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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM HISTÓRIA
A MÁSCARA E O ROSTO DE CHAPLIN: O ANTICOMUNISMO
NA REPERCUSSÃO DA FILMOGRAFIA POLÍTICA DE
CARLITOS EM PORTO ALEGRE (1936 – 1949)
EDUARDO DE SOUZA SOARES
PORTO ALEGRE, JULHO DE 2008.
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM HISTÓRIA
A MÁSCARA E O ROSTO DE CHAPLIN: O ANTICOMUNISMO
NA REPERCUSSÃO DA FILMOGRAFIA POLÍTICA DE
CARLITOS EM PORTO ALEGRE (1936 – 1949)
EDUARDO DE SOUZA SOARES
Dissertação apresentada como requisito
parcial e último para a obtenção do grau
de Mestre em História das Sociedades
Ibéricas e Americanas, sob orientação da
Professora Doutora Claudia Musa Fay.
PORTO ALEGRE, JULHO DE 2008.
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3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S676m Soares, Eduardo de Souza
A Máscara e o rosto de Chaplin: o anticomunismo na
repercussão da filmografia política de Carlitos em Porto
Alegre (1936 – 1949). / Eduardo de Souza Soares. –
Porto Alegre, 2008.
139 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS.
Orientação: Profa. Dra. Claudia Musa Fay.
1. Porto Alegre – História Política – Século XX.
2. Anticomunismo – Porto Alegre. 3. Comunismo –
Porto Alegre - História. 4. Chaplin – Filmografia Política.
I. Fay, Claudia Musa. II. Título.
CDD 981.06
Ficha elaborada pela bibliotecária Cíntia Borges Greff CRB 10/1437
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................8
CAPÍTULO I......................................................................................................16
1.1 Algumas Referências Teóricas:...........................................................16
1.2 A Vida de Charles Chaplin: .................................................................19
1.3 A Crítica de Cinema em Porto Alegre:.................................................26
1.4 Charles Chaplin e o Cineclubismo:......................................................35
CAPÍTULO II.....................................................................................................49
2.1 O Combate ao Perigo Vermelho:.........................................................49
2.2 Os Enigmas Chaplinianos: ..................................................................56
2.3 Chaplin e os Intelectuais Gaúchos:.....................................................59
2.4 O Imã das Multidões:...........................................................................63
CAPÍTULO III....................................................................................................83
3.1 O Brasil e seu Ditador: ........................................................................83
3.2 Um Duelo de Titãs:..............................................................................86
3.3 Uma Aparente Contradição:................................................................89
3.4 As Sementes de Montevidéu:..............................................................92
CAPÍTULO IV .................................................................................................104
4.1 Um Novo Surto Reacionário:.............................................................104
4.2 Um Frankenstein Chapliniano: ..........................................................108
4.3 Um Chaplin Diferente: .......................................................................111
4.4 Em Defesa de Carlitos:......................................................................117
CONCLUSÃO.................................................................................................126
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................135
5
ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 "Jacob Koutzii". .............................................................................39
Ilustração 2 "A Juventude"................................................................................40
Ilustração 3 "O Intelectual". ..............................................................................41
Ilustração 4 "A Família". ...................................................................................42
Ilustração 5 "O Clube Israelita".........................................................................43
Ilustração 6 "Paulo Fontoura Gastal"................................................................44
Ilustração 7 "A Paixão".....................................................................................45
Ilustração 8 "O Acervo".....................................................................................46
Ilustração 9 "A Esposa"....................................................................................47
Ilustração 10 "O Cinema Imperial"....................................................................48
Ilustração 11 “Carlitos e a Rapaziada Carioca”. ...............................................74
Ilustração 12 “O Gênio Máximo do Cinema em Tempos Modernos”................75
Ilustração 13 “A Maior Gargalhada do Ano”. ....................................................76
Ilustração 14 “Loteria do Estado”......................................................................77
Ilustração 15 “Charlie Chaplin em Seu Novo Filme”.........................................78
Ilustração 16 “Valente Vassourada”. ................................................................79
Ilustração 17 “O Operário”................................................................................80
Ilustração 18 “Está Jorrando a Fonte de Gargalhadas”....................................81
Ilustração 19 “A Gargalhada Suprema de 1936”. .............................................82
Ilustração 20 “Charles Chaplin Parece que Perdeu Alguma Coisa”. ..............101
Ilustração 21 “Charlie Chaplin em O Ditador”.................................................102
Ilustração 22 “O Grande Ditador”. ..................................................................103
Ilustração 23 "Cavalgada do Riso". ................................................................123
Ilustração 24 "Estupendas Matinées Infantis".................................................124
Ilustração 25 "Sensação na Cidade". .............................................................125
6
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à professora Claudia Musa Fay
por ter acreditado neste projeto quando este não passava de uma simples
idéia. Da mesma forma, pela amizade concretizada ao longo destes últimos
anos, agradeço aos professores Helder Gordim da Silveira, Núncia Santoro de
Constantino, René Ernaini Gertz e Maria José Barreras. Agradeço também ao
querido amigo João Batista Marçal, não só por ter me recebido carinhosamente
em sua residência como por ter me proporcionado experiências incríveis com a
pesquisa em seu acervo pessoal. Pela excelência dos serviços prestados,
agradeço aos senhores Osmar Rodigheri e Luis Oliveira da Silva, funcionários
do Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Agradeço às pessoas
incríveis que conheci e que foram indispensáveis para o desenvolvimento deste
estudo: os senhores Flávio Koutzii, Ney Gastal, Hans Baumann, Humberto
Didonet, Nestor Nadruz, Luiz Pilla Vares, Enéas de Souza, Flávio Loureiro
Chaves, Hélio Nascimento, Hiron Goidanich, Jesus Pfeil, João Constantino e às
senhoras Susana Gastal e Fatimarlei Lunardelli. Neste momento especial do
trabalho, não poderiam faltar os nomes de Carolina Maria Hervelha Mayer e
Francisco Hervelha Filho, pilares maiores de uma família que aprendi a amar e
respeitar. Agradeço também ao grande amor da minha vida, Carla Cristina
Hervelha, não por ter me acompanhado nos momentos mais difíceis ao
longo desta trajetória, mas por ter me ensinado a admirar seu jeito único de
viver. Agradeço aos amigos que conquistei durante os anos de graduação,
Bianca Costa e Fabrício Ávila, para sempre presentes na minha vida. Por fim,
agradeço aos grandes responsáveis por este momento: ao meu avô, Reginaldo
de Souza Filho, por sempre ter sido o maior incentivador da minha carreira, ao
carinho e amor dos meus pais, Odival de Souza Soares e Regina Beatriz Lopes
de Souza Carvalho e aos momentos de alegria ao lado de Léo Cavalheiro
Carvalho e Natália de Souza Soares.
Muito obrigado.
Eduardo de Souza Soares
7
RESUMO
Nesta dissertação, pretendemos analisar em que medida o anticomunismo e
seus principais argumentos foram incorporados pelos mais destacados órgãos
de imprensa da capital gaúcha durante a repercussão da filmografia política de
Charles Chaplin em Porto Alegre. Considerando o período compreendido entre
1936 e 1949, marcado por uma rie de manifestações contrárias à influência
soviética nos planos nacional e internacional, acompanharemos as discutidas
trajetórias de três importantes produções cinematográficas: Tempos Modernos,
O Grande Ditador e Monsieur Verdoux. A profunda admiração de intelectuais
como Jacob Koutzii e Paulo Fontoura Gastal não impediu que seus respectivos
ciclos pelos cinemas desta cidade refletissem um sentimento de repúdio às
teses supostamente comunizantes atribuídas ao seu criador, proporcionando
uma série de curiosas histórias que ilustrarão as páginas deste estudo.
8
ABSTRACT
In this dissertation, we intend to analyze in what circumstances the
anticommunism and its main subjects were incorporated by the most
emphasize agencies of the press of the “gaúcha” capital during the
repercussion of the politic filmography of Charlie Chaplin in Porto Alegre.
Considering the period comprised among 1936 and 1949, marked by a
succession of manifestations adversed to the sovietic ascendancy in the
national and international plans, we are going to follow the discussed
trajectories of three important cinematographic productions: Modern Times, The
Great Dictator and Monsieur Verdoux. The deep admiration of intellectuals as
Jacob Koutzii and Paulo Fontoura Gastal, don’t intercept that its respective
cycles by the movies of this city considered a feeling of refused to the thesis
allegedly subversive awarded to its creator, providing a succession of curious
stories that are going to illustrate the pages of these studies.
9
INTRODUÇÃO
O estudo do anticomunismo é uma preocupação ainda muito recente na
historiografia brasileira. Não que o tema deixasse de despertar o interesse dos
pesquisadores, pelo contrário, a ausência de um número maior de estudos
revela as características de um período arbitrário da história nacional, em que,
dentro de uma estrutura de estado repressiva e autoritária, o regime militar
impossibilitou o desenvolvimento destas pesquisas. Porém, desde a segunda
metade dos anos 1980, graças ao avanço do processo de redemocratização, é
cada vez maior o empenho das ciências humanas em compreender o
fenômeno anticomunista, através da proposição de novos questionamentos e
da incorporação de diferenciadas abordagens.
Neste sentido, considerando as idéias defendidas pelo crítico de cinema
francês Georges Sadoul em seu livro intitulado A Vida de Carlitos, onde o autor
destaca a predominância dos temas políticos nas películas Tempos Modernos,
O Grande Ditador e Monsieur Verdoux, e reconhecendo como de profundas
manifestações de caráter político e ideológico o período compreendido entre os
anos de 1936 e 1949, especificamente no que diz respeito às campanhas
contrárias à influência soviética, tais como a repressão ao levante comunista no
Brasil e a Caça às Bruxas de Hollywood nos Estados Unidos, questionamos em
que medida o anticomunismo e seus principais argumentos foram utilizados
pelos mais destacados órgãos de imprensa da capital durante a repercussão
da filmografia política de Charles Chaplin em Porto Alegre.
O anticomunismo brasileiro nasceu junto com os movimentos populares,
não necessariamente provenientes do partido comunista ou dos movimentos
anarquistas. Nesta dissertação, conforme o conceito utilizado por Carla Simone
Rodeghero em O Diabo é Vermelho: Imaginário Anticomunista e Igreja Católica
no Rio Grande do Sul (1945-1964), entendemos o anticomunismo como um
conjunto de idéias, de representações e de práticas de oposição sistemática ao
comunismo. Considerando as condições pouco propícias ao desenvolvimento
de um projeto revolucionário, o anticomunismo deu origem à constituição de
10
um imaginário próprio, uma composição de imagens dedicadas a depreciar as
doutrinas e práticas comunizantes, deixando marcas profundas na sociedade
brasileira desde as primeiras lutas operárias.
A Igreja Católica participou dos esforços de elaboração e divulgação das
representações anticomunistas, ainda que sua relevante participação tenha
sido uma entre tantas outras que colaboraram na construção deste imaginário.
O maniqueísmo religioso empreendeu uma verdadeira cruzada contra o “perigo
vermelho”, em que as diferenciações entre o bem e o mal, o moral e o imoral, a
luz e as trevas, a saúde e a moléstia, o amor e o ódio, entre tantas outras,
contribuíram para estabelecer as distinções fundamentais entre o cristianismo e
o comunismo, incompatibilidade sempre enfatizada. Os comunistas seriam os
portadores da maldade que, orientados por sentimentos irracionais, destruiriam
as instituições e difundiriam a discórdia. Alguns exemplos destes argumentos
de contornos religiosos serão apresentados ao longo de nossa narrativa.
O objetivo principal desta dissertação é demonstrar o alcance das teses
anticomunistas através da repercussão da filmografia política de Carlitos em
Porto Alegre. Paralelamente, pretendemos descrever os principais eventos e
sujeitos da história do anticomunismo no Brasil, acompanhar os reflexos das
campanhas mundiais de combate à influência soviética na política brasileira,
analisar a influência de Charles Chaplin na formação de importantes nomes da
intelectualidade gaúcha dos anos 1930 e 1940 além de definir o papel do Clube
de Cinema e de seus idealizadores na consolidação da crítica cinematográfica
desta cidade. Atendendo aos objetivos propostos, realizamos basicamente três
procedimentos: revisão de bibliografia, pesquisa nos acervos da imprensa local
e entrevistas com familiares e amigos dos personagens deste estudo.
Os protagonistas referidos no último parágrafo são os pais fundadores
da crítica cinematográfica em Porto Alegre, uma especialização profissional
que surgiu no contexto da indústria cultural em 1836. Na atividade do crítico de
cinema estão conjugados variados interesses, especificamente através de uma
relação bipolar, em que de um lado estão os veículos de comunicação e de
outro está o público. Diferentemente do cronista, o crítico desenvolve uma ação
11
no sentido de acumular um conhecimento especializado e pela atividade
exclusiva de assistir aos filmes e emitir uma opinião baseada em formulações
de história e linguagem do cinema. Na capital, os responsáveis por esta ruptura
foram dois importantes intelectuais: Jacob Koutzii e Paulo Fontoura Gastal.
O pioneiro da crítica cinematográfica de Porto Alegre chegou ao Brasil
ainda menino, fugindo dos graves problemas sociais que afligiam a Rússia,
país onde nasceu Jacob Koutzii. Foi sua paixão pelo cinema que o conduziu ao
jornalismo, embora sua principal atividade profissional tenha sido sempre o
comércio. Atuou como colaborador das principais publicações da imprensa da
capital, entre elas o Diário de Notícias, o Correio do Povo e a Revista do Globo.
Jacob Koutzii costumava assinar suas matérias sob o pseudônimo de Plínio
Morais, prática comum entre os judeus comunistas que habitavam o bairro Bom
Fim e precisavam escapar às perseguições políticas. A violência das ditaduras
militares roubou seus últimos anos de vida, vindo a falecer sem a oportunidade
de se despedir do filho que, na ocasião, estava preso na Argentina.
O jornalista Paulo Fontoura Gastal foi um dos mais importantes nomes
da crítica cinematográfica brasileira. Intelectual de vasta cultura, incentivou e
ajudou na formação de inúmeros profissionais que recordam com carinho as
lições deixadas pelo mestre, entre as quais a mais importante foi a paixão pelo
cinema. Iniciou sua trajetória profissional em Pelotas, deixando sua terra natal
para construir uma reconhecida carreira em Porto Alegre, onde trabalhou em
publicações como a Revista do Globo e o Correio do Povo. Homem de grande
prestígio junto aos mais importantes nomes das artes no Rio Grande do Sul, foi
o grande responsável por um empreendimento que contribuiu decisivamente
para os Rumos da cultura local: o Clube de Cinema de Porto Alegre. Nos anos
de chumbo, iniciou um longo silêncio que assinalaria o fim de sua carreira.
Um sentimento comum aproximava os pais da crítica cinematográfica, a
inesgotável paixão por Charles Chaplin. Conforme demonstraremos ao longo
desta dissertação, o personagem do vagabundo influenciou a intelectualidade
gaúcha ao longo dos anos 1930 e 1940, ainda que tenha sofrido duras críticas
por parte de ilustres opositores espalhados pela cidade. Durante a pesquisa,
12
deparamo-nos com alguns artigos de Jacob Koutzii nos quais o autor exaltava
a capacidade do artista em se aproximar das massas, conferindo autenticidade
à convicção de que o cinema deveria estar destinado às camadas populares.
Da mesma forma, a devoção por Carlitos foi uma marca registrada de Paulo
Fontoura Gastal, o qual não incorporou alguns traços característicos, como
adotou um bigodinho e bengala semelhante à usada por Chaplin.
A justificativa essencial para esta iniciativa encontramos nas palavras de
René Gertz que, em seu livro O Estado Novo no Rio Grande do Sul, apontava
para uma certa carência de pesquisas sobre os personagens da vida cultural
no Rio Grande do Sul. Nesse sentido, a presente dissertação contribui ao
acrescentar nesta aparente lacuna historiográfica alguns aspectos biográficos
praticamente desconhecidos dos pais fundadores da crítica cinematografia em
Porto Alegre, homens que, através de suas respectivas militâncias, souberam
questionar as inúmeras mazelas de seus tempos. Com a finalidade de ilustrar
nossos argumentos, apresentaremos ao longo deste trabalho três histórias
curiosas relacionadas ao relevante apelo anticomunista durante a repercussão
da filmografia política de Charles Chaplin nesta cidade.
No primeiro capítulo desta pesquisa, demonstraremos a relevância da
admiração de Jacob Koutzii e Paulo Fontoura Gastal por Charles Chaplin na
consolidação da crítica cinematográfica em Porto Alegre. No segundo capítulo,
discutiremos a estranha estratégia adotada pela Revista do Globo ao “divulgar”
o filme Tempos Modernos, desprezando o sucesso alcançado nas bilheterias.
No capítulo seguinte, aproveitando a polêmica passagem de O Grande Ditador
nos cinemas da capital, analisaremos as coincidências entre as mensagens da
obra e as contradições de Getúlio Vargas. Por fim, no quarto e último capítulo,
conforme a repercussão de Monsieur Verdoux nas páginas do Correio do Povo,
discutiremos as bases ideológicas e o alcance das campanhas anticomunistas
patrocinadas pelos Estados Unidos no despertar da Guerra Fria.
No que diz respeito às fontes analisadas, entendemos que o nascimento
e a conseqüente consolidação da crítica cinematográfica em Porto Alegre estão
intimamente relacionados à trajetória de um importante órgão da imprensa
13
operária, a Revista Rumo. O periódico apareceu na cidade em 1936, contando
com as significativas participações de Dyonélio Machado, Cyro Martins, Mário
Quintana e Jacob Koutzii. Em 1949, representando os intelectuais gaúchos do
partido comunista, a Revista Horizonte chegava em Porto Alegre tendo como
seu primeiro diretor o escritor Cyro Martins. Uma das melhores publicações
ideológicas do seu tempo contou com a contribuição de importantes nomes da
cultura regional; destacamos as colaborações de Dyonélio Machado, Lila
Ripoll, Carlos Scliar, Vasco Prado e novamente Jacob Koutzii.
O principal veículo de imprensa do Rio Grande do Sul foi, por sucessivas
décadas, o conservador e tradicional Correio do Povo, fundado por Francisco
Antonio Vieira Caldas nior. Quando surgiu, no final do século dezenove, os
jornais eram ligados ou pertencentes a partidos políticos, em que A Federação
é um bom exemplo deste perfil editorial. Por não apresentar esta condição,
firmou sua posição como leitura obrigatória entre os gaúchos que buscassem
informação isenta, participando ativamente dos acontecimentos de seu tempo.
Nos anos 1950, o comando da área de cinema coube a Paulo Fontoura Gastal
que, após uma curta estada em São Paulo ao lado de Alberto Cavalcanti como
assessor de Imprensa da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, contou com
o apoio do diretor Breno Caldas para editar as páginas sociais e de cultura.
O Diário de Notícias foi outro importante jornal do período abordado por
esta dissertação, integrando a empresa dos Diários e Emissoras Associados de
Assis Chateaubriand e experimentando uma fase áurea nos anos 1940, sendo
um dos mais destacados órgãos jornalísticos do Rio Grande do Sul. Por seu
alinhamento ideológico contrário à política de Getúlio Vargas, foi depredado e
incendiado pela população por ocasião do suicídio do presidente em 1954.
Entre os periódicos tradicionais, destacamos a publicação católica O Dia, um
conservador jornal fundado em 1943 pela Cúria Metropolitana de Porto Alegre,
responsável por uma coluna de cinema muito apreciada por seus leitores.
Graças à comunhão dos grandes veículos de comunicação com os interesses
empresariais, nascia o chamado Jornalismo Informativo Moderno.
14
Assim, o Correio do Povo e o Diário de Notícias consolidavam um novo
regime jornalístico, cuja chave do fortalecimento foi a organização empresarial,
como demonstra também a Revista do Globo, criada no vazio deixado pelo
fracasso de publicações anteriores do gênero, devido à falta de sustentação
econômica. A capital exigia uma nova revista, pois as elites viam nela uma
necessidade cultural além do estímulo do próprio governador Getúlio Vargas.
No espaço de poucos anos, a Livraria do Globo se consagraria como a maior
casa editorial do sul do Brasil, colocando à disposição dos órgãos da imprensa
de Porto Alegre o seu moderno parque gráfico. A Revista do Globo foi a
principal publicação de seu gênero no Rio Grande do Sul, conquistando em
pouco tempo a excelência nas coberturas cinematográficas, em que muitas
vezes Carlitos foi manchete.
No período em que Chaplin apresentava Tempos Modernos, uma tira
à sociedade industrial e ao maquinismo que reduzia o homem a uma simples
ferramenta do processo produtivo, era impulsionada a campanha de difamação
pública contra o ator, o qual era duramente criticado por sua suposta simpatia
ao comunismo. As acusações se intensificariam durante os preparativos de O
Grande Ditador, uma contundente comédia inspirada na Alemanha nazista. A
diplomacia alemã e algumas organizações fascistas americanas pressionaram
sem sucesso para que o artista desistisse desta produção. Nem mesmo as
investigações do Comitê de Atividades Antiamericanas impediram a estréia do
filme, cujo pronunciamento final provavelmente tenha motivado as autoridades
a decidirem por sua expulsão dos Estados Unidos algum tempo depois.
Os anos seguintes seriam marcados por uma série de escândalos que
agrediriam ainda mais sua debilitada reputação. As manifestações contrárias à
estréia de Monsieur Verdoux nos Estados Unidos contribuíram para o primeiro
grande fracasso comercial de Charles Chaplin. Considerado por muitos críticos
a síntese de sua obra, o filme fortaleceu os argumentos dos seus opositores,
alimentando o anticomunismo das autoridades políticas, então interessadas em
uma Terceira Guerra Mundial. Baseado na trajetória do criminoso Henri Landru,
Chaplin criou um personagem completamente diferente do vagabundo Carlitos,
um assassino que se envolvia com senhoras ricas e as matava para obter suas
15
fortunas. Em plena Guerra Fria, o ator apontava uma arma contra o país que o
fez enriquecer e agora o julgava como um traidor.
A campanha difamatória contra o cineasta repercutiu no mundo inteiro.
No momento em que Tempos Modernos foi apresentado pela primeira vez em
Porto Alegre, mais da metade das salas exibidoras estavam adequadas ao
sistema sonoro. No centro da cidade estavam concentradas as melhores e
mais qualificadas casas, freqüentadas pela alta sociedade e responsáveis por
grandes lançamentos. A relevância cultural e social do cinema prosperava,
incorporando os filmes e seus exemplos ao cotidiano da população. A censura
foi outra questão em debate, pois, se antes estava relacionada à preservação
da moral e dos bons costumes, neste período ganhava contornos ideológicos.
Com a consolidação do fenômeno cinematográfico, esteve facilitado o acesso
às mais variadas produções nos cinemas da cidade.
Na cada seguinte, durante o ciclo de O Grande Ditador nos cinemas
da capital, as políticas do governo pressionavam os setores culturais através
da censura, proliferando a circulação de filmes com propaganda nacionalista.
Neste contexto, as salas exibidoras que eram reconhecidas como janelas para
o mundo passavam a ser portas abertas aos Estados Unidos. Por fim, no febril
período marcado pela passagem de Monsieur Verdoux pela cidade, o Clube de
Cinema proporcionou aos apreciadores de obras mais elaboradas o acesso às
últimas novidades do mercado. Concluída esta breve introdução, reservamos
para as próximas páginas desta dissertação as intrigantes passagens que
ilustrarão a discutida trajetória da filmografia política de Charles Chaplin por
Porto Alegre, cidade que consagrou os pais da crítica cinematográfica.
16
CAPÍTULO I
CHARLES CHAPLIN: OS INTELECTUAIS E O CINECLUBISMO
No primeiro capítulo desta dissertação, pretendemos demonstrar a relevância
da profunda admiração de Jacob Koutzii e Paulo Fontoura Gastal por Charles
Chaplin no desenvolvimento e na consolidação da crítica cinematográfica em
Porto Alegre. Discutindo alguns dos pressupostos teóricos que nos inspiraram
a identificar na filmografia política de Carlitos uma série de registros ricos em
historicidade, reservamos este momento do trabalho para uma reflexão de
maior intensidade, procurando identificar na influência do cinema humanístico
imortalizado pelo vagabundo, revelador das graves enfermidades do seu
tempo, as bases para o desenvolvimento de um empreendimento fundamental
para os Rumos da cultura local, o Clube de Cinema de Porto Alegre, espaço
que transformou definitivamente a vida intelectual desta cidade.
1.1 Algumas Referências Teóricas:
Neste primeiro capítulo, gostaríamos de expor brevemente algumas
referências teóricas que nos inspiram desde o início deste estudo, começando
por André Bazin
1
. Em sua concepção, achava que a realidade bruta estava no
cerne do apelo do cinema. Concluiu que o alicerce do cinema não é a própria
realidade, mas o desenho deixado pela realidade no celulóide. Apesar de ser
incorreto falar de “realidade” aparecendo na tela, o autor providenciou um
termo mais exato, em que o cinema é interpretado como uma assíntota da
realidade, para sempre dependente do real. Assim, o que distingue o cinema
de todos os outros meios de expressão culturais é o poder excepcional que
vem do fato de sua linguagem funcionar a partir da reprodução fotográfica da
realidade, mesmo que sua neutralidade seja duvidosa. Sobre a originalidade da
linguagem cinematográfica, afirma Marcel Martin:
1
ANDREW, James Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 117.
17
Creio que é preciso afirmar desde o início a originalidade
absoluta da linguagem cinematográfica. Tal originalidade
advém essencialmente de sua onipotência figurativa e
evocadora, de sua capacidade única e infinita de mostrar o
invisível tão bem quanto o visível, de visualizar o
pensamento juntamente com o vivido, de lograr a
compenetração do sonho e do real, do impulso imaginativo e
da prova documental, de ressuscitar o passado e atualizar o
futuro, de conferir a uma imagem fugaz mais pregnância
persuasiva do que o espetáculo do cotidiano é capaz de
oferecer.
2
Na teoria de Siegfried Kracauer
3
, as propriedades básicas do cinema
são inteiramente fotográficas, sua capacidade de registrar o mundo visível e o
seu movimento. Em vez de projetar um mundo abstrato ou imaginário, desce
ao mundo material, apresentando a vida como ela é. Sua estética material
mistura o domínio da realidade com o domínio das capacidades técnicas do
cinema, em que a função do cineasta é ler tanto a realidade quanto seu veículo
de modo justo, a fim de que possa ter certeza de que emprega as técnicas
apropriadas ao assunto apropriado. Kracauer considera o cinema um
instrumento científico criado para explorar alguns níveis ou tipos particulares de
realidade. Para o autor, as artes tradicionais existem para transformar a vida
com seu modo especial, mas o cinema existe de modo mais profundo e mais
essencial quando apresenta a vida como ela é.
Para compreender o que entendemos por cinema nesta dissertação, é
indispensável o uso da teoria desenvolvida por Edgar Morin
4
. Para o autor, o
cinema é compreendido como uma articulação entre o sistema sociocultural
que o organiza e o imaginário. Diferentemente das teorias realistas elaboradas
por André Bazin e Siegfried Kracauer, Edgar Morin o entende não como uma
máquina que registra o existente e o devolve como tal, mas como implicando o
indivíduo, de forma a dirigir seu universo pessoal e pedir ao espectador sua
participação. Disso decorre o interesse pelo conteúdo do filme como espelho
do mundo vivido através da representação dos seus mitos e símbolos como
produtos do imaginário. Conforme Ana Carolina Escosteguy:
2
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 19.
3
ANDREW, op. cit., p. 95.
4
MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário: Ensaio de Antropologia. Lisboa: Moraes, 1970. p.
178.
18
Morin faz muitas referências à obra de Bazin no seu livro.
Os dois, assim como Kracauer, basearam suas reflexões na
fotografia, mas esse último e Bazin exaltaram a capacidade
dessa de compreender diretamente o real. Porém, Morin
insiste sobre a capacidade de mediação da fotografia entre
a imagem e o homem. Se tanto Bazin como Morin
colocaram o cinema em um contexto social que condiciona a
realização do filme, a teoria do primeiro é limitada pelo fato
do cinema ter a necessidade do real como suporte.
5
As idéias até aqui trabalhadas são complementadas por Marc Ferro
6
,
que volta o seu olhar para a relação entre o Cinema e a História. Nesta
perspectiva, o filme não vale somente por aquilo que testemunha, mas tamm
pela abordagem social e histórica que proporciona. A análise não incide sobre
a obra em sua totalidade, assim como a crítica também não se limita ao filme,
ela se integra ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica. Assim,
partindo de um conteúdo aparente, a análise das imagens e a crítica das fontes
permitem assinalar o conteúdo latente da película, descobrindo uma zona de
realidade quase imperceptível, revelando aspectos do imaginário da época em
que foi produzido. É por este motivo que a obra de Carlitos é rica em termos de
possibilidades para os historiadores.
Charles Spencer Chaplin registrou de maneira notável os costumes e o
mundo em que viveu. Apenas para citar alguns exemplos, durante a Primeira
Guerra Mundial o cineasta enviou seu vagabundo para o conflito em Shoulders
Arms, onde combateu o exército alemão. Em A Corrida do Ouro, o alvo do
artista foi a conquista do Alasca, registro que ficou famoso pelo uso de uma
série de atributos técnicos absolutamente inovadores à época. No clássico
Tempos Modernos, um roteiro marcado por greves e perseguições policiais em
que o personagem tentava sobreviver à industrialização, o funcionário de uma
fábrica tinha um colapso nervoso por excesso de trabalho. O caráter histórico
foi reforçado também em O Grande Ditador, paródia sobre Adolf Hitler lançada
em plena Segunda Guerra Mundial, antecipando o ataque à Pearl Harbor.
5
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Cultura Midiática e Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre: Edipucrs,
2005. p. 35.
6
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 87.
19
Consagrado nos Estados Unidos, o comediante britânico desprezou a
nacionalidade americana, deixando aberta uma lacuna para as acusações de
subversão comunista patrocinadas pelo Bureau of Investigation desde 1922.
