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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
DARLY GOMES SILVEIRA FILHO
VIDA APÓS A MORTE: UMA ANÁLISE DAS ESCATOLOGIAS CATÓLICO-
ROMANA E PROTESTANTE- REFORMADA E SUAS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS
NO MODUS VIVENDI DOS CRISTÃOS
São Paulo
2008
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Darly Gomes Silveira Filho
VIDA APÓS A MORTE: uma análise das escatologias católico-romana e protestante-
reformada e suas possíveis influências no modus vivendi dos cristãos
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Dr. Antônio Máspoli de Araújo
Gomes
São Paulo
2008
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DARLY GOMES SILVEIRA FILHO
VIDA APÓS A MORTE: UMA ANÁLISE DAS ESCATOLOGIAS CATÓLICO-
ROMANA E PROTESTANTE-REFORMADA E SUAS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS
NO MODUS VIVENDI DOS CRISTÃOS
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Dr. Antônio Maspoli de Araújo Gomes – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Dr. Paulo Rodrigues Romeiro
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Dr. Arthur Pinto Chaves
Universidade de São Paulo
À minha esposa, aos meus filhos e à minha mãe,
pelo incentivo, apoio e confiança na realização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
A Deus, autor da vida e razão de minha existência.
À família: minha esposa Silvia Regina e meus filhos Nathan, Laís e Davi, pela
motivação. À minha mãe, Viná Terezinha Garcia, pelo incentivo.
À Igreja Presbiteriana do Brasil, especialmente à Igreja Presbiteriana de Alegre
ES, onde pastoreio, presbíteros e demais membros, ovelhas que me apoiaram com
suas constantes orações.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela bolsa de estudos, e ao Mack
Pesquisa pelo financiamento de minhas pesquisas.
Aos mestres que se tornaram amigos, especialmente ao meu orientador, Dr. Antônio
Maspoli de Araújo Gomes – mente brilhante e fé sadia.
Aos secretários da Escola Superior de Teologia do Mackenzie, Sr. Geraldo
Evangelista Azevedo e Sra. Jamili Kury Reis, sempre solícitos e atenciosos.
Ao companheiro de estudos, colega de ministério e verdadeiro irmão, Edson Duque
de Castro.
“A morte coloca todas as coisas na perspectiva correta.”
Autor desconhecido
RESUMO
Conquanto a expectativa comum da igreja cristã seja a ressurreição dos mortos para
redenção plena dos que crêem em Cristo, entre os grupos católico-romano e
protestante-reformado há divergência sobre o que ocorre durante o estado
intermediário. O católico-romano crê nas doutrinas do purgatório e da intercessão
pelos mortos – razão pela qual reza para que a Santa Maria interceda na hora da
morte e entrega-se a São José, o padroeiro da boa morte; participa da eucaristia,
esmola, pratica obras de misericórdia, faz orações e oferece sufrágios em benefício
das almas no purgatório; reza para que as almas dos santos defuntos intercedam
por eles diante de Deus; louva à virgem Maria como a primeira, dentre todos os
remidos, a ser ressuscitada dentre os mortos; e pratica boas obras para atenuar sua
situação no dia do juízo final (em razão de crerem que a salvação é alcançada pela
fé em Cristo e pelas boas obras). O protestante-reformado crê que enquanto a alma
do justo está gozando da comunhão com Cristo, a alma do ímpio está sofrendo
afastada de Cristo. Essa situação é temporária, pois ambos aguardam a
ressurreição dos mortos e julgamento final para que tanto o justo possa desfrutar da
salvação integralmente (no corpo e na alma) assim como o ímpio possa receber o
justo juízo integralmente (no corpo e na alma) – razão pela qual não intercede pelos
mortos (nem mesmo tem o hábito de visitar os túmulos) e nem pede a intercessão
dos santos defuntos; não pratica boas obras com vistas à salvação (nem mesmo
procura ocasião para as boas obras); não pratica a extrema unção (mas evangeliza
o moribundo no leito da morte); e mantém uma visão polarizada do status pós-morte:
céu ou inferno. O cristão protestante-reformado tem a firme convicção de sua
salvação (conforme doutrina da perseverança dos santos). Essa é a razão pela qual
enfrenta serenamente o luto e a idéia de sua própria morte.
PALAVRAS CHAVES: Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Reformada, Estado
Intermediário, Ressurreição, Morte.
ABSTRACT
Although the expectative common of the Christian church is the resurrection of the
dead for the absolute redemption of those who have faith in Christ, among the
catholic-roman and protestant-reformed groups there is divergence about what
happens during the intermediate state. The catholic-roman has the faith in the
doctrine of the purgatory and interception for the dead – reason for the which pray for
Mary, Jesus Christ mother’s, to intercede in the hour of the death and surrenders
himself to St. Joseph, the patron of the good death; he participles of the Sacrament
of Eucharist, gives alms, practices mercy works, makes prayers and offers suffrage
in benefit of the souls of the purgatory; he prays for souls of the dead saints intercede
to him before God; he praises to the virgin Mary as the first, among the redeemed, to
be resurrected among the dead’s; and he practices good works to attenuate his
situation in the day of the final judgment (in reason of believe that the salvation is
reached by the faith in Christ and the good woks). The protestant-reformed believes
that while the soul of the fair is enjoying of the communion with Christ, the heretic’s
soul is suffering faraway from Christ. That situation is temporary, because both wait
for the resurrection of the dead and the final judgment in order to the fair can to enjoy
of the salvation integrally (in the body and in the soul) and heretic can to receive the
fair judgment integrally (in the body and in the soul) – reason for the which doesn’t
intercede for the dead’s (not even has the habit of visiting the graves) and nor asks
for the dead saint’s intercession; he doesn’t practice good works with views the
salvation (not even look for occasion for the good works); he doesn’t practice the
extreme unction (but evangelizes the dying in the bed of death); and he maintains a
polarized vision of the status powder-death: heaven or hell. The protestant-reformed
Christian has the firm conviction of his salvation (according to doctrine of the saint’s
perseverance). That is the reason for which calmly faces the mourning and the idea
of his own death.
KEY WORDS: Roman Catholic Church, Reformed Church, State Intermediate,
Resurrection, Death.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIAS
AGRADECIMENTOS
EPÍGRAFE
RESUMO
ABSTRACT
1 INTRODUÇÃO 11
2 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-TEOLÓGICO DA
PERSPECTIVA CRISTÃ SOBRE O STATUS PÓS-MORTE
14
2.1 NO ANTIGO TESTAMENTO 14
2.2 NO PERÍODO INTERTESTAMENTAL 20
2.3 NO NOVO TESTAMENTO 23
2.4 NOS PAIS DA IGREJA 24
2.5 NOS CREDOS 29
2.5.1 No Credo dos Apóstolos 30
2.5.2 No Credo Niceno 30
2.5.3 No Credo Apostólico 32
3 A ESCATOLOGIA CATÓLICO-ROMANA 33
3.1 A MORTE 33
3.2 O JUÍZO PARTICULAR 35
3.3 O PURGATÓRIO 36
3.4 A RESSURREIÇÃO 41
3.5 O JUÍZO FINAL 44
3.6 O INFERNO 46
3.7 OS NOVOS CÉUS E NOVA TERRA 47
4 A ESCATOLOGIA PROTESTANTE-REFORMADA 49
4.1 JOÃO CALVINO 49
4.2 A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER 53
4.3 A NATUREZA DA RESSURREIÇÃO 54
4.4 A NATUREZA DO CORPO RESSURRETO 57
4.5 A OCASIÃO DA RESSURREIÇÃO 62
5 INFLUÊNCIAS DA PERSPECTIVA CRISTÃ DO STATUS PÓS- 65
12
MORTE NO MODUS VIVENDI DOS CRISTÃOS
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 74
7 REFERÊNCIAS 77
APÊNDICE 79
1 INTRODUÇÃO
“Qual o nosso destino final?”. Para encontrar a resposta é necessário fazer uma
prospecção, uma tentativa de análise do futuro, dos últimos acontecimentos previstos e
acreditados para o fim do homem. A resposta será encontrada na Escatologia, nos
tratados teológicos dos últimos acontecimentos, um conjunto de idéias que os
diferentes povos tiveram sobre os acontecimentos que terão lugar no fim da vida
humana. É assim que ouvimos falar de escatologia dos babilônios, dos persas, dos
gregos, dos romanos e, muito antes, dos egípcios etc., entendendo por isso as iias
que esses povos tinham da imortalidade da alma, da vida no além e da recompensa dos
bons e castigo dos maus.
Nosso objetivo é ainda mais específico. Primeiramente, seguindo a perspectiva cristã,
com os óculus das Escrituras Sagradas e da Tradição da Igreja, queremos entender, no
campo religioso brasileiro, quais as expectativas dos grupos católico-romano e
protestante-reformado quanto ao status pós-morte e, em seguida, pretendemos analisar
como as convicções escatológicas afetam o estilo de vida do indivíduo.
Há alguma relação entre a crença na ressurreição e na vida eterna e a
espiritualidade pessoal do cristão? Jeremy Taylor (1609-1667), autor de Holy living
[Vida santa] e Holy dying [Morte santa] – as quais, normalmente, compõem um único
volume - ensina as regras e os exercícios para uma vida santa e para uma morte
santa. Nessa obra são descritos os meios e os instrumentos preparatórios para a
morte abençoada e os remédios contra os infortúnios e as tentações próprias do
estado doentio, junto com orações e atitudes de virtudes para serem usadas pelas
pessoas doentes e à beira da morte, ou por aqueles que as assistem.
“Morrer bem é uma grande arte”, afirma Taylor, o qual, estabelecendo as formas
pelas quais o cristão pode morrer com dignidade e em paz, também diz que a
melhor forma de lidar com o medo da morte será pela contemplação da esperança
naquilo que se encontra além da morte:
Se tu desejas não temer a morte deves procurar apaixonar-se pelas
observações de felicidade feitas pelos santos e anjos e ser, de uma vez por
12
todas, convencido a acreditar que existe uma forma de viver muito melhor
do que esta que conheces; que existem criaturas mais nobres do que nós;
que lá em cima existe uma pátria melhor do que a nossa, cujos habitantes
têm mais conhecimento e mais sabedoria e habitam em locais de descanso
e prazer. E assim, deves primeiro aprender a valorizar algo tão formidável,
se não fosse capaz de nos proporcionar tanta alegria e tamanha felicidade.
E ainda, por outro lado, quem não pensaria que sua própria condição
melhorou, quando deixa de ter contato com tiranos obtusos e inimigos do
saber e passa a dialogar com Homero e Platão, com Sócrates e Cícero,
com Plutarco e Fabrício? No entanto, são os pagãos que pensam assim.
Nós, porém, temos pensamento mais sublime. Pois, para nós cristãos,
“Aqueles que morrem no Senhor” encontrar-se-ão com Paulo, bem como
com todos os apóstolos, todos os santos e mártires, com todos os homens
de boa vontade cuja memória preservamos com honra, com os
excepcionais soberanos e santos bispos, como também com o grande
Pastor e Bispo de nossas almas, Jesus Cristo, e ainda com o próprio Deus.
(TAYLOR, 1651, section 8,1 apud MCGRATH, 2005, p. 631).
Quando conjeturamos sobre aquilo que possa ser encontrado além da morte,
enveredemos pelo caminho da escatologia (o estudo das últimas coisas). Escrever
sobre a escatologia não é o mesmo que escrever sobre a história. Pois enquanto
esta trata de fatos acontecidos, aquela trata das expectativas de fatos por vir. Por
isso toda cautela é necessária para não incorrer no mesmo erro que incorreram os
judeus em sua expectativa da vinda do Messias. Esperavam um rei que viesse em
poder e glória, mas eis que ele veio como um filho de carpinteiro; esperavam por um
reino visivelmente dominante, mas eis que seu reino é espiritual e tem por princípio
a prática do amor sacrificial. A experiência da igreja veterotestamentária na
interpretação das profecias sobre a primeira vinda de Cristo deve ensinar a igreja
neotestamentária a ser cautelosa na interpretação das profecias quanto à segunda
vinda de Cristo.
A perspectiva cristã do status pós-morte está baseada nas escrituras do Antigo e do
Novo Testamento. No surgimento da igreja cristã, a pregação dos apóstolos
enfatizou dois temas principais: a morte e a ressurreição de Jesus – os dois pilares
da fé cristã. Conquanto a pregação apostólica tenha sintetizado a fé comum dos
cristãos daquela época gerando a expectativa da ressurreição dos mortos, o
13
construto teológico posterior ofereceu perspectivas diferenciadas sobre o status pós-
morte. Variegadas proposições escatológicas foram elaboradas ao longo dos
séculos gerando polêmicas teológicas, cismas e, inevitavelmente, novas
denominações cristãs.
Cada seguimento do cristianismo mundial tem sua perspectiva própria. Atualmente
no Brasil os grupos cristãos predominantes são catolicismo-romano, protestantismo
histórico, protestantismo pentecostal e neo-pentecostalismo. No que tange ao status
pós-morte, todos esses seguimentos do cristianismo crêem na ressurreição dos
mortos – este é o ponto comum. Mas no que se refere, especificamente, ao período
compreendido entre a morte e a ressurreição do homem, há divergências entre os
grupos mencionados.
O presente trabalho tem por objetivo expor a doutrina da ressurreição dos mortos
nas perspectivas católico-romana e protestante-reformada (um ramo do
protestantismo histórico) e, por fim, tentar refletir sobre suas possíveis influências no
modus vivendi dos cristãos. Acreditamos que as variações na crença afetam,
inevitavelmente, o comportamento dos cristãos de cada um desses grupos.
2 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-TEOLÓGICO DA PERSPECTIVA CRISTÃ
SOBRE O STATUS PÓS-MORTE
1
A idéia cristã de ressurreição deve ser distinguida das idéias gregas e judaicas. Os
gregos reputavam o corpo como um obstáculo para a verdadeira vida e ansiavam
pelo tempo em que a alma se veria livre de suas algemas. Concebiam a vida após a
morte em termos da imortalidade da alma, ainda que alguns deles rejeitassem
firmemente a idéia da ressurreição (cf. a zombaria contra a pregação de Paulo em
Atenas, em At 17.32). Por sua vez, os judeus estavam firmemente persuadidos dos
valores do corpo acreditando que esses valores não seriam perdidos, por isso
esperavam que o corpo fosse ressuscitado. Mas pensavam que o corpo
ressuscitado seria exatamente o mesmo corpo de antes da morte (Apoc. Bar. 1.2).
Por sua vez, os cristãos pensavam no corpo como algo que seria ressuscitado, mas
igualmente transformado para se tornar um veículo apropriado à vida totalmente
diferente da era vindoura (1 Co 15.42 e segs.). Portanto, no que concerne à
ressurreição, a idéia cristã é distintiva.
2.1 NO ANTIGO TESTAMENTO
De modo geral, considera-se que as porções pré-exílicas do Antigo Testamento (AT)
não contêm declaração alguma que nos capacita a reconhecer uma esperança da
ressurreição dentre os mortos. O conceito de que a morte é o fim definitivo e a
destruição da existência humana (cf. Gn 3.19; Jó 30.23) não é invalidado pelos
relatos de pessoas isoladas que voltaram à vida, tais como o filho da viúva de
Sarepta (1 Rs 17.17-22), o filho da sunamita (2 Rs 4.18-37) e o homem que foi
lançado apressadamente no sepulcro de Elizeu (2 Rs 13.20-21). Até os relatos de
arrebatamento da terra antes da morte (de Enoque em Gn 5.24; de Elias em 2 Rs
2.11) proclamam o poder da morte em destruir a vida e a falta geral de esperança
além dela. Este fato pode ser visto nas palavras de Jó para seus amigos:
Lembra-te de que a minha vida é um sopro; os meus olhos não tornarão a
1
Neste capítulo, principalmente os tópicos relacionados ao Período Intertestamental, aos Pais da
Igreja e aos Credos, tiveram como fonte de pesquisa, especialmente, as seguintes bibliografias: A
História das Doutrinas Cristãs (Louis Berkoff), Documentos da Igreja Cristã (Henry Bettenson) e
Doutrinas Centrais da Fé Cristã (J. N. D. Kelly). Faz-se necessária tal justificativa, haja vista que na
compilação das informações, em algumas situações não foram destacadas as citões.
15
ver o bem. Os olhos dos que agora me vêem não me verão mais; os teus
olhos me procurarão, mas já não serei. Tal como a nuvem se desfaz e
passa, aquele que desce à sepultura jamais tornará a subir. Nunca mais
tornará à sua casa, nem o lugar onde habita o conhecerá jamais. (Jó 7.7-10)
Várias declarações nos Salmos proferem orações pela salvação e preservação do
domínio da morte que destrói a vida, mas não de uma morte que já foi
experimentada. Assim o autor do Salmo 88 ora pelo livramento do Sheol e do
Abismo ou da destruição, onde parece que os mortos são cortados de Javé (Sl
88.5,10,11).
Inversamente, os fiéis que foram salvos por Javé cantam a salvação nos mesmos
termos (Sl 30.2,3, 11; 86.12,13; 103.1,3 e segs.; 116.8; 118.7; Is 38.17). A salvação
cantada pelo salmista no Salmo 16.10 parece ser deste mundo, embora também
indique para além da sepultura. A percepção de qualquer menção de uma vida após
a morte no Salmo 16 é discutida entre os estudiosos. Há indícios de que a questão
verdadeira no Salmo 16 é aquela da comunhão com o Deus Vivo. O escritor do
Salmo não prevê qualquer fim desta comunhão; não entende como será possível a
sua persistência, mas isso não perturba o salmista, pois a solução para esse
problema depende de Deus. Essa lição é ressaltada no versículo final do salmo: “Tu
me farás ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua
destra delícias perpetuamente.” (Sl 16.11).
Outra passagem é o Salmo 49.15: “Mas Deus remirá a minha alma do poder da
morte, pois ele me tomará para si.” Alguns eruditos sugerem que o salmista
esperava ser arrebatado de modo semelhante à Enoque ou Elias. Todavia seria
melhor exercer a mesma cautela indicada pela interpretação do Salmo 16. O Salmo
49 claramente não ensina uma doutrina positiva da ressurreição. Do outro lado,
encara uma vida contínua com Javé na qual o israelita fiel é salvo do poder contínuo
do Sheol. Pensamento semelhante é também expresso no Salmo 73.24: “Tu me
guias com o teu conselho, e depois me recebes na glória”. O Deus que se deleita em
enriquecer o salmista com sua comunhão no presente, lhe concederá uma
comunhão mais plena na vida futura. Resumindo o testemunho dos salmistas, Ladd
observa que
16
Tais passagens nos oferecem apenas vislumbres da esperança de uma
existência bem-aventurada após a morte. É importante notar que a
esperança se baseia na confiança no poder de Deus sobre a morte, e não
em algum conceito de alguma coisa de imortal que o homem possui. O
salmista não reflete sobre qual parte do homem sobrevive à morte - sua
alma ou seu espírito; nem sequer há qualquer reflexão sobre a natureza da
vida futura. Há meramente a confiança de que nem sequer a morte pode
destruir a realidade da comunhão com o Deus vivo. Este é muito diferente
do conceito grego da imortalidade (LADD, 1975, p. 47, “tradução nossa”).
