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CLAUDIO FERRAZ OLIVER
AMIGOS NO CAMINHO:
O EDUCADOR E A EDUCADORA NAS OBRAS DE LEO
TOLSTOI, IVAN ILLICH E PAULO FREIRE.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós-
graduação em Educação da
Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em
Educação sob Orientação da Profa.
Dra. Evelise Maria Labatut Portilho
PUC/PR
CURITIBA
2008
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2
Oliver, Claudio Ferraz
O48a Amigos no caminho : o educador e a educadora nas obras de Leo Tolstoi,
2008 Ivan Illich e Paulo Freire / Cláudio Ferraz Oliver ; orientadora, Evelise Maria
Labatut Portilho. -- 2008.
215 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Curitiba, 2008
Bibliografia: f. 200-215
1. Educadores. 2. Aprendizagem. 3. Tolstoi, Leão, Conde, 1828-1910.
4. Freire, Paulo, 1921-1997. 5. Illich, Ivan, 1926. I. Portilho, Evelise Maria
Labatut. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-
Graduação em Educação. III. Título.
CDD 20. ed. – 370.92
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3
Dedicatória
Às crianças!
Elas nos mostram o caminho, quando fazem amigos sem perguntas
Elas confrontam a arrogância da nossa certeza, com muitas perguntas
Elas subvertem com sua irreverência e observações feitas a qualquer hora
Elas nos chamam a ter coragem, construindo mundos, casas e países que até
então não existiam, e neles vivem o inédito, acreditando no impossível
Elas, somente elas, entrarão.
À Nice!
Que me estimulou a este caminho, com sua sabedoria iletrada,
que demonstrou, na prática, que se educa pela amizade e que, de súbito, nos
deixou, tão cedo e cheia de sonhos
À minha filha Giovana!
Que me faz ansiar pela liberdade, me faz sonhar com outro mundo possível e
sempre me diz o que faremos quando chegarmos lá.
À minha esposa Katia!
Que escolheu seguir até aqui comigo, apesar de mim.
Aos amigos!
Os muitos amigos, e aos muito amigos, que formam o espaço sagrado onde
me humanizo em nossa comunidade de fé e de serviço: A Casa da Videira.
Na esperança da mudança,
Até que seja dia.
Soli Deo Gloria.
4
Agradecimentos
Esta pesquisa foi possível porque um dia acreditaram em mim.
Meus pais, minha esposa, meus amigos, ou pelo menos alguns deles, sempre me
deram seu voto, mas até ai seria destas deferências imerecidas que fazem parte da
vida e da graça que dela faz parte. A todos vocês, muito obrigado.
Mas para que fosse possível o que aqui se expressa, alguém realmente precisava
correr o risco. E foram tantos:
Obrigado Professora Evelise, sua vida demonstra na prática que ser libertária é mais
que discurso e que pelos frutos se conhece a árvore. Sua coerência, amizade sincera
e humildade serão exemplos até o fim de minha vida.
Obrigado Professor Tescarolo, por correr junto com Evelise o risco de me abrir a
porta da academia.
Obrigado Professora Pura Lúcia, competente mestra, exemplo de rigor e paixão, que
em sua firmeza de caráter e de princípios sempre demonstrou que tudo isso se faz
sem perder a ternura jamais.
Obrigado Professor Peri, por ser amigo e deixar-me fazer parte de sua vida, por ser o
melhor contador de histórias que jamais conheci, por ser um misto raro de bom humor
e rigor acadêmico e por vibrar jovialmente e fazer vibrar meu coração.
Obrigado Norbert, pelos seus conselhos e pelo exemplo que é para mim. Saber que
temos algo de eterno em comum é meu maior consolo. É uma honra poder chamá-lo
de amigo mesmo sendo tudo que você é academicamente.
Obrigado Rene Seifert Junior, meu amigo, sem seu empenho em conseguir fontes
difíceis na Europa, enviar artigos, discutir horas a fio e passar tantas madrugadas
sonhando, o que aqui se escreveu seria impossível, mesmo com toda a força ao meu
lado. Obrigado Gabi Volpe, suas leituras, sugestões, perguntas e torcida foram
cruciais em muitos momentos desta pesquisa. Sua paciência em ler os originais foi um
estímulo a parte. Obrigado Dago, por seu ouvido incansável, seu companheirismo fiel
e sua dedicação. Obrigado Eduardo, Lucas, Nina, Luiz, René, Amanda, Mireli,
Erlon, Yuka, Homero, Elza e Marcelo, educadores da Casa da Videira,
companheiros de aventura. Obrigado a toda a Comunidade de fé do Caminho, que
apoiou e financiou parte desta pesquisa e sem o que tudo teria sido impossível. Sua
amizade é uma graça especialmente imerecida. Obrigado a Deus, que admitiu este
anarquista como parte menor, e inquieta, da comunidade de homens e mulheres que o
servem, muitos sem perceber que o fazem. A Ele e a seu Filho, toda a glória.
5
Todo cambia
(Julio Numhauser*)
Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo
Cambia el clima con los años
Cambia el pastor su rebaño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño
Cambia el más fino brillante
De mano en mano su brillo
Cambia el nido el pajarillo
Cambia el sentir un amante
Cambia el rumbo el caminante
Aunque esto le cause daño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño
Cambia, todo cambia
Cambia, todo cambia
Cambia el sol en su carrera
Cuando la noche subsiste
Cambia la planta y se viste
De verde en la primavera
Cambia el pelaje la fiera
Cambia el cabello el anciano
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño
Pero no cambia mi amor
Por mas lejos que me encuentre
Ni el recuerdo ni el dolor
De mi tierra y de mi gente
Y lo que cambió ayer
Tendrá que cambiar mañana
Así como cambio yo
En esta tierra lejana.
*Popularmente cantada por Mercedes Sosa
Tudo Muda
(Julio Numhauser)
Muda o superficial
muda também o profundo
Muda o modo de pensar
Muda tudo neste mundo
Muda o clima com os anos
Muda o pastor seu rebanho
E assim como tudo muda
Que eu mude não é estranho
Muda o mais fino brilhante
De mão em mão seu brilho
Muda o ninho o passarinho
Muda o sentir um amante
Muda o rumo o caminhante
Ainda que isto lhe cause dano
E assim como tudo muda
Que eu mude não é estranho
Muda, tudo muda
Muda, tudo muda
Muda o sol em seu trajeto
Quando a noite subsiste
Muda a planta e se veste
De verde na primavera
Muda de pêlo a fera
Muda de cabelo o ancião
E assim como tudo muda
Que eu mude não é estranho
Mas não muda meu amor
Por mais longe que me encontre
Nem a lembrança nem a dor
De minha terra e de minha gente
E o que mudou ontem
Terá que mudar amanhã
Assim como mudo eu
Nesta terra distante.
*Popularmente cantada por Mercedes Sosa
6
RESUMO
Esta dissertação apresenta um estudo sobre o perfil do educador e da
educadora que emerge das obras de Leo Tolstoi (1937, 1988, 2000, 2002,
2005), Ivan Illich (1971, 1973a, 1973b, 1975, 1979a, 1979b, 1980, 1988, 1990,
1995, 1996, 1999, 2000, 2002) e Paulo Freire (1972, 1974, 1975, 1980, 1985,
1987, 1989, 1997a, 1979b, 1979c, 2000, 2001, 2005). A pesquisa tem como
objetivo descrever e analisar tal perfil em relação às práticas de formação
humana que reproduzem concepções de mundo e relacionamento
subordinadas ao modo de produção da sociedade industrial e tecnológica. O
trabalho busca elementos que sirvam de subsídios para a problematização e
investigação sobre a prática docente e desenvolve-se a partir de uma
abordagem histórico-crítica que aponta para as possibilidades e desafios nas
relações de aprendizagem, principalmente quando baseadas nos vínculos de
amizade e de mútua contribuição, no contexto das relações comunitárias, não
restritas ao ambiente escolar, em uma perspectiva libertária da Pedagogia.
Além das obras dos autores citados, a reflexão lança mão dos escritos de
autores como Celso Furtado (1974), Chet Bowers (2004, 2005), David Cayley
(1992), Felix Garcia Moriyón (1989), Francisco Ferrer y Guardia (1960), George
Eldon Ladd (1959, 1974, 1993), Gustavo Esteva (1998, 2004), John Elias
(1976), Karl Marx (1969, 1975, 1999, 2003), Mauricio Tragtenberg (1987),
Michel Foucault (2001, 2005), Mikail Bakunin (1976, 2000, 2001), Patrícia
Inman (1999), Pierre Joseph Proudhon (2001), Piotr Kropotkin (1946, 1954),
Robert Chappel (1978), Semion Filipovich Yegorov (1988,1994) e Zigmunt
Bauman (2003). Além destes, dezenas de outros autores contribuem para
desvelar concepções de aprendizagem baseadas nos vínculos, na igualdade,
na liberdade e na comunidade, destacando as categorias epistemológicas,
presentes nas obras de Tolstoi, Illich e Freire, descritas a partir dos seus
significados nas culturas e idiomas que fazem parte da matriz formadora do
Ocidente. A análise permite apontar para outros modos de pensar a Educação
e outras perspectivas menos técnicas, autoritárias e curriculares e mais
políticas, culturais e comunitárias.
Palavras-chave: Aprendizagem, Educação não-escolar, Pedagogia Libertária,
Comunidade, Amizade.
7
ABSTRACT
This dissertation presents a study about the educator’s profile that emerges
from the works of Leo Tolstoy (1937, 1988, 2000, 2002, 2005), Ivan Illich (1971,
1973a, 1973b, 1975, 1979a, 1979b, 1980, 1988, 1990, 1995, 1996, 1999, 2000,
2002) and Paulo Freire (1972, 1974, 1975, 1980, 1985, 1987, 1989, 1997a,
1979b, 1979c, 2000, 2001, 2005). The objective of the research is to describe
and analyze such profiles regarding the practices of human formation that
reproduce world perceptions and relationships subordinated to the industrial
and technological mode of production in our society. The written work seeks
elements that can serve as subsidies for problematization and inquiry on the
educational practices. It is developed from a historical-critical approach that
points out to the possibilities and challenges in learning relationships, mainly
when based on bonds of friendship and mutual contribution, in the context of
the community, beyond the limits of schooling, in a libertarian perspective of
Education. Beyond the works of the already quoted authors, the research used,
among others, the works of Celso Furtado (1974), Chet Bowers (2004, 2005),
David Cayley (1992), Felix Garcia Moriyón (1989), Francisco Ferrer y Guardia
(1960), George Eldon Ladd (1959, 1974, 1993), Gustavo Esteva (1998, 2004),
John Elias (1976), Karl Marx (1969, 1975, 1999, 2003), Mauricio Tragtenberg
(1987), Michel Foucault (2001, 2005), Mikhail Bakunin (2001), Piotr Kropotkin
(1946, 1954), Robert Chappell (1978), Semion Filipovich Yegorov (1988.1994)
and Zigmunt Bauman (2003). In addition to these, dozens of other authors
contribute to unveil conceptions of learning, based on natural bonds, equality,
liberty and in the community, calling attention to the epistemological categories,
present in the works of Tolstoy, Illich and Freire, described from their meanings
in the cultures and languages that are part of the origins of the western mindset
to contemporary thinking. The analysis allows pointing out to other ways of
thinking Education, using perspectives that are less technical, authoritarian and
curricular and more political, cultural and communal.
Keywords: Learning, Non-formal Education, Libertarian Education, Community,
Friendship.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………. 10
CAPÍTULO 1 …………………………………………………………………… 13
1.1 DOS FALSOS DILEMAS À BUSCA DE ALTERNATIVAS ……….…... 13
1.2 OUTROS CAMINHOS NA HISTÓRIA ………………………………….. 15
1.3 O TRIÁLOGO ..……………………………………………………………. 22
1.4 AS PEDAGOGIAS DESTA PESQUISA .………………………………. 25
1.5 A COMPLEXIDADE …………………………………………………...... 26
1.6 META HODOS: O CAMINHO SEGUIDO ……………………………… 28
1.7 MARCO TEÓRICO ……………………………………………………….. 32
CAPÍTULO 2 ………………………………………………………………. …. 34
2.1 CATEGORIAS EPISTEMOLÓGICAS .………………………………..... 34
2.1.1 Liberdade ………………………………………………………….......... 38
2.1.2 Propriedade ……………………………………………………….......... 42
2.1.3 Autoridade ………………………………………………………............ 45
2.1.4 Comunidade ……………………………………………………............. 49
2.1.5 O Ser …………………………………………………………………….. 57
2.1.6 Autonomia ………………………………………………………………. 65
2.1.7 Utopia ……………………………………………………………............ 72
2.1.8 Amor ……………………………………………………………….......... 78
2.1.9 Verdade …………………………………………………………………. 82
2.2 SÍNTESE ………………………………………………………………..... 90
CAPÍTULO 3 ………………………………………………………………….. 91
3.1 RIOS QUE SE CRUZAM ………………………………………….......... 91
3.1.1 Precursores do pensamento crítico e libertário ……………………. 92
3.2 TOLSTOI… PEDAGOGO??? …………………………………............ 102
3.2.1 O educador em Tolstoi ……………………………………………….. 110
3.3 UM CERTO IVAN ILLICH ……………………………………….......... 121
3.3.1 Um crítico da sociedade ……………………………………………… 122
9
3.3.2 Illich, origens …………………………………………………………… 127
3.3.3 O pensamento Illichiano ……………………………………………… 130
3.3.4 Educador … em Illich? ……………………………………………….. 132
3.4 FREIRE, ADVOGADO DO POSSÍVEL ……………………................ 152
3.4.1 Conscientização ……………………………………………………….. 162
3.4.2 O educador em Paulo Freire …………………………………………. 169
CAPÍTULO 4 ………………………………………………………………….. 183
4.1 O ENCONTRO DE TOLSTOI, ILLICH E FREIRE ……..................... 183
4.2 A VIABILIDADE DO INÉDITO …………………………………............ 183
4.3 CATEGORIAS E POSICIONAMENTOS …………………............... 187
4.4 O EDUCADOR E A EDUCADORA …………………………............. 193
CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………………………………………. 197
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ………………………………………… 200
10
INTRODUÇÃO
NA ENCRUZILHADA DO FUTURO
Vivemos em um século marcado pelo falso dualismo entre
posições aparentemente antagônicas ocorrendo virtualmente em todas as
áreas do conhecimento. As oposições entre Capitalismo e Socialismo,
Estatismo e Liberalismo, Ciência e Fé, características de discussões do século
passado, servem como exemplo para ilustrar a insistência em se pensar
dualisticamente quanto a opções teóricas que surjam para fazer frente aos
problemas com que a humanidade se depara.
A crise decorrente deste dualismo chega atualmente ao
paroxismo em escala global, expresso em crises ambientais, de segurança, de
abastecimento, de saúde, de valores, de ética, da educação. O momento
histórico presente é o mais recente capítulo de um processo que tem suas
raízes na Era das Descobertas, da Revolução Industrial e do Iluminismo. Um
momento que faz parte do que poderia ser chamado de “estória”
1
do Progresso
e do Desenvolvimento. Uma “estória” que proclama, com toda a certeza da fé
religiosa, que a civilização florescerá, a paz reinará e que todos, um dia,
entrarão numa era de prosperidade, se permitirmos à razão humana a livre
investigação do mundo por meio do Método Científico e a transformação deste
mesmo mundo por meio do poder tecnológico que nos abrirá a porta às mais
altas aspirações do espírito humano. Oriunda desta “estória”, a crença no
inquestionável progresso
2
da humanidade autônoma se tornou a fé subjacente,
ou dizendo melhor, a religião professada pela cultura ocidental.
Conforme afirma Immanuel Wallerstein (2001), esta crise -
fundamentalmente uma crise do sistema capitalista, de seu modo de produção
e de sua forma de organização social - é uma crise final, de futuro incerto em
função do caos que dela se origina e que, como todo caos, apresenta as
1
Segundo o dicionário Houaiss: Etimologicamente do inglês story (sXIII-XV) 'narrativa em
prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou o leitor', do
anglo-francês estorie, do francês antigo estoire e, este, do latim historìa,ae; f.divg. de história
adotada pelo conde de Sabugosa com o sentido de narrativa de ficção, segundo informa J.A.
Carvalho em seu livro Discurso & Narração, Vitória, 1995, p. 9-11; f.hist. sXIV estorya
2
Este termo, mesmo servindo ao citar autores da pesquisa, em nenhum momento recebe aqui
a concordância com o aspecto de algo que vai do inferior ao superior, do posterior como melhor
que o anterior, do novo como melhor que o antigo. Minha visão ao usar este termo sempre será
crítica e questionadora.
11
possibilidades de uma encruzilhada como saída, e cujo enfrentamento, e o
conseqüente sucesso ou fracasso, dependerá das escolhas e das alternativas
oriundas de um processo de tentativa e erro, além de, em grande parte, da
criatividade humana, sendo que “até lá vamos ter um período de muita
incerteza, desordem e, principalmente, mudança” (OPSCHPE, 1999, p.5).
Negar o tertius
3
, a alternativa e a criatividade, indica a inclinação à lógica
formal, simplifica as questões e cria falsos impasses que paralisam, geram a
sensação de impotência ou, na melhor das hipóteses, criam a expectativa de
que soluções e prescrições predeterminadas solucionem dilemas que talvez,
na verdade, nem merecessem o tempo e energia a eles dedicados.
Com estas percepções em mente, escrevi esta dissertação
elaborando uma discussão e análise a partir da obra de três autores que
apresentam conexões entre si e com princípios da Pedagogia Libertária,
buscando investigar e desvelar o perfil de educador e educadora que emerge
de suas obras e destas intersecções, e ao fim sintetizando uma descrição
teórica que seja expressão da prática por eles experimentada e que possa
servir como fonte para o questionamento de práticas atuais, para a reflexão e a
produção de novas sínteses que auxiliem no enfrentamento do desafio que é
facilitar o processo – às vezes limitado à Educação, porém em minha
percepção transcendente à mesma - que permite a emergência de seres
humanos plenos e em pleno exercício de seu potencial de humanização.
Na pesquisa lancei mão de uma revisão histórica e literária de
suas obras, biografias e propostas e de uma arqueologia de conceitos comuns,
desde sua origem judaico-cristã e latina, na Antigüidade e na formação do
ocidente a partir da idade média, bem como nas propostas iluministas e nas
antíteses referenciadas no pensamento libertário, em especial da Pedagogia
Libertária aqui entendida como estilo de vida, utilizando uma abordagem
histórico-crítica.
O trabalho está dividido em 4 capítulos que descreverão o
caminho que inicia por minha percepção atual do cenário que apresenta a
Educação como panacéia de todos os males, minha experiência pessoal como
educador popular, a análise de conceitos comuns aos autores pesquisados e
3
O terceiro (numa disputa que inicialmente era travada entre dois) (HOUAISS, 2002).
12
de suas obras, as sínteses possíveis expressas em um perfil de educador,
terminando com o posicionamento pessoal diante das conclusões levantadas e
de perspectivas futuras.
O capítulo 1 analisa os dilemas da atualidade, introduz noções
de Pedagogia Libertária, e revê o trajeto das utopias, do século XVI às
propostas libertárias, introduz ao pensamento de Tolstoi, Illich e Freire e
estabelece suas relações com a Pedagogia Libertária, com a complexidade e
com o marco teórico fundado em Proudhon, Bakunin e Kropotkin.
O capítulo 2 analisa nove categorias epistemológicas presentes
nas obras pesquisadas: liberdade, propriedade, autoridade, comunidade, o Ser,
autonomia, utopia, amor e Verdade, tomando como ponto de partida o
pensamento judaico cristão, a cosmovisão greco-romana, o pensamento
medieval, o Iluminismo e as referências libertárias e críticas ao pensamento
dominante.
O capítulo 3, após algumas reflexões sobre os pensamentos
crítico e libertário, revê a obra e propostas de alguns precursores e
representantes do pensamento pedagógico libertário e parte para a descrição e
análise das obras de Tolstoi, Illich e Freire, buscando, na obra de cada autor,
perceber a descrição do perfil de educador e educadora que deles emerge.
No capítulo 4 me propus a estabelecer conceitos comuns e
buscar a relevância do pensamento dos três autores para a Pedagogia e seus
desafios hoje, revisitando as categorias, o perfil do educador, tecendo
considerações pessoais e apontando para a continuidade da pesquisa.
A intenção não foi cobrir hiatos ou sugerir idealizações, mas
sim servir como recurso de discussão para as relações entre teoria e prática
que possam subsidiar, na formação docente, a reflexão, o prazer das
descobertas e das trocas, dos conflitos e das sínteses e estimular a
possibilidade da alegria, da liberdade e da plenitude da experiência humana
como expressão de um inédito viável.
13
CAPÍTULO 1
1.1 DOS FALSOS DILEMAS À BUSCA DE ALTERNATIVAS
A Educação é um campo do conhecimento que não está livre
da citada polarização e que pode ser expressa por fórmulas duais tais como
“escola ou ignorância” ou “educação ou subdesenvolvimento”. Outro dilema
freqüente, e mais próximo do dia-a-dia de todos, está relacionado ao processo
pelo qual se forma uma pessoa. A tarefa pertence à escola ou à família
nuclear? Qual o melhor método de ensino, abordagens mais construtivistas, ou
mais diretivas? Que Pedagogia é a melhor? Tais perguntas deixam de olhar
adiante e de se perguntar algumas questões essenciais: Para quê? Para
quem? Por interesse de quem? Com que finalidade? Baseado em quais
pressuposições? Quem ganha? Quem perde? Será?
O projeto humano baseado no mito do progresso inevitável,
chamado por Celso Furtado de “Mito do Desenvolvimento” (1974), demandou
um fenômeno relativamente recente na história da humanidade: a
escolarização compulsória em massa (ILLICH, 1971) com a finalidade de
produzir sujeitos obedientes, baseados em uma instituição própria do mito do
progresso moderno: a escola, preocupada com a quantificação, a testagem, a
padronização, que acaba por gerar passividade, docilidade e consumo,
resultando em populações apáticas, aturdidas, estupefatas, desinteressadas,
desempoderadas e desmotivadas, de consumidores instintivos, de
trabalhadores ordeiros, e de uma classe média elegante, trabalhadora
incansável e de alto consumo (WALSH; KEESMAAT, 2004, p.216).
A educação formal apareceu inicialmente como inequívoca
contribuição ao processo de constituição da condição humana, com a
finalidade de ampliar tanto o acesso quanto a extensão do conhecimento
disponível, no entanto, passando pelo fenômeno de contraprodutividade
paradoxal, que Ivan Illich aponta como inerente aos processos do modo de
organização em consonância com os critérios do pensamento científico dos
últimos 200 anos, passou a gerar resultados duvidosos
14
A princípio, um novo conhecimento é aplicado para a solução de um
problema claramente estabelecido e os critérios científicos permitem medir
os benefícios obtidos em eficiência. Mas, em seguida, o progresso obtido se
converte em meio para explorar o conjunto social, para colocá-lo a serviço
de valores que são determinados e constantemente revisados por um
elemento da sociedade, por uma de suas autocertificadas elites
profissionais especializadas (ILLICH,1973, p.10).
A formação do ser humano por meio das múltiplas interações,
da cooperação e da exposição a fatores diversos - atualmente confundida e
reduzida à tarefa de educar e instruir, e circunscrita ao binômio família-escola
4
-
foi o maior diferencial no salto qualitativo da hominização para a humanização.
Esta formação tem sido, desde a pré-história, uma tarefa complexa, de
transmissão e geração de conhecimentos, comportamentos, cultura, valores e
princípios, realizada entre gerações que se sucedem - e não necessariamente
se superam - e tem seu sucesso ou fracasso intimamente relacionado à
eficácia e eficiência com que é realizada. Alguns fatores como comunidade,
convivência, familiaridade e tradições têm feito parte deste processo ao longo
da história e têm sido determinantes de tal eficiência e eficácia.
Com a modernidade e a diminuição das possibilidades de
comunidade (BAUMAN, 2003), o império do individualismo e a redução - e em
alguns casos ausência - de espaços de convivência, a tarefa de formar
5
tem
sido posta em risco e em situações de crise e impasse. Paradoxalmente este
cenário de crise se torna presente no momento em que a humanidade atinge a
maior quantidade de informações acumuladas e a maior capacidade já
experimentada de torná-las acessíveis e disponíveis em toda a história.
Para a execução deste projeto - a proposta de uma sociedade
infectada por aquilo que Illich chama de “mania de crescimento” (ILLICH,
1973a, p.11) - a educação para o pensamento científico tem sido construída
sobre mais e mais especialização, formação e pesquisa, no caso traduzidas em
mais escolas e mais professores, substituindo papéis antes atribuídos à família
e à comunidade e por serviços profissionais especializados cada vez mais
4
Com a agravante de ser sobre a segunda parte do binômio que se joga a maior
responsabilidade e se lançam as maiores expectativas na tentativa de transformar a educação
formal na grande panacéia das mazelas da sociedade.
5
Nesta dissertação utilizo este termo como a melhor aproximação, ainda que como tradução
empobrecida, da junção dos conceitos de Paidéia, no grego, bildung, no alemão e nurturance
em inglês.
15
demandados, tanto quanto aos conteúdos que devem possuir, quanto a
habilidades, competências, tecnicalidades
6
, capacidades e atribuições.
As estruturas criadas com a finalidade de controle e ordenação
da sociedade e de suas possíveis interações começam a se mostrar
ineficientes (SANTOS, 2000). O desconforto causado por esta inadequação
tem provocado reações e a busca de alternativas, ora reformadoras, ora
revolucionárias, para o enfrentamento de crises contínuas e permanentes,
embora, na verdade, a maior parte dos atores deste cenário aceite esta
realidade e inadequação como fato inelutável e diante do qual o resultado mais
freqüente seja a apatia.
1.2 OUTROS CAMINHOS NA HISTÓRIA
A intangibilidade das aspirações humanas, uma inquietação
oriunda de um sentimento quase atávico de anormalidade diante de tais
circunstâncias e o desejo de liberdade calcado na possibilidade de que outro
modo e mundo talvez sejam possíveis, tem levado pensadores a buscar
alternativas ao longo da história: da Utopia de Thomas Morus, já no séc. XVI
(1516), ao questionamento do modo de produção por Marx (2003); das
comunas independentes aqui e ali, à contracultura dos anos 60 da segunda
metade do séc. XX. Em meio a estas correntes de pensamento surgem as
propostas libertárias, que neste trabalho se encontrarão referenciadas pelo
pensamento de Proudhon, Bakunin e Kropotkin.
A partir destes autores se pode construir conceitos que definem
liberdade, justiça, emancipação, individualidade, humanidade e trabalho de
forma alternativa e questionadora àquela postulada pelo modo de produção e
6
Segundo o dicionário Houaiss, forma não preferencial de uso do termo tecnicidade, do inglês
thecnicality, freqüente no Direito e que se define pelo “sentido especializado dentro do jargão
próprio de um ofício, uma arte, indústria ou ciência”, e que aqui se refere aos detalhes e apego
a formalidades que usualmente impedem o pensamento dissonante e mantêm sob o controle
de uma determinada classe ou profissão - no caso a de educador profissional - o exercício de
uma função, restringindo a possibilidade de interpretações e influências e, em última análise,
mantendo o poder de classe, traduzido pelas restrições que se impõem ao exercício da função,
seja pela ausência de uma licença, ou por ter atingido o sujeito uma suposta idade limite ou por
escapar à restrição de uma portaria ou norma, sendo os detalhes técnicos utilizados como
justificativas legais do impedimento. Nesse exato sentido o termo é aqui usado, como na
tradução da citação atribuída a Ésquilo (525 - 456 A.C) “O errado não deve vencer por
tecnicalidades”.
16
organização social capitalista. Atualmente, a substituição por modelos
acêntricos e libertários parece ganhar cada dia mais relevância como
alternativa à crise (DOLGOFF, 2006).
É justo, no entanto, assinalar desde o início que esta forma de
abordar a realidade, desenvolvida pelos autores referenciais do pensamento
libertário e por seus sucessores, assim como a maioria de seus
contemporâneos, se enquadra na mesma lógica de império da razão, do
método científico, de concepções de progresso e de emancipação humana
antropocêntrica no curso da herança iluminista. Esta, talvez possa ter sido sua
maior fragilidade.