Os investigadores se empenhavam em forjar provas na medida em que os
filmes de Chaplin se politizavam. A violenta perseguição se agravaria em 1952,
em que, após uma viagem à Europa, o seu visto de retorno foi anulado por uma
lei que regulamentava o ingresso no território nacional, evocando a moral, a
saúde pública e o combate à loucura e à propaganda comunista. Em plena
Guerra Fria, o ator apontava uma arma para o coração da América ao filmar
Um Rei em Nova Iorque, exibido duas décadas depois. O ator
atravessaria novamente o oceano em 1972, onde recebeu uma merecida
homenagem na cerimônia de entrega do Oscar.
Destacamos duas hipóteses que nos ajudam a compreender o fascínio
exercido por Charles Chaplin e o alcance de sua obra. Para Roland Barthes
7
o
homem Carlitos sai sempre vitorioso de qualquer situação e, justamente porque
ele escapa a tudo e rejeita todas as regras impostas pela sociedade capitalista,
atinge com precisão o sentimento dos intelectuais contemplados neste estudo.
Para Edgar Morin
8
, por ser inocente, o herói cômico obedece a impulsos
imediatos, fazendo tudo o que é proibido, ignorando a censura. Sua inocência
de criança o leva tanto à bondade quanto à malícia. O personagem de Chaplin
obedece a todos os seus sentimentos, sendo em sua essência ao mesmo
tempo bom e amoral. Carlitos pode até roubar sem escrúpulos, mas sempre vai
estar em defesa dos que sofrem.
1.2 A Vida de Charles Chaplin:
Charles Spencer Chaplin nasceu em Londres, na noite de 16 de abril de
1889. Sua mãe, Hannah Dryden, havia abandonado a família aos 16 anos de
idade para se tornar dançarina num teatro de comédia. Possuía um outro filho,
Sydney, fruto de seu primeiro casamento. Seu pai, o cantor Charles Chaplin,
7
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. p. 32.
8
MORIN, Edgar. As Estrelas: Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 145.
20
com o passar do tempo adquiriu o hábito de beber, o que acabou levando à
separação do casal por ter se tornado um homem extremamente agressivo.
Hannah foi viver então com os dois filhos num pequeno cômodo alugado. No
início, quando ainda fazia algum sucesso no teatro, conseguia viver
modestamente, sem grandes preocupações econômicas. Porém, graças aos
escassos contratos, pouco a pouco os Chaplin afundavam na miséria. Como
lembra o próprio Carlitos em sua biografia:
Foi devido às falhas da voz de minha mãe que, na idade de
cinco anos, apareci pela primeira vez num palco. Mamãe em
geral me levava para o teatro à noite, de preferência a
deixar-me sozinho em quartos de pensão. Estava ela então
representando A Cantina, no Aldershot, na época um
teatrinho poeira freqüentado principalmente por soldados.
Estes constituíam uma platéia grosseira para a qual tudo
servia de pretexto a risotas e caçoadas. Para os artistas o
Aldershot significava uma semana de terror. Lembro-me de
que estava de nos bastidores quando a voz de mamãe
falhou, reduzindo-se a um mero sussurro. O público
começou a rir, a cantar em falsete e a miar como gatos.
Tudo era vago e não entendi direito o que acontecia.
9
O extrovertido menino começou a cantar a famosa melodia Jack Jones,
improvisando passos de dança e conduzindo com naturalidade o espetáculo.
Uma chuva de moedas caiu no palco e, quando Hannah apareceu para ajudar
o filho a se despedir do público, recebeu uma calorosa homenagem de todos
os presentes. Naquela noite, Chaplin recebeu seu batismo de fogo e sua mãe
viu uma cortina de chumbo descer sobre seu talento. Com isso, Hannah ficou
desempregada. O pai deixou de mandar a contribuição semanal que auxiliava
no pobre orçamento familiar. A família transitou por diferentes lares, período
em que começaram a surgir em Hannah os primeiros sintomas de uma doença
que mais tarde seria fatal, a insanidade mental, causada pelos anos de fome e
miséria somados ao desespero de ver os filhos em uma situação tão difícil.
Com a internação definitiva da mãe de Carlitos, o destino parecia cruel
com o menino. Vivendo de empregos esporádicos e passando a maior parte do
seu tempo perambulando pelas ruas dos subúrbios londrinos, nunca esqueceu
9
CHAPLIN, Charles. Minha Vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 38.
21
a vocação que possuía para o teatro, que sua mãe o fizera despertar desde tão
cedo e que já houvera ocasião de por à prova com grande sucesso. De vez em
quando, vestia sua melhor roupa na esperança de conseguir alguma ponta
numa representação qualquer, até que um dia foi convocado para interpretar o
papel do menino Billy em Jim, o Romance de um Cockney. A apresentação da
peça acabou não fazendo muito sucesso, o que não impediu que o talento do
garoto fosse percebido pelos críticos.
Uma melhor visibilidade ocorreu quando Chaplin interpretou um ajudante
de detetive em Sherlock Holmes. Com o sucesso obtido, ele e o irmão
abandonaram o pobre quarto em que moravam e alugaram um outro bem
melhor. Iniciavam um período de prosperidade e queriam esquecer de qualquer
forma aquele passado amargurado, deixando para trás todos os seus vestígios.
Os elogios da imprensa facilitaram os convites para papéis posteriores em
espetáculos como Repairs e Casey’s Count Circus. Ao completar dezessete
anos, interpretou o papel de um galã juvenil em O Alegre Major, peça muito
fraca que acabou ficando somente uma semana em cartaz. Graças ao prestígio
do irmão Sydney junto ao “papa” dos musicais, Fred Karno acabou contratando
Chaplin para representar uma personagem em O Jogo de Futebol.
O início da carreira internacional veio com a viagem da Companhia Fred
Karno para se apresentar em Paris. Surgiu então a grande oportunidade, o
teste definitivo que seria decisivo para a sua carreira, uma viagem para os
Estados Unidos com a companhia de outros comediantes. As apresentações
do grupo em Nova Iorque foram um fracasso, o que não impediu a imprensa de
apontar entre eles uma exceção que poderia fazer muito sucesso, obviamente
Charles Chaplin. Mesmo retornando ao país de origem, sabia que seu destino
o esperava do outro lado do oceano. Assim, procurou um dos dirigentes da
Keystone Comedy Film, assinando contrato previsto para um ano, recebendo a
considerável quantia de 150 dólares por semana. Para Homero Thevenet:
En una carrera de medio siglo se habrían de combinar el
genio nato, el azar de las circunstancias y una ambición que
aludía no sólo al dinero, sino al deseo de una obra mejor.
Fue una de las primeras “estrellas” del cine y fue también su
22
figura mejor pagada: el veloz crecimiento de su
remuneración semanal, desde 1914 a 1918, fue un factor
importante en la creación del “sistema de estrellas” que
habría de caracterizar al cine de Hollywood y después al de
otras industrias. La evolución de su carrera habría de
combinar también dos elementos contrarios. Por un lado
mostró reiteradamente um celoso cuidado de sus intereses
personales, provocando acusaciones de egoísmo y avaricia;
por outro lado mostró un impulso generoso y humanista que
le exhortaba a arreglar los males del mundo.
10
Em 1914 realizou o primeiro filme nesta companhia, Carlitos Repórter,
representando um personagem absolutamente distinto do tipo que pouco
tempo depois o tornaria imortal. Justamente por o se identificar com o que
estava fazendo, procurou criar algo novo. Começou a se lembrar de alguns
ingleses que observara durante a sua infância e que perambulavam pelas ruas
do subúrbio londrino onde vivera. Eram homens de pequena estatura, com
bigodinhos pretos, roupas bem justas e sempre portando uma bengala de
bambu. Resolveu então fazer uma caricatura, usando para tanto elementos
contraditórios que provocassem o humor, tais como calças bem largas, casaco
apertado e sapatos imensos. Era o nascimento do inesquecível Vagabundo.
Sobre a apresentação do novo personagem ao diretor cinematográfico Mack
Sennett, Charles Chaplin relembra:
É preciso que você saiba que este tipo tem muitas facetas: é
um vagabundo, um cavalheiro, um poeta, um sonhador, um
sujeito solitário, sempre ansioso por amores e aventuras.
Ele seria capaz de fazê-lo crer que é um cientista, um
músico, um duque, um jogador de pólo. Contudo, não está
acima de certas contingências, como a de apanhar pontas
de cigarros no chão, ou de furtar o pirulito de uma criança. E
ainda, se as circunstâncias o exigirem, será capaz de dar
um pontapé no traseiro de uma dama, mas somente no
auge da raiva! Continuei a falar assim por dez minutos ou
talvez mais, fazendo Sennett rir continuadamente.
11
Em uma época em que as comédias eram rodadas em no máximo três
dias, Chaplin foi adquirindo maior personalidade nos quase quarenta filmes que
realizou em 1914, acrescentando novos elementos em seus trejeitos e ações.
10
THEVENET, Homero Alsina. Chaplin: Todo Sobre un Mito. Barcelona: Editorial Bruguera, 1977. p.
104.
11
CHAPLIN, op. cit., p. 179.
23
Conforme suas experimentações, a personagem foi incorporando um forte
sentimento de contestação social. Neste mesmo ano, o irmão Sydney também
foi contratado pela Keystone, mas Carlitos não conseguiu chegar a um acordo
sobre a renovação de seu próprio contrato. Em 1915, com a transferência para
a companhia Essanay, o artista passaria a receber 1.250 lares semanais,
passando a escrever, dirigir e produzir suas próprias criações. Nesse período,
realizou o seu primeiro grande filme, O Vagabundo. Para Homero Thevenet:
Esse símbolo creció y fue entendido de varias maneras, al
azar de peripecias distintas y según la imaginación o el
criterio de diferentes ensayistas. El proprio Chaplin no quiso
dar un sentido único a su personaje, quizá porque intuyó
que la variedad le daba un campo mayor y que la
ambigüedad podía ser su riqueza. Pero su constante más
clara es la de plasmar en el vagabundo la lucha del débil
contra el fuerte, la protesta contra la desigualdad, la
injusticia y la prepotencia. En esa línea se inscribe buena
parte de su obra, tanto en los cortos como en los
largometrajes.
12
O último filme que fizera para a Essanay foi Carmen, cujo papel da
protagonista foi entregue à bela atriz Edna Purviance, recém-descoberta por
Chaplin e que estrelaria com ele quase todos os filmes a partir de então. Ainda
em 1915, a companhia Mutual fez uma proposta irrecusável, 670.000 dólares
para a realização de apenas doze filmes. Após dezesseis meses, o ator teve o
contrato cumprido. Realizou todos os filmes estipulados, entre eles dois muito
elogiados, Rua da Paz e O Imigrante. Neste último, era mostrada a situação
social dos imigrantes que chegavam aos Estados Unidos e a forma desumana
como eram tratados. Baseadas em algumas cenas desse filme junto à Estátua
da Liberdade, começavam as hostilidades do governo contra Charles Chaplin.
Com a assinatura de um novo contrato, desta vez com a First National,
inaugurou o seu próprio estúdio em Hollywood, passando a ter absolutos
direitos autorais sobre seus filmes. Em 1918 estrearia outro grande sucesso,
Vida de Cachorro, e o início de sua participação na vida política ao se engajar
na campanha para a venda do “Bônus da Liberdade”, pois os Estados Unidos
acabavam de entrar na Primeira Guerra Mundial. No ano seguinte, juntamente
12
THEVENET, op. cit., p. 110.
24
com Mary Pickford, Douglas Fairbanks e David Griffith, fundou a United Artists,
uma companhia produtora e distribuidora independente, formada somente por
artistas e que venderiam seus filmes no mercado aberto. Com o contrato ainda
vigente com a First National, realizou O Garoto, filme que rendeu 2,5 milhões
de dólares ao artista. Para Manuel Villegas López:
En el mundo de Charlot, significa la confrontación con la
realidad. Que es su aceptación. El mundo charlotesco,
desde la Keystone, está armado sobre el absurdo, resorte
esencial de lo cómico, y los seres que lo pueblan son
entelequias representativas, caricaturas. Desde El
inmigrante la realidad y la vida auténticas brotan por todas
partes en la obra de Chaplin, que es la vida de Charlot. En
El chico esta coincidencia del orbe charlotesco y el mundo
auténtico es completa, en casi todos los puntos, y las
caricaturas se tornan hombres, con pocas excepciones. En
Una mujer de París, sin el resorte cómico, con sus
propósitos de tesis y acción social, la realidad, la
autenticidad, entran definitivamente en la obra de Chaplin. Y
en adelante, Charlot vivi en ella con todas las
complicaciones y todas las contradiciones que le hacen
fecunda. A partir de aquí, Charlot acepta la vida real.
13
Os “efeitos colaterais” do grande sucesso alcançado por Carlitos não
demorariam a surgir. O envolvimento com Lita Grey, intensamente explorado
pela imprensa, acabou por ser a causa maior do seu divórcio com Mildred
Harris. Concluído o contrato com a First National, Charles Chaplin pôde usufruir
dos benefícios de ser um produtor independente e dono de uma companhia
distribuidora, o que não impediu que novos escândalos o atingissem. Em 1927,
os jornais publicaram uma série de acusações dos advogados de Lita Grey,
obrigando o ator a pagar uma indenização milionária. Em 1931, resistente às
novas tecnologias e à conseqüente popularização do cinema falado, Chaplin
opta por um enredo musical como recurso sonoro de Luzes da Cidade.
O casamento com a atriz Paulette Goddard ocorreu em 1933 durante um
cruzeiro pelo Pacífico. Em 1936, Chaplin apresentou Tempos Modernos, uma
sátira à sociedade industrial e ao maquinismo que fez do homem uma simples
ferramenta do processo produtivo. Muito criticado, o ator foi acusado de ser
simpatizante do comunismo. As perseguições se intensificariam no momento
13
LÓPEZ, Manuel Villegas. Charles Chaplin: El Genio del Cine. Madri: Taurus, 1957. p. 200.
25
em que preparava o roteiro de O Grande Ditador, uma sátira à figura de Hitler.
Agentes diplomáticos alemães e organizações fascistas dos Estados Unidos
pressionaram sem sucesso para que o artista desistisse desta produção. Em
1940 foi novamente acusado, agora pelo Comitê de Atividades Antiamericanas,
fato que não impediu a estréia do filme. Sobre a aproximação cada vez maior
de Chaplin com a realidade em seus filmes, afirma Sergei Eisenstein:
El compañero de interpretación de Chaplin em todo su
repertorio es outro, aún más fuerte e terrible, más grande y
sin corazón. Chaplin y la realidad misma, juntos,
representan delante de nosotros una serie interminable de
actos circenses. La realidad es como um payaso blanco y
serio. Parece ingeniosa y lógica, previsora y atenta. Pero
finalmente resulta estúpida y ridícula, y es su compañero
Chaplin, ingenuo y sin malicia, el que termina por ganar,
riéndose despreocupadamente, sin advertir que con su risa
la castiga.
14
A fala final pronunciada nesse filme foi em grande parte responsável por
sua saída dos Estados Unidos uma década mais tarde. Os anos seguintes
seriam marcados por acontecimentos que, manipulados pelas autoridades,
denegriram ainda mais a sua reputação. Primeiro as acusações de Joan Barry
no processo de reconhecimento da paternidade de sua filha. Segundo a
antipatia popular decorrente do fato de ter discursado publicamente pedindo o
auxílio dos americanos às tropas russas que, naquele momento, sofriam a
investida dos nazistas. Finalmente, por ter recusado a cidadania do país que o
projetou. Nesta época, terminava seu relacionamento com Paulette Goddard e
se casava novamente, agora com a jovem atriz Oona O’Neill, com que viveu
até o fim de sua vida, constituindo uma extensa e harmoniosa família.
No despertar da Guerra Fria, apresentou o discutido Monsieur Verdoux,
considerado por muitos como o filme que melhor sintetizou sua obra, mas que
alimentou ainda mais o ódio dos seus opositores. O roteiro foi baseado no caso
do famoso assassino Landru, que se casava com mulheres ricas e depois as
matava para ficar com a herança. O filme foi considerado como um atentado à
moral, sinalizando o fim da carreira do cineasta nos Estados Unidos. Por outro
14
EISENSTEIN, Sergei. El Arte de Charles Chaplin. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973. p. 118.
26
lado, a sua popularidade era imensa em toda a Europa, continente para onde
emigrou definitivamente em 1952. Sua última produção em Hollywood, o filme
Luzes da Ribalta, obteve grande êxito. Estabelecido na Suíça, viveu os últimos
vinte e cinco anos de sua existência num ambiente familiar, com grande
serenidade. Sobre o processo de Caça às Bruxas, afirma Pierre Leprohon:
No por ello dejó Chaplin de continuar defendiendo, con
algunas otras personalidades de Hollywood, a las víctimas
de la campaña anticomunista y, a través de ellas, a la
libertad de pensamiento y de expresión. La creciente
hostilidad de que era objeto, aun cuando apenas le
intimidaba, rechazaba a Chaplin a una soledad cada vez
mayor. Entre el pequeño vagabundo de antaño, libre,
desenvuelto, generoso, y la América de hoy, consagrada a
la propaganda militar, a las películas de guerra, al
alistamiento de las ideas y de los hombres, la ruptura era
definitiva.
15
Nos anos seguintes ainda produziu Um Rei em Nova Iorque, mas o
sucesso que obteve foi bastante reduzido. Isolado quase todo o tempo, viveu
em sua mansão ao lado de Oona, recebendo visitas de amigos e de várias
personalidades do mundo político e artístico. Aos oitenta e dois anos de idade,
Chaplin aceitou o convite da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas
de Hollywood para retornar a Los Angeles e ser homenageado na cerimônia de
entrega do Oscar, prêmio injustamente negado durante toda a sua carreira. No
entanto, a maior prova de reconhecimento foi a condecoração concedida em
1975 pela rainha da Inglaterra, o seu país de origem. Sir Charles Chaplin viveu
por mais dois anos, vindo a falecer no Natal de 1977 aos oitenta e oito anos.
1.3 A Crítica de Cinema em Porto Alegre:
O nascimento da crítica cinematográfica em Porto Alegre se confunde
com o trabalho de um extraordinário intelectual, Jacob Koutzii. Assinando suas
crônicas como Plínio Moraes, escreveu sobre cinema na imprensa da capital
desde os anos 1930, contribuindo decisivamente para desenvolver a cultura
cinematográfica no Rio Grande do Sul. Ele e Paulo Fontoura Gastal foram os
15
LEPROHON, Pierre. Charles Chaplin. Madri: Ediciones Rialp, 1961. p. 338.
27
“pais fundadores” da crítica gaúcha de cinema. Nascido na Rússia em 1908,
emigrou para o Brasil ainda menino, onde fez carreira comercial e se tornou
uma das principais figuras do contingente judaico em sua geração. No final dos
anos 1920 aderiu à Juventude Comunista, sendo o grande responsável pelo
ingresso de Eloy Martins nos quadros do partido. Conforme o depoimento do
próprio militante no livro em que registra suas mais importantes passagens:
O moço com quem conversamos chamava-se Jacob Koutzii,
tinha naquela ocasião 20 anos, era responsável no partido
pela organização da Juventude Comunista e seu trabalho se
concentrava entre os jovens operários. O Issac, como o
conhecíamos, nome de guerra, dificilmente passava um
domingo sem ir aos jogos de futebol de times de operários
de empresas industriais. Issac, como ativo colaborador da
“Classe Operária”, usava o pseudônimo de Plínio Moraes.
16
Não seria exagero afirmar que Jacob Koutzii foi o homem certo no lugar
exato, pois o partido comunista de Porto Alegre nasceu no coração do bairro
Bom Fim. Pela mão de judeus foi erguido o primeiro jornal do partido, o Die
Bewegung
17
. Ainda sobre a importância da colônia judaica na capital, mais
especificamente dos imigrantes russos, alguns destes chegaram de tal forma
marcados pela violência do deslocamento, que ao natural passariam a compor
os quadros do “partidão”, ainda que não descartando a hipótese de que estes
trouxessem estas marcas consigo, contribuindo de forma decisiva para a
propagação deste ideário. O pioneiro da crítica cinematográfica ainda seria
uma peça importante na consolidação de outro foco cultural desta cidade,
nascido no coração deste mesmo bairro, o Clube de Cultura.
O Clube de Cultura foi fundado em 1950 graças à iniciativa de judeus
progressistas, sobretudo ligados ao partido comunista. Neste período, em que
o “partidão” procurava superar as difíceis barreiras do isolamento político, a
instituição foi um palco privilegiado para grandes nomes da cultura brasileira,
um verdadeiro núcleo de resistência ao processo de dominação capitalista. As
atividades ligadas direta ou indiretamente ao partido eram realizadas com o
16
MARTINS, Eloy. Um Depoimento Político. Porto Alegre: Gráfica Pallotti, 1989. p. 28.
17
MARÇAL, João Batista. A Imprensa Operária do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Evangraf, 2004. p.
133.
28
cuidado de não expor seus membros a qualquer risco de repreensão. Como
conseqüência do golpe militar, seus dirigentes enfrentaram uma grave crise e
um forçado processo de reestruturação, resultando no afastamento de muitos
associados, vítimas do medo e insegurança que estremeciam o país. Como
recorda Hans Baumann, um dos fundadores da instituição:
O Clube naquela época era um clube judeu, progressista, foi
fundado em 1950 e o Jacob Koutzii não sei se foi um dos
fundadores iniciais, mas logo entrou aqui no Clube. Existia
uma casa aqui neste terreno, então resolveram fazer um
condomínio a preço de custo, planejaram esse edifício, e foi
sorteado aos diretores, conselheiros e alguns sócios, foram
sorteados apartamentos, com a condição de deixar uma
área para o Clube, se não, não teria essa área hoje...
18
O fato de ser judeu e comunista certamente contribuiu para a adoção do
pseudônimo Plínio Moraes. Outros importantes personagens da colônia judaica
usaram deste artifício, entre eles o caso de Isaac Akcelrud
19
, que para fugir da
repressão adotou como nome Josino Campos, atuando de forma decisiva no
núcleo comunista do bairro judeu. Aproveitando a discussão, gostaríamos de
apontar a “válvula propulsora” a qual originou aquilo que hoje entendemos por
crítico de cinema, ou seja, o sujeito que publica opiniões especificamente sobre
filmes nos mais diversos meios de comunicação, diferentemente dos pequenos
anúncios que caracterizavam o período anterior no qual apenas eram exibidos
os futuros lançamentos. Em Porto Alegre isso se constituiu através das páginas
de um importante órgão da imprensa comunista, a Revista Rumo.
O pioneiro da crítica cinematográfica participaria ainda de uma iniciativa
decisiva para os Rumos da cultura local, o Clube de Cinema de Porto Alegre.
Como veremos mais adiante, de sua fundação participaram grandes nomes da
vida artística do Rio Grande do Sul, compondo um núcleo de efervescência
cultural sem precedentes. A trajetória profissional de seus membros possibilitou
ao Clube um amplo alcance junto à sociedade, protagonizando importantes
eventos que contaram com a participação de reconhecidas personalidades do
18
BAUMANN, Hans. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [13 de setembro de 2007].
Entrevistador: Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
19
MARÇAL, João Batista. Comunistas Gaúchos. Porto Alegre: Tche!, 1986. p. 11.
29
mundo da sétima arte. A instituição foi o espaço no qual seria lapidada a
geração que deu continuidade ao trabalho dos pioneiros, período que, para
estes “jovens” cinéfilos, foi assinalado de boas lembranças deixadas pelos
mestres. Como recorda o jornalista Hiron Goidanich:
O Jacob Koutzii era uma coisa incrível. O Jacob, a primeira
vez que eu encontrei ele, ele saiu logo brincando e
contando coisas, e ele era um auto-ironista incrível, ele
contando “- Goida, eu comecei uma dieta vegetariana, eu
vou no restaurante e como arroz, verduras...”, aí, uma
semana depois a gente se encontrou e ele disse “- Goida,
desisti da dieta, porque comer arroz e verduras é até
razoável, mas ter que mastigar vinte e cinco vezes o arroz
não é possível!”, por tu tem uma idéia do que era a
figura do Jacob Koutzii.
20
O homem profundamente identificado com as causas do partido esteve
longe de ser um dogmático. Registrou com clareza sua opinião sobre os filmes,
buscando com sucesso a simplicidade para elaborar seus artigos. A repressão
imposta pelos golpistas na América Latina o atingiria fatalmente, especialmente
quando seu filho foi preso anos depois pelos militares argentinos. Jacob Koutzii
morreu em 1975 sem ver o filho em liberdade, sofrimento este que certamente
antecipou seu falecimento. Apaixonado por Charles Chaplin, logo percebeu que
o artista abandonara em definitivo a comédia, incorporando aos seus filmes as
aspirações populares. Considerando a admiração de seu pai pelo vagabundo
Carlitos, Flávio Koutzii aponta alguns aspectos de sua infância ao relembrar:
Tinha uma bela biblioteca de cinema, a grande maioria em
inglês, trabalhou como um condenado no comércio, mas ele
tinha um acervo. Dentro dessa biblioteca e dentro dessa sua
fala o Chaplin era “o cara”, isso é claro pra mim. Eu sou um
cara ruim de memória, isso afeta um pouco o meu próprio
trabalho hoje no presente, Freud explica, enfim, isso é nítido
pra mim, eu posso afirmar, eu digo sim, eu era filho dele, eu
que tava na casa, era uma espécie, era um dos nossos
heróis, e tem esse lado da esquerda e da condição judaica,
quer dizer, o cara que acaba fazendo O Grande Ditador, vai
“pro pau” com Hitler...
21
20
GOIDANICH, Hiron. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [05 de maio de 2006]. Entrevistador:
Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
21
KOUTZII, Flávio. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [14 de fevereiro de 2006]. Entrevistador:
Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
30
Responsável pela consolidação do trabalho pioneiro de Jacob Koutzii,
Paulo Fontoura Gastal começou a escrever aos dezenove anos. Apaixonado
por cinema, dizia ser um “modesto rabiscador de notas cinematográficas”.
Mantendo sempre um diálogo franco com os seus leitores, ao responder cartas
e apontar defeitos nas salas de cinema, adiantava algumas novidades que em
breve seriam vistas nas telas. Trouxe para Porto Alegre a sua grande herança
familiar, a aproximação com as artes. Charles Chaplin sempre esteve presente
em seu olimpo particular, fascínio que o fez adotar entre seus pseudônimos o
personagem Calvero, que Carlitos interpretara em Luzes da Ribalta, além de
conservar um bigodinho típico e uma bengala pouco confortável que exibiu até
o final da vida. Conforme as lembranças de seu filho, o jornalista Ney Gastal:
Não, ele não gostava do Chaplin, o Chaplin era Deus. Era
uma admiração tão absoluta que ele chegava a ficar
parecido com o Chaplin em algumas coisas, ele fazia umas
imitações do Chaplin muito curiosas, depois que ele ficou
doente, que ele tinha dificuldade para caminhar, a bengala
que ele usou, eu tenho em casa ainda, é uma bengala
chapliniana, de bambu torcida, com aquela coisa, uma
bengala pouco confortável de usar, mas, chapliniana...
22
Estamos falando de uma admiração que ultrapassou os limites do mero
engajamento político, atingindo uma profunda identidade entre o ideológico e o
afetivo da figura do vagabundo. Para citar um exemplo, Paulo Fontoura Gastal
visitou a Europa algumas vezes a convite de governos oficiais, e numa destas
oportunidades teve a chance de entrevistar Charles Chaplin em sua mansão na
Suíça. Animado com a iniciativa, o sonho de conhecer Carlitos estava mais
próximo do que nunca. Porém, pouco tempo antes do tão esperado encontro,
alegando total falta de condições emocionais, negou o convite. Conforme a
entrevista que realizamos com seu filho, algumas lembranças ajudam a
compreender sua personalidade, pois como afirma Ney Gastal:
O pai era muito mido, tem algumas histórias muito
curiosas, quando eles eram guris, eles eram nove irmãos,
mas as vezes eles brincavam de polícia e ladrão, coisa
assim, e uma vez amarraram ele, prenderam ele numa
mesa, eles queriam prender com uma corda e não tinha
22
GASTAL, Ney. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [29 de março de 2006]. Entrevistador:
Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
31
corda, eles eram bem guris, isso é um retrato do
temperamento, abriram o costureiro da minha vó, pegaram
linha e amarraram ele com linha, e terminou a brincadeira e
esqueceram ele lá, e ele ficou, tava preso...
23
Durante quase meio século Gastal foi um foco difusor e congregador da
produção cultural e intelectual do Rio Grande do Sul. No final dos anos 1940,
seus textos para a Revista do Globo unificavam a informação com uma
linguagem clara e de fácil acesso, adaptando seu estilo às exigências de uma
publicação de grande circulação. Nesta fase, começava a criticar abertamente
o cinema americano ao passo que descobria e defendia o cinema soviético,
nascido das ruínas da guerra e com forte conteúdo político e ideológico,
opiniões no mínimo “estranhas” em se tratando de um periódico que sempre
esteve comprometido com os interesses da elite política. Como afirma Paulo
Fontoura Gastal em um artigo publicado nesta mesma época:
Nunca será demais insistir de convencer o grande público
de que o Cinema, em essência, é uma arte tão importante e
tão séria como todas as que o procederam. Essa falta de
compreensão em torno das possibilidades estéticas, que
oferece a arte das imagens, por parte da grande maioria dos
que quase diariamente entram numa sala de projeção, é
natural e de um certo modo lógica. Aí estão, para justificá-la
e servir de argumentos, aparentemente convincentes para
aqueles que defendem o ponto de vista de que o Cinema
nada mais é do que um mero passatempo, o excesso de
industrialização de Hollywood e outros centros e a
mediocridade de 95% da produção americana.
24
No início dos anos 1950, Gastal passaria a editar a gina de artes do
jornal Correio do Povo, dedicando especial atenção aos textos de cinema e
consolidando sua famosa assinatura. A censura, que durante o governo Dutra
impediu o ingresso de filmes soviéticos no Brasil, foi combatida por Gastal em
todos os momentos que a tima arte esteve ameaçada por este fantasma.
