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Patricia Carvalho Rocha
A ESTÉTICA DA DISSONÂNCIA NAS
OBRAS DE CHARLOTTE BRONTË
Tese apresentada ao Curso de Doutorado da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor em
Estudos Literários.
Área de concentração: Literatura Comparada
Orientadora: Profa. Dra.Sandra Regina G. Almeida
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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Agradecimentos
Agradeço a Deus pela coragem e determinação para perseguir esse sonho e por
me dotar de inteligência, entusiasmo e sabedoria para melhor entender e lidar com
todos os desafios e percalços envolvidos.
Agradeço, do fundo do meu coração, à minha mãe pela ajuda, compreensão,
incentivo e paciência durante todos esses anos de trabalho árduo, ausências e
exigências das mais variadas. Sem esse apoio constante certamente não teria
chegado aqui.
Agradeço à minha orientadora Profa. Dra. Sandra Regina Goulart Almeida pelas
palavras de incentivo e encorajamento, sobretudo nos momentos de maior
dificuldade e pelas sempre valiosas considerações e sugestões.
A todos os meus amigos, superiores e companheiros de jornada por entenderem
minhas ausências e por sempre me apoiarem.
Ao CAPES pela concessão de uma bolsa de estudos na Universidade da Carolina
do Norte em Chapel Hill, EUA, fundamental para melhor elaboração da minha
pesquisa. Agradeço, sobretudo, à Profa. Dra. Beverly Taylor pelas valiosas
sugestões durante minha estada em Chapel Hill.
A todos os funcionários da POSLIT e da Pró-Reitoria de Pós-Graduação pela
presteza, cordialidade e auxílio durante essa jornada.
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A inteligência é uma espécie de paladar que
nos dá a capacidade de saborear idéias.
Susan Sontag
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Resumo
Charlotte Brontë (1816-1855), figura importante no questionamento da ideologia do
feminino na sociedade vitoriana, evidencia em suas obras não apenas uma preocupação
com a arbitrariedade atrelada ao conceito de gênero no século XIX, mas também uma
reflexão sobre esse conceito por meio de personagens construídas em dissonância com a
ideologia do período. Em
The Professor, Jane Eyre, Shirley e Villette apresentam
personagens à margem dos ideais de gênero comuns no século XIX e que questionam
explicitamente o paralelismo vigente na época entre sexo e gênero, assim como a crença
em uma suposta essência do feminino capaz de justificar uma postura submissa da
mulher perante o homem. Objetivando uma leitura contemporânea das discussões
apresentadas por Brontë em seus romances, valho-me de teorias de gênero de cunho
social e performático, mais especificamente da vertente proposta por Judith Butler, nas
quais se vislumbra um novo paradigma capaz de abarcar a fragmentação, o pluralismo e a
multiplicidade de possibilidades performáticas nas questões de gênero, conforme
apresentado pela autora.
11
Abstract
Charlotte Brontë (1816-1855), one of the most prominent figures in the questioning of
the ideology of the feminine in the literature of the nineteenth century, shows in her
works not only a concern with the arbitrariness of the notion of gender, but also a
discussion about this notion through the portrayal of protagonists that can be said to be
dissonant in the relation to the ideology of the period. In
The Professor, Jane Eyre,
Shirley
and Villette, Brontë portrays characters that do not conform to idealized notions
of gender in the period and that explicitly reflect upon the established parallelism
between sex and gender, questioning the subservient position ascribed to women in
society. With a view to presenting a more contemporary reading of Brontë’s work, I
focus on gender theories that emphasize social and performance aspects, especially Judith
Butler’s concept of gender as performance, in my reading of Brontë’s novels. These
works require an analysis based on new paradigms that might encompass the
fragmentation and multiplicity of the possibilities of performance regarding issues of
gender, as presented by the author.
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Sumário
1) Introdução 7
2) Capítulo 1: Charlotte Brontë, a condição da mulher e as
ideologias de gênero na Inglaterra Vitoriana 14
3) Capítulo 2: Sexo e gênero: o unitário, o binário e o múltiplo 53
4) Capítulo 3: Figuras dissonantes: a performance de gênero em
The Professor e Jane Eyre 86
5) Capítulo 4: Não somos nem sedutoras, nem desagradáveis, nem
monstros’: ‘a anatomia da alma feminina’ em
Shirley e Villette 149
6) Conclusão 188
7) Referências bibliográficas 197
13
Introdução
A ESTÉTICA DA DISSONÂNCIA NAS
OBRAS DE CHARLOTTE BRONTË
14
Três entre as quatro obras publicadas por Charlotte Brontë (1816-1855) tendem a
ser irrevogavelmente comparadas àquela que seria o grande sucesso de público e crítica
na carreira da mais velha das irmãs Brontë.
Jane Eyre (1847) não apenas tornar-se-ia o
carro-chefe na breve carreira de Charlotte Brontë, mas também determinaria o suposto
fracasso das outras obras, visto que a maioria dos críticos literários sucumbe à tendência
de abordá-las sob a mesma ótica e perspectiva fornecida por
Jane Eyre, sem, no entanto,
levar em consideração suas peculiaridades. Dessa forma,
The Professor (escrita em 1846
e publicada postumamente em 1857),
Shirley (1849) e Villette (1853) não apenas tiveram
suas singularidades narrativas desconsideradas, mas também foram frequentemente
taxadas como seqüências frustradas por não manterem o mesmo foco e perspectiva em
relação à
Jane Eyre. Além do mais, essa tendência de leitura redutora agrava-se quando
percebemos também que são comuns análises comparativas entre as obras de Charlotte
Brontë baseadas em sua biografia, enfatizando-se dessa forma não suas características
literárias, mas sim as dificuldades vivenciadas pela escritora em momentos específicos de
sua vida, que encontrariam correspondências e semelhanças em suas narrativas.
Entretanto, desconsiderando-se leituras com bases biográficas, acredito existir uma
linha de progressão no pensamento de Brontë acerca do questionamento dos estereótipos
sexuais impostos a homens e mulheres no século XIX que perpassa suas quatro obras.
Isto é, acredito ser cabível uma leitura do conjunto da obra dessa escritora inglesa,
preocupando-se não em evidenciar semelhanças entre ficção e realidade, ou depreciar
suas outras obras em função do estrondoso sucesso obtido com
Jane Eyre, mas sim em
demonstrar que cada obra por si merece um estudo revelador. A meu ver, o espírito
conflitante da Inglaterra no século XIX com relação às questões de gênero e sexualidade
é filtrado e representado na literatura pelo olhar crítico de uma escritora claramente
preocupada com essas questões como Charlotte Brontë. Em cada obra são discutidas
nuances e perspectivas específicas em relação à diferença de papéis de gênero e,
sobretudo, à inferiorizante condição social imposta às mulheres.
O questionamento da manipulação tradicional e estereotipada dos papéis sexuais
presente em muitas obras literárias do período vitoriano e que parece estar intrínseca e
culturalmente associada às diferenças biológicas entre os sexos, traz à tona as
contradições e os paradoxos presentes na ideologia do feminino e também do masculino
15
vigentes na sociedade vitoriana. Essas noções preconcebidas dos papéis femininos, além
de restringir o pleno acesso social das mulheres, também pressupunham uma divisão
interna entre duas imagens simbólicas e representativas do universo feminino: a figura da
mulher angelical (
the angel in the house) em oposição à da mulher monstruosa (the
monster in the house
). Essas imagens, evocadas no poema de “The Angel in the House”,
de 1885, de Coverty Patmore, são recuperadas inicialmente por Virginia Woolf em sua
discussão sobre a necessidade de se matar tais figuras idealizadas para que a mulher
possa inserir-se socialmente (WOOLF, 1942, p. 236-238), e posteriormente por Gilbert e
Gubar (1984) em seu influente estudo sobre o imaginário do século XIX e sua influência
na literatura. Em
The Madwoman in the Attic, cujo título alude a Bertha Mason,
personagem representante da figura do monstro em
Jane Eyre, Gilbert e Gubar
aprofundam a discussão iniciada por Woolf no sentido de evidenciar o papel exercido por
essas imagens conflitantes (do anjo do lar e do monstro) na caracterização das
personagens femininas na literatura inglesa do século XIX.
Brontë, por meio de uma hábil manipulação de estratégias narrativas, explora em
suas obras a tensão quando duas personagens, aparentemente contraditórias por
representarem as duas imagens emblemáticas da distinção entre os gêneros, são colocadas
em um mesmo patamar. Contrariando a tradição de enfocar-se em estereótipos do
feminino, Brontë inova não apenas pela união dessas imagens inicialmente conflitantes
numa mesma personagem, mas, sobretudo por tornar essa união o tema central de sua
narrativa. Ao enfocar tão direta e explicitamente o embate de forças entre os ideais do
masculino e, principalmente, do feminino, Charlotte Brontë possibilita que o paralelismo
vigente no século XIX entre sexo e gênero e a crença em uma suposta essência do
feminino capaz de justificar uma postura submissa da mulher sejam não apenas
examinados, como também questionados em alguns de seus pressupostos básicos.
Brontë chama nossa atenção, de forma inovadora e controversa, para o fato de que o
masculino e o feminino e suas representações sociais são apenas dois entre muitos papéis,
muitas máscaras sociais às quais as personagens são diariamente expostas e convidadas a
incorporar. Pode-se então dizer que Brontë oferece uma reversão da tradicional postura
dicotômica em relação à diferença entre os sexos e gêneros em suas obras. Ao invés de
enfatizar tal dicotomia, Brontë tende a construir suas narrativas em torno de duas
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personagens, inicialmente opostas, que acabam apontando para novas possibilidades de
entendimento do masculino e do feminino. Contrariando a tradição de privilegiar uma das
personagens em detrimento da outra, Brontë a elas um tratamento questionador e, por
vezes, subversivo.
A meu ver, uma nova possibilidade de leitura do tratamento que Brontë dispensa à
discussão dos papéis e dos estereótipos sexuais faz-se necessária. Meu objetivo neste
trabalho é atentar para novas possibilidades de entendimento das relações inovadoras
apresentadas por Brontë na construção de suas personagens centrais. Em outras palavras,
meu interesse nesse estudo das obras de Brontë baseia-se na necessidade de uma melhor
compreensão da caracterização das personagens centrais da autora, que são dissonantes
com a ideologia predominante no século XIX, refletindo muito de teorizações
contemporâneas acerca das questões de gênero.
De fato, meus questionamentos principais seriam: estariam as obras de Brontë
preocupadas em desmistificar a ideologia do feminino sob diversos aspectos,
apresentando um contraponto entre o ideal de feminino da sociedade vitoriana e os
verdadeiros anseios e angústias das mulheres da época? Poderiam as protagonistas de
Brontë ser representativas de diversas topologias acerca da ideologia de gênero no século
XIX? Estaria Brontë denunciando em suas obras o duplo-padrão de moralidade do
período em relação ao feminino, e a impossibilidade de se representar toda a
potencialidade e multiplicidade da mulher através das figuras estereotipadas?
Para responder essas questões concentro-me na leitura das obras de Charlotte
Brontë em conjunto, atentando não apenas para as críticas explícitas acerca da condição
feminina verbalizadas pelas protagonistas, mas, sobretudo para a própria linha de
progressão utilizada por Brontë na construção de suas narrativas. Contrariando certa
tendência contemporânea na qual
Villette tende a ser lida e abordada como a seqüência
bem sucedida de
The Professor, e Shirley como a esperada continuação de Jane Eyre,
mas que acaba revertendo as expectativas dos leitores, minha leitura das obras de Brontë
busca enfatizar o caminho trilhado pela autora na discussão do paralelismo entre sexo e
gênero, apontando para uma possível ênfase nas performances de gênero em suas últimas
obras. Ao agruparem-se as obras por ordem cronológica e, sobretudo, por questões de
afinidade, pode-se acompanhar a evolução das discussões apresentadas e também a forma
17
com a qual a autora negocia avanços em suas estratégias, partindo de comentários sutis e
por vezes velados, até culminar com abertas críticas contra a opressão social com base
em diferenças de gênero. Dessa forma, as obras serão discutidas na ordem de sua
produção, a saber:
The Professor, Jane Eyre, Shirley e Villette, visto que em linhas
gerais, os quatro romances possuem grandes semelhanças entre si.
Três das quatro obras são narradas em primeira pessoa, com a exceção de
Shirley;
os quatro romances apresentam elementos de narrativas bildungsroman; as quatro obras
apresentam uma tendência de criar paralelos entre as personagens centrais, sempre
evocando a tradicional e estereotipada distinção entre as imagens do anjo do lar e da
louca do sótão; e todas as obras possuem protagonistas órfãos e desprovidos de plenos
meios de inserção social, mas dotados de um olhar crítico acerca das expectativas
impostas em termos de diferenças de gênero. A leitura das obras atentando para a crítica
acerca da ideologia de gênero do período objetiva demonstrar como Charlotte Brontë
preocupou-se em denunciar as inconsistências e incoerências do padrão de moralidade e
sexualidade vigente na época, e que sua estratégia para abordar tal delicada e polêmica
questão foi valer-se da subversão dos estereótipos na elaboração de suas personagens
centrais.
Fruto de uma pesquisa de cunho bibliográfico, essa tese encontra-se dividida em
quatro capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Charlotte Brontë, a condição da mulher
e as ideologias de gênero na Inglaterra Vitoriana” objetiva apresentar um panorama da
sociedade vitoriana em termos de ideologia de papéis sexuais e de gênero. Nesse capítulo
são discutidos a estruturação da sociedade vitoriana, seus anseios, conflitos e
expectativas, e os reflexos de toda a tensão do período sobre o paralelismo vigente entre
sexo biológico e papéis de gênero. A análise se concentra, sobretudo, na idealização da
figura feminina no período vitoriano e os movimentos contra essa ideologia patriarcal,
tópicos esses que são profundamente abordados por Brontë em todas suas obras.
O segundo capítulo, intitulado “Sexo e gênero: o unitário, o binário e o múltiplo”
discute como as diferenças entre os sexos e os gêneros eram vistas no período vitoriano.
Como a vertente teórica dessa pesquisa baseia-se, sobretudo, nos estudos de nero,
pode-se dizer que o arcabouço teórico para o desenvolvimento dessa pesquisa leva em
consideração uma revisão da literatura crítica ligada às questões de gêneros, iniciando-se
18
com as teorias essencialistas do século XIX, até chegarmos ao entendimento dessas
diferenças e suas manifestações como escolhas político-sociais. O ponto central nessa
discussão é a teoria de gênero como manifestação performática de Judith Butler, sendo
teóricos importantes nessa trajetória Sigmund Freud e Jacques Lacan, diretamente
questionados e discutidos por Butler na elaboração de sua teoria, bem como teóricas
feministas que discutem o caráter normativo dos padrões e estereótipos sexuais.
O terceiro capítulo, intitulado “Figuras dissonantes: a performance de gênero em
The Professor e Jane Eyre” concentra-se na análise das duas primeiras obras de Brontë,
apresentando suas primeiras críticas acerca do duplo padrão de moralidade da sociedade
vitoriana e seu impacto na educação e predeterminação do destino de homens e,
principalmente, de mulheres. Nesse capítulo, argumento como nenhuma personagem de
Brontë pode ser entendida como completamente representativa dos ideais de gênero do
período, havendo sempre um tom de questionamento e uma perturbação na aparente
ordem social. Em
The Professor tal senso de dissonância com o padrão vigente no
período é discutido através da inabilidade do protagonista em lidar com as personagens
femininas, fruto talvez da sua própria caracterização conflitante com o estereótipo
vitoriano de masculinidade. em
Jane Eyre a discussão se concentra na percepção da
protagonista acerca da arbitrariedade da ideologia de gênero da época e a estratégia
utilizada pela autora para negociar melhor aceitação de suas críticas e questionamentos.
O quarto capítulo, intitulado “’Não somos nem sedutoras, nem desagradáveis, nem
monstros’: ‘a anatomia da alma feminina’ em
Shirley e Villette” apresenta os avanços da
autora no sentido de o apenas criticar a ideologia de gênero vitoriana, mas também
oferecer possibilidades outras para as mulheres, além das funções quase sacralizadas de
esposa e mãe. O foco desse capítulo recai sobre a possibilidade de entendimento das
críticas apresentadas por Brontë em face da utilização de teorias de nero mais
contemporâneas que abordam o caráter representacional, performático e político das
relações de gênero. Na análise sobre
Shirley procurar-se-á mostrar como a autora avança
ao apresentar personagens assertivas que não hesitam em verbalizar suas frustrações e
anseios, questionando a definição
a priori dos papéis que supostamente deveriam
desempenhar em sociedade. em
Villette discuto a estratégia utilizada pela autora para
19
diluir suas críticas através de inúmeras referências teatrais acentuando, assim, o caráter
performático dos papéis de gênero.
Na conclusão procuro mostrar como as quatro obras analisadas refletem a tensão do
período criticando, ora velada ora explicitamente, a ideologia de gênero da época, por
vezes incompatível com a expectativa e realidade social das personagens. Procuro
ressaltar como parece existir uma linha de progressão na discussão apresentada pela
autora acerca da arbitrariedade da ideologia de gênero do período, evidenciando o quanto
as discussões apresentadas por Brontë refletem a evolução do questionamento dos
pressupostos básicos do paralelismo entre sexo e gênero.
Em suma, o objetivo central dessa tese é analisar as obras de Brontë em conjunto,
atrelando-as a uma discussão sobre como a ideologia de gênero da sociedade vitoriana
pautava-se em imagens dicotômicas incapazes de elaborar a própria complexidade do
período em termos de mudanças sociais. A escolha de aplicarem-se teorias de gênero de
cunho social e performático na análise da obras de Brontë justifica-se pela abordagem
inovadora adotada pela autora na discussão da ideologia de gênero, por tratarem-se de
obras que apresentam um novo paradigma capaz de abarcar a fragmentação, o pluralismo
e a multiplicidade de possibilidades performáticas nas questões de gênero. Nesse sentido,
acredito ser possível afirmar que Charlotte Brontë buscava desestabilizar o paradigma
tradicional sobre feminilidade e gênero, apresentando a idéia de que a fragmentação, a
descontinuidade, e diferenças nas representações do gênero são relevantes no
desmantelamento do senso ilusório de legitimidade que regula o discurso falogocêntrico
sobre a mulher na sociedade ocidental.
20
Capítulo 1
Charlotte Brontë, a condição da mulher e as
ideologias de gênero na Inglaterra Vitoriana.
21
Os Vitorianos eram um povo pobre, cego e complacente; porém estavam
divididos pela dúvida, estavam espiritualmente confusos, perdidos num
universo conturbado. [...] Ao mesmo tempo que professavam “virilidade”,
produziam padrões de feminilidade; se livraram a mulher de uma
dependência antiga, tambem a privaram de uma posição vital na sociedade.
Embora fossem sexualmente inibidos e mesmo negassem a existência do
amor físico, eles procriaram famílias imensas e ostentaram em seus versos
uma sensibilidade erótica morbidamente superdesenvolvida.
1
Buckley (citado por ALTICK, 1973, p. 308).
Não existem, de fato, duas ordens de mulheres, boas e ruins […] Existem
dois tipos de expectativas e um único tipo imperfeito de mulher preso entre
eles: apenas mulheres verdadeiras e incompletas, esperando em vão por uma
definição satisfatória de seu papel numa terra de artistas que insistem em
tratá-las como deusas ou meretrizes. Tanto o papel idealizado quanto o de
pesadelo negam a humanidade da mulher que, aturdida, alterna em
representar ora um ora o outro.
2
Leslie Fiedler (1966, p. 35).
O homem para o campo de batalha, a mulher para o lar;
O homem para a espada e a mulher para a agulha;
O homem com a cabeça e a mulher com o coração;
O homem para comandar e a mulher para obedecer;
De outra forma, confusão.
3
.
Lord Alfred Tennyson ‘s
The Princess (1998, p. 86).
1
“The Victorians were a poor, blind, complacent people; yet they were torn by doubt, spiritually
bewildered, lost in a troubled universe. […] While they professed “manliness”, they yielded to feminine
standards; if they emancipated women from old-age bondage, they also robbed her of vital part in society.
Though they were sexually inhibited and even failed to consider the existence of physical love, they begot
incredibly large families and flaunted in their verses a morbid overdeveloped erotic
sensibility”.(BUCKLEY, Jerome Hamilton.
Season of Youth: the Bildungsroman from Dickens to Golding.
Cambridge: Harvard University Press, 1974). (Tradução nossa).
2
“There are not, in fact, two orders of women, good and bad [...] There are only two sets of expectations
and a single imperfect kind of women caught between them: only actual incomplete females, looking in
vain for a satisfactory definition of their role in a land of artists who insist on treating them as goddess or
bitches. The dream role and the nightmare role alike deny the humanity of women, who, baffled, switch
from playing out one to acting out the other”. (Tradução nossa).
3
“Man for the field and woman for the hearth; Man for the sword, and for the needle she; Man with the
head, and woman with the heart; Man to command, and woman to obey; All else confusion”. (Tradução
nossa).
22
A Era Vitoriana: uma época de questionamentos e transformações
O que se conhece como sociedade vitoriana refere-se ao reinado da Rainha Vitória
(1837-1901) e que ficou associado a noções de puritanismo, repressão e tradicionalismo.
Entretanto, apesar de serem até certo ponto verdadeiras, tais noções não são
representativas da complexidade do período, tido como uma segunda Renascença Inglesa,
caracterizada por uma grande expansão econômica, política e cultural e uma estruturação
familiar e social peculiar. É também um período particularmente representativo dos
diversos questionamentos e embates sócio-políticos vivenciados na Inglaterra durante o
século XIX. Tido como uma era de profundas transformações de cunho social, o século
XIX proporcionou ao mundo mudanças e rupturas em todas as esferas da vida, alterando
desde as crenças biológicas e espirituais, até a própria organização socioeconômica.
Em linhas gerais, e objetivando-se fornecer um panorama da sociedade inglesa
durante o século XIX, pode-se dizer que a Europa diferia fundamentalmente do resto do
mundo por volta de 1800 e uma das razões era a revolução da agricultura, principalmente
na Inglaterra. Apesar da enorme diversificação da agropecuária em toda a Europa,
existiam sinais da chamada Revolução Agrícola. A lenta acumulação de riquezas e
recursos, particularmente acentuada pelo crescimento das cidades nessa época, atrelada à
necessidade de emprego da mão-de-obra intensiva e especializada, lançou as bases de um
grande avanço tecnológico na agricultura inglesa, que se tornou a melhor do mundo.
Ao mesmo tempo em que surgiam inovações na maquinaria agrícola, mais e mais
os senhores de terra resistiam a mudanças drásticas na própria estrutura do sistema
feudal. Apesar de existirem indícios de que a servidão foi virtualmente substituída pelo
trabalho assalariado na Inglaterra por volta de 1500, era comum atrelar o crescimento dos
lucros à exploração da mão-de-obra, o que resultou no aumento da miséria de muitos
indivíduos. Poder-se-ia mesmo dizer que o desenvolvimento agrícola da Europa como um
todo nessa época foi inversamente proporcional ao crescimento da miséria da população
envolvida nas atividades agropecuárias.
Mesmo assim, a agricultura era ainda a principal fonte econômica e é difícil
argumentar que os efeitos do seu desenvolvimento a médio e longo prazo não foram bons
para a Europa e, sobretudo, para a Inglaterra. Obviamente a questão agrária era central
23
por volta de 1789 devido à tensa relação entre os que cultivavam a terra e os que a
possuíam, os produtores de riqueza e os que a acumulavam. Na realidade, uma das
palavras mais comuns a partir dessa época era avanço ou melhoria, usada para indicar
avanços notáveis na economia, no comércio e em muitas outras áreas. Um aspecto central
foi a própria Revolução Industrial que não apenas gerou a produção de bens
manufaturados em grande escala mas, sobretudo, acarretou uma radical mudança no
padrão de vida da sociedade inglesa: passou-se a efetivamente trabalhar fora de casa, em
horários por vezes exaustivos, em troca de salários nem sempre compatíveis com a taxa
de crescimento do setor. Como conseqüência direta dessa nova estruturação do trabalho,
tem-se a urbanização e todos os problemas decorrentes do aumento do número de pessoas
vivendo nas cidades (ROBERTS, 2001, p. 235).
De fato, apesar dos inegáveis avanços proporcionados pela Revolução Industrial,
a Inglaterra também começava a enfrentar problemas internos relacionados a essa
expansão: cada vez mais crianças e mulheres ingressavam nas linhas de produção das
fábricas; condições de trabalho e higiene não eram das mais favoráveis; o padrão de vida
não melhorou para todos os cidadãos, etc. Era como se houvesse uma grande lacuna em
termos de desenvolvimento nos primórdios da era vitoriana: de um lado, a emergente
classe média, beneficiada pela expansão comercial experimentada pela Grã-Bretanha e do
outro lado, a classe baixa que se via à margem de toda essa promessa de progresso.
Esse é justamente o universo discutido por Engels em
The Condition of the
Working Class in England
. Baseada em observações pessoais, sua obra revela, talvez pela
primeira vez para boa parte da sociedade inglesa, as condições quase desumanas a que
muitos se viam expostos diariamente: crianças trabalhando arduamente ao lado de
adultos; grávidas em estágios avançados desempenhando trabalho braçal em minas de
carvão etc. Uma sociedade atônita e chocada se depara com a necessidade de enfrentar a
realidade descrita por Engels e em 1842 é promulgado o
Lord Ashley’s Act que proíbe o
trabalho de mulheres e crianças menores de 10 anos em minas de carvão. (ALTICK,
1973, p.44-46).
O historiador inglês Eric Hobsbawn afirma, em seu livro
A era das revoluções:
1789-1848
, que as fortes transformações sociais experimentadas pela Europa durante o
século XIX são intrinsecamente conectadas tanto à Revolução Francesa quanto à
24
Revolução Industrial. Para ele, o legado ideológico da primeira, somado a transformações
radicais na estruturação econômica e política gerada pela segunda, inevitavelmente
chamariam a atenção para as condições de vida altamente insatisfatórias experimentadas
pela grande maioria da população, que não gozava dos privilégios obtidos com o
crescente progresso da Europa, sobretudo na França e na Inglaterra:
As instituições formais derrubadas ou criadas por uma revolução
são fáceis de distinguir, mas não dão a medida de seus efeitos. O
principal resultado da Revolução na França foi o de colocar um fim
na sociedade aristocrática. Não a aristocracia no sentido da hierarquia
de status social distinguido por títulos ou outras marcas visíveis de
exclusividade e que muitas vezes se moldava no protótipo dessas
hierarquias, a nobreza de sangue. [...] Em uma palavra, a sociedade da
França pós Revolução Francesa era burguesa em sua estrutura e em
seus valores. [...] Os efeitos da Revolução Industrial sobre a estrutura
da sociedade burguesa foi superficialmente menos drástico, mas na
verdade bem mais profundo, pois criou novos
blocs burgueses que
coexistiam com a sociedade oficial, muito grandes para serem
absorvidos por ela, exceto por uma pequena assimilação no topo.
(HOBSBAWN, 2004, p. 257-259).
Tais alterações na ordem socioeconômica influenciaram a organização política, a
ciência e as ideologias do período.
4
Em termos políticos, as relações entre governantes
europeus ainda moldavam-se, sobretudo, nas lutas de famílias para estender, fortalecer e
salvaguardar suas heranças, embora houvesse sinais de uma urgente reorganização da
estrutura política na Europa.
Em termos científicos, o mundo avançou consideravelmente no século XIX através
das contribuições de Charles Darwin e seu evolucionismo, Sigmund Freud e as origens da
psicanálise, Karl Marx e sua teoria socialista e outros. De fato, quando a Rainha Vitória
ascendeu ao trono, a Inglaterra era essencialmente agrária e rural, mas ao final de seu
reinado a nação era altamente industrializada e provida por uma extensa rede ferroviária
4
O termo ideologia é inicialmente usado nesse trabalho na acepção marxista, aludindo às formas de
estruturação da sociedade que garantem a um grupo o exercício do poder com o mínimo de conflito através
da manutenção de valores, conceitos e simbolismos comuns aos elementos do grupo. Nesse sentido, pode-
se dizer que um dos pilares da ideologia de gênero no século XIX pressupunha o reforço dos padrões de
comportamento vistos como adequados aos sexos. Entretanto, ao longo do trabalho a conotação atribuída
por Althusser se torna mais evidente, visto que em sua análise sobre como o aparato ideológico do estado
determina a manutenção de um determinado
status quo o conceito de poder se revela não exclusivamente
como fenômeno político, mas também como um conjunto de crenças e suposições que norteiam a aceitação
de regras e divisões de poder.
25
que favorecia cada vez mais a expansão comercial. Enquanto a sociedade se
reconfigurava em virtude do crescimento da burguesia em meio às condições nem sempre
vantajosas para boa parte da população, a ciência avançava a olhos vistos. Tratava-se de
uma era de transformações, promessas de desenvolvimento e avanços científicos
coexistindo com regras, ideologias e padrões comportamentais que não necessariamente
avançavam a passos largos.
Segundo Hobsbawn, os paradigmas ingleses sobre como o mundo funcionava eram
de certa forma limitados para lidar de forma aprazível com as inevitáveis transformações
sociais obtidas com o avanço científico (HOBSBAWN, 2004, p. 320). Na verdade, foram
mudanças tão intensas que não era mais possível compartilhar a confiança filosófica em
relação ao progresso da humanidade, sentimento esse que havia caracterizado o
pensamento do século XVIII (GILBERT e GUBAR, 1985, p. 243). Isso equivale a dizer
que os paradigmas que serviam como sustentáculos das relações sociais naquele
momento foram não apenas profundamente abalados em suas próprias bases por causa
das revoluções de cunho científico e ideológico posteriores às duas grandes revoluções do
período, mas, sobretudo, questionados em suas premissas básicas.
As bases religiosas da sociedade vitoriana se viriam sacudidas por um intenso
senso de questionamento, dúvida e angústia uma vez que a ciência havia reduzido o
homem a um mero descendente dos primatas na linha evolutiva, e não mais a uma criação
divina, à imagem e semelhança do criador. De fato, pode-se dizer que a religião
desempenhou duas funções inicialmente incompatíveis entre si. Por um lado, ela foi
importante no sentido de tentar fornecer uma tábua de salvação para muitos indivíduos
que se viram perdidos em meio a tantos avanços científicos e sociais. Por outro lado,
ainda em virtude desses avanços científicos, cada vez mais cidadãos tendiam a se afastar
da religião, alegando que ela não servia aos seus interesses imediatos. Entretanto,
segundo Houghton, muitos se viram mesmo compelidos a buscar a igreja para “se
manterem unidos ao que lhes escapava” (HOUGHTON, 1957, p. 99).
5
Obviamente, quando se fala em igreja, refere-se tanto à Igreja Católica quanto à
Anglicana, pois ainda segundo Houghton, ambas se encontravam em franca expansão
durante as primeiras décadas do século XIX (HOUGHTON, 1957, p. 100). Porém, não se
5
“[…] to keep hold on what is slipping away from them”. (Tradução nossa).
26
pode esquecer que o século XIX também vivenciou, pelo menos nas suas primeiras
décadas, o crescimento de um senso de dever e disciplina. Tal noção era imputada por
uma fé que se via na iminente necessidade de impor à sociedade, mesmo à indivíduos que
se consideravam indiferentes a ela, um código de observância, responsabilidade,
obediência e disciplina, que acabaria marcando toda a ideologia do período.
A religião desempenhava papel fundamental na manutenção da ordem e do decoro,
visto que a Bíblia era para muitos a única cosmogonia aceitável, fonte de conhecimento
histórico e, sobretudo, da fundação da moralidade e dos princípios que regiam a
sociedade. Dessa forma, a base da sociedade vitoriana se fundamentava numa cultura
circunscrita pelos ensinamentos cristãos (ALTICK, 1973, p. 203). Embora envolta em
conflitos e corrupção nos anos pré-vitorianos, a Igreja Anglicana ainda ocupava posição
central na vida dos ingleses no século XIX. Com o passar dos anos, porém, sua posição e
influência se veriam reduzidas em virtude do crescimento de correntes interessadas em
uma revisão dos ensinamentos transmitidos pela Bíblia e também pela repercussão da
teoria evolucionista de Darwin que abalava a crença na criação do homem à imagem e
semelhança de Deus. O resultado foi uma intensa crise nas próprias bases da igreja
anglicana e, sobretudo, na crença de seus seguidores que passaram a duvidar, ou pelo
menos questionar, muitos dos dogmas que seguiam. (ALTICK, 1973, p.220-231).
De fato, boa parte da ideologia moralizante e repressora da sociedade vitoriana tem
suas origens no puritanismo. Se em muitos sentidos suas crenças conflitavam com os
anseios de reforma do período vitoriano e se opunham à idéia Anglicana de supremacia
do monarca sobre a igreja, suas bases ideológicas foram fundamentais na perpetuação da
ideologia do feminino na sociedade vitoriana, pois muitos de seus ditames sobre os
papéis a serem desempenhados por homens e mulheres provinham da Bíblia.
Assim, podemos dizer que a sociedade vitoriana foi palco de transformações
diversas. Talvez em função da duração do reinado, a era vitoriana não se apresenta de
forma simplória e unificada, mas como uma multiplicidade de anseios, paradoxos e
transformações radicais que viriam a sinalizar contradições internas em sua própria
ideologia fundadora. Foi, sobretudo, uma era na qual o indivíduo se viu impelido a
27
questionar cada vez mais o sentido das coisas, objetivando encontrar respostas que lhes
fossem verdadeiras.
6
No centro de todas essas transformações que assolavam a sociedade inglesa no
século XIX encontrava-se a família e as normas sobre os papéis a serem desempenhados
por cada um de seus integrantes. O lar cada vez mais passava a ser visto como refúgio
contra toda a agitação que dominava a sociedade, como nos lembra essa passagem de
Ruskin:
Esta é a verdadeira natureza do lar – é um lugar de Paz, o
abrigo, não apenas contra todo mal, mas contra todo o terror,
dúvida e divisão. Caso não seja isso, não é um lar; se as ansi-
edades da vida externa penetrarem nele e se a sociedade
inconsistente, desconhecida, mal-amada ou hostil do mundo
externo tiver permissão do marido ou da mulher de cruzar sua
soleira, ele deixa de ser um lar; é, então, apenas uma parte
daquele mundo exterior sob o qual você colocou um teto e
aqueceu com uma lareira. Mas desde que seja um lugar
sagrado, um templo de vestais, um templo onde o fogo é
alimentado pelas Deusas do Lar [...] desde que seja isso, e o
teto e a lareira seja apenas formas mais nobres de abrigo e luz,
- abrigo como o de uma pedra numa terra desolada e luz como
a de um Farol num mar tempestuoso; - desde que reivindique
seu nome e mereça sua denominação, de Lar. (RUSKIN, 2006,
p. 68).
7
Nessa passagem do início do século XIX tem-se delineada a configuração ideal do
lar e da família na sociedade vitoriana: independente do que passasse durante o dia no
âmbito social, o lar deveria se resguardar de todo e qualquer mal, cabendo à mulher o
papel de zelar pela manutenção da paz e do bem-estar, tal como as vestais cuidavam do
fogo sagrado para que a sociedade romana não se desintegrasse. De fato, é relevante
6
Além de Hobsbawn (2004), outros teóricos importantes para um melhor entendimento da Inglaterra
vitoriana são G.M.Young, que em
Victorian England: Portrait of an Age (1936) discute, década por década,
todas as mudanças e transformações vivenciadas durante o reinado da Rainha Vitória, apresentando
também suas implicações para o início do século XX. Richard D. Altick, em
Victorian People and Ideas
(1973) e Walter E. Houghton em The Victorian Frame of Mind, 1830-1870 (1957), discutem as
conseqüências da crescente disparidade social causada pelo avanço industrial no início do século XIX,
7
“This is the true nature of home – it is the place of Peace, the shelter, not only from all injury, but from all
terror, doubt, and division. In so far as it is not this, it is not home; so far as the anxieties of the outer life
penetrates into it, and the inconsistently-minded, unknown, unloved, or hostile society of the outer world is
allowed by either husband or wife to cross the threshold, it ceases to be home; it is then only a part of that
outer world which you have roofed over, and lighted fire in. But so far as it is a sacred place, a vestal
temple, a temple of the hearth watched over by Household Gods [...]
so far as it is
this, and roof and fire are types only of a nobler shade and light, - shade as of the rock in a weary land, and
light as of the Pharos in the stormy sea; - so far it vindicates the name, and fulfills the praise, of Home”.
(Tradução nossa).
28
observar que as deusas vestais servem como arquétipo da mulher que valoriza o ato de
cuidar do lar como sendo uma tarefa divina e significativa do ponto de vista da
manutenção do bem estar social. Embora Ruskin aluda à necessidade de ambos os
cônjuges cuidarem da manutenção do lar como um espaço sagrado, a alusão às deusas do
lar é forte o suficiente para nos remeter à ideologia dominante na sociedade vitoriana com
relação ao papel ocupado pela mulher na sociedade.
As mulheres vitorianas e o ideal de feminilidade
A posição social ocupada por homens e mulheres, assim como o status atribuído a
cada gênero sexual não se fundamenta em bases igualitárias ao longo da história da
humanidade. Os representantes do sexo masculino tradicionalmente são imbuídos de toda
uma carga de poder e superioridade em detrimento do sexo feminino, caracterizando-se
assim uma sociedade patriarcal. Muito raramente o controle e o poder recaem sobre o
sexo feminino numa sociedade de base matriarcal.
De fato, a estrutura familiar da sociedade ocidental tal como a conhecemos baseia-
se numa lógica patriarcal, o que significa que compete ao homem, que possui o poder, o
papel de provedor e administrador familiar em todos os âmbitos. Assim, o homem se
torna o responsável pela completa gestão familiar, cabendo à mulher o papel de protetora
dos elementos desse núcleo.
A sociedade vitoriana não diferia desse padrão: no espaço sagrado do lar,
encontramos a figura feminina tradicional, representante de uma das concepções do
feminino prevalecentes no período: a mulher submissa e doce, verdadeira figura angelical
que posteriormente ficaria conhecida como o anjo do lar (
the angel in the house) numa
alusão à imagem idealizada por Coventry Patmore no poema
The Angel in the House,
originalmente publicado em 1854. Essa mulher apresentava-se sempre devotada ao
marido e aos filhos, passiva, obediente, singela, casta, doce e graciosa, sempre pronta a
sacrificar-se pelo bem-estar da família.
Tal ideal de feminilidade era reforçado na época principalmente por Sarah Stickney
Ellis, autora de uma série de livros sobre educação e etiqueta feminina, principalmente os
famosos manuais de conduta para as mulheres vitorianas de classe média intitulados
The
29
Women of England (1838), The Daughters of England (1842), The Wives of England
(1843) e The Mothers of England (1843). Nesses manuais, Ellis advoca a necessidade de
melhor educar as mulheres para o sagrado exercício do matrimônio e da maternidade,
alegando que as mulheres não possuíam melhores oportunidades no mercado de trabalho
por serem inferiores ou incapacitadas, mas por caber a elas gerir o lar, devendo assim,
consequentemente, concentrarem-se no “trabalho do coração, servir em suas casas e nas
atividades de caridade” (ELLIS, 1844, p.15) .
8
A posição adotada por Ellis não era compartilhada por todos. Para muitos, a
educação voltada para a instrumentalização da mulher no lar inevitavelmente acabaria
reforçando a sua posição inferiorizante, como mostram os trechos abaixo. O primeiro,
publicado no
The Westminster Review em 1840, é uma reação direta aos manuais de
conduta feminina, especificamente um publicado por Sarah Lewis em 1839 intitulado
Woman’s Mission, que compartilhava os pressupostos básicos relativos à educação da
mulher tão ardorosamente defendidos por Ellis:
Dizer a uma garota que sua virtude lhe é dada para melho-
rar os filhos de seu marido e sua inteligência para mostrar a
ela
como fazer isso, é colocar a mesma imediatamente numa
posição inferior e evitar que alcance qualquer degrau mais
elevado de virtude ou inteligência (
Westminster Review,1840,
citado por GLEADLE, 2002, p. 65).
9
O segundo trecho foi publicado no periódico Domestic Tyranny de 1841, e trata-se
de trecho anônimo intitulado
A Philanthropist:
Tenho total consciência [...] que cada sexo tem sua esfera
peculiar de responsabilidades e atividades, que não deveria
sofrer intromissão do outro [...] mas não é necessário que essa
separação de obrigações deva causar uma separação de
interesses ou posicionar o poder num único canal, que se
tornaria assim uma fonte de tirania e injustiça, transformando
o círculo doméstico em um cenário de disputa e desordem
perpétua. (
Domestic Tyranny, 1841, citado por GLEADLE,
2002, p. 97).
10
8
“[…] heart work, service in their homes and in charity activities”. (Tradução nossa).
9
“To tell a girl that her virtue is given her to improve her husband’s children, and her intelligence to show
her
how to do it, is to place her at once in an inferior grade, to prevent her from attaining to any high degree
of virtue and intelligence”. (Tradução nossa).
10
“I am fully aware […] that each sex has its own peculiar sphere of duties and employments, which
should not be intruded upon by the other […] but it is not necessary that this separation of duties should
cause a separation of interests and throw the balance of power into one channel, which becomes thereby a
source of tyranny and injustice, rendering the domestic circle a scene of perpetual dispute and disorder”.
(Tradução nossa).
30
Percebemos pelos dois trechos que, embora se buscasse reforçar a todo custo o
papel sagrado da mulher como guardiã do lar, essa idealização da figura feminina não
mais atendia aos anseios de indivíduos que vivenciavam diariamente todas as
transformações sociais. Não apenas as mulheres eram cada vez mais requisitadas no
mercado de trabalho, como também desejavam melhorias nas condições de vida por elas
experimentadas, fazendo com que a imagem da mulher reclusa na esfera doméstica
ficasse cada vez mais artificial e distante da realidade da população feminina.
As percepções do feminino na sociedade vitoriana precisavam abarcar outras
figuras que não necessariamente endossavam o ideal do anjo no lar. A realidade para as
mulheres vitorianas não era tão tranqüila, indo de encontro, assim, à idealização
apresentada pelos manuais de conduta feminina e também por algumas obras literárias do
período que ressaltavam a imagem da mulher como o anjo no lar. Na realidade, a situação
das mulheres sinalizava um impasse na sociedade vitoriana: embora muitas encarnassem
a figura da mulher submissa e doce aludida por Patmore e que se tornaria emblemática do
feminino na sociedade vitoriana, a maioria delas estava longe do ideal do período. Na
verdade, existiam pelo menos três noções estereotipadas acerca das mulheres na
sociedade vitoriana em seus primórdios: os anjos do lar (
the angel in the house), as
mulheres redundantes (
the redundant women) e as mulheres decaídas (the fallen women),
acrescentando-se mais uma, a nova mulher (
the new woman) nas últimas décadas do
século XIX.
No primeiro grupo encontravam-se, principalmente, as mulheres oriundas das
classes mais abonadas da sociedade que se viam naturalmente propensas a seguir a
ideologia do período em função de não estarem diretamente envolvidas nos círculos
comerciais e não necessitarem prover seu próprio sustento. Sua educação girava em torno
do treinamento nas artes do bem receber, do entreter, dos cuidados com a casa e com a
família, sempre visando um bom partido para se unirem em casamentos altamente
vantajosos para ambas as famílias. Sem muito o que fazer de efetivamente concreto e
produtivo, visto que o serviço doméstico cabia às serviçais e o cuidado com as crianças
ficava a cargo de babás e governantas, a mulher das classes mais abonadas se via envolta
em atividades relacionadas ao lazer e ao prazer: música, bordado, sempre a esperar o
31
marido, que ao voltar do mundo selvagem, cruel e competitivo do mercado e das fábricas,
buscava encontrar tranqüilidade em seu lar, com uma mulher sempre bela, doce, cândida
e pronta a cuidar dele e a satisfazer todos os seus desejos.
Obviamente essa vida plácida não satisfazia os interesses de todas suas
representantes. Um bom exemplo oriundo da literatura é a célebre afirmação de Bella
Rokesmith em
Our Mutual Friend (1864) de Charles Dickens: “Eu quero ser algo de
mais valor do que uma boneca numa casa de bonecas” (citado por ALTKIN, 1973, p. 54).
11
Mas não podemos nos esquecer, porém, que sair dessa casa de bonecas não era tarefa
das mais fáceis, visto que toda a ideologia do feminino pressupunha uma inferioridade
intrínseca do ser feminino em relação ao masculino.
Em outras palavras, acreditava-se que as mulheres não possuíam condições
intelectuais e físicas para desempenharem papéis de relevância social, o que em si já é um
paradoxo, visto que muitas engrossavam os números de trabalhadores, garantindo o
sustento de suas famílias e os lucros de seus empregadores. Além disso, a própria
sociedade se via nas mãos de uma mulher, a Rainha Vitória. Sabemos que a rainha não
escondia que muitas das decisões de estado, se não todas, haviam sido tomadas em
conjunto com o Príncipe Albert, mas após sua viuvez, embora praticamente reclusa ao
âmbito familiar, a Rainha continuou governando até 1901. Além disso, estudos e
pesquisas atuais atestam que a própria Rainha apresentava uma postura dúbia: aos olhos
da sociedade representava a mãe e esposa dedicada, cândida e angelical, mas entre quatro
paredes gozava dos prazeres matrimoniais sem cerimônia e apreciava presentear o marido
com imagens eróticas e por vezes pornográficas (PERKIN, 1993, p. 46).
Mas mesmo contra as abertas críticas da Rainha Vitória, muitas mulheres ansiavam
por se libertarem da prisão do lar, ou deliberadamente optavam por permanecer solteiras,
recusando muitas propostas de matrimônio vantajosas em termos sociais e financeiros.
Ann Richelieu Lamb fornece em 1844 a descrição da perspectiva de vida das mulheres
que escolheram não se conformarem ao padrão de anjo do lar:
A mulher que não se casa é alguém, a casada, ninguém! A primeira
desfruta de seu próprio brilho; a segunda é apenas um simples reflexo
do brilho do marido, no qual tanto a lei quanto a opinião pública
pressupõe que “ela se perdeu”[...] seguramente a condição da
solteirona muitas vezes ridicularizada é melhor do que essa posição
11
: “I want to be something much worthier than the doll in the doll’s house”. (Tradução nossa).
32
equivocada, na qual existe um grande risco de se perder a própria
identidade. (citado por PERKIN, 1993, p. 158).
12
Nas classes mais baixas a situação era complexa, embora ainda desigual do ponto
de vista das diferenças entre homens e mulheres. Para aquelas cujo sustento familiar
dependia diretamente do ingresso nas fábricas ou mesmo do trabalho nos campos, a
situação não era promissora. Muitas sustentavam a própria família; outras assumiam
funções tidas como respeitáveis e dignas do sexo feminino (governantas, tutoras, e
mesmo damas de companhia, e mais para o final do século também como escritoras)
para complementar a baixa renda de suas famílias; viúvas se viam propelidas a buscar
novas uniões para garantir o seu próprio sustento e também de seus filhos e muitas
acabavam na prostituição.
Embora ocupasse posição de destaque na sociedade vitoriana, o lar idealizado,
espaço sacro-santo consagrado ao matrimônio e a família, não poderia fazer parte da
realidade de todas as mulheres na Inglaterra durante o século XIX, visto que havia um
surplus em relação aos homens: de acordo com o censo de 1851, havia 500,000 mais
mulheres do que homens (COOPER, 2001, p. 18). Essas mulheres conhecidas como
redundantes (
redundant women) traziam uma ameaça ao tecido social no sentido de que
alguns temiam que elas aumentassem o número de prostitutas nas ruas, sendo mesmo
sugerido a elas migrar para colônias inglesas a fim de garantir a manutenção do equilíbrio
e do bem estar social (COOPER, 2001, p.20).
Além disso, a própria noção do matrimônio e a perspectiva de compactuar com o
ideal de anjo do lar não agradava muitas representantes do sexo feminino, pois as
disposições legais relativas ao casamento eram injustas para as mulheres. Prova dessa
subjugação imposta às mulheres era o próprio Código Napoleônico, código civil de 1804
vigente na Inglaterra e sobre o qual se baseavam as leis relativas ao contrato matrimonial.
De acordo com a lei inglesa, todos os bens de uma mulher, de um simples adorno até
terras ou dinheiro herdado de sua família, eram transferidos imediatamente ao marido
após a assinatura do contrato nupcial, e, em caso de separação, o marido tornar-se-ia
12
“The unmarried woman is somebody; the married, nodody! The former shines in her own light; the latter
is only the faint reflection of her husband’s, in whom both law and public opinion suppose her “to be
lost”[…] surely the state of the much-ridiculed spinster is better than this very equivocal position, in which
there is a great risk of losing our own identity”. (Tradução nossa).
33
guardião legal dos filhos. Além disso, às mulheres não era reservado o direito de
administração de seus próprios bens, muito menos de assinar qualquer documento sem o
expresso consentimento de seu pai enquanto fosse solteira e, posteriormente, de seu
marido. Assim, como afirma Wojtczak
13
, era como se aos olhos da lei a mulher não
gozasse de capacidade suficiente para ser vista como cidadã, devendo sempre ser
resguardada ou validada por um representante do sexo masculino.
De fato, temos uma idéia mais clara da situação da mulher com relação ao
matrimônio observando o comentário de Sir William Blackstone:
Pelo casamento, o homem e a mulher são uma pessoa perante a
lei: isto é, o próprio ser, a existência legal da mulher é suspen-
dida durante o casamento, ou pelo menos é incorporada e con-
solidada na do marido [...] [sua propriedade] torna-se absoluta-
mente do marido que poderá deixar após sua morte inteiramen-
te para ela (BLACKSTONE, 1793, p. 441).
14
A situação da mulher no casamento permaneceu desigual por muito tempo até que
em 1870 um novo ato institucional determinou que ela pudesse reter £200 de suas posses
prévias e em 1882 um novo ato dispôs que ela poderia administrar seus próprios bens.
Uma mulher não poderia solicitar o divórcio, a menos que conseguisse provar que o
marido era cruel, violento, praticante de incesto, estupro, sodomia ou bestialidade, e
também adúltero. Se o marido solicitasse o divórcio, bastava a alegação de que a mulher
era adúltera, ficando filhos e bens sob posse e responsabilidade total do homem. Aquelas
que conseguissem separação do marido, anulação do casamento, ou simplesmente se
recusassem a casar, indubitavelmente eram mal-vistas pela sociedade da época
(COOPER, 2001, p.20).
Faz-se interessante observar, também, que parecia haver uma subdivisão interna na
própria ideologia do feminino, conforme deixa entrever William Rathbone Greg no
ensaio “Why are Women Redundant?”, inicialmente publicado no
National Review, em
1862. Para ele, as mulheres eram redundantes porque não possuíam oportunidade de
desempenhar seu papel natural em relação aos homens. As serviçais, por exemplo, não
eram redundantes uma vez que eram capazes de servir seu mestre e eram sustentadas por
13
http://members.tripod.co.uk/HastingsHistory/19/legal.htm.
14
“By marriage, the husband and the wife are one person in law: that is, the very being, or legal existence
of the woman is suspended during the marriage, or at least is incorporated and consolidated into that of the
husband […] [her property] becomes absolutely her husband’s which at his death he may leave entirely
from her”. (Tradução nossa).
34
ele (HAMMERTON, 1980, p. 57-58). Ou seja, independente da classe social o papel da
mulher era servir ao homem, seja ele marido, pai, filho, ou mesmo patrão, e todas aquelas
que não pudessem se colocar nessa posição de serviçal do sexo masculino estavam à
margem da sociedade.
Diretamente afetadas pelo
surplus encontramos também as prostitutas e concubinas,
que, apesar de todo um discurso pautado no silêncio e na indiferença da mulher vitoriana
em relação aos prazeres do sexo, eram cada vez mais numerosas. Tal fato preocupava a
sociedade vitoriana como um todo principalmente porque se receava que cada vez mais
mulheres trilhassem esse caminho em função da dificuldade crescente em obter
casamentos vantajosos.
Nesse sentido, podemos dizer que a moralidade da sociedade vitoriana sofria de um
duplo padrão. O que ficaria eternizado como clichê do período seria uma forte repressão
ao sexo e aos comportamentos tidos como desviantes. Poucas mulheres admitiriam que o
sexo lhes dava prazer enquanto a maioria limitava-se a atribuir e ele uma idéia de dever
da mulher em virtude do casamento, como aponta Lady Hillingham:
estou feliz agora que Charles aparece no meu quarto com menos
freqüência devido a idade. Como estão as coisas agora, eu me sujeito
apenas duas vezes por semana, e quando escuto seus passos pela porta
me deito na cama, fecho meus olhos, abro minhas pernas e penso na
Inglaterra” (citado por PERKIN, 1993, p. 64).
15
Mas se, por um lado, muitas pensavam no bem da sociedade quando se entregavam
ao marido entrevendo uma nova gravidez, por outro lado, havia na mesma sociedade
um interesse pela pornografia e pelo erótico, e um aumento quase descontrolado da
prostituição e das doenças venéreas. Em outras palavras, enquanto o discurso se pautava
no silêncio e na repressão, a prática revelava o oposto. Para evitar que o lar sacralizado se
visse comprometido, cada vez mais a figura idealizada do anjo do lar se viu valorizada e
reforçada na literatura vitoriana. O anjo do lar em oposição à mulher decaída, que parece
ter suas origens delimitadas nos ditames da bíblia, acaba ultrapassando os limites
religiosos para influenciar ideologicamente a sociedade inglesa no século XIX, como a
citação abaixo nos mostra:
15
“I am happy now that Charles calls on my bedchamber less frequently than of old. As it is, I now endure
but two calls a week and when I hear his step outside my door I lie down on my bed, close my eyes, open
my legs and think of England”. (Tradução nossa).
35
Assim, a mulher, o próprio ideal de mãe e esposa, fonte
de toda virtude e pureza, apareceu como a boa consciência
da socidade vitoriana. Poetas, moralistas e filósofos armaram
o papel doméstico e familiar da mulher com uma dimensão
universal e transcendental. Mas a mutação do mito de Eva no
mito de Maria, de sedutora em redentora, implicou um
processo de asexualização da mulher, que foi pouco a pouco
privada de seus atributos carnais (BASCH, 1974, p. 210).
16
Esse processo de asexualização da mulher vitoriana também recebeu papel de
destaque na literatura do período. Em muitas obras a caracterização das personagens
femininas reforçava a crença de que as mulheres não deveriam se interessar pelos
prazeres sexuais. Muitas vezes via-se, de forma implícita ou não, o reforço da crença de
que o interesse feminino pelo sexo e seus prazeres necessariamente estaria atrelado à
demência e outras manifestações de descontrole emocional.
Jane Eyre de Charlotte Brontë é tida como um bom exemplo nesse sentido. Bertha
Mason, personagem que encarna a figura da louca enclausurada no sótão da mansão de
seu marido Edward Rochester, tem sua demência justificada pelo seu marido com base
num suposto histórico de loucura familiar. Quando Rochester justifica seu desejo de
casar-se novamente com Jane e assume ter escondido a primeira esposa por tanto tempo,
ele afirma que nenhum contraste entre as duas mulheres poderia ser maior uma vez que
“Bertha Mason é louca; e veio de uma família de loucos; - idiotas e maníacos a três
gerações” (BRONTË, 1995, p. 176).
17
Entretanto, se observamos a ênfase colocada sobre o fato de a mãe de Bertha ser
louca e todas as descrições da própria Bertha na obra, sempre com os longos cabelos
negros soltos e em desalinho, poderemos ler o que estaria subentendido do texto. Em
outras palavras, a suposta loucura de Bertha estaria ligada à sua intensa sensualidade e
sexualidade, que acabaram sendo vistas como lascívia e luxúria por parte de Rochester, e
que deveriam ter sido reprimidas ou pelo menos controladas em prol da manutenção do
lar, segundo os ditames vitorianos (LOGAN, 1998; GEZARI, 1992; TORGERSON,
2005).
16
“Thus the woman, the very ideal of mother and wife, source of all virtue and purity, appeared as the good
conscience of Victorian society. Poets, moralists, and philosophers embellished the domestic and family
role of the woman with a universal and transcendental dimension. But the mutation of the Eve myth into
the Mary myth, of temptress into redeemer, implied a fundamental process of desexualization of the
woman, who was bit by bit deprived of her carnal attributes”. (Tradução nossa).
17
“Bertha Mason is mad; and she came from a mad family; - idiots and maniacs through three
generations”. (Tradução nossa).
36
Nesse sentido, as palavras de Rochester para justificar seu interesse por Jane
assumem uma conotação moralista importante. Objetivando apresentar um contraponto
que justificasse sua bigamia, Rochester permite que a imagem quase bestializada de
Bertha se sobreponha ao recato e ao silêncio de Jane. Tal sobreposição acaba por
reforçar, assim, a artificialidade da ideologia da época no sentido de mostrar que se
esperava das mulheres vitorianas uma pureza, uma castidade e um recato por vezes
incongruentes num processo de redução da figura humana a um mero papel social a ser
desempenhado. O que Rochester esperava de Jane naquela situação era justamente essa
postura acrítica, seguida, obviamente, do perdão por sua omissão, uma vez que Jane
representava o oposto do monstro encarnado por Bertha e a figura angelical deveria
sempre abdicar de suas necessidades e vontades. Entretanto, Brontë subverte as
expectativas fazendo com que Jane, apesar de perdoar Rochester, recuse compactuar com
essa farsa em nome de seus desejos e anseios de liberdade e plenitude.
A influência da ideologia do anjo do lar no imaginário do século XIX foi
recuperada inicialmente por Virginia Woolf em sua discussão sobre a necessidade de se
matar as figuras idealizadas de anjo e monstro para que a mulher possa inserir-se
socialmente de forma plena (WOOLF, 1942, p. 236-238). Posteriormente, Gilbert e
Gubar reapropriam-se da discussão em seu estudo sobre o imaginário do século XIX e
sua influência na literatura. Em
The Madwoman in the Attic, cujo título alude a Bertha
Mason, personagem representante da figura do monstro em
Jane Eyre, de Charlotte
Brontë
, Gilbert e Gubar aprofundam a discussão iniciada por Woolf no sentido de
evidenciar o papel exercido por essas imagens conflitantes (o anjo do lar em oposição ao
monstro) na caracterização das personagens femininas na literatura inglesa do século
XIX.
