividade
imanente de determinação, enquanto ele é subjetividade infinita.
226
223
PLATÃO. República. Tr.: ROCHA, Maria Helena da. 9 ed. Calouste: Lisboa, 2001. Livro
VII, p. 320.
224
Para fazer um paralelo ainda mais preciso entre o momento enciclopédico e a descensão
platônica, podemos nos reportar às seguintes palavras da República: “depois já compreenderia (o homem
que retornou à caverna), acerca do sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no
mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo” (Id., ib., loc. cit., p.
318).
225
ECF I, Prefácio à segunda edição, p. 31.
226
Para Hegel, na filosofia clássica, embora considerada já como reflexão especulativa, não se
encontra postulada a identidade de substância e sujeito e, portanto, não se chega, nela, à compreensão de
120
Podemos concluir, então, que à Enciclopédia cabe, portanto, este momento de
acabamento do edifício sistemático da ciência, e de dar cumprimento ao
estabelecimento do saber de totalidade pretendido por Hegel. Entretanto, cabe demorar-
nos ainda um pouco numa legítima objeção que eventualmente pode ser colocada:
embora a Enciclopédia vem a se revelar como este terceiro momento que perfaz o saber
em sua sistematicidade conceitual, parece que o próprio Hegel não chega a compreendê-
la de maneira definitiva como a exposição rigorosa na qual se processa o necessário
movimento de re-conhecimento dos saberes particulares.
A objeção acima está pautada na vinculação, que o próprio Hegel confirma,
entre sua obra e um objetivo de caráter bem mais externo ao interesse do pensar, que é
de fazer da Enciclopédia um fio-condutor (Leitfaden) para as suas preleções orais, fato
que é ratificado quando Hegel identifica sua obra ora a um ensaio (Versuch) ora a um
compêndio (Grundriss). Endossando esta objeção poder-se-ia aduzir, numa clara
confirmação de que Hegel não enxergava na Enciclopédia uma estruturação expositiva
tão rigorosa quanto a da Ciência da lógica e a da própria Fenomenologia, a seguinte
afirmação de Hegel: “se as circunstâncias tivessem permitido, eu poderia julgar mais
vantajoso, com referência ao público, fazer editar antes um trabalho mais desenvolvido
sobre as outras partes da filosofia,– tal como publiquei sobre a primeira parte do todo, a
Lógica”.
227
Tais palavras nos autorizam a crer que a Enciclopédia não se manifesta
ainda sob a perspectiva da per-feição exigida pela apresentação do saber científico, e
um absoluto pensado como processo e como sujeito de sua própria efetivação. Mesmo Platão, segundo
Hegel, teria permanecido numa dialética negativa, quer dizer, chegando somente a mostrar a
indissociabilidade das determinações do pensar (uno, múltiplo, ser, não-ser, mesmo, outro, movimento,
repouso etc), e que elas não poderiam ser pensadas em seus isolamentos sem resultar em contradição. Não
se encontra, ainda, em Platão, como quer Hegel, a síntese absoluta, expressão da especulação efetuada. O
tão celebrado Parmênides, que contém a exposição das relações contraditórias do que Platão denomina de
“gêneros do pensamento”, pode ser posto em paralelo, no que diz respeito ao seu resultado, com a Crítica
da Razão Pura, na medida em esta última obra também teve, para Hegel, o mérito de mostrar a finitude
que compete às determinações do pensar quando pensadas sob a perspectiva do “fixismo” abstrato.
227
Ib, Prefácio à primeira edição, p. 14.
121
que nesta obra está presente uma relativa separação entre forma de exposição e
princípio científico. Contudo, mesmo tomando em consideração essa nota crítica, não se
pode negligenciar o reconhecimento do elemento metodológico interno à obra,
ressaltado freqüentemente pelo próprio Hegel, “no que concerne às transições
[Übergänge] que só podem ser uma mediação a efetuar-se por meio do conceito”,
228
condizente ao desenvolvimento imanente que Hegel identifica com o modo exclusivo da
demonstração filosófica, o que já desconta o fato do estado condensado em que
aparecem os conteúdos, divididos em parágrafos, não contemplando em sua
extensividade o completo “movimento de particularização” que atende à exigência do
saber sistemático que prescinde do detalhamento (determinidades) exaustivo.
Porém, o que é objetivo deste trabalho não é a discussão sobre o grau de
perfectibilidade no qual se coloca a elaboração do sistema do saber, pois que, como diz
Hegel,
a ciência que recém começa, e assim não chegou ao remate dos
detalhes nem à perfeição da forma, está exposta à crítica por isso.
Caso porém tal crítica devesse atingir a essência mesma da ciência,
seria tão injusta quanto seria inadmissível não querer reconhecer a
exigência do processo de formação cultural [Bildung].
229
O problema da perfectibilidade não impossibilita uma profícua discussão, que
apresentamos aqui, sobre o movimento metodológico de constituição da própria ciência,
e da evidenciação, que é o mais importante, da necessidade desse trajeto resultado da
filosofia hegeliana, assim como da consideração deste movimento como automovimento
do conceito, e como o desenvolvimento próprio do filosofar que quer se tornar saber
efetivo, “posse” da coisa (Sache), a saber: ultrapassar a finitude imediata do empírico,
progredir nas determinações “universalíssimas” do pensar e retornar aos conteúdos da
228
Ib, loc. cit., p. 14.
229
FE, Prefácio, pp. 27-28.
122
consciência reflexiva finita de modo a reconhecê-los em sua dimensão de verdade, quer
dizer, trans-formar estes conteúdos em determinações imanentes do conceito.
Somente ante este esclarecimento do processo constitutivo do sistemático do
saber, poderemos nos ater com mais profundidade ao problema que se conecta
substancialmente com o fato desta constituição: a relação da per-feição da ciência com
o tempo presente, e, através da compreensão desta relação, a qual pode ser transposta
para o relacionamento entre o que Hegel concebia como “espírito da época” e a filosofia
mesma, encetar uma problematização fundamentada sobre o saber do eterno (a ciência)
e a natureza do seu “condicionamento” ao finito e ao temporal, seria melhor dizer, a
necessidade desta relação essencial entre o eterno e o temporal. Quanto à questão do
grau de perfectibilidade da tarefa sistemática, há que se desculpar Hegel fazendo uso de
suas próprias palavras:
O autor, considerando a magnitude da tarefa, teve que se dar por
satisfeito com o que pôde fazer, na situação de uma necessidade
exterior, da inevitável distração devida à magnitude e à multiplicidade
dos interesses da época e, inclusive, com a dúvida se o tumultuoso
ruído do dia e a ensurdecedora loquacidade da imaginação, que se
jacta de limitar-se a isto, deixa, todavia, lugar para o interesse dirigido
até à serena calma do conhecimento puramente intelectual.
230
230
CL, Prefácio-1831, p. 55.
123
IV A constituição da ciência e o tempo presente: O espírito do
tempo e a filosofia
„Die Gegenwart ist das Höchste“.
G. W. F. Hegel.
4.1 A exigência posta na época de Hegel da unidade especulativa da
razão
A transformação da filosofia em ciência e a sua estruturação em um sistema do
saber, carrega em si a re-significação, de acordo com Hegel, de seu estatuto, para além
da compreensão que a própria etimologia transmite, pois que o amor à sabedoria,
phílos-sophía, torna-se posse efetiva da coisa (Sache) ou, simplesmente, saber.
231
Esta
mudança estatutária do saber filosófico está relacionada, no pensamento de Hegel, a
uma exigência posta em seu próprio presente, no qual se mostra perfazido os momentos
do automovimento do conceito. A filosofia aparece então como o “império de idéias”
face à realidade que “efetuou e completou o processo de sua formação”.
232
Por um lado, esta exigência de elevar o tempo ao conceito se depreendia, para
Hegel, da necessidade, requerida pela razão, em superar a própria cultura científico-
filosófica de sua época, na medida em que esta cultura recebeu sua expressão mais
determinada somente no modo de uma teoria da representação e, como cultura do
entendimento, permaneceu fixada na cisão entre o conhecimento e o absoluto.
233
231
Afirma Hegel: “[...] chegou o tempo de elevar a filosofia à condição de ciência” (cf. FE,
Prefácio, p. 23).
232
PFD, Prefácio, p. XXXIX.
233
Mesmo nas expressões mais acabadas desta cultura filosófica da época de Hegel, pelos
sistemas filosóficos de Fichte e de Schelling, subsiste a referida separação; em Fichte, porque a identidade
124
Entretanto, o resultado a que chegou o proceder de entendimento se identifica com o
próprio momento negativo do processo de autoconstituição da razão e, na medida em
que é demonstrada a patente nulidade das determinações do pensar mantidas em suas
unilateralidades, estabelece imediatamente a necessidade da conciliação destas
identidades abstratas através de uma identidade superior e concreta, ensejando a
transformação da identidade de entendimento em identidade da razão, pondo o
momento propriamente especulativo do universal que se reconcilia com sua
particularização e chega a ser universal concreto.
Por outro lado, as modernas relações sociais revelam como seu princípio interno
o retorno da particularidade à universalidade, isto porque o desenvolvimento da
sociedade civil-burguesa, na medida em que abriga em si a extrema particularização do
conceito, como totalidade de relações organizadas com base no interesse privado dos
indivíduos, propicia, ao mesmo tempo, a constituição de uma universalidade mais
determinada, na medida em que a busca pela satisfação particular, implicada na
estruturação do sistema de carências, promove, ao mesmo tempo, pela mediação das
relações de trabalho, um atendimento à “universalidade das satisfações”,
234
ou
precisando com Hegel, “a particularidade restringida pela universalidade é a medida
exclusiva pela qual cada particularidade fomenta o seu bem-próprio”,
235
de modo que, o
aprofundamento destas relações culmina na negação imanente do próprio particularismo
e em seu retorno ao universal. Um universal não mais pensado abstratamente, como
da objetividade e da subjetividade se limita a uma síntese ainda subjetiva e, em Schelling, porque o
conhecer é tomado em sua forma imediata como intuição intelectual, “esta intuição que não se conhece a
si mesma é o princípio de que se deve partir como de uma premissa absoluta; ela mesma é, pois,
simplesmente intuitiva, como um conhecer imediato, não como o conhecimento de si mesmo; em outros
termos, não conhece nada, e o seu intuído não é um conhecimento; são, no melhor dos casos, belos
pensamentos, mas nunca conhecimentos” (LHF III, Conclusión, p. 516). Além do mais, para Hegel, o
conceito de substância, em Schelling, se transpõe diretamente da representação para a consideração do
pensamento, sem sua devida transformação em subjetividade infinita.
234
AQUINO, J. E. F. Diferença e singularidade: notas sobre a crítica de Hegel a Spinoza.
Philosophica, Faculdade de letras de Lisboa, Lisboa, nº 28, 2006.
235
LFFD/SC, § 182, adendo.