Nesta época, recebeu a visita de Alberto Cavalcanti que, impressionado com o
potencial de toda uma geração de jovens amantes do cinema, o convidou para
trabalhar ao seu lado. Pouco tempo depois, o crítico retornaria a Porto Alegre,
assumindo um papel de grande destaque na imprensa da capital. Analisando a
23
GASTAL, Ney. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [29 de março de 2006]. Entrevistador:
Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
24
BECKER, Tuio. Cadernos de Cinema de P. F. Gastal. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1996. p. 109.
32
transdisciplinaridade que caracterizava os pioneiros da crítica cinematográfica,
o professor Flávio Loureiro Chaves afirma:
Eles embora estivessem fazendo crítica de cinema, eles
também circulavam pela literatura, pelo teatro, pela música.
Então, sem que as coisas tivessem esse rótulo, havia uma
transdisciplinaridade muito mais intensa do que há hoje,
quando do ponto de vista teórico existem estudos
especializados. Então, o Plínio, por exemplo, ou o Gastal,
eles eram homens que tanto eles discutiam música quanto
discutiam cinema, e se você vai olhar a atuação de um
homem como o Gastal, o Gastal é sempre lembrado como
um homem de cinema, mas na verdade a página que ele
mantinha no Correio do Povo era uma página de cultura...
25
Não são muitos os autores que resgataram as memórias de Gastal, mas
pelo menos dois merecem o nosso mais sincero reconhecimento, Tuio Becker
e Fatimarlei Lunardelli. Nossa única crítica incide sobre uma suposta falta de
combatividade imposta ao autor, que sempre é citado como um homem de
grande talento, altamente capacitado para as tarefas que exercia, mas nada
além disso. Nossa perspectiva transcende esta aparente superficialidade, pois
identificamos alguns traços na biografia de Paulo Fontoura Gastal que nos
permitem descrever um sujeito que soube questionar as carências sociais do
seu tempo. Um exemplo deste pequeno avanço proposto por nossa pesquisa
encontramos no relato de João Aveline, em que o histórico militante do
“partidão” relembra uma passagem ao lado do amigo, na qual afirma:
Aconteceu a greve dos trabalhadores nos veículos da
Caldas Júnior. Tudo porque a empresa, no plano inclinado
da decadência, célere no caminho da falência,
financeiramente exaurida, nem dinheiro tinha para pagar
seus funcionários. Entre eles o P. F. Gastal, que, mais uma
vez, noutro terreno, no das lutas sociais, mostrou qualidades
de cidadania, defendendo seus direitos e de seus
companheiros. Foi demitido.
26
Graças à pesquisa junto ao acervo de João Batista Marçal, podemos
afirmar que Gastal não só trabalhou nos periódicos tradicionais de Porto Alegre
25
CHAVES, Flávio Loureiro. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [05 de abril de 2006].
Entrevistador: Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
26
AVELINE, João. Macaco Preso para Interrogatório: Retrato de Uma Época. Porto Alegre: Age, 1999.
p. 78.
33
como foi um dos mais importantes membros de um órgão do Comitê Municipal
do partido comunista, a revista semanal Libertação, posteriormente batizada de
Tribuna Gaúcha. Encontramos ainda vestígios que comprovam a colaboração
com outro importante veículo do partido, a revista mensal Horizonte. Neste
sentido, conforme sua significativa trajetória profissional, acreditamos em um
real envolvimento seu com as causas da esquerda gaúcha, compondo um dos
quadros da chamada Frente Intelectual do Partido Comunista do Rio Grande
do Sul. Para o crítico de cinema Enéas de Souza:
O Gastal era um homem de esquerda, tinha uma posição
bastante clara, talvez na seleção de cineastas
eventualmente poderia aparecer isso, mas ele era
suficientemente isento para aceitar autores de outras
correntes que não fossem, necessariamente, de esquerda.
Ele enxergava o cinema como cinema, tinha uma dialética
entre essa realidade do cinema e a realidade da sua posição
política. Ele não era um cara que utilizava o cinema para
expressar suas idéias, ele pensava o cinema, e se o cinema
apoiava suas idéias, ótimo, se não, ele ficava no cinema
também, embora tivesse sempre posição política muito
clara, muito nítida, a esquerda sempre...
27
Contribuindo para a consolidação de um certo caráter autônomo
28
na
militância política de quadros como Paulo Fontoura Gastal, está a idéia de que
os intelectuais comunistas gaúchos optaram pelo partido comunista não porque
vissem nele o meio ideal para as mudanças sociais que almejavam, mas
porque acreditavam que a organização tinha as propostas mais acertadas para
o momento, em que a derrota das forças fascistas na Segunda Guerra Mundial
e a redemocratização brasileira criaram um clima favorável ao pensamento
progressista. O trânsito destes intelectuais entre os segmentos mais abastados
da sociedade pode ser atribuído à notoriedade conquistada por suas atividades
profissionais; eles circularam procurando divulgar as idéias comunistas, ainda
que sem dogmatismos.
27
SOUZA, Enéas de. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [18 de maio de 2006]. Entrevistador:
Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
28
GARCIA, Eliane Rosa. A Ação Legal de um Partido Ilegal: O Trabalho de Massa das Frentes
Intelectual e Feminina do PCB no Rio Grande do Sul (1947-1960). Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. p. 148.
34
A Frente Intelectual do partido comunista representou uma alternativa
progressista ao conservadorismo de alguns setores da sociedade, utilizando a
notoriedade de alguns dos seus intelectuais para promover as campanhas em
que estava envolvido. A assinatura de um conhecido membro da sociedade
poderia render outras tantas para os movimentos a favor da paz ou contrários à
proliferação de armas químicas e nucleares. Era interessante ao “marketing” do
partido que seus membros ilustres, fossem eles militantes ou simpatizantes,
recebessem condecorações por seus ofícios, testemunhando que aqueles que
estavam envolvidos em suas lutas eram sujeitos honrados e profissionalmente
competentes. Neste sentido, ao comentar sobre a significativa militância de
Paulo Fontoura Gastal nos principais órgãos da imprensa comunista em Porto
Alegre, João Batista Marçal afirma:
A polícia pegava o jornal, a revista Horizonte era uma revista
intelectual, conseqüentemente de circulação mais restrita,
mas pegava também o jornal diário do partido, de massa do
partido, que o povo lia nas vilas, levado pelos militantes, que
era a Tribuna Gaúcha, lá tinha texto, lá tinha manifesto
assinado pelo P. F. Gastal pedindo a libertação de presos,
um preso aqui, outro preso lá, texto dele assinando
manifesto contra as armas nucleares, contra a Guerra da
Coréia, pela paz.
29
O Rumo dos acontecimentos políticos, das acusações de Nikita Kruchev
até o golpe militar que abalou as instituições do país, ocasionou um momento
de frustração e gradual afastamento dos membros do partido comunista. Nos
anos 1960, Paulo Fontoura Gastal acusava sinais de profundo aborrecimento,
iniciando um longo silêncio profissional. Os sintomas teriam começado em sua
primeira visita à Alemanha Oriental. Gastal retornou ao Brasil tomado por um
intenso fascínio, sentimento que se desfez quando em uma segunda viagem
constatou que pouco ou nada havia mudado no país. Porém, este desgosto
não diminuiu sua coragem e espírito militante, pois, ao mesmo tempo em que
as tropas militares ganhavam as ruas da capital, a sátira de Charles Chaplin
aos ditadores era exibida no Clube de Cinema de Porto Alegre.
29
MARÇAL, João Batista. A Crítica Cinematográfica de Porto Alegre [22 de setembro de 2007].
Entrevistador: Eduardo de Souza Soares. Porto Alegre: PUCRS.
35
1.4 Charles Chaplin e o Cineclubismo:
O cineclubismo emergiu do movimento de vanguarda artística e literária
francesa no início da década de 1910, período histórico em que o cinema se
consolidava como uma indústria na França e nos Estados Unidos. A rede de
cineclubismo espalhada pelo Brasil a partir da cada de 1950 foi crucial para
a diversidade da cultura cinematográfica que então se constituía, promovendo
a circulação e dando acesso a filmes antigos não contemplados pelo circuito
comercial. Em Porto Alegre, o movimento mundialmente difundido encontrou as
condições propícias para seu desenvolvimento graças ao pioneirismo de Jacob
Koutzii e o trabalho de Paulo Fontoura Gastal, proporcionando uma privilegiada
condição de acesso a todos os filmes disponibilizados para o mercado. Para a
jornalista Fatimarlei Lunardelli:
A condição de província facilitava os vínculos entre os
agentes da imprensa, do cineclubismo, da distribuição e da
exibição de filmes, que Gastal, com sua liderança revertia na
forma de uma intervenção no mercado econômico. Fazia
campanhas em defesa de filmes através das páginas dos
jornais, que abria para textos de integrantes do Clube de
Cinema e nas quais se integravam os setores da distribuição
e da exibição com a cedência de cópias e salas para
sessões especiais, com grande antecedência do lançamento
comercial.
30
A capital do Rio Grande do Sul respirava cinema nos anos 1940. No fim
da Segunda Guerra Mundial, foi consolidado um processo iniciado no Estado
Novo, em que o gosto por filmes produzidos nos Estados Unidos tomaria conta
do público. Baseados em narrativas pouco criativas, seus enredos não exigiam
do expectador nenhuma capacidade de interpretação. Os personagens criados
pela indústria hollywoodiana determinaram em grande medida a conduta dos
jovens da capital gaúcha. Mas nem tudo estava perdido nos tempos do “Way of
Life”, pois a “resistência” e o espírito empreendedor dos fundadores da crítica
cinematográfica fizeram nascer em 1948 um novo centro de discussões, o
Clube de Cinema de Porto Alegre, onde pela primeira vez os cidadãos teriam a
chance de conhecer o universo escondido atrás das câmeras.
30
LUNARDELLI, Fatimarlei. Memória e Identidade: A Crítica de Cinema na Década de 1960 em Porto
Alegre. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 72.
36
Foi com a criação do Clube de Cinema que a população de Porto Alegre
passou a ter acesso a um conhecimento aprofundado sobre as especificidades
do cinema, sua história, sua linguagem, a importância de cada membro dentro
de uma equipe de filmagem, enfim, todo o universo então desconhecido pela
maioria. Sua finalidade era desenvolver o estudo, a defesa e a divulgação da
arte cinematográfica, objetivo em nada parecido com os fãs clubes dos Estados
Unidos, verdadeiros cultos ao mundo criado pelo “Star System”. Influenciados
por grandes ícones da cultura francesa como Georges Sadoul, os cineclubistas
gaúchos pretendiam valorizar os diretores e suas grandes obras. Sobre o apoio
dado à iniciativa pela sociedade, afirma Fatimarlei Lunardelli:
O grupo fundador era um misto de jovens sonhadores,
cheios de energia, e veteranos inquietos, profissionais
consagrados, empenhados em contribuir para a
coletividade. Gastal tinha vinte e seis anos, enquanto Plínio
Moraes chegava aos quarenta; Araújo era um jovem de
vinte e cinco e Fernando Corona um senhor de quarenta e
sete. O vice Goidanich completara vinte e oito anos. Esta
mistura respaldou e deu legitimidade para o
empreendimento. A sociedade, através de seus intelectuais
proeminentes, apoiou a iniciativa.
31
Nesta mesma época, mais especificamente no ano de fundação do
Clube de Cinema, como demonstrativo do sentimento de resistência contrário à
aculturação pelos Estados Unidos, surgia em Porto Alegre um outro movimento
histórico. Com a proposta de “recriar” o homem do campo, nascia o primeiro
Centro de Tradições Gaúchas. A recriação na cidade de um espaço de cultura
rural marcou profundamente a representação do gaúcho, gerando um mercado
de bens materiais e simbólicos na música, na literatura e no próprio cinema, em
que os filmes do cantor regionalista Teixeirinha, marcadamente na década de
1970, traduziram este sentimento de melancolia e saudade do homem que
perdera as raízes frente a uma cultura estranha à sua.
O Clube de Cinema desempenhou importante papel social e cultural, na
medida em que funcionou como foco irradiador da cultura cinematográfica.
Enquanto entidade constituída, e por reunir importantes personalidades da
31
LUNARDELLI, Fatimarlei. Quando Éramos Jovens: História do Clube de Cinema de Porto Alegre.
Porto Alegre: Unidade Editorial, 2000. p. 34.
37
cultura local, conquistou legitimidade para estabelecer contatos que trouxeram
para Porto Alegre as mais diversas produções cinematográficas. Em muitas
oportunidades os cineclubistas foram levados quase que exclusivamente pela
curiosidade, pouco importando a excelência das produções. Pólo atrativo de
importantes nomes do cinema nacional, os encontros muitas vezes serviram de
palco para que os cidadãos desfrutassem de palestras e seminários. Sobre a
relação do Clube com o circuito exibidor, afirma Susana Gastal:
O Clube de Cinema de Porto Alegre é um espaço de
excelência, e um espaço alternativo à hegemonia do cinema
americano pós-Segunda Guerra. Isto não significa que o
Clube tenha uma convivência atribulada com os exibidores
locais. Ao contrário, várias casas cedem suas instalações
para as sessões que acabam por se consolidar nas manhãs
de domingo, sem ônus para a agremiação. Também as fitas
são cedidas graciosamente pelas distribuidoras,
demonstrando que a convivência é mais do que cordial, e
que os próprios exibidores reconhecem o trabalho educativo
e de formação de platéias, realizado pelo Clube.
32
O Clube de Cinema de Porto Alegre nasceu com a marca e assinatura
de Charles Chaplin. A primeira entidade oficialmente constituída no Brasil foi o
Chaplin Club do Rio de Janeiro, fundado em 1928 por iniciativa dos jovens
universitários Otávio de Faria, Plínio Sussekind Rocha, Almir Castro e Cláudio
Mello. O grupo lançou a revista Fan que, em dois anos, publicou nove edições
com o propósito de discutir o cinema enquanto estética e cultura. A certeza da
superioridade de Chaplin em relação a qualquer outro artista, complementava a
convicção do cinema mudo como forma superior de expressão dos sentimentos
humanos. Refletindo sobre a relação entre as teses defendidas pelos jovens
cariocas e o empreendimento dos intelectuais gaúchos conduzido por Paulo
Fontoura Gastal, afirma Fatimarlei Lunardelli:
O estudo do cinema como arte era um dos itens do estatuto
do Chaplin-Club, ao qual seus membros se apegaram
ferrenhamente, defendendo o cinema mudo e enaltecendo a
figura de Charlie Chaplin como um artista de valor absoluto
e inquestionável. A reverência ao gênio criador do
personagem Carlitos havia mobilizado os pioneiros
franceses. Mais tarde, em Porto Alegre, seria o mesmo
32
GASTAL, Susana. Salas de Cinema: Cenários Porto-Alegrenses. Porto Alegre: Unidade Editorial,
1999. p. 76.
38
Chaplin usado como logomarca do Clube de Cinema, e
figura de referência de Paulo Fontoura Gastal, fato que
inscreve o grande animador do cineclube local na linha
fundadora do cineclubismo.
33
O Chaplin Club estava distante dos debates que ocorriam no Brasil dos
anos 1930, seguindo uma tendência característica da Europa ainda abalada
pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial. Com a formação de grupos que
discutiam as novas possibilidades proporcionadas pelo advento do cinema, os
jovens vislumbravam que esta linguagem causaria profundo impacto nos mais
diferentes olhares, alterando a relação até então estabelecida com a palavra e
suas formas de representação. Este pioneirismo revela que, na conturbada
república brasileira, foi possível uma ousada reflexão sobre esta estética que
acarretou uma série de mudanças na forma de o homem lidar com seus
próprios sentidos. Discutindo as inspirações do grupo, afirma Ismail Xavier:
Não são poucos os viúvos do cinema mudo, mesmo depois
de décadas de filmes sonoros. Quando Otávio de Faria e
seus companheiros partiram para a sua defesa, a batalha
estava no seu começo e no Brasil o filme mudo era a única
realidade. Foi na sua presença viva e renovada, palco de
eufóricas descobertas, que os jovens brasileiros se armaram
para cumprir o seu papel. E o arsenal que reuniram era
invejável, mesmo se considerarmos os padrões de
informações europeus e americanos do período.
34
Estabelecido o cenário e os personagens deste estudo, nos capítulos
subseqüentes apresentaremos histórias curiosas que comprovam o alcance do
anticomunismo na crítica cinematográfica de Porto Alegre. Aproveitamos este
espaço para destacar algumas fotografias gentilmente cedidas pelos familiares,
registros praticamente inéditos que ilustram a trajetória destes homens que não
defenderam teses como contribuíram decisivamente para o fortalecimento
da cultura regional. Por fim, entendemos que a profunda admiração de Jacob
Koutzii e Paulo Fontoura Gastal não impediu que a repercussão da filmografia
política de Charles Chaplin sofresse com as mais diferentes formas de censura,
uma espécie de “lei da mordaça” patrocinada pela imprensa da capital,
notadamente a Revista do Globo e o Correio do Povo.
33
LUNARDELLI, op. cit., p. 19.
34
XAVIER, Ismail. Sétima Arte: Um Culto Moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 220.
39
Ilustração 1 "Jacob Koutzii".
40
Ilustração 2 "A Juventude".
41
Ilustração 3 "O Intelectual".
42
Ilustração 4 "A Família".
43
Ilustração 5 "O Clube Israelita"
44
Ilustração 6 "Paulo Fontoura Gastal".
45
Ilustração 7 "A Paixão".
46
Ilustração 8 "O Acervo".
47
Ilustração 9 "A Esposa".
48
Ilustração 10 "O Cinema Imperial".
49
CAPÍTULO II
TEMPOS MODERNOS: UM REVOLUCIONÁRIO ROMÂNTICO
Considerando o questionamento central desta dissertação, na qual procuramos
analisar em que medida o anticomunismo esteve representado na repercussão
da filmografia política de Carlitos em Porto Alegre, aproveitamos este segundo
capítulo para discutir a estratégia adotada pela imprensa da capital ao divulgar
o grande lançamento do cinema mundial em 1936, o filme Tempos Modernos.
Privilegiando a Revista do Globo como fonte e considerando o contexto
histórico profundamente marcado pelo fracasso do levante comunista em 1935,
acreditamos que o periódico demonstrou fidelidade às posturas reacionárias
impostas por seu principal idealizador, Getúlio Vargas. A Revista do Globo, que
notadamente apreciava as novidades da indústria cinematográfica, desprezou
o enorme sucesso alcançado pela “première” da película na capital gaúcha.
2.1 O Combate ao Perigo Vermelho:
A política da Boa Vizinhança foi uma verdadeira revolução nas relações
internacionais dos Estados Unidos, mudando sensivelmente o trato com os
demais parceiros do continente americano. O empenho público anunciado pela
nova administração democrata, descartando o uso da força para resolver
eventuais conflitos, foi um passo decisivo dado por Franklin Delano Roosevelt
no reconhecimento do direito à autonomia dos seus vizinhos. Como reflexo da
crise de 1929, muitos regimes políticos da América Latina ruíram, deixando
aberta uma lacuna para movimentos como a Revolução de 1930 no Brasil, que
procurava lentamente mudar o perfil de fazenda cafeeira e açucareira em que o
país fora transformado desde os tempos imperiais.
Considerando uma postura de combate efetivo ao “perigo vermelho”,
esta pode ser creditada em sua plenitude quando Getúlio Vargas chega ao
poder. Um dos aspectos marcantes deste governo foi sua política trabalhista,
50
tendo como principal objetivo reprimir os esforços organizatórios da classe
trabalhadora. A partir deste momento, em todas as esferas de influência do
governo haverá em maior ou menor grau a difusão de idéias anticomunistas e o
combate ao comunismo. Nesse sentido, a figura do “inimigo” seria essencial,
fornecendo ao povo a consciência de sua unidade e ao governo a legitimidade.
Ao discutir a articulação de um inimigo comum a ser combatido através das
campanhas anticomunistas, Carla Luciana Silva afirma que:
Para a defesa e aceitação dessas propostas totalitárias era
fundamental a configuração da idéia de “inimigo interno”,
que conjugava todos os elementos que seriam contrários à
ordem, através da percepção de idéias como a necessidade
de cultivar os valores nacionais; do elemento estrangeiro
como oposto aos interesses nacionais, dos judeus como
“conspiradores aliados aos comunistas”; dos comunistas
como o mal maior que destruiria toda a civilização. Por outro
lado, os operários seriam bons e ordeiros”. Para manter a
ordem que segundo os anticomunistas era conclamada
pelos próprios operários, se justificaria inclusive a repressão
policial e os “regimes fortes”.
35
No cenário internacional, emergiam dos destroços da Primeira Guerra
Mundial, com avassaladora influência no continente europeu, movimentos
baseados em pensamentos de caráter totalitário. Seus ideólogos consideravam
a democracia liberal, com partidos e lutas políticas aparentemente inúteis, um
regime incapaz de encontrar soluções para a crise em que viviam. No Brasil,
refletindo este panorama, integralistas e comunistas se enfrentaram ferozmente
ao longo dos anos 1930. A Ação Integralista Brasileira, ou simplesmente AIB,
baseava seu movimento em temas conservadores como a família, a tradição
do país e a Igreja Católica. Considerando os respectivos interesses políticos
frente à polarização em que estavam envolvidos os dois movimentos, em seu
livro Rodrigo Patto Sá Motta afirma:
Curiosamente, se a AIB tirou proveito do anticomunismo,
ganhando adeptos à base de seu empenho em combater os
comunistas, o Partido Comunista beneficiou-se do
antifascismo, transformando-se em pólo de atração para os
adversários do integralismo. A aguda polarização ocorrida
na década de 1930 interessava às forças postadas nos
35
SILVA, Carla Luciana. Onda Vermelha: Imaginários Anticomunistas Brasileiros (1931-1934). Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 236.
51
extremos do espectro político, que se viam transformadas
em centros de aglutinação. O crescimento de um grupo
estimulou o fortalecimento de outro e, assim, comunistas e
integralistas viram suas organizações aumentarem, ao
mesmo tempo em que se engalfinhavam.
36
Os comunistas apelavam para concepções e programas de teor
revolucionário como a luta de classes, a crítica às religiões e aos preconceitos,
a emancipação nacional através da luta contra o imperialismo e a reforma
agrária. O conflito entre comunistas e integralistas refletia a oposição existente
na Europa entre seus inspiradores, o fascismo de um lado e o comunismo
soviético de outro. O crescimento do “perigo vermelho” no território nacional se
fez sentir por meio do aumento da influência comunista nas Forças Armadas e
da eclosão de uma série de greves, afetando as principais cidades brasileiras e
representando grande tormento às autoridades políticas. Refletindo sobre este
considerável avanço, Rodrigo Santos de Oliveira justifica:
No final da década de 1910 e nos anos de 1920, a
repressão ao comunismo ocorreu muito mais pela
necessidade dos governos em se defenderem das
oposições do que uma noção anticomunista. O comunismo
foi reprimido mais no “roldão” de outros inimigos do que
devido a sua periculosidade. Assim, ao cercear as ações
dos operários e reprimir o movimento anarquista, o
anticomunismo foi sendo gestado, inicialmente de forma
“inconsciente”, passando aos poucos a uma ação
consciente. Nos anos 1930, o quadro já é diferente, a ação
do PCB, mesmo sendo ínfima, se torna mais organizada e
tem notável crescimento, se comparado com a década
anterior e começa a “assustar” determinados setores
sociais.
37
Em 1935, como resposta ao confronto entre integralistas e comunistas, o
governo propôs ao Congresso uma Lei de Segurança Nacional, a LSN. A lei
definia os crimes contra a ordem política e social, incluindo entre eles a greve
de funcionários públicos, a provocação de animosidade nas forças armadas, a
incitação de ódio entre as classes sociais, a propaganda “subversiva” e a
organização de associações ou partidos com o objetivo de subverter a ordem
36
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: O Anticomunismo no Brasil
(1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 180.
37
OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. “Perante o Tribunal da História”: O Anticomunismo da Ação
Integralista Brasileira (1932-1937). Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. p. 56.
52
política ou social. Paralelamente à discussão da LSN, os comunistas e os
tenentes identificados com a esquerda preparavam o lançamento da Aliança
Nacional Libertadora, a ANL. A Aliança seria uma espécie de frente popular,
composta por vários setores sociais dispostos a enfrentar o fascismo e o
imperialismo.
A criação da ANL foi facilitada por uma transformação que ocorreu no
PCB em 1934, período em que Luis Carlos Prestes ingressou no partido. A
organização deixava de ser um pequeno agrupamento dirigido essencialmente
à classe operária para se converter em um organismo mais forte do ponto de
vista numérico e com uma composição social mais variada. Entraram para o
“partidão” os militares seguidores de Prestes e membros da classe média. A
temática nacional passou a predominar sobre a temática de classe, coincidindo
com a orientação vinda da Internacional Comunista. Em nome do principal líder
comunista que se encontrava clandestino no Brasil, Carlos Lacerda leu um
manifesto em que apelava pela derrubada do governo de Vargas e a tomada
de poder por um governo revolucionário.
A resposta do governo Vargas ao discurso proferido pelo eterno golpista
e então líder de esquerda foi o imediato fechamento da ANL. Enquanto muitas
prisões se sucediam, o PCB começou os preparativos para uma insurreição,
resultando na frustrada Intentona Comunista de 1935. Os acontecimentos não
deixam dúvidas quanto ao comando das ações ter pertencido aos comunistas.
Mesmo que o movimento iniciado em Natal tenha sido provocado por motivos
acidentais, a falta de um planejamento prévio dos revolucionários não escondia
o objetivo final de implantar o socialismo no país, ainda que fosse necessário
estabelecer políticas transitórias e concessões a eventuais aliados moderados.
Com base no considerável impacto das ações revolucionárias marxistas nos
meios conservadores, Rodrigo Patto Sá Motta considera:
As notícias sobre combates violentos causaram
considerável impacto na opinião conservadora, provocando
enorme pavor. O medo foi particularmente intensificado
devido ao fato, inusitado, de os revolucionários marxistas
terem tomado o poder em uma das unidades da federação
brasileira. É verdade que o Rio Grande do Norte estava
53
longe de ser um Estado importante, mas isto não diminui a
força simbólica do evento. Por outro lado, a revolução
esteve perto de dominar a maior cidade e centro militar do
Nordeste, Recife, o que teria conseqüências decisivas para
o desenrolar da insurreição. Não constituía absurdo,
portanto, sob o ponto de vista anticomunista, encarar como
sérios os acontecimentos.
38
A Intentona Comunista teve sérias conseqüências, abrindo caminho para
amplas medidas repressivas e para a escalada autoritária. Em 1936 foram
aprovadas pelo Congresso Nacional todas as medidas excepcionais solicitadas
pelo governo. A polícia prendeu alguns deputados que tinham apoiado a ANL
ou simplesmente demonstrado simpatia por ela. O parlamento não só aceitou a
justificativa para as prisões como autorizou o processo contra os acusados, ao
mesmo tempo em que eram criados órgãos específicos para a repressão. O
ministro da Justiça anunciou a formação da Comissão Nacional de Repressão
ao Comunismo, a CNRC, encarregada de investigar a participação de
funcionários públicos e outras pessoas em atos ou crimes contra as instituições
políticas e sociais.
Armado com novos dispositivos, o Estado empreendeu a maior
campanha de repressão política jamais vista no Brasil. Prendeu inimigos aos
milhares, abarrotando as antigas prisões e as novas instalações especialmente
construídas para a ocasião. Os “critérios” utilizados para identificar os
comunistas levaram à reclusão esquerdistas de várias facções. A ocasião
proporcionada pela perseguição anticomunista permitiu ao Estado afastar do
convívio social outros inimigos da ordem como vagabundos e delinqüentes
comuns. Quanto à Igreja, se possuía indisposição tradicional contra o
comunismo, os acontecimentos de 1935 intensificaram ainda mais sua repulsa.
Refletindo sobre as imagens exploradas pelos católicos na luta contra os
comunistas, Eliana de Freitas Dutra afirma que:
Assim, o diabo, o comunismo, o mal, a peste e o inferno se
entrelaçam para compor uma imagem poderosa, a do “mal
absoluto”, contraponto inevitável, reverso do bem e do
sublime que parecem perseguir a cultura humana e a
existência dos sujeitos sociais. Pelo tema do diabólico, do
38
MOTTA, op. cit., p. 190.
54
satânico e do demoníaco somos levados tanto a nos
defrontar com o horror, o medo, a morte, a perversidade, a
peste, como a testar a nossa sensibilidade ao mal. Daí, todo
o poder dessas imagens, o seu fascínio, a sua durabilidade
que levam à afirmação de que o “diabo é provavelmente um
componente inalienável do mundo”.
39
Os “defensores da ordem” não estavam exagerando totalmente quando
denunciaram a ameaça vermelha. A situação era propícia a causar uma reação
de temor sincero ao comunismo, considerado um inimigo ativo e perigoso. A
Intentona foi um presente para Getúlio Vargas, contribuindo para reverter a
situação de instabilidade e fragilidade política vivenciada pelo governo,
possibilitando, em apenas dois anos, a instauração de um regime ditatorial
protegido pelo compromisso anticomunista. Os setores sociais amedrontados
com o levante apoiaram decididamente o presidente, facilitando a difícil tarefa
de promover a unificação das frações políticas até então ocupadas em suas
próprias disputas pelo poder. Ao comentar o papel da imprensa neste cenário,
Rodrigo Patto Sá Motta afirma que:
O material mencionado, somado às numerosas cartas e
telegramas de apoio ao governo enviados às redações de
alguns jornais, constitui um bom indicador do impacto da
campanha anticomunista sobre a população. Não se trata, é
claro, de supor uma recepção unívoca do público ao
discurso do governo e imprensa, acreditando que todos os
brasileiros partilharam do mesmo pavor anticomunista.
Contudo, são fortes os indícios de que parcela bastante
expressiva da sociedade, possivelmente majoritária, alinhou-
se ao lado da Ordem e deixou-se empolgar pelo
anticomunismo em ascensão. E este grupo não deve ser
entendido como composto exclusivamente pelas elites
sociais. Pelo que se nas cartas, também foram afetados
elementos egressos das camadas baixas.