O questionamento da manipulação estereotipada dos papéis sexuais presente em
muitas obras literárias do período vitoriano e que parece estar intrínseca e culturalmente
associada às diferenças biológicas entre os sexos, traz à tona as contradições e os
paradoxos presentes na ideologia do feminino vigentes na sociedade vitoriana. Essas
noções preconcebidas dos papéis femininos, além de restringir a mulher ao âmbito
familiar, também comprometiam seu acesso às demais esferas sociais e se revelavam
cada vez mais incompatíveis com as demandas socioeconômicas do período. O que se
37
tem, então, como resultado dessa incompatibilidade é o crescimento de movimentos que
lutavam por uma mudança ideológica com relação ao sexo feminino, objetivando melhor
inserção social, uma distribuição mais igualitária de direitos e deveres entre homens e
mulheres e, sobretudo, um reconhecimento das capacidades intelectuais das mulheres.
Tais movimentos essenciais para o entendimento das relações sociais na Inglaterra
vitoriana ficariam conhecidos como a “Questão Feminina” (
The Woman Question).
A Questão Feminina e a subjugação da mulher
A disparidade nas condições de vida experimentada pelas mulheres e a inexistência
de garantia de seus direitos tornaram-se terreno fecundo para o crescimento do
movimento feminista que lutava por melhorias na educação para as mulheres,
reconhecimento legal de seus direitos e o acesso ao voto. É justamente no palco de
contradições e transformações vivenciadas pela sociedade vitoriana que o mundo começa
a assistir a mudanças substanciais na ideologia relativa aos gêneros sexuais e seus papéis
sociais. O século XIX apresenta, entre outras coisas, uma crescente preocupação com o
feminino e com seu papel na sociedade. Tal movimento se interessa não somente pela
educação da mulher, mas, sobretudo, pela luta pela igualdade de direitos entre os sexos
nas relações sociais, demandando, principalmente, reformas legais, melhores
oportunidades de acesso à educação, melhorias nas condições de emprego e maior
liberdade sexual. Uma das lutas mais representativas desse movimento ficou conhecida
como o Movimento Sufragista, cujo objetivo central era garantir às mulheres uma efetiva
participação social através de dois pilares: o direito ao voto e a uma educação igualitária
entre os sexos.
O Movimento Sufragista, levado a cabo, neste período, de forma mais contundente
na Europa e nos Estados Unidos, foi fundamental para os avanços feministas, a partir do
século XIX, justamente porque sinalizava talvez a primeira instância de conscientização
com relação aos direitos das mulheres. Por meio desse movimento, mulheres de várias
idades, credos e classes sociais uniram forças indo às ruas protestar contra a desigualdade
de direitos sociais, demandando uma melhoria generalizada na condição de vida das
mulheres, além de um reconhecimento de sua importância como cidadãs. Para as
38
sufragistas, a base da desigualdade social estava na educação deficitária e preconceituosa
a elas reservada, que o apenas as confinava à esfera doméstica, mas as subjugava em
relação ao sexo masculino, tido como superior. Se inicialmente as demandas das
sufragistas não eram vistas com bons olhos por grande parte da sociedade, gradualmente
as opiniões começaram a mudar. Mais e mais adeptos da causa foram conquistados,
abrindo espaço para maiores avanços, tais como a lei de 1918, que garantiu o direito ao
voto e a participação no parlamento inglês para mulheres acima de 30 anos, e a lei de
1928 que estendeu o voto na Inglaterra a todas as mulheres a partir dos 21 anos.
Tais exigências e conquistas não eram vistas com bons olhos pela Rainha Vitória
que acreditava que isso comprometeria a manutenção do caráter sagrado do lar, ferindo,
assim, a moral e o decoro esperado das representantes do chamando sexo frágil. Em uma
de suas notas podemos ter acesso a sua opinião nesse sentido: “A Rainha, está mais do
que ansiosa para recrutar qualquer um que possa falar ou escrever contra esse disparate
dos Direitos das Mulheres, com todos os seus horrores, que recai sobre o sexo pobre e
fraco, esquecendo-se assim de todo senso de feminilidade e propriedade” (citado por
ALTICK, 1973, p. 58).
18
Não apenas a Rainha Vitória se posicionava contra o movimento pelos direitos das
mulheres. Muitas cidadãs comuns se revoltaram contra o que consideravam um
desrespeito à integridade do lar e do papel quase sagrado da mulher. Umas das mais
ferrenhas opositoras desse movimento era Emily Shirreff, que em 1858 afirmou:
O que a sociedade deseja das mulheres não é trabalho,
mas refinamento, espírito elevado, conhecimento, fazer com
que seu poder seja sentido através da influência moral e das
opiniões sensatas. Ela quer civilizadoras dos homens e
educadoras dos jovens. E a sociedade sofrerá em proporção se
as mulheres forem levadas por necessidade ou tentadas por
aparentes vantagens a abandonar sua vocação natural e
ingressar nos barulhentos e movimentados mercados do
mundo (SHIRREFF 1858, p. 147).
19
18
“The Queen is most anxious to enlist everyone who can speak or write to join in checking this mad
wicked folly of Women’s Rights, with all its attendant horrors, on which her poor, feeble sex is bent,
forgetting every sense of womanly feeling and propriety”. (Tradução nossa).
19
“What society wants from women is not labor, but refinement, elevation of mind, knowledge, making its
power felt through moral influence and sound opinions. It wants civilizers of men, and educators of young.
And society will suffer in proportion as women are either driven by necessity or tempted by seeming
advantages to leave this their natural vocation, and to join the noisy and busy markets of the world”.
(Tradução nossa).
39
Mesmo assim, aos poucos o movimento feminista alcança vitórias significativas e,
paralelamente, temos o surgimento de uma nova figura, a chamada “nova mulher” (
the
new woman
) que era cada vez mais politizada, intelectualizada, demandava maior
igualdade de direitos e de papéis sociais e, por vezes, optava pelo celibato para não
abdicar de sua liberdade. Em outras palavras, se inicialmente a figura do anjo do lar
imperava no ideário do período, aos poucos as diferenças entre elas vão se suavizando e
abrindo espaço para uma nova figura, assertiva o suficiente para transitar livremente
pelas diversas esferas sociais e fazer valer sua opinião.
Paralelamente às conquistas de cunho político, jurídico e econômico, outros
avanços de ordem social foram ganhando espaço na, até então, rígida e tradicional
sociedade vitoriana. Tais avanços nem sempre se deram de forma pacífica e simples e a
situação nem sempre se mostrava favorável àquelas que ousavam questionar a
superioridade masculina tida como a base ideológica da sociedade inglesa no século XIX.
Não é difícil imaginar a barreira enfrentada por essas mulheres que iam contra tudo
aquilo que por séculos havia norteado a constituição social e familiar, isto é, toda uma
tradição alicerçada na desigualdade de papéis sexuais e sociais. Na verdade, desde 1659
existem registros de tentativas de reversão dessa relação dicotômica entre homens e
mulheres na Inglaterra, com a publicação de
The Learned Maid, or, Whether a Maid May
be a Scholar
por Anna Maria von Schurman, reconhecida por muitos estudiosos do
feminismo vitoriano como uma escritora cuja obra servia de marco de uma
conscientização e luta por igualdade de direitos.
20
Fortes críticas foram feitas durante o século XIX, e mesmo antes, ao tipo de
educação diferenciada entre homens e mulheres, e umas das ativistas mais articulada e
ferrenha contra essa divisão é Mary Wollstonecraft. Em seu
A Vindication of the Rights
of Woman
(1792), Wollstonecraft, contemporânea de Jean-Jacques Rousseau, mas
contrária a suas premissas básicas, apresenta como seu argumento central a necessidade
de uma educação igualitária para homens e mulheres, a fim de garantir a essas uma plena
inserção social, obtida através da eliminação da condição servil culturalmente imposta ao
chamado sexo frágil.
20
Uma lista detalhada de obras tidas como cruciais para o desenvolvimento e fortalecimento do feminismo
na era vitoriana pode ser encontrada no site
The Victorian Web- literature, history and culture in the age of
Victoria
, disponível no endereço eletrônico http://www.victorianweb.org/history/wmhisttl.html.
40
Para Rousseau a diferença básica entre os sexos poderia ser resumida em: os
homens devem ser fortes e ativos e as mulheres fracas e passivas. Ao primeiro compete
ter o poder, ao passo que a segunda deve oferecer pouca resistência a esse fato”
(ROUSSEAU, 1968, p. 135). De acordo com essa percepção, a diferença entre homens e
mulheres levaria a uma educação contrastante que envolveria o preparo para a satisfação
dos desejos e vontades masculinos por parte das mulheres e o exercício de funções
intelectuais e políticas pelos homens.
Para Wollstonecraft, por outro lado, a repetição de atitudes e posturas
convencionadas como adequadas ao sexo feminino com base numa suposta predisposição
biológica, inevitavelmente levaria a sociedade à crença essencialista de que o feminino se
restringiria naturalmente à maternidade e ao exercício dos papéis de mãe zelosa, esposa
amorosa e fiel. Dessa forma, somente a eliminação da subjugação das mulheres com base
em treinamento social poderia garantir-lhes um pleno exercício de sua função social. Isso
somente seria possível através de uma mudança radical no tipo de educação oferecido às
mulheres com vistas a transformar a própria ideologia do feminino
(WOLLSTONECRAFT, 1996, p. 18-25).
Para Wollstonecraft, a ideologia do feminino do século XVIII contribuía para a
manutenção de uma condição inferiorizante em relação à mulher:
Rousseau declara que a mulher nunca deveria, por um momento, se sentir
independente, sendo necessário sustentar o medo em relação ao livre
exercício de suas capacidades intelectuais
naturais e a preservação de seu
status de escrava coquete para transformá-la num objeto de desejo
masculino, doce companhia do homem, sempre que o mesmo desejar
relaxar. Ele conduz seu argumento, pretensamente extraído da natureza,
insinuando que a verdade e a boa-ventura, bases da virtude humana,
deveriam ser cultivados com certas restrições, uma vez que, com respeito ao
sexo feminino,nenhuma lição é mais valiosa do que a obediência. Entretanto,
Rousseau e a maioria dos seus seguidores, consistentemente valorizaram a
tendência de que a educação das mulheres deveria objetivar uma única coisa:
instrumentalizá-las na satisfação do prazer (WOLLSTONECRAFT, 1996,
p. 25).
21
21
“Rousseau declares that a woman should never, for a moment, feel herself independent, that she should
be governed by fear to exercise her
natural cunning, and made a coquettish slave in order to render her a
more alluring object of desire, a
sweeter companion to man, whenever he chooses to relax himself. He
carries the arguments, which he pretends to draw from the indications of nature, still further, and insinuates
that truth and fortitude, the corner stones of all human virtue, should be cultivated with certain restrictions,
because, with respect to the female character, obedience is the grand lesson which ought to be impressed
with unrelenting rigor. But Rousseau, and most of the male writers who have followed his steps, have
warmly inculcated that the whole tendency of female education ought to be directed to one point: -
to
render them pleasing”.
(Tradução nossa).
41
Em relação à crítica de Wollstonecraft acerca da tradição educacional desigual
apregoada por Rousseau, conforme afirma James Diedrick, tanto Lady Mary Wortley
Montagu quanto Catherine Macaulay já haviam apontado falhas na argumentação de
Rousseau com relação à desigualdade entre homens e mulheres como sendo de cunho
biológico e essencialista e reforçada
a posteriori pela educação recebida (DIEDRICK,
1993, p. 26). Entretanto, coube a Wollstonecraft ir além da simples crítica, demandando
uma completa reforma nos padrões ideológicos e educacionais concernentes as
desigualdades entre os sexos. Para Diedrick, tal reforma na visão de Wollstonecraft dar-
se-ia baseada nos padrões da Revolução Francesa, condenando-se o estado de ignorância
e subserviência ao qual as mulheres se encontravam subjugadas (DIEDRICK, 1993, p.
26). Ou, nas próprias palavras da Wollstonecraft:
As mulheres são ensinadas, desde a infância, segundo o exemplo de
suas próprias mães, que um pouco conhecimento sobre a fraqueza
humana, associado a pouca inteligência, suavidade no temperamento,
extrema obediência e falta de interesse nos negócios, garantirão a
elas a proteção de um homem, e no caso de serem também belas, nada
mais lhes faltará por pelo menos os próximos vinte anos de suas
vidas (WOLLSTONECRAFT, 1996, p. 18).
22
Contudo, como a própria Wollstonecraft deixava entrever em sua argumentação,
esse ideal de feminilidade ensinado desde tenra idade não necessariamente atendia aos
interesses de todas as mulheres, nem mesmo era viável em termos práticos, uma vez que
a sociedade passava por mudanças drásticas em sua própria estrutura. Com o advento da
industrialização, cada vez mais o homem ausenta-se do lar por razões profissionais, assim
como a própria mulher era demandada nas linhas de produção, o que comprometia a
manutenção do ideal do homem provedor e protetor de uma mulher cujo ideal se
resumiria a ser bela e doce. Estereótipos sexuais tão rigidamente definidos não mais
seriam economicamente interessantes, muito menos práticos do ponto de vista do
crescimento e desenvolvimento imposto à sociedade inglesa.
Assim, o que seria daquela mulher que, mesmo nos seus vinte e poucos anos, e
embora bela, não houvesse encontrado um homem para casar e servir como provedor?
Seria fácil para ela manter-se sozinha em sociedade? Seria ela bem vista por não
22
” Women are told from their infancy, and taught by the example of their mothers, that a little knowledge
of human weakness, justly termed cunning, softness of temper, outward obedience, and a scrupulous
attention to a puerile kind of property, will obtain them the protection of a man; and should they be
beautiful, every thing else is need less, for, at least, twenty years of their lives”. (Tradução nossa).
42
enquadrar-se ao ideal de feminilidade que previa, entre outras coisas, um casamento, um
lar e filhos? Provavelmente não. A essas mulheres, pelo menos em linhas gerais, restaria
apenas a prostituição, o trabalho como governanta ou escritora, ou a reclusão. Conforme
expressam Sandra Gilbert e Susan Gubar:
O que seria daquelas mulheres que se recusaram a ser passivas, ou
que acabaram levadas a comportamentos não tão “femininos”?
Segundo a ideologia do feminino prevalecente no século XIX, essas
pertenceriam a duas categorias: membros da classe operária
subservientes e vãs damas da alta sociedade. Sobre as primeiras,
pouco poderia ser dito: possivelmente não chegariam jamais a serem
damas, acentuando-se a distinção entre mulher e dama; na pior das
hipóteses tentaria imitar as virtudes de uma dama. Se a mesma não
fosse angelical ou bela, poderia mesmo assim imitar tais traços [...]
seguindo as recomendações de Rousseau para as damas. Se fosse
solteira, entretanto, a situação seria ainda mais complicada, pois
independente do local de trabalho sua reputação moral estaria em jogo
(GILBERT e GUBAR, 1985, p. 290).
23
Vê-se, assim, que a ideologia não previa abertura e possibilidades de crescimento
para as mulheres, reduzindo-as, independente de características únicas e individuais, a um
único ser, o anjo do lar. Isso equivale a dizer, mais uma vez, que a mulher na sociedade
vitoriana resumia-se a um papel a ser desempenhado a qualquer custo, e que se alguma
representante do sexo feminino falhasse nessa tarefa, restaria a ela o anominato social.
24
Um teórico profundamente interessado nessa questão foi John Stuart Mill que em
seu
The Subjection of Women (1869) ajudou a formatar e fortalecer a Questão Feminina
na Inglaterra vitoriana. Segundo ele, a subjugação feminina era basicamente de ordem
política e psicológica, sendo necessário o estabelecimento de uma verdadeira revolução
social para que as mulheres pudessem galgar posições mais favoráveis na sociedade. De
23
“What of those women who refused to be passive or, just as problematic, were forced by circumstance
unto “unwomanly” activity? For nineteenth-century ideologies of femininity, these fell into two categories:
subordinate working-class women and insubordinate middle-or-upper-class ladies. About the first category,
most ideologies had comparatively little to say: although the working class could never be a lady- and
indeed the verbal distinction between “woman” and “lady” was a crucial one- at her best she could reflect
the lady’s virtues. If she was neither angelically delicate nor gracefully regal, she could still mimic the
characteristics of such figures […] as Rousseau had advised the more educated women to do. Were she
single, however, her situation was far more perilous, for whether she worked on a farm on in a factory,
moralists feared that she was constantly in danger of becoming a “fallen woman,” a prostitute”. (Tradução
nossa).
24
Apesar de ser uma literatura desconhecida por muitos, existem registros de inúmeras mulheres
escrevendo contra a subjugação feminina e em prol de melhores condições para as mulheres desde bem
antes da chamada Questão Feminina no século XIX. Kathryn Gleadle oferece uma boa antologia nesse
sentido em
Radical Writing on Women, 1800-1860 (2002), fornecendo trechos e comentários de inúmeras
vozes, de diversas áreas de atuação, que acabaram caindo no anonimato.
43
fato, Mill acreditava ser necessário que as mulheres tivessem oportunidades efetivamente
iguais às dos homens em termos de emprego e educação se elas realmente quisessem
gozar dos prazeres e da liberdade experimentados pelos homens:
Não basta dizer que a natureza dos sexos os adapta às funções e
posições assumidas em sociedade e as qualifica como apropriadas aos
mesmos. [...] Se os homens fizessem parte de uma sociedade sem
mulheres, ou de mulheres sem homens, ou se existisse uma sociedade
na qual as mulheres não fossem subjugadas aos homens, algo de
positivo poderia ser conhecido sobre as diferenças mentais e morais
supostamente inerentes à natureza de cada um. O que hoje se chama
de natureza feminina é algo eminentemente artificial – resultado de
uma forçada repressão em algumas direções e estimulação não
natural em outros. (MILL, 1997, p. 20-21).
25
Ou seja, toda a ideologia alicerçada na sociedade européia, principalmente na
inglesa, baseava-se na ilusória inferioridade feminina em relação ao homem no âmbito
social, como se fosse possível entender diferenças anatômicas e biológicas como
determinantes de diferenças intelectuais, morais, políticas, culturais e sociais num escopo
bem amplo.
O casamento não se dava por razões iguais entre homens e mulheres. Tratava-se
muito mais de um contrato econômico, do que uma união baseada em laços emocionais
de amor e afinidade. Tais contratos eram estabelecidos e acordados entre os homens
envolvidos, o pai da noiva e o futuro marido, tendo com base a obtenção ou manutenção
de bens materiais e status social. Muitas vezes, como bem retratado na literatura do
período, principalmente nas obras de Brontë, havia um embate entre a carência emocional
vivenciada pela maioria das mulheres em idade casadoira e os pactos efetivamente
estabelecidos por suas famílias: ao passo que as jovens sonhavam com príncipes
encantados perdidamente apaixonados por elas, capazes de proporcionar o final feliz dos
contos de fadas, na maioria das vezes, elas se casavam com aqueles cujas posses
econômicas fossem mais interessantes para a família da noiva.
25
“Neither does it prevail anything to say that the nature of the two sexes adapts them to their present
functions and position, and renders these appropriate to them. […] If men had ever been found in society
without women, or women without men, or if there had been a society of men and women in which the
women were not under the control of the men, something might have been positively known about the
mental and moral differences which may be inherent in the nature of each. What is now called the nature of
women is an eminently artificial thing – the result of forced repression in some directions, unnatural
stimulation in others”. (Tradução nossa).
44
Lévi-Strauss sinalizava para esse aspecto economicista do casamento em The
Elementary Structure of Kinship
no qual afirma que a cultura passa a existir no momento
em que os homens estabelecem pactos de transferência de mulheres numa relação de
barganha pelo poder, sendo essa negociação de ordem estritamente econômica. Rubin
apropria-se dos argumentos básicos de Lévi-Strauss para apontar como causa central da
subjugação feminina em sociedade a crença de que a mulher seria um objeto cambiável e
passível de troca e lucro (RUBIN, 1975, p. 171).
Para Rubin, as leis e convenções sociais reguladoras da noção de sexualidade criam
um sistema de performances na ordem do gênero e dos estereótipos sexuais que acaba por
balizar as relações de exercício de poder. Em linhas gerais, poder-se-ia dizer que esse
sistema equivaleria a um código cultural desenvolvido para regular e moldar os
indivíduos de acordo com os interesses da maioria. Esse sistema funcionaria, então, como
um catalisador de relações antagônicas entre os sexos que acabaria por resultar em
demonstrações de abuso de poder de um elemento sobre o outro (RUBIN, 1975, p. 158-
159). Ainda segundo Rubin, o mecanismo pelo qual as mulheres acabam confinadas ao
âmbito familiar na sociedade patriarcal é intrinsecamente correlacionado ao valor
econômico atrelado aos papéis sexuais nesse sistema de performances (RUBIN, 1975, p.
159). Seguindo o mesmo viés, Gayle Rubin discute como em uma sociedade patriarcal e
tradicionalista nossa percepção de uma sexualidade tida como normal e aceitável passa
pelo ideal de uma relação heterossexual monogâmica, marital e com vistas à reprodução
da espécie. Qualquer desvio desse ideal tende a ser visto como ruim, impuro, anormal,
não natural (RUBIN, 1998, p. 13).
De forma análoga, e baseando-se no seu papel fundamental na sociedade vitoriana,
torna-se mister discutir a questão da maternidade e todo caráter divino tradicionalmente
atribuído a ela. A crença que perdurava na era vitoriana, e ainda hoje, dizia que a
maternidade era o atributo divino da mulher, cuja própria natureza biológica a preparava
e a predispunha a gerar, nutrir e abdicar sua própria existência em função de outro ser.
Entretanto, o que poucos sabem é que, segundo Aminatta Forna, antes de 1762 a
maternidade se baseava em moldes bem diferentes. Em
Mãe de todos os mitos (1999),
Forna dedica-se a uma reflexão sobre a instituição da maternidade, analisando os seus
45
mitos fundadores e como essa imagem se manteve praticamente intocável ao longo dos
séculos.
Segundo Forna, Rousseau, em seu livro
Emílio ou da educação, planta as bases do
ideal de maternidade: se antes as mães pareciam indiferentes aos filhos, dedicando-lhes
pouca ou nenhuma atenção, com Rousseau surge a idéia difundida de amor maternal que
pregava o preparo para todos os sacrifícios em nome desse bem maior que é gerar um
filho (FORNA, 1999, p. 35). Através do relato fictício da educação de um menino, tem-
se a noção de que as crianças são naturalmente boas e que a função da mulher é atender
aos anseios do outro.
Escritores, artistas, clérigos, indivíduos de todas as classes e categorias da sociedade
vitoriana passaram a elogiar e endeusar a mulher em suas funções maternais, colocando-
as em um pedestal de onde dificilmente conseguiriam sair. De certa forma, a base
ideológica para a supervalorização da imagem metafórica e angelical associada às
mulheres, deriva em específico do culto à Virgem Maria na tradição judáica-cristã. Maria
era tida como a mulher e mãe perfeita, sempre pronta a abrir mão de seus desejos, anseios
e necessidades, inclusive os sexuais, em prol do bem-estar dos outros, sobretudo dos
filhos. Segundo Gilbert e Gubar em
The Madwoman in the Attic, a Virgem Maria
encarnava perfeitamente o ideal de feminilidade a ser seguido por todas as mulheres
devido a sua bondade, subserviência, aceitação de seu destino e papel como mãe do filho
de Deus (GILBERT e GUBAR, 1984, p. 20). Praticamente todas as sociedades
patriarcais, pelo menos as ocidentais, reforçaram essa imagem idealizada como o
emblema da feminilidade
par excellence.
Entretanto, conforme afirma Guy Bechtel em seu livro
Las cuatro mujeres de Dios:
la puta, la bruja, la santa y la tonta, tal correlação entre Maria e o ideal de feminino por
excelência surge por volta do século I da nossa era, com a necessidade crescente de
redimir as mulheres do pecado original de Eva para garantir o crescimento demográfico
que traria mais e mais dividendos para a igreja (BECHTEL, 2001, p. 15).
A influência do culto da Virgem Maria na construção da ideologia do feminino na
sociedade vitoriana não é totalmente conflitante com os ideais do Protestantismo, religião
predominante na Inglaterra, principalmente porque a Igreja Anglicana compartilhava a
maior parte dos dogmas relativos à Maria, com exceção do da Assunção. A principal
46
diferença entre Catolicismo e Protestantismo no que tange o culto à Maria recairia sobre
o papel dogmático atribuído à sua virgindade.
26
A imagem virginal de Maria se opunha, assim, às duas outras imagens da tradição
judáica-cristã, principalmente em seus primórdios, que são Eva e Lilith. Lilith, restrita ao
arcabouço judáico, foi feita à imagem e semelhança de Adão, e não a partir de sua
costela, representando, assim, a antítese do ideal de subserviência e submissão encarnado
por Eva. Incapaz de portar-se como inferior a Adão, Lilith escolhe seu próprio caminho e
recebe como punição a maldição de ser eternamente vista como a encarnação feminina do
demônio, aprisionada nas profundezas do mar, confinada de forma a não expor a
humanidade aos mesmos defeitos que geraram sua queda (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 1994, p. 608). Sua maldição representa, então, o preço que as mulheres
deverão pagar se ousar se posicionar em termos de igualdade com o sexo masculino
(GILBERT e GUBAR, 1984, p. 35).
Eva, por outro lado, mitologicamente criada a partir da costela de Adão, é tida como
a primeira mulher, a primeira esposa e mãe da humanidade. Entretanto, Eva também
recebeu a maldição de ser responsável pelo pecado original quando desobedeceu as leis
de Deus e ofereceu a Adão o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 359). Em suas representações, Eva não
aparenta o mesmo traço de assertividade de Lilith e, por vezes, acentua-se sua suposta
fraqueza de caráter por sucumbir à tentação e trair a confiança de Deus e de Adão. Mas
mesmo assim, pode-se afirmar que tanto Lilith quanto Eva representam, simbolicamente,
a desobediência à lei encarnada na figura masculina. Então, mais uma vez podemos
afirmar que todo esse simbolismo cristão da queda de Eva, e da manutenção do aspecto
virginal e puro de Maria contribuíram para acentuar e reforçar os ideais puritanos da
Inglaterra durante o reinado da Rainha Vitória.
Entretanto, a era vitoriana não pode e não deve ser entendida como um bloco
monolítico com clichês e estereótipos cristalizados. A concepção tradicional de gênero na
sociedade vitoriana não necessariamente conseguia abarcar toda a complexidade das
relações humanas e, por isso, tantas vozes foram silenciadas por muito tempo e a pouco
26
Elliott-Binns (1936), Schaberg (1995), e Pelikan (1998) apresentam uma aprofundada discussão sobre o
assunto, enfatizando o papel do culto à Maria na idealização do feminino desde o fim do século XVIII.
47
redescobertas. Porém, podemos afirmar que tais contradições não passaram totalmente
desapercebidas e foram representadas na literatura do período por escritores como
Charlotte Brontë, preocupada em denunciar em suas obras a falta de opções para as
mulheres que não compactuassem com o ideal vitoriano de feminilidade. Pode-se mesmo
dizer que o embate entre as duas imagens estereotipadas do feminino no século XIX o
anjo do lar e a louca do sótão, ou mesmo a imagem de Maria em oposição à de Lilith e de
Eva permeia boa parte da produção literária do período, sendo essas imagens
entendidas como lados opostos de uma mesma moeda, isto é, o ideal de feminilidade.
Charlotte Brontë e o feminino: rumo a uma poética da dissonância
Charlotte Brontë (1816-1855) é, certamente, uma das figuras mais importantes que
trata do questionamento dos papéis de gênero na sociedade vitoriana, além de ser uma
das autoras que começava a fazer da literatura uma forma de ganhar a vida durante o
século XIX. Apesar de ter morrido jovem e ter deixado uma obra relativamente modesta
(quatro romances publicados e alguns poemas), em seus romances evidencia-se uma forte
preocupação com a questão feminina. A escrita para Brontë revelar-se-ia mais do que
simples alternativa a uma vida como governanta, mas, sobretudo um veículo para
expressar suas opiniões e críticas, pois como ela mesma expressou em uma carta a
W.S.Willians, ela sempre desejou “dizer algo sobre a questão da condição feminina,
embora achasse a qualidade das falas sobre o assunto repugnantes” (BRONTË, 1848,
citado por SMITH, 1995, vol.2, p. 114).
27
Em suas obras, personagens femininas fortes são extremamente comuns e não
necessariamente construídas em total consonância com a ideologia do período. Exemplos
podem ser encontrados nas figuras de Jane Eyre e Bertha Mason no renomado
Jane Eyre,
ou Shirley Keeldar e Catherine Helstone em
Shirley, e obviamente Lucy Snowe em
Villette. Não podemos nos esquecer também da enigmática personagem masculina
William Crimsworth, protagonista da obra postumamente publicada,
The Professor, que
por vezes foi criticado por apresentar traços afeminados em sua constituição.
27
“[…] 'to say something about the condition of women question, though I found the amount of cant on
the subject repugnant”. (Tradução nossa).
48
Na verdade, nenhuma personagem feminina de Brontë pode ser entendida como
completamente representativa dos ideais de feminilidade do período. sempre um tom
de questionamento, uma perturbação na aparente ordem social, uma busca por aquilo que
tradicionalmente não estaria atrelado ao feminino, sendo comuns nas obras de Brontë
personagens femininas destituídas dos atributos socialmente aceitos. Nesse sentido,
acredito se tratarem de personagens dissonantes com o ideal de gênero prevalecente no
período, isto é, personagens que tradicionalmente seriam silenciadas em seus anseios e
angústias em prol do bem estar coletivo, mas que ocupam posição de destaque nos
romances de Brontë justamente por criticarem, explicitamente ou não, as imposições e
restrições sociais vivenciadas pelas mulheres.
Muitos teóricos buscam justificar a preocupação de Brontë com o feminino e
mesmo sua notável habilidade para abordá-lo com base em sua vida pessoal. Descrita
como portadora de beleza medíocre, Brontë foi solteira e governanta boa parte de sua
vida, possuía personalidade forte e decidida e, por vezes, teria mencionado a sua não
aceitação de um contrato nupcial, a menos que esse se baseasse em afinidade intelectual e
sensorial. Brontë teve por vezes sua própria capacidade intelectual e criativa diminuída
com base em sua trajetória pessoal, sendo vista como “a solteirona sexualmente
reprimida, neurótico-depressiva, mentalmente abalada e agitadora política” (HOEVELER
e JADWIN, 1997, p. 3).
28
Sua biógrafa mais reconhecida e respeitada, Elizabeth
Cleghorn Gaskell, apresenta uma visão radicalmente diferente de Brontë ao afirmar que
ela era “absolutamente convencional, sofredora, correta, moralista, uma heroína
vitoriana” (GASKELL, 1975, p. 334).
29
Em linhas gerais, pode-se dizer que as obras de Brontë tendem a ser
irrevogavelmente comparadas àquela que seria o grande sucesso de público e crítica na
carreira da mais velha das irmãs Brontës.
Jane Eyre não apenas tornar-se-ia o carro-chefe
na breve carreira de Charlotte Brontë, mas também determinaria o suposto fracasso das
outras obras, visto que a maioria dos críticos literários sucumbe à tendência de abordá-las
sob a mesma ótica e perspectiva fornecida por
Jane Eyre, sem, no entanto levar em
28
“[…] the crazed, sexually repressed spinster, the neurotic depressive, the enraged political agitator”.
(Tradução nossa).
29
“[...]absolutely conventional, she was a long-suffering, dutiful, moral, spiritual Victorian heroine”.
(Tradução nossa).
49
consideração suas peculiaridades (LEWES, 1848; WILSON, 1974; KUCICK, 1985;
GEZARI, 1992; STEWART, 1996).
Acredito existir uma linha de progressão no pensamento de Brontë acerca do
questionamento dos estereótipos sexuais impostos tanto a homens quanto mulheres no
século XIX que perpassa suas quatro obras. Nesse sentido, acredito ser cabível uma
leitura do conjunto da obra dessa escritora inglesa, preocupando-se não em evidenciar
semelhanças entre ficção e realidade, ou depreciar suas outras obras em função do
estrondoso sucesso obtido com
Jane Eyre. Essa leitura das obras de Brontë buscaria
demonstrar que cada obra por si merece um estudo das estratégias por ela utilizadas para
denunciar a subjugação feminina, a artificialidade do ideal de feminilidade e a luta das
próprias mulheres para se verem livres das amarras impostas pela figura do anjo do lar,
ou de seu oposto, o monstro. Em outras palavras, essa leitura das obras de Brontë anseia
evidenciar como o espírito conflitante da Inglaterra no século XIX, com relação às
questões de gênero e sexualidade, é filtrado e representado na literatura pelo olhar crítico
de uma escritora claramente preocupada com essas questões como Charlotte Brontë.
A meu ver, Brontë, por meio de uma hábil manipulação de estratégias narrativas,
explora em suas obras a tensão existente na necessidade de se compactuar com os ideais
do período e dar vazão a anseios pessoais por vezes conflitantes. Um bom exemplo dessa
tensão se dá em
Shirley, quando duas personagens, aparentemente contraditórias por
aludirem às duas imagens emblemáticas da distinção entre os gêneros, são colocadas em
um mesmo patamar. Contrariando a tradição de reforçarem-se os estereótipos do
feminino e a dicotomia entre o anjo e o monstro, Brontë inova não apenas pela união
dessas imagens inicialmente conflitantes numa mesma personagem, mas, sobretudo, por
tornar essa união o tema central de sua narrativa. Ao enfocar tão direta e explicitamente o
embate de forças entre os ideais do masculino e do feminino, Charlotte Brontë possibilita
que o paralelismo vigente no século XIX entre sexo e gênero, e a crença em uma suposta
essência do feminino capaz de justificar uma postura submissa da mulher sejam não
apenas examinados, como também questionados em alguns de seus pressupostos básicos.
50
Pode-se dizer que The Professor é um bildugsroman
30
realista, mas numa
perspectiva masculina, que apresenta a trajetória de William Crimsworth. Iniciando um
padrão que parece se perpetuar nas obras subseqüentes, a autora concentra-se na vida de
um órfão, desprovido de todos os meios de plena inserção social e com caracterização em
termos de gênero e papel sexuais conflitante com o padrão da sociedade vitoriana. Como
apontam Hoeveler e Jadwin, a narrativa parece dividir-se em duas etapas distintas: na
primeira, a apresentação de um protagonista viril, ativo e intenso que, por não conformar-
se com sua situação socialmente inferiorizante, busca reverter esse quadro mudando para
outra cidade em busca de melhores oportunidades. A segunda parte da narrativa inicia-se
justamente após essa mudança, enfatizando o lado mais sensível e feminino da
personagem, num processo de amadurecimento desses traços não tradicionalmente
associados ao gênero masculino na sociedade vitoriana (HOEVELER e JADWIN, 1997,
p. 39).
Em
The Professor Brontë preocupa-se em evidenciar o papel que a figura idealizada
do anjo no lar ocupava no imaginário masculino da sociedade vitoriana e também como o
próprio homem se via na iminência de emular padrões de masculinidade de acordo com a
ideologia do período. Não existe muito em termos de ação na narrativa e na realidade
muitos críticos chegam mesmo a apontar esse como um dos fatores preponderantes para o
fracasso do romance (BURKHART, 1973; WILSON, 1974; EAGLETON, 1975;
PLASA, 2004).
De fato, é como se o protagonista fosse um
voyeur sempre buscando ter acesso ao
pensamento daqueles que o cercam, e pronto a oferecer comentários mordazes sobre o
comportamento dos mesmos. Apesar de ser desprovido de recursos materiais que o
colocassem num patamar superior, William orgulha-se de sua boa formação intelectual
(freqüentou Eton com ajuda de tios maternos) e de ocupar o posto de professor em dois
30
Termo alemão que designa romance de desenvolvimento pessoal e que tem como característica principal
o crescimento moral, psicológico e social do protagonista. Tradicionalmente os romances de
Bildungsroman simulam a autobiografia de um orfão que busca encontrar sua identidade e nesse processo
de auto-conhecimento a educação ocupa papel de destaque levando o protagonista a buscar melhores
oportunidades de trabalho em destinos promissores como Londres. Segundo Buckley, o processo de auto-
conhecimento do protagonista de um
Bildungsroman envolve pelo menos duas experiências amorosas,
sendo uma delas devastadora e a outra exultante, levando o protagonista a reconciliar-se com seu passado
antes de experimentar a plenitude (BUCKLEY, 1974, p. 16-17).
51
pensionatos na Bélgica, depois de frustrada tentativa de ganhar a vida trabalhando para o
irmão.
Quando contratado para trabalhar no pensionato de garotas, seu desejo inicial é ter
acesso ao universo feminino que até então ele conhecia apenas indiretamente, sempre
observando-as, secretamente, por uma fresta na janela de seu quarto: “irei agora
finalmente ver o jardim misterioso: observarei tanto os anjos quanto seu Éden”
(BRONTË, 1995, p. 1091).
31
Entretanto, nenhuma descrição romanceada das garotas do
pensionato, exaltando sua beleza num estilo semelhante ao de Patmore, é oferecida ao
leitor. O que nos aguarda é o choque experimentado por William ao perceber que as
garotas não se assemelhavam ao ideal casto, puro e quase assexuado do anjo do lar,
interessando-se apenas em “atrair, e se possível monopolizar meu olhar” (BRONTË,
1995, p. 1102).
32
Dessa forma, o que temos é um sinal de que a narrativa de Brontë inovaria ao
sinalizar que o anjo do lar seria não apenas uma figura idealizada, mas, principalmente,
distante da realidade experimentada pela maioria das mulheres. Além disso, Brontë faz
com que seu protagonista se envolva sentimentalmente com duas mulheres opostas entre
si, mas igualmente conflitantes com o ideal de feminilidade: a sedutora e independente
Zoraide Reuter, diretora do pensionato, e a pobre órfã Frances Henri, sua aluna. A
narrativa se desenvolve de forma a cada vez mais contrastar as duas mulheres com o ideal
de feminilidade nutrido pelo protagonista, fazendo com que William chegue à conclusão
de que não seria feliz ao lado da figura idealizada de um anjo.
Jane Eyre, por sua vez, enfoca, em linhas gerais, a saga de Jane Eyre, desde sua
infância junto a uma tia e primos que não a viam como igual, até seu casamento com
Rochester, seu antigo patrão. Pode-se dizer que a narrativa também se divide em duas
partes, sendo que a primeira enfoca as dificuldades de aceitação da condição de mulher
na sociedade vitoriana por parte da protagonista, enquanto a segunda parte enfatiza a
negociação de suas dificuldades e superação de obstáculos. Outro aspecto importante da
narrativa é a apresentação de personagens emblemáticas da ideologia do feminino na
sociedade vitoriana: Bertha Mason, primeira esposa de Rochester, caracterizada como a
31
“I shall now at last see the mysterious garden: I shall gaze both on the angels and their Eden”. (Tradução
nossa).
32
“[…] to attract, and, if possible, monopolise my notice”. (Tradução nossa).
52
louca encarcerada - figura equivalente ao monstro do lar, e Jane Eyre, figura que se opõe
à primeira e apresenta uma junção de elementos representativos do anjo do lar e também
das mulheres redundantes.
Segundo Adrienne Rich, o elemento central do romance é a apresentação de
alternativas aos padrões sociais e culturais internalizados no inconsciente feminino
(RICH, 1979, p. 91). Na realidade, acredito que o foco em
Jane Eyre recai não sobre a
idealização da mulher através do estereótipo do anjo do lar, mas sim sobre a situação das
mulheres redundantes que precisavam encontrar uma forma de inserção social em meio a
tantas angústias, anseios e desigualdades. Dessa forma, nada melhor do que uma
protagonista com poucas possibilidades de casamento: órfã, pobre, de compleição
simples e que precisa ganhar a vida como governanta. Entretanto, mais uma vez Brontë
rompe com o padrão da época ao dotar essa protagonista de uma aguçada percepção do
mundo ao seu redor e de um senso crítico em relação à condição inferior da mulher na
sociedade vitoriana:
Espera-se que as mulheres sejam geralmente calmas: mas
as mulheres sentem como os homens; elas precisam exercitar
suas faculdades e de um treino para sua força tanto quanto
seus irmãos; elas sofrem de uma repressão tão rígida, uma
estagnação tão absoluta, precisamente como os homens
sofreriam; e é um raciocínio pobre de seus companheiros
mais privilegiados dizer que elas devam se limitar a fazer
pudins e tecer meias, a tocar piano e bordar bolsas. Não é
sensato condená-las ou rir delas, se procuram mais ou
aprendem mais do que o costume pronunciou como necessário
para elas (BRONTË, 1995, p. 65).
33
Além de tecer críticas por meio da percepção de Jane, Brontë mais uma vez
subverte o padrão por desenvolver sua narrativa de forma a cada vez mais revelar a
inconsistência da caracterização idealizada da figura angelical, dotando Jane de um
magnetismo sobre as figuras masculinas centrais (Rochester e St. John Rivers) que as
outras personagens femininas não conseguem ter, mesmo que sejam extremamente belas
e atraentes. A resposta, segundo a própria Jane, estaria no fato de que a mulher angelical
33
“Women are supposed to be very calm generally: but women feel just as men feel; they need exercise for
their faculties, and a field for their efforts as much as their brothers do; they suffer from too rigid a
restraint, too absolute a stagnation, precisely as men would suffer; and it is narrow-minded in their more
privileged fellow-creatures to say that they ought to confine themselves to making puddings and knitting
stockings, to playing on the piano and embroidering bags. It is thoughtless to condemn them, or laugh at
them, if they seek to do more or learn more than custom has pronounced necessary for their sex”.
(Tradução nossa).
53
tende a ser apenas bela, mas desprovida de algo a mais, provavelmente em função de não
ter sido preparada para ser mais do que um simples adorno. Enquanto a literatura do
período buscava reforçar o ideal de feminilidade, Jane ousa demandar mais em termos
intelectuais por parte das mulheres. Enquanto muitas se contentavam com os ditames dos
manuais de conduta das boas moças, Jane anseia por espontaneidade e pela possibilidade
de verbalização de suas próprias opiniões, como nos mostra o trecho abaixo no qual Jane
critica Blanche Ingram, sua rival pelo amor de Rochester:
Ela era muito exibida, mas não genuína: ela tinha uma boa
compleição, muitos dotes brilhantes; mas sua mente era pobre, seu
coração estéril por natureza: nada nascia espontaneamente naquele
terreno; nenhuma fruta naturalmente deliciosa em seu frescor. Ela não
era boa, ela não era original: ela costumava repetir frases de efeito dos
livros: ela nunca oferecia, nem tinha, uma opinião própria (BRONTË,
1995, p. 110).
34
Assim como em The Professor, a narrativa se desenrola no sentido de
estabelecer um contraponto entre as figuras femininas, mas desta vez a escolha final não
recai sobre o protagonista, mesmo porque Rochester deixa entrever, desde o início, sua
predileção por Jane em detrimento de Blanche. A escolha agora compete a Jane, que
precisa optar entre Rochester e St. John, assumindo, de forma semelhante à Frances no
romance anterior, as rédeas do relacionamento. O final feliz é fornecido pela narradora,
embora novamente o casamento seja apresentado rapidamente e de forma inovadora para
as heroínas do período, sendo imortalizado pela celebre afirmação de Jane: “LEITOR, eu
me casei com ele” (BRONTË , 1995, p. 271)
35
, deixando entrever que a ela competia
decidir os rumos de sua vida e, sobretudo, a escolha de Rochester como seu ideal.
No caso de
Shirley, que se inicia com uma descrição da visão social acerca da
mulher e seu papel na sociedade, há ênfase no questionamento por meio dos comentários
das demais personagens do romance, no caráter nobre e elogiável de toda mulher cuja
postura assemelhe-se ao ideal puritano e angelical. Nesse romance, Brontë inova ao
apresentar duas protagonistas, Caroline e Shirley, que juntas criticarão abertamente a
34
“She was very showy, but she was not genuine: she had a fine person, many brilliant attainments; but her
mind was poor, her heart barren by nature: nothing bloomed spontaneously on that soil; no unforced natural
fruit delighted by its freshness. She was not good; she was not original: she used to repeat sounding phrases
from books: she never offered, nor had, an opinion of her own”. (Tradução nossa).
35
“READER, I married him”. (Tradução nossa).
54
subjugação feminina, a arbitrariedade e artificialidade do ideal de feminilidade e a pobre
educação destinada às mulheres.
A narrativa se apresenta em três partes, sendo que nas duas primeiras um aparente
contraponto entre as protagonistas pode ser delineado. Inicialmente, após inúmeras
menções sobre o papel da mulher no lar e as características desejáveis das moças de boa
família, somos apresentados a Caroline Helstone. Uma bela e pobre órfã que luta pelo
amor de Robert Moore e que também objetiva um sentido maior para sua vida, Caroline
não se contenta apenas com as trivialidades que sua prima Hortense, caracterizada como
a dona de casa ideal, insistia em ensiná-la: “Eu gostaria de ter uma ocupação; e se eu
fosse um garoto, não seria tão difícil obter uma” (BRONTË, 1995, p. 479).
36
Quando a narrativa nos apresenta Caroline definhando de tristeza e angústia em
virtude de sua falta de opções, Shirley Keeldar é introduzida aos leitores com a promessa
de que sua companhia fará bem a Caroline, restabelecendo-lhe a saúde e a vivacidade.
Mais uma vez, Brontë subverte as expectativas ao conceber Shirley como uma mulher
extremamente segura de si, poderosa e que parece não compactuar com os rígidos
padrões impostos às mulheres. Caracterizada como uma personagem ambígua por
natureza, Shirley possui um nome tradicionalmente masculino no período de publicação
da obra, age como um homem em situações sociais que envolvem o exercício do poder,
expressa claramente sua recusa de se casar por obrigação com um homem que não a
considere igual em termos sociais, mas mesmo assim exibe traços tradicionalmente
associados ao feminino, como delicadeza e aceitação, quando os julga necessários para a
obtenção do que deseja.
Shirley Keeldar constitui então, para a maior parte dos leitores, um verdadeiro
enigma, uma vez que a autora escolhe uma protagonista adversa aos padrões da época
vitoriana. Mais do que isso, Brontë desafia os preceitos sociais e literários desse período
ao expor uma figura tão polêmica, questionadora e subversiva como Shirley agindo como
modelo para alguém como Caroline, a outra protagonista. A amizade entre as duas
constitui então o foco central da narrativa, sendo que as personagens não são mais
36
“I should like an occupation; and if I were a boy, it would not be so difficult to find one”. (Tradução
nossa).
55
abordadas de forma dicotômica, tendo suas semelhanças e afinidades profundamente
exploradas pela voz narrativa.
A narrativa também se desenvolve no sentido de apresentar a resolução do impasse
amoroso entre Caroline e Robert, apresentando também um novo casal, Shirley e Louis,
irmão de Robert. Entretanto, os casais não poderiam ser mais diferentes entre si e, ao
mesmo tempo, subversivos para os padrões da época, uma vez que a resoluta Shirley
acaba por se casar com o inicialmente submisso Louis, enquanto a delicada Caroline une-
se a um ingênuo e inseguro Robert. O final proposto por Brontë não agradou a muitos,
sendo que alguns críticos questionam o casamento das protagonistas, principalmente o de
Shirley, alegando que a trama perde consideravelmente com isso, como se Brontë não
concebesse saída para as mulheres fora do casamento (EAGLETON, 1975; KUCICK,
1985; HARSH, 1994; MITCHELL, 1994; DOLIN, 1995; LOGAN, 1998; LONOFF DE
CUEVAS, 2001; TORGERSON, 2005). De fato, Harsh chega mesmo a afirmar que o
romance representa “o fracasso do poder feminino porque tanto Shirley quanto Caroline
terminam como esposas submissas e quase invisíveis” (HARSH, 1994, p.15)
37
,
mostrando que Brontë falha porque não “credita às mulheres um poder significativo em
nenhuma esfera da vida inglesa e porque não detecta uma instabilidade a ser explorada na
sociedade patriarcal” (HARSH, 1994, p. 116).
38
Acredito que o casamento das protagonistas também está imbuído de uma crítica
social apontando para discussões existentes na sociedade vitoriana acerca do poder de
escolha da mulher em relação ao casamento. Em outras palavras, me pergunto se a
narradora não estaria mostrando que, naquela época, apesar das limitações socias e legais,
o casamento ainda se apresentava como final esperado tanto na literatura quanto no
cotidiano das personagens. Nesse sentido, o romance poderia estar insinuando que apesar
dos avanços na questão feminina, ainda havia muito para se fazer em termos de uma
mudança ideológica capaz de melhor conceber a idéia de uma mulher feliz, plena e
solteira, numa época quando muitos ainda tendiam a se sentir desconfortáveis com a
possibilidade de uma mulher se prover sozinha e ser realmente independente de um
37
“[…] depicts the failure of female power [...] because both Shirley and Caroline end the novel as
submissive, almost invisible wives”. (Tradução nossa).
38
“[…] credit women with significant power in any sphere of English life and because she does not detect
exploitable instability in patriarchal society”. (Tradução nossa).
56
homem. Se Brontë foi criticada por sua ousadia em conceber uma personagem tão
dissonante com a ideologia do período como Shirley, me pergunto como o romance teria
sido recebido pelo público naquela época, se ela ainda suprimisse os casamentos no final.
Além disso, acredito que, seguindo uma linha de progressão iniciada em
The
Professor,
o ponto central em Shirley não estaria em apresentar soluções radicais e
extremadas do ponto de vista feminista. Podemos ler os romances como um argumento
sobre o próprio movimento feminista no século XIX que precisaria avançar em termos
ideológicos fundamentais para que mudanças maiores tivessem lugar. Não bastaria
recusar um casamento potencialmente lucrativo como o que poderia ser estabelecido
entre William e Zoraide em
The Professor, ou escolher o marido que mais se
aproximasse do ideal de igualdade como faz Jane Eyre, se a estrutura social como um
todo não mudasse e não abrisse espaço para as mulheres de forma mais igualitária.
Assim, se em
The Professor a crítica vem filtrada por olhos masculinos, mostrando
como algumas mulheres começavam a dar sinais de insatisfação com o que lhes era
imputado, a autora avança em
Jane Eyre, mostrando o embate emocional de uma mulher
a quem o casamento não seria uma possibilidade concreta. Avança-se mais um pouco em
Shirley, por meio de protagonistas que conseguem verbalizar melhor suas insatisfações
(antes disso Jane falava ao leitor, num diário posterior aos eventos). Em
Shirley, as
protagonistas debatem, e dirigem-se aos homens ao redor de forma assertiva, chamando-
lhes a atenção para a questão feminina, mas ainda precisam aprender a promover
mudanças concretas em suas realidades. O passo final viria em
Villette, único romance
cujo título não alude a uma protagonista, mas sim ao nome de uma localidade onde a
trama central se desenrola. Lucy Snowe mais observa do que fala, critica mais
mentalmente do que abertamente, mas passos concretos efetivos rumo a uma
mudança, mesmo porque tenderia a representar uma sociedade que teria se aberto um
pouco mais, admitindo inserções femininas mais plenas no tecido social.
Villette fornece, em linhas gerais, a complexa descrição de uma mulher vivendo à
margem da sociedade. Lucy Snowe anseia por plena inserção na sociedade patriarcal,
mas novamente é uma personagem desprovida dos atributos mínimos aos olhos da
sociedade como beleza, dinheiro e status. Entretanto, não se trata da biografia de uma
personagem avessa ao ideal de feminilidade da sociedade vitoriana, mas muito mais da
57
tentativa de entendimento por parte dessa personagem de como a sociedade a mulher.
Essenciais na narrativa são as estratégias de apropriação e questionamento dos valores e
papéis tradicionalmente vistos como masculinos ou femininos, assim como o caráter
performático assumido por Lucy, uma vez que ela parece brincar com as diferentes
possibilidades de entendimento das diferenças sexuais e de gênero na narrativa. Hoeveler
e Jadwin apontam o caráter híbrido da personagem, afirmando que ao vestir-se com
roupas masculinas, a protagonista expressa facetas masculinas de sua personalidade
(HOEVELER e JADWIN, 1997, p. 122).
39
Pode-se dizer que Villette apresenta as mesmas discussões propostas em The
Professor
, mas agora sob a ótica feminina, com uma protagonista que não intitula a obra
e que passa boa parte da narrativa observando o mundo ao seu redor, buscando entender a
lógica que rege as relações de gênero na sociedade vitoriana. Isso equivale a dizer que a
experiência individual de Lucy é o que menos conta na narrativa, sendo sua percepção
acerca das arbitrariedades da ideologia do feminino o ponto central da narrativa.
A trajetória de outra personagem às margens da sociedade (mulher, órfã, solteira,
trabalhadora) nos é apresentada como pano de fundo para mais uma vez discutir como
noções preconcebidas sobre gênero norteiam nosso entendimento do mundo. Em
Villette,
sexo e gênero sexual são representacionais e performáticos, não apenas por incorporar na
narrativa elementos dramáticos e discussões desencadeadas por trechos teatrais e
encenações vivenciadas pelos protagonistas, mas, sobretudo, por chamar a atenção para a
possibilidade de se
brincar com os estereótipos de gênero e com os papéis sexuais.
Faz-se relevante observar que nessa obra a narradora não se posiciona como figura
de destaque como nas obras anteriores, mas assume uma posição secundária, quase de
voyeurismo. Sempre referindo a si mesma através de seu nome para reafirmar sua
existência, ou mesmo para alertar o leitor para o caráter performativo dessa sua
existência, Lucy Snowe constantemente nos lembra que para a sociedade vitoriana ela
não representaria nada, pois lhe faltavam os elementos necessários de acordo com o ideal
de feminilidade do período.
39
“Stereotypically masculine costumes allow Lucy to express the ‘masculine’ aspects of her identity”.
(Tradução nossa).
58
Entretanto, Lucy não apenas existe, como também se apresenta crítica o bastante
para perceber e verbalizar quão ambíguas as imagens estereotipadas das mulheres do
período eram a seus olhos. De certa forma, podemos dizer que é através de seus olhos que
a subjugação feminina e as contradições do período em relação à diferença entre os sexos
se apresentam de forma reveladora, não sendo raros os momentos nos quais a arte e a
literatura são invocadas pela própria Lucy para corroborar suas posições.
Enquanto a narrativa se desenrola para seu fim, tem-se a insinuação de um romance
entre Lucy e M. Paul Emanuel, mas Brontë subverte as expectativas mais uma vez
fazendo com que sua protagonista se recuse a abrir mão de suas crenças e ideais em nome
do amor. Dessa forma, todas as vezes que Paul tenta mudar, controlar ou mesmo guiar
Lucy, como, por exemplo, quando quer forçá-la a vestir-se totalmente como homem na
peça, ou mesmo quando tenta conhecê-la a todo custo a se converter ao catolicismo, Lucy
se rebela e afirma o controle de sua vida. No final da narrativa não o tradicional
casamento. O último capítulo começa com uma Lucy independente e feliz por estar
sozinha e, depois, valendo-se de uma linguagem altamente poética, Lucy deixa entrever
que ele padece no mar em meio a uma tempestade antes de chegar. Lucy recobra então
sua postura impassiva e fria, coloca o leitor a par de como estão algumas outras
personagens centrais e despede-se.
Relevante ressaltar, entretanto, que de certa forma Brontë estava à frente de sua
época porque mudanças mais concretas na condição feminina viriam com o fim do
século, muito após a publicação de
Villette. Os títulos dos romances, a forma como as
narrativas são construídas e os temas retomados sob outra perspectiva, as dificuldades de
recepção crítica, tudo aponta para uma Brontë consciente do que estava fazendo, mesmo
que não se possa dizer que ela ofereça finais totalmente satisfatórios para críticos
contemporâneos, ávidos por uma maior radicaliza
ção no seu posicionamento. Entretanto,
acredito ser possível demonstrar que as personagens de Brontë abertamente criticam a
subjetivação feminina com bases em tantas figuras idealizadas como as do anjo do lar, do
monstro no sótão, da mãe dedicada e abnegada, da mulher sexualmente devassa, entre
outras. Sobretudo, acredito que suas personagens são representativas do esforço da autora
em fornecer uma visão mais abrangente e livre de preconceitos acerca das relações
sociais e de gênero vivenciadas por homens e mulheres no século XIX.
59
Capítulo 2
Sexo e gênero: o unitário, o binário e o
múltiplo.
60
Se virarmos os órgãos genitais da mulher para fora e, por
assim dizer, virarmos para dentro e dobrarmos em dois os
do homem, teremos a mesma coisa em ambos sob todos os
aspectos.
Galeano de Pergamo (citado por LAQUEUR, 2001, p.41).
As mulheres representam a forma mais inferior da evolução
humana estando mais próximas das crianças e dos selvagens
do que de um homem adulto e civilizado. Elas se sobressaem
em termos de inconsistência, ausência de pensamento lógico
e incapacidade de raciocínio. Obviamente, existem algumas
mulheres superiores à média dos homens, mas elas são tão
excepcionais quanto o nascimento de um monstro, como por
exemplo um gorila com duas cabeças; consequentemente
podemos negligenciá-las completamente.
40
Gustave Le Bom (citado por GOULD, 1981, p. 104).
Garbo “virava drag” toda vez que desempenhava um
papel marcadamente glamouroso, sempre que se derretia nos
braços de um homem ou fugindo deles, sempre que deixava
aquele pescoço divinamente torneado [...] suportar o peso
da sua cabeça jogada para trás [...] como é esplendorosa a
arte de representar! É toda
travestimento, seja ou não
verdadeiro o sexo que está por trás.
Parker Tyler, “The Garbo Image” (citado por BUTLER,
1992, p. 185).
40
“Women represent the most inferior forms of human evolution and are closer to children and savages
than to an adult, civilized man. They excel in inconsistency, absence of thought and logic, and incapacity
to reason. Without a doubt there exist some distinguished women, very superior to the average man but
they are as exceptional as the birth of any monstrosity, as, for example, of a gorilla with two heads;
consequently, we may neglect them entirely”. (Tradução nossa).
