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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
EDSON DUQUE DE CASTRO
A REDUÇÃO PROTESTANTE:
uma análise introdutória das possibilidades
do protestantismo na modernidade
a partir da precariedade de sua linguagem simbólica
São Paulo
2008
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Edson Duque de Castro
A REDUÇÃO PROTESTANTE:
uma análise introdutória das possibilidades
do protestantismo na modernidade
a partir da precariedade de sua linguagem simbólica
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião.
Orientador: Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante.
São Paulo
2008
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EDSON DUQUE DE CASTRO
A REDUÇÃO PROTESTANTE:
UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA DAS POSSIBILIDADES
DO PROTESTANTISMO NA MODERNIDADE
A PARTIR DA PRECARIEDADE DE SUA LINGUAGEM SIMBÓLICA
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Dr. Etienne Alfred Higuet
Universidade Metodista de São Paulo
___________________________________________________________________
Dr. Breno Martins Campos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
À Vânia, minha esposa, leal
companheira. Sem ela teria
sido impossível.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de vida e inspiração;
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, a bolsa de estudos;
Ao Mackpesquisa, o financiamento da pesquisa;
À Igreja Presbiteriana Luz do Mundo, o apoio e incentivo;
À Igreja Presbiteriana Nova Vida, a compreensão;
Ao meu amigo Paulo Huggler, o investimento e diálogos inspirativos;
Ao Darly, a amizade;
Ao Dr. Ronaldo, a orientação decisiva e apoio incondicional;
Ao Dr. Etienne e Dr. Breno, o enobrecimento de minha banca.
RESUMO
Este trabalho aborda a temática de linguagem em sua perspectiva simbólica. A linguagem de
um modo geral, tem valor existencial. Forma uma cosmovisão, legitima uma dada
interpretação da realidade, media a relação com o outro, inclusive com o “totalmente outro”;
neste caso específico, a linguagem simbólica é tida como imprescindível, dado o caráter não
fechado e evocativo do símbolo. Analisa também o protestantismo, sobretudo em sua versão
puritana, enquanto religião que reduz o simbolismo religioso predominante no universo
católico medieval. O protestantismo rejeita todo e qualquer adendo à relação estabelecida
entre o ser humano pecador e o Deus intocável. A angústia que daí nasce deve ser superada
solitariamente por meio de uma atuação bem sucedida no mundo, capaz de revelar o estado de
graça do indivíduo. Isso tem implicações éticas, econômicas e religiosas. O protestantismo
representa o clímax do processo de desencantamento do mundo por via religiosa, uma vez que
por via científica ele está longe de chegar ao fim. A Modernidade desencantada ao afirmar a
autonomia do indivíduo, destrói as instituições, desregula o crer, promove o pluralismo
religioso, privatiza a experiência religiosa. O indivíduo é livre, porém esmagado pela falta de
sentido existencial. A Modernidade liberta o indivíduo da religião, mas não suprime a religião;
embora nem toda religião sobreviva na Modernidade sem optar pela insanidade. O
protestantismo, com base em seu princípio de liberdade, é a religião da Modernidade, desde
que consiga superar a tentação de posse da verdade. Até porque em sua essência o
protestantismo afirma que a verdade sem a busca da verdade é apenas metade da verdade.
Palavras-chave: Linguagem. Símbolo. Protestantismo. Modernidade.
ABSTRACT
This study investigates language in its symbolic aspect. Generally speaking, language has an
existential value. Language builds worldview. It legitimates a specific interpretation of reality.
It mediates the relationship with others, and also with the “totally other”; in this case a
symbolic language is indispensable considering the open and suggestive character of the
symbol. It also analyzes Protestantism, mainly its puritanical version as a religion that
minimizes mainline religious symbolism in the medieval catholic universe. Protestantism
rejects each and every addition to the established relationship between the sinning human
being and the untouchable God. The anguish that comes from the relationship between man
and God must be overcome alone through a well-succeeded performance in the world that it is
capable of revealing the state of grace of the individual. All of that has ethics, economics, and
religious implications. Protestantism represents the climax of the process of disenchantment of
the world through religion, for through science the world is far from an end. When
disenchanted Modernity affirms the autonomy of an individual, it destroys the institutions, it
alters the belief, and it promotes religious pluralism and privatizes the religious experience.
The individual is free, but crushed for the lack of existential meaning. Modernity frees the
individual from religion, but it does not eliminate religion, although not all religion survives in
Modernity without choosing insanity. Protestantism based in its freedom principle seems to be
the religion of Modernity if it overcomes the temptation of being the holder of the truth. After
all, for protestantism, the truth without the search for the truth is only half the truth.
Keywords: Language; Symbol; Protestantism; Modernity.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I
A LINGUAGEM SIMBÓLICA
1.1 A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO ............................................................................................ 12
1.2 O SAGRADO É A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO?.......................................................................... 14
1.3 O SAGRADO ....................................................................................................................................... 18
1.3.1 RUDOLF OTTO:
O SAGRADO COMO MYSTERIUM TREMENDUM ................................................... 19
1.3.2 MIRCEA ELIADE: O SAGRADO COMO MODALIDADE DE SER NO “MUNDO”............. 22
1.4 A LINGUAGEM ................................................................................................................................. 25
1.4.1 LINGUAGEM E COSMOVISÃO.................................................................................................... 25
1.4.2 LINGUAGEM E LEGITIMAÇÃO .................................................................................................. 28
1.4.3 LINGUAGEM
E MEDIAÇÃO ......................................................................................................... 38
1.4.3.1 O símbolo e o sentido ..................................................................................................................... 38
a) A definição e função dos símbolos ........................................................................................................ 40
b) O símbolo e o duplo sentido................................................................................................................... 41
c) O símbolo e a interpretação.................................................................................................................... 44
1.4.3.2 O mito e a realidade ....................................................................................................................... 47
a) A definição e função dos mitos .............................................................................................................. 47
b) A oposição entre o mythos e o logos..................................................................................................... 49
c) O mito e a realidade ................................................................................................................................ 53
1.4.3.3 O rito e o ritualismo ....................................................................................................................... 54
a) A definição e função do rito ................................................................................................................... 54
b) O rito e o mito ......................................................................................................................................... 55
c) O rito e a práxis ....................................................................................................................................... 56
1.4.3.4 A religião e a magia ....................................................................................................................... 57
a) A religião ................................................................................................................................................. 57
b) A magia.................................................................................................................................................... 59
c) Religião e magia como oposição............................................................................................................ 63
CAPÍTULO II
A REDUÇÃO PROTESTANTE E O
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
2.1 A RIQUEZA SIMBÓLICA DO UNIVERSO CRISTÃO MEDIEVAL ..................................... 65
2.1.1 O
ALÉM ............................................................................................................................................... 66
2.1.1.1 Deus ................................................................................................................................................. 66
2.1.1.2 Diabo ............................................................................................................................................... 67
2.1.2 A
TERRA.............................................................................................................................................. 68
2.1.2.1 O espaço e o tempo......................................................................................................................... 69
2.1.2.2 A instituição e os sacramentos...................................................................................................... 71
2.1.3 E
NTRE A TERRA E O ALÉM ................................................................................................................. 73
2.1.3.1 Santos .............................................................................................................................................. 73
2.1.3.2 Anjos................................................................................................................................................ 74
2.2 REDUÇÃO PROTESTANTE E O PURITANISMO ANGLO-AMERICANO ....................... 75
2.2.1. N
O ALÉM: O DEUS INTOCÁVEL......................................................................................................... 76
2.2.2 N
A TERRA: UMA EXISTÊNCIA PARADOXAL....................................................................................... 78
2.2.3 E
NTRE O CÉU E A TERRA: A PALAVRA RACIONALIZADA.................................................................. 80
2.3 A ÉTICA PURITANA E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO SEGUNDO WEBER .............. 81
2.3.1 O
CONCEITO DE VOCAÇÃO................................................................................................................. 82
2.3.2 O
PURITANISMO E O CAPITALISMO.................................................................................................... 84
CAPÍTULO III
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
E AS POSSIBILIDADES DA RELIGIÃO NA MODERNIDADE
3.1 A ATUALIDADE DE MAX WEBER............................................................................................. 90
3.2 O CONCEITO DE DESENCANTAMENTO DO MUNDO ........................................................ 93
3.2.1 O SENTIDO DO CONCEITO .......................................................................................................... 94
3.2.2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A RELIGIÃO .......................................................... 94
3.2.3 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A CIÊNCIA............................................................. 96
3.3 O CONCEITO DE DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A SECULARIZAÇÃO........... 97
3.3.1 WEBER E OS CLÁSSICOS: A RUPTURA ................................................................................... 99
3.3.2 WEBER, A SECULARIZÃO E O DESENCANTAMENTO: A
IRREVERSIBILIDADE..........100
3.4 AS POSSIBILIDADADES DA RELIGIÃO ANTE O DESENCANTAMENTO ................... 102
3.4.1 M
ODERNIDADE E RELIGIÃO: O DECLÍNIO ....................................................................................... 103
3.4.2 MODERNIDADE E RELIGIÃO: O PARADOXO..................................................................................... 105
3.4.2.1 A configuração do paradoxo....................................................................................................... 106
3.4.2.2 A reconfiguração da experiência religiosa................................................................................ 108
a) A caractestica maior ........................................................................................................................... 109
b) A validação do crer ............................................................................................................................... 112
c) A religião em movimento ..................................................................................................................... 114
3.4.3 M
ODERNIDADE E PROTESTANTISMO: A ADEQUAÇÃO.................................................................... 116
3.4.3.1 A essência do protestantismo ...................................................................................................... 117
a) A Fé ........................................................................................................................................................ 118
b) A Bíblia.................................................................................................................................................. 119
c) A Igreja ..................................................................................................................................................121
3.4.3.2 O princípio protestante e a situação-limite................................................................................ 123
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................128
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................132
INTRODUÇÃO
A nossa pesquisa bibliográfica que gravita em torno da temática da linguagem e da
religião na modernidade, está dividida em três partes que se complementam.
Inicialmente abordamos a linguagem. A intenção é demonstrar que a linguagem está
presente em todo tempo e em toda a parte, impregnando os pensamentos e os sonhos
humanos, constituindo-se um produto e um elemento da atividade prática e das relações entre
os seres humanos. Na verdade, todas as conquistas humanas no decurso da história estão de
alguma forma relacionadas à linguagem, visto que ela, além de transmitir, é guardiã do
conhecimento humano. Sem a linguagem não haveria cultura, posto que os conhecimentos de
indivíduos e civilizações não seriam transmitidos e/ou guardados e assim, conseqüentemente,
desapareceriam. Em última instância, a linguagem é guardião do ser.
Reconhecemos que “a linguagem é um fenômeno extremamente complexo, que pode
ser estudado, a partir de múltiplos pontos de vista, pois pertence a diferentes domínios. É, ao
mesmo tempo, individual e social, física, fisiológica e psíquica” (FIORIN, 1995, p. 8). Nossa
abordagem, entretanto, enfocará a linguagem enquanto mediadora, formadora e legitimadora
da experiência religiosa, restringindo nosso propósito à linguagem simbólica, levando em
conta que esta é capaz de “exprimir situações paradoxais ou certas estruturas da realidade
última, impossíveis de se exprimir de outra maneira” (ELIADE, 1995, p. 8).
A segunda parte da pesquisa objetiva evidenciar que a redução da linguagem
simbólica – em comparação com o catolicismo – enquanto mediadora da experiência com o
sagrado, no protestantismo, radicalizada, sobretudo, em sua versão puritana
1
, está na origem
do que Max Weber denominou desencantamento do mundo.
[...] O protestantismo parece ser uma mutilação radical, uma redução aos
elementos ‘essenciais’, sacrificando-se uma ampla riqueza de conteúdos
religiosos [...] o protestantismo despiu-se tanto quanto possível três mais antigos
e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre e a
magia. (BERGER, 1985, p. 124).
Este desencantamento do mundo simplificou a mensagem e o culto protestante.
Portanto, por essa perspectiva, não é demasiado afirmar que o protestantismo constitui-se um
empobrecimento do cristianismo.
1
No puritanismo, a linguagem simbólica foi mutilada, quase suprimida. A experiência religiosa protestante foi
esvaziada, tornou-se mais pobre, “o culto foi simplificado, o aparato litúrgico foi desprezado. A Bíblia, a ‘a
palavra’ passou a ser o centro do culto” (MENDONÇA, 1995, p. 52).
11
Ao eliminar toda e qualquer mediação de cunho sacramental da experiência religiosa,
o protestantismo nega peremptoriamente a validade da linguagem simbólica tão predominante
no universo cristão medieval. Tal redução tem implicações de cunho econômico e religioso,
implicações que serão analisadas sob o prisma weberiano.
A última parte do trabalho pretende evidenciar que a religião paradoxalmente declina e
avança na modernidade desencantada, e que o protestantismo – desencantado por natureza –
seguindo também sua índole paradoxal, longe de ser interditado na Modernidade, ajusta-se
muito bem a ela.
De forma mais concisa e objetiva, podemos afirmar que a nossa discussão parte de
uma tríplice problematização: 1) A linguagem simbólica – na sua perspectiva religiosa – é de
fato capaz de “exprimir situações paradoxais ou certas manifestações do sagrado, impossíveis
de se exprimir de outra maneira”? 2) O protestantismo, enquanto um esforço de discurso
sobre o sagrado e/ou enquanto linguagem mediadora da experiência religiosa, suprimiu a
linguagem simbólica e tal supressão está ligada ao processo de desencantamento e
secularização do ocidente? 3) Na Modernidade, caracterizada, entre outras coisas, pelo
individualismo, pela perda de identidades herdades, pela presença silenciosa da religião,
uma religião capaz de se adequar a esse momento complexo que, além de tudo, tem como
fonte vital a mudança constante?
Partiremos das hipóteses de que há um valor existencial no simbolismo religioso, já
que “quem compreende um símbolo, não só se ‘abre’ para o mundo objetivo como também
consegue sair de sua situação particular e ter acesso à compreensão do universal” (ELIADE,
1991, p. 227). Isto é, a linguagem simbólica não pode ser alijada de nossa tentativa de
compreender a experiência religiosa na modernidade. Além disso, pretendemos apontar que o
avanço do processo de desencantamento e da secularização está intimamente ligado ao
protestantismo, na medida em que este opta por uma relação “direta” com Deus, desprovida
de toda e qualquer atitude ou instrumento que possa amenizar o peso ou angústia de tal
experiência. Por fim, verificaremos que a Modernidade desencantada, questionadora de toda e
qualquer coesão e sentido atribuídos religiosamente, por um lado, não consegue conferir o
sentido que destrói a partir de sua promessa de sentido racional; por outro, não foi capaz
suprimir a religião, ainda que tenha privatizado a experiência religiosa e destruído todo e
qualquer modelo não subjetivo para tal experiência; e que, nesse contexto, o protestantismo se
encaixa perfeitamente.
É óbvio que esta análise que propomos tem caráter meramente introdutório, tendo em
vista a vastidão do tema e o nível em que a pesquisa se dá.
CAPÍTULO I
A LINGUAGEM SIMBÓLICA
“Sabia que a religião é uma linguagem? Um jeito de falar sobre o mundo... Religião
é taparia que a esperança constrói com palavras. E sobre estas redes as pessoas se
deitam. É. Deitam-se sobre palavras amarradas umas nas outras. Como é que as
palavras se amarram?É simples. Com o desejo. Só que, às vezes, as redes de amor
viram mortalhas de medo. Redes que podem falar de vida e podem falar de morte. E
tudo se faz com as palavras e o desejo.Por isto, para se entender a religião, é
necessário entender o caminho da linguagem”.
Rubem Alves
2
1.1 A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO
Segundo Antonio Mendonça, o filósofo e político francês Benjamin Constant (1767-
1830) e o teólogo, filósofo e pedagogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834) devem ser
considerados os precursores da fenomenologia da religião, uma vez que “ocupam-se da
religião sob o ponto de vista fenomenológico, embora não tratem explicitamente desta
disciplina” (1999, p. 4). Com isso não concorda Arnaldo Nesti, para quem, “Pierre Chantepie
De la Saussaye (1848-1920), com Cornelis P. Tiele (1830-1902) na última fase da sua
reflexão, devem ser considerados os precursores da fenomenologia que se irá articular e
desenvolver com a vertente da ‘fundação’” (1990, p. 254).
Seja como for, podemos afirmar que a fenomenologia da religião
3
, surgida no início do
século XX, consiste numa proposta de revisão das estruturas epistemológicas com que o
século começou. A fenomenologia da religião se vê desafiada a superar as até então,
predominantes perspectivas acerca da origem e da história da religião, quase sempre
referenciadas ao evolucionismo positivista. A partir desse momento, a questão da religião
coloca-se no “esquema da essência e da forma e pretende partir da filosofia como ciência
rigorosa com seu respectivo método e, assim, situa-se num absoluto a priori em relação às
demais disciplinas como a história, a antropologia e a sociologia” (MENDONÇA, 1999, p. 6).
Em resumo, e, ainda de acordo com Mendonça, “a fenomenologia da religião pode ser vista
num duplo sentido: uma ciência independente, com suas pesquisas e publicações, mas
2
In: O suspiro dos oprimidos. São Paulo-SP: Edições Paulinas, 1984, p. 6.
3
Segundo Arnaldo Nesti, o conceito de fenomenologia da religião é muito abrangente. Pode se tratar de: a) um
todo analítico que tende a uma explicação da morfologia religiosa; b) uma escola tipológica que tende a
investigar os diversos tipos de formas religiosas; c) uma corrente que, em sentido estrito, visa dar conta da
essência do sentido e da estrutura do fenômeno religioso; d) uma orientação de natureza filosófica que se origina
do sentido estreito da contribuição de Edmund Husserl e, em particular, de Max Scheler (1990, p. 251ss)
13
também como um método que faz uso de princípios próprios, como a epochê e a ‘redução
eidética’” (MENDONÇA, 1999, p. 6).
“Para os fenomenólogos
4
da religião, o homem é naturaliter religiosus’”, ou seja, “a
religião aparece como uma característica constante dos seres humanos, em todas as épocas”
(MARTELLI, 1995, p. 138). Além disso, a capacidade de atribuir sentido à vida a partir do
apelo ao sagrado é uma postura inerente à condição humana desde as primeiras manifestações
e/ou formas culturais em que se reconheça a hominização.
O ser humano não só é essencialmente religioso, como também capaz de atribuir
expressão à sua relação com o sagrado. Nas palavras de Stefano Martelli, “a expressão
religiosa é, desde os primórdios da humanidade, parte constitutiva e integrante das atividades
simbólicas, que distinguem o ‘homo sapiens’ dos animais” (MARTELLI, 1995, p. 138).
A via fenomenológica em sua referência à religião, em última análise se propõe a
evitar os reducionismos que podem advir de análises inspiradas nas abordagens da religião
feitas por Marx, Nietzsche e Freud, os mestres da suspeita, segundo Ricoeur
5
(MARTELLI,
1995, p. 138).
Finalizando esta parte, podemos assentir que para os fenomenólogos, a experiência
religiosa consiste em experimentar a presença do sagrado ainda que toda religião histórica se
utilize de uma linguagem culturalmente mediada para descrevê-lo. O não reconhecimento
deste fato pode levar justamente ao reducionismo do logos que outrora abrira espaço à
perspectiva fenomenológica. A multiplicidade de concepções e de manifestações não exclui a
possibilidade de individuação dos elementos constantes do fenômeno religioso, dos quais o
sagrado seria o mais importante.
4
Os principais fenomenólogos da religião são: O teólogo luterano alemão Rudolf Otto (1869-1937); o teólogo
holandês Gerhardus van der Leeuw (1909-1950), “autor de Fenomenologia da Religião, publicada em 1933,
foi o nome mais expressivo da fenomenologia da religião nos anos que precederam sua morte. Ele situa o poder
como objeto da religião e a fenomenologia como busca por captar e descrever o homem no seu comportamento
em relação ao poder” (MENDONÇA, 1990, p. 7). “A chave interpretativa da fenomenologia de Leeuw [...] está
na noção de poder que, a seu juízo, está na base de toda forma religiosa. É a partir de tal conceito que se deduz o
que é e o que não é religioso. [Para] Leeuw, é a idéia de poder que autentica, no sentido religioso, coisas e
pessoas. Os objetos e as pessoas investidas de poder têm uma natureza específica, a que nós chamamos sagrada”
(NESTI, 1990, p. 260 s); Joachim Wach (1898-1955) que publicou, em 1931, uma Introdução à Sociologia da
Religião em alemão e mais tarde, em 1971 uma versão em inglês. Para ele “existem quatro critérios para
verificar se um dado é ou não é religioso. Efetivamente, a experiência religiosa se caracteriza como tal,
enquanto: a) é uma resposta àquilo que é experimentado como realidade última; b) é uma resposta total do ser,
na sua globalidade, àquilo que é apreendido como realidade última; c) é a experiência mais intensa do que seja
capaz o homem; d) é experiência que comporta um imperativo que impele
à
ação. Portanto, para que a
experiência religiosa seja “autêntica”, devem estar presentes as quatro condições acima referidas. No seu
conjunto, elas estão traçando um divisor de águas entre o que é e o que não é religioso” (Idem, 272) e o
historiador romeno Mircea Eliade (1907-1986). Detalharemos adiante as perspectivas de Otto e Eliade.
5
Confira, por exemplo: RICOEUR, Paul. Ideologia e utopia. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1986, p. 15.
14
1.2 O SAGRADO É A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO?
Seja na Europa, seja nos EUA os debates acerca do conceito de religião com base em
uma essência, neste caso, o sagrado, seguem acirrados. Há quase de 30 anos circulava, entre
os cientistas da religião alemães, a seguinte e sintomática anedota: “Por que os cientistas da
religião na Alemanha deveriam urgentemente consultar um médico? [...] Porque eles sofrem
de uma numinose” (USARSKI, 2004, p. 74), numa referência clara ao uso extremado e/ou
indiferenciado do postulado de Rudolf Otto.
A partir dos debates europeus, situados principalmente na Alemanha, Frank Usarski
tenta identificar os sintomas da numinose entre os cientistas da religião aqui no Brasil.
Segundo ele, os indícios da numinose entre nós, referem-se ao
o uso inflacionário ou mesmo aleatório da palavra sagrado, que é aplicada à
vontade para parafrasear algo que - de uma maneira ou outra - tem (mais ou menos)
a ver com religião. [... bem como o contrário disso, o uso] o termo sagrado é
intuitivamente associado a um sentido mais específico do que o da palavra religião
(USARKI, 2004, p. 75).
Embora reconheça que este é um assunto polêmico e longe de chegar ao fim,
sobretudo no Brasil, onde os cursos são relativamente novos, Usarski, por um lado, não poupa
críticas
6
ao ramo clássico das ciências da religião, o sagrado (2004, p. 78); por outro, não
despreza evidentemente a validade da fenomenologia da religião, bem como o uso do termo
sagrado, desde que seja um uso “mais consciente e cuidadoso” e que os “integrantes de uma
disciplina que há décadas tem buscado um lugar próprio nas universidades levem a sério a
crítica à insuficiência da discriminação entre a Ciência da Religião e a Teologia, nas
publicações de fenomenólogos da religião” (USARSKI, 2004, p. 94).
Ainda que Steven Engler, por sua vez, situe o debate quanto ao sagrado – como o a
priori da fenomenologia da religião – nos EUA, a temática e o tom crítico de Usarki são
mantidos. Seu artigo
7
6
Discutir cada um dos pontos elencados por Usarki demandaria muito esforço sem com isso contribuir
significativamente para o nosso propósito aqui, por isso apenas os citamos aqui como incentivo à leitura
completa do seu artigo: a) A crítica à negligência do contexto sócio-histórico do surgimento do termo e a falta da
reflexão sobre suas implicações confessionais; b) A crítica à suposta universalidade do significado do termo do
sagrado; c) A crítica às implicações ontológicas e “criptoteológicas” da noção do sagrado; d) Reflexões críticas
sobre o objeto privilegiado pela Fenomenologia; e) A crítica à negligência das referências múltiplas à
transcendência no mundo religioso empírico; f) A crítica à suposta singularidade da experiência do sagrado; g) A
crítica às implicações normativas na abordagem da Fenomenologia da Religião; h) Críticas à metodologia da
Fenomenologia da Religião.
7
ENGLER, Steven. Teoria da religião norte-americana: alguns debates recentes. In: REVER – Revista de
estudos da religião. São Paulo-SP: PUC-SP, Número 4, 2004, p. 27-42. Disponível em: http://
www.pucsp.br/rever/rv4_2004/p_engler.pdf. Acesso em 07/11/2007.
15
aborda debates recentes sobre a definição do conceito de ‘religião’. Nele, o
argumento é de que existem problemas com as definições de ‘religião’ que se
baseiam em um elemento santo da consciência humana, em uma realidade "sacra"
ou em um acesso privilegiado para uma essência além da História (ENGLER, 2004,
p. 27).
Assim como Usarski, Engler deseja apenas contribuir para o avanço do debate, o que
não o impede de ser impiedoso nas críticas. Se por um lado reconhece-se que o assunto é
complicado e que nenhum argumento pode negar a existência do sagrado, por outro afirma-se
que as “críticas negam a utilidade do sagrado como ferramenta das Ciências Humanas”
(ENGLER, 2004, p. 30).
O ‘sagrado’ serve como base para duas afirmações importantes: é comum a todas as
religiões e, portanto, é o assunto principal das Ciências da Religião. Como
prevalecem tantas divergências entre as religiões e entre os entendimentos
acadêmicos a respeito, devemos desconfiar da possibilidade de existência de um
único objeto escondido, de modo inefável, atrás de tal variedade de fenômenos e
teorias. Para utilizar o conceito de ‘sagrado’ com confiança, precisamos ter
evidência pública e falsificável do fenômeno. Pelo sagrado, é difícil afirmar que tais
evidências existem (ENGLER, 2004, p. 30).
Para Steven Engler, dentre as críticas ao sagrado destacam-se as de cunho a
epistemológico, semântico e a ideológico. Do ponto de vista epistemológico, o método
fenomenológico dificilmente consegue garantir correspondência e coerência entre os
conceitos construídos a partir da suposta existência do sagrado e a sua manifestação, ou seja,
não existe evidência da existência do sagrado fora da hierofania captada pela experiência
religiosa. E além disso, a fenomenologia religiosa afirma que todos os ‘espaços sagrados’
manifestam o mesmo algo ‘inteiramente outro’ sem poder provar sua tese. Em decorrência, se
as ciências da religião afirmam
a existência de um sagrado comum a todas as religiões sem poder prová-la, não
passam de integrantes de uma espécie de ‘crypto-teologia’ [...] Sendo assim, elas
estariam fundamentadas em uma fé na existência do sagrado análoga à fé que os
fiéis têm na existência de Deus (ENGLER, 2004, p. 31).
A crítica de cunho semântico confronta a fenomenologia da religião com o problema
da tradução, isto é, “suas proposições atingem ou não o sagrado; se atingirem, é necessário
relatar como esta experiência única do inteiramente outro se traduz para a multidão de
crenças religiosas do mundo” (ENGLER, 2004, p. 31). A teoria fenomenológica não pode se
furtar também à “distinção entre os dados da experiência (o conteúdo/o sagrado) e o plano
conceitual (a forma/as crenças religiosas)” (ENGLER, 2004, p. 31). E de acordo com Engler,
16
a perspectiva fenomenológica não pode equacionar esse problema afirmando que o “acesso ao
sagrado” se dá de forma indireta, pelo viés da linguagem simbólica. Isso seria um subterfúgio
que Nancy K. Frankenberry denomina ‘a teologia das formas simbólicas’. Em suma, a crítica
de cunho semântico nos expõe a este dilema: “ou o sagrado não é ‘inteiramente outro’, sendo
que podemos falar a seu respeito em linguagem literal (e contextualizada), ou é impossível
afirmar algo concreto em relação a ele” (ENGLER, 2004, p. 32).
Por fim, a crítica à fenomenologia da religião sob o prisma ideológico deve-se ao fato
de que se estuda a religião entre parênteses, entenda-se, fora do contexto político e histórico.
A linguagem do sagrado põe os valores das culturas estudadas entre aspas e, pelo
mesmo ato, importa valores liberais, pluralistas e individualistas da cultura
ocidental observadora [...] religião é um conceito que apareceu somente no
Ocidente moderno e que seu conteúdo depende das lealdades ideológicas dos
pesquisadores (ENGLER, 2004, p. 32).
Para Engler, tanto o método descritivo que “pressupõe a existência do sagrado e
pretende organizar e classificar os hierofanias a partir de sua base” quanto o método
comparativo que “propõe sistemas comparativos de descrição segundo as categorias bem
conhecidas dos textos introdutórios da disciplina: escritura sacra, história sacra, tempo sacro,
espaço sacro, funções e instituições sociais” são passíveis de crítica. Este “proporciona uma
comparação superficial, sem interpretação ou explicação. Além disso, oculta dimensões
ideológicas”; aquele também possui uma dimensão ideológica, ou seja, ao tratar todas as
religiões dentro de um mesmo padrão, termina-se por reforçar os valores implícitos no padrão
de descrição: pluralismo, tolerância, individualismo e liberdade, como requisitos para o
agente acadêmico que empenhava esses mesmos valores com o seu olhar ‘objetivo’
(ENGLER, 2004, p. 33).
Pensando numa alternativa que se adeque melhor ao objetivo deste trabalho,
abandonamos Steven Engler e nos voltamos para José J. Queiroz.
8
Considerando-se os avanços nos estudos da linguagem como um dos fenômenos
marcantes do século XX, que penetrou nas ciências em geral e no estudo da religião, há de se
considerar também que foi de grande importância a concepção de que a filosofia deve
realizar-se de alguma maneira através da linguagem (QUEIROZ, 2006, p. 11).
8
Referimo-nos ao seu artigo: QUEIROZ, José J. Deus e crenças religiosas no discurso filosófico pós-moderno:
Linguagem e Religião. In: REVER – Revista de estudos da religião.o Paulo-SP: PUC-SP, Número 2, 2006, p.
1-23. Disponível em: http:// www.pucsp.br/rever/rv2_2006/p_queiroz.pdf. Acesso em 07/11/2007.
17
Os estudos da linguagem ganharam notoriedade com as “posições do primeiro
Wittgenstein, expressas no Tractatus Lógico-Philosophicus (1ª ed. Em 1921) e no segundo
Wittgenstein, das Investigações Filosóficas (1ª ed. póstuma em 1952)” (QUEIROZ, 2006, p.
11). Nosso interesse recai sobre o segundo Wittgenstein, principalmente no que respeita à
“concepção de linguagem que ficou célebre e ganhou espaços em várias áreas do saber, a
teoria dos jogos lingüísticos. A linguagem não é mais monolítica, mas se desmancha em um
número infinito de jogos” (QUEIROZ, 2006, p. 13). A linguagem adquire várias funções,
como se fosse “ferramentas em sua caixa apropriada: lá estão um martelo, uma tenaz, uma
serra, uma chave de fenda [...] Assim como são diferentes as funções desses objetos, assim
são diferentes as funções das palavras. (WITTGENSTEIN, 1999, p. 31). Com isso se quer
dizer que “o sentido das palavras não é estático; depende do uso que delas se faz. Os jogos
correspondem a infinitos usos da linguagem” (QUEIROZ, 2006, p. 13).
Na tentativa de sustentar a validade de perspectiva fenomenológica como forma de
estudo da religião, Queiroz recorre à idéia de que a religião pode e deve ser definida nas
fronteiras da linguagem, seguindo o pensamento de Paul M. van Buren, que claramente
caminha na esteira de Wittgenstein (QUEIROZ, 2006, p. 17). Segundo Buren, embora a
linguagem seja restritiva, o pensamento pode encontrar mecanismos para superar os limites
impostos pela linguagem convencional e/ou cotidiana.
A linguagem tem limites porque tem regras. Eliminadas as regras, já não há mais
linguagem. Mas nem por isso se deve pensar a linguagem “como uma gaiola, que
restringe nossa liberdade de movimento” [...] Para eliminar essa concepção
restritiva, o autor acredita que o papel da linguagem pode ser melhor entendido
introduzindo a imagem de uma plataforma, sobre a qual podemos circular,
caminhar, dançar ou dormir, isto é, fazer tudo o que fazemos com as palavras [...]
Longe de nos aprisionar, a plataforma lingüística nos torna livres. No centro dela,
nos movemos com segurança; já menos seguros estaremos se caminharmos para as
margens. Se chegarmos ao seu extremo, corremos o risco de cair fora dela. O centro
da plataforma corresponde àquela linguagem cujas regras são claras: é o linguajar
do cotidiano e das ciências. Indo para a periferia, a linguagem deixa a clareza do
centro e assume o falar metafórico, analógico e até paradoxal, mas ainda continua
submetido a regras, mesmo que chegue à extrema fronteira. Se ultrapassá-la, cessam
as regras e caímos no falar sem sentido (grifo original, QUEIROZ, 2006, p. 18).
No Ocidente, as forças econômicas nos pressionam a concentrar nosso modo de falar e
viver no centro (QUEIROZ, 2006, p. 18), [...] mas há instâncias da realidade que insistem em
singrar o mar do desconhecido. São elas: a filosofia, a poesia, e, até mesmo, a ciência, mas,
sobretudo, a religião, que é esse falar sempre no limite.
18
Na maioria das vezes, ela permanece dentro dos limites. Mas o que caracteriza
como religioso o comportamento lingüístico é o fato de viajar pelas fronteiras,
expressando-se por meio de paradoxos, do balbuciar palavras, do silêncio. As
pessoas religiosas usam metáforas, parábolas e outros modos indiretos de dizer o
que entendem [...]. Falam da impossibilidade de conhecer o Deus no qual acreditam,
[...] dizem que a razão não conhece as razões do coração, ou que a maior sabedoria
do homem pode ser o silêncio. Admitem que a fé se aproxima do não-sentido e que
suas palavras podem fracassar; muitas vezes elas são as mais ambíguas porque o
crente é levado a estendê-las até o extremo limite da área na qual operam as suas
regras e também porque quem tem fé sempre quer dizer sobre ela tudo o que for
possível (QUEIROZ, 2006, p. 19)
Não obstante as críticas aqui elencadas, trataremos o sagrado como o elemento
inalienável da religião. Reconhecemos que tal afirmação constitui-se um risco à margem da
plataforma, ou mesmo um lançar-se dela rumo ao “abismo do Mistério”, amparado apenas por
uma rede construída de palavras e símbolos (ALVES, 1984, p. 5). Seria este salto sem
sentido? Acreditamos que não.
1.3 O SAGRADO
A época em que vivemos, apesar de todo o progresso realizado pela ciência em seus
diversos campos de atuação, é plena de manifestações da religiosidade humana. Diferente do
que se pensou a partir do iluminismo e mais com o positivismo, o desenvolvimento científico
não extirpou a presença do sagrado das culturas e experiências humanas.
A secularização, assunto que detalharemos mais adiante, não representa a “falência do
religioso, mas a crise de gestão institucional do sagrado” (MARTELLI, 1995, p. 369). O
sagrado é inexpugnável; consiste no elemento inalienável da religião e isso, graças a sua
capacidade de manifestar-se ambígua e paradoxalmente, sob múltiplas formas, mesmo no
coração das sociedades altamente científicas e industrializadas. Quanto mais se racionaliza
uma sociedade, supondo com isso, suprimir a necessidade do sagrado, tanto mais “aumenta a
fome, por assim dizer, do supramundano e do invisível” (MARTELLI, 1995, p. 369) que pode
ser averiguável tanto na circunscrição da religião quanto fora dela, por exemplo, na releitura
da experiência religiosa feita pelos movimentos neopentecostais e nas múltiplas
manifestações do sagrado revestidas pela linguagem econômica, respectivamente.
Numa alusão a Roger Bastide (1898-1974), o sagrado é indomesticável, é selvagem e,
como tal, é cognoscível, porém inapreensível. Ele sempre nos chega na forma de discurso.
Assim, a experiência religiosa com o sagrado é sempre mediada pela linguagem, sempre
reduzida, portanto.
19
Na linguagem de Eliade [o sagrado] desponta nas hierofanias e logo se transforma
em discurso produzido pelo sujeito da experiência religiosa. Como não pode deixar
de ser, o discurso que narra a hierofania ou irrupção do sagrado é já ato segundo da
experiência religiosa, embora ato primeiro na efervescência que provoca. Mas, neste
ponto já se antepara um primeiro passo da dominação do sagrado pelo sujeito da
experiência, ficando a parte não dominada como a reserva de mistério que dá caráter
ao tremendum, ao absolutamente outro (MENDONÇA, 2006, p [?]).
Seguiremos a perspectiva fenomenológica dos dois autores citados por Mendonça para
construirmos os contornos do conceito de sagrado que permeará este trabalho.
1.3.1 RUDOLF OTTO: O SAGRADO COMO MYSTERIUM TREMENDUM
O teólogo e historiador alemão Rudolf Otto (1869-1937), em sua célebre obra, O
Sagrado (1917), oferece-nos um modelo interessantíssimo de análise fenomenológica da
experiência religiosa, até hoje insuperado em alguns aspectos.
Otto afirma que, embora o sagrado possa ser encontrado em outros domínios que não o
da religião, ele sempre provém desta. O sagrado é particular à religião e como tal resiste a
toda tentativa de conceituação. O sagrado comporta algo de inefável.
Tendo em vista que o termo sagrado – ou santo como querem alguns – é utilizado para
designar outras realidades que estão além da esfera religiosa; e que Rudolf Otto quer se referir
ao sagrado abstraindo o seu caráter ético, moral e racional, ele cria um outro termo para se
referir ao sagrado enquanto realidade irredutível de toda e qualquer religião, a saber,
numinoso (do latim numem, que significa divindade).
O numinoso, como algo exterior ao indivíduo, não pode ser explicado, tem que ser
experimentado e observado a partir do que provoca no ser humano, isto é, um sentimento de
dependência que corresponde ao aniquilamento da criatura ante a grandeza do criador, ao
“sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o que es
acima de toda a criatura” (OTTO, 2005, p. 19).
A manifestação do numinoso é uma realidade absolutamente diferente das realidades
que nos são comuns, das realidades naturais. O acesso é sempre indireto, dá-se por analogia.
A experiência numinosa é sempre mediada pela linguagem simbólica que, embora incapaz de
dar conta da totalidade daquela experiência, é o caminho que mais nos aproxima dela.
Consciente disso, Otto exprime o numinoso com uma expressão composta de dois elementos,
mysterium tremendum, o mistério que faz tremer” (OTTO, 2005, p. 22).
Cada um desses elementos apresenta características que lhe são próximas. O elemento
tremendum provoca um “terror cheio de um horror interno que nenhuma coisa criada, mesmo
a mais ameaçadora e mais poderosa, pode inspirar” (OTTO, 2005, p. 23). Em sua forma mais
20
tosca apresenta-se como o terror demoníaco, mas na Bíblia está presente como a cólera de
Yaweh
9
. Essa cólera divina, uma vez racionalizada no discurso dos profetas, está na base dos
aspectos morais do que se denominou justiça divina na religião de Israel (OTTO, 2005, p.
141). A cólera divina não é reação punitiva de Deus a uma transgressão humana. Ela é uma
espécie de força misteriosa e oculta, arbitrária e incalculável que, como energia elétrica
acumulada é descarregada sobre quem dela se aproxima, manifestando assim o caráter
terrificante do numinoso. Nas palavras do próprio Otto, “na cólera de Deus, vibra e brilha
sempre um elemento não-racional que lhe dá um caráter assustador que o homem natural não
pode sentir”. O estado de consciência chamado temor e tremor diante de Deus é “um estado
numinoso em que o homem sente a impressão do tremendum” (OTTO, 2005, p. 29).
Majestas, a absoluta superioridade do poder, é apresentada como outro atributo do
numinoso que está presente em sua manifestação como tremendum. Ao elemento tremendum
que pode ser resumidamente como “inacessibilidade absoluta”, a majestas acrescenta “poder,
força e preponderância absoluta”.
Na experiência mística há sempre o desejo de unir-se e dissolver-se na totalidade
majestosa do numinoso, o que anularia o tremendum enquanto inacessibilidade, mas não o
majestas, porque é
precisamente com este superpoder absoluto, com a majestas do numinoso que se
relaciona o sentimento de estado de criatura. É sua sombra e reflexo subjetivo. Em
contraste com o poder que pressentimos fora de nós, concretiza-se enquanto
sentimento do nosso próprio apagamento, do nosso aniquilamento, consciência de
ser apenas pó e cinza, de ser somente nada, (OTTO, 2005, p. 30),
ou seja, existencialmente não faria sentido falar no tremendum se ele não pudesse se
manifestar como um poder captado subjetivamente.
Em conjunto o tremendum e a majestas implicam um terceiro elemento, a energia,
denominada orgê. A esta energia agrega-se a paixão, o movimento, a excitação e a vitalidade;
o que crê sente-se “invadido por uma energia transbordante que pode levá-lo ao êxtase
individual ou a êxtases de efervescência coletiva” (MARTELLI, 1995, p. 141). Segundo
Rudolf Otto
encontramos estes traços, essencialmente idênticos, desde os graus do demonismo
até à idéia do Deus vivo. Formam, no numem, o elemento cuja experiência põe a
alma humana em atividade, excita o zelo, provoca a tensão e a energia prodigiosas
que o homem experimenta no ascetismo, quer na luta contra o mundo e a carne,
quer nos atos de vida heróica em que a excitação tem lugar (OTTO, 2005, p. 34).
9
Termo comum às religiões judaica e cristã, utilizado para designar Deus no Antigo Testamento.
21
Se o caráter terrificante do tremendum e poderoso da majestas provocam o sentimento
de esfacelamento, de aniquilamento diante do numinoso, a orgê, por sua vez, mobiliza, motiva
e preenche o que crê, de tal maneira, que chega a consumi-lo. A orgê anima, porém esmaga;
arrebata, mas também, queima e devora.
Analisado o aspecto tremendum do numinoso, passemos ao mysterium, também
composto. São três os seus elementos: o totalmente outro, o fascinans e o augustus. Para Otto,
o mysterium, de onde nos vem mistério, não deve ser entendido no sentido fraco do termo,
como algo estranho ou inexplicável, como aquilo que não nos é familiar. O mysterium é o
“totalmente outro”, que
não é inacessível e inconcebível apenas porque o meu conhecimento em relação a
este objeto tem limites determinados e inultrapassáveis, mas porque me debato [...]
com uma realidade que, por sua natureza e essência, é incomensurável e perante a
qual recuo, tomado de estupefação (OTTO, 2005, p. 40s).
Esse espanto que é ao mesmo tempo frustração nascida da tentativa de captar o que
nos escapa, experimentado na relação com o numinoso, é afirmado por Agostinho em suas
Confissões: “que luz é esta que me ilumina de quando em quando e me fere o coração, sem o
lesar? Horrorizo-me e inflamo-me: horrorizo-me enquanto sou diferente dela, inflamo-me
enquanto sou semelhante a ela” (1988, p. 274).