40
O poder da polícia da capital federal e de seu chefe, o antigo tenente
Filinto Müller, aumentou consideravelmente. Getúlio Vargas elogiou inúmeras
vezes o trabalho de seu colaborador que, apesar de subordinado ao Ministério
da Justiça, se comunicava com ele diretamente. A criação de um órgão
judiciário específico, estritamente subordinado ao governo, era uma medida
39
DUTRA, Eliana de Freitas. O Ardil Totalitário: Imaginário Político no Brasil dos Anos 30. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1997. p. 50.
40
MOTTA, op. cit., p. 200.
55
necessária para garantir a punição dos presos, sem grande consideração pelos
princípios jurídicos vigentes. Com esse objetivo, o Congresso aprovou uma lei
que instituía o Tribunal de Segurança Nacional, o TSN, que começou a
funcionar em outubro de 1936. A princípio, esse tribunal se destinava apenas a
julgar os comprometidos na insurreição de 1935, mas acabou se transformando
em um órgão permanente, atuando durante todo o Estado Novo.
Porém, passado algum tempo de implacáveis perseguições políticas, a
campanha anticomunista esfriou consideravelmente. Uma causa possível é a
percepção do sucesso alcançado, consolidando na mentalidade popular uma
imagem nada favorável dos comunistas ao mesmo tempo em que o Estado
fora aparelhado para reprimir toda e qualquer tentativa subversiva. Como as
organizações do PCB tinham sido em grande parte desestruturadas pela ação
policial, não parecia necessário manter o mesmo nível de pressão, pois tudo
indicava que o perigo maior passara e a ordem estava salva. A ofensiva
contra o comunismo, que eletrizou o país entre o final de 1935 e a primeira
metade do ano seguinte, foi vigorosa a ponto de enraizar um forte sentimento
anticomunista na população, que foi manipulada pelos promotores do grande
“blefe” de 1937, o plano Cohen.
Por ordem do ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, cerca
de trezentas pessoas foram soltas em 1937 e um novo pedido de prorrogação
do estado de guerra deixou de ser concedido pelo Congresso. Entretanto,
Getúlio e o círculo de íntimos não se dispunham a abandonar o poder, tanto
mais que nenhuma das candidaturas para as eleições de 1938 contava com
sua confiança. Faltava apenas um pretexto para reacender o clima golpista, e
ele surgiu com o plano Cohen, cuja verdadeira história tem até hoje muitos
aspectos obscuros. Aparentemente, o “plano” era uma fantasia a ser publicada
em um boletim da Ação Integralista Brasileira, mostrando como seria uma
insurreição comunista e como reagiriam os integralistas perante a ameaça.
Os efeitos da divulgação do plano Cohen foram imediatos. O Congresso
Nacional aprovou às pressas o estado de guerra e a suspensão das garantias
constitucionais por noventa dias, sendo implantado o Estado Novo sem
56
grandes mobilizações e com o apoio de importantes setores da sociedade. O
movimento popular e os comunistas tinham sido abatidos, restando pouca ou
nenhuma capacidade de resistência. Com o início da Segunda Guerra Mundial,
as perspectivas de uma efetiva oposição à ditadura varguista eram mínimas,
resultado imediato das espetaculares vitórias militares da Alemanha que
pareciam confirmar a supremacia do totalitarismo frente às democracias. Com
a total desarticulação do partido comunista, o país estava definitivamente nas
mãos do seu ditador.
A verdade é que o Estado Novo concentrou a maior soma de poderes
registrada até aquele momento na história do Brasil independente. A inclinação
centralizadora, revelada desde os primeiros meses após a Revolução de 1930,
estava plenamente consolidada. Os Estados passaram a ser governados por
interventores, eles próprios controlados por um departamento administrativo.
Esse departamento era uma espécie de substituto das Assembléias estaduais,
pois o orçamento e as medidas legislativas dos interventores dependiam de
sua aprovação para serem expedidos. A escolha dos interventores obedeceu a
diferentes critérios, recebendo esta designação alguns dos parentes de Getúlio
Vargas, homens do exército e membros das oligarquias regionais.
2.2 Os Enigmas Chaplinianos:
No momento em que Charles Chaplin idealizou Tempos Modernos, a
depressão econômica era uma realidade nacional e mundial, manifestada em
todas as instâncias da vida pública. Este foi o grande tema do momento, muitas
vezes discutido pelo autor junto às autoridades européias durante sua viagem
ao continente no início dos anos 1930. Um bom exemplo disto foi sua conversa
com Mahatma Gandhi. O líder hindu, que lutava para eliminar o domínio inglês
sobre a Índia e que se encontrava em Londres no período, acreditava que a
tecnologia resultante do avanço das máquinas industriais teria contribuído para
a hegemonia inglesa na região. Não por acaso, Chaplin incluiu em seu filme
uma sátira contundente à mecanização do ser humano nas grandes fábricas.
57
Uma outra importante circunstância foi a ascensão do cinema sonoro e
de suas técnicas. Enfrentando com audácia os presumidos avanços da sétima
arte, Chaplin manteve mudo o seu protagonista, ainda que tenha acrescentado
alguns mínimos diálogos em personagens secundários. Optou por incorporar
uma partitura musical, que ele mesmo compôs com a supervisão de Alfred
Newman, e uma canção conhecida como Titina, cuja letra era um apanhado de
inúmeras palavras sem sentido ou tomadas de outros idiomas, fato que para
muitos biógrafos de Carlitos corresponde a uma crítica do autor às “amarras”
impostas pela sonorização do cinema. As notícias de que Carlitos estava
produzindo um filme com sérias implicações sociais criou esperanças e medo
por parte de alguns setores que se opunham ao autor. Para Georges Sadoul:
Chaplin afastou-se mais do que nunca do mundo
Hollywoodiano com Tempos Modernos. Dizia-se até que ele
pensava em deixar ao mesmo tempo a capital do cinema
americano e a personagem de Carlitos. Teria encetado
negociações com Alexandre Korda para uma produção em
Inglaterra. Teria ao mesmo tempo considerado propostas
que lhe davam carta branca para realizar um filme na URSS.
Mas Chaplin não se decidia a deixar o seu estúdio e a
equipe dos seus colaboradores.
41
Durante os anos de 1934 e 1935 se afirmava que o filme manifestaria a
odiosa luta de classes, a tragédia do pequeno burguês frente ao capitalismo e
uma mensagem revolucionária. Certamente não seria o primeiro filme da época
a tocar em temas sociais, mas prometia ser um expoente entre eles, promessa
fortalecida graças à importância e repercussão garantida pelo nome do seu
criador. O filme efetivamente proporcionava um receio capitalista frente ao risco
de que ali estivesse preconizada a revolução social, mas ao mesmo tempo
desiludiu a muitos dos que acreditaram que Tempos Modernos apresentaria as
reais condições de vida naquele período. Boa parte do enredo é composta de
variados números cômicos, sem qualquer relação com o social.
Os episódios do princípio apresentam o vagabundo Carlitos como o
trabalhador de uma fábrica, função que permite ao personagem burlar algumas
regras impostas. Sua obrigação de apertar continuamente uma mesma peça o
41
SADOUL, Georges. A Vida de Carlitos. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1952. p. 175.
58
leva a perder a cadência dos segundos, atrasando a cadeia de produção e
provocando uma grande confusão. um momento em que é utilizado como
beneficiário de uma estranha máquina de comer, que colocava alimentos em
sua boca mediante braços mecânicos, até enlouquecer o aparato e sua tima.
O que transparece em Tempos Modernos certamente não é uma oposição de
Chaplin à indústria, sem a qual não teria sequer uma câmera para expressar
sua arte, mas o perigo de que o ser humano tivesse uma vida canalizada e
manipulada, resumindo sua existência às engrenagens de uma máquina.
Aproveitando seu individualismo e freqüente repugnância ao consenso,
Chaplin utilizara a complexidade do maquinário moderno para defender o ser
humano perante elas. Os seus inimigos, fiéis aos princípios anticomunistas e
imbuídos de falso patriotismo, não foram suficientemente capazes de deduzir
que mesmo a União Soviética o seria um paraíso para Chaplin ou para seu
personagem. A genialidade de Carlitos foi expressa através de intencionais
ambigüidades, permitindo a cada espectador diferentes interpretações. um
momento central no filme, em que o vagabundo recolhe um pano vermelho,
recém-caído de um caminhão, e o agita freneticamente para chamar a atenção
do descuidado motorista, sem perceber que às suas costas uma manifestação
estava se aproximando. Conforme Walter da Silveira:
Muito sutilmente, Chaplin elegeu a sátira como forma.
Necessitava conciliar a individualização artística com o
pensamento social. E a sátira tradicionalmente serviu aos
grandes artistas para golpear a opressão com uma fantasia
pessoal. Panfleto contra a sociedade industrial, o filme
castiga as suas contradições. Desde a máquina que
desumaniza o operário ao limite de enlouquecê-lo à fome
que aliena os desempregados em assaltantes de rua.
uma greve. A polícia intervém. Um trabalhador é morto. E
Carlitos, que não participava do movimento, vai preso por ter
apanhado na rua a bandeira dos grevistas.
42
Os espectadores da esquerda entenderam que Chaplin manifestava
uma acusação contra a polícia, famosa por deter aqueles que empunhassem
bandeiras vermelhas. Com similar coerência, a crítica cinematográfica de perfil
42
SILVEIRA, Walter da. Imagem e Roteiro de Charles Chaplin. Salvador: Editora Mensageiro da Fé,
1970. p. 42.
59
conservador propôs o inverso, em que Carlitos estaria ironizando a credulidade
dos manifestantes os quais não suspeitavam do “líder” que os conduzia ao
mesmo tempo em que os ignorava, desconhecendo os seus motivos. Não nos
arriscaríamos a propor uma saída para este “impasse”, o certo é que estes
“enigmas chaplinianos” foram responsáveis por formar uma brilhante geração
de intelectuais por todo o mundo, independentemente de suas convicções.
2.3 Chaplin e os Intelectuais Gaúchos:
Procurando aproximar a discussão anteriormente iniciada, gostaríamos
de expor as considerações de importantes nomes da intelectualidade gaúcha
quanto à popularidade de Carlitos em Porto Alegre e sobre a expectativa do
grande lançamento cinematográfico de 1936, o filme Tempos Modernos. Nesta
época, o artista estava temporariamente retirado das telas, ainda que nunca
tenha deixado de ser uma figura impressionantemente admirável no mundo das
artes, ultrapassando os limites da dramaturgia para se tornar um vulto de
dimensões respeitadas. Com o objetivo de preparar seus leitores para o futuro
acontecimento, o jornal Correio do Povo organizou uma série de entrevistas,
observando as considerações de diferentes intelectuais sobre a vida e a obra
de Charles Chaplin.
O primeiro entrevistado foi o escritor Érico Veríssimo. Conhecido por
“multiplicar” suas horas de trabalho, o encontro com o jornalista do Correio do
Povo foi realizado em ritmo absolutamente acelerado, em meio à editoração da
Revista do Globo. Veríssimo demonstrou sua sincera admiração por Luzes da
Cidade, última película de Carlitos exibida em Porto Alegre. Atento aos últimos
apontamentos da crítica inglesa e americana, unânimes quanto à seriedade do
novo filme, afirmou
43
que sua consciência estaria tranqüila ao indicar Charles
Chaplin caso “caísse na Terra um homem de Marte e me perguntasse, sem dar
muito tempo para a resposta, quais os maiores realizadores do cinema”. Esta é
uma opinião que nascia da reflexão sobre a recente incorporação de aspectos
da realidade na obra do artista.
43
CHARLIE Chaplin visto pelos nossos intelectuais. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 16, 17/05/1936.
60
A adoção de aspectos sociais na filmografia de Chaplin fez despertar em
outros intelectuais uma similar admiração à expressa por Érico Veríssimo.
Apontado à época como elemento exponencial da moderna literatura brasileira,
um pensador sem meios tons ou qualquer outro colorido verbal, Vianna Moog
descreveu
44
Chaplin como um homem que rompia as barreiras do seu tempo,
um “Dom Quixote moderno, sem Cervantes”. Toda a impressão causada por
Charles Chaplin seria decorrência do seu heroísmo, pouco importando as
exigências da realidade. Num mundo de indivíduos regrados e passivos, “as
proezas de Carlitos, por isso mesmo que são a contrafação das virtudes do seu
tempo” só encontrando “símiles nas aventuras do fidalgo da Mancha”.
Prosseguindo na iniciativa de conhecer a opinião dos homens de letras
do Rio Grande do Sul sobre Charles Chaplin, o Correio do Povo entrevistou o
escritor Paulo Corrêa Lopes. Apresentado aos leitores como uma das mais
espontâneas florações da poesia brasileira contemporânea, homem de grande
pureza artística e intelectual, fez perder seu olhar ao longe quando questionado
a respeito de Chaplin, a quem descreveu como um amigo dotado de tamanha
humanidade ao ponto de repartir com o público suas emoções. Confessando
suas pretensões de algum dia escrever um livro sobre Carlitos, afirmou
45
que
não bastaria um conceito para definir Charles Chaplin em sua complexidade,
pois “no fundo das suas concepções sempre um pedaço de nós mesmos,
um pouco da vida que nós todos vivemos”.
Dando continuidade àrie de entrevistas que indiretamente pretendiam
inserir os intelectuais locais no debate de proporções mundiais suscitado pelo
novo filme de Charles Chaplin, Carlos Dante de Moraes, oficial do gabinete do
governador do Estado e homem identificado com as atividades literárias locais,
entendia
46
que Carlitos foi além dos limites impostos pela comédia, estando o
seu sucesso alicerçado nas mensagens que veiculava nos filmes e que a todos
impunha algumas horas de reflexão. Para o escritor, a capacidade de suscitar,
não apenas o humorismo, mas um tema humano coerente com as carências de
44
CHARLIE Chaplin visto pelos nossos intelectuais. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 05, 21/05/1936.
45
CHARLIE Chaplin visto pelos nossos intelectuais. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 06, 23/05/1936.
46
CHARLIE Chaplin visto pelos nossos intelectuais. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 17, 24/05/1936.
61
toda e qualquer sociedade, “constitui de certo um dos segredos do interesse
intenso que desperta Carlitos em cada novo filme”.
Com o objetivo de contemplar os mais diferentes campos de atividade
intelectual, a enquete do Correio do Povo não poderia deixar de incluir os
profissionais da imprensa, representados por um jornalista da própria Caldas
Júnior, Sérgio de Gouvêa. Coerente com a atmosfera de exaltação resultante
das últimas entrevistas, optou por definir Charles Chaplin como um grande e
insuperável animador de vidas, vistas e sentidas por seus aspectos mais
humanos e sinceros. Carlitos continuaria a ser o único artista realmente fiel ao
personagem criado, incorporando e demonstrando com absoluta naturalidade
os aspectos da vida real. Impressionado não com as comédias, afirmou
47
que “sua atuação de humorista impecável confunde-se com aquela dolorosa
tonalidade dramática que ele dá às suas surpreendentes interpretações”.
Mesmo considerando as opiniões destas importantes personalidades da
cultura gaúcha, gostaríamos de destacar um nome em especial, Nilo Ruschell.
Ruschell considerou
48
Chaplin como a “mais alta expressão revolucionária do
cinema”, aquele que “não consulta escolas nem procura satisfazer exigências
estranhas ao seu espírito”. Embora não tenha pretendido fazer qualquer alusão
ao comunismo, é significativa a adoção de uma palavra o controversa em
meio à atmosfera profundamente repressiva em relação ao “perigo vermelho”,
em que ressaltamos a comentada e frustrada tentativa do levante comunista
e a conseqüente perseguição aos seus simpatizantes. A real definição de
Charles Chaplin como um “revolucionário” ganharia vida e sentido nas ginas
da Revista Rumo, berço da crítica cinematográfica no Rio Grande do Sul.
Um dos articulistas responsáveis pela página de cinema deste periódico
comunista, Adolfo Krebs defendia
49
a tese de que, em 1936, era indiscutível
a função cultural do cinema, sendo necessário que os exibidores fizessem a
cultura do povo, fugindo “ao mesmismo das comédias vazias, das aventuras
47
CHARLIE Chaplin visto pelos nossos intelectuais. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 05, 27/05/1936.
48
CHARLIE Chaplin visto pelos nossos intelectuais. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 18, 31/05/1936.
49
KREBS, Adolfo. Cinema. Revista Rumo, Porto Alegre, nº. 04, p. 55-56, junho 1936.
62
impossíveis, dos dramalhões atualizados”. Seria preciso integrar o cinema na
sua finalidade, em que, de forma gradual, o mocinho deveria ser substituído
pelo artista, proporcionando a concreta valorização da arte, constituindo o
primeiro passo no progresso essencial da cinematografia. Sobre Chaplin,
homenageava o homem que, quando queria servir uma verdade amarga, a
trazia “escondida na cápsula açucarada do ridículo”, pois “digerido o invólucro”,
o conteúdo agiria sobre o cérebro e conseqüentemente nos obrigaria a pensar.
Conferindo importante respaldo à tese defendida por Adolfo Krebs,
Jacob Koutzii entendia que a arte como cultura deixava de ser um privilégio
das elites. As camadas superiores da sociedade deveriam a partir de então
ceder o seu lugar na imensa platéia do mundo para as camadas inferiores.
Para tanto, propôs
50
que se editassem “as obras primas da literatura por preços
popularíssimos”, que se cobrassem “preços popularíssimos nos espetáculos
teatrais”, que fossem “franqueadas as galerias de pintura”, que o governo
subvencionasse “concertos públicos dos grandes intérpretes da música, de
canto e de bailado”, para assim tornar claro que o ignorado “povo também
sente, também se emociona e também se sensibiliza com as superiores
manifestações da arte”.
Procurando compreender se Carlitos representava um revolucionário
romântico ou um gênio que sabia escapar aos limites impostos pela censura,
Aparício Maciel optou pela primeira hipótese, argumentando que, na cena
inicial de Tempos Modernos, ao comparar os carneiros com a multidão de
operários, Carlitos foi revolucionário no sentido mais extremo a que possa ser
submetida a expressão, porém, na cena em que se diz ladrão para salvar a
desconhecida moça, foi a sensibilidade do poeta que se manifestou em sua
plenitude. Deixou claro que a estréia do novo filme, em meio à ria
anticomunista das autoridades políticas, seria conseqüência do talento do seu
criador, afirmando
51
que “se Chaplin ainda não foi considerado uma calamidade
pública é porque tem o defeito de ser genial”.
50
MORAES, Plínio. Arte para o povo. Revista Rumo, Porto Alegre, nº. 04, p. 06-07, junho 1936.
51
MACIEL, Aparício. Chaplin, revolucionário romântico. Revista Rumo, Porto Alegre, nº. 04, p. 45,
junho 1936.
63
2.4 O Ímã das Multidões:
O grande mérito do fenômeno Charles Chaplin provavelmente esteja na
universalidade de seus signos. O homem que emocionou Érico Veríssimo com
Luzes da Cidade, fez da comédia sua principal arma contra as incoerências da
sociedade em que viveu. O desajeitado vagabundo contribuiu decisivamente
para a formação de toda uma geração de intelectuais, muitos deles ainda
crianças quando de seus primeiros contatos com a obra do comediante, das
inesquecíveis sessões de cinema ao lado dos pais, entre outras lembranças.
Enfim, é significativo que a proximidade das primeiras exibições de Tempos
Modernos em Porto Alegre tenha incentivado a curiosidade das famílias em
logo conhecer as novidades que o cineasta as fazia aguardar ansiosamente.
Como demonstra a enquete do Correio do Povo, nossos mais
proeminentes intelectuais alimentavam grande expectativa quanto ao roteiro de
Tempos Modernos. Este “vírus” de paixão que dominou o coração dos adultos
parece ter contaminado também o universo infantil, como demonstra o Grande
Concurso Infantil Tempos Modernos. Organizado pela United Artists em
parceria com a Casa Masson, tinha como objetivo eleger entre os garotos até
quinze anos as melhores caracterizações infantis de Carlitos. Os vencedores
do concurso seriam homenageados com prêmios ofertados por patrocinadores.
O julgamento ocorreria no cinema Imperial, na presença de representantes da
vida social da cidade. Conforme nota publicada no Diário de Notícias:
Nada até hoje empolgou de tal maneira o espírito do mundo
infantil de Porto Alegre como este original concurso que vem
realizando a United Artists e a Casa Masson, sob o
patrocínio do Diário de Notícias. O livro de inscrições dos
concorrentes está se enchendo das assinaturas mais
curiosas e desencontradas, desenhos de nomes de guris
desde 6 a 15 anos! E é bem capaz que ainda apareça
alguma com idade abaixo de 6 anos... porque o Concurso
Infantil Tempos Modernos tornou-se definitivamente a
preocupação unânime da nossa garotada.
52
52
O CONCURSO Infantil Tempos Modernos vai ser a coisa mais sensacional destes... Tempos Modernos!
Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 11, 20/05/1936.
64
Os concorrentes deveriam conseguir uma indumentária semelhante à
que se tornou famosa em todo o mundo graças à Carlitos. Demonstrando a
relevância do concurso, o próprio Charles Chaplin mandou confeccionar
milhares de bigodinhos similares ao seu para que fossem distribuídos entre os
participantes. A entrega do material era parte importante da promoção do
evento, no qual milhares de crianças deveriam se reunir na Praça da
Alfândega, local em que um ator contratado para a ocasião e caracterizado
como o vagabundo, seria o responsável por dar as últimas instruções aos
candidatos do concurso, uma espécie de modelo vivo para se instruírem
perfeitamente. Restando poucos dias para a tão esperada competição, não é
difícil imaginar a expectativa da gurizada, pois conforme o Diário de Notícias:
Nessa ocasião será feita uma intensa distribuição de
perfeitas reproduções do bigode de Chaplin para que os
interessados se munam de mais um requisito imprescindível
à participação no concurso. Vieram milhares desses
bigodes, suficientes, portanto, para serem distribuídos à
cidade. Foram enviados pelo próprio Chaplin, o idealizador
dessa original competição. O melhor Carlitos de Porto
Alegre, ou por outra, os cinco melhores, serão brindados
com belíssimos prêmios que a Casa Masson pôs à
disposição.
53
Um aspecto curioso que gostaríamos de destacar é a popularidade do
ator responsável por representar Carlitos. Na Praça da Alfândega, devidamente
caracterizado e com graciosas evoluções, atraiu uma legião de garotos, a
quem parece ter dirigido entusiasmadas palavras de carinho. Preocupado com
o perfeito andamento do concurso, o sósia de Chaplin organizou uma espécie
de ensaio geral, no qual as crianças teriam lições de como interpretar de forma
correta o personagem. Cumprindo uma agenda bastante concorrida, esta
notável figura proferiu palestras, conheceu restaurantes, distribuiu presentes
em escolas, visitou fábricas, presenciou eventos esportivos e o mais importante
de todos os compromissos: deveria estar presente na estréia de Tempos
Modernos. Conforme o Diário de Notícias:
53
É HOJE a gigantesca concentração da garotada da cidade, na Praça da Alfândega, para a distribuição
dos bigodes de Carlitos. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 13, 28/05/1936.
65
Em seguimento à série de visitas que vem fazendo,
simbolicamente, a personagem querida de Carlitos, será
visitada hoje a grande fábrica Renner, afim de viver uns
instantes de íntimo contato com a surpreendente atividade
que reina naquela perfeita organização, que bem de perto
sabe acompanhar o progresso dos Tempos Modernos.
Amanhã o dia será destinado a um absoluto repouso de
Carlitos. Depois de amanhã haveo grande julgamento do
Concurso Infantil Tempos Modernos. Após Carlitos fará um
ligeiro passeio pela cidade. Domingo Carlitos, figura
imprescindível a todos os grandes acontecimentos,
comparecerá ao formidável embate de cariocas e gaúchos.
Almoçará num dos melhores restaurantes do centro.
Finalmente segunda-feira, ele estará à disposição de todos
no Imperial, em “Os Tempos Modernos”.
54
O referido encontro futebolístico entre cariocas e gaúchos proporcionou
uma das mais significativas notas na publicidade que vinha se desenvolvendo
em torno de Tempos Modernos. Conforme nossa décima primeira
55
ilustração,
durante uma calorosa recepção aos jogadores adversários, a multidão que
aguardava no cais foi surpreendida quando, esperando enxergar na escada do
navio alguns atletas reconhecidos nacionalmente, apareceu na frente o famoso
ator disfarçado de Carlitos. O personagem viveu os seus minutos de glória,
onde aproximadamente quatro mil pessoas o ovacionavam enquanto se
despedia do Itapagé, embarcação que alguns anos mais tarde seria atacada
por submarinos alemães, episódio que em definitivo marcaria o ingresso do
Brasil na Segunda Guerra Mundial.
O sucesso alcançado pelo concurso alimentou ainda mais o clima de
expectativa gerado pela proximidade da estréia de Tempos Modernos. Como
atestam a décima segunda
56
e a décima terceira
57
ilustrações apresentadas,
coube ao cinema Imperial a responsabilidade de conduzir os preparativos da
primeira exibição do mais recente filme de Chaplin. No Rio de Janeiro, a
“premiére” da nova película atraiu a presença do mundo oficial da política
brasileira, de nomes representativos da arte nacional e de intelectuais de
54
CARLITOS dirigirá hoje o ensaio do Concurso Infantil Tempos Modernos. Diário de Notícias, Porto
Alegre, p. 15, 04/06/1936.
55
PORTO Alegre em vésperas de ver Chaplin. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 14, 03/06/1936.
56
CHARLES Chaplin, o gênio máximo do cinema em Os Tempos Modernos. A Federação, Porto Alegre,
p. 05, 01/06/1936.
57
MAIS 24 horas e a cidade assistirá Charlie Chaplin em Os Tempos Modernos. Diário de Notícias, Porto
Alegre, p. 13, 07/06/1936.
66
grande projeção, todos dividindo escassos espaços com o enorme público. A
capital dos gaúchos não escapou à repercussão deste acontecimento graças
ao perfeito sinal da Rádio Tupy, que transmitiu a grande noite de Carlitos na
tela do cinema Alhambra. Conforme matéria publicada no Correio do Povo:
Não roda em que não se comente o nome famoso de
Charlie Chaplin. O seu próximo aparecimento, segunda-feira
no imperial, em “Os Tempos Modernos”, vem se tornando o
assunto obrigatório do nosso público. A notícia da estréia
desse colossal filme no Rio, ainda mais veio aguçar a
impaciência do porto-alegrense. Todos sabem que “Os
Tempos Modernosé a realização mais surpreendente que
o cinema até hoje apresentou. Seu aparecimento em todos
os cinemas do mundo, nesta época precisamente, veio
glorificar definitivamente o nome de Charlie Chaplin, o gênio
máximo da tela.
58
A estréia de Tempos Modernos em Porto Alegre foi pensada em seus
mínimos detalhes. Na marquise do Imperial foram colocados holofotes de
grande capacidade, uma medida inédita com o objetivo de atrair o público para
a presença do novo filme. Com a mesma intenção, a fachada do cinema foi
animada pela presença viva do sósia de Charles Chaplin e pelo soar insistente
de clarins. Procurando evitar aglomerações demasiadas e os conseqüentes
tumultos, fruto da enorme proporção alcançada pelo evento e da manutenção
no preço dos ingressos, foram organizadas quatro sessões inaugurais,
comportando um público estimado em oito mil pessoas, que poderiam assistir
ao filme confortavelmente. O sucesso parecia inevitável frente à expectativa
gerada, pois, como atestava o Correio do Povo logo após a primeira exibição:
Todos queriam ver de perto a maravilha prometida pelo
gênio de Charlie Chaplin. E foi desta imensa expectativa que
nasceu o mais grandioso acontecimento cinematográfico
dos anais porto-alegrenses, com a “premiére” de Tempos
Modernos”, ontem no Imperial. Incalculável a molhe humana
que se premiu nos salões do elegante cinema. Milhares e
milhares de pessoas, num desfile contínuo e ininterrupto,
afluíram em massa, entontecidas de curiosidade pelo mais
notável trabalho da tela.
59
58
OS Tempos Modernos: O Imperial o apresentará segunda-feira próxima. Correio do Povo, Porto
Alegre, p. 12, 03/06/1936.
59
Tempos Modernos: O Imperial teve, ontem, 4 sessões esgotadas inteiramente. Correio do Povo, Porto
Alegre, p. 10, 09/06/1936.
67
A exibição de Tempos Modernos em Porto Alegre foi um acontecimento
de excepcional relevância na vida social desta capital. O vasto salão do melhor
cinema da cidade foi tomado por uma enorme multidão, ansiosa por conhecer
de perto a mais famosa produção do grande gênio da cinematografia.
Reconhecido
60
como um legítimo “ímã das multidões”, o novo filme de Carlitos
proporcionou uma série de exibições coroadas de êxito. Verdadeiras enchentes
humanas fizeram transbordar o Imperial, demonstrando a relevância e o
conseqüente interesse da população em participar deste grande evento.
Conforme a décima oitava
61
e a décima nona
62
ilustrações, após o término das
primeiras exibições, uma segunda temporada estava prevista para o cinema
Apollo, pois, como registrava o Correio do Povo:
Com a mais viva ansiedade vinha sendo esperada a
apresentação de Tempos Modernospela grande legião de
freqüentadores do cinema da Independência. E não é para
menos, pois o maior filme cômico que produziu o cinema
absorve por completo a atenção universal, convergindo
todos os olhos para as telas que exibem essa portentosa
criação em que Carlitos satirizou inesquecivelmente os
nossos Tempos Modernos...
63
Consagrando os passos de uma trajetória vitoriosa iniciada no Imperial,
as exibições de Tempos Modernos no Apollo foram igualmente bem recebidas.
O cinema da Independência registrou um dos maiores sucessos comerciais de
sua história, contemplando sessões diárias completamente lotadas. Uma das
maiores casas de espetáculos desta cidade, o espaço oferecido parecia
pequeno frente aos milhares de fãs que, motivados pelos ingressos com preço
bastante acessível e pelos festejos juninos que tornavam o evento ainda mais
atraente, buscavam acomodação para assistir tranqüilamente à criação de
Charles Chaplin. Porém, a consagração do filme de Carlitos junto ao público
não impediu a manifestação de seus mais ferrenhos críticos, entre eles um
renomado intelectual: Augusto Meyer.