61
Como Charlotte Brontë evidencia em suas obras uma preocupação com a
arbitrariedade atrelada ao conceito de gênero no século XIX, são extremamente comuns
em seus romances personagens femininas fortes, mas não necessariamente construídas
em consonância com a ideologia do período, como Shirley Keeldar em
Shirley e Lucy
Snowe em
Villette. Tais caracterizações, no mínimo conflitantes com o ideal do período,
chamam a atenção para o fato de que nem sempre as relações de gênero e sexo de ordem
binária e antagônica como as presentes na sociedade vitoriana conseguem abarcar de
forma satisfatória toda a complexidade das relações humanas. Na realidade, conforme
discutido anteriormente, categorias e clichês tão rigidamente definidos como se
suponham ser os prevalecentes na era vitoriana, acabam se revelando no mínimo
arbitrários e sexistas em seus pressupostos básicos. Pode-se mesmo dizer que muito já foi
dito e discutido acerca do paralelismo entre sexo e gênero, da arbitrariedade de seus
pressupostos, e da forma como se via representado pela literatura vitoriana. Entretanto, é
mister acompanhar pelo menos os principais expoentes dessa discussão no sentido de
entender como os elos entre sexo e gênero se apresentavam na sociedade vitoriana e
também como esses passaram a ser vistos de forma diferente na contemporaneidade.
O sexo e o gênero até a Renascença: a primazia do masculino
Em linhas gerais pode-se afirmar que sexo e gênero sempre andaram de mãos
dadas, sendo durante muito tempo comum a equação direta entre eles. Um ser com
caracteres masculinos era do sexo masculino e, portanto, dotado de características
socialmente tidas como apropriadas ao seu sexo, ao passo que seres com caracteres
femininos eram vistos como mulheres e, sobretudo, treinados no exercício da
feminilidade. Qualquer situação intermediária era inexoravelmente colocada de lado, por
se tratar de um desvio, de uma doença. Dessa forma, seria inconcebível pensar em uma
62
dissociação entre sexo e gênero, tampouco na possibilidade de escolha de gêneros e suas
emulações em sociedade. Tanto as sexualidades alternativas quanto suas práticas eram
sujeitas à rejeição social por ferirem os alicerces sobre os quais as noções primárias de
decoro e reprodução da espécie se pautavam.
Em outras palavras, a tradicional relação simbiótica entre sexo e gênero se mostrava
inábil no trato com a categoria do diferente, muitas vezes visto como o subversivo, o
desviante. A diferença na constituição sexual ou mesmo na apresentação social do sexo
não era vista como resultado de uma escolha, mas inevitavelmente como um problema de
ordem física ou psicológica, cuja rápida intervenção restituiria a ordem, salvaguardando o
tecido social de futuras maculações, conforme explicita Michel Foucault em
A história da
sexualidade
. Para ele, a sexualidade no século XIX foi usada de formas diversas,
objetivando-se a subjugação dos corpos e o controle populacional. Nesse sentido a norma
não apenas se definia, mas, sobretudo se garantia, em relação ao elemento discrepante,
sendo assim justificado o extremado controle e regulamentação do sexo não apenas em
relação aos cidadãos em geral, mas, sobretudo em relação aos grupos supostamente de
risco para a ordem social, isto é, os homossexuais, os criminosos e os dementes
(FOUCAULT, 1992, p. 170-74).
Tal visão normativa acerca do sexo e do gênero parece ter suas origens nos
primórdios da humanidade, remontando mesmo às explicações dualistas presentes nos
principais mitos de criação. O dualismo parece sempre ter recebido destaque no
raciocínio humano, não sendo raras combinações dicotômicas na tentativa de explicar o
mundo e seus mais diversos fenômenos, tais como: razão/caos, luz/escuridão, sol/lua,
bom/mau, homem/mulher, dia/noite, etc. Em uma sociedade patriarcal falogocêntrica
como a nossa, isto é, estruturada com base na figura masculina que tradicionalmente é
associada ao falo, ao poder, ao conhecimento, a presença ou ausência do falo determina
quem ocupará posição de comando e destaque, esse tipo de estrutura binária tende a
valorizar o primeiro termo em detrimento do segundo, principalmente quando se trata dos
binarismos relativos a sexo e gênero. Analisando essa tendência e seus efeitos sobre a
sexualidade, Gayle Rubin chega mesmo a postular de forma conclusiva que para os
preceitos de uma sociedade que se rege por essas bases:
A sexualidade que é considerada “boa”, “normal” e “natural”
deveria idealmente ser heterossexual, marital, monogâmica, reprodu-
63
tiva, não-comercial. Ela deveria ser dupla, relacional, com a mesma
geração e acontecer em casa. Ela não deveria envolver pornografia,
objetos de fetiche, brinquedos sexuais de espécie alguma, ou papéis
outros além do masculino e feminino. Qualquer sexo que viole essas
regras é “ruim”, “anormal”, ou “não natural” (RUBIN, 1998, p. 13).
41
As características de monogamia, heterossexualidade e outras citadas por Rubin,
ainda prevalecem na sociedade e regulam as manifestações de gênero, não obstante as
mudanças observadas em termos de relações sociais e sexuais. Entretanto, a equação sexo
e gênero nem sempre se deu em bases rígidas e normativas, embora, por vezes, essas
categorias tenham sido entendidas como duas faces da mesma moeda. De fato, segundo
Thomas Laqueur, o sexo sempre foi muito mais um epifenômeno enquanto que o gênero
era tido como primário ou “real”, pois a distinção concreta entre homem e mulher era
muito mais importante e fazia parte da ordem social das coisas (LAQUEUR, 2001, p. 19).
Em outras palavras, a diferença entre os caracteres anatômicos sexuais não deveria
sobrepor-se à manifestação social dessa diferença, ou seja, ao papel ocupado em
sociedade, seja ele masculino ou feminino.
Nesse sentido, é interessante notar que Aristóteles, conforme apresenta Laqueur,
não pautava a diferença entre os sexos na anatomia
per si e de forma isolada, muito
menos atrelava tão fortemente sexo a gênero, até mesmo porque em sua época seria
natural um homem, por exemplo, demonstrar desejo sexual em relação a outro homem,
sem, no entanto ser diminuído em sua dignidade. Somente quando a honra e o status
estivessem em jogo numa relação sexual de cunho homossexual é que a mesma seria
vista como perversa, mórbida e mesmo repugnante. Segundo Laqueur:
o que pensamos serem construções sociais com carga ideológica de
gênero – que os homens são ativos e as mulheres passivas – eram
para Aristóteles fatos indubitáveis, verdades “naturais”. O que
pensamos serem fatos básicos de diferença sexual, por outro lado –
o homem tem um pênis e a mulher tem uma vagina [...] – eram para
Aristóteles observações contingentes e filosoficamente pouco interes-
santes sobre a espécie específica em certas condições (LAQUEUR,
2001, p. 44).
41
“Sexuality that is considered ‘good’, ‘normal’, and ‘natural’ should ideally be heterosexual, marital,
monogamous, reproductive, non-commercial. It should be coupled, relational, with the same generation,
and occur at home. It should not involve pornography, fetish objects, sex toys of any kind, or roles other
than male or female. Any sex that violates these rules is ‘bad’, ‘abnormal’, or ‘unnatural’”. (Tradução
nossa).
64
Poder-se-ia dizer que a preocupação central de Aristóteles estava em evidenciar
quem detinha o poder e quem a ele se subjugava, independente de ser a pessoa do sexo
masculino ou feminino. De fato, pode-se mesmo dizer que a preocupação com a
diferença de gênero não era tão grande posto que homens e mulheres eram vistos como
versões de um mesmo sexo, o masculino, sendo o clitóris e o útero entendidos como
inversões do pênis e do escroto. De acordo com tal modelo científico que prevaleceria até
meados da Renascença, o fato de os dois sexos serem entendidos como um se justificava
pela inexistência de “uma urgência em se criar categorias incomensuráveis do masculino
e do feminino em termos biológicos através de imagens e palavras” (LAQUEUR, 2001,
p.55). Tal necessidade de separação das esferas e melhor entendimento da diferença entre
os sexos apareceria no século XVIII, um período de transição em termos de como sexo e
gênero seriam entendidos no século XIX.
No século XVIII, a ciência forneceu os moldes pelos quais o sistema binário de
gênero se formaria e se sustentaria ao postular a descoberta de elementos fisiológicos
concretos que diferenciavam homens e mulheres. Conforme aponta Laqueur, “em algum
momento do século XVIII, o sexo como o entendemos, foi inventado” (LAQUEUR,
2001, p. 60). De acordo com o novo sistema, homens e mulheres passariam a ser
entendidos como elementos opostos em tudo, sobretudo em termos de gênero, com a
crescente preocupação em reforçar a passividade nas mulheres e a assertividade nos
homens por meio de uma educação diferenciada. Tal postura normativa em relação ao
sexo e ao gênero não seria aceita por todos. Teóricos se preocupavam em criticar a
equação sexo e gênero e também se interessavam em estender os ideais de igualdade e
liberdade a todos, independente de sexo, sendo Mary Wollstonecraft, conforme analisado
anteriormente, uma das críticas mais ferrenhas.
Castle, entretanto, aponta que o século XVIII não era tão rígido em relação à
diferença de gênero. Para ele, o gênero nessa época apresentava características
performáticas, teatrais, visto que havia uma ênfase nos populares bailes de máscaras
(
masquerades) nos quais poder-se-ia transvestir-se naturalmente sem ferir a ordem social,
revelando, assim, uma certa fluidez nas categorias de gênero (CASTLE, 1986, p. 36).
Ressalto, entretanto, que a visão de gênero indicada por Castle não se vincula à teoria de
gênero como ato performativo, como postula Judith Butler em
Problemas de gênero. O
65
que Castle acentua em sua análise, a meu ver, é a liberdade que o uso de máscaras
carnavalhescas proporcionava aos cidadãos, permitindo que eles assumissem uma
identidade diferente da habitual em termos de gênero, sem, no entanto, atribuir a esse ato
uma conotação política de crítica ou de questionamento da própria ideologia de gênero.
Uma postura mais crítica em relação ao gênero começaria a despontar de forma mais
evidente a partir da segunda metade do século XIX. Se desde Aristóteles até o século
XVIII, os caracteres anatômicos assumiriam papel secundário em relação à manifestação
social do gênero, a partir do século XIX o corpo se firma não apenas como lócus de
enunciação da diferença, mas, sobretudo, como espaço e veículo de crítica e protesto. O
corpo é um meio cultural, uma metáfora, no sentido em que tudo o que fazemos com ele,
desde os hábitos de higiene até as escolhas pessoais de vestimenta e comportamento, é
mediado pela cultura (BORDO, 1997, p. 90).
Discutindo como desordens alimentares tão comuns na atualidade como a anorexia
e a bulimia redefinem a inserção da mulher em sociedade, Bordo postula que o corpo é
político por definição, isto é, no corpo se inscrevem a opressão, a subjugação e,
sobretudo, as tentativas de elaboração do status desigual vivenciado pelas mulheres na
sociedade. De acordo com essa política do corpo, as dificuldades enfrentadas pelas
mulheres passam a ser enunciadas de forma mais eloqüente, pois, ao invés de serem
verbalizadas e correrem o risco de não serem ouvidas em razão da uma primazia
ideológica do masculino, as mulheres passam agora a ser marcadas no corpo, formando
um texto impossível de ser ignorado (BORDO, 1997, p.99).
Durante a era vitoriana o corpo começa se apresentar de forma mais intensa como
instrumento político, sendo os sintomas do corpo como o silêncio, a histeria e a loucura
os sinais mais freqüentes da subjugação feminina. De fato, esses três sintomas ocuparam
papel de destaque no ideário e também na literatura do período, sendo freqüente a
apresentação de personagens femininas silenciadas em suas angústias e anseios de tal
maneira que o resultado final acaba inevitavelmente sendo a sua representação em termos
de mulheres histéricas e loucas. A própria Charlotte Brontë evidencia o papel do corpo na
representação da condição feminina em suas obras, sendo que Bertha Mason, de
Jane
Eyre,
viria a se destacar e acabaria encarnando por meio do corpo a oposição à figura
idealizada do anjo do lar.
66
Com uma cuidadosa caracterização que reforça o contraponto entre as imagens do
feminino no romance, Bertha ficaria conhecida como a louca enclausurada no sótão de
Thornfield, a esposa que se posiciona como o maior impecilho para a concretização do
romance entre Jane Eyre e Edward Rochester. Em seu corpo, Bertha traz não apenas a
marca da suposta inferioridade feminina segundo os ditames da época, mas também o
reforço da crença numa subjugação em termos de gênero, raça e cultura. A inicialmente
sedutora e sensual estrangeira, revela-se aos olhos do marido uma criatura aculturada,
insana, quase bestial, devendo ser mantida longe dos olhos de todos, num segredo
compartilhado por poucos antes da tentativa de Rochester se casar com Jane, como nos
mostra a passagem abaixo no qual o caráter animalesco de Bertha é reforçado:
Num canto escuro e distante do quarto, uma figura corria para frente e
para atrás. O que era, se um animal ou um ser humano, não se poderia,
à primeira vista, dizer: arrastava-se, aparentemente, de quatro;
agarrava coisas e gemia como um animal selvagem e estranho: mas
estava coberta com roupas, e uma profusão de cabelos acinzentados e
escuros, soltos como juba, escondia sua cabeça e face (BRONTË,
1995, p. 176)
42
É por meio da descrição do corpo de Bertha como um animal selvagem que
Charlotte Brontë alude ao impacto da tentativa de aculturação sofrida pela personagem
em função de uma ideologia de gênero que pressupunha padrões de comportamento
rígidos e contidos. O corpo também revela a subjugação feminina em
Shirley, no qual
uma das protagonistas, Caroline Helstone, vê-se acometida por uma perda brusca de
apetite, um desânimo e um torpor crescentes, motivados não apenas pelo reconhecimento
da falta de perspectiva de casamento com o homem que ama, Robert Moore, mas,
sobretudo, por perceber-se incapaz de tomar as rédeas da própria vida. Vendo-se cada vez
mais distante da possibilidade de casamento e, conseqüentemente, mais próxima da
iminência de ter que ganhar a vida como governanta, o corpo de Caroline verbaliza sua
angústia com maior intensidade, embora continue não sendo bem interpretada, como
atesta a fala de seu tio: “Essas mulheres são incompreensíves [...] ela tem alimento,
liberdade, uma boa casa, veste boas roupas [...] e agora está aí, uma coisa pobre, pálida
42
“In the deep shade, at the farther end of the room, a figure ran backwards and forwards. What it was,
whether beast or human being, one could not, at first sight, tell: it groveled, seemingly, on all fours; it
snatched and growled like some strange wild animal: but it was covered with clothing, and a quantity of
dark, grizzled hair, wild as a mane, hid its head and face”. (Tradução nossa).
67
[...]” (BRONTË, 1995, p. 540).
43
Pode-se mesmo dizer que a representação das angústias
e da subjugação feminina em
Shirley fazem deste um romance no qual “os corpos das
mulheres tornam-se o texto a ser lido” (TORGERSON, 2005, p. 57)
44
.
De fato, numa época na qual os papéis de gênero se firmam cada vez mais como
excludentes, cabendo ao homem agir na esfera pública e à mulher salvaguardar o âmbito
privado, as diferenças entre os sexos ascendem a um outro patamar e o corpo feminino
revela-se essencial no entendimento da subjugação feminina. Muito mais importante do
que buscar elementos fisiológicos capazes de justificar e explicar a diferença entre
homens e mulheres, a questão central no século XIX era de ordem econômica e
pragmática. A biologia passaria a ser usada, então, para validar a crença de que as
mulheres eram intelectualmente inferiores em relação aos homens, não sendo, portanto,
capazes de gerir e promover crescimento econômico, cultural e social. Como
conseqüência, as relações de gênero no século XIX se pautariam no aprendizado de
posturas e padrões capazes de promover o desenvolvimento esperado por parte dos
homens e a perpetuação do caráter inferiorizante da mulher.
O gênero no século XIX: o aprendizado de papéis de gênero
Uma das figuras mais importantes no século XIX foi Charles Darwin, notório por
seu conceito evolucionista. Valendo-se de uma idéia proposta inicialmente por Jean-
Baptiste Lamarck e Erasmus Darwin, Charles Darwin reformula-a e apresenta, em
A
origem das
espécies (1859), sua teoria da descendência modificada dos seres vivos por
meio da seleção natural: as espécies não seriam fixas, mas variariam segundo o triunfo
dos exemplares mais adaptados ao meio. Nessa obra, Charles Darwin busca comprovar
que a variabilidade aumenta sensivelmente em amplitude e em rapidez num processo de
transmutação sob a ação de vários elementos, entre os quais, a cultura e a criação. A
percepção de Darwin de que as classificações fixas e tipológicas da natureza e do ser
humano são, na verdade, frágeis e errôneas motiva-o a trilhar o caminho das relações
metamórficas, representadas, por exemplo, pela alternância de geração, pela passagem de
43
“These women are incomprehensible [...] she has her meals, her liberty, a good house to live in, and good
clothes to wear [...] and there she sits now, a poor little, pale [...]”. (Tradução nossa).
44
“[…] women’s bodies become the text to be read”. (Tradução nossa).
68
uma forma fixa para uma móvel ou vice-versa e mesmo pela noção de hibridismo,
entendido como o produto da união de duas espécies distintas (DARWIN, 1995, p.350-
365).
Estabelecendo-se um paralelo entre a teoria darwinista de evolução e a ideologia
do feminino na sociedade vitoriana do século XIX, pode-se afirmar que Darwin possuía
uma visão sexista e inferiorizante da mulher conforme seus argumentos em
A origem do
homem e a seleção sexual
(1871). Esse lado sexista de Darwin, compartilhado por muitos
na era vitoriana conforme discutido no capítulo 1, evidencia-se no cerne da discussão por
ele levantada de que ao serem mais expostos às pressões do processo seletivo natural,
principalmente em tempos de guerras e dificuldades acentuadas para garantir a
sobrevivência e a subsistência, os homens inevitavelmente evoluíram mais e de forma
mais veloz.
Segundo Darwin, tal desenvolvimento do ser masculino era notório não apenas com
bases em medições físicas e análises fisiológicas, mas, sobretudo, pela própria evolução
artístico-cultural experimentada pela humanidade. Assim, como os grandes gênios,
pensadores e demais figuras de influência pertencentes ao sexo masculino eram em
número maior que o de mulheres, Darwin chegou a usar essa constatação para reforçar a
suposta inferioridade intelectual das mulheres. Darwin afirma que “se duas listas fossem
feitas dos homens e mulheres mais eminentes na poesia, pintura, escultura, música
compreendendo tanto composição quanto execução, história, ciência e filosofia, as duas
listas não aceitariam comparação” (DARWIN, 2004, p. 327). Tal crença, enfatizada na
publicação das teorias de Darwin, era, entretanto, parte do imaginário da sociedade
vitoriana desde o início do século XIX, vindo mesmo a influenciar as obras e a recepção
crítica de Charlotte Brontë.
De fato, acreditava-se que a mulher e o exercício intelectual não eram compatíveis,
tendo-se, inclusive, casos nos quais médicos proibiam veementemente o exercício da
escrita e da intelectualidade para suas pacientes, como no célebre caso da escritora
americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935), cujas crises de depressão foram
interpretadas como resultado de sua intensa atividade acadêmica. A própria Charlotte
Brontë sofreria com tal crença na inferioridade intelectual da mulher e valer-se-ia dos
clichês relacionados à superioridade masculina em suas obras com o intuito de criticá-los,
69
como ao apresentar, por exemplo, de forma irônica, a opinião de M. Pelet em Villette.
Para ele “uma mulher de intelecto [...] é uma espécie de lusus naturae, um acidente
infortunado, uma coisa para a qual não haveria nem espaço nem serventia na criação, a
ser rejeitada tanto quanto esposa quanto trabalhadora” (BRONTË, 1995, p. 972)
45
,
embora, paradoxalmente, o que mais o atraisse em Lucy Snowe fosse sua capacidade
intelectual.
O mesmo motivo havia sido utilizado antes em
The Professor, quando William
Crimsworth, objetivando encontrar mais do que a simples beleza física nas mulheres ao
seu redor, une-se a Frances, cujos atributos físicos deixavam a desejar se comparados
com a média, mas que apresentava uma capacidade intelectual superior às das mulheres
descritas por William. De fato, a dicotomia beleza e intelecto ocupa posição de destaque
em todas as obras de Brontë se analisarmos que todos os protagonistas, masculinos e
femininos, com exceção de Caroline e Shirley em
Shirley, foram descritos como sendo de
beleza medíocre, muitas vezes míopes, mas sempre dotados de uma capacidade
intelectual superior aos demais. A própria Brontë ficaria estigmatizada em termos de sua
compleição física, sendo comuns cometários enfatizando sua miopia exacerbada, sua
pequena estatura, a rigidez de seu olhar e a fragilidade de sua aparência (GASKELL,
1975; FRASER, 1988; HOEVELER e JADWIN, 1997; BARKER, 1998).
Entretanto, o que mais incomodava Brontë era ter suas obras criticadas com base
em pressupostos de diferenças de gênero e não nos seus méritos, fato esse que a irritava
profundamente e, pelo menos em duas de suas correspondências com seus críticos, ela
verbaliza seu descontentamento explicitamente. Em carta endereçada a William Smith
Williams, seu editor, em 16 de Agosto de 1849, Charlotte indigna-se ao perceber que
Jane Eyre havia sido criticada com bases em sua suposta autoria feminina, em detrimento
do codinome Currer Bell por ela adotado.
46
Como resposta, Brontë oferece: “para vocês
eu não sou nem Homem nem Mulher eu me apresento perante vocês como um Autor
apenas – e é por esse único padrão que vocês têm o direito de me julgar – o único terreno
45
“[…] a woman of intellect [...] was a sort of lusus naturae, a luckless accident, a thing for which there
was neither place nor use in creation, wanted neither as wife nor worker.” (Tradução nossa).
46
Currer Bell é o pseudônimo utilizado por Brontë na publicação de suas obras objetivando manter sua
identidade feminina em segredo.
70
no qual aceito seu julgamento” (BRONTË, 1849, citado por BARKER, 1998, p. 242).
47
Em outra ocasião, em correspondência enviada a G. H. Lewes, um de seus maiores
críticos, Brontë ressente-se do fato que sua capacidade artística sofria em virtude da
ideologia de gênero do período vitoriano que não concebia capacidade intelectual e
mesmo genialidade em relação ao sexo feminino:
gostaria que você não me visse como uma mulher: gostaria que todos
os críticos acreditassem que Currer Bell é um homem – eles seriam
mais justos com ele. Você continuará – eu sei –a me avaliar pelo
padrão que você atribui ao meu sexo – no que eu não for o que você
considera gracioso – você me condenará (BRONTË, 1849, citado por
BARKER, 1998, p. 248).
48
Essa idéia de que o exercício da intelectualidade não era compatível com o ideal de
graciosidade e beleza femininos da ideologia de gênero na era vitoriana era tão
determinante que a ciência, sobretudo na figura de Darwin, viria posteriormente tentar
entender o porquê de tal diferença e argumentaria se haveria alguma interferência do
processo evolutivo via seleção natural nessa diferenciação. De fato, em sua busca por
melhor entendimento nesse sentido, Darwin aprofunda a discussão em
A origem do
homem e a seleção sexual
.
Ao desenvolver seu raciocínio e valendo-se de argumentos zoomórficos e também
antropomórficos, Darwin postula que os selvagens, por possuírem cérebros menores,
estariam predispostos a terem suas vidas dominadas mais pelo instinto e menos pela
razão, ocupando uma zona intermediária na natureza. O problema reside no fato de que
Darwin, por analogia, inclui nessa categoria crianças, seres com problemas mentais
congênitos e também as mulheres, num raciocínio que, segundo John R. Durant, estaria
fundamentado na crença comum nos séculos XVIII e XIX de que esses indivíduos
valiam-se dos poderes da intuição, cuja utilização seria “característica de classes
inferiores e de uma civilização passada e remota” (DURANT, 1985, p. 295).
49
47
“[…] to such critics I would say “to you I am neither Man nor Woman I come before you as an
Author only –it is the sole standard by which you have a right to judge me the sole ground on which I
accept your judgment”. (Tradução nossa).
48
“[…] I wish you did not think me a woman: I wish all reviewers believed Currer Bell to be a man they
would be more just to him. You will I know keep measuring me by some standard of what you deem
becoming to my sex where I am not what you consider graceful you will condemn me”. (Tradução
nossa).
49
“[...] characteristic of lower classes and of a past and lower state of civilization”. (Tradução nossa).
71
A partir dessa analogia, Darwin conclui que as mulheres adultas da maioria das
espécies poderiam ser comparadas aos filhotes de todas as raças analisadas no sentido de
terem maior necessidade de adaptação ao meio e grande dificuldade nesse processo por
valerem-se muito mais de seus órgãos de sentido do que do raciocínio cerebral. As
mulheres estariam, portanto, abaixo dos homens na escala evolutiva, pois esses não
demonstravam as mesmas restrições físicas e dificuldades de adaptação, salvo em
exemplares portadores de alguma anomalia ou deficiência congênita (DARWIN, 1995, p.
234-236).
O argumento de Darwin, embora radical, fazia grande sentido no século XIX,
principalmente porque ao sinalizar que os exemplares masculinos mais evoluídos, ou
melhor adaptados ao meio, seriam portadores de cérebros mais desenvolvidos, Darwin
compactua e reforça a ideologia de que ao sexo feminino não caberia o exercício mental,
pois a mulher não estaria naturalmente apta a essa atividade. Darwin postula que as
diferenças sexuais na raça humana devem-se parcialmente à seleção natural,
especificamente porque os homens precisariam provar-se física e intelectualmente
superiores uns aos outros em sua competição por alimento, segurança e também por
exemplares do sexo feminino. Nessa luta por vezes desleal e sangrenta, as mulheres não
necessitavam desenvolver força e resistência física, muito menos estratégias intelectuais
capazes de garantir sua vitória, pois se esperava delas apenas o papel de esperar,
pacientemente, pela chegada do homem vitorioso, tal como Penélope a tecer aguardando
o retorno de Ulisses em
A Odisséia, não obstante seu papel decisivo na resolução da
narrativa.
Entretanto, diferente das outras espécies animais analisadas por Darwin, as
mulheres deveriam ser superiores em termos de atração sexual, pois essa característica
seria a primeira a ser identificada e valorizada pelos homens. Darwin chega mesmo a
afirmar que “um homem fraco, a menos que seja um bom caçador, raramente teria a
permissão de tomar para si uma mulher cujo poder de atração sexual chamasse a atenção
de outro homem mais forte” (DARWIN, 2004, p. 562).
50
Em outra passagem, Darwin
aponta que “o homem luta pela posse da mulher, e a mulher pela escolha do parceiro”.
50
“[…] a weak man, unless he be a good hunter, is seldom permitted to keep a wife that a stronger man
thinks worth his notice”. (Tradução nossa).
72
(DARWIN, 2004, p.571).
51
Conforme discutido anteriormente, o ideal de feminilidade
do período enfatizava a beleza e graciosidade como alguns dos atributos do anjo do lar,
além de dotá-los de um status determinante na obtenção de casamentos vantajosos. A
contribuição de Darwin nessa discussão restringiu-se a apontar, cientificamente, os
elementos responsáveis pelo poder de atração sexual desempenhado pelas mulheres com
base na teoria evolucionista.
Sob essa ótica, a mulher, embora tida como física e intelectualmente inferior, era
objeto de desejo de posse por parte do homem com o intuito de preservação da linhagem.
Os elementos detectados por Darwin capazes de atrair a atenção do exemplar masculino
seriam justamente o oposto das características apresentadas pelos próprios homens.
Como o próprio meio desenvolveu no sexo masculino a força física e a brutalidade nas
relações, a mulher deveria manter-se delicada e frágil caso objetivasse casar-se. Brontë
criticaria tal pressuposto numa carta endereçada em 1845 à Ellen Nussey, amiga de longa
data, revelando-se incomodada com o fato de que tudo que a mulher faz acaba sendo
interpretado como tentativa de fisgar um bom partido:
Eu sei que se as mulheres desejarem escapar do estigma de caça-
maridos elas precisam agir [...] como o mármore [...] frias –
inexpressivas, inertes – porque qualquer demonstração de alegria –
tristeza –amizade, antipatia, admiração –desgosto são igualmente
entendidos pelo mundo como uma tentativa de fisgar um marido
(BRONTË, 1845, citado por BARKER, 1998, p. 127).
52
Brontë criticaria tal crença também em suas obras, como por exemplo, quando em
Jane Eyre, a protagonista comenta a discrepância entre a aparência fisica e a capacidade
intelectual de Blanche Ingram, sua suposta rival em relação ao amor de Edward
Rochester. Embora se reconhecesse inferior fisicamente e também em termos sócio-
econômicos, Jane não admitia que Rochester pudesse ter prazer na companhia fútil de
Blanche uma vez que nada nela parecia sustentar-se por muito tempo. Também em
Villette temos a protagonista Lucy discorrendo sobre tal pressuposto da beleza feminina
em detrimento da capacidade intelectual. Ao conhecer Ginevra Fanshawe, a primeira e
51
“[…] the male struggle with males for possession of females, and females choice of mate’. (Tradução
nossa).
52
“I know that if women wish to escape the stigma of husband-seeing they must act […] like marble [….] –
cold expressionless, bloodless for every appearance of feeling of joy- sorrow friendliness, antipathy,
admiration disgust are alike construed by the world into an attempt to hook in a husband”. (Tradução
nossa).
73
decisiva impressão que Lucy tem é negativa: [...] um temperamento descuidado, e um
estilo fraco e fr
ágil de beleza, uma falta de resistência [...] parece sucumbir frente à
adversidade [...]” (BRONTË, 1995, p. 800).
53
Mais adiante, ao observar em uma galeria
de imagens femininas que M. Pelet julgava serem apropriadas ao chamado sexo fr
ágil, a
saber, “Jeune Fille”, “Marie”, “Jeune Mère”, e “Veuve”, Lucy se choca com a oposição à
imagem de “Cleópatra”, a qual admirava alguns minutos antes. Para Lucy, não passavam
de imagens vazias.
De fato, tanto
Shirley quanto Villette são obras nas quais abundam críticas explícitas
à situação da mulher e à ideologia de gênero na sociedade vitoriana, embora tais assuntos
se fizessem presentes também em
The Professor e Jane Eyre. O que parece mudar,
entretanto, é o tom dos coment
ários oferecidos por Brontë nas obras. Se nos romances
iniciais o tom é mais comedido, com críticas mais sutis e indiretas, nos dois romances
finais a autora parece não poupar esforços no sentido de verbalizar abertamente as
arbitrariedades das relações de gênero tal como concebidas na Inglaterra vitoriana. De
toda forma, é inquestionável que Brontë posiciona-se contra os pressupostos
essencialistas usados para justificar o tratamento diferenciado entre homens e mulheres,
chamando atenção para elementos sobre os quais a ciência se debruçaria com Darwin a
fim de melhor explicar e justificar a crença na suposta inferioridade feminina.
A validação científica ofertada por Darwin de que as mulheres e os homens teriam
evoluído de forma diversa e que nas mulheres a aparência física desempenhava papel
fundamental na possibilidade de perpetuação da espécie, apenas reforça noções pré-
concebidas já tidas como verdadeiras na sociedade em pleno século XIX, sem, no
entanto, aprofundar a discussão. Além disso, levando-se em consideração que as
conclusões de Darwin acerca da inferioridade feminina foram obtidas, na sua maioria,
através de abstrações baseadas no seu estudo de espécies animais, poder-se-ia mesmo
insinuar que as mesmas não passariam de tentativas de se achar algo na natureza que
pudesse ser usado para corroborar suas idéias sexistas. Nesse sentido, é importante
ressaltar que logo após a publicação das teorias darwinistas, a americana Antoinette
Brown Blackwell atestaria em
The Sexes Throughout Nature (1875) que os pressupostos
53
“[...] a careless temperament, and fair, fragile style of beauty, an entire incapacity to endure [...] seem to
sour in adversity [...]”. (Tradução nossa).
74
de Darwin para explicar a diferença entre homens e mulheres haviam sido por ele
manipulados de tal forma a ressaltar a superioridade dos homens. Para ela, embora
houvesse diferenças notórias na compleição física, a evolução das espécies não teria
contribuído de forma a posicionar a mulher em posição inferior, sendo isso muito mais
fruto de bases ideológicas e culturais do que fisiológicas e naturais (BLACKWELL,
1875, citado por KOHLSTEDT e JORGESEN, 1999, p.272). De fato, embora
desempenhe papel importante no entendimento da ideologia de gênero no século XIX, o
impacto maior das postulações sexistas de Darwin parece recair sobre o fato de ele ter
colocado em dúvida a idéia da criação divina e todo o arcabouço teórico utilizado para
justificar o reforço da moral e do decoro feminino na educação para o casamento e para a
vida familiar.
Porém, mudanças de perspectiva com relação às diferenças de gênero levariam
certo tempo ainda, embora seja inegável que as críticas feministas no século XIX foram
essenciais para que chegássemos a conceber o gênero, não como produto de diferenças
fisiológicas entre os sexos, mas muito mais como uma manifestação cultural, ou um ato
performático. De fato, muitas teóricas buscam evidenciar o caráter político de protesto
que o corpo feminino tende a assumir desde o século XIX, embora ainda haja uma
tendência de se separar o corpo feminino da imagem do sujeito político. Para Gatens,
uma das estratégias de silenciamento da diferença se através da menção pejorativa do
status de gênero do ser que protesta. Em outras palavras, se uma mulher ousa denunciar
desigualdades de ordem sexual e social, ela logo é ridicularizada por ser mulher, sendo
por vezes mesmo ofendida em sua honra e reputação através de vocábulos depreciativos
(GATENS, 1997, p. 85). Assim, apesar do discurso da igualdade de direitos, na prática as
mulheres ainda sofrem no corpo, na pele, o peso da ideologia de gênero. Isso se deve ao
fato de que a noção de corpo político ainda se muito influenciada pela imagem do
corpo masculino e por toda uma carga ideológica que perpassa séculos (GATENS, 1997,
p. 85).
Entretanto, existem alternativas para esse impasse, sendo que a mais apropriada, na
opinião de Gatens, está relacionada a um entendimento ético dessas questões no sentido
de se abrir espaço para o reconhecimento do corpo do outro, seja esse outro qual for,
possibilitando-se assim um diálogo. Nesse sentido, é importante ressaltar que esse
75
diálogo precisa se dar em bases diferentes daquelas muitas vezes experimentadas pelos
grupos de minoria, principalmente pelas feministas:
Parece importante que, se a possibilidade de diálogo e engajamento pode ser
aberta, que as políticas feministas reconheçam a futilidade de se continuar
pedindo para ser admitida nessa fantasia de unidade. [...] Eu preferiria
levantar a questão: de quem é esse corpo? Quantas metamorfoses ele já
sofreu? E quais formas possíveis ele poderia ter? E ao responder essas
questões parece ser crucial resistir à tentação, observável em alguns textos
feministas, de substituir um corpo por dois, uma ética por duas, uma razão
por
duas. Pois, isso seria meramente repetir, numa base dual, o mesmo velho
fascínio narcisista envolvido na contemplação de auto-imagem (GATENS,
1997, p.87).
54
Esse perigo de substituir uma representação de gênero pela outra, apontado por
Gatens, perpassa as questões de sexo e gênero desde Aristóteles até os dias atuais. De
fato, muitos séculos após Aristóteles, ao perceber que a sexualidade por vezes extrapola
definições tão rígidas, algumas teóricas feministas como Luce Irigaray, Nancy
Chodorow, Judith Butler, entre outras, aprofundaram a discussão no sentido de dissociar
sexo biológico de gênero como manifestação social e, sobretudo, deram passos frutíferos
no entendimento dessas relações como sendo sujeitas a outras forças determinantes.
Nesse sentido, o primeiro teórico da sexualidade a influenciar diretamente o rumo
tomado nas discussões sobre sexo e gênero é Sigmund Freud, cujos estudos e
postulações, ainda nos primórdios do século XX, vieram a abalar substancialmente
noções tradicionalmente aceitas até então, embora se verificassem tentativas de
transgressão da rigidez imposta tanto sobre o sexo biológico quanto ao gênero. Sobre esse
ponto é interessante mencionar que Michel Foucault, na introdução de
Herculine Barbin
sugere que, desde a Renascença, o chamado sexo biológico não oferecia um fundamento
sólido para a categoria cultural de sexo, embora ameaçasse subvertê-lo constantemente
(FOUCAULT, 1980, p .vii-viii). Segundo Foucault, desde essa época não havia um sexo
único e verdadeiro, tanto é que o hermafrodita tinha dois sexos entre os quais podia fazer
uma escolha social e jurídica (FOUCAULT, 1980, p. vix), mesmo num período quando,
54
“It seems important, if the possibility of dialog and engagement is to be opened up, that feminist politics
recognize the futility of continuing to ask to be fully admitted into this fantasy of unit. […] I would rather
want to raise the question: whose body is this? How many metamorphoses has it undergone? And what
possible forms could it take? And in responding to these questions it seems crucial to resist the temptation,
noticeable in some feminist writing, to replace
one body with two, one ethic with two, one reason with two.
For this would be merely to repeat, in dual fashion, the same old narcissistic fascination involved in the
contemplation of one’s own image”. (Tradução nossa).
76
na ausência de um sistema simuladamente estável de dois sexos, as rígidas leis do corpo
tentavam estabilizar o gênero (LAQUEUR, 2001, p. 161).
Sexo e gênero na modernidade e pós-modernidade: rumo a uma multiplicidade de
papéis e representacões
Objetivando oferecer uma teoria universal do psiquismo na qual a construção da
identidade se evidencia em termos de repressão, Freud inicialmente reduz o gênero a um
grupo de estruturas psico-sexuais pré-determinadas, além de equacioná-lo ao caráter
biológico do sexo. Para ele, os seres humanos são seres sexuais por definição, sendo a
diferenciação sexual atrelada à diferença anatômica entre os seres. A noção de Freud
instaura uma linha de pensamento que entende a organização da subjetividade em relação
a um determinante primário no processo de diferenciação sexual, conhecido como falo.
Em outras palavras, isso equivale a dizer que por definição o caractere masculino visível
prevaleceria sobre o caractere feminino uma vez que a mulher seria inicialmente
reconhecida como o ser no qual a ausência do pênis se faz perceber. Deriva desse
entendimento não apenas o reconhecimento das diferenças biológicas anatômicas, mas,
sobretudo, as diferenças de gênero como manifestação social, pois ao homem cabe o
poder por possuir o pênis/falo, enquanto à mulher cabe a submissão por não ter nenhum
dos dois.
Considerando-se que Freud acredita que essas estruturas psíquicas são masculinas
(FREUD, 1985a, p. 85), o conceito de feminilidade seria irrevogavelmente negativo por
basear-se numa falta que não pode efetivamente ser preenchida, que é a falta do pênis e,
por conseqüência, do falo. Ao colocar o pênis em posição de destaque, Freud acaba por
criar uma primazia fálica que perpassaria sua obra, e que seria alvo de questionamentos
feministas no futuro. O feminino se apresenta, para Freud, como uma noção complexa
porque se funda numa ausência e na necessidade de elaborar essa falta num contexto de
primazia do falo, no qual parece não haver saída para a subjugação feminina.
Em outras palavras, apesar dos avanços de Freud no entendimento de como o
inconsciente opera, em se tratando de relações de gênero sua teoria não avança muito.
Sua postura parece apenas reforçar a crença vigente desde a era vitoriana de que a mulher
77
se definiria em relação ao homem, sendo sempre entendida como uma versão inferior e
imperfeita do mesmo. Consequentemente, seus anseios e desejos permaneceriam
silenciados ou pelo menos mal interpretados, como bem expressa Charlotte Brontë em
Shirley através do Senhor Helstone, uma das figuras mais sexistas de todos os seus
romances, como a citação a seguir demonstra: “ele acreditava que desde que a mulher
estivesse calada, nada a incomodava, e ela não desejava nada. [...] Ele não tinha a
intenção de compreender as mulheres, ou de compará-las com os homens; elas eram de
uma ordem diferente, provavelmente bastante inferior [...]” (BRONTË, 1995, p. 469).
55
Mais adiante, ele chega mesmo a deixar bem claro que “gostava de vê-las como bobas,
descabeceadas, fúteis, prontas a serem ridicularizadas [...] brinquedos com os quais
pudesse se divertir durante um curto espaço de tempo e depois descartar” (BRONTË,
1995, p. 502).
56
Assim, se antes do boom da psicanálise a ciência já tinha como certa a inferioridade
feminina em termos físicos, com Freud é como se houvesse a validação em termos
psíquicos também. De fato, a teoria da sexualidade de Freud recebeu inúmeras críticas ao
longo dos anos, principalmente por parte das feministas. O centro de toda crítica atribuída
a Freud pelas feministas está na forte perpetuação de mitos e crenças sexistas sobre a
natureza da sexualidade e da representação das diferenças sexuais biológicas. A visão por
ele reforçada de que a sexualidade feminina é intrinsecamente relacionada à masculina e,
conseqüentemente, desenvolvida em torno da falta central do falo, atrelada ao forte e
impactante papel ocupado pela figura do pai, parecem apagar qualquer possibilidade de
uma sexualidade feminina forte, estável e positiva no processo de individualização da
mulher. Freud reduz, assim, o gênero a estruturas psico-sexuais pré-determinadas não
suscetíveis a questionamento (WEEDON, 1995, p. 46).
A questão da maternidade sob o viés freudiano também é alvo de questionamento
por parte de Luce Irigaray. Central em sua teoria é a necessidade de uma releitura do
papel simbólico da figura materna no processo de individualização, objetivando, entre
outras coisas, a criação de um modelo diferente de entendimento das relações de gênero.
55
“He though, as long as a woman is silent, nothing ailed her, and she wanted nothing. [...] He made no
pretence of comprehending women, or comparing them with men; they were a different, probably a very
inferior order [...]”. (Tradução nossa).
56
“[…] liked to see them as silly, light-headed, as vain, as open to ridicule as possible [...] toys to play
with, to amuse a vacant hour and to be thrown away”. (Tradução nossa).
78
Uma vez que a maternidade por vezes é entendida como pré-requisito para a obtenção de
uma posição simbólica menos inferiorizante, ela também estabelece uma genealogia da
mulher no sentido de evidenciar as relações ideológicas e culturais que norteiam a
inserção feminina na sociedade. Nesse sentido, Irigaray argumenta que é necessário para
a mulher destituir a maternidade de seu caráter inferiorizante e subjugador, ou seja, fazer
com que o ato de ser mãe deixe de ser representativo do ser feminino. Nesse sentido as
relações sexuais e de gênero podem ser mais bem elaboradas pelos indivíduos quando
há o reconhecimento das diferenças em bases não conflitantes ou mesmo essencialistas:
É indispensável que a criança, garota ou garoto, tenha uma
representação dos dois sexos [...] Mas, na concepção tradicional de
família, ela de fato não tem isso. Porque, se a mulher é unicamente
mãe, a criança não tem uma imagem de mulher e, assim, da diferença
sexual (IRIGARAY, 1985, p.120).
57
Elizabeth Grosz, discutindo as visões de Irigaray sobre o feminino, chama a atenção
para o fato de que para Irigaray a maternidade precisaria ser reconceptualizada enquanto
ato político no sentido de evidenciar escolhas e de livrar as mulheres da carga ideológica
atrelada à habilidade biológica de reprodução (GROSZ, 1989, p. 121). Em outras
palavras, a maternidade será potencialmente interessante à mulher se ela for capaz de
vivenciá-la de forma plena, ou seja, como escolha, como ato político e não apenas como
atributo essencial do ser feminino. Como escolha, a maternidade possibilitaria à mulher
vivenciar as diferenças sexuais e de gênero de forma positiva e não inferiorizante.
Entretanto, como obrigação, a repetição de atitudes sexistas e subjugantes não cessaria,
uma vez que a mulher se veria presa ao papel social de protetora do lar e da família e
reprodutora de padrões de docilidade, abnegação, sacrifício, entre outros. Nesse sentido, a
mulher se beneficiaria muito mais com a maternidade se renunciasse a imagem da mãe
fálica, isto é, da mãe capaz de satisfazer todas as necessidades do outro. Em
contrapartida, essa imagem seria substituída pela mulher que fornece mais do que o
alimento e o cuidado, mas também o dom da fala, do discurso, a inserção na ordem
simbólica via linguagem.
57
“It is indispensable that the child, girl or boy, have a representation of the two sexes […] But in the
traditional conception of the family in fact, he or she doesn’t have this. Because if the woman is uniquely
mother, the child has no image of woman, and thus of sexual difference”. (Tradução nossa).
79
Esse abandono da imagem da mãe fálica representa um avanço na teoria freudiana
do feminino, no sentido de que essa nova elaboração simbólica da maternidade, e
também do ser feminino, não está pautada na falta, no trauma, no recalque, nem na
necessidade de satisfação dos desejos do outro. Seria muito mais uma possibilidade de
desafiar e mesmo subverter as polarizações apresentadas pelo discurso falogocêntrico que
insiste em reforçar o hiato entre homem e mulher. Abre-se, assim, um espaço, discursivo
e ideológico, no qual a mediação masculina não é necessária para o entendimento do
feminino, visto que os dois gêneros possuiriam os meios lingüísticos necessários para
inserção na ordem simbólica.
Levando-se em consideração que para Jacques Lacan o ego é apenas uma ilusão
(LACAN, 1978, p. 287), um produto do inconsciente, podemos dar um passo além e
inferir que a representação fixa dos gêneros de acordo com a anatomia ou mesmo a
tradição cultural seria igualmente uma ilusão. Ou conforme Elizabeth Grosz aponta:
Lacan argumenta que os dois sexos são constituídos como
sexualmente diferentes, como objetos sexuados, apenas em referência
ao significante fálico. Posições masculinas e femininas são uma
função, não da biologia,mas da própria estrutura da linguagem. Via
falo cada sexo se posiciona como ser falante, “dando realidade ao
objeto”; através do falo, a realidade do sexo anatômico se liga ao
significado e ao valor que a cultura dá para a anatomia (GROSZ, 1995,
p. 131).
58
Lacan sinaliza então para o fato de que o feminino, por ser marcado linguisticamente
pela falta, encarna simbolicamente o papel do Outro no jogo de sedução, visto que sua
representação lingüística baseia-se não no mascaramento da diferença inicial, mas na
evidenciação da mesma.
59
Em outras palavras, para Lacan a mulher não buscaria
58
“Lacan argues that both sexes are constituted as sexually different, as sexed objects, only with reference
to the phallic signifier. Masculine and feminine positions are a function, not of biology, but of the very
structure of language. Through the phallus each sex is positioned as a speaking being, “giving reality to the
object”; through the phallus, the reality of anatomical sex becomes bound up with the meanings and values
that a culture gives to anatomy”. (Tradução nossa).
59
Cabe ressaltar a distinção existente na teoria lacaniana em relação ao conceito de outro. Para Lacan,
existem dois termos,
o outro e o Outro, diferentes entre si no fato de que o primeiro implica num
reconhecimento da auto-imagem no processo de individuação. O
outro em letras minúsculas designa “o
outro que se assemelha ao eu” (ASCROFT
et al, 1998, p. 170), sendo termo recorrente quando da discussão
da fase do espelho, apresentada por Lacan como essencial para que a criança se reconheça como elemento
separado da mãe, e também dos demais indivíduos, e comece a se preparar para entrar no âmbito do
simbólico, da linguagem. Assim, o
outro evoca o auto-reconhecimento de sua existência face identificação
inicial com uma imagem que se julga pertencer à outra pessoa. Em outras palavras, a ilusão especular cede
lugar, paulatinamente, ao reconhecimento do próprio corpo e à fixação dessa imagem no próprio consciente
do ser que se olha. o termo
Outro em letras maiúsculas não evidencia, entretanto, um interlocutor real,
80
esconder a falta do falo e todas as implicações culturais decorrentes dessa falta nas
esferas social e sexual, optando por evidenciar, mesmo que inconscientemente ou
sutilmente, tal diferença, enfatizando seus atributos essencialmente femininos em
oposição ao falo. Assim, mesmo que uma mulher busque compensar a falta do falo com
um posicionamento mais assertivo e tradicionalmente associado ao masculino, essa
máscara social acaba por evidenciar ainda mais aquilo que ela poderia inicialmente
desejar ocultar ou disfarçar, pois conforme o próprio Lacan afirma “por aquilo que a
mulher não é, é que ela procura ser desejada assim como amada” (LACAN, 2002, p. 269-
72)
60
. Em outras palavras:
Embora possa parecer um paradoxo, afirmo que para assumir o papel
do falo, isto é, do significante do desejo do Outro, a mulher rejeita
uma parte essencial da feminilidade, isto é, seus atributos, quando do
mascaramento (LACAN, 2002, p. 290).
61
Cabe ressaltar que essa noção de mascaramento atrelada à discussão da
primazia do falo e o feminino, havia sido proposta em 1929 por Joan Riviere. A
hipótese da teórica é que as mulheres poderiam lançar mão do artifício do mascaramento,
entendido como a incorporação de padrões de comportamento relacionados às diferenças
de gênero, a fim de livrar-se da angústia primária da castração. Assim, aquelas mulheres
que desejam a masculinidade podem revestir-se da máscara da feminilidade para afastar a
angústia e a vingança dos homens (RIVIERE, 1986, p. 38). Isso equivale a dizer que a
adoção de um padrão de comportamento altamente condizente com o ideal de
feminilidade de um período valeria como uma defesa contra as soluções propostas por
Freud de incorporação dos traços característicos do nero masculino ou de submissão.
Ao invés disso, a mulher poderia valer-se do ideal de feminilidade como arma política
para elaboração da posição culturalmente inferiorizante atribuída a ela.
Talvez seja nesse sentido que alguns críticos tenham interpretado a personagem
Shirley que se posiciona no mundo basicamente de forma masculina, sempre referindo a
si mesma pelo nome masculino a ela atribuído. Para Harsh, de forma específica, o
sendo muito mais um elemento simbólico de representação do desejo fundamental de existência perante o
olhar de um outro ser já pertencente à ordem do simbólico.
60
“[…] from what a woman is not that she wants to be desired as well as loved”. (Tradução nossa).
61
“Paradoxical as it may seem, I am saying that it is in order to be the phallus, that is to say, the signifier
of the desire of the Other, that a woman will reject an essential part of femininity, namely all her attributes
in the masquerade”. (Tradução nossa).
81
problema inicial não é a caracterização assertiva da personagem, destoando do padrão da
época, mas o fato de a mesma abdicar de sua liberdade ao casar-se no final da narrativa,
acentuando que não existiria saída para as mulheres na sociedade vitoriana, pois o “poder
feminino seria uma ilusão” (HARSH, 1994, p. 142).
62
Entretanto, sob essa ótica, a caracterização de Shirley seria um fracasso, pois
embora sinalizasse a possibilidade do exercício do poder por parte da mulher, o
casamento no final da narrativa representaria um retrocesso, pois anularia toda a trajetória
da personagem ao longo da narrativa e todos os sinais por ela deixados de que a mulher
seria capaz, sim, de acumular diversos papéis sociais e de gênero, tal como o homem.
Contemporânea aos estudos lacanianos, temos a figura de Simone de Beauvoir, que
na obra
O segundo sexo (1949), discute o que significa ser mulher sob perspectivas
similares, mas com argumentos e conclusões completamente opostos às de Lacan.
Beauvoir inicia sua obra evidenciando a problemática atrelada à própria definição do que
é a mulher e o feminino. Para ela, a explicação com bases biológicas de que a mulher é o
ser que possui o aparelho reprodutor constituído de ovários, útero e vagina é no mínimo
insatisfatória, reconhecendo que a questão é muito mais cultural do que biológica: “a
humanidade é masculina por definição e a mulher é definida não com bases em seus
atributos, mas em relação ao homem” (BEAVOUIR, 1949, p. 16).
63
Entretanto, Beauvoir
rejeita essa equação cultural e diferencia sexo e gênero, postulando que é a sociedade a
responsável pela desigualdade entre os seres, ficando famosa a sua postulação de que
“não se nasce mulher, mas se torna uma mulher; é a civilização que produz essa criatura,
intermediária entre homem e eunuco, descrito e conhecido como o feminino”
(BEAUVOIR, 1949, p. 20).
64
Tal postulação de Beauvoir é crucial para o entendimento não apenas de suas obras,
mas também do rumo a ser assumido por boa parte das teóricas feministas posteriores.
Entretanto, faz-se necessário destacar que o conceito de alteridade aplicado por Beauvoir
difere do de Lacan pois para ele a noção de Outro é de alguma forma interna, imutável,
intrínseca, ao passo que para ela é externo e sujeito a mudanças culturais constantes. Em
62
“[…] female power is illusory”. (Tradução nossa).
63
“[…] humanity is male and man defines woman not in herself but as relative to him.” (Tradução nossa).
64
“[…] one is not born, but rather becomes a woman; it is civilization as a whole that produces this
creature, intermediate between male and eunuch, which is described as feminine”. (Tradução nossa).
82
outras palavras, quando Lacan diz que a mulher é o Outro do outro, se refere ao sistema
lingüístico e cultural que valoriza o homem como o ser portador do falo e,
consequentemente, do poder, sendo a mulher a marca dessa falta. Já Beauvoir, ao afirmar
que um ser se torna uma mulher, aponta para o caráter artificial e externo dessa
identificação e caracterização, sendo possível, então, não apenas rejeitar ou aceitar tal
papel social, mas também subvertê-lo, incorporando outros traços e características que
inicialmente não estariam atrelados a ele. A alteridade para Beauvoir não é intrínseca ao
ser feminino, ao corpo da mulher, sendo possível brincar, definir e redefinir suas bases
conceituais, tanto com relação ao ser masculino quanto ao ser feminino, chamando a
atenção para o fato de que as diferenças de gênero podem ser vistas como máscaras,
disfarces, estratégias performáticas que permitem aos seres conformarem-se ou rejeitarem
papéis sociais pré-determinados.
Ao refutar a noção essencialista de feminilidade, Beauvoir se coloca em oposição
aos mitos patriarcais que séculos vêm subjugando a mulher e também ataca o duplo
padrão de moralidade e julgamento associado aos papéis sexuais e sociais. Segundo a
ótica de Beauvoir, é importante notar que não é comum o questionamento acerca da
representação do ideal de masculinidade. Isto equivale a dizer que se tende a crer que, por
definição, todos os homens agem em conformidade com o que a sociedade dita em
termos de padrão sexual e social, cabendo, por outro lado, uma forte cobrança sobre o
sexo feminino, como se a mulher fosse incapaz de acatar e representar, a contento, o que
dela se espera. Ainda segundo ela, devido a essa noção de dependência do sexo feminino
em relação ao masculino, na qual a mulher ganha existência se representar bem a
maternidade e se for capaz de proporcionar prazer e satisfação ao homem, pode-se
perceber uma duplicidade de entendimento por parte do próprio homem em relação ao
sexo feminino. Para Beauvoir, existiria uma possibilidade de entendimento do feminino
em termos igualitários por parte dos homens, desde que a mulher permanecesse um
elemento não essencial nas relações (BEAUVOIR, 1949, p. 1000, p. 25).
O gênero se torna então um ato performático, independente do próprio sexo, uma
representação quase teatral das características, físicas ou não, e também de papéis e
posturas que a própria sociedade determina a priori como sendo as mais adequadas a um
sexo ou a outro. Nossa tradição cultural pressupõe que a representação do papel feminino
83
é secundário e inferior em relação ao masculino, cabendo ao homem gerir a própria
ordem social, e a mulher ser o elemento submisso.
Teresa Brennan, Hélène Cixous, Luce Irigaray e Judith Butler, entre outras, também
ofereceram releituras das obras de Lacan abordando a importância da mediação cultural
numa sociedade falogocêntrica. Para Brennan, um dos problemas centrais na teoria
lacaniana é que através de sua argumentação a lógica ocidental falogocêntrica do
patriarcado parece ser algo inevitável. Embora Lacan tenha avançado em relação a Freud
ao dissociar o falo do pênis, Lacan peca por insistir na primazia do falo e na Lei do Pai,
como elementos estruturadores de uma ordem simbólica naturalmente excludente do
Outro (BRENNAN, 1989, p. 3). Entretanto, de acordo com Brennan, existiria ainda um
outro ponto complicado no pensamento lacaniano que é a dificuldade em separar o falo
do pênis na elaboração da teoria lacaniana. Se inicialmente Lacan consegue quebrar o
paralelismo pênis/falo, num segundo momento a dependência do significante visual pênis
para representar a ausência primária reaparece para ajudar a teorizar o feminino. Em
outras palavras, Lacan vale-se do falo, significante primário da falta, da ausência de uma
completude, para representar a diferença e assim inscrever a mulher como o Outro do
outro (BRENNAN, 1989a, p. 4). Dessa forma, apesar de ter atentado para o fato de que
homens e mulheres podem assumir padrões de comportamento de gênero intercambiáveis
uma vez que o falo não é exclusivo de um sexo em específico, na prática a argumentação
lacaniana parece não entrever saída para o feminino. Na verdade, a teoria lacaniana,
segundo Brennan, se desenvolve no sentido de evidenciar que o falo seria, por definição,
um significante da ordem do masculino, da Lei do Pai e, portanto excludente do âmbito
feminino (BRENNAN, 1989a, p.7).
Extremamente influenciada pela teoria anti-essencialista de desconstrucao de
Derrida, Hélène Cixous discute a masculinidade filosófica e suas tentativas de excluir o
feminino da ordem geral e estrutural da sociedade ocidental, afirmando que homens e
mulheres adentram o espaço que Lacan denominou como sendo da ordem do simbólico
de formas diferentes. Uma vez que as mulheres tradicionalmente não são as detentoras
das ferramentas apropriadas para representação nesse universo masculino, poder-se-ia
dizer que o corpo feminino é o irrepresentável na linguagem (CIXOUS, 1981, p. 305).