Da observação destes aspectos, ainda que inicialmente
provenientes do senso comum, surgiu o tema de minha pesquisa. O interesse
por experiências educacionais vividas fora da escola, baseadas no pensamento
crítico e libertário, minha própria trajetória pessoal “autodidata” - com as
ressalvas de que este termo traduz muito mais a autonomia na iniciativa da
busca do saber do que uma capacidade supostamente inata e individual de
aprender sozinho, e de que creio, como Paulo Freire, que “Ninguém educa
ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se
educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987 - p.69), vinte
anos de experiência comunitária em serviços sociais, trabalho em redes de
projetos sociais, a prática da observação, da reflexão e da convivência com as
crianças e educadores de um projeto educacional não-formal baseado na
convivencialidade e na ludicidade, a percepção da realidade de crianças
espremidas entre famílias nucleares com a tarefa de educar e escolas
depositárias de inúmeras expectativas, foram alguns dos fatores que
motivaram a pesquisa.
Minha reflexão teórica sobre educação se iniciou com o estudo
dos autores da escola-nova, de natureza reformista, que propuseram uma
Educação com as crianças no centro da atividade da escola. No entanto, sua
ênfase no indivíduo particular e isolado e na liberdade Rousseauniana
(ALDRED, 1947, p.VII) mostrou-se insuficiente para responder às inquietações
e perguntas que iam surgindo e que indicavam um caminho para além das
possibilidades do indivíduo, do Contrato Social e do controle do Estado. Estes
primeiros estudos foram logo seguidos das reflexões sobre aprendizagem e
17
ensino, da busca da definição do que seja e qual pode ser o papel da
comunidade (BAUMAN, 2003), a importância da ludicidade, as origens e a
invenção da infância (ARIÈS, 1981) e a importância dos conflitos na construção
das possibilidades e das utopias.
Este trajeto de pensar foi também fortemente influenciado por
duas outras fontes históricas que fazem parte de minha trajetória pessoal: a
influência do pensamento judaico-cristão, principalmente em sua matriz
protestante, e as raízes pessoais familiares, cristãs e anarquistas. Ambas se
mesclaram e se encontraram em conceitos de Utopia, que, ao invés de serem
um não-lugar, se apresentam como o “ainda não” (LADD, 1959; LADD, 1974)
de uma construção possível, com o sentido de devir (FURTER, 1974), e que
me impulsionam a não esperar pelo futuro, mas buscar vivê-lo desde já nos
microambientes onde se passa o dia-a-dia: a família, os amigos e o trabalho.
Ao não esperá-lo, tendo a buscá-lo pro-ativamente na tentativa
da construção de heterotopias
7
, outros espaços, que anunciam enquanto
aguardam, que experimentam, colocam à prova conceitos, e correm o risco de
se constituírem em alternativas aos topoi
8
existentes.
Aliado a esta inclinação, e atento ao perigo do praticismo
fundado num senso comum idealista, iniciei a busca de referências e reflexão
teórica que pudessem ajudar a questionar as práticas acima, na certeza de que
nada, ou muito pouco, é original e de que o desconhecimento da história
dificulta a percepção dos alertas que evitem o risco da entrada em possíveis
becos sem saída. Iniciando na dúvida sobre a carência de alternativas, fui
sendo levado, num trajeto histórico inverso, a buscar autores que tivessem
inquietações com estas e outras questões semelhantes.
Começando por Paulo Freire, reencontrei Ivan Illich e por fim
Tolstoi e sua marcada, reconhecida e bem documentada influência sobre
líderes muito conhecidos como Ghandi (TOLSTOY, 1937) e Martin Luther King
(SHARMA, 1968). De seu anarquismo e questionamento estabeleci pontes
7
Por heterotopia Foucault designa a coexistência, num "espaço impossível", de um "grande
número de mundos possíveis fragmentários", ou, mais simplesmente, espaços
incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos outros.
8
Topoi são, para Aristóteles, pontos de vista utilizáveis e aceitáveis (por todos) para resolver
problemas que se emprega a favor ou contra. Este raciocínio formatado de Aristóteles evoluiu
mais tarde para a elaboração de catálogos tópicos como organização de argumentos de provas
aplicáveis a todas as discussões imagináveis. Aqui expando o conceito para a noção de
espaços, lugares que existem e são tidos como realidades dadas como certas, fatais e últimas.
18
teóricas em minha busca, entre estas, Proudhon, Bakunin e Marx. Entender a
escola e suas origens, o modelo de educação que experimentamos e o
nascimento da infância me levaram a Michel Foucault e Philipe Ariès. Descobri
Ferrer y Guardia e a experiência das Escolas Modernas, na Espanha e no
Brasil; Paul Robin e seu orfanato, a escola de Yasnaia Polyana construída por
Tolstoi; Janusz Korczac e seu amor até à morte com seus pequenos alunos em
Treblinka; Faure, Kropotkin, Freinet e Makarenko. A Universidade Livre no
Brasil do primeiro quarto do século XX, os Ateneus e Centros de Cultura
anarquistas (MORAES, 1999), o Centro de Estudos Interdisciplinares (CIDOC)
de Cuernavaca no México, os centros de educação popular de inspiração
freireana, as escolas Paidéia na Espanha, além da experiência contra-
hegemônica da Escola da Ponte, se tornaram fontes de inspiração e de
pesquisa exploratória. O pensamento e a história de vida de João Bernardo e
Maurício Tragtenberg, o sentido de Utopia em Ernst Bloch (BLOCH, 2006) e
Furter (GREIS, 1996), aliados a alguns autores da Pedagogia Crítica,
demonstraram a possibilidade de abordar o tema da educação não somente de
forma crítica mas também libertária e criativa.
Aliou-se ainda a esta trajetória, a reflexão e a prática da
tradição judaica de “ensinar no caminho”, que faz parte de minha vida, e a
crença em tomar a prática da vida como ponto de partida e as teorias e
princípios como instrumentos para a reflexão, questionamento da prática e
inspiração de novas práticas. As experiências pessoais com relações invertidas
de poder e liderança, calcadas na admiração da capacidade de servir e
sacrificar-se, próprias do cristianismo e contrária à tradição hierárquica e
autoritária da cristandade, vieram a somar-se a esta tentativa de contribuição
com o campo da educação.
Tais autores, leituras, correlações e reflexões são tarefas para
uma vida e não para um programa de mestrado. Geram problemas da ordem
do “É possível?”, mais do que da ordem do “Como?”, e clamam por
delimitações e recortes que tornem possível sua transformação em pequenas
contribuições que sejam capazes de ir além do mero devaneio. Sendo assim,
passei a buscar, em meio à complexidade do tema da educação não-escolar e
das propostas libertárias, um caminho que tornasse viável um projeto de
pesquisa.
19
Vários dos autores descritos acima se encontram no campo da
chamada Pedagogia Libertária e do Movimento Anarquista, outros no campo
da Pedagogia Crítica, alguns apresentam suas idéias em posições mais
estruturadas e ainda outros se denominam pós-estruturalistas. Quanto às
pedagogias aqui utilizadas, assim como não se pode falar de um Anarquismo,
mas de anarquismos, atrevo-me a pensar o mesmo sobre a Pedagogia
Libertária, que, não compondo um corpo teórico estruturalmente único, talvez
pudesse ser mais bem compreendida se pensada como “pedagogias
libertárias”, ainda que o plural aqui seja temerário. A Pedagogia Crítica,
parcialmente utilizada em minha pesquisa, se circunscreve, mais claramente,
em um campo de ação mais bem definido por autores e posições mais
homogêneas.
Entre os pensadores e praticantes de tais pedagogias existem
propostas racionalistas, de origem iluminista, materialistas, religiosas,
metafísicas, escolares e desescolarizadas, mais ou menos radicais, ainda que
todas sejam críticas e alternativas. A maior parte dos representantes da
Pedagogia Libertária tem sua origem no pensamento europeu, ainda que dela
façam parte autores norte-americanos, latinos e orientais, e suas experiências
sejam realizadas tanto no contexto do Norte rico quanto do Sul empobrecido,
inclusive no Brasil.
Paulo Freire, o maior educador brasileiro e representante da
Pedagogia Crítica, foi um grande interlocutor com outras formas de pensar a
Educação, tendo inclusive sido co-autor de livros e artigos com alguns
pensadores radicais (FREIRE, ILLICH & FURTER, 1974; FREIRE & ILLICH,
1975), críticos (FREIRE, ACQUAVIVA & ALTHUSER, 1974; FREIRE &
GIROUX, 1989) e libertários (FREIRE & FAUNDES, 1985, 1989; FREIRE &
BETTO, 1985; PASSETTI, 1998), ainda que nunca tenha se posicionado como
um libertário, na significação anarquista do termo. Em suas falas e em suas
obras percebem-se várias intersecções, citações, apropriações e influências
que parecem ter origem nestes diálogos tanto teóricos quanto reais. Sua
marcada fé no diálogo pode explicar essa presença de idéias, influências e
parcerias.
Uma outra característica admirável de Paulo Freire foi sua
capacidade de construir sínteses a partir de pontos de vista aparentemente
20
antagônicos, de apropriar-se de outras reflexões teóricas para construir as suas
e de ir além da academia e abraçar tanto o rigor quanto o amor em cada uma
de suas proposições. Ao contrário de se ver preso em posições sectárias, foi
um crente e um participante em diálogos, uma prova viva da eterna capacidade
de aprender. Entre estas sínteses feitas por Freire, uma das que mais me atrai
é aquela que ele traduziu na frase “com Marx na mundanidade, com Cristo na
transcendentalidade” (FREIRE, 1997). E é exatamente deste desejo de síntese
que parte minha pesquisa.
Pode-se notar a correlação estreita entre posições judaico-
cristãs e aquelas desenvolvidas por autores anarquistas, principalmente no que
tange às utopias (ALDRED, 1947). As histórias de vida de vários autores já
mencionados citam igrejas, sinagogas, ambientes familiares religiosos, leituras
da Bíblia: Godwin era filho de um polêmico pastor presbiteriano, Marx foi
criado, apesar da origem judaica, em um ambiente de fé protestante que o
levou a escrever alguns ensaios teológicos ainda jovem (MARX, 1975), Ferrer
teve forte instrução católica, Korczac era judeu, somente para citar alguns
exemplos. Outros foram assumidamente cristãos, ainda que rompidos com a
cristandade oficial como Tolstoi e Illich.
As críticas e questionamentos de todos estes autores aos
dogmas e posições religiosas é bem conhecida, e invariavelmente todos as
fazem em seus escritos. Caberia, no entanto, questionar-se sobre o inverso:
Qual seria a influência do pensamento judaico-cristão sobre suas obras, vidas
e proposições. Apesar de não fazer parte de minha proposta, esta pergunta
pode se transformar em um campo de investigação para futuras pesquisas.
Ainda assim, é desta intuição e do exemplo de Paulo Freire, e de sua
capacidade de integrar amorosamente e sem dificuldades proposições
distintas, e de minha própria trajetória pessoal, que inclui desde a meninice a
convivência com o paradoxo, que nasceu o recorte desta pesquisa.
Minha proposta foi pesquisar o conceito de educação e de
educador e educadora, ou mentor e mentora, em alguns dos autores da
Pedagogia Libertária e da Pedagogia Crítica, buscando entre eles o que se
pode constituir como campo comum e assinalando os reflexos, apropriações e
usos de suas idéias e experiências na obra de Paulo Freire, Ivan Illich e Leo
Tolstoi, marcadamente nos escritos referentes à Educação. Procurei descobrir
21
especificamente o que tais autores entendem do papel, perfil, características,
valores presentes na pratica daqueles que educam, com a finalidade de
contribuir com indicações que possam servir de referência para a formação de
educadoras e educadores (ao invés do professores e professoras)
9
.
A Educação sempre teve um papel essencial, e por vezes
primordial, em todos os autores anarquistas. William Godwin (1756-1836),
Faure (1858-1942), Proudhon (1809–1865), Bakunin (1814-1876), Kropotkin
(1842-1921), Emma Goldman (1869-1940), Ricardo Mella (1861-1925)
(ULLMAN, 1991), Malatesta (1853-1932) - somente para citar alguns -
escreveram páginas sobre a importância da Educação. Pode-se dizer que não
existe proposta política anarquista que não defenda a centralidade da
Educação e, por isso, a pesquisa que una educação e as propostas sociais
anarquistas reforça o que Paulo Freire dizia da Educação, que não somente
possui um lado político, mas se constitui em um ato político (FREIRE, 1985).
No entanto, foram somente alguns dos autores citados na Pedagogia Libertária
os que colocaram em prática ou testaram suas idéias no campo da Educação
em programas concretos.
Minha escolha na pesquisa recaiu sobre estes autores que não
somente escreveram, mas praticaram ou tentaram praticar a Pedagogia
Libertária em projetos de educação, entre eles Paul Robin (1837-1912) –
L’Orphelinat de Cempuis, Tolstoi (1808-1910)– Yasnaya Polyana, Ferrer y
Guardia (1859-1909) – La Escuela Moderna, Korczak (1878-1942) - Nasz dom,
Reclus (1830-1905) – La Nouvelle Géographic Universelle, Faure (1858-1942) -
La Ruche .
De dentro deste conjunto de propostas emanam, por influência
direta ou indireta, projetos de educação e concepções de educador que têm
sido amplamente explorados por autores como Gatto
10
, Pacheco
11
, Holt
12
entre
outros.
9
A opção neste trabalho será de assumir uma posição crítica com relação à formação de
professores. Esta posição começa por interpretar o termo formação como o ato de colocar em
uma forma, formatar, tomar ou dar forma, encaixar; e Professor, como aquele que professa
algo, logo algo que lhe foi incutido de fora para dentro e que leva a uma atitude de esperar a
repetição, o acerto. Minha opção será ampliar para o conceito mais inclusivo de educador e de
construção ou constituição como processo pelo qual este papel chega a ser assumido por
qualquer dos atores do processo ensino-aprendizagem.
10
GATTO, John Taylor. A Different Kind of Teacher. Berkeley, California: Berkeley Hills Books,
2001.
22
O tempo poderia fazer com que a pesquisa tivesse
características de superficialidade se eu decidisse incluir mais autores,
principalmente tentando estabelecer a presença de suas idéias na obra de
Paulo Freire.
Dentro da trajetória descrita anteriormente, fui levado a verificar
que não bastava o conhecimento do senso comum transformado em uma
prática que não estivesse, ao mesmo tempo, fundamentada e em interação
com conteúdos teóricos, reflexões e registros. Tampouco uma miríade de
exposições teóricas ajudaria a construir uma contribuição. A busca de outras
experiências e do universo do pensamento crítico e libertário, conforme já
descrito acima, acabou por recair sobre Tolstoi e Illich em uma espécie de
diálogo com Freire.
1.3 O TRIÁLOGO
No contexto desta pesquisa pretendo explorar um triálogo: uma
das vertentes da Pedagogia Libertária, representada pela obra de Tolstoi; O
pensamento crítico original de Ivan Illich e a Pedagogia Crítica, ligada a Paulo
Freire ainda que limitado pela extensão e enfoque de uma dissertação. Tolstoi,
Paulo Freire e Illich representam formas críticas de ver a Pedagogia e a
Educação. Ainda que não possam ser incluídos no grupo dos anarquistas
clássicos, apresentam em todas as suas obras características pedagógicas
libertárias, assumindo ou não esta identidade, e em todas contam suas
experiências, sucessos, avanços e fracassos.
Ivan Illich ousou traçar caminhos similares aos propostos pelo
ideal libertário, incluindo, no entanto, a possibilidade de diálogo com o
conhecimento e com epistemologias e referências que antecederam
historicamente o Iluminismo. Ao mesmo tempo, em diálogo e consoante com
os propositores dos caminhos alternativos dentro da perspectiva racionalista,
Illich se propôs a sínteses e caminhos que apontam para alternativas
11
PACHECO, José. (2000) Quando eu for grande, quero ir à Primavera. Ed. Didática
Suplegraf.; PACHECO, José. (2003) Sozinhos na Escola. Ed. Didática Suplegraf.;PACHECO,
José. (2006) Caminhos para a Inclusão, Artmed Editora.
12
HOLT, John. Aprendendo o tempo todo: como as crianças aprendem sem ser ensinadas.
Tradução: Walther Castelli Jr.. São Paulo: Verus, 2006.
23
questionadoras e instigantes. Minha impressão é que, ao não se envergonhar
de lançar mão de valores, princípios e métodos anteriores à modernidade, e ao
estabelecer diálogos e integrações destas com as percepções do racionalismo,
Illich apontou, nas áreas de conhecimento às quais se dedicou, para um devir
cheio de esperança e possibilidade.
Leo Tolstoi e Ivan Illich testaram suas sínteses em projetos
reais – a Escola de Yasnaia Polyana e o CIDOC em Cuernavaca,
respectivamente. As sínteses às quais chegou Paulo Freire também se
constituíram a partir de sua experiência prática, bem como de seus contatos
teóricos e reais com diversos autores, e guardam muita semelhança em
diversos pontos com os outros dois autores, o que me permite ousar incluí-lo
para formar com eles um mesmo grupo teórico. Farei isso consciente de que
Freire seja reconhecido como principal propositor de uma vertente específica
na Educação diferente de ambos, a Pedagogia Crítica, hoje representada
internacionalmente por autores como Henry Giroux e Peter Mclaren.
Longe de desejar esgotar a extensão e a genialidade dos três
autores, a proposta deste trabalho é buscar neles a concepção de educador e
educadora, dentro de uma proposta libertária e crítica, buscando expor valores,
princípios e propostas que permitam a posterior utilização do perfil oriundo da
pesquisa para tentar compreender e questionar as práticas e perfis de
educadores e educadoras que emergem das práticas populares ou formais, em
experiências e práticas escolares ou não-escolares.
Os três autores incluem em suas propostas valores que
transcendem o materialismo e o anarquismo, ainda que se aproximem de
reflexões que poderiam ser chamadas de materialistas em alguns momentos.
Os três são críticos e não resumem suas críticas ao discurso, mas ousam
estabelecer heterotopias, em meio a sociedades antagônicas e até mesmo
hostis. Os três, ao seu modo, foram polêmicos, minoritários e derrotados, mas
ainda assim é deles, e não dos que os venceram, que nos lembramos quando
falamos de possibilidades, esperança e alternativas. Os três possuem aquela
rara característica de autenticidade e personalidade, de serem quem são,
mesmo quando se deseja enquadrá-los em rótulos. Porém, o fato de serem o
que são foi uma dependência da existência de outros seres, outros diálogos e
outras influências em suas vidas. O campo comum entre suas idéias é muito
24
maior do que se imagina e suas interseções possuem grande amplitude,
sentido e razão de ser. Foram todos radicais, cada um a seu modo, e a eles se
poderia tentar aplicar a reflexão de um amigo dos dois que foram
contemporâneos, o antropólogo Darcy Ribeiro, que sobre si mesmo diz:
Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças
brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil
desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são
minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.
(RIBEIRO, 2001 –
documento eletrônico sem paginação - grifo meu).
Ivan Illich cumpre aqui o papel de ponte entre um radical
sectário como Tolstoi e um radical dialógico como Paulo Freire. Além da
aparente coincidência entre o seu nome e o de uma das mais conhecidas
obras de Leo Tolstoi, coincide também entre Illich e Tolstoi a chama da
polêmica. Paulo Freire, não menos polêmico - ainda que mais amplamente
aceito, talvez pela capacidade amorosa de interagir - conheceu, trabalhou,
dialogou e escreveu com Illich, e suas idéias em comum já foram objeto de
trabalhos e discussões acadêmicas (ELIAS, 1974; TORRES, 2006; OLIGHER,
2006). Os três também possuem em comum o fato de se assumirem como
cristãos, ainda que com forte posicionamento crítico à cristandade e suas
instituições. Se foram homens modernos, o foram com uma inclinação para
além do racionalismo iluminista. As interseções e o amor pela liberdade,
comum aos três, entremeados da profunda amorosidade e solidariedade pelo
ser humano e pelo assombro diante desta obra que, ainda que não seja feita
por mãos humanas, pode transformar-se e transformar o seu entorno, foram
minha principal razão na decisão para que fizessem parte desta pesquisa. Foi
minha preocupação verificar, a partir do conhecimento de suas obras e idéias,
na Pedagogia Libertária de Leo Tolstoi, nas ousadas propostas de Ivan Illich, e
na obra crítica de Paulo Freire, se existe significado para a constituição do
educador e da educadora que atuam em projetos de educação em espaços
formais e não-formais, institucionais ou convivenciais.
Pretendo examinar estas características como produtos da
contribuição de traços pessoais e da influência do meio e de suas histórias de
25
vida, como sínteses que aliam o que o sujeito traz e o que lhe proporciona o
meio.
1.4 AS PEDAGOGIAS DESTA PESQUISA
A figura do educador é central na Pedagogia Libertária,
principalmente quando se tem em conta que a importância de seu papel é
menos o de ensinar e mais o de servir de referência, como se pode encontrar
na declaração da “Liga Internacional para a Instrução Racional da Infância” no
Brasil, subordinada ao “Comitê Internacional de Iniciativa e Direção”, sob a
presidência de Ferrer, da primeira década do século XX: “A educação moral,
muito menos teórica do que prática, deve resultar principalmente no exemplo e
apoiar-se sobre a grande lei natural de solidariedade” (MORAES, 1999)
Não existe Pedagogia Libertária ou verdadeiramente crítica
sem envolvimento pessoal, prática assumida e comprometimento de vida. Não
é possível imaginar tal pedagogia imposta, sem convencimento, reflexão,
prática e autocrítica. Pensar esta pedagogia do ponto de vista teórico, com
neutralidade e afastamento, é uma impossibilidade ligada à própria natureza da
proposta.
Por fim, creio que tal descrição pode servir como fonte de
reflexão, confrontação e complementação à formação de professores que
ocorre no ambiente acadêmico, seja servindo como material para auto-reflexão,
como fonte para o aprofundamento da compreensão do papel do professor
como educador ou como estímulo adicional para assumir uma práxis
libertadora.
O ambiente educativo não-escolar nesta pesquisa não
pretende ser apresentado como contraponto da escola, mas como campo de
antecipação de possibilidades do que a própria escola pode vir a desenvolver
na medida em que se desescolarize. Autores como Olga Pombo e Rui Canário
(2005) Henry Giroux (1999) e Peter Mclaren (1997) têm se perguntado sobre
as alternativas para a escola e proposto algumas saídas possíveis. Os dois
últimos fazem esta pergunta a partir da perspectiva da Pedagogia Crítica,
sendo que Mclaren a faz assumidamente inspirado em Paulo Freire. Olga
Pombo e Rui Canário (2005) recuperam a importância de Ivan Illich, propondo
o resgate de suas idéias e o uso de seu caminho de reflexão como uma das
26
possibilidades de construção de alternativas. A análise de meu trabalho
pretendeu lançar mão da Pedagogia Crítica, como abordagem complementar
para a construção das conclusões provisórias às quais cheguei.
É com a intenção explícita de não pressupor neutralidades -
traduzida aqui pelo uso da primeira pessoa em todo o texto - que me disponho
à pesquisa. Minha intenção não é resolver o problema da Educação, mas sim
tentar a ousadia de fazer as perguntas que só as crianças sabem fazer,
característica que, segundo Boaventura de Souza Santos, precisa estar
presente em todo pesquisador, que deveria fazer suas inquirições seguindo o
exemplo de Rousseau, que soube como ninguém questionar seu tempo
(SANTOS, 2000). Espero ter sido capaz de escapar dos falsos dilemas
anteriormente citados evitando o caminho das fórmulas, prescrições e modelos
educacionais escolares, e ter conseguido ir além do espírito reformista,
contribuindo com alguns questionamentos sobre o sistema que serve ao
modelo de sociedade e ao modo de produção presentemente hegemônico.
A opção por espaços não formais de aprendizagem neste
estudo vai além do fato de que os três autores aqui pesquisados foram
praticantes e fomentadores desta forma de abordar a Educação. A percepção
da complexidade da sociedade, colocada por alguns como um fenômeno
recente, tem feito com que a escola, como a conhecemos, criada dentro de
uma visão de mundo simplificadora, com a finalidade de dar forma a um
indivíduo sobre o qual se pudesse exercer o controle de mente e corpo
(FOUCAULT, 2005), seja questionada em seus resultados, bem como em
alguns casos em sua própria existência (ILLICH, 1973).
1.5 A COMPLEXIDADE
Apesar da aparente impressão de sofisticação e atualidade que
surge quando se fala de complexidade, o fato é que só é nova ou requintada
esta noção para aqueles que formaram sua compreensão de mundo, ou
acreditaram de fato que o mundo pudesse ser compreendido, de forma positiva
e fragmentada. Neste caso, sofisticação encontraria perfeita aplicação com seu
sentido primeiro de ser a “arte do sofisma, sutileza, argúcia” (HOUAISS, 2002).
A vida humana não passou a ser complexa nesta atual fase do sistema
27
capitalista de produção. Ela sempre o foi, desde sua origem e talvez nossa
tarefa seja menos a de tentar compreendê-la e adaptá-la a nossas mentes
finitas e sim de, humildemente, tentarmos integrar nossas mentes, em atitude
de assombro, como parte das inúmeras conexões da Vida.
É da natureza da Vida ser complexa em suas relações.
Proudhon no meio do século XIX já chamava a atenção para este fato, bem
antes da Internet, da comunicação de massas, da crise ecológica e de outras
características de nosso tempo
Somente os esforços de milhares de inteligências trabalhando sobre os
problemas podem cooperar para o desenvolvimento do novo sistema social
e encontrar soluções para as milhares de necessidades locais (GOLDOFF,
2006,
documento eletrônico sem paginação).
A tentativa de simplificar a vida foi somente uma estratégia de
controle por parte de uma determinada classe social e modo de produção. Da
mesma maneira, formar pessoas para a Vida sempre foi uma tarefa mais
complexa do que aquela que pode ser exercida por meio de tempos, grades,
controles, programas, exames e disciplinas. A Vida sempre tem a palavra final
e se impõe, muitas vezes com o autofalante das tragédias e das crises, sobre
nossas tentativas de controlá-la.
Os espaços não formais de educação, a flexibilização da
formalidade da escola, o reconhecimento de outras formas de conhecimento
para além daquelas da matriz ocidental, capitalista e conservadora, vão se re-
introduzindo nas discussões como parte da experiência humana da Educação,
e minha dissertação tem esta clara intenção de trazer o tema à luz. Mas
espaços não possuem o poder de formar, a complexa relação entre ensinar e
aprender demanda o outro, a relação, a comunicação, a comunidade e a
convivencialidade. Como dizia Paulo Freire já citado acima “Ninguém aprende
sozinho...” (FREIRE, 1987).
A escolha do educador e da educadora como objetos teve sua
razão de ser nas inúmeras expectativas, fantasias e idealismo em torno deste
agente da Educação. Seria ilusão pensar que indivíduos formatados, sem
capacidade reflexiva, sem experiência de liberdade, seriam capazes de entrar
na tarefa de educar para e com liberdade de maneira imediata e automática.
28
Olhar para outras experiências, estudar propostas, aprender com aqueles que
ousaram remar contra a corrente e polemizar, pode ser um subsídio a mais
para a constituição e a construção de educadores que venham a se conectar
com estes espaços de oportunidades e experiências educacionais libertadoras
conhecidos como não-formais.
1.6 META HODOS: O CAMINHO SEGUIDO
Com estas idéias iniciais, com estas sinalizações e indicações,
pretendi construir esta pesquisa e responder a pergunta: Existe significado e
importância para a constituição de educadores na noção de educador e
educadora expressa na obras de Leo Tolstoi e Ivan Illich? Em que aspectos
esta noção se reflete e repete na obra de Paulo Freire? Em que aspectos o
campo comum na compreensão destes três autores sobre a pessoa que educa
se aproxima e se afasta? Que exemplos desse perfil podem ser observados em
experiências concretas?
Para a realização desta pesquisa, dada a natureza do objeto e
das fontes, utilizei principalmente a pesquisa bibliográfica aliada e confrontada
com a experiência prática em educação não-formal.