60
Tempos Modernos, o imã das multidões... Correio do Povo, Porto Alegre, p. 09, 11/06/1936.
61
ESTÁ jorrando a fonte de gargalhadas: Charlie Chaplin em Os Tempos Modernos. Diário de Notícias,
Porto Alegre, p. 13, 12/06/1936.
62
A GARGALHADA suprema de 1936! Tempos Modernos com Charlie Chaplin. Diário de Notícias,
Porto Alegre, p. 11, 26/06/1936.
63
O APOLLO apresenta, hoje, Tempos Modernos. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 11, 23/06/1936.
68
Como outros em sua geração, Augusto Meyer foi um crítico erudito que
fez carreira fora da Universidade, sendo contemporâneo de importantes nomes
da cultura gaúcha, entre eles Mário Quintana e Érico Veríssimo. Em 1937
passou a viver definitivamente no Rio de Janeiro, onde a convite de Getúlio
Vargas criou e dirigiu o Instituto Nacional do Livro. Notável anticomunista nos
tempos de Guerra Fria, em 1936 deixava transparecer alguns traços que
ilustram com precisão sua rígida oposição a Chaplin. Publicado no conservador
e então decadente jornal A Federação, no ensaio crítico intitulado “Carlitos”,
entre outros adjetivos, Augusto Meyer definiu Chaplin como alguém medroso,
hesitante, inexpressivo e desumano. Nas palavras do próprio ensaísta:
Ele é a caricatura do herói arrependido. Derrotado antes de
entrar em combate, procura salvar ao menos a aparência da
sua dignidade, como um dandy rôto. Leva o tombo; mas
limpa carinhosamente a cartola com a manga. E quando
vence, desconfia logo da esmola grande, coça a grenha,
sunga as calças, morde os fiapos do bigode... Aliás, Carlitos
de corpo inteiro é uma paródia viva da vitória, uma
caricatura cruel de todo o esforço humano, uma ducha fria
em todos os nossos bavarismos. Não sei se ele é o
humorista sentimental que os críticos descobriram nele.
Acho que é mais do que isso um homem que se procura,
um perdido de si mesmo, uma personalidade volatilizada em
micagens inúteis, que desejaria ser e apenas consegue
parecer...
64
Ainda que tenha reduzido Carlitos ao patamar de simples comediante, a
apurada sensibilidade de Augusto Meyer o fez perceber que já existia em Porto
Alegre algo a ser chamado de crítica cinematográfica. O ensaio divulgado em
muitos aspectos nos parece uma resposta ao artigo que o crítico Jacob Koutzii
publicou uma semana antes no jornal Diário de Notícias intitulado Tempos
Modernos é o reflexo impressionante da etapa social que vive o nosso século”,
em que o autor salientava a perfeita relação entre o conteúdo humano e os
aspectos sociais harmonicamente distribuídos nesta película. Ainda que
estivesse
65
desgostoso com a manutenção do cinema mudo em detrimento dos
avanços tecnológicos proporcionados pelo som, em nada havia diminuído sua
admiração pelo cineasta ao defender em seu texto que:
64
MEYER, Augusto. Carlitos. A Federação, Porto Alegre, 18/06/1936. Do Cinema e do Teatro, p. 03.
65
KOUTZII, Jacob. A Tela Branca. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1997. p. 78-79.
69
Muito embora tenha declarado ser-lhe mais útil e
interessante a opinião pública do que a apreciação dos
críticos sobre os seus filmes, Charles Chaplin não diminui no
conceito que fazemos da sua obra. Carlitos tem razão.
Sobrada razão. É o povo, é a grande massa popular, que
estabelece com o seu inato juízo crítico o grau de valor das
produções artísticas, fixando o seu conteúdo humano em
ritmo com o interesse e sentimento coletivos. A massa
possui essa extraordinária intuição, facultada pela sua
condição de classe, que lhe uma quase clarividência do
bem e do mal. E esse instinto de classe, se assim se pode
denominar, dirige a sua melhor atenção para os quadros
que melhor refletem o seu “modus-vivendi”. E Carlitos,
ninguém melhor do que Carlitos, consegue com os seus
trabalhos cinematográficos ir ao encontro desses anelos
populares.
66
Salientamos que nesta pesquisa procuramos compreender em que
medida o anticomunismo esteve presente na repercussão da filmografia política
de Carlitos em Porto Alegre. Neste sentido, o interessante debate estabelecido
entre Augusto Meyer e Jacob Koutzii permite que seja explorada uma questão
central para esta análise, a concreta existência de um ambiente hostil às teses
supostamente comunistas defendidas por Chaplin. Acreditamos que este hiato
ideológico encontrava suas mais sólidas bases no fortalecimento do ideário
patrocinado por Getúlio Vargas. Nossa hipótese pode ser comprovada graças à
existência de um fragmento da imprensa local que retrata com riqueza de
detalhes alguns aspectos do imaginário de então.
Esta peça de valor inestimável à nossa pesquisa é, conforme a décima
quarta
67
ilustração desta dissertação, uma propaganda da Loteria do Estado,
publicada em 23 de junho de 1936 na capa do Diário de Notícias. Ocupando
um espaço de grande visibilidade graças à diagramação do jornal, exibia uma
imagem de Tempos Modernos na qual Chaplin estava caracterizado como o
vagabundo, demonstrando sua situação de miséria absoluta ao mesmo tempo
em que parecia consolar sua companheira. Acompanhada dos dizeres
“Chocante! Evite esta situação adquirindo um bilhete de mil contos para o dia
66
MORAES, Plínio. Tempos Modernos é o reflexo impressionante da etapa social que vive o nosso
século. Diário de Notícias, Porto Alegre, 11/06/1936. Cine-Diário, p. 17.
67
CHOCANTE! Evite esta situação adquirindo um bilhete de mil contos para o dia 25 na loteria do
Estado. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 01, 23/06/1936.
70
25 na Loteria do Estado”, a propaganda reafirmava o ideal de industrialização e
valorização do trabalho defendido por Vargas na estruturação do Estado Novo.
O ideário de Getúlio Vargas é retomado na maior e mais contundente
manifestação contrária a Charles Chaplin, o silêncio da Revista do Globo frente
ao grande sucesso de Tempos Modernos em Porto Alegre. As quatro primeiras
décadas do século passado marcam o período de transição para a formação
do jornalismo informativo moderno, consolidado a partir de 1930. Notícias e
publicidade são dois aspectos básicos dessa fase. Num primeiro momento, o
reduzido número de anúncios e de leitores foram as causas da desarticulação
do jornalismo literário, porém, nos anos 1930 são justamente os consumidores
e publicidade, aliados à modernização técnica e empresarial, que garantiriam a
consolidação da fase informativa moderna no Estado.
É neste contexto de modificações do regime jornalístico que surge a
Revista do Globo em 1929, um periódico perfeitamente inserido dentro da
lógica capitalista, voltado para as leis do mercado e para a farta utilização de
publicidade na obtenção dos seus fins. O periódico surgia com objetivos
audaciosos, visando à isenção política e à abordagem de diversos assuntos,
como a sociedade, a economia e a literatura. Em seu nascimento, contou com
a força da Livraria do Globo, empresa consolidada no Estado desde 1883, e
com o prestígio de importantes nomes da intelectualidade e da vida política do
Rio Grande do Sul, entre eles Oswaldo Aranha e Getúlio Vargas. Analisando o
papel da elite política gaúcha para o nascimento e consolidação do periódico, o
historiador Mateus Dalmáz afirma:
Consta que foi dentro da própria Livraria do Globo, no ano
de 1928, em uma das tantas reuniões de sábado entre os
homens de letras e da política, que Getúlio Vargas, então
presidente do Estado do Rio Grande do Sul, acompanhado
pelo seu secretário do Interior e Justiça, Oswaldo Aranha,
teria sugerido a José Bertaso a publicação de uma revista
moderna, digna de representar a capital do Estado.
68
68
DALMÁZ, Mateus. A Imagem do Terceiro Reich na Revista do Globo (1933-1945). Porto Alegre:
Edipucrs, 2002. p. 33.
71
No ano em que Tempos Modernos estreou em Porto Alegre, a Revista
do Globo apresentava exatamente este perfil, uma conduta editorial que visava
à formação de um futuro público leitor para as suas publicações. A tarefa de
construção desse consumidor se realizava a partir da publicação de vários
textos críticos. Muitas fotografias e imagens acompanhavam os artigos sobre
variados temas. Foi exatamente em uma destas imagens que, conforme a
décima quinta
69
ilustração deste trabalho, encontramos a única referência ao
filme nas páginas da revista, uma caricatura intitulada “Charlie Chaplin em seu
novo filme”, publicada em 23 de maio de 1936 e assinada pela artista Amanda
Lucia. O que teria motivado a Revista do Globo a ignorar o sucesso alcançado
por Tempos Modernos em Porto Alegre?
Retomando nossa hipótese, sugerimos que a causa maior deste silêncio
reside no sentimento anticomunista, fortemente enraizado na população desde
as primeiras lutas operárias, mas principalmente após a frustrada tentativa de
levante por parte dos comunistas em 1935, em que destacamos a forte reação
da elite política nacional, personalizada na figura de Getúlio Vargas. O repúdio
ao comunismo é latente nas páginas da revista, um bom exemplo destacamos
na décima sexta
70
ilustração, na qual, em um cartaz de propaganda intitulado
“valente vassourada”, um representante do povo sueco espantava para longe
as influências subversivas, demonstrando aquela que pode ser entendida como
uma das causas do sucesso deste país plenamente desenvolvido.
Esta é uma imagem bastante significativa não do pensamento da
época como também do posicionamento da Revista do Globo. Em um artigo de
título muito sugestivo, denominado
71
“Inventos da Miséria”, o leitor é conduzido
a acreditar que a Revolução Russa, liderada por Lênin, teria levado os “bons
homens” a uma situação de miséria absoluta, sendo obrigados a recorrer aos
intentos mais inventivos para sobreviver. Neste caso, um antigo proprietário de
cavalos fora obrigado a criar baratas em uma espécie de circo para obter o seu
sustento. A Rússia revolucionária era identificada como um verdadeiro paraíso,
69
LUCIA, Amanda. Charlie Chaplin em seu novo filme. Revista do Globo, Porto Alegre, . 183, p. 29,
maio 1936.
70
VALENTE vassourada. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 196, p. 25, dezembro 1936. Pelo Mundo.
71
INVENTOS da miséria. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 190, p. 49, setembro 1936. Notinhas.
72
palavra estrategicamente destacada em itálico, deixando clara a ironia dos que
pretendiam acabar com o mito das conquistas soviéticas.
Nesta mesma linha de argumentos, encontramos um outro bom exemplo
no artigo de León Daudet denominado
72
“Da Revolução Francesa à Revolução
Russa”. Em atitude profundamente desrespeitosa, Lênin era descrito como um
“homenzinho” receptor e emissor de ondas de violência inspiradas por Marx,
representante maior de uma revolução brutal que desprezava as massas ao
acreditar nas minorias. O leitor era novamente conduzido a pensar que, assim
como em qualquer revolução, o que explica o paralelo com o caso francês, os
direitos dos cidadãos eram boicotados, mas especialmente no caso russo, uma
ideologia perversa e subversiva estaria corrompendo os valores democráticos,
desrespeitando a capacidade de decisão da maioria.
As versões divulgadas sobre o que seria a realidade na União Soviética
foram utilizadas como questões fundamentais, sendo travada uma verdadeira
batalha em torno das representações relacionadas à pátria do socialismo. No
quadro desta guerra de propaganda, os anticomunistas se empenharam em
atacar os países socialistas, apontando neles a existência de toda a sorte de
misérias. O objetivo era inutilizar o argumento defendido pelos comunistas, os
quais afirmavam que a utopia igualitária não era viável como estava em
prática nas terras soviéticas. Os anticomunistas procuravam destruir o mito do
paraíso socialista utilizando metáforas que apelavam para o império do mal ou
inferno vermelho. Conforme Rodrigo Patto Sá Motta:
A importância da URSS para o imaginário anticomunista era
tal, que grande parte das campanhas de propaganda
devotadas a desacreditar o comunismo concentrava-se em
atacar aquele país. Nos anos de 1930, no auge da ofensiva
do Estado varguista contra as idéias revolucionárias, as
agências oficiais dedicaram-se a distribuir à imprensa
matérias jornalísticas de caráter anticomunista. Boa parte do
material era sobre a realidade soviética, tal como a viam e
representavam seus inimigos.
73
72
DAUDET, León. Da revolução francesa à revolução russa. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 192, p.
22, outubro 1936.
73
MOTTA, op. cit., p. 71.
73
Retomando a única referência ao filme Tempos Modernos encontrada na
Revista do Globo, na ilustração em questão estão presentes alguns dos ícones
desta ideologia subversiva a ser combatida. O “vagabundo”, tipo execrado pelo
Estado Novo por não corresponder aos propósitos de um país que anseia à
modernização resultante do trabalho, a engrenagem associada ao operário,
símbolo maior da arte comunista conforme a décima sétima
74
ilustração, onde
apresentamos a arte de Helmuth Eckhard publicada na Revista Rumo, e por
fim, o mais grave de todos os pecados cometidos por Chaplin: o homem que
tremula a bandeira vermelha, marca registrada do comunismo internacional e
certamente “muito subversivo” para os padrões brasileiros.
Nos próximos capítulos, com base na repercussão de O Grande Ditador
e Monsieur Verdoux na imprensa local, apresentaremos novos elementos desta
dissertação procurando demonstrar o alcance do anticomunismo na crítica
cinematográfica de Porto Alegre. Com o Estado Novo plenamente consolidado,
a “simpatia” de Getúlio Vargas pelas ditaduras européias fez com que alguns
segmentos da sociedade ficassem contrários às suas posturas repressivas.
Neste momento, a Revista do Globo passaria a utilizar intensamente a imagem
de Charles Chaplin para escapar da censura ao emitir suas opiniões. Este foi
também um período de transição para Paulo Fontoura Gastal, que deixaria em
definitivo a cidade de Pelotas para consolidar sua carreira na capital.
No final da Segunda Guerra Mundial, a vitória das forças aliadas não foi
suficiente para sustentar o frágil clima de prosperidade democrática por muitos
esperado. No despertar da Guerra Fria, o país mergulharia definitivamente na
esteira do anticomunismo patrocinado pelos Estados Unidos, rompendo suas
relações diplomáticas com a União Soviética e dificultando a entrada de filmes
de conteúdo “subversivo” no país. Nesta perspectiva, durante dois anos esteve
proibida a exibição de Monsieur Verdoux nos cinemas de Porto Alegre, fato que
o Correio do Povo não só acompanhou como em determinado momento apoiou
através de suas páginas, ignorando o sucesso e prestígio de Charles Chaplin
junto ao público para atender aos seus leitores mais conservadores.
74
ECKHARD, Helmuth. O operário. Revista Rumo, Porto Alegre, nº. 04, p. 35, junho 1936.
74
Ilustração 11 “Carlitos e a Rapaziada Carioca”.
75
Ilustração 12 “O Gênio Máximo do Cinema em Tempos Modernos.
76
Ilustração 13 “A Maior Gargalhada do Ano”.
77
Ilustração 14 “Loteria do Estado”.
78
Ilustração 15 “Charlie Chaplin em Seu Novo Filme”.
79
Ilustração 16 “Valente Vassourada”.
80
Ilustração 17 “O Operário”.
81
Ilustração 18 “Está Jorrando a Fonte de Gargalhadas”.
82
Ilustração 19 “A Gargalhada Suprema de 1936”.
83
CAPÍTULO III
O GRANDE DITADOR: DOIS HOMENS E UM BIGODE
No terceiro capítulo desta dissertação, apresentaremos novos vestígios do
anticomunismo na crítica cinematográfica de Porto Alegre. No início dos anos
1940, Charles Chaplin incorporava definitivamente o elemento político em sua
filmografia, personificando em O Grande Ditador uma tira à mais temível
personalidade de seu tempo: Adolf Hitler. Ignorando as vitórias nazistas na
Segunda Guerra Mundial, foi criticado pelos setores isolacionistas do governo e
por líderes de entidades fascistas nos Estados Unidos. No Brasil, a película
esteve censurada durante dois longos anos, sendo exibida apenas em 1942 na
cidade de Porto Alegre. A Revista do Globo, que em 1936 desprezava o êxito
alcançado por Tempos Modernos, aproveitou as mensagens “subversivas” do
novo filme para manifestar o seu repúdio à postura ditatorial de Getúlio Vargas.
3.1 O Brasil e seu Ditador:
O regime de 1937 tratou de formar uma ampla opinião pública a seu
favor, censurando os meios de comunicação e elaborando sua própria versão
da fase histórica que o país vivia. A preocupação do governo Vargas nesse
sentido vinha desde seus primeiros tempos, quando em 1931 surgiu o
Departamento Oficial de Publicidade. Em 1934, foi criado no Ministério da
Justiça o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, que funcionou até
dezembro de 1939. Nessa data, o Estado Novo constituiu o Departamento de
Imprensa e Propaganda, o DIP. Diretamente subordinado ao Presidente da
República, exerceu funções bastante extensas, atuando de forma definitiva na
campanha anticomunista do Estado. Para Rodrigo Patto Sá Motta:
O aparato estatal tratou de organizar-se, a fim de estar em
condições de cumprir a tarefa de “esclarecer” a população
sobre os males do comunismo. Para este propósito foi
significativa a criação do Departamento Nacional de
Propaganda, que se tornou peça-chave na máquina de
84
comunicação do governo federal. O DNP, reestruturado e
rebatizado de DIP em 1939, além de produzir e publicar
peças de propaganda, distribuía seu material aos veículos
de imprensa do país. Além disso, investiu esforços num
veículo de comunicação ainda novo na época, e com um
potencial extraordinário, o rádio. Notadamente a partir de
1937, no contexto de implantação do Estado Novo, as
transmissões radiofônicas se tornariam importantes canais
para divulgação de mensagens anticomunistas.
75
Durante o Estado Novo a propaganda anticomunista não foi tão vigorosa
como no período imediatamente posterior ao levante de 1935, ou como na fase
de preparação do golpe. Mesmo assim, o anticomunismo foi um elemento
fundamental para o assentamento ideológico da ditadura varguista. A
afirmação do novo regime coincidiu com a consolidação do imaginário
anticomunista na estrutura social brasileira, notadamente entre as classes
médias e superiores. As representações do comunismo como inimigo da nação
e a identificação das forças revolucionárias com as forças do mal foram
enraizadas na sociedade, a ponto de poderem ser recuperadas posteriormente,
quando novas conjunturas críticas apareceriam no Horizonte político.
Considerando a política externa, os anos 1930 acentuaram o declínio da
hegemonia inglesa e a emergência dos Estados Unidos, sobretudo, a partir do
momento em que as medidas do presidente Roosevelt, de combate à crise,
começaram a surtir efeito. Ao mesmo tempo, surgia outro competidor no
cenário internacional, a Alemanha nazista, que iniciava uma política de
influência ideológica e de competição com seus rivais na América Latina. Neste
contexto, o governo brasileiro adotou uma orientação pragmática, tratando de
negociar com quem lhe oferecesse melhores condições e procurando tirar
vantagem da rivalidade entre as grandes potências. Ao definir o conceito de
eqüidistância pragmática, Gerson Moura afirma:
O processo político no Estado Novo reflete esse “empate”
da luta política, que confere a Vargas um extraordinário
poder no processo decisório. Ele se torna o árbitro das
disputas que emanam das instâncias secundárias e mesmo
das que ocorrem nas instâncias centrais de decisão. Seu
método para tratar essas disputas consistia em aguardar
75
MOTTA, op. cit., p. 211.
85
que todos os ângulos das posições divergentes estivessem
perfeitamente claros e em evitar decisões precipitadas,
avaliando cuidadosamente as possibilidades inerentes a
cada situação. O importante era manter, na medida do
possível, a eqüidistância pragmática.
76
Os Estados Unidos adotaram uma política combinada de pressão e
cautela diante do avanço nazista. Roosevelt preferiu evitar medidas extremas
que poderiam levar o Brasil ao alinhamento com Hitler ou a seguir um caminho
nacionalista radical. Mesmo após a implantação do Estado Novo, saudado com
entusiasmo nos países fascistas, a linha pragmática não se modificou. Apesar
da pressão exercida por alguns setores das forças armadas, favoráveis a um
relacionamento estreito com os alemães, ao nomear Osvaldo Aranha para o
Ministério das Relações Exteriores, Getúlio Vargas não promoveu mudanças
significativas em sua política externa. Sobre o real significado desta nomeação,
Ricardo Seitenfus entende que:
Além da importância intrínseca do acontecimento, é preciso
observar o modo como o novo ministro é investido de suas
funções. Sua liberdade será total, que se encontra em
posição de força. Ele a utilizará então para aplicar uma
política externa caracterizada, de um lado, por uma aversão
profunda em relação à Itália e, principalmente, em relação à
Alemanha e, de outro lado, por uma substancial
aproximação com os Estados Unidos. O duplo sucesso,
tanto o de Vargas, que a um tempo elimina uma temível
oposição e desarma as apreensões norte-americanas,
quanto o de Aranha, que entra em posição de força no
governo, condicionará toda a política externa brasileira
durante a Segunda Guerra Mundial.
77
A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial em 1941
forçou um definitivo posicionamento de Getúlio Vargas. Ainda que o país tenha
rompido suas relações diplomáticas com o eixo em 1942, o governo americano
demorava a entregar encomendas de equipamento militar, pois considerava
que boa parte da oficialidade nacional era simpatizante das nações inimigas.
As indefinições foram superadas quando cinco navios mercantes brasileiros
foram atacados por submarinos alemães, gerando grande pressão através de
76
MOURA, Gerson. Autonomia na Dependência: A Política Externa Brasileira de 1935 a 1942. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 108.
77
SEITENFUS, Ricardo. A Entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: Edipucrs,
2000. p. 103.
86
manifestações por todo o país. O alinhamento do Brasil na frente antifascista
se completaria em 1944, quando do envio de uma força expedicionária para
lutar na Europa, a FEB. O retorno dos “pracinhas” em 1945 provocou grande
entusiasmo popular, acelerando as pressões pela democratização.
3.2 Um Duelo de Titãs:
Em O Grande Ditador, Chaplin mais do que nunca esteve comprometido
com a realidade mundial e seu momento, em um grau inimaginável para
aqueles que cinco anos antes estiveram alarmados pelas possíveis implicações
sociais de Tempos Modernos. Era uma sátira feroz à Hitler, quando este havia
chegado ao auge de seu poder, uma decisão muito difícil para o ator. Em 1933,
quando Hitler ascende ao governo na Alemanha, Chaplin compartilhava com
outras pessoas uma mescla de medo e ódio ante um ditador que de imediato
iniciou a repressão interna, instalou o ódio aos judeus, lançou metas arbitrárias
de perfil expansionista e se pronunciou contrário a toda forma de democracia.
Em seis anos Hitler consolidou o nazismo em território alemão e o antinazismo
em outras partes do mundo. Para Rodrigo de Azevedo Weimer:
Embora cifradas, são evidentes as conexões do universo do
filme com a realidade satirizada, permitindo apreender-se a
percepção de Chaplin, bem como elencar-se os aspectos
mais relevantes da obra enquanto fonte histórica. Não se
pode esquecer que a obra, datada de 1940, é anterior a uma
consciência mais precisa da dimensão do Holocausto. A
visão do diretor estava calcada na pequena quantidade de
informação acessível antes da guerra. Chaplin tem uma
perspectiva bastante crítica, mas o filme parece inocente
diante do horror que foi o Holocausto.
78
O produtor Alexander Korda deu a Chaplin a primeira idéia de fazer uma
comédia sobre Hitler em 1937. Neste momento, o ator buscava um novo tema
e uma saída à sua posição em relação ao cinema sonoro, não encontrando
uma adequada adaptação para o seu famoso personagem. A idéia de parodiar
Hitler o permitiria falar, mas ao mesmo tempo poderia reduzir sua atuação a de
78
WEIMER, Rodrigo de Azevedo. O Grande Ditador. In: CASTRO, Nilo André Piana de. Cinema e
Segunda Guerra. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999. p. 38.
87
um mero vilão cômico. Provavelmente idealizou neste período a substituição
entre dois personagens parecidos entre si, em que um seria o ditador e o outro
um pobre judeu, dado que reforçaria a paródia. Neste caso, operavam ainda
outras coincidências. Chaplin e Hitler nasceram com apenas quatro dias de
diferença, tinham a mesma idade e eram fisicamente parecidos, além de
adotarem um bigode similar, ainda que Carlitos o tenha usado primeiramente.
O primeiro esboço de um argumento para o filme foi publicado em 1938,
provavelmente para sondar a opinião pública sobre um plano tão corajoso. Um
prisioneiro judeu seria libertado de um campo de concentração nazista por
conspiradores do partido. Mais tarde, seqüestrariam Hitler e colocariam em seu
lugar o judeu em liberdade, cujo parentesco físico seria impressionante. O
substituto ficaria muito infeliz em um mundo de cerimônias, de intrigas e de
projetos incompreensíveis para ele. Por fim, uma mulher que desejaria matar o
ditador ficaria com pena de sua condição, ajudando o pobre homem a fugir. A
simples divulgação desta idéia gerou alguns inconvenientes, pois um filme
como este não poderia ser exibido em países como Itália, Japão e Espanha.
Era provável que a negativa fosse estendida para outros países que não
desejassem o risco de uma ruptura em suas relações com a Alemanha, entre
eles o próprio Brasil. Dentro dos Estados Unidos, a idéia poderia entusiasmar a
muitas pessoas de convicções antinazistas, porém, seria combatida por setores
opostos e certamente por toda uma parcela isolacionista, que sustentava a
necessidade de que o país se mantivesse neutro e não fosse arrastado para
uma guerra em solo europeu. As objeções partiram não da imprensa, como
do seio da United Artists. Na perspectiva da empresa, uma filme contra Hitler
poderia decretar um boicote absoluto contra qualquer uma de suas produções.
A incerteza que se abateu sobre Chaplin neste período certamente superou à
de outros momentos críticos em sua carreira.
Ainda que tenha retomado e cancelado o projeto inúmeras vezes ao
longo dos meses, Charles Chaplin decidiu por dar prosseguimento à iniciativa.
No decorrer deste processo, acabou modificando o argumento original, ainda
que mantivesse a idéia básica. Em sua versão definitiva, o ditador se chamaria
88
Hinkel e o preso acabaria convertido em um barbeiro judeu. A comicidade do
filme estaria concentrada em uma clara alusão à Mussolini, através de um
discutido acordo com o tirano Napoleoni. O barbeiro seria, além de habitante
do gueto, uma vítima da guerra finalizada vinte anos antes e pela qual sofreria
de amnésia, moléstia que o impediria de saber que em seu país reinava um
ditador de características físicas muitíssimo semelhantes à sua.
Com este argumento, Charles Chaplin poderia utilizar as possibilidades
do cinema sonoro na reprodução, em forma de paródia, do alemão enfático que
caracterizava Hitler. Ao mesmo tempo, o barbeiro judeu seria uma variante do
seu clássico vagabundo e não necessitaria falar durante boa parte da película.
As filmagens foram iniciadas em 1939, em pleno despertar da Segunda Guerra
Mundial. Com o início do conflito, aumentariam as pressões sobre o cineasta.
Alguns grupos o estimulavam a terminar o quanto antes o filme, como um
instrumento de convicção antinazista. Outros segmentos o pressionavam para
que interrompesse o projeto, protegendo a América de qualquer ligação com a
guerra. A decisão de Carlitos foi favorável à película, anunciando a premiére de
O Grande Ditador para outubro de 1940. Conforme Homero Thevenet:
Era feroz presentear a Mussolini como un bufón de opereta,
exagerado por Jack Oakie en su interpretación. Era aun más
cruel la escena fantástica en que Hynkel baila con un globo
terráqueo, en una inmensa metáfora del domínio mundial
que Hitler pretendia ejercer; la inspiración de esa secuencia
fue comparada con la de los cuadros de Daumier y de Goya.
Y era también muy elocuente que en lugar de la cruz
svástica, característica del nazismo en todos sus emblemas,
Chaplin haya colocado cruces juntas. El signo era ahora
Doublé Cross y eso tenía un especial sentido, porque esa
expresión inglesa significa traición.
79
O discurso proferido pelo barbeiro no papel de Hynkel ao final do filme é
um sintoma de sua posição idealista assumida perante o mundo. É importante
ressaltar que esse é um pronunciamento do diretor e não do personagem, que
durante todo o relato sofria com grandes dificuldades para falar. Anos mais
tarde, Charles Chaplin registrou em suas memórias que a maioria dos que o
criticavam haviam apresentado objeções ao discurso por o ser adequado ao
79
THEVENET, op. cit., p. 149.
89
personagem, ainda que muitos o tenham parabenizado por esta novidade em
termos cinematográficos. Por mais incrível que possa parecer, a aparição em
solo espanhol aconteceria após trinta anos, ou seja, em 1976 muitos dos
que o assistiram provavelmente não tenham percebido sua extrema relevância.
3.3 Uma Aparente Contradição:
No final dos anos 1930, a Revista do Globo passou por um processo de
aprimoramento em suas coberturas cinematográficas, contando desde então
com a presença e indiscutível influência de Jacob Koutzii. Este também foi um
período de grande turbulência na vida pessoal de Charles Chaplin; em
inúmeras oportunidades seu nome foi alvo de escândalos. Conforme a nossa
vigésima
80
ilustração, demonstrando preocupação com a carreira de Carlitos, o
crítico dedicou uma considerável porção do seu espaço com a publicação de
um grande retrato do ator, questionando os reais motivos por sua aparente
perda de prestígio. Algum tempo depois, Koutzii procurava desmentir os
Rumores sobre o divórcio com a atriz Paulette Goddard, defendendo
81
que
entre o casal sobravam “os olhares mais enternecidos deste mundo”.