Os salmistas não consideravam a possibilidade do rompimento da comunhão com
Deus, nem sequer pela morte.
Fora do Livro dos Salmos, o Cântico de Moisés (Deuteronômio 32) e o de Ana (1
Samuel 2) proclamam que Javé mata e faz viver. O Cântico de Moisés celebra o
poder do Deus vivo e culmina com a asseveração: “Vede agora que Eu sou Eu
somente, e mais nenhum Deus além de mim: eu mato, e eu faço viver; eu firo, e eu
saro; e não há quem possa livrar alguém da minha mão” (Dt 32.29). Ao passo que o
Cântico de Moisés reflete sobre os tratos de Javé com a nação, o Cântico de Ana,
que segue o nascimento de Samuel, celebra o poder de Javé para assistir aos
necessitados, inclusive às estéreis (2 Sm 2.5). No meio da canção há a reflexão: “O
SENHOR é o que tira a vida, e a dá; faz descer à sepultura, e faz subir” (1 Sm 2.6).
Alguns intérpretes desses cânticos consideram que ambos ressaltam o poder
extraordinário do Deus de Israel. Javé dispõe livremente da vida. Ele a concede, a
retira, e a dá de novo. A história do Povo Escolhido e a existência dos israelitas
testificam abundantemente deste poder soberano que Javé exerce as expensas dos
seus inimigos e por amor aos seus. Os escritores destes hinos não estão pensando
na ressurreição dos mortos: meramente afirmam que o Deus Vivo é capaz de
intervir, de modo eficaz, em todos os lugares, e a todo tempo, mesmo na hora mais
escura, e que suas intervenções libertadoras são evidências específicas do seu
tremendo poder.
Jesus, ao responder à questão levantada pelos saduceus acerca da ressurreição e
do caso problemático do casamento de levirato (Mt 22.23-33) interpreta Êx 3.6
colocando como premissa da interpretação a continuidade do Deus vivo, e a vida
17
perpetuada daqueles que a ele pertencem: “Quanto à ressurreição dos mortos, não
tendes lido no livro de Moisés, no trecho referente à sarça, como Deus lhe falou; ‘Eu
sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó’? Ora, ele não é Deus
de mortos, e, sim, de vivos. Laborais em grande erro” (Mc 12:26-27). A expressão
‘Deus dos mortos’ subentende uma contradição marcante, especialmente no que se
refere ao entendimento dos saduceus quanto à morte como extinção, sem a
esperança da ressurreição.
Algumas passagens nos profetas são relevantes para a discussão. O profeta Oséias
declara: “Vinde e tornemos para o SENHOR, porque ele nos despedaçou, e nos
sarará; fez a ferida, e a ligará. Depois de dois dias nos revigorará; ao terceiro dia nos
levantará, e viveremos diante dele. Conheçamos e prossigamos em conhecer ao
SENHOR: como a alva a sua vinda é certa; e ele descerá sobre nós como a chuva,
como chuva serôdia que rega a terra” (Os 6.1-3). O fundo histórico dessa passagem
é o da guerra siro-efraimita (735-734 a.C.) e suas seqüelas (cf. 2 Rs 15 e 18; Is 7 e
8), e a passagem consiste em uma chamada ao arrependimento e à fé em Javé para
a restauração. O argumento de Oséias é que não são os Baals que fazem essas
coisas através do culto, mas, sim, Javé; e é Javé que restaurará Israel à saúde e à
vitalidade, assim como as chuvas da primavera renovam a terra ressequida e morta.
Depois o profeta Oséias pergunta: “Eu os remirei do poder do inferno, e os
resgatarei da morte? Onde estão, ó morte, as tuas pragas? Onde está, ó inferno, a
tua destruição?” (Os 13.14). Parece que o apóstolo Paulo, ao celebrar a ressurreição
dos mortos, retoma a fraseologia da segunda parte deste verso: “E quando este
corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de
imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘Tragada foi à morte pela
vitória’. ‘Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? ’” (1
Co 15.54-55). A passagem testifica o poder extraordinário do Deus de Israel; Javé
trata a morte como um senhor trata um dos seus súditos; ordena-a como vassalo, e,
a despeito de tudo, o Sheol está à sua disposição. Diante da face do Deus Vivo até
mesmo o domínio da morte tem de ceder. No contexto de Oséias suas palavras não
se referem à esperança da ressurreição do indivíduo, mas, sim, ao poder de Javé
sobre a morte e a destruição da nação na história. No entanto, o apóstolo Paulo não
fundamenta na Escritura um argumento, mas escreve livremente, em linguagem
18
bíblica, da vitória final sobre a morte. O significado das palavras de Oséias acha seu
cumprimento final na ressurreição, quando os homens são resgatados do Sheol e
redimidos da morte, e onde, pois, se zomba do Sheol e da morte.
O profeta Isaías expressa de modo momentâneo uma confiança na ressurreição de
Israel: “Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão;
despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus, será como o
orvalho da vida, e a terra dará à luz os seus mortos” (Is 26.19). Apesar de haver
certas discrepâncias de texto representadas pelo Texto Massorético (TM) e a
Vulgata, de um lado, e pela Septuaginta (LXX), o rolo de Cunrã de Isaías e as
tradições siríacas e aramaicas do outro lado, chegou-se assim à seguinte
conjectura: quanto à cláusula no TM “vossos mortos viverão, meus corpos
levantarão”, em contraste com a LXX “os mortos ressuscitarão e aqueles nos
túmulos ressurgirão”. De qualquer forma, a passagem claramente ensina uma
crença na ressurreição.
A visão que o profeta Ezequiel teve do vale dos ossos secos (Ezequiel 37) tem sido
entendida como predição da ressurreição. O profeta não se preocupa com a
ressurreição dos mortos como tal, mas não há dúvida de que o simbolismo por ele
empregado levantou entre os judeus a questão da renovação da vida para os
mortos, e é neste sentido que a tradição judaica bem como a cristã relê esse
capítulo. A confiança de Ezequiel baseia-se no poder soberano do Deus de Israel,
poder manifestado especialmente na criação do gênero humano.
O profeta Daniel faz uma referência clara e indisputada à ressurreição dos mortos:
“Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e
outros para vergonha e horror eterno” (Daniel 12.2). O contexto fala de tempo de
angústia, qual nunca houve quando Miguel (anjo) surge para liderar o povo, e há um
livro que contém os nomes das pessoas que serão salvas (v. 1). O verso três
continua dizendo: “Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do
firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas sempre e
eternamente.” Parece que o profeta Daniel apenas se preocupa com uma
ressurreição dentro de Israel: alguns para a salvação, e outros para a condenação.
Todavia, o comentarista J. G. Baldwyn (1983) favorece a interpretação do verso dois
19
referindo-se à ressurreição geral, e não apenas dos judeus. A justiça exige a
ressurreição, pois somente a ressurreição providencia a única resposta ao problema
levantado pela morte dos servos mais fiéis do Deus vivo.
Pouco é dito sobre a ressurreição no Antigo Testamento. Não foram encontradas
declarações claras a respeito da ressurreição dos mortos antes do tempo dos
profetas, embora Jesus declarasse que já estava implícita em Êx 3.6 (cf. Mt. 22.29-
32), e o escritor de Hebreus dá a entender que até mesmo os patriarcas anelavam
pela ressurreição dos mortos (Hb 11.10, 13-16, 19). O certo é que não faltam provas
de que havia uma crença na ressurreição muito antes do cativeiro. Pode-se inferir
que a crença na ressurreição esteja implícita nas passagens que falam numa
libertação do Sheol, (Sl 49.15; 73.24,25; Pv 23.14; Jó 19.25-27; Dn 12.2; Ez 37.1-
14).
Algumas vezes os escritores do AT empregavam a idéia da ressurreição, a fim de
expressarem a esperança nacional do renascimento da nação (por exemplo, Ez 37).
A declaração mais clara no Antigo Testamento, sobre a ressurreição do indivíduo é
Dn 12.2: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida
eterna, e outros para vergonha e horror eterno”. Essa passagem claramente
contempla uma ressurreição tanto dos justos como dos ímpios, e também vê as
eternas conseqüências das ações humanas. Existem outras passagens que
esperam a ressurreição, principalmente no livro de Salmos (por exemplo, Sl 16.10 e
segs.; 49.14 e segs.). A significação precisa da grande afirmação de Jó (Jó 19.25-
27) é disputada, porém, é difícil pensar que ali não haja qualquer pensamento sobre
a ressurreição. Algumas vezes os profetas também expressavam esse pensamento
(por exemplo, Is 26.19). Porém, considerado em sua totalidade, o AT pouco fala a
respeito.
2.2 NO PERÍODO INTERTESTAMENTAL
Talvez a causa de o Antigo Testamento falar tão pouco a respeito da ressurreição
deve-se ao fato de que alguma doutrina de ressurreição podia ser encontrada entre
povos da época como os egípcios e os babilônios. Numa época em que o
sincretismo era um grave perigo, esse teria sido motivo suficiente para desencorajar
20
os hebreus de se interessarem demasiadamente na ressurreição. Durante o período
entre os dois Testamentos, quando tal perigo já não era tão grande, a idéia se faz
mais proeminente. Entretanto, nenhuma uniformidade foi conseguida e, até mesmo
nos tempos neotestamentários, os saduceus ainda negavam que houvesse a
ressurreição. Nesse tempo a maioria dos judeus aceitava alguma idéia de
ressurreição. Usualmente pensavam que estes mesmos corpos terrenos seriam
trazidos de volta à vida tais quais são.
O Apocalipse de Baruque, escrito no fim do século I d.C., reflete sobre a destruição
de Jerusalém. Para o autor, a única esperança acha-se no mundo vindouro quando
os mortos serão ressuscitados exatamente da mesma forma em que viviam: “Porque
a terra então certamente restaurará os mortos que agora recebe a fim de conservá-
los. Não fará qualquer mudança na sua forma. Mas assim como os recebeu, assim
os restaurará, e como eu os entreguei a ela, assim também ela os ressuscitará”
(Bar. Sir. 50.2). Em seguida o autor, além de manifestar sua crença na ressurreição,
deixa claro que sua expectativa é que serão reconhecíveis, mudados, e os maus
atormentados:
“Além disto, quanto à glória daqueles que agora foram justificados na minha
lei, que tiveram entendimento durante sua vida, e que plantaram no seu
coração o fruto da sabedoria, então seu esplendor será glorificado em
mudanças, e a forma do seu rosto será transformada na luz da sua beleza, a
fim de que possam adquirir e receber o mundo que não morre que então lhes
é prometido” (Bar. Sir. 51.3).
Outro escrito apocalíptico é 2 Esdras, escrito na mesma época e descrevendo a
vinda do Messias, fala que depois de um reino de quatrocentos anos “a terra
devolverá os que dormem nela, e do pó, os que ali descansam [e as câmaras
devolverão os que a elas foram entregues]. E o Altíssimo será revelado no trono do
julgamento: (e então vem o Fim) e a compaixão passará (e a dó ficará longe)... E
depois aparecerá o abismo do tormento, e, do lado oposto, o lugar de refrigério; a
fornalha do Geena será manifestada, e, do lado oposto, o Paraíso de deleite” (2 Ed
7.32-36). As nações também serão levantadas para o julgamento (vv. 37 e segs.).
Os salvos são os que observaram “de modo perfeito a Lei do legislador” (v. 89). O
rosto dos justos na ressurreição brilhará como o sol (v. 97 - ênfase minha).
21
Enoque Etíope, com data do século II ou início do século III, pode ser dividido em
cinco seções principais as quais expressam uma variedade de expectativas
escatológicas. Os capítulos 1-36 não falam explicitamente de uma ressurreição, mas
é subentendida. Enoque visita o Sheol, o estado intermediário dos mortos. A
declaração que alguns dos espíritos dos ímpios serão ressuscitados no dia do
julgamento (22.13) sugere que outros serão ressuscitados. A ressurreição dos
israelitas justos é subentendida em 90.33. Para Enoque os ímpios “não terão
esperança de levantar-se dos seus leitos, porque não exaltam o nome do Senhor
dos Espíritos” (46.6). Os justos serão levantados como os escolhidos do Eleito, o
celestial Filho do homem: “E naqueles dias a terra também devolverá aquilo que a
ela foi confiada, e o Sheol devolverá aquilo que recebeu, e o inferno devolverá aquilo
que deve. Pois naqueles dias o Eleito surgirá, e escolherá os justos e os santos
dentre eles: Pois o dia aproximou-se em que devem ser salvos” (51.1-2). A natureza
da ressurreição é descrita em Enoque Etíope 62.13-16:
“E os justos e os eleitos serão salvos naquele dia, e nunca mais, a partir de
então, verão o rosto dos pecadores e dos ímpios. E o Senhor dos Espíritos
habitará sobre eles, e com aquele Filho do Homem comerão, e deitar-se-ão
e levantar-se-ão para sempre e sempre. E os justos e os eleitos terão sido
ressuscitados da terra, e terão cessado de ter o semblante abatido. E estas
serão as vestes da vida da parte do Senhor dos Espíritos: e vossas vestes
não se envelhecerão, nem vossa glória desaparecerá diante do Senhor dos
Espíritos.”
Esta última passagem parece ter em mira a ressurreição de um corpo transfigurado.
Trata-se de mais um escrito intertestamental que comprova a ressurreição dos
mortos no judaísmo.
Na comunidade de Cunrã, acerca da ressurreição, criam que o destino final
daqueles que forem ressuscitados dentre os mortos é juntar-se à comunidade
angelical dos espíritos e serem transmutados da matéria em espírito, de homem em
ser angelical. Essa variedade de ênfases que se acha nos textos de Cunrã
substancia os relatos de Josefo, que sustentava que os essênios acreditavam tanto
na ressurreição do corpo quanto na imortalidade da alma:
22
Ora, a seguinte opinião é firmemente sustentada entre eles [...] que embora
os corpos sejam corruptíveis e sua substância material não tenha
permanência, as almas são imortais e continuam para sempre; e que,
emanado da atmosfera mais fina, estão presas nos seus corpos como em
prisões, para as quais são trazidas por certa atração natural: mas quando
são libertadas dos vínculos da carne, regozijam-se, e são levadas para
cima, livres de uma longa escravidão. [...]. Ora, o dogma (palavra) da
ressurreição também é firmemente sustentado entre eles [...] Pois
confessam que a carne também ressuscitará e que será imortal como a
alma já é imortal, e dizem que agora a alma, quando se separa do corpo,
entra num lugar de ar flagrante e de luz, para descansar até ao
julgamento... pois dizem que haverá um julgamento e uma conflagração de
todas as coisas, e que os maus serão eternamente castigados. (BROWN,
1989, p. 176-177)
A revivificação dos mortos (ressurreição) é a doutrina primária do judaísmo na
literatura talmúdica posterior. As investigações mais recentes têm demonstrado a
crença generalizada na ‘imortalidade da alma’ lado a lado com a ‘ressurreição’ no
judaísmo entre cerca de 200 a.C. e 100 d.C. Nem o AT nem a literatura posterior
intertestamental contém uma escatologia uniforme. Em trechos grandes do AT
apresenta-se a expectativa concentrada nesta vida e naquilo que Javé está fazendo
na história; noutros casos, vemos a crença no fato de que ‘porque Javé vive seu
povo também viverá’. Muito embora os textos não expliquem a natureza desta
existência, pelo menos explicam que sua identidade continuará. E, muito embora o
Sheol seja definido como o destino final dos homens, apresenta-se também o
começo do pensamento (e seu conseqüente crescimento) em uma sobrevivência
mais rica e valiosa num outro mundo, e uma ressurreição para uma vida na terra.
Apesar de se ter muita conjectura sobre a origem da crença na ressurreição entre os
judeus, pode ser dito que eles já criam na ressurreição antes do contato com o
Império Persa. O pensamento de uma vida no além tem sua raiz mais profunda na
consciência de Deus: porque Javé vive, e é o Deus de Israel conforme a aliança, e
Israel é seu povo, há continuidade do relacionamento e da vida. Esta consciência
desenvolveu-se no decurso da história de Israel, e parcialmente também em
contraste com as crenças religiosas da circunvizinhança.
23
A ênfase deste tópico não foi à origem da crença na ressurreição por parte dos
judeus, mas à presença da doutrina entre eles também durante o período
intertestamental.
2.3 NO NOVO TESTAMENTO
O Novo Testamento (NT) está permeado de textos alusivos à ressurreição. Um dos
capítulos da Bíblia que mais fala sobre esse assunto está em 1 Co 15, onde Paulo
trata exclusivamente sobre a ressurreição. Nesse texto o apóstolo demonstra o fato
de que não somente Jesus ressuscitou dentre os mortos, mas igualmente um dia
todos os homens também ressuscitarão. A posição geral do Novo Testamento é que
a ressurreição de Cristo será seguida pela ressurreição dos crentes. Jesus disse:
“eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.” (Jo
15.25). Por diversas vezes Ele se referiu à ressurreição dos crentes no último dia (Jo
6. 39, 40, 44, 54). Os saduceus se ressentiam com o fato de que os apóstolos
anunciavam ‘em Jesus a ressurreição dentre os mortos’ (At 4.2). Paulo nos diz que:
“Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio à ressurreição
dos mortos” (1 Co 15.21 e segs.; 1Ts 4.14). Semelhantemente, Pedro escreve: “...
nos regenerou para uma viva esperança mediante a ressurreição de Jesus Cristo
dentre os mortos” (1 Pe 1.3). Fica bastante claro, pois, que os escritores do NT não
pensavam na ressurreição de Cristo como um fenômeno isolado. Foi um grande ato
divino que trouxe conseqüências positivas para o homem. Visto que Deus
ressuscitou a Cristo, pôs o seu selo sobre a obra expiatória levada a efeito na cruz.
Deus demonstrou seu poder divino em face do pecado e da morte, e, ao mesmo
tempo exibiu sua vontade de salvar os homens. Dessa maneira, a ressurreição dos
crentes é decorrência imediata da ressurreição de Jesus Cristo. Tão característica
dos crentes é a sua ressurreição que Jesus pôde referir-se aos crentes como “...
filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição” (Lc 20.36).
Isso não significa que todos os mortos ressuscitarão para a bem-aventurança. O
ensino claro do NT é que todos ressuscitarão, mas que aqueles que tiverem
rejeitado a Cristo descobrirão que a ressurreição é uma questão verdadeiramente
séria. Para os cristãos o fato de que sua ressurreição está ligada com a do Senhor,
24
torna sua situação inteiramente diferente. À luz de obra expiatória de Cristo a favor
deles, permite-lhes pensar na ressurreição com calma e alegria.