Na pesquisa bibliográfica foi realizado o levantamento das
obras nas quais os autores Tolstoi, Illich e Freire, descrevem suas experiências
e propostas no campo da educação. Dada a natureza e exigüidade de
materiais dos dois primeiros autores, o material bibliográfico foi composto de
livros e artigos em bibliotecas, de e-books, fac-similes e transcrições de obras
famosas mantidas e disponíveis por diversos grupos libertários, sobretudo na
rede mundial de computadores, e de teses e dissertações disponíveis em
bibliotecas e bancos de dados.
Sendo o objeto deste estudo o perfil do educador e da
educadora que emerge das obras de Leo Tolstoi, Ivan Illich e Paulo Freire,
buscando descobrir as aproximações e afastamentos deste perfil que se
podem verificar nos educadores e educadoras em projetos reais de educação
não-formal e que possam ser apropriados como parte da formação docente, o
método seguido teve uma origem e evolução.
29
A gênesis de minha pesquisa surge de uma inquietação e da
experiência vivida na tentativa de buscar, ainda que de forma pontual e
localizada, uma alternativa educacional que pudesse pelo menos criar espaço
para a contradição, o questionamento e a oportunidade de ampliação de
oportunidades de emergência de seres humanos integrais e na formação de
um ambiente educativo baseado na convivência e na interação entre crianças
de distintas faixas etárias e entre jovens e adultos.
Esta tem sido uma inquietação gerada com a redução ao
espaço escolar, e in loco parentis
13
, da tarefa de educar; o depósito de
expectativas lançado sobre a figura do professor por delegação da sociedade;
a mais que evidente contraprodução de resultados do projeto educacional
contemporâneo, que produz passividade, apatia, desencoraja o pensamento
alternativo, a criatividade e rouba o próprio coração e o brilho do olhar, tanto
dos adultos quanto das crianças envolvidas no processo, e que consegue gerar
conformidade, enquadramento, submissão, aceitação, especialização e uma
produtividade que, hoje, coloca em risco a própria sobrevivência do planeta
quando aliena homens e mulheres, uns dos outros e da natureza da qual
originalmente fazem parte.
Uma inquietação composta também da busca de uma
formação que estimule a plenitude da condição humana, a saudável interação
das formas convivenciais e sustentáveis de produção e que reafirmem a
possibilidade de outras formas de organização social, pela experimentação
antecipadora do “inédito viável”, incluído no devir utópico.
Uma destas experiências-tentativas, e com a qual tenho estado
envolvido desde seu início, se dá, como já mencionado, na concepção de um
espaço não-formal de educação popular, empreendedorismo social e
desenvolvimento comunitário, na forma de um ambiente educativo onde
múltiplas experiências tentam se fundir em um todo educante, onde adultos e
crianças se formam e reformam, como aprendizes uns dos outros
14
.
Lançada a pesquisa e a indagação de se haveria relevância
para a constituição do educador e da educadora nas obras e experiências dos
13
Em lugar dos pais.
14
Associação Casa da Videira. www.casadavideira.com.br
30
autores escolhidos, surgiu a necessidade da escolha de um caminho, ’hodos,
que me levasse ao objetivo, meta.
15
Antes de descrever este caminho a ser percorrido é importante
deixar assinaladas algumas convicções que subjazem esta pesquisa. A
primeira delas é que não busco aqui descobrir um ideal de educador ou
educadora, ou um educador ideal, que surja da pesquisa bibliográfica e que
venha a ser proposto como ideal a ser alcançado.
Esta negação tem por finalidade permitir o diálogo com a
prática, e a esperança de vê-la mudar e provocar mudanças conceituais. Esta
pesquisa foi calcada na explícita concepção de que a maioria de nossos ideais
traduz uma opção ideológica, que tenta atualizar a realidade a partir de
concepções deterministas de lenta e inexorável evolução a estágios superiores
e que acaba por construir uma consciência falsa da realidade, como afirmam
Marx e Engels em “A Ideologia Alemã”. Os autores aqui pesquisados não o
foram no sentido de substituírem ou se mostrarem como estando acima das
concepções pedagógicas presentes, mas como contrapontos provocadores de
novas sínteses, questionadores de práticas estabelecidas, “fazedores” de
questões, eles mesmos localizados em seu tempo e condições objetivas,
passíveis de crítica, questionamentos e re-concepções, nunca na posição de
oráculos fundantes de um fazer melhor.
Estou convicto de que sem o sentido de ruptura e de
contraposição é impossível a mudança. Que esta não é fruto de uma evolução
permanente, por etapas, tranqüila e sem solavancos. Vem, sim, mediante
críticas e autocríticas, conflitos e sínteses que se fazem e refazem, fluem e
refluem no diálogo permanente entre a teoria e a prática, e que nenhuma
teorização superará mal-entendidos, que brotam sempre e incansavelmente
das quebras de continuidade na articulação entre o nosso saber e o real, e sua
inesgotabilidade e irredutibilidade ao conhecimento, e da Vida que surpreende
e cria novas questões que desafiam qualquer conhecimento uma vez
estabelecido.
O caminho escolhido iniciou pela busca do significado do que
seria, para os três autores presentes no referencial teórico - Proudhon, Bakunin
15
Obra de ciência (Aristóteles), de metá atrás, em seguida, através, e ‘hodós (leia-se ‘rodós”),
'caminho'
31
e Kropotkin - o que se pode considerar como características de uma pessoa
libertária. Para então buscar, exegeticamente, a concepção de educador e
educadora libertários que surge da obra e experiências de Tolstoi, das
propostas radicais de Illich, amalgamadas com os fundamentos desta
concepção em Paulo Freire.
Formado tal conceito, pretendi refletir sobre suas aproximações
e afastamentos, sobre sua influência, negada ou idealizada, no contexto
acadêmico, e sobre as possibilidades existentes dentro do marco das relações
comunitárias e convivenciais, bem como da possibilidade inspiradora dos
mesmos em outras experiências de formação, como algumas escolas
democráticas e movimentos sociais. Com estes dados em mãos, pretendo
analisar e levantar novos questionamentos e perguntas que possam servir de
subsídio para o aprimoramento da constituição da condição de educador e
educadora neste tempo de transição e crise.
Uma valiosa fonte de recursos bibliográficos superficialmente
consultada em minha pesquisa, mas importante de ser citada como recurso a
ser buscado por futuras pesquisas ou por outros pesquisadores, se encontra na
Biblioteca Maurício Tragtenberg, atualmente sob os cuidados da Biblioteca
Central da UNICAMP, SP.
A maior parte dos escritos de referência que foram por mim
utilizados estão esgotados e são de difícil acesso, vários só estão disponíveis
em forma eletrônica e normalmente em outros idiomas que não o português.
Neste aspecto, as obras consultadas em outro idioma se encontraram
principalmente em inglês e em espanhol.
De posse dos dados levantados o caminho percorrido teve a
seguinte ordem:
1) Levantamento do conjunto de valores e princípios dos
sujeitos envolvidos em processos libertários a partir da leitura dos autores que
compõem o marco teórico: Bakunin, Proudhon e Kropotkin
2) Descrição do perfil do educador e da educadora a partir da
análise exegética e isagógica das obras de Leo Tolstoi, Ivan Illich e Paulo
Freire.
3) Cruzamento das características e determinação da
existência de um campo comum que descreva o que seria o perfil deste
32
educador nas relações que possuem entre si, com os educandos, a escola, a
aprendizagem e a comunidade .
1.7 MARCO TEÓRICO
As obras de Mikail Bakunin, Piotr Kropotkin e Pierre-Joseph
Proudhon (BAKUNIN, 1976, 2000, 2001; KROPOTKIN, 1954, 1987; MORIYON,
1989; PROUDHON, 1952, 2001) foram as referências utilizadas nesta pesquisa
no que diz respeito aos conceitos libertários fundamentais. Entre estes
conceitos estão os de autoridade, antiautoritarismo, auto-gestão, liberdade, e
propriedade.
Contemporâneos, e em alguns casos parceiros como no caso
de Bakunin, dos autores que deram origem ao que chamamos de abordagem
crítico-histórica, estes autores discorreram em maior ou menor grau sobre a
Educação. Mas principalmente descreveram perfis, valores e princípios
libertários dos quais a Pedagogia Libertária apropriou-se na construção de
suas referências.
Proudhon e Bakunin conviveram com Marx e teceram críticas
ao autoritarismo comunista. Sua postura antiautoritária é o ponto de maior
interesse para esta pesquisa. Os conflitos entre estes autores e Marx, suas
críticas e alternativas desenham parte do que serve como fundamento para o
pensamento libertário em Educação. Além disso, Proudhon e Tolstoi se
conheciam, se visitaram e trocaram correspondências. Kropotkin conviveu mais
de perto com o Marxismo Leninista e sua obra principal tem um caráter mais
sociológico e econômico. No entanto, em seu texto Em torno de uma vida
(KROPOTKIN, 1946), o autor faz a crítica do sistema educacional fundado na
disciplina, aos programas de curso impostos de cima para baixo e faz uma
proposta de educação integral baseada na dignidade e na independência
pessoal. Todos têm em comum algo para o que Maurício Tragtenberg chama
atenção na proposta de educação libertária “que consagra o sacrifício
progressivo da autoridade em proveito da liberdade” (TRAGTENBERG, 1987).
Além dos conceitos já citados que fizeram parte desta
pesquisa, e sem a pretensão de esgotar, neste momento, todos os que fazem
33
parte da dissertação, gostaria de sinalizar alguns dos conceitos centrais da
pesquisa: Comunidade, de acordo com as definições que surgem dos trabalhos
de Bauman (2003) e Adorno (1962). O Ser, a partir da tradição judaico-cristã e
do diálogo sobre o indivíduo em Hokheimer e Adorno (HOKHEIMER,1973).
Autonomia, educador, conscientização e esperança em Paulo Freire (1987,
1997, 2000). Desescolarização em Ivan Illich (1973). Utopia em Bloch e Furter
(Greis, 1996). Heterotopia em Foucault (2001). Amor, de acordo com o
exemplo de Jesus, em minha opinião o maior libertário da história e grande
inspiração de minha vida.
34
CAPÍTULO 2
2.1 CATEGORIAS EPISTEMOLÓGICAS
“Isto não é para afirmar que um retorno
às formas antigas seria desejável. O
relógio não pode ser posto a andar para
trás, nem pode o desenvolvimento
organizacional ser revertido ou mesmo
teoricamente rejeitado”
Horkheirmer
Alguns conceitos - ou categorias epistemológicas - estão
presentes nas obras dos autores escolhidos como referência para minha
dissertação, Proudhon, Bakunin e Kropotkin, assim como nos três autores que
tiveram suas propostas e relatos de práticas pesquisados: Leo Tolstoi, Ivan
Illich e Paulo Freire. Suas obras deixam a impressão de que nenhum deles,
partiu de si próprio para formular os conceitos, propostas e práticas que
registraram. Foram todos pensadores seminais, instigadores e brilhantes,
porém histórica e temporalmente localizados dentro do contexto do ocidente,
com suas raízes culturais fortemente plantadas na tradição judaico-cristã, no
pensamento grego e na matriz latina de nossa sociedade. Por esta razão é
difícil pensar que eles tenham sido criadores originais no sentido estrito do
termo. Como sujeitos históricos e reais, muito provavelmente, foram
influenciados por imagens e histórias comuns, e inspirados por possibilidades,
profunda e por vezes inconscientemente, gravadas em nossa cultura e
memória coletiva.
Ao invés de situar somente neles os conceitos dos quais me
servirei nesta pesquisa, creio ser importante partir daquelas mais antigas fontes
da nossa sociedade e de lá buscar algumas origens e apontar possíveis
referências que lhes tenham servido de inspiração, ou estado subjacentes ao
contexto de onde emergem suas propostas.
Como dito acima, o Ocidente é uma conseqüência da
polinização cruzada de duas matrizes, a grega e a judaico-cristã, espalhadas,
catalisadas, e igualmente influenciadas, pelo pensamento latino no contexto do
Império Romano. Suas lógicas, cosmovisões, abordagens e seus conflitos são
frutos das sínteses possíveis e dos embates existentes dentro e entre as três
35
cosmovisões e do contexto histórico, político e espaço-temporal onde
aconteceu sua mescla.
Não será objetivo de minha dissertação a análise desta
síntese, conflitividade e resultados de maneira exaustiva, no entanto, pretendo
demonstrar que as poucas referências aqui apresentadas se constroem a partir
desta compreensão de origem, o que me parece que, de alguma forma, pode
vir a ajudar a entender a sociedade da tensão em que vivemos, assim como
construir as soluções que buscamos, manifestas no conflito permanente, e
quase nunca dialógico, entre a lógica formal do pensamento científico, que
exige uma tomada de posição ideal e atualizadora da realidade, e construções
mais complexas, epistemologicamente mais inclusivas, e que admitem a
coexistência e interação entre posições opostas, contrapostas ainda que não
inconciliáveis, que permitam a possibilidade de construção de sínteses que
integram, ao excluir, incluir e re-sintetizar conceitos.
É com uma breve revisão de alguns destes conceitos nestas
culturas que partirei para o estudo das propostas dos autores citados,
especificamente quanto à presença destas categorias no perfil do educador e
da educadora nas obras de Tolstoi, Illich e Freire.
O ponto de partida de cada análise na revelação judaico-cristã,
se justifica não somente pela razão acima, mas pelo convencimento que
possuo de que as posições anarquistas e marxistas sofrem, direta ou
indiretamente, a influência de tal modo de pensar. Transformado em mera
religião, em condição de ferramenta ideológica de alienação, é completamente
compreensível a rejeição da religião pelo ideário materialista. Negar, no
entanto, tal influência seria negar, na base do pensamento de autores como
Proudhon, ou Marx, a presença de valores compartilhados com o judaísmo e o
cristianismo primitivos (ainda que quase nenhum com a cristandade e com o
judaísmo institucional) e seria tão entorpecente quanto as posições ideológicas
que Karl Marx denunciou na sua análise sobre a Prússia, em “A Ideologia
Alemã”.
No caso de Marx, basta a leitura do ensaio que escreveu ainda
jovem em 1835, “A união dos crentes com Cristo de acordo com João 15:1-14.
36
Mostrando sua base e essência, sua absoluta necessidade, e seus efeitos
16
,
para perceber o que aqui se afirma. Neste texto, Marx, declara
A união com Cristo consiste na mais íntima comunicação com Ele, tendo-o
diante dos olhos e em nosso coração, e sendo assim tomados pelo mais
elevado amor por Ele, ao mesmo tempo em que voltamos o nosso coração
aos nossos irmãos, com os quais ele nos ligou, e por quem Ele também se
sacrificou (MARX, 1975, p. 637).
É fácil correlacionar a influência, já presente neste ensaio, da
materialidade do compromisso com a humanidade, dos valores éticos e morais
e do radicalismo da posição sacrificial inspirados no cristianismo para daí inferir
pelo menos alguma contribuição à sua construção futura.
Para concluir, e só para citar o caso deste autor entre os
demais, é sabido que Marx provinha de uma longa linhagem de rabinos; que
seu pai Heinrich Marx era um judeu liberal convertido por conveniência ao
cristianismo; que foi criado dentro do cristianismo alemão, sendo que quando
jovem esteve sob a influência de teólogos liberais alemães. Apesar disso foi a
prática das classes dominantes em nome de Cristo que acabou por transformá-
lo no mais conhecido ateu da história, e que ajudou a cunhar sua frase bem
conhecida de que a religião é o ópio do Povo
17
. (RAMACHANDRA, 2000, p. 42-
43).
Assim, as categorias presentes na obra dos três autores
pesquisados, que souberam lançar mão do pensamento filosófico ocidental,
das ferramentas próprias do anarquismo e do marxismo, sem contudo rejeitar
suas bases cristãs que professavam, servirão aqui de aprofundamento na
compreensão de suas propostas.
A escolha destas categorias em detrimento de outras seguiu
dois critérios: a freqüência de seu uso pelos três autores e a aparente origem
comum nas tradições acima citadas.
16
"The Union of the Faithful with Christ, according to St. John 15: 1-14, presented in its Reason
and Essence, in its Absolute Necessity and its Effects."
17
ainda que a citação completa seja muito mais suave e leve em consideração ao ópio como
recurso à dor dos pobres sem acesso a outros métodos de tratamento no século XIX e não
somente como entorpecente. A citação completa seria: “A miséria religiosa é, de um lado, a
expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito.
É o ópio do povo.” Em “Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel” Marx, Karl, 1843;
http://www.culturabrasil.org/criticadafilosofiadodireito.htm acessado em 04 de outubro de 2007.
37
Apesar de não ter sido o objetivo de meu trabalho fazer um
levantamento estatístico da freqüência de aparecimento de tais conceitos, nem
mesmo o de tentar estabelecer uma hierarquia entre eles, os mesmo foram
escolhidos em função de ajudarem a formar um conjunto de categorias que ao
mesmo tempo servem de entorno ao sujeito e às suas relações e estão de
alguma forma relacionadas aos aspectos fundamentais da humanização e dos
relacionamentos que o ser humano estabelece consigo, com seus semelhantes
e com seu meio.
A origem comum de tais categorias é uma hipótese que
estabeleci em função da observação de uma série de similaridades e intuições.
Tentar provar esta hipótese como verdade estabelecida está longe da
finalidade deste trabalho, ainda que poderia ser uma tarefa de pesquisa a ser
desenvolvida no futuro e a ser checada com maior aprofundamento e rigor, e
talvez assim, melhor escrutinada. A impressão geral, a intuição e as
correlações tanto das citações quanto das histórias de vida dos autores me
levam a inclinar-me favoravelmente na direção da hipótese escolhida, ainda
que sua comprovação desviaria o foco da presente pesquisa para além de
seus limites e condições objetivas.
Nesta etapa, além do conceito de liberdade, tentarei contribuir
com alguma informação sobre os conceitos fundamentais de propriedade,
autoridade, comunidade, o ser, autonomia, utopia, amor e verdade, nestas
culturas originais e no processo como se construíram até a modernidade, para
que estas informações sirvam de subsídio no entendimento do que cada autor
do referencial teórico da pesquisa construiu a partir deles.
Em cada uma das categorias aqui estudadas a análise, sempre
que possível, partirá de uma breve revisão
18
de significado nas línguas
originais, Hebraico e Grego, da influência do pensamento latino, e da
contribuição das sínteses, mormente a que emerge daquela feita sob a
influência do pensamento agostiniano na origem da Idade Média, as re-
significações no Iluminismo e, a partir deste, as posições e contraposições,
presentes em autores modernos e libertários.
18
Estou absolutamente consciente do fato de que para a finalidade desta dissertação e para
evitar que sua extensão ultrapassasse limites razoáveis tive de optar por uma simplificação do
desenvolvimento histórico dos séculos antes de Cristo, o que, apesar de sacrificar uma análise
mais profunda e interessante se justifica para a manutenção do foco no tema pesquisado.
38
Uma vez com estes dados em mãos, parece-me que analisar
o tema proposto tornar-se-á uma tarefa mais clara e compreensível, além de
constituir-se em alguma contribuição para seu desvelamento e apreensão.
2.1.1 Liberdade
Liberdade é o conceito mais fundamental e presente ao longo
de toda esta pesquisa como destinação ontológica do ser humano e em seu
processo de humanização, conforme compreendido por Tolstoi, Illich e Freire.
Por este motivo, sua definição, e a reflexão sobre os aspectos constituintes
deste conceito desde sua origem foi escolhido como ponto de partida em
direção ao objetivo final.
Quando se fala de liberdade é necessário compreender de que
liberdade se está falando. Apesar de grafada da mesma forma, a palavra
liberdade será lida de maneiras diversas, dependendo dos interesses e dos
pontos de origem e de destino de quem fala. A liberdade liberal pode ser
compreendida como opressão pelo pensamento anarquista; a liberdade
individual, pode ser uma ameaça ao bem-estar coletivo. De modo semelhante,
por exemplo, a liberdade de educar como parecer melhor a uma família, pode
ser entendida como um desafio ao modelo de sociedade baseada no contrato e
no controle do Estado. Sem os esclarecimentos referentes ao termo, correr-se-
ia o risco de uma compreensão equivocada das conclusões e achados da
pesquisa. O conceito de liberdade no Ocidente parece ter suas raízes no
pensamento judaico-cristão, e é a partir de uma breve visita a esta origem que
pretendo iniciar esta jornada.
No hebraico antigo o conceito tem sua origem na palavra
cofash - שׁפח - que tem o sentido de se espalhar sem limites, o que demanda
que devam ser removidos os impedimentos, e deixar ir, shalack - חלשׁ
significando estender-se e explorar para além dos limites a quem, ou o que, se
faz livre. No imaginário coletivo ocidental o conceito nasce do reclamo em sair
de uma situação opressiva, forçada e de identidade fragilizada, baseada no
conflito de interesses entre uma autoridade discricionária e um povo pleno de
potencial, exemplificado pelo relato bíblico da relação entre a nação Egípcia e a
39
incipiente nação israelita, registrado nos livros bíblicos de Êxodo a
Deuteronômio: a Travessia.
Ao contrário do conceito liberal de liberdade, constituído a partir
da concepção do indivíduo liberal burguês, a concepção aqui se fundamenta
nos aspectos de coletividade e dos conflitos de interesses entre opressores e
oprimidos, e entre classes sociais distintas e antagônicas: senhores e
escravos.
Para o pensamento grego, a liberdade – eleuteria
19
, ελευθερία
– se traduz como uma situação delegada, a liberdade determinada por alguém
que concede e dá o direito, seja por nascimento, seja por permissão de quem a
concede (STRONG, 1984). Este tipo de liberdade está focado no indivíduo livre
de obrigações ou responsabilidades, a não ser consigo mesmo, e por
conseqüência fracamente consciente dos aspectos coletivos desta liberdade.
No registro religioso cristão em grego, o Novo Testamento,
este conceito de liberdade se expande para a compreensão de uma forma de
liberdade que se alcança, não por concessão de quem escraviza, mas por um
anúncio libertador, que age cooperativamente com quem é liberto, e que
continua como sujeito responsável pela manutenção de sua própria liberdade,
sempre vivida e compreendida como coletiva e no seio da comunidade. O
termo é usado em associações que envolvem a participação de quem é livre na
conquista de sua própria liberdade e no relacionamento com a Verdade como
instrumento de realização desta conquista.
Um aspecto importante da compreensão do conceito de
verdade neste caso é que ela não se traduz em um conteúdo libertador, mas
em uma pessoa libertadora. Esta simples diferença retira da possibilidade de
conhecer a Verdade a pretensão de possuí-la, totalizá-la, esgotá-la, prevê-la e
controlá-la, por quem quer que seja, uma vez que, se a Verdade é
compreendida como fruto de uma relação e não como um conteúdo. Sendo
assim, a mesma será sempre incontrolável, dinâmica, reveladora e, em certos
aspectos, incompreensível em toda sua plenitude, e por isso inesgotável, re-
significável, e nossa relação com ela, perfectível. As implicações de tal
compreensão da Verdade parecem-me bastante claras se comparadas e
19
Acompanhado do conceito de politeia – πολιτείαcidadania, expressa de forma concreta em
comunidade de livres.
40
contrapostas a uma compreensão de verdade conteudista, controlável e
previsível, e desta forma dificilmente libertadora, discussão que poderá ser
aprofundada ao final deste capítulo.
Naquela etapa e contexto da história, a liberdade da
comunidade se traduz para a liberdade da pessoa e a liberdade concedida à
pessoa se reflete na comunidade. As possibilidades de resolução da tensão
criada entre o sujeito e a comunidade, estavam fundadas no estabelecimento
de um relacionamento com a Verdade, relativizada pela citada natureza
pessoal e dinâmica da mesma, em contraposição a verdades contratadas ou
estabelecidas por códigos legais. Somente mais tarde houve o cisma entre a
indivíduo e a comunidade, conhecido nos dias de hoje.
A tensão não dialética criada entre modos distintos de entender
a liberdade, se fundiu no nascedouro do Ocidente com a tentativa de
conciliação conceitual iniciada no século II e que tem seu primeiro ápice e
sistematização em Agostinho (1991), ao tentar harmonizar as concepções
grega e judaica, unindo o cristianismo a uma visão platônica da realidade, e
segue sendo perceptível ao longo de subseqüentes interações ao longo da
Idade Média, permanecendo claramente expressa, enquanto tensão resistente
à síntese, na dificuldade em conciliar os aspectos coletivos e individuais da
liberdade presentes nos conceitos de liberalidade e liberdade defendidos e
expressos dentro do modo de produção capitalista. Bem como se verifica o
oposto pela resistência proposta nas formas coletivas de compreensão da
liberdade, defendidas pelo pensamento marxista e pelo pensamento libertário,
que contradizem este modo de produção e propriedade centrado no indivíduo,
próprio do pensamento liberal.
Como afirmado anteriormente, esta palavra é uma daquelas a
que se pode chamar de “palavra plástica”, ou “palavra ameba”, expressão
usada por Illich (CAYLEY, 1992; p. 253)
e criada por Uwe Pörksen (1995)
20
,
que define o conceito como uma palavra com conotações poderosas, que dá a
quem a usa um certo ar de importância e relevância, que parece provocar
ondas e impactos quando surgida em uma conversação, mas que se forem
observadas mais atentamente, tais ondas são “como ondas provocadas por
20
Para maior compreensão do conceito: Pörksen, Uwe. Plastic Words: The Tyranny of Modular
Language. University Park, Penn., 1995.
41
uma pedra em um lago” que se espalham porém sem chegar a lugar algum.
Usualmente é uma palavra que parece sempre ter existido e ser de ampla e
clara compreensão, que passa por uma “lavanderia acadêmica”, ganha
conotações e nuances que parecem ser de pleno conhecimento, mas que no
fundo não pode ser deslindada, compreendida e sondada em profundidade por
quem a profere ou quem a ouve, o que lhe permite o uso de várias formas,
inclusive algumas levianas, ainda que sem parecer que o sejam (CAYLEY,
1992, p. 254).
Por fim pode-se afirmar, conforme registra Jorge Furtado ao
final de seu documentário “Ilha das Flores” de 1989: “Liberdade é uma palavra
que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, nem
ninguém que não entenda” (FURTADO, 1989). Mesmo que assim seja, no
entanto, o conceito de liberdade com o qual trabalharei nesta pesquisa tem
dois componentes, o individual e o coletivo, como se encontra exemplificado na
citação clássica de Eliseé Reclus:
A anarquia é a mais alta expressão da ordem. Para que o socialismo
chegue à sua completa expressão é preciso que salvaguarde ao mesmo
tempo os direitos do indivíduo e os direitos coletivos. O homem não é um
acidente, mas sim um ser livre, necessário e ativo que se une com os seus
semelhantes mas que não se confunde com eles (RECLUS, 1906, fac-
símile sem paginação).
Ou seja, a liberdade, aqui compreendida, não é um conceito
estático, dado de uma vez por todas, mas uma construção permanente,
dinâmica, que se baseia em direitos mais complexos que os simples direitos
individuais, e mais realizadores que os limites dos direitos coletivos. Na tensão
dialética entre estes dois pólos encontra na renúncia a ambos, e na afirmação
dos mesmos, sua permanente expressão.
Não sendo uma categoria apriorística, a liberdade está sempre
garantida e sempre em risco, sempre disponível e sempre ameaçada, porque
só se é livre sendo e não porque alguém outro, uma lei ou instituição, o
determine ou delegue, mas porque a liberdade se conquista diariamente na
42
relação com a Verdade, se constrói no embate com tudo que tenta escravizar e
diminuir o ser humano e somente se garante no vivenciar do agora, sem
garantias no amanhã.
2.1.2 Propriedade
Outro conceito fundamental para o entendimento do
pensamento libertário e das noções de educação e aquisição de conhecimento
por parte dos autores estudados em minha pesquisa é o de propriedade.
PROUDHON (1840)
21
, em seu clássico livro “O que é a propriedade?” (Qu'est
ce que la propriéte?), afirma que “toda a propriedade é um roubo”
(PROUDHON, 2001). As implicações deste conceito para a educação, que
serão exploradas nas relações entre opressor e oprimido em Paulo Freire,
entre professor e aluno em Tolstoi e na denúncia da arrogância do
conhecimento oficial e hegemônico em Illich, se relacionam na Educação à
pressuposição de apropriação e controle do saber, tanto de quem ensina,
quanto daqueles que o transformam em commodity, a ser adquirida em um
suposto mercado do conhecimento. Para as finalidades de minha pesquisa, me
proponho a buscar, nas formas de pensar originárias do pensamento ocidental,
algumas possíveis raízes do pensamento libertário quanto à propriedade.