O pai da crítica cinematográfica do Rio Grande do Sul aproveitava seu
espaço na Revista do Globo para descrever o clima de descontentamento que
entidades representativas dos principais atores dos Estados Unidos, contrárias
às políticas implementadas por Hitler, demonstravam meses antes do início da
Segunda Guerra Mundial, afirmando
82
que a cineasta Lení Riefenstahl sofrera
“o desgosto de sentir a indiferença, quase o desprezo, das maiores e mais
populares figuras do cinema americano”. Ao identificar a mulher responsável
pelos mais notáveis registros cinematográficos da ascensão nazista como uma
“amiguinha do Fuehrer”, Koutzii ilustrava com precisão o seu posicionamento.
Atento aos primeiros comentários sobre O Grande Ditador, publicou:
80
MORAES, Plínio. Chaplin parece que perdeu alguma coisa, prestígio? Revista do Globo, Porto Alegre,
nº. 234, p. 23, agosto 1938.
81
MORAES, Plínio. Paulette ainda é de Carlitos. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 253, p. 72, junho
1939.
82
MORAES, Plínio. Hollywood contra Hitler. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 250, p. 69, abril 1939.
90
O filme de Charles Chaplin continua na ordem do dia. O
assunto tem provocado as maiores controvérsias, e o
próprio Carlitos não tem deixado passar uma ocasião sem
atirar um graveto na fogueira. O embaixador alemão
protesta, protesta o sr. Goebels, protesta o sr. Hitler, e
protesta o comediante também contra tanto protesto. A
intolerância de certos grupos políticos, diz Carlitos, torna
impossível o desenvolvimento das artes. Antes de aparecer
o sr. Hitler, eu usava bigodes, e não acredito que suas
Tropas de Assalto me obrigarão a raspá-lo... Ah! Isto é que
não... Os protestos parece que nada adiantarão, diante da
formidável campanha anti-nazista que Hollywood vem
empreendendo com o apoio do governo americano. E dizem
que o cinema é pouca coisa nesse mundo...
83
Os cineastas hollywoodianos pareciam empenhados em uma campanha
contrária à expansão nazista. Em 1939, Koutzii apontava
84
Confissões de um
Espião Nazista como um alvo privilegiado de discussões. O governo argentino,
depois de proibir sua exibição, reconsiderava a ordem por determinação do
Congresso, cujos membros teriam assistido à película em sessão especial. No
Chile, o embaixador alemão ameaçou o país com represálias econômicas caso
o filme fosse exibido. O Poder Executivo não teve dúvidas em declarar ao
representante diplomático os princípios da Constituição chilena, onde a
democracia o impediria de lavrar o decreto proibitivo. Em uma de suas últimas
colaborações com a Revista do Globo, o crítico flertava com os admiradores de
Carlitos ao apontar que:
Carlito tem pronto não somente o argumento do seu novo
filme “O Ditador” como também escolheu os seus
principais colaboradores. Sabe-se, por exemplo, que
Paulette Godard, a sua esposa, ou ex-esposa, terá o papel
feminino principal. O seu famoso estúdio já foi inteiramente
adotado a essa sua nova criação que, ao que parece, vai
superar Tempos Modernos”. Um repórter que visitou
recentemente o estúdio de Carlito, adiantou que a filmagem
até já foi começada, pois encontrou um local que
representa uma rua superatravancada de uma cidade
qualquer da Europa, onde se passa grande parte do filme.
Carlito trabalha em silêncio!... porque seus filmes são uma
bomba!
85
83
MORAES, Plínio. O Ditador. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 255, p. 70, julho 1939.
84
MORAES, Plínio. Hollywood X Nazismo. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 258, p. 70, agosto 1939.
85
MORAES, Plínio. Para os admiradores de Carlito. Revista do Globo, Porto Alegre, . 260, p. 64,
setembro 1939.
91
Um ano mais tarde, a Revista do Globo passaria a contar com a
colaboração de um correspondente internacional, Ernest Gwynn. Atualizando
os leitores com as últimas notícias de Hollywood, em uma de suas notas
Gwynn adiantava toda sua temeridade quanto à exibição do filme no Brasil, ao
afirmar
86
que ainda não estava determinada a data em que “essa prodigiosa
película de Carlitos será exibida no Brasil”, e isso “se o for...”. O último trecho
desta citação é fundamental para os Rumos desta pesquisa, na qual
novamente seria Getúlio Vargas o protagonista da manifestação anticomunista
sofrida por Charles Chaplin. Ainda que a lista de inimigos fosse outra àquele
momento, o anticomunismo nunca esteve ausente das prioridades do governo,
acabando por acometer o filme através da censura oficial. Para Inimá Simões:
Proibir a exibição de um filme de Chaplin é um escândalo
sob quaisquer circunstâncias e em qualquer período
histórico. Nesse caso, o filme chegava sob a aura de obra-
prima do antinazismo, hors concours na campanha de
guerra. O problema é que a crítica chapliniana aos regimes
ditatoriais, enfocando especificamente o caso alemão e a
figura de Hitler, acabou por atingir a nossa versão tupiniquim
de regime de força. O major Coelho dos Reis, então diretor
do DIP, fez várias objeções a O Grande Ditador,
considerando algumas cenas definitivamente comunistas e
desmoralizadoras das Forças Armadas.
87
A Revista do Globo dedicou grande cobertura ao novo filme de Chaplin,
pois como atesta nossa vigésima primeira
88
ilustração, em meio ao processo de
censura que proibiria a exibição de O Grande Ditador no Brasil, fora publicada
uma belíssima capa dedicada à obra. Este é um fato que aparentemente entra
em contradição com os argumentos expostos no capítulo anterior, mas não.
Nossa hipótese é de que o periódico não teria abandonado seus vínculos com
os interesses da elite política, mas passado a criticar as posturas de Vargas ao
apostar em um promissor alinhamento com os Estados Unidos. Neste sentido,
acreditamos que o filme atenderia a dois propósitos básicos: ludibriar a censura
e obter o lucro resultante da popularidade de Carlitos junto à população.
86
GWYNN, Ernest. O Grande Ditadorde Charles Chaplin. Revista do Globo, Porto Alegre, . 280, p.
64, setembro 1940.
87
SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: A Censura Cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora
Senac, 1999. p. 28.
88
CHARLIE Chaplin em “O Ditador”. Revista do Globo, Porto Alegre, . 282, p. 01, outubro 1940.
Capa.
92
3.4 As Sementes de Montevidéu:
Alguns indícios corroboram nossa convicção de que em 1940, ocasião
do lançamento mundial de O Grande Ditador, uma parcela considerável da
opinião pública gaúcha demonstrava sinais claros de insatisfação quanto às
“simpatias” de Vargas em relação ao eixo. Conforme um estudo anterior
89
,
estatísticas referentes ao fluxo comercial entre Brasil e Alemanha comprovam
uma acentuada queda nas relações entre os dois países no período. A situação
fora agravada substancialmente graças ao incidente ocorrido em dezembro de
1939 nas proximidades de Montevidéu, onde, em uma batalha naval, os aliados
atacaram o navio alemão Admirável Graf Spee, colocando o Rio Grande do Sul
na rota da Segunda Guerra Mundial, alarmando a população que acompanhou
atenta à cobertura jornalística.
No final da Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Versalhes permitia
que a Alemanha possuísse três couraçados de bolso, uma nova concepção em
termos de armamento de guerra, mais velozes e mais bem aparelhados.
Assim, o governo do Reich concebeu um tipo poderoso de navio, com seis
canhões de onze polegadas, velocidade de vinte e seis nós e a couraçada
reforçada para um deslocamento de dez mil toneladas, era o Admirável Graf
Spee. Hitler confiou ao veterano capitão Langsdorff o comando do navio que,
transformado em corsário, começou imediatamente sua tarefa de interceptar os
cargueiros aliados, com o cuidado de evitar entrar em contato com
embarcações de guerra. Como resultado, aproximadamente nove navios
ingleses foram parar no fundo do oceano graças à sua artilharia pesada.
Na primeira semana de dezembro de 1939, havia nos mares algo em
torno de nove esquadras perseguindo o Graf Spee. Os aliados pretendiam
proteger suas rotas comerciais, varrendo do mapa aquela ameaça permanente.
Nesta época, sob o alvo de três cruzadores britânicos comandados por Henry
Harwood, o navio fora avistado nas proximidades do balneário de Punta del
89
SOARES, Eduardo de Souza. Tendências das Relações Comerciais do Brasil com os EUA e Alemanha
em 1939: Uma Mudança de Paradigmas aos Olhos do Correio da Manhã. Monografia de Graduação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p. 43-63.
93
Este, na costa uruguaia. Estava montado o cenário para a primeira grande
confrontação naval da Segunda Guerra Mundial. Abatidos, os militares alemães
buscaram abrigo em Montevidéu para fugir do potente ataque inglês. Com seu
navio avariado, foram obrigados a se esconderem sob a tutela de um país
neutro, pois, conforme as leis internacionais, nesta circunstância o inimigo não
os agrediria, iniciando a fase diplomática da batalha do Prata.
Após a Conferência Interamericana ocorrida em 1939 no Panamá, os
Estados Unidos pretendiam manter a guerra afastada das praias do continente
ao delinear
90
uma zona de segurança ao longo da costa brasileira, fixando uma
faixa onde não deveriam ser praticados atos de guerra. Os alemães alegavam
que o couraçado necessitava de quinze dias para ser reparado e que não
poderiam zarpar com avarias, ganhando tempo para que seus submarinos
viessem em socorro. A Inglaterra ameaçava interromper a compra de carne
uruguaia caso o país não expulsasse o corsário alemão após as horas
regulamentares. O alto comando alemão era confundido pelos subordinados de
Churchill graças a uma série de mensagens e notícias transmitidas de Londres
sobre a aproximação de uma esquadra aliada a reforçar o bloqueio no Uruguai.
Convencido de que o Graf Spee seria inevitavelmente destruído, Hitler
mandou uma ordem de Berlim para que Langsdorff destruísse a embarcação.
Como conseqüência dos atos de guerra presenciados no continente, ferindo o
princípio da neutralidade estabelecido no Panamá, as nações americanas
formularam
91
um protesto junto às nações beligerantes e iniciaram as consultas
necessárias para fortalecer o sistema de proteção mediante a adoção de
regras apropriadas, entre as quais as que impediriam os navios beligerantes de
se abastecerem e de repararem danos nestes portos quando da provocação de
atos de beligerância dentro da zona de segurança estabelecida na Conferência
Interamericana.
90
SILVA, lio. O Ciclo de Vargas: 1939 Véspera de Guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1972. p. 180.
91
SILVA, op. cit., p. 189.
94
A comoção pública aponta para uma mudança de paradigmas, estando
concentrado em 1939 os primeiros passos daquilo que pouco tempo depois
seria o definitivo rompimento nas relações comerciais e diplomáticas do Brasil
com a Alemanha nazista. A covardia dos ataques protagonizados pelo Graf
Spee em águas americanas e as marcas da guerra em terras tão próximas ao
Rio Grande do Sul, proporcionaram não um sentimento de insegurança nas
autoridades políticas como o início de uma “simpatia” às causas aliadas.
Conforme será descrito ainda neste capítulo, em meio a uma onda de protestos
decorrentes do andamento da guerra, os frutos desta semente plantada no final
dos anos 1930 seriam colhidos no momento em que O Grande Ditador de
Charles Chaplin fora exibido pela primeira vez em Porto Alegre.
Como correspondente internacional da Revista do Globo, Ernest Gwynn
costumava publicar as entrevistas de Carlitos à imprensa dos Estados Unidos,
permitindo aos leitores uma cobertura precisa das polêmicas que envolviam o
filme em pleno nascedouro. Conforme nossa hipótese, a discussão acerca da
censura ocupou um lugar de destaque neste período. Em setembro de 1940,
foram reproduzidas
92
algumas palavras de Charles Chaplin colhidas em Nova
Iorque, durante a “première” de O Grande Ditador, na qual o ator “confiava em
que o seu filme seria amplamente exibido nos países da América do Sul e
Central”. Pouco tempo depois, Getúlio Vargas recebeu novas e disfarçadas
críticas com a publicação de algumas palavras do ator, onde afirmava
93
que
todos os que assistissem ao filme, não mais precisariam “temer os ditadores”.
A campanha, que utilizou Charles Chaplin como artífice na luta contrária
às posturas ditatoriais do presidente Getúlio Vargas, continuaria ao longo dos
dois próximos anos, ainda que com menor intensidade. Em novembro de 1940,
Ernest Gwynn descreveu
94
seu desgosto e descrença com a informação de que
somente “lá para o doce mês de janeiro de 1941, talvez o Brasil irá assistir à
obra-prima de Charles Chaplin”. Porém, logo que assistiu ao filme pela primeira
92
GWYNN, Ernest. Ainda “O Ditador”, de Chaplin. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 281, p. 64,
setembro 1940.
93
CHAPLIN, Charles. Fiz “O Ditador” porque odeio os ditadores. Revista do Globo, Porto Alegre, nº.
282, p. 42-43, outubro 1940.
94
GWYNN, Ernest. para o doce mês de janeiro... Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 284, p. 63,
novembro 1940.
95
vez, o correspondente internacional aproveitou a oportunidade para novamente
chamar a atenção dos leitores quanto à situação de cárcere atribuída ao país,
onde declarava
95
que o filme era encerrado com “uma nota de coragem e
esperança para os escravizados povos do mundo”.
Conforme um artigo de Kay Campbell, publicado
96
em janeiro de 1941
na Revista do Globo, “continuava assunto de primeira página na Imprensa dos
Estados Unidos, a série de acontecimentos sensacionais que se vem cedendo
às exibições e proibições do famoso filme de Charles Chaplin”. Os jornais
publicavam com destaque as notícias vindas da América do Sul, referentes à
proibição da película na Argentina, na Bolívia e na maioria dos países do
continente. Dando conta da desconfiança de boa parte da elite política nacional
quanto à simpatia de Getúlio Vargas em relação ao Eixo, o material terminava
com a constatação de que o filme de Chaplin vinha sendo usado como “um
ótimo barômetro alemão, por onde se pode medir até que grau de pressão
atinge a influência do Reich”.
O correspondente em Hollywood da Revista do Globo, aproveitando uma
nova oportunidade para criticar a censura imposta ao filme de Charles Chaplin
por intermédio do presidente Getúlio Vargas, divulgou
97
em maio de 1941 a
informação de que recentemente O Grande Ditador teria obtido a “permissão
para ser exibido em Costa Rica e na Venezuela”, finalizando com o intrigante
questionamento de “quando será que os brasileiros poderão vê-lo?”. A resposta
viria em fevereiro de 1942, em que, graças à condição insustentável nas
relações internacionais com o Eixo, Gwynn fez uma nova previsão quanto à
estréia do filme no Brasil, onde afirmou
98
que o selo da United Artists estaria
“prometendo lançar O Ditador no Brasil, de vez que cessaram os
impedimentos”.
95
GWYNN, Ernest. Eu assisti “O Ditador”. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 286, p. 79, dezembro
1940.
96
CAMPBELL, Kay. A trindade maldita. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 288, p. 02, janeiro 1941.
97
GWYNN, Ernest. O filme de Carlitos... Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 296, p. 63, maio 1941.
98
GWYNN, Ernest. Quem não se recorda... Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 313, p. 62, fevereiro
1942.
96
As informações quanto à estréia de O Grande Ditador em Porto Alegre
foram divulgadas apenas em maio de 1942. Os jornais da capital anunciaram
99
para o dia de junho a “premièregaúcha. Pela primeira vez na história da
cidade, um mesmo filme seria exibido em quatro cinemas simultaneamente.
Para evitar situações inesperadas, foram seguradas todas as cópias que a
United Artists enviou à capital. O Correio do Povo não escapou à discussão
sobre a censura, pois, como publicou
100
, o filme que anteriormente “aparecia-
nos com a característica dos frutos proibidos, agora se nos assemelha como
algo que devoraremos com o prazer de algo que nos satisfará completamente”.
Na oportunidade, anos antes de sua definitiva mudança para Porto Alegre,
Paulo Fontoura Gastal ainda em Pelotas ressaltava:
Nesta hora de angústias e desesperos, de amarguras e
lágrimas, em que alguns indivíduos pretendem amordaçar a
humanidade, é algo confortador e sublime encontrar alguém
que faça o mundo sorrir, esquecendo, por momentos, a
tristeza que o cerca. Charles Chaplin, o popular carlitos que
todos conhecem, mais uma vez volta às telas do cinema,
para fazer a humanidade rir e pensar. Sua grotesca figura,
com todos os aparatos que a tornaram conhecida no mundo
inteiro, tais como o bigodinho, que foi copiado por tanta
gente e até mesmo por um ditador que se julga profeta de
sua raça, os enormes calções e a esquisita cartola, as
botinas deformadas e a bengalinha curta, novamente serve
de fundo a uma sátira cruel e inteligente, desta vez mais
oportuna do que nunca, por ridicularizar os provocadores da
hecatombe que atualmente aflige o mundo.
101
A controversa trajetória de O Grande Ditador pelos cinemas do mundo
inteiro pode ser resumida como um contundente e polêmico sucesso. Sobre o
alcance do filme, em um artigo da Revista do Globo, Juliano Palha afirmava
102
que durante os ataques nazistas a Londres, “Hitler mandou bombardear a casa
onde nasceu Chaplin”. Proibido em diversas nacionalidades pela intervenção e
influência dos representantes alemães, o filme provocou acidentes, causando
mortes e agitando as massas. Na Cidade do México, o governo colocou uma
verdadeira tropa militar em guarda junto ao cinema no qual o exibiram. Em
99
ESTRÉIA a 1º de junho “O Grande Ditador”. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 07, 26/05/1942.
100
O Grande Ditador”: Estréia dentro de breves dias. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 07, 29/05/1942.
101
BECKER, op. cit., p. 40.
102
PALHA, Juliano. Dois homens e um bigode. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 320, p. 20-21, junho
1942.
97
Santiago do Chile, o filme foi vaiado pelos elementos fascistas e ovacionado
pelos liberais. Em Assunção, a película foi roubada do trem em que viajava,
tendo sua exibição retardada em mais de quinze dias.
Considerado como um dos maiores expoentes na história da sétima arte,
Charles Chaplin fora novamente consagrado pelas platéias de Porto Alegre.
Como atesta a vigésima segunda
103
ilustração deste trabalho, constituindo um
fato absolutamente inédito na cidade, os cinemas Vera Cruz, Capitólio, Ipiranga
e Rosário exibiram O Grande Ditador simultaneamente. No período em que
esteve proibida sua entrada no país, verdadeiras romarias brasileiras e
argentinas percorreram os cinemas de Montevidéu na esperança de assistir à
película. No dia imediatamente posterior ao grande acontecimento, o Correio
do Povo procurou expressar o misto de expectativa e ansiedade que dominou o
sentimento das pessoas naquele inesquecível momento, afirmando:
O ineditismo da estréia que se anunciava para ontem,
marcando um acontecimento inédito para a vida
cinematográfica do Estado, pois que quatro cinemas,
simultaneamente, apresentaram O Grande Ditador, foi a
grande garantia do êxito de ontem na nossa Cinelândia. A
suprema sátira de Chaplin que ora se voltou suas vistas
para os ditadores, foi consagrada inteiramente pela massa
dos nossos “habitués”. Os cinemas Vera Cruz, Capitólio,
Ipiranga e Rosário, sem o mínimo exagero superlotaram.
Literalmente cheios, estas casas apresentavam aspectos
dedusados com platéias que riam a bom rir com os gestos
de O Grande Ditador.
104
Porém, ao longo de 1942, no auge do ciclo de O Grande Ditador em
Porto Alegre, era intensificada a campanha dos submarinos alemães. Durante
a exibição do filme na cidade, foram torpedeados os navios Gonçalves Dias e o
Alegrete, ataques que em sua totalidade ocasionaram inúmeras mortes e uma
profunda indignação popular em todo o Brasil. Resultado da semente plantada
durante o incidente com o Graf Spee e fortalecida após os ataques nazistas às
embarcações brasileiras, a “simpatia” aos aliados atingiria seu mais alto grau
de intensidade com a depredação dos cinemas Vera Cruz, Capitólio e Ipiranga.
103
FINALMENTE! Ficou definitivamente assentada a data... Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 12,
24/05/1942.
104
EMPOLGANTE a estréia deO Grande Ditador”. Correio do Povo, Porto Alegre, p.06, 02/06/1942.
98
Os estabelecimentos pertenciam aos irmãos Pianca, famosos por sua adesão
ao Eixo e por exibirem películas originárias destes países.
Frente às manifestações populares, o governo do Estado Novo declarou
guerra às potências do Eixo em agosto de 1942. Foi exatamente neste período
que o cinema Vera Cruz retomou o seu normal funcionamento, convidando os
cidadãos de Porto Alegre para uma nova exibição de O Grande Ditador. Para
Nilo Piana de Castro
105
, “a programação soa como um pedido de desculpas,
além de uma utilização política local da película”. Conforme o autor, “a empresa
Pianca Irmãos fazia uso da imagem de Chaplin, ridicularizando o nazismo,
tratando de recompor sua própria imagem” e oferecendo um alto percentual da
renda “para as famílias que tiveram parentes mortos nas ações dos submarinos
alemães contra navios brasileiros”. Assim, “ir ao cinema seria um ato patriótico,
e rir de Hitler seria uma contribuição para sua derrota final”.
Procurando retomar nossa hipótese, em que a Revista do Globo não
teria abandonado seus laços com os objetivos da elite política, mas
redirecionado suas ações ao apostar que uma aproximação com os Estados
Unidos garantiria benefícios aos partidários dos “yankees”, e utilizando este
espaço para relembrar o foco desta pesquisa, na qual buscamos compreender
em que medida o anticomunismo esteve presente na repercussão da
filmografia política de Carlitos em Porto Alegre, salientamos que a postura
ditatorial de Getúlio Vargas ao censurar O Grande Ditador contemplaria
satisfatoriamente nosso questionamento. Porém, como nossa pesquisa prioriza
aspectos relacionados às fontes consultadas, é importante aprofundar algo que
poderíamos chamar de “interesses anticomunistas” por parte do periódico.
Neste terceiro capítulo, procurávamos demonstrar a sensível mudança
na estratégia adotada pela Revista do Globo ao repercutir as notícias sobre
Charles Chaplin. Sugeríamos também que o novo foco em nada teria alterado
a fidelidade do periódico aos interesses anticomunistas comuns à elite política.
105
CASTRO, Nilo André Piana de. Cinema em Porto Alegre 1939-1942: A Construção da Supremacia.
Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001. p.
55.
99
Assim, procurando reforçar esta última idéia, gostaríamos de acrescentar um
novo elemento à discussão, um sugestivo artigo de Emil Ludwig denominado
“Stálin, gênio ou demônio”. O texto sugeria que o líder soviético não passaria
de um homem frio e calculista, alguém que, em três horas de visita, não dirigiu
nenhum olhar ao jornalista que o entrevistava. Escondido em seus movimentos
lentos e cautelosos, de riso amargo e quase sempre sombrio, este sujeito
diabólico esconderia perigosos objetivos. Conforme o autor:
Em vinte anos de política, o “ex-revolucionário” aprendeu
muito mais do que em todo o resto de sua vida. E, sem
dúvida alguma, ele deve concordar em que o seu maior
golpe político foi a realização do pacto russo-alemão,
assinado por Ribentrop. A frieza do homem de Tiflis devorou
o erotismo do alucinado prussiano. Os resultados das atuais
batalhas na frente da Rússia, não são mais do que a
continuação do grande plano de Stalin: estabelecer o
comunismo na Alemanha, o único país, depois da Rússia,
que poderá se adaptar perfeitamente ao estranho sistema
soviético.
106
O demônio sempre esteve presente no imaginário anticomunista. No
momento em que o comunismo passou a ser percebido como um perigo sério
para a Igreja, os religiosos adotaram com freqüência o recurso à demonização
dos revolucionários, lutando contra as perturbações que poderiam enfraquecer
as forças do bem capitaneadas pelos soldados de Deus. O discurso maligno
dos comunistas seria uma espécie de tentação capaz de desviar o homem dos
caminhos do bem. Porém, como demonstra o exemplo da Revista do Globo, a
associação entre comunismo e demônio não foi uma característica exclusiva do
discurso católico. Na grande imprensa, era comum aparecerem referências que
criavam vínculos entre os comunistas e as forças do mal. Sobre os significados
do pecado no imaginário anticomunista, afirma Eliana de Freitas Dutra:
A associação da figura do inimigo ao mal enquanto doença
assume nova conformação com essas imagens, ocorrendo
um afastamento da imagem de doença dos planos físico e
biológico. Isso porque as imagens de peste e flagelo
aparecem fortemente ligadas, em particular na tradição
judaico-cristã, à idéia de pecado, e esta, por sua vez, à
imagem do demônio que amplia enormemente as
106
LUDWIG, Emil. Stalin, gênio ou demônio. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 320, p. 22-23, junho
1942.
100
representações acerca do mal e do perigo comunista,
acrescentando-lhes uma nova faceta: a diabólica. É nesse
imaginário religioso, que os católicos souberam aproveitar
tão bem, que o repertório de imagens anticomunistas irá se
abastecer.
107
É significativo que a mesma edição da Revista do Globo contemplasse
em páginas adjacentes a repulsa aos ditadores tão bem expressa por Chaplin e
o mais genuíno e tradicional anticomunismo, em que forças sobrenaturais
seriam capazes de macular a moral cristã e os valores ocidentais. No final da
Segunda Guerra Mundial, um clima de euforia democrática tomou conta dos
cidadãos brasileiros. Na esteira de suas contradições, a ditadura varguista
chegaria ao fim, dando início ao renascimento do partido comunista, o qual
atraiu a confiança de muitos intelectuais do Rio Grande do Sul, interesse
fortalecido pelos triunfos soviéticos no decorrer do conflito. Porém, pouco
tempo depois o país seria novamente contaminado pelo vírus da intolerância
anticomunista.
No próximo capítulo, acompanharemos a trajetória de Monsieur Verdoux
através da imprensa da capital, destacando a “estranha” manifestação do jornal
Correio do Povo, na qual o periódico parecia atestar seus mais profundos elos
com a elite política. Considerando o contexto histórico do final dos anos 1940,
especialmente o nascimento e a consolidação da Guerra Fria e seu ideário no
cenário internacional, apresentaremos mais alguns elementos que comprovam
o alcance das campanhas anticomunistas neste período. Por fim, as próximas
páginas ilustrarão os primeiros passos da carreira de Paulo Fontoura Gastal
nesta cidade, partindo das primeiras teses defendidas até a consolidação de
um dos mais importantes empreendimentos da cultura do Rio Grande do Sul, o
Clube de Cinema de Porto Alegre.
107
DUTRA, op. cit., p. 47.
101
Ilustração 20 “Charles Chaplin Parece que Perdeu Alguma Coisa”.
102
Ilustração 21 “Charlie Chaplin em O Ditador”.
103
Ilustração 22 “O Grande Ditador”.
104
CAPÍTULO IV
MONSIEUR VERDOUX: ENTRE O HERÓI E O ASSASSINO
Neste quarto e último capítulo, apresentaremos os reflexos da Caça às Bruxas
na crítica cinematográfica de Porto Alegre. Aproveitando a repercussão de
Monsieur Verdoux na imprensa da capital gaúcha, serão discutidas as bases e
o alcance da campanha anticomunista protagonizada pelos Estados Unidos no
despertar da Guerra Fria. Neste período, o Brasil mergulhou em um novo surto
reacionário, em que, entre as muitas medidas adotadas, constava a proibição
de filmes com conteúdo supostamente “subversivo”. Considerando que Charles
Chaplin foi o alvo preferencial desta luta contrária à influência soviética, a sua
mais nova película seria exibida no Rio Grande do Sul dois anos após seu
lançamento. Conforme nossa pesquisa, o Correio do Povo legitimaria em suas
páginas toda espécie de argumentos contrários ao filme e seu criador.
4.1 Um Novo Surto Reacionário:
Os problemas do Estado Novo resultaram mais da inserção do Brasil no
quadro das relações internacionais do que das condições políticas internas do
país. Essa inserção impulsionou as oposições e abriu caminho a divergências
no interior do governo. Após a entrada do Brasil na guerra e dos preparativos
para o envio de tropas à Itália, personalidades da oposição começaram a
explorar a contradição existente entre o apoio do Brasil às democracias e a
ditadura varguista. O governo procurava enfrentar as diferentes pressões
justificando a continuidade da ditadura pela existência da guerra, ao mesmo
tempo em que prometia realizar eleições ao final do conflito. Nesse momento,
Vargas declarava que não se candidataria à presidência da República.
O apoio do PCB ao governo Vargas consistiu em um dos fatos mais
curiosos daqueles anos. Ele se explica por características do próprio partido e
pela orientação vinda de Moscou, onde os partidos comunistas de todo o
105
mundo deveriam apoiar os governos de seus países, integrantes da frente
antifascista, fossem eles ditaduras ou democracias. Em 1945, o Brasil
estabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética pela primeira vez em
sua história. No mesmo ano, uma iniciativa promovida pelos círculos
trabalhistas ligados a Getúlio, com o apoio dos comunistas, mudou os Rumos
da sucessão presidencial. Foi a campanha “queremista”, assim chamada
porque seu objetivo se sintetizava na palavra de ordem “queremos Getúlio”. Os
“queremistas” saíram às ruas defendendo a instalação de uma Assembléia
Nacional Constituinte com Getúlio no poder.
Com a “benção” da legalidade, o PCB cresceu de modo excepcional no
fim da Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez na sua história conquistava
as massas, aumentando consideravelmente o número de simpatizantes. Neste
período, o partido lançou seus próprios candidatos para o Congresso Nacional
e para a presidência da República. O súbito sucesso do movimento provocou a
reação das classes dirigentes, impedidas de negar o papel da União Soviética
no conflito europeu. A época de intolerância e incompreensão parecia distante,
e tudo levava a crer que dentro do atual sistema democrático brasileiro
houvesse lugar para a participação da esquerda comunista, sonho destruído
por um novo surto reacionário.