Cixous argumenta que “mulher” é um significante do mesmo porte que “homem”, pois
84
ambos se definem em relação ao falo como elemento central da ordem simbólica
(CIXOUS, 1981, p. 318-10), justificando assim a necessidade da mulher se inscrever,
marcar-se como significante. Além disso, ao afirmar que a sexualidade masculina, assim
como a feminina, tem sido definida em bases psico-estruturais binárias, Cixous aponta
que os homens também estão sujeitos a uma alienação em relação a seus corpos e
sexualidades (CIXOUS, 1981, p. 312). Sob essa ótica, a proposta de Cixous é de
substituição da noção binarista que rege o pensamento falogocêntrico, pelos conceitos de
multiplicidade e diferença, capazes de abarcar as diversas possibilidades de entendimento
do corpo cultural, sem necessariamente ater-se a termos classificatórios, tais como
masculino e feminino.
Irigaray, por outro lado, nos oferece uma teoria da sexualidade feminina ao
celebrar o auto-erotismo e a total separação em relação ao homem num processo de
destruição do mecanismo discursivo que subjuga a mulher (IRIGARAY, 1985a, p. 76).
Baseando-se especialmente nos conceitos de feminilidade de Platão e Freud, Irigaray
busca estabelecer uma teoria da feminilidade que escape da forte ênfase que a estrutura
patriarcal coloca sobre o masculino. Segundo ela, as teorias freudianas e também
lacanianas, acabam por reforçar a opressão vivenciada pelas mulheres por causa de seu
conceito básico de inveja do pênis e de sua crença na mulher enquanto o Outro. Para
Irigaray, ambos teóricos apresentam um ponto falho, ou pelo menos questionável em suas
teorias, ao direcionarem seu raciocínio nesse sentido, tendo como resultado final a
manutenção da opressão feminina em sociedade ao colocá-la mais uma vez em posição
inferior e secundária perante o discurso predominante (IRIGARAY, 1985a, p. 70).
Em outras palavras, Irigaray busca uma mudança no próprio status feminino ao
sinalizar para a necessidade de revisão do próprio sistema de poder e seus jogos, ao invés
de simplesmente demandar uma mudança na distribuição do mesmo. Central nessa
proposta de mudança é a postulação de que as mulheres precisam desconstruir a lógica
especular patriarcal que subjuga o feminino, uma vez que o modelo representacional
falogocêntrico fracassa na tentativa de elaborar o feminino. Ou conforme ela mesma
afirma:
Não há uma única palavra capaz de descrever o órgão sexual feminino,
existem muitas; então o órgão feminino não pode ser representado
num sistema falogocêntrico que por necessidade privilegia o
falomórfico. O falomórfico é visto como o um, estabelecendo assim
85
uma oposição binária entre falomórfico/coisas que não são unitárias.
Esse sistema não aprecia nada que não seja unitário, então o número
dois tem privilégio sobre o zero e os múltiplos. Entretanto, a mulher
“não é nem um nem dois [...] e seu órgão sexual, que não é um órgão
sexual, acaba sendo representado como a ausência de um órgão
sexual” (IRIGARAY, 1985a, p. 101).
65
A saída, segundo Irigaray, estaria não numa substituição radical dos termos
binários por outros mais abrangentes, mas na utilização politizada de ferramentas como
paródia e imitação objetivando questionar e subverter os modelos excludentes com bases
em suas próprias armas. Em outras palavras, ao parodiar a subjugação feminina e a
primazia do falo na cultura ocidental, a mulher possibilitaria o questionamento das
próprias arbitrariedades e inconsistências do pensamento ocidental (IRIGARAY, 1985a,
p. 76-77).
Para Teresa de Lauretis o ponto central dessa discussão recai sobre a necessidade de
entendimento de como toda uma rede de discursos opera no sentido de estabelecer a
diferença entre os sexos e também entre os gêneros. Lauretis propõe que o gênero não
seja entendido como fruto da diferença anatômica, muito menos como uma construção
cultural. A saída estaria em entender o gênero como produto de uma diferença semiótica,
ou seja, um novo modo de produção de sentido (LAURETIS, 1987, p. 48). O que
interessa para Lauretis, então, é deslocar o eixo da discussão acerca das diferenças de
gênero, abandonando o ranço essencialista de tentar localizar onde estaria o foco da
opressão e subjugação feminina. Nesse sentido, sua postulação é de que o gênero
representa a relação entre os sexos, não sendo, entretanto, produto dessa relação.
Como forma de representação, o gênero deveria ser tratado como um signo
dinâmico e em contínua interação com os modos de representação cultural, sobretudo
com a linguagem, uma vez que o gênero é, ao mesmo tempo, um produto e um processo
de representação (LAURETIS, 1987, p. 9). Nesse sentido, o gênero torna-se uma
categoria variável ao admitir sucessivas interpelações, além de existir como fruto de
interações do indivíduo com o seu entorno e não apenas como resultado de uma ideologia
65
“[…] there is not a single word that describes the female sexual organ, there are many, hence the female
organ cannot be represented in a phallogocentric system that of necessity privileges the phallomorphic. The
phallomorphic is seen as one, which sets up a binary opposition of phallomorphic/things that are not one.
This system does not like anything that is not one, so the number one is privileged over zero and multiples.
However, a woman is ‘neither one nor two […] and her sex organ, which is not a sex organ, is counted as
no sex organ’”. (Tradução nossa).
86
predefinida. Dessa forma, Lauretis expressa sua rejeição das categorias ontológicas que
sempre objetivaram identidades fixas, unitárias e altamente controladas por discursos
repressores, como sempre se observou nas questões que envolvem o masculino e o
feminino. Uma vez que ao feminino sempre coube o papel do irrepresentável, do
inominável, ou mesmo da ausência por excelência, somente uma forma alternativa de
construção e entendimento do gênero poderia reverter esse quadro, abarcando noções
como multiplicidade de manifestações de gênero de forma politizada.
Essa discussão acerca da multiplicidade e da possibilidade de manipulação dos
gêneros sexuais por meio da paródia e imitação também foi amplamente explorada por
Judith Butler. Seu argumento central em
Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade
(2003) concentra-se no questionamento da determinação a priori da
manifestação de gênero e papéis sexuais de qualquer indivíduo. Para ela o gênero é um
ato performativo, uma performance, um ato particular ao invés de universalista
(BUTLER, 2003, p. 48).
Butler objetiva desestabilizar o paradigma tradicional sobre feminilidade e gênero,
apresentando a idéia de que a fragmentação, a descontinuidade, e as diferenças nas
representações do gênero são relevantes no desmantelamento do senso ilusório de
legitimidade que regula o discurso falogocêntrico sobre a mulher na sociedade ocidental.
Em outras palavras, Butler se preocupa com o pacto tradicionalmente firmado com
discursos ontológicos e categorizações no sentido de definir o papel da mulher, sobretudo
com a tentativa freudiana de elaborar uma grande narrativa relativa à subjugação
feminina. Ao problematizar a visão de Freud sobre o gênero como uma categoria
relacionada à essência, Butler afirma que o gênero não apenas surge através da interação
social, mas é performático, isto é, é uma manipulação de códigos e estereótipos. Butler
advoga que gênero não pode ser equiparado ao sexo uma vez que o gênero nem sempre
se apresenta de forma coerente e consistente, mas interage e se deixa influenciar por
diferentes facetas, tais como etnia, raça, e religião (BUTLER, 2003, p. 20). O gênero é
visto, então, como “um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e
masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino quanto um
masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino quanto feminino” (BUTLER,
2003, p. 24-25).
87
Ao problematizar o conceito freudiano de gênero como essência, Butler discorda
de Freud, afirmando que gênero não apenas surge através de interação social, mas
também se revela performático no sentido de ser uma manipulação não apenas de códigos
e estereótipos, mas do próprio gênero
per si (BUTLER, 2003, p. 9). Segundo Butler, sexo
e gênero não podem ser entendidos de forma paralela, pois o gênero não é algo fixo e
imutável. O gênero para Butler nem sempre se constitui de forma coerente ou consistente,
e potencialmente se deixa influenciar por raça, classe, etnia, e qualquer outra modalidade
discursiva relacionada à constituição de identidades (BUTLER, 2003, p. 29).
Entretanto, não se pode ilusoriamente pressupor que o gênero como ato
performático seja absolutamente livre de regulamentações e restrições, uma vez que o
mesmo também se refere ao próprio aparato que distingue os sexos e suas representações
(BUTLER, 2003, p. 26). Ao discutir as visões de Beauvoir e de Irigaray acerca do
gênero, Butler estabelece as diferenças fundamentais entre elas relativas não apenas a
formação dessa categoria, mas também aos efeitos da escolha de uma ou outra
modalidade representacional.
Para Butler, a visão de Beauvoir acerca do gênero como construção volitiva
pressupõe um
cogito, um agente, ao passo que Irigaray afirma ser impossível uma relação
neutra entre o masculino e o feminino num sistema de significantes no qual o masculino
prevalece como significante e significado (BUTLER, 2003, p. 30-32). Beauvoir entende a
subjugação feminina como intrinsecamente determinada pela ilusória superioridade
masculina tradicionalmente afirmada e valorizada em sociedade, ao passo que Irigaray
enfatiza que as noções de “eu” e “outro” são ambas incorporadas pelo ser masculino,
cabendo à mulher o papel do irrepresentável (BUTLER, 2003, p. 30). Em outras palavras,
a mulher, segundo Beauvoir, é vista como o outro do homem, enquanto para Irigaray ela
representa a multiplicidade inerente ao sexo.
Butler segue os mesmos caminhos trilhados por Irigaray rumo a essa multiplicidade
de gênero, mas acrescenta uma releitura da noção lacaniana de mascaramento. O que
Lacan chama de mascaramento é um artifício resultante da experiência da mulher
melancólica ao perceber a falta do falo. Para Butler, a noção de mascaramento,
intensificada através da metáfora do
drag, reforça a distinção entre a anatomia do
indivíduo envolvido na performance e o gênero que se está representando, uma vez que
88
ao imitar um gênero específico, o drag implicitamente revela a contingência e a estrutura
potencialmente performática dessa representação de gênero (BUTLER, 2003, p. 196).
Isso quer dizer que a ilusão que discursivamente mantém a superioridade masculina pode
ser subvertida ou pelo menos questionada pelo ato de performance daquilo que a
sociedade tradicionalmente associa aos ideais de masculinidade e feminilidade.
O elemento chave para Butler nesse ato performático é o conceito de
drag uma
vez que, ao vestir-se e agir como um ser do sexo oposto, o
drag subverte idéias
tradicionais acerca de padrões sexuais, representações de gênero e a própria equivalência
entre sexo e gênero tradicionalmente reforçada na sociedade. Ao vestir-se como membro
do sexo oposto, os
drags desafiam as categorias primárias constitutivas das diferenças
culturais de gênero. O
drag não substitui um gênero pelo outro, mas brinca com as
imagens idealizadas que as pessoas têm em relação ao sexo e ao gênero, ou conforme
aponta a antropóloga Esther Newton, em
Mother Camp: Female Impersonators in
América
(1972), citada por Butler em Problemas de gênero:
Em sua expressão mais complexa,o travesti é uma dupla inversão que diz
que “a aparência é uma ilusão”. O travesti diz: “minha aparência “externa” é
feminina, mas minha essência “interna” (o corpo) é masculina”. Ao
mesmo tempo, simboliza a inversão oposta: “minha aparência “externa”
(meu corpo, meu gênero) é masculina, mas minha essência “interna” (meu
eu) é feminina”. (BUTLER, 2003, p. 105).
Porém, a própria Butler aponta o perigo de uma interpretação errônea de suas idéias
acerca do
drag e sua função, afirmando que o importante em sua teoria é retomar a
categoria do sexo para discutir como a mesma se constrói como norma na sociedade,
sendo o conceito de
drag um exemplo do que ela chama de perfomatividade (BUTLER,
1994, p. 44-45). Para Butler “não a necessidade de existir um ‘agente por trás do ato’,
mas que o ‘agente’ é diversamente construído no e através do ato” (BUTLER, 2003, p.
205). Essa afirmação de Butler estabelece um ponto crucial em seu argumento ao
diferenciar performance e performativo, pois o primeiro, ao contrário do último, implica
a existência de um sujeito capaz de emular ou representar códigos, comportamentos e
padrões predeterminados, tal como num teatro. Isso não quer dizer que no ato
performativo não exista um sujeito propriamente dito, mas que essa categoria de sujeito
encontra-se deslocada de seu eixo central a ponto de revelar a própria estrutura
ideológica, lingüística e cultural da performance apresentada. Em outras palavras:
89
O fato de o gênero ser marcado pelo performativo sugere que
ele não tem status ontológico separado dos vários atos que
constituem sua realidade. Isto também sugere que, se a realidade é
fabricada como uma essência interna,essa própria interioridade é
efeito e função de um discurso decididamente social e público, da
regulamentacão pública da fantasia pela política de superfície do
corpo, do controle da fronteira do gênero que diferencia interno
de externo e, assim, institui a “integridade’ do sujeito (BUTLER,
2003, p. 195).
Em sua elaboração do conceito de drag, então, Butler está preocupada com o
conceito de perfomatividade no sentido de contestar a própria necessidade de um sujeito
tradicionalmente estruturado segundo padrões falogocêntricos no processo de
questionamento, imitação e subversão dos padrões socialmente aceitos do masculino e do
feminino (BUTLER, 1994, p. 44-45). Em outras palavras, Butler se interessa pela
perfomatividade como a possibilidade de literalmente brincar com as noções e crenças
que nosso subconsciente internalizou sobre o que é ser masculino e o que é ser feminino.
Quando questionada sobre a distinção sexo-gênero apresentada em
Problemas de gênero,
Butler afirma:
Uma das interpretações feitas acerca de Gender Trouble é que não
há sexo, há apenas gênero e que o gênero é performativo. As pessoas
então acreditam que se o gênero é performativo, ele deve ser
radicalmente livre. Então, o que se tornou importante para mim ao
escrever
Bodies that Matter, foi retomar a categoria do sexo e ao
problema da materialidade e questionar como o sexo poderia ser
construído enquanto norma. [...]. O problema com o conceito de
drag
é que eu o ofereci como um exemplo de perfomatividade, embora o
mesmo tenha sido entendido como o paradigma da perfomatividade
(BUTLER, 1994, p. 44).
66
Ao revisar como o conceito de
drag foi entendido, Butler busca enfatizar os
perigos de se ver o gênero como um tipo de improvisação teatral ou um espetáculo. Não
se trata apenas de uma simples escolha de representar um gênero hoje e outro amanhã.
Não existe tal construção ou desconstrução de uma identidade pela deliberada utilização
de artifícios teatrais com intuito transgressor, isto é, não basta se vestir com roupas do
outro sexo, maquiar-se, assumir trejeitos masculinos ou femininos e simplesmente achar
66
“[…] one of the interpretations that has been made of Gender Trouble is that there is no sex, there is no
sex, there is only gender, and gender is performative. People then go on to think that if gender is
performative it must be radically free. So what became important to me in writing
Bodies that Matter was
to go back to the category of sex, and to the problem of materiality and to ask how it is that sex itself might
be constructed as a norm. […] the problem with drag is that I offered it as an example of performativity,
but it has been taken up as the paradigm for performativity”. (Tradução nossa).
90
que se trocou de gênero. Sexo e gênero são manifestações culturais e o ponto central para
Butler é brincar com os limites e crenças que nosso subconsciente internalizou como
sendo ou masculinos ou femininos, diminuindo assim a distância entre as categorias,
possibilitando mesmo a fusão de elementos dos dois gêneros, mas, sobretudo chamando a
atenção para a própria construção ideológica dos mesmos:
A performance do drag brinca com a distinção entre a anatomia do
performista e o gênero sendo performado. Mas estamos, na verdade,
na presença de três dimensões contingentes da corporeidade
significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de
gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se
os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance
sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre
sexo e gênero, e entre gênero e performance. Por mais que crie uma
imagem unificada da “mulher” (ao que os críticos se opõem
frequentemente), o travesti também revela a distinção dos aspectos da
existência do gênero que são falsamente naturalizados como uma
unidade através da ficção reguladora da coerência heterossexual.Ao
imitar o gênero, o
drag revela implicitamente a estrutura imitativa do
próprio gênero – assim como o sua contingência (BUTLER, 2003,
p. 196).
Em outras palavras, a contribuição de Butler nas discussões de gênero não recai
somente sobre essa postulação de que o gênero se apresenta como performance, sendo
possível revelar suas arbitrariedades e inconsistências com bases em paródia e imitação.
Butler vai além evidenciando como o próprio discurso feminista por vezes se estrutura de
forma a perpetuar aquilo que ele pretende criticar. Para ela, da mesma forma que o
discurso patriarcal determinou posições sociais e papéis sexuais fixos para homens e
mulheres, por vezes o discurso feminista incorreu no erro de não abarcar diferentes
possibilidades de entendimento do feminino, como se houvesse uma essência do
feminino compartilhada por todas as mulheres. Dessa forma, Butler evidencia sua
preocupação com as outras possibilidades de manifestação de gênero, questionando assim
todo um sistema que privilegia uma heterossexualidade compulsória e que sempre
rejeitou os traços e elementos desviantes:
A tarefa não consiste em repetir ou não, mas em como repetir ou,
a rigor, repetir e por meio de uma proliferação radical do gênero,
afastar as normas do gênero que facultam a própria repetição. Não há
ontologia do gênero sobre a qual possamos construir uma política, pois
as ontologias de gênero sempre operam no interior de contextos
políticos estabelecidos como injunções normativas, determinando o
que se qualifica como sexo inteligível, invocando e consolidando as
restrições reprodutoras que pesam sobre a sexualidade, definindo as
91
exigências prescritivas por meio das quais os corpos sexuados e com
marcas de gênero adquirem inteligibilidade cultural. A ontologia, é,
assim, não um fundamento, mas uma injunção normativa que
funciona insidiosamente, instalando-se no discurso político como sua
base necessária (BUTLER, 2003, p. 213).
Isto posto, podemos iniciar a tarefa de lermos as obras de Charlotte Brontë sob a
ótica das teorias de gênero como performance, objetivando evidenciar sua visão da
tradicional dicotomia entre o masculino e o feminino e suas representações na sociedade
vitoriana do século XIX. Procura-se demonstrar que em todas as suas obras a autora
preocupou-se em denunciar as inconsistências e incoerências do padrão de moralidade e
sexualidade vigente na época e que sua estratégia para abordar essa delicada e polêmica
questão foi valer-se da subversão dos estereótipos na elaboração de suas personagens
centrais.
O conceito de gênero como performance proposto por Judith Butler e sua
aplicação para a análise literária das obras de Brontë focando-se na questão das
diferenças de gênero possibilita um entendimento mais abrangente das inovações
apresentadas nos romances a serem aqui discutidos. Uma vez que a temática de gênero
foi abordada por Brontë de forma questionadora ou conflitante com os padrões de
sexualidade vigentes no século XIX, pode-se afirmar que suas escolhas podem não ter
sido adequadamente interpretadas, desencadeando revisões pouco satisfatórias para
The
Professor
, Villette e Shirley, especificamente. Entretanto, através dos conceitos de drag e
de gênero como performance apresentados por Butler, pode-se ler o conjunto da obra de
Brontë sob uma nova ótica, menos binária e antagônica, capaz de acentuar o caráter
político e crítico dos questionamentos e caracterizações por vezes paródicas apresentadas
por Brontë em suas obras, numa época em que tal postura crítica e explícita não
compactuava com o padrão ideológico vigente.
92
Capítulo 3
Figuras dissonantes: a performance de
gênero em
The Professor e Jane Eyre.
93
[…] homens e mulheres são tão diferentes: eles estão numa
posição tão diferente. As mulheres têm tão poucas coisas para
pensar – os homens tantas; você pode sentir amizade por um
homem enquanto ele é quase indiferente a você. Muito do que
alegra sua vida parece depender dele, ao passo que nenhum brilho
de interesse nos olhos dele se refere a você. [...] Desejo cinqüenta
vezes por dia ter uma profissão. [...] Mas o trabalho árduo e o
aprendizado de profissões, segundo eles, deixam a mulher masculina,
vulgar, não é algo feminino.
67
Charlotte Brontë,
Shirley (BRONTË, 1995, p. 558).
Se os homens pudessem nos enxergar como realmente somos eles
ficariam um pouco surpresos; mas os homens mais espertos, mais
astutos, estão frequentemente iludidos em relação à mulher; eles não
nos lêem claramente; eles nos interpretam erroneamente, tanto para
o bem quanto para o mau: sua boa mulher é uma coisa esquisita, meio
boneca, meio anjo; sua mulher ruim quase sempre um demônio.
As mulheres entendem os homens melhor do que os homens entendem
as mulheres.
68
Charlotte Brontë, Shirley (BRONTË, 1995, p. 620).
O homem é realmente um ser intrigante quando você observa – de certa
forma – toda a fragilidade – daquilo que ele considera – sua fortaleza.
69
Charlotte Brontë em carta à amiga Ellen Nussey, 1854 (citado por BARKER,
1998, p. 389).
67
“[...] men and women are so different: they are in such a different position. Women have so many few
things to think about- men so many; you may have a friendship for a man, while he is almost indifferent to
you. Much of what cheers your life may be dependent on him, while not a feeling or interest of a moment
in his eyes may have reference to you. [...] I wish it fifty times a day I had a profession. […] But hard labor
and learned professions, they say, make women masculine, coarse, unwomanly”. (Tradução nossa).
68
“If men could see us as we really are, they would be a little amazed; but the cleverest, the acutest men are
often under an illusion about women; they do not read them in a true light; they misapprehend them, both
for good and for evil: their good woman is a queer thing, half doll, half angel; their bad woman almost
always a fiend. Women read men more truly than men read women”. (Tradução nossa).
69
“Man is indeed an amazing piece of mechanism when you see- so to speak – the full weakness – of what
he calls – his strength”. (Tradução nossa).
94
Charlotte Brontë, por meio de uma hábil manipulação de estratégias narrativas,
explora a tensão potencial quando duas ou mais personagens, aparentemente
contraditórias por representarem as imagens emblemáticas da distinção entre os gêneros,
são colocadas em um mesmo patamar. Contrariando a tradição de enfocar estereótipos do
feminino e também do masculino, Brontë inova não apenas por criticar abertamente essas
figuras idealizadas e artificiais, mas, sobretudo, por colocar personagens dissonantes em
posição de destaque nas narrativas sem atrelar à sua caracterização um tom moralista.
Dessa forma, pode-se dizer que em todas as quatro obras de Charlotte Brontë existe
um questionamento acerca da performance de gênero que permite melhor entendimento
da visão da autora acerca da subjugação feminina na sociedade vitoriana. Ao enfocar tão
direta e explicitamente o embate de forças entre os ideais de masculinidade e
feminilidade, Brontë possibilita que o paralelismo vigente no século XIX entre sexo e
gênero e a crença em uma suposta essência do feminino capaz de justificar uma postura
submissa da mulher sejam não apenas examinados, como também questionados. Como
resultado tem-se a evidenciação da arbitrariedade da própria ideologia do período e a
inabilidade de muitos em representar seu papel de gênero de forma coesa e condizente
com o esperado.
The Professor, primeiro romance de Charlotte Brontë ainda sem tradução em língua
portuguesa, foi rejeitado nove vezes antes de ser publicado postumamente em 1857. Em
1851, numa carta para o editor George Smith acerca de mais uma rejeição, Brontë
confessa seu receio de que
The Professor não seria conhecido por ninguém, alegando que
talvez o mérito que permeasse o livro não estivesse visível a olho nu (SMITH, 1995, p.
207). Entretanto, as poucas resenhas dessa obra inevitavelmente tendem a ressaltar as
inconsistências e falhas da narrativa, alegando que a mesma não possui grandes méritos e
que sua leitura se justificaria apenas pelo desejo de um estudioso das obras de Charlotte
Brontë em conhecer sua primeira aventura novelística (BEER, 1975; EAGLETON, 1975;
RUTH, 2003; PLASA, 2004). Mas, onde estariam, então, os méritos aos quais Brontë
alude em sua carta? Seria mesmo
The Professor uma obra tão inconsistente e sem apelo
literário algum?
95
Acredito que não e, embora concorde que em alguns momentos The Professor não
apresenta o mesmo vigor e dinamismo que as obras subseqüentes, percebo na narrativa
um elemento importante para o entendimento da visão de Brontë acerca das relações de
gênero e da forma como seriam exploradas nas obras posteriores. Tal elemento
fundamental estaria canalizado na tentativa quase obsessiva do protagonista, William
Crimsworth, em revelar-se exímio leitor do ser feminino, embora se recusasse a ver que
sempre acabava interpretando os signos supostamente femininos de forma errônea.
Lutando arduamente para ler as mulheres ao seu redor de acordo com o código de
conduta e moral com que havia aprendido, William não consegue perceber quão
estereotipada e arbitrária sua visão e suas expectativas são. Quanto mais tenta se
aproximar do ideal de feminilidade que a sociedade valoriza, mais William se angustia ao
reconhecer a incompatibilidade com seus próprios ideais e anseios e, sobretudo, a
artificialidade do modelo imputado à sociedade. Além disso, William também sofre por
ansiar representar o papel masculino de forma condizente com o ideal, não reconhecendo
suas deficiências e inconstâncias ao longo da narrativa.
Enfatizando-se a performance de gênero, a leitura de
The Professor ascende a um
novo patamar. Dessa forma, possibilita-se não apenas vislumbrar os primeiros passos de
Brontë rumo ao questionamento aberto dos papéis sexuais e da subjugação feminina na
sociedade vitoriana, mas também nos convida a rever os clichês e estereótipos rígidos e
auto-excludentes que estamos habituados a usar em relação ao período vitoriano.
A performance de gênero masculina: lendo o signo feminino em The Professor
Um exemplo do gênero
bildugsroman narrado em primeira pessoa, The Professor
pode ser dividido em três grandes etapas, cada qual correspondendo a uma fase no
processo de maturação do protagonista e também, a meu ver, do processo de leitura e
entendimento do paradigma de gênero vigente na sociedade vitoriana. A primeira fase
evidencia a tentativa do protagonista de ganhar a vida seguindo a tradição familiar ao
lado do irmão; a segunda apresenta sua ida para Bruxelas em busca de melhores
condições de vida e seu posterior sucesso como professor em escolas e pensionatos
96
locais; e a terceira fase discute o retorno de William, casado, para a terra natal, onde
leva uma vida próspera ao lado da esposa, do filho e do melhor amigo.
A narrativa começa com William Crimsworth escrevendo uma carta para o único
amigo que fez durante seus anos em Eton, relatando que após sair da instituição, sem
saber o que fazer da vida, acaba recusando duas ofertas de seus tios: a de se ingressar na
vida religiosa e a de contrair matrimônio com uma de suas primas e decide tentar a vida
junto ao irmão. Embora desprovido de meios básicos para prover por si mesmo, William
considera-se superior ao irmão e também a todos ao redor, julgando-os pelo som
desagradável da fala, que a seu ver denota uma inferioridade intelectual e cultural
(BRONTË, 1995, p. 1060).
Em
The Professor o mundo nos é oferecido sob a ótica por vezes cruel de William,
que apesar de ser um típico sujeito na periferia do sistema (
outsider) por ser órfão,
sozinho, desprovido de recursos financeiros consistentes e exilado, boa parte da narrativa,
em terras estrangeiras, julga-se superior em sua formação acadêmico-intelectual. Além
disso, William piamente acredita que essa bagagem cultural lhe possibilita ter acesso a
detalhes e nuances que passariam despercebidas aos olhos menos treinados dos outros.
Sua postura tende a ser sempre crítica, principalmente em relação ao feminino e ele
tender a fazer de seu discurso o do dominador, do senhor, mesmo quando se encontra de
fato em posição social inferior em relação aos outros homens.
Mas que tipo de olhar é esse apresentado por William Crimsworth? Estaria ele em
consonância com o ideal do período? Não seria um olhar paródico visto que provinha de
um ser “míope” (BRONTË, 1995, p. 1042), que tinha em alta conta sua própria
capacidade de ler além da superfície, de poder identificar nuances e sutilezas que
passariam despercebidas a outros olhos, mas que sempre acabava incorrendo em erros de
julgamento? Na realidade, podemos observar que o olhar de William muda de acordo
com cada etapa de sua jornada e mesmo quando o protagonista almeja evidenciar certo
senso de superioridade, sua leitura acaba revelando muito mais uma dificuldade de lidar
com o que foge do ideal e do padrão que ele esperava encontrar. De fato, podemos dizer
que o olhar desempenha papel fundamental em todas as obras de Brontë, sendo inúmeras
as passagens nas quais as personagens dão vazão ao ato de observar, de olhar e se
97
estiverem perdidas num transe hipnótico, se vêem propelidas a exteriorizar suas
observações e críticas.
Quando reencontra o irmão após 10 anos de ausência e é apresentado à sua
cunhada, a primeira coisa que William faz é escrutiná-la da cabeça aos pés em busca de
algo mais consistente do que simples beleza e graça. Os traços fisionômicos e a voz com
uma expressão infantil são, de acordo com William, “uma graça aos olhos de Edward e
seriam também para a maioria dos homens, mas não para mim. Procurei seus olhos,
desejando ler neles a inteligência que não pude discernir em sua face nem ouvir em sua
fala” (BRONTË, 1995, p. 1061).
70
O que segue é uma extensa descrição da compleição
física da mulher, enfatizando todos os detalhes que a ele lhe parecem desagradáveis ou
simplesmente fúteis e, com base nesse julgamento, William predispõe-se a não gostar da
cunhada e fica mais do que grato quando seu irmão lhe proíbe de qualquer tentativa de
aproximação familiar.
Entretanto, o que William não enfatiza é que ele não se deu ao trabalho de
efetivamente conversar com essa mulher para encontrar os tão desejados traços de
inteligência a que refere: o que ele ouve são apenas comentários da cunhada com os
serviçais. Não estaria William, então, prejulgando o primeiro exemplar feminino
apresentado na narrativa com base em sua relação fria com o sexo masculino encarnado
na figura do irmão? Uma vez que o irmão, perante os olhos da sociedade, seria
efetivamente o detentor do papel de senhor, poderíamos pressupor que ele serviria de
modelo para a inserção social do protagonista, mas é justamente o contrário que Brontë
nos oferece.
Embora William alegue saber que seu irmão não era dado a demonstrações de
sentimento, ele também não esconde que tinha esperanças nesse reencontro, visto que
havia rompido com seus tios e sabia que tal ato agradaria profundamente a Edward.
William chega mesmo a expressar, em sua carta ao amigo de Eaton, que ansiava não
“encontrar severo desapontamento” (BRONTË, 1995, p. 1059)
71
, mas quando o
momento de rever seu irmão chega, ao invés de uma recepção amistosa, Edward se limita
70
“[…] a charm in Edward’s eyes, and would be so to those of most men, but they were not to mine. I
sought her eyes, desirous to read there the intelligence which I could not discern in her face or hear in her
conversation”. (Tradução nossa).
71
“[…] of encountering severe disappointment”. (Tradução nossa).
98
apenas a observá-lo dos pés à cabeça, mostrando estar descontente com o que via e
tratando-o com a maior frieza.
O que se tem nesse momento é um William diferente daquele que se posicionara de
forma superior e escrutinizadora em relação à cunhada. Embora afirmasse estar orgulhoso
de sua capacidade de suportar o olhar de Edward com altivez e sem demonstrações de
fraqueza, William indaga se encontraria na figura da cunhada alguém diferente com
quem se sentiria confortável para “revelar algo de minha real natureza” (BRONTË, 1995,
p.1059).
72
Pode-se depreender dessa fala que William, apesar de agir conforme os
ditames sociais na maior parte do tempo, mostrando-se altivo e refreando sentimentos
que poderiam ser interpretados como fraquezas em sua constituição masculina, na
verdade não se sentia confortável nesse papel. Alguns críticos apontam que, na verdade,
William tende a ser a personagem masculina de características mais femininas que Brontë
criou (HOEVELER e JADWIN, 1997; PLASA, 2004), sendo mesmo tido como
“curiosamente andrógino” (GILBERT e GUBAR, 1984, p. 319).
73
Não compactuo
totalmente com essa visão, a meu ver, reducionista da personagem, uma vez que
simplesmente dizer que William é afeminado em sua caracterização não contribui para a
discussão sobre os papéis de gênero apresentada por Brontë. Em outras palavras, mais
interessante e relevante do que afirmar que William poderia ser entendido como um
protagonista afeminado para a época é acompanhar a sua mudança de postura em relação
à dicotomia de gênero apresentada pela personagem durante as três etapas da narrativa. O
ponto final nos apresentará um William menos severo no olhar, mais complacente com as
figuras femininas e mais consciente de suas próprias fraquezas e inconsistências.
Na primeira parte da narrativa, então, William vale-se de seu olhar crítico e mordaz
como forma de proteção, um escudo contra uma realidade que ele percebia não ser
atraente a seus olhos, nem promissora de acordo com seus anseios. Apesar de ter
proposto seguir a carreira do irmão para ganhar a vida, William sabe que até aquele
momento sua vida tinha girado em torno das expectativas e anseios de terceiros, primeiro
de seus tios, depois de Edward. Sua formação intelectual adquirida na renomada Eton e
que várias vezes seria usada por William na narrativa como justificativa para seus
72
“[…] to show something of my real nature”. (Tradução nossa).
73
“[…] curiously androgynous”. (Tradução nossa)
99
comentários mordazes, provaria ser de pouca serventia prática ao regressar para casa. De
fato, pode-se mesmo questionar se a formação intelectual havia sido tão sólida e
producente assim, visto que na carta usada como introdução à narrativa, não se entrevê
nenhum sinal de tristeza por ter deixado a zona de conforto experimentada em Eton.
também o indício de que William não teria sido aluno brilhante e figura popular durante
esse tempo. Ao encontrar-se com Edward, as perspectivas de inserção social com o
auxílio do irmão se mostram improváveis visto que o irmão deixa bem claro que não
pretende auxiliá-lo de nenhuma forma e que sua relação deve ser estritamente
profissional.
Sob essa ótica, William destoa do clichê de masculinidade que tradicionalmente
atrelamos à sociedade vitoriana: não é descrito como o homem seguro de si, poderoso e
influente, capaz de prover por si e por sua família, tampouco é uma figura totalmente
avessa a demonstrações de sentimentos. Na verdade William reconhece em si um
espécime inferior face os outros homens, principalmente em relação ao seu ideal de
masculinidade, Edward, como a citação abaixo nos mostra:
Olhei para ele: medi sua constituição robusta e proporções poderosas; vi
meu próprio reflexo no espelho sobre a lareira; me diverti comparando essas
duas figuras. Na fisionomia parecia com ele, embora não fosse tão belo;
meus traços eram menos regulares; [...] em corpo eu era imensamente
inferior – mais magro, mais fraco, mais baixo. Enquanto animal, Edward
me superava de longe e se provar ser tão superior em intelecto quanto em
físico serei seu escravo […] Teria eu então força intelectual para enfrentá-
lo? Eu não sabia; nunca tinha experimentado (BRONTË, 1995, p. 1064).
74
Por reconhecer-se inferior em relação a Edward e por saber que não poderá contar
com ele, William canaliza suas frustrações parodiando a figura masculina do irmão. Para
tentar se reconhecer no papel masculino tradicional, William assume uma postura mordaz
face o sexo feminino, único grupo com o qual ele poderia sentir-se superior e assim
exercer o poder tal como Edward. Não digo com isso, entretanto, que William busca se
pautar exatamente pelo mesmo padrão do irmão no sentido de agir como ele, mas que
anseia em ver-se inserido no meio de forma plena, podendo gozar das prerrogativas que a
74
“I looked at him: I measured his robust frame and powerful proportions; I saw my own reflection in the
mirror over the mantel-piece; I amused myself with comparing the two pictures. In face I resembled him,
though I was not so handsome; my features were less regular […] in form I was greatly inferior--thinner,
slighter, not so tall. As an animal, Edward excelled me far; should he prove as paramount in mind as in
person I must be a slave—[…] Had I then force of mind to cope with him? I did not know; I had never been
tried”. (Tradução nossa).
100
ideologia de gênero garantia ao sexo masculino na sociedade vitoriana. Mas uma vez que
William se vê inicialmente motivado pela frustração e pelo rancor de não ser tratado com
mais dignidade por parte do irmão, suas primeiras tentativas de representação do ideal de
masculinidade são frustrantes e paradoxais. Assim, por mais que anseie pela companhia
feminina para mostrar-se capaz de “sentir e verbalizar o prazer do contato social – que eu
não era, em suma, um bloco, uma peça de mobiliário, mas um homem de ação, pensante
e com sentimento” (BRONTË, 1995, p. 1066)
75
, o resultado é um fracasso. William
apresenta muito mais uma figura “cansada, solitária, reservada, como a de um tutor ou de
uma governanta desolada” (BRONTË, 1995, p. 1066)
76
. Essa atitude inevitavelmente
afasta as representantes do sexo feminino, ao mesmo tempo em que profundamente
agrada Edward por ver a frustração estampada nos olhos do irmão.
William continuará tentando emular Edward, sempre de forma fracassada, até
quando, cansado da frieza do irmão, decide tentar a vida em outro lugar, longe de seu
olhar castrador e repressor. Nem mesmo as tentativas de aproximação e ajuda de
Hunsden, parceiro comercial de Edward que simpatiza com a figura de William, são
capazes de mudar sua cabeça e ele decide partir. De fato, Hunsden parece ser a única
personagem capaz de acessar o íntimo de William,verbalizando tudo que ele luta para
esconder ou disfarçar. Hunsden chega mesmo a dizer que William deve deixar de lado
sua postura arrogante, sarcástica e pretensiosa perante Edward uma vez que ele não
detinha nenhum poder, não poderia alterar em nada o curso das coisas, nem possuía
possibilidades concretas de contrair uma união vantajosa que lhe garantisse melhor status
e provento (BRONTË, 1995, p. 1075). Mais do que isso, Hunsden é bastante incisivo em
apontar para William a falta de aplicabilidade prática de tudo aquilo que ele mais valoriza
em si em oposição à Edward: “talvez você se considere inteligente e polido; leve seu
intelecto e refinamento para o mercado e me diga em bilhete pessoal qual o valor deles”.
(BRONTË, 1995, p. 1075).
77
Entretanto, parece ser um paradoxo a ênfase atribuída por William à sua formação
intelectual e o fato de que ele viria a se tornar renomado professor em terras estrangeiras
75
“[…] feel and communicate the pleasure of social intercourse--that I was not, in short, a block, or a piece
of furniture, but an acting, thinking, sentient man”. (Tradução nossa).
76
“ […] weary, solitary, kept down like some desolate tutor or governess”. (Tradução nossa).
77
“You think perhaps you look intelligent and polished; carry your intellect and refinement to market, and
tell me in a private note what price is bid for them”. (Tradução nossa).
101
ao se levar em consideração que Brontë afirma no prefácio da obra sua intenção de criar
um protagonista capaz de prover por si mesmo sem usufruir da ajuda de ninguém:
Eu disse a mim mesma que meu herói deveria trabalhar para ganhar
a vida como eu tinha visto homens reais ganhando a deles – que ele
nunca deveria ter um tostão que não fosse ganho por ele – que
nenhuma mudança repentina o trouxesse dinheiro e status; que por
menor que fossem suas posses, deveriam ser ganhas com o suor do
seu rosto; que antes de encontrar um repouso, ele deveria galgar pelo
menos metade da “Montanha da Dificuldade,” que ele não deveria
nem mesmo se casar com uma dama bela ou de posição (BRONTË,
1995, p. 5)
78
Embora sua intenção tenha sido oferecer uma personagem masculina mais auto-
suficiente, na prática William se encontra distante dessa idealização: ele revela-se muito
mais fraco do que forte, tanto física quanto emocionalmente. É preconceituoso com os
outros ao seu redor, tanto homens quanto mulheres, não ganha a vida com o suor do seu
trabalho, mas muito mais através de num golpe de sorte ao ser nomeado professor de um
pensionato e, apesar de efetivamente não casar-se com uma mulher de posição, deseja
imensamente que isso aconteça, pelo menos em boa parte da narrativa. William chega
mesmo a ter sua honra questionada por Hunsden que jocosamente diz que a ele só restaria
ser resgatado da situação humilhante na qual se encontrava por uma mulher: “sua única
chance de ganhar prestígio está em casar-se com uma viúva rica ou fugir com uma
herdeira” (BRONTË, 1995, p. 1053)
79
. Obviamente a escolha das mulheres com as quais
William poderia se envolver também revela sua inadequação, visto que ele, como
demonstrado, não estaria apto a contrair um casamento vantajoso escolhendo para futura
esposa uma jovem bela, cândida e de posses. A ele lhe restava desposar uma viúva ou
contentar-se em viver com uma mulher numa relação que perante a lei não teria validade
alguma.
Por mais que tentasse denotar um aparente poder sobre as mulheres por encontrar-
se na posição de mestre, de professor e por mais que contasse com a ajuda e intercessão
78
“[…] I said to myself that my hero should work his way through life as I had seen real living men work
theirs--that he should never get a shilling he had not earned--that no sudden turns should lift him in a
moment to wealth and high station; that whatever small competency he might gain, should be won by the
sweat of his brow; that, before he could find so much as an arbour to sit down in, he should master at least
half the ascent of "the Hill of Difficulty;" that he should not even marry a beautiful girl or a lady of rank”.
(Tradução nossa).
79
“[…] your only chance of getting a competency lies in marrying a rich widow, or running away with an
heiress”. (Tradução nossa).
102
de amigos poderosos e influentes como Hunsden e Vandenhutte para crescer
profissionalmente, William sofria por reconhecer-se inferior em relação ao seu irmão, e
também em relação aos outros homens. Dessa forma, William não pode ser entendido
com uma personagem masculina forte segundo os padrões da época. Nesse sentido, até
mesmo a aparente emasculação da personagem (GILBERT e GUBAR, 1984;
HOEVELER e JADWIN, 1997; PLASA, 2004) ganha novo sentido podendo se
entendida menos em termos depreciativos e mais como uma escolha consciente da autora,
objetivando chamar a atenção do leitor para a arbitrariedade não apenas da visão
machista de William em relação às mulheres, mas também para a artificialidade presente
no próprio ideal de masculinidade do período.
O contraponto entre figuras masculinas idealizadas em conformidade com o padrão
vitoriano fica ainda mais intrigante quando se coloca Hunsden e Crimsworth lado a lado.
Ambos parecem ser ao mesmo tempo complementares e ambivalentes: os dois
apresentam um histórico familiar glorioso, mas enquanto William luta por encontrar seu
lugar ao sol sem sucesso, Hunsden é um
bom vivant. Ambos apresentam certo apelo
emocional em sua constituição, mas enquanto William reluta em exibir esse traço em
público, Hunsden vale-se dele de forma agressiva para conseguir o quer. Ambos anseiam
encontrar uma mulher que lhes incite o prazer intelectual e não apenas o estético, mas
Hunsden possui um senso prático, preferindo permanecer solteiro a abrir mão de suas
convicções e talvez seja esse senso prático de Hunsden que mais o difira do protagonista.
De fato, William narra suas memórias de um ponto de vista muito peculiar, como se
vivesse num mundo seu, numa realidade na qual suas limitações haviam sido
apagadas, como num passe de mágica, dando lugar a um homem resoluto, vigoroso,
poderoso e indispensável, capaz de gozar das mesmas prerrogativas que Hunsden e
Edward tinham livremente. Entretanto, enquanto Hunsden parece reconhecer suas
limitações, William faz do engodo sua marca e não apenas busca representar algo que
não é, como também reluta em admitir o quanto sua representação de masculinidade se
revela paródica aos olhos do leitor.
Talvez esteja aí o problema central de entendimento da obra e, sobretudo, da
personagem, fato esse que pode justificar sua rejeição. Muito provavelmente a
caracterização de William como um protagonista absurdamente ingênuo em sua leitura de
103
mundo tenha sido tomada ao da letra pelos editores e também pelos críticos
contemporâneos de Brontë. Nesse sentido, William não seria um bom modelo de
masculinidade a ser apresentado. Provavelmente, também, as aparentes inconsistências
narrativas da obra a presença do narrador que não consegue sustentar uma posição de
poder e uma constância de ação nem mesmo quando narra suas memórias contribuíram
para que
The Professor fosse visto como uma tentativa mal-lograda por parte de Brontë
de representar o masculino.
Entretanto, insisto ser difícil crer que Brontë teria se deixado incorrer em falhas na
construção das personagens em
The Professor, principalmente se levarmos em
consideração suas obras subseqüentes nas quais as personagens possuem nuances e
sutilezas que não passam despercebidas aos olhos de leitores e críticos. A meu ver,
Brontë deliberadamente constrói William como um narrador não confiável, mas,
sobretudo, um protagonista absurdamente inconsistente de suas características
masculinas. Se a obra parece não ter muita ação, nem muita mobilidade, isso acaba por
evidenciar a estranheza potencialmente causada quando um protagonista do sexo
masculino não consegue sustentar o tipo de discurso vigoroso, ágil e coerente,
tradicionalmente associado à voz masculina. Talvez seja mesmo por isso que a narrativa
parece deixar o leitor em suspense, como se ele estivesse esperando o momento no qual
William se rebelaria contra sua própria subjugação e assumiria as rédeas da sua vida
como um típico exemplar masculino vitoriano. Porém, num padrão que se repetiria em
suas outras obras, Brontë parece extrair prazer em frustrar, de certo ponto, as expectativas
dos leitores.
Quando sua dificuldade chega então ao limite e William parece não mais tolerar sua
posição de quase escravo do irmão, sem usufruir daquilo que mais aprecia e se orgulha
que é sua formação intelectual, William busca algo novo para si. Nesse momento
Hunsden sugere uma viagem para a Bélgica acompanhada de uma carta de recomendação
para obter alguma posição profissional e William aceita imediatamente. Na Bélgica,
embora não fosse sua intenção original, acaba obtendo a posição de professor de inglês
num pensionato para rapazes, e é justamente em terras estrangeiras que William
Crimsworth mais se revelará ingênuo em suas crenças e leituras e mais paródico em sua
representação de masculinidade.
104
Ao ouvir pela primeira vez o título pelo qual será conhecido a partir daquele
momento, William automaticamente reage dizendo “eu não sou mestre” (BRONTË,
1995, p. 1066)
80
sendo então apaziguado por seu benfeitor que explica que o termo se
refere simplesmente à ocupação de professor na Bélgica. A reação de William é relevante
no sentido que, mais uma vez, revela a dicotômica relação de poder experimentada pelo
protagonista que se julga superior aos demais homens e, sobretudo às mulheres, mas que
se assusta quando lhe é imputado um título que a seus olhos denota uma posição superior,
de domínio, de poder não apenas intelectual, mas também social.
Ao postar-se perante os alunos pela primeira vez, sem ter tido oportunidade de se
preparar por uns dias como ele mesmo gostaria, a primeira reação de William é de crítica:
o tom e a pronúncia de seus alunos parecem ferir-lhe os tímpanos e, embora apenas
algumas horas antes William tivesse desejado expressar-se com a mesma desenvoltura
em francês ao ouvir uma conversa alheia, agora ele se mostra absurdamente arrogante e
intransigente. Seu único comentário é “eles não estavam satisfeitos, percebi, mas eles
estavam impressionados e da forma como eu gostaria que estivessem” (BRONTË, 1995,
1068).
81
Tal afirmação, que poderia passar despercebida, tende a acentuar mais uma vez
a inadequação da representação de masculinidade de William, que insiste em representar
o papel do exemplar masculino superior, forte, impassível, mesmo quando as situações
não são favoráveis. Ele não possui bom domínio do idioma dos alunos, nunca havia
exercido aquela função antes e não havia tido tempo para se preparar como desejava, e
por isso decide avaliar os alunos rapidamente de forma a não ficar numa posição
comprometedora, de avaliação e julgamento de suas próprias falhas. Mesmo assim, e
apesar de certa relutância em se expor demais, ele afirma “[...] quase não ousei falar por
medo de revelar minhas próprias deficiências” (BRONTË, 1995, p. 1069).
82
Apesar
disso, William acredita que sua representação é convincente o suficiente para garantir-
lhe, talvez pela primeira vez, o exercício do poder de fato. Contrariando o modelo
imputado por Edward, William pretende apresentar-se como o ideal a ser seguido por
aqueles jovens rapazes:
80
“[…] I am not a professor”. (Tradução nossa).
81
“[…] they were not pleased, I saw, but they were impressed, and in the way I wished them to be”.
(Tradução nossa).
82
“[…] I hardly dared to speak for fear of betraying my own deficiencies”. (Tradução nossa).
105
[...] e eu esforcei-me por incorporar ao meu sotaque o tom
compassivo de um ser superior, que, tocado pelo extremo
desamparo, que de início apenas excitou seu escárnio,
concede em seguida o auxílio (BRONTË, 1995, p. 1069)
83
A representação de masculinidade de William é tão falha que ele tende a ser a
personagem masculina de Brontë que na prática menos ameaça a autonomia feminina.
Por mais cruéis e mordazes que suas visões sobre o feminino se revelem, ele não exerce
perigo em potencial para essas mulheres, sobretudo para aquela com quem acaba se
unindo. Seus primeiros contatos com os exemplares femininos após tornar-se professor
são no mínimo peculiares e marcados por sua frustração em relação ao sexo oposto.
Inicialmente desilude-se ao perceber que a janela de seu quarto que dava para o jardim do
pensionato de meninas encontrava-se lacrada por questões de decoro. Entretanto, William
rejubila-se ao saber das intenções de Madame Zoraide Reuter, diretora do pensionato de
meninas e noiva de seu empregador atual, em contratá-lo para ministrar aulas para as
jovens que ele tanto desejava observar. Zoraide apresenta-se como um enigma, um livro
que William quer decifrar, pois não se parece com o que esperava encontrar numa
mulher:
lendo a natureza feminina tal como representada na poesia e na ficção,
poder-se-ia pensar que ser constituída de sentimento, [...] aqui está um
exemplar, dos mais sensatos e respeitáveis também, cujo principal
ingrediente é o raciocínio abstrato (BRONTË, 1995, p. 1098).
84
Ao estabelecer um contraponto entre a figura de Zoraide e a idealização comumente
oferecia pela literatura, Brontë nos faz entrever dois fatos importantes. Primeiro, a autora
não compactua com a idealização da mulher na literatura, com personagens femininas
reconhecidas por seus sentimentos, sua abnegação e notória falta de inteligência, mas
também não adere à idealização da figura masculina como sendo invariavelmente forte e
superior. Segundo, faz coincidir sua postura crítica com a voz contraditória e não muito
resoluta de um protagonista do sexo masculino que se revelara um narrador não muito
confiável e convincente, mas que mesmo não ganhando a simpatia dos leitores, nem se
83
“[…] and I endeavored to throw into my accents the compassionate tone of a superior being, who,
touched by the extremity of the helplessness, which at first only excited his scorn, deigns at length to
bestow aid”. (Tradução nossa).
84
“[…] to read of female character as depicted in Poetry and Fiction, one would think it was made up of
sentiment [...] here is a specimen, and a most sensible and respectable specimen too, whose staple
ingredient is abstract reason”. (Tradução nossa).
106
mostrando superior em seu próprio meio, age como se fosse um semideus perante as
mulheres.
Qual seria então o efeito dessa crítica? Provavelmente o de acentuar a arbitrariedade
e artificialidade da própria expectativa de que a mulher deveria ser sensível e desprovida
de intelecto, crença essa corroborada pela ideologia do período, conforme discutido
anteriormente. William poderia simplesmente ter aludido à inteligência de Zoraide sem
trazer a literatura à tona, mas muito da crítica de Brontë se perderia nesse sentido, pois
como bem sabemos a literatura se prestava muitas vezes a reforçar os ideais de decoro,
inocência, beleza e candura típicos para as mulheres. Poder-se-ia alegar, entretanto, que a
afirmação não é tão direta e clara assim, podendo passar despercebida por muitos leitores.
Acredito que ela passou e ainda passa despercebida por muitos. Mesmo assim, não
podemos negar que Brontë começa a dar indícios do estilo narrativo que adotaria nas
obras subseqüentes. Nelas as críticas à ideologia do feminino na sociedade vitoriana
seriam por vezes apresentadas de forma sutil, oriundas de personagens secundárias ou
mesmo inicialmente representativas do ideal, mas sempre procurando trazer a
contribuição da literatura na perpetuação da subjugação feminina para discussão.
Qual é o efeito da natureza assertiva e resoluta de Zoraide sobre William? Mais do
que um enigma que ele quer decifrar, Zoraide passa a ser o objeto secreto dos desejos do
narrador que acredita piamente que ela está encantada com sua figura superior. Ledo
engano o de William, pois, mais uma vez, sua inabilidade de ler os sinais femininos será
evidenciada. De forma semelhante às moças casadoiras tradicionais dos romances da
época, podemos acompanhar o protagonista fazendo planos de união com Zoraide, ao
mesmo tempo em que se desencanta cada vez mais com o que vê nas suas alunas, que aos
seus olhos são interesseiras, manipuladoras e vis. Quanto mais afirma sua aversão ao
padrão de comportamento das moças do pensionato, cujos movimentos pareciam sempre
motivados pelo interesse de ganhar a atenção masculina e, consequentemente, contrair
um bom matrimônio, mais William admira e venera Zoraide, exultando seu intelecto,
decoro e assertividade. Ele chega mesmo a expressar que preferiria casar-se com um
exemplar da estirpe de Zoraide do que com as garotas fúteis do pensionato:
a idéia de me casar com uma bela boneca, ou com uma ingênua,
sempre foi abominável para mim: sei que uma bela mulher, uma doce
mulher, pode ser o suficiente para a lua de mel, mas quando o fogo da
paixão esfriar, que horrível encontrar um monte de cera e madeira
107
deitado em meu peito, uma idiota envolta em meus braços e
lembrar que eu a tomei por minha igual [...] saber que eu deverei
passar o resto da minha miserável vida com uma criatura incapaz
de entender o que eu digo, de apreciar o que penso, ou de simpatizar
com o que sinto (BRONTË, 1995, p. 1107).
85
Entretanto, apesar de fantasiar com Zoraide e idolatrá-la por ela apresentar intelecto
e assertividade, coisas que ele prezava tanto, William acaba descobrindo que ela não
apenas não está interessada nele, como também se encontra de casamento marcado com
M. Pelet, diretor do pensionato de rapazes, fato esse até então desconhecido por ele. Sua
reação imediata vem na forma de um desejo de vingança, como se estivesse ultrajado em
sua masculinidade e, quando questionado por Zoraide se aceitaria ser uma espécie de
tutor da jovem Frances Henri, órfã e destituída como ele, William aceita objetivando
fazer o possível para ferir a diretora através de sua postura ferina e quase cruel com
Frances. O que William não pode prever nesse momento é que acabará se aproximando
de Frances, se apaixonando por ela e sofrerá a suposta ira de Zoraide que demite Frances
sem razão aparente, reforçando ainda mais o desejo de vingança do protagonista que faz
o possível para reencontrá-la.
Pode-se dizer que a desilusão com Zoraide e a aproximação de Frances operam uma
mudança no olhar do narrador, que chega mesmo a admitir sua falha de interpretação em
relação às mulheres: “o que sabia eu da natureza feminina antes de chegar a Bruxelas?
Muito pouco. E qual era minha noção dela? Algo vago, superficial, diáfano, radiante;
agora que entro em contato com ela descubro ser de uma substância palpável o
suficiente” (BRONTË, 1995, p. 1101).
86
Em outras palavras, se antes a visão de William
compactuava com a idealização da figura feminina, agora ele se diante da percepção
de que as mulheres são muito mais concretas e assertivas. Nesse momento, o olhar do
protagonista parece se voltar sobre si mesmo de forma consciente pela primeira vez desde
que começou a encarnar o papel do ser superior, e William acaba por reconhecer sua
própria condição socialmente inferior perante a sociedade: “[...] uma angústia nova para
85
“[…] the idea of marrying a doll or a fool was always abhorrent to me: I know that a pretty doll, a fair
doll, might do well enough for the honeymoon, but when the passion cooled, how dreadful to find a lump
of wax and wood laid in my bosom, an idiot clasped in my arms, and to remember that I made of this my
equal […] to know that I must pass the rest of my dreary life with a creature incapable of understanding
what I said, of appreciating what I thought, or of sympathizing with what I felt”. (Tradução nossa).
86
“What had I known of female character previously to my arrival at Brussels? Precious little. And what
was my notion of it? Something vague, slight, gauzy, glittering; now when I came into contact with it I
found it to be a palpable substance enough”. (Tradução nossa).
108
mim, perpassou meu coração: era a dor da mortificação de toda a humildade de minha
posição e da inadequação de meus meios” (BRONTË, 1995, p. 1139).
87
Mas quem é Frances Henri e por que ela consegue alterar a postura do protagonista
perante o sexo feminino? Em linhas gerais, pode-se dizer que Frances é o oposto de
Zoraide e a precursora da típica figura feminina que Brontë viria a acentuar em suas
obras subseqüentes. Órfã, destituída de posses materiais, sozinha numa terra estranha,
Frances é o protótipo da mulher que teria tudo para passar despercebida na narrativa.
Entretanto, Frances tem duas qualidades que William admira mais do que tudo, que são a
inteligência e a sede de aprender, mesmo que em condições adversas e assim acaba não
apenas aceita por William como sua aluna, mas, sobretudo conquista, pouco a pouco, a
indulgência e o amor do mestre.
No início William objetiva medir Frances com o mesmo olhar com o qual se
decepcionou com Zoraide e com as garotas do pensionato, mas quando percebe que ela
suportava a dureza do seu olhar e de seus comentários sem denotar sofrimento nem falsa
abnegação, William acaba suavizando sua postura e seu olhar com a aluna. De fato,
William reconhece em Frances a postura determinada e assertiva perante as dificuldades
que ele mesmo não demonstrou quando subjugado por Edward. Em outras palavras,
enquanto William sofre calado a ira e a humilhação imposta pelo irmão e depende de
outros para tentar ganhar a vida de forma mais condizente com sua auto-imagem, Frances
assume as rédeas de sua vida. Determinada a aprender um ofício que lhe era tedioso com
o intuito de prover por si mesma e garantir a realização de um sonho distante, Frances
insinua que deseja ser independente:
Monsieur
, eu implorei para que minha tia me ensinasse a
tecer assim que vim para Bruxelas, porque sabia que era um
métier, uma ocupação fácil de aprender e que com a qual
poderia ganhar algum dinheiro.Eu aprendi em poucos dias e
rapidamente consegui trabalho […]. Ganhei pouco dinheiro,
e com esse dinheiro paguei pelos estudos que mencionei; um
pouco gastei comprando livros, principalmente de inglês; em
breve tentarei obter uma posição de governanta, ou
professora, quando puder escrever e falar bem o inglês; […]
“j'ai mon projet”, ela disse em voz baixa (BRONTË,
1995, p. 1122).