Na forma de pensar judaico-cristã primitiva, a propriedade
privada é uma idéia estranha, e igualmente o é a propriedade coletiva. Na
verdade qualquer propriedade é questionada na fundação do pensamento
judaico quando se verifica que seu ponto de partida é a declaração de
permanente peregrinação por parte do povo, manifesta na expressão inaugural
da nação judaica: “A Terra é minha... diz o Senhor... vocês são apenas
estrangeiros e imigrantes”
22
. A aparente fonte da distinção entre posse e
propriedade em Proudhon, presente na obra do autor citada acima, pode ser
atribuída a esta origem. O autor afirma em sua obra, ao criticar o
consentimento coletivo como forma de legitimação do princípio de propriedade:
21
PROUDHON, P.J.- ¿Qué es la propiedad?, Sarpe-Aguilar, Madrid, 1985 – edição facsimilar
em e-book
22
“A terra não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são apenas
estrangeiros e imigrantes.” Levítico 25:23, ver tb Deut. 10:14
43
Mas o Criador da Terra não a vende, a presenteia, e ao doá-la não faz
expressão nominal dos favorecidos. Como, pois, entre todos os seus filhos,
uns tem a consideração de legítimos e outros de bastardos? Se a igualdade
de lotes foi de direito primitivo, como se
pode sancionar a desigualdade de
condições por um direito posterior? (PROUDHON, 1985 – p. 60-61)
23
A garantia de acesso permanente ao meio de produção,
expressa pela ordem de dela tomar posse
24
, e o cancelamento de qualquer
possibilidade de acumulação permanente destes meios, prevista pelo princípio
do jubileu celebrado pela volta à posse dos meios de produção – a terra no
caso de uma sociedade agrária - a cada 50 anos
25
, são sinais evidentes nesta
cultura de, no mínimo, uma diferença fundamental dos conceitos de
propriedade nos quais se baseiam as sociedades modernas.
No Novo Testamento, este princípio é revisitado e aprofundado
no conceito de comunhão
26
- κοινωνία – que difere frontalmente do senso
comum da palavra em nossos dias, reduzido a “estar junto” ou “dar as mãos”.
O termo grego koinonia tem sua origem no grego Koinós, que significa
“profanar, tornar de uso comum, aberto e disponível a qualquer um” (STRONG,
1984). A prática dos primeiros cristãos, calcada na profanação do “sagrado”
direito de propriedade, se caracterizava pelo descaso para com qualquer forma
de propriedade privada ou coletiva, uma vez que a proposta daquele então
novo modo de pensar se baseava na compreensão de que cada bem estava
em posse de alguém, para o bem comum, como guardador do referido bem,
nunca como seu proprietário
27
.
No pensamento grego, conforme MARINI:
A formação desse conceito fundava-se no palpável, ou seja, naquilo que se
tinha como legitimamente detido por alguém. Mas era uma posse sem
qualquer título, a legitimação dava-se de forma fática. O direito para os
antigos estava muito ligado aos fatos. Na Grécia a pessoa que detinha um
bem, tinha a posse dele, assim, era dona desse bem, que tinha
características próprias e específicas, mas, o que advinha desse direito,
notadamente os frutos, como resultado das colheitas, eram divididos com
23
Pero el creador de la tierra no la vende, la regala, y al donarla no hace expresión nominal de
los favorecidos. ¿Cómo, pues, entre todos sus hijos, unos tienen la consideración de legítimos
y otros la de bastardos? Si la igualdad de lotes fue de derecho primitivo, ¿cómo puede
sancionarse la desigualdad de condiciones por un derecho posterior?
24
“Apoderem-se da terra e instalem-se nela, pois eu lhes dei a terra para que dela tomem
posse.” Números 33:53.
25
“Neste ano de jubileu tornareis cada um à sua possessão.” Levítico 25:13.
26
Atos 2:42.
27
Atos 4:32 “Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas
compartilhavam tudo o que tinham.”
44
todos os cidadãos da localidade. Assim, tinha-se que a propriedade era um
instituto que tinha na posse, sua origem. Esta palavra etimologicamente tem
por significado estabelecer-se sobre a coisa, ficar estabelecido sobre ela
(MARINI, 2000,
documento eletrônico sem paginação).
Apesar da noção de posse, aparentemente também
reconhecida pela cultura grega, o que se pode discutir no caso de sua prática
seria a consideração quanto à legitimidade da propriedade, que se fundava no
direito de nascença, de uso ou do pertencimento a uma determinada classe,
que não só era proprietária dos meios de produção material, bem como dos
seres humanos que neles trabalhavam e do saber formal, que lhe era atribuído
de forma exclusiva, adquirido e usufruído separadamente do trabalho manual,
conforme exemplificado na prática da scholé
28
dos filósofos. Ou seja, ainda
que o compromisso com a polis fosse concebido, a propriedade privada de
coisas e pessoas e a divisão em classes era a norma. E era o fazer parte da
classe dominante e ter acesso a este tipo de propriedade que garantia também
o acesso ao saber, à política e à academia.
As implicações deste conceito para a compreensão de alguns
conflitos teóricos dentro da educação em nossa sociedade me parecem óbvios,
uma vez que, entre outras conseqüências, aquele ou aquela que educa pode
optar por enxergar-se como proprietário discricionário do saber, o qual concede
a outro da forma que melhor lhe parecer, assumindo assim uma postura
autoritária e por conseqüência opressora. De forma oposta, este mesmo
educador ou educadora, imbuído de um outro conceito com relação à
propriedade, pode vir a se perceber como de posse de um saber que não lhe
pertence enquanto um bem exclusivo, mas à humanidade, o qual se encontra
sob sua guarda com a finalidade de ser compartilhado de forma socializada, de
acordo com a demanda e a necessidade coletiva.
Outro risco, lembrado posteriormente por Paulo Freire, é o de
que o educador e a educadora, considerem “seus” os educandos, “suas” as
salas, “seus” métodos, “suas” teorias e “seus” os instrumentos de aferição do
saber. Esta atitude se baseia na noção disseminada da naturalidade da
apropriação, oriunda da concepção iluminista de separação entre sujeito e
28
Que significa, em grego, ócio
45
objeto, da dessacralização a priori de tudo que não seja humano - e na
posterior perda da sacralidade, transformação e objetificação de pessoas em
recursos humanos - ou no hábito de estabelecer categorias generalizantes
como “pobres”, “carentes”, “menores”, e assim por diante, o que abre a
possibilidade de pessoas assim categorizadas, serem coisificadas, e portanto
possuídas.
O conceito judaico-cristão de posse responsável, de livre
acesso ao meio de produção e de limite na acumulação com o sentido de evitar
o estabelecimento de uma sociedade de classes, pode ser aplicado de maneira
direta à educação, de maneira especial quando hoje é o conhecimento, e não a
terra, que passa a ser considerado como capital fundamental para a produção,
acumulação e exercício do poder. Sendo assim, o livre acesso ao
conhecimento, defendido de forma especial por Illich, o compartilhamento e
distribuição da cultura defendida por Tolstoi e a luta pela extinção da sociedade
de classes que Freire propõe pela conscientização, podem buscar contínua
fonte de inspiração nesta fonte no enfrentamento e necessidade de ousadia
diante da permanente crise do modelo educacional e societário escolhido em
geral no ocidente e de maneira particular no Brasil
Dependente da maneira como se relaciona no que diz respeito
à propriedade ou não do saber, dos conteúdos, dos objetos e das pessoas, o
educador ou educadora construirá seu conceito de autoridade.
2.1.3 Autoridade
Autoridade se constitui em uma das questões centrais nas
relações que permitem o aprender, de forma particular nos autores
relacionados às formas de educação libertária. Na medida em que autoridade e
autoritarismo se interrelacionam dialeticamente, as relações de poder entre os
que aprendem e os que ensinam são funções a determinar a maneira como se
compreende a autoridade na relação entre quem ensina e quem aprende.
A ausência de autoridade é a origem de todo autoritarismo. Ao
se prescindir da autoridade o que surge não é a esperada anomia, ou a
anarquia, especialmente no sentido como a imagina o senso comum. O
46
anarquismo não é a ausência de autoridade, mas a resistência à submissão
irrefletida aliada à noção de que a lei que sustenta a autoridade nunca deve ser
imposta de fora para dentro, mas se relaciona à presença da lei internamente
ao sujeito, que a ela se submete por vontade própria, como afirma Bakunin:
“A liberdade do homem consiste unicamente nisto: ele obedece às leis
naturais porque ele próprio as reconheceu como tais, não porque elas lhe
foram impostas exteriormente, por uma vontade estranha, divina ou
humana, coletiva ou individual, qualquer. ... Inclino-me diante da autoridade
dos homens especiais porque ela me é imposta por minha própria razão”
(BAKUNIN, 2000, p.23).
A ausência de rigor, a instalação da desordem, o estilo laissez-
faire e a falta de significado abrem perigosamente a porta para a arbitrariedade,
para os “salvadores da pátria”, para a exceção. A diferença fundamental não
está entre ter ou não autoridade, mas no relacionamento que se tem com esta
e com quem a possui, na sua origem e na finalidade pela qual se a exerce.
Quanto ao tipo de relacionamento que se pode ter com a
autoridade, Mikail Bakunin, representando o pensamento libertário, diz
Decorre daí que rejeito toda autoridade? Longe de mim este pensamento.
Quando se trata de botas, apelo para a autoridade dos sapateiros; se se
trata de uma casa, de um canal ou de uma ferrovia, consulto a do arquiteto
ou a do engenheiro. Por tal ciência especial, dirijo-me a este ou àquele
cientista. Mas não deixo que me imponham nem o sapateiro, nem o
arquiteto, nem o cientista. Eu os aceito livremente e com todo o respeito que
me merecem sua inteligência, seu caráter, seu saber, reservando todavia
meu direito incontestável de crítica e de controle. Não me contento em
consultar uma única autoridade especialista, consulto várias; comparo suas
opiniões, e escolho aquela que me parece a mais justa. Mas não reconheço
nenhuma autoridade infalível, mesmo nas questões especiais;
conseqüentemente, qualquer que seja o respeito que eu possa ter pela
humanidade e pela sinceridade desse ou daquele indivíduo, não tenho fé
absoluta em ninguém. Tal fé seria fatal à minha razão, à minha liberdade e
ao próprio sucesso de minhas ações; ela me transformaria imediatamente
num escravo estúpido, num instrumento da vontade e dos interesses de
outrem.
Se me inclino diante da autoridade dos especialistas, e se me declaro
pronto a segui-la, numa certa medida e durante todo o tempo que isso me
pareça necessário, suas indicações e mesmo sua direção, é porque esta
autoridade não me é imposta por ninguém, nem pelos homens, nem por
Deus... Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda
influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio
universal, convencidos de que ela só poderia existir em proveito de uma
minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria
subjugada.
Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas (BAKUNIN, 2000, p.25).
47
A principal fonte de diferença se relaciona com a origem da
autoridade: usualmente pode-se afirmar que se possui autoridade por natureza,
por delegação ou por reconhecimento. No primeiro caso, uma condição
legalmente articulada, ou uma pressuposição de natureza individual ou
coletiva, pode dar a quem possui tal forma de autoridade a impressão de poder
absoluto e de inquestionabilidade. No segundo caso, o consentimento social,
ou de classe, coloca quem possui tal autoridade como legítimo representante
autorizado da e pela sociedade, ainda que limitado pelos códigos e contratos
que lhe legitimam e diante dos quais deve prestar contas. No entanto, aqueles
sob tal forma de autoridade raramente podem questioná-la uma vez que a
tenham delegado, principalmente se não possuírem igual voz e representação,
como é o caso da menoridade em nossa sociedade. No terceiro caso, a
autoridade é reconhecida por aqueles junto a quem a mesma é exercida e
aceita por vontade própria, mediante a expressão da prática, o reconhecimento
de capacidades e os resultados no exercício de suas atribuições.
Em grego, três palavras são utilizadas para referir-se ao termo
autoridade e dão sentidos aproximados aos acima sugeridos: DINASTES -
δυνάστης, (dünastes), ARQUIA - αρχή, (arque) e EXOUSIA - εξουσία. As três
expressões, muitas vezes traduzidas para o português como uma só, possuem
significados diferentes que implicam em diferenças na compreensão do
princípio.
A palavra DÜNASTES, de onde se origina a nossa palavra
dinastia, se refere ao que exerce e tem um poder indiscutível, um grande
potentado. Seja por direito divino ou por qualquer outro motivo, é um fato dado
e indiscutível, a ser acatado por aquele sobre quem a autoridade é exercida
(THAYER, 1996).
O termo ARQUIA se refere ao poder e à posição da pessoa
que representa um poder, e como representante delegado exerce seu poder.
Usado como posposição em palavras tais como anarquia, hierarquia,
oligarquia, tem a função de representar a outrem em relação a quem se está
em posição superior, e não deve ser confundido com o termo correlato ARCIA,
que significa poder absoluto.
48
O terceiro termo EXOUSIA, traduzido também como poder, tem
a característica de delegação, mas também de reconhecimento, e não existe
na forma absoluta e discricionária. Limitado tanto por quem delega quanto por
aqueles sobre quem é exercido, pode-se afirmar que a estabilidade de tal
autoridade se garante mediante o reconhecimento dos que a acatam. A
aproximação que se pode fazer para facilitar a compreensão poderia estar em
nosso conceito de “autoridade moral”. No pensamento judaico-cristão é sempre
poder limitado e relativo e não existe por si só
29
, uma vez que sua origem está
para além daquele que a exerce e deve ser acompanhada de uma atitude de
prestação de contas.
O estudo das palavras em seu contexto, um passo além do que
aqui faço ao estudá-las como palavras isoladas; os usos que se pode fazer em
cada aparecimento nos textos, e mesmo as possíveis dinâmicas semânticas e
intercâmbios de uso, podem ajudar ainda mais a esclarecer e compreender
tanto os riscos quanto as possibilidades no exercício da autoridade.
O entendimento do conceito, a partir desta análise, traz
implicações que me parecem mais uma vez claras para o exercício da
atividade de educador. Dependentes da compreensão conceitual por parte de
quem exerce a autoridade, serão as reações e tensões criadas em seu
exercício.
Para BAKUNIN (2000), o processo educativo libertário se inicia
com forte expressão de autoridade por parte dos adultos em relação às
crianças envolvidas nas relações de aprendizagem:
O princípio da autoridade na educação das crianças constitui o ponto de
partida natural: ele é legítimo, necessário, quando é aplicado às crianças na
primeira infância, quando sua inteligência ainda não se desenvolveu
abertamente. Mas como o desenvolvimento de todas as coisas, e por
conseqüência da educação, implica a negação sucessiva do ponto de
partida, este princípio deve enfraquecer-se à medida que avançam a
educação e a instrução, para dar lugar à liberdade ascendente. Toda
educação racional nada mais é, no fundo, do que a imolação progressiva da
autoridade em proveito da liberdade, onde esta educação tem como objetivo
final formar homens livres, cheios de respeito e de amor pela liberdade
alheia. Assim, o primeiro dia da vida escolar, se a escola aceita as crianças
na primeira infância, quando elas mal começam a balbuciar algumas
palavras, deve ser o de maior autoridade e de uma ausência quase
completa de liberdade; mas seu último dia deve ser ó de maior liberdade e
29
Cf. Rom. 12:1
49
de abolição absoluta de qualquer vestígio do principio animal ou divino da
autoridade (BAKUNIN, 2000, p.33).
No que diz respeito ao uso da autoridade no pensamento
libertário, o alvo, e ao mesmo tempo o limitador, é sempre a liberdade, que se
constitui no momento em que aquele sobre quem se exerce a autoridade a
questiona. Demanda-se, portanto, que quem a exerce possua não só a
anuência daquele sobre quem se exerce, mas, também, o reconhecimento da
autoridade por parte de quem está sob a mesma, acompanhada da clara noção
da finalidade pela qual se a exerce. Esta relação sobressai no relacionamento
entre pais e filhos, onde tal autoridade, quando exercida com o sentido de
permitir a emergência de um caráter livre e responsável, está imersa em
relações de amorosidade e de coerência. Aliás, na Pedagogia Libertária são
exatamente o exemplo, o amor e a coerência as características mais centrais
no processo de aprender (MORAES,1999, p. 24).
2.1.4 Comunidade
Quando me proponho, nesta pesquisa, a estudar o educador e
a educadora a partir dos conceitos de uma Pedagogia Libertária e libertadora, o
faço com uma concepção de educação, ou formação humana, não
escolarizada e fortemente comunitária. Falar desta forma e usar este termo,
pode criar a falsa impressão de conforto e simpatia, própria das idealizações
sobre a vida em comunidade. Como diz Bauman: “Nunca deixaremos de
sonhar com a comunidade, mas também jamais encontraremos em qualquer
comunidade autoproclamada, os prazeres que imaginamos em nossos
sonhos...” (BAUMAN, 2003, p.6)
30
.
Citando Eric Hobsbawn, o mesmo autor observa que “a palavra
‘comunidade’ nunca foi utilizada tão indiscriminadamente quanto nas décadas
em que as comunidades no sentido sociológico se tornaram difíceis de
encontrar na vida real”, e que a demanda por comunidade se revela pelo fato
30
Bauman, Z. (2003). Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
50
de que “Homens e mulheres procuram grupos de que possam fazer parte, com
certeza e para sempre, num mundo em que tudo o mais se desloca e muda,
em que nada é certo” (BAUMAN, 2003, p. 196). No entanto, apesar do
pessimismo aparente, a opção que o mesmo autor afirma, e que a atitude
esperançosa de Paulo Freire - e daqueles que parecem com ele concordar
como Boaventura de Souza Santos (2002) que advoga uma sociologia das
emergências ao olhar para nossas ausências com o sentido de “Ainda não” - é
que, “sendo humanos” estamos limitados pelo fato de que “não podemos
realizar a esperança, nem deixar de tê-la.” (BAUMAN, 2003, p.6).
Para entender o conceito de comunidade, me proponho a
tentar seguir o mesmo caminho até aqui tomado na análise conceitual,
começando com a matriz judaico-cristã e grega que compõem a matriz de
nossa sociedade, em seguida tentando apontar para algumas implicações na
nossa maneira de ser sociedade e de educar.
Os termos êdâh – הדע , que tem o sentido de familiaridade e
ajuntamento de pessoas com a mesma identidade, e ‘am - םע , que possui o
sentido de identidade comum e congregação unânime, são os termos originais
do sentido comunitário no pensamento judaico. Este conceito está intimamente
ligado a dois outros que o acompanham: o de paz - םלשׁ םולשׁ - (shalom shalom)
e o de Aliança - תירבּ - (b
e
rîyth) (STRONG, 1984; THAYER, 1996). Aquela paz,
que se traduz em um complexo estado de bem-estar que transcende a
tranqüilidade do entorno e que remete a aspectos internos e externos ao sujeito
e à sua relação coletiva, ambiental, social e psicológica, é um estado
experimentado na comunidade com outros, diante de seu Deus. A Aliança
remete à identidade única do povo como povo de
Deus. Com o que este povo é
visto como responsável diante de um outro e constrói suas relações com os
outros a partir desta responsabilidade. Ambos aspectos que esboçam os dois
conteúdos centrais que segundo Bauman (2003), compõem o sentido de
comunidade: segurança e liberdade. Estas componentes traduzem a relação
dialética no conceito, uma vez que, segundo o mesmo autor, quanto maior é a
segurança, menor a liberdade e vice-versa. No pensamento judaico é Deus
como outro, diante de quem e a quem pertence a comunidade, que cria as
condições para a possibilidade das sínteses expressas na práxis da
comunidade.
51
O grande diferencial na noção judaica do conceito de
comunidade baseada nesta relação com Deus, foi a compreensão de que a
comunidade se forma em um processo que parte da possibilidade de ver a si
própria como uma nação formada a partir da comunidade tribal e familiar em
torno de seu Deus e, ao mesmo tempo, de um povo constituído a partir do
compromisso com a humanidade como um todo, manifestada na forma de uma
aliança libertadora. Esta relação entre comunidade e liberdade significava e
implicava em que, mesmo partindo de uma situação de ser uma comunidade
liberta de alguma coisa, ela se emancipava e realizava plenamente como
comunidade liberta para alguma coisa.
Esta “alguma coisa” foi simbolizada pela aliança de um povo
com seu Deus e seus princípios, fundados na justiça que, se cumprida, os
transformaria em uma nação mais do que distinta das demais ao seu redor:
uma nação que seria ao mesmo tempo sinal de outra maneira possível de se
viver, abençoadora de outras nações ao seu redor e fonte de inspiração e
encorajamento na luta contra a opressão e pela plena realizão do projeto
humano. Realização esta que não seria conseqüência de seus atributos
subjetivos, mas da diferença demonstrada na preocupação e no cuidado
destinado aos filhos, aos órfãos, aos pobres (simbolizados pelos levitas e pelos
despossuídos circunstanciais), às viúvas e aos estrangeiros, conforme a quase
uma centena de textos específicos a cada um destes temas na Torá
31
.
Não somente se formava uma comunidade nascida de uma
história de opressão e escravidão, mas uma coalizão de comunidades com o
objetivo de ser uma nação livre e emancipada com o compromisso de se
manter emancipadora e libertadora dos indivíduos que dela faziam parte e de
ser modelo de emancipação, no mesmo sentido, para outras. Ser uma
comunidade separada poderia dar a sensação de comodidade e acomodação,
no entanto, ter um compromisso e uma aliança para além de si dava à
comunidade um sentido de objetivo e razão de ser e existir no e para o mundo
no qual existe como comunidade da liberdade.
31
Por exemplo :Deut. 14:29 Então virá o levita (pois nem parte nem herança tem contigo), o
peregrino, o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão; para
que o Senhor teu Deus te abençoe em toda obra que as tuas mãos fizerem.
52
No pensamento grego
32
, Platão e Aristóteles fundamentam sua
compreensão de comunidade na expressão da POLIS, a cidade-estado, onde
as relações de familiaridade, segurança e liberdade dos cidadãos são
fundamentais. A pouca importância dada por estes autores às relações para
fora da cidade-estado, se baseia no fato de que toda a atividade política (da
polis) se via reduzida ao propósito da PAIDEIA
33
, vale dizer, a formação e
educação moral dos cidadãos. Por considerar todo espaço político maior e
superior ao da cidade-estado um âmbito pouco propício para efetuar a
PAIDEIA, ambos não consideram tais espaços como importantes ou relevantes
em suas obras.
Este pensamento original grego se viu ameaçado na seqüência
dos acontecimentos históricos quando, alguns séculos antes da era cristã, o
pensamento latino representado por Roma o substitui hegemonicamente
quando da constituição do que viria a ser o Império Romano. Os pensadores
latinos, cuja vida acontecia em um espaço político muito mais amplo e
complexo, propuseram uma compreensão de comunidade internacional e não
relacional e uma distinta reflexão filosófico-política. Neste contexto a pequena
cidade-estado foi literalmente varrida, e absorvida, juntamente com toda a
cultura mediterrânea, pelo Império Romano. No dizer de Wolin:
La megalópolis había desplazado a la polis; y en esta nueva dimensión
espacial resultaba anacrónica la antigua concepción de la asociación
política, tal como la mantenida mediante una amistad entre familiares. El
concepto de comunidad política había sido arrollado por el mero número y
diversidad de los participantes (WOLIN, 1973, p. 87).
De forma concreta pode-se afirmar que o conceito de
comunidade e cidadania concebido pelos gregos deixou de ser útil, uma vez
que a lealdade e a identidade pessoal não eram suficientes para a demanda
por coesão que o Império exigia da rica variedade de povos e culturas
32
Mais uma vez ressaltando que o pensamento grego, como aqui é apresentado, pode parecer
idealizado e muito menos complexo e multifacetado do que na verdade seria, porém os limites
da dissertação e o foco do tema não permitem que um aprofundamento neste sentido ocupe
mais espaço do que aquele aqui ocupado.
33
Para a melhor compreensão do termo recomendo a leitura da dissertação da tese de
doutoramento de Renato Gross: GROSS, Renato. Paidéia: as múltiplas faces da utopia em
pedagogia. UNICAMP. Tese de doutorado em Educação. Data da defesa: 01/07/2005.
53
colonizadas e a serem romanizadas e absorvidas. O Império passou a assumir
uma posição a partir da qual se acreditava que providenciando um caráter
sacrossanto e de culto à obediência devida à autoridade (personificada pelo
Imperador) se poderia conseguir lealdade e unidade, em meio à tão imensa
diversidade.
A distância entre o centro do poder e a vida real dos súditos
tornou necessário o emprego de meios de controle e interação diferentes
daqueles em uso pelos gregos. Um intenso esforço e busca por símbolos,
métodos de controle político, normas, leis e direito “natural” foram
imaginativamente criados pelos detentores do poder, a começar pelo
estabelecimento de uma língua internacional oficial. E deveria ser assim, uma
vez que a convivência de múltiplos povos, idiomas e saberes requeria
esquemas de controle mais gerais, mais abstratos e mais impessoais.
É impossível, quando chego a este ponto, não correlacionar a
realidade dos últimos séculos anteriores à era cristã com a situação vivida no
mundo atual, principalmente a partir de um contexto de nação periférica e
globocolonizada
34
como o Brasil. Especialmente diante das óbvias
conseqüências da imposição de pensamento único, de tecnologias
hegemônicas na educação, da importação de tendências globalizantes e de
uma suposta “sociedade do conhecimento”, estimulante de ainda mais
imateriais e questionáveis “comunidades virtuais de aprendizagem” baseadas
em relações “à distância” e não presenciais.
Os paradigmas próprios da pequena família grega
transformada em cidade e da tribo judaica com uma missão demonstradora de
outras possibilidades, baseada em laços fraternais de intimidade, que
comprometem e amarram, se possuíam a chance de existir pelo menos em
potencial, foram solapados e substituídos pelo pensamento Imperial latino.
Os cento e cinqüenta anos que precedem à era cristã
anunciavam o fim da história, numa espécie de prenúncio daqueles que viriam
a afirmar o mesmo nos tempos atuais
35
. A sociedade daquela época foi
34
Termo originalmente criado e utilizado por Frei Beto em vários de seus pronunciamentos e
textos.
35
Francis Fukuyama, publicou um artigo largamente utilizado pelos defensores de posições
neoliberais com o título "The end of history” em 1989, na revista norte-americana The National
Interest. Em 1992, Fukuyama lançou o livro “The end of history and the last man”, editado no
54
lançada assim em uma caótica crise convivencial e a posse e o desrespeito
pela vida alheia se tornaram a norma, colocando em cheque a vida tribal e o
clã como ponto de partida e chegada do pensamento político e clamando por
soluções de caráter global, o que gerou a contrapartida de um regime forte, de
exceção e arbítrio.
A teoria política do século e meio que antecedeu à era cristã
gerou, como fruto, um novo espaço de convívio, se é que assim se pode
chamá-lo, mais amplo e que ultrapassava em muito o espaço reconhecido
como viável por aqueles que elaboravam o conceito de cidade-estado. Uma
complicação a mais neste novo estado de coisas foi que houve uma sutil
modificação da consideração do ser humano como "animal político", próprio do
pensamento grego, para uma nova compreensão, ainda que incipiente, de
cada um compreender-se a si mesmo como indivíduo.
Em meio a este ambiente surge uma nova maneira de pensar,
inspirada e ampliada a partir da maneira hebraica de compreender a
comunidade e com semelhanças com a organização da polis grega. Esta nova
comunidade, na qual escravos, estrangeiros e inclusive povos considerados
bárbaros, podiam e deviam conviver harmonicamente, baseando-se em
inegáveis pressuposições que davam oportunidade ao surgimento da concórdia
e da resolução alternativa de diferenças e conflitos, foi sistematizada no que se
convencionou chamar de pensamento cristão.
A inauguração da nova concepção de comunidade que surgia,
se relacionava muito mais ao conceito grego da cidade-estado do que ao
templo judaico. Isto se exemplifica pela idéia esboçada pelo próprio Jesus
quando pela primeira vez se refere à futura comunidade e a chama de
EKKLESIA - εκκλησία – literalmente significando “chamados para fora” e
usualmente referida às assembléias de cidadãos das cidades-estado,
convocadas para serem realizadas às portas e fora de seus muros, com a
finalidade de buscar soluções para os problemas administrativos, as quais,
uma vez encontradas, provocavam a dissolução da assembléia de cidadãos e
o retorno para dentro dos muros da cidade com a missão de resolução da
Brasil com o título “O fim da história e o último homem”, trad. Aulyde Soares Rodrigues, Rocco,
Rio de Janeiro, 1992.