125
aquele que se mostrava operante na experiência social da pólis, a Cidade grega, mas um
universal, agora, compreendido como especulativo, como retorno do particular ao
universal, o que Hegel denomina de singularidade, o momento mais concreto e, por isso
mesmo, mais verdadeiro da universalidade do conceito. A presença deste
automovimento lógico-real do conceito em sua determinação mais concreta é o que leva
Hegel a afirmar que o mundo moderno, “pela primeira vez, faz justiça a todas as
determinações da idéia”.
236
Esta reflexão que a particularidade opera em direção à
universalidade é produzida tendo como ponto de partida, também, a separação que está
posta na racionalidade de entendimento – o particularismo – ínsita às modernas
sociedades civil-burguesas, e por isso, tida como superação dessa mesma sociedade do
entendimento.
É justamente no sentido de expressar esta exigência de seu tempo, a superação
do entendimento, que Hegel dedica grande parte do primeiro prefácio (1812) da Ciência
da lógica. Neste texto, afirma Hegel:
a comparação entre as formas [Gestaltungen] a que tem se elevado o
espírito do mundo prático e religioso e o espírito da ciência, em
qualquer classe de consciência, real ou ideal, e a forma em que se
encontra a lógica, que é a consciência da essência pura do espírito,
demonstra diferenças demasiado grandes para que não ressalte, com
imediata evidência, mesmo na consideração mais superficial, que esta
última consciência é, em absoluto, desproporcionada [unangemessen]
em relação a ditas elevações e indigna delas.
237
O termo unangemessen, aqui, alude a uma defasagem presente no interior do
próprio espírito entre o conjunto de suas manifestações, referentes a sua “relativa”
dimensão prática, e o ponto de vista do puro pensamento que constitui a perspectiva do
lógico. Esta “desproporção” indica, em outros termos, o modo im-per-feito no qual o
conceito de espírito se apresenta, isto porque a realidade “imediata” do espírito aparece
isenta da idealidade que o constitui: a ciência, ou melhor, o seu auto-reconhecimento. A
236
Ib, loc. cit.
237
WL I, S. 46; SL, p. 22; CL, p. 68.
126
tarefa (Aufgabe) do pensamento, de acordo com Hegel, estaria em, através de uma re-
forma substancial da ciência lógica, con-formá-la ao “novo espírito surgido na ciência e
não menos na realidade”
238
e, na medida em que Hegel identifica a ciência lógica com a
metafísica e a filosofia especulativa pura,
239
podemos entender a mencionada “tarefa”
do pensamento como a própria tarefa da filosofia. Esta tarefa, que consiste em conduzir
as “transformações universais”,
240
não apenas sob a perspectiva do espírito teórico, mas
também, do espírito prático, que se operaram no tempo presente a Hegel, ao ponto de
vista científico do saber filosófico, não pode ser entendida se não for tomada como uma
exigência posta pelo próprio tempo presente. Esta exigência da cientificidade, feita pelo
tempo presente, se baseia no cumprimento, como é importante reafirmar, dos momentos
do conceito – universalidade, particularidade e singularidade, como retorno à
universalidade –, cumprimento este que Hegel situava historicamente em sua época. A
realidade se apresentava, finalmente, segundo Hegel, em sua estrutura especulativa. A
ciência surge, então, como a “coroa de um mundo do espírito”.
241
A relativa inadequação entre o desenvolvimento real do espírito e a perspectiva
da ciência pode ser também ratificada pela passagem inicial do mesmo prefácio de
1812:
a completa transformação [Umänderung] que a maneira de pensar
sofreu entre nós, desde aproximadamente vinte e cinco anos, o ponto
de vista superior que a autoconsciência do espírito alcançou sobre si,
neste período de tempo, produziram, até o presente, pouca influência
sobre a configuração [Gestalt] da lógica.
242
Desta passagem se depreende igualmente o que vem a ser para Hegel a “justificativa” da
exigência (Forderung) de uma re-elaboração (Umarbeitung) do saber lógico. Devido a
238
CL, Prefácio-1812, p. 37; SL, p. 4.
239
Cf. WL I, Vorrede-1812, p. 16; CL, p. 38; SL, p. 5: “A ciência lógica, que constitui a própria
metafísica ou a filosofia especulativa pura [...]”.
240
CL, Prefacio-1812, p. 37; SL, p. 4.
241
FE, Prefácio, p. 27.
242
SL, Préface-1812, p. 1; CL, p. 35.
127
essa escassa influência que as novas perspectivas teóricas
243
da época de Hegel
produziram sobre a ciência lógica, punha-se a necessidade de operar a
“correspondência” – que é correspondência do espírito a si mesmo – desta mesma
ciência com as transformações substanciais que afetaram o espírito e que já se faziam
perceptíveis na efetividade ainda não reconhecida do mesmo. Aqui Hegel insiste, ainda,
na patente “assimetria” que se mostra no desenvolvimento de determinados domínios do
espírito em comparação com o conhecimento lógico presente.
Quando Hegel nos diz que a “a cisão é a fonte da necessidade da filosofia e,
como cultura de uma época, o lado não livre e dado de sua figura”,
244
ele se remete
precisamente a essa diferença, que na esfera do espiritual, dá-se como separação entre
substância e autoconhecimento, separação que é expressão do conhecimento
representativo e finito que mantém o conhecer ante uma alteridade não supassumida: a
imediatidade. Entretanto, enquanto a persistência no ponto de vista do entendimento
conduz necessariamente ao ceticismo abstrato, como nulidade daquilo que foi posto
pelo conhecer intelectivo, é preciso negá-lo em proveito do ponto de vista superior da
razão, e pôr a atividade do entendimento como agir da razão,
245
pois “elevar-se sobre
aquelas determinações (as do entendimento), até chegar a conhecer o contraste contido
nelas, é o grande passo negativo até o verdadeiro conceito de razão”.
246
O saber filosófico se constitui, então, como um procedimento de elevação e de
negação determinada do simples conhecer de entendimento; desta forma é que Hegel
243
Essas “novas perspectivas teóricas” se referem principalmente ao que se denominou de
Idealismo alemão, que teve como expressões substanciais as filosofias de Schelling e de Fichte, e como
mais notáveis interlocutores as figuras de Jacobi e Reinhold. Assim com também está compreendido
nesse universo teórico o diálogo com o criticismo de Kant.
244
Diferença, p. 37.
245
No seu comentário à Enciclopédia, contido no apêndice da tradução brasileira para esta obra,
Bourgeois nos fala também desta conexão entre entendimento e razão: “na negação concreta do
entendimento, este exerce sobre si a assunção total de si mesmo; enquanto é em si algo mais que simples
entendimento: momento de um agir que em sua verdade é razão” (BOURGEOIS, Bérnard, op. cit., p.
408).
246
CL, Introducción, p. 61.
128
concebe o proceder da filosofia como um “re-conhecimento” (Erkenntinis), no modo de
um conhecimento que purifica as determinações que se encontram imediatamente sob a
égide de uma “lógica natural”,
247
na qual as determinações do pensar estão estabelecidas
na forma do “bem-conhecido” (das Bekannt) e da familiaridade (Bekannschaft) própria
que compete a esse uso do pensar, que Hegel afirma estar baseado numa “lógica in-
consciente”, pois que tais determinações não foram ainda conduzidas à univocidade
própria que o pensamento deve conferir-lhes e, por isso, não se tornaram ainda
propriedade da autoconsciência do espírito, prestando-se, no uso corrente, tanto a
“confusões semânticas” quanto a contradições insolúveis.
A “familiaridade” do conteúdo do conhecimento, tal como se dá na cultura
científica de sua época, exprime-se, para Hegel, no acolhimento acrítico dos conceitos
representativos. Neste contexto, o ponto de vista da ciência se constitui como
conciliação espiritual operada com base numa necessidade imanente às próprias
determinações do pensar, que tem na permanência no estado de separação o princípio de
aniquilação do saber, e que tem neste aspecto negativo do entendimento o momento da
passagem necessária para a razão especulativa. Da mesma forma, na esfera do espírito
prático, a comunidade ética do Estado se desenvolve imanentemente com base no
movimento de retorno e de reflexão do particular no universal, de modo a significar a
superação de uma experiência social regida pela “racionalidade de entendimento”, isto
é, pela separação e pela particularização abstratas, fazendo com que o desdobramento
particularizante efetuado pela sociedade civil se torne um momento interno da
autodeterminação da idéia ética. Poder-se-ia dizer, em suma, que este “paralelismo”
entre a dimensão prática e teórica do espírito é somente a manifestação da unidade do
247
Cf. CL, Prefacio-1831, p. 46: “tal uso das categorias, que se chamava antes lógica natural, é
inconsciente; e quando, na reflexão científica se confere as ditas categorias no espírito a condição de
servir de meio, então o pensamento em geral se converte em algo subordinado com respeito às outras
determinações espirituais”.
129
pensar e do seu princípio presente em sua universalidade mais rigorosa, na forma da
necessidade interior de unificação, ou melhor, como a inteligência imanente ao real que
tem na necessidade da constituição da ciência o princípio do próprio tempo.
Há um período, diz Hegel, durante a formação de uma época histórica
como na educação de um indivíduo, em que principalmente se trata
de adquirir o princípio em sua intensidade ainda não desenvolvida.
Porém, imediatamente surge a exigência superior de transformá-lo em
ciência.
248
A “intensidade não desenvolvida” diz respeito a este momento positivo do especulativo
que, embora já plasmado no real, ao modo de uma inteligência imanente, não aparece
re-conhecida na forma que lhe dá sua verdadeira expressão: o saber filosófico.
Transformar o princípio intensivo da época em ciência tem o sentido, por sua vez, de
produzir a exposição desta unificação conceitual que o tempo presente apresenta como
seu princípio interno e como aquilo a que chegou o desenvolvimento do pensamento, de
forma que a filosofia tem por ocupação (Geschäft) elevar à autoconsciência este
princípio através da constituição de um sistema de saber; por essa razão, a filosofia
consiste mais precisamente “na passagem da coisa [Sache] ao conhecimento”.
249
O movimento da coisa em direção ao saber não é uma produção da reflexão de
uma subjetividade filosofante, que tem a coisa como um mero ser-posto, e o conhecer
como uma elaboração finita. Trata-se, sim, do movimento que tem em vista a unidade
da “razão como espírito consciente de si e a razão como realidade dada”,
250
portanto de
um movimento que tem por substrato comum a razão mesma em seu
autodesdobramento, enquanto ela é a “faculdade da totalidade”.
251
A reiterada reivindicação de Hegel a respeito da essencial conexão da filosofia
com o presente se funda nesta necessidade que o princípio do tempo contém de sua
248
Ib, loc. cit., p. 38.
249
ECF I, Prefácio à segunda edição, p. 19.
250
PFD, Prefácio, p.XXXVIII.
251
Diferença, p. 57.