Se por um lado há no tremendum, representado pela majestas, algo de repulsivo, há
por outro, algo que fascina e atrai, o numinoso é mysterium fascinans.
A criatura que, perante ele treme, se humilha e perde a coragem, experimenta ao
mesmo tempo o impulso de se voltar para ele e até de dele se apropriar de qualquer
maneira. O mistério não é para ela o espantoso, é também o maravilhoso. Ao
lado deste elemento perturbador aparece algo que seduz, arrasta, arrebata
estranhamente, que cresce em intensidade até produzir o delírio e o inebriamento; é
o elemento dioniaco da ação do numen. Chamamos-lhe o fascinante (OTTO, 2005,
p. 50).
Na experiência religiosa, portanto, a paz e o sossego interior nascem do intenso
conflito que se estabelece entre o desejo de fugir e de se aproximar, entre o sentimento de
aniquilamento e maravilha diante do numinoso.
Se entendermos o numinoso como equivalente do infinito, como sugere Paul Tillich,
podemos afirmar que o coração humano procura o infinito para nele repousar e se realizar e
que simultaneamente, descobre nesse processo a distância infinita entre o finito e o infinito
22
(1996, p. 13). Tal descoberta pode causar desespero, “terror demoníaco” e o desejo insano de
possuir o numinoso ou do suicídio.
Diferentemente, do fascinas que tem caráter subjetivo, o augustus é a base objetiva
dos valores éticos e morais; por ele, o ser humano que tem uma experiência numinosa se
obriga voluntariamente. Prende-se por vontade. Dessa forma, segundo Otto, a religião pode
prescindir de toda e qualquer esquematização moral, porque a obediência e o serviço não se
baseiam mais na coerção por parte de um poder superior, mas no respeito que nasce do
coração de quem está diante do mais santo dos valores (OTTO, 2005, p. 78).
Feitas essas considerações, devemos agora nos perguntar: até que ponto as categorias
elaboradas por Rudolf Otto podem nos auxiliar a compreender a forma como os protestantes,
por ocasião da Reforma, constroem seu discurso sobre o sagrado?
A questão se reveste de relevância se considerarmos que o teólogo luterano Rudolf
Otto busca em Lutero o tom místico e não-racional como critério de análise da experiência
religiosa. Isso porque em Martinho Lutero o conceito de Deus não é teórico, doutrinário, não
pode ser apreendido racionalmente; é antes, “o elemento existencial de que toda pessoa tem
em seu viver concreto algum valor fundamental pelo qual se norteia, algum alvo que
persegue, algum desejo de que se alimente” (ALTMANN, 1994, p. 46). Não tardaremos em
aprofundar este assunto.
1.3.2 MIRCEA ELIADE: O SAGRADO COMO MODALIDADE DE SER NO “MUNDO”
Diferentemente de Rodulf Otto que analisa o sagrado a partir de uma perspectiva
teológica, o romeno Mircea Eliade (1907-1986), , propõe-se a uma análise sob o ponto de
vista histórico. Ambos definem o sagrado pelo viés negativo. Se em Otto, o sagrado opõe-se
ao racional; em Eliade, ele opõe-se ao profano. O próprio Mircea Eliade reconhece esta
diferença de perspectiva e pontua que a perspectiva por ele adotada é mais abrangente.
[Em relação a Rudolf Otto] situamo-nos numa outra perspectiva. Propomo-nos
apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no
que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não-racional e
racional da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade. Ora, a
primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano
(ELIADE, 2001, 16).
Da vasta obra de Mircea Eliade destacamos o seu Tratado de história das religiões
(1949) e o opúsculo O sagrado e o profano (1957)
10
, por serem consideradas as principais do
10
Ambas publicadas no Brasil pela editora Martins Fontes.
23
ponto de vista sistemático. Para o nosso propósito, entretanto, o de perceber os contornos do
conceito de sagrado, seguiremos suas idéias expostas em O sagrado e o profano.
Um ponto recorrente em sua obra é a insistência na complexidade e totalidade da
experiência do sagrado. O homem é o homo religiosus, que ao contrário do homem
secularizado, é capaz de perceber a manifestação do sagrado que sempre se revela como algo
absolutamente diferente do profano. A essa manifestação Eliade dá o nome de hierofania
11
(ELIADE, 2005, p. 17).
Qualquer coisa pode ser canal de manifestação do sagrado: animais, templos, pedras,
árvores, etc. e como tais dignas de veneração, entretanto,
não se trata de veneração da pedra como pedra, de culto da árvore como árvore. A
pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas
justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra,
nem árvore, mas o sagrado ((ELIADE, 2005, p. 18).
Assim como em Rudolf Otto, para quem o numinoso, ao se manifestar, impõe-se como
algo absolutamente paradoxal, para Mircea Eliade, a hierofania também é marcada por um
caráter paradoxal, isto é, qualquer coisa que sirva à manifestação do sagrado torna-se outra
coisa, sem deixar de ser ela mesma. Tal transmutação se dá nos olhos do observador que,
sendo alguém tocado pela experiência religiosa, sendo homo religiosus, concebe a natureza
com um todo, o Cosmo na sua totalidade, como potencialmente hierofânico (ELIADE, 2005,
p. 18).
O homem das sociedades arcaicas estabelece-se e vive, geográfica e temporalmente, a
partir do sagrado e/ou de objetos consagrados, porquanto para ele o sagrado equivale ao poder
de ser, à realidade por excelência (ELIADE, 2005, p. 18).
Na sociedade moderna, absolutamente desprovida dessa sacralidade promordial, o ser
humano não-religioso ao olhar para a natureza, a casa, o trabalho e as coisas em geral, sempre
o faz a partir de uma visão utilitária. Um ato fisiológico, como a alimentação, por exemplo,
nada tem de sacramental, é um ato puramente fisiológico.
Assim, para Eliade, tipologicamente falando, sagrado e profano são duas modalidades
de ser no mundo, são duas formas pelas quais, ao longo da história, o ser humano assume sua
11
Expressão utilizada para significar “algo de sagrado se nos revela” (p. 17).
24
existência. (ELIADE, 2005, p. 20). Há uma existência sagrada, assumida pelo homem arcaico
e uma existência profana, protagonizada pelo homem moderno
12
.
Para o homo religiosus há uma manifestação primordial do sagrado que confere ontos,
torna concreto o mundo. Ao manifestar-se assim, o sagrado provoca uma ruptura no espaço. O
espaço deixa de ser uma homogeneidade amorfa e, na imensidão caótica do espaço profano,
passa a existir como porções de espaço sagradas, reais; portanto, qualitativamente diferentes
de outras (ELIADE, 2005, p. 25). Além de provocar ruptura no espaço, a hierofania marca o
centro do mundo, o ponto referencial a partir do qual a vida se organiza, a partir do qual é
possível ser, uma vez que o espaço profano, identificado pelo caos, representa o não-ser
absoluto (ELIADE, 2005, p. 60).
Já enunciamos que um objeto é sagrado para quem o vê como tal. Agora podemos
acrescentar que nas sociedades arcaicas o ser humano pode, por meio do ritual, consagrar uma
porção do espaço, um território ou santuário, por exemplo, à medida que a ação ritual
reproduza a obra dos deuses (ELIADE, 2005, p. 32).
13
O ritual possibilita também que se
transite ileso do espaço sagrado ao profano e vice-versa.
A não-homogeneidade atinge também o tempo. Para o ser humano religioso o “tempo
não é nem homogêneo e nem contínuo”, existe um tempo sagrado em que têm lugar as festas
religiosas e um tempo profano no qual se inscrevem as atividades cotidianas, que não
necessariamente deixam de ser sagradas
14
. Aqui também o rito desempenha o papel de
permitir a passagem, em segurança, de um tempo ao outro (ELIADE, 2005, p. 63).
Ao criarem o mundo, os deuses criaram também o tempo sagrado. Um tempo
qualitativamente diferente do tempo profano. O tempo sagrado não flui, não se exaure, é
sempre o mesmo, é essencialmente reversível. Toda festa religiosa constitui-se uma
atualização desse tempo sagrado. O ser humano das sociedades arcaicas eterniza o presente
mítico por meio da linguagem ritual. Portanto “participar de uma festa religiosa implica a
saída da duração temporal ordinária e a reintegração no tempo mítico reatualizado pela
própria festa” (ELIADE, 2005, p. 64).
Como não há nenhuma tipologia pura, Eliade observa que não possível encontrar uma
existência profana em estado puro. “Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que
tenha chegado, o homem que optou por uma existência profana não consegue abolir
12
Sobre a diferença de concepção do sagrado na existência arcaica e moderna confira: ELIADE, Mircea. Mito e
realidade. São Paulo-SP: Editora Perspectiva, 2006, p.16s e ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.o
Paulo-SP: Martins Fontes, 2001, p. 25ss.
13
Este ponto ficará mais claro quando discutirmos o conceito de mito nas sociedades arcaicas.
25
completamente o comportamento religioso” (ELIADE, 2005, p. 27), da mesma forma que o
tempo, o espaço e a noção de sagrado não são absolutamente claros e/ou distintos para o
homem religioso moderno
15
.
Embora esta afirmação demande maior embasamento – a que nos propomos mais
adiante – entendemos que sagrado e o profano não podem ser concebidos coerentemente,
senão como algo que se interpenetra e se interdegrada.
Levando em conta a idéias de Mircea Eliade e a redução da linguagem simbólica na
Reforma Protestante, devemos nos perguntar: Como os protestantes constroem sua forma de
ser e estar no mundo? Até que ponto, o tempo e o espaço têm caráter sagrado para os
protestantes de ontem e de hoje?
1.4 A LINGUAGEM
A linguagem está presente em todo tempo e em toda a parte impregnando os
pensamentos e os sonhos humanos e se constituindo um produto e um elemento da atividade
prática e das relações entre os seres humanos e destes com o seu mundo e com o sagrado.
“A linguagem é um fenômeno extremamente complexo, que pode ser estudado a partir
de múltiplos pontos de vista, pois pertence a diferentes domínios. É, ao mesmo tempo,
individual e social, física, fisiológica e psíquica” (FIORIN, 1995, p. 8). A análise que se segue
visa, única e tão somente, ao caráter instrumental da linguagem, isto é, demonstraremos que a
linguagem possibilita que o ser humano construa um mundo que lhe seja significativo; que
conteúdos, e mais do que isso, significados ou interpretações sejam transferidos às gerações
seguintes, com a chancela de verdades absolutas; e, por fim, por meio de sua face simbólica,
permite que o ser humano transcenda sua condição e ordem social em que se insere e acesse
e/ou experimente o sagrado.
1.4.1 LINGUAGEM E COSMOVISÃO
O biólogo Johannes von Uexkull afirma que o homem ocupa uma posição diferenciada
no reino animal. Diferentemente dos animais, o ser humano não possui um ambiente
específico para sua espécie, estruturado a partir de sua organização instintiva ou biológica.
“Não existe um mundo do homem no sentido de que se pode falar de um mundo do cachorro
ou de um mundo do cavalo” (In: BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 69). Ainda que, um e
14
Para o ser humano das sociedades arcaicas suas atividades sempre imitam as atividades dos deuses, portanto
sempre estão revestidas de sacralidade.
26
outro sejam unidos por uma mesma necessidade, a sobrevivência, os mecanismos que
desenvolvem para tal fim, os colocam em pólos definitivamente irreconciliáveis, porque cada
organismo experimenta o mundo de uma forma específica.
A experiência de sobreviver “é determinada pela forma anatômica de cada espécie
(ALVES, 1984, p. 23). Feuerbach comenta que “se as plantas tivessem olhos e capacidade
para sentir gosto e para julgar, cada uma diria que a sua flor é a mais linda de todas”
16
, ou
seja, “o mundo é a natureza organizada do ponto de vista das necessidades de uma espécie,
para que ela seja uma continuação natural do corpo”. A título de exemplificação pode-se
afirmar que “para o urubu, o cheiro de carniça em decomposição que provoca vômitos no
homem é algo que traz água na boca” (ALVES, 1984, p. 24), isto é, a relação do animal com
o mundo que o circunda decorre de um ponto fundamental, viver.
Podemos afirmar, então, que o organismo experimenta o mundo que o envolve de
forma seletiva. Sua percepção da realidade está subordinada às relações vitais que se devem
estabelecer entre o corpo e o mundo para continuar sobrevivendo. Dessa forma, “vida é
relação” e a decorrência é que o mundo nunca é por ele objetivado, mas sempre “mundo-em-
relação-à-vida”; o contrário também é verdadeiro, o organismo percebe a si mesmo como
“vida-em-relação-ao-mundo” onde o que importa são as condições de manutenção da vida
(ALVES, 1984, p. 26).
O ser humano não é como o organismo animal em sua imediatez biológica. O animal é
o seu corpo, enquanto que o ser humano, além de ser, tem um corpo (BERGER;
LUCKMANN, 1996, p. 74). Tal fato possibilita que ele interaja com o seu ambiente a partir
de uma “atitude valorativa” (ALVES, 1984, p. 24), isto é, embora sobreviver seja uma
necessidade, para o ser humano, em sua relação com o meio, o que vem em primeiro plano é a
pergunta acerca do sentido da vida, porquanto esta é a questão fundamental e anterior à
sobrevivência. Ele se pergunta primeiramente não pela vida-em-relação-com-o-mundo, mas
pelo significado-da-vida-em-relação-com-o-mundo.
“O organismo humano não possui os meios biológicos necessários para dar
estabilidade à conduta humana” (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 75), o que implica
desajuste, por isso o homem produz cultura – a base de sua adaptação –, conseqüentemente,
as formas de tornar-se humano são tão múltiplas quanto as formas de cultura existentes.
15
Sobre esse tópico vale a pena conferir a análise de: ABUMANSSUR, Edin Sued. As moradas de Deus:
arquitetura de Igrejas Protestantes e Pentecostais. São Paulo-SP: Editora Novo Século, 2004.
16
Citado por ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo-SP: Edições Palinas, 1984, p. 25.
27
Não é demasiado dizer “que o homem se produz a si mesmo” (BERGER;
LUCKMANN, 1996, p. 75), mas a estabilidade de que necessita desloca-se do corpo para a
ordem social que constrói. Ante a atividade humana, o corpo se cala.
Contudo, como afirma Ernst Cassirer o “homem não pode se defrontar com a realidade
sem intermediários, ele não pode vê-la face a face” (In: ALVES, [198-], p. 15), a realidade se
nos apresenta vestida pela linguagem, ou seja, é objetivada por ela.
A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma
ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada na
cena. A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me continuamente as
necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na
qual a vida cotidiana ganha significado para mim [...] Desta maneira a linguagem
marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos
dotados de significação (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 38)
Importa acrescentar que, embora a linguagem seja capaz de trazer a lume a realidade
objetiva e seja também capaz de indicar estados individuais subjetivos, a sua pertinência, pelo
menos para o nosso estudo, é a sua capacidade potencial de revelar sentido a um indivíduo ou
grupo em sua relação com o tempo e o espaço. Dizendo de outra forma, linguagem é
cosmovisão. Aliás, como observa Humboldt, “a diferença entre linguagens não é uma
diferença de sons ou sinais, mas antes de cosmovisões” (In: ALVES, 1984, p. 21). Quando as
pessoas falam e entendem uma linguagem comum, isto indica que partilham valores comuns,
participam de uma mesma cosmovisão, isto é, o sentido da vida é construído pela comunidade
de que participam. Parafraseando Wittgenstein, “os limites de sua linguagem denotam os
limites de seu mundo” (In: ALVES, [198-], p. 13).
Afirmamos anteriormente que a interação do ser humano com o seu mundo se dá a
partir de uma atitude valorativa e que isto significa ser tomado, antes de tudo, pela inquietação
quanto ao sentido da vida, quanto ao ultimate concern de Tillich. Além disso, podemos
afirmar agora que a atitude valorativa significa que o sentido encontrado na sua relação com o
mundo e objetivado pela linguagem foi definido pela comunidade, pela cosmovisão de que se
é parte. Portanto, é sempre uma interpretação.
O sujeito está sempre presente em seu falar. “Falar sobre o mundo é sempre
interpretação do mundo. É dizer o que o mundo significa para mim” (ALVES, 2005, p. 68).
Quando o que é dito faz sentido, suprimem-se as dúvidas sobre a linguagem, sobre a
interpretação. Passa-se a uma atitude pragmática em que a funcionalidade da linguagem é
identificada com a verdade.
28
É compreensível. Se a minha interpretação do mundo, interpretação que unifica a
minha personalidade e o meu mundo num todo significativo, mostra-se adequada
para organizar meu comportamento e para prever o comportamento futuro do
mundo, nada há que me force a duvidar. A personalidade se sente segura porque
nessa situação se confirma a sua habilidade para prever e predizer acontecimentos
no ambiente, para compreender o mundo em que vive e assim para antecipar
eventos e evitar a necessidade de ajustamentos bruscos (ALVES, 2005, p. 70).
Pode-se estabelecer, entretanto, uma “crise de plausibilidade”, um colapso nos
esquemas interpretativos que sustentam a minha cosmovisão, por conseguinte na minha
relação com o mundo. Inexoravelmente, por ser “viva” a linguagem funcional em um
momento pode não sê-lo no momento seguinte; conseqüentemente há desintegração do
sentido que corresponde à dissolução da unidade homem-mundo (ALVES, 2005, p. 71). Para
evitar esse “mal” e manter a cosmovisão e o status quo decorrente, a tendência individual e
comunitária é a do enrijecimento da linguagem, supondo a cristalização da verdade.
1.4.2 LINGUAGEM E LEGITIMAÇÃO
Até aqui vimos que a toda comunidade corresponde uma cosmovisão interpretada,
objetivada e partilhada por todos os seus membros a partir da linguagem. Além disso, a
linguagem possibilita a manutenção e desenvolvimento da comunidade.
A linguagem objetiva as experiências partilhadas e torna-as acessíveis a todos
dentro da comunidade lingüística, passando a ser assim a base e o instrumento do
acervo coletivo do conhecimento. Ainda mais, a linguagem fornece os meios para a
objetivação de novas experiências, permitindo que sejam incorporadas ao estoque já
existente do conhecimento, e é o meio mais importante pelo qual as sedimentações
objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade em questão (BERGER;
LUCKMANN, 1996, p. 96)
Todas as conquistas humanas no decurso da história estão de alguma forma
relacionadas à linguagem, visto que ela, além de transmitir, é guardiã do conhecimento
humano. Sem a linguagem não haveria cultura, uma vez que os conhecimentos de indivíduos
e civilizações não seriam transmitidos e/ou guardados e assim, conseqüentemente,
desapareceriam. Martin Heidegger assevera que a linguagem é a guardiã do ser; para ele a
“[...] linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem”
(HEIDEGGER, 2003, p. 7).
Porém devemos nos perguntar: Como isso é possível, ou seja, de que forma a
linguagem atua na relação indivíduo-comunidade-cosmovisão? A partir de qual núcleo
estruturante a comunidade atribui validade a uma determinada cosmovisão e a transmite a
29
outra geração? Diríamos que a resposta a estas questões, ainda que em parte, envolve a
discussão de dois processos que se complementam, a construção e veiculação de um discurso
oficial, isto é, que represente a cosmovisão da comunidade e a construção de mecanismos
legitimadores de ordem simbólica. É do detalhamento destes processos que nos ocuparemos
agora.
Língua e linguagem, embora possam significar coisas diferentes são usadas aqui como
sinônimos. Linguagem pode ser definida, pelo menos para o nosso propósito, com uma
rede de relações que se estabelece entre um conjunto de elementos lingüísticos.
Essas relações dão um determinado valor a cada componente do sistema e permitem
selecionar o elemento apropriado para figurar em cada ponto da cadeia da fala e
combinar adequadamente esses elementos entre si (FIORIN, 1995, p. 11).
Dessa forma, a linguagem é um sistema, e como tal, social, no sentido de que é
comum aos membros de uma dada comunidade. Esse sistema relaciona-se com a fala e com o
discurso. Ele tem a sua concretude nos atos da fala, enquanto se presta a emoldurar um
discurso, ou seja, nenhum discurso é possível sem que se sigam padrões lingüísticos.
Há que se distinguir fala de discurso. A fala decorre do discurso, não há fala sem
discurso. Quem fala sempre se reporta ou é movido por um discurso. Provisoriamente
podemos definir o discurso como sendo “combinações de elementos lingüísticos (frases ou
conjuntos constituídos de muitas frases) usadas pelos falantes com o propósito de exprimir
seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o
mundo” (FIORIN, 1995, p. 11), enquanto que a fala consiste na “exteriorização psicofísico-
fisiológica do discurso. Ela é rigorosamente individual, pois é sempre um eu quem toma a
palavra e realiza o ato de exteriorizar o discurso” (FIORIN, 1995, p. 11). A fala não é social,
não está sujeita às contingências da ordem social. A fala é um ato orgânico que se articula em
função do discurso que instrumentaliza. O discurso, ao contrário, é social; e assim como “a
frase, não é um amontoado de palavras, mas é uma cadeia construída segundo certas regras, o
discurso não é um amontoado de frases. O discurso tem uma estrutura”
(FIORIN, 1995, p. 17)
que sempre depende dos fins pretendidos.
Dois discursos diferentes podem utilizar o mesmo elemento semântico – liberdade, por
exemplo – e ainda serem opostos, porquanto suas estruturas são diferentes. Da mesma forma,
que dois discursos diferentes, com elementos semânticos diferentes, podem se equivaler do
30
ponto de vista estrutural
17
. Assim é porque em cada discurso, há um nível superficial e outro
profundo. E de igual modo, em cada comunidade há “um nível de essência e um de aparência
[...] ou um profundo e um fenomênico” (FIORIN, 1995, p.26). A dimensão visível, imediata,
fenomênica da realidade tem como substrato o nível superficial do discurso.
A realidade se nos apresenta imediatamente no nível fenomênico, com o risco
constante de ser ele tomado como a totalidade da realidade (FIORIN, 1995, p. 26). Por
exemplo,
na sociedade capitalista, a partir do nível aparente, constroem-se os conceitos de
individualidade, de liberdade como algo individual. [A desigualdade entre os
homens é algo natural], uma vez que uns são mais inteligentes ou mais espertos que
os outros. Daí se deduz que as desigualdades sociais são naturais. Outras idéias pias,
presas às formas fenomênicas da realidade, vão construindo-se: a riqueza é fruto do
trabalho (só se omite que é fruto do trabalho dos outros); pobres e ricos vão sempre
existir; a pobreza é uma bênção, pois a riqueza só traz preocupações (FIORIN,
1995, p. 28).
Sendo assim, pode ser a partir deste e não do nível profundo da realidade que se
sustenta a cosmovisão de uma dada comunidade. É preciso avançar um pouco mais nessa
reflexão e afirmar que sendo uma forma fenomênica da realidade, as formações ideológicas
18
escondem a essência da ordem social. O que objetivam é uma inversão da essência, ou seja,
uma inversão das relações sociais mais profundas, portanto apresentam a realidade de forma
invertida
19
, ou seja, equivale dizer que toda apreensão fenomênica da realidade corresponde a
17
Não estamos desconsiderando o fato de que há um ouvinte e um falante no processo de externalização e
internalização do discurso, mas não é nosso propósito estabelecer tais pormenores, e sim apenas demonstrar
como um discurso funciona no processo de sustentação da cosmovisão de uma dada comunidade.
18
De acordo com Fiorim, as formações ideológicas podem ser definidas como o “conjunto de idéias, [e]
representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações
que ele mantém com os outros homens” (1995, p. 28),
19
Sobre a temática da inversão da realidade podemos citar, como exemplo, a descrição que Marx faz do salário
em sua obra magna: MARX, Karl. O capital. Coleção Os economistas, Vol. I. São Paulo-SP: Editora Abril
Cultural, 1983, p. 125-185. No nível fenomênico, o salário apresenta-se como o pagamento de um trabalho
realizado. Nesse nível, a relação de trabalho é uma troca entre indivíduos livres e iguais. No entanto ao sairmos
do nível fenomênico – circulação de bens – e passarmos para o nível profundo – isto é da produção, veremos
que não há uma troca igualitária e que o operário não vende seu trabalho, mas sua força de trabalho, ou seja, ao
fim de um dia de trabalho, o trabalhador não recebe todo o valor que produziu, mas apenas uma parte dele.
Segundo Marx, quando o sario aparece como o pagamento do trabalho e não da força de trabalho, apaga-se a
distinção entre tempo de trabalho necessário e tempo não-pago, fazendo das relações de trabalho, no nível
aparente, uma troca igualitária. Seguindo o mesmo raciocínio, mas esquivando-se da idéia de luta de classes
propriamente dita, Franz Hinkelammert nos afirma que a compreensão da realidade consistindo em dois níveis
que se sobrepõem, possibilitando uma inversão da realidade, pode ser aplicada a qualquer campo social.
Hinkelammert exemplifica a sua assertiva da seguinte maneira: “Uma determinada morte é um assassinato se se
produz através da infração da norma: não matarás. Somente com referência a essa norma trata-se de um
assassinato. Sem a norma se trataria de uma morte como qualquer outra. No assassinato há sempre um
assassino e um assassinado. O assassino sempre assassina por alguma coisa. Às muitas razões do assassínio
pode-se dar um denominador comum: o ódio. Portanto, o assassinato aconteceu por ódio do assassino. Esse
31
uma falsa consciência (FIORIN, 1995, p. 29).
Como não existem idéias fora dos quadros da linguagem, [pode-se afirmar que] a
visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação
ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de
figuras que materializa uma dada visão de mundo. Essa formação discursiva é
ensinada a cada um dos membros de uma sociedade ao longo do processo de
aprendizagem lingüística. É com essa formação discursiva assimilada que o homem
constrói seus discursos, que ele reage lingüisticamente aos acontecimentos. Por isso,
o discurso é mais o lugar da reprodução que o da criação. Assim como uma
formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que
dizer (FIORIN, 1995, p. 32).
Paul Ricoeur (1913-2005), como se sabe, importante filósofo francês, porque visa a
audácia e à capacidade de “cruzar Marx, sem segui-lo nem tão pouco combatê-lo” (1990, p.
64) afirma que precisamos evitar algumas armadilhas quando o que está em discussão é o
conceito de ideologia. A primeira armadilha “consiste em aceitarmos como evidente uma
análise em termos de classes sociais”. Para contornarmos essa, diz, temos que atentar para
uma segunda armadilha, que “consiste em definir, inicialmente, a ideologia por sua função de
justificação, não somente dos interesses de uma classe, mas de uma classe dominante (grifo
original, RICOEUR, p. 64). Ricoeur assevera a necessidade de escaparmos ao
fascínio exercido pelo problema da dominação, para considerarmos um problema
mais amplo, o da integração social, de que a dominação é uma dimensão, e não a
condição única e essencial. Ora, se tomamos como adquirido o fato de a ideologia
ser uma função da dominação, é porque admitimos também, sem crítica, o de a
ideologia ser um fenômeno essencialmente negativo, primo do erro e da mentira,
irmão da iluo (RICOEUR, 1990, p. 65).
A ideologia não pode ser vista como absolutamente negativa desde o início, portanto
antes de chegar à função de inversão descrita por Marx, faz-se necessário considerar a função
de integração e de dominação, sob a perspectiva de Max Weber, e não em termos da análise
de classes e classe dominante, afirma Paul Ricoeur (RICOEUR, 1990, p. 65).
ódio agora pode ser hipostasiado. Foi por ódio que assassinou. O ódio deixa de ser o denominador comum de
muitos motivos posveis do assassínio e se converte em sujeito. Não foi o assassino que matou, mas seu ódio.
Mas o ódio não nasce do ar, nasce por alguma coisa. O fato, contudo, de que o assassino matou o assassinado
comprova que o assassinado produziu no assassino um ódio. Porque, de outra forma, o assassino não o teria
assassinado. O ódio do assassino, que o levou ao assassinato, foi provocado ou produzido pelo assassinado.
Portanto através do assassino agiu o ódio provocado pelo assassinado, e, portanto o próprio ódio do
assassinado. Portanto, o assassinado é o assassino, porque provocou o ódio que o matou. Portanto cometeu sui-
dio. Seu ódio o matou, sendo o assassino palpável um intermediário desse ódio do assassinado. Quanto mais
cruel o assassino, tanto maior seu ódio, e, portanto maior o ódio provocado pelo assassinado, e maior o ódio do
assassinado que foi morto pelo próprio ódio dele. O fato se esfumou, o assassínio aconteceu só aparentemente.
Na ‘realidade verdadeira’ [nível fenomênico] foi o ódio do assassinado que o matou; o assassino é um
intermediário desse ódio. A realidade palpável [nível profundo] esfumou-se”. HINKELAMMERT, F. As armas
32
Para argumentar a função de integração da ideologia, Ricoeur parte dos conceitos de
ação social e de relação social, propostos por Max Weber. Entendendo ação social como
comportamento significante para agentes individuais e, ao mesmo tempo, como
comportamento individual orientado pelo comportamento do outro e, a relação social como
uma espécie de estabilidade e previsibilidade de um dado sistema de significações, Ricoeur
chega ao primeiro traço da ideologia definida como integração, a saber, a identidade do grupo.
Neste caso, a ideologia liga-se “à necessidade, para um grupo social, de conferir-se uma
imagem de si mesmo de representar-se” (1990, p. 68).
Toda comunidade histórica mantém uma relação primordial com o seu ato fundador,
instaurador (Declaração Americana dos Direitos, a Revolução Francesa, a Revolução Russa,
por exemplo) e, neste caso, pelo viés do mito, segundo Paul Ricoeur, o que mantém viva e
atualiza a memória do evento primordial, conferindo com isso identidade à comunidade é
justamente a ideologia. Nas palavras de Ricoeur, sua função “não é somente a de difundir a
convicção para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o
grupo, mas também o de perpetuar sua energia inicial para além do período de efervescência”
(RICOEUR,1990, p. 68).
O problema se coloca quando consideramos que é somente “numa interpretação que o
modela retroativamente, mediante uma representação de si mesmo, que um ato de fundação
pode ser retomado e reatualizado” (RICOEUR, 1990, p. 68). E, dessa forma, a ideologia
deixa de ser mobilizadora para ser justificadora, “ou antes, só continua sendo mobilizadora
com a condição de ser justificadora” (RICOEUR, 1990, p. 68)
O segundo traço da ideologia, definida como integração, tem a ver com o seu
dinamismo, ou seja, ela é para a práxis social tão motivadora quanto o é para a ação
individual, isso porque o grupo que professa uma ideologia tende a demonstrar que ele tem
razão de ser o que é. Em virtude disso, a ideologia não é só justificação; é projeto também,
que “exprime-se no poder fundador de segundo grau que ela exerce com referência a
empreendimentos, a instituições que dela recebem a crença no caráter justo e necesrio da
ação instituída” (RICOEUR, 1990, p. 69).
O terceiro traço diz respeito à forma pela qual a ideologia consegue manter tal
dinamismo. Paul Ricoeur afirma que é possível compreender como o dinamismo é mantido,
na medida em que se considera que “toda ideologia é simplificadora e esquematizadora”
(RICOEUR, 1990, p. 69).
ideológicas da morte. São Paulo-SP: Edições Paulinas, 1983, p. 302s.
33
Esta questão da simplificação e esquematização tratada como fenômeno ideológico
será grande de importância para os desenvolvimentos posteriores desta pesquisa. Por ora,
vejamos o que diz Ricoeur:
a capacidade de transformação só é preservada com a condição de que as idéias que
veicula tornem-se opiniões, de que o pensamento perca rigor para aumentar sua
eficácia, como se apenas a ideologia pudesse mediatizar não somente a memória dos
atos fundadores, mas os próprios sistemas de pensamento. É dessa forma que tudo
pode tornar-se ideológico: ética, religião, filosofia (RICOEUR, 1990, p. 69).
O que se quer dizer é que pensamento pode ser transformado em sistema de crença,
por meio do qual uma comunidade ou grupo idealiza uma imagem de si mesma. E é “através
de uma imagem idealizada que um grupo representa sua própria existência; e é essa imagem
que, por contra-reação, reforça o código interpretativo” (RICOEUR, 1990, p. 69). Como fez
nos dois traços anteriores, aqui também Ricoeur se esforça para minimizar o caráter negativo
da ideologia ao afirmar que “esse esquematismo, essa idealização, essa retórica são o preço a
ser pago pela eficácia social das idéias” (RICOEUR, 1990, p. 70).
O quarto traço “consiste no seguinte: o código interpretativo de uma ideologia é mais
algo em que os homens habitam e pensam do que uma concepção que possam expressar”
(grifos originais, RICOEUR, 1990, p. 70), ou seja, tudo que pensamos está, de alguma forma,
carimbado pelo contexto em que vivemos. Isso faz da ideologia algo mais operatório que
temático, isto é, “ela opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante de
nossos olhos. É a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar sobre ela”. É
justamente esse caráter operatório, porém oculto, da ideologia que possibilita a inversão da
posição do indivíduo na sociedade sem que ele se dê conta disso.
A questão da inércia como componente essencial da ideologia assinala o quinto traço
da argumentação de Paul Ricoeur. A inércia “é o aspecto temporal específico da ideologia”,
ou seja, “significa que o novo só pode ser recebido a partir do típico, também oriundo da
sedimentação da experiência social” (grifo original, RICOEUR, 1990, p. 70). Disso decorre a
possibilidade de dissimulação, como forma de manutenção do status quo, uma vez que
algumas realidades efetivamente vividas pelo grupo podem ser “inassimiláveis pelo esquema
diretriz” do referido grupo. Em todos os grupos sociais podemos encontrar “traços de
ortodoxia, de intolerância à marginalidade. [...] Em algum setor há algo de intolerável, a partir
do qual surge a intolerância. A intolerância começa quando a novidade ameaça gravemente a
possibilidade, para o grupo, de reconhecer-se, de reencontrar-se” (RICOEUR, 1990, p. 70).
Assim, a concretização da dissimulação se dá quando a manutenção do status quo dilui-se na
34
aparente e heróica luta para salvaguardar a identidade do grupo, que não passa de
interpretações e reinterpretações cristalizadas na tradição oral ou escrita do grupo.
Para descrever a função de dominação da ideologia, Paul Ricoeur continua nutrindo-se
do pensamento de Weber. Se a integração é a função geral da ideologia, a dominação
constitui-se a sua função particular, sendo a dissimulação elemento comum a ambas. Nesse
caso, a dissimulação – lembremos que Ricoeur usa o termo dissimulação porque quer evitar o
termo inversão, mas, ao que parece, com o mesmo sentido – tem lugar quando se coloca o
problema da autoridade, isto é, “o que a ideologia interpreta e justifica, por excelência, é a
relação com as autoridades, o sistema de autoridade” (RICOEUR, 1990, p. 71).
Ricoeur observa que “se toda pretensão à legitimidade é correlativa a uma crença, por
parte dos indivíduos, nessa legitimidade, a relação entre a pretensão emitida pela autoridade e
a crença que a ela responde é essencialmente dissimétrica” (RICOEUR, 1990, p. 72), ou seja,
o que se dá é que “há sempre mais na pretensão que vem da autoridade do que na crença que
vai à autoridade” (Idem, p. 72). Com isso Paul Ricoeur, ao cruzar Marx, faz uso do conceito
de mais-valia ao afirmar que o “excesso da demanda de legitimação relativamente à oferta da
crença”. E vai além, pois segundo ele,
talvez essa mais-valia seja a verdadeira mais-valia: toda autoridade reclamando
mais do que nossa crença pode carregar, no duplo sentido de trazer e de suportar. É
aqui que a ideologia se afirma como o substitutivo da mais-valia e, ao mesmo
tempo, como o sistema justificativo da dominação (RICOEUR, 1990, p. 72).
Para Paul Ricoeur, é somente depois dessa caminhada que cruza, sem contestar ou
assimilar por completo o pensamento de Marx, é que se pode pensar no conceito de ideologia
como inversão, tendo em vista que “é justamente neste ponto, em que o papel mediador
(função de integração) da ideologia encontra o fenômeno da dominação que o caráter de
distorção e de dissimulação da ideologia passa ao primeiro plano” (RICOEUR, 1990, p. 72).
Levando em conta a afirmação anterior de que “a linguagem objetiva as experiências parti-
lhadas e torna-as acessíveis a todos dentro da comunidade lingüística, passando a ser assim a
base e o instrumento do acervo coletivo do conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 1996,
p. 96), e o que acaba de ser exposto – isto é, o fato de que, seja para Marx, seja para Ricoeur,
em última instância, ideologia é sempre inversão – podemos agora afirmar que a linguagem
pode ser um instrumento ideológico e alienante
20
. E se assim é, quanto mais socializado o
20
O termo alienação é utilizado aqui em sua nuança epistemológica, ou seja, alienação se refere “aos estados
subjetivos de indivíduos e grupos. Alienado é o indivíduo cujas idéias não constituem conhecimento efetivo do
35
indivíduo está, quanto mais apreende e sabe falar uma linguagem, menos aberto ao mundo ele
estará, portanto, menos humano será
21
, embora mais seguro quantos aos seus esquemas
interpretativos da realidade.
No entanto, a formação discursiva ou o discurso – ainda que estruturado a partir de
uma ideologia, concebido sob a perspectiva de quem exerce o domínio ou o poder – por si
não é suficiente para garantir a perpetuidade de uma cosmovisão, mesmo que esta esteja
ampla e devidamente institucionalizada. Isso acontece porque
todos os mundos socialmente construídos são intrinsecamente precários. [Não raro]
os programas institucionais são sabotados por indivíduos com interesses
conflitantes. Não raro os indiduos os esquecem ou são incapazes de aprendê-los
em primeiro lugar. Os processos fundamentais da socialização e controle social, na
medida em que têm êxito, servem para atenuar essas ameaças. A socialização
procura garantir um consenso perdurável no tocante aos traços mais importantes do
mundo social. O controle social procura conter as resistências individuais ou de
grupo dentro de limites toleráveis (BERGER, 1985, p. 42).
Assim, faz-se necessário “um processo centralmente importante que serve para escorar
o oscilante edifício da ordem social. É o processo da legitimação” (BERGER, 1985, p. 42). A
legitimação
22
se justifica por pelo menos três razões, a saber, a necessidade de manutenção da
ordem institucional em si, bem como dos papéis nela implicados; a necessidade de
transmissão da cosmovisão de uma geração à outra; e por fim, a necessidade de dar
significação positiva a todos os elementos anômicos, a todas as inadequações individuais
presentes na ordem social instituída.
Quando a legitimação apresenta-se referenciada a um instrumental simbólico “a esfera
da aplicação pragmática é suplantada de uma vez para sempre. A legitimação agora realiza-se
por meio de totalidades simbólicas que não podem absolutamente ser experimentadas na vida
cotidiana” (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 131). E, se esse é o caso, nenhum mecanismo
real, maso antes expressões de estados emocionais individuais e coletivos”. ALVES, Rubem. O suspiro dos
oprimidos. São Paulo-SP: Edições Palinas, 1984, 32s.
21
Quando BERGER e LUCKMANN discutem condição do homem no reino animal, afirmam, como já dissemos
que o homem não tem um ambiente seu como os demais seres vivos e segundo eles “uma conseqüência óbvia
deste fato é que os cachorros e os cavalos, em comparão com o homem, são muito mais restritos a uma
distribuição geográfica específica. A especificidade do ambiente desses animais, porém, é muito mais do que
uma delimitação geográfica. Refere-se ao caráter biologicamente fixo de sua relação com o ambiente, mesmo se
for introduzida uma variação geográfica. Neste sentido, todos os animais não humanos, enquanto espécies e
enquanto indiduos, vivem em mundos fechados [...] (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 69,70).
22
Definida como “o saber socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social. Em outras
palavras, as legitimações são as respostas a quaisquer perguntas sobre o ‘porquê’ dos dispositivos institucionais”
(BERGER, 1985, p. 42).
36
é mais eficiente do que a religião.
23
Sua eficácia se deve ao fato de que é capaz de relacionar à
realidade suprema, “as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades
empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado realissimum, que por
definição está além das contingências dos sentidos e atividade humana” (BERGER, 1985, p.
45).
Começando pela ordem institucional e os papéis nela implicados, como se dá o
processo de legitimação? Berger afirma que a melhor receita é “interpretar a ordem
institucional de modo a ocultar o mais possível o caráter de coisa construída” (1985, p. 46). É
patente a relação entre legitimação institucional proposta nestes termos e os dois níveis de
discurso e realidade que discutimos a acima. A legitimação, em qualquer esfera ou
circunstância só é possível mediante certo ocultamento dos fatos, ou a partir de uma
apresentação fenomênica dos mesmos. Na forma como é apreendida, a ordem institucional
outrora construída, bem como os seus papéis
24
, reveste-se de uma ontologia cósmica e
sagrada, e desse modo, tudo “aqui em baixo” é uma cópia “lá de cima”.
A estrutura política, por exemplo, “estende à esfera humana o poder do cosmo divino.
A autoridade política é concebida com um agente dos deuses ou idealmente, até como uma
encarnação divina” (BERGER, 1985, p. 47) – mais adiante em nosso trabalho pretendemos
testar se essa lógica não estaria presente também na economia de mercado.
Confere-se assim, às instituições um caráter ou aparência de inevitabilidade, firmeza e
durabilidade análogas, tal como se supõe os deuses (BERGER, 1985, p. 47).
No que concerne aos papéis, pode-se asseverar que o desempenho pessoal e o
reconhecimento alheio são imprescindíveis. É sempre o outro – indivíduo ou instituição –
quem confere autoridade e legitimidade para o desempenho de um papel; portanto tudo se dá
na esfera humana. Quando, porém, um papel é investido de importância cósmica, ele se nos
apresenta não com a chancela dos seres humanos, meramente, senão também com a dos seres
supra-humanos. Desse modo, como as instituições, os papéis são involucrados por uma
aparência de eternidade (BERGER, 1985, p. 51), o status quo se torna inviolável.
Quando o que está em jogo é a transmissão da cosmovisão ou ordem institucional à
nova geração, o processo de legitimação também é tido como imprescindível. Isso porque
23
Embora como o próprio Peter Berger reconhece, a religião não pode ser tratada meramente como mecanismo
legitimador da ordem social construída (BERGER, 1985, p. 44).
24
Berger toma como exemplo o papel do rei, o qual está embutido numa ordem institucional maior que é a
monarquia. Seu vida e atividadeo apreendidas como um elo decisivo entre o mundo dos homens e o mundo
dos deuses (1985, p. 49)
37
o caráter evidente das instituições não pode mais ser mantido pela memória e pelos
hábitos do indivíduo. Rompeu-se a unidade de história e biografia. Para restaurá-la,
tornando assim inteligíveis ambos os aspectos dessa unidade, é preciso haver
“explicações” e justificações dos elementos salientes da tradição institucional. A
legitimação é este processo de explicação e justificão. A legitimação explica a
ordem institucional outorgando validade cognoscitiva a seus significados
objetivados. A legitimação justifica, a ordem institucional dando dignidade
normativa a seus imperativos práticos (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 128).