55
situação discutida. Como exemplo, pode-se citar a cidade de Atenas que era
governada por uma EKKLESIA.
Na inauguração deste novo conceito verifica-se a mescla das
noções grega e judaica de comunidade em uma síntese interessante. Sua
prática estava fundada na noção de propriedade relativa acima explanada e na
liberdade alcançada pelos que dela faziam parte. A comunidade assim criada,
tinha muito pouca semelhança com o termo igreja como é usado hoje. Possuía
claros aspectos políticos, relacionais, conceituais e que se projetavam a todos
os aspectos da vida de seus membros, principalmente àqueles relacionados ao
bem estar comum e às necessidades físicas destes e dos de fora. Se
comparada a uma comunidade beneficente, o seria para o benefício
principalmente dos não membros.
A comunidade, onde se pudesse experimentar a segurança e a
liberdade em equilíbrio dinâmico era o objetivo e a natureza da EKKLESIA. Do
ponto de vista do Império, as comunidades cristãs primitivas eram
essencialmente sociedades de ajuda mútua, que se estabeleciam
autoctonemente do ambiente oficial e que possuíam como autoridade
alternativa seus próprios conselhos regendo sobre uma espécie de cidade-
estado espiritual. O foco destas sociedades, formadas também pela
comunidade cristã internacional, era conspirar por um outro tipo de sociedade
humana. Para os cristãos esta sociedade era chamada de Reino, constituída
mediante uma nova PAIDEIA baseada na revelação escrita e na pessoa de
Jesus. Neste Reino se podia promover a mútua prestação de contas, resolver
disputas, assegurar que as necessidades físicas de todos fossem atendidas e
obviamente a anunciação da mensagem libertadora de Jesus, de que um outro
mundo, sociedade, conjunto de valores e modo de produção estavam ao
alcance das mãos.
36
Muito mais que uma posição ideológica e idealizadora, este
conceito guardava um forte sentido de devir e de construção permanente.
Obviamente, o confronto entre esta forma de pensar e o pensamento do
Império não se fizeram esperar. Suas conseqüências na ordem social e
econômica, e sobretudo no esquema de lealdades, receberam a resposta típica
36
Os relatos abundantes de todos estes aspectos se encontram no livro de ATOS, Novo
Testamento.
56
das situações de exceção, traduzidas em perseguição, cárcere, tortura, morte e
exílio.
A pesquisa do conceito até aqui mostra que são exatamente os
aspectos relacionais, presentes e subjacentes à forma de pensar, tanto da
cidade-estado grega, quanto das tribos judaicas e da EKKLESIA cristã, aqueles
que acabam suprimidos pela internacionalização, a universalização, as
relações distantes e o individualismo. É difícil não estar convencido de que a
defesa dos aspectos comunitários presentes no pensamento libertário ocidental
não tenham se alimentado de tais fontes para se constituírem em utopia a ser
realizada.
Na Educação percebem-se ecos deste conceito em
movimentos de educação alternativos como a educação assumida pelos pais
em movimentos como o “unschooling” americano, nas escolas Paidéia, na
Espanha, nos modelos de escola como a “Escola da Ponte”, em Portugal, nas
“Escolas Democraticas” no Brasil, nos movimentos de participação dos pais na
gestão da educação participativa, nas idéias de Steiner e Neil, na defesa de
modelos comunitários e de pequeno tamanho na Inglaterra atual – Human
Scale Education
37
. É difícil conceber que tais tentativas não estejam em uma
posição crítica a modelos da alta produtividade como aqueles contra os quais
se insurgiam Tolstoi e Illich, em todo o esforço posto na ênfase relacional
presente ao longo da obra de Paulo Freire e na proposta de convivencialidade
de Ivan Illich.
As propostas de “comunidades” de aprendizagem
homogêneas, não presenciais, à distância, não moldadas por aspectos outros
para além dos conteúdos e do atendimento às demandas do mercado, que
entendam a Educação de um ponto de vista que cria ausência dos aspectos
vernaculares das redes humanas locais – que se expressam em maneiras de
ser e se relacionar enquanto comunidades - podem ser comparadas às formas
imaginativas usadas pelos romanos antigos para impor seu pensamento e
assegurar a sua hegemonia, agora revisitadas a partir das possibilidades tão
imaginativas quanto aquelas, tornadas possíveis pelo método científico e pela
tecnologia.
37
http://www.hse.org.uk/
57
Para finalizar esta breve tentativa de arqueologia deste
conceito, eu me arriscaria a, pessoalmente, definir a comunidade como o
espaço dinâmico de relações - tenso e promissor - um lugar de vir a ser, em
permanente construção, onde duas forças, necessárias e antagônicas - a
liberdade e a segurança - lutam para encontrar um ponto de equilíbrio. Ponto
de equilíbrio este do qual se corre o risco de cair para estados de escravidão
proporcionados pelo grande apego ao pouco risco e o muito apego à
segurança, ou para a experiência do abandono, perda e do sentimento de
solidão, quando se atribui maior ênfase à liberdade individual. Tais estados
extremos fazem parte das conseqüências potencialmente alcançadas, no caso
de se desistir de viver este e outros conflitos de forma dialética e se assumir
um posicionamento lógico formal diante da tensão e da possibilidade.
2.1.5 O Ser
Na metanarrativa
38
da criação e na posterior identificação
nominal da própria identidade da divindade na tradição judaico-cristã, reside
uma complexa e interessante origem para o conceito ocidental do Ser e de sua
expressão.
O ser humano na tradição judaica, ao contrário de outras
narrativas, não é uma criatura à parte, fruto da imaginação ou do desejo de um
ser superior, nem um dado preexistente ou uma obra do acaso. Naquela
narrativa, o ser humano é uma imagem - םלצ – tselem, no hebraico e εικών,
Eikon, na LXX
39
, um reflexo, um ícone ou, melhor dizendo, uma expressão da
divindade. Esta identificação, semelhança e proximidade é o motivo no qual se
baseava o princípio da dignidade intrínseca do ser humano naquela cultura, e
não sua pertença tribal, sua classe social ou identidade cultural, como acabou
sendo fixado posteriormente.
38
Na filosofia e na teoria da cultura, uma metanarrativa assume o sentido de uma grande
narrativa, uma narrativa de nível superior (“meta-“ é um prefixo de origem grega que significa
“para além de”), capaz de explicar todo o conhecimento existente ou capaz de representar uma
verdade absoluta sobre o universo. A Bíblia e o Alcorão são exemplos de metanarrativas
universalmente conhecidas; mas toda a obra cultural e política vitoriana pode ser considerada
uma metanarrativa, tal como Ulysses de James Joyce ou as teorias feministas radicais ou as
propostas marxistas do século XX (CEIA, 2007
s.v. "Metanarrativa").
39
Septuaginta – tradução grega do Antigo Testamento.
58
E quem é esta divindade? Dentro da mesma narrativa, no épico
do Êxodo, ao ser perguntado por Moisés sobre qual seria sua identidade, a
divindade responde “ היהא רשא היהא” - ’ehyē ’ashēr ’ehyē -, que normalmente
aparece traduzido como “Eu sou, o que sou”, e que, por ser um verbo na forma
imperfeita, poderia ser melhor traduzido (ou, mais exatamente, quase sempre
significar) “Eu sou no ato de me tornar” (ARNOLD, 1905; pp. 126-127), ou
ainda, segundo o mesmo autor, “Eu serei o que vier a ser”.
Sendo o Ser Humano, nesta narrativa, uma IMAGEM – no
grego εικών, EIKON - deste ser que é o que é, ou é no ato de se tornar,
semelhantemente o ser humano é enquanto uma projeção, uma representação
deste Ser. Nasce assim um ser humano, que é também sendo, como seu
autor. Esta subjetividade se traduz também em destino e realização ontológica
e não em mera projeção metafísica, dada e idealizada, pois este Ser Humano,
apesar de originado enquanto ícone, não é uma projeção acabada de algo
acabado, mas um que se faz no presente e no futuro, como mais uma vez
afirma Arnold (1905), que melhor traduz a expressão hebraica citada
anteriormente como: “Eu serei aquilo que serei”, ou seja, “não sou dado, não fui
feito, Sou”.
No Novo Testamento, se torna ainda mais clara a construção a
posteriori do Ser, quando o destino da humanidade não é estabelecido em uma
forma ou mera expressão do Messias, mas como uma nova humanidade da
qual este é o primeiro fruto e que se faz a partir dele - e não se esgota nele -
como no texto de Romanos 8:29
40
. Os pensamentos grego e latino também
contribuem para a conceituação do Ser, principalmente por serem nestes três
que se vão formando as condições que futuramente originariam a noção
moderna de indivíduo.
Horkheimer (1974) e Adorno (2006) trabalharam
profundamente a noção do ser como indivíduo e as noções de razão objetiva e
razão subjetiva que a sustentam, sendo a primeira a razão que relaciona meios
e fins para além da esfera do sujeito, apontando para algumas razões comuns
a todos os sujeitos, no tempo e no espaço, e a segunda aquela razão
relativizada e relativizadora na relação entre meios e fins, que por estar
40
Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem
de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos;
59
fundada no sujeito individual, tende paradoxalmente a comportamentos
irracionais, subjetivamente justificados, como no caso dos campos de
extermínio nazistas, tema que aparece repetidamente na obra dos dois autores
e ponto de partida de muitos de seus trabalhos.
O tipo de razão utilizada por um sujeito individual para sua
tomada de decisões, está intimamente relacionada à noção de individualidade
carregada por este sujeito. Dependendo desta compreensão serão
relacionadas a este sujeito, de maneiras distintas, suas reações frente à vida,
ao outro, à comunidade e à educação.
Horkheimer traça a trajetória do conceito de indivíduo na
história em
quatro momentos distintos: o surgimento da noção de indivíduo e
individualidade na Antigüidade Grega; a valorização do indivíduo e o
aprofundamento da noção de individualidade com o advento do
Cristianismo; o surgimento do indivíduo liberal não mais assentado na fé
cristã, mas basicamente nos fundamentos econômicos da sociedade
capitalista e, finalmente, a neutralização do indivíduo na sociedade
administrada, provocada pela perda das bases econômicas que o
sustentaram durante o Liberalismo (MORAES, 2004, p. 24).
O ser humano moderno tem a falsa impressão de que a noção
de individualidade sempre existiu e de que sua compreensão de identidade é a
mesma esposada por todos os seres humanos em todas as épocas desde
sempre. Na verdade, as noções de indivíduo e individualidade, que deram
origem a escolas e escolhas pedagógicas com as quais convivemos,
principalmente ao longo dos dois últimos séculos de escolarização, seguem de
perto a trajetória traçada por Horkheimer. Notadamente nas duas ultimas fases
acima descritas e que possuem reflexos diretos na maneira de educar, com o
surgimento, há cerca de dois séculos, de um instrumento fundamental na
sociedade e modo de produção capitalista: a escola conforme a conhecemos
(FOUCAULT,2005). A permanente tentativa de reforma de sua matriz, os
movimentos escolanovistas, o positivismo de Piaget, as escolas soviéticas, e
por fim a globalização massificante e sua obsessiva preocupação com a
produtividade, a preocupação com competências que sirvam ao mercado, os
atalhos pedagógicos, estimulação do desenvolvimento cognitivo e seus efeitos
paradoxais de ultra-individualismo e perda de identidade diluída na sociedade
60
pela pressão de grupo e massificação, são na verdade parte, componentes e
desdobramentos dos conceitos de indivíduo, sociedade e modo de produção
conseqüentes do Iluminismo.
As relações entre indivíduo e a sociedade e o equilíbrio
dinâmico entre ambos, que gera o espaço para a possibilidade da
humanização, são de compreensão fundamental se o objetivo for entender de
que conceito de educação trata a presente dissertação. A importância de se
estudar este tema reside no fato de que desejo evitar o risco de trabalhar
somente com uma noção de individualidade, nascida com a maneira de pensar
liberal e burguesa. O combate ao individualismo de nossa sociedade, sem levar
em conta a origem do conceito de ser, pode simplificar a análise, e
compreende o risco, ao se propor uma alternativa, de continuar a massificar e
reificar a tudo e a todos.
Em paralelo ao que foi afirmado anteriormente como reflexão
teológica, na Antigüidade, tanto grega quanto judaico-cristã, a identidade
pessoal era dada de forma geral pelo grupo, tribo, família e clã e o indivíduo
era relativizado, tanto em importância quanto em protagonismo, em qualquer
relato histórico. No entanto, já na literatura grega, notadamente no tema
explorado por Horkheimer (1974) quando de sua análise da noção de indivíduo
representado pelo Ulisses de Homero, se pode encontrar os fundamentos do
que se entende hoje por indivíduo. Apesar de faltar ao herói grego Ulisses o
fundamental na noção moderna de indivíduo, a auto-reflexão, não lhe faltam
outros atributos do indivíduo: o destaque pessoal do todo tribal, a
diferenciação, a astúcia, a manutenção da própria existência mediante a
postergação e o sacrifício pessoal, em suas palavras: “Individualidade
pressupõe o sacrifício voluntário da satisfação imediata pelo bem da
segurança, manutenção material e espiritual da própria existência da pessoa”
41
(HORKHEIMER, 1974, p. 129).
No espaço da vida comum da época, a POLIS grega, a
importância do indivíduo começa a sobressair ainda mais na busca de
equilíbrio, não de harmonização, entre os interesses pessoais e coletivos. O
conflito entre estes pólos não é resolvido pela suplantação dos interesses de
41
Individuality presupposes the voluntary sacrifice of imediate satisfaction for the sake of
security, material and spiritual maintenance of one’s own existence.
61
um sobre o outro, mas na busca do equilíbrio dinâmico. Vale aqui salientar que
um dos autores fundamentais desta pesquisa, o anarquista Tolstoi, é
juntamente com Rousseau considerado por Horkheimer um dos “grandes
individualistas críticos da sociedade”, quando os cita em sua análise de Ulisses
(HORCKHEIMER, 1974, p. 131).
Já para Adorno, não é só a busca do equilíbrio que se verifica
na origem da individualidade, mas a mediação desta mesma sociedade na
formação do indivíduo (TIBURI, 2004; p. 4)
42
. A diferença entre Adorno e
Horkheimer, neste ponto, está em que, de acordo com Moraes (2004),
Horkheimer parece ter em mente a Polis Grega quando fala do equilíbrio e
Adorno trabalha com a perspectiva da sociedade administrada contemporânea.
Não é só a comunidade que acaba sendo solapada pelo
período pós-helênico, como visto na definição do termo anterior, mas também o
indivíduo. O Império Romano, de certa forma paradoxal, na mesma medida em
que traça os primeiros fundamentos do conceito moderno de indivíduo, é um
elemento desindividualizador
43
, ao se tornar virtualmente onipresente e exigir a
lealdade e o sacrifício pessoal em favor do bem comum, confundido e acima de
tudo compreendido como o bem do Império. Mais uma vez é difícil não fazer
correlações com a realidade vivida neste início de século XXI, principalmente
diante das demandas do Mercado.
Para Horkheimer, ainda de acordo com a pesquisa de
MORAES (2004), o cristianismo traz mais “complexidade e profundidade” à
idéia de individualidade. Segundo o autor:
Essa transformação está, segundo a análise de Horkheimer, baseada em
dois pontos principais: a doutrina cristã da imortalidade da alma e a idéia de
igualdade entre os homens decorrente da criação destes segundo a
imagem de Deus e da Paixão de Cristo por toda a humanidade (MORAES,
2004, p.33).
Ainda assim, o conceito moderno de indivíduo é algo bastante
distante do conceito de ser que se depreende da origem do cristianismo se
42
“A mediação significa, nesse aspecto, que o pensamento precisa abismar-se em seu outro,
abrir-se ao estranho, reconhecer a alteridade.”
43
Ainda que se possa argumentar o processo desindividualizador da república de Esparta. Não
pretendo aqui idealizar a posição helenizada, em relação à latina, mas demonstrar que a
influência romana teve caráter mais incisivo neste processo.
62
incluídos outros aspectos além dos acima citados. O ser no cristianismo não o
é por sua capacidade de produção ou sua possibilidade de empreender, como
no posterior conceito burguês, mas pelo seu valor intrínseco como objeto do
amor divino, e por conseqüência do amor humano, traduzido em uma
inovadora e contracultural atitude de inclusão
44
. O ser pessoal, no pensamento
cristão, não se origina em somente ser capaz de olhar para si, mas acima de
tudo em passar a considerar e perceber o outro e ter a capacidade de se
relacionar, cooperar e amar este outro. E esta constituição se fundamenta na
máxima “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Não mais um mandamento imposto pelo grupo, clã ou tribo, mas uma função
de saber-se EU ao considerar individualmente o OUTRO como tendo valor,
negando assim qualquer possibilidade de reificação, tanto de si mesmo quanto
dos demais.
A posição cristã se apresenta como um desenvolvimento da
noção judaica. Nesta, como desenvolvimento posterior do conceito, a ordem de
amar estava limitada e vinculada a considerar próximos àqueles que
guardavam a mesma identidade grupal e nacional, como se pode depreender
do texto da lei mosaica: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do
teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
45
Com o cristianismo o
espectro se amplia para toda a humanidade quando ilustrada pelo pensamento
cristão que incluía os de fora, a começar pelos históricos inimigos
samaritanos
46
e se estendendo até mesmo aos dominadores romanos
47
.
As declarações da importância do ser humano são mais
fundamentais que a simples noção de imortalidade da alma para o cristianismo.
Compreender cada pessoa e toda humanidade como objeto pessoal do
conhecimento
48
e preocupação de Deus
49
foi um pensamento revolucionário,
44
Em referência à tradicional posição de separação entre judeus e gentios: Efésios 2:19
“Portanto, vocês já não são estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e
membros da família de Deus”; I Pedro 2:10 “Antes vocês nem sequer eram povo, mas agora
são povo de Deus”.
45
Levítico 19:18 – itálico meu.
46
Lucas 10:25-37 , Mateus 8:5:13.
47
Atos cap.10.
48
Mateus 10:30 “Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados.”
49
Mateus 6:26 “Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem, nem armazenam em
celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas?”
63
tanto da perspectiva judaica, que colocava a lei acima do indivíduo, quanto
para o pensamento latino, que colocava a ordem na mesma posição.
Com o Iluminismo e a proposta de “depurar” o ser humano de
todo conteúdo mítico-religioso, o ser muda a plataforma de onde sustentava
sua existência e passa a correr o risco paradoxal de, ao afirmar-se
independente de qualquer transcendência em busca da razão, sucumbir à
barbárie irracional. Como bem ilustra mais uma vez MORAES:
... se a fé cristã origina uma mudança radical na idéia de indivíduo e
fundamenta sua existência, quais serão as condições dessa existência
quando o indivíduo não encontra mais apoio nem na fé nem na alma cristã?
Quando o autor descreve a marcha autodestrutiva da razão, um dos pontos
principais da análise passa pela ”cruzada” do pensamento formal para
“purificar” o conhecimento dos dogmas metafísicos da religião. Por meio de
demonstrações lógico-científicas, o pensamento formal condenou a busca
da verdade empreendida pela religião, porquanto tratava-se de uma busca
fundada em pontos de vista morais relativos. Contudo, como resultado de
tal “purificação”, o autor mostra que o pensamento formal foi além da crítica
do saber religioso e virtualmente condenou ao relativismo toda a produção
do saber e a busca pela verdade. O caráter auto-destrutivo dessa marcha
está justamente no fato de que, não tendo como “formalmente” escapar ao
relativismo, a razão torna-se impotente contra o irracionalismo (MORAES,
2004, p. 35).
As novas bases sobre as quais se funda a noção de indivíduo
passam a ser a economia e a liberdade de empreender. Nasce assim o
conceito moderno de indivíduo, transmutado no indivíduo liberal burguês. O
indivíduo que existe e ainda que não suplante o coletivo, o coloca a seu
serviço, o domina se possível e se rebela se restringido em sua liberdade pela
demanda da coletividade. É o modo de produção que passa a definir a
essência do que vem a ser o indivíduo, que se apresenta então como uma
“forma extremamente empobrecida da complexidade e profundidade da
individualidade cristã” (MORAES, 2004, p.37).
Do ponto de vista da educação o foco passa a ser então formar
este indivíduo liberal burguês, e quando isso não for possível ou interessante,
que se formem indivíduos que sirvam como servos e empregados do primeiro,
embalados pelo sonho e o desejo de serem eles mesmos burgueses e
proprietários. A necessidade de mão de obra, e a inclinação social para o
liberalismo político e econômico, acabam, assim, por encontrar nas escolas,
64
liceus e colégios como os conhecemos nos últimos 200 anos, a principal forma
de perpetuação do status quo e de formação dos quadros necessários ao
sistema prevalente.
Utilizando como guia desta análise as conclusões de
Horkheimer e Adorno (2006), se pode verificar que ambos analisam, com
ligeiras diferenças, a situação do indivíduo dentro da sociedade administrada e
da indústria cultural. Ambos observam o embotamento da individualidade em
seu tempo, demonstrando que nem mesmo os mais obscuros tempos do
pensamento humano haviam sido capazes de massificar o ser humano do
modo como a sociedade contemporânea o fez pela imposição da assimilação
de valores e da pasteurização cultural.
Que dizer deste início de século XXI? Quando vemos a assim
chamada tribalização urbana, a violência, a apatia e a passividade
exacerbadas a níveis perigosos e sentem-se as conseqüências diárias de um
individualismo pungente, acompanhado da mais obtusa massificação e
externalidade.
Nossa sociedade parece ainda vítima, na área da
individualidade, do que Illich chama, em outro contexto, de contraprodutividade
paradoxal. O império da razão e do indivíduo produziu ao final,
paradoxalmente, a carência de identidade, a massificação cultural, a ignorância
e a barbárie. Inspirado pelo mesmo autor, suspeito que será bastante difícil
conseguir reverter este quadro decadente pelo aumento da dose do mesmo
tipo de remédio que o produziu: mais leis, mais tecnologia, mais planejamento,
mais controle, mais educação. Em um momento de economia de mercado
dominado por grandes corporações, mesmo a figura do indivíduo liberal
burguês, que se sustentava na iniciativa pessoal e no modo de produção
capitalista, perdeu a possibilidade de existir, sugada e consumida pela
economia em escala global e pelas corporações. Deixado só, o indivíduo liberal
burguês virou peça de museu, suplantado por um personagem difuso e
impessoal, ainda que presente em todos os momentos, um Grande Irmão
Orweliano: O MERCADO.
A categoria do ser em minha pesquisa se constrói entendendo
como opostos o indivíduo e a pessoa e não o indivíduo e a comunidade. A
pessoa é o indivíduo em suas relações subjetivas com outros, com o meio,
65
consigo mesmo, com sua história e contexto, se constrói somente na relação
com estes e não pela afirmação de sua individualidade, mas de sua paradoxal
dependência dos outros agentes citados. O ser é a pessoa, é o Ser que pode
ser mais ou ser menos na exata proporção em que se conecte ou se aliene de
si, de seu trabalho, de seus semelhantes, de sua história, de seu meio
ambiente e de seu contexto imediato.
A resistência e a sobrevivência da subjetividade podem estar
vinculadas à possibilidade de autocrítica do individualismo, ao questionamento
do modo de produção e à emergência de novas formas de construção do ser e
do saber, não apenas reformando, mas revolucionando invisivelmente a
formação educacional que visa capacitar pessoas para o mercado, ampliando o
espaço e valorizando outros modos de aprender e outros saberes, para além
daqueles locais e conteúdos prescritos pela sociedade contemporânea.
Ao reafirmar o Ser que se faz pela semelhança que tem com
sua origem, é necessário lembrar que esta semelhança se fundamenta em que
o ser que dá origem é capaz de criar, interferir na realidade e mudá-la, mas
ainda assim manter-se responsável e decidir limitar-se pela existência do outro
como ato de afirmação de sua capacidade de dizer não à pulsão de não ter
limites. Ao invés de uma concepção de ser humano que é formado pela
educação com a finalidade de se adequar e ser empregado como peça de um
processo econômico, um indivíduo que serve um sistema e uma peça que
possa ser substituída, pode-se escolher esta outra compreensão do Ser como
aquele que ontológica e potencialmente é mais, sendo.
2.1.6 Autonomia
Em se tratando de uma pesquisa baseada numa concepção
libertária de educação, fica impossível não se deter no estudo, ainda que
breve, do conceito de autonomia.
A palavra, composta por dois termos gregos, se forma pelo
prefixo autós – αυτóς– que significa o sujeito, eu ou ele, o ‘si mesmo’ – e por
nomos - νόµος - o que cabe por partição, opinião geral, o que é de lei e de
direito (STRONG, 1984; THAYER, 1996). Dando seqüência à análise de cada
termo que tenho feito até aqui, sempre com a intenção de descobrir conexões e
66
possíveis raízes do pensamento libertário, é mais uma vez pela origem judaico-
cristã que me disponho a iniciar o exame deste termo.
Em sua resposta à pergunta “O que é o Iluminismo?” Immanuel
Kant inicia chamando de menoridade, ou inferioridade, o estado no qual a
pessoa tem “... a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de
outro.” (KANT, 2007). A este mesmo estado, no qual se está preso, segundo
aquele autor, por simples ausência de coragem em aventurar-se no uso da
razão, Kant continua demonstrando o quão confortável é se manter sob a tutela
arbitrária de guardiões e autoridades, situação a qual me habituei
pessoalmente a chamar de “comodidade da miséria”: desagradável
circunstância que, no entanto, não demanda de quem nela está, nenhum
esforço mental ou trabalho intelectual.
Consciente de estar utilizando a perigosa categoria de
naturalidade, minha intenção será, a partir dos elementos de que disponho,
afirmar com Paul Tillich que “é da natureza humana ser autônomo” (TILLICH,
(1953)2007). Para tanto começarei pela análise das tradições até aqui
estudadas. Antes, porém, me sinto inclinado a levantar uma sutil questão de
ordem.
O conceito de autonomia é freqüentemente manipulado por
alguns que afirmam, segundo Tillich (1953), que a autonomia é a miséria do ser
humano, e que seu oposto seria a completa dependência de Deus, uma
espécie de teonomia, conforme interpretada e administrada pela oficialidade
eclesiástica. Ao contrário desta afirmação, a plataforma teórica de que lanço
mão me diz que, mesmo teologicamente, se pode inferir que a autonomia,
referida de forma individual por Kant na filosofia e por Freire na educação, está
presente na própria estrutura do mundo, na perspectiva da razão objetiva e na
existência e compreensão da realidade do outro, do meio ambiente e da
coletividade.
A palavra autonomia não possui o sentido de arbitrariedade, de
um homem ou mulher que se faz a si e por si próprio a despeito de suas
relações, baseando-se em seus desejos individuais. A origem da palavra no
grego não pode ser traduzida como “Eu sou a lei para mim mesmo”, ao
contrário, a análise etimológica leva a entender que a lei da razão, a estrutura
da realidade, a noção objetiva do que de mim se espera está em mim. O
67
conceito oposto é a heteronomia: A lei, ou o que controla o EU, está fora do “si
mesmo”. Segundo Tillich, a arbitrariedade é na verdade encontrada na
heteronomia:
Arbitrariedade se dá no momento em que o medo ou o desejo determinam
nossas ações, seja este medo produzido por Deus, pela sociedade ou pela
própria fraqueza da pessoa... Arbitrariedade é a sujeição à autoridade, se
esta autoridade não é confirmada pela própria razão. E então é
arbitrariedade, porque vocês se submetem com base no medo, ansiedade
ou desejo.... Razão é a consciência dos princípios da verdade e da justiça
(TILLICH, 2007, p. 4)
50
Seguir uma lei devido ao fato de esta lei, ou princípio, estar
internalizada em uma pessoa define a autonomia para Tillich, conectada esta
internalização com uma forte, quase enfática, obediência à lei da razão
objetiva, uma situação mais forte do que qualquer idéia imposta
arbitrariamente.