2.4 NOS PAIS DA IGREJA
O cristianismo é uma religião histórica. Ele afirma que Deus assumiu o risco
de Se envolver na história humana, e os fatos estão aí para que você
examine com todo o rigor possível. Esses fatos suportarão qualquer dose
de investigação crítica... (GREEN apud MCDOWELL, 1992. p. 232)
Jamais se forjou, nem jamais se forjará uma arma que destrua a confiança
racional nos registros históricos deste acontecimento memorável e predito.
A ressurreição de Cristo é a própria fortaleza da fé cristã. É a doutrina que,
no primeiro século, virou o mundo de cabeça para baixo; que, de um modo
preeminente, elevou o cristianismo acima do judaísmo e das religiões pagãs
do mundo mediterrâneo. Se a ressurreição não subsistir, de igual forma
quase tudo o mais que é vital e singular ao Evangelho do Senhor Jesus
Cristo não subsistirá: ‘Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé. ’ (1 Co
15.17). (SMITH apud MCDOWELL, 1992. p. 232)
No tempo de Jesus havia uma diferença de opiniões entre os judeus a respeito da
ressurreição. Enquanto que os fariseus criam nela, os saduceus não criam (Mt
22.23; At 23.8). Quando Paulo falou a seu respeito em Atenas, enfrentou zombaria
(At 17.32). Alguns dos coríntios a negavam (1 Co 15), e Himeneu e Fileto,
considerando-a como algo puramente espiritual, asseveravam que ela já era coisa
pertencente à história (2 Tm 2.18). Celso, um dos mais antigos opositores do
cristianismo, fazia especialmente desta doutrina objeto de escárnio; e os gnósticos,
que consideravam a matéria como inerentemente má, naturalmente a rejeitavam.
O período que se seguiu aos apóstolos traz muitas referências, mas o segundo
século apresenta tratados exclusivamente dedicados à ressurreição, como é o caso
de Atenágoras e da obra atribuída a Justino Mártir.
Tanto na história da igreja como na história da doutrina, a ressurreição é declarada
desde os primeiros momentos. É mencionada por Clemente de Roma na Epístola
aos Coríntios (95 A.D.), o mais antigo documento da história da igreja, e daí por
25
diante é mencionada continuamente, durante todo o período patrístico. Aparece em
todas as formulações do Credo Apostólico e nunca é refutada. Inácio pregava que
Jesus é a mensagem básica do evangelho, e a religião cristã consiste de ‘fé nele e
amor para com ele, sua Paixão e Ressurreição’. Ele insta os cristãos a estarem
‘plenamente convictos acerca do nascimento, paixão e ressurreição’ de Jesus.
Policarpo (em sua Epístola aos Filipenses - aproximadamente. 110 A.D.) menciona
que nosso Senhor Jesus Cristo ‘suportou sofrimentos até ao ponto de morrer por
nossos pecados, e que Deus o ressuscitou, libertando-o dos grilhões da morte’. Ele
diz que Deus ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos e deu-lhe glória e um trono
à Sua destra, e a quem estão sujeitas todas as coisas nos céus e na terra’. O Jesus
ressurreto virá como Juiz de vivos e mortos. Para Policarpo, o Jesus exaltado é o
Sumo Sacerdote Eterno. E a oração final que esse bispo fez antes do martírio foi
que ele pudesse ser parte dos mártires do cálice de Cristo e participar da
ressurreição da vida eterna, tanto do corpo como da alma, através da obra
incorruptível do Espírito Santo. Justino Mártir (100-165), em seu tratado acerca da
ressurreição, aborda a doutrina caracteristicamente cristã. Na época a oposição à
cristã afirmava que a Ressurreição era impossível e indesejável, visto que a carne
era a causa dos pecados; inconcebível, visto que não pode haver qualquer sentido
na sobrevivência dos órgãos existentes. Além disso, eles sustentavam que a
ressurreição de Cristo ocorreu apenas na aparência física e não na realidade física.
A essas objeções e dificuldades Justino replicou.
Os cristãos do primeiro século reconheciam que a ressurreição fornecia a
reivindicação central do cristianismo. Com a ressurreição, a mensagem cristã da
vida eterna está segura, e se baseia na realidade da vitória de Jesus sobre a morte.
Sem a ressurreição, a mensagem cristã é reduzida à de uma filosofia humana.
Os escritores pós-apostólicos mais antigos sustentavam essa mesma mensagem da
centralidade da ressurreição de Jesus. Clemente de Roma assevera que esse
evento não somente demonstra a veracidade da mensagem de Cristo como também
é um exemplo da ressurreição do crente. Inácio insiste na historicidade literal desta
ocorrência como um evento dentro do tempo, que é a esperança do crente e
exemplo da nossa ressurreição. Ele também ressalta a crença de que foi a carne de
Jesus que foi ressuscitada.
26
Este último tema: se foi a carne de Jesus que foi ressuscitada, como defendia Inácio
e, posteriormente, Tertuliano, ou se foi um corpo ressurreto não composto de carne,
como defendia a escola alexandrina e Orígenes em especial, foi uma questão
controvertida de grande importância na teologia cristã primitiva. Foi o primeiro destes
pontos de vista, ou formas dele, que paulatinamente veio a ser o conceito
largamente sustentado na igreja medieval e mesmo depois.
Para muitos estudiosos hodiernos que aceitam a ressurreição literal de Jesus, a
ênfase foi deslocada para ressaltar o conceito de Paulo acerca do “corpo espiritual”
(1 Co 15.35-50, por exemplo), procurando tratar com justiça os dois elementos.
Sendo assim, Jesus foi ressuscitado num corpo verdadeiro que tinha novas
qualidades espirituais.
A maior parte dos Pais da Igreja acreditava na ressurreição do corpo, ou seja, na
identidade do corpo futuro com o presente. Os pontos de vista de Clemente da
Alexandria não são bem claros, mas é claro que Orígenes, enquanto defendia a
doutrina da igreja contra Celso, rejeitava a idéia que um corpo idêntico seria
ressuscitado. Descreveu o corpo da ressurreição como um corpo refinado e
espiritualizado. Alguns dos Pais da Igreja compartilhavam da idéia dele, no entanto a
maioria deles ficava com a opinião que o corpo da ressurreição seria em todos os
aspectos idêntico ao corpo formado na vida presente. Agostinho concordava com
Orígenes no começo, mas finalmente aceitava o ponto de vista prevalecente, sem
considerar necessário supor que as atuais diferenças de tamanho e estatura
continuariam na vida do porvir. De fato, acreditava que na ressurreição todos teriam
a estatura da pessoa completamente adulta. Orígenes tinha a dupla tarefa de expor
a verdade contra o literalismo grosseiro, que dizia que o corpo seria reconstituído
com todas suas funções físicas no último dia (para ele o erro dos literalistas está em
ler as Escrituras acalentando sonhos de, após a ressurreição, habitarem numa
Jerusalém terrestre, onde comerão, beberão e desfrutarão do ato sexual à vontade);
e contra o espiritualismo obstinado dos gnósticos e maniqueus, os quais propunham
que o corpo fosse excluído da salvação. Jerônimo, o mais destacado crítico
ocidental das idéias de Orígenes sobre a ressurreição, até 394 era um ardoroso
adepto do origenismo, sustentando entre outras doutrinas sua teoria do
27
desaparecimento do corpo natural e da transformação dos eleitos em seres
puramente espirituais na ressurreição. Entretanto, após essa data, ele passou por
uma mudança radical e começou a enfatizar, com um cuidado estritamente
literalista, a identidade física do corpo da ressurreição com o corpo terreno (insistia
na identidade dos próprios cabelos e dentes). De modo geral, pode-se dizer que o
Oriente manifestava uma tendência de adotar um ponto de vista mais espiritual da
ressurreição do que o Ocidente. Cirilo de Jerusalém estava familiarizado com as
antigas objeções científicas baseadas na putrefação de cadáveres, o fato de que
eles podiam ser consumidos por peixes, urubus ou animais terrestres, podiam ser
destruídos pelo fogo, e assim por diante, mas achava que se podia crer que a
onipotência de Deus fosse capaz de reunir as partículas dispersas. Dídimo
sustentou que o corpo da ressurreição será um corpo celeste; a vida não destruirá
nosso tabernáculo eterno, mas o absorverá, concedendo-lhes qualidades
superiores. Gregório de Nissa, por outro lado, propôs uma solução mais ousada que
fazia lembrar o pensamento de Orígenes. À semelhança de seu mestre, ele fazia
distinção entre os elementos materiais que compunham o corpo, os quais se
encontram sempre em fluxo, vindo à existência e desaparecendo continuamente, e a
‘fôrma’, ou ‘tipo’ corpóreo, que nunca perde sua individualidade. Essa ‘fôrma’ é
conhecida pela alma, e até deixa nela sua marca durante sua vida mortal;
consequentemente, a alma sempre pode reconhecer os elementos físicos que lhe
pertencem, por mais dispersos que estejam e, no momento da ressurreição, atrai
para si aqueles que forem necessários. O ensino de Hilário assemelha-se bastante
ao de Cirilo de Jerusalém. Ele afirma que, ao ressuscitar os corpos dos que tiverem
morrido, Deus reconstituirá a matéria idêntica de que outrora foram compostos, mas
modificará sua qualidade e lhes concederá esplendor e beleza próprios de sua nova
condição. Ambrósio justifica a ressurreição do corpo como tal, com base no fato de
que ele partilha das ações provocadas pela alma e que, desse modo, deve ir com
ela a julgamento; ele ainda destaca que o próprio termo ‘ressurreição’ deixa implícito
que o que é ressuscitado é o próprio corpo que morreu e foi sepultado. No entanto,
embora o corpo permaneça identicamente o mesmo, o corpo passará por
transformação e espiritualização quando ressuscitar. Gregório, Gregório de Nissa,
Crisóstomo e Sinésio concordavam em grande medida com Orígenes. João
Damasceno afirmava a restituição do mesmo corpo, mas se satisfez com aquele
ponto de vista de identidade que é sugerido pela analogia da semente e da planta.
28
Os escolásticos especulavam quanto ao corpo da ressurreição. Suas especulões
eram fantasiosas e tinham pouco valor permanente. Tomás de Aquino parecia ter
informações especiais quanto ao assunto. Informa-nos que os que estiverem vivos
por ocasião da vinda de Cristo primeiramente morrerão, e depois serão
ressuscitados com os restantes dos mortos. A ressurreição acontecerá perto do
momento da morte. Todos estarão no frescor da juventude. O corpo será tangível,
todavia, fino, leve, e não sujeito ao crescimento. Em obediência ao impulso da alma
poderá movimentar-se rápida e facilmente. Os corpos dos ímpios, no entanto, serão
feios e deformados e capazes de muitos sofrimentos, embora incorruptíveis.
Relacionando a ressurreição à volta de Cristo, o Didaquê afirma que a parousia será
precedida da ressurreição dos mortos. Parece que o autor restringe isso aos justos,
mas o ensino normal era que bons e maus ressuscitariam igualmente. Inácio cita a
ressurreição de Cristo como protótipo daquela dos crentes, e Barnabé reproduz o
argumento de Paulo, dizendo que o Salvador ressuscitou para destruir a morte e dar
prova de nossa ressurreição. Devemos observar que tanto Barnabé quanto o autor
de 2 Clemente insistem na necessidade de ressuscitarmos na mesma carne que
agora temos, e a idéia é que receberemos a justa retribuição de nossos feitos.
Clemente também ensina que a ressurreição de Cristo prenuncia a nossa, e ele é
pioneiro na elaboração de argumentos racionais, dentro de um padrão que mais
tarde passaria a ser clássico, a fim de tornar plausíveis as idéias de uma
ressurreição. Ele insiste que a transição da noite para o dia e a transformação de
sementes secas - que estão se desintegrando - em plantas viçosas, proporcionam
analogias extraídas da ordem natural, assim como a lenda da fênix, da mitologia
pagã; de qualquer maneira, ela é compatível com a onipotência, sendo inúmeras
vezes profetizadas nas Escrituras. É provável que a insistência desses escritores
seja explicada pela rejeição de uma ressurreição real manifestada por docetas e
gnósticos, que, obviamente, recusavam-se a crer que a carne material pudesse viver
no plano eterno. Muito provavelmente eram eles que Policarpo tinha em mente
quando afirmou sem reservas: “aquele que nega a ressurreição e o juízo é o
primogênito de Satanás”. Bernard Ramm conclui a respeito:
A descrença é obrigada a rejeitar todo o testemunho dos Pais da Igreja [...]
29
Ela pressupõe que esses homens não tiveram a motivação para de fato
investigarem a ressurreição de Cristo, ou então não tiveram padrões
históricos para fazê-lo. Os Pais da Igreja, cuja autoridade é total ou
parcialmente aceita pela Igreja Católica Ortodoxa Oriental, pela Igreja
Católica Romana e pela Igreja Anglicana, sendo eles bastante considerados
pelos Reformadores e, na medida certa por todos os teólogos, são
desprezados pela descrença. São aceitos como válidos em relação a dados
da teologia apostólica ou do período logo após os apóstolos, mas em
questões fatuais rejeitam-se até mesmo os aspectos menos importantes do
testemunho das provas. E tem de ser assim, caso contrário a descrença
não subsisti. (RAMM apud MCDOWELL, 1992. p. 248)
2.5 NOS CREDOS
Desde os primórdios dos tempos a igreja cristã preocupou-se em confessar sua fé
na ressurreição – conforme os principais credos da igreja até a formulação do ‘Credo
Apostólico’ em forma universalmente aceita.
2.5.1 No Credo dos Apóstolos
O “Antigo Credo Romano”
Marcelo, bispo de Ancira, desterrado de sua diocese por pressões arianas, passou
quase dois anos em Roma e, antes de sair da cidade, deixou este documento de
sua fé enviando-o a Júlio, bispo de Roma (cerca de 340 a.D.).
Rufino, sacerdote de Aquiléia (cerca de 400 a.D.) compara o credo de Aquiléia com
o de Roma, tomando-o como o credo composto pelos apóstolos em Jerusalém e
conservado pela igreja Romana como profissão de fé em seu ritual de batismo. Este
credo difere do de Marcelo apenas em pequenos detalhes.
Creio em Deus onipotente [Rufino: em Deus Pai onipotente] e em Jesus
Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu do Esrito Santo e da
virgem Maria, que foi crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado,
e ao terceiro dia ressurgiu da morte (ênfase minha), que subiu ao céu e
assentou à direita do Pai, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos.
E no Espírito Santo, na santa Igreja, na remissão dos pecados, na
ressurreição da carne (ênfase minha), na vida eterna [omitido por Rufino].
(BETTENSON, 1998. p. 60)
30
2.5.2 No Credo Niceno
O Credo de Cesaréia
Eusébio de Cesaréia, o famoso historiador, no Concílio de Nicéia (325) sugeriu a
adoção do credo de sua própria igreja, cujo teor é o seguinte:
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis
e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus, Deus de
Deus, Luz de Luz, Vida de Vida, Filho unigênito, primogênito de toda a
criação, por quem foram feitas todas as coisas; o qual foi feito carne para
nossa salvação e viveu entre os homens, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro
dia (ênfase minha), e subiu ao Pai e novamente virá em glória para julgar os
vivos e os mortos; cremos também em um só Espírito Santo.
(BETTENSON, 1998. p. 60)
O Credo de Nicéia
O credo de Eusébio mesmo sendo ortodoxo não resolvia a posição de Ário. Todavia,
serviu de base e foi aperfeiçoado pelo concílio e publicado em forma revisada, cujas
alterações e adições aparecem entre aspas.
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis
e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, Luz de Luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só
substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão
no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa
salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou ao
terceiro dia (ênfase minha), subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar
os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele era
quando não era”, e “Antes de nascer, Ele não era”, ou que “foi feito do não
existente”, bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra
substância ou essência”, ou “feito”, ou “mutável”, ou “alterável” a todos estes
a Igreja Católica Apostólica anematiza. (BETTENSON, 1998. p. 60)
O Credo “Niceno”
Este credo encontra-se em Epifânio, Ancoratus, 118 (cerca de 374 a.D.), e parece
ter sido extraído por estudiosos, quase palavra por palavra, das leituras catequéticas
de Cirilo de Jerusalém. Foi lido e aprovado em Calcedônia (451 a.D.) como sendo o
credo dos trezentos e dezoito padres conciliares de Nicéia e dos cento e cinqüenta
31
padres que se reuniram em Constantinopla (381 a.D.). Daí ser freqüentemente
mencionado como “Credo de Constantinopla” ou “credo niceno-constantinopolitano”.
Muitos críticos opinam ser a revisão do credo de Jerusalém transmitido por Cirilo.
Cremos em um Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de
todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o
unigênito Filho de Deus, gerado pelo pai antes de todos os séculos, Luz de
Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só
substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós
homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne do Espírito
Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por nós sob
o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu, e foi sepultado, e ressuscitou ao
terceiro dia (ênfase minha) conforme as Escrituras, e subiu aos céus, e
assentou-se à destra do Pai, e de nova há de vir com glória para julgar os
vivos e os mortos, e seu reino não terá fim; e no Espírito Santo, Senhor
Vivificador, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho conjuntamente é
adorado e glorificado, que falou através dos profetas; e na Igreja una santa,
católica e apostólica; confessamos um só batismo para remissão dos
pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos (ênfase minha) e a vida do
século vindouro. (BETTENSON, 1998. p. 60)
2.5.3 No Credo Apostólico
O Credo Apostólico completo, em sua forma universalmente aceita e tal qual a
conhecemos, encontra-se pela primeira vez em Dicta Abbatis Pirminii de singulis
libris canonicis scarapsus (=excerptus, excerto), cerca de 750 A.D.
Creio em Deus Pai, Todo-poderoso criador do céu e da terra. Creio em
Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra
do Espírito santo; nasceu da virgem Maria; padeceu sob o poder de Pôncio
Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao Hades; ressurgiu dos
mortos ao terceiro dia; subiu ao céu; está assentado à mão direita de Deus
Pai Todo-poderoso, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo; na santa Igreja universal; na comunhão dos santos;
na remissão dos pecados; na ressurreição do corpo; na vida eterna. Amém.
Com base na pregação dos apóstolos, os quais enfatizaram dois temas principais: a
morte e a ressurreição de Jesus – os dois pilares da fé cristã –, a igreja destacou a
32
ressurreição dos mortos como a expressão de sua expectativa quanto ao status pós-
morte. Por isso, o Credo Apostólico, mormente no que se refere à Escatologia,
destaca a ressurreição do corpo.