A maneira mais eficaz de “justificar” e explicar é, como já afirmamos, referenciar a
ordem institucional mimeticamente ao mundo dos deuses, a uma “ordem sagrada”. A nova
geração aprende que manter a coisas como estão equivale ao aplacamento da ira dos deuses;
afinal em um passado distante foi assim que construíram a realidade. Ir contra a ordem
instituída implica sempre um risco, o de se mergulhar no caos, a mais velha antítese da ordem
sagrada.
Dado o caráter dinâmico da experiência religiosa, que pode mudar radicalmente de
uma geração para a outra, o ritual assume papel importantíssimo aqui. Como trataremos
detalhadamente da importância e função do rito na experiência com o sagrado, a seguir, basta-
nos aqui afirmar que é por meio do ritual que os jovens são iniciados ou introduzidos na
comunidade, isto é, por meio da ação ritual é que podem se situar na comunidade a que
pertencem. O ritual confere identidade. E se
a identidade é fundamentalmente legitimada pela colocação dela no contexto de um
universo simbólico [...] O indivíduo pode assim “saber quem é” ancorando sua
identidade em uma realidade cósmica protegida ao mesmo tempo das contingências
da socializão e das malevolentes autotransformações da experiência marginal.
(BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 137).
Além de conferir identidade, o ritual, ao narrar um mito possibilita uma rememoração
das origens. O ritual serve para ensinar e/ou lembrar como os deuses construíram a ordem
institucional. Mas isso se refere basicamente às sociedade arcaicas, na Modernidade; embora
o rito e o mito ainda estejam presentes de forma degradadas, a ordem institucional es
referenciada ao sucesso e o instrumento legitimador, que permite a passagem da cosmovisão a
uma outra geração, parece ser a imagem. Voltaremos a esse ponto quando discutirmos a
“metafísica do mercado”.
Quando um indivíduo no interior da comunidade experimenta uma situação de
inadequação, esta pode levá-lo, subjetivamente, ao caos
25
que pode ser estendido aos demais
25
O caos pode se instaurar no interior de uma comunidade como algo que vem de fora, objetivado por
catástrofes naturais, epidemias, guerras contra grupos rivais ect.
38
participantes daquela cosmovisão; sendo assim é mister dar significação a toda e qualquer
experiência anômica ou marginal. A religião, por meio de seu instrumental simbólico,
desempenha importante papel aqui também, pois possibilita que “experiências pertencentes a
diferentes esferas da realidade sejam integradas pela incorporação ao mesmo envolvente
universo de significação” (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 134). Desse modo, mesmo a
experiência da morte, talvez a tipificação da maior inadequação que o indivíduo pode
experimentar – que, se não pode ser justificada eou explicada, – assume uma significação
positiva. E nesse caso, a religião possibilita ao
ao indivíduo que passa por essas situações continuar a existir no mundo da sua
sociedade – não “como se nada tivesse acontecido”, o que é psicologicamente difícil
nas situações marginais mais extremas, mas “por saber” que mesmo esses
acontecimentos ou experiências têm um lugar no seio de um universo que tem
sentido. É até possível assim ter “uma boa morte”, isto é, morrer conservando até o
fim um relacionamento pacífico com o nomos da sociedade a que se pertence –
subjetivamente significativo para si mesmo e objetivamente significativo nas mentes
dos outros (BERGER, 1985, p. 57).
1.4.3 LINGUAGEM E MEDIAÇÃO
Agora a nossa atenção se voltará para a linguagem enquanto instrumento de mediação,
isto é, a linguagem como possibilidade, por um lado, de descrição da experiência com o
sagrado e, por outro, como acesso ao núcleo da experiência religiosa, o contato como sagrado.
1.4.3.1 Ombolo e o sentido
A surpreendente voga da religião tem feito a fortuna de suas formas de expressão nas
reflexões acadêmicas. Nessa esteira, recrudesce o interesse pelo estudo do símbolo em sua
referência à religião. Reconhece-se, como afirma Georges Dumézil, “a importância do
simbolismo para o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo, o seu papel fundamental na vida
de qualquer sociedade tradicional” (In: ELIADE, 1991, p. 5). O mundo moderno começa a
compreender que o símbolo pertence à substância da experiência religiosa, e que podemos
camuflá-lo, amputá-lo, degradá-lo, mas jamais extirpá-lo (ELIADE, 1991, p. 7). Tal
compreensão não era possível devida à moldura racionalista que circunscrevia o pensamento
científico nos séculos XVIII e XIX.
O ataque iluminista e a conseqüente desvalorização do símbolo religioso remonta ao
tempo da Reforma Protestante, como pretendemos demonstrar no capítulo seguinte. Por ora,
vale ressaltar que num ambiente dominado pela razão, nem sempre se nega o valor do
39
símbolo, isto é, que ele contenha ou possibilite algum tipo de conhecimento válido, que
precisa ser devidamente dele extraído e captado. Contudo, uma vez que se apropria de tal
conhecimento, pode-se “desprezar o invólucro simbólico como útil e até mesmo como infeliz
e perigoso” (MARDONES, 2006, p. 38).
Naquele momento o símbolo jazia sob preconceito, manipulação e intolerância. O
filósofo francês, François Marie Arouet (1694-1778), conhecido como Voltaire, por exemplo,
em seu Tratado sobre a intolerância, afirma que o símbolo é
um modo de inculcar no povo a obediência e o respeito aos bens dos outros. O que o
Evangelho diz pode muito bem ser traduzido e expresso conceitualmente pelo
filósofo, sem ter que recorrer ao universo escuro dos símbolos, imagens e contos,
propícios para a credulidade e para os espíritos infantilizados (In: MARDONES,
2006, p. 38).
Concepção semelhante é a do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), que
embora crítico do radicalidade do pensamento iluminista em muitos aspectos, em seu ensaio
intitulado Sobre a religião afirma que “a verdade nua e crua não pode ser mostrada ao povo;
daí que deva ser apresentada sob o denso véu da forma simbólica. Entretanto, o filósofo pode
dispensar o símbolo, já que tem acesso à verdade como tal” (In: MARDONES, 2006, p. 38).
Sua visão do símbolo é um tanto quanto esquizofrênica, porque para ele, o simbólico,
alegórico, imaginativo é para o povo; enquanto que o racional e profundo, para os instruídos.
(Idem, 2006, p. 38).
José María Mardones nos adverte que
essa concepção do símbolo como verdade degradada e popular, mediação necessária
e aproximativa para o vulgo, é uma idéia que resume a concepção do símbolo para
grande parte da intelectual idade européia a partir do século XVII até nossos dias. O
mbolo é, sob esse ponto de vista, “a indumentária do pobre”, a veste
antropocêntrica e pueril que adota o pensamento nas mentes incapazes de
conceitualização (2006, p. 38).
Não é esta visão que adotamos ao perspectivarmos o símbolo religioso. Ao contrário,
como ficará evidente ao longo deste trabalho, entendemos que a linguagem simbólica permeia
todas as formas de religião constituindo-se, portanto, na única forma de experienciarmos o
sagrado. “O símbolo é a linguagem fontal da experiência religiosa” (CROATTO, 2004, p. 81).
Concordamos com Mardones ao afirmar que “sem símbolo não existe religião, e sem religião
um enorme espaço do símbolo ficaria amputado. Símbolo e religião se abraçam mutuamente.
40
A capacidade do ser humano de criar símbolos se manifesta poderosa, plural e ambígua no
mundo da religião” (2006, p. 38).
Essa inter-relação captada entre símbolo e a religião se deve ao fato de que o sagrado é
inobjetivável; a experiência com ele reclama mediação, e o “símbolo religioso está localizado
[justamente] entre o totalmente outro e sujeito humano que o experimenta” (CROATTO,
2004, p. 83), dada a sua capacidade de “exprimir situações paradoxais ou certas estruturas da
realidade última, impossíveis de se exprimir de outra maneira” (ELIADE, 1991, p. 224).
a) A definição e função dos símbolos
Sabemos que a palavra símbolo vem do grego sum-ballo, ou sym-ballo, e significa
juntar duas coisas. Severino Croatto nos diz que os gregos, ao firmarem um contrato,
quebravam um objeto de cerâmica em duas partes, “então cada pessoa levava um dos
pedaços. Uma reclamação posterior era legitimada pela reconstrução (pôr junto = symballo)
da cerâmica destruída” (2004, p. 84). Símbolo, portanto, pode ser descrito, por esta
perspectiva, como união de partes. No caso dos gregos, essa união permitia reconhecer que a
amizade permanecia intacta. Igualmente em sua referência à religião, podemos afirmar que no
símbolo aparecem duas coisas separadas, porém complementares.
Se avançarmos um pouco mais e considerarmos a função que os símbolos
desempenham, na expressão da experiência com o sagrado, deveremos nos manter “no nível
do sentido, não no das coisas em si mesmas” (CROATTO, 2004, p. 85). Um objeto, enquanto
hierofânico passa a carregar dois sentidos. Um primário e outro secundário. O sentido
primário é o do objeto em si, é o sentido literal, captado na imediatez da identidade e função
que o objeto tem no cosmo que o envolve. Por exemplo, uma pedra sagrada não deixa de ser
pedra, torna-se outra coisa, mas não deixa de ser ela mesma. Conserva sua identidade e seu
sentido próprio, por isso, aparentemente ela é igual a todas as outras pedras (ELIADE, 2001,
p. 18).
Como já ficou enunciado, o ser humano, a partir de experiência prévia com o sagrado,
portanto pela perspectiva simbólica, pode atravessar esse sentido primário, posto que o
símbolo “revela uma modalidade do real ou estrutura do mundo que não estão evidentes no
plano da experiência imediata” (ELIADE, 1991, p. 220), e ver nas coisas um sentido
secundário. A esse respeito as palavras de Severino Croatto são bem ilustrativas:
Diante do pôr-do-sol [...] eu posso sentir uma emoção especial, tanto pela beleza do
cenário como pela nostalgia do que [...] fenece nesse momento. Ver uma formosa
41
flor me faz pensar na pessoa que mais amo. O vôo de uma ave suscita uma sensação
de paz e admiração. O pôr-do-sol, uma flor, um pássaro que voa são realidades
profanas, mas podem chegar a ser simbólicas, [oferecendo] um “segundo sentido”,
captado por meio do primeiro no cotidiano (2004, p. 86).
Deve ficar claro, então, que o sentido secundário não está presente nas coisas em si
mesmas, enquanto elementos do mundo profano, mas se objetiva na experiência humana, que
é sempre singular para cada pessoa. Dois indivíduos diante de uma mesma realidade ou objeto
podem apresentar percepções diferentes quanto àquilo que vêem. O ser humano sempre vê a
partir de sua situação histórica, psicológica e social. Como decorrência, outro ponto a ser
ressaltado é que “as coisas não são simbólicas em si mesmas, e nem sempre chegam a sê-lo.
São constituídas simbolicamente por alguma experiência humana” (CROATTO, 2004, p. 87).
Podemos afirmar, portanto, que o símbolo é sempre uma fala no limite da
racionalidade argumentativa e lógico-empírica (MARDONES, 2006, p. 56). A partir desse
limite, sempre voltado para a transcendência, o símbolo evoca algo que está além do seu
sentido primário, o símbolo evoca o ausente. Aliás, não apenas evoca, remete. O símbolo
remete à ausência, pois é na ausência, preenchida absolutamente pela capacidade que o
símbolo tem de transignificar, isto é, capacidade de revelar algo além de seu sentido primário,
que o sagrado é percebido.
Assim, função do símbolo pode ser descrita como a ação no sentido de transignificar
uma coisa ou objeto, gerando-lhe um segundo sentido e dando-lhe a capacidade de enviar
aquele que percebe tal sentido para “outra realidade que é a que importa existencialmente”
(CROATTO, 2004, p. 87).
b) O símbolo e o duplo sentido
Antes de prosseguirmos e entrarmos na esfera da hermenêutica do símbolo, devemos
distingui-lo de outras “linguagens” ou indicadores de duplo sentido: a alegoria, a metáfora e o
signo.
Se concordarmos com Paul Tillich que símbolo participa da natureza daquilo que é
simbolizado, havemos de assentir também que o símbolo não é apenas um substituto. O
símbolo constitui-se uma forma de expressão indireta que permite ir além de um sentido,
impossível de ser expresso de outra maneira. O símbolo, portanto, permite sair do conceito,
do sentido definido, da restrição do logos, e abre possibilidades significativas (TILLICH,
1984, p. 202). Nas palavras de Eliade, “quem compreende um símbolo, não só se ‘abre’ para o
42
mundo objetivo como também consegue sair de sua situação particular e ter acesso à
compreensão do universal” (1991, p. 226).
O símbolo, como já se tornou evidente, remete a outro nível de realidade, escapa às
peias da linguagem comum ou científica, de outra sorte, ele seria vazio, portanto, inútil. A
metáfora (gr. meta-fero) conquanto signifique aquilo que “leva mais adiante” ou “para outro
significado”, deve ser diferenciada do símbolo porque embora a metáfora marque a relação
entre dois elementos e leve a outro sentido, trata-se sempre de uma comparação entre dois
elementos conhecidos em que o “segundo sentido” está sempre presente no primeiro
26
. “A
metáfora é uma comparação, o símbolo é uma trans-significação” (CROATTO, 2004, p. 92).
Além disso, o símbolo sempre está presente no objeto simbolizado, o que equivale
dizer que “as coisas são elevadas à dimensão simbólica pelo que são e como são”, a serpente,
por exemplo, é concebida como um
mbolo da sabedoria pelo jeito como age e se move; ou é um símbolo de vida
porque troca sua pele anualmente ou porque vive na terra [...] e pode chegar a ser
símbolo de morte, pois sua mordida é letal. É a maneira de se manifestar ou a forma
de um objeto, e a maneira de agir de um ser vivente o que conduz a um ou outro
aspecto do sagrado, manifestado justamente sob essa dimensão (CROATTO, 2004,
p. 88),
ao passo que a metáfora é móvel, no sentido de que pode ser aplicada a coisas diferentes e até
antagônicas, simplesmente nomeando-as, sem modificação do conteúdo e/ou perda do sentido
que se pretenda. Metaforicamente a expressão “Iahweh é um herói” pode ser trocada por
“Marduk é um herói”, por “Júlio César é um herói” sem modificar o conteúdo. O mesmo é
atribuído a diferentes sujeitos (CROATTO, 2004, p. 93).
A alegoria (gr. allo-goreuo) é uma figura de linguagem que significa “dizer outra
coisa”. Embora aponte para um segundo sentido, a alegoria é diferente do símbolo, aliás é
oposta ao símbolo, já que este parte de algo conhecido e vai sempre em direção ao “mistério”
ao “totalmente outro”, enquanto que a alegoria incute um segundo sentido em um primeiro
sentido, por isso, só compreende uma alegoria, o indivíduo que conhece previamente o
segundo sentido que ela transporta.
Só porque envolve dois sentidos em que o segundo é lido no primeiro, a alegoria não é
um símbolo ao avesso, uma vez que o símbolo – insistimos – sempre nos remete ao
26
Severino Croatto, ilustra a questão assim: Ao dizer “este guerreiro é um leão”, não imagino um leão lutando
com sua presa, mas penso em tal indivíduo e na idéia claramente aludida de força, objeto de uma experiência
anterior (conheço essa característica do guerreiro e a expresso na comparão). O símbolo, pelo contrário, não
atribui algo conhecido. É intuição do desconhecido (2004, p. 92).
43
desconhecido, enquanto que a alegoria “parte de algo conhecido para terminar em uma figura,
a qual, por sua vez, remete [...] a algo conhecido, mas lido a partir da imagem” (CROATTO,
2004, p. 95).
Paul Ricoeur
27
afirma que o símbolo dá o segundo sentido em transparência, enquanto
que a alegoria dá em tradução. É bom que se diga que alegoria pressupõe um texto e que ao
traduzir o segundo sentido para o primeiro – expresso em um texto –, a alegoria esgota-se
(CROATTO, 2004, p. 97). O símbolo, ao contrário, é inesgotável, visto que o segundo sentido
para o qual aponta é captado numa manifestação limitada do “infinito”.
Estabeleçamos agora a distinção entre símbolo e signo. Podemos afirmar que signo é
tudo aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém (PIERCE, 2005, p.
46). Um signo forma na mente do indivíduo uma imagem que, na verdade, é um segundo
signo a atuar na interpretação do primeiro. O signo representa sempre apenas um aspecto de
seu objeto, aspecto este que se constitui o fundamento do signo (Idem, 2005, p. 46).
O signo, então, pressupõe sempre uma relação que se dirige do efeito para a causa, isto
é “na ordem da natureza ou da práxis humana, tudo o que é “efeito” pode ser, em algum
momento, signo de sua causa, por exemplo, a fumaça do fogo” (CROATTO, 2004, p. 98).
Isso equivale dizer que o sentido ao qual o signo remete – assim como acontece na alegoria –
pressupõe conhecimento prévio. Só é possível formalizar um signo na linguagem, na arte, nos
gestos, etc, quando há um conhecimento – da relação efeito e causa – anterior à formalização.
No símbolo não há relação do tipo ‘efeito-causa’, mas relação vital com aquilo que o
objeto simbólico transignifica. Signo representa. Símbolo media. E em se tratando de religião,
media a relação do ser humano com o mundo – a qual se origina a partir da pergunta por
significado – e vice-versa. Portanto, o símbolo
sempre visa a uma realidade ou a uma situação que envolve a existência humana. É
principalmente essa dimensão existencial que distingue e separa os símbolos dos
conceitos. [...] O símbolo religioso não revela apenas urna estrutura do real ou uma
dimensão da existência, mas confere, ao mesmo tempo, significação à existência
humana [...] O homem não se sente “isolado” no Cosmos; está “aberto” para um
Mundo que, graças ao símbolo, se torna “familiar” (grifos originais, ELIADE,
1991, p.226).
Outra diferença entre o símbolo e o signo a ser demarcada é que, em se tratando de
signo, o significado (coisa, objeto, etc.) é limitado, enquanto que a imagem que se forma na
27
Em La simbólica del mal. In: Finitude e culpabilidade. Madri: Taurus, 1969, p. 179ss. Citado por CROATTO,
José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo-
SP: Paulinas, 2004, p. 96.
44
mente do indivíduo, isto é, o significante, por meio de convenções, é ilimitado. Se nos
voltamos para o símbolo, tanto o significado quanto o significante são abertos. Croatto
esclarece que
um significado (uma experiência) pode sugerir vários significantes para se expressar
(o desejo de purificação pode ser expresso pelo simbolismo da água, do fogo ou por
algum outro); e vice-versa, um só objeto ou ser pode conter mais de um significado
(a serpente pode ser símbolo de sabedoria, de vida, ou até de morte)
(CROATTO,
2004, p. 99).
Esta relação que se dá entre o significado e o significante remete-nos à hermenêutica
do símbolo, precisamente ao problema da polissemia e polivalência da linguagem simbólica,
seja ela qual for, embora nos interesse aqui linguagem religiosa.
c) O símbolo e a interpretação
Todas as coisas do mundo são signos, mas nem todas são símbolos. Algumas nunca
chegam a sê-lo, dado que, como asseverado anteriormente, as coisas do mundo revestem-se
de caráter simbólico pelo que são e como são, mediante uma experiência prévia com o
sagrado. Se levarmos em conta a heterogeneidade das coisas do mundo, bem como sua
correspondente polissemia e polivalência enquanto símbolos em potencial, podemos afirmar
que o segundo sentido a que o símbolo nos remete será sempre plural. Dito de outra forma, o
símbolo pode ser polissêmico e polivalente. Daí se depreende que “o mundo do símbolo é de
inesgotável interpretação” (MARDONES, 2006, p. 97) ou como diria Paul Ricoeur, “o
símbolo é a condensação de um discurso infinito ou a origem de uma exegese sem fim”
(Idem, 2006, p. 95).
O símbolo é polissêmico porque possui um referente que só pode sugerir, evocar,
sempre se move no mundo do vislumbre e da conjectura, e desse modo, pode expressar
significados diferentes para pessoas e contextos diferentes. Dado o seu caráter evocativo, de
signo aberto, o símbolo sempre demanda interpretação; embora seja pré-hermenêutico – “o
símbolo ainda não é um texto” (CROATTO, 2004, p. 108).
28
A polissemia se revela também
no fato de que o símbolo não reflete a realidade objetiva, e sim o profundo, o misterioso, o
ausente. O símbolo intenciona sempre o desvelamento das raízes ocultas da realidade e nesse
processo mantém impavidamente a sua “irredutibilidade à expressão lingüística”
(MARDONES, 2006, p. 100), e, conseqüentemente, a sua inexatidão, fragilidade e não
28
Quando discutirmos a relação do mito com o símbolo, veremos a que polissemia só se encerra no mito.
45
limitação ao logos, que é exato e forte, porém reducionista. O logos sempre reduz, o símbolo
sempre expande. Esse segundo aspecto da polissemia não exclui a necessidade de
interpretação.
Enquanto polissêmicos, os símbolos são naturalmente contraditórios, isto é, os
símbolos “escapam da confortável ubicação na lógica binária do sim-não, on-off, verdade-
mentira, branco-preto. A realidade simbólica é muito mais plural e cheia de matizes e
contradições” (MARDONES, 2006, p. 98). Os símbolos, como está evidente, estão abertos a
diversas interpretações. Esta abertura, no entanto, tem levado a verdadeiras aberrações
interpretativas, de tal modo que os símbolos entram num infinito ciclo de mutações,
esvaziamento e degradações.
O pano de fundo dessa discussão é se há interpretações mais coerentes e adequadas
que outras. Mardones afirma que sim, mas adverte que
quando se pretende oferecer critérios, entra-se em uma discussão sem fim. É mais
fácil dizer crítico-negativamente que representações ou interpretações, em um
determinado momento histórico e em uma cultura determinada, já não são
adequadas, do que fornecer critérios facilmente aplicáveis (MARDONES, 2006, p.
96).
Embora válido como postura crítica, esse posicionamento não avança no sentido de
apontar a maneira de construir os diques que impeçam que as “interpretações que já não são
adequadas” continuem em seu curso.
A questão, parece-nos, localiza-se em um nível mais profundo, ou seja, antes de se
colocar a questão dos critérios interpretativos, há que se questionar a atitude que se tem diante
do “mistério”, que nem sempre intenciona apenas a interpretação da hierofania, e sim a posse-
morte dele, por meio da explicação. A necessidade de explicação dos símbolos implicam pelo
menos três coisas: não se acredita mais neles; não estão suficientemente introduzidos no clima
celebrativo; ou os sujeitos a quem se dirigem não os captam como tais (MARDONES, 2006,
p. 100). Severino Croatto, vai além e toca o cerne da questão. Ele afirma que
quando o símbolo é interpretado, é sua reserva de sentido que emerge em forma de
relato, cuja função não é “explicar”, mas “dizer” a experiência vivida. Caso
contrário, deixa de ser símbolo e converte-se em logos. E, com isso, perde sua
capacidade de remeter” para o inefável. Quando tudo está claro, já não há símbolo
(CROATTO, 2004, p. 110).
46
O desvendamento completo, por meio da explicação, corresponde à certeza de posse
do mistério que, por sua vez, está na base de todos os fundamentalismos
29
. Prosseguir nas
implicações desta afirmação nos desviaria do nosso propósito, por isso, nos voltamos agora
para o caráter polivalente dos símbolos.
Dizer que um símbolo é polivalente é afirmar a sua “capacidade de expressar
simultaneamente vários significados” (MARDONES, 2006, p. 97). Se a polissemia está para a
interpretação, a polivalência está para a experiência religiosa, uma vez que, em sua
concretude e especificidade, a experiência não comporta e/ou atualiza o símbolo em sua
polivalência, mas apenas o aspecto que se refira à modalidade da existência humana dentro de
uma determinada cosmovisão e situação histórica.
Quando o símbolo deixa de ser polissêmico e polivalente e passa a ser apenas um e
unívoco, ele “aparece como sintético, pois serve para expressar o que se chama de
coincidentia oppositorum (CROATTO, 2004, p. 105). Quer dizer, dessa forma o símbolo
mostra “o seu caráter englobador de contrários e de realidade heterogêneas” que, numa
referência a Nicolau de Cusa, poderia ser descrito como aquele que faz coincidir os opostos,
ou como o único capaz de promover uma harmonia de contrastes (MARDONES, 2006, p. 98).
Para Mircea Eliade que dedicou especial atenção a esse tema, a coincidentia oppositorum
“significa, fundamentalmente, que o pensamento religioso busca captar o sagrado como uma
totalidade, apesar de, no concreto de suas hierofanias, experimentá-lo em apenas uma de suas
manifestações” (In: CROATTO, 2004, p. 105).
29
Em sua excelente obra, José Maria Mardones no alerta quanto ao que ela entende elemento corrosivo da
experiência religiosa, a tentação da posse do “mistério”, que se manifesta de duas maneiras: pela racionalização
sobrenaturalista e pela subjetivação ingênua. Segundo o autor, são duas maneiras opostas de destruir o símbolo.
Nas palavras de Mardones são duas as “tentações atuais anti-simbólicas que provêm do campo religioso: a
racionalização objetivista e o subjetivismo ingênuo. Duas formas escondidas permanentemente dentro da
sensibilidade religiosa e que destroem o símbolo, isto é, corroem o que há de melhor na religião [...]
Aparentemente elas se apresentam dentro do cortejo do pensamento simbólico e dizem que querem o melhor
para a religião e o Mistério, ao qual dizem servir fielmente. Logo, porém,
percebe-se que são vírus que procuram
infeccionar a atmosfera religiosa com a objetivação que expulsa o símbolo e não permite a reserva permanente
diante do próprio Mistério; ou se apegam tanto às suas visões próprias e subjetivas, às suas boas intenções, que
não mantêm diante do Outro a distância que o pensar simbólico requer. [...] A experiência religiosa tem seus
próprios demônios. A tentação de se apoderar do Mistério e manipulá-lo a ameaça continuamente. Antiga e
permanente tentação, da qual não escapam a religiosidade e nenhuma instituição. Pretende-se possuir ou explicar
o Mistério, ou reduzi-lo, ou até mesmo desprezá-lo: é a tentação objetivista da estratégia racional. Contudo,
pode-se ir também pelo caminho do sentimento e da imaginação: afirmar a proximidade e o encontro íntimo com
47
1.4.3.2 O mito e a realidade
Ao nos propormos a análise do mito, não temos em vista as conotações que ele
assumiu na Modernidade
30
, mas o que significava para o homem religioso das sociedades
arcaicas. Buscaremos o aspecto vivencial do mito, ou seja, a sua forma de conferir sentido à
vida, como indicou o etnólogo inglês Bronislaw K. Malinowski (1884-1942), “o mito como
existe em uma comunidade primitiva, não é só história, mas uma realidade vivida” (In:
CROATTO, 2004, p. 209). Nossa aproximação do tema se dará, mais uma vez, pela via
fenomenológica.
a) A definição e função dos mitos
Para os nossos propósitos, o mito pode ser definido como o relato da ação criadora de
entes sobrenaturais em um tempo primordial, cuja finalidade é demonstrar como toda e
qualquer realidade começou a ser.
O mito é um texto que incorpora o símbolo e delimita a sua polissemia. Assim sendo,
o símbolo se liga a uma cosmovisão que o delimita por um lado, mas o expande por outro.
Tomemos, como exemplo, a água. Se normalmente ela simboliza a vida, a purificação, em um
rito batismal, a sua eficácia e/ou força simbólica é expandida do ponto de vista semântico: a
imersão corresponde à morte, enquanto que a emersão, à ressurreição (CROATTO, 2004, p.
239).
Ao contrário do símbolo que é pré-hermenêutico, o mito é hermenêutico, no sentido
de que quando interpreta o símbolo, cumpre uma função hermenêutica, e é justamente ao
fazer isso que o mito enriquece o símbolo.
O mito revela como as coisas vieram a existir. Os personagens dos mitos são os
deuses, sempre apresentados como aqueles, que num lapso de tempo, portanto num tempo
sagrado, criaram toda e que qualquer realidade significativa, seja ela a ordem social, o
casamento, a agricultura, ou mesmo uma ilha ou um rio. Em suma, “o mito descreve as
diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado no mundo. É essa irrupção do
sagrado que realmente fundamenta o mundo” (ELIADE, 2006, p. 11).
o Mistério, que se converte em algo disponível e possuído no coração” (MARDONES, José Maria. A vida do
mbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo-SP: Paulinas, 2006, p. 121).
30
Sobre as concepções do mito na modernidade confira: ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo-SP:
Editora Perspectiva, 2006, p. 7-10, 156-165; e CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência
religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo-SP: Paulinas, 2004, p. 181-207.
48
Já que o mito relata a atividade criadora dos entes sobrenaturais, aquilo que relata é
modelo exemplar para toda e qualquer ação humana significativa. E esta é a principal função
do mito, o desvelamento de modelos exemplares para ação humana (ELIADE, 2006, p. 13).
Quando afirmamos que o mito é paradigmático para toda ação humana significativa, temos
em mente que o mito responde a uma questão existencial, a relação do ser humano com a
realidade que o circunda. O mito sempre “responde a uma pergunta do homo religiosus sobre
seu ser-no-mundo. Não há mitos sobre coisas banais” (CROATTO, 2004, p. 219).
Naquelas sociedades em o que mito ainda sobrevive em sua forma arcaica, faz-se uma
distinção entre histórias verdadeiras (narradas nos mitos) e histórias falsas (narradas nos
contos e fábulas). Fale-se em mito ou em fábula, no que se refere aos personagens e/ou
protagonistas de um e outro, há algo que os une, “eles não pertencem ao mundo quotidiano”
(ELIADE, 2006, p. 15). Contudo a distinção entre mito e fábula estrutura-se a partir do
conteúdo e não dos personagens das narrativas
Do ponto de vista do conteúdo, a dicotomia é inevitável; o mito relata as origens do
mundo, aquilo que é diretamente pertinente aos seres humanos ao passo que as fábulas e
contos tratam das façanhas de um guerreiro ou da origem de um medicamento, etc., que não
obstante terem provocado mudanças no mundo, não conferiram maior sentido à existência,
não modificaram a condição humana enquanto ser-no-mundo.
Para se tornar experiência vivenciável, o mito necessita ser recitado, o que só pode
acontecer em circunstâncias e locais especiais, tais como: geralmente só os anciãos recitam os
mitos, o que deve ser feito em um lugar sagrado – num santuário, por exemplo – e num tempo
sagrado – à noite, durante uma festa religiosa, etc. O mito sobrevive porque é recitado. Não há
vida sem recitação.
Para Eliade, recitar o mito implica uma experiência religiosa, e a
“religiosidade” dessa experiência deve-se ao fato de que, ao reatualizar os eventos
fabulosos, exaltantes, significativos, assiste-se novamente às obras criadoras dos
entes sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de todos os dias e penetra-se num
mundo transfigurado, auroral, impregnado da presença dos entes sobrenaturais [...]
O individuo evoca a presença dos personagens dos mitos e torna-se contemporâneo
deles. Isso implica igualmente que ele deixa de viver no tempo cronológico,
passando a viver no tempo primordial, no tempo em que o evento teve lugar pela
primeira vez [...] Reviver esse tempo, reintegrá-lo o mais freqüentemente possível,
[...] reencontrar os entes sobrenaturais e reapreender sua lição criadora é o desejo
que se pode ler como em filigrana em todas as reiterações rituais dos mitos
(ELIADE, 2006, p. 22).
49
Caso haja concordância quanto ao que Eliade denomina experiência religiosa, cabe-
nos indagar: Como seria tal experiência na atualidade a partir das sobrevivências do mito nas
sociedades modernas?
b) A oposição entre o mythos e o logos
Antes de formularmos uma possível resposta para esta questão, precisamos descrever
ainda que brevemente a oposição entre o mythos e o logos, isto é, entre o irracional e o
racional, entre a “mentirarepresentada pelo mito e a verdade representada pela palavra.
De acordo com Mircea Eliade as mitologias construídas pelos poetas gregos Homero e
Hesíodo, a partir de determinado momento, deixaram de agradar à elite, desde então
interessadas nos deuses, porém não mais em suas histórias. Deu-se início assim, ao primeiro
processo de “desmitificação” de que se tem notícia, na história das religiões. Após esse
processo, a mitologia grega, esvaziada de seu conteúdo original, não pôde mais representar
para a referida elite o que representara para seus antepassados.
O essencial fora deslocado da história dos deuses para uma situação primordial que
precede essa história. Com isso a especulação filosófica também desloca-se do campo do
problema cosmogônico para o campo do ser.
Permanece o prestígio da origem que deve ser buscada, mas o caminho que leva a ela,
não é mais um “regressus obtido por meios rituais, mas efetuado por um esforço do
pensamento” (ELIADE, 2006, p. 101).
Apesar disso, ainda segundo Eliade, a filosofia grega não conseguiu superar o
pensamento mítico, senão quando passou a conceber a história como objeto de conhecimento.
E isso porque de um lado, o gênio filosófico grego aceitava o essencial do
pensamento mítico, o eterno retorno das coisas, a visão cíclica da vida cósmica e
humana, e porque, de outro lado, o espírito grego não julgava que a história pudesse
tornar-se objeto de conhecimento [...] Foi somente devido à descoberta da história
[...e] à assimilação radical desse novo modo de ser no Mundo que representa a
existência humana, que o mito podo ser ultrapassado (ELIADE, 2006, p. 102).
Ernst Cassirer (1874-1945) concorda com Eliade, porém vai além dele. Para ele não
foi só a descoberta da história como objeto de conhecimento que fortaleceu o logos em sua
oposição ao mythos; somou-se a ela o fato de que os gregos descobriram um método que lhes
permitia enquadrar o problema sob outro foco. Antes de estudarem a histórica, os gregos
tinham estudado a natureza. “Sem esse passo preliminar não lhes teria sido possível contestar
50
o poder do pensamento mítico. A nova concepção da natureza converteu-se no fundamento de
uma nova concepção da vida individual e social do homem” (CASSIRER, 2003, p. 76).
Para Cassirer, o processo de capitulação do mythos ante o logos na filosofia grega
passa por três etapas, com vários personagens antes de culminar em Platão.
Os primeiros pensadores gregos da escola de Mileto – dentre eles, Tales, Anaximandro
e Anaxímenes – só se interessavam pela natureza e pelo conhecimento da origem das coisas.
Como já observou Eliade, “isso não era uma nova tendência do pensamento; o que era
realmente novo era a definição do próprio termo começo (arché)”. E Cassirer continua:
Em todas as cosmogonias míticas, a origem significa um estado primordial que
pertence ao remoto passado mítico. Ela desvaneceu-se e desapareceu; foi substituída
e afastada por outras coisas. Os primeiros filósofos naturalistas gregos
compreendem e definem o começo num sentido radicalmente diferente, O que eles
procuram não é um fato acidental, mas uma causa substancial. O começo não é um
mero começar no tempo, mas um “primeiro princípio”; é mais lógico que
cronológico (CASSIRER, 2003, p. 76).
Tales, por exemplo, afirma que
o mundo não era apenas água, é água: a água é o elemento constante e permanente
de todas as coisas, A partir do elemento água ou ar, [...] as coisas evoluíram, não ao
acaso dos caprichos de algum agente sobrenatural, mas numa ordem regular e de
acordo com regras gerais. O conceito de tais regras inalteráveis e invioláveis é
totalmente estranho ao pensamento mítico (In: CASSIRER, 2003, p. 76).
Mas como o estudo da natureza não permite acesso ao centro do pensamento mítico,
na segunda etapa do processo de superação do mythos, o logos contou com a união de duas
forças opostas da filosofia grega – filosofia do ser e filosofia do devir – que desferiram um
golpe certeiro no centro do pensamento mítico, a concepção dos deuses.
Heráclito, por exemplo, criticou Homero por sua construção viciosa das coisas divinas.
Na verdade, os poetas e fazedores de mitos cediam à tentação de todos os homens: faziam os
deuses a sua própria imagem. A esse respeito, Xenófanes, comenta que
“os etíopes dão aos seus deuses uma pele negra e o nariz achatado, os trácios dão-
lhes olhos azuis e cabelos ruivos. E se os bois, os cavalos ou os leões tivessem mãos
e pudessem pintar com elas, os cavalos pintariam os deuses dando-lhes a forma de
cavalos e os bois dando-lhes a forma de bois” (CASSIRER, 2003, p. 78).
Para esse filósofo a divindade tinha que ser liberta do pensamento mítico e
antropomórfico.
51
Vimos que a Escola de Mileto propôs uma nova concepção da natureza física e que
Heráclito e, juntamente com ele, eleáticos, como Xenófanes, propuseram uma nova
concepção da natureza divina. Em suma o pensamento grego criou uma nova “fisiologia” e
uma nova “teologia”. Mas estas ações não foram “racionais” o suficiente para suplantar o
pensamento mítico. Ele continuava determinando para homens, senão a origem, o telos, o
sentido da vida. Faltava o golpe derradeiro.
Isso nos leva à terceira etapa do processo. Novamente duas correntes filosóficas
opostas se unem: sofistas e socráticos. Estas escolas separadas pelas concepções filosóficas e
métodos tinham como objetivo comum “humanizar a filosofia, transitar da cosmogonia e da
ontologia para a antropologia” (CASSIRER, 2003, p. 79).
Não obstante isso, para “criticar e purificar as concepções tradicionais da religião
grega popular”,
sofistas e socráticos seguem rotas diferentes. Aqueles inventam e adotam o
método alegórico por meio do qual prometiam uma explicação racional dos mitos, e dessa
forma, “o mito, por mais estranho e grotesco, podia ser bruscamente transmutado numa
verdade – numa verdade física ou moral” (CASSIRER, 2003, p. 82).
Sócrates, entretanto, argumentava que não bastava reinterpretar os mitos; para
suplantar o poder do mito, era necessário desenvolver o novo poder do conhecimento de si
mesmo. Para os socráticos, muito se pode aprender com o mito, mas há que se considerar que
ele não é capaz de abarcar a única questão que realmente importa: o problema do bem e do
mal. “Só o logos socrático, só o método de auto-exame, introduzido por Sócrates, pode
conduzir à solução desse problema essencial e fundamental” (CASSIRER, 2003, p. 82).
No processo de suplantação dão mythos pelo logos, Platão encontra-se numa posição
estratégica, historicamente, que lhe permitiu fazer a síntese do pensamento de seus
antecessores e ir além deles. Segundo Platão,
sem ter encontrado uma verdadeira e mais adequada concepção dos seus deuses, o
homem não pode esperar ordenar e regular o seu próprio mundo humano. Enquanto
continuarmos a conceber os deuses de maneira tradicional, lutando e enganando-se
mutuamente, as cidades não deixarão de ser mal governadas. Porque aquilo que o
homem vê nos deuses é apenas uma projeção da sua própria vida - e vice-versa.
Lemos a natureza da alma humana na natureza do Estado - formamos os nossos
ideais políticos de acordo com as nossas concepções dos deuses (CASSIRER, 2003,
p. 90).
O problema do mito é, portanto, a chave para compreender por que, em A República
(s/d), uma obra sobre política, Platão os ataca poetas. Platão está interessado em substituir os
deuses míticos pelo mais alto conhecimento: a idéia do bem. Mas não era fácil substituir as
52
obras de Homero, Hesíodo, Píndaro, Ésquilo. O que poderia ele oferecer em substituição à
Odisséia e à Ilíada? A resposta está na inovadora teoria política que propõe, não enquanto
desejo de reformar o estado, mas enquanto maneira de formular o problema. Para ele, o
“Estado não tem outra nem mais alta finalidade que a administração da justiça”, mas há que se
considerar que, para Platão, a justiça não deveria mais ser vista como uma virtude humana, tal
como a temperança ou a integridade, mas como
um princípio geral de ordem, regularidade, unidade e legalidade. Dentro da vida
individual, essa legalidade aparece na harmonia de todos os diferentes poderes da
alma humana; no Estado aparece na “proporção geométrica” entre as diferentes
classes, de acordo com a qual cada parte do corpo social recebe o que lhe é devido e
coopera na manutenção da ordem geral (CASSIRER, 2003, p. 92).
Dessa forma, embora o mito faça parte de metafísica e filosofia natural de Platão, não
tem espaço na sua concepção do Estado legal, nesse campo o filósofo é inimigo declarado do
mito. Platão declarou:
Se admitirmos o mito nos nossos sistemas políticos, estão perdidas todas as nossas
esperanças de construir e reformar a nossa vida política e social. Só resta uma
alternativa: temos de escolher entre uma concepção ética e uma concepção mítica
do Estado. No Estado legal, o Estado de justiça, não há lugar para as concepções da
mitologia, para os deuses de Homero e Hesíodo (CASSIRER, 2003, p. 92).
O pensamento platônico sobreviveu ao fracasso da vida e políticas gregas, graças a sua
pertinência e não condicionamento a um contexto e situação histórico-cultural específicos.
Mas a isso acrescente-se o triunfo do cristianismo e a “teologização” do mesmo feita por
Agostinho, bispo de Hipona e o mais importante pai da Igreja Cristã.
Além do pensamento platônico, a Idade Média preservou, graças ao alegorismo e
evemerismo
31
, a mitologia grega. Segundo Eliade, foi graças a estes dois fatores – e ao
desenvolvimento de toda literatura e todas as artes plásticas em torno dos mitos divinos e
heróicos – que os deuses e heróis gregos não ficaram relegados ao esquecimento após o longo
processo de desmitificação, nem após o triunfo do cristianismo (ELIADE, 2006, p. 22).
No entanto reconhece-se que “se em todas as línguas européias o vocábulo mito
denota uma ficção, é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos” e que,
31
Referem-se respectivamente ao método alegórico praticado pelos filósofos sofistas com o intuito de oferecer
um significado racional aos mitos (CASSIRER, 2003, p. 82) e ao escritor Evêmero o qual publicou, sob a forma
de viagem filosófica, o romance, História Sacra (séc. III a.C.). Esta obra, o primeiro texto grego a ser traduzido
para o latim, alcançou grande êxito. Nela o autor afirmava que os deuses eram reis dinivizados. Tal abordagem
contribuiu, juntamente com as alegorias, para preservar os mitos homéricos (ELIADE, 2006, p. 136).
53
portanto, era inevitável que os primeiros teólogos cristãos – tendência que permanece até
nossos dias – tomassem o termo mito “na acepção que se impusera há muitos séculos no
mundo greco-romano, isto é, de fábula, ficção e mentira (ELIADE, 2006, p. 130 e 141).
c) O mito e a realidade
Do que afirmamos anteriormente acerca do mito, há ainda um ponto a ser detalhado
que é justamente a relação entre mito e realidade. Num certo sentido, no relato mítico está
presente o núcleo irradiante do real, de forma tal que sacralidade e realidade absoluta se
identificam. Como isso é possível? De acordo com Mircea Eliade, os mitos estão encharcados
com arquétipos que, para a mentalidade arcaica, são os paradigmas de tudo o que existe. A
Jerusalém celeste precede a Jerusalém terrestre construída pela mão do homem e se lhe impõe
como modelo. E todas as cidades são construídas de acordo com o modelo mítico da cidade
celestial, eterna, perfeita, acima do espaço e do tempo empíricos (2000, p. 22). Dessa forma,
“um objeto ou ação só se tornam reais na medida em que imitam ou repetem um arquétipo.