Na tradição judaica, o estado original do ser humano criado
não é anômico, mas de autonomia relacionada à consciência do outro. O assim
chamado mandato cultural do homem e da mulher, em Gênesis: “Então disse
Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem (eikon, na Septuaginta), conforme
a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do
céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos
animais que se movem rente ao chão”, é meu ponto de partida. Neste relato
duas características chamam a atenção: A primeira, na qual o ser humano é
criado como ícone de Deus (do grego EIKON – sinal que representa) e de
natureza semelhante, logo com autonomia, e a segunda a palavra, râdâh - הדר
- , traduzida como domine, que, mais do que a noção de controle e propriedade
próprias da concepção de domínio contemporâneo, inclui a concepção de
cuidado, de tomar conta, de ser deixado com responsabilidade sobre alguma
coisa. Esta clara autonomia responsável é contrária à autonomia que
arbitrariamente usa e abusa do meio ambiente e dos recursos naturais, que
50
“Arbitrariness is given in the moment, in which fear or desire determines our actions, whether
this fear is produced by God, or by society or by one’s own weakness... Arbitrariness is
subjection to authority, if this authority is not confirmed by reason itself. And then it is
arbitrariness, because you subject yourselves on the basis of fear, anxiety and desire… Reason
is the awareness of the principles of truth and justice””
68
não leva em consideração a alteridade, representada naquela tradição, pela
figura de Deus e da Natureza.
O estado de escravidão, a absoluta heteronomia, é o tema de
maior destaque na tradição judaica. Ser escravo, enquanto estado no qual o
ser humano perde sua dignidade e do qual deve se libertar, é visto como um
estado que impede a plena humanidade, e a própria razão da existência da Lei
judaica é evitar que tal estado se repita ou perpetue. A lei mosaica, uma clara
etapa heterônoma da constituição da nação israelita, é apresentada ainda na
cultura judaica através da literatura profética, como parte de uma etapa que
tem por finalidade ser superada ao ser internalizada e liberada da aplicação da
lei por pressão externa:
Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles
dias”, declara o SENHOR: “Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei
nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. Ninguém
mais ensinará ao seu próximo nem ao seu irmão”
51
Ainda que a maior parte dos exegetas interprete o texto acima
como uma promessa de teonomia, pode ser inferido que a ação externa,
orientada pela ação da divindade é a de inserir o “nomos” que passa a ser
apropriado e internalizado de modo que a origem das decisões passe a ser
interna ao sujeito, e não referenciada externamente e dependente de alguém
que lhe diga o que fazer ou não fazer, o que, na prática das relações se reflete
em responsabilidade pessoal e não dependente de escrutínio externo. Mais
uma vez este processo recorda àquele anteriormente citado em Bakunin
(2000), onde a autonomia é fruto de um processo que inicia na estrita
autoridade externa inicialmente aplicada sobre a criança, mas que tem por
finalidade a negação da fonte externa até a liberdade radicalmente calcada na
consciência.
Na tradição cristã, a relação heterônoma com a lei é vista de
maneira negativa, e aceita no máximo como uma etapa, e sua aplicação
externa é vista como situação que denota inferioridade e infantilidade. A lei é
chamada nesta tradição de aio, ou tutor. A palavra grega traduzida como aio,
51
Jeremias 31:33
69
ou tutor, é paidagogós - παιδαγωγός – o escravo de segunda classe que leva
alguém ainda incapaz pela mão, como no texto paulino que diz: “Assim, a Lei
foi o nosso tutor (paidagogós) até Cristo”
52
. No contexto o autor referencia a
situação de heteronomia como inferior à de autonomia. Nas palavras do próprio
Jesus se percebe a instigação a rebelar-se contra qualquer tutoria arbitrária:
Mas vocês não devem ser chamados ‘mestres’; um só é o Mestre de vocês,
e todos vocês são irmãos. A ninguém na terra chamem ‘pai’, porque vocês
só têm um Pai, aquele que está nos céus. Tampouco vocês devem ser
chamados ‘chefes’.
53
Esta possível postura de rebelar-se não se deu, no entanto, de
forma linear, mas complexa, com maior ou menor clareza em alguns
momentos, em um longo período de tempo, com maior ou menor consciência,
antes e mesmo depois da constantinização no século IV.
Na cultura grega, a autonomia é um conceito fundamental tanto
da sua conseqüência política, a democracia, quanto do seu projeto de
educação, a Paidéia. A democracia, criada segundo CASTORIADIS (1991)
pelos gregos, é dependente da noção de autonomia pessoal, e a PAIDÉIA
tinha por finalidade permitir a emergência do cidadão autônomo da POLIS
autônoma.
Segundo LOBO:
Na sua última declaração pública, em 22 de março de 1997, um pouco
antes de morrer, Castoriadis sustentou que um passo decisivo para a
autonomia foi dado quando os gregos antigos incluíram em suas leis o
preâmbulo: "edoxe te boule hai to demo" – "parece bom ao conselho e ao
povo". Ele faz questão de frisar que "parece bom" é diferente de "é bom".
Essa ressalva indica que a prevalência da autonomia e da independência
começa onde acaba o domínio da certeza. Os homens podem ser
autônomos ou confiantemente crédulos, mas dificilmente as duas coisas ao
mesmo tempo (LOBO, 2005,
documento eletrônico sem paginação).
O salto dado na cultura grega se relaciona à ruptura com a
necessidade de transcender para justificar ou normatizar as relações, e em
passar a fazê-lo, baseando-se no uso da razão, ou das idéias, nascidas do
intelecto humano. Desse conceito de autonomia se funda a democracia, tanto a
52
Gálatas 3:24
53
Mateus 23:8-10
70
grega, quanto a oriunda da experiência e do conceito renascido na Europa do
Séc. XVIII.
O Império Latino, nos anos que precedem a era comum,
atropela mais uma vez a possibilidade quando impõe um Estado onipresente,
que exige a lealdade absoluta e a obriga mediante a lei, determinada de cima
para baixo, sem questionamento; a divinização do Império e do Imperador
54
,
dando a ambos uma autoridade transcendente auto-investida; que estabelecia
a ‘bondade’ da lei para todos e impunha a paz pela força, e reprimia de forma
implacável qualquer pensamento autônomo e não baseado nas idola tribus.
A acusação contra os cristãos primitivos, descendentes
culturais da independência judaica e da autonomia grega (representada pela
ekklesia), era de sedição, ateísmo e antipatriotismo, reprimida forte e
implacavelmente pelo Império, ainda que de forma descontinuada, mais forte
no ocidente do Império e mais freqüente no século III, mesmo presente com
maior ou menor intensidade em vários momentos desde o século I ao século
IV. A recusa a prestar culto ao imperador e seus símbolos e a extrema lealdade
a uma nova ordem ameaçavam o poder estabelecido, e sempre que esta
ameaça fosse percebida e se tornasse interessante, era desencadeada a
perseguição.
Quando da cristianização do Império após Constantino no
século IV, não foi somente a autonomia cristã que influenciou o império, mas
sim, de forma mais sentida, a heteronomia imperial que sacrificou o espírito
cristão
55
. Ressurgem com força o pensamento único, a palavra unívoca, a
autoridade eclesiástica acima do pensamento livre e as trevas. No que diz
respeito ao processo educativo, assim como a autonomia grega era produto e
produtora da Paidéia, a heteronomia medieval introduz lentamente a formação
in loco parentis
56
, posteriormente assumida e aprimorada pelo Estado Moderno
através da escolarização universal, compulsória e determinada, agravada em
tempos neo-liberais por “competências” e pelos desejos do “mercado”, que
tende como prioridade a eliminar outros discursos, interesses e saberes que
54
Mais uma vez vale ressaltar que apesar de utilizados e expandidos mundialmente por Roma,
estou consciente de que estes conceitos não foram inventados por Roma, e sim por ela
copiados daqueles que o criaram de fato, os Egípcios e os impérios orientais sucedentes.
55
como sugestão, a série de Artigos sob o título “Das catacumbas para as massas”. E o artigo
“Um outro mundo é possível”. Caderno MAIS, Folha de São Paulo, 13 de Maio de 2007.
56
no lugar dos pais.
71
não estejam a ele subordinados, seja pela arrogância com que os trata, seja
pelo descrédito que a eles atribui.
Esta eliminação é alertada por Castoriadis:
Autonomia seria o domínio do consciente sobre o inconsciente... Autonomia
não é, pois elucidação sem resíduo e eliminação total do discurso do Outro
não reconhecido como tal. Ela é instauração de uma outra relação entre o
discurso do Outro e o discurso do sujeito. A total eliminação do discurso do
Outro não reconhecido como tal é um estado não-histórico (CASTORIADIS,
2000, p. 126-129).
O conceito de autonomia em Paulo Freire, como um estado de
amadurecimento do ser para si mesmo, um processo de vir-a-ser, se constitui e
nasce na experiência e implica, reflexão, diálogo e opção (FREIRE, 1997). A
eliminação de outros discursos e o pensamento único, os planos de
desenvolvimento da educação construídos em prol do consumo e do mercado,
baseados em competências e mensurados por ‘provões’ cada vez mais
precoces, que eliminam diferenças e peculiaridades em prol de um projeto
único, são o enterro da autonomia e da democracia. Neste sentido,
subordinada a tais interesses, e obedecendo a tais critérios discricionários, não
é tão impossível perceber a escolarização compulsória como agressão à
autonomia.
Para finalizar a análise deste termo, vale a pena observar a
crescente heteronomia no processo educativo, tanto do ponto de vista do
pessimismo quanto da esperança.
De maneira pessimista, ao observar o avanço da hegemonia
neo-liberal, Castoriadis nos leva a pensar que, se existe risco para a cultura
democrática, este risco se deve ao fato de a autonomia estar ameaçada.
Sendo assim o projeto inaugurado pelos gregos, e retomado pelos homens do
século XVIII, pode cair na mesma situação em que ficou bloqueado por
séculos, debaixo do domínio do Império Romano e depois do Império
Eclesiástico da Cristandade. O capitalismo contemporâneo, assim, ameaça-nos
potencialmente com perspectivas sombrias e aproxima-nos da barbárie. O
reinado do "homem medíocre", a banalização da violência, o conformismo
consumista, e a inércia apolítica são ameaças à cultura e à sociedade que se
72
pretenda democrática, sobretudo na sua capacidade de ser criadora e
renovadora de si mesma. A educação neste contexto, pior do que ser um
produto, transforma o aluno no produto, o educador no operário e a escola no
meio de produção, como afirma SAVIANI (2007).
A esperança reside no fato da extrema resistência da Vida em
meio à morte, e da incontrolabilidade histórica final dos seres humanos por
qualquer império. No despertar de educadores e educadoras, plenos de
amorosidade, como diria Paulo Freire, e da extrema capacidade do ser humano
de superar as dificuldades. A possibilidade de luta contra a opressão encontra
na festa que se faz ao aprender e no rigor que se busca ao refletir, um binômio
dialético mais de uma vez afirmado pelo grande educador e que pode
constituir-se no espaço de resistência e experiência da liberdade.
2.1.7 Utopia
O sentido de Utopia no senso comum nos remete quase
obrigatoriamente a lugares imaginários nascidos da mente seiscentista de
Thomas Morus
57
, Campanella
58
e Francis Bacon
59
. Vistas desta forma, as
utopias se tornam - lançando mão da linguagem do próprio Bacon - idola tribus,
expressões de como a realidade deveria ser baseada simplesmente na
vontade idealizada, pronta e acabada.
Haveria outra possibilidade de pensar a Utopia, antes de o
termo ganhar os significados hoje a ele atribuídos, principalmente pelos
oráculos da ideologia dominante? Que sentido podemos encontrar na origem
de nossa cultura que se possam associar aos sentidos de Utopia dados por
Paulo Freire, Illich, Furter e Bloch?
O relato mais antigo de “um outro lugar”, e que me parece
diretamente relacionado ao sentido de esperança e de devir, com o qual
trabalho com utopia como categoria epistemológica nesta pesquisa, se
57
Utopia.
58
A cidade do Sol.
59
A Nova Atlântida.
73
encontra no chamado de Abrão para iniciar a epopéia que daria origem a duas
culturas ainda presentes em nosso cotidiano: o povo árabe e o povo Judeu
60
.
Um cidadão casado e sem descendentes, vivendo em uma
cultura na qual o sinal de ser favorecido e de ter continuidade estava
relacionado ao número de filhos gerados e à possibilidade de descendência,
logo um não-cidadão, é chamado a sair de sua situação de estabilidade e
desesperança e colocar-se em movimento na direção de um outro lugar - ץרא
,eretz. Este eretz é um lugar não idílico ou imaginário, mas, como denota o
termo, concreto; um chão onde pisaria a planta de seu pé e onde se
estabeleceria, a partir dele, uma enorme descendência. Este homem chamado
a se deslocar, neste sentido representa a mais improvável escolha para a
esperança: um ancião com cerca de 75 anos, com uma esposa estéril e ainda
vivendo junto à casa de seu pai. De uma só vez ele é chamado a assumir o seu
destino, andar autonomamente e se deslocar para um futuro a ser construído.
A mim parece que esta história ilustra o sentido de esperança e
de construção real que se funda na possibilidade, mesmo diante da
improbabilidade e que encara a realidade como passível de mudança e não
fatalmente determinada. Esta terra e esta promessa darão ao povo de Israel,
ao longo de sua história, o sentido de localização, a concretude, o lugar de
retorno em todo relato do Velho Testamento. No entanto esta Terra, este Chão,
não é um lugar pronto e acabado, mas um lugar a ser permanentemente
construído e re-construído, cultivado e restaurado quantas vezes seja
necessário. Este eretz, não está lá, esperando, é algo a ser feito, começado
talvez, mas ainda incompleto, por vezes destroçado, mas nunca idealizado.
Esta terra que se constrói, é uma terra que virá a ser e de certa forma sempre
estará por se fazer.
Na cultura grega, em especial sob a influência de Sócrates e
Platão, o sentido de um outro lugar corre na direção oposta. Idealizada, a
Republica deve ser buscada como foi imaginada. Nela a idéia atualiza a
realidade e as condições são dadas de antemão. No reino das idéias, o lugar
existe, e é o que se poderia chamar de uma terra sem males. O lugar grego
idealizado se aproxima de forma mais adequada ao conceito de teoria, na
60
Gênesis 12 e ss.
74
própria natureza do conceito ao dividir o trabalho manual do intelectual e de
ideologia como falsa consciência em MARX (1999), e de Ideologia com uma
conotação estática, de permanência e imutabilidade em Karl Manhein (1986).
No pensamento cristão, o conceito reaparece no termo Reino
de Deus - βασιλεια του θεου , Basiléia tou theou. Conforme deixa claro Ladd
(1993), o conceito de Reino é bem mais complexo do que a simples idealização
de um “céu” perfeito, próprio da noção escolástica e medieval. O Reino se
funda a partir de outra concepção de modo de viver – αιών, AION –
literalmente a época em que se vive, ou de forma mais arcaica, o século. A
esperança messiânica se funda na transição de uma presente era má que há
de ser superada por uma outra, com outros valores. No entanto, ao contrário do
senso comum, esta outra era não virá de maneira mágica, mas se manifesta a
partir de hoje e do lugar onde vivem as pessoas.
Mais uma vez a EKKLESIA, a nova comunidade, era o lugar
onde a nova ordem esperada se manifestaria desde já, aonde os valores e
princípios por vir seriam experimentados e vividos. A utopia cristã da Ekklesia
se traduz na expressão clássica de Ladd: “entre o já e o ainda não” (1993, pág.
21). A vida vivida espera, anuncia e experimenta um outro mundo possível, não
traduzido metafisicamente, mas imanentemente experimentado em relações
restauradas, gêneros respeitados, categorias transformadas e acima de tudo
uma nova ordem econômica e social interna onde: “Nessa nova vida já não há
diferença entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro e cita
61
,
escravo e livre, mas Cristo é tudo e está em todos.”
62
A Utopia cristã não era somente espera, ainda que este
elemento estivesse presente na expectativa escatológica, mas ação,
transformação e demonstração. Com a cristianização do Império Romano no
século IV e a platonização de conceitos introduzida antes de Agostinho,
sistematizada por ele e posteriormente aprofundada, este componente perde
força e é re-elaborado a partir da concepção idealística grega, que vai ser a
tônica do pensamento ocidental na Idade média e que se revela como
subproduto nas proposições utópicas dos autores do século XVI já citados,
manifestando-se ao final em toda ideologia da sociedade industrial moderna,
61
Habitante do norte do Mar negro e que não fazia parte do Império Romano.
62
Colossenses 3:11.
75
com suas promessas não cumpridas de prosperidade, justiça, ordem e
progresso e de sua ferramenta de conformação a um futuro que nunca chega a
se realizar plenamente: a educação escolar.
A partir do pensamento materialista libertário, e em especial do
materialismo-dialético, a utopia começa a reatar sentido como futuro concreto,
conforme encontrado no pensamento judaico-cristão, como o outro lugar
possível acima citado. Ernst Bloch (2006, p. 130) aponta de maneira específica
para esta função do marxismo que torna, segundo ele, possível o acesso,
teórico e prático, ao futuro.
A consciência utópica assim entendida, tanto no pensamento
marxista quanto no pensamento judaico-cristão se torna em elemento chave
para desentranhar a história, e tornar viável o futuro do qual o presente se
encontra grávido, como no exemplo das propostas de autores como Illich e
Freire. Mais do que grávidos do futuro, estes autores servem como porta-vozes
de um inconsciente cansado e ansioso por alternativas, que só pode se
manifestar no sonho e no desejo, como diz FURTER:
O sonho acordado manifesta uma verdadeira fome psíquica pelo qual o
homem imagina planos futuros e outras situações em que supere os
problemas, as dificuldades e as obrigações de um hoje onipresente. Assim,
os sonhos acordados nos dão uma primeira forma tosca, vaga, talvez
ilusória, do que será, numa fase mais elaborada, a utopia (FURTER, 1974,
p. 83).
Para falar de Utopia neste sentido é necessário dizer, como o
fiz indiretamente a princípio, que a Utopia é assim, diferente do utopismo. A
primeira, que possui elementos de concreção e realização humana e a
segunda que se fixa como abstrata exigência desiderativa. O sentido de utopia
não é o sonho abstrato, mas o pensamento que insiste em transcender a
situação dada em determinado momento, expressando o que “ainda não
chegou a ser o que deveria”.
Para Bloch, a função utópica é atividade inteligente do
pressentimento da esperança, relatado primeiro como imagens, debruçado
sobre elas na intenção de encontrar meios de vir a ser e estabelecida como
construção a ser feita no horizonte histórico. Por exemplo, no pensamento de
Marx, onde o HOMO HOMINI LUPUS se torna HOMO HOMINIS HOMO
76
mediante a transcendência de sua hominização à sua humanização, tantas
vezes referida como processo desejável por Paulo Freire.
A vontade utópica vai além ao desvelar as insuficiências do
presente e do passado morto, mas, como no caso das experiências do assim
chamado marxismo real sob influência soviética, esta mesma vontade, pode se
tornar ideologia dominante e matar o que desejava fazer nascer, quando não
sabe – como não soube - reconhecer no passado, elementos que o
transcendiam e à sua própria decadência.
Abrindo um pequeno parêntese para refletir sobre ideologia, é
importante frisar que para Bloch a ideologia não é simplesmente uma
contraposição à utopia, mas possui dois aspectos: (1) Ser a soma de
representações com as quais uma sociedade e uma classe dominante se
justificam, (2) ser representante de uma herança à qual é preciso recorrer para
que a história não seja reinventada a cada momento, como no caso do Grande
Irmão de Orwel.
Esta manifestação ideológica, descrita no segundo ponto, se
dá dentro de cada cultura, na arte, na ciência e na filosofia, que se tornam,
mesmo nas superações, uma herança dialeticamente utilizável, uma expressão
utópica mesmo dentro da ideologia, segundo Bloch. Por isso a Utopia não é
reduzível à utopia política, mas estendida à antecipação cultural expressa na
arte, na beleza e nos produtos culturais do passado. Esta perspectiva utópica
dá aos processos educativos, no sentido em que provocam o diálogo entre
passado, presente e futuro, um caráter não utilitário ao incluir as expressões de
admiração do belo, do artístico, da “boniteza”, como dizia Paulo Freire, que
mesmo sendo de ontem, são, sim, uma expressão utópica de reação à “feiúra”
na qual nos vemos imersos em determinada situação e a afirmação do belo
que está por vir. Este posicionamento de BLOCH o difere de MANNHEIM ao
reconhecer, mesmo na ideologia, aspectos utópicos recuperáveis. Neste
sentido comentando Bloch, MARIN diz:
A utopia é uma crítica da ideologia dominante na medida em que é uma
reconstrução da sociedade presente mediante seu deslocamento e uma
projeção de suas estruturas em um discurso de ficção. Nisto difere do
discurso filosófico da ideologia, que é a expressão totalizadora da realidade
dada e sua justificação ideal. A utopia desloca e projeta esta realidade sob a
forma de uma totalidade não conceitual, fictícia, de uma figura produzida em
77
e pelo discurso, mas que funciona em outro nível e em outro regime do que
o discurso político, histórico ou filosófico
63
(MARIN, 1975, p. 217).
Sobre os três autores que servem de referência nesta
dissertação eu diria que Tolstoi assume o protagonismo e o custo pessoal, a
ponto de dilapidar toda a fama e fortuna diante do desafio e da
responsabilidade de anunciar e viver neste outro lugar, que em sua concepção
assumiu a forma da Escola de Yasnaya Poliana, a vida entre os mujiques e
tentar viver sem propriedades e sem governo. Illich declaradamente propõe
outra sociedade que substitua a atual sociedade industrial e de consumo, e o
faz denunciando a criação de necessidades artificiais, condenando a medicina
e a educação que mantêm o homem e a mulher encarcerados nesta sociedade
e ao propor sua desescolarização. Illich arrisca seu nome, posição, abre mão
de sua vocação sacerdotal para construir um projeto alternativo em seu Centro
em Cuernavaca e se torna um peregrino até o fim da vida, influenciando o
modo de pensar de um enorme contingente de intelectuais e políticos
comprometidos com outra forma de viver e compreender o mundo a partir da
dúvida radical sobre a inevitabilidade dos mitos da modernidade. Paulo Freire
vai trabalhar no espaço do possível, nas condições objetivas, na indignação
transformada em atitude confrontadora e inquieta diante da realidade, e na
esperança de um outro modo de educar, viver, produzir e se relacionar,
dialogando.
Sem esta dimensão de utopia, estaríamos fadados a cumprir o
que nos diz a ideologia dominante, e não realizar outros mundos possíveis,
impedidos de dizer: Por que não? Formas de aquisição de saber e de
educação não-escolar podem ser, assim, alternativas embebidas na esperança
aqui descrita se constituírem propostas de retomar a Paidéia dos cidadãos
deste outro mundo possível nas suas variadas formas e formatos enquanto
63
La utopía es una crítica de la ideología dominante en la medida en que es una
reconstrucción de la sociedad presente mediante su desplazamiento y una proyección de sus
estructuras en un discurso de ficción. En esto difiere del discurso filosófico de la ideología, que
es la expresión totalizadora de la realidad dada y su justificación ideal. La utopía desplaza y
proyecta esta realidad bajo la forma de una totalidad no conceptual, ficticia, de una figura
producida en y por el discurso, pero que funciona a otro nivel y en otro régimen que el discurso
político, histórico o filosófico.
78
insistirem em se erguer, utopicamente, mesmo diante da adoração daquela que
Illich chamou de Vaca Sagrada.
2.1.8 Amor
Não sendo a finalidade desta dissertação o estudo exaustivo
de nenhum dos termos até aqui abordados, muito menos seria a intenção de
me aproximar dos dois últimos termos aqui descritos com a pretensão de
esgotá-los, dada a amplitude de implicações e percepções que cada um
carrega. No entanto, o uso de ambos, e em especial do termo amor, está
presente implícita e explicitamente nos autores estudados, e no caso de Paulo
Freire está presente desde o início de sua obra até à adjetivação que lhe
marcou principalmente os últimos anos, traduzida na expressão “amorosidade”.
Seria impossível falar das idéias de homens complexos e rigorosos como
Tolstoi, Illich e Freire sem tentar entender ao menos superficialmente o amor
que lhes perpassa a obra.
O conceito de amor no pensamento judaico, em especial na
Torah, se traduz pelo termo âhab - בהא-, ou ahêb - בהא – e pode significar
desde a predileção por alguma comida até o amor supremo a Deus. Quando
acompanhado de outro termo ‘Êth - תא – tem a finalidade de demonstrar a
objetividade da afeição e o envolvimento da vontade. Esta diferenciação
aparecerá mais clara na tradução da Torah para o grego nos termos FILIA e
AGAPE, que serão estudados mais adiante.
O mais importante na compreensão do conceito de amor no
pensamento judaico, para a finalidade desta dissertação, está na inter-relação
entre sentimento, rigor e ação. O sentimento de amar, expresso como base da
relação entre criador e criatura na fórmula “Amarás o Senhor teu Deus”, se
estende para fora da pura relação metafísica ao implicar outros aspectos sem
os quais o amor a Deus se perde em mera idolatria.
O primeiro aspecto importante é a relação com outros seres
humanos “mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo: Eu sou o
SENHOR”.
64
Três aspectos aparecem nesse tipo de amor: a noção de reflexão
64
Levítico 19:18
79
sobre si mesmo para compreender o outro; a proximidade, uma vez que aqui
não se trata de um amor genérico, e por isso fácil, por toda a humanidade, mas
por aquela incômoda porção da humanidade que está próxima do sujeito que
ama, (em flagrante oposição ao conceito de Sartre de que o inferno seria o
outro), e a imbricação deste amor entre próximos com a transcendência da
relação com o Deus da nação. Este amor, e esta mesma reflexão sobre si,
ganham o aspecto de inclusão daquele que chega na situação de “ser menos”
para ser tratado como igual, e desta forma poder “ser mais”, expresso na
fórmula de dedicar o mesmo sentimento ao estrangeiro: “Amem-no como a si
mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito”.
65
O terceiro aspecto diz
respeito ao rigor da compreensão e aprofundamento da consciência do amor
traduzido pelo conhecimento e seguimento da Lei: “amem o SENHOR, o seu
Deus, andem nos seus caminhos e guardem os seus mandamentos, decretos e
ordenanças”.
66
Seguindo a tradição rabínica, o amor a Deus não é uma
relação puramente metafísica e sentimental, mas que ao contrário se traduz
interdependentemente no amor ao próximo, nas ações práticas de justiça e
inclusão e no rigor do conhecimento e entendimento da Torah. Ou nas palavras
do Rabino Schneur Zalman de Liadi (1745-1812):
Então, se você vê uma pessoa que tem amor por D-us, mas exibe falta de
amor pela Torá e de amor pelo seu companheiro, você deve dizer a ele que
o amor seu amor por D-us é incompleto. E se você vê uma pessoa que
somente tem amor pelo seu companheiro, você deve esforçar-se para trazê-
lo para o amor da torá e o amor a D-us – pois o amor pelos seus
companheiros não deveria ser expresso somente em prover pão ao faminto
e água ao sedento, mas também trazê-los para perto da lei e de Deus
67
(TAUBER, 2004 – edição eletrônica sem paginação).
65
Levítico 19:34 O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o
natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou
o SENHOR, o Deus de vocês.
66
Deuteronômio 30:16 Pois hoje lhes ordeno que amem o SENHOR, o seu Deus, andem nos
seus caminhos e guardem os seus mandamentos, decretos e ordenanças; então vocês terão
vida e aumentarão em número, e o SENHOR, o seu Deus, os abençoará na terra em que
vocês estão entrando para dela tomar posse.
67
So if you see a person who has a love of G-d but lacks a love of Torah and a love of his
fellow, you must tell him that his love of G-d is incomplete. And if you see a person who has
only a love for his fellow, you must strive to bring him to a love of Torah and a love of G-d -- that
his love toward his fellows should not only be expressed in providing bread for the hungry and
water for the thirsty, but also to bring them close to Torah and to G-d.
80
Para o pensamento judaico antigo, amar a Deus leva
obrigatoriamente a amar o próximo, o estrangeiro e ao rigoroso estudo e
seguimento da lei, assim como amar o próximo e à lei aproxima do amor a
Deus, e amar a lei, enseja o amor ao próximo e a Deus, de maneira
complementar e interdependente.