A situação em que os Estados Unidos se encontravam no final da
Segunda Guerra Mundial era extraordinária. A morte do presidente Franklin
Delano Roosevelt, em 1945, marcaria definitivamente não somente o fim da
política de Boa Vizinhança como da política de Coexistência Pacífica com a
União Soviética. Com a ascensão de Harry Truman, a nova administração
adotaria definitivamente a política do Globalismo, descartando as antigas teses
Isolacionistas. Depois de um convívio forçado e desconfortável com os
socialistas e comunistas, o Departamento de Estado elaborou a Doutrina de
Segurança Nacional, que passaria a orientar as relações da grande potência
com o resto do mundo. A América Latina não demorou a sentir os efeitos dessa
alteração, sendo enquadrada nos esforços da Guerra Fria pouco tempo depois.
106
Com o anúncio da Doutrina Truman em 1947, os Estados Unidos
declaravam estar dispostos a conter toda e qualquer manifestação de avanço
do comunismo internacional, intervindo militarmente para proteger os governos
aliados de qualquer ameaça. Naquele mesmo ano, foi posto em prática o Plano
Marshall, um imponente projeto de recuperação das economias enfraquecidas
pelos esforços de guerra, alinhando o mundo capitalista à hegemonia do “Tio
Sam”. Além da aprovação dos objetivos de Truman, o Congresso sancionou a
Lei de Segurança Nacional e a formação do Departamento de Defesa, que
passaria a coordenar os esforços nacionais gerais para o conflito bipolar. Desta
forma, estavam constituídos os pilares necessários à Doutrina de Segurança
Nacional. Sobre o nascimento de mitos e imagens coerentes à Guerra Fria,
Paulo Fagundes Vizentini afirma:
A Doutrina Truman e o Plano Marshall materializaram a
partilha da Europa e lançaram as bases para a formação de
blocos político-militares. O problema é que ainda existia uma
forte opinião pública mundial marcada pelo espírito de Yalta,
pelo antifascismo e pelo pacifismo, sendo que atrasava e
perturbava a implementação da Guerra Fria. Era preciso
lançar mão de poderosos mitos e imagens que
desarticulassem essa corrente e condicionassem a
população a uma visão maniqueísta. A “ameaça soviética” e
a “defesa do mundo livre” constituíram esses mitos
mobilizadores e legitimadores da nascente Guerra Fria.
108
Em sintonia com sua fúria anticomunista, o poder executivo obrigou todo
o funcionalismo público a prestar um juramento de fidelidade às instituições
nacionais. Truman indicou os arquivos do Comitê da Câmara Contra Atividades
Antiamericanas como fonte oficial de provas contra os servidores. Pouco tempo
depois, foram convocados a depor os chamados Dez de Hollywood. Grande
parte dos profissionais investigados tiveram suas carreiras arruinadas e foram
condenados a penas que variavam de seis a doze meses de cadeia. Joseph
McCarthy faria suas primeiras acusações em 1950, iniciando a febril inquisição
do Macartismo. Entre suas vítimas, Charles Chaplin. Sobre a consolidação do
processo de Caça às Bruxas, Román Gubern afirma:
108
VIZENTINI, Paulo Fagundes. A Guerra Fria: O Desafio Socialista à Ordem Americana. Porto
Alegre: Leitura XXI, 2004. p. 74.
107
La violenta purga que sacudió lãs entrañas de Hollywood
entre 1947 y 1953, diezmando intelectualmente las filas de
sus talentos más valiosos, se inscribe en el vasto panorama
histórico del crecimiento y consolidación en áreas del poder
político norteamericano de variadas formas de la ideología
fascista, que siempre ha estado presente en la sociedad
capitalista norteamericana y que ha cobrado especial
virulencia en los períodos de las postguerras mundiales. La
primera postguerra mundial se caracterizo por una fuerte
actividad sindical y luchas obreras que fueram severamente
reprimidas, la segunda postguerra ha pasado a los anales
de la historia de la repressión por la triste caza de brujas
maccarthysta. Ello significa que el maccarthysmo fue
meramente una de las muchas variantes que puede revestir
la ideología y la acción fascistas en una sociedad de
capitalismo avanzado, dotada de unos macanismos
democráticos excesivamente vulnerables y manipulables por
parte de los poderosos grupos de presión financieros,
militares y ultraconservadores que existen en su seno.
109
O alinhamento da América Latina aos anseios “yankees” foi consagrado
ainda em 1947, onde no Rio de Janeiro nascia o pacto que pretendia enlaçar
militarmente estas nações, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca,
ou simplesmente TIAR. Os Estados Unidos, além de exportar para os seus
vizinhos um preocupante anticomunismo, esperavam igualmente fixar as bases
de dependência militar, abrindo um amplo mercado para exportar seus amplos
estoques de armamento convencional. Por fim, a criação da Organização dos
Estados Americanos, a OEA, tratava de regulamentar a Pax Americana,
mostrando a insignificância de rivalidades locais frente à ameaça maior que era
a expansão da União Soviética e a presença dos Partidos Comunistas em seus
territórios. Sobre a prática destas medidas no Brasil, afirma Voltaire Schilling:
Durante uma visita de cortesia realizada ao Brasil, logo após
o término da II Guerra, o general Eisenhower teve a mão
beijada por Otávio Mangabeira, deputado da União
Democrática Nacional. O inusitado gesto, similar às
cerimônias feudais de homenagem e vassalagem, revelava
que a oligarquia brasileira colocava-se definitivamente sob a
proteção do novo senhor. Completava-se, com este ato
público de submissão, a afirmação do elemento subjetivo
que completava a subordinação militar, econômica e
diplomática da América Latina aos Estados Unidos.
110
109
GUBERN, Román. McCarthy Contra Hollywood: La Caza de Brujas. Barcelona: Editorial Anagrama,
1970. p. 07.
110
SCHILLING, Voltaire. Estados Unidos e América Latina: Da Doutrina Monroe à Alca. Porto Alegre:
Leitura XXI, 2002. p. 76.
108
No país, a orquestração produziu resultados efetivos neste mesmo ano.
Após a posse do presidente Eurico Gaspar Dutra, o rompimento das relações
diplomáticas com a União Soviética reforçava o triunfo da Guerra Fria no Brasil.
Nos círculos conservadores, é comum associar ao governo Dutra o respeito à
legalidade. Porém, quando se tratava dos comunistas e dos trabalhadores
organizados, o legalismo era muitas vezes convenientemente esquecido. Como
não bastasse, o Supremo Tribunal Federal decidiu cassar o registro do Partido
Comunista. A decisão fora “baseadano texto da Constituição, que vedava a
existência de qualquer partido político cujo programa ou ação contrariassem o
regime democrático, sustentado na pluralidade dos partidos e na garantia dos
direitos fundamentais do homem.
No mesmo dia do fechamento do PCB, o Ministério do Trabalho ordenou
a intervenção em catorze sindicatos, fechando uma central sindical controlada
por comunistas. Nos meses seguintes, prosseguiram novas ações repressivas,
a ponto de haver mais de duzentos sindicatos sob intervenção no último ano do
governo Dutra. Embora fosse real a influência dos comunistas em muitas
destas organizações, era evidente que, em nome do combate ao comunismo, o
governo procurava desmobilizar as organizações de trabalhadores contrários à
sua orientação. Em 1948 foram completadas as medidas que levariam o PCB à
clandestinidade, em que uma lei aprovada pelo Congresso Nacional
determinava a cassação dos mandatos dos deputados, senadores e
vereadores eleitos pela legenda do partido.
4.2 Um Frankenstein Chapliniano:
Para uma boa parte dos críticos cinematográficos, Monsieur Verdoux foi
um claro fracasso na vida de Charles Chaplin. Porém, o autor declarou ter sido
este um de seus melhores filmes, destacando-o em sua autobiografia. O
argumento inicial teria sido baseado em um diálogo com Orson Welles, em que
ele teria sugerido a Chaplin a idéia de fazer um documentário baseado na vida
e morte de Henri Landru, um sedutor assassino francês que roubou a quase
três centenas de mulheres, matando dez destas em aproximadamente uma
109
década. Nas negociações, mediante a promessa do cineasta em exibir seu
nome nos créditos finais da película, Welles teria cobrado uma quantia em
dinheiro para desistir de escrever o roteiro.
O protagonista fictício do filme passou a ser Henri Verdoux, um frustrado
funcionário bancário que, além de ser demitido, foi atingido pelas necessidades
econômicas provenientes da depressão, empreendendo uma carreira criminosa
para defender o lar onde moravam sua esposa e seu filho. Adotando diversos
pseudônimos e transitando em distintas partes da França, o homem se casava
com mulheres ricas, preferivelmente solitárias. Após finalizar os assassinatos, o
criminoso assumia suas respectivas fortunas para seguir em frente. É verdade
que sofreu alguns tropeços. Em um caso se compadeceu da vítima, em outro
encontrou uma mulher aparentemente indestrutível e finalmente acabou sendo
descoberto por um dos familiares vitimados. Quando se entregou à justiça, foi
condenado à morte. Para o crítico Walter da Silveira:
O filme aparece dentro da guerra fria, do macartismo, da
nova campanha difamatória contra Chaplin. Corresponde ao
período mais amargo de sua história pessoal: aquele em
que Joan Barry o acionou para obrigá-lo a reconhecer
judicialmente um filho que não era dele, da ação
aproveitando-se a imprensa para voltar a acusá-lo de torpe
e traidor. É também a fase em que, no plano internacional,
com tão poucos anos de paz, ressurge a ameaça de
conflitos militares em conseqüência dos ideológicos. E
internamente, chegou a hora da “caça às feiticeiras”, do
questionamento político mais agudo à livre manifestação
das idéias.
111
Em sua defesa perante o juiz e o representante da igreja, argumentava
que a sociedade o obrigara a empreender sua carreira criminosa, na qual o
crime seria o extremo lógico da competência que criavam os negócios. Era
provável que um roteiro semelhante, construído ao redor de um simpático vilão,
pudesse conduzir uma grande carga de crítica social, certamente mais intensa
do que a prometida e insuficientemente cumprida em Tempos Modernos.
Porém, a obra não apenas contestava o mundo dos negócios através de frases
muito duras, como criticava uma realidade freqüente na sociedade americana,
111
SILVEIRA, op. cit., p. 58.
110
onde muitas destas viúvas persistiam como verdadeiros parasitas na sociedade
americana, empreendendo campanhas inúteis para justificar seus rendimentos.
As vantagens obtidas por essas mulheres irritavam a Chaplin, em parte
como um simples observador do mundo e mais por sua experiência de vítima
em verdadeiros escândalos frente às mulheres com quem se envolveu. A ação
de Monsieur Verdoux poderia ter transcorrido na América moderna, porém,
Chaplin preferiu ambientar sua história na França de um passado próximo,
especificamente no período anterior à Segunda Guerra Mundial, explicando
assim o seu protagonista como tima da depressão econômica e aproximando
a história da lenda de Henri Landru, ainda que com certo cuidado, para que o
filme fosse entendido como uma parábola em vez de um documentário. As
objeções à película não tardariam a acontecer, surgindo muitas vezes das
circunstâncias em que foi produzido e estrelado.
No princípio de 1947, Charles Chaplin era duramente combatido pelo
conteúdo de seus filmes anteriores e por seu apoio à União Soviética em 1942.
A estréia de Monsieur Verdoux apenas confirmou esses ataques. A conferência
de imprensa, convocada para anunciar o novo filme em Nova Iorque, foi o
palco para uma série de protestos políticos dos jornalistas contrários a Carlitos;
logo depois apareceriam os piquetes da Legião Americana a cercar o local. A
película ficaria apenas seis semanas em cartaz na cidade, período em que o
ator era surpreendido diariamente com notícias que anunciavam o
cancelamento do filme em outras cidades. O boicote planejado pela Legião era
muito eficaz, pois as salas que exibissem Monsieur Verdoux entrariam para
uma lista negra, com conseqüências imprevisíveis. Conforme Georges Sadoul:
As perseguições contra os dez de Hollywood, a campanha
contra Charles Chaplin, cedo mostraram seus objetivos
quando o cinema americano, depois desses avisos, se
lançou na produção em série dos filmes anti-vermelhos e de
guerra. O objetivo final da campanha aparecia claramente.
Wall Street queria preparar a opinião pública para a World
War III. Os armamentos em grande escala e as operações
militares iam suceder à reconversão do imediato após-
guerra.
112
112
SADOUL, op. cit., p. 209.
111
O homem Charles Chaplin transpareceu sua rebeldia contra a sociedade
americana ao discutir seus postulados básicos e ao atacar diretamente suas
mais reconhecidas instituições, na tentativa de provar que a vilania social seria
ainda mais perigosa do que a sua. O protagonista encarnava e condenava ao
mesmo tempo o mundo onde vivia e de que era um produto típico. A distância
de hoje nos permite ver nitidamente que a ofensiva desencadeada em Nova
Iorque foi uma das armadilhas iniciais de uma batalha ainda mais vasta, os
primeiros passos de uma campanha deliberadamente destinada a orientar a
opinião pública para uma nova guerra. Um dos maiores criadores do século
passado precisou destruir o mais definitivo dos seus personagens, nunca mais
podendo construir outro com as características do eterno vagabundo Carlitos.
4.3 Um Chaplin Diferente:
Com base em um estudo recente
113
, entendemos que Charles Chaplin
continuava a ser uma figura querida em Porto Alegre, onde seus trabalhos
eram aguardados com grande expectativa, Não sendo diferente com Monsieur
Verdoux, o lançamento do ano em 1947. Muito embora o filme tenha demorado
dois anos para ser exibido nos cinemas da capital, em sua esteira muitos foram
os pequenos festivais e mostras que procuravam “aquecer” as platéias para o
futuro acontecimento. Este foi o caso da Cavalgada do Riso
114
, na qual,
conforme a vigésima terceira
115
ilustração desta dissertação, o gênio da
pantomima seria visto “numa seqüência de suas esplêndidas comédias” em
que predominaria “o grotesco com a simplicidade e com o sentimentalismo
sutil” apenas Chaplin poderia imprimir aos trabalhos cinematográficos.
O ano em que Monsieur Verdoux foi oficialmente lançado nos Estados
Unidos marcaria ainda outro importante acontecimento para os fãs de Charles
Chaplin espalhados pelo mundo: os seus trinta e cinco anos de cinema. Nesta
113
SOARES, Eduardo de Souza. Charles Chaplin entre o Vilão e o Vagabundo: Um Estudo de Caso
sobre Monsieur Verdoux e os Reflexos da Caça às Bruxas na Crítica Cinematográfica de Porto Alegre
entre 1947 e 1949. Monografia de Especialização, Faculdades Porto-Alegrenses, Porto Alegre, 2006. p.
39-50.
114
O QUE se passa na cinelândia local. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 06, 20/02/1947.
115
CHARLES Chaplin: Cavalgada do riso. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 10, 23/02/1947.
112
trajetória, é comum associar às críticas sociais de Carlitos obras consagradas
como Tempos Modernos e O Grande Ditador, mas não podemos esquecer que
outros filmes mais antigos já despertavam a ira das autoridades; um bom
exemplo foi O Imigrante. Considerado por muitos como o autêntico pioneiro da
indústria cinematográfica e reconhecido pelas marcas que deixou na história da
sétima arte, foi neste clima de profundo louvor ao talento do artista que, em um
artigo publicado no Correio do Povo, Adil Silva antecipou as novidades direto
de Paris, alertando os leitores sobre o futuro trabalho de Carlitos, onde:
O título definitivo será Monsieur Verdoux”, um Landru sem
barba, de bigode estirado, representando o tipo francês
médio e elegante. Não será guilhotinado, à francesa, mas
eletrocutado, à americana, na cadeira elétrica. E antes da
execução, M. Verdoux pronunciará um longo discurso ao
estilo do ditador, discurso irônico e terrível sobre a
moralidade da justiça na sociedade contemporânea. Trata-
se de um melodrama sério, e não de uma comédia.
116
Quase que vislumbrando a futura discussão a respeito de Monsieur
Verdoux, Jacob Koutzii exaltou o perfil social e a abrangência da obra de
Chaplin, afirmando
117
que Carlitos vivia no sentimento do povo, justamente
porque o conteúdo profundamente social de sua obra “o distingue não apenas
como um gênio da criação artística, como também o destaca como um dos
grandes guias do pensamento contemporâneo”. Esta atração da imprensa por
Charles Chaplin é um indicativo de que o novo filme, que ainda permanecia
distante dois anos de sua primeira aparição em Porto Alegre, despertava a
curiosidade e talvez alguma desconfiança por parte dos leitores mais atentos.
Era o início do interessante debate que ilustra este capítulo.
Conforme havíamos mencionado, ao resgatar as antigas comédias de
Carlitos, estes pequenos festivais preparavam o público para a exibição futura
de Monsieur Verdoux. Em Ajudante de Caixeiro
118
, além de desenhos, jornais e
filmes educativos, estava prevista a exibição da sátira que levava o mesmo
nome. Esta era uma estratégia comum dos cinemas desta época, em que um
116
SILVA, Adil. Carlitos: Trinta e cinco anos de cinema. Correio do Povo, Porto Alegre, 16/04/1947.
Cinema, p. 06.
117
OPINIÕES sobre Carlitos. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 06, 16/04/1947.
118
MATINÉES infantis no Rex. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 22/06/1947.
113
mesmo programa não beneficiaria apenas as crianças, mas a família inteira.
Como atesta a vigésima quarta
119
ilustração, a mensagem do anúncio nos leva
a refletir sobre a amplitude de suas obras, nas quais uma mesma película
atrairia pais e filhos. Em maio de 1947, o jornalista Marcelo Viana registrava
toda sua satisfação com o novo filme de Chaplin, enaltecendo a produção
através de um relevante artigo na Revista do Globo, em que afirmava:
A maioria dos críticos de Manhatan classifica Monsieur
Verdoux como um bluff, desapontante, quase ofensivo e
vulgar. Mas uns poucos, certamente admiradores ilimitados
de Chaplin, se deliciaram com as suas ironias sutis e
tragicômicas, que ele sabe apresentar com um poder de
intuição, com uma sensibilidade de observação
verdadeiramente geniais. Os recursos técnicos que Chaplin
emprega neste seu novo filme são tão habilidosos e
deliciosos, tão psicologicamente penetrantes, como
quaisquer outros revelados nos filmes anteriores.
120
A destacada divulgação de Monsieur Verdoux na Revista do Globo pode
ser entendida como um fruto do amadurecimento da crítica cinematográfica em
Porto Alegre. Não por acaso, pouco tempo depois da publicação do artigo
anteriormente citado, Paulo Fontoura Gastal passaria a ser o responsável pela
sessão de cinema do periódico, intensificando seu esforço de proporcionar às
massas bons filmes
121
e empreendendo no mesmo ano o Clube de Cinema
122
.
Atuando com liberdade, atacou com vivacidade a terrível censura do cinema
americano. Em fevereiro de 1948, Gastal publicou um artigo afirmando
123
que
ainda estava por surgir algo que se comparasse “em absurdo e idiota ao código
de censura do cinema americano, o maior responsável pela falta de equilíbrio
artístico da quase totalidade dos filmes de Hollywood”.
A atuação de Gastal na Revista do Globo é fundamental para os Rumos
propostos nesta dissertação. Lutando contra a censura, o critico publicou uma
119
ESTUPENDAS matinées infantis. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 23, 22/06/1947.
120
VIANA, Marcelo. Monsieur Verdoux. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 435, p. 77-79, maio 1947.
121
GASTAL, Paulo Fontoura. Um melhor critério de seleção. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 458, p.
77, maio 1948.
122
GASTAL, Paulo Fontoura. A importância dos clubes de cinema. Revista do Globo, Porto Alegre, nº.
457, p. 76-77, abril 1948.
123
GASTAL, Paulo Fontoura. O papel do cinema. Revista do Globo, Porto Alegre, . 453, p. 77-79,
fevereiro 1948.
114
série de entrevistas com renomados ícones da intelectualidade gaúcha, em que
todos os entrevistados manifestaram o seu desgosto quanto à proibição de
Monsieur Verdoux no país. Apenas para constar, foram registradas as opiniões
de Mário Quintana
124
, José Moraes
125
, Jacob Koutzii
126
, Salvyano Cavalcanti
127
e Armando Ribeiro Pinto
128
. Porém, a sutileza das respostas apresentadas em
nada se comparava à violenta manifestação de Gastal na defesa de Chaplin;
afirmava
129
que o êxito alcançado por Monsieur Verdoux em sua estréia em
Nova Iorque não impediu que a película fosse “boicotada pelos fascistas
atomistas e todos os reacionários por este mundo afora”.
Considerando nosso objetivo central, no qual procuramos identificar as
marcas do anticomunismo na crítica cinematográfica de Porto Alegre, foi ainda
mais importante a passagem dedicada especificamente ao tema, em que,
neste mesmo artigo, Paulo Fontoura Gastal retratava que, “em nosso país,
Monsieur Verdoux está proibido de ser exibido, sob a alegação de que se trata
de propaganda comunista”. Charles Chaplin era novamente vítima da estupidez
patrocinada pelas autoridades políticas, em que o alinhamento nas relações
entre o Brasil e os Estados Unidos faria o país mergulhar em um novo surto
anticomunista, comparado apenas à campanha de 1936. Sobre a censura no
cinema americano, Jacob Koutzii registrou seu posicionamento no principal
órgão intelectual do Partido Comunista, a Revista Horizonte, na qual reafirmava
suas teses ao apontar que:
O cinema é a arte de nosso tempo porque se dirige às
massas. Por suas excepcionais condições de
penetrabilidade e sugestão, é o instrumento mais adequado,
principalmente como expressão artística, a servir a época
dinâmica e progressista que estamos vivendo. Nenhuma
124
GASTAL, Paulo Fontoura. Voltam os filmes franceses. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 464, p. 79,
agosto 1948.
125
GASTAL, Paulo Fontoura. Livros sobre cinema. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 465, p. 79, agosto
1948.
126
GASTAL, Paulo Fontoura. Cinema e tabelamento. Revista do Globo, Porto Alegre, . 469, p. 79,
outubro 1948.
127
GASTAL, Paulo Fontoura. Uma campanha oportuna. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 474, p. 79,
janeiro 1949.
128
GASTAL, Paulo Fontoura. A temporada de 1948. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 475, p. 77,
janeiro 1949.
129
GASTAL, Paulo Fontoura. O sorriso esperanto. Revista do Globo, Porto Alegre, nº. 456, p. 77-79,
abril 1948.
115
outra arte, em tempo algum, teve essa possibilidade de
expansão. Os que atualmente possuem fabulosos recursos
materiais, particularidade que lhes permite o domínio quase
absoluto da produção cinematográfica, compreenderam, por
instinto de classe, a poderosa arma de divulgação que
tinham em suas mãos.
130
No ano em que Monsieur Verdoux estrearia definitivamente em Porto
Alegre, o Correio do Povo passou a contar com a intensa colaboração de Paulo
Fontoura Gastal na editoração da página de artes do periódico
131
, dando
especial atenção à crítica cinematográfica. É neste momento que o Clube de
Cinema, criado poucos meses antes, conquistaria ainda mais espaço na mídia,
graças ao apoio incondicional da empresa Caldas Júnior, o que proporcionou
grande popularidade ao empreendimento. Em um dos seus primeiros textos no
jornal, Gastal parecia contrapor a idéia até então construída
132
, em que o novo
filme de Chaplin era percebido como uma película “polêmica”. Ao refletir sobre
as exibições internacionais de 1948, afirmou
133
que a nova criação de Carlitos
fora escolhida como “a melhor película de 1947”.
A tese da primazia artística de Monsieur Verdoux acompanharia o crítico
ao longo deste período. Iniciando uma prática que gradativamente seria comum
ao seu estilo, trabalhando com o propósito de integrar a crítica cinematográfica
nacional em amplos espaços de discussão, Gastal publicou
134
um pequeno
trecho de um conterrâneo, Pery Ribas, em que este “veterano cronista
pelotense”, o qual então residia no Rio de Janeiro, considerava “Monsieur
Verdoux a obra prima de Carlitos”, demonstrando, assim, a amplitude de seu
argumento. Comprovando seu bom relacionamento entre os distribuidores, o
crítico com exclusividade anunciou
135
, em junho de 1949, que as cópias do
novo filme se encontravam na cidade, “dependendo sua estréia unicamente
do agendamento da data por parte da empresa de Darcy Bittencourt”.
130
MORAES, Plínio. Cinema, arte de nosso tempo. Revista Horizonte, Porto Alegre, nº. 01, p. 31-32,
março 1949.
131
BECKER, op. cit., p. 159.
132
O NOVO filme de Chaplin. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 04/01/1949.
133
CALENDÁRIO cinematográfico de 1948. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 06/01/1949.
134
CONTA-GOTAS. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 26/01/1949.
135
DE CHARLES Chaplin. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 01/06/1949.
116
Graças à conquista de sólidas bases, conseqüência do trabalho de seus
colaboradores, o Clube de Cinema era reconhecido por todos como um espaço
privilegiado de discussões, uma espécie de vanguarda, expressa através de
encontros “première” nos quais os cineclubistas assistiam à estréia de
importantes filmes, antes mesmo que os grandes cinemas o fizessem. Não
seria diferente com o grande lançamento da temporada de 1949, Monsieur
Verdoux. Graças ao oferecimento do escritório da United Artists, situado nas
proximidades da Caldas Júnior, e de Darcy Bittencourt, que em breve exibiria o
filme no cinema Roxy, Gastal organizou
136
uma sessão especial, brindando os
participantes do Clube com as primeiras imagens da nova película de Carlitos.
O próprio Clube de Cinema realizou um dos festivais em homenagem a
Chaplin, com a total visibilidade assegurada pelo trabalho de seu presidente.
Em nota de grande destaque, fora anunciado
137
que o ator seria sempre um
assunto apaixonante para os estudiosos da sétima arte, “muitos dos quais vêm
no homem da bengalinha o único gênio revelado pelos filmes”. Suas películas,
mesmo as mais antigas, seriam sempre vistas com interesse, pois estariam
“marcadas todas, mesmo as mais ingênuas, com o selo pessoal de seu
criador”. Enfatizando a preocupação social do artista, Gastal sublinhou que as
comédias deste festival pertenciam a uma das fases mais remotas de Carlitos,
quando ainda nem sequer se supunha que “aquele clown, finíssimo e original,
viria se transmutar num dos mais notáveis artistas sociais de nossos tempos”.
A estréia local de Monsieur Verdoux estava cada vez mais próxima.
Toda a sua propaganda esteve estruturada no seu caráter mais radical, em que
Chaplin abandonava o personagem que o tornou imortal para adotar a postura
de alguém completamente diferente, um astuto criminoso responsável por uma
série de assassinatos. Era anunciado
138
que o filme ofereceria “às platéias do
mundo, à mancheias, o seu talento”, num espetáculo que elevaria “seu nome à
posição mais alta de glória de um artista”. A cidade de Porto Alegre estava em
vésperas de assistir ao “acontecimento culminante da temporada”. Como o
136
UMA DAS próximas sessões do Clube de Cinema de Porto Alegre... Correio do Povo, Porto Alegre,
p. 08, 07/06/1949.
137
CARLITOS, hoje para o Clube de Cinema. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 24/06/1949.
138
PRÓXIMAS estréias. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 07/08/1949.
117
Correio do Povo é a fonte privilegiada deste capítulo, é importante ressaltar
alguns aspectos de sua linha editorial. Para Francisco Rüdiger:
O jornalismo passava por uma fase de modernização, que
acompanhava as transformações em curso na sociedade,
no contexto das quais a pregnância do campo político foi
substituída pela análise dos movimentos de mercado. O
Brasil estava vivendo uma nova fase de desenvolvimento
econômico, na qual o principal aspecto era o processo de
industrialização verificado a partir de 1930. Em
conseqüência disso, houve uma expansão das atividades
comerciais e do mercado interno que fomentou o
desenvolvimento das modernas empresas jornalísticas,
aumentando o público leitor e, de verdade, criando o
negócio da publicidade, que progressivamente se tornou a
primeira fonte de financiamento do jornalismo.
139
O desenvolvimento do jornalismo informativo moderno no Rio Grande do
Sul está diretamente ligado ao Correio do Povo. O cultivo empresarial dessa
linha editorial era o principal segredo da Caldas Júnior, iniciando um processo
no qual o caráter político do jornalismo não precisava ser explícito. É
importante ressaltar que essa metamorfose verificada no jornalismo não
eliminou o perfil militante, apenas uma mudança de forma. A nova empresa
jornalística seria uma agência política que apenas não exporia seu nome.
Como veremos a seguir, a repercussão de Monsieur Verdoux nas páginas do
Correio do Povo comprova que, em momento algum, o periódico abandonou
seus laços com a elite política, condenando Charles Chaplin com base nos
mais reacionários argumentos e demonstrando um intenso anticomunismo.
4.4 Em Defesa de Carlitos:
Nos dias que antecederam sua primeira exibição, Paulo Fontoura Gastal
continuava a publicar pequenas notas, sempre em defesa do último filme de
Chaplin, enaltecendo
140
a importância deste novo personagem, em que Carlitos
abandonava toda uma personalidade que encantou o mundo, ocupando a
“pena de todos os críticos, por longos anos”. Cada vez mais próximo, as notas
139
RÜDIGER, Francisco. Tendências do Jornalismo. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1993. p. 63.
140
VOCÊ sabia? Chaplin mudou! Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 09/08/1949.
118
de propaganda reiteravam
141
que, por ser escrita e dirigida pelo autor, a obra
estaria “destinada a colher os mais vibrantes aplausos da nossa platéia”, com
sua próxima apresentação que se anunciava, “auspiciado pelo escudo famoso
da United Artists, na tela do Cine Roxy”. Como veremos a seguir, a expectativa
gerada pela estréia de Monsieur Verdoux não foi maior do que a surpresa
ao acompanhar sua repercussão nos dias seguintes.
A campanha de Caça às Bruxas inevitavelmente estaria refletida com a
repercussão de Monsieur Verdoux. Mesmo para Gastal, que em suas críticas
nunca poupou elogios à nova iniciativa de Charles Chaplin, foi impossível
conter a virulência com que era atacada a nova película, enaltecendo
142
, com o
talento que o caracterizava, as duas grandes linhas que atravessavam o filme,
o conteúdo social e o preparo ao público quanto às criticas recebidas por
Carlitos. Na véspera da primeira exibição, prevista para 15 de agosto de 1949,
fora anunciado
143
que o blico teria ao seu alcance “a mais famosa película
dos últimos tempos, precedida da maior fama, cercada da mais tumultuosa
crítica e recebida sempre com a mais justificada expectativa”.