Assim, a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação; tudo o que não possui
um modelo exemplar é desprovido de sentido, isto é, não possui realidade” (Idem, p. 49).
Sendo assim é possível afirmar que o “mito é fixista” – ou seja, toda e qualquer
instância da realidade possui um relatotico correspondente que a encaixa no
“transcendente” (CROATTO, 2004, p. 225) – e como tal nega toda e qualquer evolução,
uma supressão da história. De modo que “a realidade instaurada no acontecimento mítico
deve coincidir harmonicamente com a realidade presente, da qual a realidade mítica é o
sentido e modelo” (CROATTO, 2004, p. 225).
Um questionamento oportuno e necessário é o seguinte: o que acontece com o mito
quando há mudança na realidade? Quando não mais interpretam “realidade”, os mitos podem:
a) morrer; b) passar à categoria de fábulas ou contos; c) incluir adendos explicativos; d) ser
recriados. Este último ponto é o que nos interessa.
Quando uma cosmovisão é destruída por uma mudança ocorrida na realidade sócio-
histórica, não necessariamente implica-se a destruição da comunidade religiosa que se re-
instaura pela recriação do mito. A recriação pode acontecer de duas formas, na primeira, os
“elementos significativos do relato mítico são alterados para que em sua nova versão volte a
ser arquétipo da nova realidade”. Uma segunda forma de recriar o mito é construir totalmente
um novo relato que, de forma paradigmática, responda à nova realidade (CROATTO, p. 228).
54
Diante do exposto, podemos concluir, provisoriamente, que tal como nos chegaram,
degradados, depurados e destituídos de seu contexto cultual original, os mitos sempre serão
tomados como irrealidade pela mentalidade moderna, seja ela religiosa ou não.
1.4.3.3 O rito e o ritualismo
Toda experiência religiosa carece de mediação e expressão. A linguagem simbólica é,
por excelência, a linguagem da experiência religiosa. E se o símbolo é a linguagem fontal da
experiência religiosa, o rito é “a que mais se sobressai em toda religião. O rito é o equivalente
gestual do símbolo. O rito é o símbolo em ação” (CROATTO, 2004, p. 329), embora o
símbolo seja expressivo e o rito performativo.
O rito, porém, vai além do símbolo e aparelha-se com o mito, no sentido de que o rito
é um texto. Entretanto a linguagem gestual do rito não tem a força da palavra do mito.
(CROATTO, 2004, p. 329). A decorrência é que a palavra do mito ingressa-se no rito e lhe
amplia a significação. Como afirma Ricoeur,uma ação simbólica [ritual] sem palavra
deixará de manifestar muito de seu poder instituidor, ordenador, significador” (In:
MARDONES, 2006, p. 99).
Assim sendo, pode-se afirmar que o rito está entre o símbolo e o mito, no sentido de
que na experiência religiosa, participa de ambos, ou seja, o rito “é símbolo, mas participa do
mito enquanto é um feixe de símbolos organizados para ‘dizer’ alguma coisa” (CROATTO,
2004, p. 330).
a) A definição e função do rito
O rito pode assumir feições diferentes em culturas e religiões diferentes, por isso para
se empreender a sua definição, há que se buscar os elementos que lhe sejam permanentes.
Assim, temos a norma, a periodicidade e a comunidade. Não é qualquer gesto que pode
formar um rito, nem tão pouco, uma vez constituído o rito, pode ele ser praticado em qualquer
tempo ou lugar; e ademais, o rito tem caráter social. Diríamos então que o rito “é uma norma
que guia o desenvolvimento de uma ação sacra” (CROATTO, 2004, p. 330), praticada
periodicamente, na presença de uma comunidade e a partir de regras precisas.
O rito não é uma ação meramente humana – como não tardaremos a ver –, constitui-se
a imitação de uma ação divina que, ao ser imitada funciona como mecanismo de participação
55
no transcendente. Todos os ritos visam, de uma forma ou de outra, ao contato com o sagrado,
possibilitado por um gesto que imita simbolicamente um gesto primordial. (CROATTO,
2004, p. 331).
b) O rito e o mito
Mito e rito se sustentam e acrescentam-se mutuamente; aquilo que o “mito recita, o
rito converte em cena”; o mito rememora, o rito comemora. Segundo Mircea Eliade,
todo mito, independentemente da sua natureza, enuncia um acontecimento que teve
lugar in illo tempore e constitui, por isso, um precedente exemplar para todas as
ações e ‘situações’ que, depois, repetirão este acontecimento. Executados pelo
homem, todo ritual ou ação dotada de sentido repetem um arquétipo mítico (2002,
p. 350).
Embora a palavra tenha sua eficácia reconhecida tanto na ordem sagrada quanto na
profana, não se pode negar que a palavra do mito alcança sua eficácia máxima na ação ritual,
uma vez que o rito lhe acrescenta o elemento visual e socioespacial, isto é, todo gesto ritual é
feito na presença de um grupo de pessoas e em um espaço específico.
O mito acrescenta algo ao rito, quando, como faz com o símbolo, delimita e
intencionaliza sua polissemia. Todo rito é essencialmente polissêmico se tomado
isoladamente, isto é, fora de uma determinada cosmovisão. Por exemplo,
mergulhar no rio Ganges é um rito homólogo a mergulhar no rio Jordão [...] Mas a
cosmovisão da Índia impõe ao rito de submersão no rio Ganges uma intenção
diferente da intenção do batismo no rio Jordão. O mito, portanto, especializa o
sentido do rito. Fecha-o para dar-lhe mais força. O rito é agora um ‘rito-relatado’: à
eficácia do gesto soma-se a eficácia da palavra intencionante do mito. (CROATTO,
2004, p. 333).
Em resumo, o rito é sempre uma teatralização litúrgica da ação arquetípica relatada no
mito.
Já insistimos que para ser real e significativa, a ação humana tem que ter o seu
correspondente no tempo mítico; assim todo ritual que se coloque como significativo para a
experiência religiosa de um determinado grupo social, tem um mito de origem que relata
56
como os deuses o instituíram no tempo mítico
32
. E estes mitos fundantes dos ritos “são os
mais importantes em todas as religiões, pois sua significação aumenta pelo fato de serem
gestos sagrados por si” (CROATTO, 2004, p. 331), ou seja, são sagrados porque foram
instituídos pelos deuses, e sagrados porque possibilitam a participação no tempo em que os
deuses agem, portanto, na vida dos deuses. “Por meio de qualquer rito e, por conseguinte, por
meio de qualquer gesto significativo – caça, pesca, etc. – o primitivo insere-se no ‘tempo
mítico’” (ELIADE, 2002, p. 319).
c) O rito e a práxis
Assim como acontece com o mito, o rito, enquanto enraizado no tempo mítico, é
modelo para a atividade humana. Os ritos de iniciação, por exemplo, inauguram uma nova
prática ou modalidade de ser, fale-se da prática da colheita ou da vida conjugal, não importa!
Em ambos os casos a atividade humana está revestida de sacralidade, porquanto o rito foi o
seu ponto de partida. É dessa forma que “um rito de consagração de um rei outorga
significação sagrada à sua práxis política, assim como, a consagração de um sacerdote dá uma
sacralidade à sua ação litúrgica e pastoral” (CROATTO, 2004, p. 342).
Em resumo, podemos afirmar que
se a atividade dos Deuses na origem das coisas (mito) faz-se presente na atividade
ritual e, mediante essa, confere sentido à atividade humana histórica, essa tríplice
graduação (ação divina/ritual/histórica) é estrutural. Por isso, modificado o primeiro
grau, modificam-se os outros dois; modificado o último, mudam os dois primeiros
(CROATTO, 2004, p. 342).
Antes de prosseguirmos havemos de considerar que rito e palavra devem se submeter
mutuamente, pois quando isso não acontece, e dá-se o caso da palavra tomar o lugar do rito,
termina-se por promover a ritualização de coisas secundárias; ao passo que o rito sem a
eficácia da palavra pode se despir de seu valor simbólico. Dito de outro modo, seja em um e
outro caso, o rito pode degenerar-se no ritualismo, dado que sua legitimação e eficácia têm
como núcleo o seu caráter fixista – fixação e inviolabilidade das normas de sua execução.
“O ritualismo sacraliza o próprio rito em vez de expressar a sacralidade que permeia
toda a ação” (CROATTO, 2004, p. 353). O ritualismo termina por colocar o ser humano
32
Embora seja sempre uma exceção, pode se dar o caso de um mito não ter o seu correspondente ritual, ao passo
que um ritual pode ser anterior ao seu mito fundante. No primeiro caso, isso ocorre porque quando um mito
precisa ser reeditado ou recriado – quando acontece uma mudança na realidade – o que provoca degeneração do
57
acima da divindade, porquanto nele, “a ação divina transignificada é rebaixada a um
condicionamento de normas humanas exteriores”, ao passo que “oferece segurança ao ator
humano (seja ele o sacerdote ou o grupo que participa do ritual)”, uma que vez que suposto
está que a “exatidão da execução do rito equivale a um resultado infalível” (Idem, p. 343).
Quando o que está em evidência são os benefícios que o ser humano pode receber do
ritual e não mais a sua participação na vida da divindade, na verdade, saímos do âmbito da
religião e ingressamos na magia.
Se concordarmos com aquele “modelo” – ação divina/ritual/histórica – proposto por
Severino Croatto, e, além disso, aceitarmos a possibilidade de degeneração dos ritos,
conforme descrita acima, podemos afirmar que a linguagem simbólica se interpõe entre a
concepção que se tem do sagrado e a práxis histórica, e questionar: Como ou a partir do que é
possível construir a identidade e/ou organizar a práxis histórica num ambiente de supressão
quase que absoluta da linguagem simbólica em prol da palavra?
1.4.3.4 A religião e a magia
Ao delinearmos os contornos dos temas magia e religião, duas são as questões das
quais nos ocuparemos: primeiro, demonstrar que magia e religião, enquanto linguagem
simbólica, são duas formas diferentes de experienciar o sagrado, e também que, no ocidente, a
magia perdeu espaço para a religião cristã, principalmente a partir da Reforma Protestante.
33
Primeiramente apontaremos a transmutação do significado do termo religião, bem
como o processo de identificação deste com o cristianismo; a seguir, definiremos o que
chamamos magia; depois, de forma elementar, situaremos a convivência de magia e religião
no ocidente, sob a perspectiva da diferença e da oposição.
a) A religião
Tratamos anteriormente dos desenvolvimentos recentes do conceito de religião, mas é
bom lembrar que este termo religião, definido de tantas maneiras, algumas vezes até
antagônicas
34
, ainda hoje, está ausente em muitas nguas e dialetos, justamente porque em
ritual que se ligava ao mito anterior. No segundo caso, mito vem para especificar o sentido de ritual dentre de
uma dada cosmovisão (Cf. CROATTO, 2004, p. 341 e ELIADE, 2000, p. 42),
33
Quando tratarmos do tema da “redução protestante”, isto é, a redução da linguagem simbólica no
protestantismo, ficará evidente as razões pelas quais a magia foi praticamente expurgada desse segmento da
religião cristã.
34
Lembremos, por exemplo, a definição de Feuerbach: “Um desejo do homem que se manifesta na oração, no
sacrifício e na fé”; ou a de Tylor: “Uma crença em seres espirituais”, definição que mais tarde foi corrigida por
58
tais culturas não há nada que possa ser classificado como profano, como afirma Meslin (1992,
23). Isso confronta com o pensamento de Durkheim (1989, p. 68) e Eliade (2002, p. 7),
segundo os quais toda crença religiosa, seja ela simples ou complexa, assim como toda
definição do fenômeno religioso, têm um núcleo comum, a oposição e/ou separação entre
sagrado e profano. Perspectiva que adotamos neste trabalho.
Feita esta observação inicial, voltemo-nos para a etimologia e história do termo
religião, bem como à mutação de sentido que sofreu sobre o impacto do cristianismo. Embora
os gregos tenham iniciado certa crítica à religião, não fazem uso do termo “religião”. É entre
os romanos que o encontraremos (HOUTART, 2003, p. 17), porém com um significado muito
diferente do atual. Religião do latim religio, entre os romanos, “designava a realização
escrupulosa das observâncias cultuais, no respeito e na piedade devidos aos poderes
superiores. Uma tal observância se fundamentava numa tradição” (MESLIN, 1992, 24).
Cícero
35
insiste, no De natura deorum, que religio é o culto devido aos deuses segundo o
costume dos ancestrais e que a melhor religião é a mais antiga, porque está mais próxima dos
deuses” (Idem, p. 24). A religio, assim entendida, tem a ver com um conjunto de crenças e
práticas com as quais uma coletividade e/ou sociedade honra os seus deuses. É essa
concepção de religião que possibilitou aos judeus a liberdade para praticar o seu culto
monoteísta a Yaweh nos limites do Império Romano. Do ponto de vista romano, era uma
religio licita, ainda que abarcasse uma concepção de culto e divindade muito diferente, a
ponto de Tácito afirmar “tudo que é sagrado para nós é profano para eles; em contrapartida,
eles permitem entre si tudo o que temos na conta de abominação” (In: MESLIN, 1992, p. 25).
Pergunta-se, como isso possível? É possível quando o termo religião não é usado para
especificar uma única crença e ou forma de culto, mas sim “um sistema de crenças e práticas
enraizadas na cultura particular de um povo” (MESLIN, 1992, p. 25). É justamente este
conceito que Émile Durkheim recuperará muitos séculos depois, ao afirmar que a religião “é
um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas” [...] (1989,
p. 79).
Frazer: “Uma propiciação e uma conciliação dos poderes superiores ao homem que este julga capazes de agir
diretamente sobre a natureza e o curso da vida humana”. Nem sempre, entretanto, a definição de religião foi
positiva, basta lembrarmos que Marx a definiu como “o suspiro da criatura alienada”; e Freud como “a ilusão
neurótica” (MESLIN, 1992, 24).
35
Cícero foi um pensador romano de grande destaque não só pela influência que exerceu entre os Romanos e a
cultura romana, mas também pelas obras que escreveu. De Natura Deorum (Da Natureza dos Deuses): livro
escrito em 45 a.C., após a morte do filho de Cícero. É neste livro que o poeta pensador expõe as doutrinas
filosóficas da época.
59
Se nos seus primórdios o cristianismo é apenas uma seita do judaísmo, portanto uma
religio entre outras – ainda que os primeiros cristãos não se concebessem assim, não havia
condições históricas e sociais de se definirem de outra forma. Quando se expande pelo
Império Romano e entra em contato com diversas culturas e classes sociais, o cristianismo,
sob a chancela do estado constantiniano, sentiu a necessidade e/ou vislumbrou a possibilidade
de definir-se não mais como uma religio entre outras, “mas como a única religião verdadeira”
(MESLIN, 1992, 25).
A essa mudança histórica coube uma mudança semântico-etimológica da qual se
encarregaram os apologistas
36
Lactâncio e Tertuliano para quem o termo religião não vem de
relegere (dar uma atenção escrúpulos...) como afirmara Cícero, mas de religare (religar a, no
caso o homem a Deus, uma vez que o pecado rompeu tal ligação). “Assim, a religião não é
mais o exercício escrupuloso de práticas tradicionais, mas o laço pessoal qeu liga o homem ao
seu criador” (MESLIN, 1992, p. 26).
Essa viragem etimológica pode ter sua origem ligada ao próprio contexto em que
surgiu a concepção anterior de religio, já que, segundo Marcel Mauss, em Roma “o termo se
referia aos nós de palha que fixavam as vigas de uma ponte: o mestre da religião em Roma se
chamava pontifex, o construtor de pontes” (In: HOUTART, 2003, p. 20).
Todavia o que deve estar claro é que, nos escritos dos Pais da Igreja, principalmente de
Agostinho, “cujo pensamento sempre animará a teologia medieval e uma boa parte da
Renascença, a palavra ‘religião’ tende a designar, no Ocidente, unicamente o cristianismo,
única religião verdadeira, pois é o único laço entre o homem e Deus” (MESLIN, 1992, p. 26).
A quebra na unidade cristã, no século XVI, decorrente da Reforma Protestante,
permitiu a emancipação do indivíduo com relação à religião. Iniciava-se a era da razão. E
animado por ela o protestantismo se encarregaria de não só definir o lugar e valor do
cristianismo em relação a outras religiões e a si mesmo, como também o “purgaria” de
praticamente todo simbolismo cultivado durante toda Idade Média. Esse corte redutor do
protestantismo será o assunto do próximo capítulo.
b) A magia
Sem perder de vista o viés da linguagem simbólica, concebemos a magia e a religião
como duas formas de experienciar o sagrado. Mas vai aqui uma advertência: ainda que
36
Teólogos e filósofos antigos e medievais responsáveis por formular sistemas que defendiam a fé cristã dos
ataques “pagãos”, ao mesmo tempo, que provavam sua “superioridade”.
60
encontremos na magia, elementos popularmente identificados como pertencentes ao campo
religioso, tais como ritos, crenças, dogmas, cerimônias, e até mesmo, identifiquemos que “os
seres que o mago invoca, as forças que ele atualiza não apenas têm a mesma natureza das
forças e dos seres aos quais se dirige a religião, como muitas vezes são em tudo idênticos”
(DURKHEIM, 1989, p. 74), há que se clarificar que “magia não é religião. Não se acredita em
magia do mesmo modo que se crê numa religião, não se pratica magia do mesmo modo que se
segue uma religião” (PIERUCCI, 2001, p. 82).
Se a religião posterga, a magia concretiza. A magia é imediatista e, como tal, pode
constituir-se uma via de popularização ou até de profanação
37
da religião. Entretanto, mesmo
quando não referida a religião, a magia será sempre mais popular que a religião – daí a maior
hostilidade desta para com aquela, porque a
religião adia as recompensas para um futuro messiânico, quando não para o outro
mundo. A magia, de sua parte, mais consciente dos limites de sua utilidade, sabe-se
e pretende-se muito mais circunscrita nas soluções que pode oferecer aos
transtornos e contratempos da vida humana [...] a magia deve servir para melhorar a
vida ‘aqui e agora’, não no ‘outro mundo’; no futuro, só se for o imediato, jamais na
vida eterna” (PIERUCCI, 2001, p. 83 e 102).
Essas considerações nos levam ao antropólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942)
cujas idéias têm sido recuperadas com renovado interesse por cientistas sociais e/ou da
religião preocupados em traçar o perfil atual e futuro da religiosidade no Brasil. Pierucci
afirma que “a magia é essencialmente prática”; por causa disso, não se pode buscar uma
“racionalidade teórica das crenças mágicas [porque] o conjunto extravagante e incoerente de
crenças do magismo é domínio onde reina, absoluto, o irracional” (2001, p. 52 e 53).
Pierucci está alinhado com Malinowski que, em sua principal obra,
38
afirma a tese de
que “a magia é uma prática que tem uma finalidade eminentemente prática” (In: PIERUCCI,
2001, p. 54). Segundo Malinowski, que elaborou seus estudos sobre a magia, a partir da
vivência com os selvagens das Ilhas Trobriand, no Sul do Pacífico, nenhum primitivo recorre
à magia quando conhece e/ou dispõe de meios racionais e técnicas adequadas para alcançar os
objetivos inerentes às suas atividades cotidianas. Jamais a magia é praticada para fins
ordinários; a magia é feita para viabilizar e objetivar o extraordinário. A título de exemplo,
Malinowski nos informa também que entre os selvagens analisados, um agricultor não lança
37
“A magia põe uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas santas; nos seus ritos, ela assume
posição oposta a das cerimônias religiosas” (DURKHEIM, 1989, p. 75)
38
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Portugal: Edições 70, 1988, 280 páginas. Obra
esgotada neste idioma.
61
mão da magia, enquanto recurso extraordinário objetivado em um encantamento, reza ou
rito – para realizar o que ele sabe ou o que é possível saber e realizar.
Comentando o pensamento de Malinowski, Pierucci expressa-se assim:
qualquer encantamento usado para um fim tecnicamenteassegurado acabaria por
revelar-se uma prática supérflua, redundante, excessiva para os resultados práticos
que racionalmente se esperam do bom manejo técnico dos instrumentos e da
obediência às regras racionais da experiência, ou do saber tradicional [...]
O
selvagem, relata Malinowski, pratica magia porque acredita nela como alternativa eficaz
a determinada incapacidade sua, experimentada em situaçõeso-cotidianas de muita
incerteza, imprevisibilidade e, portanto, tensão e ansiedade
(2001, p. 55).
A atividade náutica pode ser tomada como um paradigma da forma como os nativos
pensam e praticam a magia. De acordo com Malinowski, para nativos das Ilhas Trobriand,
navegar é o mais arriscado de todos os empreendimentos conhecidos do homem
primitivo. Na fabricação de suas embarcações e no traçado de seus planos, o
selvagem se vale da ciência. O esmero no trabalho e as tarefas inteligentemente
organizadas, tanto na construção dos barcos quanto no próprio navegar, atestam a
confiança que o selvagem deposita na ciência, sua submissão a ela. Entretanto, o
vento adverso ou a falta total de vento, o mau tempo, as correntes marítimas e
arrecifes podem muito bem frustrar seus melhores planos e suas mais cuidadosas
precauções. Então ele tem que admitir que nem seu conhecimento nem seus mais
esmerados esforços constituem garantia de sucesso. Algo de imprevisível de
repente sobrevém e balda suas antecipões. [...] O indivíduo sente então que pode
fazer algo para peitar aquele misterioso elemento de força a fim de ajudar e
favorecer sua ppria sorte (In: PIERUCCI, 2001, p. 56).
Mesmo reconhecendo que o pensamento de Malinowski acerca da magia foi e é
passível de crítica,
39
Pierucci afirma que “a explicação que Malinowski encontrou para o
magismo representou importante descoberta empírica [a qual] não é relativa apenas aos povos
tribais” (2001, p. 57). As descobertas contêm elementos com vocação atemporal e universal,
disso é testemunha a não superação dos mesmos.
Será sempre assim; onde houver uma
defasagem entre invencível entre o que se deveria tecnicamente fazer numa situão
determinada e o que de fato se sabe ou se consegue fazer. Quando se está [...]
perante sério descompasso entre o controle real que se tem das forças da natureza e
o controle que se acredita precisar naquele momento [ser humano de qualquer
época, tempo ou lugar, sempre recorrerá] a uma ação simbólica substitutiva na
tentativa de controlar acontecimentos que se mostram incontroláveis pelos meios
técnicos à mão (PIERUCCI, 2001, p. 57 e 58).
39
Criticada, entre outros por: Ruth Benedict. Magic. In: Encyclopedia of the Social Sciences, vol. 10. New
York: Macmillan, 1931 e CIaudc Lévi-Strauss.Le totemisme Aujourd'hui. Paris: PUF; 1962.
62
É importante destacar ainda que embora a magia não possa ser concebida com uma
racionalidade sistematizada e sim com um conjunto de práticas, podemos encontrar sob a
roupagem de tais práticas um princípio geral, o princípio da simpatia. Segundo este princípio,
há “relações de correspondência entre os reinos da natureza, conferindo regularidade e
previsibilidade a essas relações” (PIERUCCI, 2001, p. 62). Na verdade, acredita-se que,
embora os reinos da natureza sejam diferentes, os elementos semelhantes que os constituem
“se correspondem reciprocamente um por um, se representam um ao outro, cada qual podendo
servir de símbolo um do outro, revelar as propriedades um do outro ou mesmo agir um sobre
o outro” (PIERUCCI, 2001, p. 62).
O primeiro antropólogo a elaborar este princípio desta forma foi o inglês James
George Frazer (1854-1941). “Para Frazer, são mágicas as práticas destinadas a produzir
efeitos especiais pela aplicação das duas leis ditas simpáticas:
40
a lei da similaridade e a lei da
contigüidade” (In: MAUSS, 2001, p. 8), e há ainda dentro princípio geral da simpatia, que
engloba estas leis regidas pela idéia da correspondência, a lei da contrariedade (In: MAUSS,
2001, p. 85). Todas elas se encaixam na seguinte fórmula: “O semelhante produz o
semelhante; as coisas que estiveram em contato, mas que deixaram de o estar, continuam a
agir umas sobre as outras, como se o contato se mantivesse” (In: MAUSS, 2001, p. 8). Para
Frazer não há exceções, “a simpatia é a característica necessária e suficiente da magia, todos
os ritos mágicos são simpáticos e todos os ritos simpáticos são mágicos” (In: MAUSS, 2000,
p. 8). Marcel Mauss, que define magia a partir de idéia de rito, admite a validade do princípio
da simpatia, mas não concorda que possa ser ele um princípio geral da magia, porque segundo
ele, “as fórmulas simpáticas [...] não bastam para representar a totalidade de um rito mágico
simpático” (In: MAUSS, 2001, p. 8).
Vimos que a religião e magia constituem-se formas diferentes de ligar o ser humano
ao sagrado. Agora estamos em condição de estabelecer que a religião propicia um acesso ao
sagrado desde que o ser humano, na relação com ele, se contente com a atitude de
“dependência” e obediência aos dogmas religiosos; a magia, por sua vez, propicia, com base
em suas próprias leis, sempre uma relação em que o ser humano ousa controlar o sagrado, isto
é, o que está além de si, mas não fora da eficácia mágica. “A magia é uma manipulação do
sagrado, como se este fosse um objeto disponível” (CROATTO, 2001, p. 67).
40
Para uma maior compreensão das leis da magia confira: FRAZER, James George. O ramo de ouro. Rio de
Janeiro-RJ: Editora Guanabara, 1978; MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. Coleção
Perspectivas do Homem. Lisboa: 2000, Edições 70, p. 76-90; PIERUCCI, Antônio Flávio. A magia. Coleção
Folha Explica. São Paulo-SP: Publifolha, 2001, p. 62-74.
63
De acordo com Flávio Pierucci, o traço decisivo que diferencia
41
magia e religião é
que nesta o ritual funciona como serviço divino, e naquela, como coação divina. Um mago ou
feiticeiro não tenta aplacar a ira dos deuses ou atrair suas benesses; seu objetivo é sempre
coagi-los.
Eis a característica diferenciadora decisiva: o modo de relacionamento com o
sagrado [...] que a atitude da magia em relação aos poderes divinos é manipulativa e
instrumentalizadora, ao passo que a relação religiosa com o divino é de respeito,
obediência e veneração. A essência da magia é a dominação dos poderes
suprasensíveis, [...] ao passo que a essência da religião é o abandono, a entrega de
si, o obséquio, a submissão à sua soberana vontade (PIERUCCI, 2001, p. 85).
c) Religião e magia como oposição
Não nos importa discutir aqui se a magia é a primeira forma de pensamento humano
ou não, ou mesmo se ela foi degenerada pela religião. O nosso objetivo é perceber como a
relação de oposição entre religião e magia repercute na redução da linguagem simbólica
ocorrida após a Reforma Protestante, afinal, é dito que o “protestantismo despojou-se de três
aspectos concomitantes mais antigos do sagrado: o mistério, o milagre e a magia” (BERGER,
1985, p. 124).
A rivalidade entre religião e magia remonta aos primórdios – talvez porque desde o
início, dadas a características e utilidade de uma e outra, a magia tenha sido sempre mais
sedutora que a religião. Em seus estudos das formas elementares de religião, Durkheim nos
afirma que
a magia põe uma espécie de prazer profissional em profanar as coisas santas; nos
seus ritos, ela assume posição oposta à das cerimônias religiosas – na missa negra a
hóstia é profanada. A religião, por sua vez, embora não tenha condenado e proibido
sempre os ritos mágicos, olha-os em geral de modo desfavorável. Há nos
procedimentos do mago, algo de profundamente anti-religioso. Ainda que possa
haver alguns pontos de contato entre essas duas espécies de instituições, é,
entretanto difícil que elas não se oponham em algum ponto [...] (DURKHEIM,
1989, p. 75).
41
Embora na perspectiva de Antonio Flávio Pierucci, este seja o traço diferenciador decisivo entre magia e
religião, ele cita outros cinco, dos onze elencados pelo sociólogo norte-americano, William Goode, são elas: “1)
a magia visa fins imediatos e limitados, ao passo que a religião, fins meta-presente e ilimitados; 2) Não há
prática religiosa que seja um fim em si mesma, enquanto que na religião sim; 3) A relação do mago com as
pessoas que o procuram é uma relação circunstancial, do tipo profissional-cliente; já no campo da religião, a
relação do sacerdote com os fiéis tende a perenidade e é caracterizada pela abnegão; 4) A magia, portanto, é
associal e, ao menos potencialmente, anti-social, coisa que nem de longe uma religião pretende ser; 5) Religião e
magia diferem ainda quanto à garantia do efeito desejado, ou seja, na religião, o pedido feito em oração depende
de a divindade aceitar ou não a solicitação ou a homenagem. Já no magismo, o efeito só depende de o agente
seguir à risca o ritual e pronunciar corretamente a fórmula” (PIERUCCI, 2001, p. 83-86).
64
Pierucci concorda com Durkheim, desde que se acrescente que “a hostilidade mútua
entre religião e magia é característica acentuada da civilização ocidental” (PIERUCCI, 2001,
p. 90). Seja como for, o fato é que, segundo Pierucci, embasado em Max Weber (1864-1920),
a oposição entre magia e religião no ocidente tem sua origem na religião judaica. Fato que
leva o autor a fazer um breve histórico do processo de acirramento da oposição entre magia e
religião. (Idem, p. 91-94).
A definição do termo religião como o ato de religar-se a Deus e a sua identificação
com a religião cristã, gerou grande desvantagem para a magia, enquanto possibilidade de
acesso a Deus, ou seja, magia tende a equivaler a paganismo. Não obstante esse fato, no
período medieval, dominado pela concepção católica da religião cristã, “magia e religião
viviam em simbiose, não podendo separar-se facilmente” (PIERUCCI, 2001, p. 94). Essa
assertiva é contestada por Mircea Eliade, pois segundo ele, o “paganismo [entre outras coisas
a magia] só pôde sobreviver cristianizado, embora essa cristianização fosse apenas
superficial” (2006, p. 149), ou seja, ainda que a religião cristã se apresentasse como superior à
magia, havia um clima de tolerância, viabilizado pela assimilação daquilo que não se pode
mudar. Cristianização é diferente de simbiose.
Com o tempo, a atitude de superioridade tolerante por parte do cristianismo, em
relação às crenças e práticas mágicas, aos poucos deu lugar a uma atitude de repúdio e
exclusão. O ápice desse processo de “desencantamento do mundo: eliminação da magia como
meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 106) se dá com o surgimento do protestantismo,
sobretudo em sua versão puritana e com o catolicismo intelectual
42
. De acordo com Pierucci,
essas duas vertentes do cristianismo, tendem a repudiar
a magia muito mais do que costumam fazer as outras formas religiosas, mais
propensas a inclusão e a hibridação, mais complacentes com os sincretismos e
tolerantes com a mistura mágico-religiosa, como o catolicismo popular, o
candomblé, a umbanda, o kardecismo, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo tibetano,
o xintoísmo (2001, p. 100).
É sob este pano de fundo que, após a Reforma Protestante,
reformadores e inquisidores, tanto protestantes como católicos
43
, saíram a campo
decididos a converter à ‘verdadeira’ fé cristã seus contemporâneos, tachados de
‘pagãos’ em muitos de seus comportamentos ‘equivocadamente religiosos’,
42
Esta questão será amplamente desenvolvida a seguir.
43
Cabe aqui a ressalva de Max Weber: “desencantamento do mundo, não foi realizado na piedade com as
mesmas conseqüências que na religiosidade puritana”. Há resíduos de magia no catolicismo, por exemplo.
Afirmação que é ilustrada pela doutrina da transubstanciação (2004, p. 106).
65
‘falsamente religiosos’, na verdade apenas mágicos e, por isso, heréticos,
pecaminosos (PIERUCCI, 2001, p. 94).
Desse modo, na e a partir da Europa, na origem da modernidade, de “religião com
magia, como sempre tinha sido e assim seguiria sendo no resto do mundo, a ortodoxia passava
a ser agora religião contra magia” (PIERUCCI, 2001, p. 95), ou quem sabe sem magia.
CAPÍTULO II
A REDUÇÃO PROTESTANTE E O
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
“Comparado com a ‘plenitude’ do universo católico, o protestantismo parece ser
uma mutilação radical, uma redução aos elementos ‘essenciais’, sacrificando-se uma
ampla riqueza de conteúdos religiosos”.
Peter Berger
44
2.1 A RIQUEZA SIMBÓLICA DO UNIVERSO CRISTÃO MEDIEVAL
A definição do que foi a Idade Média nos coloca diante de uma luta inglória, tendo em
vista que “definir períodos históricos é algo notadamente complexo”. O grau de complexidade
depende da perspectiva de abordagem e, ao mesmo tempo, deve-se à falta de consenso quanto
aos fatores antecedentes, inerentes e posteriores ao período que se deseja estudar. Talvez por
isso advogue-se que os historiadores devem preocupar-se mais com os problemas – rupturas e
continuidades – do que com os períodos (GEORGE, 1994, p. 17). Não obstante isso e com o
estrito objetivo de situarmos o assunto proposto, seguimos a datação da Idade Média proposta
por Le Goff
45
que consiste num longo período compreendido entre 476 e 1453
46
.
Sendo assim, nossa atenção se voltará para os mecanismos simbólicos que
viabilizaram a experiência com o sagrado em sua perspectiva cristã ocidental. Tais
mecanismos, supomos, constituíram aquilo que Peter Berger denomina “plenitude do universo
católico” (1985, p. 124).
Nossa análise enfocará primeiramente alguns aspectos da riqueza da linguagem
simbólica medieval; em seguida trataremos da redução dessa mediação simbólica como via de
acesso ao sagrado; e por fim, analisaremos as relações entre esse processo, a ética puritana e o
espírito do capitalismo, na perspectiva de Max Weber.
No período medieval concebe-se que numa esfera diferente da terra, há o céu ou o
além e que entre a terra e o além há um terceiro espaço absolutamente povoado pelo
sobrenatural. A uma continuidade espacial que confunde e liga céu e terra corresponde uma
44
In: O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo-SP: Paulus, 1985, p. 124.
45
Jacques Le Goff (1924-) é um historiador francês especialista em temas da Idade Média, especialmente dos
séculos XII
e XIII. Publicou um artigo intitulado “Nova História”, que causou amplo debate acadêmico, cujos
desdobramentos conduziram à chamada “Nova História
”.
46
A Idade Média de que vamos falar é um longo período de um milênio, que os historiadores situam
tradicionalmente entre o fim do Império Romano do Ocidente (476) e a tomada de Constantinopla pelos turcos
(1453)” confira: (LE GOFF, 2007b, p. 17).
67
continuidade temporal: o tempo é apenas um momento da eternidade. Tempo é história e a
história tem um sentido, cujo centro é a encarnação de Cristo. Num certo sentido, a
perspectiva que opõe o sagrado ao profano como forma de definição da religião é contestada
aqui. O mundo, o universo é sagrado. Leia-se mundo e universo da instituição, por isso
contestada apenas num certo sentido.
Nesse contexto, o indivíduo está preso numa rede de dependências terrestres e celestes
que, se por um lado representa constante espionagem – por parte da Igreja, de Deus, do Diabo
e dos anjos, etc. –, por outro, confere-lhe segurança psicológica enquanto ser no mundo. (LE
GOFF, 2005, p. 158).
2.1.1 O ALÉM
A cristandade medieval é fechada ao “outro”; tudo que está fora do universo cristão é
pagão, não tem valor. Esta tendência ao enclausuramento “aqui embaixo” tem como
contraponto uma ampla abertura para o “alto”. É bem verdade que há fossos e degraus a
serem transpostos, mas, como dissemos, não há separação material e espiritual entre o mundo
terreno e o celestial (LE GOFF, 2005, p. 145), visto que um vasto simbolismo liga os homens
e mulheres desse tempo ao além, habitado basicamente por Deus e o Diabo, ainda que sem
uma correlação de forças entre eles.
2.1.1.1 Deus
Quando o que nos move é tratar da concepção que a cristandade medieval tem de
Deus, a chance de nos perdermos em pormenores é muito grande, dada a abrangência do
tema. Sendo assim, partimos do pressuposto de que há uma concepção oficial de Deus
construída e oferecida pela Igreja, e que esta se contrapõe a uma concepção popular de Deus,
afinal, “a imagem de Deus numa sociedade depende, sem dúvida, da natureza e do lugar de
quem imagina Deus” (LE GOFF, 2007b, p. 11).
Estas duas concepções só se encontram, não sem conflitos e não totalmente, na medida
em que a Igreja identifica o Deus cristão com a ordem secular. Não é sem propósito que o
Deus da Igreja é captado pela massa como senhor e rei. É justamente por esta via que a Igreja
mantém o monopólio da definição de Deus e, ao mesmo tempo, supre a necessidade popular
de representar Deus corporal e concretamente.
“Certamente, as ligações entre Deus e a sociedade feudal estão entre as mais estreitas
da história” (LE GOFF, 2007b, p. 58). Vejamos como isso se deu.
68
Na visão greco-romana havia a tendência de se considerar que as diferentes divindades
constituíam uma só “pessoa” coletiva que era deus. Só que esse deus com ‘d’ minúsculo é o
deus de Cícero. Quando, porém, chega o cristianismo como religião oficial do império, deus
passa a ser Deus, com ‘D’ maiúsculo. O Deus cristão não tem concorrentes. Segundo Le Goff,
de um modo geral, não houve por parte da população grande dificuldade em aceitar esse novo
Deus – embora, como veremos antigas práticas não tenham sido abandonadas. E visto que
representavam certa ameaça para a Igreja, foram depreciadas como “superstições” – uma vez
que ele é o Deus dos chefes. Num sistema tribal, se o chefe se converte, a população
geralmente o segue. Dessa forma, “Deus é o Deus do senhor, com uma espécie de
superposição dos dois níveis de dominação: dominus com d pequeno, designa o senhor
terrestre, e, com D grande, o Deus que em geral é chamado de Senhor, na Idade Média” (LE
GOFF, 2007b, p. 22).
Isso implica afirmar que o Deus cristão tornara-se Dominus Deus, o Deus cristão é um
senhor feudal; mais especificamente, Senhor dos senhores, é simultaneamente o ponto mais
alto e a garantia do sistema como um todo.
A bem da verdade, além de Dominus, ele é um Rex. O Deus cristão é um rei. As
repercussões de tal associação são variadas, vão desde a concepção das igrejas como palácios
reais, passando pela iconografia deste Deus majestade que agora o representa com seus
atributos reais: trono, coroa, pompa, etc. até chegar à política. De acordo com Jacques Le
Goff,
a concepção monárquica de Deus [...] veio a ser capital na sociedade política do
ocidente medieval. Com a ajuda da Igreja os reis e imperadores terrenos, imagem
de Deus na terra, encontrarão aí um poderoso apoio para triunfar precisamente sobre
uma concepção feudal que se esforça em paralisá-los (2005, p. 150).
Do ponto de vista da devoção, nada muda. Se antes eram vassalos, agora são súditos.
Assim como antes, mergulhados numa servidão sem esperança. O que nos importa reter aqui
é que se do ponto de vista teológico, Deus continua inacessível como habitante do além; do
ponto de vista da devoção ele está próximo, na figura do senhor e do rei, portanto,
relativamente acessível, a ponto de punir e recompensar, de fazer a paz ou a guerra.
2.1.1.2 Diabo
Por mais que a Igreja tenha condenado o maniqueísmo, doutrina segundo a qual Deus
e o Diabo representavam o bem o e mal respectivamente, “todo o pensamento e
69
comportamento dos homens da Idade Média eram dominados por um maniqueísmo mais ou
menos consciente, mais ou menos sumário [...], de um lado estava Deus e de outro, o Diabo.
Esta grande divisão dominava a vida moral, a vida social e a vida política” (LE GOFF, 2005,
p. 154).
Se a ortodoxia não reconhece uma equivalência de forças entre Deus e o Diabo, a
devoção popular sim. “Os homens da idade média estavam, pois, constantemente divididos
entre Deus e Satã” que embora habitante do além, “podia se manifestar a qualquer instante
aos homens, o que provocava uma terrível angústia” (LE GOFF, 2005, p. 154).
Na Idade Média, o Diabo aparece e se afirma no século XI, sendo uma criação da
sociedade medieval. O Diabo geralmente assume aparência antropomórfica. Ele é
especialmente a imagem do vassalo pérfido, mas pode se manifestar também de forma bela e
sedutora, podendo inclusive operar milagres. A angústia é agravada diante da grande
dificuldade de diferenciar uma ação de Deus de uma ação do Diabo.
Entretanto, neste rico universo simbólico, a pessoa nunca está só e totalmente a mercê
do mal – e isto nos é essencial aqui – visto que os poderes malignos podem ser desmascarados
e “postos em fuga com um sinal da cruz, uma invocação oportuna, uma prece adequada”.
Além disso, a pessoa pode recorrer ao exorcismo, quando se vê perseguida ou possuída pelo
Diabo. Neste caso, os santos e os anjos desempenham papel essencial.
47
Para concluir esta parte, podemos reter que mesmo sendo considerados habitantes do
além Deus e o Diabo não assumem, na ortodoxia ou na devoção popular, o caráter de
radicalmente outro, porque estão constantemente encharcando o cotidiano das pessoas com o
sobrenatural. Tal como são concebidos, Deus e o Diabo magificam o aqui e agora medieval.
Veremos a seguir os principais mecanismos que concretizam este processo de aproximação do
sobrenatural.
2.1.2 A TERRA
Já afirmamos anteriormente que a terra não está separada do além, e isso ocorre
porque há um grande aparato teológico, institucional e litúrgico a sustentar a ligação entre
essas duas esferas.
47
Trataremos da função dos santos e dos anjos mais adiante.
70
2.1.2.1 O espaço e o tempo
É Paul Tillich quem afirma que uma das forças religiosas da Idade Média são as
superstições populares, entendidas como “a identificação da realidade finita com o divino”
(1988, p. 144). Entre as superstições que permeavam a vida medieval estava a veneração das
relíquias dos santos e da vida de Jesus Cristo.
As relíquias dos santos estão diretamente ligadas à organização do espaço medieval
porque os lugares em que viveram, realizaram coisas importantes ou em que se encontrava
qualquer coisa pertencente a tais pessoas, constituía potencialmente um lugar de culto. Em
alguns casos, concretamente, quando nesses lugares se construía um templo. Sendo assim,
quanto maior a proximidade geográfica do túmulo de um mártir, por exemplo, tanto maior a
eficácia de uma oração. Desse modo, Deus se tornava, cada vez mais, tributário do espaço.