3 A ESCATOLOGIA CATÓLICO-ROMANA
Na Teologia sistemática emprega-se tamm esse nome Escatologia para
designar o tradicional Tractatus de Novissimis (Tratado dos Novíssimos). Ora,
este nome tradicional de "Novíssimos", da mesma forma que o de
"Escatologia", está inspirado - principalmente - num importante texto do
Eclesiástico (7.40), que deveria estar gravado em muitos lugares, mas,
sobretudo, na mente e no coração. Ei-lo como se encontra na Nova Vulgata: "In
omnibus operibus tuis memorare novissima tua et in aeternum non peccabis"
(em todas as tuas ações lembra-te dos teus últimos acontecimentos, e não
pecarás). (RAPOSO, 1995)
De onde vim? Quem sou? Qual o propósito da minha existência? Para onde vou? Tais
questões existenciais estão sempre presentes na história da humanidade. Encontrar
respostas satisfatórias para essas indagações é o objetivo precípuo do indivíduo,
todavia, não são poucos os que finalizam sua existência sem ter encontrado resposta
para, pelo menos, uma das questões existenciais.
A questão pertinente aqui é: “Qual o nosso destino final?”. Já foi dito que para encontrar
a resposta é necessário fazer uma prospecção, uma tentativa de análise do futuro, dos
últimos acontecimentos previstos e acreditados para o fim do homem. Vejamos o que a
dogmática católica-romana expõe sobre esse assunto.
3.1 A MORTE
A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) ensina que “para ressuscitar com
Cristo é preciso morrer com Cristo” (Catecismo da Igreja Católica. p. 283, parágrafo
1005). Tal ensinamento tem duplo sentido, espiritual e literal. A morte,
espiritualmente considerada, se dá por meio do batismo, morremos com Cristo para
viver em novidade de vida: “[...] A novidade essencial da morte cristã está nisto: pelo
Batismo, o cristão já está sacramentalmente “morto com Cristo”, para viver de uma
vida nova; [...]. (Catecismo da Igreja Católica. p. 284, parágrafo 1010). A morte,
literalmente considerada, é a morte propriamente dita, a morte física, por meio da
qual é consumada nossa incorporação a ele: “[...] e, se morrermos na graça de
Cristo, a morte física consuma este “morrer com Cristo e completa, assim, nossa
34
incorporação a ele em seu ato redentor: [...] “ (ICAR, p. 284, parágrafo 1010). A
Igreja, portanto, incentiva repensar sobre nossa existência e refletir sobre a
inevitável morte:
Essa recordação da morte, desse último momento da nossa vida "a quo
pendet aeternitas” (como dizem os santos), é muito eficaz para infundir o
santo temor de Deus, e evitar o pecado e a excessiva preocupação pelas
coisas materiais, e preocupar-se mais para entesourar para o céu, que
ninguém poderá arrebatar-nos. Nesse sentido é muito significativa e
alertante a parábola do homem rico (Lc 12, 16-21), pela qual Jesus condena
todo programa completamente materialista, consumista, hedonista (para
servir-nos da trilogia tantas vezes repetida pelo Papa João Paulo II) à
margem de Deus e aos pobres, que logo mereceu o castigo: a morte súbita
com as consequências para a eternidade. (RAPOSO, 1995)
A ICAR compreende que a existência terrena é única; é uma oportunidade singular
para que o homem decida seu destino final. E, em adendo, a igreja combate a idéia
da reencarnação:
A morte é o fim da peregrinação terrestre do homem, do tempo de graça e
de misericórdia que Deus lhe oferece para realizar sua vida terrestre
segundo o projeto divino e para decidir seu destino último. Quando tiver
terminado “o único curso de nossa vida terrestre”, não voltaremos mais a
outras vidas terrestres. “Os homens devem morrer uma só vez” (Hb 9.27).
Não existe “reencarnação” depois da morte. (ICAR, p. 285, parágrafo 1013).
A ICAR acredita e ensina que os santos (Santa Maria e São José) possam auxiliar
na hora da morte para uma transição segura até Deus. “A Igreja nos encoraja à
preparação da hora de nossa morte [...] a pedir à Mãe de Deus que interceda por
nós “na hora da nossa morte” (oração da Ave Maria) e a entregar-nos a S. José,
padroeiro da boa morte [...]. ” (ICAR, p. 286, parágrafo 1014). Ademais, uma vez que
a graça de Deus habita o crente corporalmente,
A Igreja sempre mostrou uma grande reverência pelos corpos dos fiéis
defuntos: sepulta-os com orações cheias de afeto e reverência, em túmulos
bentos especialmente para este fim. A única pessoa dispensada da
corrupção do túmulo foi a Mãe de Deus. Pelo especial privilégio de sua
35
Assunção, o corpo da Bem-aventurada Virgem Maria, unido à sua alma
imaculada, foi glorificado e assunto ao céu. O seu divino Filho, que dela
tomou a sua carne, levou-a consigo para o céu. Este acontecimento é
comemorado no dia 15 de agosto – ou no domingo seguinte a esta data -,
festa da Assunção de Maria. (TRESE, p. 169)
3.2 O JUÍZO PARTICULAR
Para a ICAR, “O cristão, que une sua própria morte à de Jesus, vê a morte como um
caminhar ao seu encontro e uma entrada na Vida Eterna.” (ICAR, p. 287, parágrafo
1020), e ainda: “A morte põe fim à vida do homem como tempo aberto ao
acolhimento ou à recusa da graça divina manifestada em Cristo. (ICAR, p. 287,
parágrafo 1021). Desta forma, a igreja ensina que a morte encerra o tempo oportuno
para definição do estado eterno do indivíduo. Após a morte, vem o juízo. Com base
no Novo Testamento, a igreja compreende o juízo em dois tempos: o juízo particular,
que acontece imediatamente após a morte,um fato invisível e interior entre a alma
e Deus, um momento no qual a alma se viu com nova luz, como a vê Deus, e assim
pronunciou o juízo de Deus sobre si mesma (BARTH, p. 721); e o juízo final ou
universal, que acontecerá por ocasião da volta de Cristo, “um juízo visível a todos e
no qual Cristo se servirá de seu direito de rei, de Senhor e de Cabeça da
humanidade”. (BARTH, p. 721)
Cada homem recebe em sua alma imortal a retribuição eterna a partir do
momento da morte, num Juízo Particular que coloca sua vida em relação à
vida de Cristo, seja por meio de uma purificação, seja para entrar de
imediato na felicidade do céu, seja para condenar-se de imediato para
sempre. (ICAR, p. 288, parágrafo 1022)
São pouquíssimos os textos que se refiram claramente ao juízo particular. Mas
trata-se de uma verdade de fé, definida pelo Concílio Fiorentino, que o
homem logo após a morte é julgado particularmente por Deus. (RAPOSO, 1995)
Por ocasião do juízo particular, para que tenhamos “uma sentença favorável”, é
imprescindível que a vida tenha sido desenvolvida responsavelmente, com fé em
Cristo e participação nos sacramentos da igreja.
36
A sorte eterna do homem será fixada imutavelmente com sua morte. Esta
imutabilidade da sorte, após a morte, impõe que, antes desta, se tenha um
sentido agudíssimo da responsabilidade que temos na vida e que a nossa
vida se nutra dos sacramentos da Igreja, permanecendo unida a Cristo,
exercitando-nos assim na arte de morrer cristãmente, com o exercício atual
da arte de viver cristãmente. (BARTH, p. 610).
3.3 O PURGATÓRIO
O céu, “o fim último e a realização das aspirações mais profundas do homem, o
estado de felicidade suprema e definitiva” (ICAR, p. 289, parágrafo 1024), reservado
àqueles que creram em Jesus e que ficaram fiéis à sua vontade, só poderá ser
alcançado imediatamente após a morte, pelos “que morrem na graça e na amizade
de Deus, e que estão totalmente purificados” (ICAR, p. 288, parágrafo 1023). A
igreja ensina ainda que o acesso ao céu está condicionado às obras: “Quem chega
ao céu? O céu é recompensa, prêmio, mérito, é preciso, pois, ter feito alguma coisa:
fé, trabalho, abstinência do mal, renúncias, sacrifícios, fidelidade, vigilância.
(BARTH, p. 635).
“Mas o que acontecerá se, ao morrermos, o Juízo Particular não nos encontrar
separados de Deus pelo pecado mortal, mas também não com a perfeita pureza de
alma que a união com o Santo dos Santos requer?” - pergunta Leo J. Trese – e
complementa: “E eis-nos no Juízo: não merecemos o céu nem o inferno; que será
de nós?” (TRESE, p. 166). De acordo com o Catecismo, “os que morrem na graça e
na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham
garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim
de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu.”. (ICAR, p. 290,
parágrafo 1030). Na opinião de Jean-Marie Aubert, “[...] o purgatório é uma terapia
em vista da cura completa da alma, permitindo-lhe beneficiar-se em plenitude e,
segundo sua capacidade, gozar da bem-aventurança divina.” (AUBERT, p. 157)
O termo “purgatório” vem do latim torium, correspondente ao grero rion (lugar)
adicionado ao verbo purgo (purificar). Portanto "purgatório" significa “lugar de
purificação” das almas ainda maculadas com manchas leves, devidas aos pecados
37
mortais já perdoados, mas não completamente satisfeitos quanto às penas temporais ou
a pecados leves ainda não perdoados.
Trata-se de um dogma de fé definido contra os Valdenses e Albigenses pelos
Concílios Flor. e Lugdun. II e, ultimamente pelo Conc. Trid. contra os Protestantes. "A
Igreja Católica, pelo Espírito Santo, pelas Sagradas Escrituras e antiga tradição
Padres, nos sagrados Concílios, e ultimamente neste Sínodo Ecumênico
(ensinou) que existe o Purgatório, e que as almas aí destinadas são auxiliadas pelos
sufrágios dos fiéis, mas sobretudo pelo aceitável sacrifício do altar" (Conc. Trid. são
estas palavras, Sess. XXV - De Purgatório apud RAPOSO, 1995)
Oficialmente a igreja apresenta e define o Purgatório com base na Escritura
(Evangelho segundo Mateus, capítulo 12, versículo 32) e na Tradição (Concílios de
Florença e de Trento – séculos XV e XVI).
A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos que é
completamente distinta do castigo dos condenados. A Igreja formulou a
doutrina da fé relativa ao Purgatório, sobretudo no Concílio de Florença e de
Trento. Fazendo referência a certos textos da Escritura, a tradição da Igreja
fala de um fogo purificador: No que concerne a certas faltas leves, deve-se
crer que existe antes do juízo um fogo purificador, segundo o que afirma
aquele que é a Verdade, dizendo, que, se alguém tiver pronunciado uma
blasfêmia contra o Espírito Santo, não lhe será perdoada nem no presente
século nem no século futuro (Mt 12,32). Desta afirmação podemos deduzir
que certas faltas podem ser perdoadas no século presente, ao passo que
outras, no século futuro. (ICAR, p. 290, parágrafo 1031)
A passagem pelo Purgatório é uma oportunidade de purificar-se daquelas faltas
leves que ainda não haviam sido purificadas. Portanto, é uma nova experiência
exclusiva para aqueles que seguirão dali para o céu.
O juízo particular segue-se para cada um logo após a morte e a sentença
será definitiva: paraíso ou inferno. E se for reservado ainda um tempo de
purificação para aqueles que não estão ainda totalmente purificados, já
estão, contudo, igualmente destinados ao paraíso. (BARTH, p. 624).
38
A Igreja ensina que o Purgatório é uma demonstração da misericórdia de Deus em
que, por meio do sofrimento, prepara seus eleitos para a eternidade nos céus. É
onde Deus “reparará pelo sofrimento o que não fizemos na terra com a nossa
cooperação.” (BARTH, p. 647).
O Purgatório é para os medíocres. Para os que oscilam sempre entre o sim
e o não, que não tomam seriamente a penitência permanecendo sempre a
meio caminho. A nossa vida deve ser perfeita, segundo a imagem de Deus.
Portanto todo recanto do nosso coração deve ser limpo e pertencer a Deus
unicamente, sem ocultar nele algo de desordenado (cf. Santo Tomás,
Suppl. 71 6). (BARTH, p. 648).
Portanto, o Purgatório destina-se aos que não estão suficientemente santificados. A
Igreja ensina que o Purgatório é um caminho para a purificação no qual acontece o
encontro com Deus para o juízo particular, a decisão particular da alma julgada para
submeter-se à purificação no Purgatório e a assistência da igreja às almas no
purgatório.
Caminho para a purificação: a) O encontro com Deus no juízo dá-nos a
visão de todos os desvios de nosso ser, de todas as suas fraquezas e
negligências. b) A esta visão segue uma decisão na alma, o desejo de repor
tudo em ordem pela penitência. Por uma lei da ordem divina da redenção,
também esta última fase da salvação individual não deve realizar-se sem a
cooperação do indivíduo, mesmo que esta cooperação seja tecida de
sofrimentos e de paciência. c) O podermos prestar, em virtude da
Comunhão dos Santos, assistência e socorro aos nossos irmãos e às
nossas irmãs do purgario é uma graça a ser bem aproveitada. d) Desta
catequese é preciso eliminar qualquer forma de alta especulação, como
também de fantasias e suposições. O fato de que as almas santas se dão a
conhecer, não constitui objeto do ensinamento de fé. Por isso contentar-
nos-emos com a doutrina da Igreja que proclama a possibilidade de ajudá-
las. (BARTH, p. 643).
Com base na história de Judas Macabeu a Igreja ensina que desde o Antigo
Testamento era prática comum a intercessão pelos mortos: “Foi este um
pensamento santo e piedoso. Eis porque mandou oferecer este sacrifício expiatório
pelos mortos, para que fossem purificados do seu pecado” (2 Mac 12, 40-46)
39
(BARTH, p. 649). Ademais, além da própria Tradição, a igreja fundamenta a doutrina
do Purgatório nas Escrituras:
[...] entre os judeus era fé universalmente admitida que, pela oração e os
sacrifícios, se podia dar auxílio aos mortos. E assim Jesus não teve motivo
de anunciar de modo particular esta fé, mas de qualquer forma a confirma.
[...] Certa vez ele diz que o pecado “contra o Espírito Santo não será
perdoado nem neste, nem no outro mundo (Mt 12, 32). Disto pode-se inferir
existirem pecados que no mundo do alémo perdoados. No Sermão da
Montanha Jesus aconselha acordar-se com o adversário “enquando estás a
caminho com ele para que o adversário não te entregue ao Juiz e o Juiz ao
guarda e sejas lançado ao cárcere. Em verdade te digo: de lá não sairás
enquanto não tiveres pago o último centavo” (Mt 5, 25s). Depois do “estado
de peregrinação”, há um juízo, um cárcere, um castigo, que não duram
eternamente, mas cessam quando o último centavo tiver sido pago.
(BARTH, p. 650).
Ao ensinar sobre a comunhão dos santos, por meio de Cristo, na Igreja, esta ensina
que “as almas santas não podem valer-se por si mesmas e que só Cristo pode ir a
seu auxílio e por meio de Cristo também todos nós cristãos podemos levar nosso
auxílio às almas santas do Purgatório.” (BARTH, p. 651). Dessa forma a Igreja
classifica os mortos que estão no Purgatório como parte integrante do corpo místico
de Jesus Cristo:
“Reconhecendo cabalmente esta comunhão de todo o corpo místico de
Jesus Cristo, a Igreja terrestre, desde os tempos primevos da religião cristã,
venerou com grande piedade a memória dos defuntos (...) e, 'já que é um
pensamento santo e salutar rezar pelos defuntos para que sejam perdoados
de seus pecados' (2Mc 12,46), também ofereceu sufrágios em favor deles.
Nossa oração por eles pode não somente ajudá-los, mas também tornar
eficaz sua intercessão por nós. (ICAR, p. 271, parágrafo 958)
A prática da intercessão pelos mortos como parte integrante da Igreja tem sua base
doutrinária na doutrina da comunhão da Igreja, o Corpo Místico de Cristo, composto
por todas as almas que são habitadas pelo Espírito Santo. Nessa perspectiva, a
Igreja divide-se sistematicamente em: Igreja militante, composta por todos os
membros da igreja na terra, os quais lutam com o pecado; Igreja triunfante,
40
composta pelas almas dos bem-aventurados que se encontram no céu; e Igreja
padecente, composta por todas as almas do Purgatório:
As almas do purgatório são também membros da comunhão dos santos.
Estão confirmadas na graça para sempre, ainda que tenham que purificar-
se dos seus pecados veniais e das suas dívidas de penitência. Não podem
ver a Deus ainda, mas o Espírito Santo está com elas e nelas, e nunca o
poderão perder. Freqüentemente designamos este ramo da Igreja como
Igreja padecente. (TRESE, p. 159)
Os meios apropriados para auxiliar as almas são: eucaristia, esmola e obras de
misericórdia, oração e indulgências. Pela eucaristia, “Cristo, na unidade do Corpo
místico, do qual ele é o Cabeça e nós os membros, vem em auxílio daqueles seus
membros que estão sofrendo.” (BARTH, p. 651), desta forma, é possível participar
da eucaristia em favor das almas. Pela prática de esmola e obras de misericórdia,
“aquele que por amor de Deus, desapegado de si, serve ao próximo e às santas
almas, ajuda e causa benefícios a si e às mesmas santas almas”. (BARTH, p. 651).
Pela oração reunimos também os vivos com os crentes defuntos. E, finalmente,
pelas indulgências a alma é redimida perante Deus daquelas penas temporais que,
após a remissão da culpa, alguém deve ainda expiar. “As indulgências são
concedidas pela autoridade eclesiástica, tomadas do tesouro da Igreja, para os vivos
a guisa de absolvição, para os defuntos em forma de sufrágio.” (BARTH, p. 659).
Segundo a igreja, as razões pelas quais devemos ajudar as almas são: por amor ao
próximo, por amor a si mesmo e por amor a Deus.
Por amor do próximo – cumpre ajudar a todos os que estiverem em
dificuldades, segundo as próprias possibilidades. Por amor de si mesmo:
“Com a medida com que medires os outros, serás medido” (Mt 7,2). Por
amor de Deus: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia” (Mt 5, 7). (BARTH, p. 655).
Em II Macabeus 12.43-46 encontra-se uma referência que serve como base para os
dogmas da "Comunhão dos santos", do “Purgatório” e da “Ressurreição dos Mortos”:
41
Em seguida fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas,
para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo e santo modo de agir,
decorrente da sua crença na ressurreição, porque, se ele não julgasse que os
mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele
acreditava que uma bela recompensa aguarda os que morrem piedosamente,
era isto um bom e religioso pensamento; eis por que ele pediu um sacrifício
expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas. (RAPOSO, 1995)
3.4 A RESSURREIÇÃO
Os judeus do tempo de Jesus, com exceção dos saduceus, acreditavam na
ressurreão dos mortos. Temos uma evidência disso quando Jesus disse a Marta
que o seu irmão ressuscitaria, ao que ela respondeu: “Sei que há de ressuscitar na
ressurreição no último dia.” (Jo 11.24).
