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especialistas) impõem e proclamam como os únicos fins reais (NARODOWSKI,
2001, p. 54).
Se de um lado os professores, a coordenadora e a diretora assumem o papel de experts
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e o lugar da autoridade, conforme descreve Bujes (2002, p. 260), "que é o de falar a verdade
sobre os seres humanos para justificar as formas de intervenção/regulação que sobre eles
serão exercidas", fazendo com que infância se torne objeto de seus discursos e práticas, de
outro lado a família também é convocada a participar do processo de disciplinamento das
crianças.
Vejamos um trecho da obra de Graciliano Ramos (1905, p. 72-75) que trata do seu
processo de disciplinamento e que antecedeu a sua entrada na escola:
Fogueiras de São João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante da casa. Eu andara à
tardinha em redor do monte de lenha que o moleque José arrumava [...] Também
conhecia o breu derretido. No armazém, barricas finas continham substância escura
que, pisada, tomava a cor das moedas de vintém livres do azinhavre, raspadas no
tijolo, molhadas e enxutas. Eu havia esfarelado um pedaço dessa maravilha, com um
peso de meio quilo, junto à balança romana da loja. Tinha posto a massa dourada num
cartucho de jornal, riscado um fósforo em cima e esperado o fenômeno. Uma lágrima
correra no papel, alcançara-me o dedo anular, descera da unha à primeira falange.
Largando a experiência, eu me desesperara, abafando os gritos, fora meter a mão num
pote de água. Tinha sofrido em silêncio, receando que percebessem a traquinada e a
queimadura. Quando a minha mãe falou em breu derretido, examinei a cicatriz do
dedo e balancei a cabeça, em dúvida. Se o pequeno torrão, esmagado com o peso de
meio quilo, originara aquele desastre, como admitir que pessoas resistissem muitos
anos a barricas cheias derramadas em tachas fundas, sobre fogueiras de São João? – A
senhora esteve lá? Desprezou a interrogação inconveniente e prosseguiu com energia.
– Eu queria saber se a senhora tinha estado lá. Não tinha estado, mas as coisas se
passavam daquela forma e não podiam passar-se de forma diversa. Os padres
ensinavam que era assim. – Os padres estiveram lá? A pergunta não significava
desconfiança na autoridade. Eu nem pensava nisso. Desejava que me explicassem a
região de hábitos curiosos. Não me satisfaziam as fogueiras, as tachas do breu, vítimas
e demônios. Necessitava pormenores [...] – Os padres estiveram lá? tornei a perguntar.
Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado, claro que não
tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros.
Senti forte decepção: as chamas eternas e as caldeiras medonhas esfriaram. Começava
a julgar a história razoável, adivinhava por que motivo Padre João Inácio, poderoso e
meio cego, furava os braços da gente, na vacina. Com certeza Padre João Inácio havia
perdido um olho no inferno e de lá trouxera aquele mau costume. A resposta de minha
mãe desiludiu-me, embaralhou-me as idéias. E pratiquei um ato de rebeldia: – Não há
nada disso. Minha mãe esteve algum tempo analisando-me, de boca aberta,
assombrada. E eu, numa indignação por se haverem dissipado as tachas de breu, os
demônios, o prestígio de Padre João Inácio, repeti: – Não há não. É conversa. Minha
mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas. Não me convenci.
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Esta expertise é reconhecida por Rose (apud Bujes, 2002) como uma articulação entre a capacidade dos
sujeitos de se autogovernarem com os objetivos das autoridades políticas em conseguir promover isso através
da persuasão, da educação e da sedução, ao invés de utilizar a coerção.