130
elaboração científica, e de ter no saber o modo perfeito de sua efetividade. Enquanto é
“o apreender do presente”,
252
a filosofia tem por objeto absoluto o efetivo (das
Wirklich), ou a racionalidade do presente, já que, em Hegel, razão e efetividade
constituem-se numa identidade. O efetivo, aquilo que é, deve ser, contudo, distinguido
das manifestações espirituais da realidade estritamente empírica, a Realität, que
constituem somente o aspecto fenomênico, “o lado externo superficial”
253
do racional e
do simplesmente eidético, embora a Wirklichkeit demande um determinado
relacionamento com o real imediato, pois que ela não pode ser concebida como uma
potência retida sem atualidade, ou como atualidade abstrata e, por isso, vazia, sem
manifestação.
No interior da relação entre saber e tempo presente oscila um duplo movimento
que, por um lado se explicita na exigência do princípio do tempo em efetuar sua
completa conformação por meio da constituição da ciência e, por outro lado, se explicita
no fato de a ciência, enquanto essência do espírito, assumir sua efetividade no
desdobramento completo do racional imanente ao presente; duplo movimento que
aparece sintetizado no impulso natural e absoluto do espírito ao autoconhecimento.
Assim sendo, a ciência é tanto o princípio do tempo, de certa forma, ainda
indeterminado, que exige para si a unidade no saber apresentado, quanto o princípio do
tempo é a unificação ainda inconsciente que requer a autoconsciência do espírito para
efetuar sua “revelação”. Nos dois casos o que se tem em vista é somente a necessidade
mesma da filosofia: eis a razão por que Hegel afirma que a pressuposição da filosofia é
sua própria necessidade (Bedürfnis), na medida em que ela é a exposição da unidade já
posta como conteúdo da efetividade do pensar.
252
PFD, Prefácio, p. XXXV.
253
ECF I, § 6.
131
Falta-nos, porém, considerar um outro aspecto da relação entre filosofia e tempo
presente, através do qual, se negligenciado, podem introduzir-se diversas
incompreensões de caráter lógico-metodológico que venham a se interpor à elucidação
da verdadeira natureza da relação referida, bem como ultrapassar os limites e recensões
conceituais que lhe competem. O aspecto a ser ressaltado, que bem mais deve ser
encarado como uma questão problemática no interior do pensamento de Hegel, trata-se
da real natureza do “condicionamento” da ciência ao presente: como a filosofia, em seu
enredamento com o tempo presente, “suprime” as determinações “epocais” às quais o
pensamento está ligado e se concebe como um saber acabado, um saber que põe a
totalidade do que é sob o escopo da sub specie aeternitatis? Se o tempo presente é, num
certo exprimir, a “clausura” da filosofia,
os limites que demarcam seu ser-aí, como
conciliar, então, a efetivação espiritual e a deveniência do histórico?
4.2 O histórico e o desenvolvimento do espírito
Ora, a objeção que imediatamente surge se endereça à constituição da filosofia
em saber do absoluto, no “duplo sentido (subjetivo e objetivo) do genitivo”,
254
como
precisa Bourgeois, e a contraditória implicação com a finitude que concerne ao
histórico, já que esta inscrição da perfeição da ciência num determinado momento do
vir-a-ser da história possibilita que à filosofia seja atribuída a limitação condizente com
esta implicação posta, de forma que o saber filosófico assume o estatuto de uma
254
BOURGEOIS, Bérnard, La pensée politique de Hegel, p. 11.
132
produção teórica relativa, como autocompreensão finita de uma determinada época, que
ao pretender pôr-se como saber do eterno, efetua, em decorrência, a interdita
ultrapassagem de Rodus, decaindo à condição paradoxal de uma teoria do dever-ser. A
garantia da efetividade do espírito como idéia filosófica deve sustentar-se, então,
somente com o necessário termo do próprio desenvolvimento intra-histórico do pensar
em si e para si e, em sendo o histórico o espaço de desdobramento da atividade
determinativa do conceito, conseqüentemente a constituição da ciência em sistema de
saber traz consigo a inevitável supressão da história. Ante esta leitura escatológica do
conceito, a pressa e a resistência do entendimento complementam: o que fazer com o
porvir residual?
Esta aporia atinente ao relacionamento da história com o pensar não é do
desconhecimento do próprio Hegel, antes, é formulada explicitamente em toda a sua
amplitude e posta como o problema que a sua filosofia pretende contornar: “se o
pensamento, que é essencialmente isto, pensamento, é em e para si e eterno, e o
verdadeiro só está contido no pensamento, como explicar que este mundo intelectual
tenha uma história?”, já que a “história expõe o mutável, o que se uniu à noite do
passado, o que já não existe; e o pensamento, quando é verdadeiro e necessário [...] não
é suscetível de mudança”.
255
Ora, para Hegel, o pensar que se retém numa eternidade pensada como supra-
temporalidade e como alheamento absoluto ao temporal não é senão a forma abstrata e,
em decorrência, o eterno limitado e estranhado pelo entendimento:
a idéia, pensada estaticamente, é, evidentemente atemporal; pensá-la
estaticamente, retê-la sobre a forma do imediato, equivale à intuição
interior da idéia. Mas, como idéia concreta, como unidade dos termos
distintos, a idéia não é, essencialmente, estática, nem sua existência é,
essencialmente, intuição, senão que, sendo por si só distinção e,
portanto, evolução, cobra dentro de si mesma existência e
255
LHF I, Introducción, p. 11.
133
exterioridade no elemento do pensamento; deste modo, a filosofia
pura aparece no pensamento como uma existência que progride no
tempo.
256
Como “unidades dos termos distintos” a idéia contém internamente a diversidade, quer
dizer, é essencialmente concreta. A concreção atinente à idéia diz respeito, antes de
tudo, à unidade efetuada dos momentos do em si e do para si do pensar. A identidade
concreta do pensar (resultado), a qual é produzida pelo processo de manifestação
(Offenbarung) apresentado na Enciclopédia (a idéia lógica, ou o ser-puramente-em-si; a
natureza, ou o ser-fora-de-si e o espírito, ou o ser-retornado-da-exteriorização), tem no
espírito o ponto de chegada, como o momento da reflexão do ser em si e para si. A esta
reflexão especulativa, que se processa no elemento do saber, e ao retorno “a si mesmo”
e, portanto livre, do conceito, é que se reporta a denominação filosofia, como expressão
do autoconhecimento absoluto. O espírito, neste contexto, se apresenta como a
determinidade da idéia em que se opera tal retorno.
Porém, o espírito, tomado em seu estado desperto, como circunscrição da
perfectibilidade atuante do momento de retorno da idéia, tem imediatamente a sua
existência concreta, enquanto diversidade interna ainda não sintetizada, na relação
fenomenal da consciência finita com a objetividade; ele é, em seu “começo” ainda a
expressão da cisão e da separação (Scheidung) do absoluto (ou idéia). Isto porque,
embora sua determinidade consista no retorno e, conseqüentemente, na produção da
unidade do pensar, a síntese promovida pelo seu conhecer está restrita ainda à
elaboração de um “material exterior”
257
pré-encontrado, a natureza permanece-lhe uma
realidade externa, uma unidade que acede somente ao modo da representação. Nesta
oposição entre subjetividade e objetividade se encontra a diferenciação real que
compete ao conceito de espírito, no sentido que a relação acima indicada concretiza a
256
Ib, pp. 36-37.
257
ECF III, § 381, adendo.
134
contradição puramente ideal concernente ao seu conceito, o ser que tem na reflexão sua
essência, ser que é para si mesmo um outro. Desta forma a separação consciência-
mundo, na medida em que é manifestação do negativo inerente ao próprio espírito, de
sua contradição, unter-Scheidung, deve ser, antes, entendida, como uma intra-
separação ou uma sub-cisão, que tem o significado de ser uma diferenciação interna.
258
A contradição interior ao espírito é justamente o que lhe imprime a inquietude
que o faz mover-se em direção à resolução de tal contradição, orientado à suprassunção
da alteridade real que se lhe contrapõe, quando está posto em sua forma consciencial.
Sendo a oposição uma produção do próprio espírito, ao chegar a fazer de si mesmo um
objeto para a subjetividade, o espírito é aquilo que se diferencia a partir de si mesmo e
é, assim, a própria fonte de seu movimento e de sua vitalidade. Ao fazer a passagem da
diferença ideal para a oposição concreta, o espírito figura, então, na forma da cultura
(Kultur), que é o espaço em que “aquilo que é manifestação do absoluto (espírito)
isolou-se do absoluto e fixou-se como algo de autônomo”.
259
A cultura é o modo
determinado no qual o espírito se manifesta como cisão.
A cultura enquanto é a simples circunscrição da cisão não se identifica ainda
com a história universal, pois que o histórico, para Hegel, compreende o movimento em
que a consciência de si do espírito vem a ser um para si infinito. A mera relação
“imediata” da consciência humana com o mundo não é ainda aquilo que a história toma
como objeto. Somente como autoconsciência posta é que a história tem seu começo. E
esta autoconsciência só se manifesta, para Hegel, nos povos que produziram narrativa
histórica, através da qual se processa a unidade contida na etimologia do próprio termo
Geschichte, que significa tanto relato histórico quanto acontecimento histórico. Unidade
258
A respeito da tradução do termo Unterscheidung conferir: AQUINO, J. E. F., Diferença e
singularidade: notas sobre a crítica de Hegel a Spinoza, ed. cit.
259
Diferença, p. 37, parêntese nosso.
135
que expressa justamente a tomada de consciência de si do espírito. Se fosse pertinente
uma demarcação temporal entre história e cultura, poder-se-ia afirmar que a cultura é
mais antiga que a história, e que a cultura só se transforma em cultura histórica quando,
associada à constituição dos antigos Estados,
260
aparece a prosa histórica, a unificação
da historiam rerum gestarum com a res gestae. “Devemos considerar esta união como
algo mais que uma casualidade externa; significa que a narração histórica aparece
simultaneamente com os fatos e acontecimentos propriamente históricos”.
261
Neste
sentido é que Hegel nos fala de culturas sem história, quando se refere, mormente, ao
mundo oriental, onde o espírito se manifesta ainda na sua relativa naturalidade,
revelando-se numa certa inconsciência para o sentido da liberdade.
262
O cenário da história implica, portanto, no espírito que se efetuou como reflexão
posta da autoconsciência e no desenvolvimento absoluto desta reflexão. O “começo” da
história, destarte, equivale ao espírito que se introduziu efetivamente no seu saber-de-si.
É justamente isto que é pontuado por Paulo Arantes, na discussão sobre “a prosa da
história”, contida no seu estudo sobre a questão do tempo na filosofia hegeliana: “é o
espírito, é claro, que desencadeia a história, mas só pode fazê-lo à condição de quebrar a
carapaça do em si, ao instalar-se na primeira evidência do para si; numa palavra o
espírito só desencadeia a história ao atingir a etapa do desdobramento reflexivo”.
263
260
A constituição ético-política do Estado insere a experiência social de um determinado povo
no princípio da universalidade espiritual e efetua em sua existência o momento “consciente” da reflexão
do espírito, proporcionando o surgimento da prosa histórica sob a significação da tomada de consciência
de uma cultura acerca de si mesma, na medida em que nessa prosa está implícita uma compreensão do
universal que põe a estrutura do Estado como uma unidade espiritual.