88
87
“[...] a pang new to me shot across my heart: it was a pang of mortification at the humility of my
position, and the inadequacies of my means […]”. (Tradução nossa).
88
“Monsieur, I begged my aunt to have me taught lace-mending soon after we came to Brussels, because I
knew it was a
métier, a trade which was easily learnt, and by which I could earn some money very soon. I
109
Porém, é como se o olhar de William ainda estivesse pautado pela idealização e
sempre que se refere à Frances, mesmo quando acentuando sua aparente inferioridade
intelectual face ao mestre, fica no ar a impressão de que ele não se permite ler a amada
claramente, muito menos revelar tudo acerca dessa mulher sem sentir-se incomodado
pelo que vê. Essa impressão fica mais nítida quando Frances é apresentada a Hunsden.
Nessa cena, William assume a posição que poderia ser a de um mero espectador, num
canto da sala, enquanto a amada e o amigo se engajam numa conversa animada. Mas de
fato, o que temos é um protagonista excluído da conversa, como se nem mesmo estivesse
presente no recinto, como se mais uma vez sua representação de masculinidade não se
sustentasse perante outro homem capaz de melhor entreter uma mulher. William se
resume a acompanhar a animada conversa dos dois e a admirar a transformação sofrida
por Frances perante seus olhos, que se mostra cada vez mais alegre, articulada e
preparada para discutir qualquer assunto: “ela agora me parecia linda; antes, ela apenas se
assemelhava a uma dama” (BRONTË, 1995, p. 1174).
89
Quando William percebe em Frances uma outra faceta que até então se encontrava
oculta, a narrativa faz coincidir também certo silenciamento do protagonista e uma maior
auto-afirmação por parte de Frances, que não apenas começa a aparecer mais ágil e
assertiva– chegando mesmo a obter uma excelente colocação profissional um pouco antes
de William perder seus dois empregos mas também começa a verbalizar abertamente o
que espera de sua união com Crimsworth, caso ele não aceite que ela continue a trabalhar
e prover por si mesma:
Pense em mim me casando com você para ser mantida por
você,
Monsieur! Eu não poderia fazer isso; e quão monótonos
meus dias seriam! Você estaria sempre fora, ensinando [...] e
eu ficaria em casa, desempregada, e solitária. Eu ficaria
deprimida e rabugenta, e você logo se cansaria de mim!
(BRONTË, 1995, p. 1165).
90
learnt it in a few days, and I quickly got work, […]. I earned money a little, and this money I grave for
lessons in the studies I have mentioned; some of it I spent in buying books, English books especially; soon
I shall try to find a place of governess, or school-teacher, when I can write and speak English well; […] j'ai
mon projet," she added in a lower tone”. (Tradução nossa).
89
“[…] she now looked pretty; before, she had only looked lady-like”. (Tradução nossa).
90
“Think of my marrying you to be kept by you, Monsieur! I could not do it; and how dull my days would
be! You would be away teaching […] and I should be lingering at home, unemployed, and solitary; I
should get depressed and sullen, and you would soon tire of me!” (Tradução nossa).
110
Percebo certa ironia durante todo o episódio do pedido de casamento, que parece
insinuar a comicidade do esforço de William em manter-se altivo e senhoril quando
acaba de obter novo emprego, sem saber ao certo se teria êxito na nova empreitada.
Frances também parece mostrar ironia, como se estivesse suavizando suas intenções de
modo a levar William a crer que ele era e permaneceria o senhor da relação. Essa ironia
me é sugerida inicialmente pela menção de que William a teria colocado sobre seus
joelhos, mantido-a nessa posição, valendo-se de sua força, questionado os sentimentos
que ela nutria por ele e, quando obtém um silêncio como resposta, demonstra sinais
visíveis de alteração no seu habitual autocontrole. Quando a situação já está tensa e difícil
o suficiente para William declarar-se e propor casamento, Frances imediatamente começa
a dialogar com ele em francês e quando a resposta finalmente é oferecida e o pedido de
casamento aceito, todo o suposto clima de romantismo e intimidade se esvai. O que se
tem na seqüência são discussões mais pragmáticas, envolvendo inclusive o quanto cada
um ganhava em sua profissão.
Em outras palavras, o relacionamento entre Frances e William começa a se
desenrolar, morosamente, por volta do capítulo XIV, e agora, no capítulo XXIII, num
momento que tinha tudo para ser romântico pelos padrões literários tradicionais, uma
reversão de tom. Tem-se, então, Frances desencadeando toda uma discussão financeira
que frustra o prazer que William tem em imaginar-se capaz de ser o pleno senhor no
sentido de prover por si e também por sua futura esposa: “existe algo deleitoso no poder
masculino, algo consoante com seu orgulho decente, na idéia de tornar-se o provedor
daquilo que ama alimentando-a e vestindo-a, como Deus faz com os lírios no campo”
(BRONTË, 1995, p. 1164).
91
Quando William tenta desencorajá-la a continuar
trabalhando, pois estaria ganhando uma quantia, embora modesta, suficiente para prover
pelos dois de forma simples, a resposta de Frances é, no mínimo, irônica: “quão rico você
é,
monsieur! [...] três mil francos [...] enquanto eu ganho apenas mil e duzentos [...]”
(BRONTË, 1995, p. 1164).
92
91
“[…] there is something flattering to man’s strength, something consonant to his honorable pride, in the
idea of becoming the providence of what he loves – feeding and clothing it, as God does the lilies of the
field”. (Tradução nossa).
92
“[…] how rich you are, monsieur! […] three thousand francs! [….] while I get only twelve hundred
[…]”. (Tradução nossa).
111
Além da explícita crítica à diferença salarial entre os sexos, a postura de Frances e
sua fala estão imbuídas de um tom jocoso em relação ao protagonista. William parece
não perceber que para Frances seu orgulho ao enfatizar o salário e a possibilidade de
crescimento financeiro e profissional não passa de uma afirmação vazia, destituída de
peso e de valor. É interessante observar a estratégia utilizada por Brontë nesse momento.
Para obter a garantia de que continuará a exercer sua profissão, Frances lança mão da
idealização que William conhece, reforçando que ele ficaria desapontado e desiludido ao
reconhecer na sua esposa um mero adorno do lar. Ao invés de iniciar uma discussão
acalorada, Frances momentaneamente compactua com o teatro de William, se faz passar
pela futura esposa abnegada e preocupada com o bem-estar do esposo e leva Crimsworth
a crer que foi benevolente em conceber a Frances um pequeno gesto de generosidade:
“[...] será como você deseja, porque parece ser o melhor. Agora, como recompensa por
meu pronto consentimento, dê-me um beijo voluntário” (BRONTË, 1995, p. 1164).
93
Com a garantia de que Frances poderá continuar trabalhando após o casamento, a
narrativa se encaminha rapidamente para seu final com uma mudança de tom por parte do
narrador como que se os fatos prestes a serem compartilhados com o leitor não fossem
importantes para merecer mais atenção por parte de William. Em não mais do que duas
linhas no final do primeiro parágrafo do último capítulo, William anuncia seu casamento
com Frances: “[...] nos dirigimos todos juntos para a capela Protestante, acompanhamos
um ritual de acordo com o Common Prayer Book, e saímos casados” (BRONTË, 1995,
1176).
94
Quatro parágrafos depois, ele comenta rapidamente sobre o que aconteceu em
um ano de casamento.
O ritmo narrativo de William no último capítulo difere radicalmente dos anteriores
visto que ele não mais se perde em longas elucubrações, nem em meticulosas descrições
de trejeitos, posturas e características físicas das outras personagens. De fato, William
parece simplesmente ater-se à tarefa de rapidamente satisfazer alguma curiosidade por
parte dos leitores acerca de seu presente. Se antes ele era absurdamente detalhista e
metódico na exposição de seu ponto de vista, agora é como se nada fosse intrigante para
93
“[…] and you shall have your own way, for it is the best way. Now, s a reward for such ready consent,
give me a voluntary kiss." (Tradução nossa).
94
“[...] we drove all together to the Protestant chapel, went through a certain service in the Common Prayer
Book, and she and I came out married”. (Tradução nossa).
112
ganhar-lhe a atenção. Mesmo quando Frances o interpela após um ano de casados
dizendo não estar satisfeita com a diferença salarial entre eles, apesar de seu esforço
profissional ser equivalente ao do marido e propõe a abertura de uma escola, William
permanece numa postura passiva. Ele parece mesmo estar alheio ao que se passa,
limitando-se a concordar com o plano da esposa e no parágrafo seguinte ele relata que em
dez anos no mercado prosperaram imensamente.
Não na primeira parte do último capítulo nenhum sinal do William Crimsworth
mordaz, sarcástico em relação aos outros, determinado a ser o senhor de todas as coisas.
Essa figura é substituída por um protagonista mais comedido em suas observações, mais
contido em suas falas e descrições, mais passivo em sua própria presença. Mesmo quando
Frances insiste em continuar chamando-o pelo título de
Monsieur, existe uma reversão de
expectativas porque na prática ela é que parece mandar na relação, tanto profissional
quanto pessoal, como William deixa a entrever:
Ela era a diretora da escola deles, mas mantinha um prazer
em vê-lo ensinando [...] sua alegria era fazer de mim ainda o
senhor em todas as coisas. [...] Em casa ela era outra mulher:
a senhora diretora desaparecia frente aos meus olhos, e
Frances Henri, minha pequena bordadeira, era magicamente
devolvida aos meus braços (BRONTË, 1995, p. 1178).
95
Em outras palavras, é como se houvesse uma inversão no relacionamento de
Frances e William em termos de papéis de gênero. Embora William continuasse
exercendo a função de mestre no pensionato, quem efetivamente detém o poder na esfera
pública é Frances: é ela que sugere a abertura de uma escola visto que trabalhava tanto
quanto William e ganhava muito menos do que ele; é ela que coloca o plano em ação e
inicia o negócio, e é ela a melhor propaganda para escola, pois muitos desejavam que as
jovens fossem “refinadas pela Senhora Crimsworth” (BRONTË, 1995, p. 1177).
96
É
interessante observar que mesmo assim ela continua a referir-se ao marido de forma
impessoal, alegando que o título de Monsieur lhe cabia bem, evidenciando assim não
apenas uma preferência, mas, sobretudo um ato intencional, pois equivale a dizer que
95
“[…] she was the principal of their own school, but kept on taking pleasure seeing him teaching. […] her
joy to make me still the master in all things. [….] at home she was another woman: the lady directress
vanished from before my eyes, and Frances Henri, my own little lace-mender, was magically restored to
my arms […]”. (Tradução nossa).
96
“[…] polished off by Mrs. Crimsworth”. (Tradução nossa).
113
Frances vale-se de seu poder e autoridade para garantir a William a ilusão de que é ele
quem exerce influência sobre o mundo ao seu redor. Segundo o próprio narrador, ele
deveria “interessar-se por aquilo que a ela interessava” (BRONTË, 1995, p. 1177)
97
e
não o contrário como seria de se esperar pelo padrão de papéis de gênero na sociedade
vitoriana.
Já na esfera privada, embora William se iluda com a idéia de que a esposa encarna a
figura do anjo do lar, Frances permanece forte e resoluta, ditando regras não apenas para
o gerenciamento da casa, mas também para o tipo de relacionamento entre eles nas suas
nuances mínimas. Por exemplo, embora William exija que ela converse com ele somente
em inglês, Frances insiste em contrariá-lo, no que ele admite a possibilidade de que sua
demonstração de poder não surtisse o efeito desejado sobre ela: “[...] ao invés de corrigir
o erro, parecia encorajar sua repetição” (BRONTË, 1995, p. 1178).
98
Além disso, mesmo
quando Frances prostra-se ao lado de William deleitando-o com sua dificuldade de
entendimento da poesia de Wordsworth que o marido a imputava como punição, seu
prazer em ser o mestre em seu próprio lar não perdura. De fato, “sempre às nove horas eu
era abandonado” (BRONTË, 1995, p. 1179)
99
para que Frances pudesse cumprir sua
missão e garantir o bem estar das alunas e também de seu único filho.
A postura paterna de William é de fato intrigante: sua primeira referência à
existência do filho vem de forma impessoal, distante, delegando a responsabilidade para
Frances que “o referido Victor era obviamente o próprio garoto dela, nascido no
terceiro ano do nosso casamento [...]” (BRONTË, 1995, p. 1179).
100
Quando novamente
Victor é trazido à cena, William somente enfatiza seu amor pelos livros e a constante
presença e influência que Hunsden exerce sobre a criança. Hunsden é tido como aquele
que sempre se preocupa em ofertar um brinquedo ou mesmo um animal de estimação
para Victor, ou contar-lhe estórias juntamente com a mãe.
Na realidade, alguns críticos chegam a insinuar que não apenas William teria
ciúmes de Victor com Frances, mas que o menino seria fruto de uma relação
extraconjugal de Frances com Hunsden, o que justificaria o distanciamento entre as
97
“[…] to become interested in what interested her”. (Tradução nossa).
98
“[…] instead of correcting the fault, it seemed to encourage its renewal”. (Tradução nossa).
99
“[…] always at nine o'clock I was left abandoned”. (Tradução nossa).
100
“[…] the said Victor was of course her own boy, born in the third year of our marriage […]”. (Tradução
nossa).
114
personagens (BEER, 1975; TROMLY, 1982; KUCICH, 1985; RUTH, 2003;
WHITTINGTON, 2004). William parece ter essa desconfiança e ao relatar o episódio no
qual tem que matar o cachorro que Hunsden deu de presente para Victor por suspeita de
ele ter contraído raiva, William primeiro explica que seria inútil tentar consolar a criança.
Seria melhor deixar isso a cargo de Frances e quando o menino se acalma e o procura
pedindo perdão, William comenta que “Victor não seria verdadeiramente filho de seu pai,
se essas considerações, essas razões [...] não produzissem algum efeito nele” (BRONTË,
1995, p. 1183).
101
Mais adiante, observando o filho conversando com Hunsden, William
admite existir algo na união dos dois que ele, William, não compartilha: “Victor tem uma
preferência por Hunsden [...] que eu mesmo nunca gozei. Frances, também, acompanha
isso com certa ansiedade velada [...]” (BRONTË, 1995, p. 1183).
102
No entanto, o que é mais relevante na terceira parte de The Professor, a meu ver, é a
inversão de papéis no círculo familiar dos Crimsworth. Se antes o mundo nos era
interpretado por William, cabendo à Frances aprender com ele, agora temos uma Frances
cada vez mais assertiva e resoluta, mesmo quando se coloca numa posição de aparente
submissão perante o marido. William também muda, sendo cada vez mais passivo no
âmbito familiar.
Essa diferença no estilo narrativo de William no último capítulo pode ser lida de
duas formas: primeiro, poderíamos dizer que para ele o âmbito privado não possui o
mesmo apelo intelectual, o mesmo ardor e, por isso, a descrição de sua vida em comum
com Frances não passa de detalhes domésticos que interessam apenas às mulheres. Em
segundo lugar, poderíamos interpretar o recolhimento de William como o
reconhecimento de sua inabilidade em exercer o poder tal como desejava ou julgava ser
capaz por ser um representante do sexo masculino.
Em outras palavras, William experimenta um processo de crescimento efetuado de
forma contrária ao esperado numa obra
bildugsroman, no qual o resultado final de sua
jornada parece ser o reconhecimento de que sua superioridade é ilusória. Nem mesmo
quando suas hipóteses e suposições mais prosaicas são desmentidas durante sua estada
101
“[…] Victor would have been no true son of his father, had these considerations, these reasons, [...]
produced no effect on him”. (Tradução nossa).
102
“[…] Victor has a preference for Hunsden; [...] than any I ever entertained for that personage myself.
Frances, too, regards it with a sort of unexpressed anxiety [...]”. (Tradução nossa).
115
em Bruxelas, William consegue reconhecer e admitir as falhas de seu julgamento e a
superioridade demonstrada pelas demais personagens, sobretudo as femininas. Somente
após o casamento com Frances é que alguns sinais de mudança são percebidos, com a
adoção por parte de William de uma postura mais plácida e compassiva, embora não se
possa garantir que seja motivada por uma verdadeira transformação ou por uma
dificuldade em se sobrepor à figura cada vez mais determinada e resoluta da esposa. O
fato é que
The Professor delineia as primeiras considerações de Charlotte Brontë acerca
da desigualdade das relações de gênero tal como entendidas na sociedade vitoriana,
mesmo que não as faça tão explicitamente e com personagens tão dissonantes do ideal
como as de
Shirley e Villette.
As diversas facetas do feminino em Jane Eyre
Se em The Professor Brontë discute a subjugação feminina sob a ótica masculina e
de forma mais velada e contida, em
Jane Eyre a situação começa a se reverter. A
autobiografia escrita
a posteriori descreve a trajetória da jovem órfã Jane Eyre, desde sua
infância marcada por maus-tratos por parte da tia e dos primos, até o casamento com
Edward Rochester, seu antigo patrão. O enredo em linhas gerais é bem simples e mais
uma vez, críticas à ideologia de gênero do século XIX são oferecidas por Brontë, embora
ainda não de forma tão explícita como nas obras subseqüentes.
Seguindo o padrão iniciado em
The Professor, Brontë oferece uma protagonista
destituída de todos os atributos tidos como essenciais segundo a ideologia do feminino na
sociedade vitoriana e apresenta ao leitor as dificuldades vivenciadas por essa mulher
rumo a uma melhor inserção social. Apesar da aparente simplicidade do enredo, a forma
como a qual Brontë constrói sua narrativa faz de
Jane Eyre uma obra famosa e aclamada,
que enfatiza diferentes temas e motivos.
Se traçarmos um contraponto entre Jane e William, protagonista de
The Professor
fica evidente a mudança no estilo narrativo adotado por Charlotte Brontë. No primeiro
romance, também apresentado como uma autobiografia, William tem dificuldade em
abandonar sua postura altiva e mesmo sarcástica em relação aos outros, independente da
sua posição inferior econômica e socialmente. No segundo, em narrativa também em
116
primeira pessoa, Jane trilha um caminho diferente, buscando não apenas dialogar com o
leitor, mas, sobretudo racionalizar sobre os eventos e experiências de sua vida. Como
resultado dessa mudança sutil de perspectiva, pode-se dizer que Jane poderia apresentar-
se como uma figura mais verossímil, mais palpável, mais humana do que William e,
como narradora, mais confiável e de mais fácil identificação do que o primeiro (CRAIK,
1968; WARHOL, 1996; GODFREY, 2005).
Embora Jane posicione-se de forma mais próxima ao leitor numa relação repleta
de empatia, questiono se a protagonista seria realmente tão confiável como narradora. A
forma como Jane narra sua trajetória, minimizando alguns fatos e supervalorizando
outros, somada a sua caracterização oscilante, ora tida como selvagem e mesmo
descontrolada, ora como dócil e reservada, é um indício de que a obra teria algo a mais a
oferecer em termos de questionamento da ideologia de gênero no século XIX. A meu ver,
é como se Brontë, ao perceber que a estratégia utilizada em
The Professor não surtiu o
efeito desejado visto que a obra foi rejeitada nove vezes, tivesse se apropriado de uma
fórmula notoriamente bem-sucedida para trabalhar uma temática que lhe era tão cara
como a condição feminina, mas sob um outro viés, numa abordagem mais sutil, porém
potencialmente mais crítica.
De fato, numa carta para seu editor em 1848 Brontë lamenta que tantos ataques
teriam sido apresentados à conduta feminina numa esfera individual e não à condição
inferiorizante da mulher na sociedade. Segundo ela, era relativamente fácil perceber a
raiz dos problemas, mas difícil oferecer soluções imediatas e concretas quando a maioria
das mulheres se via numa posição de prover pelo sustento da família em condições não
muito favoráveis: “quando uma mulher tem uma família para criar e educar, [...] e quando
o seu destino a isola, suponho que ela deva fazer o que for possível viver como for
possível [...] (BARKER, 1998, p. 190)”.
103
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a
preocupação de Brontë em suas obras não recairia sobre o destino de personagens
isoladas, mas que essas seriam emblemáticas de dificuldades recorrentes no período.
Caberia à Brontë, então, a tarefa de verbalizar tais situações de forma a potencializar a
discussão das motivações e expectativas por trás de determinadas escolhas e padrões de
103
“[…] When a woman has a little family to rear and educate […] - when her destiny isolates her – I
suppose she must do what she can – live as she can […]”. (Tradução nossa).
117
comportamento e postura. Mais importante do que questionar o retorno de Jane para
Rochester, ou o casamento de Shirley em obra homônima, por exemplo, seria tentar
entender as motivações por trás de tais atos, e a estratégia utilizada para obtenção de tal
fim. Dessa forma, poder-se-ia ler a trajetória pessoal das personagens em termos das
experiências vivenciadas por muitos dos leitores, o que contribuiria para a discussão da
própria ideologia de gênero que motivava e condicionava a posição inferiorizante e sem
perspectivas das mulheres na sociedade vitoriana.
Talvez essa pequena mudança no tom utilizado em
Jane Eyre tenha contribuído
para a identificação da autoria da obra como sendo feminina, embora Brontë tenha
publicado o romance sob o pseudônimo de Currer Bell. De fato, as primeiras resenhas de
Jane Eyre enfatizam não apenas o caráter intenso da narrativa, mas também o nível de
identificação com a protagonista, insinuando que essa poderia ser fruto de uma mente
feminina, pois somente uma mulher poderia compreender as angústias e expectativas de
Jane (LEWES, 1847, citado por O’NEILL, 1968; THACKERAY, 1847, citado por
O’NEILL, 1968;
The Westminster Review, 1847, citado por O’NEILL, 1968; The
Christian Remembrancer Review
, 1848, citado por O’NEILL, 1968; BARKER, 1998).
Uma das críticas mais explícitas nesse sentido nos é fornecida pelo revisor no periódico
The Christian Remembrancer que afirma:
Currer Bell é um mero nom de guerre, talvez um anagrama.
Porém, nós, de nossa parte, não podemos duvidar que o livro
seja de autoria de uma mulher [...] quem, de fato, exceto uma
mulher, teria se proposto [...] a encher três volumes com a
história do romance de uma mulher? (citado por O’NEILL,
1968, p. 13- 14).
104
Porém, Jane Eyre não apresenta uma miríade de comentários explícitos sobre a
condição feminina, e por vezes tenho a impressão que Brontë chega mesmo a ser mais
comedida em seus comentários do que em
The Professor. Em seu primeiro romance, é
como se a questão feminina fosse atacada sem reservas por parte de Brontë, acentuando-
se não apenas as arbitrariedades do duplo padrão de moralidade do período, mas,
sobretudo, a idealização masculina em relação à mulher que acabava privando-a de uma
inserção social mais plena. em
Jane Eyre, por estarem as críticas diluídas num
104
“[...] Currer Bell is a mere nom de guerre, perhaps an anagram. However, we, for our part, cannot doubt
that the book is written by a female [...] who, indeed, but a woman, could have venture […] to fill three
volumes with the history of a woman’s heart?” (Tradução nossa).
118
romance narrado por uma voz feminina, o efeito, a meu ver, tende a ser inicialmente
abrandado. Acredito que a maioria dos leitores da segunda obra de Brontë e me incluo
nesse grupo quando tive meu primeiro contato com a narrativa, se concentra na resolução
dos empecilhos ao romance de Jane e Rochester, mas não transfere as dificuldades
vivenciadas pela protagonista e, sobretudo, seus comentários em relação à postura de
outras mulheres, para uma esfera mais ampla. Nesse sentido, sempre me pareceu obscuro
o fato de
Jane Eyre ocupar posição de destaque na trajetória de Brontë. De fato, sobre o
papel ocupado por
Jane Eyre no cânone literário, R.B. Martin afirma ser intrigante o fato
de o romance ser considerado “o maior romance feminista em seus primórdios, embora
não exista nenhum indício no texto de qualquer anseio por igualdade política, legal,
educacional ou mesmo intelectual entre os sexos” (MARTIN, 1966, p. 93-94).
105
Embora as críticas à ideologia de gênero em Jane Eyre não sejam tão explícitas,
acredito que simplesmente ler a narrativa como a história da pobre governanta que busca
um lugar ao sol e inevitavelmente o conquista é pouco em virtude do potencial da obra.
Se levarmos em consideração o nível de conscientização apresentado pela autora em suas
outras obras na discussão da condição feminina, ler
Jane Eyre atendo-se simplesmente ao
enredo de uma simples estória de amor parece-me tarefa reducionista.
Se
Jane Eyre, mesmo sem apresentar um discurso aberto sobre a desigualdade entre
os sexos, acabou sendo considerada um marco feminista em seus primórdios, deve haver
algo mais forte, seja em sua caracterização, temática ou mesmo estrutura narrativa, capaz
de justificar tal relevância. A meu ver, existe a possibilidade de tal elemento encontrar-se
na forma como as personagens, sobretudo Jane, emulam os ideais de gênero de era
vitoriana, deixando entrever uma postura política e crítica mais intensa e consistente do
que seria possível de se imaginar, atendo-se apenas ao enredo romanceado. Acredito que
a caracterização de Jane, com algumas discrepâncias em sua postura perante as outras
personagens, nos permita interpretar a representação de gênero com base em escolhas
políticas de incorporar ou não elementos tradicionalmente associados ao sexo feminino.
Em outras palavras, a maturação de Jane nessa narrativa de gênero
bildungsroman
concerne também o aprendizado de estratégias de performance e mesmo subversão das
105
“[…] The novel is frequently cited as the earliest major feminist novel, although there is not a hint in the
book of any desire for political, legal, educational, or even intellectual equality between the sexes”.
(Tradução nossa).
119
diferenças de gênero a fim garantir à protagonista melhores condições de ascender
socialmente.
Sob a forma de uma autobiografia, pode-se dizer que Brontë explora em
Jane Eyre
o universo de um grupo de mulheres - as governantas - que teria tudo para se ver sem
perspectivas de vida, sem anseios pessoais, apenas desempenhando seu papel de serviçal.
Brontë inova, entretanto, ao fazer de sua governanta a protagonista e ao destituir a
narrativa de um tom condescendente em relação às dificuldades vivenciadas por ela. Ao
invés de apresentar uma personagem amargurada face às inúmeras dificuldades e
sofrimentos vivenciados, Brontë nos introduz uma mulher resoluta, obstinada, corajosa e
determinada a ocupar um lugar ao sol por seus próprios meios.
Poder-se-ia dividir a narrativa
bildugsroman em cinco fases, cada qual
correspondendo a uma etapa no processo de desenvolvimento pessoal da protagonista e, a
meu ver, de aprendizado sobre como reverter as expectativas dos demais em termos de
gênero. Tem-se inicialmente a descrição da infância de Jane junto a parentes que
claramente a vêem como inferior em Gateshead Hall. Durante os quatro capítulos
dedicados à infância da protagonista, fica evidente sua inferioridade econômica e social
face aos Reeds, sendo freqüentes as descrições de maus tratos por parte dos primos, do
isolamento imputado pela tia, de referências à dependência econômica de Jane e da falta
de adaptação ao padrão familiar no qual se encontrava inserida, tudo isso narrado por ela
a posteriori.
Mesmo não participando da maior parte das atividades sociais em Gateshead Hall
junto com os primos e tia, Jane obtém prazer na literatura e no exercício de sua
imaginação, muito embora eram raras as vezes que ela podia usufruir dessa liberdade: “eu
era feliz então: feliz pelo menos a meu modo. Não temia nada exceto a interrupção”
(BRONTË, 1995, p. 4).
106
Mesmo quando sua liberdade é tolhida e comentários sobre
sua dependência econômica afloram, Jane mostra-se controlada, como se não tivesse
dimensão clara da sua destituição e do que poderia ser feito para atenuá-la. Se
inicialmente não reagia aos maus tratos - “acostumada ao abuso de John Reed, nunca me
passou pela cabeça responder a ele, me preocupava em como resistir à agressão que
106 “[…] I was then happy: happy at least in my way. I feared nothing but interruption”. (Tradução nossa).
120
certamente acompanharia o insulto” (BRONTË, 1995, p. 5)
107
, aparentemente de uma
hora para a outra Jane começa a dar sinais de inconformidade com o sofrimento imputado
por seu primo passando a verbalizá-los abertamente: “meu terror tendo atingido seu
clímax, outras sensações se sucederam [...] essas sensações acabaram predominando
sobre o medo, e eu o ataquei como se estivesse fora de mim” (BRONTË, 1995, p. 5).
108
Como resultado de sua primeira reação aos ataques e insultos constantes do
primo, Jane passa a ser estigmatizada pelos demais moradores de Gateshead Hall como
uma garota rebelde, de ímpetos quase incontroláveis, selvagens. É interessante observar
como se assume que esses traços faziam parte da constituição de Jane: “mas isso sempre
esteve nela [...] ela é uma criaturinha ardilosa. Eu nunca vi uma garota na sua idade com
tamanha dissimulação” (BRONTË, 1995, p. 6).
109
Tal crença numa suposta
agressividade ou dissimulação em Jane contrasta com a imagem que ela busca reforçar ao
contar sua estória, e esse contraste, a meu ver, perpassa toda a narrativa.
Durante a sua narrativa, sobretudo quando fala de sua infância, é notória a
insistência de Jane em apresentar-se como injustiçada face às falhas de caráter e de
conduta dos primos que não sofriam qualquer tipo de punição por seus maus tratos e
insinuações. Jane apresenta-se como verdadeira excluída da família Reeds, sempre
buscando contrastar sua postura, a seus olhos, imaculada e correta para os padrões
infantis, com o sofrimento e limitações imputados pelos membros da família que não a
viam como igual. Toda a descrição do período passado em Gateshead Hall está
entremeada de questionamentos do porquê de seu sofrimento apesar de ser uma boa
criança, reforçando as diferenças entre Jane e os demais, embora de forma tendenciosa, a
meu ver.
Pelo tom empregado nos capítulos iniciais da narrativa, poder-se-ia dizer que Jane
sinaliza não apenas o quanto a posição social acabava por influenciar e determinar o
destino das pessoas, mas também o quanto sua representação de feminilidade, de acordo
com o ideal do período, é prejudicada por sua destituição de atributos tidos como
107 “[…] Accustomed to John Reed's abuse, I never had an idea of replying to it; my care was how to
endure the blow which would certainly follow the insult”. (Tradução nossa).
108 “[…] my terror had passed its climax; other feelings succeeded […] these sensations for the time
predominated over fear, and I received him in frantic sort”. (Tradução nossa).
109 “[…] But it was always in her […] She’s an underhand little thing: I never saw a girl of her age with so
much cover”. (Tradução nossa).
121
essenciais ao sexo feminino. Assim, embora tanto Georgiana quanto Eliza tivesse suas
falhas, sendo a primeira insolente e a segunda egoísta, o simples fato de serem não
apenas belas, mas, sobretudo de uma família com algumas posses e reputação, garantia a
elas uma indulgência face a seus pequenos delitos. Em relação a John, o simples fato de
ser o homem da casa, embora apenas um garoto, lhe garantia impunidade não obstante
sua tendência de intimidar e enfrentar mesmo sua mãe. Jane, por outro lado, mesmo
fazendo, segundo ela, o possível para portar-se adequadamente, estaria numa situação
irrevogavelmente negativa desde o princípio. Jane não passava de uma dependente, uma
órfã destituída de qualquer posse, cuja posição futura incluiria, na melhor das hipóteses,
um emprego como governanta ou professora e não poderia competir em igualdade com
outras Georgianas e Elizas por casamentos vantajosos. Relembrando sua infância, Jane
evidencia sua diferença em relação a todos ao seu redor e a falta de perspectiva que a
acompanharia durante boa parte de sua vida:
Eles não estavam propensos a considerar com afeição uma coisa que
não poderia simpatizar com nenhum deles; uma coisa heterogênea,
oposta em relação a eles em temperamento, em capacidade, em
tendências; uma coisa inútil, incapaz de atender seus interesses, ou de
acrescentar a seu prazer; uma coisa perniciosa, nutrindo os germes da
indignação de seu tratamento, do desdém do seu julgamento. Eu sabia
que se tivesse sido uma criança mais vibrante, brilhante, despreocupa-
da, exigente, bela, descomedida – embora igualmente dependente e
sem amigos – a Senhora Reed teria suportado minha presença de
forma mais complacente; seus filhos teriam nutrido por mim mais do
que cordialidade de um sentimento de companheirismo; os serviçais
estariam menos propensos a fazer de mim o bode expiatório.
(BRONTË, 1995, p. 8).
110
Nesse contexto, é relevante quando Jane parece conduzir o leitor na busca por
explicações para sua subjugação e sofrimento ao relatar o episódio no qual é colocada,
após ter avançado sobre seu primo, de castigo no chamado quarto vermelho, onde seu tio
havia falecido. Nesse cômodo, sozinha e na penumbra, Jane acredita estar sendo
assombrada pelo fantasma do tio, vindo então a ter uma crise nervosa que acaba
110
“[…] They were not bound to regard with affection a thing that could not sympathize with one amongst
them; a heterogeneous thing, opposed to them in temperament, in capacity, in propensities; a useless thing,
incapable of serving their interest, or adding to their pleasure; a noxious thing, cherishing the germs of
indignation at their treatment, of contempt of their judgment. I know that had I been a sanguine, brilliant,
careless, exacting, handsome, romping child -- though equally dependent and friendless -- Mrs. Reed would
have endured my presence more complacently; her children would have entertained for me more of the
cordiality of fellow-feeling; the servants would have been less prone to make me the scapegoat”. (Tradução
nossa).
122
desencadeando seu envio para um internato, início de uma verdadeira mudança na sua
vida.
É interessante observar que a descrição do cômodo acaba apresentando
inicialmente uma metáfora, uma vez que é denominado quarto vermelho. uma clara
alusão à intensidade e passionalidade da cor vermelha, mas segundo a descrição de Jane,
o ambiente era frio e inóspito: “esse cômodo era gélido, porque raramente acendia-se a
lareira; era silencioso, porque era longe do quarto das crianças e da cozinha; solene,
porque raramente era visitado” (BRONTË, 1995, p. 7).
111
A incompatibilidade da
apresentação racionalizada e fria desse ambiente com a carga simbólica que se poderia
dele extrair evidencia-se na descrição dos acontecimentos dentro do referido cômodo,
quando Jane está prestes a ter um colapso nervoso.
Observando tudo a seu redor, inclusive seu reflexo num espelho, Jane percebe-se
de forma estranha, semelhante a um fantasma ou monstro das estórias que tão bem
conhecia e nesse ambiente propício a associações livres do pensamento, Jane questiona,
como se estivesse num transe, o porquê de sua condição desigual em Gateshead Hall:
Todas as tiranias violentas de John Reed, a indiferença orgulhosa de
suas irmãs, toda a aversão de sua mãe, toda a parcialidade dos
serviçais, surgiram em minha mente perturbada como um depósito
escuro em um poço turvo. Por que eu estava sempre sofrendo,
sempre apanhando, sempre acusada, para sempre condenada? Por
que eu não poderia agradar? Por que era inútil tentar obter favores de
qualquer um ? [...] Eu não ousava cometer nenhuma falta: eu me
esforçava para cumprir todas as obrigações, e eu era tida como mal-
criada e ardilosa, rabugenta e sorrateira [...] “Injusto! Injusto” disse
minha mente, forçada pelos estímulos agonizantes [...] e instigou
algum expediente estranho para conseguir escapar dessa opressão
insuportável [...] (BRONTË, 1995, p. 7- 8).
112
A reação descontrolada de Jane, o grito que emite e que chama a atenção de todos
na casa, foi interpretada por Gilbert e Gubar como o vislumbre de que a loucura pode ser
uma possibilidade de saída para a subjugação feminina (GILBERT e GUBAR, 1984, p.
111
“[…] This room was chill, because it seldom had a fire; it was silent, because remote from the nursery
and kitchen; solemn, because it was known to be so seldom entered”. (Tradução nossa).
112
“[…] All John Reed's violent tyrannies, all his sisters' proud indifference, all his mother's aversion, all
the servants' partiality, turned up in my disturbed mind like a dark deposit in a turbid well. Why was I
always suffering, always browbeaten, always accused, for ever condemned? Why could I never please?
Why was it useless to try to win any one's favor? […] I dared commit no fault: I strove to fulfill every
duty; and I was termed naughty and tiresome, sullen and sneaking […] Unjust!--unjust!" said my reason,
forced by the agonizing stimulus […] and instigated some strange expedient to achieve escape from
insupportable oppression […]”. (Tradução nossa).
123
340). De fato, as possibilidades imaginadas por Jane – escapar literalmente e escapar pela
inanição - e mesma a possibilidade proposta por Gilbert e Gubar de escapar pela loucura
foram de certa forma discutidos por Charlotte Brontë em outros romances, sendo comum
as personagens femininas representarem um ou outro sintoma, como a loucura de Bertha
em
Jane Eyre, Caroline que quase morre de inanição em Shirley, a potencial histeria de
Lucy em
Villette.
A meu ver e, valendo da afirmação das próprias teóricas quando dizem “o pequeno
drama representado “naquele dia” [...] é em si mesmo um paradigma de um drama maior
que ocupa o livro inteiro” (GILBERT e GUBAR, 1984, p. 341),
113
Jane opta pela
representação como possibilidade não apenas de escapar da situação atual estratégia
que se revela ineficaz mas também como forma de rebeldia. Sempre me questionei o
porquê da insistência de Jane em reforçar na narrativa a opinião que os outros tinham
dela, primeiro como um ser indócil e quase insignificante, embora potencialmente boa.
Sempre me incomodei com as freqüentes elucubrações da personagem no sentido de ora
questionar sua subjugação, colocando-se na posição de injustiçada, ora sugerindo possuir
qualidades mais nobres que dos outros exemplares do seu sexo, principalmente Blanche
Ingram. De certa forma, me pergunto se não estaria Brontë se valendo da empatia de Jane
com os leitores no sentido de instigá-los a questionar a motivação por trás dessas
comparações estabelecidas pela protagonista.
Em outras palavras se, conforme discutido anteriormente, o ideal de feminilidade se
reforçava por uma educação baseada no treino de atitudes e posturas valorizadas no
chamado sexo frágil, poder-se-ia dizer que Brontë subverte os pressupostos dessa
educação moralizante imbuindo sua protagonista de um senso crítico e de uma percepção
acerca do duplo padrão de moralidade vigente. Brontë teria caracterizado sua
protagonista de tal forma a possibilitar que ela viesse a transitar em diversas esferas
incorporando elementos e padrões que ela reconhecia como comuns às mulheres daquele
meio, sem, no entanto abrir mão de traços anteriormente assimilados. Jane, então,
combina e funde imagens estereotipadas tradicionalmente conflitantes entre si. As
imagens do anjo do lar e da mulher insana se acomodariam, ao mesmo tempo, na figura
113
“[…] for the little drama enacted on “that day” [...] is in itself a paradigm of the larger drama that
occupies the entire book”. (Tradução nossa).
124
de Jane, cuja caracterização tende, a meu ver, a minimizar os limites entre essas imagens
ao invés de acentuá-los, pois com o desenrolar da narrativa a personagem tende a ser
descrita de forma menos discrepante e mais consistente.
Sob essa ótica e, levando-se em consideração que a caracterização de Jane parece se
sustentar com base nas diferenças de opinião que as personagens têm sobre ela e a sua
própria auto-imagem, acredito que em
Jane Eyre a retomada e reelaboração do
elemento performativo em relação ao gênero iniciado em
The Professor. Se no romance
anterior existia uma tensão entre a representação de gênero, reforçando-se as
discrepâncias e diferenças entre as personagens centrais William, Frances, Zoraide e
Edward – agora em
Jane Eyre Brontë avança nessa proposta fazendo com que essa tensão
se apresente de forma mais sutil, mas mais contundente, levando o leitor a pensar a
condição feminina.
Como resultado desse tratamento apurado da condição feminina, poder-se-ia dizer
que potencialmente se gera uma crítica da arbitrariedade da ideologia de gênero no século
XIX com base na identificação com a personagem central. Pela empatia criada com Jane,
uma mulher forte e obstinada, mas de princípios morais firmes e que sofre a imposição
dessa ideologia, o leitor pode vir a questionar se a sociedade não estaria sendo injusta
com ela e com as outras mulheres na mesma condição.
Dessa forma, e valendo-me também das discussões sobre gênero como ato
performativo propostas por Judith Butler e discutidas no capítulo dois, atrevo-me a dizer
que Brontë estaria dando os primeiros passos em suas obras no sentido de perceber e
sinalizar que papéis de gênero não devem ser entendidos como resultado direto das
diferenças de sexo. A recorrência de personagens que parecem brincar com as
expectativas relativas a gênero, tais como as assertivas Jane e Shirley em obras
homônimas e a
voyeur e teatral Lucy em Villette, parece compactuar com a visão de
Butler. Para Butler, ao deslocar-se a representação de gênero de seu eixo estrutural
predefinido, o resultado é de encurtamento da distância entre os modelos propostos e
reforçados e acesso à própria construção ideológica. A meu ver, o que Brontë faz não está
muito distante disso, uma vez que todas as suas protagonistas encontram-se deslocadas
do eixo normativo e ideológico vigente no período.
125
Brontë, entretanto, em The Professor e Jane Eyre não avança o suficiente em
termos de proposta de uma saída para a condição feminina, ficando muito mais no nível
do questionamento e da potencialização de uma mudança, o que para sua época já foi um
passo considerável em termos de caracterização de personagens, vindo mesmo a
influenciar a forma pela qual suas obras foram recebidas e criticadas. De fato, acredito
que a contribuição de Brontë é semelhante à de Butler, guardadas as devidas proporções,
no sentido de tentar mostrar que é possível brincar com os pressupostos que limitam a
plena inserção social das mulheres e questionar as rígidas convenções e distinções
estabelecidas com relação ao gênero.
Após a narrativa da infância sofrida em Gateshead Hall, Jane é enviada para um
período de internato em Lowood no qual deveria ser educada de acordo com suas
possibilidades presentes e potencialidades futuras, conforme palavras de sua tia: "gostaria
que ela fosse educada de maneira condizente com suas perspectivas […] para ser de
serventia, e para se manter humilde” (BRONTË, 1995, p. 19)
114
Em Lowood, apesar das
tentativas iniciais de reforçar a imagem que a Senhora Reed tinha de Jane, ela acaba
desenvolvendo não apenas seu lado intelectual, mas também uma postura mais crítica
acerca do mundo. Em Lowood, também Jane aprenderia a lidar com as expectativas
alheias de forma mais consciente, permitindo-se mesmo incorporar traços que
inicialmente criticava a fim de negociar sua inserção social.
uma tendência em se enfatizar a crítica ao papel da religião na manutenção da
subjugação feminina nos capítulos destinados a Lowood (BEER, 1975; PETERS, 1996;
WHITTINGTON, 2004). Entretanto, mais do que enfocar na religião, Helen parece
sinalizar para Jane, ainda que sutilmente, a carga de opressão e subjugação imputada às
mulheres na sociedade, principalmente quando, discutindo o que Jane considera injustiças
no tratamento com as internas, verbaliza que Jane precisa aprender a ver-se numa posição
servil, pois esse será seu destino: “porém, será seu dever suportar isso, se você não puder
evitá-lo: é inadequado e tolo dizer que você NÃO PODE SUPORTAR o que seu destino
exige que você suporte” (BRONTË, 1995, p. 33).
115
Acredito ser possível interpretar a
114
“[…] I should wish her to be brought up in a manner suiting her prospects […] to be made useful, to be
kept humble”. (Tradução nossa).
115
“[…] Yet it would be your duty to bear it, if you could not avoid it: it is weak and silly to say you
CANNOT BEAR what it is your fate to be required to bear". (Tradução nossa).
126
fala de Helen não apenas como uma tentativa de enfatizar a necessidade de Jane mostrar-
se mais dócil e submissa e assim evitar maiores problemas na escola, mas, sobretudo,
como um lembrete do tipo de expectativas que a sociedade tinha em relação às mulheres,
sobretudo aquelas às quais um casamento vantajoso não era perspectiva imediata.
Jane, porém, não consegue se ver em condições de suportar a subjugação de forma
silenciosa e abnegada como Helen, isto é, não se imagina capaz de encarnar o papel
exigido das mulheres como anjos, sempre colocando suas necessidades e anseios em
segundo plano: “eu não podia compreender essa doutrina de resignação; e muito menos
podia compreender ou simpatizar com a benevolência que expressava por quem lhe
punia. Sentia, porém, que Helen Burns via as coisas sob uma ótica diferente da minha”
(BRONTË, 1995, p. 33).
116
Para ela, Helen parece mesmo ser um enigma, pois Jane não
consegue entender o que se passa na mente daquela garota calma, reservada e que
suportava a humilhação como se nada tivesse acontecendo. A visão dualista de Jane,
moldada pelos padrões da Gateshead Hall onde não havia posição intermediária em
termos do que seria considerado o ideal, parecia não possuir lugar para uma figura
ambígua como Helen. Entretanto, a complexidade da postura daquela garota, que tão
naturalmente parecia combinar força e docilidade, teria um forte impacto no aprendizado
sobre o feminino por parte de Jane, que chega mesmo a questionar-se quem estaria com a
razão em termos de postura e comportamento: “suspeitei que ela pudesse estar com a
razão e eu errada; mas eu não ponderei a questão intensamente: como Felix, eu a deixei
assim para um momento mais conveniente” (BRONTË, 1995, p. 33).
117
Jane, apesar da tentativa de doutrinação de Helen, insiste em rebelar-se, mesmo
que silenciosamente, contra as injustiças e humilhações. É interessante observarmos a
imagem que Helen tem de Jane, acentuando sua necessidade de fazer o necessário para
ver-se pertencente ao grupo. Mesmo que inconscientemente, Jane busca ao seu redor
modelos que lhe forneçam os mecanismos adequados para inserção e para tanto se mostra
altamente observadora e escrutinizadora, conforme aponta Helen: “observei-a na classe
essa manhã, e vi que você estava totalmente focada: seus pensamentos não pareciam
116
“[…] I could not comprehend this doctrine of endurance; and still less could I understand or sympathize
with the forbearance she expressed for her chastiser. Still I felt that Helen Burns considered things by a
light invisible to my eyes”. (Tradução nossa).
117
“[…] I suspected she might be right and I wrong; but I would not ponder the matter deeply: like Felix, I
put it off to a more convenient season”. (Tradução nossa).
127
vagar” (BRONTË, 1995, p. 33).
118
Jane tem sede de aprendizado, não apenas intelectual,
mas também da obtenção de uma fórmula que lhe garantisse ingresso na sociedade, visto
que suas tentativas anteriores em Gateshead Hall resignar-se silenciosamente ou
rebelar-se furiosamente – não se apresentaram como eficazes, muito menos lhe aplacaram
o medo da rejeição e da opinião dos outros. Uma das maiores angústias de Jane em
Lowood é a percepção de que sua tentativa de adoção de uma postura mais agradável e
adequada aos olhos alheios poderia ser minimizada quando comentários sobre seus
episódios de descontrole em Gateshead Hall fossem compartilhados com todos e quando
isso acontece, sua reação alterna entre profunda humilhação e inexplicável coragem: “eu
não poderia suportar a vergonha de ficar em pé no meio da sala [...] exposta à visão geral
num pedestal de infâmia. [...] Eu controlei a histeria crescente, ergui minha cabeça e
fiquei firme no pedestal” (BRONTË, 1995, p. 39 40).
119
De fato, é como se Jane começasse a vislumbrar nesse momento que a saída não
estaria na substituição de um padrão por outro, pois mesmo que emulasse fidedignamente
o papel de garota boa, servil e dócil, haveria sempre em sua constituição vestígios da de
sua conduta anterior, pois ela não compactuava com esse ideal de abnegação. Destituída
de beleza e
status e estigmatizada pela opinião dos mais favorecidos, resta a Jane valer-se
das armas disponíveis, e talvez a mais poderosa seja a sua habilidade de valer-se do seu
aprendizado como forma de performance social.
A partir do episódio de humilhação em Lowood, quando suas supostas falhas de
caráter são expostas de forma intensa pelo Sr. Brocklehurst, Jane parece alternar padrões
de comportamento ao transitar por vários ambientes. Por vezes assume uma postura mais
submissa e dócil, como quando se espelha na Senhorita Temple e acaba mesmo ganhando
o respeito das demais colegas e alunas de Lowood:
eu havia extraído dela algo de sua natureza e muito de seus
hábitos: pensamentos mais harmoniosos: o que pareciam ser
sentimentos mais bem regulados tinham se tornado
habitantes da minha mente. Eu tinha firmado um pacto
com a obediência e com a ordem; estava reservada;
acreditava estar contente: aos olhos dos demais, as vezes até
118
“[…] I observed you in your class this morning, and saw you were closely attentive; your thoughts never
seemed to wander”. (Tradução nossa).
119
“[…] I could not bear the shame of standing on my natural feet in the middle of the room […] exposed to
general view on a pedestal of infamy. […] I mastered the rising hysteria, lifted up my head, and took a firm
stand on the stool”. (Tradução nossa).
128
mesmo aos meus, parecia uma personagem disciplinada e
suave (BRONTË, 1995, p. 50)
120
Em outros momentos, Jane apresenta-se absolutamente destemida e ousada, como
quando engaja em longas discussões com Rochester como se compartilhasse com ele o
mesmo background e o mesmo
status, chegando mesmo a repreendê-lo quando esse tenta
modificá-la antes do casamento: “Eu não sou um anjo”, disse, “e não serei um até a
morte: serei apenas eu mesma. Sr. Rochester, você não deve esperar nem cobrar nada
celestial de mim – porque isso não obterá” (BRONTË, 1995, p. 156).
121
Acredito que Brontë aborda mais uma vez em suas obras a distinção rígida entre as
imagens estereotipadas do feminino no século XIX, lançando mão dos próprios
pressupostos excludentes dessa ideologia, num padrão que se repetiria e se intensificaria
em
Shirley e em Villette. Se em The Professor, Brontë começa a adotar a estratégia de
inicialmente reforçar o contraste entre imagens estereotipadas para paulatinamente ir
obliterando as diferenças e aproximando as figuras, em
Jane Eyre o padrão se repete,
contando dessa vez com a contribuição da forte empatia gerada entre a protagonista e o
leitor. A meu ver, Brontë elabora sua narrativa de forma a inicialmente incutir em Jane o
peso do dilema de não saber exatamente qual imagem deveria realmente representar. Jane
encontrar-se-ia, então, como se estivesse enclausurada entre os dois padrões dicotômicos
tradicionais da ideologia de gênero, isto é, entre a mulher doce, angelical e a assertiva,
transgressiva, fazendo com a mesma oscilasse constantemente na emulação ora de um ora
de outro, até que ficasse claro tanto para ela quanto potencialmente para o leitor, que
essas categorias rígidas e excludentes não faziam sentido, e que eram por si
insustentáveis e artificiais.
Sob essa ótica, sua postura quase descontrolada e indócil na infância não apenas
contrasta fortemente com a sua tentativa de ser reservada e comedida durante o período
final de permanência em Lowood, mas, sobretudo, com o seu posicionamento em
Thornfield, onde Jane parece ser uma combinação das duas imagens anteriores.
120
“[…] I had imbibed from her something of her nature and much of her habits: more harmonious
thoughts: what seemed better regulated feelings had become the inmates of my mind. I had given in
allegiance to duty and order: I was quiet: I believed I was content: to the eyes of others, usually even to my
own, I appeared a disciplined and subdued character”. (Tradução nossa).
121
“[…] I am not an angel," I asserted; "and I will not be one till I die: I will be myself. Mr. Rochester, you
must neither expect nor exact anything celestial of me--for you will not get it”. (Tradução nossa).
129
Principalmente junto a Rochester, Jane parece transitar facilmente entre as esferas
potencialmente antagônicas, alternando demonstrações de docilidade e submissão com
explosões de força intelectual e assertividade. Será, entretanto, um novo aprendizado para
Jane, que se inicia quando ainda se encontra em Lowood prestes a abrir mão de um estilo
de vida que muitos considerariam digno para aquela jovem órfã.
Quando a vida em Lowood não se mostra mais tão estimulante para Jane, ela
decide partir em busca de novos horizontes. Reconhecendo-se destituída de um modelo
de emulação de conduta, visto que Maria Temple acabara de contrair matrimônio e
partira de Lowood, Jane sente-se na iminência de uma transformação em sua vida,
sobretudo porque todo o confinamento e a restrição imposta pelo estilo de vida adotado
na escola pareciam lhe tolher a liberdade.
Jane vê-se mais uma vez sozinha, destituída, infeliz, sem perspectivas, chegando
mesmo no auge do desespero a clamar que a vida a proporcionasse “pelo menos uma
nova serventia!” (BRONTË, 1995, p. 50).
122
Ao reconhecer que lhe faltava tudo,
principalmente um modelo que sua mente “tinha eliminado tudo que tinha pegado
emprestado da Senhorita Temple ou melhor, que ela tinha levado com ela a atmosfera
serena que respirava em sua companhia” (BRONTË, 1995, p. 50)
123
, Jane intui o que
fazer em busca de novos estímulos e candidata-se a uma posição de governanta. Antes de
partir, entretanto, mais uma vez Jane tem sua representação de feminilidade examinada e
contrastada, dessa vez com as das duas primas que na infância sempre se mostraram
superiores e cruéis. Aos olhos de Bessie, antiga serviçal da tia de Jane, embora a beleza e
status social de Georgiana e de Eliza continuassem superior, Jane havia adquirido outros
atributos que faziam dela uma dama em potencial, uma figura mais próxima do ideal de
docilidade e abnegação do período. O que Bessie não sabe é que Jane não se contenta
com isso e deseja algo mais.
Jane vislumbra na possibilidade de ir para Thornfield trabalhar como governanta
um novo estímulo “desejava ir para onde houvesse vida e movimento” (BRONTË,
1995, p. 52).
124
Nessa terceira e longa fase da narrativa, temos uma Jane que não apenas
122
“[…] “at least a new servitude!” (Tradução nossa).
123
“[…] had put off all it had borrowed of Miss Temple – or rather that she had taken with her the serene
atmosphere I had been breathing in her vicinity”. (Tradução nossa).
124
“[…] I longed to go where there was life and movement”. (Tradução nossa).
130
descobre o amor na figura de Edward Rochester, mas, sobretudo, vê-se diante de uma
nova série de limitações. Durante essa fase, Jane precisa enfrentar não apenas o
reconhecimento de sua aparente impossibilidade de competir com Blanche Ingram pelo
amor de Rochester, mas também a descoberta de que ele seria casado, mantendo a
primeira esposa trancafiada no sótão em virtude de sua suposta demência.
Thornfield oferece a Jane a possibilidade de experimentar outras possibilidades em
termos de vivência do feminino. Num ambiente no qual praticamente nada se conhecia
dela exceto boas informações na carta de recomendação, é como se Jane tivesse liberdade
para melhor explorar características que até então se mostravam irreconciliáveis em sua
existência. Nesse ambiente, Jane poderia continuar representando o papel de dócil,
submissa e servil, mas também dar vazão a suas opiniões fortes e a seus anseios,
principalmente com Edward Rochester. Acredito que nessa terceira fase da narrativa
Brontë explora mais abertamente as possibilidades de conciliação das duas imagens que
Jane apresentou, às vezes sem sucesso, nas fases anteriores, reforçando na caracterização
da personagem características que seriam potencialmente conflitantes, mas que se
revelam cruciais na discussão acerca da condição feminina. Nesse sentido, é durante sua
estada em Thornfield que Jane perceberá de forma mais clara as inconsistências e
arbitrariedades da ideologia de gênero na sociedade vitoriana e terá que descobrir saídas
para os novos impasses que lhe serão colocados pelo duplo padrão de moralidade do
período.
Nos seus primeiros dias em Thornfield, Jane sente-se de certa forma segura, uma
vez que estava na companhia de iguais em termos de classe e expectativas de gênero:
“essa viúva gentil e afável não era nenhuma grande dama, mas uma dependente como eu.
[...] fiquei mais satisfeita dessa forma. A igualdade entre nós era real, não o mero
resultado de sua condescendência” (BRONTË, 1995, p.60).
125
O estímulo que ela tanto
desejava se vislumbra quando as primeiras informações sobre seu patrão, Edward
Rochester, são fornecidas pela Senhora Fairfax. Descontente, pois as mesmas são um
pouco vagas - “ele é bastante peculiar, talvez” (BRONTË, 1995, p. 62)
126
, Jane é
125
“[…] this affable and kind little widow was no great dame, but a dependent like myself. […] I felt better
pleased than ever. The equality between her and me was real; not the mere result of condescension on her
part”. (Tradução nossa).
126
“[…] he is rather peculiar, perhaps”. (Tradução nossa).
131
interrompida em suas explorações da mansão por uma risada que ecoa pelos corredores e
que desperta na protagonista certo desconforto, mas, ao mesmo tempo, um enorme
fascínio e curiosidade.
Sempre conjeturando acerca do mundo sobrenatural, Jane obtém uma resposta
lógica e momentaneamente convincente por parte da Senhora Fairfax: a risada seria de
uma mulher, Grace Poole, que ajudava nas tarefas domésticas. Porém, Jane não parece
dar-se por satisfeita e ao comentar que pouco tempo passaria até que Thornfield se
revelasse o oposto do que ela esperava em termos de perspectivas, afirma que o que
parecia aplacar a inquietação que fazia parte de sua constituição era percorrer o mesmo
corredor onde ouvira aquela risada pela primeira vez, e nesses momentos permite-se
“abrir os ouvidos da mente para uma estória interminável uma narrativa criada por
minha imaginação e narrada continuamente” (BRONTË, 1995, p. 65).