De acordo com LEWIS (1960), o pensamento grego se
expressa em quatro termos para amor. O primeiro termo – στοργή, storgē
utilizado também no grego moderno para significar afeição, é o tipo de amor
que os pais sentem por seus recém-nascidos. Seguido a este o termo FILIA –
φιλια, philía -, amizade é explicado pelo mesmo autor como “o mais básico,
instintivo, orgânico, biológico, gregário, e necessário” (p.58). O amor amizade
deveria ser diferenciado do amor comunitário, porque este requer cooperação.
O amor da amizade, em contraste, está livre do instinto, do sentimento de
obrigação, e livre da necessidade de ser necessário. Foi exatamente este o tipo
de amor que marcou os escritos de Illich, principalmente em sua última fase de
produção literária.
Eros – Ερως, Érōs – é o amor romântico, o tipo de amor no
qual estão imersos os amantes. Mesmo tendo uma clara conotação de atração
física, Platão refina seu significado, em direção ao que se acostumou chamar
de amor platônico, ao estender o conceito de Eros à contemplação que se
transforma em apreciação pelo que está dentro da outra coisa ou pessoa, ou
mesmo se torna a apreciação da beleza em si mesma, sem a necessidade de
atração física. Esta forma de amor se aproxima muito do conceito de “ad-
miração” de Paulo Freire. É ainda segundo Platão que Eros ajuda a alma a
perceber o sentido da beleza, e assim amantes e filósofos são inspirados a
buscar a verdade por Eros. O mais antigo estudo de Eros, feito por Platão, se
encontra no Banquete (PLATÃO, 2003), o qual é uma discussão dos
estudantes de Sócrates sobre a natureza de Eros.
O termo mais importante para amor no grego é Ágape –
Αγαπη, ágape. Utilizado na forma verbal “eu amo” no grego antigo se refere à
afeição geral, ou cuidado e atenção, para com o objeto do amor.
O pensamento cristão traz uma novidade na concepção de
amor: a transformação do uso de ágape na forma verbal para seu uso na forma
de substantivo. O substantivo ágape é principalmente, se não exclusivamente,
81
uma palavra bíblica e de uso na Ekklesia cristã (DEISSMANN,1988, p.198 e
ss), não encontrada em escritos profanos, embora a forma verbal, agapein, da
qual é derivada, seja usada no grego clássico no sentido de amor “fundado na
admiração, veneração, estima, como no correlato latino diligere"
(THAYER,1996), mais do que uma emoção natural (do Latim, amare).
Segundo LEWIS (1960), o amor assim substantivado é uma
forma de amor-presente, traduzido por caridade enquanto ação em direção ao
outro, todavia o amor-presente tem sua contraparte, para este autor, no amor-
necessidade, que demanda fragilidade na medida em que provoca no seu
detentor a necessidade do outro e de Deus, a busca da relação, do diálogo e
do próximo. É através desse amor que o ser humano passa a ter o desejo por
Deus e pelos semelhantes. Esta forma de amor substantivada se traduz em
atitudes que envolvem o desejo e a escolha.
Este desejo e escolha se relacionam ao binômio
ensino/aprendizagem na medida em que deseja e escolhe aceitar, apoiar,
cuidar, perdoar, dar, servir, nutrir para o crescimento do outro, para o bem estar
do outro e não seu próprio e é manifestado de uma maneira incondicional,
desapegada, sacrificial, construtiva, expressa em um comportamento paciente,
bondoso, respeitoso, humilde, gentil, pacificador, justo, persistente, tolerante,
leal. É mais que coincidente a descrição acima com o pensamento expresso
nas obras e entrevistas de Paulo Freire quando se refere à relação entre as
pessoas que fazem parte deste binômio; e mais do que uma clara descrição do
desenvolvimento da concepção de amizade, necessária à aprendizagem,
defendida por Illich e que é melhor explorada no capítulo que descreve este
autor.
Tal perspectiva coloca em cheque as formas não presenciais,
não emocionais
68
, virtuais e distantes nas quais se pretenda transformar a
informação em conhecimento, sem a mediação emocional e relacional. Conflito
de posições que se torna relevante se levado em conta o fato que seres
humanos não se comportam mecanicamente diante de conteúdos e que suas
reações e comportamentos não possam ser pré-determinados em situações
assépticas e idealizadas, baseadas em alta dependência de tecnologia.
68
e-moção: um movimento pessoal motivado pelo sentimento.
82
Estes mecanismos, que pretendem aumentar a produtividade
da produção de conhecimentos em detrimento destes aspectos relacionais e
afetivos, são questionados fortemente por Ivan Illich, principalmente em seu
livro “A convivencialidade”, termo cunhado pelo autor para se contrapor à
produtividade. Já Tolstoi nos ajuda ao ilustrar sua compreensão da relação do
entendimento com o amor ao dizer: “Tudo, qualquer coisa que eu compreenda,
eu compreendo somente porque eu amo”.
69
Estes homens, e no nosso
contexto Paulo Freire de forma especial, recuperam e trazem para a discussão
os aspectos amorosos, presentes em todas as circunstâncias revolucionárias e
libertadoras e com isso ajudam a enriquecer e clarificar os aspectos
humanizados das abordagens crítico-histórica e dialética da ciência, como
FREIRE exemplifica ao dizer:
Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos
homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e
recriação, se não há amor que a infunda. Sendo fundamento do diálogo, o
amor é também, diálogo (FREIRE, 1987, p. 79).
E prossegue na nota de rodapé referente ao texto acima:
Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os verdadeiros
revolucionários reconheçam na revolução, porque um ato criador e
libertador, um ato de amor. Para nós a revolução, que não se faz sem teoria
da revolução, portanto sem ciência, não tem nesta uma inconciliação com o
amor (FREIRE, 1987, p. 80).
O próximo e último termo, a partir do qual tentarei buscar
perceber os possíveis sentidos dos quais irão se nutrir os autores referenciados
nesta investigação, se relaciona de maneira íntima ao amor, por ser da
natureza deste substantivo a presença da Verdade como fundamento e
expressão.
2.1.9 Verdade
A Educação pode ter pelo menos duas maneiras de relacionar-
se com a Verdade: seja quando é utilizada como instrumento de domesticação
69
Tolstoi, Leo - Guerra e Paz, cap. VII
83
em sua forma tradicional ou “bancária” (FREIRE, 1987), baseada em modelos
representacionais, metafísicos, dualísticos e ideológicos; seja como prática da
liberdade, entendida como a compreensão crítica da situação na qual o sujeito
se encontra, vive e funciona, e que tem por finalidade desvelar a falsidade
inerente na ideologia dominante e permitir a emergência da vida, na
possibilidade de ser mais pela liberdade, mais do que em revelar um conteúdo
absoluto de verdades substitutivas. Nesse segundo sentido, a educação talvez
trate menos do ensino da verdade e mais do desmascaramento das mentiras
que sustentam qualquer situação opressiva na qual o homem e a mulher se
encontrem.
A relevância de terminar este capítulo abordando o delicado
tema da Verdade reside no fato de, uma vez que a abordagem da pesquisa
aqui desenhada lança mão da crítica das teorias metafísicas e da denúncia da
ideologia como falsa consciência (MARX, 1999), seria impossível chamar algo
de falso, ou criticar alguma coisa, sem fazer algumas considerações sobre o
tipo de verdade que venha a servir de critério para que os autores que
sustentam a investigação possam afirmar a falsidade, opressão, inexatidão ou
mistificação contidas em determinada posição. Neste sentido tentarei fazer
uma breve investigação sobre a Verdade no pensamento contemporâneo e de
suas bases nas culturas lhe servem de origem.
O que caracteriza uma ação, educativa ou não, como “boa”?
Tomando como ponto de partida uma perspectiva instrumental, no sentido
socrático e oposto a pragmático, não tomarei aqui o caminho de tentar, ao
menos inicialmente, definir a “natureza” da Verdade, mas o significado da
Verdade. Tentar “provar” uma verdade, ou argumento, neste sentido é tão sem
sentido quanto tentar provar cientificamente, ou pela filosofia analítica, a
grandeza de uma obra de arte, música ou literatura. A categoria utilizada aqui
tem mais a ver com o sentido de bom ou ruim, relevante ou irrelevante, no
mesmo sentido em que aquele que lê o que se escreve neste trabalho julga
como bom ou não o que aqui se registra. Buscarei trabalhar com um conceito
de verdade que inclua, para além do método científico e da lógica racionalista,
outros conceitos de verdade, como me parece ser a natureza de alguns dos
conceitos usados por Tolstoi, Paulo Freire e Ivan Illich.
84
De certa forma poderia ser afirmado que existam três formas
de verdade: Verdades prováveis, no sentido de poderem passar por provas,
como na matemática, na lógica e nas ciências físicas, próprias das abordagens
racionais e do método científico. Verdades provadas, como aquelas presentes
nas relações pessoais e na amizade. E verdades aprovadas, como as que se
encontram nas artes e nas religiões. Na minha perspectiva todas possuem o
direito de serem tratadas com grande respeito e cuidado e a exclusão de
qualquer delas de um debate sobre a Verdade pode ser revelador de formas
autoritárias, excludentes e opressivas de se relacionar com a própria realidade.
A busca da verdade que parta da não inclusão das formas
acima, na tentativa de separar o verdadeiro do falso, pode ser comparada a se
tentar separar flores de ervas daninhas, ou trigo de joio. Ao tentar fazê-lo se
corre o risco não somente de tomar uma pela outra, mas de deixar de ver que
algumas são ambas, como no caso de algumas ervas daninhas que dão belas
flores, ou plantas úteis que tem um enorme poder invasivo, como a hortelã.
Para se falar da Verdade, talvez fosse melhor falar de suas três
contrapartes: Os erros, os mal-entendidos e as mentiras, que podem ser
baseadas em três falácias: a falácia do consenso, a falácia da evidência e a
falácia da plausibilidade, ou em outras palavras: O que todos concordam, o que
é “evidente”, o que é “plausível”. Estas foram às experiências que levaram à
busca da verdade, a começar por Sócrates e seus seguidores modernos,
respectivamente Descartes, Kant e Wittgenstein. O questionamento a estas
formas de estabelecer a verdade foi encarado sob uma ótica diferente na crítica
e no questionamento feitos por Marx, Nietsche e Freud, que utilizaram não uma
abordagem lógico-científica pura, mas sobretudo oriunda da prática e da
observação ao se perguntarem respectivamente: Por que as pessoas
freqüentemente não estão interessadas em desvelar a verdade, mas em
suprimi-la, rejeitá-la ou evadir-se dela?
70
O desespero pós-moderno, e o questionamento teórico
permanente deixam de levar em conta que a busca da verdade está a serviço
da vida e não a vida a serviço desta busca. E que esta procura se dá no mundo
da prática e das relações, no assim chamado mundo real, onde se tornam
70
Porque a verdade é revolucionaria, diria Gramsci.
85
relevantes aspectos morais e éticos. Nesse caso, qualquer agente moral
precisa de esperança e auto-segurança, ao invés de melancólicas e
intermináveis duvidas ao longo da vida, que levam a falsos sonhos e
esperanças, idealizados e ideologicamente manifestados para impedir a
possibilidade de “ser mais”, inerente ao homem e à mulher.
O Homo sapiens, como se sabe, é também Homo faber e
Homo creativus. A Verdade também se dá na produção material do homem e
da mulher e nas suas relações, que se constroem no campo material,
mediadas pela linguagem, falada, escrita ou manifestada pelas artes plásticas,
pela música, pelo teatro, de forma perceptível pelos sentidos, e não como fruto
de inspirações metafísicas e virtuais, no reino da abstração. A Verdade assim é
ampliada para além do racional, científico e lógico e se constrói para além de
fatos e bons argumentos, para o campo dos princípios, da estética e dos
valores que sustentam o Homo sapiens como agente moral e que fazem com
que sua humanização transcenda a hominização. À guisa de exemplo,
independente de como vejamos o mundo, todo ser humano possui a percepção
clara de quando erra na maneira como trata um semelhante, ou nas decisões
que toma ou direções que da à vida, o quando ao que se propôs a fazer lhe
parece aquém do que poderia ser. Esta percepção dá uma indicação de que se
pode pensar que seja possível acessar a Verdade por outros caminhos e não
somente pelo método lógico-científico.
Isso me leva a poder afirmar, de forma inclusiva, que talvez ao
falar aqui de verdade, pudessem ser mantidas em mente ao menos três formas
de verdade: uma lógica e científica, que remete ao rigor objetivo dos fatos;
outra de natureza moral e religiosa, que remete a valores e princípios e ainda
uma terceira, de natureza artística, que se refere à beleza, ou como diria Paulo
Freire, à boniteza das coisas. Isto porque o ser humano não está preso aos
fatos e leis da natureza de maneira determinística e fatal, como um animal ou
uma árvore – como exemplifica Paulo Freire - mas sua humanidade se faz
pelas escolhas e pela possibilidade de imaginar e fantasiar a partir do agora e
transformar esta mesma realidade, como no sentido de utopia visto
anteriormente. Esta possibilidade está visceralmente mais relacionada a
escolhas morais e artísticas que à sequidão de fatos objetivos imutáveis. Este
modo de pensar não está somente presente na matriz judaico-cristã religiosa,
86
bastando para tanto lembrar de Marx e Lênin, para não citar Freud e Nietzsche,
que desafiaram e mudaram o mundo de acordo com suas visões construídas
sobre valores morais e éticos que ultrapassavam a mera descrição ou a lógica
pura.
Sem nossos sonhos, não seríamos mais que gado inteligente,
como bem parece pretender nos classificar o Mercado e seus agentes, de
maneira especialmente triste quando é o caso da Educação. Encontrar uma
boa solução, não a melhor solução, entre as incontáveis possíveis, é o
problema dos seres humanos, muito mais agentes morais e artistas do viver,
do que pensadores lógico-racionais e mais ainda que entes puramente
metafísicos.
Viver sem valores desta natureza, lançando mão apenas do
arrazoamento e de fatos, é uma possibilidade. Contudo a história, a esta altura
em que nos encontramos, tem demonstrado o que podemos conseguir
pensando desta maneira com a destruição perpetrada sob o fascismo e o
nazismo, sob o comunismo stalinista, em alguns casos de fundamentalismo
religioso, e no individualismo calcado no hedonismo. Esperar somente que os
cientistas e humanistas seculares darão conta da situação da humanidade é, a
meu ver, uma posição mais que perigosa, é ingênua e arrogante.
Marx, Nietzsche e Freud, e seus seguidores, ao mesmo tempo
e a partir de valores morais e imateriais, ajudam com suas críticas ao
permitirem o desvelamento necessário para separar erro e verdade ao
perguntarem como as pessoas desperdiçam suas vidas e a de outras pessoas
devido a falsos ideais e falsas intenções manifestadas ideologicamente, em
falsos sonhos e falsos medos, que não se encaixam na realidade objetiva. O
que fundamentalmente não é diferente dos alertas religiosos.
Nesse sentido, concordando com a posição de Habermas em
seu bem conhecido diálogo com Ratzinger (2004)
71
, seria um erro excluir de
uma sociedade e de uma educação de natureza democrática os aspectos da
verdade expressos pelo pensamento religioso, e acessíveis mediante o
diálogo. Observando a obra de Tolstoi, Illich e Freire, encontram-se ali três
autores profundos, ácidos, críticos e criteriosos que buscaram na beleza, na
71
Habermas, J. & Ratzinger, J. (2004). Pluralisme et Morale. Esprit, 306, 6-28.
87
ética e na fé os argumentos e os princípios que lhes serviram de base às
propostas e experiências.
No pensamento judaico – assim como em outras grandes
religiões - a Verdade não se estabelece pelo medo de um “pai do céu”, mas
exatamente pelo anúncio da libertação da angústia causada por falsos deuses,
que exigem ter sua ira aplacada mediante sistemas que incluíam a morte em
rituais, a prostituição – e a subjacente menos valia de outro ser humano - a
escravidão, a naturalidade com que se consente na existência de classes
opressoras e na fatalidade das condições de classes oprimidas. O Deus que se
apresenta como pleno da Verdade
72
, é um Deus que ama, acolhe, perdoa e
esquece. A Verdade - תמא , emeth – também é traduzida como estabilidade,
segurança e na maior parte das vezes está relacionado a três outros termos
acompanhantes no texto bíblico: igualdade, normalmente contraposto à
iniqüidade, justiça, na avaliação dos relacionamentos humanos, e retidão
manifestada na coerência (THAYER, 1996). Os falsos deuses se relacionavam
a reis falsos e a sistemas falsos, falsos não por causa dos conteúdos afirmados
por estes, mas devido ao tipo de vida que propunham, à moral que lhes
fundamenta e em relação ao tratamento dado aos pobres, às mulheres,
imigrantes e crianças.
Os falsos líderes do contexto bíblico judaico, exibiram sempre
uma característica que bem podem servir para compará-los a lideres
contemporâneos, como Hitler, Stalin, Mao e Bush: autoproclamados e
aclamados como libertadores do caos e da vilania, usam como ferramenta de
controle o medo, e como ídolos, a raça, a nacionalidade, o Estado e o
Mercado. O que os torna grandes mentirosos e os categoriza como falsos, era
e é a exclusão de um aspecto fundamental presente em todas as grandes
religiões: o desmascaramento das mentiras escondidas. Esta é uma visão
manifestada por Paulo Freire ao afirmar “A conscientização é o olhar mais
crítico possível da realidade, que a “des-vela” para conhecê-la e para conhecer
os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura
dominante” (FREIRE, 1980, p. 29).
72
Êxodo 34:6 - Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e grande em beneficência
e verdade, (JFA).
88
Em todas as circunstâncias em que opressores tomaram o
poder houve sempre a preocupação de não negligenciar um aspecto: a
Educação. Esta tem sido utilizada, desde que se pode sistematizá-la, como
instrumento de dominação, o que retira do educador a neutralidade, e da
educação qualquer chance de ser apolítica. Entretanto, mesmo sob tais
“deuses” modernos como o Mercado, o Dinheiro e o Status, está ao alcance
dos educadores fazer escolhas morais, que lhes permitam escolher entre o
acesso à Vida, ou serem instrumentos da domesticação e da morte.
No pensamento grego, Verdade - αλήθεια, alétheia – tem um
relacionamento com outro conceito fundamental, o ser. Na etimologia de
Alétheia, o prefixo de negação “a” se liga a Lethes, a deusa rio que circunda o
Hades, o lugar dos mortos, o rio do esquecimento, do deixar de ser. Neste
sentido, Alétheia é o insistente ato de não deixar ir ou perder-se o que se sabe.
E o que se sabe, se é. Assim compreendida, a verdade se relaciona ao ser,
como afirma HEIDEGGER (2000), ao definir alétheia como “verdadeiro ser”.
Este autor é uma das mais extensivas fontes para entender este conceito, tanto
em Platão, quanto na análise a que se dedica mais profundamente de alétheia
em Aristóteles e Parmênides. O mesmo autor liga alétheia a outro conceito:
logos -λόγος - a palavra, não como “fala apofática” (HEIDEGGER, 1988. intr.
seção 7.c), mas como o que deixa alguma coisa ser vista com a implicação e
significado de permitir o relacionamento.
Estes conceitos se unem no cristianismo na anunciação do
Messias feita por João. Em João o Logos, a palavra, vem a ser cheia de
verdade, e permite que com ela se estabeleça um relacionamento, ao se
transformar em Palavra Encarnada e quando Jesus afirma sobre si mesmo
como sendo “A Verdade”.
73
Entender esta relação é fundamental, uma vez que
para o pensamento cristão antigo, antes da cristandade
74
, a Verdade não se
trata de um conteúdo a ser repetido. O conceito cristão primitivo se funda em
uma perspectiva nova e até então inédita: a Verdade como uma pessoa.
73
João 14:6
74
Cristandade aparece aqui como desdobramento do cristianismo quando este se torna
religião oficial de um império, que o usa para os seus fins, e que posteriormente se estabelece
como império em si, após o que será desafiado por outras forças imperiais subseqüentes, a
saber, o pensamento científico, o Estado e o Mercado.
89
A principal implicação desta definição de verdade como sendo
alguém e não algo, é que assim se pode dizer que a Verdade, apesar de
acessível ao conhecimento, não pode por ele ser possuída, nem controlada,
nem colocada para uso. Assim como uma pessoa é complexa, infinita e
impossível de ser total e definitivamente esgotada cognitivamente, a Verdade é
vista da mesma forma e sendo assim só existe na medida em que se faz
presente e relacional. A opção posterior do cristianismo agostiniano,
dicotomizado na chave de leitura do mundo que separa a realidade humana da
divina interpõe um mediador, no caso a igreja, que interpreta, estabelece,
ordena, determina e autoriza o que seja ou deixe de ser a verdade. A Verdade
relacionável se tornou assim vítima de ser transformada em conteúdo a ser
reproduzido e em mera religiosidade, no sentido aristotélico, caindo na
inevitável condição de superstição e ópio do povo.
O Iluminismo e o Racionalismo, como já citado anteriormente,
permitiram a concepção de uma verdade cognoscível e acessível pelo método,
desencarnada e não relacional, que ao ser objetificada, relativizada e separada
de seus conteúdos morais ajudou a criar as condições para a geração do mito
do progresso, contra o qual se levantou Illich, e a realidade da opressão, do
fatalismo do mercado e da “naturalidade” da física social, escancaradamente
desmascarada por Paulo Freire.
Em Tolstoi, Illich e Freire encontraremos ecos desta verdade
relacional e encarnada, manifestada na sabedoria – do grego σοφία, sofia - e
do hebraico -המכח , chokmah - fruto da relação ensino/aprendizagem, oriunda
do relacionamento entre aprendentes imersos na realidade, embebida em
princípios e valores pela vida. A frase anterior remete obrigatoriamente à
afirmação de Paulo Freire quanto ao aprendizado ser fruto de pessoas em
relacionamento mediatizadas pelo mundo (FREIRE, 1987, p. 68). E, talvez por
isso, o último termo analisado, ainda que brevemente, nesta série, se relacione
de maneira tão claramente evidente com o primeiro termo descrito nesta seção
e reafirme a relação entre liberdade, conhecimento e verdade, nas palavras de
Jesus: “conhecerão a Verdade, e a Verdade os libertará”
75
.
75
João 8:32
90
2.2 SÍNTESE
A liberdade, com a qual iniciei este capítulo, se relaciona com a
Verdade de uma maneira não abstrata. Ela é experimentada por indivíduos em
comunidade, conscientes de que a tensão existente na vida comunitária só
pode ser experimentada subjetivamente por uma forma de autonomia fundada
na concepção e relação com o outro e na existência de valores e princípios que
só passam a fazer sentido quando reconhecidos dinamicamente sem negar a
noção objetiva, pela anuência da razão e com o sustento da ética e da moral.
Ninguém é guardião ou proprietário da Verdade, de pessoas ou
da comunidade, ninguém pode neles e com eles ser obrigado a crer ou a viver.
É por atração, por livre decisão, tomados pelo amor, que homens e mulheres,
crianças e velhos decidem neles estar e permanecer. Mais do que um ideal, de
uma falsa consciência, esta maneira de ver a relação, em especial a relação de
ensino/aprendizagem e da construção de espaços educativos em rede,
localizados e locais enquanto conscientes do mundo histórico e meta histórico,
é uma afirmação utópica e histórica que insiste em que a humanidade não
parou ou mesmo chegou ao fim da história, e que o ser humano, em sua
capacidade de reinventar-se e re-fazer-se, ainda pode e deve experimentar e
testar novas formas nas quais as novas gerações, saiam da prisão
mercadológica, despersonalizante e autoritária, que insiste em chamar de livre
o ser humano arbitrário e de fatal a injustiça. Nesta dissertação assumo que um
dos caminhos possíveis e opostos à globalização, seja ela mercadológica ou
miticamente construída a partir de supostas consciências planetárias distantes
das condições objetivas diárias, possa ser construída seguindo o caminho
inverso, por meio de alternativas que privilegiem o pequeno, o lento, o local, o
limite, a renúncia voluntária e o convivencial.
91
CAPÍTULO 3
3.1 RIOS QUE SE CRUZAM
“La parole est à moitié à celui qui écoute, et à moitié à celui qui parle.”
”A palavra é a metade de quem a pronuncia, metade de quem escuta”.
Montaigne, 1533-1592
76
Levando em consideração o conceito de verdade descrito
anteriormente, o objetivo da análise ao longo deste capítulo será o
desvelamento de influências cruzadas entre os três autores que dela fazem
parte. A ordem da análise será primeiramente a revisão do pensamento de
Tolstoi sobre a educação e o educador, seguido pela análise do mesmo tema
em Ivan Illich, finalizando com as reflexões de Paulo Freire. Sempre que se
mostrar oportuno, as aproximações e divergências de pontos de vista entre os
autores serão mencionadas à medida que surgirem e ficarem evidentes.
A escolha da ordem de apresentação dos autores se deve em
parte à localização de cada autor no correr da história, mas principalmente ao
impacto de suas idéias ao longo do tempo. Cronologicamente Illich foi o último
a falecer (2002), no entanto a intensa discussão pública de suas propostas e
escritos foi anterior à enorme divulgação das pedagogias de Paulo Freire, que
cresceu em importância de forma inversamente proporcional à perda de
popularidade, não necessariamente de relevância, das propostas de Illich. No
caso de Tolstoi, suas obras pedagógicas foram amplamente conhecidas até o
primeiro quarto do século XX e chegaram a desaparecer da discussão a ponto
de nem sequer serem mencionadas em obras mais recentes, como a de
PALACIOS (1984), entre as grandes contribuições à pedagogia no fim do
mesmo século, entretanto o reflexo de seus pensamentos e idéias em obras de
autores bem conhecidos como Dewey e Steiner, na vida de líderes políticos
como Ghandi e Martin Luther King e nos dois outros autores aqui estudados é
mais que evidente, como espero poder deixar claro.
Antes de dissertar sobre os três autores, uma breve revisão
sobre alguns autores anarquistas será feita e tem a intenção de referenciar o
estudo, localizando-os como alguns precursores diretos e indiretos do
pensamento dos três autores analisados.
76
MONTAIGNE, Michel. Ensayos. Edição livro eletrônico (e-book) - tomo III, 2004, p. 191.
92
A escolha dos autores analisados como representantes da
Pedagogia Libertária nem de longe esgota a extensa lista de seus propositores,
que incluiria outros como Faure, Goldman, Korczac, Robin, entre outros. Os
que foram escolhidos aqui, o foram por permitirem uma breve revisão do
pensamento pedagógico libertário no século XIX, pelas conexões existentes
entre eles e por permitirem desenhar um breve panorama do ambiente e das
propostas existentes e de onde sobretudo Tolstoi recebeu alguma influência.
Desde já cabe aqui uma breve sinalização sobre um dos
aspectos que servem como pano de fundo desta pesquisa. Observando a vida,
obra e a relevância das propostas de homens como os acima citados, podem-
se perceber duas maneiras de tornar irrelevante o impacto de grandes
pensadores: ou a sua transformação em párias, como no caso de Illich,
relegando a obra destes autores ao esquecimento, ou sua transformação em
ídolos, ressaltando apenas a porção inofensiva da obra de um indivíduo, como
a ampla divulgação e celebração do escritor Tolstoi em detrimento de sua obra
como pedagogo. Aclamado e reconhecido por obras como “Guerra e Paz” e
“Ana Karenina”, ele mesmo considerava estas suas obras menores quando
comparadas a seus esforços como pedagogo. Diante da obra de Paulo Freire,
me pergunto: A que Paulo Freire incensamos? E qual parte de sua obra
relegamos ao esquecimento? Os levantamentos da pesquisa bibliográfica são
aqui apresentados de forma a contextualizar historicamente cada autor, buscar
os pontos principais de seu conjunto de propostas e, por fim, procurar
descrever o conceito que cada um tem sobre o educador e a educadora, ou o
mediador e a mediadora, do processo de aquisição do saber. Ao final do
capítulo tentarei apresentar as aproximações, e afastamentos de seus
conceitos de educação e educadores e realizar correlações entre suas obras e
influências.