O trigo e toda qualquer outra espécie de grão são semeados. A semente
corrompe-se e morre. Assim o que era corruptível germina e se desenvolve:
o que era uma coisinha insignificante ao cair da terra cresce e se torna belo.
Ora, o trigo e todas as outras sementes foram feitos para nós, para nosso
uso e não para si mesmos. Se, pois, as coisas que foram feitas para nós,
ressuscitam depois que morreram, não devemos, após a morte, ressuscitar
justamente nós que somos aqueles para os quais as coisas existem? (São
Cirilo de Jerusalém apud BARTH, p. 717).
A ICAR professa sua crença na ressurreição dos mortos à semelhança da
ressurreição de Cristo como obra da Santíssima Trindade.
Cremos firmemente – e assim esperamos – que, da mesma forma que
Cristo ressuscitou verdadeiramente dos mortos, e vive para sempre, assim
também, depois da morte, os justos viverão para sempre com Cristo
ressuscitado e que Ele os ressuscitará no último dia. Como a ressurreição
de Cristo, assim também a nossa será obra da Santíssima Trindade [...]. O
termo “carne” designa o homem em sua condição de fraqueza e de
mortalidade. A “ressurreição da carne” significa que após a morte não
haverá somente a vida da alma imortal, mas que mesmo os nossos “corpos
mortais” (Rm 8,11) readquirirão vida. (ICAR, p. 279, parágrafo 989-990)
42
Na ICAR a fé na ressurreição começa a exprimir-se a partir de uma dupla
perspectiva: o Deus criador do céu e da terra é também aquele que mantém
fielmente sua aliança com Abraão e sua descendência.
Nas provações, os mártires macabeus confessam: O Rei do mundo nos fará
ressurgir para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis (2Mc 7,9).
É desejável passar para a outra vida pelas mãos dos homens, tendo da
parte de Deus as esperanças de ser um dia ressuscitado por Ele (2Mc
7,14). (ICAR, p. 280, parágrafo 992)
Na ICAR a fé na ressurreição baseia-se na própria pessoa de Cristo: “Eu sou a
ressurreição e a vida” (Jo 11,25). “É Jesus mesmo quem, no último dia, há de
ressuscitar os que nele tiverem crido e que tiverem comido seu corpo e bebido seu
sangue.” (ICAR, p. 280, parágrafo 994)
Para a ICAR, o texto mais importante sobre a ressurreição dos mortos é o capítulo
quinze da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios na qual o apóstolo trata da
ressurreição dos mortos a partir da ressurreição de Cristo. No Credo Apostólico,
síntese da fé cristã, também a igreja expressa sua fé na ressurreição dos mortos.
Mas o texto mais importante sobre a ressurreição dos mortos é 1 Co 15 - um
pequeno tratado teológico sobre a ressurreição dos mortos, orientado para a
vida prática (que nós dizemos "Pastoral Bíblica"). Como a nossa ressurreição es
intimamente ligada à ressurreição de Cristo, o que o Apóstolo faz primeiro é provar
a ressurreição de Cristo. Vemos a profissão de fé da Igreja oficializada no Credo
Apostólico – profissão de fé em Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) e na sua
ação criadora, salvadora e santificadora – que culmina na proclamação da
ressurreição dos mortos nos fins dos tempos, e na vida eterna. (RAPOSO,
1995)
A ICAR reconhece que a doutrina da ressurreição tem recebido incompreensões e
oposições desde o início justamente pelo fato de a humanidade comumente aceitar
o prosseguimento da vida espiritual após a morte, mas rejeitar que o corpo mortal
possa ressuscitar para a vida. Em resposta aos céticos, a ICAR explica que a morte
é a separação da alma e do corpo (este cai em corrupção enquanto aquela vai ao
encontro de Deus onde espera até ser unida novamente ao seu corpo glorificado, o
que acontecerá em decorrência da ressurreição de Jesus). Todos os mortos
43
ressuscitarão com seu próprio corpo que teve em vida, porém, transfigurado em
corpo glorioso, espiritual. Para a igreja, isso é algo que ultrapassa a imaginação e
entendimentos humanos, sendo acessível só na fé.
Para a ICAR, a participação na Eucaristia (sacramento da Santa Ceia) oferece um
antegozo desta transfiguração.
[...] Nossa participação na Eucaristia, no entanto, já nos dá um antegozo da
transfiguração de nosso corpo por Cristo: “Assim como o pão que vem da
terra, depois de ter recebido a invocação de Deus, não é mais pão comum,
mas Eucaristia, constituída por duas realidades, uma terrestre e a outra
celeste, da mesma forma os nossos corpos que participam da Eucaristia
não são mais corruptíveis, pois têm a esperança da ressurreição. (Santo
Irineu, Adversus Haeresis 4, 18,5)”. (ICAR, p. 282, parágrafo 1000)
Mas qual a ocasião da ressurreição geral dos mortos? Com base na primeira carta
de Paulo aos tessalonicenses (1Ts 4.16) a ICAR ensina que a ressurreição terá
ocasião no último dia, no fim do mundo, por ocasião da volta de Cristo. E com base
na carta de Paulo aos colossenses (Cl 2.12 e 3.1) ensina que pela participação na
Eucaristia, a vida cristã já é, desde agora, uma participação na morte e ressurreição
de Cristo.
Unidos a Cristo pelo Batismo, os crentes já participam realmente na vida
celeste de Cristo ressuscitado, mas esta vida permanece “escondida com
Cristo em Deus” (Cl 3,3) [...]. Nutridos com seu Corpo na Eucaristia, já
pertencemos ao Corpo de Cristo. Quando ressuscitarmos, no último dia, nós
também seremos “manifestados com Ele cheios de glória” (Cl 3,3). (ICAR, p.
283, parágrafo 1003)
Mormente na questão da ressurreição, segundo a doutrina católica, Maria (mãe de
Jesus) foi à primeira, dentre todos os remidos, a ser ressuscitada incorruptível:
Maria, depois de sua morte, foi ressuscitada e recebida no céu com alma e
corpo, porque tinha chegado “a sua própria vez” (1Co 15,23) porque era
toda de Cristo, por ser Mãe do Salvador, como primeira de todos os
remidos, como aquela à qual Cristo fizera participar e a quem concedera a
plenitude da graça da redenção. (BARTH, p. 716).
44
3.5 O JUÍZO FINAL
A Igreja ensina que antes do Juízo Final todos os mortos ressuscitarão: “os que
tiverem feito o bem ressuscitarão para a vida; os que tiverem feito o mal
ressuscitarão para o julgamento” (Jo 5.28-29).
É diante de Cristo – que é a Verdade – que será definitivamente
desvendada a verdade sobre a relação de cada homem com Deus. O Juízo
Final há de revelar até as últimas conseqüências o que um tiver feito de
bem ou deixado de fazer durante sua vida terrestre. (ICAR, p. 293,
parágrafo 1039)
Com base em sua Tradição, citando Agostinho, Tertuliano e Clemente de
Alexandria, a Igreja estabelece que, no Juízo Final, como resultado de todo 'mal' ou
'bem' praticados, o peso das boas-obras atenuará nossa situação na balança da
justiça de Deus da mesma forma que a ausência delas surtirá efeito contrário:
Todo o mal que os maus praticam é registrado sem que o saibam. No dia
em que “Deus não se calará” (Sl 50,3), voltar-se-á para os maus: “Eu havia”,
dir-lhes-á, “colocado na terra meus pobrezinhos para vós. Eu, seu Chefe,
reinava no céu à direita do meu Pai, mas na terra os meus membros
passavam fome. Se tivésseis dado aos meus membros, vosso dom teria
chegado até a Cabeça. Quando coloquei meus pobrezinhos na terra, os
constituí meus tesoureiros para recolher vossas boas obras em meu
tesouro; vós, porém, nada depositastes em suas mãos, razão por que nada
possuís junto a mim”. (Agostinho apud ICAR, p. 293-94, parágrafo 1039)
Tertuliano é de opinião que as pessoas virgens e os mártires tenham
glorificado a Deus em seu corpo de modo particular, enquanto os pecadores
dele abusaram, por isso devem ser castigados também no corpo (De res.
carn., 8). Clemente de Alexandria diz: “O homem foi criado ereto em sua
pessoa para poder olhar para o céu. Os sentidos foram feitos para
conhecer, os membros e os órgãos do corpo para o belo e não para o
prazer. Por isso, a alma, embora gozando de tanta honra junto de Deus,
toma do corpo para habitar nele. O corpo mesmo é considerado digno do
Espírito Santo – para que se tenha a santificação da alma e do corpo – e
recebe do Salvador a sua coroação (Stromata, IV, 26, 163 apud BARTH, p.
45
720).
Todavia, a ICAR defende que as obras por si só não produzem a salvação, mas é
imprescindível a fé em Cristo. Ela não abdica de decisão pessoal a favor de Cristo
que é renovada diariamente e concretizada na ação de caridade com o próximo.
Portanto, a Igreja crê que a salvação será alcançada por fé e por obras.
A unidade de medida do juízo não deve ser vista numa cômoda filantropia,
isto é, num “amor ao próximo” sem a fé, como se fosse indiferente crer ou
não crer. [...] o sentido e o escopo do catecismo e do ensinamento cristão
em geral, [...] é a importância de uma decisão pessoal a favor de Cristo,
renovada a cada instante de nossa vida, decisão que, iniciando com a fé,
deve concretizar-se na ação da caridade para com o próximo (fides quae
per caritatem operatur – Gal 5, 6). Somos solicitados a sair, em espírito de
fé, do fundo de nosso eu, para servir a Cristo no próximo, pela ação do
amor, do apostolado, na família, na Igreja e no mundo. A medida da fé será
também a medida do amor, pois o amor do próximo é a expressão visível do
amor de Deus, sendo o “segundo” mandamento “semelhante ao primeiro”.
(BARTH, p. 722-723).
“Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito,
que descansem dos seus trabalhos, pois as suas obras os seguem” (Apc
14, 12s). As “obras” são o fiel serviço prestado a Deus como
administradores e como seus servos [...]. Deus não promete inutilmente a
recompensa. Na hora decisiva, Deus se apresenta como justo Juiz para
salvar aqueles que “lhe pertencem pela fé e pelas obras” [...]. (BARTH, p.
625).
Embora Cristo seja o agente da salvação, a Igreja ensina que sem os sacramentos
não há ingresso na vida verdadeira, pois eles são o meio de acesso a Cristo.
Ninguém pode viver ou morrer sem Cristo, ninguém chega ao céu
prescindindo dele. Ele disse: “Eu sou a porta, e quem passar por mim se
salvará” (Jo 10,9). Queria dizer que em sua carne, “por assim dizer, havia
uma porta aberta para a vida, uma porta da qual brotam os sacramentos da
Igreja, sem os quais não há ingresso na vida verdadeira” (Sto Agostinho, In
Joh., 120, 2). Todos os homens estão sujeitos a ele na comunhão da Igreja,
e ninguém e nada pode subtrair-se à sua soberania. (BARTH, p. 722).
46
Segundo a igreja, a certeza do Juízo Final é algo que tanto estimula a fé e desperta
grande expectativa nos eleitos de Deus como, da mesma forma, gera pavor nos
condenados. A necessidade da ressurreição torna-se evidente, pois por meio dela,
no juízo, tanto os eleitos terão a intensificação de sua felicidade e graça, quanto os
condenados terão a intensificação de suas dores e penas.
O dia do juízo será um dia de exultação para os eleitos, um dia de terror
para os condenados, pois, embora cada qual já conheça a sua própria sorte
em virtude do juízo particular, todavia a ressurreição trará algo de novo:
acréscimo de felicidade e de graça, ou de dor e de penas, pois agora
também o corpo tomará parte na graça da eleição, na pena da condenação.
(BARTH, p. 721).
3.6 O INFERNO
Além do céu e do purgatório, a igreja afirma também a existência e a eternidade do
inferno, para onde vão, imediatamente após a morte, aqueles que morrem em
estado de pecado mortal. Conseqüentemente estarão separados de Deus os que,
livremente, recusaram seu amor e deixaram de assistir as necessidades graves dos
pobres e pequenos.
Não podemos estar unidos a Deus se não fizermos livremente a opção de
amá-lo. Mas não podemos amar a Deus se pecamos gravemente contra
Ele, contra nosso próximo ou contra nós mesmos: [...] (1Jo 3,14-15). Nosso
Senhor adverte-nos de que seremos separados dele se deixarmos de ir ao
encontro das necessidades graves dos pobres e dos pequenos que são
seus irmãos. Morrer em pecado mortal sem ter-se arrependido dele e sem
acolher o amor misericordioso de Deus significa ficar separado do Todo-
Poderoso para sempre, por nossa própria opção livre. E é este estado de
auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados
que se designa com a palavra “inferno”. [...] As almas dos que morrem em
estado de pecado mortal descem imediatamente após a morte aos infernos,
onde sofrem as penas do inferno, “o fogo eterno”. A pena principal do
inferno consiste na separação eterna de Deus, [...]. (ICAR, p. 292, parágrafo
1033 e 1035)
Para a ICAR a condenação eterna no inferno é algo que receberão os pecadores
contumazes, pois Deus não predestina ninguém para o inferno.
47
Deus não predestina ninguém para o inferno; para isso é preciso uma
aversão voluntária a Deus (um pecado mortal) e persistir nela até o fim. Na
Liturgia Eucarística e nas orações cotidianas de seus fiéis, a Igreja implora a
misericórdia de Deus, que quer “que ninguém se perca, mas que todos
venham a converter-se” (2Pe 3,9) [...]. (ICAR, p. 292, parágrafo 1037)
3.7 OS NOVOS CÉUS E NOVA TERRA
Após o Juízo Final, os justos glorificados em corpo e alma, reinarão eternamente
com Cristo sobre todo o universo também renovado. É o estabelecimento de “novos
céus e nova terra” (conforme 2Pe 3,13), e da Jerusalém Celestial, quando Deus
habitará entre os homens. A comunidade dos remidos, daqueles que foram unidos a
Cristo, formarão a cidade santa de Deus, a Esposa do Cordeiro. “A visão beatífica,
na qual Deus se revelará de maneira inesgotável aos eleitos, será a fonte inexaurível
de felicidade, de paz e de comunhão mútua.” (ICAR, p. 295, parágrafo 1045)
A ICAR afirma também sua fé na restauração final de toda a criação, na
transformação de todo o universo criado para a felicidade do homem e a glória de
Cristo, todavia afirma desconhecer o tempo e o modo pelo qual o universo será
transformado.
Também o universo visível está, portanto, destinado a ser transformado, “a
fim de que o próprio mundo, restaurado em seu primeiro estado, esteja, sem
mais nenhum obstáculo, a serviço dos justos”, participando de sua
glorificação em Cristo ressuscitado. (ICAR, p. 295, parágrafo 1047)
4 A ESCATOLOGIA PROTESTANTE-REFORMADA
4.1 JOÃO CALVINO
Quando pensamos em teologia protestante-reformada, pensamos em teologia
calvinista. João Calvino é o ícone da dogmática protestante-reformada. A síntese do
pensamento Calvinista, elaborada pelos discípulos de Calvino em resposta aos
discípulos de Armínius, relaciona cinco tópicos (depravação total, eleição
incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos) os
quais servem de base para compreensão do comportamento do protestante-
reformado ante a expectativa do status pós-morte.
Depravação Total: Os calvinistas respondem que o homem não regenerado é
absolutamente escravo de Satanás, e, por isso, totalmente incapaz de exercer sua
vontade livremente. Daí a necessidade da ação regeneradora do Espírito Santo no
coração do homem para que este possa crer em Cristo.
Eleição Incondicional: Os calvinistas sustentam que a eleição para salvação resulta
da livre vontade do Criador à parte de qualquer obra de fé do homem
espiritualmente morto.
Expiação Limitada: Os calvinistas sustentam que Cristo não morreu por todos os
homens, antes, morreu para salvar, dentre toda a humanidade, somente aquelas
pessoas que lhe foram dadas pelo Pai deste toda a eternidade, as quais, por
conseqüência, quando ouvirem a Palavra de Deus, virão a crer em Cristo.
Graça Irresistível: Os calvinistas sustentam que a graça de Deus não pode ser
resistida, obstruída, impedida de agir. A graça de Deus é irresistível, pois por meio
da regeneração (novo nascimento promovido por ação do Espírito Santo), o homem
morto no pecado revive pelo Espírito e caminha para Deus. Nesse ponto fica
evidente a ordem das coisas: primeiro o homem recebe de Deus o dom da vida,
depois este homem reavivado reage demonstrando fé no Salvador.
Perseverança dos Santos: Uma vez que a salvação é obra realizada por Deus e
49
que, por isso, o homem, em nada contribui para sua própria salvação, os calvinistas
sustentam que a garantia ou permanência da salvação é, igualmente, obra de Deus,
à parte de qualquer bem ou mal que o eleito venha fazer. A garantia de salvação é
dada por Deus, o qual prometeu completar, em nós, a obra que ele começou. Daí,
porque a salvação é um ato de Deus, os eleitos perseverarão salvos.
O protestante-reformado crê na doutrina da Perseverança dos Santos ensinando
que a salvação baseia-se nos méritos de Cristo, os quais, por sua vez, são
suficientes para a salvação independente das obras que a pessoa tenha praticado.
Dessa forma, o homem, uma vez salvo por Cristo, jamais perderá sua salvação.
Alguns preferem dizer "perseverança do Salvador", pois nada há no homem que o
habilite a perseverar na obediência e fidelidade ao Senhor. O Espírito Santo é quem
persevera pacientemente, exercendo misericórdia e disciplina na condução do
crente. Quando ímpio, o homem estava morto (espiritualmente) em seus delitos e
pecados, mas ressuscitou (espiritualmente) quando Cristo lhe redimiu, e a graça
salvífica de Deus infundiu-lhe fé para crer em Cristo e obedecer a Deus. Na
realidade, a perseverança dos santos depende da perseverança de Deus pelas
seguintes razões: a) o cristão só pode perseverar em seu amor para com Deus, se
Deus perseverar em seu amor para com ele; e b) a perseverança dos santos é um
ato providencial de Deus, pois assim como Deus criou e sustenta o universo,
semelhantemente recriou e sustenta espiritualmente vivo o homem regenerado pela
constante presença do Espírito Santo.
Por dar tanta ênfase à ação de Deus para salvação do homem, esta doutrina
poderia ser denominada também de preservação dos santos. Se todo o processo
de salvação é obra de Deus, o homem não pode, por si mesmo, perdê-la.
Segundo a Bíblia, é impossível que o crente regenerado perca sua salvação, mesmo
que naturalmente venha pecar e morrer fisicamente (1Co 5:1-5). Uma vez salvo,
sempre salvo. - esta é a descrição mais sucinta desta doutrina. Ela baseia-se na
expectativa de que uma vez que tenha crido não se pode perder, pois Cristo será
seu eterno salvador. Essa doutrina é chamada de perseverança dos santos para
referir-se àqueles que perseveram na fé em Cristo como o seu salvador, crendo nele
50
para sempre, e, conseqüentemente, serão salvos. Noutras palavras a doutrina da
perseverança dos santos significa segurança eterna.