261
LFH, O curso da história universal, p. 137.
262
Hegel tem em vista, aqui, principalmente a Índia, cuja organização social por castas está presa
ainda a uma determinação natural, onde o indivíduo se dissolve completamente na liberdade despótica da
soberania “sacerdotal”. A fixidez desta estrutura aproxima, por seu caráter estacionário, muito mais o
espírito da monotonia dos ciclos naturais do que do seu essencial impulso perfectivo. Em seu estudo sobre
o conceito do tempo em Hegel, Paulo Arantes pontua esta demarcação hegeliana entre as culturas que a
história abriga e aquelas que ela externa: “tudo que permanece na forma do em si e da imediação, no
estado de inconsciência, de simples possibilidade abstrata, de envolvimento, tudo isto é colocado à
margem do curso da história” (ARANTES, Paulo, A ordem do tempo, p. 189).
263
ARANTES, Paulo, A ordem do tempo, p. 190.
136
O solo do histórico constitui, por fim, o “meio” do “desdobramento reflexivo”
do espírito. Um desdobramento ao qual é imanente uma inteligência perfectiva,
conferindo ao desenvolvimento do espírito um comportamento progressivo, pois para o
espírito a trans-formação, no sentido mais estrito do termo, e a produção do novo
existem como imperativo e como sua lei íntima, constituindo um dos marcos que o
distancia do exclusivamente natural. Na natureza, as variações e alterações acontecem
de maneira cíclica, e evoluem no modo de um retorno incessante. Na natureza, Hegel
retoma a sabedoria de Salomão, “nada há de novo sob o sol”, e o seu interior não é
ainda coordenado pelo “impulso de perfectibilidade”.
264
O progresso (Fortschritt, Fortgang), no entanto, apresenta-se ainda como um
conceito representativo insuficiente, pois põe o movimento espiritual sob o signo de um
evoluir marcado fortemente por um processo quantitativo infinito, pois o progredir pode
consistir num avançar sem termo, concedendo ao espírito uma ilimitação abstrata no seu
“ir-para-frente” (Fort-gehen), pondo-se na esteira de um indeterminado avançar. Não é
condigna ao espírito esta “variação abstrata”,
265
nem o prorrogar incessante, mas uma
“constante” inflexão qualitativa que formata sua transformação em movimento gradual.
Para o desenvolvimento do espírito tem valor de pressuposto sua orientação em direção
à constituição da totalidade (unidade) do pensar. O termo deste desenvolvimento está
mesmo posto ali onde a necessidade da ciência – como saber efetivo – se encontra, e
onde a identidade especulativa na efetividade objetiva do espírito está posta: o tempo
presente de Hegel. Assim como se dá para o desdobramento da consciência, igualmente
para o desenvolvimento do espírito, “a meta está ali onde o saber não precisa ir além de
264
LFH, loc.cit., p. 127.
265
Ib, loc. cit. Na página seguinte, diz Hegel, a propósito da atividade do espírito: “suas
produções e transformações tem que ser representadas e conhecidas como variações qualitativas”.
137
si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o conceito corresponde ao objeto e o
objeto ao conceito”.
266
Se o histórico se mostra como o “meio” no qual o espírito assume, através de seu
perfazer-se, o modo da realidade que lhe concerne, a efetividade, seu ser-aí científico,
correspondente ao presente em que a filosofia de Hegel se encontra, presente este que
tem como seu princípio interno a própria identidade especulativa, então, esta per-feição
efetuada do espírito enseja, sim, a compreensão de um “fim do histórico”, mas,
somente, na justa medida em que, para Hegel, isto que se denomina história se situa no
intermédio-interregno que “demarca” o processo de “retorno” reflexivo-especular a si
do espírito, em que a oposição se integra ao espírito como uma produção sua, dando
cumprimento, por fim, ao supremo mandamento do espírito: conhece-te a ti mesmo.
267
O tema do “fim da história”, quando pretendido ser estabelecido numa conexão coerente
com a filosofia de Hegel, exige, imperiosamente, para tal, os limites compreensivos que
somente a explicitação de algumas outras mediações conceituais podem conceder, como
o desenvolvimento da própria filosofia no tempo e o próprio conceito de presente, na
peculiar recensão que Hegel lhe confere.
4.3 A história da filosofia, o espírito do tempo e a formação científica
Sendo o “retorno” do espírito a si um movimento gradual, decorre que o saber
filosófico, enquanto expressão do autoconhecimento espiritual, deve ser concebido
266
FE, Introdução, p. 68.
267
Diz Hegel: “todo o agir do espírito é só um compreender a si mesmo, e a meta de toda a
ciência verdadeira é que o espírito se conheça a si mesmo em tudo o que há no céu e na terra” (ECF III, §
377, adendo).
138
segundo esta mesma perfectibilidade e se pôr como “sistema em evolução”,
268
já que o
saber que se dirige até sua determinação última e essencial, o absoluto, vem de par com
o cumprimento do desígnio do espírito: a filosofia tem, portanto, uma história, isto é,
um processo que a conduz a saber efetivo. Uma história que é retomada por Hegel, na
perspectiva, nos diz Bourgeois, de uma filosofia da história da filosofia, em que se
revela o “aspecto abstrato da filosofia da história geral [général]”, mas “abstrato”, o que
contudo entendemos aqui não no sentido em que o próprio Bourgeois pretendeu, quando
complementa dizendo que “porque a filosofia é somente um momento da vida do
espírito que se perfaz [s’accomplit] na história”,
269
mas no sentido de que ela é a história
dos pensamentos puros, subtraídos da contingência e da matéria finita e perecível que o
histórico comporta.
É claro que a vitalidade do espírito se manifesta em múltiplos domínios: arte
religião, conhecimento empírico, política etc. Contudo, a filosofia se atém ao princípio
em que se “assenta” toda essa multiplicidade de expressões da vida do espírito. Hegel se
recusa a pensar a relação desses domínios diversos do espírito para com a filosofia sob a
noção de influência (Einfluss), na qual se realça somente “a conexão externa”, como se
“cada um dos lados tivesse existência própria e substantiva”.
270
“A categoria essencial”,
retifica Hegel, “é a da unidade de todas essa formas, já que é um espírito e somente um
que se manifesta e se plasma através destes diversos momentos”.
271
Filosofia é a
“instância” em que se resolve e para onde converge toda essa diversidade que apresenta
a manifestação do espírito, com a expressão de Hegel, o seu “foco simples”
272
(einfache
Brennpunkt).
268
LHF I, Introducción, p. 33.
269
BOURGEOIS, Bérnard, op. cit., p. 96.
270
LHF I, loc. cit., p. 52, grifos nosso.
271
Ib, pp 52-53.
272
Ib, p. 55.
139
Se à filosofia está dado seu fator histórico, persiste ainda a conhecida
“contradição interna” entre a natureza de sua pretensão, de ser a ciência do eterno, e sua
inscrição no temporal e na “finitude” do passageiro da história, assim como ressalta
também o problema de sua aparição na diversidade dos “sistemas” particulares
pertinentes a cada época determinada, pois que “toda filosofia, precisamente por ser a
exposição de uma fase especial da evolução, forma parte de seu tempo e se acha
prisioneira das limitações próprias deste”.
273
Como esse limite de sua inscrição na época
é transposto pela filosofia no sentido de ela contornar esta relatividade histórica que lhe
obseda? Se cada época produz a consciência filosófica que lhe é própria, poder-se-ia
pensar que a história da filosofia não seria senão uma corrente interminável que a
temporalidade ininterrupta confecciona conectando uma quantidade inumerável de elos.
Quem se instala sob esta perspectiva poderá concluir facilmente que a formação
científica é um trabalho infinito, tal qual o manto de Penélope: desfazendo-se e
reconstruindo-se. Haveria também o ensejo para considerar a ciência como um
conhecimento meramente cumulativo, onde cada época viesse apenas justapor suas
aquisições e suas descobertas, acreditando colaborar, destarte, para o processo de
construção do saber, embora cada esforço empregado não possa ser encarado de outra
forma que como um vão esforço que desvanece reiteradamente perante a indefinição
científica.
Em vista de um entendimento mais preciso acerca da relação entre uma
manifestação determinada da filosofia, enquanto expressão do saber conceitual de uma
certa época, com o circunstancial histórico que lhe ambienta, é relevante explanar aqui,
embora com isso se promova uma pequena digressão, a análise que Hegel efetua da
273
LHF I, Introducción, p. 48.
140
filosofia socrática, e o estabelecimento desta filosofia “particular” no plano geral do
desenvolvimento da filosofia mesma.
No interior da trajetória da história do pensamento, segundo a compreensão de
Hegel, a filosofia socrática se caracteriza como o momento em que o autoconhecimento
é concebido como a lei interior do espírito ou, na expressão de Hegel, como “a lei
absoluta do espírito”.
274
A “interpretação” do “conhece-te a ti mesmo”, a inscrição
délfica, feita pela reflexão socrática, contrapunha à prática cultural de consulta ao
oráculo, que estabelecia uma relação externa entre o divino e o humano, o “exame”
interno da consciência. A atitude que a filosofia de Sócrates implicava ia de encontro ao
modo de ser da cultura de seu tempo, que se baseava na universalidade abstrata das leis
e dos costumes. Ante este aspecto genérico da constituição política do mundo antigo a
consciência individual, a moralidade do indivíduo, não cobrava seu espaço, pois se
tratava da “lei do Estado e se a considerava como a vontade dos deuses; é, pois, o
destino geral que assume a forma de algo que é e que todo mundo reconhece como
tal”.
275
Aquilo que estava estabelecido como bom e verdadeiro não se inscrevia na
“convicção” interior da consciência.
A investigação socrática subverte a maneira de considerar o verdadeiro, o bom,
enquanto um imediato dado externamente. A busca pela universalidade passa através do
“exame de consciência” – não como consideração de opiniões pessoais, obviamente –,
pois que,
segundo demonstra Sócrates, o bom não vem de fora, não é suscetível
de ser ensinado, senão que está implícito na natureza mesma do
espírito. Em geral, o homem não pode receber passivamente algo que
se lhe oferece de fora, ao modo como a cera recebe a forma, ao ser
moldada, tudo já se encontra no espírito do homem, embora pareça
que este tudo aprenda. É certo que tudo principia de fora para dentro,
mas isto é somente o começo; a verdade é que isto não é mais que o
impulso inicial para o desenvolvimento do espírito. Tudo o que tem
274
ECF III, § 377, adendo.
275
LHF II, Sócrates, p. 61.
141
um valor para o homem, o eterno, o que é em e para si, está contido
no homem mesmo e se desenvolve partindo dele.
276
A consulta ao oráculo era entendida por Hegel como um ato de recorrer a um
exterior ao próprio espiritual, ato que resultava da própria consciência restrita de
liberdade que tinha o povo grego. O que há de especial a ser realçado no “desafio ao
autoconhecimento, lançado pelo Apolo délfico aos gregos”,
277
consiste na desaparição
da exterioridade espiritual que se depreende do conteúdo da mensagem do oráculo; isto
vem resultar na própria destituição da “função extrínseca” que desempenhava o oráculo.