Além disso, qualquer coisa poderia se tornar objeto de culto, o que dificultava o
gerenciamento e controle da devoção por parte da igreja. Esse era visto como o lado negativo
da superstição.
O lado é positivo é que as relíquias são vistas não apenas como indicadores da
presença do divino, mas também como “poderes que continham em si o próprio divino”.
Dessa forma, opera-se uma consagração do cotidiano e/ou do espaço.
Além ou independentemente das relíquias a própria catedral medieval funcionava
como elemento organizador e ou sacralizador do espaço, uma vez que
encontramos nela símbolos da vida diária - da nobreza, dos artesãos, das
associações e de todos os que mantêm a igreja. A vida diária inteira acha-se dentro
das paredes da catedral em forma consagrada. Quando o povo entrava na catedral,
sua vida diária se achava representada na esfera do sagrado; quando saía da catedral,
o povo levava consigo a consagração aí recebida de volta para a vida diária
(TILLICH, 1988, p. 144).
Se por um lado as relíquias possibilitavam uma multiplicidade de lugares de culto, que
por sua vez, materializavam a onipresença de Deus no mundo medieval, por outro, minavam o
domínio da Igreja que, por meio do clero, controlava, verificava e supervisionava os lugares
de culto. Por esta razão, segundo Le Goff, por volta do século VII e VIII, ocorre um processo
de deslocalização do culto. O objetivo era, obviamente, restringir os lugares de culto, mas o
processo de deslocalização assumiu contornos não desejados. Por volta do século XI, alguns
cristãos “hereges” começam a advogar que Deus está em toda parte e que “o instrumento
essencial do culto é a oração e o lugar para isso é o coração do homem e da mulher” (2007b,
p. 25). Essa “heresia” só vai prosperar no tempo da Reforma Protestante, porque no mundo
71
medieval não há onipossibilidade de culto. Só há espaço sagrado onde a Igreja exerce
domínio.
Da mesma forma que a Igreja organiza e estrutura o espaço medieval, determina e
marca o tempo. O tempo medieval é antes de tudo um tempo litúrgico. E esse fato possui
imensas implicações.
Essa perspectiva litúrgica do tempo cria e sustenta certa noção de responsabilidades
coletivas, isto é,
todos os homens vivos são co-responsáveis pela falta de Adão e Eva, todos os
judeus contemporâneos são co-responsáveis pela paixão de Cristo, todos os
muçulmanos são co-responsáveis pela heresia de Maomé. Como se tem notado, os
cruzados do fim do século 11 não pensavam que fossem castigar os descendentes
dos algozes do Cristo, mas os próprios algozes. Assim, na arte, no teatro, o
anacronismo dos costumes – que se manterá por muito tempo, como se sabe
mostra não somente a mistura das épocas, mas principalmente o sentimento, a
crença dos homens da Idade Média de que tudo o que é fundamental para a
humanidade é contemporâneo. A liturgia faz reviver em cada ano um extraordinário
condensado dos milênios da história santa. Mentalidade mágica que faz do passado
o presente porque a trama da história é a eternidade (grifo nosso, LE GOFF, 2005,
p. 168).
Não só do ponto vista psicológico, mas também do ponto de vista social e econômico,
quem mede o tempo tem a seu dispor um excepcional instrumento de dominação, porquanto
pode determinar o que faz parte do ano litúrgico, bem como quando e em que seqüência
acontecem os eventos. Vejamos a descrição que Jacques Le Goff faz desse processo de
dominação social:
o tempo medieval era ritmado pelos sinos. Os toques dos sinos, feito para os
clérigos, monges, para os ofícios litúrgicos, eram os únicos pontos de referência
diários. O toque dos sinos fazia conhecer o único tempo cotidiano parcialmente
medido, o das horas canônicas, que regulava a atividade de todos os homens (grifo
nosso, 2005, p. 175).
Esse tempo clerical e litúrgico também regula a vida econômica.
O ano litúrgico, que segue o drama da Encarnação e a história de Cristo, do Advento
ao Pentecostes, foi aos poucos sendo recheado com momentos e dias significativos
tirados de outro ciclo, o dos santos. As festas dos grandes santos vieram a se
intercalar no calendário cristológico e a festa de Todos os Santos (1°. de novembro)
tornou-se, junto com o Natal, a Páscoa, a Ascensão e o Pentecostes, uma das
grandes datas do ano religioso. O que fez aumentar a atenção das pessoas da Idade
Média para com estas festas, o que lhes confere definitivamente seu caráter de data,
é que, além das cerimônias religiosas especiais e muitas vezes espetaculares que as
marcam, elas eram pontos de referência da vida econômica: datas de pagamento das
rendas agrícolas, dias de feriado para os artesãos e trabalhadores em geral (grifo
nosso, 2005, p. 175).
72
2.1.2.2 A instituição e os sacramentos
Das forças religiosas da Idade Média, a instituição é a maior e mais poderosa. Tillich,
que a denomina hierarquia, afirma que ela “representava a realidade sacramental da qual
dependiam a existência da igreja e do estado, e a cultura como um todo [...] A hierarquia
eclesiástica queria controlar o mundo” (1988, p. 142).
Nosso foco recai exclusivamente sobre a relação Igreja-sacramento-leigo, na medida
em que o sacramento funciona como meio de salvação, isto é, o sacramento representa a
possibilidade de união com o sagrado; fato que torna a instituição o elo entre o mundo terreno
e o reino de Deus, tendo em vista que ela e somente ela é detentora e administradora das
graças sacramentais.
Deus se faz presente no mundo medieval por meio de formas sacramentais, o que faz
dos sacramentos “o elemento mais importante da história da Igreja medieval” (TILLICH,
1988, p. 149). Potencialmente todas as coisas podiam ser sacramentais, desde que portassem o
divino:
os feitos de Cristo e seus sofrimentos (as estações da Cruz); [...] os evangelhos,
também chamados de sacramentos; [...] os símbolos da Bíblia; o caráter simbólico
dos edifícios eclesiásticos, com as atividades desenroladas aí dentro. Em resumo,
todas as coisas portadoras do divino. Essa era a questão medieval - ter a presença
do sagrado (grifo nosso, Idem, p. 150).
Por meio dos sacramentos presentes na instituição e administrados por ela, as pessoas
podem não só se relacionar com Deus, mas também se alimentar Dele e serem curados por
Ele.
Em cada sacramento, presentifica-se uma substância de caráter transcendente. Água,
pão, vinho, óleo, palavra, imposição das mãos – tudo isso se torna sacramental ao
conter a substância transcendente. E como um fluido curador. Os sacramentos
podiam ser definidos da seguinte maneira: “Deus estabeleceu os sacramentos para
serem remédios contra as feridas produzidas pelo pecado original e pelos pecados
de cada um” (TILLICH, 1988, p. 150).
Ainda dois pontos merecem destaque. O primeiro é que os sacramentos agem ex
opere operato nom ponentibus obicem, ou seja, por sua própria operação naqueles que não
opõem resistência à sua eficácia. O único pressuposto subjetivo quanto à eficácia dos
sacramentos é que se creia que os sacramentos definidos pela Igreja são sacramentos. “Não
se pede a fé enquanto relação especial com Deus. É uma teoria do ‘minimum’; mesmo os
que resistem à graça divina podem recebê-la não importando a própria indignidade”
73
(TILLICH, 1988, p. 151). O sacramento objetiva de forma mágica a presença e atuação de
Deus na vida das pessoas.
Em nenhum momento, exceto como beneficiário, o ser humano, por qualquer coisa
que faça ou deixe da fazer, confere maior ou menor eficácia ao sacramento, visto que o poder
sacramental procede da instituição. por isso mesmo, “a forma ritual não pode ser mudada nem
alterada por sacerdotes ou bispos sem incorrerem em pecado. o poder sacramental procede de
sua origem e se realiza na igreja por meio de formas autorizadas; nenhuma arbitrariedade é
possível (grifo nosso, TILLICH, 1988, p. 200).
O segundo ponto a ser destacado é que “a vida inteira se passava sob os efeitos dos
sacramentos”, ou seja, por meio dos sacramentos a Igreja tece uma rede de símbolos capazes
de amparar e dar sentido à vida das pessoas. Senão vejamos:
O batismo removia o pecado original; a eucaristia, os veniais; a confissão, os
mortais; a extrema-unção, o que restava ainda de pecaminoso antes da morte; a
confirmação levava as pessoas a lutar pela igreja; a ordenação fazia o clero; e o
matrimônio levava o homem e a mulher ao desenvolvimento de sua vocação natural
(TILLICH, 1988, p. 151).
A missa que oficialmente fazia parte do sacramento da eucaristia, na prática, era o
sacramento dos sacramentos, pois, por seu intermédio, os clérigos produziam Deus. “O poder
principal da Igreja na Idade Média estava em tomar o pão e o vinho e transformá-los em
Deus” (TILLICH, 1988, p. 152). A missa operava esse milagre.
É óbvio que há quem trate tudo isso apenas como estratagema de dominação. Le Goff,
por exemplo, afirma que há na Idade Média uma tensão
entre relações diretas e relações indiretas com Deus. Nesse domínio, evidentemente,
a Igreja é ator fundamental. Por sua vontade de dominação e, de resto, seu sucesso,
ela se esforça para funcionar de modo permanente como um intermediário
obrigatório entre o homem e Deus. [...] Os principais instrumentos da dominação da
Igreja foram a consolidação da teologia e a ptica dos sacramentos. [...] E como a
Igreja é a única a distribuir os sacramentos, o homem não pode se salvar a não ser
pela Igreja e graças à Igreja (2007b, p. 88).
Não é necessário e nem possível discordar de Jacques Le Goff, mas acrescentar que o
aparato sacramental gerava um profundo senso de pertencimento e forte segurança
psicológica quanto à vida neste mundo e no além.
74
2.1.3 ENTRE A TERRA E O ALÉM
Já fizemos menção ao processo de deslocalização do culto. Agora estamos em
condições de nos referirmos a um outro processo não menos importante, o processo de
especialização da ação divina.
No período considerado, não só varia a concepção que se tem de Deus dependendo das
mentes que o imaginam – a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam – como também varia
a concepção de Deus a cada novo período. Sendo assim, na medida em que Deus vai se
transmutando num Deus mais misericordioso e protetor – geralmente representado na figura
de Jesus que, por sua encarnação, favorecia maior identificação com o ser humano – é que
cresce o anseio por uma relação mais direta com Deus; surgem os auxiliares divinos.
2.1.3.1 Santos
Nesse contexto de anseio por uma relação direta com Deus, “os homens e as mulheres
da Idade Média perscrutaram atentamente todos os sinais, desde os sinais naturais, entre os
quais os cometas eram os mais importantes, até os mínimos acontecimentos extraordinários,
ou antes excepcionais”. Entre estes sinais, os milagres constituem uma categoria especial,
visto que manifestam a existência e atuação de Deus “mais do que tudo aquilo que os teólogos
se esforçavam para pôr em suas cabeças sem grande sucesso”. E o motivo não é outro senão
que “milagre é o benefício extraordinário que um homem ou uma mulher recebe de Deus”. A
igreja diz: Deus tem o monopólio do milagre. Entretanto, para os leigos, Ele não os faz sem a
ajuda dos santos (LE GOFF, 2007b, p. 100).
A turva e complexa experiência cristã medieval substitui os heróis da antiguidade pagã
pelos santos. O caminho mais curto para se tornar um santo, nos primeiros séculos da era
cristã, consistia em oferecer a vida a Deus por meio do martírio, via que se modificou com o
desenvolvimento e hegemonia do cristianismo. Os mortos privilegiados são cada vez menos
numerosos, em seu lugar surgem os cristãos mais notáveis, que se tornam santos não pela
forma que morrem, mas pela vida que vivem. Com a chancela da Igreja, no além a
recompensa do paraíso os espera, e na terra se tornam objeto de uma veneração e até de um
culto salvador (LE GOFF, 2007a, p. 42).
Importa-nos reter que entre Deus e as pessoas, entre a terra e o além, num espaço mais
ou menos definido, os santos atuam de forma decisiva.
75
2.1.3.2 Anjos
O espaço intermediário entre a terra e o além não é povoado apenas pelos santos, nele
encontram-se também os anjos bons e maus. A crença na existência e atuação dos anjos tem
um fundamento bem pragmático, é que eles são “protetores mais vigilantes e mais assíduos
que os santos ou os reis guerreiros – a quem não têm a chance de poder encontrar a cada
instante”. Desse modo, forma-se “entre o céu e a terra, [...] um vai-e-vem incessante”, posto
que “à multidão dos demônios que se misturam com os homens, atraídos pelos pecados, opõe-
se o coro vigilante dos anjos”. (LE GOFF, 2005, p. 156).
Fato digno de nota é que, “entre os anjos, que são mensageiros entre Deus e os
homens, a Igreja distingue um ligado por Deus a cada ser humano, e encarregado de impedir
que ele seja agredido pelo diabo ou que sucumba ao pecado. É o anjo da guarda” (LE GOFF,
2007b, p. 32).
É claro que este benefício tem o seu preço, assim como cada graça concedida na Idade
Média, ou seja, a hierarquia terrestre é imagem da hierarquia angelical, portanto, da mesma
forma que o anjo da guarda respeita os seus superiores e isso redunda em bem, as pessoas que
desejam a proteção de Deus devem respeitar os senhores aos quais estão submetidas.
Esse pensamento paralisante
que impede os homens de tocar o edifício da sociedade terrestre sem afetar ao
mesmo tempo a sociedade celeste,que aprisiona os mortais nas malhas da rede
angelical, faz com que os ombros dos homens suportem além do peso dos senhores
terrestres o pesado fardo da hierarquia angélica dos Serafins, Querubins e Tronos,
Dominações, Virtudes e Potências, Principados, Arcanjos e Anjos. Os homens da
Idade Média se debatem entre as garras dos demônios e o embaraço desses milhões
de asas batendo na terra e no céu que fazia da vida um pesadelo de pulsações aladas
[...] que prendia os homens nas redes de um sobrenatural vívido (LE GOFF, 2005,
p. 158).
Além dos santos e dos anjos e demônios, na segunda metade do século XII, uma
terceira população disputa este espaço entre a terra e o além: são os mortos. Não temos
condições de discutir, neste trabalho, a origem, desenvolvimento e importância do
purgatório
48
, entretanto acreditamos ser oportuno observar o seguinte: se, no caso da
intercessão dos santos e proteção do anjos, a Igreja está a organizar a favor de Deus a relação
dos homens e mulheres com Ele, no caso do purgatório a ambição é mais profunda. Ela
disputa com o próprio Deus a prerrogativa de destinar eternamente uma pessoa ao céu ou ao
inferno.
76
2.2 REDUÇÃO PROTESTANTE E O PURITANISMO ANGLO-AMERICANO
Já que é fruto da quebra de paradigmas que possibilitaram a transição do mundo
medieval ao moderno
49
, o protestantismo
50
não arquiteta resistência à Modernidade, nem tão
pouco encontra dificuldades de sobrevivência nesse novo contexto, porquanto, na mesma
medida em que é gerado pelo espírito renascentista – fortemente marcado pela atividade
racional – que anima a Europa, oferece-se a ele como resposta teológica.
Dentre as muitas possibilidades de aproximação do tema, estamos interessados em
evidenciar que, na e a partir da Reforma Protestante, houve uma drástica redução da
linguagem simbólica tão evidente e útil na configuração do cristianismo no mundo medieval.
Peter Berger é categórico: “comparado com a ‘plenitude’ do universo católico, o
protestantismo parece ser uma mutilação radical, uma redução aos elementos “essenciais”,
sacrificando-se uma ampla riqueza de conteúdos religiosos” (BERGER, 1985, p. 124).
Adolph Harnack denominou Lutero como o “gênio da redução” (In: TILLICH, 1988, p. 212),
mas de acordo com Berger – embasado em Weber – a redução do universo simbólico tem o
seu apogeu na “versão calvinista do protestantismo” (BERGER, 1985, p. 124). Como se sabe,
no Renascimento, berço da Reforma Protestante, tudo que pertence e/ou surge no mundo
medieval, sucumbe. A palavra está com a Antigüidade. É em decorrência disso que
o aparato sacramental reduz-se a um mínimo e, mesmo assim, despido de suas,
qualidades mais numinosas. Desaparece também o milagre da missa. Milagres
menos rotineiros, embora não sejam completamente negados, perdem todo o
significado real para a vida religiosa. Desaparece também a imensa rede de
intercessão que une os católicos neste mundo com os santos e, até mesmo, com
todas as almas. O protestantismo deixou de rezar pelos mortos. Simplificando-se os
fatos, pode-se dizer que o protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três
mais antigos e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre
e a magia (BERGER, 1985, p. 124).
O agravante desse processo de redução é que paralelamente a ele, na versão
protestante, escondido no além, Deus se reveste de uma transcendência absoluta; na terra,
surge o indivíduo, envolto em radical imanência; e entre a terra e o além, há apenas a palavra,
compreendida a partir de categorias racionais. Isso pode ser notado tanto no pensamento de
Lutero quanto de Calvino
51
.
48
Sobre o purgatório confira: LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Coleção Nova História. Lisboa,
Portugal: Editora Estampa, 1993.
49
Se o protestantismo não gerou o mundo moderno, também não foi um obstáculo a ele. Confira: TROELTSCH,
Ernst. El protestantismo e el mundo moderno. México-DF: Fondo de Cultura Económica, 1951.
50
Movimento religioso mais ou menos uniforme constituídos por aqueles que se dizem seguidores dos princípios
da Reforma Protestante.
51
Sem a pretensão de sumariar e ao mesmo tempo tendo em visto o nosso propósito neste trabalho,o cremos
77
2.2.1. NO ALÉM: O DEUS INTOCÁVEL
O cristianismo católico medieval baseia-se num relacionamento objetivo, quantitativo
e relativo entre Deus e homem com o objetivo de levar este à vida eterna. De acordo com
Paul Tillich, a estrutura de tal sistema é a seguinte: “objetiva, não pessoal; quantitativa, não
qualitativa; relativa e condicionada, não absoluta [..., ou seja,] o sistema romano envolve certo
gerenciamento divino-humano, representado e tornado real pelo gerenciamento eclesiástico”
(1988, p. 210).
Objetivamente há duas alternativas: vida eterna ou perdição eterna. A vida eterna é
alcançada por meio dos sacramentos, “nos quais a graça mágica e divina fica de um lado, e a
liberdade moral produtora de méritos, do outro” (TILLICH, 1988, p. 210).
O aspecto quantitativo e relativo transparece nos mandamentos éticos variados, por
isso mesmo, capazes de produzir méritos, tanto nos leigos quanto no clero. A salvação é
concedida ex opere operato; assim, basta quantitativamente fazer o suficiente
52
. Mas como
saber o mínimo ou o máximo necessário? “Como alguém poderia saber se seria salvo, pois
jamais se pode fazer o suficiente? Ninguém podia receber doses suficientes do tipo mágico da
graça, nem realizar número suficiente de méritos e de obras de acese” (TILLICH, 1988, p.
210). Essa inquietação sempre perturbou Lutero. Ele queria certezas.
Para Lutero, a relação do homem com Deus tem caráter existencial; mais do que isso,
é pessoal. É uma relação de tipo “Eu-Tu, sem qualquer mediação de pessoas ou coisas,
estabelecida pela aceitação da mensagem da aceitação, que era o conteúdo da Bíblia. Não se
trata de determinado estado objetivo onde se está; trata-se de uma relação pessoal”, trata-se
de uma questão de fé, “não fé sujeita à crença em alguma coisa ou doutrina, mas aceitação do
fato de sermos aceitos”, portanto a relação é antes de tudo subjetiva. Além disso, para este
reformador, o aspecto qualitativo vem antes do quantitativo. “Não há graus quantitativos de
ser superficial afirma que a preocupação de Lutero é a salvação e a de Calvino, o conhecimento.
52
Atentemos para o comentário de Le Goff: “O que importa aos homens da Idade Média não é o que muda, mas
o que permanece. Como já se disse, ‘para o cristão da Idade Média, sentir-se existir era sentir estar’ e sentir estar
era não se sentir mudando, mas subsistindo. Era, sobretudo, sentir-se rumando para a eternidade. Para ele, o
tempo essencial era o da salvação. Entretanto, no Ocidente-medieval havia uma extraordinária tensão entre o céu
e a terra, tão estreitamente ligados um ao outro, e mesmo tão inextrincavelmente misturados. O ideal de ganhar o
u na própria terra chocava-se nos espíritos, corações e comportamentos com outro violento desejo, não menos
contraditório: fazer o céu descer na terra.” Para isso era necessário “fugir do mundo”, realizar a acese, que não
era um mandamento para todos os cristãos, mas um conselho de perfeição, reservado aos monges. Aos que não
conseguiam a acese, “a Igreja previa outros meios de assegurar a salvação. Era a prática da caridade, de obras de
misericórdia, de doações e, para os usurários e todos aqueles cuja riqueza tinha sido mal adquirida, a restituição
post mortem [depois da morte]. Deste modo, o testamento tornava-se um passaporte para o céu” (LE GOFF,
2005, p.179-182).
78
separação ou de não-separação. De igual modo, é absoluta e não condicionada, como no
sistema católico. “Não se chega mais perto de Deus trabalhando-se mais pela Igreja, ou
mortificando-se o próprio corpo, mas apenas e unicamente ao se unir com Ele. E se alguém
não se une a Deus permanece separado dele” (TILLICH, 1998, p. 211).
A decorrência óbvia é que “desaparecem da piedade os elementos mágicos e
legalistas”. E desaparecem justamente porque graça é comunhão pessoal de Deus com o
pecador. “Não há nenhum poder mágico oculto em nossas almas capaz de nos tornar
aceitáveis, mas somos aceitos apenas no momento em que aceitamos a aceitação de Deus” .
Em Lutero e nos demais reformadores, os “sacramentos persistem, mas significando coisa
completamente diferente. E as práticas asticas são rejeitadas para sempre porque são
incapazes de nos dar qualquer certeza” (TILLICH, 1998, p. 211).
A única certeza possível e necessária é esta: “se temos Deus, nós O temos [...] A única
e absoluta punição é o desespero da separação de Deus. Conseqüentemente, a única graça é a
união com Deus. Só isso!” (TILLICH, 1988, p. 212). O ato da fé é absolutamente irracional,
por isso mesmo, ao comentar a primeira frase
53
do credo apostólico, Lutero afirma:
eu renuncio ao espírito do mal, a toda idolatria, a toda magia e superstição. Não
coloco a minha confiança em nenhum ser humano na terra, nem em mim mesmo,
nem em meu poder, saber, bondade, piedade ou em que eu possuir. Não coloco a
minha confiança em nenhuma criatura, esteja ela no céu ou sobre a terra. Eu me
arrisco e coloco a minha confiança tão-somente no Deus invisível, incompreensível
e único que criou o céu e a terra e que sozinho está acima de todas as criaturas
(grifos nossos, 1989, p. 185).
Essa arriscada união com Deus torna-se quase impossível porquanto o Deus de Lutero
invisível e incompreensível habita, alheio a toda e qualquer forma de manipulação, no
céu. E o céu protestante necessariamente localiza-se mais além, tendo em vista que
desprovido de anjos e demônios, essa esfera do universo passa a ser objeto da ciência
astronômica, portanto não mais o além onde Deus habita.
O Deus de Lutero é intocável, abscôndito, majestoso. Isso significa que Ele “não deve
ser perscrutado, porque é inalcançável para o ser humano, é um mistério a ser adorado, até
temível por expressar sua vontade eterna” (ALTMANN, 1994, p. 49).
No caso de Calvino, a salvação se dá via conhecimento. Para ele, o conhecimento de
nós mesmos nos leva ao conhecimento de Deus que, por sua vez, nos faz reconhecer a nossa
miséria existencial. (CALVINO, Vol I, 1994, p. 3). Calvino concorda com Lutero quanto à
insuficiência do mero conhecimento da existência de Deus, contudo sua ênfase recai sobre a
79
atitude do homem em relação a Deus – atitude mais racional, diga-se – e não o contrário como
no caso de Lutero (GONZALEZ, Vol III, 2004, p. 139). “Agora, o conhecimento de Deus,
como eu o entendo, é aquele pelo qual nós não só concebemos que existe um Deus, mas
também captamos o que é adequado para nós e é apropriado para sua glória; enfim, qual é o
nosso benefício em conhecê-lo” (CALVINO, Vol I, 1994, p. 5).
O problema persiste, porque, também em Calvino, o Deus que se busca conhecer é
radicalmente transcendente. Deus é “incompreensível a tal ponto que sua majestade está
escondida bem longe de todos os nossos sentidos.” E mais, “tudo que pensamos de nós
próprios não é mais que loucura, e tudo o que podemos falar é desprovido de sentido” (grifo
nosso, Idem, p. 14 e 68).
Se, para Lutero, Deus é alcançado mediante uma atitude existencial que ele denomina
fé, para Calvino o acesso se dá por via racional, na forma do conhecimento. Em ambos os
casos, o ser humano é tomado pelo desespero de ser totalmente pecador diante de um Deus
gracioso, porém radicalmente transcendente.
2.2.2 NA TERRA: UMA EXISNCIA PARADOXAL
A essa altura temos que mencionar o nominalismo
54
, importante antecedente da
Reforma Protestante no que se refere ao nascimento do conceito de indivíduo
55
.
Como se sabe, Tomás de Aquino (1225-1274), em sua Suma Teológica, estabelece a fé
a partir de categorias absolutamente racionais. Pierre Chaunu afirma que “o século XIII, na
medida em que aderiu progressivamente ao esforço de São Tomás, tem o sentimento da vasta
evidência racional da verdade cristã, tal como está contida na Sagrada Escritura de Deus,
confiada à Igreja” (CHAUNU, Vol I, 2002, p. 79).
Ironicamente, Duns Scotus (1266-1308), um franciscano aristotélico, no final do
século XIII, encontrou uma falha no sistema tomista. “Aquilo que fundamenta a dogmática
não é a razão, cujo manuseamento Aristóteles ensina em sua Lógica, mas sim a palavra de
Deus confiada à Igreja” (CHAUNU, Vol I, 2002, p. 80).
53
Creio em Deus Pai todo-poderoso criador do céu e da terra.
54
Segundo Macgrath a diferença entre nominalismo e realismo pode ser descrita assim: “considere duas pedras
brancas. O realismo afirma que há um conceito universal de brancura que essas duas pedras incorporam. Essas
duas pedras brancas, em particular, possuem a característica universal da ‘brancura’. Embora as pedras brancas
existam no tempo e no espaço, o conceito universal de ‘brancura’ existe em um piano metafísico distinto. O
nominalismo, porém, afirma que o conceito universal de ‘brancura’ é desnecessário e, em vez disso, argumenta
que devemos nos concentrar em particulares. Essas duas pedras brancas existem - e não há qualquer necessidade
de apelar para algum ‘conceito universal de brancura’” (2005, p. 71 e 72).
55
A questão do individualismo será aprofundada na última parte deste trabalho.
80
Duns Scotus, um pensador de opinião firme e radical, fez inimigos de dois lados ao
afirmar que “o finito não podia alcançar a Deus cognitivamente, nem em termos de imediatez,
como queriam os antigos franciscanos, nem em termos de demonstração, como queriam
Tomás de Aquino e os dominicanos” (TILLICH, 1988, p. 176). Para ele só se chega a Deus
por via da revelação mediada pela autoridade da Igreja. Aquino e Scotus representam
respectivamente duas escolas, o tomismo e o scotismo, ambas ligadas ao movimento realista.
A avenida aberta por Scotus é pavimentada por Guilherme de Ockham (1285-1347),
considerado o pai do nominalismo. Para ele não há universais, há apenas coisas individuais.
Essa proposição foi um golpe mortal no poder e autoridade da Igreja – ainda intocada no
pensamento de Scotus.
Ter fé é submeter-se à autoridade. Embora não negasse a autoridade da Igreja,
Ockham enfatizava a autoridade da Bíblia em primeiro lugar.
Etienne Gilson (1884-1978) define assim o pensamento de Guilherme de Ockham:
“contra o abuso da generalidade, o pensamento de Ockham é o pensamento do particular, do
irredutível, do individual na sua liberdade” (In: CHAUNU, Vol I, 2002, p. 105).
“Pode-se aceitar que, em Guilherme de Ockham, o nominalismo já sinalizava o
individualismo, pois, se apenas o particular tem realidade ontológica, no campo social só o
indivíduo existe, no sentido moderno do termo” (CAVALCANTE, prelo, 2008, p. 6).
É justamente enquanto elemento desencadeador da noção de indivíduo que
nominalismo será decisivo no contexto da Reforma, e isso porque tanto Lutero quanto
Calvino academicamente fruíram de ambientes nominalistas em suas respectivas formações
intelectuais.
Tendo Cristo por paradigma, o indivíduo protestante é absolutamente livre
56
. É essa
importante noção do indivíduo-livre que permite aos reformadores afirmarem os elementos de
interioridade, ao contrário dos católicos, que salientavam os elementos de visibilidade. “Isso
implica que a sacramentalidade não estaria mais na superestrutura eclesiástica, mas nos
indivíduos, a partir de agora, coram Deo (diante de Deus)” (CAVALCANTE, prelo, 2008, p.
6).
56
Votaremos à temática do conceito protestante de liberdade na última parte deste trabalho.
81
O paradoxo da existência se configura quando este indivíduo-livre diante de Deus se
descobre totalmente pecador e incapaz de, por si mesmo, unir-se a Deus ou conhecê-Lo
57
. Sua
única garantia e certeza é a Bíblia, tomada como palavra e revelação de Deus.
2.2.3 ENTRE O CÉU E A TERRA: A PALAVRA RACIONALIZADA
A essa altura é importante ampliarmos a discussão do que já enunciamos, a redução
protestante. Como vimos, é inconteste que no protestantismo, “o aparato sacramental reduz-
se a um mínimo e, mesmo assim, despido de suas qualidades mais numinosas”. A missa,
inicialmente parte do sacramento da eucaristia, mas depois o sacramento dos sacramentos,
porquanto repete a cada celebração o sacrifício de Cristo, simplesmente desaparece. Não só a
missa, anteriormente considerada um milagre; no universo protestante, os milagres em geral
são menos rotineiros e “embora não sejam completamente negados, perdem todo o significado
real para a vida religiosa” (BERGER, 1985, p. 124).
A redução protestante de todas as medições possíveis entre o céu e a terra, entendida
sempre como eliminação de toda e qualquer forma de superstição – entenda-se linguagem
simbólica – foi radicalizada. De acordo com Weber, “o puritano genuíno ia ao ponto de
condenar até mesmo todo vestígio de cerimônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem
canto nem música, só para não dar trela ao aparecimento da superstition, isto é, da confiança
em efeitos salvíficos à maneira mágico-sacramental” (2004, p. 96).
Para simplificar os fatos, pode-se afirmar que “crente protestante já não vive em um
mundo continuamente penetrado por seres e forças sagrados”. A realidade em que vive é
esmagadora, já que, no além, há “uma divindade radicalmente transcendente” e na terra “uma
humanidade radicalmente ‘decaída’ que, ipso facto, está desprovida de qualidades sagradas”.
Entre ambas, está um universo completamente ‘natural’, criação de Deus, é verdade, mas em
si mesmo destituído de numinosidade”. E Peter Berger arremata: “a radical transcendência de
Deus defronta-se com um universo de radical imanência, ‘fechado’ ao sagrado.
Religiosamente falando, o mundo se torna muito solitário, na verdade” (1985, p. 124).
Aquele “mundo no qual o sagrado é mediado por uma série de canais – os sacramentos
da Igreja, a intercessão dos santos, a erupção recorrente do ‘sobrenatural’ em milagres – uma
57
Sobre isso confira: CALVINO, João. Instituición de la religión cristiana. Vol I. Barcelona: FELIRE, 2004,
p.161-213 e LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão. In: Obra Selecionadas - O programa da reforma -
Escritos de 1520. Vol II, o Leopoldo/Porto Alegre-RS: Sinodal/Concórdia, 1989, p. 436.
82
vasta continuidade de ser entre o que se vê e o que não se vê”, simplesmente não é mais
possível. “O protestantismo aboliu a maior parte dessas mediações. Ele rompeu a
continuidade, cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra, e assim atirou o homem de volta
a si mesmo de uma maneira sem precedentes na história” (BERGER, 1985, p. 125).
É lugar comum afirmar que não era essa a sua intenção.
Seu objetivo, ao despir o mundo de divindade, era acentuar a terrível majestade do
Deus transcendente e, ao atirar o homem num estado de ‘queda’ total, abri-lo à
intervenção da graça soberana de Deus, o único verdadeiro milagre no universo
protestante. Fazendo isso, porém, o protestantismo, reduziu o relacionamento do
homem com o sagrado ao canal, excessivamente estreito, que ele chamou de palavra
de Deus (BERGER, 1985, p. 125).
Se, em primeira instância, para Lutero e Calvino, a palavra de Deus é,
primordialmente, Jesus Cristo, em seus desdobramentos, simultaneamente, o protestantismo
identifica as escrituras do novo e antigo testamentos com a palavra de Deus
58
e flerta com
outras rotas epistemológicas – o racionalismo e iluminismo, por exemplo (CAVALCANTE,
prelo, 1998, p. 13). Dessa forma, tanto no pensamento quanto na ação, a Bíblia-palavra Deus
torna-se receptiva e/ou vulnerável à investigação sistemática e racional.
Assim, mesmo a oração e o culto, experiências altamente subjetivas, são mediadas
pela palavra racionalizada. Na experiência protestante, a Bíblia-palavra de Deus é a escola da
oração e ao mesmo tempo, centro do culto. Como não há espaço para a experiência “mágico-
sacramental”, sem ser negada como tal, porém destituída de seu caráter simbólico, a Bíblia-
palavra de Deus é transformada em regra de fé e prática. Declara a Confissão de fé de
Westminster: “sob o nome de Escritura
Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora
todos os livros do Velho e do Novo Testamentos, todos dados por inspiração de Deus para
serem a regra de fé e prática” [...] (1997, p. 5).
2.3 A ÉTICA PURITANA E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO SEGUNDO WEBER
A obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05) foi, em certo sentido,
uma resposta ao marxismo. Se, para Karl Marx (1818-1883), o aspecto econômico se
sobrepõe ao religioso, sendo a variável econômica a única causa do capitalismo, para Max
Weber, a realidade se põe invertida, visto que é a variável religiosa que influencia a
econômica, sendo aquela, ao lado desta, apenas parte do conjunto de causas que explicam o
sistema capitalista (Cf. WEBER, 2004, p. 49).
83
Uma vez que Weber, do ponto de vista epistemológico, vê a sociedade como sendo
governada por uma causalidade múltipla e complexa, sente-se livre para ir além do fator
econômico e buscar outros fatores que expliquem por que fragmentos capitalistas tenham
dado origem, num caso, ao capitalismo moderno e, noutro, a nada absolutamente novo, do
ponto de vista econômico. Para Weber, a grande questão que envolve o desenvolvimento do
capitalismo não é a origem do capital – já que o capitalismo está presente na China, na Índia,
na Babilônia, na Antiguidade, na Idade Média – mas sim o surgimento e desenvolvimento do
“espírito capitalista” (Cf. WEBER, 2004, p. 45). E segundo Weber, para tal desenvolvimento,
contribuiu, de forma decisiva, a ética protestante puritana.
Em pleno século XXI, não é mais necessárias e/ou estão ausentes as condições que
possibilitavam perceber uma relação de dependência entre certa concepção religiosa ou moral
e o sistema capitalista. Contudo, analisada a questão sob o ponto de vista histórico-
sociológico, há que se distinguir entre a “explicação de formação do regime e explicação de
funcionamento do regime” (ARON, 2003, p. 780). Hoje pouco importa se o indivíduo –
outrora “liberto” pela Reforma, e agora, mero acessório do sistema – é católico, protestante ou
ateu. Pouco importa se ele percebe ou não relação entre salvação e êxito econômico. O
capitalismo aí está. “O sistema existe, funciona, e é o meio social que comanda os
comportamentos econômicos”. (ARON, 2003, p. 780). Nas palavras do próprio Weber: “o
puritano queria ser um profissional – nós devemos sê-lo [...]; o capitalismo vitorioso, em todo
caso, desde quando se apóia em bases mecânicas, não precisa mais desse arrimo” (grifo
original, WEBER, 2004, p. 165), ou seja, do ponto de vista de sua lógica interna e
funcionamento, o capitalismo prescinde de toda e qualquer fundamentação metafísica.
Se nos voltamos, entretanto, para a formação do sistema, aí sim, não podemos excluir
que concepções psicorreligiosas tenham participado, ao lado de outros fatores, de sua
constituição (WEBER, 2004, p. 84 e ARON, 2003, p. 780). Isso é o que nos interessa aqui,
uma vez que, segundo Weber, certa versão e/ou interpretação do protestantismo –
precisamente a versão calvinista encarnada pelo puritanismo anglo-americano – criou uma
cosmovisão religiosa perfeitamente adequada ao desenvolvimento do capitalismo. Nosso
desafio agora será demonstrar como Max Weber constrói essa relação, tomando como guia A
ética protestante e o espírito do capitalismo.
2.3.1 O CONCEITO DE VOCAÇÃO
58
Confira: A confissão de fé de Westminster. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 1997, p. 3-12.
84
Max Weber inicia sua argumentação a partir do conceito de vocação em Lutero. Já de
início, assevera que a palavra alemã beruf, traz em seu bojo certa conotação religiosa: a
missão dada por Deus. Esta conotação, ignorada pelos povos predominantemente católicos e
pela Antigüidade clássica, está amplamente presente “em todos os povos predominantemente
protestantes”. Além disso, constata Weber que o vocábulo beruf, tomado no “sentido de uma
posição na vida ou de um ramo de trabalho definido” (2004, p. 71), constitui-se uma inovação
proveniente das traduções da Bíblia e não do seu sentido lexical.
Para Weber, tanto o novo significado lexical de beruf quanto a valorização do trabalho
no mundo são criações da Reforma. Ainda que não se neguem traços da valorização do
trabalho cotidiano – ligados ao conceito de beruf – na Idade Média e na Antigüidade, com a
Reforma, surge algo absolutamente novo, isto é, “a valorização do cumprimento do dever no
seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a auto-realização moral é
capaz de assumir” (2004, p. 72). Em conseqüência disso, o trabalho mundano assume
significação religiosa.
Uma vez ampliado em seu sentido, o conceito de beruf passa a designar que o
único meio de viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade
intramundana pela ascese monástica, mas sim, exclusivamente, em cumprir com os
deveres intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual
por isso mesmo se torna a sua ‘vocação profissional’ ( WEBER, 2004, p. 72).
Não obstante isso, acerca dos reformadores, Weber faz questão de ressaltar que é
impossível acreditar que a ambição por bens terrenos, pensada como um fim em si,
possa ter tido para algum deles um valor ético. [...] programas de reforma ética não
foram jamais o ponto de vista central para nenhum dos reformadores [...] A salvação
da alma, e somente ela, foi o eixo de sua vida e ação. Seus objetivos éticos e os
efeitos práticos de sua doutrina estavam ancorados aqui e eram, tão-só,
conseqüências de motivos puramente religiosos. Por isso temos que admitir que os
efeitos culturais da Reforma foram em boa parte - talvez até principalmente, para
nossos específicos pontos de vista - conseqüências imprevistas e mesmo
indesejadas do trabalho dos reformadores, o mais das vezes bem longe, ou mesmo
ao contrário, de tudo o que eles próprios tinham em mente (grifos originais, 2004, p.
81).
Para Max Weber, vale a pena insistir: “o feito propriamente dito da Reforma consistiu
simplesmente em ter já no primeiro momento inflado fortemente, em contraste com a
concepção católica, a ênfase moral e o prêmio religioso para o trabalho intramundano no
quadro das profissões” (2004, p. 75). As dimensões que a idéia de ‘vocação’ assumiu
posteriormente dependeu das formas de “piedade que se desdobraram dali em diante em cada
85
uma das igrejas saídas da Reforma” (2004, p. 75). Uma coisa, entretanto, é certa, não são
derivadas diretamente de Lutero, visto que “a autoridade da Bíblia, da qual julgava ter tirado a
idéia de beruf, no conjunto pendia totalmente para uma orientação tradicionalista
59
.
Tanto os profetas do Antigo Testamento quanto Jesus insistem que devemos nos
contentar com o “pão nosso de cada dia”; só os ímpios buscam o lucro. Os apóstolos também
vêem com indiferença ou de forma tradicionalista a vocação profissional. Visto que “tudo
aguarda a vinda do Senhor, que cada qual permaneça na posição social e no ganha-pão terreno
no qual o ‘chamado’ do Senhor o encontrou” (WEBER, 2004, p. 76). É com esta visão que
Lutero enxergava a vocação profissional nos primeiros anos de sua atividade reformadora.
Entre 1518 e 1530, suas idéias evoluem, mas são cada vez mais tradicionalistas.
Na medida em que Lutero se vê envolvido com os “negócios desse mundo” cresce o
seu apreço para com o trabalho profissional, mas “a profissão concreta do indivíduo lhe
aparece cada vez mais como uma ordem de Deus para ocupar na vida esta posição concreta
que lhe reservou o desígnio divino”. Os embates com os camponeses e com os anabatistas
levaram Lutero a conceber que a posição do indivíduo sociedade é obra da providência de
Deus, portanto cada um deve permanecer onde está. “O indivíduo deve permanecer
fundamentalmente na profissão e no estamento em que Deus o colocou e manter sua ambição
terrena dentro dos limites dessa posição na vida que lhe foi dada”. Pode-se afirmar que Lutero
não se distanciou decisivamente da mentalidade medieval, portanto “não chegou a estabelecer
uma vinculação do trabalho profissional com os princípios religiosos fundada em bases
radicalmente novas ou baseada em princípios” (WEBER, 2004, p. 77).
Resumindo suas observações sobre o conceito de vocação em Lutero, Max Weber se
expressa assim:
A vocação é aquilo que o ser humano tem de aceitar como desígnio divino, ao qual
tem de ‘se dobrar’ – essa nuance eclipsa a outra idéia também presente de que o
trabalho profissional seria uma missão, ou melhor, a missão dada por Deus. E o
desenvolvimento do luteranismo ortodoxo sublinhou esse traço ainda mais (grifos
originais, 2004, p. 77).
59
Max Weber entende por tradicionalismo a tendência anti-capitalista de objetivar o lucro ou a acumulação de
capital. “Eis um exemplo justamente daquela atitude que deve ser chamada de ‘tradicionalismo’: o ser humano
não quer ‘por natureza’ ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, mas simplesmente viver, viver do modo como
está habituado a viver e ganhar o necessário para tanto” (WEBER, 2004, p. 53).
86
Visto que em Lutero não é fácil identificar a conexão entre “práxis de vida e o ponto
de partida religioso”, Weber se volta para o calvinismo puritano e as seitas protestantes onde
aquela conexão é mais facilmente identificável.