Quanto aos apóstatas, os protestantes-reformados ensinam que eles nunca
nasceram de novo, jamais se converteram (Is 54:10; Jo 6:51; Rm 5:8-10; 8:28-32 34-
39; 11:29; Fp 1:6; 2Ts 3:3; Hb 7:25).
Louis Berkhof, em sua Teologia Sistemática, introduz o tema da Escatologia
afirmando que a doutrina das últimas coisas não é algo específico da religião cristã,
pois em qualquer lugar ou época, qualquer pessoa que tenha refletido seriamente
sobre a vida humana chegou a se questionar sobre o destino final da existência, se
o homem perece na morte ou se entra noutro estado de existência (BERKHOF, L. p.
667). Ele ainda afirma que desde “as religiões mais primitivas como as mais
evoluídas, têm sua escatologia. O budismo tem o seu nirvana, o maometanismo o
seu paraíso sensual, e os índios americanos os seus felizes campos de caça. E,
citando J. T. Addison (em Life Beyond Death, página 3), complementa: “A crença em
que a alma do homem sobrevive à sua morte, tão perto está de ser universal que
não temos nenhum registro confiável de alguma tribo, nação ou religião em que ela
não esteja em destaque” (BERKHOF, L. p. 668). Todavia, Berkhof é taxativo ao dizer
que “Nessas religiões, porém tudo é vago e incerto. É somente na religião cristã que
a doutrina das últimas coisas recebe maior precisão e traz consigo alguma
segurança que só pode ser divina” (Ibid p. 668). Berkhof é categórico ao afirmar que
para obter o verdadeiro conhecimento sobre as realidades do mundo futuro “Terão
que aceitar o testemunho de Deus a respeito delas, ou que continuar andando às
apalpadelas no escuro. Se não desejam construir a casa da sua esperança em
vagas e indeterminadas aspirações, terão que retornar ao firme fundamento da
Palavra de Deus.”. (Ibid p. 668)
Para Charles Hodge (com base no episódio em que Jesus reagiu à provocação dos
saduceus sobre a ressurreição - Mt 22.23-33; Mc 12.18-27; Lc 20.27-40), a doutrina
de um estado futuro não só estava revelada no AT, como também fazia parte da fé
do povo de Deus desde aqueles tempos. Argumentando a favor da existência pós-
morte, ele diz o seguinte:
51
Nosso Senhor, ao refutar os saduceus, que negavam não só a ressurreição
do corpo, mas também a existência consciente do homem depois da morte,
e a existência de quaisquer seres espirituais, apelam para o fato de que, no
Pentateuco, cuja autoridade os saduceus admitiam, Deus é familiarmente
chamado de Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó; mas uma vez que ele
não é Deus de mortos, e, sim, de vivos, a designação a que se faz
referência demonstra que Abraão, Isaque e Jacó estão agora vivos, e
vivendo, além do mais, na comunhão e no desfruto de Deus. [...] O
raciocínio de Cristo, contudo, é não só uma afirmação da veracidade da
doutrina de uma futura vida imortal, mas uma afirmação também de que
essa doutrina é ensinada no Velho Testamento. As palavras que ele cita
estão contidas no livro de Êxodo; e essas palavras, como explicadas por
ele, ensinam a doutrina da vida bem-aventurada e infindável dos justos.
(HODGE, C., p. 1551-1552)
Charles Hodge defende a posição reformada quanto à doutrina do ‘estado
intermediário’ da alma, considerando que esse tema é um consenso entre os
cristãos, e que as divergências sobre esse assunto é quanto à natureza do estado
intermediário da alma:
Assim como todos os cristãos crêem na ressurreição do corpo e no juízo
futuro, também todos crêem em um estado intermediário. Ou seja, crêem
que há um estado de existência entre a morte e a ressurreição, e que a
condição dos mortos durante esse intervalo é diferente, em alguns
aspectos, do que será depois da ressurreição. Assim, as divergências
existentes entre os cristãos não é acerca da realidade de um intermediário,
mas acerca de sua natureza. A doutrina protestante comum referente a esta
questão é que “a alma dos crentes é, ao morrer aperfeiçoada em santidade,
e passa imediatamente para a glória; e seu corpo, embora unido a Cristo,
repousa em sua sepultura até a ressurreição”. Segundo este conceito, o
estado intermediário, no que diz respeito aos crentes, é de grande exaltação
e bem-aventurança. E é perfeitamente coerente com a crença de que,
depois da segunda vinda de Cristo e da ressurreição dos mortos, o estado
da alma será muito mais exaltado e bem-aventurado. (Ibid p. 1554-1555)
4.2 A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER
Além disso, quanto à doutrina da ressurreição, de acordo com a Confissão de Fé de
Westminster, a fé reformada assim afirma:
52
I. Os corpos dos homens, depois da morte, voltam ao pó e vêem a corrupção
(Gn 3.19; At 13.36); mas as suas almas (que nem morrem nem dormem),
possuindo uma substância imortal, voltam imediatamente para Deus que a
deu (Lc 23.43; Fp 1.23; II Co 5.6-8). As almas dos justos, sendo então
aperfeiçoadas em santidade, são recebidas no mais alto dos céus onde
contemplam a face de Deus em luz e em glória, esperando a plena redenção
de seus corpos (Lc 16.23; Rm 8.23); e as almas dos ímpios são lançadas no
inferno, onde permanecerão em tormentos e em trevas espessas, reservadas
para o juízo do grande dia (Lc 16.23,24; II Pe 2.9). Além destes dois lugares
destinados às almas separadas de seus respectivos corpos, as Escrituras
não reconhecem nenhum outro lugar.
II. No último dia, os que estiverem vivos não morrerão, mas serão mudados (I
Ts 4.17; I Co 15.51,52); todos os mortos serão ressuscitados com os seus
mesmos corpos, e não outros, embora com qualidades diferentes, e se unirão
novamente às suas almas, para sempre (I Co 15.42-44).
III. Os corpos dos injustos serão, pelo poder de Cristo, ressuscitados para a
desonra; os corpos dos justos serão, pelo seu Espírito, ressuscitados para a
honra e para serem semelhantes ao próprio corpo glorioso de Cristo (At
24.15; Jo 5.28,29; Fp 3.21). (Assembléia de Westminster, p. 157-158)
Alexander A. Hodge (filho de Charles Hodge), comentando a Confissão de Fé de
Westminster, na primeira seção, ensina que o homem é composto de dois
elementos distintos (um corpo e uma alma) e que a morte consiste na separação
temporal desses elementos. Que enquanto o corpo se decompõe em seus
elementos químicos, a alma do crente (a) está perfeita em santidade, (b) que
durante todo o estado intermediário entre a morte e a ressurreição, continua
consciente, ativa e feliz, e (c) está na presença de Cristo, que, depois de sua
ascensão, está sentado à destra de Deus. Já as almas dos maus, durante seu
estado intermediário continuam conscientes e ativas, todavia, em estado de
tormento penal, esperando o juízo do grande dia. Essas condições, sem ser finais,
são irrevogáveis, pois nenhum dos que estão com Cristo se perderá, e nenhum dos
que estão no tormento se salvará. Comentando as outras duas seções, A. A. Hodge
ensina que no último dia haverá uma ressurreição simultânea de todos os mortos,
tanto dos justos como dos injustos; que aqueles que estiverem vivos sobre a terra
não morrerão, mas serão transformados; que os mesmos corpos que estão
sepultados na terra, se levantarão e se unirão às suas almas conservando sua
53
identidade, mesmo que suas qualidades sejam alteradas; que os corpos dos crentes
serão feitos à semelhança do corpo glorioso de Cristo - “um corpo espiritual”; e, que
os corpos dos réprobos se levantarão para desonra (HODGE, A. A., p. 351-360).
Por esta razão ele nasceu, manifestou-se como homem, morreu e
ressuscitou [...] para que possa convocar os homens dos lugares para onde
quer que tenham sido atraídos, revelando-lhes o seu verdadeiro Pai, como
ele mesmo o disse: “Eu vim buscar e salvar o que estava perdido.”
(Atanásio, 296-373 a.D., apud BETTENSON, 1998, p. 76)
Na dogmática protestante-reformada a ressurreição de Cristo é base da ressurreição
dos mortos.
4.3 A NATUREZA DA RESSURREIÇÃO
Qual a natureza da ressurreição? Abordar a natureza da ressurreição é um dos
pontos mais importantes a ser considerado. Louis Berkhof (Teologia Sistemática,
1994, p. 728) trata sobre esse assunto dividindo-o em quatro partes principais:
É obra do Deus Triúno: O Novo Testamento descreve a ressurreição como obra
realizada pelo Deus Triúno: sem especificação do agente da ressurreição (Mt 22.29;
2 Co 1.9); a ressurreição atribuída ao Filho (Jo 5.21, 25, 28, 29; 6. 38-40, 44, 54; 1
Ts 4.16); e também apontada como obra realizada pelo Espírito Santo (Rm 1.11).
É ressurreição física ou corporal: Desde os dias do apóstolo Paulo (2 Tm 2.18),
existe aqueles que só acreditam numa ressurreição espiritual. Mas a doutrina
protestante reformada, com base bíblica, ensina a ressurreição do corpo. Cristo é
chamado de ‘primícias’ da ressurreição (1 Co 15.20, 23) e ‘o primogênito de entre os
mortos’ (Cl 1.18; Ap 1.5). Isso significa que a ressurreição do povo de Deus será
semelhante à do Senhor Jesus Cristo, ou seja, será uma ressurreição corporal.
É ressurreição dos justos e dos ímpios: De acordo como Josefo, os fariseus
negavam a ressurreição dos ímpios. Às vezes se menciona que a Escritura não
ensina a ressurreição dos ímpios, mas isso é patentemente errôneo (Dn 12.2; Jo
54
5.28, 29; At 24.15; Ap 20.13-15). Ao mesmo tempo, deve-se admitir que a
ressurreição deles não ocupa lugar proeminente na Escritura. Claramente se vê que
o aspecto soteriológico da ressurreição está em primeiro plano, e esta pertence
unicamente aos justos. Esses, diferentemente, dos ímpios, são os únicos que tirarão
proveito da ressurreição.
É ressurreição de importância desigual para os justos e para os injustos: A
ressurreição dos ímpios não pode ser considerada como uma bênção merecida pela
obra mediadora de Cristo, embora esteja relacionada indiretamente com ela. É o
resultado necessário da posposição da execução da sentença de morte dada ao
homem, o que tornou possível a obra da redenção. A posposição resultou na relativa
separação entre a morte temporal e a morte eterna, e na existência de um estado
intermediário. Sob essas circunstâncias, é necessário ressuscitar os ímpios dos
mortos, a fim de que a morte, em sua máxima extensão e com todo o seu peso, lhes
possa ser imposta. Sua ressurreição não é um ato de redenção, mas sim da justiça
de Deus. A ressurreição dos injustos tem em comum com a dos justos o fato de que
os corpos e as almas serão reunidas. Mas, no caso destes, isso resultará na vida
perfeita, ao passo que no caso daqueles, redundará na extrema penalidade da
morte (Jo 5.28,29).
Bultmann (1964, p. 42) interpreta a ressurreição em termos existenciais. Ele aceita a
crítica de que a ressurreição significa que Jesus está ressurreto no kerygma, ou
seja, na proclamação do evangelho; que o kerygma é, em si mesmo, um evento
escatológico e que Jesus, em conseqüência disso, está presente de modo ativo,
indo ao encontro do ouvinte no kerygma. Nessa perspectiva, todas as especulações
sobre a natureza da ressurreição, todas as narrativas de um túmulo vazio e coisas
semelhantes são irrelevantes para a própria realidade da ressurreição. Para
Bultmann a ressurreição de um cadáver é coisa por demais incrível, pois o Novo
Testamento não descreve a ressurreição de Jesus em termos do ressuscitamento
de um cadáver, mas como a emergência de uma nova ordem de vida dentro do
tempo e do espaço.
Para vermos as diferentes concepções da natureza da ressurreição, o segundo livro
dos Macabeus registra a história de um ancião chamado Razis, o qual, nos dias da
55
perseguição selêucida, em lugar de cair nas mãos dos odiados gregos, tomou uma
espada e estripou-se. Depois, “colocando-se à beira de um precipício... rasgou suas
entranhas com as mãos e lançou-as à multidão. Assim, ele morreu chamando
àquele que é Senhor da vida e do espírito que o restaurasse de novo” (II Macabeus
14.46). Essa narrativa, conquanto sirva para evidenciar que determinadas pessoas,
no judaísmo do primeiro século, criam na ressurreição do corpo físico, isto é, no
retorno à vida no mesmo corpo que morrera, contudo não serve para descrever a
natureza da ressurreição de Jesus. Na dogmática protestante-reformada a
ressurreição de Jesus não é a restauração de um corpo morto à vida física; ela é o
surgimento de uma nova ordem de vida. É a vida eterna sendo incorporada no
tempo e no espaço. É o começo da ressurreição escatológica (conforme 1 Coríntios
15).
O caráter escatológico da ressurreição de Jesus, conquanto não seja afirmado
explicitamente nos Evangelhos ou em Atos, pode-se percebê-lo implícito tanto na
natureza da pregação apostólica quanto na natureza do corpo ressurreto de Cristo.
Quanto à natureza da pregação apostólica da ressurreição, apesar dos fariseus
crerem e ensinarem ‘teoricamente’ a ressurreição dentre os mortos, após a
ressurreição de Jesus Cristo esse assunto não era mais uma debatida esperança
teológica com relação ao futuro; era um fato presente que colocou toda a matéria em
questão dentro de uma nova perspectiva de tal forma que não poderia mais ser
ignorada ou mesmo simplesmente tolerada.
Quanto à natureza do corpo ressurreto de Cristo, conquanto a ressurreição de Jesus
deu-se claramente corpórea (o túmulo ficou vazio), contudo era um corpo que
possuía poderes novos e mais elevados do que o seu corpo físico antes de sua
morte. O caráter corpóreo de sua ressurreição é confirmado de outras formas. Seu
corpo teve condições de provocar reações nos sentidos físicos: de tato (Mt 28.9; Jo
20.17, 27), de visão, de audição (Jo 20.16; é provável que Maria tenha reconhecido
Jesus pelo tom de voz, quando ele pronunciou o seu nome). As palavras de Jesus
mostrando que ele não era ‘espírito desencarnado’ comprovam sua ressurreição
corporal: “... um espírito não tem carne nem ossos, como percebeis que eu tenho”
(Lc 24.39). Também o Jesus ressurreto foi capaz de comer (Lc 24.42, 43). No
entanto, o corpo ressurreto de Jesus possuía poderes novos e maravilhosos. Vemos
56
isso ao lermos os relatos de sua surpreendente capacidade de aparecer e
desaparecer (Jo 20.19, 26; Lc 24.31, 36, 37).
Esses dois conjuntos de fatos apontam para uma dupla conclusão: a ressurreição de
Jesus foi corpórea, porém o seu corpo ressurreto possuía poderes estranhos, que
transcendiam as limitações físicas. Podia interagir com a ordem natural, mas, ao
mesmo tempo, transcendia essa ordem. O poder misterioso do Jesus ressurreto foi,
ao mesmo tempo, suficientemente corpóreo para mostrar os seus ferimentos e
suficientemente imaterial para passar pela porta fechada.
Segundo a dogmática protestante-reformada, a ressurreição de Jesus não é um
evento isolado que outorga aos homens a calorosa confiança e esperança de uma
ressurreição futura. É o começo da própria ressurreição escatológica.
Assim, os protestantes-reformados concluem que a ressurreição dos mortos será
física à semelhança da ressurreição de Jesus. E que a ressurreição corporal de
Jesus é um evento escatológico que ocorreu na história e deu surgimento à igreja
cristã. A igreja veio a existir em virtude de um evento escatológico. E ela, por sua
vez, é uma comunidade escatológica, com uma mensagem escatológica. De alguma
forma real, os eventos pertencem ao fim dos tempos, e a consumação escatológica
invadiu a História.
4.4 A NATUREZA DO CORPO RESSURRETO
Já que os mortos serão ressuscitados em seus próprios corpos e não outro, resta
saber como serão os corpos após a ressurreição. Será substancialmente o mesmo?
Terão a mesma identidade física?
Quanto à natureza do corpo ressurreto, as Escrituras dizem pouco. Paulo pode falar
sobre o mesmo como um ‘corpo espiritual’ (1Co 15.44), [Talvez a expressão deva
ser entendida como “uma existência humana total, alma e corpo incluídos, que será
criada, penetrada e controlada pelo Esrito de Cristo.” (BERKHOF, Hendrikus. p.
120). Um corpo “totalmente pertencente à nova era, totalmente sob a direção do
57
Espírito”;
2
glorioso, imperecível e totalmente consagrado a Deus, adequado, assim,
à nova vida gerada e preservada pelo Espírito. Somando com este argumento,
Ferguson escreve: “O corpo no qual a vida futura é vivida será tanto Espiritual
quanto gloriosa em sua própria constituição” (p. 347). Ou, nas palavras de João
Calvino, um corpo no qual “O Espírito será muito mais predominante (...), será muito
mais pleno...” (CALVINO, p. 483-484). A espiritualidade significa um total controle do
Espírito Santo; essa é a perspectiva do Novo Testamento (MURRAY, p. 184.) que
parece significar um corpo que satisfaça às necessidades do espírito. Paulo o
diferencia expressamente do ‘corpo natural’ do tempo presente, e disso infere-se
que um ‘corpo’ que corresponde às necessidades do espírito, de alguma maneira é
diferente deste atual. O corpo espiritual tem as qualidades de incorruptibilidade,
glória e poder (1 Co 15.42 e segs.). O apóstolo Paulo fala (Rm 8.11) não somente da
íntima ligação entre a ressurreição de Cristo e a dos crentes, mas também o fato de
que a ressurreição dos crentes será uma obra do Espírito Santo. Paulo também
ensina (Fp 3.20-21) que os corpos ressurretos dos crentes serão semelhantes ao
corpo ressurreto de Cristo.
Mas como será esse corpo? Podemos obter algumas informações se pensarmos no
corpo ressurreto de Cristo, pois o apóstolo João nos diz que ‘seremos semelhantes
a ele’ (1 Jo 3.2), enquanto o apóstolo Paulo ensina que ‘nosso corpo de humilhação’
será igualado ao ‘corpo da sua glória’ (Fp 3.21). O corpo ressurreto de Cristo parece
que em certo sentido era igual ao corpo natural, e que noutro sentido era diferente.