A separação entre providência divina e mundo espiritual começa a ser extinta: a alma
passa a ser a morada do divino, do eterno. Ao situar a essência, o divino, na consciência,
Sócrates promove, do ponto de vista do pensamento, a infinitização da consciência e faz
do espiritual o seu próprio oráculo. Embora a infinitude da consciência não esteja ainda
conceitualmente desenvolvida na filosofia socrática, ainda assim, ela já se encontra aí
claramente tematizada.
Sob a perspectiva do pensamento, o que a filosofia socrática conduz para o
conhecer é a emergência do princípio da particularidade do conceito, e a passagem do
momento da universalidade em sua figuração abstrata à imanência no particular. Tal
passagem operava, contudo, em sua repercussão fenomênica, a própria dissolução da
sociedade ateniense. Esta atividade negativa do conceito para consigo mesmo, foi
recebida por Platão no modo da “corrupção dos costumes”, e sua República acabou
ganhando a significação de uma tentativa de retorno àquele universal abstrato.
Ora, o que se conclui desta análise hegeliana do pensamento de Sócrates é que,
na filosofia deste último, o que ganha expressão verdadeira não são “os objetos, as
276
Ib, loc. cit., p. 63.
277
ECF III, § 377, adendo.
142
estruturas e conjunturas etc., triviais, exteriores e passageiros”,
278
instalados “sobretudo
no campo político”,
279
tais como o comportamento religioso, a constituição política etc.,
que, certamente, a história transformou em algo que passou; antes, o que se dá a
conhecer é o próprio elemento corruptor, como momento essencial ao automovimento
do conceito, que não é senão o princípio que estrutura o próprio tempo em suas diversas
manifestações, o que, para o ponto de vista do pensamento, é o que é conservado como
“o princípio geral da filosofia para todos os tempos vindouros”.
280
A filosofia, por este proceder, “reconhece na aparência do temporal e do
transitório a substância que é imanente e o eterno que é presente”.
281
Quando a filosofia
“recupera”, ou melhor, conduz as diversas manifestações da vida do espírito à unidade
na qual essa manifestabilidade vária se funda, através da “formulação” do princípio
universal que rege a própria época a que ela se liga, transformando em saber a
simplicidade estruturante do pensamento, ela cumpre, assim, sua função oracular
própria, mostrando em si mesma a própria reflexão do tempo e se pondo, por fim, como
o “espírito do tempo (Geist der Zeit), como espírito que se pensa a si mesmo”.
282
O
Espírito do tempo é a universalidade que o filosófico “sublima” no puro pensamento,
transportando os elementos que estão plasmados no “real imediato” do presente para a
forma conceitual de sua verdade.
Mas se cada época possui a sua correspondente filosofia, pois a filosofia é “filha
de seu tempo”, não saímos ainda do problema suscitado por esta diversidade, e pelo
relativismo dos “espíritos dos tempos”. Este problema deve ser solucionado quando esta
diversidade for concebida como uma “série” determinativa do pensamento, e posta
278
ECF III, § 6.
279
Ib, loc. cit.
280
LHF II, Sócrates, p. 98.
281
PFD, Prefácio, p. XXXVI.
282
LHF I, Introducción, p. 54.
143
essencialmente em paralelo como o próprio desenvolvimento progressivo do espírito.
Pois esta diversidade não se processa de modo que advenha para o espírito que ora ele
seja isto ora seja um absolutamente aquilo outro, pelo contrário, os diferentes e
sucessivos momentos da constituição da verdade espiritual compõem a formação total
de sua unidade reconhecida do espírito. “A sucessão dos sistemas da filosofia na
história é a mesma que a sucessão das diversas fases na derivação lógica das
determinações conceituais da idéia”.
283
E a diversidade, que não é senão uma
diversidade da própria coisa, que é concreta, e não uma diversidade que institua uma
relação externa, se refere apenas aos graus de determinação do próprio espírito (ou
idéia).
284
O desenvolvimento da filosofia, neste paralelo em que é colocada, constitui o
vir-a-ser da identidade especulativa que está posta, segundo o próprio Hegel, em seu
tempo: “a tarefa em si já está cumprida, o conteúdo já é a efetividade reduzida à
possibilidade”.
285
Possibilidade que é tornada atual através da exposição sistemática das
obras de Hegel, o que ele chama de apresentação da ciência, pois que, a rigor,
demonstrar aquilo que é efetivo não deve ser mais que “trazer à consciência aquilo que
é próprio da razão da coisa”.
286
O apreender da consciência, aqui, por isso, tem a
significação de uma agir “superveniente” (nachfolgend).
Porém, a verdade, que a filosofia tem por objeto, como a plenitude do ser-aí da
idéia, enquanto implica a correspondência especular do conceito com a efetividade, o
283
Ib, loc. cit., p. 38.
284
Este paralelismo está categoricamente posto na seguinte afirmação de Hegel: “A história da
filosofia mostra nas filosofias diversamente emergentes que, de um lado, somente aparece uma filosofia
em diversos graus de desenvolvimento [Ausbildungsstufen], e de outro lado, que os princípios
particulares – cada um dos quais está na base do sistema – são apenas ramos de um só e do mesmo todo,
a filosofia última no tempo é o resultado de todas as filosofias precedentes, e deve por isso conter o
princípio de todas. Por este motivo, se ela é filosofia de outra maneira, é a mais desenvolvida, a mais rica,
a mais concreta” (ECF I, § 13, grifos de Hegel).
285
FE, Prefácio, p. 37, grifo de Hegel.
286
PFD, Introdução, p. 34.
144
conceito que chegou à determinação “última” que condiz à sua essência, sua
autoconsciência absoluta, não pode receber seu adequado tratamento quando este
elemento que circunscreve e constitui o saber não aparece em sua necessária unidade: a
síntese do resultado e do desenvolvimento. Unidade esta que faz do ser processo e
progressão interna da totalidade, assim como concede ao conceito a forma do positivo
que suprassume em si sua própria deveniência, isto é, assume em si o negativo e se
estabelece, enfim, conforme sua própria dignidade, como conceito do conceito, se ao
expressarmo-nos assim pudermos estar livres da aparente redundância que suscita.
Assim é que para a questão da conformação (Ausbildung) da ciência, na medida
em que esta assume a sistematicidade que lhe é própria – torna-se saber da totalidade
essente –, é cabível a consideração não somente do aspecto formal da elaboração teórica
do saber, e a estruturação final que tal elaboração configurou, mas também a
consideração da via crucis, somente a qual nos permite enxergar “a rosa na cruz”.
Querermos dizer, com isto, que a constituição do filosofar verdadeiramente científico
deve ser considerada, partindo da filosofia de Hegel, no movimento concreto de seu
desenvolvimento, através do qual somente a necessidade do saber aparece em sua
“peculiar” justificação.
O desenvolvimento da filosofia sob a forma de uma história da filosofia
representa, nesta sua “abreviação” conceitual, a exposição da retomada – pelo pensar
que se constituiu, por fim, em saber efetivo – dos momentos necessários da coisa que
está posta como simples resultado. Assim, a necessidade imanente ao curso de tal
história do pensamento se baseia nessa retrospecção compreensiva do espírito. A
orientação do automovimento do conceito deve ser considerada sob a “perspectiva” de
uma teleologia retrospectiva, transformando o efetivo, já “reduzido à sua possibilidade”,
145
numa “efetividade acabada”
287
(vollkommene Wircklichkeit), que o Sichwissen do
espírito confere a forma do “em-si rememorado”.
288
Somente assim a ciência aparece
totalmente constituída na unidade de seu resultado e de seu processo, não obstante esse
movimentar-se e dividir-se do espírito apareça, para o ponto de vista da subjetividade
infinita, como “repouso translúcido e simples”.
289
A respeito da orientação deste
movimento conceitual, Bourgeois parece também compartilhar quando afirma que “o
presente é sempre, em Hegel, compreendido por um olhar retrospectivo”,
290
um olhar
que não se compromete, por este motivo, com uma teleologia de caráter necessitarista
que apresenta uma orientação inversa, versada numa linearidade do passado em direção
ao presente, mas este movimento do olhar do presente em direção ao passado não é um
movimento puramente cronológico, mas um movimento do eterno (o pensar) mesmo,
cuja inteligibilidade última reside na negação de seu ser-aí como abstratamente infinito,
na suprassunção do passageiro que lhe afeta, enquanto ele deve se liberar de sua
permanência no tempo, enquanto este último é entendido apenas representativamente.
Em suma, a necessidade do desenvolvimento e da formação científica deriva do
próprio presente de Hegel, onde a ciência se encontra encoberta com seu manto
finalmente tecido e, ao olhar “para trás”, reconhece o que foi preciso ser feito. Está aqui
presente a reivindicação de Hegel segundo a qual a educação (Bildung) absoluta do
pensar “se logra tão somente por meio do progresso, do estudo e da produção de todo o
desenvolvimento”,
291
dado que somente mediante este dinamismo do espírito a verdade
se expressa como unidade internamente diferenciada e, através do rememorar (das
Erinnern), da interiorização, põe o resultado no âmbito do permanente, do que é.
287
FE, Prefácio, p. 26. Cf. PhG, S. 19.
288
Ib, loc, cit., p. 37.
289
Ib, loc. cit., p. 46.
290
BOURGEOIS, Bérnard, op. cit., p. 22.
291
CL, Prefacio-1831, p. 55.
146
4.4 Eternidade e tempo presente
A crítica feita ao alcance sistemático da ciência e seu pretendido acabamento
tem por base um conceito de eternidade preso ainda à formulação estritamente
representativa. Quando se compreende a formação científica como um processo
reticente, afetado por sua inextrincável indefinição, o que está em jogo aí é apenas o
mergulhar do espírito na pura passagem do tempo. E quando se objeta ao saber
filosófico seu caráter absoluto, o que se toma por argumentação é fundamentalmente a
“pretensão” deste saber de se estender para além de seu presente imediato na forma de
uma teoria do dever-ser. A título de exemplo podemos nos reportar à crítica que Vaysse
endereça a Koyré, enquanto neste último, segundo o primeiro, se manifesta ainda uma
insuficiente compreensão do estatuto do tempo para a filosofia hegeliana. Para Vaysse,
Koyré entende que “o tempo hegeliano é o tempo histórico orientado ao futuro, e que
um tal pensamento desemboca necessariamente numa contradição, na medida em que,
sendo o sistema somente possível se o tempo se encontra acabado [achevé], a condição
de possibilidade da inteligibilidade da história é sua auto-supressão”.
292
Como se o
próprio Hegel não tivesse, insistentemente, nos alertado tanto para o fato de que a
ultrapassagem do presente implica no encontro com o vazio e com o informe
293
quanto
para o fato de que a formação científica não é inteligida com base num movimento que
possa estabelecer uma analogia com “uma linha reta que se dirige até o infinito
abstrato”.