2.3.2 O PURITANISMO E O CAPITALISMO
Como exposto acima, apesar de Lutero não ter avançado tanto quanto Calvino no
sentido de propor uma ascese intramundana, para ele, “a conduta de vida monástica é
encarada não só como evidentemente sem valor para a justificação perante Deus, mas também
como produto de uma egoística falta de amor [ao próximo] que se esquiva aos deveres do
mundo” (WEBER, 2004, p. 73). Dessa forma, pode-se afirmar que o ponto de partida de
Calvino é Lutero. Entretanto, à medida que ganha maturidade, o pensamento de Calvino
assume luz própria. Ronaldo Cavalcante afirma que “as principais diferenças se fazem notar
na práxis eclesial e propriamente na visão de mundo” (prelo, 2008, p. 10). Ao contrário do
luteranismo, o calvinismo “era um credo que buscava não meramente purificar o indivíduo,
mas reconstruir a Igreja e o Estado e renovar a sociedade permeando todos os setores da vida
tanto públicos como privados, com a influência da religião” (TAWNEY, 1971, p. 109).
Segundo Dumont,
com Calvino, o individualismo ganha força: com sua concepção da relação entre o
indiduo e o mundo; sua Igreja é a última forma que a Igreja pode adotar sem
desaparecer e assim, produz, como já dito, o indivíduo-no-mundo. O indivíduo
agora está no mundo, e o valor individualista reina sem restrições nem limitações
(In: CAVALCANTE, prelo, 2008, p. 10).
A esse indivíduo-no-mundo uma coisa importa, o conhecimento. Precisamente o
conhecimento de Deus, porquanto é ao mesmo tempo, indivíduo-em-relação-a-Deus.
Focando a relação entre a ética puritana
60
e espírito do capitalismo
61
, havemos de
considerar em primeiro plano que o puritanismo modificou decisivamente o pensamento e a
teologia de Calvino
62
.
60
Os puritanos formavam um partido político-religioso que lutava pela “purificação” da Igreja da Inglaterra no
c. XVII. Segundo eles a Igreja da Inglaterra não havia se reformado o suficiente. Os embates entre estes e o
poder político que não foram poucos e nem pequenos, culminaram com a expulsão de muitos deles, que
cruzaram o atlântico para formar a Nova Inglaterra, a partir de 1620. Sobre o puritanismo confira: TAWNEY, R.
H. A religião e o surgimento do capitalismo.o Paulo-SP: Perspectiva, 1971, p. 187-256 e GONZÁLEZ, Justo.
Historia do Pensamento Cristão. Vol. 2. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 2004, p. 295-302.
61
Utilizamos a expressão no estrito sentido de Max Weber: “[...] o caráter de uma máxima de conduta de vida
eticamente coroada”, ainda que ele mesmo reconheça que “não se pode ou não se deve necessariamente entender
por “espírito” do capitalismo somente aquilo que nós apontaremos nele como essencial para nossa concepção
(grifos originais, WEBER, 2004, p. 45 e 42)
62
Sobre esta modificação confira: KENDAL, R. T. A modificação puritana da teologia de Calvino. In: Calvino
87
“Devido à sua importância e ao fato que tem sido freqüentemente interpretada como
representante da teologia de Calvino” (GONZALEZ, 2004, p. 299), Weber vai buscar na
Confissão de Fé de Westminster
63
, datada de 1647, os fundamentos da teologia Calvinista em
sua versão puritana anglo-americana. A bem da verdade, seu foco é a doutrina da
predestinação, tratada em primeiro plano pelos puritanos, ao contrário de Calvino. Sobre a
ênfase em tal doutrina, Gonzalez, comenta que
A Confissão de Westminster coincide com a maioria dos calvinistas posteriores ao
colocar a doutrina da predestinação em tal lugar na estrutura da Teologia que ela
parece ser derivada da natureza de Deus, ao invés da experiência da graça dentro da
comunidade da fé (2004, p. 300).
Ainda que seja uma citação longa, acreditamos ser importante transcrevermos os
pontos destacados por Weber na Confissão supracitada:
Capítulo IX (da livre vontade), nº. 3: O homem, por sua queda no estado de pecado,
perdeu por inteiro toda a capacidade de sua vontade para qualquer bem espiritual
que o leve à salvação. Tanto que um homem natural, estando totalmente afastado
desse bem e morto no pecado, não é capaz, por seu próprio esforço, de converter-se
ou de preparar-se para tanto. Capítulo III (do decreto eterno de Deus), nº. 3: Por
decreto de Deus, para a manifestação de Sua glória, alguns homens (...) são
predestinados (predestinated) à vida eterna, e outros preordenados (foreordained) à
morte eterna. nº. 5: Aqueles do gênero humano que estão predestinados à vida,
Deus, antes de lançar o funda- mento do mundo, de acordo com Seu desígnio eterno
e imutável, Sua secreta deliberação e o bel- prazer de Sua vontade, escolheu -os em
Cristo para Sua eterna glória, por livre graça e por amor, sem qualquer previsão de
fé ou de boas obras, ou de perseverança numa e noutras, ou qualquer outra coisa na
criatura, como condições ou causas que O movessem a tanto, e tudo em louvor da
Sua gloriosa graça. nº. 7: Aprouve a Deus, segundo o desígnio insondável de Sua
própria vontade, pela qual Ele concede ou nega misericórdia como bem Lhe apraz,
deixar de lado o resto dos homens para a glória de Seu poder soberano sobre Suas
criaturas, e ordená-las à desonra e à ira por seus pecados, para louvor de Sua
gloriosa justiça. Capítulo X (da vocação eficaz), n°. 1: Todos aqueles que Deus
predestinou à vida, e somente esses, aprouve-Lhe chamá-las eficazmente (...) por
Sua palavra e Seu espírito, na hora apontada e aprazada, retirando-lhes o coração de
pedra e dando-lhes um coração de carne; renovando-lhes a vontade e, por Sua
onipotência, determinando-os para o que é bom (...). Capítulo v (da Providência),
n°. 6: Quanto aos homens maus e sem fé, a quem Deus, justo juiz que é, cega e
endurece por seus pecados passados, a esses Ele não apenas sonega Sua graça, pela
qual poderiam ter sido iluminados em seus intelectos e expandidos em seus
corações, cativados, mas também às vezes lhes retira os dons que possuíam e os
expõe a objetos que sua corrupção transforma em ocasião de pecado e, além do
mais, abandona-os à própria devassidão, às tentações do mundo e ao poder de Satã:
pelo que se dá que eles próprios se endurecem, até por aqueles meios de que se vale
Deus para enternecer a outros (2004, p. 91).
e sua inflncia no mundo ocidental. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 1990, p. 245-294 e GONZÁLEZ, Justo.
Historia do Pensamento Cristão. Vol. 2. São Paulo-SP: Cultura Cristã, 2004, p. 295-302.
63
A publicação em português é feita pela edita da Igreja Presbiteriana do Brasil. Confissão de Fé de
Westminster.o Paulo-SP: Editora Cultura Cristã, 1997.
88
Em suma, existe um Deus todo-poderoso, radicalmente transcendente, que, embora
tenha criado o mundo e o sustente com a sua providência, não pode, em hipótese alguma, ser
compreendido pela finitude do espírito humano, exceto quando Ele mesmo decide revelar-se.
Assim, “o sentido de nosso destino individual acha-se envolto em mistérios obscuros e é
impossível e arrogante sondar” (grifo original, 2004, p. 94). Tanto aos que são eleitos para
vida eterna quanto aos que são condenados à danação eterna, está vedado o questionamento
de sua condição.
Se os réprobos quisessem se queixar do que lhes coube como algo imerecido, seria
como se os animais se lamentassem de não terem nascido seres humanos. Pois toda
criatura está separada de Deus por um abismo intransponível e aos olhos dele não
merece senão a morte eterna, a menos que ele, para a glorificação de sua majestade,
tenha decidido de outra forma. [...] Supor que mérito humano ou culpa humana
contribuam para fixar esse destino significaria encarar as decisões absolutamente
livres de Deus, firmadas desde a eternidade, como passíveis de alteração por obra
humana: idéia impossível (2004, p. 94).
Como já indicamos anteriormente, o “além protestante” é habitado exclusivamente por
um Deus radicalmente outro, e dessa forma, o
Pai que está no céu, mostrado pelo Novo Testamento de forma acessível à
compreensão humana, [... torna-se um] Ser transcendente que escapa a toda
compreensão humana e que, desde a eternidade, por decretos de todo insondáveis,
fixa o destino de cada indiduo e dispõe cada detalhe no cosmos. Uma vez
estabelecido que seus decretos são imutáveis, a graça de Deus é tão imperdível por
aqueles a quem foi concedida como inacessível àqueles a quem foi recusada (2004,
p. 94).
Weber não consegue esconder sua indignação com tal forma de pensamento. Para ele,
“em sua desumanidade patética, essa doutrina não podia ter outro efeito sobre o estado de
espírito de uma geração que se rendeu à sua formidável coerência, senão este, antes de mais
nada: um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo” (2004, p. 95).
Segundo Weber, nenhuma religião é tão racionalizada quanto o protestantismo
puritano, dado o grau com que se despojou da linguagem simbólica e/ou mágico-sacramental
e o grau de coerência sistemática incutido na ralação entre Deus e o mundo (2005, p. 151).
Sendo assim,
No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma - a bem-aventurança
eterna - o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do
destino fixado desde toda a eternidade. Ninguém podia ajudá-lo. Nenhum
pregador: pois somente o eleito é capaz de compreender spiritualiter {em espírito}
a palavra de Deus. Nenhum sacramento: pois os sacramentos, com certeza
ordenados por Deus para o aumento de sua glória e sendo por conseguinte
89
invioláveis, não são contudo um meio de obter a graça de Deus, limitando-se apenas
a ser, subjetivamente, externa subsidia {auxílios externos} da fé. Nenhuma Igreja:
pois embora a sentença extra ecclesiam nulla salus implique como sentido que
quem se afasta da verdadeira Igreja nunca mais pode pertencer aos eleitos de Deus,
resta o fato de que também os réprobos fazem parte da Igreja (externa), mais que
isso, devem fazer parte dela e sujeitar-se à sua disciplina, não para através disso
chegar à bem-aventurança eterna - isso é impossível -, mas porque, para a glória de
Deus, eles devem ser além do mais obrigados pela força a observar os
mandamentos. E, por fim, nenhum Deus: pois mesmo Cristo só morreu pelos
eleitos, aos quais Deus havia decidido desde a eternidade dedicar sua morte
sacrificial (2004, p. 95).
Em seu profundo isolamento interior, provocado pela absoluta racionalidade de sua
experiência com Deus, o crente calvinista puritano depara de imediato com duas questões tão
contundentes quanto angustiantes: faço parte ou não dos eleitos? Como posso ter certeza de
meu estado? A opinião de Calvino a esse respeito tornou-se aos poucos insustentável, a saber,
basta aceitar o testemunho interior do Espírito Santo (Cf. CALVINO, 1994, p. 401 e WEBER,
2004, p. 101) para se certificar do estado de graça. Surgiram, então, dois critérios de certeza
mutuamente relacionados. Por um lado, “torna-se pura e simplesmente um dever considerar-
se eleito e repudiar toda e qualquer dúvida como tentação do diabo, pois a falta de convicção,
afinal, resultaria de uma fé insuficiente e, portanto, de uma atuação insuficiente da graça”; por
outro, “distingue-se o trabalho profissional sem descanso como o meio mais saliente para se
conseguir essa autoconfiança. Ele, e somente ele, dissiparia a dúvida religiosa e daria a
certeza do estado de graça” (grifos originais, WEBER, 2004, p. 101), outrora concedida pela
linguagem simbólica ou atividade mágico-sacramental.
Assim como o crente luterano, o calvinista quer salvar-se pela fé, todavia, ao passo
que aquele tende para a “cultura mística do sentimento”, este, tende para “ação ascética”
64
. A
fé do crente calvinista puritano “precisa se comprovar por efeitos objetivos” (WEBER, 2004,
p. 104) capazes de servir para o aumento da glória de Deus. É a partir dessa base que a ação
dentro da vida profissional mundana funciona como “meio técnico, não de comprar a bem-
aventurança, mas sim: de perder o medo de não tê-la” (WEBER, 2004, p. 104).
64
A esse respeito veja o que afirma Delumeau: O protestantismo encorajou o capitalismo na medida em que
defendeu a inexistência de um relacionamento entre a ação terrena e a recompensa eterna. Deste ponto de vista, a
distinção entre as correntes luteranas e calvinistas é ineficaz e sem fundamento. Pois, se é certo que Calvino fez
depender a salvação da arbitria predestinação divina, Lutero a subordinou apenas à fé: deste modo, nem um
nem outro a relacionou às obras. Uma tal afirmação destrói toda a moral sobrenatural e por conseguinte a ética
econômica do Catolicismo, e abre caminho para mil morais, todas naturais, todas terrenas, todas fundadas em
princípios inseridos nas coisas humanas (DELUMEAU, 1989, p. 296)
90
Considerando o protestantismo ascético como um bloco
65
, Max Weber passa então a
construir aquela relação entre a ética intramundana do puritanismo e o capitalismo. Para ele,
há uma espécie de
adequação significativa do espírito ao capitalismo e do espírito do protestantismo
[...] ajusta-se ao espírito de um certo protestantismo a adoção de uma certa atitude
em relação à atividade econômica, que é ela própria adequada ao espírito do
capitalismo. Há uma afinidade espiritual entre uma certa visão do mundo e
determinado estilo de atividade econômica (ARON, 2002, p. 782).
Isso ocorre porque a ética puritana, ao contrário da opinião de Calvino, via a riqueza
como um grande perigo, se bem que a riqueza em si não fosse condenável, e sim o descanso
sobre a posse. Sendo assim, “não para fins da concupiscência da carne e do pecado, mas sim
para Deus, é permitido trabalhar para ficar rico” (2004, p. 148). O que se condena é o ócio –
tido como perda de tempo que não serve para o aumento da glória de Deus – e o prazer – tido
como glorificação da criatura em detrimento do Deus que merece toda glória. Assim, o
acúmulo de bens torna-se sinal de virtude.
A riqueza é reprovável precisamente e somente como tentação de abandonar-se ao
ócio, à preguiça e ao pecaminoso gozo da vida, e a ambição de riqueza somente o é
quando o que se pretende é poder viver mais tarde sem preocupação e
prazerosamente. Quando, porém ela advém enquanto desempenho do dever
vocacional, ela é não só moralmente lícita, mas até mesmo um mandamento. Querer
ser pobre, costumava-se argumentar, era o mesmo que querer ser um doente, seria
condenável na categoria de santificação pelas obras, nocivo, portanto à glória de
Deus (WEBER, 2004, p. 148).
Para sermos justos façamos uma ressalva, o ócio e o prazer gozavam liceidade desde
que não custassem tempo e dinheiro, os quais poderiam ser utilizados para o aumento da
glória de Deus. Visto que é um administrador dos bens que Deus lhe concedeu por sua graça,
o indivíduo não pode despender uma parte deles para um fim que tenha validade não para a
glória de Deus, mas para a fruição pessoal. Isso seria temeridade.
Em resumo,
A ascese protestante intramundana [...] agiu dessa forma, com toda a veemência,
contra o gozo descontraído das posses; estrangulou o consumo, especialmente o
consumo de luxo. Em compensação, teve o efeito [psicológico] de liberar o
enriquecimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que
cerceavam a ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas também ao encará-lo (no
sentido descrito) como diretamente querido por Deus (grifos originais, WEBER,
2004, p. 155).
65
Weber acredita que os elementos presentes no puritanismo estavam mais ou menos dispersos também no
91
O estrangulamento do consumo associado ao trabalho sistemático e lucrativo sem
descanso, favoreceu o emprego produtivo do capital obtido, isto é, o investimento contínuo.
Por conta disso, Weber considera que a ascese puritana é “a alavanca mais poderosa que se
pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de ‘espírito’ do
capitalismo” (2004, p. 157).
pietismo, metodismo e nas seitas anabatistas e batistas. (Cf. WEBER, 2004, P. 87-90).
CAPÍTULO III
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
E AS POSSIBILIDADES DA RELIGIÃO NA MODERNIDADE
“O princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao
domínio religioso como ao secular, mas sem qualquer filiação eclesstica ou
institucional, bem como por grupos e indivíduos que, por meio de símbolos cristãos
ou protestantes, ou sem eles, expressam a verdadeira situão humana em face do
absoluto e do incondicional. [...] é e não nas igrejas que o protestantismo se torna
vivo no mundo atual”.
Paul Tillich
66
Vimos anteriormente que o protestantismo puritano reduziu a relação do ser humano
com o sagrado a um único e estreitíssimo canal que ele denominou palavra de Deus. Tal
concepção – além de se relacionar com o espírito do capitalismo – só fez acelerar e culminar o
processo; há muito em marcha, denominado desencantamento do mundo.
Nosso objetivo, neste capítulo, é discorrer sobre as possibilidades e/ou
impossibilidades da linguagem simbólica da religião na Modernidade desencantada. O
primeiro passo será reunir algumas críticas ao pensamento de Max Weber com o intuito de
julgarmos a viabilidade contemporânea de suas categorias propostas; em seguida, trataremos
do conceito de desencantamento do mundo e da sua relação com a secularização; e por fim,
discutiremos as relações entre Modernidade e religião.
3.1 A ATUALIDADE DE MAX WEBER
Não se pode negar a importância de Max Weber para o desenvolvimento das ciências
sociais. Com exceção da antropologia, todas as áreas das ciências sociais recebem
contribuições weberianas (Cf. COHN, 2005, capa). Desse modo, em um contexto de
sociologia ainda incipiente, como o é o brasileiro, Weber ainda é uma referência muito
importante, o que não significa dizer que seu pensamento não seja passível de críticas.
Elencamos a seguir a principais críticas feitas por Tawney
67
.
66
In: A era protestante. São Bernardo do Campo-SP: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da
Religião (IEPG), 1992, p. 221.
67
Richad Henry Tawney, nasceu em Calcutá, na Índia, em 1880 e faleceu em 1962. Com formação em história e
economia, lecionou na Universidade de Glasgow e na London School of Economics. Escreveu vários livros
influentes sobre educação, política e economia. Dentre os mais importantes estão: A Sociedade (1921), Educação
Secundária para Todos (1922), Educação: Política do Partido Socialista (1924), A Religião e o Surgimento do
Capitalismo (1926) e Igualdade (1931). Embora não seja esse autor o principal e o mais atual crítico Weber,
servimo-nos de suas idéia por estarem mais alinhados com os objetivos de nosso trabalho.
93
As críticas de Tawney ao pensamento de Weber no que se refere às suas análises da
relação entre orientação religiosa e desenvolvimento do capitalismo, seguem em três direções,
basicamente: o desenvolvimento do capitalismo na Holanda e na Inglaterra do séc. XVI e
XVII pode ser explicado em detrimento do protestantismo; Weber praticamente ignora os
movimentos intelectuais favoráveis à empresa capitalista; o pensamento de Calvino foi
demasiadamente simplificado. Vejamos isso com mais detalhes.
Quanto à primeira crítica, de acordo com Tawney, “Weber, por meio de referências às
influências morais e intelectuais, parece-me explicar desenvolvimentos que encontram sua
explicação principal em regiões totalmente diversas”. Para ele, havia muito do chamado
“espírito capitalista” na Veneza e Florença quinhentistas, ou mesmo no sul da Alemanha e
Flandres, “pela simples razão de que essas áreas eram os maiores centros comerciais e
financeiros da época, embora todas fossem, pelo menos nominalmente, católicas”. Ademais, o
desenvolvimento do capitalismo moderno na Holanda e na Inglaterra nos séculos XVI e XVII
tem sua causa não no fato de serem poderes protestantes, mas nos “grandes movimentos eco-
nômicos, em particular as descobertas e os resultados que decorreram delas”. Tawney
reconhece que a “multicausalidade” é um dos fundamentos do pensamento weberiano, até
porque isso está muito claro na “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Segundo ele,
é óbvio “que mudanças materiais e psicológicas andavam juntas, e é claro que a segunda agiu
sobre a primeira”. Por isso, o núcleo dessa sua crítica não nega a tese de Weber, mas afirma
sua unilateralidade porquanto “parece um pouco artificial falar como se a empresa capitalista
não pudesse aparecer até que as mudanças religiosas tivessem produzido um espírito
capitalista”. E Tawney arremata, “seria igualmente verdadeiro e igualmente unilateral dizer
que as mudanças religiosas foram unicamente o resultado dos movimentos econômicos”
(TAWNEY, 1971, p. 201). Não obstante o reconhecimento de que Weber precisa ser
contestado em seu próprio campo que não é o da “história econômica geral, mas o do
pensamento religioso sobre questões sociais” (TAWNEY, 1971, p. 16).
Para Tawney, no tocante a outra crítica mencionada, Weber não considera a contento
“os movimentos intelectuais, que eram favoráveis ao desenvolvimento da empresa comercial
e a uma atitude individualista para com as relações econômicas, mas que pouco tinham a ver
com a religião”. Dentre tais movimentos, o pensamento político da Renascença constitui-se
bom exemplo. Citando Brentano, Tawney salienta que “Maquiavel foi pelo menos um
solvente tão poderoso das restrições éticas tradicionais quanto Calvino”. É certo que as
“especulações dos homens de negócio e economistas sobre dinheiro, preços e os câmbios
externos eram outro”, mas também é fato incontestável que “ambos contribuíram para o
94
temperamento de concentração decidida no ganho pecuniário, que Weber entende pelo
espírito capitalista” (TAWNEY, 1971, p. 202). A isso talvez Weber respondesse que
embora o homem moderno, mesmo com a melhor das boas vontades, geralmente
não seja capaz de imaginar o efetivo alcance da significação que os conteúdos de
consciência religiosos tiveram para a conduta de vida, a cultura e o caráter de um
povo, não cabe contudo, evidentemente, a intenção de substituir uma interpretação
causal unilateralmente ‘materialista’ da cultura e da história por uma outra
espiritualista, também ela unilateral. Ambas são igualmente possíveis, mas uma e
outra, se tiverem a pretensão de ser, não a etapa preliminar, mas a conclusão da
pesquisa, igualmente pouco servem à verdade histórica (WEBER, 2004, p. 167).
A terceira crítica refere-se a algo que já mencionamos anteriormente, ou seja, a idéia
de que há certa ruptura entre o pensamento de Calvino e o do puritanismo anglo-americano do
qual Weber tirou quase todas as suas premissas. Weber teria simplificado ao máximo o
Calvinismo e isto por duas razões muito claras. A primeira é que Weber “aparentemente
atribui aos puritanos ingleses do século XVII a concepção de ética social defendida por
Calvino e seus seguidores imediatos”. A segunda é que ele refere-se aos puritanos ingleses do
século XVII como se “todos os mantivessem exatamente a mesma visão dos deveres e
conveniências sociais”. Estas duas premissas são insustentáveis. Para Tawney, por um lado,
“os calvinistas do século XVI (incluindo os puritanos ingleses) acreditavam em um
movimento rigoroso que nas suas fases posteriores os teria horrorizado”. Por isso mesmo
ponto chave seria “a das causas da mudança de um ponto de vista ao outro, uma questão que
Weber parece ignorar”. Além disso, por outro lado, “havia, dentro do Puritanismo do século
XVII, uma grande variedade de elementos que defendia visões amplamente diferentes quanto
à política social”. Segundo Tawney, é evidente que não “havia nenhuma fórmula que reunisse
os aristocratas puritanos e Igualitários, proprietários de terras e Diggers
68
, mercadores e
artesãos, os soldados rasos e seu general, na congregação de uma única teoria social” E
arremata: “tanto ‘o espírito capitalista’ como a ‘ética protestante’, portanto, eram muito mais
complexos do que Weber parece indicar” (TAWNEY, 1971, p 202).
Apesar das críticas às analises de Weber, R.H. Tawney, admite que
A religião influenciou, a um grau que hoje em dia. é difícil apreciar, a perspectiva
dos homens face a sociedade. As mudanças econômicas e sociais influíram
poderosamente na religião. Weber, como era natural à vista de seus interesses
especiais, acentuou o primeiro ponto. Ele assim o fez com uma riqueza de
conhecimento e uma força intelectual que merecem admiração daqueles que, como
eu, se aventuram a discordar de algumas das suas posições (TAWNEY, 1971, 18).
68
Indivíduos pertencentes a um grupo igualitário de curta duração, que em
1649
começou a cultivar certas
propriedades comuns na Inglaterra, como um protesto contra a propriedade privada.
95
3.2 O CONCEITO DE DESENCANTAMENTO DO MUNDO
É lugar comum afirmar que, em Weber, o desencantamento do mundo é decorrente de
um longo processo que culmina com o surgimento do protestantismo puritano. Contudo,
quando se trata de determinar o significado da sentença weberiana, o consenso esfumaça-se.
Há quem pense o desencantamento do mundo como sinônimo de desencanto, desilusão,
perda, mal-estar subjetivo diante do paradoxal progresso científico ou das parcas
possibilidades da religião no século XXI [?]. Por outro lado, há os que advogam que o
desencantamento do mundo é uma previsão de Weber que há de se cumprir – ou está se
cumprindo – mediante o avanço da ciência.
Quem defende a primeira possibilidade de interpretação, despreza a consistência e
precisão do sintagma em Weber; enquanto que os arautos do desencantamento do mundo, via
ciência, desprezam sua intrínseca perspectiva religiosa.
De acordo com Gabriel Cohn, para o entendimento adequado do assunto, duas
premissas devem estar patentes. A primeira refere-se ao fato de que o sintagma
desencantamento mundo, “aplicado a toda uma condição do mundo em que se movem os
homens, vai muito mais fundo do que uma vaga noção alusiva a alguma perda, carência ou
mal-estar subjetivo: desencantamento não é desencanto”. Na verdade, trata-se de uma
formulação sociológica, de um conceito, “constrdo para ajudar a explicar o mundo, não para
lamentá-lo”. E é claro que um conceito não pode ser entendido sozinho; ele “só ganha sentido
quando encontra seu lugar na estrutura analítica que, no conjunto, forma uma teoria”. Portanto
quando se trata de entender o desencantamento do mundo, “é, pois, toda a armação da teoria
sociológica de Max Weber que está em jogo”.
A segunda premissa está ligada à necessidade de reconstruir itinerário do conceito.
Isso, entretanto, não significa que “um simples acompanhamento linear da cronologia dos
textos de Weber resolva o problema.” E esta não é tarefa fácil. Há que se buscar “as ar-
ticulações entre o encadeamento do tema no tempo e a malha de problemas e de áreas do
conhecimento social que lhe oferece as referências em cada etapa do seu percurso” (In:
PIERUCCI, 2003, apresentação).
Embora o conceito de desencantamento do mundo esteja intimamente ligado à
religião, associado ao de racionalização, ultrapassa-a e expande-se num movimento preciso
em direção à ciência.
96
3.2.1 O SENTIDO DO CONCEITO
Qual é então, afinal, o significado exato do conceito de desencantamento do mundo na
sociologia de Weber? Tal questão é viável na medida em que, de acordo com Cohn, “um
conceito não pode ser tão proteiforme; algum núcleo duro de significado ele sempre terá” (In:
PIERUCCI, 2003, p. 32). Em nossa busca do sentido preciso da expressão em Weber,
seguiremos o itinerário traçado por Flávio Pierucci
69
.
A expressão alemã Entzauberung der Welt, tornada famosa por Weber, para muitos
fora tomada por empréstimo do filósofo e poeta Friedrich von Schiller (1750-1805). Pierucci,
todavia adverte que em Schiller a expressão é Entgötterung der Natur, “desendeusamento da
natureza” e que, portanto, embora Weber não tenha cunhado a expressão, ele não a tomou
ipsis litteris. O que fez foi adaptá-la a partir de um sintagma similar (PIERUCCI, 2003, p. 30).
Mais decisiva, contudo, que a origem da expressão é a apreensão do seu sentido.
Pierucci admite que “o uso do termo em Weber, de fato, não é unívoco, lá isso é verdade. Ele
muda: dependendo da questão em tela, ele se expande e se retrai, fica mais forte ou mais
fraco, mas nem por isso chega a se pôr como desbragadamente” (PIERUCCI, 2003, p. 35).
O sintagma possui apenas dois conteúdos semânticos que, sob olhar atento,
apresentam-se nítida e inequivocamente demarcados. Os dois significados são concomitantes
na biografia de Weber e, embora distintos, não se separam. O desencantamento do mundo
pela religião constitui o sentido mais forte, porém restrito; já o desencantamento do mundo
pela ciência tem um sentido mais frágil, porém de alcance ilimitado. De acordo com Pierucci,
Weber teria trabalhado com os dois sentidos “ao mesmo tempo e o tempo todo”. Logo, o
segundo sentido não constituiria, portanto uma evolução do pensamento de Max Weber como
advogam alguns dos seus intérpretes, visto que das nove vezes que o sintagma aparece no
texto weberiano refererindo-se à religião, portanto ao sentido estrito, cinco vezes aparece nos
dois últimos anos de vida do autor, 1919 e 1920. (PIERUCCI, 2003, p. 42s e 58).
Ao todo a expressão aparece dezenove vezes em Weber, sendo nove para significar
“desmagificação”, quatro para “perda de sentido” e quatro significando as duas coisas.
3.2.2 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A RELIGIÃO
Quando Weber fala do desencantamento do mundo via religião, refere-se
especificamente ao processo de substituição da “irracionalidade mágica” pela “racionalidade
religiosa”, o que não significa que a magia seja absolutamente desprovida de racionalidade.
97
Em Weber, “a magia não porta racionalidade teórica, nem sistêmica, mas prática sim. Não
prático-ética, mas prático-técnica. Uma racionalidade subjetivamente significativa apenas se
encarada e avaliada de modo avulso, desconexo, desconjuntado”. Diríamos: uma racio-
nalidade rudimentar e não sistemática. “Os atos mágicos não se perfilam numa seqüência
significativa, não se ordenam num plexo homogêneo de sentido, não são capazes de travejar
coerentemente uma conduta de vida” (PIERUCCI, 2003, p. 80). Os atos mágicos, mesmo
voltados para “este mundo”, não conferem sentido à vida aqui e agora.
Pela via da religião, então, o desencantamento do mundo deve ser entendido como
desvalorização e/ou supressão dos meios mágicos de salvação, da linguagem simbólica, “na
medida em que, em sua extracotidianeidade constitutiva, essas práticas ‘desvalorizam’
religiosamente o trabalho profissional cotidiano no mundo como locus das boas relações com
o invisível”.
Neste mundo que não tem sentido por si mesmo – porquanto absolutamente corrupto –
a vida do asceta intramundano só tem sentido enquanto suas ações racionais se prestam a
cumprir a vontade de um Deus absolutamente supramundano e inacessível (Cf. WEBER,
2004, Vol 1, p. 368) – como vimos anteriormente. Ele tem que equilibrar-se
por assim dizer num fio de navalha quando deposita toda a sua expectativa de estar
salvo pelo Deus único no estreissimo intervalo que medeia entre sua concepção
negativa do mundo, visto como pecaminoso e sem valor, sempre perigoso para os
bons, e sua concepção positiva da ação racional no mundo, vista como sinal ou
prova de salvação (PIERUCCI, 2003, p. 95)
70
.
No seu isolamento esta é a sua única alternativa: a acese intramundana. Pois “quando a
religião se moraliza ‘para valer’, ela desencanta o mundo; e vice-versa, quando uma religião
se desmagifica ‘até o fim’, não resta outro caminho àqueles que a seguem a não ser o ativismo
ético-ascético no trabalho profissional cotidiano” (PIERUCCI, 2003, p. 126).
69
PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos ao passos do conceito em Max Weber. o
Paulo: Curso de Pós-Graduação em Sociologia-USP e Editora 34, 2003.
70
Sobre este aparente paradoxo de ação no e renúncia do mundo, ao contrastar o ascetismo ativo com o
misticismo, o próprio Weber se expressa assim: “Em nossos comentários introdutórios [ele se refere à: A
psicologia social das religiões mundiais] contrastamos, como renúncias do mundo, o ascetismo ativo que é uma
ação, desejada por Deus, do devoto que é instrumento de Deus e, por outro lado, a possessão contemplativa do
sagrado, como existe no misticismo, que visa a um estado de ‘possessão’, não ação, no qual o indivíduo não é
um instrumento, mas um ‘recipiente’ do divino. A ação no mundo é vista, assim, como um perigo para o estado
irracional e outros estados religiosos voltados para o outro mundo. O ascetismo ativo opera dentro do mundo; o
ascetismo racionalmente ativo, ao dominar o mundo, busca domesticar o que é da criatura e maligno através do
trabalho numa vocação ‘mundana’ (ascetismo do mundo). Tal ascetismo contrasta radicalmente com o
misticismo, se este se inclina para a fuga do mundo (fuga contemplativa do mundo)” (WEBER, 2002, p. 228).
98
Em suma, o desencantamento do mundo se dá mediante e a partir de uma luta entre
ética e símbolo ou entre uma religiosidade ético-ascética e uma religiosidade mágico-
sacramental, numa relação de causa e efeito.
No processo de desmagificação do mundo está mais do que imbricado como fator
causal sine qua non o processo de eticização da religião, ou seja, o processo de
desencantamento do mundo está sobredeterminado pela empreitada de moralização
religiosa em seu formato judaico-cristão: em parte causa, em parte conseqüência
(PIERUCCI, 2003, p. 126).
3.2.3 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A CIÊNCIA
A Ciência como vocação (1917) é o texto weberiano em que a expressão
desencantamento do mundo mais aparece; ao todo são seis vezes. A partir desse momento o
sentido estrito da expressão é extrapolado, paralelamente ao sentido religioso, mas agora via
ciência passa a funcionar como uma categoria explicativa do nosso tempo. Ressaltamos
entretanto que seja pela via religiosa, seja pela via científica, Weber
emprega para ambos os processos o mesmo verbo “desalojar” [...] primeiro a
religião (monoteísta ocidental) desalojou a magia e nos entregou o mundo natural
“desdivinizado”, ou seja, devidamente fechado em sua “naturalidade”, dando-lhe,
no lugar do encanto mágico que foi exorcizado, um sentido metafísico unificado, to-
tal, maiúsculo; mas depois, nos tempos modernos, chega a ciência empírico-
matemática e por sua vez desaloja essa metafísica religiosa, entregando-nos um
mundo ainda mais “naturalizado”, um universo reduzido a “mecanismo causal”,
totalmente analisável e explicável, incapaz de qualquer sentido objetivo, menos
ainda se for uno e total, e capaz apenas de se oferecer aos nossos microscópios e aos
nossos cálculos matemáticos em nexos causais inteiramente objetivos mas
desconexos entre si, avessos à totalização, um mundo desdivinizado que apenas
eventualmente é capaz de suportar nossa inestancável necessidade de nele encontrar
nexos de sentido, nem que sejam apenas subjetivos e provisórios, de alcance breve e
curto prazo (grifos originais. PIERUCCI, 2003, p. 145).
Em resumo, para Weber só o conhecimento científico é objetivo, o sentido é subjetivo.
O judaísmo profético, bem como hereditariamente o cristianismo e o puritanismo, quando
“desencantam o mundo” conferem-lhe um sentido homogêneo, a atitude da ciência empírica
moderna, no entanto,
retira o sentido do mundo, agora transformado em “mecanismo causal”, em
“cosmos da causalidade natural”, ou seja, em algo sem mistérios insondáveis,
perfeitamente explicável em cada elo causal mas não no todo, fragmentário,
esburacado, “quebradiço e esvaziado de valor” [...] Ela retira o sentido do mundo e
não é capaz de substituí-l o por outro (PIERUCCI, 2003, p. 159).
E este é, segundo Weber, um dos grandes – senão o maior – desafios do cientista, a
saber, aceitar que a ciência é incapaz de nos salvar, “de nos lavar a alma, de nos dizer o
99
sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma como não tendo em si, objetivamente,
sentido algum” (PIERUCCI, 2003, p. 158).
O desencantamento encetado pela religião tem no judaísmo profético o seu ponto de
partida e no puritanismo do século XVI e XVII o seu apogeu, ou melhor, o seu ponto de
chegada; extrapolada a fronteira religiosa, entretanto, o desencantamento aponta para o
infinito, porquanto fundamentado no progresso da ciência que, por definição, desconhece a
subjetividade na mesma proporção que os limites.
3.3 O CONCEITO DE DESENCANTAMENTO DO MUNDO E A SECULARIZAÇÃO
A temática da secularização “tem sido objeto de controvérsia e ambigüidade desde o
seu surgimento como categoria de análise e discussão disciplinar e, mais tarde, na sua
mensuração empírica”. Se por um lado a controvérsia refere-se ao fato de que, com ela, pre-
tendeu-se “considerar e identificar fatos e situações não sempre homogêneos, dando valor ora
a um, ora a outro aspecto que se escolhia como explicação causal última (a necessidade da
religiosidade e/ou a prática; o rito e/ou o sagrado etc.)”; por outro, a temática é ambígua
porque o termo secularização está “semanticamente condenado a manter o pé sobre dois
estribos: do significado originário, extraído do direito canônico e sucessivamente inserido na
teologia, ao significado adquirido na tradição das ciências sociais” (GUIZZARDI; STELLA,
1990, p. 203). Tal elasticidade semântica comporta em seu bojo fenômenos e acontecimentos
os mais diversos, tais como: laicização, dessacralização, privatização, descristianização etc., o
que impossibilitaria uma análise pormenorizada da trilha histórica da temática proposta.
Sendo assim, impomo-nos analisar o sentido da secularização em relação com o
desencantamento do mundo em Max Weber.
Antes de prosseguirmos, vejamos a evolução histórica do sentido da palavra
secularização. Em sua primeira acepção, em vernáculo latim, no fim do século XVI, o termo
secularização no remete ao âmbito institucionalmente religioso – ainda que jurídico-religioso
– para designar um transitus de regularis a canonicus, ou seja,
a passagem de um ‘virtuoso’ religioso do estado de padre regular (isto é, membro de
uma Ordem Religiosa regida por um regulamento chamado ‘Regra’; daí o nome
‘padre regular’) ao estado secular (de sacerdote católico ligado diretamente a um
bispo, a uma diocese) (PIERUCCI, 1998, p. 64).
100
Ainda neste momento inaugural do termo e no âmbito do direito canônico, mas para
indicar um processo diferente, um ligeiro deslocamento no sentido do termo que
além da passagem de um tipo de clero a outro, também a redução de um clérigo ao
estado laical, a ‘laicização’ (termo ainda inexistente) de um clérigo; enfim, a perda
do estado clerical [...] e agora sim perda, não apenas passagem, a ‘redução à vida
laica ele quem recebeu ordens religiosas ou vive segundo a regra conventual
(PIERUCCI, 1998, p. 64).
Posteriormente, na vigência do século XVI e XVII, momento de ascensão do
protestantismo na Europa, secularização passou a designar o “processo de subtração de um
território, ou de uma instituição, da jurisdição e do controle eclesiástico: é com esta acepção
que o conceito vai aparecer pela primeira vez durante os extenuantes acordos para a Paz de
Westfália, de 1648” (MARTELLI, 1995, 274s). Aconteceu que o príncipe eleitor de Branden-
burgo, que fora obrigado a ceder terras aos suecos, recebeu do imperador, como recompensa,
alguns territórios eclesiásticos, que, assim, foram oportunamente ‘secularizados’. Desse
modo, o termo saecularisatio torna-se sécularizer. E não se trata de mera questão lingüística,
visto que, na grafia francesa cunhada pelo legado da França, LonguevilIe, é a primeira vez
que ele aparece em língua não eclesiástica. Sua acepção é ampliada em relação ao direito
canônico (PIERUCCI, 1998, p. 64). Contudo vale ressaltar, secularização ainda não significa
‘perda’, uma vez que tais territórios, do ponto de vista formal, “continuaram a ser principados
do sacro império romano” (MARTELLI, 1995, p. 275).
O evento conhecido como Grosse Säkularisation, ocorrido 1803 é de crucial
importância para o entendimento do caminhar histórico do termo. Trata-se da “a espoliação
das igrejas, de seus direitos e propriedades, decretada na Alemanha durante a época
napoleônica.” A partir daí, o termo secularização, até então neutro, técnico e unívoco
incorpora às suas possibilidades semânticas uma acepção valorativa de cunho jurídico-
ideológica. Doravante indica a “subtração de direitos e bens religiosos e de emancipação da
tutela e controle da Igreja: ação jurídica julgada ilegítima ou, ao contrário, apresentada como
progressista, conforme a posição ideológica assumida em relação à instituição eclesial”
(MARTELLI, 1995, p. 275).
No momento atual, o termo ‘secularização
designa os processos de laicização, isto é, de autonomia em relação à esfera
religiosa, que surgiram no Ocidente a partir da dissolução do feudalismo. Por isso,
secularização tomou-se sinônimo de subtração de províncias, do saber, do poder e
do agir social, do controle ou da influência de instituições eclesiásticas ou de
universos simbólico-religiosos (MARTELLI, 1995, p. 275s).
101
Pierucci, porquanto ancorado em Weber, vai além quanto à extensão semântica do
termo. Para ele, o termo secularização no âmbito do pensamento moderno – ele mesmo já
agudamente secularizado –, “passa por acentuada extensão semântica e torna-se uma
categoria histórico-filosófica portadora da pretensão de interpretar todo o curso da história
universal como gênese da nossa ocidental modernidade sociopolítica e tecno-científica
(1998, p. 66).
3.3.1 WEBER E OS CLÁSSICOS: A RUPTURA
Com o avanço da modernidade, desenvolveram-se novas exigências organizativas
inerentes aos processos de diferenciação interna do próprio “sistema social, que se articulava
em domínios institucionalmente autônomos e relativamente independentes em relação a uma
legitimação de tipo religioso”.
Neste novo contexto de racionalidade científica, substituta das antigas ideologias de
cunho sacral, “impunha-se uma revisão profunda do método com o qual se considerava o
mundo, e exigia-se, onde e quando necessário, o surgimento de disciplinas capazes de
explicar, segundo regras positivas, os fenômenos sociais” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p.
205).
Se pensarmos a temática da secularização em seus primórdios, no âmbito já da
sociologia, havemos de concebê-la em termos de evolução. E, neste caso, o ponto de partida
seria o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), “inventor do termo ‘sociologia’ e
expoente máximo do positivismo aplicado à análise social, que põe toda a sua confiança na
capacidade da ciência de resolver os problemas da humanidade”. Como se sabe, para ele a
ciência caracteriza um ponto final, precisamente o terceiro e último estágio da evolução
humana; “depois do ‘teológico’, com explicações que remetem aos deuses, e do ‘metafísico’,
baseado sobre abstrações puras, chega, com efeito, o estágio ‘positivo’, que observa e
correlaciona os fatos concretos” (CIPRIANI, 2007, p. 41).