127
Com essa afirmação, a meu ver, o que Jane faz é atentar para o caráter que as
mulheres se viam impelidos a adotar na sociedade. Sempre se esperava um determinado
padrão de comportamento da mulher, independente de sua classe social, de suas reais
perspectivas de vida, de seus anseios e necessidades. O feminino era um papel a
aprender, tal como uma máscara a ser colocada nas performances teatrais, disfarçando
elementos não desejáveis, e acentuando outros. A mulher deveria passar, inevitavelmente,
por um processo de reforço e adequação de características tidas como essenciais à sua
inserção social, tal como uma bola de argila poderia ser moldada em um objeto agradável
aos sentidos, como uma boneca, por exemplo. O problema residia no fato de que o
modelo criado
a priori não levava as diferenças em consideração, muito menos se
mostrava flexível em termos de demandas individuais. Era uma
gran narrativa,
continuamente narrada e reelaborada, cujo efeito principal era de perpetuar a condição
inferiorizante da mulher, e que, depois de ser tão intensamente reforçada, fazia do
inconsciente feminino.
Essa narrativa a que Jane alude poderia se referir não apenas a toda a construção
ideologia imputada aos indivíduos, prescrevendo o que seria o certo e desejado em
termos de postura e conduta, mas também à própria interpretação e reelaboração
127
“[…] to open my inward ear to a tale that was never ended- a tale my imagination created, and narrated
continuously”. (Tradução nossa).
132
individual dessa grande narrativa subjugadora. Nesse sentido, é como se a risada de
intensidade sobrenatural supostamente de Grace revelasse para Jane o quanto suas
tentativas de inserção e adequação se mostravam falhas e imperfeitas. Como num teatro,
Jane estaria tentando representar seu papel de boa moça conforme os padrões, mas sua
performance não estaria sendo convincente: suas constantes oscilações entre imagens
conflitantes entre si acabavam sempre por gerar leituras dúbias acerca de sua pessoa e, de
seu posicionamento e, nesse sentido, o riso que ecoava pelos corredores tinha o poder de
evidenciar mais uma vez o fracasso dessa representação.
Após ouvir esse som enigmático e sedutor pela primeira vez e ainda antes de
conhecer Rochester, Jane oferece talvez o único comentário mais explícito acerca da
condição feminina no século XIX em todo o romance. De alguma forma, é como se ela
tivesse alguma percepção acerca da própria artificialidade dos modelos que tentava
reproduzir e que inexoravelmente reduziam a mulher a uma versão imperfeita do homem.
O que se esperava da mulher? Que mantivesse uma postura serena, comedida, reservada e
que se posicionasse de tal forma a satisfazer os desejos alheios, sobretudo os masculinos,
em detrimento de sua própria satisfação. Esse era o ideal desejado e reforçado no
período; era essa a
gran narrativa continuamente reforçada e encenada em sociedade.
Entretanto, a realidade exigia um posicionamento mais assertivo das mulheres, pois
muitas não apenas tinham que ingressar no mercado de trabalho por vezes em condições
abomináveis, mas também precisavam prover por si e suas famílias. Nesse contexto que
exigia o exercício da inteligência e da forca física, como poderiam se inserir e sobreviver
as mulheres tão idealizadas a ponto de assemelharem-se a meras bonecas? Haveria para
elas alguma possibilidade concreta de sucesso nesse ambiente? Poderiam elas compactuar
com a encenação que lhes era esperada e as demandas concretas do dia-a-dia?
Provavelmente não e muitas acabariam sucumbindo em meio a um mar de exigências e
expectativas conflitantes por não se verem capazes de encontrar possibilidades de saída,
conforme aponta a citação abaixo:
é em vão dizer que os seres humanos precisam se satisfazer com a
tranqüilidade: eles precisam de ação e terão que inventá-la se não a
encontrarem. Milhões se encontram condenados a um destino mais
afortunado que o meu e milhões se encontram em uma revolta silenciosa
contra a sua sina. Ninguém sabe quantas rebeliões além das políticas estão
fermentando entre as massas. Espera-se que as mulheres sejam
geralmente calmas: mas as mulheres sentem como os homens; elas precisam
133
exercitar suas faculdades, e de um treino para sua força tanto quanto seus
irmãos; elas sofrem de uma repressão tão rígida, uma estagnação tão
absoluta, precisamente como os homens sofreriam; e é um raciocínio
pobre de seus companheiros mais privilegiados dizer que elas devam se
limitar a fazer pudins e tecer meias, a tocar piano e bordar bolsas. Não é
sensato condená-las, ou rir delas, se procuram mais ou aprendem mais do
que o costume pronunciou como necessário para seu sexo (BRONTË, 1995,
p. 65).
128
Se essas mesmas críticas à condição feminina fossem feitas seguindo a estratégia
utilizada por Brontë em
The Professor, isto é, de forma explícita, direta e na voz
masculina, o efeito potencializador de uma reflexão poderia se perder. Conforme
mencionado anteriormente, acredito que a maior contribuição de
Jane Eyre em termos de
discussão sobre a suposta inferiorização feminina recaia sobre essa sutil mudança no
modo de narrar a estória e verbalizar as insatisfações. O efeito tende a ser ainda mais
potencializado, a meu ver, pelo fato de que as críticas da protagonista geralmente vêm
acompanhadas de episódios nos quais se evidencia sua inadequação e sua suposta
tendência a um descontrole emocional. Se os mesmos comentários fossem verbalizados
por outras personagens femininas, como quando Blanche insinua que a busca pela beleza
feminina é algo normal e mesmo esperado “eu acredito que uma MULHER feia seja
uma mácula na formosa face da criação” (BRONTË, 1995, p. 107)
129
- o efeito não seria
de atacar a ideologia de gênero do período, mas sim de reforçá-la. Somente quando essas
críticas são entremeadas aos devaneios de uma personagem presa aos ideais do período é
que elas ganham força, pois vai de encontro à empatia estabelecida com o leitor que
potencialmente se verá questionando o porquê de todo o sofrimento da heroína e o que
poderia ter sido feito para amainar sua condição.
Obviamente não podemos nos esquecer que Jane narra sua estória
a posteriori, e
que esse fato pode sugerir que ela tenha alterado fatos e acontecimentos e fantasiado
128
“It is in vain to say human beings ought to be satisfied with tranquility: they must have action; and they
will make it if they cannot find it. Millions are condemned to a stiller doom than mine, and millions are in
silent revolt against their lot. Nobody knows how many rebellions besides political rebellions ferment in
the masses of life which people earth. Women are supposed to be very calm generally: but women feel just
as men feel; they need exercise for their faculties, and a field for their efforts, as much as their brothers do;
they suffer from too rigid a restraint, too absolute a stagnation, precisely as men would suffer; and it is
narrow-minded in their more privileged fellow-creatures to say that they ought to confine themselves to
making puddings and knitting stockings, to playing on the piano and embroidering bags. It is thoughtless to
condemn them, or laugh at them, if they seek to do more or learn more than custom has pronounced
necessary for their sex”. (Tradução nossa).
129
“[…] I grant an ugly WOMAN is a blot on the fair face of creation”. (Tradução nossa).
134
personagens e elementos de tal maneira a atender as suas expectativas pessoais e reforçar
seus argumentos. Acredito que Jane não tencione velar tal possibilidade de alteração de
sua estória uma vez que comentários metanarrativos são abundantes, como quando afirma
que “essa não é uma autobiografia tradicional. Estou propensa a invocar a memória
apenas onde sei que suas respostas proporcionarão algum grau de interesse” (BRONTË,
1995, p. 49).
130
Além disso, uma leitura mais criteriosa, sobretudo dos primeiros
capítulos, revela uma personagem artificialmente madura para sua idade, capaz de
análises e questionamentos que não seriam facilmente encontrados em outras crianças.
Nesse sentido, um dos recursos para negociar a aceitação da sua obra e, ao mesmo
tempo, potencializar a crítica da ideologia de gênero do período, é imbuir a narrativa de
imagens estereotipadas em termos de idealização do feminino. Duas são trabalhadas
desde o inicio da narrativa, isto é, a figura angelical potencialmente encarnada pela
Senhorita Temple e por Helen Burns e a figura da mulher redundante que precisa prover
por si mesma, representada pela própria Jane e pela Senhora Fairfax. Falta pelo menos
uma outra imagem que é da mulher insana e, embora Brontë tenha deixado sinais de que
a protagonista poderia sofrer de algum distúrbio ou tendência ao descontrole emocional e
exercício exacerbado da imaginação, nada melhor que colocar no ambiente quase
sobrenatural de Thornfield uma louca encarcerada. Melhor ainda se ela constituir não
apenas um empecilho ao desenvolvimento da protagonista, mas também uma fonte de
fascínio e identificação. Essa figura é inicialmente introduzida pela recorrente risada que
ecoa pelos corredores do terceiro andar da mansão, Jane se identificará cada vez mais
com ela e aos poucos perceberá que essa presença a acompanhará em momentos críticos
em Thornfield. Sempre que Jane estiver mais próxima de uma melhor elaboração da
construção ideológica de gênero na sociedade vitoriana, e também de uma saída para seu
sentimento de não pertencimento, a risada de Bertha alterará sua percepção dos fatos.
Bertha Mason é a primeira esposa de Rochester que por ser tida como louca vive
enclausurada e sob os cuidados de Grace Poole. Entretanto, Bertha parece sinalizar para
Jane os perigos desses papéis de gênero rigidamente impostos pela sociedade, uma vez
que ela própria teria sido uma vítima dessa estrutura por sua inabilidade de adotar os
130
“[…] but this is not to be a regular autobiography: I am only bound to invoke memory where I know her
responses will possess some degree of interest”. (Tradução nossa).
135
padrões de conduta tidos como adequados ao sexo feminino. Como resultado da sua
dificuldade de compactuar e emular o rígido padrão de moralidade e gênero da sociedade
vitoriana, Bertha foi tida como louca. Sua sensualidade inata e sua possível tentativa de
verbalização de suas frustrações e angústias foram interpretadas como sinais evidentes de
um descontrole emocional que supostamente existia em sua família “sua mãe, a
Creole, era tanto louca quando alcoólatra [...] Bertha, como uma filha obediente, copiou
sua mãe em ambas as características” (BRONTË, 1995, p. 176).
131
Embora muito tenha sido estudado e analisado em relação à importância de
Bertha na narrativa, meu foco central não recai sobre a personagem em si e em sua
loucura, mas na sua atração sobre Jane. Numa época na qual a educação visava moldar o
feminino atenuando traços não desejáveis. Bertha vai de encontro ao ideal de
feminilidade que pressupunha um extremado exercício de abnegação e docilidade, sendo
necessário silenciá-la para não comprometer a própria performance de gênero de
Rochester.
Entretanto, ao confinar Bertha sob os cuidados de uma personagem propensa ao
alcoolismo como Grace Poole, o que facilitava suas recorrentes escapadas, Rochester
fracassa na tentativa de silenciamento total da primeira esposa. Por outro lado, uma vez
que o próprio Rochester não chega a ser uma personagem masculina tradicional e em
total consonância com os padrões, questiono se seria a intenção dele silenciar Bertha em
Thornfield. Ao mantê-la tão perto, mas ao mesmo tempo sem exercer real controle sobre
ela, é como Rochester tivesse o reforço do seu fracasso como homem, isto é, Bertha
sinalizaria para ele a sua inabilidade em incorporar o que seria esperado naquela situação.
Nesse sentido, da mesma forma que Bertha está enclausurada em função de sua loucura,
uma vez que não conseguiu assimilar os papéis dela esperados pela sociedade inglesa,
Rochester também estaria preso em sua representação. Tal como Bertha, sempre vigiada
por Grace Poole, mas às vezes conseguindo escapar para ter vislumbres de liberdade
pelos corredores de Thornfield, Rochester encontra-se o tempo todo sob o olhar
escrutinizador de Bertha, encontrando alívio apenas quando se ausenta de casa. Se a
risada é para Bertha a forma de comunicação e conexão com o mundo, Rochester abusa
131
“[…] her mother, the Creole, was both a mad woman and a drunkard! […] Bertha, like a dutiful child,
copied her parent in both points”. (Tradução nossa).
136
do tom de comando e da ironia quando lida com todos, subordinados ou não,
impossibilitando toda e qualquer aproximação mais íntima e intensa que possa colocar
em risco sua ilusória superioridade. Somente Jane, outra personagem presa na sua própria
dificuldade em lidar com as expectativas sociais, mostra-se capaz de vislumbrar as
contradições da representação de Rochester, mas cega pelo amor, corre o risco de se
deixar levar pela idealização do amado.
Usurpada de sua existência social e de um tratamento digno ao ser humano, Bertha
vale-se de suas risadas para comunicar-se, de forma potencialmente enigmática e
sedutora como o canto das sereias. O público alvo de Bertha é bem especifico, isto é,
Jane, como se tentasse alertá-la para o perigo de ser doutrinada a ponto de perder sua
própria identidade. Jane, porém, levará algum tempo até se deixar seduzir pelo chamado
de Bertha e antes disso continuará transitando entre diferentes esferas em termos de
papéis de gênero até encontrar a que melhor atenda suas necessidades e anseios.
Antes mesmo da existência de Bertha vir à tona, as oscilações na representação de
Jane, assim como sua necessidade de reforçar a diferença entre ela e as demais mulheres
ficam evidentes. Quando apaixonada por Rochester, Jane discorre sobre os espécimes
femininos que costumam freqüentar Thornfield sempre tentando encontrar uma falha na
ilusória perfeição por elas encarnada. Seu objeto de estudo principal é Blanche Ingram e
Jane traça um paralelo entre as duas tentando descobrir qual poderia melhor satisfazer os
anseios de Rochester. Para Jane, Blanche era “moldada como uma Diana” (BRONTË,
1995, p.102)
132
. Embora não fosse natural e agradável, sua postura denotava extremado
orgulho e sua risada era sarcástica. Não obstante, ela sabia bem representar seu papel de
jovem dama, entretendo os demais com sua conversa e sua música. Por mais que se
reconhecesse em posição social inferior a Blanche, de certa forma Jane sente-se superior
aos olhos de Rochester e potencialmente mais propensa a agradá-lo, como nos mostra a
citação abaixo:
eu não sentia ciúmes: ou muito pouco […] A Senhorita Ingram não era
digna de ciúmes: ela era muito inferior para incitar esse sentimento
[…] Ela era muito exibida, mas não genuína: tinha uma bela
compleição, muitos dotes brilhantes, mas sua mente era pobre, seu
coração estéril por natureza: nada nascia espontaneamente naquele
terreno; nenhuma fruta naturalmente deliciosa em seu frescor. Ela não
132
“[…] molded like a Dian”. (Tradução nossa).
137
era boa, ela nã
o era original: ela costumava repetir frases de efeito dos
livros: ela nunca oferecia, nem tinha, uma opinião própria
(BRONTË,1995, p. 110).
133
Jane ressente-se de que Rochester, mesmo percebendo as falhas de Blanche, venha
unir-se a ela por questões financeiras. Afinal de contas, o casamento não era
necessariamente motivado por sentimentos, mas sim pelo desejo de estabelecer vínculos
sólidos e lucrativos entre as famílias: “ele casar-se-ia com ela, pela família, talvez por
razões políticas, porque sua posição e conexões lhe interessavam” (BRONTË, 1995, p.
111).
134
Jane parece entender muito bem esse sistema de barganha e busca a todo custo
justificar como uma união de ordem econômica poderia ser melhor do que uma baseada
em sentimentos nobres e afeições em comum. Por outro lado, Jane também admite saber
existir por trás desse sistema toda uma ideologia que prepara os indivíduos para agirem
de forma a compactuar com o esperado. É interessante observar a forma sutil com que
Brontë critica a ideologia do período: ao invés de fornecer um discurso inflamado, Jane
chega mesmo a ser inicialmente condescendente com Rochester e Blanche nessa
barganha por uniões favoráveis para, no final, conforme nos mostra a citação a seguir,
insinuar que parecia haver algo errado ou no mínimo obscuro nesse tipo de relações
sociais:
Ainda não disse nada condenatório do projeto do Senhor Rochester de
casar-se por interesse e conexões […] quanto mais considerava a
posição, educação, e etc. dos envolvidos, menos me senti inclinada a
julgar ou culpar tanto ele quanto a Senhorita Ingram por agir em
conformidade com as idéias e princípios reforçados, sem dúvida, desde
a infância. Todos de sua classe tinham esses princípios: suponho que
eles tinham razões para mantê-los embora as desconhecesse. Parecia-
me que, se fosse um cavalheiro como ele, tomaria por esposa alguém
que amasse; mas a obviedade das vantagens para a felicidade do
próprio marido oferecidas por esse sistema me convenceram que
deveriam haver argumentos contrários a sua adoção geral que eu
desconhecia: de outra forma, tinha certeza de que todos agiriam como
eu gostaria de agir (BRONTË, 1995, p. 112).
135
133
“[…] I was not jealous: or very rarely […] Miss Ingram was a mark beneath jealousy: she was too
inferior to excite the feeling […] She was very showy, but she was not genuine: she had a fine person,
many brilliant attainments; but her mind was poor, her heart barren by nature: nothing bloomed
spontaneously on that soil; no unforced natural fruit delighted by its freshness. She was not good; she was
not original: she used to repeat sounding phrases from books: she never offered, nor had, an opinion of her
own”. (Tradução nossa).
134
“[…] he was going to marry her, for family, perhaps political reasons, because her rank and connections
suited him”. (Tradução nossa).
135
“[…] I have not yet said anything condemnatory of Mr. Rochester's project of marrying for interest and
connections […] the longer I considered the position, education, &c., of the parties, the less I felt justified
138
Apesar da aparente condescendência com o sistema, Jane o critica de forma sutil,
chegando mesmo a deixar subentendido que talvez sua dificuldade de aceitação do
sistema fosse devido ao tipo educação que recebera. Por ter poucas perspectivas de
contrair um bom casamento pela sua falta de beleza e ausência dos demais atributos tidos
como ideais, a educação de Jane foi no sentido de prepará-la apenas para servir e atender
as necessidades alheias.
Mas, diferentemente de Frances em The Professor que abertamente sinaliza para
William sua insatisfação com o sistema, Brontë lança mão da sutileza e da empatia em
Jane Eyre para discutir a condição feminina. As reações de Jane aparentemente são
contraditórias, como se ela não conseguisse chegar ao cerne da questão: ora sente-se
capaz de lutar pela atenção de Rochester, apesar de não ser bela e rica, pois sabe que
possui algo que o instiga e atrai; ora repreende-se por acreditar que ele lhe tinha alguma
afeição. Através de um discurso inflamado, Jane parece tentar encontrar argumentos
lógicos que a convençam da impossibilidade de concretização do seu amor em virtude
das diferenças sociais.
Valendo-se da própria ideologia do período, Jane utiliza argumentos de ordem
econômica e racionaliza sobre a diferença de classe entre Rochester e ela. Por ser uma
governanta, destituída de qualquer posse, cabe a ela apenas servir o patrão e receber o
salário em troca, nada mais, conforme nos mostra a própria Jane dizendo para si mesma:
“você não tem nada a ver com o dono de Thornfield, além de receber o salário que ele lhe
paga para ensinar a sua protegida [...] ele não é da sua ordem” (BRONTË, 1995, p. 97).
136
Mas conforme a citação abaixo, Jane sente-se igual à Rochester, como se ambos
compartilhassem algo que ela não sabe bem dizer o que, mas que potencialmente poderia
sobrepor-se à diferença social:
in judging and blaming either him or Miss Ingram for acting in conformity to ideas and principles instilled
into them, doubtless, from their childhood. All their class held these principles: I supposed, then, they had
reasons for holding them such as I could not fathom. It seemed to me that, were I a gentleman like him, I
would take to my bosom only such a wife as I could love; but the very obviousness of the advantages to the
husband's own happiness offered by this plan convinced me that there must be arguments against its
general adoption of which I was quite ignorant: otherwise I felt sure all the world would act as I wished to
act”. (Tradução nossa).
136
“[…] you have nothing to do with the master of Thornfield, further than to receive the salary he gives
you for teaching his protégée […] he is not of your order”. (Tradução nossa).
139
Ele não é do tipo delas. Acredito que ele é do meu – tenho
certeza que é do meu – sinto-me semelhante a ele – entendo a
linguagem de seus traços e movimentos: embora status e
riqueza nos separem, tenho algo em minha mente e em meu
coração, em meu sangue e nervos, que me assemelha
mentalmente a ele. Eu não disse, alguns dias atrás, que não
tinha nada em comum com ele a não ser receber de suas mãos
meu salário? [...] Blasfêmia contra a natureza! [...] Sei que
preciso disfarçar meus sentimentos: preciso lembrar que ele
não pode se interessar tanto por mim. Porque quando digo que
sou da sua estirpe, não quero dizer que tenho seu poder de
influência e de atração; quero dizer apenas que compartilho
certos gostos e sentimentos. Preciso, então, repetir
continuamente que estamos para sempre separados – e que
entretanto, enquanto viver e pensar, o amarei (BRONTË, 1995,
p. 106).
137
Ao dotar a protagonista do poder de percepção acerca da igualdade com Rochester
com base em sentimentos e interesses intelectuais em comum e, ao mesmo tempo, de
uma constante dúvida sobre a possibilidade de enfrentar-se um sistema ideológico que
rechaçaria a união dos dois, acredito que o efeito de questionamento de toda a ideologia
de gênero fica potencializado. A meu ver, se o leitor toma partido de Jane conforme
esperado, ele não apenas solidariza-se com Jane quando no final torna-se independente
financeiramente e casa-se com Rochester, mas também se compadece dela por sua
inabilidade em lidar com as oposições apresentadas. Se para o leitor contemporâneo as
dificuldades vivenciadas por Jane parecem de simples resolução, o mesmo não poderia se
dizer do leitor do século XIX, para o qual, imerso em contradições e transformações
sociais intensas, conforme discutido no primeiro capítulo, a saga de Jane é intrigante por
potencializar uma possibilidade de conciliação de instâncias que até então se viam
dissociadas.
Ao se perguntar o porquê do sofrimento e dificuldade de inserção de Jane, esses
leitores provavelmente chegariam à percepção de que a própria construção ideológica
enraizada na sociedade condicionava e reforçava a posição supostamente inferior da
137
“[…] he is not of their kind. I believe he is of mine; -- I am sure he is -- I feel akin to him -- I understand
the language of his countenance and movements: though rank and wealth sever us widely, I have something
in my brain and heart, in my blood and nerves, that assimilates me mentally to him. Did I say, a few days
since, that I had nothing to do with him but to receive my salary at his hands? […] Blasphemy against
nature! […] know I must conceal my sentiments: I must smother hope; I must remember that he cannot
care much for me. For when I say that I am of his kind, I do not mean that I have his force to influence, and
his spell to attract; I mean only that I have certain tastes and feelings in common with him. I must, then,
repeat continually that we are for ever sundered:- and yet, while I breathe and think, I must love him”.
(Tradução nossa).
140
mulher, os casamentos por interesse e uma educação diferenciada. Nesse sentido, Jane
nada mais é do que uma entre muitas mulheres que sofrem por acreditarem ser capazes de
muito mais do que lhes era permitido.
Faz-se necessário ressaltar que Brontë questiona em
Jane Eyre não apenas o peso
da ideologia de gênero sobre as mulheres, mas também sobre os homens. Se até agora as
personagens masculinas mais relevantes compactuavam com a crença na inferioridade
feminina e reforçavam a suposta conduta feminina ideal, nada melhor para estabelecer
um contraponto do que apresentar uma personagem masculina ambígua em termos de
representação do ideal de masculinidade. Edward Rochester, senhor de Thornfield, é
caracterizado de forma semelhante à Jane, subvertendo as expectativas em termos de um
herói numa estória de amor.
A primeira aparição de Rochester é em meio a uma atmosfera sobrenatural.
Precedido por um cão que Jane associa com Gytrash
138
, Rochester mais parece uma visão
do que um mero viajante aos olhos de Jane. Absorto em seus próprios interesses,
Rochester não percebe que Jane o observa quando ele sofre uma queda de seu cavalo. Ao
ajudá-lo, Jane se sente hipnotizada por uma figura cujos traços não se visualizava tão
bem e cuja postura arrogante tinha o efeito de ir ao encontro de sua imaginação: “não
senti medo dele, mas um pouco de timidez. [...] o sobrolho, a rudeza do viajante me
deixou confortável” (BRONTË, 1995, p. 68).
139
Jane enfatiza que Rochester estaria
distante da caracterização estereotipada do ideal masculino; ele não seria belo, muito
menos um cavalheiro educado e é justamente essa dissonância em relação ao padrão que
fascina e intriga Jane. Parece mesmo que Jane reconhece-se igual à Rochester, como a
citação a seguir nos mostra:
eu possuía uma reverencia teórica e uma deferência pela
beleza, elegância, galanteio, enlevo; mas se tivesse encontrado
essas qualidades encarnadas no ser masculino, saberia
instintivamente que elas não teriam nenhuma simpatia com
qualquer coisa em mim, e teria evitado-as como alguém que
evita o fogo, o relâmpago, ou qualquer coisa que seja brilhante
porém repulsivo (BRONTË, 1995, p. 68).
140
138
Figura espectral na forma de um grande cão negro ou de um lobo, legendária na Inglaterra por
supostamente assombrar viajantes em estradas desertas.
139
“[…] I felt no fear of him, and but little shyness. […] the frown, the roughness of the traveler set me at
my ease”. (Tradução nossa).
140
“[…] I had a theoretical reverence and homage to beauty, elegance, gallantry, fascination; but had I met
those qualities incarnate in masculine shape, I should have known instinctively that they neither shunned
141
É interessante observar as imagens que Jane utiliza em sua descrição de Rochester
que aludem ao fogo, elemento simbolicamente dicotômico por natureza, uma vez que
simboliza tanto a destruição quanto a purificação e possibilidade de criação. Encarnaria
Rochester a mesma ambigüidade na narrativa, isto é, seria ele um elemento
potencializador de destruição de velhos paradigmas e criação de novas formas de
entendimento da ideologia de gênero? Acredito que sim e, a meu ver, Rochester
potencializa em sua própria caracterização a subversão ao ideal do período, conduzindo
Jane a questionamentos cada vez mais elaborados que lhe permitem obliterar ainda mais
as distâncias entre os ideais de feminilidade ao seu redor.
Ao descobrir que o homem a quem ajudara era Rochester, a primeira reação de
Jane é de satisfação ao perceber que a atmosfera de Thornfield se alterara pela simples
presença daquela figura masculina. Nada mais pessoal ou revelador nos é fornecido até
quando a Senhora Fairfax comunica que Jane deverá acompanhar a pequena Adèle no
jantar junto ao patrão. Embora vestida com seu melhor vestido, a figura de Jane não
parece ser interessante o suficiente para chamar a atenção de Rochester naquele
momento, que sequer parece perceber sua presença no recinto, mesmo quando
formalmente apresentado a ela. Entretanto, o efeito em Jane é de reforçar seu fascínio e
interesse naquela figura que subvertia tanto as expectativas femininas.
Desde o primeiro contato efetivo entre os dois percebe-se uma tensão no ar, como
se ambos extraíssem profundo prazer no simples fato de provocarem-se mutuamente em
um diálogo repleto de alusões mitológicas. Pelo tom quase agressivo que a fala dos dois
assume, parece haver uma suspensão temporária da distância que naturalmente se
esperaria naquele contexto, chegando mesmo a incomodar a Senhora Fairfax por sua falta
de adequação em termos não apenas de padrões de gênero, mas também de posição
social: “a Senhora Fairfax abandonou seu tricô, e com as sobrancelhas franzidas parecia
questionar-se que tipo de conversa era aquela” (BRONTË, 1995, p. 73).
141
Quanto mais
brusco era o tom de Rochester “desculpe-me pelo meu tom de comando; estou
acostumado a dizer “faça isso”, e isso é feito; não posso alterar meu tom natural por
them had or could have sympathy with anything in me, and should have shunned them as one would fire,
lightning, or anything else that is bright but antipathetic”. (Tradução nossa).
141
“[…] Mrs. Fairfax had dropped her knitting, and, with raised eyebrows, seemed wondering what sort of
talk this was”. ( Tradução nossa).
142
causa de uma recém chegada” (BRONTË, 1995, p. 74)
142
- mas Jane tem prazer em
obedecer. Por vezes é como se os dois estivessem envolvidos num jogo, numa
competição por poder e atenção que, embora pareça inicialmente desigual em virtude da
diferença de idade, gênero e posição social, paulatinamente se revela mais e mais
equilibrada e frutífera.
Rochester pressiona Jane a compartilhar com ele não apenas detalhes de sua vida
em Lowood, mas também sua opinião sobre a sua compleição física. É interessante, nesse
sentido, observar a tensão entre os pensamentos e a fala de Jane. Apesar de responder aos
questionamentos aparentando naturalidade e calma, sua mente apresenta-se em meio a
um turbilhão de sensações divergentes, oscilando entre a admiração pelo porte destemido
e mesmo indiferente de Rochester e a sua necessidade de auto-reforçar sua inadequação,
como quando Rochester se desculpa mais uma vez por seus modos brutos: “Sorri. Pensei
comigo mesma que o Senhor Rochester é peculiar ele parece se esquecer que me paga
£30 por ano para receber suas ordens” (BRONTË, 1995, p. 80).
143
Além disso, apesar de
estar sempre reforçando sua inadequação face os padrões esperados, Jane critica
Rochester por sua aparente insatisfação com o rumo que sua vida havia tomado quando
ele começa a se lamentar sobre fatos desagradáveis que posteriormente se revelariam
relativos ao seu primeiro casamento com Bertha Mason. Embora a própria Jane pudesse
ser considerada duplamente inferior a Rochester em termos de diferença social e de
gênero é como se houvesse uma inversão de papéis entre os dois, cabendo ao homem
representar nesse momento o papel de sofredor e amargurado e Jane o de perspicaz e
ousada, como nos mostra a citação abaixo:
Para falar a verdade, senhor, não consigo entendê-lo: não posso
continuar nessa conversa porque sinto que escapa das minhas
possibilidades. Só sei de uma coisa: você disse não ser tão bom
quanto gostaria, e que se lamentava de suas próprias imperfei-
ções; - uma coisa eu posso compreender: você afirma que ter
uma mácula na memória e uma perdição perpétua. Parece-me
parece, que se você tentasse realmente, você com o tempo
descobriria ser possível tornar-se o que você aprova e que
se a partir de hoje você tivesse a resolução de corrigir seus
pensamentos e ações, você possuiria em poucos anos uma nova
gama de lembranças imaculadas, as quais você se recordaria
142
“[…] excuse me my tone of command: I am used to say “do this”, and it is done; I cannot alter my
customary habits for one new inmate”. (Tradução nossa).
143
“[…] I smiled. I thought to myself Mr. Rochester is peculiar – he seems to forget that he pays me £30
per annum for receiving his orders”. (Tradução nossa).
143
com júbilo (BRONTË, 1995, p. 82).
144
Tal aparente inversão de papéis se evidenciará cada vez nos diálogos travados entre
os dois, assemelhando-se a uma verdadeira batalha pelo poder, cabendo a cada um deles
subverter as expectativas do outro aparentemente para testar ou identificar alguma
contradição ou falha. Rochester chega não apenas a insinuar conhecer a verdadeira
personalidade de Jane “você não é naturalmente austera [...] a repressão de Lowood
ainda encontra-se em você de alguma forma; controlando suas feições, silenciando sua
voz, e restringindo seus movimentos” (BRONTË, 1995, p. 83)
145
- mas também a
apresentar-se travestido de cigana, desejando desvendar melhor o enigma chamado Jane
Eyre.
Nesse episódio específico, a suposta fortaleza e indiferença de Jane desmoronam
perante Rochester e mais uma vez Jane se vê à beira de um descontrole emocional
semelhante ao vivenciado em Gateshead Hall. Rochester, passando-se por uma sibila
146
,
conduz Jane a uma encenação na qual suas máscaras acabam por cair, evidenciando os
sentimentos que ela nutre por Rochester. Travestido de cigana, Rochester supostamente
nas feições de Jane alterações que denotam que a protagonista estaria padecendo de
amor:
você está gélida, porque sente-se sozinha: nenhuma
presença alimenta o fogo que há em você. Você está enferma
porque o melhor, mais doce e mais elevado dos sentimentos
dados ao homem, encontra-se negado a você. Você é tola,
porque, sofrendo como está, não perceberá a aproximação dele;
nem dará um passo sequer para encontrá-
lo onde ele a aguarda
(BRONTË, 1995, p. 117).
147
144
“[…] to speak truth, sir, I don’t understand you at all: I cannot keep up the conversation because it has
got out of my depth. Only one thing I know: you said you were not as good as you should like to be, and
that you regretted your own imperfection; - one thing I can comprehend: you intimated that to have a
sullied memory was a perpetual bane. It seems to me, that if you tried hard, you would in time find it
possible to become what you yourself would approve; and that if from this day you began with resolution
to correct your thoughts and actions, you would in a few years have laid up a new and stainless store of
recollections, to which you might revert with pleasure”. (Tradução nossa).
145
“[…] you are not naturally austere […] the Lowood constraint still clings to you somewhat; controlling
your features, muffling your voice, and restricting your limbs”. (Tradução nossa).
146
Termo que significa profetisa e que na antiguidade era usado para se referir às videntes oraculares.
147
“[…] you are cold, because you are alone: no contact strikes the fire from you that is in you. You are
sick: because the best of feelings, the highest and the sweetest given to man, keeps far away from you. You
are silly, because, suffer as you may, you will not beckon it to approach; nor will you stir one step to meet
it where it waits you”. (Tradução nossa).
144
É interessante observar que ao ser cada vez mais pressionada pela vidente acerca
dos supostos preparativos para o casamento de Rochester, Jane responde apenas dizendo
que “a avidez do ouvinte estimula a fala do narrador” (BRONTË, 1995, p. 119)
148
, antes
de sinalizar que mais uma vez estaria prestes a adentrar numa dimensão onírica. Após
essa rápida menção, é como se Jane não mais conseguisse manter-se em posição de
claro discernimento, dando vazão à possibilidade cada vez mais concreta de Rochester
unir-se a Blanche. Seu descontrole vai desenvolvendo-se num crescendo até que a mesma
é retirada desse transe quando Rochester, ainda travestido, diz “Levante-se, Senhorita
Eyre: saia, a peça já foi encenada” (BRONTË, 1995, p. 120)
149
. Nesse momento, embora
ainda sob o efeito quase delirante da fala da suposta cartomante, Jane percebe toda a farsa
e reconhece os traços e feições de Rochester. Mais uma vez colocando a máscara da
reserva e do comedimento, Jane repreende-o dizendo que a farsa não foi convincente o
suficiente de forma a exercer algum efeito sobre ela. Jane chega a afirmar que havia
percebido inconsistências na representação daquela suposta cigana, embora, em
realidade, ela tenha se permitido levar num fluxo quase alucinatório, que culmina com o
som da risada de Bertha, mais uma vez ecoando pelos corredores de Thornfield.
Qual a relevância desse episódio na discussão da representação de gênero de
Rochester e Jane? A meu ver, não apenas a reação quase descontrolada de Jane é
importante, como também a escolha da autora em permitir que esse descontrole seja
motivado e conduzido por uma personagem masculina travestida. Ao posicionar as
personagens nessa espécie de jogo performático no qual um homem, vestido de mulher,
tenta ter acesso aos reais sentimentos e sensações de uma mulher que insiste em
posicionar-se de forma assertiva e fria, é como se fosse potencializado o reconhecimento
do caráter ficcional da postura de ambas as personagens em termos de padrões de gênero.
Por mais que Jane tenha sinalizado que por vezes os indivíduos agem em conformidade
com um sistema ideológico e um padrão de expectativas que objetiva reforçar posturas
que garantam uniões favoráveis, é como se fosse necessário encontrar um mecanismo
capaz de reforçar a crítica de forma mais direta na narrativa. Nada melhor do que travestir
o protagonista masculino, fonte de fascínio e interesse de Jane por sua postura
148
“[…] the eagerness of the listener quickens the tongue of the narrator”. (Tradução nossa).
149
“[…] Rise, Miss Eyre: leave me; “the play is played out”. (Tradução nossa).
145
enigmática, fazendo que o mesmo representasse um papel que originalmente não lhe
cabia de forma tão convincente a ponto de enganar todas as mulheres, sobretudo Jane.
Em outras palavras, o travestimento de Rochester pode sinalizar que os papéis de
gênero seriam equivalentes a uma narrativa a ser aprendida e internalizada em termos de
quais posturas, trejeitos e posicionamentos assumir e ao tentar desconstruir a encenação
oferecida por Jane que tanto diferia do padrão ao ser redor, Rochester acaba por revelar a
artificialidade dessa postura. Nesse sentido, o problema não reside no fato de Jane não
conseguir sustentar sua representação em situações de stress e tensão emocional, nem no
fato de tentar conciliar posturas inicialmente conflitantes para o padrão da época. O
próprio travestimento de Rochester naquela situação específica não seria um grande
problema. A questão central reside no fato de que ambas as personagens parecem tentar
obliterar os limites rigidamente impostos entre os papéis do sexo masculino ou feminino
e, nesse sentido, o resultado pode ser tanto de ridicularização desses padrões, ou de
questionamento. Michelene Wandor postula que qualquer manifestação de travestimento
no século XIX pode ser uma tentativa de contenção da crescente tensão criada pela
imposição dos padrões de conduta rígidos e que pareciam desconsiderar a verdadeira
revolução de ordem social que acometia a sociedade, ou mesmo funcionar como uma
verdadeira forma de rebelião, uma válvula de escape para os problemas encontrados. Isso
porque ao distanciar-se dos padrões de forma a imitá-los ou mesmo ridicularizá-los, o
efeito poderia ser de reforço do ideal ou de questionamento da própria estrutura
ideológica (WANDOR, 1998, p. 172).
No caso específico de
Jane Eyre o efeito é de sutilmente potencializar o
questionamento dos padrões de conduta impostos e reforçados em termos de papéis de
gênero. Levando-se em consideração que não existem na obra muitas passagens que
explicita e diretamente ataquem a condição feminina no século XIX, esse episódio de
travestimento de Rochester funciona como um adendo a todas as sutis críticas que foram
apresentadas pela caracterização das personagens e pela forma como a narrativa se
desenrola. Nesse sentido, tal episódio teria o mesmo peso que a elaboração das
personagens William e Hunsden de
The Professor, evidenciando traços, trejeitos e
posturas que tradicionalmente se associariam ao feminino, contrastando com a postura
mais crítica com que Brontë trabalharia o travestimento em
Villette, por exemplo.
146
Numa obra na qual Brontë parece lançar mão da sutileza em seus questionamentos,
acentuando cada vez mais a negociação de seu romance com as expectativas da época,
não caberia a esse episódio uma interpretação da ridicularização dos padrões com o
objetivo de reforço do ideal.
Jane Eyre não parece ser uma obra construída de forma a
reforçar a ideologia de gênero, mesmo porque seus pressupostos básicos são todos
revertidos. Temos uma protagonista desprovida de tudo que acaba se unindo a um
homem que não possui nada de herói e que chega mesmo a propor bigamia como saída
para a concretização de seu relacionamento. De fato, como bem ressalta John Peters, as
críticas mais negativas que a obra recebeu quando foi publicada acusavam-na de falta de
decoro (PETERS, 1996, p.65), como por exemplo a revisão no
The Christian
Remembrancer
que afirma que a obra possui uma combinação de astúcia e vulgaridade
(citado por BARKER, 1998, p. 193).
Em vários episódios, tanto Jane quanto Rochester exibem comportamentos
conflitantes com o que seria tido como ideal. Conforme afirmado anteriormente, parece
haver uma disputa entre os dois, com diálogos ágeis e repletos de certa agressividade que
não seria comum no tipo de relacionamento entre patrão e governanta, sobretudo se eles
estivessem apaixonados um pelo outro. Porém, entre Jane e Rochester é como se os
limites do certo e errado em termos de papéis de gênero fossem obliterados: não havia
espaço para reservas ou meias palavras. Mesmo que não expressassem abertamente seus
pensamentos e sentimentos, sente-se uma cumplicidade entre os dois, uma liberdade de
expressão que com certeza não era bem entendida pelos outros. De fato, tratava-se
mesmo de uma união entre indivíduos que aparentemente teriam pouco em comum, ou
como Jane havia sinalizado para a Senhora Fairfax ao comentar sobre a diferença de
idade entre Rochester e Blanche: “uniões mais desiguais são estabelecidas todos os dias”
(BRONTË, 1995, p. 95).
150
Jane paulatinamente tem sua percepção acerca de Rochester alterada: seus defeitos
não lhe incomodam mais nem se revelam objeto de interesse e estudo “eu estava
esquecendo de todas as suas falhas [...] anteriormente minha tarefa era estudar todas as
150
“[…] more unequal matches are made every day”. (Tradução nossa).
147
facetas de seu caráter [...]. Agora não via nada ruim” (BRONTË, 1995, p. 112).
151
De
fato, é como se Jane reconhecesse que ambos possuíam dificuldades em conciliar as
expectativas sociais e os seus desejos mais íntimos, uma vez que não sabiam lidar muito
bem com seus próprios conflitos. Jane passa a entender melhor o comportamento por
vezes enigmático, sarcástico e mesmo rude de Rochester, assim como sua necessidade de
valer-se da ironia e da representação para ter acesso aos reais pensamentos dos outros.
Como iguais, ou mesmo duplos, Jane e Rochester reconhecem as brechas na
representação de gênero um do outro como sinais de sua inabilidade, embora em
Rochester essas pareçam ter uma conotação de escolha, como uma forma de
posicionamento. em Jane, as mesmas inconsistências de comportamento parecem ser
reflexo da dificuldade em fazer escolhas concretas relacionadas ao tipo de vida que a
personagem quer levar, mesmo que de encontro às expectativas das outras
personagens. Em outras palavras, Rochester parece estar confortável com suas escolhas e
com o tipo de reação gerada pela sua postura bruta com os outros, apesar de saber-se
superior apenas com base nessa representação forçada. Jane, por outro lado, ainda
ressente-se de que todas as suas tentativas de inserção tendem a fracassar, seja porque
não consegue convencer os demais, seja por não conseguir visualizar a si mesma naquele
papel, tendo, por vezes, no delírio e no sonho a possibilidade de momentaneamente
escapar de uma encenação que lhe era quase insuportável.
Em meio a sentimentos e expectativas conflitantes, Jane tenta agir de forma
racional e se mostra inicialmente condescendente com a perspectiva de Rochester casar-
se por interesse com Blanche, mas ao revelar-se tão vulnerável, sinaliza que deseja
encontrar uma outra saída do que a mera aceitação dos padrões. Ignorando ser ela a
escolhida como noiva e deixando-se levar pelo discurso circular e velado de Rochester,
Jane prostra-se ao lado dele e verbaliza seus sentimentos:
Eu preciso ir! [...] Você acha que posso ficar aqui e não ser
nada para você? Você acha que sou um autômato? Uma
máquina sem sentimentos? [...] Você acha que porque sou
pobre, obscura, simples e pequena, que não tenho alma nem
coração? Você está errado! [...] E se Deus tivesse me dado
beleza e riqueza, eu teria dificultado para você me deixar,
como agora é difícil para mim deixá-lo. Não estou falando com
você agora com base em costume, ou convenção [...] é meu
151
“[…] I was forgetting all his faults […] It had formerly been my endeavor to study all sides of his
character […] Now I saw no bad”. (Tradução nossa).
148
espírito que se dirige ao seu, como se ambos tivessem passado
pelo túmulo e estivéssemos prostrados aos pés de Deus, iguais,
como somos! (BRONTË, 1995, p. 152).
152
Somente após essa reação passional de Jane é que Rochester admite que deseja
unir-se a ela. Todos os preparativos transcorrem num clima de aparente tranqüilidade,
com Jane chegando mesmo a apresentar feições alteradas, mais leves e belas. Seus planos
futuros, de forma semelhante à Frances em
The Professor, incluem a continuação na
carreira profissional, pois Jane desejava ver-se independente financeiramente em relação
à Rochester, conforme podemos extrair da citação abaixo:
Se eu for independente, mesmo com pouco, nunca terei
que me sujeitar a ser vestida como uma boneca pelo Senhor
Rochester, ou permanecer sentada como uma segunda
Dánae
153
com uma chuva de ouro caindo ao meu redor
diariamente […]Você se lembra do que disse sobre a sua Celine
Varens? Dos diamantes e cashmeres que deu a ela? Não serei
sua Celine Varens inglesa. Continuarei como governanta de
Adèle, com o qual ganharei meu sustento […] você não deverá
me dar nada exceto […] sua atenção [...] (BRONTË, 1995,
p. 161).
154
Após a certeza de que suas intenções profissionais seriam garantidas, os
preparativos para o casamento transcorrem sem grandes incidentes, embora Jane esteja
novamente num crescendo rumo a um colapso nervoso até que na véspera tem um sonho
no qual é obrigada a abandonar Thornfield e experimentar momentos desagradáveis e
angustiantes. Além do sonho perturbador, Jane tem seu véu destruído por Bertha que a
152
“[…] I tell you I must go! […] Do you think I can stay to become nothing to you? Do you think I am
an automaton?--a machine without feelings? […] Do you think, because I am poor, obscure, plain, and
little, I am soulless and heartless? You think wrong! […] And if God had gifted me with some beauty and
much wealth, I should have made it as hard for you to leave me, as it is now for me to leave you. I am not
talking to you now through the medium of custom, conventionalities […] it is my spirit that addresses your
spirit; just as if both had passed through the grave, and we stood at God's feet, equal,--as we are!”.
(Tradução nossa).
153
Figura da mitologia grega, filha única do Rei Acrísio e Eurídice. Após previsão do oráculo de que seu
filho mataria seu pai quando Acrísio questiona não ter tido filhos varões, Dánae é mantida em reclusão
numa torre de bronze sendo posteriormente impregnada por Zeus, dando a luz a Perseu. Sua lenda,
bastante popular, exprime através da imagem da chuva de ouro penetrando no cárcere e gerando um filho,
uma das funções essenciais de Zeus, deus do céu, por vezes assimilado ao Sol, que fecunda os grãos nas
profundezas do solo.
154
“[…] if I had ever so small an independency; I never can bear being dressed like a doll by Mr.
Rochester, or sitting like a second Danae with the golden shower falling daily round me. […] Do you
remember what you said of Celine Varens?--of the diamonds, the cashmeres you gave her? I will not be
your English Celine Varens. I shall continue to act as Adele's governess; by that I shall earn my board and
lodging […] you shall give me nothing but […] your regard […]”. (Tradução nossa).
149
visita durante a noite, embora sua existência ainda não seja de seu conhecimento e, como
conseqüência Jane desmaia. Quando a existência da primeira esposa de Rochester é
revelada, assim como o fato de que vive enclausurada em Thornfield, tanto Jane quanto
Rochester exibem reações que desafiam o código de conduta da sociedade vitoriana.
Rochester tenta a todo custo atenuar a acusação de bigamia valendo-se de argumentos
preconceituosos e mesmo racistas. Para ele, nada mais normal do que buscar uma nova
união que Bertha era uma insana, o total oposto do ideal de feminilidade que ele teria
aprendido ser o certo:
Bigamia é uma palavra forte! [...] Eu fui casado e a mulher
com a qual me casei ainda vive! [...] Bertha Mason é insana; e
vem de uma família de insanos [...] Eu tinha uma companheira
charmosa – pura, sabia, modesta [...] convido a todos a irem a
minha casa e visitar a paciente da Senhora Poole, MINHA
ESPOSA! Vocês verão com que tipo de ser me casei enganado
e julgarão se tenho ou não o direito de romper o contrato e
buscar simpatia em alguém pelo menos humano. [...] Essa é
MINHA ESPOSA. [...] e ESSA é a que desejo ter [...]
Comparem esses olhos límpidos com aqueles glóbulos
vermelhos lá – essa face com aquela máscara – essa forma com
aquele bloco; então me julguem, representante da igreja e
homem da lei [...] (BRONTË, 1995, p.175- 176).
155
Jane, por sua vez, tem uma reação bastante relevante no sentido de revelar o
quão subversiva essa personagem potencialmente é. Em meio a toda a confusão relativa à
descoberta de Bertha, Jane permanece calma e impassiva, contrariando as alusões
anteriores à sua passionalidade e emoção exacerbada. Ao contrário de Rochester, que
parece estar prestes a ruir emocionalmente, Jane age como se todos aqueles
acontecimentos não lhe afetassem de alguma forma. Ela apenas reconhece que suas
perspectivas se viram mais uma vez frustradas, chegando mesmo a indagar, de forma
irônica, o porquê de ninguém em Thornfield ter oferecido consolo após o incidente. Mas
o mais intrigante, a meu ver, é o fato de que Jane quase que imediatamente perdoa
Rochester, sem ao menos questionar o porquê de sua omissão e quando posteriormente
155
“[…] Bigamy is an ugly word! […] I have been married, and the woman to whom I was married lives!
[…] Bertha Mason is mad; and she came of a mad family […] I had a charming partner--pure, wise, modest
[…] I invite you all to come up to the house and visit Mrs. Poole's patient, and MY WIFE! You shall see
what sort of a being I was cheated into espousing, and judge whether or not I had a right to break the
compact, and seek sympathy with something at least human. […]That is MY WIFE […] And THIS is what
I wished to have Compare these clear eyes with the red balls yonder--this face with that mask--this form
with that bulk; then judge me, priest of the gospel and man of the law […]”. (Tradução nossa).
150
St. John comenta sobre o caráter de Rochester, Jane o defende veementemente. Com
relação à Bertha, após um inflamado discurso de Rochester sobre o que deveria ter feito
para mantê-la realmente reclusa, Jane apenas comenta que “ela não escolheu ser uma
insana” (BRONTË, 1995, p. 181).
156
Em outras palavras, mais uma vez parece haver
uma inversão de papéis entre Rochester e Jane: após o incidente do casamento, Rochester
demonstra certo descontrole emocional ao passo que Jane luta para manter-se fria e
racional, numa postura que não seria a esperada da mulher do período.
Após alguns dias andando a esmo, mendigando por comida e por um abrigo, inicia-se
a próxima etapa na jornada da protagonista que acaba ocupando posição de professora
junto a amigos que se revelariam ser parentes distantes. Em terras desconhecias e, mais
uma vez, fracassada em sua tentativa de inserção, Jane assume um novo papel, chegando
a alterar o nome para evitar toda e qualquer conexão com o seu passado. Mas, novamente
a representação de Jane será estudada e colocada em cheque por uma figura masculina,
St. John, que chega a admitir que ela tenha algo especial, original (BRONTË, 1995,
p.226).
De certa forma, todos os protagonistas de Brontë parecem ter dificuldade em lidar
com figuras que exerçam o poder ou que se encontrem em posição superior. Nos dois
primeiros romances a estratégia para lidar com a falta do poder parece ser a mesma, com
as protagonistas tentando de certa forma conter sua insatisfação. William valia-se do
sarcasmo e da ironia para sentir-se apto a melhor lidar com essas figuras; já Jane esforça-
se em manter o controle, sofrendo de forma resignada até ter no descontrole emocional
ou na rebelião verbal, uma válvula de escape. Shirley, Caroline e Lucy, protagonistas de
Shirley e Villette respectivamente, buscarão outras formas de lidar com a sua destituição
do poder.
Alegando perceber a impossibilidade de desenvolvimento pessoal nessa união, Jane
acaba por recusar o pedido de casamento do primo, a menos que possa acompanhá-lo em
suas missões sem efetivamente unir-se legalmente a ele. Embora St. John reforce o
caráter atípico e mesmo imoral do que Jane propõe, de forma ousada e avançada para os
padrões da época – “como poderei eu, um jovem de menos de 30 anos, levar comigo para
a Índia uma garota de dezenove, a menos que ela seja minha esposa? Como poderemos
156
“[…] “she cannot help being mad” (Tradução nossa).
151
estar juntos para sempre, às vezes sozinhos, às vezes em meio a tribos selvagens sem
sermos casados?” (BRONTË, 1995, p. 246)
157
- os dois não conseguem chegar a um
acordo e Jane decide retornar para Thornfield em busca de Rochester, agora inválido e
destituído em virtude de um incêndio em Thornfield causado por Bertha.
Ignorando os tristes acontecimentos em Thornfield e motivada por um grito que
reconhece ser o de Rochester clamando por ela, Jane parte rumo a Thornfield iniciando a
fase final da narrativa. Apesar de os dois unirem-se em casamento, pode-se dizer que o
final de
Jane Eyre não é tão convencional quanto parece. Ao descobrir que Rochester
teria se ferido gravemente no incêndio provocado por Bertha chegando a perder uma
vista, Jane parte rumo a Ferndean onde ele agora reside. Numa atmosfera absolutamente
soturna, Jane repetirá o mesmo jogo de representação e dissimulação que ele havia
utilizado com ela em Thornfield antes de propor matrimônio, permitindo que Rochester
cegue-se ainda mais pelo ciúme em relação a St. John, antes de finalmente aceitar o
pedido de casamento.
Levando-lhe a água e as velas que ele havia solicitado, Jane aproxima-se de
Rochester até que ele a reconheça pelo timbre de voz. Orgulhosa por agora poder referir a
si mesma como uma mulher independente por ser capaz de prover por si mesma, Jane
explica-lhe que mesmo que ele não a aceite como companheira, que permanecerá a seu
lado, embora temendo que ele considere sua proposta indecorosa para uma jovem moça:
“me senti um pouco envergonhada. Talvez eu tenha estouvadamente passado por cima
das convenções; e ele, como St. John, tenha visto impropriedade na minha falta de
consideração” (BRONTË, 1995, p. 262).
158
É interessante observar que parece haver mais uma vez uma inversão de papéis
entre os dois: anteriormente Rochester não teve nenhuma dificuldade moral ou ética de
propor casamento e posteriormente concubinato, mesmo estando legalmente impedido e
sabendo que tal ato poderia comprometer a reputação de Jane. Jane apenas não aceitou
por ver-se dividida entre o que sabia ser o certo e o que realmente sentia naquele
momento. Agora que não existem mais barreiras legais que evitem a união dos dois, é
157
“[…] how can I, a man not yet thirty, take out with me to India a girl of nineteen, unless she be married
to me? How can we be for ever together – sometimes in solitudes, sometimes amidst savage tribes – and
unwed?” (Tradução nossa).
158
“[...] I felt a little embarrassed. Perhaps I had too rashly overleaped conventionalities; and he, like St.
John, saw impropriety in my inconsiderateness”. (Tradução nossa).
152
como se Rochester se sentisse ferido em sua masculinidade por estar destituído, inválido
e cogitando unir-se a uma jovem independente financeiramente. Em outras palavras, a
proposta de Jane evidencia ainda mais para Rochester o seu fracasso em termos de
representação de masculinidade. No entanto, Rochester aceita e passa a compactuar,
assim como William em
The Professor, de uma inversão de papéis no ambiente
doméstico.
De forma análoga, se anteriormente Jane via-se constrangida pelas expectativas
sociais, agora se sente livre para fazer o que deseja, pois pode prover por si mesma, sem
necessitar da ajuda de ninguém nem mesmo da validação de terceiros para seus atos e
escolhas. Alegando sentir-se em condições de unir-se a Rochester “amo-o mais agora,
quando posso realmente ser-lhe útil, do quando em sua época de independência
orgulhosa, quando você desprezava tudo exceto o papel de provedor e protetor”
(BRONTË, 1995, p. 269)
159
- Jane inicia o último capítulo de sua autobiografia não
convencional com a célebre afirmação “LEITOR, Eu me casei com ele” (BRONTË,
1995, p. 271).
160
Repetindo o padrão iniciado em The Professor, são oferecidos poucos
detalhes acerca do casamento, embora se deixe entrever uma união feliz:
estou casada agora a dez anos. Sei o que é viver inteiramente para e
com o que amo mais nessa vida. Me considero imensamente
abençoada – abençoada além do que possa ser expresso com palavras;
porque sou a vida do meu marido e ele é a minha” (BRONTË, 1995,
p. 272).
161
Numa narrativa na qual o apelo sobrenatural é grande, não é mesmo de se
estranhar que ao final dos dois primeiros anos de casamento Rochester recupere a visão
sem nenhuma explicação lógica, e que Jane omita detalhes que seriam de interesse para
as mulheres segundo o padrão do período. Mas como o pano de fundo da obra se presta a
questionar e mesmo subverter a ideologia de gênero do período, pode-se mesmo dizer
que o final não convencional reforça toda a crítica que sutilmente perpassa toda a
narrativa. Nesse sentido, Rochester termina fracassado na sua tentativa de emulação de
um papel autônomo mesmo recuperando a visão e casando-se com Jane, uma vez que
159
“[…] I love you better now, when I can really be useful to you, than I did in your state of proud
independence, when you disdained every part but that of the giver and protector”. (Tradução nossa).
160
“[…] READER, I married him”. (Tradução nossa).
161
“[…] I have now been married ten years. I know what it is to live entirely for and with what I love best
on earth. I hold myself supremely blest – blest beyond what language can express; because I am my
husband’s life as fully as he is mine”. (Tradução nossa).
153
uma forte reversão dos papéis tradicionalmente associados ao feminino e ao masculino na
sociedade vitoriana.
Jane, por sua vez, parece encontrar as nuances que lhe interessam no seu próprio
papel, com certeza dissonante do esperado. Sternlieb, entretanto, sugere que a
insatisfação com sua própria representação acompanhariam Jane mesmo após o
casamento, justificando, assim, o fato de ter escrito sua autobiografia (STERNLIEB,
1999, p. 55). Se foi essa a motivação central de Jane ou mesmo o que desejava insinuar a
autora, não poderemos nunca saber, mas com certeza a protagonista parece conseguir
achar seu lugar ao sol no final da narrativa.
Brontë continuará a abordar a questão feminina nas obras subseqüentes, adotando
muitos dos pressupostos e estratégias utilizados tanto em The Professor quanto em Jane
Eyre, sempre enfocando, entretanto, um aspecto novo no questionamento da condição da
mulher na sociedade vitoriana. Nesse sentido, Shirley e Villette se revelarão obras muito
mais explícitas em termos de questionamento da condição da mulher na sociedade
vitoriana, uma vez que suscitam uma discussão mais intensa acerca do caráter
performático do gênero, chegando mesmo a discutir outras possibilidades para as
mulheres além do casamento.
154
Capítulo 4
“Não somos nem sedutoras, nem
desagradáveis, nem monstros”
162
: a anatomia
da alma feminina em
Shirley e Villette.
162
“[…] we are neither temptress, nor terrors, nor monsters”. (BRONTË, 1995, p. 567). (Tradução nossa).
155
Nas moças inglesas do interior existe um ponto a se ressaltar.