Com as cartas na mesa, muita coisa iria mudar. Apesar da expectativa
gerada em torno do filme, conforme nossa vigésima quinta
144
ilustração, e do
aparente
145
sucesso de sua “première” em Porto Alegre, nosso sentimento ao
acompanhar a trajetória de Monsieur Verdoux nas páginas do Correio do Povo
é de que, mesmo sendo preparados por Gastal ao longo dos meses, no sentido
de receber uma película que dirigia duras críticas à sociedade, os responsáveis
pelo jornal não esperavam um filme com mensagens tão diretas. Logo após a
primeira exibição, quase que por um “milagre”, foram mínimos os comentários
a respeito da obra. Enquanto filmes de, comparativamente, pouca ou nenhuma
expressão como Tarzan ou O Gordo e o Magro foram divulgados em grandes
cartazes, para Carlitos eram reservados apenas pequenos anúncios.
141
UM CHAPLIN diferente. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 11/08/1949.
142
Monsieur Verdoux: um moderno barba-azul. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 13/08/1949.
143
SENSAÇÃO na cidade: “Monsieur Verdoux. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 14/08/1949.
144
SENSAÇÃO na cidade: Chaplin mudou! Correio do Povo, Porto Alegre, p. 23, 14/08/1949.
145
APÓS “Monsieur Verdoux” de Carlitos... Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 16/08/1949.
119
Ainda mais intrigante foi a manifestação de um representativo periódico
da Igreja Católica a respeito do novo filme de Charles Chaplin. Comprovando a
desastrosa recepção por parte de seus leitores e procurando desqualificar a
estréia de Monsieur Verdoux na capital, em 17 de agosto de 1949, o jornal O
Dia publicou
146
uma nota afirmando que esta película não seria uma comédia,
“apesar dos esforços violentos que faz o público para rir, com propósito e sem
ele”, e deduzindo que o filme não teria sentido algum, “sendo produto medíocre
de um talento decadente”. A obra era resumida como uma “monstruosidade”
nascida do “cérebro doentio” do seu criador. Eram as primeiras manifestações
de perfil anticomunista a serem destacadas neste capítulo, mas muito pouco
comparado ao que ainda estava por vir.
Pouco tempo depois da estréia de Monsieur Verdoux em Porto Alegre, o
Correio do Povo, demonstrando o comprometimento de sua linha editorial com
os interesses da elite política, publicou um texto de grande destaque, dotado de
um estranho sentimento que não parecia ser apenas de anticomunismo, mas
algo que nos sugeria um acentuado racismo. Intitulada
147
A Máscara e o Rosto
de Chaplin, a gigantesca nota desqualificava a pessoa de Charles Chaplin, a
quem foram atribuídos os adjetivos de “antigo palhaço nas variedades de
Londres”, “artista inglês de ancestrais hebreus”, “gênio inconseqüente que
orvalha pela humanidade a sua inspiração”, esta mais valiosa do que “sua vida
de arquimilionário e caprichoso burguês” que vive “romanticamente entre os
choques de seus amores e processos”.
O discurso desta nota é muitíssimo parecido com as tantas acusações
que o truculento senador McCarthy proferiu contra Charles Chaplin. Carlitos era
qualificado como um decadente palhaço judeu, um poeta inconseqüente que
disparava contra a sociedade idéias comunizantes e que não passaria de um
burguês multimilionário perdido entre seu gosto por mulheres jovens e pelos
processos que aos montes colecionava. Com base no questionamento central
desta pesquisa, acreditamos que esta atitude caracteriza de forma bastante
clara os reflexos do anticomunismo na crítica cinematográfica de Porto Alegre,
146
Monsieur Verdoux. O Dia, Porto Alegre, p. 05, 17/08/1949.
147
A MÁSCARA e o rosto de Chaplin. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 18/08/1949.
120
explicitando os argumentos comuns à campanha de Caça às Bruxas. Neste
mesmo sentido, é significativa a atuação de Paulo Fontoura Gastal, que lutou
coerentemente por um filme que sabia ser “subversivo”.
É interessante destacar a condição de “ancestral hebreu” atribuída à
Charles Chaplin. Em meio às representações do comunismo como fenômeno
ligado à ação de estrangeiros, era muito comum o argumento de que os judeus
atraíram contra si a principal carga dos ataques anticomunistas. Nenhum outro
grupo de imigrantes recebeu tantas acusações de envolvimento com as
doutrinas revolucionárias quanto os judeus, especialmente nos momentos em
que ações contrárias aos estrangeiros eram práticas comuns
148
. Nos
momentos em que o discurso anticomunista abandonava suas referências
genéricas aos perigos provenientes do estrangeiro, as desconfianças eram
freqüentemente associadas aos judeus. Na Guerra Fria, a ameaça estrangeira
continuou presente no imaginário anticomunista. Para Rodrigo Patto Sá Motta:
Nas décadas posteriores o anti-semitismo se enfraqueceu,
acompanhando a tendência de declínio das representações
que apontavam os imigrantes como responsáveis pelo
comunismo. À medida que os estrangeiros se assimilavam à
população brasileira, a insegurança que causavam diminuía,
assim como a percepção de que poderiam significar perigo
para o país. No caso particular dos judeus, a divulgação
mundial das atrocidades nazistas contribuiu para
desmoralizar o anti-semitismo, cuja imagem ficou associada
a Hitler e ao Holocausto. Algumas manifestações
anticomunistas explorando o vínculo judeu-comunista
continuaram a aparecer após a guerra, mas tratou-se de
casos isolados.
149
Não por acaso, a nota foi publicada na página de artes do jornal, ao lado
do espaço onde Gastal tantas vezes emitiu comentários favoráveis ao filme.
Complementando alguns aspectos interessantes do seu conteúdo, o texto
insinuava que em parte alguma o filme teria sido bem recebido, motivando a
opinião pública a “apedrejar” a obra. As acusações prosseguiam na tentativa de
associar o passado pobre e o tumultuado presente de Chaplin com o conteúdo
148
BARTEL, Carlos Eduardo. Os Emissários Sionistas e o Nacionalismo Judaico no Rio Grande do Sul
(1945-1952). Dissertação de Mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2006. p.
112.
149
MOTTA, op. cit., p. 61.
121
de seus filmes, em que o “homem milionário e desaventurado nos seus
amores”, abusaria ao afirmar que “a civilização contemporânea converte-nos a
todos em assassinos”. Cremos ser esta uma manifestação ideologicamente
situada, à qual o jornal foi apenas um interlocutor.
Incansável em sua lista de acusações, extravasando uma quase que
incontida raiva anticomunista, a nota do Correio do Povo complementou a tese
defendida ao afirmar que das dezenas de filmes que formam o ciclo de Chaplin,
Monsieur Verdoux prosseguia “na trilha de Tempos Modernos, polemizável por
suas idéias, mais fracas que a vida que exprime, como notamos presentemente
pelas suas tendências de esquerda”. E continuava, “silenciando a criminalidade
comunista contemporânea, irmã mais velha à ordem democrática” e “deixando
em paz a ordem soviética, a acalentar o mundo que está atrás da cortina de
ferro”, o personagem de Chaplin e suas ações eram comparadas à “compaixão
demoníaca de Stálin”, responsável por consumir “a liberdade de mais de sete
países” no contexto de então.
Repetindo o argumento anteriormente exposto neste trabalho, quando
discutíamos a divulgação de O Grande Ditador nas páginas da Revista do
Globo, o Correio do Povo apelava para o anticomunismo de origem religiosa,
em que o fortalecimento de ícones sobrenaturais como o demônio, comparado
às figuras de Stálin e Verdoux em A Máscara e o Rosto de Chaplin, poderia
subverter a sociedade frente ao perverso ideário soviético, lógica esta que saiu
fortalecida com a consolidação da Guerra Fria no cenário internacional e que
se fez presente nas linhas dirigidas contra Charles Chaplin. Nesta espécie de
debate, a resposta de Gastal às duras críticas sofridas por Carlitos, ainda que
superando algumas limitações, não tardaria a acontecer.
Em uma pequena nota afirmou
150
o sucesso de Monsieur Verdoux que,
mesmo com todas as dificuldades de divulgação, avançava Rumo à segunda
semana de exibição, indicando um incontestável êxito. E sua cartada definitiva,
respondendo às acusações pessoais contrárias a Chaplin, Gastal publicou
151
150
Monsieur Verdoux” é uma obra definitiva... Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 23/08/1949.
151
A PROPÓSITO de Monsieur Verdoux. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 25/08/1949.
122
uma entrevista com um dos atores do filme, Robert Lewis, intitulada Cada
Película é Como um Sapato, pois somente Charles Chaplin poderia fabricar um
“sapato completo”. Procurando sempre tomar decisões com base em uma idéia
central, certa vez Chaplin teria sido visto por Lewis caminhando a recolher
pontas de cigarros para que o cenário ficasse limpo, o que o fez concluir que
nada seria “demasiado pequeno para ele”, pois, através do ato de humildade,
estava claro que da mesma forma nada era “demasiado grande”.
Aproveitando a visita de Alberto Cavalcanti a Porto Alegre, episódio que
elevaria o nome de Paulo Fontoura Gastal ao reconhecimento nacional por sua
cultura cinematográfica, o crítico publicou a opinião indiscutível deste notório
cineasta brasileiro a respeito de Monsieur Verdoux, em que ele afirmava
152
ser
esta “a maior criação de Chaplin”, em que “expressão e crítica social atingem o
genial”. Para Cavalcanti, “criar, como ele, dispondo de um tema francês, uma
atmosfera americana, de língua e caracteres tão diferentes, é fabuloso”, enfim,
“é uma pura delícia a figura com que fez os americanos engolirem a tremenda
e honesta crítica da sociedade”. Mergulhado em um ambiente por vezes hostil,
e envolto de muita polêmica, terminava assim a trajetória de Monsieur Verdoux
na capital gaúcha.
Com esta pesquisa procurávamos recompor alguns de seus vestígios,
registrando aqui o somente algumas das histórias curiosas que envolveram
estes grandes filmes, mas a atuação de homens que transformaram a vida
cultural de Porto Alegre. Certamente parte do material analisado não pode ser
aproveitado, pois precisávamos respeitar os prazos impostos e os limites de
uma dissertação. Ainda assim, acreditamos ter alcançado o objetivo principal
deste estudo, ao demonstrar o alcance dos argumentos e teses anticomunistas
na crítica cinematográfica desta cidade. Nosso “tijolinho” no muro das ciências
provavelmente tenha sido o resgate das “militantes” trajetórias de Jacob Koutzii
e Paulo Fontoura Gastal, acrescentando elementos aentão inéditos em suas
biografias. Por fim, deixamos aberta uma janela para novos questionamentos,
conscientes de que ainda restam muitas metas a cumprir.
152
CAVALCANTI no Brasil. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 08, 29/09/1949.
123
Ilustração 23 "Cavalgada do Riso".
124
Ilustração 24 "Estupendas Matinées Infantis"
125
Ilustração 25 "Sensação na Cidade".
126
CONCLUSÃO
Nesta dissertação, considerando o contexto de radicais transformações
políticas que marcaram o período compreendido entre os anos de 1936 e 1949,
questionávamos em que medida o anticomunismo esteve presente durante a
repercussão dos filmes “comunizantes” de Charles Chaplin em Porto Alegre.
Os resultados obtidos superaram nossas expectativas iniciais, pois os indícios
pesquisados revelaram uma série de manifestações assinaladas pelo repúdio
às teses “revolucionárias” supostamente veiculadas às películas estudadas. É
importante ressaltar que o combate ao comunismo foi prática comum no Brasil
desde as primeiras manifestações operárias, assumindo contornos ideológicos
principalmente através das políticas repressivas de Getúlio Vargas. O despertar
da Guerra Fria apenas consolidou o reacionarismo das autoridades brasileiras.
Os anos marcados pela ascensão de Getúlio Vargas no cenário nacional
se iniciavam com mais da metade dos cinemas de Porto Alegre adequados ao
sistema sonoro, contando com algo em torno de vinte e duas salas localizadas
nos diferentes bairros. A relevância social e cultural do cinema prosperava,
incorporando os filmes ao cotidiano e aos costumes da população. Apareciam
na cidade os primeiros prédios de cimento armado, alguns deles abrigando
salas de cinema no andar térreo. A censura foi uma questão amplamente
debatida, pois, se antes esteve relacionada à preservação da moral e dos bons
costumes, neste período ingressava definitivamente como postura relevante
nas ações governamentais.
O fracasso da Intentona Comunista abriu caminho para amplas medidas
repressivas e para a escalada autoritária. No ano em que Tempos Modernos
estreou em Porto Alegre, o Congresso Nacional aprovou uma série de medidas
excepcionais solicitadas pelo governo. A polícia prendeu alguns deputados que
tinham apoiado a Aliança Nacional Libertadora ou simplesmente demonstrado
simpatia por ela. O parlamento não aceitou a justificativa para as prisões
como autorizou o processo contra os acusados, ao mesmo tempo em que eram
criados órgãos específicos para a repressão. O ministro da Justiça anunciou a
127
formação da Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, encarregada
de investigar a participação de funcionários públicos e outras pessoas em atos
ou crimes contra as instituições políticas e sociais.
Armado com novos dispositivos, o governo Vargas empreendeu a maior
campanha de repressão política jamais vista no Brasil. Prendeu inimigos aos
milhares, abarrotando as antigas prisões e as novas instalações construídas
para a ocasião. Os “critérios” utilizados para identificar os comunistas levaram
à reclusão homens de variadas facções de esquerda. A implacável perseguição
anticomunista permitiu ao Estado afastar do convívio social outros inimigos da
ordem como vagabundos e delinqüentes comuns, exatamente como ilustrava a
propaganda da Loteria do Estado utilizada neste trabalho. Quanto à Igreja, sua
tradicional postura de oposição ao comunismo esteve fortalecida com o êxito
das medidas repressivas protagonizadas pelo governo.
Os “defensores da ordem” não estavam exagerando totalmente quando
denunciaram a ameaça vermelha. A situação era propícia a causar uma reação
de temor sincero ao comunismo, considerado um inimigo ativo e perigoso. A
Intentona foi um presente para Getúlio Vargas, contribuindo decisivamente
para reverter a situação de instabilidade e fragilidade política vivenciada pelo
governo, possibilitando em pouco tempo a instauração de um regime ditatorial
protegido pelo compromisso anticomunista. Alguns setores sociais, alarmados
com o levante, apoiaram decididamente o presidente, facilitando a difícil tarefa
de promover a unificação das frações políticas até então ocupadas em suas
próprias disputas pelo poder.
Graças ao sucesso alcançado pelas medidas repressivas, a campanha
anticomunista esfriou consideravelmente, consolidando na mentalidade popular
uma imagem nada favorável dos revolucionários ao mesmo tempo em que o
governo era aparelhado para reprimir qualquer tentativa subversiva. Como as
organizações do partido comunista estavam desestruturadas pela ação policial,
não parecia necessário manter o mesmo nível de pressão, pois tudo indicava
que o perigo maior passara e a ordem estava salva. A ofensiva contra o
comunismo foi vigorosa a ponto de enraizar um forte sentimento anticomunista
128
na população, que foi manipulada pelos promotores do grande “blefe” de 1937,
o ainda nebuloso plano Cohen.
Por ordem do ministro da Justiça, aproximadamente trezentas pessoas
foram soltas em 1937, ano em que um novo pedido de prorrogação do estado
de guerra deixou de ser concedido pelo Congresso. Porém, Getúlio Vargas e
seu círculo de influências não se dispunham a abandonar o poder, convicção
reforçada pela ausência de uma candidatura favorável aos seus interesses nas
eleições do próximo ano. Faltava apenas um pretexto para reacender o clima
golpista, e ele surgiu com o plano Cohen, cuja verdadeira história tem até hoje
muitos aspectos obscuros. Aparentemente, o “planoera uma fantasia a ser
publicada em um boletim da Ação Integralista Brasileira, mostrando como seria
uma insurreição comunista e uma possível reação de seus membros.
Os efeitos da divulgação do plano Cohen foram imediatos. O Congresso
Nacional aprovou às pressas o estado de guerra e a suspensão das garantias
constitucionais, sendo implantado o Estado Novo sem grandes mobilizações e
com o apoio de importantes setores da sociedade. O movimento popular e os
comunistas tinham sido abatidos, restando pouca ou nenhuma capacidade de
resistência. Com o início da Segunda Guerra Mundial, as perspectivas de uma
efetiva oposição à ditadura varguista eram mínimas, resultado imediato das
espetaculares vitórias militares da Alemanha nazista, que pareciam confirmar a
supremacia do totalitarismo frente às democracias. Com a total desarticulação
do partido comunista, o país estava definitivamente nas mãos do seu ditador.
Durante o Estado Novo, a propaganda reacionária não foi tão vigorosa
como no período imediatamente posterior ao levante comunista, ou como na
fase de preparação do golpe. Mesmo assim, o anticomunismo foi um elemento
fundamental para a consolidação ideológica da ditadura varguista. A ascensão
do novo regime está relacionada com a afirmação do imaginário anticomunista
na sociedade brasileira, notadamente entre as classes médias e superiores. As
representações do comunismo como inimigo da nação e a identificação das
forças revolucionárias com as forças do mal foram enraizadas na população, a
129
ponto de poderem ser recuperadas posteriormente, quando novas conjunturas
críticas apareceriam no Horizonte político.
Acreditamos que o ideário imposto por Getúlio Vargas esteve presente
na maior e mais contundente manifestação contrária a Carlitos neste momento,
o distanciamento da Revista do Globo frente ao sucesso de Tempos Modernos
nos cinemas de Porto Alegre. Conforme a hipótese sugerida, a causa maior
deste silêncio estaria baseada em argumentos de perfil anticomunista, pois em
uma série de matérias o periódico demonstrava estar fortemente envolvido pelo
compromisso de desfazer o mito do paraíso conquistado e implementado pelos
russos revolucionários. As versões divulgadas nos meios de comunicação
sobre um suposto retrato da realidade na União Soviética eram comumente
utilizadas com o objetivo de estabelecer uma verdadeira cruzada ideológica em
torno das representações relacionadas à pátria do socialismo.
Os anticomunistas pareciam estar empenhados em combater os países
socialistas nesta guerra de propagandas, apontando neles a existência de toda
a espécie de misérias. O objetivo seria inutilizar o argumento defendido pelos
comunistas, os quais afirmavam que a utopia igualitária não era viável como
estava em prática nas terras soviéticas. Os reacionários procuravam destruir
o mito do paraíso socialista utilizando metáforas que apelavam para o império
do mal ou inferno vermelho. Na Revista do Globo, na única referência ao filme
Tempos Modernos, uma ilustração de Amanda Lucia intitulada “Charlie Chaplin
em seu novo filme”, encontramos alguns dos ícones desta ideologia perversa a
ser combatida pelo governo e seus partidários.
Em uma despretensiosa análise, identificamos uma série de símbolos
incompatíveis com o ideário de Getúlio Vargas. Primeiramente o personagem
do vagabundo, tipo execrado por não corresponder aos propósitos de um país
que anseia à industrialização. Neste sentido, lembramos que o protagonista do
filme é um funcionário que, atormentado pelo ritmo enlouquecedor e repetitivo
de suas funções, acabava por interromper a cadeia produtiva, representando
um tipo a ser excluído do projeto varguista. Em segundo lugar, a engrenagem
associada ao operário, ícone das lutas revolucionárias como atestam os mais
130
variados órgãos da imprensa comunista. Por fim, o maior pecado cometido por
Charles Chaplin, o homem que tremula a bandeira vermelha, marca registrada
do comunismo e certamente “muito subversivo” para os padrões brasileiros.
Algum tempo depois, no momento em que se intensificavam os conflitos
na Segunda Guerra Mundial, a repressão do Estado Novo pressionava alguns
setores culturais através de medidas proibitivas, incentivando a proliferação de
filmes com propaganda nacionalista nas programações dos cinemas da capital.
No despertar da Guerra Fria, os últimos anos desta década representariam o
auge das salas exibidoras em Porto Alegre. Porém, o momento privilegiado da
cultura cinematográfica não foi suficientemente capaz de impedir que Charles
Chaplin fosse vítima da censura, em que as autoridades políticas teriam
acusado elementos comunizantes em dois de seus mais importantes filmes: O
Grande Ditador e Monsieur Verdoux.
A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial forçou um
definitivo posicionamento de Getúlio Vargas. Ainda que o país tenha rompido
suas relações diplomáticas com o Eixo algum tempo depois, as indefinições
seriam superadas quando do ataque a cinco navios mercantes brasileiros por
submarinos alemães, gerando grande pressão através de manifestações por
todo o país. O alinhamento do Brasil na frente aliada se completou quando do
envio de uma força expedicionária para lutar na Europa. A volta dos “pracinhas”
e o conseqüente entusiasmo popular favoreceram a almejada democratização.
Conforme pretendíamos demonstrar, o chefe da nação foi o protagonista da
principal manifestação anticomunista sofrida por Chaplin neste período.
Mesmo considerando que nesta altura dos acontecimentos os inimigos
fossem outros, o ideário anticomunista nunca esteve ausente das prioridades
do governo, acabando por censurar a sátira de Carlitos aos ditadores. Apesar
da destacada repercussão de O Grande Ditador nas páginas da Revista do
Globo, acreditamos que o periódico em nenhum momento abandonou seus
vínculos com os interesses da elite política, ainda que tenha redirecionado suas
posturas passando a criticar os constrangedores posicionamentos de Getúlio
Vargas, apostando em um promissor alinhamento com os Estados Unidos.
131
Neste contexto, o filme atenderia a dois propósitos básicos: ludibriar a censura
através de uma pretensa neutralidade e obter lucro mediante a popularidade de
Carlitos, argumentos característicos do jornalismo informativo moderno.
Os indícios analisados corroboram nossa convicção de que, no período
correspondente à estréia internacional de O Grande Ditador, uma considerável
parcela da opinião pública gaúcha demonstrava sinais claros de insatisfação
quanto às inclinações de Vargas em relação ao Eixo. Estatísticas referentes ao
fluxo comercial entre Brasil e Alemanha comprovam uma acentuada queda nas
relações entre os dois países. A situação foi agravada substancialmente graças
ao incidente ocorrido um ano antes nas proximidades de Montevidéu, onde em
uma batalha naval os aliados atacaram o navio alemão Graf Spee, colocando o
Rio Grande do Sul na rota da guerra, alarmando a população que acompanhou
atenta à cobertura jornalística.
A comoção pública sugeria uma radical quebra de paradigmas, estando
concentrado em 1939 os primeiros passos daquilo que, pouco tempo depois,
seria o definitivo rompimento nas relações comerciais e diplomáticas do Brasil
com a Alemanha nazista. A covardia dos ataques protagonizados pelo Graf
Spee em águas americanas e as marcas da guerra em terras tão próximas ao
Rio Grande do Sul, proporcionaram não um sentimento de insegurança nas
autoridades políticas como o início de uma “simpatia” às causas aliadas. Em
meio a uma onda de protestos decorrentes do andamento da guerra, os frutos
desta semente plantada no final dos anos 1930 foram colhidos no momento em
que O Grande Ditador foi exibido pela primeira vez em Porto Alegre.
Como constatamos, no decorrer de 1942 era intensificada a campanha
dos submarinos alemães, sendo torpedeados dois dos mais importantes navios
brasileiros durante a exibição de O Grande Ditador na cidade, provocando uma
profunda indignação popular por todo Brasil. A “simpatia” às causas dos aliados
atingiria seu auge com a depredação dos cinemas Vera Cruz, Capitólio e
Ipiranga. Os estabelecimentos pertenciam a uma família identificada com o
Eixo e eram famosos por exibirem películas originárias destes países. Frente
às manifestações, o governo declarou guerra às potências fascistas em agosto
132
do mesmo ano. Retomando seu normal funcionamento, o cinema Vera Cruz
convidou os cidadãos de Porto Alegre para uma nova exibição do filme.
Procurando demonstrar a radical alteração na estratégia adotada pela
Revista do Globo ao relatar as notícias referentes a Charles Chaplin no início
dos anos 1940, acrescentávamos um elemento importante à discussão, um
sugestivo artigo em que o então líder soviético era descrito como um homem
frio e calculista, alguém que, à sombra de movimentos lentos e cautelosos, não
revelava um sujeito diabólico e seus obscuros objetivos. Ressaltávamos que o
demônio esteve presente desde sempre no imaginário anticomunista. No
momento em que o comunismo passou a ser percebido como um perigo sério
para a Igreja, os religiosos adotaram com freqüência o recurso à demonização.
Porém, como demonstrava o exemplo utilizado, a associação entre comunismo
e demônio não foi uma característica exclusiva do discurso católico.
Assim, é significativo constatar que uma mesma edição deste periódico
contemplou em páginas adjacentes a repulsa aos ditadores, tão bem expressa
por Chaplin em seu filme, e o mais genuíno anticomunismo, no qual forças
sobrenaturais poderiam macular a moral cristã e os valores ocidentais. No final
da Segunda Guerra Mundial, um clima de euforia democrática tomaria conta
dos cidadãos brasileiros. Na esteira de suas contradições, a ditadura varguista
chegaria ao fim, dando início ao renascimento do partido comunista, em que
ele atrairia a confiança de muitos intelectuais do Rio Grande do Sul, interesse
fortalecido pelos triunfos soviéticos no decorrer do conflito. Porém, com a
posse do novo governo, o país seria novamente contaminado pelo vírus da
intolerância anticomunista.
No ano da estréia mundial de Monsieur Verdoux, o anúncio da Doutrina
Truman foi um indício claro de que os americanos estavam dispostos a conter
toda e qualquer influência do comunismo internacional, intervindo militarmente
para proteger os governos aliados de qualquer ameaça. Naquele mesmo ano,
foi posto em prática o Plano Marshall, um imponente projeto de recuperação
das economias enfraquecidas pelos esforços de guerra, alinhando o mundo
capitalista à hegemonia dos Estados Unidos. O Congresso sancionou a Lei de
133
Segurança Nacional e a formação do Departamento de Defesa, que passaria a
coordenar os esforços nacionais para o conflito bipolar, constituindo os pilares
necessários à elaboração da Doutrina de Segurança Nacional.
Em sintonia com sua fúria anticomunista, o Poder Executivo obrigou todo
o funcionalismo público a prestar um juramento de fidelidade às instituições
nacionais. Truman indicou os arquivos do Comitê da Câmara Contra Atividades
Antiamericanas como fonte oficial de provas contra os servidores. Pouco tempo
depois, foram convocados a depor os chamados Dez de Hollywood. Grande
parte dos profissionais investigados tiveram suas carreiras arruinadas ou foram
condenados a penas que variavam de seis a doze meses de prisão. O senador
Joseph McCarthy faria suas acusações iniciais pouco tempo depois, sendo
uma peça central no tabuleiro da medieval inquisição do macartismo. Entre as
vítimas do processo de Caça às Bruxas estava o personagem mais destacado
neste estudo, Charles Chaplin.
O alinhamento brasileiro aos interesses estadunidenses foi formalizado
em 1947, onde no Rio de Janeiro nascia um pacto que enlaçaria militarmente
todas as nações deste continente: o Tratado Interamericano de Assistência
Recíproca. Os Estados Unidos, além de exportar para os seus vizinhos um
anticomunismo cada vez mais preocupante, esperavam fixar as bases de uma
dependência militar, abrindo um amplo mercado para exportar seus estoques
de armamento convencional. Por fim, a criação da Organização dos Estados
Americanos regulamentaria a assim chamada Pax Americana, comprovando a
insignificância de rivalidades locais frente à ameaça maior, ou seja, a expansão
da União Soviética e a presença dos Partidos Comunistas nestes países.
A campanha de Caça às Bruxas inevitavelmente esteve refletida durante
a repercussão de Monsieur Verdoux em Porto Alegre. Pouco tempo depois de
sua estréia, o Correio do Povo publicou um texto dotado de um estranho
sentimento que não parecia ser apenas de anticomunismo, mas algo que nos
sugeriu um acentuado racismo. O discurso desta nota foi muitíssimo parecido
com as acusações que McCarthy proferia contra Charles Chaplin, em que o
ator era descrito como um decadente palhaço judeu, um poeta inconseqüente
134
que disparava contra a sociedade idéias subversivas e que não passaria de um
burguês perdido entre sua decepcionante vida amorosa e os muitos processos
que colecionava em sua carreira.
É interessante destacar a condição de “ancestral hebreu” atribuída a
Charles Chaplin. Em meio às representações do comunismo como fenômeno
ligado à ação de estrangeiros, era muito comum o argumento de que os judeus
atraíram contra si a principal carga dos ataques anticomunistas. Nenhum outro
grupo de imigrantes recebeu tantas acusações de envolvimento com as
doutrinas revolucionárias quanto os judeus, especialmente nos momentos em
que ações contrárias aos estrangeiros eram práticas comuns. Nos momentos
em que o discurso anticomunista abandonava suas referências genéricas aos
perigos provenientes do estrangeiro, as desconfianças eram freqüentemente
associadas aos judeus. Como demonstramos, durante a Guerra Fria, a ameaça
estrangeira continuava presente no imaginário anticomunista.
Aproveitando o argumento anteriormente exposto, quando discutíamos a
divulgação da tira chapliniana ao nazismo nas ginas da Revista do Globo,
o tradicional jornal Correio do Povo apelou para o anticomunismo religioso ao
repercutir Monsieur Verdoux, argumentando que o fortalecimento de ícones
sobrenaturais como o demônio, comparado às personalidades de Stálin e
Chaplin no artigo que originou esta dissertação, poderia subverter a sociedade
frente ideário soviético, lógica que saia fortalecida após a consolidação do
conflito bipolar. Enfim, com este trabalho procurávamos demonstrar o alcance
dos argumentos anticomunistas conforme a repercussão da filmografia política
de Carlitos em Porto Alegre, contribuindo de forma efetiva ao resgatar aspectos
pouco conhecidos das trajetórias de Jacob Koutzii e Paulo Fontoura Gastal.
135
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