294
292
VAYSSE, Jean-Marie, Hegel: tempo e história, Introduction, p. 6.
293
Cf. PFD, Prefácio, p. XXXVI.
294
LHF I, Introducción, p. 31.
147
O que está por trás da incompreensão desta relação entre o espírito e o tempo é
uma concepção puramente fenomenológica, isto é, a forma imediata como a consciência
finita apreende o tempo como passagem intermitente figurada no modo do um-depois-
do-outro. Em conseqüência desta concepção do tempo como passagem perene, a
eternidade é considerada enquanto a indefinição infinita do transcorrer do tempo, quer
dizer, posta como temporalidade intermitente e, assim, comporta o significado de ser a
abrangência abstrata e ilimitada obtida pelo acrescentamento quantitativo, tanto
retrógrada (em direção ao antes, ou ao passado, ou ao sido), quanto progressivamente
(em direção ao depois, ou ao futuro, ou ao que virá-a-ser), em referência ao agora (o
presente); contudo, assim considerada, a eternidade constitui apenas uma representação
do entendimento submetida à lógica do que Hegel denomina de má-infinitude. Mas, em
acordo com a leitura de Paulo Arantes, o conceito de eternidade do qual Hegel faz uso
aponta, em detrimento do caráter meramente quantitativo pensado pelo entendimento,
para uma subsistência infinita no tempo: uma presença absoluta.
295
O que está ausente em tais considerações, sobretudo, é o estabelecimento desta
forma de tempo como âmbito da negatividade eidética. O tempo no modo do “um-que-
segue-o-outro”, portanto, nesta sucessão “até o infinito
296
é, juntamente com a
espacialidade, o “um-junto-do-outro”, aquilo que constitui a essencial exterioridade do
ser natural, a idéia em sua diferenciação posta. Assim é que a natureza, em sua
processualidade própria, aparece configurada no “fora-um-do-outro”,
297
indicando com
isso a unidade ainda imperfeita da idéia. É o que ressalta, bastante inequivocamente,
295
Em seu estudo, “A ordem do tempo”, afirma Paulo Arantes: “Quando a metafísica quer
demonstrar a eternidade do mundo, compreende essa eternidade como o equivalente de uma ausência de
começo no tempo; traduzindo eternidade por tempo infinito, ela a reduz ao estatuto de determinação
temporal, mesmo se com isso tem em mira um modo supremo de temporalidade. É essa representação
temporal da eternidade que Hegel ataca. Um tempo infinito é ainda tempo e não tem nada de eternidade”
(pp. 174-175). Vale ressaltar que esta crítica ao conceito de eternidade tem em vista não a tradição
metafísica com um todo, mas à metafísica de entendimento.
296
ECF III, § 381, adendo.
297
Ib, loc. cit.
148
Manfredo Oliveira, quando afirma que “uma das formas de exterioridade da natureza é
precisamente o tempo, que é o próprio processo das coisas reais e enquanto tal constitui
a finitude do finito”.
298
O espírito, que implica a suprassunção da natureza, carrega, num
primeiro momento, para dentro de si, a determinação da exterioridade mas, ao mesmo
tempo, o seu desenvolvimento não permanece regido por esta processualidade sem
unidade que compete ao natural.
299
Para Hegel, no seu desenvolver-se o espírito não permite que seus momentos
(graus) assumam autonomia ante sua própria unidade e se ponham no ser-aí como
realidades que convivem umas-ao-lado-das-outras, subsistentes na relação externa,
“assim por exemplo, a luz e os elementos aparecem como autônomos, reciprocamente;
assim os planetas embora atraídos pelo sol, e apesar dessa relação a seu centro, têm
autonomia em referência a esse centro”.
300
Em contrapartida, no espírito, seus
momentos não se conservam na forma desta independência externa, mas em cada
momento está posta a sua totalidade (do espírito) numa determinidade dada, de modo
que a unidade completa tem em sua interioridade a totalidade dos momentos. Eis razão
por que a “processualidade” verdadeira do espírito é o Ent-Wicklung, o des-
envolvimento, uma exteriorização como interiorização absoluta.
Hegel costuma utilizar, como expressão da diferença entre o desenvolvimento
espiritual e o processo natural, a metáfora da semente: o evoluir da semente tem como
termo também o retorno à própria semente, porém este retorno a si da semente culmina
na produção de um ser distinto do ser inicial do processo, posto que a semente
produzida é estabelecida em sua singularização (individualização) própria com
298
OLIVEIRA, Manfredo, Dialética e auto-organização, pp. 123-162.
299
Afirma Manfredo Oliveira, ainda a propósito desta distinção entre natureza e espírito: “[...]
para Hegel processualidade é uma categoria do ser natural enquanto este é uma existência espaço-
temporal” (Cf. id, ib, loc. cit.).
300
ECF III, § 381, adendo.
149
referência à semente original; no espírito, ao contrário, a sua progressão não se restringe
a esta recaída contínua na exterioridade, mas cada momento seu, ao se dar um ser-aí e
uma determinada particularidade, “é conservado como algo que se rememora”,
301
ou
seja, como algo que é recapturado na unidade concreta.
Quando se entende que é subjacente ao desenvolvimento do espírito o liame do
tempo em sua feição natural, o que deve se evidenciar é que este modo de exteriorização
do espírito não pode significar mais do que a inserção do natural no espiritual, na sua
necessária passagem ao espírito; e que, contudo, o próprio conceito do espírito não se
“realiza” neste progredir natural incessante, pois embora “o espírito, enquanto se faz
objeto de si mesmo, e se põe enquanto exterior a si, põe-se na exterioridade, que é o
modo universal da existência da natureza”,
302
este momento natural, já interior à
manifestação do espírito, é alvo, contudo, da potência negativa do próprio conceito de
espírito, na medida em que este se apresenta efetivamente como auto-interiorização
(Selbstverinnerlichung) infinita. Por isso, esse tempo, que somente concede o elemento
da exterioridade ao espírito, revela somente a necessidade que espírito tem de se
determinar e de se finitizar, mas nele somente não pode ser inteligido o momento de
retorno.
Falta ao tempo, como exclusiva determinação natural, o reconhecimento de sua
verdadeira condição, a de ser manifestação da negatividade que opera a passagem da
idéia abstrata (em si mesma) em direção à sua forma concreta como contradição posta,
em relação a qual o espírito aparece como a segunda negação, e ao invés do “eterno
retorno do mesmo”,
303
que configura o processual da natureza e a relativa linearidade da
301
FE, Prefácio, p. 46.
302
OLIVEIRA, Manfredo, op. cit., loc. cit.
303
OLIVEIRA, Manfredo, op. cit., loc. cit.
150
repetição, se completa o retorno ao originário, que na forma da compreensão
representativa, pode ser pensada como circularidade.
A formação científica apresenta no seu constituir-se esta mesma circularidade,
posto que não é senão a inteligibilidade do movimento do próprio conceito. Uma
circularidade, que, assim como se dá no tocante ao sistema em sua totalidade com
relação aos “círculos singulares” das ciências reais que estão contidas em seu domínio,
tem o sistema da filosofia, da mesma forma, nas diversas filosofias que a história
concede aparição, seus círculos particulares ou seus princípios especiais; de modo que a
diferença entre estes círculos está dada apenas no grau de desigualdade da substância
mesma, isto é, nas determinidades progressivas do conceito e na conseqüente defasagem
do desenvolvimento do espírito com a sua autoconsciência absoluta. “Cada filosofia é
em si completa e tem, como uma autêntica obra de arte, a totalidade em si”.
304
Esta
totalidade imanente em cada parte se explica porque a filosofia toma em consideração
sempre o mesmo objeto, a saber, o pensamento em sua forma livre e depurada do
material finito da história, e, como espírito do tempo, esta forma livre se manifesta na
tomada de consciência do princípio interno de uma época, e seja lá qual determinidade
do conceito que o princípio revela, é sempre do pensar e do seu movimento lógico-
ontológico de que se trata. E por se ater sempre a este movimento do conceito, a
filosofia dirige sua atenção permanentemente para a “forma” infinita subjacente ao que
é estritamente histórico, portanto, está em íntima conexão com o conteúdo de “todas as
épocas”, não sendo este último, pois, sujeito à passagem.
O conteúdo desta história [da história da filosofia] são os produtos
científicos da razão, que não são perecíveis nem se incorporam ao
passado. Neste terreno se cultiva o verdadeiro, e o verdadeiro é
eterno, não existe numa época para deixar de existir na outra.
305
304
Diferença, p. 36.
305
LHF I, Introducción, p. 42.
151
Liberado da voragem cronológica, o conteúdo do pensamento é subtraído à
matéria finita que o tempo engole, ao contrário do que sucede aos filhos do divino
Krónos, e se põe em sua “peculiar” presença, como aquilo que é, o verdadeiro a que
Hegel chama de efetividade.
O presente, em conseqüência, se desvencilha, no pensamento de Hegel, da
consideração imediata da consciência finita que o identifica ao agora imediato e
fenomenológico como momento paralisado da série temporal. O tempo presente recebe
o estatuto, portanto, do permanente que suprime a deveniência do mal-infinito que
acomete a passagem. O agora (Jetzt) não pode ser identificado com o presente
(Gegenwart), na medida em que ele é somente objeto de indicação (Meinung) para a
consciência, abstraído da linearidade “puntiforme” do tempo posto como duração
(Dauer), pois que o agora é uma realidade evanescente que efetua a passagem
imediatamente para o tempo-depois-do-agora no momento da indicação, revelando-se
como aquilo que é suprimido constantemente pelo próprio passar do tempo. Mas
enquanto tomado como objeto do saber filosófico, o presente é a autosupressão pelo
eterno enquanto simplesmente tempo. O presente é por isso a identidade concreta do
tempo e do eterno, a tensão da contradição entre finito e infinito, já que a eternidade não
deve ser retida na estaticidade e supra-temporalidade, assim como o tempo isolado em
sua má-infinitude, como acrescentamento (somatório) infinito de momentos finitos. O
presente se remete, sobretudo, à eternidade como presença absoluta, e permanência
subtraída à passagem intermitente e à abstrata intemporalidade.
Sendo o objeto da filosofia a efetividade pensada como a presença absoluta, a
mencionada ciência encontra-se inarredável de seu condicionamento à sua perspectiva
de eternidade. O presente não é tomado, então, na significação do agora abstrato e
evanescente, significação que fundamenta um saber eterno que se reconhece válido
152
como abrangência abstrata da má-infinitude da série temporal. O movimento que opera
a filosofia seria, então, o reconhecimento do eterno que é presente e, por este meio, ela
eleva o estritamente finito à sua idealidade, quer dizer, conceitua o tempo, dando
consecução à superação da determinação natural do espírito. Um reconhecimento que
não é uma mera prescrição para o futuro, pois o conteúdo do saber efetivo, os momentos
do desenvolvimento do conceito posto em sua forma expositiva,
306
diz respeito a uma
retrospecção compreensiva do presente (o resultado), que tem em seu interior o passado
(o desenvolvido). A essência (Wesen), como entende Hegel, está no presente, que
contém em seu interior o sido (Gewesen), pois o “o passado não é outra coisa que a
conservação do presente como realidade [Wirklichkeit]”.