Sejam jovens ou velhas, belas ou feias, sem graça ou
espirituosas, todas elas (ou quase todas) tem uma certa
expressão estampada no rosto, que parece dizer, “eu sei – eu
não me vanglorio disso, mas sei que sou o padrão do que é
adequado; que todos que eu abordar, ou que me abordarem,
tenham uma visão apurada, pois no que eles diferirem de mim
– seja em vestuário, modos, opinião, princípio ou prática –
eles saibam estarem errados.
Charlotte Brontë,
Shirley (BRONTË, 1995, p. 499).
163
Deixe a mulher aprender em silêncio, com toda submissão.
Não permito a uma mulher ensinar, nem a usurpar a
autoridade do homem; mas permanecer em silêncio. Porque
Adão foi criado primeiro, depois Eva.
Charlotte Brontë,
Shirley (BRONTË, 1995, p. 608).
164
Os homens, acredito, imaginam que a mente das mulheres
seja como a de crianças. Ora, isso é um equívoco.
Charlotte Brontë, Shirley (BRONTË, 1995, p. 620).
165
163
“In English country ladies there is this point to be remarked. Whether young or old, pretty or plain, dull
or sprightly, they all (or almost all) have a certain expression stamped on their features, which seems to say,
'I know - I do not boast of it, but I know that I am the standard of what is proper; let every one therefore
whom I approach, or who approaches me, keep a sharp lookout, for wherein they differ from me - be the
same in dress, manner, opinion, principle, or practice - therein they are wrong”. (Tradução nossa).
164
“Let the woman learn in silence, with all subjection. I suffer not a woman to teach, nor to usurp
authority over the man; but to be in silence. For Adam was first created, then Eve”. (Tradução nossa).
165
“Men, I believe, fancy women’s minds something like those of children. Now, that is a mistake”.
(Tradução nossa).
156
Shirley e a crítica à ideologia de gênero na sociedade vitoriana
Talvez a mais criticada das obras de Charlotte Brontë, Shirley (1849) também é a
que mais abertamente discute a condição feminina, criticando os pressupostos básicos da
ideologia de gênero da sociedade vitoriana. Conforme apontado anteriormente, nenhuma
personagem feminina de Brontë, nem mesmo os protagonistas masculinos, pode ser
entendida como inteiramente representativa dos ideais de feminilidade e masculinidade
do período. sempre um tom de questionamento, uma perturbação na aparente ordem
social, uma busca por aquilo que tradicionalmente não estaria atrelado ao feminino, sendo
comuns nas obras de Brontë personagens femininas destituídas dos atributos socialmente
aceitos e encorajados, tais como beleza, delicadeza, senso de abdicação, casamentos
financeiramente vantajosos e mesmo o tão celebrado senso de maternidade.
No caso específico de
Shirley, única narrativa em terceira pessoa da sua carreira,
Brontë apresenta a trajetória de duas mulheres bastante diferentes entre si, mas ao tempo
potencialmente complementares, Caroline Helstone e Shirley Keeldar. Se nas obras
anteriores se sentia uma dissonância entre o ideal de feminilidade e as personagens
femininas centrais, em
Shirley a tensão é evidente desde o título e na própria estruturação
da narrativa. Destoando do padrão iniciado em
The Professor, e repetido em Jane Eyre e
em
Villette, Shirley não é um romance do tipo bildungsroman, embora se possa dizer que
há, ao longo da narrativa, etapas representativas de um processo de desenvolvimento das
protagonistas que aprenderão a obliterar as diferenças que apresentam entre si. Trata-se
muito mais de uma narrativa na qual a condição feminina e o duplo padrão de moralidade
da sociedade vitoriana são abertamente discutidos e questionados de forma explicita. Tal
estratégia narrativa fez com que uma das resenhas da obra, publicada no
Daily News, em
31 de Outubro de 1849, a apontasse como um estudo da “anatomia da alma feminina”,
pois seu mérito seria o de apresentar “a variedade, beleza, e verdade da condição
feminina” (citado por BARKER, 1998, p. 247).
166
Entretanto, Shirley viria a amargar resenhas não muito favoráveis após sua
publicação, como a seguinte: “o primeiro capítulo de
Shirley é suficiente para impedir o
166
“[…] the anatomy of the female heart. […] the variety, beauty, and truth of its female character”.
(Tradução nossa).
157
leitor de avançar um passo sequer além do começo” (The Atlas, 1849, citado por
BARKER, 1998, p. 248).
167
Em outros casos, uma recepção mais favorável, como a
seguinte:
Shirley é potencialmente um romance melhor que Jane Eyre [...] tem
personagens e um enredo mais frequentemente convincente do que o melodrama de
Thornfield Hall” (WATSON, citado por RATHBURN e STEINMANN, 1958, p. 108).
168
Por outro lado, George Henry Lewes no Edinburgh Review em 1850, chegou a afirmar
que a obra não possuía valor estético. Tratar-se-ia de uma obra “inferior a Jane Eyre em
vários aspectos importantes. Não é tão verdadeira, nem tão fascinante. [....] não pode ser
recebida como uma obra de arte. Não é uma pintura, mas um portifólio de esboços
aleatórios para uma ou mais pinturas” (citado por BARKER, 1998, p. 261).
169
Como
resposta a essa resenha em específico Brontë limitou-se a dizer: “posso me precaver
contra meus inimigos, mas Deus me livre dos meus amigos!” (citado por BARKER,
1998, p. 263).
170
Mesmo na contemporaneidade a opinião generalizada sobre Shirley é a de que não
se trata de uma obra consistente (AUERBACH, 1990; LOGAN, 1998; TORGERSON,
2005); que representaria o fracasso do poder feminino (HARSH, 1994); que não concebe
saídas concretas para a subjugação feminina, apesar de suas críticas explicitas
(EAGLETON, 1975; KUCICK, 1985; DOLIN, 1995; LONOFF DE CUEVAS, 2001;
TORGERSON, 2005) ou que representa o fracasso da autora em lançar-se no terreno
desconhecido dos romances sociais (MITCHELL, 1994). Existem, entretanto, algumas
leituras que valorizam o tratamento inovador dispensado por Brontë ao discutir o duplo
padrão de moralidade da época, enfatizando a ambiidade na caracterização de Shirley
(SHAPIRO, 1968; INGHAM, 1996; VANSKIKE 1996), ou o caráter de escolha e
negociação de poder atrelado ao casamento das protagonistas (BURKHART, 1973;
TAYLER, 1990).
167
“[…] the first chapter of Shirley is enough to deter many a reader from advancing a step further than the
threshold”. (Tradução nossa).
168
“[…] potentially Shirley is a better novel than Jane Eyre […] has characters and a plot that are often
more convincing than the melodramatics of Thornfield Hall”. (Tradução nossa).
169
“ […] inferior to Jane Eyre in several important points. It is not quite so true, and it is not so fascinating.
[…] cannot be received as a work of art. It is not a picture, but a portifolio of random sketches for one or
more pictures”. (Tradução nossa).
170
“[…] I can be on guard against my enemies, but God deliver me from my friends!” (Tradução nossa).
158
A razão para tamanha discrepância na recepção de Shirley pode estar na estratégia
adotada pela autora. Brontë, através de uma hábil manipulação de estratégias narrativas,
explora em suas obras a tensão existente diante da necessidade de se compactuar com os
ideais do período e dar vazão a anseios pessoais por vezes conflitantes. Em
Shirley, isso
se evidencia quando duas personagens, aparentemente contraditórias por representarem,
inicialmente, duas imagens dissonantes são colocadas em um mesmo patamar.
Contrariando a tradição de enfocar-se em estereótipos do feminino, Brontë inova não
apenas pela união dessas imagens inicialmente conflitantes numa mesma personagem,
mas, sobretudo, por tornar essa união o tema central de sua narrativa. Em outras palavras,
ao invés de enfocar apenas o anjo do lar, ou a figura insana, ou mesmo a relação
antagônica entre as duas, em
Shirley, Brontë mais uma vez parece apontar para a
artificialidade do ideal que pretende engessar as mulheres em padrões de conduta e
decoro rígidos e altamente normativos. Ao enfocar tão direta e explicitamente o embate
de forças entre os ideais do masculino e do feminino, Charlotte Brontë possibilita que o
paralelismo vigente no século XIX entre sexo e gênero e a crença em uma suposta
essência do feminino capaz de justificar uma postura submissa da mulher sejam não
apenas examinados, como também questionados em alguns de seus pressupostos básicos.
Em termos de enredo, trata-se da estória de uma jovem órfã, Caroline, que, prestes a
definhar por ver-se sem perspectivas de vida, terá na amizade de Shirley, uma
esquire
171
rica e ousada, um contraponto para seu sofrimento e a possibilidade concreta de melhor
inserção social. É relevante observar que, embora a narrativa se intitule
Shirley, a
personagem homônima somente será introduzida na segunda fase, quando sua oposição
inicial à caracterização de Caroline se fizer necessária. É interessante também destacar
que a obra possui características que a diferenciam das demais: é a única narrada em
terceira pessoa; a primeira a oferecer títulos para os capítulos; a única a discutir
abertamente a problemática social do período ao invés de concentrar-se apenas nas
angústias e dificuldades experimentadas pelas protagonistas. Também é a única na qual
existe claramente um divisão de foco em relação às personagens principais, sendo duas
mulheres e dois homens os protagonistas e, sobretudo, é a única obra na qual existe uma
pletora de comentários explícitos sobre a condição feminina na sociedade vitoriana.
171
Termo que designa nobre cavalheiro, escudeiro, ou ilustríssimo senhor.
159
A primeira parte da narrativa apresenta um panorama da sociedade inglesa em
tempos árduos que impõem uma dificuldade prática para se compactuar com as rígidas
expectativas em termos de papéis de gênero face às grandes mudanças sociais. Em seus
primeiros capítulos abundam descrições pormenorizadas da vida doméstica e das altas
expectativas masculinas em relação à mulher, além da ênfase, através de comentários das
demais personagens do romance, no caráter nobre e elogiável de toda mulher cuja postura
assemelhe-se ao ideal puritano e angelical. Nesse contexto moralizante, a figura feminina
que recebe maior destaque é Caroline Helstone, caracterizada de forma a apresentar
traços de inconformidade e insatisfação com o tipo de educação recebida e com a falta de
perspectivas concretas.
Brontë inova não apenas ao dotar tal personagem de um apurado senso crítico, mas,
sobretudo, por fazer com que sua percepção de mundo se veja tolhida e constrita pela
dificuldade em posicionar-se de forma mais assertiva. Diferente de Frances em
The
Professor
e Jane em obra homônima, a internalização do ideal de feminilidade do período
para Caroline não parece ter sido tarefa muito difícil, embora a mesma anseie por algo
mais. A diferença entre Caroline, Frances e Jane, é que ela parece sofrer de uma
imobilidade, uma letargia, que a impede de agir e é essa discrepância que, segundo
Torgerson, faz de
Shirley um livro no qual “os corpos das mulheres se transformam no
texto a ser lido” (TORGERSON, 2005, p. 57).
172
Ao contrário das demais personagens, Caroline sabe bem o que lhe tolhe, o que lhe
incomoda, e mesmo o que poderia ser feito para reverter tal quadro, mas fica apenas na
elucubração, na teoria, sem partir para a ação, sem enfrentar o mundo tal como Frances e
Jane. Se nas obras anteriores o contraponto entre as personagens femininas estava
centrado em oposições binárias, tais como, uma é bela e a outra não, ou uma tem posses e
a outra não, em
Shirley a oposição relaciona-se à ação, uma vez que ambas as
protagonistas compartilham beleza, intelecto e posição socioeconômica. Assim, quando a
letargia de Caroline chega a um ponto quase insuportável, sendo necessária uma
intervenção brusca, Brontë subverte as expectativas ao introduzir Shirley Keeldar, uma
jovem extremamente segura de si, poderosa, e que parece não compactuar com os rígidos
padrões impostos às mulheres. Caracterizada como uma personagem ambígua por
172
“women’s bodies become the text to be read”. (Tradução nossa).
160
natureza, Shirley possui um nome tradicionalmente masculino
173
, age como um homem
em situações sociais que envolvem o exercício do poder, expressa claramente sua recusa
de casar-se por obrigação com um homem que não a considere igual em termos sociais e
critica abertamente o duplo padrão moralizante da sociedade vitoriana. Shirley Keeldar
constitui, então, para a maior parte dos leitores, um verdadeiro enigma, uma vez que a
autora escolhe uma protagonista aversa aos padrões da época para potencialmente ajudar
Caroline a sair de sua letargia e demovê-la da idéia de ser uma governanta, uma das
poucas profissões possíveis para as mulheres da época.
O que parece ter influenciado as resenhas que a obra recebeu na época de sua
publicação, sua posterior rejeição e quase unânime opinião de que se trata da obra mais
inconsistente de Brontë é o fato de que a autora inova não apenas no estilo narrativo, mas
também no tratamento ousado da temática tradicionalmente enfocada em suas outras
obras. Em
Shirley, Brontë parece disposta a desafiar os preceitos sociais e literários da
época ao expor uma figura tão polêmica, questionadora e subversiva como Shirley,
agindo como modelo para alguém como Caroline, a outra protagonista. A amizade entre
as duas constitui então o foco central da narrativa. No entanto, as personagens não são
mais abordadas de forma dicotômica, tendo suas semelhanças e afinidades
profundamente exploradas pelo narrador. Em outras palavras, a forte amizade vivenciada
por Caroline e Shirley não apenas revela o que elas possuem em comum, mas
principalmente permite a transferência das características mais reveladoras e marcantes
de uma para a outra.
Sob essa ótica, Caroline aprende a ser mais resoluta, segura de si e autoconfiante
para verbalizar sua insatisfação e exigir uma melhor inserção social através da postura
desafiadora de Shirley. Essa, por outro lado, reforça com Caroline sua crença de que o
masculino e o feminino são apenas dois entre muitos papéis, muitas máscaras sociais às
quais somos diariamente expostos e convidados a incorporar, sendo possível, então,
emular algumas características do ideal de feminilidade sem ir de encontro a suas crenças
e opiniões. Nesse sentido, minha análise de
Shirley se concentrará na discussão de como
173
O nome Shirley era masculino por excelência, mas a popularidade do romance o
transformou em nome feminino. Na narrativa Shirley recebe o nome que seu pai
havia originalmente escolhido para o primeiro filho varão.
161
Brontë discute e subverte os papéis de gênero na narrativa, enfocando as quatro
personagens centrais Caroline, Shirley, Robert e Louis.
Brontë inicia seu terceiro romance afirmando sua intenção de dedicar-se a algo mais
pragmático, mais concreto e mesmo denso do que o que foi discutido nas obras
anteriores, nas quais o foco recaía sobre as dificuldades, angústias e anseios de
personagens isoladas e por vezes inábeis em suas tentativas de inserção social. Ao invés
de uma estória de amor repleta de obstáculos e empecilhos e coroada com um final feliz
tal, como
Jane Eyre e mesmo The Professor, Brontë afirma que desta vez tais elementos
não farão parte da narrativa, ou ocuparão apenas uma pequena parte dela, chegando
mesmo a aconselhar o leitor: “acalme suas expectativas, reduza-as a um padrão mínimo”
(BRONTË, 1995, p. 445).
174
Entretanto, mais uma vez e talvez de forma mais radical,
Brontë brinca com as expectativas do leitor que ainda não sabe que a narrativa não
apenas discutirá problemas sociais sérios, mas também terá uma boa dose de
questionamento e debate ao tratar a questão feminina.
A narrativa é ambientada em Yorshire, no período de 1811-1812, durante a
depressão industrial resultante das Guerras Napoleônicas, e apresenta como pano de
fundo o movimento dos ludistas contra as mudanças ocasionadas pela Revolução
Industrial.
175
Robert Moore, um dos protagonistas, é proprietário de uma tecelagem e
adepto da industrialização e sofrerá com as constantes revoltas e ataques dos artesãos
locais que se sentem prejudicados com a modernização.
Talvez objetivando apresentar esse ambiente por vezes inóspito e tenso, Brontë
elabora os primeiros capítulos como um verdadeiro tratado social e, ao enfocar as
personagens masculinas, nos oferece um panorama de como esses viam o mundo. No que
concerne especificamente à condição feminina, desde a primeira página tem-se uma
tensão no ar, uma vez que a voz narrativa enfatiza o absurdo da visão masculina sobre a
mulher. De fato, os primeiros capítulos servem como preparação para os questionamentos
e discussões que serão desencadeados por Caroline e Shirley. Esses trazem descrições
pormenorizadas de modelos e padrões de conduta emblemáticos da ideologia de gênero
no século XIX.
174
“[…] calm your expectations; reduce them to a lowly standard”. (Tradução nossa).
175
O termo Luddismo (Luddites) refere-se à organização de artesãos que protestavam contra a Revolução
Industrial, invadindo fábricas e queimando as máquinas têxteis no início do século XIX na Inglaterra.
162
A cena inicial nos apresenta um grupo de curas jantando e discutindo trivialidades,
em um ambiente tipicamente doméstico, repleto de alusões a alimentos e bebidas:
“enquanto bebiam, discutiam; não sobre política, nem sobre filosofia ou literatura – esses
tópicos sempre se mostraram sem interesse para eles nem mesmo teologia, prática ou
doutrinária; mas sobre questões mínimas de disciplina eclesiástica, frivolidades”
(BRONTË, 1995, p. 447).
176
De fato, a domesticidade ganha uma importância maior em
Shirley, uma vez que os principais comentários e críticas explícitas acerca da condição da
mulher na sociedade acontecerão na esfera familiar, nos momentos nos quais a família se
reunia para, entre outras coisas, reforçar, sutilmente ou não, o duplo padrão de
moralidade da sociedade vitoriana. Inúmeras vezes padrões de conduta dicotômicos entre
si estarão presentes nesse ambiente familiar, sendo discutidas suas diferenças e
semelhanças, como nas freqüentes encontros de Caroline com seus primos Hortense e
Robert Moore. Em tais ocasiões, Hortense fará de tudo para educar Caroline de forma a
transformá-la no protótipo da figura do anjo do lar, enquanto ela encontra em Robert
estímulo para verbalizar sua insatisfação e descontentamento com tal imagem. Também
será no ambiente doméstico que Shirley e Caroline se envolverão em acaloradas
discussões acerca da visão que os homens têm das mulheres.
Se em
The Professor e em Jane Eyre o lar tinha um caráter mais tradicional, com as
personagens se permitindo divagações apenas em seus aposentos íntimos, em
Shirley
tudo transcorre nos ambientes comuns, tais como a sala de jantar ou a de estar. Há mesmo
uma intercessão entre os espaços público e privado na narrativa. As personagens sempre
se reúnem no ambiente sagrado do lar para discutir abertamente os problemas que
assolavam a comunidade. Tal intercessão de esferas gera uma tensão que perpassa toda a
narrativa e que aponta para a fragilidade do próprio modelo social que pressupunha uma
divisão tão rígida e estratificada entre o público e o privado. Nesse sentido, o caráter de
refúgio do lar, tão aclamado por Ruskin e discutido anteriormente, se questionado,
abrindo espaço para a discussão dos próprios papéis a serem representados nesse local,
revelando, então, a discrepância dos modelos de feminilidade e masculinidade
tradicionalmente reforçados em sociedade.
176
“while they sipped, they argued; not on politics, nor on philosophy, nor on literature – these topics were
now as ever totally without interest for them not even on theology, practical or doctrinal; but on minute
points of ecclesiastical discipline, frivolities”. (Tradução nossa).
163
Embora a narradora afirme descrever “personagens imperfeitas (cada personagem
neste livro será mais ou menos imperfeita, minha caneta se recusando a esboçar qualquer
coisa nos padrões ideais)” (BRONTË, 1995, p. 474)
177
, inicialmente os papéis de gênero
encontram-se bastante definidos nesse cenário, estando as mulheres sempre prontas a
servir os homens. A opinião que os homens têm das mulheres nos capítulos iniciais de
Shirley é bastante negativa e repleta de comentários preconceituosos. Para alguns, as
mulheres eram seres vis e incompreensíveis: “no fundo, ele não poderia conceber razão
nas mulheres […] porque elas eram em realidade o que ele pensava e desejava que elas
fossem inferiores: brinquedos para se divertir durante as horas vagas e depois
descartar” (BRONTË, 1995, p. 502).
178
Para outros, elas apenas se interessavam em
fisgar bons partidos: “como se não houvesse nada para se fazer da vida do que ‘prestar
atenção’, como se diz, a alguma jovem dama […] acredito que as mulheres falem e
pensem apenas nessas coisas e elas naturalmente imaginam que a mente dos homens
esteja igualmente ocupada com isso” (BRONTË, 1995, p. 456).
179
A suposta inferioridade da mulher era tida como algo natural e a submissão da
esposa após o casamento era algo esperado, como expressa o Senhor Helstone, tio e tutor
de Caroline, uma das protagonistas: “enquanto a mulher estiver calada, nada a incomoda,
ela não deseja nada. […] ele não tinha intenção de compreender as mulheres ou de
compará-las com os homens; elas eram de ordem de existência diferente e provavelmente
muito inferior” (BRONTË, 1995, p. 469).
180
Contrariando o padrão das obras anteriores nas quais uma personagem recebe maior
ênfase do que as demais e funciona como catalisadora dos eventos e discussões
apresentados na narrativa, em
Shirley, Brontë parece dividir a atenção entre pares que
variam na narrativa: primeiro Robert e Caroline; segundo Caroline e Shirley; e finalmente
177
“[…] imperfect characters (every character in this book will be found to be more or less imperfect, my
pen refusing to draw anything in the model line”. (Tradução nossa).
178
“[…] at heart, he could not abide sense in women […] because they were then in reality what he held
them to be, and wished them to be, - inferior: toys to play with, to amuse a vacant hour and to be thrown
away”. (Tradução nossa).
179
“[…] as if there was nothing to be done in life but to ‘pay attention’, as they say, to some young lady
[…] I believe women talk and think only of these things, and they naturally fancy men’s minds similarly
occupied”. (Tradução nossa).
180
“[…] so long as a woman was silent, nothing ailed her, and she wanted nothing. […] he made no
pretence of comprehending women, or comparing them with men; they were a different, probably a very
inferior order of existence”. (Tradução nossa).
164
os casais Caroline/Robert e Shirley/Louis. No contexto apresentado nos primeiros
capítulos, no qual a mulher era reduzida a um mero objeto ou adorno, Caroline Helstone
e Robert Moore apresentam-se como figuras destoantes em termos de papéis de gênero.
Embora exibam muitas das características associadas aos ideais de masculinidade e
feminilidade, ambos se revelam, ao longo da narrativa, bastante insatisfeitos com os
papéis que emulam e com o tipo de expectativas com os quais precisam lidar.
As discrepâncias de postura e sinais de insatisfação são evidenciadas no romance,
sobretudo, pela pormenorizada descrição das demais personagens que exibem as
tradicionais características valorizadas pela ideologia de gênero no século XIX. Faz-se
necessária, mais uma vez, a ressalva de que, apesar de a autora dedicar boa parte da
narrativa a essas descrições, sempre um tom de crítica, uma ironia nos comentários,
um sarcasmo ao apontar a arbitrariedade de algumas posturas e crenças. O resultado
tende a ser, então, não o de reforçar as figuras estereotipadas tradicionais, mas sim de
criticá-las de forma por vezes velada, outras vezes explícita. Ao contrário das obras
anteriores nas quais o impacto da ideologia de gênero sobre a sociedade como um todo
não se fazia sentir, uma vez que Brontë enfocou a trajetória de personagens isoladas, em
Shirley é como se a sociedade fosse mais uma personagem do romance.
Ao invés de deixar subentendidas as crenças e idéias por trás do comportamento por
vezes inconsistente como ocorreu com William, Frances, Rochester e Jane, em
Shirley a
voz social perpassa a narrativa, chamando atenção para o que era tido como esperado,
sobretudo das mulheres, e também evidenciando os potenciais conflitos e embates
quando tais expectativas se viam frustradas. Nesse sentido, a narrativa me parece muito
mais coerente do que as anteriores nas quais o mundo nos é oferecido, lido e interpretado
pelo olhar por vezes tendencioso dos protagonistas. Isso não quer dizer que se trate de
uma narrativa imparcial, mas discordo da afirmação de G.H. Lewes de que “ela
inegavelmente possui vigor e também um tipo peculiar de interesse, mas não a harmonia
de uma obra de arte” (Lewes, 1850, citado por BARKER, 1998, p.248).
181
Essa aparente falta de harmonia é tradicionalmente associada às descrições francas,
detalhadas e por vezes irônicas da comunidade interiorana descrita na obra, conforme
181
“[…] power it has unquestionably, and interest too, of a peculiar sort, but not the agreeableness of a
work of art”. (Tradução nossa).
165
apontam duas das críticas iniciais do romance que afirmam que “os três curas e seus
comes e bebes com os quais
Shirley inicia é tanto vulgar e desnecessário quanto
fastidioso” (
Daily News, 1849, citado por BARKER, 1998, p. 247)
182
e “o primeiro
capítulo de
Shirley é suficiente para impedir muitos leitores de avançar” (The Atlas, 1849,
citado por BARKER, 1998, p. 248).
183
Concordo que tais descrições dos encontros dos
curas são realmente fastidiosas, excessivas e repetitivas. Porém, a descrição
pormenorizada da sociedade que Brontë oferece e também os paralelos oferecidos entre
as quatro personagens centrais e as figuras idealizadas em termos de papéis de gênero são
eficazes no sentido de oferecer uma leitura mais abrangente da condição desigual
vivenciada pela mulher na sociedade. Nesse sentido, potencializa-se a crítica social e de
gênero, uma vez que os pressupostos inferiorizantes da ideologia por trás dessas
diferenças encontram-se explicitamente retratados e criticados.
Em outras palavras, passa-se do estágio no qual as elucubrações das personagens,
por vezes decorrentes de falhas de interpretação e idéias preconcebidas, recebem
destaque na narrativa, e adentra-se numa dimensão quase teatral na qual as barreiras se
encurtam e o leitor/expectador reconhece suas próprias motivações, limitações, juízos de
valor e inconsistências. Tal estratégia certamente chocou os leitores da época
acostumados com narrativas mais aprazíveis e menos secas, mas acredito que a
justificativa não esteja no teor de questionamento em si, que imortalizaria a carreira de
Charles Dickens, por exemplo, mas pela estratégia adotada por Charlotte Brontë. Não
podemos nos esquecer de que, apesar de o século XIX ter testemunhado avanços sociais
inegáveis, a mulher ainda não dotava de prerrogativas que a colocassem em posição de
igualdade, e tal constatação certamente influenciou a recepção de
Shirley, obra na qual
críticas abertas e comentários irônicos são proferidos por uma mulher.
Apesar de apresentar uma verdadeira miríade de personagens menores e que
aparecem na narrativa em pouquíssimos episódicos, o foco de Charlotte Brontë não se
perde, isto é, ela apresenta uma coerência com sua proposta inicial de apresentar uma
narrativa mais realista, mais próxima do dia-a-dia dos cidadãos vitorianos. Brontë, mais
uma vez, repete a fórmula de dotar seus protagonistas masculinos de características que
182
“[…] the three curates and their junketing, with whom Shirley commences is quite as vulgar,
unnecessary, and as disgusting”. (Tradução nossa).
183
“[…] the first chapter of Shirley is enough to deter many a reader from advancing”. (Tradução nossa).
166
justifiquem um senso de isolamento, de não pertencimento. Em The Professor, William é
um estrangeiro tentando ganhar a vida; em
Jane Eyre, Rochester distancia-se o máximo
possível de Thornfield para não ter que confrontar seu passado; em
Villette, Graham e M.
Paul representam verdadeiros contrastes em relação aos demais homens, sempre isolados
em seu mundo e em seus interesses. Em
Shirley, a estratégia se repete em relação aos
irmãos Robert e Louis Moore, estando o primeiro mais próximo do ideal de
masculinidade do período, ao passo que o segundo apresenta uma caracterização mais
ambígua em termos de papéis de gênero. É importante ressaltar que não apenas os dois
são bastante diferentes entre si e em relação aos demais, mas acabarão unindo-se a
personagens femininas que exibem os mesmos traços dissonantes, isto é, Robert casa-se
com Caroline, Louis com Shirley, embora se tenha apontado a potencialidade de
entrecruzamento dos pares a fim de se obter um equilíbrio maior (EAGLETON, 1975;
TORGERSON, 2005).
Ao contrário das demais personagens masculinas apresentadas na primeira fase da
narrativa, Robert, um jovem e promissor industrial, não contempla a possibilidade de
casar-se - “o assunto não parecia ter nenhum interesse para ele: ele não o procurava”
(BRONTË, 1995, p. 455)
184
- nem mesmo se essa união for estabelecida em bases
lucrativas: “cheguei à conclusão de que o casamento e o amor são coisas supérfluas,
reservadas apenas aos ricos, que vivem com tranqüilidade e que não precisam pensar no
amanhã (BRONTË, 1995, p. 527)
185
Para ele, uma personagem descrita como “híbrida
em natureza” (BRONTË, 1995, p. 457)
186
, apenas interessam os negócios. Robert se
posiciona por vezes de forma ríspida, parecendo mesmo não se preocupar com o bem-
estar dos seus empregados: “não sendo um nativo, nem a muito tempo um residente na
região, ele não se importou o suficiente quando as novas invenções deixaram os
trabalhadores desempregados” (BRONTË, 1995, p. 458).
187
Além disso, sua validação
dos pontos de vista dos Whigs
188
o coloca na posição de “uma espécie de pária e
184
“[…] the subject seemed to have no interest for him: he did not pursue it”. (Tradução nossa).
185
“[…] I have settled it decidedly that marriage and love are superfluities, intended only for the rich, who
live at ease, and have no need to take thought for the morrow”. (Tradução nossa).
186
“[...] a hybrid in nature”. (Tradução nossa).
187
“[…] not being a native, nor for any length of time a resident of the neighborhood, he did not
sufficiently care when the new inventions threw the old workpeople out of employ”. (Tradução nossa).
188
Uma das vertentes políticas da Inglaterra no século XIX que se opunha ao absolutismo e demandava
uma monarquia constitucional, estabelecendo um contraponto com a visão da vertente denominada Tory.
167
forasteiro” (BRONTË, 1995, p. 462)
189
na opinião das demais personagens ao seu redor.
Esse fato reforça os constantes ataques e ameaças que sofre por parte dos próprios
funcionários que se mostram descontentes com sua postura fria e indiferente.
Com relação às mulheres, sua postura parece ser ambígua: com Hortense, sua irmã
e companheira, cuja única preocupação na vida além de doutrinar Caroline parecer ser a
de servir a Robert “é meu dever ser feliz onde você está, irmão” (BRONTË, 1995, p.
476)
190
, Robert mostra-se por vezes impaciente como que se as opiniões e posturas da
irmã lhe parecessem ingênuas, bobas ou mesmo fúteis. Seu tom tende a ser de
condescendência e em muitos de seus diálogos Robert lhe responde com frases curtas e
diretas. Entretanto, o próprio Robert destoa do ideal de masculinidade encarnado nas
demais personagens masculinas ao seu redor. Os diálogos entre Hortense e Robert apenas
parecem fluir mais naturalmente quando o assunto é Caroline e seus supostos defeitos,
segundo o rígido padrão da Senhorita Moore. Embora apenas cinco anos mais velho que
Hortense, Robert parece visualizar na irmã uma figura maternal distante e mesmo
artificial, que, embora sempre pronta a garantir um ambiente protegido e agradável, um
verdadeiro refúgio contra toda a tensão que vivenciava diariamente, não consegue
estimular seu intelecto a ponto de desenvolverem uma relação de cumplicidade.
Já com Caroline Helstone, sua prima e amor secreto, a postura de Robert muda e ele
passa a exibir prazer e contentamento ao incitá-la a verbalizar suas opiniões e agir de
forma diversa do protótipo de feminilidade representado por sua irmã. Embora 12 anos
mais nova que Robert, Caroline é vivaz e perspicaz o suficiente para atrair a atenção de
Robert, mesmo que inicialmente ele a visse como uma figura angelical em potencial. Ao
contrário de Hortense, Caroline é capaz de dialogar com Robert abertamente sobre os
assuntos que lhe interessavam, isto é, sobre política e sobre as constantes ameaças de
ataque por parte dos trabalhadores. Sua relação é tão aberta que Caroline por vezes chega
mesmo a repreender Robert por sua inabilidade em entender a motivação por trás da
reação agressiva dos moradores locais, como quando ela trechos de
Coriolano
191
e
Em Shirley Brontë caracteriza as demais personagens masculinas como adeptas dos Torys ao passo que
Robert é seguidor dos Whigs, acentuando, assim, sua dissonância em relação aos demais.
189
“[…] a sort of outcast and alien”. (Tradução nossa).
190
“[…] it is my duty to be happy where you are, brother”. (Tradução nossa).
191
Tragédia de William Shakespeare sobre a vida do legendário líder romano Caio Marcio Coriolano e que
se passa num período de conflitos sociais. Em
Shirley a alusão à figura de Coriolano justifica-se pelo fato
168
aponta que o primo não deveria assumir a mesma postura orgulhosa e impávida que levou
a personagem shakesperiana a ser odiada por todos.
Contrariando a crença de que o lar na cultura burguesa era o espaço no qual o
homem poderia permitir-se ser “verdadeira e autenticamente ele mesmo” (TOSH, 1999,
p.33)
192
, Robert não se mostra confortável nas cenas familiares ao lado de Hortense.
Apenas com Caroline é que Robert parece se permitir relaxar e colocar de lado a máscara
de rigidez, imparcialidade, destemor e ousadia que exibe no convívio social. É
interessante observar, entretanto, que Robert oscila entre o estímulo causado pelas
conversas com a prima e a tendência de tratá-la de forma paternalista, como se ele não
conseguisse entender bem a junção da imagem doce e quase infantil de Caroline com a
clareza e o pragmatismo de seu discurso.
A meu ver, essa tendência condescendente em relação à Caroline por vezes parece
sinalizar que Robert não a leva a sério, tal qual um adulto que por vezes tende a escutar
uma criança apenas para se deleitar com suas demonstrações de ingenuidade. De fato, na
primeira fase da narrativa, Robert por vezes assemelha-se a Graham, personagem de
Villette que nos primeiros capítulos explicitamente se divertia com a pequena Paulina,
manipulando sua atenção, por vezes brincando com seus sentimentos, divertindo-se com
a constatação de que ela o idolatrava. Em
Shirley, por vezes ocorrem menções de que
para Robert, Caroline se apresenta como uma fonte de diversão, uma válvula de escape
para as tensões do dia-a-dia. Ele se diverte com a opinião que Hortense tem de Caroline –
“divirta-me com uma descrição de suas faltas” (BRONTË, 1995, p. 477)
193
-, e depois
novamente quando Caroline insinua saber o que se passa em seu íntimo, afirma: “deixe-a
falar qualquer coisa que deseje essa noite. Ela gosta de repreender seu irmão às vezes;
diverte-me, então a deixe fazer isso” (BRONTË, 1995, p. 488).
194
Robert por algumas
vezes se coloca a favor de Caroline quando Hortense insiste em doutriná-la de forma a
agir como uma verdadeira dama, a chama de Esfinge quando Caroline o compara a
Coriolano por seu orgulho cego, mas também se intriga quando, ao recitar trechos de
La
de que tanto Robert Moore quanto Caio Marcio mostravam-se insensíveis aos apelos e dificuldades
experimentados pela população local em tempos de escassez de recursos.
192
“[…] truly and authentically himself”. (Tradução nossa).
193
“[…] amuse me with an account of her faults”. (Tradução nossa).
194
“[…] let her say anything she pleases tonight. She likes to come down hard upon your bother
sometimes; it amuses me, so let her alone”. (Tradução nossa).
169
Jeune Captive”,
195
Caroline sorri “como qualquer criança feliz e dócil” (BRONTË, 1995,
p. 491).
196
Em oposição a Robert, temos a figura tradicional encarnada pelo Senhor Yorke, a
quem a autora dedica dois capítulos inteiros para caracterizá-lo! “Um cavalheiro de
Yorshire, por excelência” (BRONTË, 1995, p. 466)
197
, pode-se dizer que o Senhor
Yorke exibe as características tradicionalmente associadas à ideologia do masculino no
século XIX. Apesar de às vezes ser intratável, sobretudo com demonstrações de fraqueza
e imbecilidade, ele possui pelo menos duas das características mais valorizadas no
período, isto é, crença espiritual e altruísmo (MANGAN e MALVIN, 1987; TOSH,
1999). Ao contrário de Robert, o Senhor Yorke apresenta-se como uma figura paternal e
cordial para seus funcionários e servos, sendo por eles amado e respeitado.
No lar, embora deixe claro ser o detentor do poder não admitindo manifestações
contrárias, reforça os ideais a ponto de sua família ser tida como uma das mais influentes
da região. Embora na juventude tivesse demonstrado interesse por mulheres “vivazes e
espirituosas” (BRONTË, 1995, p. 469)
198
, contraiu casamento, por amor, com uma
mulher que se apresenta como “um verdadeiro contraste [...] o silêncio personificado”
(BRONTË, 1995, p. 469).
199
Se levarmos em consideração a ideologia de gênero do
período, podemos dizer que a família do Senhor Yorke representa o protótipo de
domesticidade da sociedade vitoriana, vivendo em um ambiente sagrado protegido por
uma esposa submissa e perfeita que quando ele fala com ela, ela apenas lhe responde
com monossílabos” (BRONTË, 1995, p. 469)
200
e por uma figura masculina que no lar
sabe admirar a esposa admirada pelos demais por ser “bela como um grandioso anjo”
(BRONTË, 1995, p. 469),
201
oferecendo, assim, um forte contraponto a Robert Moore.
Poder-se-ia perguntar o porquê de Brontë ter oferecido descrições tão
pormenorizadas desses exemplares masculinos, uma vez que muitas das revisões
apontariam tal elemento como negativo, como se a autora não conseguisse unir as
195
Poema de André Chénier, famoso poeta do século XVIII, escrito quando o mesmo se encontrava na
prisão.
196
“[…] like any happy, docile child”. (Tradução nossa).
197
“[…] a Yorkshire gentleman he was, par excellence”. (Tradução nossa).
198
“[…] sprightly and dashing”. (Tradução nossa).
199
“[...] a complete contrast […] stillness personified”. (Tradução nossa).
200
‘[…] when he spoke to her, she only answered him in monosyllables”. (Tradução nossa).
201
“[…] beautiful as a monumental angel”. (Tradução nossa).
170
diferentes personagens e estórias apresentadas. Acredito que tais descrições servem para
estabelecer um contraponto entre os ideais do período e as críticas que Brontë almejava
oferecer. Nesse sentido, embora a estratégia de trabalhar figuras contrastantes e
representantes das imagens estereotipadas da ideologia de gênero tenha sido utilizada nas
obras anteriores, em
Shirley a inovação está na intensidade com a qual tais paralelos são
estabelecidos.
Ao invés de simplesmente apresentar o que seria tido como ideal e valorizado e
apontar as discrepâncias de algumas personagens, em
Shirley Brontë parece posicionar-se
claramente contra o ideal e a favor das personagens inicialmente dissonantes. Há um tom
de reprovação das atividades, posturas e crenças da maioria das personagens, sendo que a
narradora sempre chama a atenção, detalhadamente, para o que a seus olhos seriam seus
defeitos e mazelas, apontando, rapidamente, suas virtudes e qualidades. Mesmo que em
The Professor William parece agir da mesma forma, sobretudo quando contrasta e
compara as garotas do pensionato, ao longo da narrativa é como se Brontë fizesse sua
personagem suavizar o olhar ao reconhecer suas próprias falhas e inconsistências. em
Shirley os comentários vêm filtrados pelo olhar supostamente imparcial da narradora. De
fato, ao contrário de William e Jane, os protagonistas de
Shirley Caroline, Shirley,
Robert e Louis parecem estar pouco interessados em analisar posturas individuais.
Quando criticam uma postura o fazem em relação à sociedade como um todo e não em
relação a um indivíduo apenas. Ao criticar a educação inferiorizante e sem perspectivas
das mulheres, Caroline fala em geral, dirigindo-se à sociedade como um todo.
Ao dialogar com Robert, Shirley deseja saber sua visão em relação a ela e a Caroline,
questionando a opinião comum de que ela seria “um exemplar perigoso do meu sexo”
(BRONTË, 1995, p. 625)
202
ao passo que Caroline seria apenas peculiar “a sua moda”
(BRONTË, 1995, p. 625).
203
Shirley deseja contrastar sua imagem masculinizada, que
Robert não parece compartilhar: “por que coloca ênfase
nela? Você a considera um
contraste, nesse aspecto, a você?” (BRONTË, 1995, p. 625).
204
Mesmo que Robert o
queira admitir, Caroline e Shirley são figuras inicialmente antagônicas que aprenderão
202
“[…] a dangerous specimen of my sex”. (Tradução nossa).
203
“[…] in her way”. (Tradução nossa).
204
“[…] why lay such emphasis on her? Do you consider her a contrast, in that respect, to yourself?”
(Tradução nossa).
171
com sua amizade a suavizar os limites tão rigidamente impostos por um código de
conduta atribuído às mulheres. Embora possa se esperar que Shirley seja a protagonista
central da narrativa homônima, veremos que ela não apenas aparece somente a partir da
segunda fase do romance, como também é introduzida apenas quando Caroline encontra-
se em estado de profunda letargia.
Caroline Helstone nos é apresentada como uma bela jovem de 18 anos, órfã, criada
pelo tio, o Senhor Helstone, dotada de inúmeros atributos que a poderiam qualificar como
um bom exemplar feminino, tais como docilidade, graciosidade e beleza. Aos olhos da
prima Hortense, porém, falta algo em Caroline que efetivamente a coloque numa posição
de destaque, sendo necessário que a mesma se submeta ao treinamento adequado:
“Caroline é imperfeita, mas sob minha batuta e cuidados quase maternais, ela poderá
desenvolver-se” (BRONTË, 1995, p. 95)
205
.
Entretanto, a principio Caroline parece muito mais uma prisioneira do ideal de
feminilidade do século XIX: sendo uma mulher, destituída de posses, a sociedade espera
dela um determinado padrão comportamental que não a satisfaz. Por mais que se espere
dela submissão, abnegação e a certeza de que sua vida se resume à servidão ao tio, e
posteriormente a outrem, Caroline evidencia sinais de descontentamento em relação ao
destino predeterminado para ela.
Diferente das protagonistas anteriores, Caroline não vislumbra no casamento a saída
para seus problemas e, talvez, por ter consciência de que suas chances reais para uma
união estável são pequenas, chega mesmo a cogitar a possibilidade de tornar-se uma
governanta, a fim de encontrar alguma justificativa concreta para sua existência:
Não deverei me casar, é o que parece. Suponho que, como Robert não
se interessa por mim, nunca terei um marido para amar, nem filhos
para criar. Até recentemente os afazeres domésticos e interesses de
esposa e mãe eram suficientes para justificar minha existência.
Considero, de fato, que crescendo para cumprir esse destino comum,
nunca me preocupei em buscar outro; mas agora, percebo claramente,
que posso ter me enganado. Nunca me casarei. Para que fui criada, me
questiono? Qual meu lugar no mundo? Ah, entendo! Essa é a pergunta
que intrigava a muitas serviçais; outras pessoas a solucionaram para
elas dizendo “sua função é de fazer bem ao outro” [...] Será isso
suficiente? Será isso viver? A virtude se encontra na abnegação do
205
“[…] Caroline is defective, but with my forming hand and almost motherly care, she may improve”.
(Tradução nossa).
172
“eu” ? Não acredito nisso (BRONTË, 1995, p. 190).
206
Entretanto, apesar de identificar o que lhe angustia e o quão arbitrária a sociedade
tende a ser em relação ao feminino, Caroline parece padecer de certa inércia, uma
inabilidade em lidar com seus anseios e suas percepções da realidade, pois ela tende a
apenas imaginar como seria tomar as rédeas da própria existência, mas não faz nada de
concreto para alcançar tal independência. Caroline parece viver num estado de paralisia
física, contrária ao intenso questionamento acerca da condição feminina que se vislumbra
em seus pensamentos e discussões com Shirley. Porém, diferente de Jane Eyre, que
transita fisicamente por inúmeros ambientes buscando uma forma de inserção, os
questionamentos de Caroline parecem não encontrar exteriorização ao longo da narrativa,
cabendo esse papel mais visceral e intenso à Shirley.
De fato, apesar de conscientemente rejeitar o confinamento e as restrições impostas
pelo ideal de feminilidade do período, o máximo em termos de ação vivenciado por
Caroline é sua recusa em se alimentar. Caroline parece contentar-se em visualizar
mentalmente os rumos que sua vida tomaria caso se decidisse a agir concretamente, como
se ela estivesse, inconscientemente, esperando por alguém capaz de decidir por ela o que
seria mais adequado aos seus anseios e limitações. Por outro lado, ao longo da narrativa a
inabilidade de Caroline em ser totalmente submissa e subserviente e sua recusa em
aceitar um casamento de conveniência como solução para seus problemas são elementos
ressaltados. Em certo ponto, ela é comparada a uma sereia que desesperadamente anseia
por um sentido na sua existência de mulher. Mas, como ela parece não encontrar tal
sentido, paulatinamente intensifica-se o caráter de isolamento, angústia e paralisia que
culmina com a introdução de Shirley Keeldar na narrativa, fato esse que reacende a
chama do questionamento acerca da condição feminina na narrativa, levando essa questão
a um patamar mais intenso, até então não contemplado adequadamente pela autora. A
206
“[…] I shall not be married, it appears. I suppose, as Robert does not care for me, I shall never have a
husband to love, nor little children to take care of. Till lately I had reckoned securely on the duties and
affections of wife and mother to occupy my existence. I considered, somehow, as a matter of course, that I
was growing up to the ordinary destiny, and never troubled myself to seek any other; but now, I perceive
plainly, I may have mistaken myself. I shall never marry. What was I created for, I wonder? Where is my
place in the world? Ah, I see! That is the question which most old maids are puzzled to solve; other people
solve it for them by saying “your place is to do good to others” […] Is this enough? Is it to live? Does
virtue lie in abnegation of self? I do not believe it”. (Tradução nossa).
173
partir dos indícios de que essa nova personagem não apenas resgataria Caroline da inércia
total, mas também a ajudaria a melhor se conformar com as expectativas sociais, tem-se a
impressão de tratar-se de uma figura feminina melhor inserida na sociedade vitoriana e
capaz de auxiliar Caroline em seu processo de desenvolvimento. Entretanto, a
personagem a ser apresentada está longe do ideal de feminilidade tal como discutido no
primeiro capítulo.
A enigmática Shirley Keeldar nos é oferecida em contraponto à figura delicada
e por vezes medrosa de Caroline. Trata-se de uma mulher que, embora também
doutrinada a agir de acordo com os padrões valorizados no período, deliberadamente
escolhe os rumos de sua vida, não se permitindo representar o papel de submissão e
abnegação face ao masculino. Shirley não é caracterizada de forma a enquadrar-se no
ideal de feminilidade vitoriano: é uma mulher forte, resoluta, segura de si e capaz de
prover por si mesma, tanto financeira quanto emocionalmente. A meu ver, Shirley é a
primeira representante nas obras de Brontë de um tipo de mulher que aos poucos ganhava
espaço na sociedade vitoriana, sobretudo devido às exigências sociais discutidas
anteriormente. Shirley Keeldar parece ser, então fruto de uma nova lógica em termos de
relações de gênero que não necessariamente privilegiava um sexo em detrimento do
outro, nem se baseava na equivalência entre homens e mulheres.
De certa forma, acredito ser possível relacionar essa postura assertiva e enigmática
de Shirley a dois conceitos anteriormente discutidos de mascaramento (
masquerade),
desenvolvido por Anne Brooks, e o de
drag elaborado por Judith Butler. No
desenvolvimento de seu argumento, Butler apropria-se da noção lacaniana do
mascaramento e reforça, através da metáfora do
drag, a distinção entre a anatomia do
indivíduo envolvido na
performance e o gênero que se está representando, uma vez que
ao imitar um gênero específico, o
drag implicitamente revela a contingência e a estrutura
potencialmente performática dessa representação de gênero (BUTLER, 1992, p. 137).
Nesse sentindo, ao termos uma personagem cuja descrição é feita de forma a associar
elementos dissonantes, tais como o nome e a postura assertiva num mulher bela e
independente, têm-se a problematização da própria ideologia que tendia a dissociar tais
características.
174
Pode-se dizer que Brontë teria utilizado nas duas personagens representativas
femininas elementos tradicionalmente associados a papéis de gênero diferentes - um
representando o ideal feminino e o outro o ideal masculino. Sob essa ótica, fica mais fácil
elaborar as aparentes ambigüidades das personagens, tais como a oscilação de Caroline
entre a emulação do ideal e a angústia de não querer compactuar com o mesmo, e a
postura assertiva de Shirley que por vezes conflita com seus argumentos feministas mais
sutis e comedidos. De fato, se a tradição implicaria na criação de duplos nas narrativas,
um totalmente representativo do ideal a ser seguido e o outro dotado de um caráter
normativo sobre o que se deveria evitar, em
Shirley Brontë inova por situar os quatro
protagonistas numa zona intermediária em termos de ideologia de gênero. Essas
personagens sofrem ao longo da narrativa um processo de metamorfose que acentua
traços comuns, ao mesmo passo que transfere de um elemento para o outro traços até
então excludentes.
Dessa forma, ao lermos as personagens em termos de sua performance de gênero,
Brontë chama nossa atenção, de forma inovadora e controversa, para o fato que o
masculino e o feminino e suas representações sociais são apenas dois entre muitos papéis,
muitas máscaras sociais às quais as personagens são diariamente expostas e convidadas a
incorporar. Pode-se então dizer que Brontë oferece uma reversão da tradicional postura
dicotômica em relação à diferença entre os sexos e gêneros em
Shirley. Contrariando a
tradição de privilegiar uma das personagens em detrimento da outra, Brontë dá a elas um
tratamento questionador e subversivo, sobretudo em relação à Shirley Keeldar.
Como resultado, pode-se dizer caracterização enigmática e por vezes ambígua das
personagens, sobretudo de Shirley objetiva desestabilizar o paradigma tradicional sobre
feminilidade e gênero, sinalizando para um desmantelamento do senso ilusório de
legitimidade da ideologia de gênero da época vitoriana.
Seguindo o pressuposto de que o feminino tende a ser intrinsecamente determinado
por um discurso e um padrão comportamental influenciados por uma lógica de
representação que privilegia um gênero em detrimento do outro, Vanskike nos lembra
que:
Tudo em Shirley, desde seu nome, sua independência financeira e
intelectual, sua posição como proprietária de terras e fabricas, é uma
invasão do universo masculino do século XIX e um ato de
travestimento, de passar-se por um ser masculino. E mais
175
genericamente, proponho que esse travestimento teatralizado [...]
pode nos ajudar a entender a curiosa reversão narrativa como
estratégia consciente por parte de Charlotte Brontë e não como falha
narrativa (VANSKIKE, 1996, p. 467).
207
Nas obras aqui analisadas, tais recursos e estratégias poderiam justificar, no caso
específico de
Shirley, a escolha de uma protagonista portadora de um título
tradicionalmente masculino numa obra repleta de críticas e questionamentos explícitos e
intensos acerca da inferiorizante condição feminina na sociedade vitoriana. Shirley
Keeldar constitui então, para a maior parte dos leitores, um verdadeiro enigma, uma vez
que a autora escolhe uma protagonista avessa aos padrões da época. Mais do que isso,
Brontë desafia os preceitos sociais e literários da época ao expor uma figura tão
polêmica, questionadora e subversiva como Shirley, agindo como modelo para alguém
como Caroline, a outra protagonista, figura essa que deveria ser (mas não consegue sê-lo)
representante do ideal de submissão e docilidade do feminino. A amizade entre as duas
constitui então o foco central da narrativa, sendo que as personagens não são mais
abordadas de forma dicotômica, tendo suas semelhanças e afinidades profundamente
exploradas pelo narrador. Em outras palavras, a forte amizade vivenciada por Caroline e
Shirley não apenas revela o que elas possuem em comum, mas principalmente permite a
transferência das características mais reveladoras e marcantes de uma para a outra.
Assim, Caroline aprende a ser mais resoluta, segura de si e autoconfiante para verbalizar
sua insatisfação e exigir uma melhor inserção social através da postura desafiadora de
Shirley, que por sua vez reforça ainda mais sua crença no fato que o masculino e o
feminino são apenas dois entre muitos papéis, muitas máscaras sociais às quais somos
diariamente expostos e convidados a incorporar.
Baseado em sua descrição inicial, vemos que Shirley difere de todas as personagens
femininas da narrativa e a ambigüidade de sua caracterização gera um desconforto tão
grande quanto o causado pela apatia de Caroline, embora a estratégia inicial pareça ser de
ressaltar a discrepância entre as duas personagens. Aos olhos das demais personagens,
Shirley apresenta um poder e um ar de superioridade que são quase incongruentes com
207
“[…] Everything about Shirley, from her name, to her financial and intellectual independence, to her
position as a landlord and factory owner, is both an intrusion into the male world of the nineteenth century
and an act of cross-dressing, of passing herself off as man. And, more generally, I would propose that this
practice of theatrical transvestism […] can helps us to understand the curious narrative reversal as a
motivated strategy on the part of Charlotte Brontë, not as a lapse of craft”. (Tradução nossa).
176
sua figura feminina, mas mesmo assim “ela é uma garota bem interessante. Ela tem a
cabeça erguida, e provavelmente sabe ser atrevida o suficiente quando quer não seria
uma mulher sem isso” (BRONTË, 1995, p. 208)
208
.
É interessante a ênfase na fusão de características tradicionalmente dissociadas no
sexo feminino, isto é, ao passo que anteriormente as personagens ou eram caracterizadas
como anjos do lar ou como figuras insanas e perigosas, Shirley assimila características
das duas figuras. Mesmo em suas outras obras, Brontë não parece ter ousado tanto em
termos de caracterização de uma personagem feminina: em
The Professor a figura
feminina mais forte em termos de ação é Madame Zoraide, ao passo que Frances encarna
o lado mais comedido e abnegado do ideal de feminilidade, mesmo quando no final da
narrativa se apresenta mais segura de si. Em
Jane Eyre, por outro lado, a personagem
homônima não evidencia traços de ambigüidade em sua caracterização, ao passo que
Bertha se quase totalmente desprovida de traços de humanidade capazes de associá-la
ao ideal de feminilidade, isto é, enquanto Jane assemelha-se de certa forma ao ideal,
Bertha é uma figura bestializada. em
Villette, obra a ser posteriormente discutida,
nenhuma das personagens femininas de destaque, sobretudo a protagonista Lucy, possui
vestígios dessa fusão de imagens emblemáticas do ideal de feminilidade vitoriano. O
mais perto que Lucy passa da ambigüidade gerada pela caracterização de Shirley Keeldar
é quando se apresenta numa peça teatral com trajes masculinos e femininos ao mesmo
tempo.
Entretanto, a estratégia escolhida pela autora para gerar essa ambigüidade parece
não ter sido bem entendida, visto que são abundantes críticas oferecidas pelas demais
personagens, tais como as da Senhora Nunnely que claramente se opõe a qualquer
possibilidade, mesmo que remota, de acolhimento de Shirley em seu círculo familiar
“esta mulher não é da mesma estirpe minha e das minhas filhas: oponho-me a ela como
esposa de meu filho” (BRONTË, 1995, p. 508)
209
. A Senhora Pryor, governanta de
Shirley e posteriormente revelada como mãe de Caroline, também questiona os modos da
protagonista. Ao repreender Shirley por sua postura conflitante com o ideal do período,
208
“[…] she is rather a fine girl. She holds her head high, and probably can be saucy enough where she
dare – she wouldn’t be a woman otherwise”. (Tradução nossa).
209
“[…] this woman is not of mine or my daughterskind: I object to her as my son’s wife”. (Tradução
nossa).
177
tem-se a ênfase no risco da protagonista ser tida como uma figura masculinizada, o que
poderia contribuir não apenas para reforçar sua inadequação social, mas também para
diminuir suas chances de contrair um casamento futuro: “Minha querida, não ceda ao
hábito de referir a si mesma como um cavalheiro. Aqueles que não a conhecem, ao ouvi-
la assim, pensarão que você possui modos masculinizados” (BRONTË, 1995, p. 217)
210
.
Em outras palavras, creio ser possível inferir o medo de que a Shirley fosse negada
uma existência plena nos moldes vitorianos, com marido e filhos para criar, visto que os
demais poderiam se intimidar com sua postura resoluta e assertiva. Os traços
aparentemente masculinizados exibidos por Shirley e que tanto preocupavam a Senhora
Pryor são o resultado direto não apenas do tipo de educação que ela recebeu, mas,
sobretudo, das escolhas pessoais ao longo desse processo de doutrinação. Criada para
ocupar a posição vaga de varão, Shirley aprende, de forma contrária a Caroline, a portar-
se de forma segura perante os demais a fim de exercer seu poder e persuasão. Enquanto
Caroline se sobressai pela capacidade de leitura e entendimento crítico das discrepâncias
de tratamento atribuídas ao sexo feminino, Shirley vai além ao permitir-se buscar uma
posição mais igualitária em sociedade.
Essa busca por uma melhor inserção da mulher na sociedade é reforçada na
narrativa pelos intensos debates travados entre as protagonistas acerca das figuras
femininas tradicionalmente representadas na literatura, na filosofia e na religião. Por
exemplo, ao ser alertada por Shirley da inutilidade de sofrer por Robert, Caroline
responde aludindo a Rousseau e afirmando que tanto ele quanto Robert pertenceriam a
um grupo de homens incapazes de compreender o que se passa na mente e no âmago
feminino, ao que Shirley rebate dizendo ser mais tolerante (BRONTË, 1995, p. 233-234).
Nessa passagem, embora inicialmente o comentário de Shirley possa soar estranho, tem-
se o indício de que ela estaria melhor preparada para ler as contradições e incoerências
dos ideais de masculinidade e feminilidade do período, visto que transitava mais
livremente pelas duas esferas.