Pois bem, para Comte – e na sua esteira andam também Herbert Spencer (1820-1903)
e ninguém menos que Sir James George Frazer – a secularização concebida de forma
irreversível e linear, apresenta-se “como um fenômeno com o qual o campo da ciência se
autonomiza em relação às pesadas hipotecas que, durante séculos, lhe foram impostas pela
ortodoxia teológica” (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 207).
Ressaltamos, entretanto, que a passagem de interpretação teocêntrica para uma
racional da realidade “não se caracteriza em termos anti-religiosos”, uma vez que, “tanto para
102
Comte como para Spencer, a religião conserva uma função própria ineliminável no interior da
sociedade e corresponde a uma necessidade inata do homem, que o próprio positivismo não
pode nem ousa tirar”. Se Spencer refere-se a “uma ‘desantropomorfização’ da religião”,
Comte, por sua vez, “proporá a sua religião da humanidade entendida como uma resposta
racional e laica seja à necessidade inata que não consegue negar ou reprimir, seja à função
social integrativa que são reconhecidas como traços essenciais da religião”. É lugar comum
insistir que “tanto a confiança no processo evolutivo mecânico como a consideração funcional
da necessidade da religião parecem apoiar-se sobre preconceitos oitocentescos e sobre
ideologias que não encontram respaldo em dados de fato concretos” (GUIZZARDI; STELLA,
1990, p. 207).
Max Weber rompe com esta perspectiva de Comte e Spencer. Para ele há articulações
muito mais complexas – do que fez ver o positivismo –, envolvendo as transformações
enfrentadas pela religião e a racionalidade técnica desencadeada pela ciência e pelos novos
métodos de produção – dois pólos que confluem no sintagma desencantamento do mundo. Em
Weber, “o distanciamento e a emancipação do âmbito político-econômico de justificações de
tipo religioso se une também ao reconhecimento da influência que o sistema de valores de
origem religiosa pode comportar em confronto com a esfera econômica” (GUIZZARDI;
STELLA, 1990, p. 207).
Desse modo, a idéia de secularização descola-se da concepção evolucionista e
dissolve-se “num quadro de variáveis bem mais abertas ao jogo de influências recíprocas que
a mudança traz consigo”, redundando progressivamente “na perda de poder político concreto
por parte das organizações institucionais que administram o campo religioso (igrejas,
associações, seitas etc.”) (GUIZZARDI; STELLA, 1990, p. 207), dadas as novas exigências
de racionalidade por parte da própria religião ou da ciência moderna.
3.3.2 WEBER, A SECULARIZÃO E O DESENCANTAMENTO: A IRREVERSIBILIDADE
Estaríamos nós em tempos de pós-secularização? Descumprida a profecia, seria mais
honesto falarmos hoje em dessecularização?
O termo ‘pós-secular’
71
, que mimetiza e comenta os outrospós’ com os quais se
alinha – o pós-moderno, o pós-industrial, o pós-materialista, o pós-comunista, o
post-histoire etc. – identifica na pós-modernidade, entendida como crise globalizada
da modernidade, o momento ideal para a reformulação das teorias sociológicas da
71
Termo cunhado por Filippo Barbano, no prefácio que escreveu ao livro de Luigi Berzano, Differenziazione e
religione negli anni 80 (Cf. PIERUCCI, 1998, p. 44).
103
religião, uma vez que elas seriam majoritariamente tributárias do doutrinarismo da
teoria weberiana da secularização (PIERUCCI, 1998, p. 44).
Uma vez na pós-secularização, urge passarmos – advogam alguns – “a fazer uma
sociologia que reconheça a capacidade demonstrada pela religião de resistir ao ataque cerrado
da Modernidade”. Tal sociologia necessariamente há de ser “menos injusta com seu pulsante
objeto. Menos preconceituosa com o sagrado, posto que a crítica radical da religião seria
constitutiva da modernidade, não da pós” (PIERUCCI, 1998, p. 45).
Segundo Stefano Martelli
a condição ‘pós-moderna’ representa uma fase ulterior à do processo de
secularização, a fase na qual a própria experiência da secularização já está esgotada.
28 O ‘pós-moderno’ caracteriza-se pela ausência daquelas contraposições fortes, das
quais a tese da secularização tomava vigor. [...] Em outras palavras, a sociedade
‘pós-moderna’ seria uma sociedade, ‘pós-secular’ na qual a ênfase no trend
secularizante, finalmente deixada de lado, permite perceber numerosos fenômenos
de dessecularização (1995, p. 18).
Parece ser consenso que Sabino Samele Acquaviva (1929-), sociólogo da
Universidade de Pádua, já em 1961, “foi um dos primeiros a falar de crise do sagrado,
documentando seu andamento por meio dos dados – em queda – relativos à prática religiosa,
em nível internacional”. Sua obra mais conhecida, O eclipse do sagrado na civilização
industrial (1961) tinha como fio condutor a discussão acerca das “escassas possibilidades
futuras de sobrevivência da religião”; a secularização era um fato evidente e incontestável.
Com o passar dos anos, entretanto, esse mesmo autor, seguido por muitos outros, “foi
progressivamente atenuando os tons de suas afirmações até decretar, ele próprio, o Fim de
uma ideologia: a secularização (1989)” (CIPRIANI, 2007, p. 225); a partir desse momento,
se alguma coisa estava em crise era o “paradigma da secularização” e não a religião,
advogava.
Tal mudança de perspectiva estava relacionada ao crescimento de novos movimentos
religiosos, não só no primeiro mundo, como também nos países em desenvolvimento.
Segundo Pierucci, para os defensores da chamada teoria da dessecularização, “as religiões
têm se revitalizado, expandido e multiplicado consideravelmente. Visivelmente [...] É
fenômeno quase palpável em escala global o novo e heterogêneo ‘despertar religioso’ que
estaria a fermentar não só o Terceiro, mas também e principalmente o Primeiro Mundo”
(PIERUCCI, 1998, p. 47). Portanto, Weber estava errado, a profecia da secularização não se
cumpriu. A religião não morreu.
104
Todavia o mesmo autor adverte que, se estamos pensando a secularização tal como
Max Weber a concebeu, os que advogam a possibilidade de ‘pós-secularização ou de
dessecularização’, na verdade fazem da obra de Weber
uma leitura extremamente rala e tola, teleológica, que, digamos assim, ‘não combina
com Weber’ [...] Atribuem a Weber, à sua revelia, um prognóstico fechado de
definhamento da religião na sociedade moderna na razão direta do avanço linear da
racionalidade formal-instrumental, profecia que, entretanto, não se cumpriu. Como
se Weber não costumasse escarnecer das profecias acadêmicas (PIERUCCI, 1998,
p. 47).
Para Weber, a secularização e o desencantamento do mundo são processos
irreversíveis. E ademais, não significam a mesma coisa. Embora a diferença pareça mera
sutileza é bem mais do que isso. Secularização e desencantamento “não dizem a mesma coisa,
não recobrem a mesma coisa, não tratam da mesma coisa”. Como vimos anteriormente, “o
desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um
processo essencialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação
da magia como meio de salvação”, ao passo que a secularização “implica abandono, redução,
subtração do status religioso; [...] é defecção, uma perda para a religião e emancipação em
relação a ela”. Para Weber, a secularização “é resultado, conseqüência, de certa maneira um
ponto de chegada, uma conclusão lógica do processo histórico-religioso de desencantamento
do mundo” (PIERUCCI, 1998, p. 51).
Ainda citando Pierrucci, podemos afirmar que
o processo de racionalização é mais amplo e mais abrangente que o
desencantamento do mundo e, neste sentido, o abarca; o desencantamento do
mundo, por sua vez, tem a duração histórica mais longa, mais extensa que a
secularização e, neste sentido, a compreende. O importante a reter é que Weber
realmente distingue os diferentes processos. Enquanto o desencantamento do mundo
fala da ancestral luta da religião contra a magia, [...] a secularização, por sua vez,
nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como
manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in
temporalibus, seu disestahlishment [...], a depressão do seu valor cultural e sua
demissão/liberação da função de integração social (1998, p. 51).
Em suma, posto que o desencantamento do mundo é irreparável, e no seu sentido mais
abrangente, infinito; e que o processo de secularização, por sua vez, será cada vez mais,
irremediavelmente não passível de reversão por parte da religião; não há como sustentarmos a
idéia de que estaríamos vivendo tempos de pós-secularização ou de dessecularização, ainda
que isto não signifique morte ou supressão da religião.
3.4 AS POSSIBILIDADADES DA RELIGIÃO ANTE O DESENCANTAMENTO
105
A esta altura, quando caminhamos para a conclusão deste trabalho, forçosamente
temos que nos perguntar sobre as possibilidades da religião no mundo moderno desencantado
uma vez que, se por um lado, não é mais o centro do mundo, por outro, a religião demonstra-
se insuperável.
Reconhecemos as grandes dificuldades em se definir Modernidade, mas não temos
condições de nos aprofundarmos numa tal discussão. Sendo assim, assumimos aqui a seguinte
definição:
entende-se geralmente por modernidade um modo de civilização que se
desenvolveu na Europa ocidental a partir do século XVI, com o Humanismo
renascentista e a Reforma Protestante e encontrou seus fundamentos filosóficos e
políticos nos séculos XVII e XVIII, com o pensamento empirista, racionalista e
iluminista. Diz respeito ao modo como as elites culturais ilustradas passaram a
caracterizar a própria posição em relação a um longo período “obscurantista”
dominado pela tradição religiosa católica, num ambiente rural atrasado e ignorante,
e pejorativamente chamado de Idade dia (HIGUET, 2005, p. 9).
3.4.1 MODERNIDADE E RELIGIÃO: O DECLÍNIO
É inegável que a transição da uma sociedade tradicional para uma sociedade
amplamente urbano-industrial, além de dar novos contornos à vida e relações sociais, marca o
incremento de uma lógica moderna que destrói a cosmovisão até então reinante, a cosmovisão
religiosa.
Esta importante mudança de paradigma de compreensão da realidade está na base das
análises de Max Weber, segundo quem a sociedade moderna e industrial, regida agora pela
razão instrumental, gesta e fomenta um processo de crescente racionalização da ação. Isso
possibilita que, liberto da tutela religiosa, o ser humano, por meio da ampliação dos seus
conhecimentos e conseqüente apuração das técnicas, transforme o mundo num mecanismo
causal, controlável racionalmente, como vimos.
Nesse contexto, a religião declina, porquanto cede o seu papel central de explicação da
realidade à ciência. Note-se que não se trata de desaparecimento da religião, como diria
Marx, mas de declínio, como diria Weber.
Se o que está em jogo é a questão da religião na atualidade, Pierucci é nobre
representante da corrente que aponta o seu declínio. Para ele, o surgimento inconteste de
novos movimentos religiosos de todos os matizes, dentro e fora do Brasil, não representa o
retorno do sagrado ou revanche de Deus, mas ao contrário, declínio da religião. Como ele
constrói o seu argumento?
Primeiramente, Pierucci afirma que a extensão do suposto fenômeno de retorno do
sagrado, reduz-se à esfera privada, íntima, o que retira da religião a importância que tivera
106
enquanto matriz cultural totalizante. Segundo ele, a religião, as igrejas e os cultos perderam o
seu lugar, perderam a capacidade de exercer influência sobre qualquer âmbito de relevância
na vida social, limitando-se à esfera individual.
Para embasar a sua argumentação, Pierucci pergunta pela influência da religião na
arte, no cinema, na TV e na música. Não há movimentos religiosos expressivos em nenhum
destes segmentos. O próprio domingo, que outrora era reconhecido como o “dia do Senhor”
passa a ser um dia como outro qualquer da semana, inclusive no que se refere ao trabalho.
Não há como fugir; na sociedade moderna, a salvação vem pela ciência. É da ciência que se
espera ouvir a boa nova, porque só a ciência é capaz de publicar, replicar e universalizar os
seus resultados e procedimentos imediatamente. Ainda que alguém seja curado de câncer pelo
seu deus, para todos, a cura do câncer só virá via potência do saber científico (PIERUCCI,
1997, p. 107).
Num segundo momento, ao discutir a questão dos novos movimentos religiosos,
Pierucci reafirma que eles não negam ou invalidam o paradigma da secularização; ao
contrário, ratificam-no, desde que seja entendido como um processo não linear no curto prazo
marcado por momentos alternados de expansão e contração da oferta religiosa e como
processo linear e irreversível no longo prazo (PIERUCCI, 1997, p. 111). É desse modo que o
autor explica a coexistência entre a “explosão recente dos novos movimentos religiosos e o
prosseguir aprofundado do processo de secularização” (PIERUCCI, 1997, p. 112).
Servindo-se de Bryan Wilson, Pierucci sustenta que a secularização causa e explica a
fermentação religiosa, posto que o “número e a variedade de movimentos espirituais crescem
justamente sob o impacto da secularização, na medida em que ele significa ou implica
declínio geral do compromisso religioso. A secularização relativiza esses compromissos [...],
abrindo a possibilidade para que sejam passageiros”. A religião, outrora hegemônica detentora
do monopólio de atribuição de significado à vida, transforma-se em atitude pragmática. A
religião agora é item de consumo. No grande supermercado espiritual, o consumidor religioso
pode optar por qualquer experiência que faça sentido para si. (1997, p. 112).
É bom que se diga, entretanto, que
cada compra feita pelo consumidor religioso não tem conseqüências reais para as
outras instituições, para a estrutura do poder político, para as constraints e os
controles tecnológicos [...] não acrescentam nada a qualquer reintegração
prospectiva da sociedade e não contribuem com nada para a cultura pela qual a
sociedade poderia viver” (grifo original, PIERUCCI, 1997, p. 113).
107
Ainda que se advogue “a necessidade do sagrado, ou do sobrenatural, como uma
invariante da condição humana” – como é o nosso caso – não há como negar que existem
múltiplas formas e modos de satisfação dessa necessidade metafísica e que “a escolha das
formas é livre, dependendo ou da preferência de cada qual, ou da estrutura da oferta, ou da
oportunidade, ou de uma série de outras contingências mais prosaicas”. O que implica afirmar
que “a efervescência das novas formas de vida religiosa que estariam pululando no Primeiro
Mundo euro-norte-americano fica no plano privado-individual” (PIERUCCI, 1997, p. 113).
Ecoa aqui a proposição de Thomas Luckmann, para quem,
o aspecto fundamental da consciência moderna reside no processo de individuação
e, por conseguinte, de privatização da fé. Cada indivíduo seleciona os sentidos
últimos que deseja dar para a sua vida. Isso confere à experiência subjetiva uma
dimensão sagrada, porém, ao mesmo tempo, seculariza a vida pública, uma vez que
lhe subtrai a legitimação religiosa (In PARKER, 1995, p. 102).
Fato já previsto – se é que assim podemos nos expressar – e tratado explicitamente por
Max Weber em a Ciência como Vocação.
O destino do nosso tempo é caracterizado pela racionalização e pela
intelectualização e, acima de tudo, pelo "desencantamento do mundo”. Precisamente
os valores últimos e mais sublimes se retiraram da vida pública e se refugiaram ou
no reino transcendente da vida mística ou na fraternidade das relações humanas
diretas e pessoais. [...] Nada há de acidental no fato de que, hoje em dia, só nos
rculos mais pequenos e íntimos, nas situações humanas pessoais, em pianíssimo
[...], é que pulsa algo que corresponde ao pneuma profético que nos tempos
passados abrasava comunidades e as mantinha coesas (grifos originais, In:
PIERUCCI, 1997, p. 113).
À vista disso, convenhamos, não há retorno do sagrado, porque, a bem da verdade ele
nunca se foi. Segundo Parker – que não entende a secularização como sinônimo de declínio
da religião, pelo menos no âmbito da América Latina –, o que constatamos na sociedade
moderna é uma “transformação da mentalidade religiosa” (PARKER, 1995, p. 124), mas
talvez fosse mais acertado afirmar que assistimos a uma pluralização de oferta religiosa e uma
conseqüente privatização da experiência religiosa, fatores sem os quais um Estado laico não
subsiste. Assim, no sentido de que seu espaço, sua esfera abrangente é cada vez mais estreita,
a religião inexoravelmente declina.
3.4.2 MODERNIDADE E RELIGIÃO: O PARADOXO
Afirmar que a religião declina na modernidade é apenas um lado da moeda. Porquanto
a modernidade é por outra face o momento em que a religião persiste também de forma
108
inexorável. Seu espaço na subjetividade cresce na mesma proporção em que declina na esfera
pública. A perda de influência não implica perda no volume da oferta e da demanda
religiosas. Como compreender esse paradoxo? Além disso, se por um lado, havemos de
considerar que a modernidade estilhaça todas as cristalizações históricas viabilizadas de forma
heterônoma, inclusive as instituições religiosas e as formas de crer; por outro, dada a
persistência da religião, precisamos admitir que ela permite uma decomposição e
recomposição ilimitada das crenças. Quais seriam então os contornos da experiência religiosa
contemporânea? Tentaremos responder as estas duas questões baseados primordialmente nas
análises de Danièle Hervieu-Leger (1947-)
72
.
3.4.2.1 A configuração do paradoxo
Parece consenso afirmar que o cerne do “paradoxo das sociedades ocidentais reside no
fato de estas terem ido beber, em parte, as suas representações do mundo e os seus princípios
de ação ao seu próprio húmus religioso” (HERVIEU-LEGER, 2005, p. 39). Isto é, o processo
de autonomia da sociedade e do indivíduo não pode negar sua origem, ainda que apenas em
parte, mas numa parte significativa, na cosmovisão judaica e cristã. Talvez por isso mesmo, a
modernidade desencantada consiga combinar de forma complexa
a perda de influência dos grandes sistemas religiosos sobre uma sociedade que rei-
vindica a sua plena capacidade de orientar o seu destino e a recomposição, sob uma
forma nova, das representações religiosas que permitiram a esta sociedade pensar-se
a si própria como autônoma (HERVIEU-LEGER, 2005, p. 42).
Desenvolvendo a questão referente a esse paradoxo, podemos fazer duas proposições.
A primeira concerne à dialética da autonomia e heteronomia. Ao proclamar que “a história
humana é a dos homens que a fazem, afirmando que o mundo dos homens é um mundo a
fazer, e a fazer por eles apenas”, a modernidade rechaçou a heteronomia medieval; na verdade
“rompeu de maneira radical com todas as representações de um desígnio divino que se
realizasse de modo inelutável na história”. A partir do Iluminismo e do Positivismo
autonomia significa literalmente “emancipação relativamente à religião. Os países anglo-
saxônicos viveram esta emancipação através da privatização da religião, formalmente
72
A autora é presidente e diretora da École des Hautes Études en Sciences Sociales, dirige a revista Archives de
Sciences Sociales des Religions e é autora de inúmeras obras, entre as quais, Vers un nouveau christianisme?,
Introduction à la sociologie du christianisme occidental, La religion pour mémoire e Qu'est-ce que mourir? A
obra a que nos referimos é: HERVIEU-LEGER, Daniele. O peregrino e o convertido: a religião em movimento.
Lisboa-Portugal: Gradativa, 2005.
109
separada do que está em jogo na vida pública” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 42). Religião é
sinônimo de obscurantismo e de rejeição à democracia política.
Desse modo, pode-se afirmar que “a modernidade das sociedades ocidentais, e
precisamente a das sociedades européias, construiu-se historicamente sobre os escombros da
religião”. Entretanto a forma como a modernidade concebeu a história não se desgrudou
totalmente “da visão religiosa de que ela se destacou para conquistar a sua autonomia”.
Segundo Daniele Hervieu-Legér, pelo menos em um contexto europeu, a Modernidade
“pensou durante muito tempo a história ‘secular’ com base no modelo do advento do Reino”,
ou seja, no horizonte de um progresso científico e técnico cada vez mais avançado, revive-se
o mito do paraíso terrestre. Disso dão testemunho “as representações liberais do
desenvolvimento econômico ilimitado e a concepção marxista da sociedade comunista do
futuro”. Não desconsideramos que se trata de visões diferentes e até antagônicas; que
prometem “paraísos” diferentes – prosperidade econômica e a harmonia social,
respectivamente – mas sim que são fruto de um mesmo substrato, a saber, as “representações
judaicas e cristãs do fim dos tempos” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 43).
Acerca dessa questão, Jung Mo Sung faz o seguinte comentário:
as sociedades modernas não romperam totalmente com a visãotico-religiosa das
sociedades medievais. Na Idade Média, o paraíso ou a utopia era objeto de uma
esperança escatológica. Ele se localizava após a morte e o fim da história, e era fruto
da intervenção divina. Na modernidade esta utopia (paraíso) foi deslocada da
transcendência pós-morte para o futuro, no interior da história humana. Agora a
utopia não é mais vista como fruto da intervenção divina pós-morte, mas sim fruto
do progresso tecnológico. É o chamado “mito do progresso”. Com esse mito,
desaparece a noção do limite para ações humanas e surge a idéia de que “querer é
poder” (MO SUNG, 1997, p. 23).
Não seria exagero afirmar, então, que “a visão religiosa do Reino de Deus a vir [...] e
aquela, moderna, de história, estabelecem relações que marcam tanto a continuidade quanto a
ruptura da modernidade com o universo judaico e cristão de que ela sai” (HERVIEU-LEGÉR,
2005, p. 43). Essa relação dialética entre autonomia e heteronomia assinala uma face do
paradoxo religioso da modernidade.
A segunda proposição se refere à relação dialética do avanço científico como
eliminação das incertezas por um lado e a geração de incertezas, por outro. O século XX,
“traumatizado pelas guerras, catástrofes econômicas e experiências totalitárias” colocou em
xeque a confiança absoluta na razão científica. Nesse sentido, ou por essa via unilateral,
“ninguém mais acredita em progresso” (TILLICH, 1992, p. 239). Os horrores e catástrofes
podem retornar. Contudo, ainda que a visão grandiosa da história e do progresso tenha se
110
pulverizado no decurso de um século XX, é inegável que “os valores fundadores da moderni-
dade – a razão, o conhecimento, o progresso, etc. permanecem. Eles extraem a sua capacidade
mobilizadora do fato de não se poder, precisamente, consignar os seus limites”. Sendo assim,
a Modernidade, em sua marcha de dominação racional do mundo, continua prometendo a
eliminação das incertezas. Promessa que “não pode ser, do ponto de vista da própria
modernidade, senão um horizonte que recua sempre, [...] isto é, cada nova descoberta faz
surgir outras tantas questões que apelam a um esforço redobrado de conhecimento”; portanto
quanto mais gira a roda-viva do progresso científico, tanto mais se “agudiza a sua ambição de
dominar de modo perfeito a natureza e as incertezas inerentes à vida humana” (HERVIEU-
LEGÉR, 2005, p. 43).
Justamente nisso está a outra face o paradoxo da modernidade, ou seja,
à medida que os conhecimentos e as técnicas se desenvolvem a um ritmo
acelerados. É necessário produzir sempre mais, conhecer sempre mais, comunicar
sempre mais e sempre mais depressa. Esta lógica de antecipação cria, no coração de
uma cultura moderna dominada pela racionalidade científica e técnica, um espaço
sempre renovado para produções imaginárias que esta racionalidade decompõe em
permanência[...] A oposição entre as contradições do presente e o horizonte de uma
realização futura cria, no próprio coração da modernidade, um espaço de
expectativas, no qual se desenvolvem novas formas de religiosidade que permitem
ultrapassar essa teno: novas representações do “sagrado” ou apropriões
renovadas das tradições das religiões históricas (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 44).
Dito de outra forma, a própria utopia motriz da modernidade produz, como um tiro
que sai pela culatra, um universo de incertezas e de exclusão econômico-social.
As incertezas podem ser de cunho epistemológico, por exemplo. Segundo Mardones,
a história do pensamento moderno é a história das sucessivas desfundamentações e
da descoberta dos condicionamentos do próprio sujeito do conhecimento (Kant), da
realidade social à qual o sujeito e o objeto pertencem (Marx), do situacionismo e
perspectivismo de nosso conhecimento (Nietzsche), dos obscuros condicionamentos
do outro da razão (Freud) e da própria linguagem que utilizamos (Wittgenstein). A
filosofia da ciência, desde Charles S. Peirce até K. Popper, diz-nos que não
podemos estar absolutamente seguros de nada. Sempre nos movemos em um
conhecimento falível e conjectural (2006, p. 138-139).
Para Tillich, o efeito dessa incerteza é justamente a busca por segurança, por
fundamentação última que dê sentido à vida, o que só pode advir da transcendência (1992, p.
239).
Retenhamos então que a dinâmica da marcha da modernidade implica e suscita
continuamente a sua própria crise. A eliminação das incertezas em última instância gera
111
incertezas. E incerteza é terreno fértil para a religião, na medida em que arroga possuir o
fundamento último senão mais da sociedade, pelo menos do indivíduo.
3.4.2.2 A reconfiguração da experiência religiosa
A religião persiste na modernidade, mas sua persistência não é sinônimo de
imutabilidade. A sua continuidade é assegurada na e pela mudança. Contrapondo-se às
grandes sínteses medievais, a religião na modernidade é fluida. Religião agora é crença em
movimento. É crença decomposta e recomposta continuamente. Para nos aproximarmos da
religião na modernidade, seguiremos o viés da experiência religiosa, ou seja, a forma como
ela é percebida e/ou recomposta pelo indivíduo. Isso é o que discutiremos nas três partes
seguintes.
a) A característica maior
Apesar das diferenças culturais, os enraizamentos históricos e as diversificações
confessionais, é possível percebermos certos traços de homogeneidade na paisagem religiosa
da modernidade. Para isso, entretanto, segundo Hervieu-Léger, faz-se necessário observar tal
paisagem a partir de uma tendência geral ao individualismo e ao subjetivismo em relação às
crenças (2005, p. 47) que, ao nosso ver, são fases simultâneas de um mesmo processo, a
saber, a afirmação da autonomia do sujeito. Paralelamente a esse processo estaria a
racionalidade (Cf. HIGUET, 2005, p. 9s), para formar com ele os dois lados de uma mesma
moeda, a característica maior da modernidade. Não obstante esse reconhecimento, não
trataremos de ambas as faces da moeda, ou seja, trataremos a seguir do individualismo e do
subjetivismo.
Tratemos primeiro do individualismo. Anteriormente afirmamos que o individualismo
enquanto processo ganha peso na e a partir da Reforma que propõe e/ou possibilita a noção de
indivíduo-livre; contudo não devemos pensar que “o individualismo religioso se impõe, como
uma realidade absolutamente nova, com a modernidade”. Para Danièle Hervieu-Legér o
individualismo religioso é bem anterior à Reforma e à modernidade.
Na verdade, pode falar-se de individualização do religioso desde que intervém a
diferenciação entre uma religião ritual, que requer unicamente dos fiéis a
observação minuciosa das práticas prescritas, e uma religião da interioridade que
implica, na modalidade mística ou ética, a apropriação pessoal das verdades
religiosas por cada crente. (grifos nossos, 2005, p. 154).
112
Por esta perspectiva “a história da mística cristã pode ser inteiramente lida como uma
história da construção do sujeito religioso”. História esta, como se sabe, absolutamente
paradoxal, uma vez que a procura da união com Deus, implica, por um lado, um
despojamento radical de tudo que é mundano e das representações em que se inscreve a
singularidade do indivíduo; e, por outro, ao crente que percorre o caminho da mística, abre-se
uma via de acesso a si mesmo. E, desse modo, a via mística participa do individualismo
religioso.
A via ética de afirmação do indivíduo se dá a partir da “conformação racional e
metódica da vida”, tendo por base uma cosmovisão religiosa.
Como já sinalizamos anteriormente, foi o calvinismo puritano “que levou mais longe
esta lógica ética da individualização religiosa, desenvolvendo a idéia de que cada um deve
encontrar, em todos os aspectos da sua vida quotidiana no mundo e, particularmente, na sua
vida profissional, a confirmação de que está pessoalmente salvo” (HERVIEU-LEGÉR, 2005,
p. 155). Eliminadas as mediações de caráter mágico-sacramental, o crente, de maneira
radicalmente individual, defronta com a questão da sua própria salvação.
De que maneira esse individualismo religioso, de cunho místico ou ético, relaciona-se
com o individualismo moderno?
Hervieu-Legér não contesta a análise weberiana, segundo a qual se verificam
afinidades eletivas entre o individualismo intramundano puritano e o espírito do capitalismo,
porém considera
abusivo deduzir daí que a trajetória cristã da individualização religiosa, que
encontra a sua forma mais radical em Calvino, antecipa diretamente a emergência
do individualismo moderno. Estabelecer uma continuidade sem falha entre o indi-
vidualismo religioso de gênero místico ou ético e a concepção moderna do
indiduo é tão absurdo como o ponto de vista inverso que consiste em fazer do
individualismo religioso uma conquista recente da modernidade (2005, p. 155).
Diferentemente do individualismo moderno que se estabelece com base na autonomia
do sujeito, o individualismo religioso além de implicar um despojamento de si, “desvaloriza
absolutamente as realidades mundanas que fazem obstáculo a essa união com o divino”. Esta
dualidade não aponta apenas na direção da “concepção extramundana da mística ou da ética”
católica. Mesmo concepção intramundana da ética protestante, ela está presente (HERVIEU-
LEGÉR, 2005, p. 156). É o que pensa também Ernst Troeltsch. “Não é possível atribuir a
paternidade do individualismo moderno ao protestantismo, uma vez que o individualismo
113
religioso que propõe nada mais é que um prolongamento da religião mística e laica da baixa
Idade Média”, afirma (1951, p. 101).
Troeltsch pontua que a “valorização luterana do trabalho no mundo permitiu o
desenvolvimento de uma ética religiosa funcional em relação ao desenvolvimento do
capitalismo”. Mas adverte que, em contrapartida, “ela própria, [entra] em contradição com a
ética moderna que reconhece e magnifica a autonomia das realidades mundanas. Lutero situa-
se ainda na perspectiva neoplatônica de uma desvalorização das realidades mundanas” (In:
(HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 157).
Para Troeltsch, não é possível concordar que, “desenvolvendo a sua doutrina da
predestinação e levando ao seu termo a lógica da sola gratia, Calvino teria lançado o
fermento do processo moderno de individualização”. Porque para Calvino e para o
puritanismo o eleito não é valorizado enquanto tal. Se o eleito “se empenha de modo intenso
nas tarefas mundanas, ele o faz exclusivamente para a glória de Deus e porque este mundo é,
ele mesmo, querido por Deus. Mas esta atividade é, enquanto tal, insignificante”. Na medida
em que o “individualismo calvinista nega a autonomia do indivíduo, permanece em
contradição com o individualismo racionalista” e positivo oriundo do Iluminismo (In:
HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 157).
Enfim, no entendimento de Troeltsch, tanto a espiritualidade luterana quanto a
calvinista permanecem inscritas, no essencial, “numa lógica de afirmação negativa do
indivíduo, característica do individualismo religioso pré-moderno” (In: HERVIEU-LEGÉR,
2005, p. 157).
Se não podemos afirmar que o individualismo religioso origina o mundo moderno, tão
fortemente marcado pela autonomia do indivíduo, da mesma forma não é possível sustentar
que a Modernidade deu origem ao individualismo religioso. Sendo assim, surge como opção
viável sustentar que o que caracteriza “o cenário religioso contemporâneo não é o
individualismo religioso enquanto tal; é a absorção deste último no individualismo moderno”
(HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 157).
Tal ingresso faz desencadear um processo de absoluta desregulação da instituição
religiosa que
cessa de fornecer aos indivíduos e aos grupos o conjunto das referências, das
normas, dos valores e dos símbolos que lhes permitem dar um sentido à sua vida e
às suas experiências. Na modernidade, a tradão religiosa deixa de constituir um
código de sentido que se impõe a todos (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 38).
114
Imerso numa proliferação de crenças jamais vista, constituindo-se no mais decisivo
indício daquela desregulação, está o indivíduo absolutamente livre para recompor o seu
próprio sistema de crença, independentemente da pertença ou não pertença a uma instituição e
ou sistema religioso (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 157). O indivíduo, doravante, é o centro e
a religião, questão de livre escolha. Isso nos leva à questão da subjetivação referida há pouco.
No uso de sua liberdade, o indivíduo subjetiva uma bricolagem de crenças, ou seja,
retém
cada um as práticas e as crenças que lhe convêm. As significações dadas pelos
interessados a estas crenças e a estas práticas afastam-se frequentemente da sua
definição doutrinal. Elas são selecionadas, manejadas e muitas vezes combinadas
com temas tomados de empréstimo a outras religiões ou a correntes de pensamento
de gênero místico ou esotérico (grifos nossos, HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 48).
A religião declina, mas a crença não desaparece. Multiplica-se. Pulveriza-se.
Transmuta-se de forma não homogênea e não linear, porquanto as competências para a
bricolagem das crenças são variadas. “Os indivíduos não dispõem todos dos mesmos meios e
dos mesmos recursos culturais para produzirem a sua própria narrativa crente. As moldagens
diferenciam-se segundo as classes, os meios sociais, os sexos, as gerações”. Os teólogos, por
exemplo, tendem “à metaforização e à intelectualização das crenças tradicionais, [... com o]
fim de restaurar a credibilidade cultural da sua mensagem num ambiente secular”. No
caminho oposto da redução da linguagem simbólica que tal atitude implica, estão “em
particular, mas não exclusivamente, nos indivíduos provenientes de camadas sociais
econômica e culturalmente desfavorecidas”
73
(HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 52).
Radicada em contexto latino-americano, a análise de Bastian parece confirmar as
hipóteses das diferentes competências para a bricolagem. Segundo ele, na América Latina,
longe de romper com o imaginário popular, a religião incorpora práticas e crenças diversas e
até antagônicas do ponto vista histórico e doutrinal. Tal diversificação nas referências
simbólicas adotadas, sobretudo pelos movimentos neopentecostais, possibilitam maior
trânsito religioso, mas também, ainda que de forma passageira, possibilita a aglutinação e
confere certa identidade aos “miseráveis”. Neste sentido, a adesão religiosa constitui-se um
poderoso protesto contra a miséria. Para Bastian, os novos movimentos religiosos podem
constituir-se uma maneira pela qual o pobre elabora alternativas para a sua situação (1997, p.
147). Não temos como discutir esta hipótese aqui, mas podemos asseverar que ela não foge ao
73
Confira também: BASTIAN, Jean-Pierre. La mutación religiosa de América Latina: para una sociología del
cambio social en la modernidad peririca. México-DF: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 80-81.
115
espírito da Modernidade que, ao avançar, gera excluídos que, por sua vez, enxergam na
religião a possibilidade de re-inclusão
74
.
b) A validação do crer
Visto que há um descompasso entre o invididualismo e a subjetivação das crenças, por
um lado, e a regulação institucional da crença, por outro, como se valida o crer na
modernidade desencantada? Estariam as identidades confessionais fadadas ao
desaparecimento?
Na verdade, a disseminão das crenças coexiste com a preservação destas
identidades, pelo menos até um certo ponto. Parece mesmo que a expansão do
pluralismo e do relativismo produz, em sentido inverso, o reforço das aspirações
comunitárias, bem como uma certa reativão das identificações confessionais. Mas
estas últimas deixaram de coincidir necessariamente com identificações religiosas
claramente assumidas pelos indivíduos. Tal não implica que não exista qualquer
laço, por exemplo, entre a crença cristã e pertenças institucionais, pticas rituais,
estilos de vida familiar, lógicas de aliança matrimonial, comportamentos sexuais,
escolhas políticas, etc. (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 58),
mas que a identidade confessional subjetivada, isto é, os laços estabelecidos entre o indivíduo
e a confissão religiosa configuram-se agora, a partir de uma busca pessoal pela verdade, por
seleção e combinação de crença que não necessariamente coincidem com o evento fundador
daquela identidade. Assim, as confissões mais rígidas tendem ao fundamentalismo e/ou à
irrelevância absoluta. E isso porque na modernidade é possível crer sem pertencer. Justamente
porque na Modernidade os processos que descrevemos anteriormente – individualização e
subjetivação – modificaram o regime de validação do crer.
Em primeiro lugar, observemos o regime de validação institucional do crer. Comum
nas grandes religiões, este regime caracteriza-se por uma organização hierárquica do poder,
de forma tal que instâncias e autoridades religiosas reconhecidas pela organização e pelos
fiéis “definem as regras que são, para os indivíduos, as referências estáveis da conformidade
crente e praticante” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 176), ou seja, o crer faz sentido porque
corresponde àquilo que a confissão a que se pertence, define como um crer legítimo.
Esse regime, que nasce em virtude da necessidade que o indivíduo sente de encontrar
no “outro” – neste caso a instituição – ecos que ajudem a validade a sua experiência, funciona
74
Não estaria aí a razão porque os pentecostais e neopentecostais estejam mais avançados em relação aos
cristãos históricos, no que se refere ao uso e detenção dos meios de comunicação? A resposta a está fora do
escopo desta pesquisa (Cf. BASTIAN, 1997, p. 150).
116
hoje de forma precária. Isso o obriga a acolher uma diversidade de pequenos grupos dentro de
sua estrutura.
Quando a instituição não possui elasticidade suficiente para abarcar até mesmo os
grupos que reivindicam uma revisão da identidade confessional, rompe-se com o regime de
validação institucional e adere-se a um regime de validação comunitária do crer. Neste
regime, os indivíduos partilham suas certezas na medida em que organizam de forma comum
a vida e a ação no mundo. O crer é validado pela “intensidade do compromisso individual e
coletivo e pela coesão comunitária [...]”.
Nestes dois regimes apresentados pressupõe-se não só a existência do grupo como a
ligação contratual com ele e a perseguição de um propósito, geralmente identificado com o
serviço ou a conversão do outro. O mesmo não ocorre no regime de validação mútua do crer.
Este regime pode ou não pressupor um grupo. “Fundado no testemunho pessoal, na troca das
experiências individuais e, eventualmente, na procura de vias do seu aprofundamento
coletivo”, esse regime pode ser o caminho escolhido pela corrente místico-estórica ou mesmo
por pessoas desenquadradas no interior de uma da confissão com a qual não desejam romper.
A autenticidade do crer é buscada, por esta perspectiva, no outro, dentro ou fora da
instituição. É bom que se diga que a validade comunitária do crer também pode acontecer no
interior de uma confissão. A diferença entre aquele regime e este é a necessidade da
comunidade. Aquele a pressupõe; este, não necessariamente.
Um regime que se encontra na última fronteira é o de auto-validação do crer. Nesse
caso, o indivíduo “só reconhece a si mesmo a capacidade de atestar a verdade daquilo em que
acredita” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 173). O limite desse regime é justamente aquela
dimensão em que a experiência validada pessoalmente, necessita de validação externa, que
por sua vez, num eterno retorno, é rejeitada. Disso decorre a proliferação cada vez maior de
comunidades, o intenso trânsito religioso e a pulverização das crenças.
Resumindo, quais são as instâncias e os critérios de validação em cada regime? No
regime de validação institucional do crer, a instância que define a validação é a instituição,
enquanto que o critério de validação é a conformidade. Já no regime de validação
comunitária, a instância é o grupo e o critério, a coerência. No regime da validação mútua,
temos o outro e a autenticidade como instância e como critério, respectivamente. E por fim,
no regime de auto-validação do crer, temos como instância o próprio indivíduo e, como
critério, a certeza subjetiva (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 179).
c) A religião em movimento
117
Em tempos de pulverização das crenças, de mobilidade de pertenças, de fluidificação
dos grandes sistemas confessionais e de instabilidade quanto à validade das experiências, a
descrição da experiência religiosa apresenta-se como um grande desafio. Sobretudo porque a
figura do praticante – como representante da regulação institucional, da estabilidade da
identidade confessional e da conformidade entre crença e pertença – permanece como
“aferidora da participação religiosa [e como] o prisma através do qual [as instituições]
identificam do modo mais espontâneo o núcleo dos seus fiéis”. Como será possível descrever
a experiência religiosa nesta modernidade desencantada em que “a diversificação das crenças,
a sua autonomia crescente em relação ao corpo doutrinal gerido pelas instituições e fosso
entre crença e pertença” se alarga cada vez mais? Em que é possível crer sem pertencer,
pertencer sem se identificar? Segundo Danièle Hervieu-Legér a solução é captar a religião a
partir de sua tendência maior: o movimento (2005, p. 91-97). Nesse contexto as figuras do
peregrino
75
e do convertido parecem mais apropriadas que a do praticante.
Se o que temos é a religião em movimento, o peregrino surge como uma figura ideal
para apreendermos a experiência religiosa na modernidade, e isso por dois motivos. Primeiro
porque ele aponta “de maneira metafórica, para a fluidez dos percursos espirituais individuais,
percursos que podem, em certas condições, organizar-se como trajetórias de identificação
religiosa”. O segundo motivo deve-se ao fato de que “ele corresponde a uma forma de
sociabilidade religiosa em plena expansão que se estabelece ela própria sob o signo da
mobilidade e da associação temporária” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 99), isto é, a figura do
peregrino representa muito bem a auto-validação do crer e fluidez dos laços de pertença.
Na medida em que experiência religiosa na modernidade caracteriza-se “pelo
imperativo que se impõe ao indivíduo de produzir ele mesmo as significações da sua própria
existência através da diversidade das situações que experimenta, em função dos seus próprios
recursos e disposições”, ele deve, por si mesmo, construir o sentido de sua narrativa vital.
Ora a ‘condição peregrina’ define-se essencialmente a partir deste trabalho de
construção biográfica [...] efetuado pelo próprio indivíduo. [...] Há formação de uma
identidade religiosa quando a construção biográfica subjetiva se encontra com a
objetividade de uma linhagem crente, encarnada numa comunidade na qual o
indiduo se reconhece (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 100).
Não custa reenfatizar que a assertiva acima não implica “adesão completa a uma
doutrina religiosa, nem a incorporação efetiva numa comunidade, sob o controle de uma
75
É bom salientar que a figura do peregrino aqui é um tipo ideal, porquanto na história cristão tanto o peregrino
como a prática das peregrinações foram institucionalizadas. A esse respeito confira: LE GOFF, Jacques. As
118
instituição que fixe as condições da pertença”, visto que a experiência religiosa captada a
partir da figura do peregrino é caracterizada, antes de mais nada, “pela fluidez dos conteúdos
de crença que elabora e, ao mesmo tempo, pela incerteza das pertenças comunitárias a que
pode dar lugar” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 100).
Na verdade, a figura do peregrino e do convertido devem ser tomadas em conjunto,
pois enquanto aquela descreve a mobilidade das crenças e das pertenças, esta se presta a
ilustrar os “processos de formação das identidades nesse contexto de mobilidade”
(HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 119). Não se pode negar, porém, que a figura do convertido
surge como um paradoxo, pois como é possível falar de conversão num contexto mobilidade?
O paradoxo é só aparente. É quase insuportável o peso da auto-validação do crer. Por isso sem
querer abrir mão da possibilidade de escolher sempre, o indivíduo peregrina sempre em busca
de uma formação objetiva para a sua experiência subjetiva e única. Isso necessariamente
implica conversão. O movimento é contínuo, portanto; mas não paradoxal
76
.