307
Hegel mostra que esta
relação conceitual passado-presente se apresenta até no uso que a linguagem faz do
pretérito composto, no qual um particípio passado é conectado com um verbo auxiliar
indicativo presente (“ser” ou “ter”): “pode-se ver nesse uso da palavra ‘ter’, diz ele, um
signo universal da interioridade do espírito moderno, que não reflete simplesmente que
o passado passou segundo sua imediatez, mas também em que ainda está conservado no
espírito”.
308
Em suma, no presente se apresenta o refletir-se, no sentido mais estrito deste
termo, do próprio tempo, fazendo com que ele se exponha em sua “face” de eterno, pois
que é a própria negatividade do infinito efetuada, já que para Hegel a simples posição
do finito, na sua referência incessante a um outro finito, implica a infinitude. Resta para
o pensar somente mostrar o movimento dessa absoluta libertação, quer dizer, se
desvencilhar de uma infinitude exterior. As chaves dessa libertação não são mais que os
306
O conteúdo da ciência efetiva pressupõe, certamente, o que Hegel entende como “prova da
necessidade da filosofia”, a qual prescinde, por sua vez, do movimento fenomenológico da consciência
(Fenomenologia) que se reconhece como infinita, e a posterior exposição do conceito em seu âmbito puro
(Ciência da lógica).
307
LHF II, Sócrates, p. 86.
308
ECF III, § 450, adendo.
153
nexos imanentes e internos do próprio espiritual, que implica no “abandono” a si
mesmo, de resto a única coisa que há de misterioso, pois que no abandono a si o espírito
chega igualmente ao seu Beisich, e no sentido daquilo que se encontra no grau mais
afastado da inverdade, isto é o limite absoluto.
154
V. Considerações finais
“O tempo é a imagem móvel do eterno”.
Platão, Timeu.
O espírito é tanto finito quanto infinito, e nem é só um e nem
só o outro: permanece finito em sua finitização, porque suprassume
em si mesmo a sua finitude; nada nele é algo fixo, algo essente [...].
Assim deve Deus, por ser espírito, determinar-se, pôr em si mesmo a
finitude (aliás seria ele apenas uma abstração morta, vazia); mas, já
que a realidade, que por meio de seu autodeterminar-se ele se confere,
é uma realidade perfeitamente conforme a ele, Deus não se torna por
causa dela algo finito. Assim, o limite não é em Deus e no espírito.
Mas é somente posto pelo espírito para ser suprassumido. Só
momentaneamente pode o espírito parecer que permanece em uma
finitude: mediante sua idealidade, o espírito eleva-se acima dela, sabe
do limite que não é um limite fixo. Por isso vai além dele: dele se
liberta; e essa libertação não é, como acredita o entendimento, uma
libertação jamais acabada, uma libertação apenas visada sempre, até o
infinito; ao contrário, o espírito arranca-se desse progresso até o
infinito, liberta-se absolutamente do limite de seu outro, e chega
assim ao absoluto ser-para-si; faz-se verdadeiramente infinito.
309
O espírito não é somente aquilo que tem em sua essência o poder de libertar-se da má-
infinitude e do prorrogamento indefinido que compromete o seu desenvolvimento, mas
aquilo que já atualizou sua libertação e concebeu o seu próprio desenvolvimento na
necessária “conexão” com o resultado. Ao saber não resta somente indicar este
resultado, como quem aponta navios que aportam, que na filosofia de Hegel aparece
como a identidade especulativa, mas retomar o desenvolvimento universal do conceito
no seu desdobramento igualmente universal, ao modo de uma consciência absoluta que
recobra em seu interior, erinnert , quer dizer, rememora os momentos já depositados
deste processo. O devir da substância, quando nos mostra o desenvolver da essência até
sua completude, pode ser considerado, neste sentido, como o passado do pensamento,
309
ECF III, § 386, adendo, itálicos de Hegel.
155
mas um passado liberado de sua relação cronológica, e estabelecida como a instância de
conservação do próprio pensar, como efetividade posta enquanto “presença” absoluta.
No que diz respeito à filosofia, enquanto toma em consideração esse permanente
presente no tempo, pois que a identidade especulativa só se justifica pela concreção que
conserva para unir os momentos do desenvolvimento (abstração da universalidade,
particularização do universal e retorno à universalidade a partir desta particularização)
do conceito, “não há antecessores sucessores”,
310
já que a verdade do real é o efetivo – o
que não se submete ao poder cronológico –, por meio do que o pensar ganha sua
“positividade” de eterno, e não segundo o curso ilimitado das épocas, o que não
significaria mais que o retrocesso do saber à opinião, ao saber relativo e finito, e em
geral à ausência mesma de cientificidade. Para a filosofia, a “perspectiva de eternidade”
se constitui a partir da elevação negativa e imanente do próprio finito.
O olhar retrospectivo do saber, em sua livre determinação e auto-referência, isto
é, em seu “ser-para-si”, não se lança ao passado na forma diacrônica e transversal à
totalidade dos momentos de sua história, pensada sob o liame de uma série temporal,
como abrangência abstrata de tudo aquilo que é apto a assumir a mera determinação da
existência (Existenz), um olhar que só pode está a serviço da ilustração atinente à
“fatologia” histórica. A consideração linear do histórico só repõe o espírito na
determinação natural e apresenta seu desenvolvimento como processualidade que
“cristaliza” seus momentos na conexão puramente externa do elemento temporal, como
se a história fosse uma “sucessão de acontecimentos fortuitos em que cada fato ocupa
um lugar isolado e para si, sem que haja entre eles outro nexo de união que o tempo”.
311
No espírito, esta retrospecção é, em verdade, o seu “olhar para dentro”, uma
consideração introspectiva, para dizer mais precisamente, pois ele não confere a seus
310
Diferença, p. 35.
311
LHF I, Introducción, p. 12.
156
momentos (graus) a subsistência autônoma do ser-aí natural: “o espírito não surge da
natureza de uma maneira natural [...], o seu surgir não é carnal mas espiritual”.
312
Não é
“carnal” porque ele não se perde no ser-aí externo do natural, não é um “ir-para-fora” tal
qual o surgimento da semente de uma outra semente; sua exteriorização é o
aprofundamento em si, de forma que “o sair para fora e o desdobrar-se sejam, ao mesmo
tempo, um voltar a si”.
313
“A diferença, ali onde existe, tende sempre a desaparecer,
produzindo assim a unidade total e concreta”,
314
ou seja, a unidade que tem em si o
princípio da própria exteriorização. Na introspecção o espírito opera em si mesmo sua
reflexão, transformando a efetividade em seu absoluto objeto, enquanto o “Vivo
presente”
315
(gegenwärtiger Lebendig) e a “forma infinita” do processo temporal: a
história da filosofia, em decorrência, é a história desse passado que não passa, portanto,
no devir do próprio pensar está implicado esta passagem do passado-pretérito para o
sido atual, e a formação científica se arranca, por isso, do processo retilíneo e
infinitamente abstrato da experiência do conhecer e se perfaz em seu desenvolvimento
circular, que se funda na inteligência especular do próprio espírito.
A dificuldade peculiar que o sistema da ciência deve contornar é “mostrar”
316
que a perfeição do desenvolvimento do espírito consiste no princípio interno à própria
312
ECF III, § 381, adendo.
313
LHF I, loc. cit., p. 28.
314
Ib, loc. cit., p. 30.
315
Ib, loc. cit., p. 42.
316
A sistematização da ciência tal como Hegel a empreendeu tem o sentido, que ressalta
internamente de sua própria filosofia, de uma “mostração” da coisa. Uma “mostração” que ele
denominava Darstellung. Esta coisa e este ato de mostrá-la porém são o mesmo: o pensamento. A coisa
posta e o ato de revelá-la se unem, portanto, no elemento comum do pensar. Se a coisa e o ato têm uma
fonte comum, os dois só podem ser distinguidos como momentos de um relacionamento interno e, por
isto, trata-se de um soberano relacionamento, quando se tem em vista a totalidade do pensar. Uma
unidade assim concebida deve necessariamente, em respeito à negatividade ante qualquer relação
extrínseca, assumir como produção sua qualquer diferenciação e, em conseqüência, imanentizar
absolutamente seu conteúdo. Assim é que a passagem da coisa ao elemento de sua revelação consiste em
obra da própria coisa. Assim também é que, para Hegel, ser e saber operam a passagem mútua de um para
o outro e se transubstanciam na identidade una e internamente distinta do absoluto. A exposição do
absoluto se transforma então na livre revelação da mútua passagem operada a partir do ser ao saber “e” a
partir do saber ao ser. E como o absoluto unifica estas duas determinações (ser e saber) em sua
157
época de Hegel, promovendo a identidade do próprio espírito de seu tempo com o
espírito da filosofia enquanto tal e, assim, apresentar o transitar da coisa ao
conhecimento absoluto. Isto porque é “chegado o tempo” em que o efetivo e a razão
manifestam em toda sua intensidade (Intensität) a identidade que subjaz, mesmo quando
negada, a todo filosofar e a toda cientificidade. Faz-se necessário mostrar que a
“bondade de deus”
317
(entendimento) tem sua fonte de manifestação no seu “jogo de
amor consigo mesmo” (razão).
318
Na filosofia de Hegel o que há de mais difícil, então, é
a “demonstração” de que o princípio especial de sua própria filosofia se identifica com o
princípio absoluto do filosofar enquanto tal, na medida em que o princípio interno a seu
tempo é a própria identidade especulativa entre ser e saber.
Este resultado, a que chegou a sua época se mostra, tanto na dimensão prática
quanto na teórica, como desenvolvido imanentemente a partir do próprio espírito,
exigindo para si apenas a passagem de sua realidade intensiva para uma efetividade
perfeita na forma de uma apropriação da autoconsciência absoluta, e por este expediente
transformar o esoterismo do conceito em posse universal do saber.
Ao sistema, portanto, está reservado não somente a tarefa de conduzir a
consciência finita à afirmação do princípio da ciência em sua simplicidade
(Fenomenologia), mas produzir a exposição dos conteúdos puros do próprio princípio,
isto é, requer também a “elaboração da ciência”
319
(Ciência da lógica), assim como
recuperar o movimento de particularização do conceito para dentro de sua
universalidade concreta (Enciclopédia). E na síntese enciclopédia do saber recuperar o
desenvolvimento teórico e prático do espírito absoluto sob a forma de uma “filosofia da
história universal”, no que diz respeito ao espírito objetivo, e de uma “filosofia da
identidade, o conectivo “e” deve ser substituído pelo “ou”. Esta reverberação ínsita a esta relação
especulativa constitui a dificuldade de expressar a natureza do pensamento.
317
ECF I, § 81, adendo.
318
FE, Prefácio, p. 30.
319
CL, Prefacio-1812, p. 37.