Em outras palavras, ao passo que a leitura de Caroline encontra-se imbuída de uma
carga emocional proveniente da impossibilidade de concretizar seu amor por Robert, a
210
“[…] My dear, do not allow that habit of alluding to yourself as a gentleman. Those who do not know
you, hearing you speak thus, would think you affected masculine manners”. (Tradução nossa).
178
visão de Shirley aponta para a necessidade de se ir além de experiências particulares e
realmente questionar a motivação por trás de toda essa crença na inferioridade intelectual
da mulher. Shirley comenta seu desejo de melhor entender as sereias, visto que tais como
elas, as mulheres seriam ao mesmo tempo sedutoras e misteriosas, desejadas e temidas.
Quando Caroline discorda alegando que as mulheres não seriam “nem assustadoras, nem
aterrorizantes, nem monstros” (BRONTË, 1995, p. 249)
211
, Shirley responde alegando
serem essas características por vezes associadas às mulheres: “existem homens que
atribuem à mulher, em geral, esses atributos” (BRONTË, 1995, p. 250)
212
, fato esse
inerente à própria ideologia de gênero prevalente no período vitoriano.
À medida que discutem e compartilham suas visões acerca das limitações
socialmente impostas às mulheres, Caroline e Shirley passam por um processo de
transformação, tornando-se a primeira mais fisicamente ágil e resoluta e a segunda
permitindo-se uma maior fusão das características e traços até então dissonantes. Através
de uma estratégia já utilizada em suas obras anteriores, Charlotte Brontë vale-se da
criação de duplos para discutir diferentes possibilidades de entendimento das ideologias
de gênero, assim como de novas possibilidades de inserção social por parte das
personagens femininas. Nesse sentido, apesar de continuar ansiando por amor e pela
união a Robert, Caroline altera sua perspectiva: ao invés de ver no casamento a solução
para todos seus problemas e anseios, Caroline aprende a se valorizar como sujeito, e
como mulher, passando a ver no casamento uma entre muitas escolhas e possibilidades a
ela reservadas, pois agora “de todas as coisas, seu íntimo parecia estar no centro”
(BRONTË, 1995, p. 457).
213
Shirley, por sua vez, aprende a não simplesmente substituir um padrão
comportamental pelo outro e passa a incorporar mais livremente elementos
tradicionalmente femininos em sua postura e a dar maior vazão aos sentimentos: “estou
decidida a estimar, a admirar, a amar. A amar com todo meu ser. Sei que falo numa
língua desconhecida; mas me sinto indiferente se sou compreendida ou não” (BRONTË,
211
“[…] neither temptress, nor terrors, nor monsters”. (Tradução nossa).
212
“[…] there are men who ascribe to woman, in general, such attributes”. (Tradução nossa).
213
“[…] of all things, herself seemed to be the center”. (Tradução nossa).
179
1995, p. 445).
214
Shirley chega mesmo a assumir seu desejo de contrair matrimônio com
um homem que a visse não como inferior ou superior, mas como igual “Meu marido
não deve ser meu filho. Não quero ter que ditar para ele sua lição diária e verificar se ele
aprendeu. Insisto que meu marido deva me fazer melhorar, ou então nos separamos”
(BRONTË, 1995, p. 575).
215
O escolhido por Shirley é Louis Henry Moore, irmão de Robert, que é descrito na
narrativa de forma ambígua devido ao seu interesse por atividades tradicionalmente
femininas, tendo mesmo tido sua masculinidade questionada (HOEVELER e JADWIN,
1997, p. 89). Talvez por também transitar livremente nesse interstício entre os rígidos
padrões de masculinidade e feminilidade do período, Louis mostra-se capaz de enxergar
uma faceta de Shirley que a muitos passava despercebida. Para ele, Shirley é apenas um
ser humano em busca de amor e compreensão, tal como ele, repleto de qualidades e
defeitos. Nem mesmo sua diferença social parece ser um entrave à concretização desse
desejo de crescimento mútuo motivado pelo amor:
Shirley é adorável neste mundo e adequada a este mundo. Shirley não
é um anjo: ela é uma mulher, e devera viver entre os homens. Ela é
uma espécime diferente – tão doce e feminina – nem um pouco
parecida como uma mulher masculinizada. Eu admiro suas perfeições;
mas são suas imperfeições, ou pelo menos suas fraquezas, que me
aproximam dela [...] Se eu fosse um rei e ela a serviçal a limpar as
escadarias de meu palácio meus olhos reconheceriam suas qualidades.
Se eu fosse um cavalheiro, e ela apenas uma serva, não poderia não
gostar de Shirley. Nunca digo nada que a desmereça enquanto dama
nada sórdido, nada inadequado. Eu assumirei o sobrenome Keeldar, e
farei de Fieldhead minha residência.
Henry Shirley Keeldar seria meu
nome: e assim será (BRONTË, 1995, p. 469-470).
216
Mais uma vez, uma reversão de expectativas nas obras de Charlotte Brontë, não
apenas porque Shirley decide casar-se no final da narrativa, mas, sobretudo porque o
noivo encontra-se em posição socialmente inferior em relação a ela, também apresenta
214
“[…] I am resolved to esteem, to admire, to love. To love with all my whole heart. I know I speak in an
unknown tongue; but I feel indifferent to whether I am comprehend or not”. (Tradução nossa).
215
“[…] My husband is not to be my baby. I am not to set him his daily lesson and see that he learns it. I
shall insist upon my husband improving me or else we part”. (Tradução nossa).
216
“[…] Shirley is lovely in this world, and fitted for this world. Shirley is not an angel: she is a woman,
and she shall live with men. She is a strange being so fair and girlish not a man-like woman at all. I
worship her perfections; but it is her faults, or at least her foibles, that bring her near to me […] If I were a
king, and she the housemaid that swept my palace stair my eyes would recognize her qualities. If I were a
gentleman, and she waited on me as a servant, I could not help liking Shirley. I never say anything that did
not proclaim the lady: nothing sordid, nothing soiled. I am to take the name of Keeldar, and to make
Fieldhead my residence.
Henry Shirley Keeldar I said I would be called: and I will”. (Tradução nossa).
180
traços de ambigüidade de gênero na sua caracterização e opta em assumir o sobrenome da
mulher após a união. Uma vez que a norma seja de a mulher adotar o sobrenome
masculino como sinal de respeito à lei do homem, a lei do pai, sinalizando, assim, sua
obediência e seu
status de propriedade perante o homem, em Shirley Louis subverte a
ordem. Assim, embora gozassem de status socioeconômicos diferentes, após o casamento
tanto Shirley quanto Louis ocupariam a mesma posição em termos de anseios e
expectativas, sendo justamente isso o que ela mais ansiava e que havia revelado numa
discussão com seu tutor, antes de aceitar a proposta de Henry:
Eu não disse que prefiro um mestre? Alguém em cuja presença me
sinta obrigada e predisposta a ser boa. Alguém cujo controle meu
temperamento impaciente possa reconhecer. Um homem cuja
aprovação seja minha recompensa e cujo descontentamento seja
minha punição. Um homem a quem eu creia ser impossível não amar
e muito possível temer (BRONTË, 1995, p. 514).
217
Em relação ao final da narrativa, minha visão difere da de alguns críticos que
alegam que a obra perde sua potencial força questionadora ao apresentar as protagonistas,
sobretudo Shirley, se casando no final (AUERBACH, 1990; BURKHART, 1973;
DOLIN, 1995; TAYLER, 1990; TORGERSON, 2005). A meu ver, tais casamentos
podem ser entendidos como uma forma encontrada por Charlotte Brontë para assegurar
que sua obra ainda encontraria alguma aceitação junto ao público da época, visto que a
mesma já havia subvertido muitos dos pressupostos básicos, tanto em termos de temática
quanto em termos dos questionamentos de gênero. Nossas leituras, já influenciadas pelos
vários avanços na discussão da condição feminina em sociedade, nos faz ansiar por
desfechos menos tradicionais e mais revolucionários do ponto de vista feminista, com
protagonistas permanecendo solteiras e capazes de proverem por si mesmas,
independente da reação dos demais ao seu redor. Por outro lado, não podemos nos
esquecer que, mesmo que sutilmente, Brontë foge do final feliz tradicional no qual o
ápice da felicidade feminina tal como entendida segundo os padrões vitorianos encontra-
se eternamente congelado na cena do casamento, no “e foram felizes para sempre”.
217
“[…] Did I not say I prefer a master? One in whose presence I shall feel obliged and disposed to be
good. One whose control my impatient temper may acknowledge. A man whose approbation can reward,
whose displeasure punish me. A man I shall feel impossible not to love, and very possible to fear”.
(Tradução nossa).
181
Em todas suas obras, Brontë preocupa-se em apresentar pelo menos um rápido
panorama da vida após o casamento, ora acentuando uma reversão dos papéis de gênero
tal como apresentado em
The Professor, ora enfatizando a postura assertiva, pragmática e
menos maternal como em
Jane Eyre, ou como em Shirley, reforçando uma potencial
união entre iguais e não apenas um casamento por conveniência ou obrigação. Somente
em sua última obra,
Villette, é que Charlotte Brontë ousará avançar um pouco mais nessa
discussão apresentando uma outra possibilidade de resolução das angústias femininas.
Villette: a importância do elemento performático
Villette oferece uma complexa descrição de uma mulher vivendo à margem da
sociedade, Lucy Snowe, sem, no entanto apresentar soluções convencionais para o
problema dessa ser uma mulher inteligente e atraente que não vislumbra formas de plena
inserção social numa sociedade patriarcal. Em poucas palavras, trata-se da estória de uma
jovem destituída e órfã que após passar uma temporada sob os cuidados da madrinha e,
posteriormente, como dama de companhia de uma senhora idosa, abonada e também
solitária, parte em busca de uma melhor perspectiva de vida num pensionato para
meninas na localidade fictícia de Villette. Em terras estrangeiras, tal como William em
The Professor e Jane em Jane Eyre, Lucy aprende a ganhar a vida com seu próprio suor
exercendo a função de professora. Ao mesmo tempo, de forma semelhante à Caroline em
Shirley, Lucy ressente-se ao reconhecer seus sentimentos em relação ao sexo oposto e por
saber não estar em iguais condições para disputar o amor de seu eleito com outras
mulheres ao seu redor. Obviamente, tal como nas obras anteriores, Brontë inicialmente se
vale do tradicional contraponto entre figuras femininas em conformidade com o ideário
vitoriano em oposição a espécimes mais dissonantes, e assim, nesse sentido, tem-se nos
primeiros capítulos da obra uma tensão crescente entre a figura angelical de Paulina e a
figura dissonante e inadequada de Lucy. Tal oposição seria posteriormente substituída
por outra, entre Lucy, ainda em busca de uma plena inserção social, e Ginevra Fanshawe,
representante de características opostas as de Paulina, mas igualmente desagradáveis e
dispensáveis, segundo os parâmetros da narradora.
182
Diferente das personagens femininas anteriormente apresentadas por Charlotte
Brontë, Lucy nos é apresentada como uma heroína moderna para os padrões vitorianos
que precisa não apenas aprender a prover por si mesma, mas, sobretudo, decidir se seria
possível manter e desfrutar de sua liberdade e autonomia e, ao mesmo tempo, casar-se.
Assim, poder-se-ia dizer que a narrativa teria como eixo central a busca da protagonista
pela resposta para essa pergunta, ou seja, se haveria algum homem no círculo social do
qual fazia parte com quem pudesse unir-se sem necessariamente ter que se anular como
as demais mulheres ao seu redor se viam obrigadas a fazer.
Entretanto, não se trata da estória de uma personagem aversa aos padrões, mas
muito mais da tentativa de entendimento por parte dessa personagem de como a
sociedade a mulher. Essenciais na narrativa são as estratégias de apropriação e
questionamento dos valores e papéis tradicionalmente vistos como masculinos ou
femininos, assim como o caráter performático assumido por Lucy Snowe, uma vez que
ela parece brincar com as diferentes possibilidades de entendimento das diferenças
sexuais e de gênero na narrativa. Hoeveler e Jadwin apontam o caráter híbrido da
personagem, afirmando que ao vestir-se com roupas masculinas, a protagonista expressa
facetas masculinas de sua personalidade (HOEVELER e JADWIN, 1997, p.122).
Nessa obra, a trajetória de outra personagem às margens da sociedade (mulher, órfã,
solteira, trabalhadora) nos é apresentada como pano de fundo para mais uma vez discutir
como noções preconcebidas e construídas socialmente sobre sexo e sexualidade norteiam
nosso entendimento do mundo. Em
Villette, sexo e gênero sexual são representacionais e
performáticos, não apenas pela incorporação na narrativa de elementos dramáticos e
discussões desencadeadas por trechos teatrais e encenações vivenciadas pelos
protagonistas, mas, sobretudo, por chamar a atenção para a possibilidade lúdica inserida
na própria noção de gênero sexual, isto é, pode-se
brincar de um gênero ou outro por
meio da performance de gênero.
É relevante observar que se trata da única obra cujo título não alude a uma
personagem em específico, mas se refere a uma localidade cujo próprio nome poderia
remeter à idéia de algo sem importância, visto que o nome Villette significa uma pequena
vila, muito embora a caracterização ironicamente criada pela narradora diga tratar-se “da
183
grande capital do grande Reino de Labassecour” (BRONTË, 1995, 799).
218
Ao
ambientar sua trama numa localidade inventada e construída ficcionalmente e ao
transferir o foco narrativo para o âmbito social, poder-se-ia dizer que a autora objetivaria
uma leitura mais ampla dos temas relacionados à condição feminina discutidos nas obras
anteriores numa ótica mais individualizada e pessoal.
Tal noção é reforçada no início da narrativa ao sermos apresentados a uma
personagem que à primeira vista parece necessitar de uma constante validação de sua
existência. Um recurso amplamente utilizado pela protagonista é constantemente dizer
seu nome completo “Eu, Lucy Snowe (...)” (BRONTË, 1995, p. 775)
219
, como se
estivesse apresentando-se em constante contraponto às demais espécimes femininas ao
seu redor. Lucy Snowe nos lembra que, para a sociedade vitoriana, ela não representaria
nada, pois lhe faltavam os elementos necessários de acordo com o ideal de feminilidade
do período. Lucy não é tão doce, delicada e abonada como Polly – personagem que ocupa
posição de destaque nos capítulos iniciais da narrativa e posteriormente reaparece na
figura da jovem Paulina Home –, muito menos possui o mesmo estilo carismático,
determinado e ousado de Ginevra Fanshawe, a quem conhece a caminho de Villette e que
seria sua pupila no pensionato no qual trabalharia.
Num primeiro momento, Lucy tenta ocultar-se na narrativa, ou pelo menos
concentrar toda a atenção na caracterização das demais personagens ao seu redor.
Entretanto, Lucy se apresenta crítica o bastante para perceber e verbalizar quão ambíguas
as imagens estereotipadas das mulheres do período são a seus olhos. Dessa forma,
podemos dizer que Lucy é uma personagem periférica, mas ao mesmo tempo é através de
seus olhos que a subjugação feminina e as contradições do período em relação à diferença
entre os sexos se apresentam de forma reveladora, não sendo raros os momentos nos
quais a arte e a literatura são invocadas pela própria Lucy para corroborar suas posições.
Lucy apresenta sua postura conflitante com o ideal de feminilidade apresentado a
mulher no século XIX no primeiro capítulo, mas ao invés de colocar-se no centro das
atenções tal como as protagonistas anteriores, Lucy não se vale da sua própria estória e
falta de perspectiva para criticar o destino predeterminadamente atribuído à mulher
218
“[…] the great capital of the great Kingdom of Labassecour”. (Tradução nossa).
219
“[...] I, Lucy Snowe […]”.(Tradução nossa).
184
vitoriana. De fato, pouco se sabe sobre as condições de vida de Lucy Snowe no início da
narrativa e mesmo com o desenrolar das ações o foco nunca parece recair sobre as
experiências pessoais dessa protagonista. Sempre somos oferecidos descrições
minuciosas e detalhadas das demais personagens, suas ambições e frustrações e também
seu estilo de vida e, muitas vezes, tais elementos nos são apresentados filtrados pelo
olhar de Lucy. Entretanto, nas poucas ocasiões em que a narradora se permite mencionar
algum detalhe de sua vida pessoal sempre é de forma rápida, superficial, como se ela
estivesse se policiando para não revelar mais do que o necessário.
Acredito que a estratégia utilizada pela autora nessa obra foi cuidadosamente
pensada de forma a suscitar uma identificação diferente daquela experimentada pelas
demais narrativas. Conforme discutido anteriormente, pode-se verificar nas obras
anteriores uma estratégia de aproximação com o leitor de forma a induzi-lo a ser
condescendente com as personagens centrais, a compartilhar de suas angústias e
sofrimentos e a alegrar-se com suas vitórias. Nesse sentido, abundavam descrições do
passado das protagonistas, do estilo que vida que levavam, assim como de seus
pensamentos e sentimentos em relação a sua situação atual. Mesmo quando em
Shirley
os capítulos iniciais apresentam uma miríade de personagens diferentes e discrepantes
entre si, o objetivo claro é o de estabelecer um pano de fundo para o surgimento das
protagonistas femininas cujas caracterizações e posturas são diferentes do padrão.
em
Villette, valendo-se das constantes alusões teatrais presentes na narrativa,
vejo Lucy como uma espectadora que ora deixa-se levar pelo espetáculo e pela
performance apresentada, ora questiona as discrepâncias e dissonâncias que reconhece no
texto encenado. Nesse sentindo, a temática discutida potencialmente ascende a novos
patamares, uma vez que a própria discussão acerca da artificialidade dos papéis de gênero
imputados a homens e mulheres no século XIX se vê reforçada pela encenação, por vezes
caricata ou mesmo incômoda, de toda a rigidez de postura esperada por parte dos
indivíduos. Se nas obras anteriores o paralelismo vigente no período entre sexo e gênero
era discutido via trajetória pessoal das protagonistas, em
Villette esse passa a ocupar
posição de destaque no enredo, tal como um texto a ser encenado.
A meu ver, o elemento complicador reside, entretanto, no fato de que o espectador
desse show também é sua personagem e, sobretudo, uma personagem que demonstra ter
185
consciência do caráter teatral e ficcional da postura de gênero a ela imputado e do show
ao qual ela é convidada a representar diariamente, muitas vezes apenas como mera
coadjuvante. Nesse sentido, abundarão na narrativa não apenas explícitas referências
teatrais, mas também sutis comentários acerca da artificialidade do show apresentado, ou
da performance forçada e não convincente das demais personagens da narrativa. Vale
ressaltar, porém, que Lucy oscila entre as posições de espectadora e atriz principal ao
longo de toda a narrativa, por vezes de forma sutil e velada, outras vezes deliberadamente
colocando-se sob os holofotes para questionar abertamente tudo aquilo que lhe desagrada.
Mas um elemento perpassa toda a narrativa, que é a dificuldade de aceitação por parte de
Lucy Snowe do papel de gênero socialmente predeterminado a que todas as mulheres de
sua geração se viam coagidas a encenar, independente de sua posição social ou anseios
individuais e desde o primeiro ato dessa peça a visão de Lucy se fará conhecer
abertamente.
Em
Villette nossa ilusória crença nua identidade sólida e verdadeira se
constantemente questionada, especialmente em relação à idealização de identidades de
gênero. Lucy Snowe, a narradora em primeira pessoa, parece inicialmente vagar na
narrativa com uma postura passiva, escrutinizadora, como se nada mais lhe fosse
permitido por ser uma menina órfã, desprovida de atributos de beleza e sem maiores
perspectivas de vida. Não parece ansiar por nada, não verbaliza uma potencial
inconformidade com sua situação atual, muito menos o desejo de uma reversão na sua
condição de dependente. Lucy nada mais é do que uma espectadora do mundo ao seu
redor, mundo esse no qual desde tenra idade os padrões idealizados e tidos como corretos
em termos de gênero se viam reforçados, nem sempre de forma sutil.
No mundo inicialmente conhecido por Lucy, não havia espaço para a mulher fora
dos esperados papéis de esposa e mãe, e por isso desde cedo as meninas deveriam ser
doutrinadas nas artes femininas que, tal como discutido anteriormente, faziam parte do
tipo de educação tradicionalmente destinado ao chamado sexo frágil. Parece-me
interessante observar, então, o primeiro cenário familiar apresentado em
Villette no qual
temos a Senhora Bretton, madrinha de Lucy, mulher pouco dada a demonstrações
afetivas mesmo com seu único filho, Graham, mas que parece derreter-se com a chegada
da pequena Paulina para uma curta temporada sob seus cuidados. Lucy, com apenas 10
186
anos, parece ressentir-se da presença de Paulina o que num primeiro momento poderia
ser entendido como ciúme mas em seguida demonstra grande interesse em entender
aquela pequena criatura que a seus olhos parecia ser uma contradição.
O interesse primário de Lucy baseia na percepção de que haveria algo de errado no
tipo de show apresentado por outra criança, Paulina, apenas 3 anos mais nova do que a
narradora, mas tão diferente em termos de postura e papel de gênero. Aos olhos de Lucy,
Polly – forma carinhosa com a qual Paulina era conhecida e tratada - era exageradamente
delicada, doce, prestativa e zelosa com seu pai, tal como uma cópia fiel do protótipo de
feminilidade do período, mas em miniatura: “algo, artificialmente adulto” (BRONTË ,
1995, p. 774).
220
De fato, por inúmeras vezes Lucy alude a Polly como uma boneca,
uma dama em miniatura, ou mesmo um pequeno pássaro domesticado, sempre exibindo
aos demais sua aculturação, sua obediência, seu aprendizado dos ideais, valores e
posturas a ela transmitidos:
Quando digo criança uso um termo inapropriado e não descritivo
um termo que sugere qualquer imagem menos a daquela figura
afetadamente modesta em seus trajes de luto [...] que poderiam muito
bem servir a um boneca de bom tamanho [...] portando em suas mãos
um lenço que tentava abainhar [...] em silêncio, zelosa, absorta, tal
como uma mulher (BRONTË, 1995, p. 777).
221
Lucy parece não compreender ou mesmo compactuar com o tipo de performance
apresentado por Polly e nem com a reação dos demais. A forma com a qual o pai de Polly
permite que ela o mimasse e cuidasse tal como uma mãe a seu filho era no mínimo
artificial aos olhos de Lucy “[...] durante o jantar ela continuou com suas atenções: no
mínimo absurdas elas eram” (BRONTË, 1995, p. 777)
222
- que também não consegue
entender o fascínio que a garotinha despertava na Senhora Bretton. Apenas o jovem
Graham parecia ver também algo de incoerente no papel desempenhado pela pequena
Polly “Eu não posso ser possivelmente mais esquisito do que a senhorita” (BRONTË,
1995, p. 778).
223
Mas Graham também parece achar divertido o show apresentado pela
220
“[…] most unchildlike”. (Tradução nossa).
221
“[…] When I say child I use an appropriate and undescriptive term – a term suggesting any picture
rather than that of the demure little person in mourning frock […] that might just have fitted a good-sized
doll […] holding in her hands a shred of a handkerchief which she was professing to hem […] still silent,
diligent, absorbed, womanly”. (Tradução nossa).
222
“[…] throughout the meal she continued her attentions: rather absurd they were”. (Tradução nossa).
223
“[…] I cannot possibly be queerer than is your ladyship”. (Tradução nossa).
187
garota, chegando mesmo a incentivar e compactuar com ele, tal como nas inúmeras vezes
em que ele se deixa cuidar por Paulina, pois a mesma “precisa se ocupar com alguma
coisa, cuidar de alguém” (BRONTË, 1995, p. 781)
224
, ou nas palavras de Lucy:
Pensar-se-ia que a criança não tinha vontade ou vida própria, mas que
precisava viver, mover-se, e ter seu ser conectado a alguém: agora que
seu pai havia sido tirado dela, ela se agarrou a Graham,e parecia
tomar como seus os sentimentos dele: existir na existência dele.
(BRONTË, 1995, p. 782).
225
Nos primeiros capítulos nada mais parece chamar a atenção de Lucy do que
observar o relacionamento entre Polly e Graham e a forma artificial com a qual um jovem
de 14 anos e uma garota de 7 emulavam trejeitos e posturas tradicionalmente valorizados
na vida conjugal. Mesmo quando Polly brinca de boneca, no ar um elemento
perturbador, pois ela age como se tratasse da vida real e ela estivesse a ninar Candace,
sua filha com Graham. Ao observar os raros momentos nos quais Paulina participa de
atividades tradicionalmente infantis, Lucy sempre se surpreende com a seriedade presente
nas ações da menina, chegando mesmo a compará-la a um animal “perigoso por natureza,
e semi-domesticado pela arte” (BRONTË, 1995, p. 785).
226
Em outras palavras, aos
olhos de Lucy não apenas Polly, mas também as demais mulheres ao seu redor pareciam
estar acomodadas ao papel de esposa e mãe tal como esperado pela sociedade.
Mesmo após sua partida da residência dos Brettons, o que coincidiu com o retorno
de Paulina aos cuidados paternos, Lucy continua escrutinando as demais mulheres ao seu
redor, até que num golpe do destino se encontra, sozinha e sem perspectivas concretas,
sob os cuidados de Madame Beck, uma mulher tão obstinada e controladora que se revela
não apenas um objeto de estudo para Lucy, mas também um modelo ao qual a mesma
não deseja emular. Assim como William em
The Professor, Lucy experimenta uma
mudança radical em sua vida ao ser contratada, mesmo sem falar uma palavra de francês,
como professora num pensionato. Tal como a personagem da primeira obra analisada,
Lucy busca impor sua autoridade sobre as alunas, ao mesmo tempo em que tem nelas
verdadeiros objetos de estudo e escrutínio.
224
“[…] she must be busy about something, look after somebody”. (Tradução nossa).
225
“[…] One could have thought the child had not mind or life of her own, but must necessarily live, move,
and have her being in another: now that her father was taken from her, she nestled to Graham, and seemed
to feel by his feelings: to exist in his existence”. (Tradução nossa).
226
“[…] dangerous by nature, and half-tamed by art”. (Tradução nossa).
188
De fato, poder-se-ia mesmo ler Villette como uma versão mais refinada de The
Professor
, não apenas no âmbito estético, mas, sobretudo, na radicalização das soluções
apresentadas pela autora em sua última narrativa. Entretanto, o que particularmente me
interessa em
Villette relaciona-se às estratégias utilizadas pela autora para evidenciar a
artificialidade dos ideais de masculinidade e feminilidade do período. Assim, episódios
essenciais são apresentados após a chegada e adaptação de Lucy em Villette. Nesses
momentos, Lucy não apenas observa as mulheres ao seu redor em sua performance de
gênero, mas também tem a oportunidade de representar tais papéis de forma mais aberta e
crítica, brincando com diferentes possibilidades de entendimento das expectativas sociais
em relação a posturas e comportamentos adequados a um sexo ou a outro.
Um dos episódios centrais no processo narrativo coincide com uma representação
teatral na escola onde Lucy leciona. No capítulo XIV, Lucy é convidada a participar de
uma peça que trata da rivalidade entre dois pretendentes. Em virtude da impossibilidade
de obter-se outra pessoa capaz de personificar a personagem masculina central, Lucy
inicialmente rejeita o convite afirmando tratar-se de “um papel desagradável o de um
homem sem nada na cabeça [...]” (BRONTË, 1995, p. 135).
227
Entretanto,
imediatamente após esse comentário, Lucy muda de idéia e aceita mascarar-se como
homem e atuar com uma condição: na sua caracterização não poderiam ser apagados por
completo indícios de sua feminilidade, isto é, seu mascaramento não poderia ser por
completo, deixando sempre entrever que era uma mulher vestida de homem e tentando se
passar por homem, apesar de claros indícios de sua condição feminina:
Vestir-me como um homem não me agradava, e não me interessava.
Eu havia concordado em assumir o nome e o papel de um homem;
mas suas vestimentas – alto lá! Não. Eu manterei meu próprio vestido;
aconteça o que acontecer. M. Paul pode enfurecer-se, pode vociferar:
Eu manterei meu próprio vestido. Eu disse isso, numa voz tão resoluta
em intenção quando inaudível, e talvez insegura em verbalização
(BRONTË, 1995, p. 847).
228
Dessa forma, ao subir no palco de forma inicialmente bastante caricata, Lucy
objetiva chamar a atenção para as construções sociais de masculinidade e feminilidade
227
“[…] it was a disagreeable part – a man’s – an empty –headed fop’s […]”. (Tradução nossa).
228
“[…] To be dressed like a man did not please me, and would not suit me. I had consented to take a
man’s name and part; as to his dress, halte ala! No. I would keep my own dress; come what might. M. Paul
might storm, might rage: I would keep my own dress. I said so, with a voice so resolute in intention, as it
was low, and perhaps unsteady, in utterance”. (Tradução nossa).
189
pautadas em vestimentas e padrões de comportamento acordados como representativos de
um ou de outro sexo. A meu ver, é como se Lucy objetivasse criar na platéia o mesmo
senso de estranhamento por ela vivenciado quando observava Polly brincando de ser uma
mulher em miniatura. Sua figura no palco deveria ser acompanhada da incômoda
percepção de que se tratava de uma jovem mulher, portando ao mesmo tempo trajes
masculinos e femininos, esforçando-se em emular um papel tradicionalmente masculino.
Atrelada a sua escolha em associar elementos tradicionalmente dissonantes em
termos de vestimentas apropriadas a homens e mulheres, Lucy também esforçar-se em
incorporar outras nuances do papel que a ela caberá representar, chegando mesmo a
referir a si mesma como homem, tal como Shirley em obra homônima. Quando percebe
que Ginevra, seu outro objeto de estudo acerca da artificialidade do comportamento
feminino, representa de forma sublime o papel de donzela cortejada por dois cavalheiros,
mesmo diante de uma outra mulher apenas parcialmente transvestida de homem, Lucy se
ainda mais impelida a encarnar seu papel masculino de forma a gerar um contraponto
com a figura feminina da suposta rival: “agora eu sei que interpretei deliberadamente
decidida a vencer e seduzir. Ginevra seguiu-me; entre nós alternamos a natureza dos
papéis, colocando-os de ponta cabeça” (BRONTË, 1995, p. 849).
229
Entretanto, o mais revelador desse episódio é que sua tática de mascaramento gera
efeito oposto ao que era esperado por ela, visto que a narrativa evidencia o estranhamento
de Lucy ao perceber que o público não se atém à contradição de suas vestimentas,
acreditando fielmente estar na presença de um ator do sexo masculino, naturalmente
representando as peripécias de um cavalheiro para conquistar o coração de uma donzela.
E o pior, a seu ver, é que Ginevra acaba se beneficiando de sua tática pois “mais uma vez,
Ginevra Fanshawe, foi a mais bela, a mais doce e de presença mais agradável [...] aquelas
cenas foram seu triunfo” (BRONTË, 1995, p. 849).
230
Obviamente o próprio comentário acerca do estranhamento da personagem é
significativo no sentido de evidenciar que as posturas sociais associadas ao gênero são
independentes do sexo biológico a ponto de poder-se transitar entre as esferas femininas e
229
“[…] Now I know I acted as if wishful and resolute to win and conquer. Ginevra seconded me; between
us we half-changed the nature of the role, gilding it from top to toe”. (Tradução nossa).
230
“[…] Again, Ginevra Fanshawe, was the belle, the fairest and the gayest presence […] such scenes were
her triumphs”. (Tradução nossa).
190
masculinas numa paródia travestida dos símbolos de autoridade patriarcal. Segundo
Gilbert e Gubar em
The Madwoman in the Attic, Lucy, como narradora, usa e abusa de
imagens estereotipadas para chamar a atenção de seu caráter contraditório (GILBERT, e
GUBAR, 1984, p. 419). Ela não apenas não compactua com as imposições sociais
relativas ao gênero, mas também sabe não ser possível abdicar delas por completo, sendo
necessário saber adequar e brincar com elas de acordo com as expectativas e
necessidades dos atores sociais envolvidos.
Tal necessidade de adequação se evidencia em outro episódio da narrativa quando a
performance de Lucy é contrastada com outras representações ambíguas do feminino. No
capítulo intitulado A Cleópatra (
The Cleópatra), Lucy é conduzida ao museu por Graham
e se indigna com a magnitude da representação da heroína em questão. Lucy, porém, não
pode evitar interpretar tal representação como mais um exemplo de como a arte e a
sociedade reduzem as mulheres a imagens predeterminadas e imutáveis: cabe a elas ser
ou imensamente sensíveis ou assustadoramente insensíveis; extremamente astutas e
inteligentes, ou absurdamente tolas; essencialmente maternais ou desprovidas de qualquer
traço de humanidade. Em outras palavras, o que Lucy faz é chamar atenção para o fato de
que a sociedade parece não conceber um lugar intermediário em termos de papéis de
gênero, sobretudo para as mulheres. As tradicionais figuras femininas aludidas pelas
artes, pela literatura e pela religião são essencialmente dicotômicas entre si, sem levar em
consideração o fato de que no dia-a-dia as mulheres reais abarcam inúmeros papéis e
posturas, mesclam e fundem características até então tidas como conflitantes, e fazem o
possível para que sua existência seja o mais aprazível possível.
Ao sair do museu, ainda guiada por Graham, Lucy terá outra oportunidade de
questionar os papéis atribuídos às mulheres, através da representação quase visceral de
uma atriz extremamente polêmica em suas escolhas e estratégias performáticas, em
contraste com sua imagem feminina num belo vestido rosado: “assim, pela primeira e
talvez única vez em minha vida, eu experimentei o prazer de me ver tal como os outros
me viam” (BRONTË, 1995, p. 888).
231
231
“[…] thus for the first, and perhaps only time in my life I enjoyed the “giftie” of seeing myself as others
see me”. (Tradução nossa).
191
Vashti, diferente de Lucy em sua aventura teatral no pensionato, é uma atriz
profissional cujo intenso senso de representação no palco é repudiado pelo público por
ser tido como impróprio a uma mulher. Vashti, cujo nome alude à Rainha Vashti
232
do
Livro de Ester na Bíblia, recusa-se a ser tratada como objeto sexual e exerce sua
liberdade de escolha sexual e busca pelo prazer. Sua representação é tão intensa e tão
inflamada que acaba por chocar a audiência que se vê diante de uma mulher ciente de seu
poder de sedução e que dele lança mão para chocar e subverter a ordem. Em outras
palavras, é como se Vashti usasse sua arte para se auto-representar: uma mulher
impossível de ser controlada, moldada, contida em padrões rígidos e excludentes da
época. Nesse sentido, pode-se inferir que caso fosse forçada a compactuar com as
exigências e desejos alheios o resultado poderia ser devastador, tal como o incêndio que
ocorre no teatro, colocando um fim em seu espetáculo e em sua participação na trama.
Sob essa ótica, a teoria de gênero como elemento performativo proposta por Judith
Butler e discutida anteriormente corroboram as discussões propostas pelos dois episódios
acima citados. Se para Butler o gênero não é algo fixo, imutável, determinado a priori,
mas algo variável, resultante de uma performance, de uma manipulação consciente de
códigos e estereótipos sociais (BUTLER, 1992, p.10), pode-se dizer que ainda no século
XIX, muito antes de suas teorias e postulações serem desenvolvidas, Brontë sinalizava
para a possibilidade de se obliterar os limites rigidamente impostos entre as
representações de gênero.
Acredito ser possível dizer que a narradora de Brontë, tal como Butler, objetiva
desestabilizar o paradigma tradicional sobre feminilidade e gênero, apresentando a idéia
de que a dissonância, a descontinuidade, e as diferenças nas representações de gênero são
relevantes no desmantelamento do senso ilusório de legitimidade que regula o discurso
falogocêntrico sobre a mulher na sociedade ocidental. Tal como o
drag, que na visão de
232
Vashti era filha do Rei Belshazzar da Babilônia e após a morte de seu pai foi capturada por Dario que a
concedeu como esposa a seu filho Achashveirosh. Após ele tornar-se Rei da Pérsia, Achashveirosh ordena
que Vashti apresente-se desnuda num banquete oferecido por ele para que ele pudesse orgulhosamente
exibir sua beleza ao reino. Contrariando sua própria tendência em solicitar que as serviçais se
apresentassem a ela desnudas mesmo no Shabbat, Vashti recusa-se a obedecer ao rei, sendo decapitada em
conseqüência de sua desobediência. Apesar de controversa, Vashti viria a tornar-se uma figura
recorrentemente citada pelo movimento feminista como exemplo de uma mulher que ousou rebelar-se
diante da tradição masculina de encarar o corpo feminino como um troféu a ser exibido. Um interessante
artigo que discute a repercussão da figura de Vashti no movimento feminista e também no ideário judaico é
“The Restoration of Vashti” de autoria de M. Gendler.
192
Butler, problematiza a visão sobre o gênero como uma categoria relacionada à essência,
as performances de Polly, Ginevra, Lucy e Vashti em
Villette insinuam o fato,
posteriormente discutido e elaborado pela teórica, de que o gênero nem sempre se
apresenta de forma coerente e consistente, mas interage e se deixa influenciar por
diferentes facetas (BUTLER, 1992, p. 3).
O elemento chave para Butler é o conceito de
drag uma vez que, ao vestir-se e agir
como um ser do sexo oposto, o
drag subverte idéias tradicionais acerca de padrões
sexuais, representações de gênero e a própria equivalência entre sexo e gênero
tradicionalmente reforçada na sociedade. Mas a própria Butler aponta o perigo de uma
interpretação errônea de suas idéias acerca do
drag e sua função, dizendo que o
importante para ela é retomar a categoria do sexo para discutir como ela se constrói como
norma na sociedade, sendo o conceito de
drag um exemplo do que ela chama de
perfomatividade (BUTLER, 1994, p. 44-45).
Ao revisar como o conceito de drag foi entendido, Butler busca enfatizar os perigos
de se ver o gênero como um tipo de improvisação teatral. Não se trata apenas de uma
simples escolha de representar um gênero hoje e outro amanha. Não existe tal construção
ou desconstrução de uma identidade pela deliberada utilização de artifícios teatrais com
intuito transgressor, isto é, não basta se vestir com roupas do outro sexo, maquiar-se,
assumir trejeitos masculinos ou femininos, e simplesmente achar que se trocou de gênero.
O ponto central para Butler é brincar com os limites e crenças que nosso subconsciente
internalizou como sendo ou masculinos ou femininos, diminuindo assim a distância entre
as categorias, possibilitando mesmo a fusão de elementos dos dois gêneros, mas,
sobretudo, chamando a atenção para sua própria construção ideológica.
Nesse sentido, o tratamento dispensando por Brontë à discussão a respeito da
diferença entre os gêneros, torna possível um entendimento mais abrangente das
inovações por ela propostas, a partir da utilização dos conceitos de Butler. A escolha de
aplicarem-se teorias de gênero de cunho social e performático na análise da obras de
Brontë, sobretudo em
Shirley e Villette, justifica-se pela abordagem inovadora adotada
pela autora na discussão da ideologia do feminino, e também do masculino, na sociedade
vitoriana. Nesse sentido, a meu ver o final de
Villette é emblemático, uma vez que
quando a narrativa se encaminhava para seu desfecho e Lucy corre o risco de ser
193
aprisionada pelo papel que sempre a havia incomodado, a autora mais uma vez subverte
as expectativas e acaba por frustrar o leitor ávido por um final feliz nos moldes
tradicionais. Após reconhecer-se apaixonada por M. Paul, seu companheiro de profissão
no pensionato e homem que a estimulava intelectualmente, Lucy entrevê que nunca seria
plenamente feliz na vida de esposa e mãe: “M. Emmanuel encontra-se longe 3 anos.
Leitor, esses foram os três anos mais felizes da minha vida. Você percebe o paradoxo?”
(BRONTË, 1995, p. 1051).
233
Numa linguagem altamente poética, Lucy despede-se do amado descrevendo não
apenas o naufrágio que o vitimou, mas também seu sucesso à frente de seu próprio
pensionato, levando a vida da forma que acredita ser correta, digna e prazerosa, mas sem
o estigma de ser esposa, amante e mãe zelosa. Referindo-se ao leitor pela última vez,
Lucy encerra sua narrativa com um pedido no mínimo irônico se levarmos em
consideração o teor de suas críticas e escolhas ao longo da narrativa: “Já foi dito o
suficiente. (...) Deixe os outros imaginarem uma união e uma vida feliz em decorrência”
(BRONTË, 1995, p. 1053).
234
233
Minha tradução de: “M. Emmanuel was away for 3 years. Reader, they were the three happiest years of
my life. Do you scout the paradox?”
234
Minha tradução de: “There is enough said (…) Let them picture union and a happy succeeding life”.
194
Conclusão
195
Uma das preocupações centrais dessa tese foi discutir as particularidades narrativas
do conjunto da obra de Charlotte Brontë, atentando para sua inexorável contribuição para
o entendimento de como a sociedade vitoriana elaborou sua ideologia de gênero de forma
binária e dicotômica. Em suas obras, Brontë não apenas discute abertamente a
arbitrariedade de uma ideologia que restringe e predetermina a ascensão social com bases
moralizantes, mas, sobretudo, objetiva apresentar nuances que tradicionalmente
passariam despercebidas, ousando mesmo a apresentar novas possibilidades de
entendimento dos papéis e posturas de gênero.
Conforme discutido no primeiro capítulo, as mulheres foram, por séculos, tidas
como mental e fisicamente inferiores aos homens, incapazes de assumir as rédeas da
própria vida, inclusive nos âmbitos jurídicos e econômicos. A ideologia que prevaleceu
durante muito tempo reservava à mulher apenas um marido que a protegesse e provesse
tudo para ela, uma casa com a qual ela pudesse se ocupar, garantindo, assim, um porto
seguro ao homem após a labuta diária, e uma prole generosa que mantivesse e garantisse
a tradição familiar e o nome do marido. Tudo mais não se encaixava na visão idealizada
de uma mulher e de seu lugar na sociedade, mesmo que figuras tidas como desviantes,
tais como as prostitutas, fossem parte integrante da ordem social. Independente da idade,
estado civil, ou mesmo grau de escolaridade, a mulher não era vista como ser dotado de
habilidade intelectual para garantir a gestão de bens, nem a tomada de decisões mais
importantes do que aquelas relativas à administração do lar.
Os papéis sexuais eram rigidamente definidos e delimitados, cabendo ao homem
brilhar no âmbito público e à mulher reinar na esfera doméstica. Pode-se dizer que o ideal
de feminilidade da sociedade vitoriana aceitava e validava apenas a mulher casada, dócil,
delicada, mãe zelosa e esposa carinhosa, ou seja, a mulher era reduzida a um bibelô, um
ser frágil, a quem sempre se deveria cobrir de cuidados e atenções especiais, e que estaria
sempre pronto a sacrificar-se pelo bem estar de seu homem e seus filhos. Para Gilman,
entretanto, a problemática central relativa à suposta inferioridade feminina era de ordem
econômica, uma vez que a dependência feminina nesse modelo de relações anulava
possibilidades concretas de escolha e a mulher se via reduzida a objeto no mercado dos
196
casamentos: “[...] ele é o mercado, a demanda, ela é a oferta [...] a garota precisa casar-se
– ou então, como viver? – porém a ela era proibido escolher” (GILMAN, 1911, p. 85).
235
Nesse sentido, a contribuição de Charlotte Brontë nessa discussão nos é oferecida
pela sua escolha em não apenas questionar os pressupostos de gênero vigentes, mas,
principal em optar por não valorizar o casamento e a maternidade em suas obras. De fato,
as quatro obras de Brontë são estudos da busca por melhores condições de inserção social
vivenciadas por personagens, sobretudo femininas, à margem do padrão moralizante e
normativo da ideologia de gênero vitoriana. Ao invés de validar as dicotomias e imagens
tradicionalmente emblemáticas do período, Brontë polemiza ao subverter todos os
pressupostos dessa ideologia, sobretudo ao enfocar protagonistas destituídas de todos os
pressupostos sociais validados na época e que não teriam perspectivas concretas de
contrair um matrimônio. Não obstante suas posturas por vezes conflitantes e dissonantes
com os pilares morais da época, todas as protagonistas de Brontë logram sucesso. É
relevante observar que em nenhum dos quatro romances a vida após casamento se
apresenta de forma romanceada, idealizada, como se as protagonistas tivessem finalmente
encontrado uma razão para sua existência.
Brontë avança com a discussão relativa aos papéis de gênero, problematizando a
própria noção restritiva do sistema falogocêntrico ocidental, deliberadamente
desestabilizando crenças e suposições acerca da submissão feminina através de
personagens subversivas como William Crimsworth, Jane Eyre, Shirley Keeldar e Lucy
Snowe. Nesse sentido, o binarismo sexual é apresentado nos romances a fim de ser
criticado. Não parece ser por acaso a constante apresentação de imagens conflitantes de
papéis de gênero, nem o reforço inicial das posturas tradicionalmente associadas aos
sexos e valorizadas como exemplos de bom comportamento e conduta. Entretanto, em
cada obra Brontë parece privilegiar um aspecto dessa discussão, inicialmente de forma
mais contida, como se fosse necessário trilhar um caminho lento e árduo até que a
sociedade se visse em condições de livrar-se de suas amarras constitutivas e vislumbrar
novas possibilidades de entendimento das questões de gênero.
235
“[…] he is the market, the demand, she is the supply [...] the girl must marry – else how live? - yet she
was forbidden to seek it.” (Tradução nossa).
197
Em The Professor e em Jane Eyre, por exemplo, as menções à vida familiar após o
casamento se resumem a poucos parágrafos, como se fosse mais relevante para a
narrativa ressaltar o sucesso profissional e a experiência libertadora das personagens
femininas envolvidas. Mais importante do que o prosaico cenário familiar experimentado
por William após o casamento com Frances, ou o regresso de Jane para os braços de
Rochester é acompanhar o crescimento e amadurecimento profissional de duas mulheres
que passaram boa parte das narrativas buscando auto-afirmação numa sociedade que não
lhes abria espaço. Nesse sentido, os papéis de esposa e mãe ocupados por Frances e Jane
são secundários se comparados com o quase repentino sucesso pessoal e profissional que
alcançam, sendo capazes não apenas de vivenciar um grande amor, mas, sobretudo, de
proverem por si mesmas, contrariando toda uma tradição que não vislumbrava saída para
elas.
Brontë subverte todas as expectativas e padrões literários ainda mais nas duas obras
subseqüentes ao explicitamente questionar se a mulher deveria se casar e tornar-se mãe
para que sua existência tivesse algum sentido. Em
Shirley e em Villette abundam
referências às potenciais saídas para as mulheres sem, no entanto, considerá-las sinais
evidentes de um potencial fracasso no mercado de moças casadoiras, que estaria de
acordo com a ideologia de gênero da sociedade vitoriana. Nesse sentido, tanto o
casamento de Shirley e Caroline, quanto o celibato de Lucy são emblemáticos, pois
evidenciam escolhas pessoais conscientes das protagonistas e não apenas uma imposição
social. Em outras palavras, se em
Shirley as protagonistas acabam se casando, é relevante
observar que o direito de escolha é plenamente exercido por elas, chegando a voz
narrativa a reforçar a predisposição dos homens escolhidos em não tolher a liberdade de
escolha de suas futuras esposas. Enquanto o casamento era visto como única saída para a
mulher, nem Caroline nem Shirley se predispunham a compactuar com esse sistema de
barganha, chegando mesmo a incentivarem uma a outra na busca por outras formas de
realização pessoal. Apenas quando o amor e a igualdade de idéias e direitos podem ser
vislumbrados numa relação a dois, é que as duas protagonistas aceitam dar esse passo.
Faz-se necessário ressaltar que
Shirley contraria a tradição das obras anteriores ao
não apresentar detalhes domésticos da vida das duas protagonistas.
Villette vai mais além,
não apenas porque a protagonista permanece celibatária no final, mas por assumir
198
abertamente seu prazer e satisfação em não ter que se anular numa relação a dois. De
fato, as críticas à ideologia de gênero na sociedade vitoriana parecem ser radicalmente
intensificadas em
Villette. Se em Shirley, Brontë faz coincidir comentários mordazes
sobre a condição da mulher com a postura assertiva e mesmo dissonante de Shirley
Keeldar, em seu último romance a autora transfere todo o foco da esfera individual para a
uma análise mais impessoal e mais ampla da sociedade e das motivações por trás de
posturas de gênero valorizadas. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que desde o início o
casamento não é colocado como possibilidade concreta para Lucy Snowe, não devido a
sua falta de dotes físicos e mesmo econômicos, mas simplesmente porque uma
personagem daquela estirpe jamais cogitaria tolher sua liberdade numa relação amorosa,
mesmo que entre indivíduos potencialmente iguais, como ela e M. Emmanuel.
Levando-se em consideração a relação estabelecida entre as personagens de Brontë
e o binômio casamento/maternidade, poder-se-ia dizer que muito antes dos estudos de
sexualidade e gênero se verem influenciados pelas postulações freudianas e lacanianas,
Brontë radicaliza ao questionar essa associação essencialista estabelecida entre a
condição feminina e os papéis de esposa e mãe dedicada e abnegada. A partir das
postulações de Freud e Lacan não resta à mulher nenhuma saída saudável em seu
processo de identificação e subjetivação, uma vez que por definição sua existência é
sempre definida em relação ao outro, sempre numa relação de falta, de inferioridade, de
incompletude.
Percebe-se, então, que uma forma de subjugar o outro sexo, segundo Nancy
Chodorow, é através da carga opressiva imposta sobre a maternidade, que, segundo ela,
acaba por aprisionar a mulher numa esfera inferior em relação ao homem. A maternidade
não é entendida como uma escolha possibilitada por funções fisiológicas naturais, mas
como um trabalho, uma atividade econômica imposta à mulher que deve ser entendida
como uma benção, como uma parte essencial e irrevogavelmente associada ao ser
feminino, embora “[...] não exista uma essência do sexo ou uma essência do gênero sendo
necessário entender a representação de gênero como uma construção relacional”
(CHODOROW, 1997, p. 9).
236
236
“[…] there is not an essence of sex or an essence of gender and it is necessary to understand gender
enactment as a relational construction”. (Tradução nossa).
199
Nas obras de Brontë, entretanto, contrariando a tendência no período, a maternidade
não recebe a essa carga ideológica, não merecendo mais do que rápidas menções à
existência de uma prole na união de William e Frances, Rochester e Jane. De fato, se em
The Professor ainda temos maiores informações relativas ao âmbito familiar, esses dados
nos são filtrados pelo olhar de uma personagem instável como William, sem que
cheguemos realmente a vislumbrar o papel ocupado pela maternidade no imaginário de
Frances. Já em
Jane Eyre, a protagonista homônima encontra-se visivelmente muito mais
interessada em reforçar sua posição igualitária em relação à Rochester, do que dar vazão
a um potencial instinto maternal.
Em outras palavras, pode-se concluir que os elementos tradicionalmente utilizados
para reforçar a subjugação feminina na sociedade vitoriana recebem críticas abertas e
explicitas por parte de Brontë. Elementos tradicionalmente valorizados na sociedade
vitoriana tais como beleza, docilidade, instinto maternal, abnegação, entre outros, são
explorados por Brontë com o intuito de criar um contraponto com as personagens que
efetivamente ocupam posição de destaque nas narrativas. Como efeito dessa estratégia
narrativa, tem-se a conscientização de que tais atributos tradicionalmente valorizados se
revelavam mais uma imposição social, ou seja, mais uma carga imposta à mulher devido
a sua aparente impossibilidade de firmar-se como ser autônomo e independente na esfera
pública.
Nesse sentido, a hipótese de que o casamento e a maternidade poderiam ser saídas
para a mulher revela-se inconsistente e mesmo falha, uma vez que o matrimônio e a
decorrente perpetuação da espécie, entendidos como atividade econômica feminina,
reforçariam a subjugação da mulher ao estarem atrelados aos ideais de docilidade,
compreensão, abnegação, e sacrifício, culturalmente associados à figura idealizada da boa
mãe e reforçados desde o século XIX. Dessa forma, mais uma vez marcar-se-ia no corpo
feminino a diferença primeira entre os sexos biológicos e suas representações de gênero,
pois a capacidade biológica de reprodução da espécie inerente ao corpo feminino teria
menos valor simbólico do que a força física do homem. Além disso, a maternidade não
alteraria a posição da mulher em sociedade por possuir status econômico diferente e
inferior no
ranking social, além de não ser um meio de produção adequado (RUBIN,
1975, p. 160).
200
Porém, entendendo-se feminilidade como um registro de erotização do corpo, a
experiência da feminilidade permite formas singulares e diferentes de subjetivação e de
inscrição da ordem do simbólico. Brontë, contrariando uma tendência de sua época,
abusa de personagens cuja caracterização parece oscilar entre os ideais vitorianos de
masculinidade e feminilidade, tais como William em
The Professor e Shirley em Shirley.
Mesmo os vários episódios de travestimento nas narrativas nos levam a pensar que
Brontë sistematiza hipóteses e crenças que, de certa forma, já chamavam a atenção muito
antes dos grandes teóricos dos estudos de sexualidade e gênero darem suas contribuições
rumo a uma possível obliteração de limites rigidamente imputados à manifestação de
gênero. Sob essa ótica, ao subverter e questionar posturas rígidas em termos de papéis de
gênero, Brontë os primeiros passos rumo à ruptura com um sistema de pensamento
que pressupõe uma diferença de essências entre homens e mulheres, enfatizando a
condição intrínseca das perfomances de gênero.
Dessa forma, ao elaborar suas personagens como potencialmente dissonantes com
relação à ideologia de gênero vitoriana e, conseqüentemente, como exemplares da
perfomance de gênero, Brontë chama nossa atenção, de forma inovadora e controversa,
para o fato de que o masculino e o feminino e suas representações sociais são apenas dois
entre muitos papéis, muitas máscaras sociais às quais as personagens são diariamente
expostas e convidadas a incorporar. Pode-se então dizer que Brontë oferece, por meio da
performance de gênero, uma reversão da tradicional postura dicotômica em relação à
diferença entre os sexos e gêneros em suas obras. Entretanto, ao invés de enfatizar tal
dicotomia, Brontë constrói suas narrativas em torno de personagens, inicialmente
opostas, que acabam apontando para novas possibilidades de integração. Contrariando a
tradição de privilegiar uma das personagens em detrimento da outra, Brontë dá a elas um
tratamento performático, questionador e subversivo.
Nesse sentido, as narrativas de Brontë, nos moldes teóricos de Judith Butler,
desestabilizam o paradigma tradicional sobre feminilidade e gênero, apresentando a idéia
de que a fragmentação, a descontinuidade e as diferenças nas representações de gênero
são relevantes no desmantelamento do senso ilusório de legitimidade que regula o
discurso falogocêntrico sobre a mulher na sociedade ocidental. Ao problematizar a visão
de Freud sobre o gênero como uma categoria relacionada à essência, Butler afirma que o
201
gênero não apenas surge através da interação social, mas é performático, isto é, é uma
manipulação de códigos e estereótipos (BUTLER, 1992, p. 10). Butler advoga que gênero
não pode ser equiparado ao sexo uma vez que o gênero nem sempre se apresenta de
forma coerente e consistente, mas interage e se deixa influenciar por diferentes facetas,
tais como etnia, raça, e religião (BUTLER, 1992, p. 3).
De forma análoga, Brontë constrói suas narrativas de forma a evidenciar o caráter
performativo das relações de gênero e o quão arbitrária e mesmo artificial seria a
ideologia de gênero da sociedade vitoriana. Para tanto, a autora vai aos poucos
desmantelando a ilusória crença numa superioridade masculina e no inexorável
paralelismo entre sexo e gênero. Nesse sentido, o ponto central na leitura das obras de
Charlotte Brontë não estaria na apresentação de soluções radicais e extremadas do ponto
de vista feminista em cada uma das narrativas, mas sim em entender as questões de
gênero que norteavam a sociedade vitoriana como um construto social e, como tal,
apontar sua superficialidade e seu caráter performativo.
Assim, se em
The Professor a autora inova ao possibilitar uma reversão de papéis
no âmbito doméstico entre William e Frances, em
Jane Eyre o avanço vem na
possibilidade da protagonista em casar-se numa situação mais favorável para ela em
termos econômicos. O passo seguinte se daria em
Shirley mostrando como algumas
mulheres já começavam a dar sinais de insatisfação com o que lhes era imputado,
abertamente chamando a atenção dos homens ao redor para a questão feminina que se
apresentava no período. O passo final viria em
Villette com a apresentação de uma
personagem que recusa abrir mão da sua liberdade e autonomia em função de um
casamento. De fato, em termos de performance de gênero
Villette revela-se uma obra
singular, uma vez que o estranhamento causado pelas cenas de travestimento da
personagem é significativo no sentido de evidenciar que as posturas sociais associadas ao
gênero são independentes do sexo biológico a ponto de poder-se transitar entre as esferas
da masculinidade e da feminilidade numa paródia travestida dos símbolos de autoridade
patriarcal. Segundo Gilbert e Gubar em
The Madwoman in the Attic, Lucy, na posição de
narradora, usa e abusa de imagens estereotipadas para chamar a atenção de seu caráter
contraditório (GILBERT e GUBAR, 1984, p. 419). Lucy, além de não compactuar com
202
as imposições sociais relativas ao gênero, sabe que é necessário adequar e brincar com
elas de acordo com as expectativas e necessidades dos atores sociais envolvidos.
Acredito, então, ser possível afirmar que em todos os seus romances Brontë
questiona um sistema que privilegia um padrão de comportamento em detrimento do
outro, que subjuga o feminino e que não prevê possibilidades concretas de crescimento
pessoal para as mulheres. Sua estratégia de fazer coincidir suas críticas com uma
estrutura narrativa na qual elementos dissonantes e anteriormente silenciados ocupam
posição de destaque faz com que as obras de Brontë sejam essenciais no entendimento
dos avanços e conquistas da própria questão feminina que era proposta na sociedade
vitoriana. Ao apresentar todas as suas personagens centrais em contraponto com os
pressupostos da ideologia vigente no período, Brontë potencialmente reforça o
questionamento acerca da determinação
a priori de um papel de gênero a ser incorporado
na cena social. Nesse sentido, sua escolha de não relegar as questões a um plano
secundário serve à dupla função de denunciar as amarras do sistema ideológico que
atribuía às mulheres uma posição secundária em sociedade e atentar para toda uma
potencialidade e multiplicidade de representação dos papéis de gênero que até então
estiveram silenciados ou estereotipados na literatura.
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