“Numa sociedade onde a religião se tornou um assunto privado e uma matéria de
opção, a conversão toma antes de tudo a dimensão de uma escolha individual, na qual se
exprime ao mais alto nível a autonomia do sujeito crente” (HERVIEU-LEGÉR, 2005, p. 121).
A figura do convertido pode ser apresentada de forma tridimensional.
Primeiramente, ela pode se apresentar na figura do indivíduo que muda de religião
“seja porque rejeita expressamente uma identidade religiosa herdada ou assumida para a
substituir por uma nova, seja porque abandona uma identidade religiosa imposta, mas à qual
nunca tinha aderido, em proveito de uma nova fé”. Retenhamos que à possibilidade de
escolha se sobrepõe o laço de fidelidade a uma tradição religiosa específica.
A conversão pode representar também “o indivíduo que, nunca tendo pertencido a
qualquer tradição religiosa, descobre, após um caminho pessoal mais ou menos longo, aquela
em que se reconhece e à qual decide finalmente agregar-se”. Este tipo de conversão de
pessoas identificadas como ‘sem religião’ tende “a multiplicar-se em sociedades secularizadas
onde a transmissão religiosa familiar é [...] consideravelmente precária”.
A terceira possibilidade de conversão consiste na re-filiação a partir do interior
representada por aquele indivíduo “que descobre ou redescobre uma identidade religiosa que
raízes medievais da Europa. Petrópolis-RJ: Vozes, 2007.
76
Certamente outros fatores contribuem para a conversão na modernidade, tais como: anonimato urbano,
esfacelamento das comunidades naturais de pertença, despersonalização das relações sociais, etc. (HERVIEU-
LEGÉR, 2005, p. 120). Além disso, além das causas religiosas, há também as causas econômicas e políticas. (Cf.
BASTIAN, Jean-Pierre. La mutación religiosa de América Latina: para una sociología del cambio social en la
modernidad periférica. México-DF: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 88-96. Entretanto, não temos como
discutir a contento estas questões aqui.
119
até aí permaneceu formal, ou vivida [...] de maneira puramente conformista” (HERVIEU-
LEGÉR, 2005, p. 121). Tanto a renovação carismática católica quanto o neopentecostalismo
representam bem essa dinâmica de refiliação, tão fortemente marcada por uma intensificação
da experiência religiosa.
3.4.3 MODERNIDADE E PROTESTANTISMO: A ADEQUAÇÃO
Vimos, então, que a religião declina e expande-se na Modernidade. Declina no sentido
de não ser mais capaz de influenciar e/ou determinar amplamente os valores sociais, mas
expande-se no que se refere à diversificação de propostas para saciar a necessidade de
transcendência inerente à condição humana.
Foi dito também que a religião na Modernidade é caracterizada por um duplo e
paralelo processo de individualização e de subjetivação das crenças que tem como resultado,
por um lado, a desregulação institucional do crer e, por outro, a auto-validação do crer.
Religião é inexoravelmente opção.
A combinação desses fatores faz a religião experimentar uma fluidez e uma dinâmica
incomum, pelo menos para a história geral do cristianismo ocidental. Religião é movimento.
Nesse contexto emergem as figuras do peregrino e do convertido.
Quando temos em vista as possibilidades da religião na Modernidade desencantada há
uma religião que se sinta mais confortável neste contexto? Se há, quais são os seus contornos?
Para nós, o protestantismo é essa religião. A discussão a seguir é uma tentativa de apresentar
os contornos mais gerais do protestantismo que, a nosso ver, o justificam-no como a religião
desencantada, por excelência, e assim, mais adequada à Modernidade desencantada. Para
Weber, Tillich e Troeltsch “o protestantismo é a religião da modernidade” (HIGUET, 2005, p.
19).
3.4.3.1 A essência do protestantismo
A julgar que o protestantismo incorpora em sua carga genética
um vírus potente de fragmentação, de pulverização eclesial, uma determinação
filogenética insupevel que tende sempre aos ‘particulares’ em detrimento dos
‘universais’, [...e, portanto,] consti sua identidade na base de um ethos atomizado
como a quintessência do processo de individuação (CAVALCANTE, 2007, p. 132),
à primeira vista pode parecer grande pretensão captar a sua essência. O núcleo duro do
protestantismo não é facilmente percebido, visto que é mais profundo “do que aparente”; a
120
essência do protestantismo “diz respeito mais à sua fé do que às suas instituições e estruturas.
Ela não salta aos olhos. Para ser bem detectada, exige um esforço que leva a conhecer e a
compreender o espírito do protestantismo” (GAGNEBIN, 1997, p. 1997, p. 64). O
fundamento protestante está incrustado – com todas as suas implicações que não tardaremos a
discutir – no seu “princípio material da salvação pela graça de Deus e pelo princípio formal da
Bíblia recebida como a única regra da fé” (GAGNEBIN, 1997, p. 1997, p. 64). Se o princípio
material pressupõe a fé, o outro dá origem à Igreja que, por sua vez, reúne os salvos. Sendo
assim, em renúncia aos universais, afirma o particular, o indivudual. O protestantismo afirma
sua essência no trinômio Fé-Bíblia-Igreja.
a) A Fé
A comunidade cristã primitiva reunida em torno da realidade do Cristo ressurreto
identificava a capacidade de manter-se coesa a esta e por esta realidade com a fé. Ao romper
as fronteiras Palestina e como fruto do embate com outras “formas de fé” surgiram os
credos
77
apostólicos ou artigos de fé. Dessa forma, além da fé no Cristo ressurreto, exigiu-se
por parte dos cristãos a crença nos artigos de fé. “No primeiro caso, pressupunha-se fé em
Deus que teria ressuscitado o Cristo dentre os mortos. No segundo caso levava-se em conta o
que se poderia chamar de conteúdo intelectual da fé” (MARASCHIN, s/d, p. 31). Neste
sentido a fé está ligada a eventos históricos e a crença a eventos do imaginário. A fé se liga à
história. A crença se ancora nas formulações conceituais.
À medida que a história avança e a fé se distancia do seu evento instaurador, as
formulações doutrinárias (crenças) se tornaram cada vez mais importantes e precisas por meio
do magistério da Igreja, que preserva e interpreta um “texto” (Bíblia). Não é um texto
qualquer; é o texto que substituiu o evento da Ressurreição. O problema surge quando
levamos em conta que o texto permanece enquanto a Igreja muda (MARASCHIN, s/d, p. 37).
A conseqüência desse processo é que no fim da Idade Média só tem fé e salvação quem se
submete às interpretações da hierarquia eclesiástica, por mais bizarras que sejam, e/ou quem
produz obras meritórias, tais como: mortificação do corpo, vida monástica, pagamento de
indulgências, etc..
É nesse contexto que emerge a figura de Martinho Lutero que interessado em discutir
a relação de Deus com o ser humano –, a partir de uma experiência pessoal – rompe com
77
Resumo das principais afirmações de fé de uma dada religião.
121
todos os canais de mediação propostos pela Igreja
78
, ao proclamar a absoluta transcendência
de Deus contraposta à miséria da condição humana; abismo transposto por ato radical de fé,
fiado apenas no testemunho da Bíblia.
A salvação não é, entretanto, um ato da fé. É um ato da graça, apropriado na
subjetivada por meio da fé. O movimento inicial é de Deus.
Gagnebin afirma que
a fé é sempre e à partida a graça proveniente de Deus reconhecida na sua
precedência absoluta [...] Com efeito, ela está inteiramente condicionada pela Sua
graça. É ela que restabelece entre Deus e o ser humano uma relação autêntica vivida
na fé. O pecado, que nos separa de Deus, não é então subvertido pelo bem que faço,
mas pela graça dada. O contrário do pecado já não é o bem, mas a graça ou a fé bem
entendida (GAGNEBIN, 1997, p. 23).
Neste sentido, a expressão ‘ter fé’ é no mínimo suspeita, se com ela se “supõe que a fé
é o nosso bem próprio e exclusivo. Ora, em certo sentido, a fé é uma realidade que jamais se
pode verdadeiramente ter ou possuir”. Considerar a possibilidade de possuir a fé já é, de
partida, uma atitude de negação da fé, porquanto significa a recusa em inscrevê-la “numa
relação cujo primeiro movimento não depende de nós e não nos pertence” (GAGNEBIN,
1997, p. 23); é um ato “selvagem” da graça.
A fé é irredutível; “jamais deve confundir-se com uma opinião, uma emoção e um
sentimento humano, nem mesmo com um conjunto de crenças que conteria, por exemplo,
uma confissão de fé”. Fé não é crença. Quando se distingue fé de crença – retomando a
questão aludida anteriormente – é porque “a fé é fundamentalmente da ordem do relacional e
de uma iniciativa, as crenças o em grande parte da ordem do racional e de um conteúdo”. O
grande perigo em relação aos credos e confissões de fé é o não reconhecimento de sua
precariedade – uma vez que limitados temporalmente – da sua necessária coexistência
inevitável com dúvida. Para o protestantismo “a fé não se opõe essencialmente à dúvida que
ela supõe e ultrapassa, mas ao saber, que afasta a própria possibilidade da fé e, de fato, a
esvazia”. Quando há certezas, “nem a fé nem a dúvida são possíveis”. Em última instância,
para o protestantismo, “a fé é incompatível com uma idéia de infalibilidade”. Fé é movimento
contínuo. Quem tem fé não acredita sempre. Fé desacredita sempre. “Quando a incredulidade
é impossível, a fé é também impossível” (GAGNEBIN, 1997, p. 24).
b) A Bíblia
O rompimento com toda medição católico-medieval; com tudo que pudesse se interpor
78
Vide capítulo dois quando tratamos da questão da redução protestante.
122
na relação de fé estabelecida com Deus, iniciado e com Lutero é radicalizado em Calvino.
Se em Lutero, a Igreja está vilipendiada de suas prerrogativas divinas básicas,
conservando apenas um ‘resíduo’ sacramental; em Calvino, até desta dignidade ela
está despossuída, muito embora, ainda afirme a realidade sacramental na linha
agostiniana [...] (CAVALCANTE, prelo, 2008, p. 11).
Ao sustentar a doutrina da predestinação, Calvino possibilita que o “indivíduo suplante
a Igreja”. (CAVALCANTE, 2008, prelo, p. 11). Assim, no uso radical de sua liberdade –
como decorrência da relação de fé – o indivíduo vai estabelecer uma “relação hermenêutica
com o texto sagrado” (BASTIAN, 1997, p. 193).
E, nesse ponto, inscreve-se um paradoxo. Tendo a Bíblia como o seu princípio formal,
como única regra de fé, o protestante afirma, por um lado, que a “autoridade da Escritura é
superior à autoridade da Igreja [...] e, por outro, que a função da Igreja é pregar corretamente
a Escritura à qual não se submete sem critérios hermenêuticos” (tradução livre, BAUBÉROT
& WILLAIME, 1990, p. 31). Talvez por isso mesmo o protestantismo seja incapaz de se
identificar até mesmo com a mensagem das Igrejas Protestantes. Em sua obsessão pela
verdade, afirma que “onde o erro não é livre a verdade também não o é [...] Por esta
perspectiva, o contrário da verdade não é o erro, mas o fato de se impor a verdade. A verdade
sem a procura da verdade é apenas metade da verdade” (GAGNEBIN, 1997, p. 86). É a
reafirmação nervosa da máxima evangélica: conhecereis a verdade e a verdade vos liberta
(Jo 8.32)
79
Se, na Idade Média, a liberdade é concebida como privilégio, como “o justo lugar
diante de Deus e diante dos homens, [como] a inserção na sociedade” – Nenhuma liberdade
sem comunidade. Ela não podia residir senão na dependência, o superior garantindo ao
subordinado o respeito a seus direitos” (LE GOFF, 2005, p. 282) –, na Reforma, ela será uma
cláusula pétrea.
De acordo com Ronaldo Cavalcante, “a subjetividade do princípio-protestante-da-
liberdade, transcende sua psique intimista e assume com coragem e risco suas feições
históricas com objetividade e concretude no nascimento da Modernidade”. A concretização
histórica deste princípio tem início com
Lutero na Dieta de Worms
80
, na Liberdade de consciência - com base na convicção
da presença divina na consciência humana individual cristianizada pela palavra de
79
Bíblia Sagrada: Evangelho de João capítulo 8, versículo 32.
80
Na Dieta (assembléia política) de Worms, convocada em Abril de 1521 pelo imperador Carlos V e à qual
Lutero deve comparecer para ser ouvido e julgado, o reformador [teria dito estas palavras]: ‘Se não me
123
Deus. Em segundo lugar, se formulará o valor objetivo da Liberdade de exame -
com base na certeza do auxílio da iluminação do Espírito Santo na razão humana
invadida pelo Evangelho e, em terceiro lugar, [vem a lume] o valor da Liberdade de
expressão - com base na obediência do compromisso de Cristo em sua missão de
servir (grifos originais, 2008, prelo, p. 9).
O princípio de liberdade protestante contesta o sistema de autoridade católico orga-
nizado de forma “piramidal, monárquica e hierárquica que, do papa aos bispos [...] desce,
alargando-se para os padres claramente distintos, pela sua ordenação, de povo dos leigos”
(GAGNEBIN, 1997, p. 80), e encontra sua força estatutária na doutrina luterana do sacerdócio
universal crentes. O indivíduo protestante – a partir de sua relação direta e paradoxal com
Deus – se define como sacerdote; portanto questiona a separação entre clérigos e os leigos,
entre sagrado e profano, isto é, o mundo é a um só tempo ‘dessacralizado’ e ‘desporfanizado’.
O mundo passa a ser um lugar em que os indivíduos agem para a glória de Deus. Rubem
Alves define bem esta questão:
Cada homem é um sacerdote. Onde quer que esteja um homem, ali está o sagrado.
O protestantismo aboliu os mosteiros e uma classe sacerdotal privilegiada porque
ele transformou o mundo todo num templo e todos os homens em sacerdotes. A vida
toda está coberta pelo manto sagrado. Assim, a afirmação de que o que caracteriza a
religião é a divisão do mundo em profano e sagrado não vale para o protestantismo
(2005, p. 163s).
c) A Igreja
Comentando Ernst Troeltsch, Mendonça afirma que
a cultura da Idade Média foi uma cultura centrada na Igreja, dela emanando todas as
coisas, principalmente a fé e a salvação, coisas substanciais naquele momento. Na
Igreja tudo estava previsto, regulamentado, seguro. Ninguém precisava preocupar-se
com nada. Deus se revelava à Igreja e esta governava o mundo segundo essa
revelação. Era, portanto, uma cultura autoritária. A trajetória vertical da salvação
eterna era orientada pela Igreja (MENDONÇA, 1997, p. 114)
81
.
Nesse momento a igreja interpela o indivíduo. A igreja é proteção. A igreja é garantia.
O protestantismo rompe com a igreja, no sentido de que “religião e igreja não são garantias
para os protestantes. Nunca poderão ter este status” (TILLICH, 1992, p. 215). Isso porque, em
lugar da segurança dos sacramentos, da estética litúrgica, da “hierarquia e da encarnação de
convencerem pelas afirmações da Escritura ou pela evidência da razão – porque não confio nem no papa, nem
nos concílios, uma vez que é evidente que se enganaram com freqüência e se contradisseram –, estou ligado
pelos textos escriturísticos que citei e a minha consciência é escrava das palavras de Deus; porque não está certo
nem é honesto agir contra a sua própria consciência. Só posso esperar que Deus venha em meu auxílio’
(GAGNEBIN, 1997, p. 17).
124
Cristo que nela se prolonga, aparece a força milagrosa da Bíblia, que tudo produz: a
prolongação protestante da encarnação de Deus” (TROELTSCH, 1951, p. 38).
Por esta perspectiva, antes de tudo, a igreja constitui-se numa interpelação de Deus
dirigida aos seres humanos com o intuito de reuni-los. A Igreja é um evento da graça de Deus
inteiramente relacionado com a fé.
Tal como a fé é um movimento de Deus para nós, antes de ser o do homem para
Deus, a Igreja é uma convocação de Deus dirigida aos homens, antes de ser uma
instituão humana e uma comunidade. A Igreja não existe fora desta relação assim
compreendida (GAGNEBIN, 1997, p. 41).
Portanto, assim como a salvação iniciada em Deus se historifica, a partir de um ato de
fé que nasce de uma “relação hernêutica” com o texto sagrado, a igreja é, para os protestantes,
um evento que tem lugar quando a palavra é proclamada e recebida como fruto daquela
relação (GAGNEBIN, 1997, p. 42). Somente a proclamação da Palavra de Deus, do
Evangelho é capaz de conferir existência à igreja.
A comunidade cristã, trate-se do seu clero ou do povo de Deus na sua totalidade, é
impotente para provocar isso. [...] É verdade que aqueles a quem o Evangelho
desperta para a fé vão reunir-se e constituir-se numa comunidade que conhece uma
organização e estruturas, como toda a instituição. Todavia, o Evangelho precede,
ultrapassa a Igreja e não está ligado por ela (GAGNEBIN, 1997, p. 42).
Tal definição não significa que o protestantismo negue a realidade visível da igreja,
mas sim que afirma com sobreposta a esta a ecclesia ivisibilis
82
que, como tal e como
prolongamento da encarnação de Cristo
83
, se insere no tempo. Neste sentido, a igreja
protestante assinala movimento, ao contrário da igreja católica, por exemplo, que com sua
“visibilidade” se insere na dimensão do espaço, mantendo-se assim ligada ao que é estável,
fixo. É praticamente impossível conceber o catolicismo separado de “Roma, da Basílica de
São Pedro, do Estado do Vaticano, de todas as grandes catedrais e da prática das
peregrinações, das procissões e dos caminhos da cruz” (GAGNEBIN, 1997, p. 93). Aqui tudo
é espaço.
Quando se diz que os protestantes rompem com a noção de separação entre sagrado e
profano, é bom ressaltar: a referência é ao espaço. O protestantismo “não trabalha com a idéia
81
Confira também: TROELTSCH, Ernst. El protestantismo y el mundo moderno. México-DF: Fondo de Cultura
Económica, 1951, p. 15-17.
82
Literalmente: igreja invisível.
83
Sobre a relação tempo e encarnação de Cristo, confira: ELIADE, Mircea. Mito e realidade.o Paulo-SP:
Editora Perspectiva, 2006, p. 146-148.
125
de espaço sagrado” (ABUMANSSUR, 2004, p. 101). A comunidade sacraliza o espaço. Lugar
sagra é só a Bíblia, a partir da qual a comunidade ganha existência. O tempo, contudo, é
sagrado por causa da encarnação de Cristo. A visibilidade protestante está na sua atuação
temporal e mundana, a partir da qual o protestante valida individualmente o seu crer, ou
melhor, a sua condição de eleito.
A trinômio Fé-Bíblia-Igreja, tratado aqui como essência do protestantismo, é
perpassado, como se viu, pela noção de liberdade na qual está implicada a noção de
movimento, visto que não é apenas liberdade ‘de’, senão também liberdade ‘para’. Assumir
essa liberdade ‘para’ é assumir o risco de uma relação com um Deus absconditus; portanto,
relação instável e imprevisível.
Talvez esteja justamente “aí a principal novidade ou contribuição do protestantismo” –
sua adequação à Modernidade desencantada – “submeter-se ao caráter surpreendente do
Sagrado e no interior dessa insegurança encarar a angústia existencial detectada [...] naqueles
indivíduos e movimentos que, optando pela liberdade, tiveram que assumir o risco da
improbabilidade”. A Modernidade desencantada convive bem com o paradoxo, mas não abre
mão do sentido da vida. Como disse Soeren Kierkegaard: “Mas o risco é a verdade que
confere peso e sentido à existência humana (CAVALCANTE, 2007, p. 135).
3.4.3.2 O princípio protestante e a situação-limite
A sublimidade do protestantismo não visível. Sua riqueza está no subsolo. O princípio
protestante qual rocha que sustenta enorme edifício, constitui-se o núcleo duro, o elemento
invisível e inalienável do protestantismo. O que garante o caráter universal, atemporal e
incondicional do protestantismo, evitando que ele se torne mera adesão religiosa e se
mantenha como mensagem profética é o seu princípio, identificado sempre com a liberdade e
a incondicionalidade. De acordo com Tillich, “o que torna o protestantismo protestante é o
fato dele poder transcender o próprio caráter religioso e confessional e a impossibilidade de se
identificar completamente com qualquer de suas formas históricas e particulares” (1992, p.
182s). O fracasso do cristianismo e da igreja não é essencialmente um fracasso do
protestantismo. O seu princípio está sempre além. Realiza-se na história, porém é irredutível
a ela. Ele é
a força crítica e dinâmica presente em todos os feitos protestantes, sem se identificar
com nenhum deles. Não se encerra numa definição. Não se esgota em nenhuma
126
relação histórica; não se identifica com a estrutura da Reforma, nem do cristianismo
primitivo, nem mesmo com formas religiosas. Transcende-as como transcende
qualquer forma cultural. Por outro lado, pode aparecer em qualquer uma delas.
Trata-se de um poder vivo, dinâmico e atuante (TILLICH, 1992, p. 183).
Além disso, ele contém, acrescenta Tillich,
o protesto divino e humano contra qualquer reivindicação absoluta feita por
realidades relativas, incluindo mesmo qualquer Igreja protestante. O princípio
protestante é o juiz de qualquer realidade religiosa e cultural incluindo a religião e a
cultura que se chamem protestantes (1992, p. 183).
“O princípio protestante envolve o julgamento da situação humana” como um todo.
Tal como se nos apresenta a situação humana está implicada no conceito difícil de ‘pecado
original’, que denota “a autocontradição da existência humana” (TILLICH, 1992, p. 185) que
baseada em seu orgulho e pretensa auto-suficiência intenta superar o seu fundamento infinito
a partir do condicionado e finito. Tal inversão presente na história humana com um todo no
plano individual revela-se também no plano social
84
. “Esta afirmação não será entendida
pelos que concebem a relação de Deus exclusivamente com a alma” (TILLICH, 1992, p.
185). A autrocontradição da condição humana ou, se quisermos, a inversão da realidade – e,
neste caso, como vimos, a linguagem e a ideologia operam de maneira legitimante – pode
expressar-se, muito concretamente, distorções tanto individuais quanto sociais. Pode-se falar
tanto em culpa coletiva quanto em culpa individual (TILLICH, 1992, p. 186).
Sendo assim, o princípio protestante necessariamente recusa qualquer visão dualista do
ser humano em termos de alma e espírito. “O corpo não é ‘cárcere’, mas ‘templo’, e não é o
corpo que luta contra o espírito, mas a ‘carne’ – termo que significa tanto o orgulho do
espírito como as cobiças do corpo”. Corpo e espírito – o ser humano como um todo –, o
indivíduo e a sociedade são alvos do julgamento protestante.
O princípio protestante que não deixa de lado nenhum aspecto da existência humana
no julgamento que faz, [...], considera o ser humano inteiro, na sua unidade de corpo
e alma e na sua relação com o transcendente. Esta idéia bíblica foi redescoberta pela
Reforma em oposição aos elementos dualistas do sistema católico. Mas no
protestantismo esta idéia só se tornou efetiva na ética individual e jamais na ética
social (TILLICH, 1992, p. 186).
Como se vê, o protestantismo não é capaz de realizar todas as possibilidades do seu
espírito. Segundo Tillich, “a Reforma combateu duas ideologias ou, em outras palavras, duas
maneiras de encarar a situação humana: a ideologia católica e a humanista. O catolicismo
127
pretende oferecer uma forma segura” de superação da autocontradição humana – superação
da finitude – “por meio de graças sacramentais e de exercícios ascéticos, cuja eficácia é
garantida pela hierarquia e pelos poderes sacramentais”. A ideologia humanista por seu turno,
“nega o caráter pervertido da situação humana e tenta realizar a humanidade essencial na base
da auto-determinação humana”. No confronto com ambas – uma, ideologia religiosa, a outra,
secular – o princípio protestante insiste no reconhecimento realista da condição humana.
Contudo o protestantismo histórico “ideologizou” o seu princípio. A ortodoxia e idealismo
protestantes representam as formas sacramentais e humanistas das velhas ideologias. Nessas
duas formas o verdadeiro Deus tem sido substituído por um ‘deus feito por mãos humanas’,
encerrado num conjunto de doutrinas ou pretensamente acessível por meio da moral e da
educação” (1992, p. 188). Sem perder de vista o caráter público de sua mensagem, o
protestantismo precisa se digladiar em sua própria arena, “precisa lutar não apenas contra
outras ideologias, mas também contra a sua própria ideologia” (1992, p. 188).
A força dinâmica do princípio protestante é a doutrina da justificação pela fé. Essa
idéia que outrora sacudiu a Europa e dividiu a cristandade, não sensibiliza mais, embora a
situação a que respondera outrora persista. Por isso Tillich propõe o termo situação-limite
(1992, p. 213), que não é o medo ou a iminência da morte. A situação-limite tem a ver com o
desespero provocado pela condenação à liberdade. Provém da angústia de perguntar e decidir
em relação ao bem e à verdade e fracassar sempre. Por um lado, se a liberdade impele à
existência, por outro, a inevitabilidade dela ameaça sempre, diante da possibilidade do não-
ser. Há que se decidir sempre; mesmo a inatividade constitui-se uma decisão. Por isso, nada
pode livrar, sejam “atividades intelectuais ou espirituais, seja o uso de sacramentos, de
práticas místicas ou ascéticas, [... o exercício da] reta doutrina [... ou da] piedade rigorosa, [...
ou] qualquer outra coisa pertencente à substância mundana da religião” (1992, p. 214s).
A redução protestante vista em sua relação com a economia, encontra aqui o seu
vértice existencial. “A pequena importância atribuída pelo protestantismo à Igreja, à liturgia, e
à esfera religiosa em geral, procede desta consciência de viver nos limites não apenas das
possibilidades seculares, mas também religiosas”. Como já afirmamos anteriormente,
“religião e igreja não são garantias para os protestantes” (TILLICH, 1992, p. 215).
Por esta via, a diferença entre o protestantismo e o catolicismo desloca-se do plano
“das divergências entre subjetivismo e fidelidade à instituição eclesiástica” para se localizar
84
Tillich refere-se aqui à situão do proletariado.
128
na escolha entre “a aceitação radical da situação-limite e tentativa de ver na Igreja e nos
sacramentos proteções seguras contra a ameaça incondicional” (TILLICH, 1992, p. 215).
O protestantismo seguindo sua índole recusa – mesmo sob a crítica mais radical, como
vimos em Weber e Berger – tudo que possa amenizar a peso da situação-limite, a ameaça do
não ser.
Os sacramentos quando tomados em sentido mágico para ofuscar a ameaça
suprema; o misticismo ao prometer união imediata com o incondicional para escapar
dessa ameaça; os atos sacerdotais devotados a transmitir garantias espirituais
capazes de superar a insegurança existencial humana; a autoridade eclesiástica
considerada infalível e acima de qualquer erro; e, finalmente, o culto com suas
feições de plenitude êxtase, querendo ocultar o caráter humano imperfeito em face
das exigências divinas (TILLICH, 1992, p. 215s).
Quais são as possibilidades de sucesso de uma mensagem que é incapaz de oferecer
segurança existencial, impotente diante das mazelas sociais, privada da possibilidade de
considerar como “sagrados os seres humanos, as coisas e as atividades em geral”? A que
tende uma Igreja que proclame uma mensagem assim? Tende a tornar-se um “mero grupo
amorfo de pessoas, secularizadas, sem qualquer qualidade sacramental, por meio das quais
transmitiria às futuras gerações a consciência da situação-limite”. O que fazer? Imitar as
Igrejas de tipo sacramental? Certamente que não. Isso a faria definhar mais ainda, visto ser
sua auto-negação.
Na verdade, não está aí o poder da Igreja Protestante. Está noutro lugar, está na cruz.
“Na cruz, a humanidade experimentou a situação-limite de maneira única. Nesse poder – na
verdade, nessa impotência e pobreza – a Igreja Protestante haverá de se manter na medida em
que tiver consciência do significado de sua existência” (TILLICH, 1992, p. 216).
A tragédia do protestantismo é não reconhecer que o seu poder emerge da fraqueza. É
a não aceitação de sua precariedade. É a suposição de possuir a “reta doutrina”, negando
assim que situar-se no limite inclui “não só participar da injustiça como do erro”. Se o
protestantismo afirma sem ambigüidades a posse da verdade, nega não só a situação-limite
com seu “sentido e poder”. Sua única saída é abandonar a posição de defesa, sua ânsia de
poder e “confrontar com a situação-limite todas as coisas que querem se passar por finais e
supremas, tanto culturas como religiões” (TILLICH, 1992, p. 217).
Há uma mensagem protestante para o mundo atual? Segundo Tillich, sim. Diante do
exposto, a mensagem protestante tem que se dirigir inicialmente contra o próprio
protestantismo histórico. Ademais, a “mensagem protestante não pode ser a proclamação
direta de verdades religiosas retiradas da Bíblia e da tradição, [...] mesmo sejam doutrinas
129
centrais como: “Deus, Igreja e revelação”. Não só há um problema de linguagem implicado,
como também um problema de credibilidade. Tillich aposta numa mensagem tríplice” (1992,
p. 218).
Em primeiro lugar é necessário “insistir na experiência radical da situação-limite”.
Deve-se “destruir as reservas secretas” que impedem a aceitação dos limites da existência
humana”. Tais reservas seriam “resíduos das visões de mundo fragmentárias, idealistas e
materialistas”. Essas: falsas seguranças, representadas pela palavra ideologia. Apresentadas,
portanto, de forma invertida por via científica, política, psicológica e até religiosa (TILLICH,
1992, p. 221).
Além disso, a mensagem protestante será relevante na medida em que “pronunciar o
sim procedente da situação-limite, assumindo-a em sua suprema seriedade”. Isso significa
afirmar a insegurança como segurança; a impossibilidade de posse da verdade como um
caminhar na verdade; o sentido para a vida, onde não se percebe mais nenhum sentido. Eis o
DNA do protestantismo (TILLICH, 1992, p. 220).
Em terceiro lugar, a mensagem protestante necessita testemunhar o “novo ser”.
Segundo Tillich este novo ser que na perspectiva cristã se manifesta plenamente em Jesus
Cristo pode concretizar-se também na esfera individual e comunitária. A partir da realidade
desse novo ser, todas as diferenças e distâncias são superadas. Cultura e religião, por
exemplo, não precisam mais se opor. “A cultura não se submete à religião, nem a religião se
dissolve na cultura” (1192, p. 220). Em um outro texto e ratificando esta idéia, Tillich afirma
que “a religião, concebida como preocupação última, dá substância à cultura. E cultura é
totalidade das formas nas quais o interesse básico de uma religião se expressa. Em resumo: a
religião é a substância da cultura; cultura é a forma da religião” (2006, p. 53). Nessa
perspectiva existencialista da religião, “princípio protestante nega que a igreja possua o
domínio do sagrado, como posse natural, mas também nega que a cultura seja dona do
domínio secular capaz de escapar ao julgamento da situação-limite” (1992, p. 220).
Onde estaria esse tipo de protestantismo? Quem seriam os seus arautos? Tillich
responde que esse “protestantismo existe onde quer que se proclame o poder do novo ser, e
onde prega a situação-limite, o seu ‘sim’ e o seu ‘não’”. Sendo assim é até possível que um tal
“protestantismo sobreviva nas igrejas organizadas. Mas não depende delas” (1992, p. 221).
Não nos iludamos, contudo. Talvez este seja o lado otimista de Tillich falando. O
protestantismo não é imune a uma universal característica do ser humano: a tentação dos
absolutos. “Todos queremos possuir a verdade. E para possuir a verdade é preciso que se a
engaiole. E para engaiolar a verdade é necessário engaiolar a liberdade e o pensamento
130
(ALVES, 2005, p. 13s). Na verdade, sabe-se muito bem que, outrora e agora – talvez muito
mais – o protestantismo está mais “fora” do que “dentro” das Igrejas.
O princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao
domínio religioso como ao secular, mas sem qualquer filiação eclesiástica ou
institucional, bem como por grupos e indivíduos que, por meio de símbolos cristãos
ou protestantes, ou sem eles, expressam a verdadeira situão humana em face do
absoluto e do incondicional.[...] é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna
vivo no mundo atual. (grifos nossos, 1992, p. 221).
Dessa maneira, ainda que se torne invisível, o protestantismo não morrerá enquanto
sobreviver o princípio protestante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso trabalho de pesquisa constituiu-se de uma tentativa de articular três ângulos de
reflexão: a linguagem simbólica, a redução protestante das mediações de tipo sacramental
entre o ser humano e o seu Deus, e as possibilidades da religião na Modernidade. Se de fato a
linguagem simbólica é a mediadora, por excelência, da relação com o sagrado e, como tal,
capaz de “exprimir situações paradoxais ou certas manifestações do sagrado, impossíveis de
se exprimir de outra maneira”, temos que questionar de que forma o protestantismo, ao se
despir quase que absolutamente da linguagem simbólica, pode ser apresentado como a
religião da Modernidade – tempo que se caracteriza, entre outras coisas, por situações
paradoxais. Na tentativa da resposta, vamos resgatar os conceitos de cosmovisão e ideologia.
Vimos que a linguagem possibilita que o ser humano construa um mundo que lhe seja
significativo, e que conteúdos, mais do que isso, significados e interpretações sejam
transferidos às novas gerações, com a chancela de verdades absolutas. Isso é possível porque
toda comunidade habita uma cosmovisão que, por sua vez, é sustentada por uma ideologia
que, além de conferir identidade, funciona como instrumento de alienação, na medida em que
oculta o fato de que toda cosmovisão é construída mediante a interpretação atualizante –
mítica – do ato fundador que originou a comunidade.
Diferentemente de todo e qualquer ser vivo, o ser humano relaciona-se com o mundo
que o circunda, a partir de uma atitude valorativa. Ele é capaz de perguntar pelo sentido de
sua existência. Portanto uma cosmovisão só se sustenta enquanto faz sentido, responde aos
anseios dos que nela estão inseridos; ou quando está referenciada a um universo sagrado.
Neste último caso, instaura-se o caráter inercial da ideologia. Esse é o caso do protestantismo,
quando consideramos a sua relação com os textos. Não há espaço para o novo, só para a
dedução.
O ato fundador do protestantismo é o questionamento da cosmovisão medieval,
segundo a qual o magistério da Igreja garante a interpretação correta. Em Lutero, temos o
livre exame e, com ele, a rejeição de todo nihil obstat, imprimatur ou index
85
e a concessão de
liberdade para a investigação bíblico-teológica (BAUBÉROT; WILLAIME, 1990, p. 117).
Instaura-se assim uma “relação hermenêutica” com o texto. A consciência é livre. A
85
nihil obstat, “Literalmente, nada obsta; fórmula latina utilizada pela censura eclesiástica católica para
autorizar a publicação de uma obra teológica”; imprimatur, autorização dada pela autoridade eclesiástica
132
experiência vital do leitor se encontra com a do autor bíblico. Nesse momento, a Bíblia é
entendida como um livro que registra as experiências que homens e mulheres tiveram com
Deus em algum momento do passado. As palavras registradas apontam para uma experiência
vital e promordial.
Embora a Reforma prescinda de linguagem simbólica no relacionamento com Deus,
não nega que a Bíblia seja um livro de símbolos – não de signos – onde o que é valioso “não é
a facticidade bruta a que ele se refere: eventos, pessoas, lugares e datas. Os fatos, em si, são
destituídos de significação. O que importa é o como subjetivo que se exprime nas palavras
que brotam da região da experiência viva em que o texto nasceu, mas que o próprio texto não
pode conter”. Assim, a mensagem da Bíblia está para além do texto; “quem fica no texto não
pode ir para onde o texto aponta”. Não se pode determinar o seu conteúdo, nem tão pouco
afirmá-lo por meio de proposições dogmáticas; o que se busca é “ressentir, simpaticamente,
na imaginação, os sentimentos que estão por detrás das palavras, mas que são muito
profundos para ser por elas expressos”. Se tomarmos a experiência de Lutero como exemplo,
nos primórdios da Reforma o texto não é a autoridade, mas a experiência de fé que brota da
relação com ele. “A autoridade que estabelece o texto é a experiência vital donde ele brota.
Isto foi verdade no momento do nascimento do texto”. (ALVES, 2005, p. 115s). Mas aí vêm
as perguntas:
quem fala no texto? Os homens. Sobre o quê? Sobre a sua experiência com Deus.
Mas se o texto não é a autoridade, mas sim a experiência, por que me voltar ao
texto? Não basta a minha experiência? Voltamos ao texto porque as experiências ali
confessadas e as minhas próprias experiências são irmãs: horizontes que se
entrelaçam. E as confissões dos homens no passado tomam-se, assim, minha própria
voz. E elas me ajudam a entender minha própria vida. A biografia é iluminada pela
história” (ALVES, 2005, p. 114).
O problema começa, para o protestantismo, quando ele tem que definir a sua
identidade e transferir sua mensagem às gerações seguintes. Todo e qualquer movimento, ao
se afastar de sua origem, tende a perder e/ou subverter as características iniciais. Ser cristão,
aos poucos, passa a ser uma experiência cerebral, não mais vital. Segundo Rubem Alves, as
polêmicas com a Igreja Católica obrigaram o protestantismo a sustentar que a verdadeira
Igreja não era aquela que se alicerçava numa continuidade histórica, mas a que confessava sua
fé de acordo com Bíblia (2004, p. 71). A saída encontrada foi a redefinição da Bíblia e a
formulação de Confissões. Eis o nascimento da ideologia protestante!
católica para imprimir uma obra teológica; index, livros proibidos à leitura pela autoridade autoridade pontifícia
(GAGNEBIN, 1997, p. 107s).
133
A ideologização do princípio protestante da qual trata Tillich está implicada na relação
que os protestantes mantêm com o texto da Bíblia e das Confissões de Fé. Consideremos a
Bíblia em primeiro plano. Os protestantes identificaram a Bíblia com a Palavra de Deus.
A Bíblia é um milagre, uma exceção única, o único documento que não é solidário
com a vida, mas que desce da eternidade. Seu autor não habita nem o espaço nem o
tempo, por isto o seu dizer nada tem a ver com condicionantes emocionais e sociais.
O texto é a verdade absoluta. A teoria protestante da inspirão toma a
hermenêutica supérflua e impossível (grifos nossos, ALVES, 2005, p. 121).
A ideologia aqui atua, em primeiro lugar, no ocultamento da realidade – a Bíblia é
negada como resultado da experiência de fé de alguns homens e mulheres situados histórica e
socialmente – e, em segundo lugar, na identificação de uma realidade precariamente
construída com um universo sagrado.
Se a Bíblia é de fato um livro inspirado
86
, “sendo ela a vontade eterna e una de Deus
reduzida à linguagem, o texto é compreendido como uma estrutura única e una” (ALVES,
2005, p. 129). As várias Confissões de Fé protestantes partem dessa premissa, ou seja,
simplificam e esquematizam a harmonia existente no texto bíblico. Nesse caso, seguindo Paul
Ricoeur, a ideologia implícita transforma o pensamento em sistema de crença, por meio do
qual a comunidade ou grupo idealiza uma imagem de si mesma que serve para representar a
sua própria existência. Essa imagem, por contra-reação, reforça o código interpretativo. Em
outras palavras, dependendo do caso, falar contra uma determinada Confissão de Fé pode
equivaler a falar contra a Bíblia e, em última instância, falar contra o próprio Deus. O texto da
Confissão de Fé, uma vez ocultado o seu estado de “coisa construída social e historicamente”,
torna-se, assim, um instrumento ideológico de justificação e dominação.
É comum ouvirmos que o livre exame da Bíblia é responsável pela fragmentação do
protestantismo e que o magistério da Igreja é responsável pela unidade católica. Mas segundo
Rubem Alves, isso não é verdade. A relação hermenêutica com o texto não mais existe. O
livre exame foi reduzido à proximidade geográfica do texto. E esta “proximidade física
indivíduo-texto de maneira nenhuma garante a proximidade entre a consciência que lê e a
significação do texto” (ALVES, 2005, p. 135); nessa relação se interpõe a interpretação
correta da Confissão de Fé. A liberdade nunca divide. Concilia. É justamente a ausência de
liberdade e, conseqüentemente, a impossibilidade da discordância que divide os protestantes.
86
Refere-se à doutrina da inspiração segundo a qual Deus é o autor da Bíblia. Nos círculos mais
fundamentalistas é agregada a esta doutrina a idéia de inerrância, isto é, Deus ditou todas as palavras da Bíblia,
portanto não há erro nela.
134
Sendo assim, parece um erro afirmar que o protestantismo seja a religião adequada
para um contexto caracterizado, por exemplo, pela subjetivação, pelo movimento e pela
desregulação de identidades herdadas. Talvez fosse mais próprio dizer que o princípio
protestante se adapta à Modernidade; não o protestantismo. O princípio protestante
sobreviverá no futuro; o protestantismo, talvez
87
.
Entendemos que – ironicamente, há que se dizer – só a linguagem simbólica poderá
“salvar” o protestantismo. Explicamos.
Quando o protestantismo faz a verdade espiritual depender da verdade histórica do
texto, ele coloca o signo e o símbolo no mesmo nível ou, mais precisamente, reduz
todos os símbolos a signos. A linguagem das coisas espirituais é a mesma
linguagem das coisas materiais. O modo de significar um fato histórico é o mesmo
modo de significar o sagrado. A cada signo corresponde, de forma direta e unívoca,
um fato. [...]. A verdade, [...] é entendida como a adequação da coisa ao intelecto
(ALVES, 2005, p. 126s).
A conseqüência óbvia é que a linguagem simbólica é identificada com a mentira. A
bem da verdade, entretanto, o protestantismo, inicialmente, ao eliminar os canais de acesso a
Deus, não nega ou abole os símbolos completamente. Prova disso são: o batismo, a santa
ceia, o púlpito, a cruz e o próprio Cristo. Aliás, as Confissões de Fé e os Catecismos são
chamados de “símbolos de fé”. O problema reside na concepção do símbolo. Para o
protestantismo, o símbolo é fechado, jamais evocativo.
Como disse Tillich: “há uma contradição entre o princípio protestante e a existência
histórica do protestantismo” (1992, p. 183); portanto, seja cortando na própria carne, ou
recebendo de fora para dentro o protesto do “espírito que criou” sem condições de manipular:
há que se afirmar contra o protestantismo que o símbolo sempre evoca um outro nível de
realidade. Nunca pode ser esgotado. Dentro ou fora do protestantismo, o símbolo sempre se
colocará ambígua e evocativamente entre a intolerável ausência de Deus e a onipresente
angústia da situação-limite. “Mais do que nunca, urge recuperar o símbolo sem esquecer o
espírito crítico” (MARDONES, 2006, p. 101).
87
Confira, por exemplo, as análises de: MARIANO, Ricardo. O futuro não será protestante. In:
www6.ufrgs.br/seer/ojs/index.php/CienciasSociaiseReligiao/article/viewFile/2153/842. Acesso em 11/06/2008;
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