158
história da filosofia”, no que tange ao espírito subjetivo. Recuperação do
desenvolvimento integral do espírito que é entendida, do ponto de vista sistemático,
estar em continuidade para com o movimento de particularização do conteúdo da
ciência efetuado pela Enciclopédica, a qual se restringe ainda, como diz Hegel, aos
“conceitos fundamentais” das ciências reais.
Este programa sistemático que foi executado pelas principais obras de Hegel
toma em consideração não somente o resultado como o fato do “tempo”, mas apresenta
este resultado como ponto de chegada do movimento do conceito, e que só recebe seu
verdadeiro sentido como a totalidade constituída juntamente como o seu vir-a-ser. Um
vir-a-ser que não pertence ao passado das épocas históricas, mas que é produzido co-
atualmente pela reflexão do próprio pensamento presente, pela “interiorização
rememorativa” e pela consumição do elemento “inorgânico” do espírito. Neste
reconhecimento rememorativo as pressuposições do espírito – a idéia simples (ou a
supratemporalidade abstrata) e o natural (o processual da má-infinitude) se estabelecem
como mediações do próprio espírito, postas por meio de sua automediação; por este
motivo é que, para com estes momentos em relação aos quais o espírito se manifesta
como o momento ulterior, ele (o espírito) lhes devota a “soberana ingratidão”,
320
transformando-se na imediação originária automediada.
A imediação espiritual do pensar é o ponto de vista supremo a que a ciência
acede porque se encontra aqui o seu ser atual e a segunda negação frente à má-infinitude
da temporalidade – “a existência alongada do tempo”,
321
diz Hegel – , como
suprassunção da determinação natural do espírito que figura ainda no elemento da
exterioridade. O histórico aqui, também, tem o sentido deste elemento suprassumido
através da (re-)conciliação do tempo com o conceito, no sentido em que o espírito não
320
ECF III, § 381, adendo.
321
Diferença, p. 75.
159
sai de si para se conceber, sua concretude não tem a forma de uma divisão sucessiva de
momentos, tal como é pensada a história na abstração da sucessão de acontecimentos,
mas sua totalidade, mesmo internamente diferenciada, se encontra integralmente no
interior da efetividade, ou seja, do presente: isto é o sendo absoluto do espírito. A
complicação reside em não entender que o movimento linear do histórico aparece
suprassumido na circularidade atual do saber-de-si do espírito, que o espírito não “olha”
pra trás nem pra frente, nem para o que está morto nem para o informe, o qual é
igualmente a ausência de vida, mas “olha” pra si somente: “a verdadeira supressão do
tempo é o eterno presente, quer dizer, a eternidade”.
322
322
Ib, loc. cit.
160
VI Fontes Bibliográficas
6.1 Obras de Hegel
Em alemão:
HEGEL, G. W. F. Phänomenologie des Geistes. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. [PhG]
_____. Wissenschaft der Logik I. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. [WL I]
_____. Grundilinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1986.
[PhR]
_____. Enzyclopädie der philosophischen Wissenshaften I. Frankfurt: Suhrkamp,
1986. [EphW I]
_____. Enzyclopädie der philosophischen Wissenshaften II. Frankfurt: Suhrkamp,
1986. [EphW II]
_____. Glauben und Wissen. Leipzig: Felix Meiner, 1962. [GW]
Em francês:
_____. Foi et savoir. Tr. : PHILONENKO, Alexis ; LECOUTEUX, Claude. Paris:
Libraire Philosphique J. Vrin, 1988.
_____. Les preuves de éxistence de Dieu. Tr.: NIEL, Henri. Paris : Aubier Montaigne,
1947.
_____. La relation do scepticisme avec la philosophie suivie de L’essence de la
critique philosophique. Tr.: FAUQUET, B. Libraire Philosphique Paris: J.
Vrin, 1972. [L’essence]
_____. Science de la logique (premier livre: L’être). Tr.: LABARRIÈRE, Jean;
JARCZYK, Gwendoline. Paris: Aubier Montaigne, 1972. [SL]
Em espanhol:
161
_____. Ciencia de la lógica (primera parte). Tr.: MONDOLFO, Augusta y Rodolfo.
Buenos Aires: Librería Hachette, 1956. [CL]
_____. Diferencia entre los sistemas de filosofía de Fichte y Schelling. Tr.:
PAREDES, Carmen. Madrid: Tecnos, 1990.
_____. Lecciones sobre la historia de la filosofía. Tr.: ROCES, Wenceslao. México:
Fundo de Cultura Econômica, 1997. [LHF I; LHF II; LHF III]
_____. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Tr.: GAOS, José.
Madrid: Alianza Editorial, 1989. [LFH]
Em português de Portugal:
_____. Princípios da filosofia do direito. Tr.: VITORINO, Orlando. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. [PFD]
_____. Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling. Tr.:
MORUJÃO, Carlos. Lisboa: Imprensa Nacional, 2003. [Diferença]
Em português do Brasil:
_____. Fenomenologia do espírito (parte I e II). Tr.: MENESES, Paulo. 6 ed.
Petrópolis: Vozes, 2001. [FE]
_____. Enciclopédia das ciências filosóficas (I – A ciência da lógica). Tr.:
MENESES, Paulo. São Paulo: Loyola, 1995. [ECF I]
_____. Enciclopédia das ciências filosóficas (III – A filosofia do espírito). Tr.:
MENESES, Paulo. São Paulo: Loyola, 1995. [ECF III]
_____. Introdução à história da filosofia. Tr.:CARNEIRO, Euclidy. São Paulo:
Hemus, 1983.
_____. A razão na história (Uma introdução geral à filosofia da história). Tr.: SIDOU,
Beatriz. São Paulo: Editora Moraes, 1990.
_____. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do
estado em compêndio (A sociedade civil). Tr.: MÜLLER, Marcos Lutz. 2 ed. São
Paulo: IFCH/UICAMP, 2000. [LFFD/ SC]
162
_____. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do
estado em compêndio (Introdução). Tr.: MÜLLER, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo:
IFCH/UICAMP, 2005. [LFFD/I]
6.2 Obras de comentadores
Em português:
ARANTES, Paulo. A ordem do tempo. Tr.: RODRIGUES, Rubens. 2 ed. São Paulo:
Hucitec\Polis, 2000.
BONACCINI. Juan. A dialética em Kant e Hegel. Natal: EDUFRN, 2000.
HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. Tr.:
ROSA, Sílvio (coord.). São Paulo: Discurso Editorial, 1999.
MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. São Paulo: Loyola, 1992.
Em francês:
BOURGEOIS, Bernard. La pensée politique de Hegel. PUF: Paris, 1992.
BIARD, J.; BUVAT, D.; KERVEGAN, J.-F. et al. Introduction à lalecture de la
Science de la logique de Hegel. Paris: Aubier Montaigne, 1981.
DURBALE, Dominique ; DOZ, André. Logique et dialetique. Larousse : Paris, 1972.
HYPPOLITE, Jean. Logique et existence. Paris: Presses Universitaires de France,
1991.
KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris : Gallimard, 2003.
LABARRIÈRE, Jean-Pièrre. Structures et Mouvement dialectique dans la
Phénoménologie de l’esprit de Hegel. Paris: Aubier Montaigne, 1968.
LÉONARD, André. Commentaire littéral de la Logique de Hegel. Paris: Philosphique
J. Vrin, 1974.
PHILONENKO, Alexis. Lecture de la Phénoménologie de Hegel (Préface et
intoduction). Paris : Philosphique J. Vrin, 1993.
VAYSSE, Jena-Marie. Hegel : temps et histoire. Paris: PUF, 1998.
163
6.3 Textos de comentadores (em livros, atas de encontros ou
periódicos)
Em português:
AQUINO, J. E. F. Diferença e singularidade: notas sobre a crítica de Hegel a Spinoza.
Philosophica, Faculdade de letras de Lisboa, Lisboa, nº 28, 2006.
LIMA VAZ, Henrique de. O absoluto e a história. In: Ontologia e história. São Paulo:
Loyola, 2001. pp. 247-278.
_____. A concepção hegeliana do homem. In: Antropologia filosófica (v. 1). São
Paulo: Loyola, 2004. pp. 105-114.
OLIVEIRA, manfredo. Sistema hegeliano enquanto teoria transcendental do absoluto.
In: Para além da fragmentação: pressuposto e objeções da racionalidade
dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002. pp. 189-256.
_____. Lógica transcendental e lógica especulativa. In: A filosofia na crise da
modernidade. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1995. pp. 227-247.
_____. Leitura hegeliana da revolução francesa. In: Ética e sociabilidade. São Paulo:
Loyola, 1993. pp. 29-49.
Em francês:
BOURGEOIS, Bérnard. Sens et intention de la Phénoménologie l’esprit. In: «Préface
et introduction de la Phénoménologie l’esprit». Paris: Philosphique J. Vrin,
1997. pp 05-29.
BOUTON, Cristophe. L’histoire dont les événements sont des pensés. Révue
philosophique de Louvain, Louvain, n°. 2, maio, 2000. pp. 441-477.
DERANTY, Jean-Philippe. Lectures politiques et spéculatives des Grundlinien der
Philosophie des Rechts. Archives de Philosophie. Paris, tome 65, cahier 3,
septembre, 2002. pp. 295-317
164
6.4 Outras fontes consultadas
BONACCINI, Juan. O problema da coisa em si no idealismo alemão. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 2003.
BORGES, Maria de Lourdes. História e metafísica: sobre a noção de espírito do
mundo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
LUFT, Eduardo. Para uma crítica interna ao sistema de Hegel. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1995.
LUKÁCS, György. A dialética de Hegel em meio ao esterco das contradições. In:
Ontologia do ser social. Tr.: COUTINHO, Carlos. São Paulo: LECH, 1979. pp.
09-64.
MENESES, Paulo. Abordagens hegelianas. Recife: Unicap, 2004.
SALGADO, Joaquim. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 2006.
6.5 Obras complementares
FICHTE, Gottlieb. Sobre o conceito da doctrina-da-ciência ou da assim chamada
filosofia. Tr.: RODRIGUES, Rubens. Coleção “ Os pensadores”. São Paulo:
Abril Cultural, 1973.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tr.: AIEX, Anoar.
Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
SCHELLING, Friedrich Von. Exposição da idéia universal da filosofia em geral, e
da filosofia-da-natureza como parte integrante da primeira. Tr.:
RODRIGUES, Rubens. Coleção “ Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural,
1973.
SPINOZA, Baruch de. Etica demonstrada segun el orden geometrico. Tr.: COHAN,
Oscar. México: Fundo de Cultura Economica, 2002.
PLATÃO. República. Tr.: ROCHA, Maria Helena da. 9 ed. Calouste: Lisboa, 2001.
165
6.6 Dicionários
CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tr.: CABRAL, Álvaro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
INHOOD, Michael. Dicionário Hegel. Tr.: CABRAL, Álvaro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
LOGOS – ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE FILOSOFIA. Lisboa\São
Paulo: Editorial Verbo, 1997. 6 vol.
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