Assim é que em certas ocasiões Ele foi imediatamente reconhecido (Mt 28.9; Jo
20.19 e seg.), mas noutras não (Lc 24.16; cf. Jo 21). Ele apareceu subitamente no
meio dos discípulos que estavam reunidos com as portas fechadas (Jo 20.19)
enquanto, contrariamente, desapareceu da vista dos dois discípulos de Emaús (Lc
24.31). Ele afirmou e provou ter carne e ossos (Lc 24.39). Ocasionalmente, ele se
alimentou (Lc 24.41-43), embora não se possa afirmar que o alimento físico seja
necessário para a vida após a morte (cf. 1 Co 6.13). Parece que o Cristo ressurreto
2
J.D.G. Dunn, Espírito: In: NDITNT., II, p. 144. De igual forma, interpretam: Eduard Schweizer, pneu=ma, etc.
In: TDNT., VI, p. 421; A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 88-90; Idem., Criados à Imagem de Deus, São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 268; W. Hendriksen, A Vida Futura Segundo a Bíblia, o Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1988, p. 193; Ray Summers, A Vida no Além, 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1979, p. 90-
91; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 520; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora
Os Puritanos, 2000, p. 346-349.
58
podia conformar-se às limitações desta vida física ou não, conforme preferisse. Isso
é um indício de como será o corpo humano após a ressurreição dos mortos.
Segundo John L. Dagg (1989, p. 276), a ressurreição não será uma nova criação. O
corpo glorificado não será criado do nada, mas formado a partir do corpo mortal de
“humilhação”, que o espírito uma vez habitava: “o qual transformará o nosso corpo
de humilhação, para ser igual ao corpo de sua glória” (Fp 3.21). É claro que não se
pode saber como o ‘corpo de humilhação’ será transformado. Não é necessário
supor que toda matéria assim perdida durante uma vida de oitenta anos será
novamente agrupada. O ensino de Paulo a respeito do assunto é explícito: “Não
semeias o corpo que há de ser, mas o simples grão... mas Deus lhe dá corpo como
lhe aprouve dar” (1 Co 15.37,38). Assim é a ilustração dada pelo autor bíblico do
processo pelo qual os mortos serão ressuscitados. O cristão protestante-reformado
se vê livre da obrigação de considerar qualquer conceito filosófico ou científico a
respeito de uma suposta identificação entre os átomos que devesse ser preservada
na ressurreição dos mortos. É interessante observar que o corpo glorioso não se
um corpo diferente do corpo da humilhação, será o mesmo, todavia, transformado.
Assim, cada pessoa que for levantada da sepultura sairá com seu próprio corpo.
Muito embora transformado, tal pessoa será capaz de reconhecer a si mesmo e será
reconhecida pelas demais como a mesma pessoa.
Escrevendo aos coríntios, o apóstolo Paulo (capítulo 15 - o capítulo das Escrituras
que contém o tratamento mais completo a respeito da ressurreição do corpo)
combate os pensamentos que se opõem à ressurreição (possivelmente combatendo
algum ensinamento influenciado pelo pensamento grego sobre a imortalidade da
alma negando, contudo, a ressurreição de corpo). Paulo combate essa visão
errônea, discorrendo sobre o fato da ressurreição (vv. 12-34), depois sobre o modo
da ressurreição (vv. 35-49) e, finalmente, sobre a necessidade da ressurreição e da
transformação dos crentes vivos (vv. 50-57).
O fato da ressurreição dos crentes é provado, primeiramente, pela referência à
ressurreição de Cristo (vv. 12-14), onde não se pode negar a ressurreição dos
crentes sem negar a ressurreição de Cristo, uma vez que as duas são inseparáveis.
E se alguém negar a ressurreição de Cristo, sua fé é vã - ainda está preso em seu
59
pecado. Depois Paulo prossegue destacando o assunto já referido, que a
ressurreição de Cristo é a garantia da ressurreição dos crentes. Na verdade, esta
ressurreição dos crentes é um aspecto necessário na obra mediadora de Cristo, pois
“o último inimigo a ser destruído é a morte”.
Logo em seguida (v. 35), Paulo começa a discorrer sobre o modo da ressurreição.
Primeiramente ele apresenta a figura da semente onde seu objetivo é simplesmente
este: Vocês que duvidam da possibilidade de uma ressurreição física, considerem a
maravilha que há no plantio de uma semente. Você semeia um grão de trigo no solo;
então o grão morre como grão, mas, a seu tempo, Deus fará uma nova planta surgir
do solo onde o grão foi semeado. Deus dá um ‘corpo’ a esse grão conforme sua
escolha, e a cada tipo de grão ou semente ele dá seu ‘corpo’ peculiar. Partindo do
pressuposto de que Deus é capaz de fazer isso com a semente, é razoável que ele
possa fazê-lo com o corpo humano. Com essa ilustração Paulo destaca que o corpo
ressurreto não surgirá a menos que morra em sua forma atual; que pela simples
observação do corpo atual não se pode dizer exatamente como será o corpo
ressurreto; e que haverá continuidade entre o corpo atual e o corpo ressurreto.
Deduz-se então, que o mesmo corpo com o qual o homem nasce e morre será
aquele no qual ressuscitará. A esse respeito, Hoekema considera:
Se o corpo ressurreto fosse imaterial ou não-físico, o diabo teria alcançado
uma grande vitória, pois Deus então teria sido levado a transformar seres
humanos, que ele criou com corpos físicos, em criaturas de uma espécie
diferente, sem corpo físico (como os anjos). Então, realmente pareceria que
a matéria tivesse se tornado intrinsecamente má, de modo que tivesse de
ser eliminada. E então, em certo sentido, teria sido provado que os filósofos
gregos tinham razão. Mas a matéria não é má; ela é parte da boa criação de
Deus. Por causa disso, o alvo da redenção de Deus é a ressurreição do
corpo físico, e a criação de uma nova terra na qual seu povo redimido possa
viver e servir para sempre a Deus com corpos glorificados. Dessa forma, o
universo não será destruído, mas sim renovado, e Deus conquistará a
vitória. (HOEKEMA, p. 334-335)
Em seguida, o apóstolo Paulo trata da questão da necessidade da ressurreição do
corpo (1 Co 15.50-57). Ele fala que o homem, como é agora, uma criatura frágil e
perecível, não pode ter um lugar no reino glorioso e celestial de Deus. Depois ele
60
fala que é impossível herdar a plenitude das bênçãos da vida por vir com estes
corpos fracos e perecíveis como são atualmente. Tem de haver uma transformação.
Essa transformação é necessária tanto para os mortos ressurretos quanto para os
crentes vivos. Assim, na ocasião da volta de Cristo, tanto a ressurreição dos mortos
como a transformação dos vivos acontecerá numa sucessão rápida. Escrevendo aos
tessalonicenses (1 Ts 4.16,17), o apóstolo diz que o arrebatamento dos crentes
acontecerá imediatamente após a ressurreição e transformação mencionadas.
Somente depois desse acontecimento é que terá ocorrido a vitória final sobre a
morte: “E quando este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é
mortal se revestir de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita:
Tragada foi à morte pela vitória” (1 Co 15.54).
Todavia é impossível saber quais serão a forma e as propriedades do corpo
glorificado. A idéia de um corpo transformado à semelhança do corpo glorioso de
Cristo já poderia ser considerada suficiente, contudo, as Escrituras oferecem
algumas informações adicionais a esse respeito.
O corpo glorificado será incorruptível: “Porque é necessário que este corpo
corruptível se revista da incorruptibilidade,...” (1 Co 15.53). O corpo ressurreto não
sofrerá decomposição nem desgaste e, portanto, não necessitará de renovação.
O novo corpo será espiritual: “Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual.
Se há corpo natural, há também corpo espiritual” (1 Co 15.44). Apesar de não
podermos definir com precisão o que é um corpo espiritual, podemos, pelo menos,
concluir que “estaremos livres da inércia e do peso que agora nos prendem à
superfície da terra, e poderemos nos locomover rapidamente à semelhança da
capacidade que têm os espíritos angelicais”. (DAGG, 1989, p. 278)
O novo corpo é também imortal: “Porque é necessário que... o corpo mortal se
revisa da imortalidade” (1 Co 15.53). Não haverá necessidade da renovação do
gênero humano, pois não haverá morte.
Hoekema conclui que os corpos daqueles que estiverem em Cristo terão a mesma
identidade, todavia, serão maravilhosamente transformados.
61
Entretanto, temos de confessar que a Bíblia nos diz muito pouco acerca da
natureza exata do corpo ressurreto. São-nos dados alguns indícios, mas
muito ainda fica por ser dito. De fato, é interessante observar que muito do
que a Bíblia diz, acerca da existência futura, está sem termos negativos:
ausência de corrupção, fraqueza e desonra; ausência da morte; ausência
de lágrimas, lamentação, choro ou dor (1 Co 15.42,43; Ap 21.4). Sabemos
alguma coisa acerca do que não experimentaremos, mas sabemos pouco
acerca de que vamos experimentar. Tudo o que realmente sabemos é que
será maravilhoso, além de nossa mais alta imaginação. As palavras que
Paulo profere, em outro contexto, são provavelmente aplicáveis aqui: “O
olho não viu, nem ouvido ouviu, nem penetrou no coração humano, as
coisas que Deus tem preparado para aqueles que o amam” - 1 Co 2.9.
(HOEKEMA, p. 336)
Por outro lado, quanto aos ímpios, as Escrituras não informam com que corpo eles
ressuscitarão. E de nada aproveita conjeturar a respeito de pontos obscuros da
revelação. Mas, visto que eles também serão ressuscitados para se apresentarem
ao grande julgamento e receberem a sentença sob a qual sofrerão a punição eterna,
deduz-se que, tanto no corpo como no espírito, os ímpios terão a capacidade e a
adequação necessárias para suportar eternamente os tormentos infligidos.
4.5 A OCASIÃO DA RESSURREIÇÃO
Conquanto haja variegadas proposições quanto ao tempo ou ocasião da
ressurreição dos mortos (por exemplo: os premilenistas ensinam que a ressurreição
dos crentes acontecerá no princípio do milênio e a ressurreição dos incrédulos
ocorrerá no final do milênio; já os dispensacionalistas acrescentam mais duas
ressurreições além dessas: a ressurreição dos santos da tribulação no final da
tribulação de sete anos, e a ressurreição dos santos do milênio no final do milênio),
os protestantes-reformados fazem as seguintes afirmações:
A ressurreição de crentes e incrédulos acontecerá conjuntamente: Lembrando que o
profeta Daniel (Dn 12.2) menciona a ressurreição dos justos e a dos ímpios
simultaneamente, sem qualquer indicação de que a ressurreição desses dois grupos
deva ser separada por um longo período de tempo, e que Jesus ensinou que a
ressurreição dos crentes e dos incrédulos acontecerá conjuntamente (Jo 5.28-29),
os protestantes-reformados afirmam que não há nenhuma indicação de que Jesus
62
pretendia ensinar que um período extremamente longo de tempo separará a
ressurreição para a vida da ressurreição para o juízo. Outra passagem citada para
enfocar que a ressurreição de crentes e incrédulos é mencionada conjuntamente, é
Atos 24, na qual Paulo, em sua defesa perante Félix, diz: “Eu sirvo ao Deus de
nossos pais..., tendo esperança em Deus, como também estes [os judeus que o
acusavam] a têm, de que haverá ressurreição, tanto de justos como de injustos” (vv.
14,15). A argumentação é de que no grego, assim como na tradução para o
português, a palavra ressurreição está no singular. Daí o pergunta de retórica:
Poderão duas ressurreições separadas por mil anos serem adequadamente
denominadas de ressurreição?
Quanto ao texto de Apocalipse 20.11-15 baseado no qual os premilenistas e
dispensacionalistas afirmam que está descrito unicamente a ressurreição dos
incrédulos, os protestantes-reformados afirmam que o texto não descreve
exclusivamente acerca dos incrédulos, mas fala claramente de uma ressurreição
geral de todos os mortos. A prova disso está na referência ao livro da vida (v.12 e
15). Este livro é geralmente entendido como sendo a lista dos eleitos de Deus. Então
surge uma nova pergunta de retórica: Haveria qualquer indicação nessa passagem
de que nenhum dos que estavam perante o grande trono branco tivesse seu nome
escrito no livro da vida?
A ressurreição dos crentes terá ocasião na segunda vinda de Cristo: Na dogmática
protestante-reformada, a Bíblia ensina que os crentes serão ressuscitados na
segunda vinda de Cristo (1 Co 15.23; Fp 3.20,21; 1 Ts 4.6), cuja ocasião é
denominada “o último dia” (Jo 6.40; cp. vv. 39,44 e 54). O premilenismo (tanto o
histórico como o dispensacionalista) afirma que a ocasião em que os crentes
deverão ser ressuscitados terá lugar pelo menos uns mil anos antes da instauração
do estado final. Com base nisso os protestantes-reformados questionam
retoricamente: Como pode uma ocasião que ocorre mil anos antes do fim ser
chamada de “último dia”?
Isto posto, arrazoam de que os argumentos para uma ressurreição em duas etapas
(baseados em 1 Ts 4.16 e 1 Co 15.23-24) não são conclusivos. Um dos argumentos
baseados nessas passagens é que em nenhuma delas os incrédulos são
63
mencionados; por isso é suposto que a ressurreição dos crentes aconteça numa
ocasião diferente da dos incrédulos. Mas isso não os convence, pois a razão pela
qual Paulo não menciona os incrédulos, em ambas as passagens, é que ele está
tratando unicamente da ressurreição dos crentes, que difere, em princípio, da
ressurreição dos incrédulos. Já em 1 Ts 4.16 o contraste não é entre a ressurreição
de crentes e incrédulos, mas entre a ressurreição dos mortos em Cristo e o
arrebatamento dos crentes que ainda estiverem vivos quando Ele retornar, ou seja,
que a ressurreição dos crentes mortos precederá a transformação e o
arrebatamento dos crentes que estiverem vivos por ocasião da Parousia (volta de
Cristo). Também em 1 Co 15.23,24 (bem como em todo este capítulo), Paulo não diz
coisa alguma acerca da ressurreição dos incrédulos; seu ensino aqui se ocupa
apenas da ressurreição dos crentes.
A dogmática protestante-reformada conclui que não há base nas Escrituras para a
teoria de uma ressurreição dupla ou quádrupla. O ensino claro da Bíblia é de que, na
ocasião da volta de Cristo, haverá uma ressurreição geral tanto de crentes como de
incrédulos. Após esta ressurreição geral se seguirá o juízo.
5 INFLUÊNCIAS DA PERSPECTIVA CRISTÃ DO STATUS PÓS-MORTE NO
MODUS VIVENDI DOS CRISTÃOS
“O túmulo vazio de Cristo foi o berço da igreja”. (Pressensé apud
MCDOWELL, 1992. p. 231)
A significação cristológica da ressurreição é considerável. O fato que Jesus
profetizou que haveria de ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia, tem
importantes implicações acerca de sua pessoa. Alguém que pôde fazer isso é maior
que os filhos dos homens. Paulo reputa claramente a ressurreição de Cristo como
acontecimento que se reveste de cardeal importância: “se Cristo não ressuscitou, é
vã a nossa pregação e vã a nossa fé... e, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé,
e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1 Co 15.14, 17). O ponto a ser frisado é
que o cristianismo traz as boas novas acerca de como Deus enviou o seu filho para
ser o Salvador dos que nele crêem. Porém, se Cristo em realidade não ressuscitou,
então não há qualquer certeza de salvação. A realidade da ressurreição de Cristo se
reveste de profunda significação e é à base da esperança cristã quanto à
ressurreição dos mortos.
A ressurreição dos mortos é igualmente importante. O ponto de vista de Paulo é que
se os mortos não ressuscitam, então podemos adotar o lema “comamos e bebamos
que amanhã morreremos (1 Co 15.32). Os cristãos não são pessoas para quem
esta vida é tudo. Sua esperança jaz em alguma outra coisa: “Se a nossa esperança
em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os
homens. (1 Co 15.19). A certeza de uma realidade ulterior lhes fornece perspectiva
e lhes dá profundeza de vida.
A ressurreição de Cristo está ligada com a salvação do homem de seus pecados,
conforme se vê nos escritos do apóstolo Paulo, o qual diz que Jesus Cristo “foi
entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por causa da nossa
justificação” (Rm 4.25; cf. 8.33 e seg.). Percebe-se que a ressurreição de Cristo está
ligada com o ato central mediante o qual o cristão baseia sua expectativa de
salvação. Portanto, a salvação não é alguma coisa que tenha lugar à parte da
65
ressurreição.
O apóstolo Paulo expressa também o seu desejo de conhecer a Cristo e “o poder da
sua ressurreição (Fp 3.10), e exorta aos crentes de Colossos “se fostes
ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as cousas lá do alto” (Cl 3.1). O
apóstolo já os havia relembrado que haviam sido sepultados juntamente com Cristo
no batismo, e que no mesmo sacramento haviam sido ressuscitados com Ele: “tendo
sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente fostes
ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos.”
(Cl 2.12). Em outras palavras, Paulo contempla o mesmo poder que trouxe Cristo de
volta à vida dentre os mortos, como sendo o poder que opera naqueles que crêem
em Cristo. Assim, a ressurreição de Cristo não é como uma nota musical tocada em
stacato, mas em sustenuto, pois seus efeitos têm prosseguimento. E ela influencia a
vida do cristão gerando a expectativa de sua ressurreição semelhante à de Cristo.
No mistério de sua pessoa teantrópica, Jesus incorpora a ‘ressurreição e a vida’ (Jo
11.25). Em outras palavras, a ressurreição, da qual os judeus somente tinham um
conceito escatológico, começa no momento em que Cristo aparece e o seu Espírito
opera. Qualquer pessoa que esteja ligada a ele pela fé e que foi envolvida pelo
poder dele, experimenta o começo da transição desta era transiente para a nova,
para a libertação do pecado e da morte (Fp 3.10: “para conhecê-lo, e o poder da sua
ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua
morte; para de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos.).
Este fato é testificado na Ceia do Senhor: Quem comer a minha carne e beber o
meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.” (Jo 6.54). Logo, a
fé pode ser interpretada como um morrer e ressuscitar com Jesus (Rm 6.11; Jo
5.24). Paulo, na Carta aos Romanos (Rm 6.4), diz que o cristão foi sepultado com
Cristo em sua morte pelo batismo, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os
mortos pela glória do Pai, assim também ande em novidade de vida. Paulo usa a
figura do batismo como ilustração da regeneração operada pelo Espírito Santo.
Antes da regeneração o homem tinha prazer nas coisas do mundo, em suas ofertas;
depois de regenerado deixa de apreciar tais coisas a ponto de rejeitá-las, isso
66
evidencia sua regeneração. A regeneração funciona como um tipo de ‘ressurreição
espiritual’. Esta ‘ressurreição espiritual’, através do testemunho interno do Espírito
Santo (Rm 8.16), confere a certeza de que, assim como Cristo ressuscitou, o cristão
também será ressuscitado fisicamente.
Dessa maneira, cada regenerado torna-se uma prova viva da ressurreição de Cristo.
Muito embora a ressurreição seja prefigurada na regeneração, e, assim,
acontecendo todos os dias e em todo o mundo, essa ‘ressurreição espiritual’ é
apenas o início, um flash da gloriosa e vindoura ressurreição dos mortos.
Além da habilidosa reunião de evidências documentárias dos Evangelhos e do Novo
Testamento como um todo, outro argumento a favor da ressurreição de Cristo
baseia-se no que a igreja faz a cada domingo e no testemunho individual e diário
dos cristãos.
Quando a igreja se reúne para o ‘partir do pão’ (eucaristia ou santa ceia), segundo o
mandamento do Senhor, não somente proclama a morte de Cristo (1 Co 11.26)
como também dá testemunho de sua ressurreição. A celebração semanal da morte
de um Senhor morto não seria ocasião de alegria e ações de graças. O fato de os
discípulos reunirem-se, desde os primeiros dias, para comemorar jubilosamente o
memorial da morte de Cristo, revivendo a cena solene do cenáculo na noite anterior
à traição, é uma poderosa evidência da certeza de que criam a ressurreição. “Fora
por eles reconhecido no partir do pão” (Lc 24.35). A reunião dos mesmos discípulos
que “fugiram” (Mc 14.50) é suficiente prova de que algo milagroso ocorrera. E a
própria existência da igreja, se for levado em conta às circunstâncias em que a
missão de Jesus parecia terminar em falha e fracasso total, já seria bastante para
convencer de que a explicação dos apóstolos é, de fato, a única que merece
aceitação racional: Jesus ressuscitou. Somente tal convicção dá sentido ao corajoso
testemunho prestado pelos apóstolos diante do mesmo tribunal que condenara seu
Mestre (At 4.5-22). Desde então se tornaram testemunhas da ressurreição (At 1.22;
2.32; 4.33). Como membro do corpo de Cristo, cada cristão partilha dessa mesma
convicção.
67
“E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a vossa fé;... e ainda
permaneceis nos vossos pecados.” (1Co 15.14, 17b). Negar a ressurreição de Cristo
seria tornar o cristianismo em ilusão. A negação da ressurreição de Cristo é a
negação do perdão de pecados (Rm 4.25), a negação da esperança de vida futura,
a negação da filiação divina de Jesus, a negação da aliança firmada no sangue de
Cristo (I Co 11.25) e, em contrapartida, a afirmação da morte como realidade última.
Contra tudo isso a impressionante exultação do apóstolo Pedro (1 Pe 1.3-5)
expressa sua convicção da ressurreição de Cristo e da conseqüente e vindoura
ressurreição dos mortos e salvação dos que crêem:
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua
muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança mediante a
ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança
incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos céus para vós
outros, que sois guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para
salvação preparada para revelar-se no último tempo.
Questionando-se sobre o estado intermediário dos mortos, Moltmann (2003, p. 114)
indaga sobre onde estão os mortos.
Eu gostaria de saber onde estão os mortos e como posso manter a
comunhão com eles. Eles dormirão em corpo e alma nas sepulturas até o
despertamento dos mortos? As suas almas encontram-se na “condição
interina” do purgatório, onde estão sendo purificadas pelo cumprimento de
penas pelos seus pecados, até que possam ver Deus? Eles já
ressuscitaram e já se estão com Cristo na felicidade da vida eterna?
Arrazoando sobre a doutrina católico-romana do purgatório, Moltmann (2003, p. 115)
diz que o cristão tem seus pecados perdoados, mas ainda não está purificado deles.
Daí a necessidade das penas temporais.
Se ele morre na fé em Cristo, então seus pecados lhe são perdoados, mas
ele ainda não está purificado deles. Ele ainda não fez expiação por eles
mediante o cumprimento das penas temporais necessárias. Assim como
aqui a vida dos crentes representa uma penitência constante e um processo
68
permanente de purificação, assim também continuará a ocorrer com as
suas almas após a morte.
Para Moltmann, a concepção do purgatório é refrigerante à alma do moribundo vivo,
pois lhe oferece ‘uma luz no fim do túnel’. Moltmann (2003, p. 117) parece não dar
muito crédito a essa doutrina, pois ela põe em dúvida o amor incondicional de Deus.
Enquanto que o Inferno e Céu são apresentados como estações terminais
fechadas, aquela sem esperança, esta sem desejo, a concepção do
purgatório abre a perspectiva para um futuro desejável e um caminho cheio
de esperança após a morte.
Contudo, o conteúdo da concepção do purgatório parece contradizer a
experiência do amor incondicional com que Deus nos encontra, aceita,
reconcilia e glorifica em Cristo.
Moltmann (2003, p. 117) parece acenar favoravelmente à concepção de uma
comunhão permanente entre os vivos e os mortos em Cristo como sendo algo bom e
necessário.
A concepção da continuação da existência de uma alma incorpórea não
satisfaz a nossa busca por uma comunhão com os mortos, que nós
amamos com corpo e alma. Todavia, a concepção de uma comunhão
permanente entre os vivos e os mortos em Cristo e da comunhão com
Cristo como uma comunhão de vivos e de mortos é boa e necessária.
Todavia, tratando sobre ‘a comunhão com os mortos’, Moltmann (2003, p. 127)
opõe-se a pratica de sufrágios em benefício dos mortos, uma vez que a obra de
Cristo seja o suficiente para redenção. Mas o sentido da prática das esmolas e da
participação na comunhão eucarística é evidenciar a comunhão da igreja.
Nada precisamos fazer pela redenção das pobres almas no purgatório, pois
Cristo fez o suficiente por elas, e elas já estão abrigadas no seu amor. Nós,
porém, não devemos esquecê-las ou reprimir a sua memória. O sentido
mais profundo da tradição eclesial da intercessão pelos mortos e da dádiva
de esmolas por causa deles decerto é este: aproximamo-nos dos mortos na
comunhão eucarística e na comunhão com os pobres. Eles estão conosco
69
sempre que o espírito da vida toma conta de nós e nos faz felizes. A
comunhão dos vivos com os mortos é a prática da esperança da
ressurreição.
Com base nisso, qual é, finalmente, a real expectativa do cristão quanto ao seu
próprio status pós-morte?
Eu quero viver, eu quero morrer, eu quero ressuscitar. O cristão autêntico deseja
viver intensamente a vida segundo a vontade de Deus. Ele também olha para a
morte numa perspectiva diferente, positiva, não negativa. Por fim ele vislumbra a
ressurreição dos mortos para sua redenção final e gozo eterno.
Eu quero viver. O ser humano encontra a si mesmo não pela auto-preservação,
mas pelo auto-esvaziamento em favor do outro. O apóstolo Paulo, escrevendo aos
coríntios, diz que o sentido de todas as coisas está no amor. Qualquer coisa feita,
por melhor que seja, sem amor, está destituída de sentido. Teria sentido uma vida
cheia de realizações, todavia, sem amor? Para viver uma vida integral, é preciso
experimentar o amor. Só o amor dá sentido pleno à vida. Uma pessoa que não se
entrega ao amor, na verdade está tentando se auto-preservar. Tal pessoa não quer
arriscar sofrer a dor de perder alguém que ama (quando esta morre), ou causar dor
a alguém que a ama (quando a própria pessoa morre) – é uma medida de auto-
preservação. Mas uma pessoa que não se entrega ao amor, não vive, antes morre
antecipadamente. Sua vida é um luto freqüente, um longo e duradouro ofício
fúnebre. Mas se ela se entrega ao amor, com todos os seus riscos, viverá
intensamente a vida com todas as suas alegrias e tristezas. Quanto a isso, certo
autor desconhecido escreveu “Cada dia que vivo mais me convenço de que o
desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na
prudência egoísta que nada arrisca, e que esquivando-nos do sofrimento, perdemos
também a felicidade.”
Eu quero morrer. A morte é como uma boa amiga que redime a alma da escravidão
70
do corpo corrupto e habitação do pecado.
A brevidade da vida humana pode ser ilustrada com a expiração e a inspiração de
Deus. De acordo com a Bíblia, Deus formou o homem do pó da terra e lhe soprou
nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente (Gn 2.7);
também é dito que na morte o pó volta à terra, como era, e o espírito volta a Deus,
que o deu (Ec 12.7). Portanto, considerando ainda que os anos da nossa vida sejam
como um breve pensamento (Sl 90.9), chegamos à conclusão de que a vida humana
é tão breve quanto o expirar e inspirar de Deus, pois num momento Ele expira e nos
dá vida, e no outro Ele inspira e a toma novamente. Assim é a transitoriedade
humana.
A morte é o limite daquilo que conhecemos como vida. Ela não é o fim da existência,
mas um momento dela, porque a existência vai para além da experiência da morte,
ela ultrapassa a barreira da morte. Com isso, constata-se a ‘imortalidade da vida
humana’. A consciência desta imortalidade é um tanto ambígua, pois ela poderia ser
a pior coisa destinada ao ser humano. Nessa perspectiva, para algumas pessoas
talvez a aniquilação da alma fosse melhor. Mas, de acordo com a doutrina cristã, a
fé no Deus que ressuscita os mortos traz a segurança de uma imortalidade bem-
aventurada, inequívoca e confortadora.
O salário do pecado é a morte somente em relação aos homens, pois conforme
observou Moltmann:
“Os anjos, dos quais se diz em 2 Pe 2.4 que “pecaram”, permanecem
imortais. Os seres vivos não-humanos que não pecaram, “estão
submetidos, independentemente de sua vontade, à transitoriedade” e
morrem (Rm 8.20). Logo, na criação, há pecado sem morte e morte sem
pecado. (MOLTMANN, 2003, p. 107-108)
Eu quero ressuscitar. A esperança da ressurreição torna as pessoas dispostas a
viver integralmente no amor e a dizer um sim irrestrito para uma vida que vai para
71
além da morte.
Escrevendo aos coríntios, o apóstolo Paulo estabelece a relação entre a vida aqui e
a ressurreição lá: “Pois assim também é a ressurreição dos mortos. Semeia-se o
corpo na corrupção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita
em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder. Semeia-se corpo natural,
ressuscita corpo espiritual. (1 Co 15.42-44)
A esperança da ressurreição não permite nenhuma vida em adiamento, pois de
acordo com Moltmann, “A transcendência da esperança é vivida na encarnação do
amor: aqui viverei integralmente e morrerei integralmente e lá ressuscitarei
integralmente.” (MOLTMANN, 2003, p. 83). O apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios,
discorre sobre a transformação resultante da ressurreição: “num momento, num abrir
e fechar d’olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos
ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados (1 Co 15:52); e
escrevendo aos filipenses discorre sobre a transfiguração também em decorrência
da ressurreição: “o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual
ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a
si todas as cousas” (Fp 3.21). Nesses dois textos o apóstolo fala do indivíduo
encontrando sua cura, reconciliação e plenitude na ressurreição.
A morte é o poder da divisão temporal, objetiva e social; a ressurreição é o seu
contraponto, pois é o poder ou força da união temporal, objetiva e social:
A morte é o poder da divisão, tanto temporalmente como fluxo da
transitoriedade quanto objetivamente como desintegração da forma de vida
do ser humano, como também socialmente como isolamento. O
despertamento para a vida eterna é, em contraposição, a força da união,
temporalmente como reunião de todos os instantes temporais no presente
eterno, objetivamente como cura visando à inteireza da forma de vida e
socialmente como integração na comunhão do amor eterno. ( MOLTMANN,
p. 87.)
72
Esta é a razão da esperança cristã na ressurreição dos mortos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pouco é dito sobre a ressurreição no Antigo Testamento. Não foram encontradas
declarações claras a respeito da ressurreição dos mortos antes do tempo dos
profetas, embora Jesus declarasse que já estava implícita em Êx 3.6 (cf. Mt. 22.29-
32), e o escritor de Hebreus dá a entender que até mesmo os patriarcas anelavam
pela ressurreição dos mortos (Hb 11.10, 13-16, 19). Ainda que numa consideração
geral o Antigo Testamento pouco fala a respeito da ressurreição, e que seus
escritores empregavam a idéia da ressurreição a fim de expressarem a esperança
nacional do renascimento da nação, todavia há uma declaração clara no Antigo
Testamento sobre a ressurreição do indivíduo: “Muitos dos que dormem no pó da
terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno”
(Dn 12.2). Essa passagem claramente contempla uma ressurreição tanto dos justos
como dos ímpios, e também vê as eternas conseqüências das ações humanas.
No período intertestamental, a doutrina primária do judaísmo é a ressurreição, a
revivificação dos mortos. Entre cerca de 200 a.C. e 100 d.C. já havia a crença
generalizada na ‘imortalidade da alma’ e na ‘ressurreição’, numa sobrevivência mais
rica e valiosa num outro mundo e na ressurreição para uma vida na terra. Apesar de
se ter muita conjectura sobre a origem da crença na ressurreição entre os judeus,
pode ser dito que eles já criam na ressurreição antes do contato com o Império
Persa. O objetivo aqui não foi quanto à origem da crença na ressurreição dos mortos
entre os judeus, mas constatar a presença dessa doutrina entre eles também
durante o período intertestamental, o que foi verificado mediante evidências de que
havia entre os judeus uma crença na ressurreição muito antes do cativeiro. O
pensamento judaico de uma vida no além tem sua raiz mais profunda na consciência
de Deus: porque Javé vive, e é o Deus de Israel conforme a aliança, e Israel é seu
povo, há continuidade do relacionamento e da vida.
No debate com os saduceus (Mc 12:26-27) sobre o entendimento destes quanto à
morte como extinção, sem a esperança da ressurreição, Jesus esclareceu que se
Deus tomou sobre si a tarefa de proteger os patriarcas dos infortúnios do decurso da
vida deles, mas deixou de libertá-los daquele infortúnio supremo que marca o fim
74
definitivo e absoluto das esperanças deles, sua proteção é de pouco valor. Ao dizer,
com base em Êx 3.6, que Deus não é “Deus de mortos, e sim de vivos, Jesus
demonstrou como a fé na ressurreição está vinculada de modo profundo ao conceito
central da revelação bíblica, e como a salvação que Deus prometeu aos patriarcas e
seus descendentes, com base na aliança, contém (implicitamente) a certeza da
ressurreição.
Os cristãos do primeiro século reconheciam que a ressurreição fornecia a
reivindicação central do cristianismo. Com a ressurreição, a mensagem cristã da
vida eterna está segura, e se baseia na realidade da vitória de Jesus sobre a morte.
Sem a ressurreição de Cristo e a subseqüente e aguardada ressurreição dos mortos
para a vida eterna, a mensagem cristã é reduzida a uma filosofia humana. Com base
na pregação dos apóstolos, os quais enfatizaram dois temas principais: a morte e a
ressurreição de Jesus – os dois pilares da fé cristã –, a igreja cristã destacou a
ressurreição dos mortos como a expressão de sua expectativa do status pós-morte.
Por isso o Credo Apostólico, mormente no que se refere à Escatologia, destaca a
ressurreição do corpo.
Na pesquisa das escatologias católico-romana e protestante-reformada, foi mantida a
integridade dos textos pesquisados para preservar suas expectativas quanto ao status
do homem no pós-morte.
No geral, a escatologia católica difere da reformada ao inserir alguns novos
elementos, a saber: as doutrinas sobre o Juízo Particular, sobre o Purgatório, a
crença na ressurreição e assunção de Maria - mãe de Jesus -, e a ênfase nas boas
obras que acompanham a fé. Todavia, o loci communis do cristianismo - os
elementos fundamentais da fé e comuns às teologias cristãs -, a saber, a morte e a
ressurreição de Cristo para redenção e justificação dos eleitos - temas centrais no
ensino dos apóstolos - estão preservados em ambas as dogmáticas.
Conseqüentemente, conquanto sejam ambos cristãos (católico-romano e
protestante-reformado), a influência da religião afeta o comportamento humano.
O católico-romano crê que a salvação é alcançada mediante fé e obras, daí seu
empenho pela prática de boas obras, pois há uma expectativa de salvação por
75
méritos. O católico-romano também crê na ressurreição e subseqüente assunção de
Maria, o que faz dela uma intercessora no céu; isso justifica as rezas pedindo a
Maria sua intercessão ‘agora e na hora da morte’. O católico-romano, com base na
doutrina do Purgatório, intercede pelos mortos na expectativa de os estar ajudando-
os a purgar seus pecados e alcançar o céu. De modo geral, a expectativa católico-
romana quanto ao status pós-morte influencia seus fiéis à devoção aos santos
defuntos, à intercessão pelos mortos que estão no purgatório, à prática da caridade
em benefício de si mesmo e em benefício dos mortos. Tudo isso, aparentemente,
acentua a piedade, todavia, poderá conduzir a uma indiferença quanto aos pecados
praticados devido à sua expectativa de purificar-se, finalmente, no purgatório.
Quanto ao protestante-reformado, este procura ter uma vida pautada pelo
aprendizado e observação dos preceitos bíblicos, pois tem a Escritura Sagrada
como seu manual de fé e prática. Na dogmática protestante-reformada a salvação é
alcançada pela graça de Deus, mediante a fé em Cristo, por ação do Espírito Santo
regenerador. Dessa forma, o homem pecador outrora morto nos seus delitos e
pecados, é trazido à vida (ressurreição espiritual) e perseverará neste caminho de
vida eternamente. A crença na doutrina da perseverança dos santos confere ao
cristão protestante-reformado a firme expectativa de que após a morte estará no
paraíso com Cristo, onde aguarda a ressurreição dos mortos para a vida eterna num
corpo glorioso. De modo geral a expectativa protestante-reformada quanto ao status
pós-morte, influencia seus fiéis a confiar inteiramente em Deus para a sua salvação,
independentemente de suas boas ou más obras praticadas. Isso, conquanto possa
produzir bem-estar e sensação de segurança eterna, pode também induzir ao
acomodamento em relação à santificação pessoal e às boas obras.
A análise de campo quanto ao comportamento dos cristãos católico-romano e
protestante-reformado não fez parte desta pesquisa. Este e quaisquer outros
assuntos correlacionados poderão ser pesquisados por outros pesquisadores.
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77
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APÊNDICE
QUADRO DEMONSTRATIVO
VIDA APÓS A MORTE:
Uma análise das Escatologias Católico-Romana e Protestante-Reformada
e suas possíveis influências no modus vivendi dos cristãos
Grupos Pressuposto
Teológico ou
Filosófico
Em quê crê? Aplicação prática
Cristão
Católico-
Romano
Ressurreição A salvação é
alcançada pela fé e
pelas obras.
Ênfase no purgatório.
Se Deus achar que eu
mereço, serei salvo.
Cristão
Evangélico-
Reformado
Ressurreição A salvação é pela
graça, mediante a fé.
Ênfase na
perseverança dos
santos.
Quem nos separará do
amor de Deus que está
em Cristo Jesus? Afinal,
não depende de quem
quer, nem de quem
corre, mas de Deus usar
a sua misericórdia.