3.1.1 Precursores do pensamento crítico e libertário
Tolstoi e Illich de maneira especial, e Freire de forma não tão
intensa mas nem por isso menos relevante, podem ser relacionados entre os
críticos da educação burguesa do século XIX e XX, entre os quais se
encontram Willian Godwin, Max Stirner, Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail
93
Bakunin, Piotr Kropotkin e Francisco Ferrer y Guardia, e que têm sido
usualmente ignorados, mal-interpretados e mal compreendidos (CHAPPELL,
1978). Em maior ou menor grau, todos estes autores esposaram a crença no
ser humano, como possuidor de uma inclinação natural para o bem, o que de
certa forma os coloca em linha com Rousseau.
No entanto, o que é importante ressaltar, e o que o que os
torna relevantes para minha pesquisa, é a convicção comum a todos de que o
ser humano pode construir autonomamente, ainda que não isoladamente ou
sem as relações que os tornam humanos, seu conhecimento, a si e às
diferentes formas de organização social que tenham por finalidade o bem estar,
a sobrevivência da espécie e a emancipação humana, tendo como parte
relevante desta possibilidade a prática da transmissão, aquisição e síntese de
novos conhecimentos.
Cronologicamente, o primeiro crítico desta série é Willian
Godwin (1756-1836). Ele foi o primeiro europeu a desenvolver uma
compreensiva crítica anarquista à então nascente sociedade moderna. Sua
crítica a toda forma de governo e sua crença na capacidade independente de
todo homem e mulher de desenvolver seu intelecto de forma independente,
formam a base do pensamento anarquista moderno. Sua crítica à educação se
baseava numa máxima do Iluminismo: O progresso social mediante o uso e o
desenvolvimento da razão humana. Sua sociedade igualitária e anarquista viria
por via não revolucionária, como sucessora de uma fase democrática
transitória. Quanto à educação ele chega a afirmar:
O projeto de uma educação nacional deveria ser uniformemente
desencorajado devido à sua óbvia aliança com o governo nacional. Esta é
uma aliança de natureza ainda mais formidável do que a velha e muito
contestada aliança da igreja com o estado. Antes de colocarmos uma tão
poderosa máquina sob a direção de um agente tão ambíguo, nos convém
considerar bem o que estamos fazendo. O governo não falhará em usá-la,
para fortalecer suas mãos, e perpetuar suas instituições
77
(GODWIN, 1976,
p.616).
77
. . . the project of a national education ought uniformly to be discouraged on account of its
obvious alliance with national government. This is an alliance of a more formidable nature than
the old and much contested alliance of church and state. Before we put so powerful a machine
under the direction of so ambiguous an agent, it behooves us to consider well what it is that we
do. Government will not fail to employ it, to strengthen its hands, and perpetuate its institutions.
94
Sua crítica era tanto à educação promovida pelo estado quanto
pela Igreja (CHAPPELL, 1978, p.358), principalmente ao relacionar a
irrelevância das “escolas dominicais” como agentes capazes de diminuir ou
interromper o fornecimento de mão de obra dócil para as manufaturas. Quanto
à educação pública ele afirma: ” Não é assunto do governo… tornar-se o
preceptor de seus subordinados”
78
(GODWIN, apud CHAPPELL , p. 358).
Sua proposta para atender à necessidade de ampliar a
capacidade de leitura da população e aprofundar as raízes da cultura incluíam
o uso da literatura, os grupos voluntários de discussão e a maximização do
contato entre os saberes presentes na sociedade - uma interessante
aproximação da idéia de redes locais, aprimorada e desenvolvida por Ivan Illich
(1971) no século XX. Ele antecipou alguns problemas de sua proposta ao
considerar difícil encontrar um número razoável de mestres e pessoas
ilustradas não totalmente doutrinadas pela igreja e pelo estado. Isto fazia com
que ele fizesse alguma concessão ao ensino público, como lembra CHAPPELL
(1978, pág. 358) que resume assim o ponto de vista de Godwin sobre a
educação:
O instrumento para a educação básica, moral e política não pode estar
associado com nenhum governo ou instituição eclesiástica, nem pode esta
educação ser levada a cabo por nenhum corpo seja ele secular ou religioso.
A educação pode ser desenvolvida apenas pela interação social e guiada
por grupos de preceptores esclarecidos que investigarão uma variedade de
tópicos e compartilharão
79
suas conclusões. Seus ouvintes serão instigados
a comunicar suas aquisições ainda a outros, e o círculo de instrução
crescerá perpetuamente. A razão se espalhará e não a simpatia bruta e não
inteligente
80
(CHAPPELL, 1978, p. 359).
Max Stirner (1806-1856) foi um crítico muito mais ácido da
educação tutelada pelo estado. Sua posição foi de defesa da absoluta
78
it is not the business of government . . . to become the preceptor of its subjects.
79
(nota de tradução: a palavra impart tem um sentido mais amplo do que simples comunicar,
não existindo a nuance em português, que seria algo como passar adiante, com o conteúdo
que é transmitido, parte de quem o outro é.)
80
the instrument for moral, political and basic education cannot be associated with any
government or ecclesiastical institution, nor can this education be carried out by any educational
bodies whether secular or religious. Education can only be developed by social interaction and
communication guided by groups of enlightened preceptors who will investigate a variety of
topics and share their conclusions. "Their hearers wilt be instigated to impart their acquisitions
to still other hearers, and the circle of instruction will perpetually increase. Reason will spread,
and not a brute and unintelligent sympathy."
95
individualidade e de crítica a toda forma de governo. Segundo ele o homem
livre se diferenciava do homem educado por ser este “subserviente aos seus
pensamentos, os quais foram dominados por valores sociais aceitáveis ditados
pelo estado” (STIRNER, 1967 apud CHAPPEL, 1978, p.360).
81
Comparando os
sistemas de autoridade anteriores, baseados na cátedra de estudiosos sob os
auspícios da igreja, os novos sistemas de educação popular de sua época
eram vistos por ele como instrumentos de manutenção da relação senhor-
escravo na nova economia, o que tornava este sistema tão ou mais danoso
que o anterior. Opondo-se à educação universal de Comênio, com sua
inclinação ao pragmatismo, Stirner acusava o mesmo de ser um refinado
sistema de doutrinação para a submissão ao Estado. Segundo ele, a liberdade
de vontade do estudante era sacrificada na típica relação professor/aluno onde
a crença principal é a de que o bem estar do aluno repousa sobre a expertise
do professor e das instituições (SPRING, 1975). Segundo CHAPPELL (1978),
Stirner teria rejeitado qualquer expressão reformadora de escola, como as que
foram propostas por Ferrer e por Tolstoi. “Educação era vida e socialização era
um produto da cultura, não das escolas”, diria ele.
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) é popularmente
reconhecido por suas contribuições à economia, principalmente sua proposta
de sistema bancário natural, crédito livre e câmbio eqüitativo, e à sociologia na
concepção futurista da sociedade como uma federação livre de cooperativas de
trabalhadores. A concepção educativa de Proudhon é muito próxima da de
Mikhail Bakunin. Em sua obra Idea of Revolution in the Nineteenth Century, de
1851, ele sugere que um sistema educacional estatal, através da separação da
instrução intelectual e da instrução profissionalizante, serviria somente para
aumentar a distinção entre as classes, expandir a tirania governamental e a
sujeição da classe trabalhadora (CHAPPELL, 1978, p. 361). Este alerta de
Proudhon se aproxima da crítica de Marx à ideologia como originária da
separação entre trabalho intelectual e trabalho físico, e se contrapõe à origem
do idealismo grego da scholé, como espaço das idéias e não do trabalho
manual. Neste sentido Proudhon argumenta contra o senso de superioridade
81
Esta citação aparece no escrito de Karl Marx (1842) “NEUE RHEINISCHE ZEITUNG”, citado
por CHAPPELL, 1978
96
que os estudiosos ganham quando embarcam em uma carreira teórica
separada da aplicação prática.
Para Proudhon, sempre que existisse integração entre teoria e
prática, ou “quando esta se torna ao mesmo tempo o treino da mente e sua
aplicação sobre os assuntos práticos no espaço de trabalho e em casa”
(CHAPPELL, 1978, p. 362), o controle do governo desapareceria, uma vez que
as disparidades entre teoria e prática seriam dissolvidas e a separação entre
classes, desmascarada, o que deixaria de alimentar o jogo de controle exercido
pelo governo. Levando em conta a presente ênfase em planos de
desenvolvimento voltados ao mercado, a esterilidade acadêmica e a insistência
de alguns autores como MORAES (2006) na capacitação profissionalizante
como solução às mazelas da sociedade, seria interessante lembrar o que diz
Proudhon:
Se a escola das minas é alguma coisa mais do que o trabalho real nas
minas, acompanhado dos estudos convenientes à industria mineradora, a
escola terá como seu objeto, criar, não mineiros, mas chefes de mineiros,
aristocratas
82
(PROUDHON apud SHATZ, 1971, p. 111).
Neste sentido ele termina por desmascarar uma situação
presente e tida como fato inexorável em nossos dias:
Não foi para o Povo que foram fundadas a escola politécnica, a escola
normal, a escola militar de St. Cyr, a escola de Direito: foi para apoiar,
fortalecer, e fortificar a distinção entre as classes, de forma a completar e
tornar irrevogável a separação entre a classe trabalhadora e a classe
dominante
83
(PROUDHON apud SHATZ, 1971, p. 111).
Michail Alexandrovitch Bakunin (1814-1876), reconhecido
por muitos como o pai do anarquismo contemporâneo, participante de
iniciativas revolucionárias em Paris, Dresden e Praga e escritor compulsivo, foi
82
If the school of mines is anything else than the actual work in the mines, accompanied by the
studies suitable for the mining industry, the school will have for its object, to make, not miners
but chiefs of miners, aristocrats.
83
It was not for the People that the Polytechnic, the Normal School, the military school at St.
Cyr, the School of Law, were founded: it was to support, strengthen, and fortify the distinction
between classes, in order to complete and make irrevocable the split between the working class
and the upper class. idem.
97
tremendamente influenciado pelas idéias de Proudhon, principalmente quanto
ao cooperativismo produtivo. A sua idéia de educação se aproxima das de
Proudhon na sua rejeição à tutela do Estado e à denuncia dos interesses que
subjazem a educação assim chamada pública como sendo de natureza
socioeconômica na preservação das disparidades de classe e acesso à
riqueza. O conceito de sociedade de Bakunin, que posteriormente se tornou
central em Kropotkin, era o da mútua interdependência de indivíduos,
cooperando voluntariamente em todos os seus esforços, sem a necessidade de
nenhuma obrigação compulsória a não ser as das leis da natureza humana e
do meio ambiente.
Para Bakunin a principal tarefa da sociedade pós-
revolucionária seria a educação de seus membros, baseada na pesquisa
científica sobre a natureza e a sociedade, a essa iniciativa ele deu o nome de
Educação Integral (BAKUNIN, 2001b), caracterizada pela busca do completo
desenvolvimento do potencial individual através do uso abrangente tanto de
aspectos práticos quanto teóricos do conhecimento humano.
A Educação Integral se dividiria em três áreas de pesquisa,
como pré-requisitos encadeados: o estudo teórico das ciências; o treinamento
técnico de acordo com as vocações; a moral e a ética, estas baseadas não no
desprezo usual pela humanidade e a na ênfase no respeito pela autoridade,
mas no desprezo pela autoridade e no respeito pela humanidade. Bakunin não
desconsiderava o fato de que algumas pessoas possuam maior propensão que
outras para a aprendizagem, mas que esta diferença era exagerada e que se
devia mais às diferenças existentes na sociedade do que na natureza do
indivíduo.
Admitidamente o sistema de Educação Integral de Bakunin
possuía um componente inicial de natureza aparentemente autoritária,
conforme já citado quando do estudo do termo autoridade como categoria
epistemológica, no entanto este caráter só estava preconizado para os estados
iniciais da educação das crianças pequenas, logo após este período a livre
entrada e saída do processo seria a marca, como escreve MAXIMOFF:
Mas estas escolas [de educação integral] deveriam ser livres até mesmo da
mais sutil aplicação ou manifestação do princípio da autoridade. Elas não
seriam escolas no sentido aceito usualmente, mas academias populares,
98
nas quais nem pupilos nem mestres seriam reconhecidos, mas aonde as
pessoas viriam livremente para buscar, se assim achassem necessário, a
livre instrução, e nas quais, ricas em experiência, eles irão ensinar muitas
coisas a seus professores que por sua vez trarão o conhecimento que lhes
falte. Esta então será um tipo de fraternidade educacional entre jovens
educados e o povo
84
(MAXIMOFF, 1953, p.334).
Como afirma CHAPPEL (1978) esta proposta de educação se
tornaria viável somente em uma sociedade totalmente igualitária, e se
apresentava como um contraponto dialético para com a educação “pública” no
estado burguês, dirigida por uma classe dominante, a quem Bakunin dirigia as
seguintes palavras:
Mas vocês [burgueses socialistas] não os ensinam, vocês os envenenam
tentando lhes inculcar todos os preconceitos religiosos, históricos, políticos,
jurídicos e econômicos que garantem sua existência, e que ao mesmo
tempo destroem sua inteligência, retiram a têmpera de sua legítima
indignação e debilitam sua vontade
85
(BAKUNIN apud MAXIMOFF, 1953,
p.336).
Piotr Alexeivich Kropotkin (1842-1921), contemporâneo e
participante da revolução Bolchevique, dela se distanciou por sua proposta de
Anarco-comunismo, que entre outros pontos refutava frontalmente a ênfase
evolucionista darwiniana na seleção natural e suas implicações políticas e
sociais, afirmando que a luta pela existência se sustentava não na
competitividade mas no sentimento de coletividade representado pela
adaptação de todos os indivíduos às condições que melhor permitissem a
sobrevivência da espécie; não na luta entre fracos e fortes, com a prevalência
dos últimos sobre os primeiros, mas na cooperação e colaboração; na luta
entre a espécie e o ambiente e não entre os diferentes membros de uma
84
But these schools [of integral education] should be free from even the slightest application or
manifestation of the principle of authority. They will not be schools in the accepted meaning, but
popular academies, in which neither pupils or master will be known, but where the people come
freely to get, if they find it necessary, free instruction, and in which, rich in experience, they will
teach many things to their professors who shall bring them the knowledge that they lack. This
then will be a sort of intellectual fraternity between educated youth and the people.
85
But you [bourgeois socialists] do not teach them, you poison them by trying to inculcate all the
religious, historical, political, juridical and economic prejudices which guarantee your existence,
but which at the same time destroy their intelligence, take the mettle out of their legitimate
indignation and debilitate their will.
99
espécie entre si (CHAPPELL, 1978, p. 362). Isto também se refletia em suas
idéias sobre educação.
Crítico da educação nacional compulsória, Kropotkin antevia
que a possibilidade de escolarização compulsória pública poderia, com
sucesso, inculcar valores que eliminariam o pensamento independente e o
espírito crítico:
Nós somos tão pervertidos pela educação, a qual desde a infância busca
matar em nós o espírito de revolta, e desenvolver o de submissão à
autoridade; nós somos tão pervertidos por esta existência debaixo do
ferrolho da lei, a qual regula cada evento da vida – nosso nascimento,
nossa educação, nosso desenvolvimento, nosso amor, nossa amizade –
que se este estado de coisas continuar, nós perderemos toda a iniciativa,
todo hábito de pensar por nós mesmos
86
(KROPOTKIN apud CHAPPELL,
1978, p.362).
Kropotkin atacou o pensamento individualista de Stirner em seu
folheto Anarquismo e Ciência moderna (CHAPPEL, 1978, p. 363),
especificamente quanto à seletividade do processo educacional para alguns
indivíduos bem dotados, o que levaria a sociedade obrigatoriamente de volta à
idéia de estado e do domínio de poucos sobre muitos. Ao mesmo tempo ele
concordava com Bakunin e Proudhon na integração entre teoria e prática de
forma a evitar a distinção em classes sociais. Ele sustentava sua posição ao
citar grandes nomes da intelectualidade que combinavam sua genialidade com
o trabalho manual, como Galileu fabricando seus próprios telescópios, Newton
fabricando lentes para seus experimentos em ótica, Lineu e sua aproximação
com a botânica enquanto trabalhava no jardim de seu pai. Ele alegava que a
industrialização, e a inerente divisão de trabalhos, causou a destruição do
interesse na produção de saber e na capacidade de inovação. Uma educação
completa, para ele, deveria ser um composto de conhecimento cientifico e
trabalho manual. Esta posição o aproxima de autores como Dewey e
Montessori, e é plenamente observável em Freinet, Makarenko e no próprio
Tolstoi. Ele descartava a idéia de escolas profissionalizantes, uma vez que
86
We are so perverted by education which from infancy seeks to kill in us the spirit of revolt, and
to develop that of submission to authority; we are so perverted by this existence under the
ferrule of a law, which regulates every event in life - our birth, our education, our development,
our love, our friendship - that if this state of things continues, we shall lose all initiative, all habit
of thinking for ourselves.
100
estas serviam para manter a divisão entre trabalho manual e intelectual.
Kropotkin enfatizava a autodescoberta facilitada pela integração entre
manufatura e reflexão, que facilitaria e aceleraria o processo de aprendizagem.
Sobre a escolarização pública compulsória, a qual rejeitava, e
sobre qual seria sua visão de educação ideal, um pequeno fragmento de sua
carta de congratulações a Francisco Ferrer e à sua Escola Moderna resume
bem sua posição:
Acima de tudo, educação no verdadeiro sentido da palavra: O processo e
formação do ser moral, do indivíduo ativo, cheio de iniciativa, espírito
empreendedor, coragem, liberdade da timidez de pensamento - uma
característica distintiva do indivíduo educado de nosso período – ao mesmo
tempo sociável, comunista por instinto, igual e capaz de sentir sua
igualdade com todos os homens em todo o universo; iniciando emancipado
dos princípios religiosos, estreitamente individualistas, autoritários os quais
a escola inculca... Nós devemos permitir a mistura do trabalho manual ao
intelectual, como pregado por Fourrier e a Internacional... nós veremos
então a imensa economia de tempo que será imaginada pela mente jovem
desenvolvida ao mesmo tempo pelo trabalho das mãos e da mente
(GOLDMAN, 1969, p.155).
Francisco Ferrer Y Guardia (1859-1909), aparece aqui
imediatamente antes de Tolstoi por ser como ele, alguém que foi além da
crítica ao sistema educacional existente, mas que investigou e praticou a
educação libertária em sua “Escola Moderna” - ainda que não possa ser
categorizado estritamente como anarquista - e estimulou pelo exemplo, mais
de cem reproduções da mesma na Espanha e em dezenas de casos em outros
países, inclusive com associados e extensões em escolas anarquistas no Brasil
do início do século XX, principalmente na cidade de São Paulo (MORAES,
1999). A prática deste tipo de abordagem na educação lhe custou a morte
prematura por fuzilamento pelo governo espanhol, sob a acusação de estimular
a sedição, em 1909.
Assim como Tolstoi, Ferrer cria que a formação – ou melhor
categorizando, a Paidéia do ser humano - e não a revolução, era o meio
próprio para implementar a mudança social. Sua experiência de Escola
Moderna, relatada em detalhes no livro de mesmo nome (FERRER, 1960),
funcionou de 1901 até o ano de seu fuzilamento. Financiada pelo estipêndio
destinado por uma de suas antigas estudantes, este experimento tinha como
101
inspiradores diretos os pensamentos de Lousie Michel e a escola de Mont-
MArtie; Paul Robin, e a escola de Cempuis para crianças pobres e Sebastian
Faure, e a escola comunitária La Ruche ( A colméia) (CHAPPELL, 1978). Seus
princípios eram: dar acesso a todos, mediante a cobrança de mensalidades
muito baixas; a familiarização com o método de pesquisa científica; a lógica
rígida, aplicada com discrição e na progressiva disposição da vontade; na auto-
crítica e não só na crítica ao outro. Assim como Tolstoi, sua maior dificuldade
era a de encontrar material impresso a ser usado em sua escola,
diferentemente deste ele não chegou a produzir tais materiais, abundantes no
caso do autor russo. Ele evitava qualquer forma de dogmatismo, religioso ou
não, e inclusive ressaltava que a escola deveria evitar qualquer indução ao
pensamento revolucionário, deixando a cargo de cada um suas descobertas e
opções. O sucesso de suas idéias - que entre outros lugares começava a se
espalhar pelas Américas do Sul (São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu, por
exemplo) e do Norte (Nova York e Nova Jersey) - foi abruptamente
interrompido quando de sua morte violenta em outubro de 1909 (CHAPPELL,
1978).
A importância do resgate destes autores como críticos e
propositores de formas alternativas de transmissão, produção e aquisição de
novos conhecimentos, tem a finalidade de ressaltar alguns pontos de vista que
podem servir de subsídio crítico na discussão sobre alguns enfrentamentos
atuais na área da Educação, principalmente no que diz respeito à autonomia,
apatia, estratégias de aprendizagem, quando observado o indivíduo educado;
além de chamar a atenção para a educação compulsória como mecanismo de
reforço da estrutura da sociedade de classes e da geração de consumidores
acríticos e passivos dos produtos e serviços da economia global.
Seguindo a trajetória aberta por estes autores na crítica à
educação compulsória e orientada pelas necessidades criadas pelo mercado,
outros autores, a começar por Tolstoi, ainda no século XIX, seguido por Ivan
Illich, Everett Reimer, John Holt, Paul Goodman, no século XX, desafiaram e
construíram propostas aos caminhos usuais na formação humana. Talvez as
alternativas aos dilemas enfrentados não esteja em se proporcionar mais das
mesmas soluções já tentadas repetidas vezes, ainda que com roupagens
sempre novas, nem na terapeutização do fracasso escolar ou na subordinação
102
ao pensamento global, mesmo que maquiado sob a forma de ecopedagogias
(BOWERS, 2004) ou outras denominações curiosas que por fim subscrevem,
ainda que sutilmente, a cultura industrial globalizante.
Mais recentemente, já no século XXI, autores como C.A.
Bowers, Gustavo Esteva, Madhu Prakash, Dana Stuchul e outros têm
construído propostas e alternativas que transcendem a própria Pedagogia
Crítica e apontam para diálogos possíveis que incluem o resgate de alguns dos
valores aqui expressos e a abertura de um diálogo com as formas tradicionais
de geração de conhecimento calcadas, por exemplo, nas relações inter-
geracionais das populações tradicionais.
A negação da separação entre teoria e prática, trabalho e
pensamento e o estabelecimento de diálogos com outras formas de saber para
além do pensamento científico, que negam a superação etapista da
modernidade, e que ao contrário abraçam a diversidade e a polifonia de
influências como valores, podem ser, ao contrário de um retorno ao passado,
uma alternativa de construção do futuro que esteja calcado na interação e
convivência com as práticas que nos antecedem, mais que nas formas
reinventadas - e por vezes requentadas - idealizadas e forjadas na atual forma
globalizada da matriz capitalista moderna.
3.2 TOLSTOI... PEDAGOGO?????
“... na sua obra há algo que não ficou no passado, que pertence ao futuro”
Lênin sobre Tolstoi,
Obras completas, tomo 20, p.23
Lev Nicholaevich Tolstoi (1828-1910) fez parte de um amplo
movimento pela instrução promovido pela intelectualidade democrática russa
no meio do século XIX , na fase de transição da Rússia feudal para a Rússia
burguesa, com diferentes ênfases dadas por diferentes abordagens, desde a
liberal burguesa até a revolucionária. No entanto suas idéias peculiares não
são facilmente encaixáveis em qualquer tendência de então e talvez por isso
tenham sido tão radicalmente originais e tido tanta influência para além da
Rússia.
103
O século XX não seria o que foi sem a influência de Leo
Tolstoi. A afirmação acima se sustenta em autores como ZWEIG (1952, P.14),
que ao citar o papel de instigação que teve o pensamento do autor sobre
movimentos mundiais tão antagônicos quanto a política de não-violência de
Gandhi - que manteve prolífica correspondência pessoal com Tolstoi na
juventude - e a revolução Leninista - que admitia a violência na luta de classes
- afirma:
Assim como os rios correm do paraíso, em sentidos exatamente opostos, os
pensamentos de Tolstoi tiveram o curioso destino de fecundar os
movimentos espirituais do século vinte, que são precisamente os mais
incompatíveis (ZWEIG, 1952, p. 35).
A presença da inspiração de Tolstoi em movimentos como a
Revolução Bolchevique, a Revolução Indiana, o Movimento pelos direitos civis
nos Estados Unidos, sob a liderança de Martin Luther King, a resistência à
guerra do Vietnam e ao serviço militar obrigatório, entre outros, é fato bem
documentado por livros, artigos e tratados como o de ZWEIG, LAVRIN (1960) e
GREEN (1986). No entanto, sua influência na área de educação guarda um
profundo, e mesmo curioso, silêncio.
Preocupado desde cedo com a educação - aos 21 anos iniciou-
se como professor dos camponeses de sua região - sempre se apresentou
neste cenário como crítico severo de métodos pedagógicos e como escritor
prolífico sobre a ciência da educação (YEGOROV, 1988). A sua extensa
produção na área de educação foi mais constante em sua vida do que sua
atividade amplamente conhecida como escritor de “Guerra e Paz”, “A morte de
Ivan Illich” e “Ana Karenina”, como sugere MOSSMAN (1993, p. 126) ao dizer:
“A Educação foi a companheira constante de Tolstoi, a literatura sua amiga em
alguns momentos”
87
.
Como afirmado acima, seu envolvimento com o tema da
educação começou ainda jovem, em 1849, antes da libertação da servidão dos
camponeses russos (setembro de 1861), e se intensificou a partir desta
mudança social, motivado pela situação de opressão e não inserção na
87
Education was Tolstoy’s Constant companion, writing his sometimes friend.
104
sociedade russa sob a qual viviam os camponeses analfabetos, e a irrelevância
e falta de sentido do progresso e da cultura formal a que tinha acesso a elite
russa à qual pertencia Tolstoi, para estes seres humanos reificados em sua
relação com os senhores de terra russos. Mesmo após o breve período de
reformas burguesas, os camponeses se tornavam igualmente coisificados pela
nascente burguesia industrial russa pós-libertação.
Diante das possibilidades que via nas práticas pedagógicas
As investigações pedagógicas de Tolstoi ...tinham por objectivo fundamental
a instrução do povo... Além disso colocou os problemas iniciais e
fundamentais da pedagogia: Qual o objecto desta ciência, quais são os
seus métodos de investigação e o conteúdo dos conceitos mais
importantes, que ligações existem entre a teoria e a prática, quais são as
tarefas da escola? (YEGOROV, 1988. p. 8)
Encarando a situação camponesa como desafio e as práticas
pedagógicas como possibilidades, afirmava: “Devemos, passo a passo,
partindo de uma quantidade infinita de factos, avançar na solução das questões
da ciência da educação” (TOLSTOI, 1988, p.82).
Suas iniciativas e contatos com as idéias e os pensadores da
educação européia no século XIX, como Froebel e Pestalozzi - autores e
métodos que critica duramente ao verificar pessoalmente sua aplicação na
Suíça e na Alemanha (COHEN, 1981, p. 242). Sua originalidade é observável
pela sua capacidade de propor como categorias da educação, ainda no último
quarto do século XIX, princípios como os da liberdade, igualdade, autonomia,
temas geradores, diálogo, o pensamento crítico, aprendizagem significativa, a
heurística
88
, a crítica à escolarização compulsória, aos conteúdos
desconectados da vida e dos interesses dos aprendentes, entre outros
aspectos que serão explorados e documentados mais adiante. Sua maneira de
perceber as possibilidades e limitações da inclusão ou exclusão destes valores
na formação humana, o conecta de forma sutil a autores posteriores como
Paulo Freire e Ivan Illich. Esta mesma influência, porém mais direta e bem
documentada, se percebe em outros autores da educação como Montessori,
Vigotsky (BERTHOFF, 1978, p. 254), Neil (COHEN, 1981, p. 251), Steiner
88
a arte de fazer descobertas
105
(BARTGES, 2003, p. 152), Dewey (COHEN, 1981, p. 246) e Sylvia Ashton-
Warner (ASHTON-WARNER, 1986, p. 28-30), no início do século XX; e Gatto
(COHEN, 1981, p. 251)
89
, John Holt (HOLT, 2006) e George Dennison
(COHEN 1981, p. 251)
90
, na segunda metade do mesmo século e até o
presente. Algumas propostas feitas por estes autores são tão semelhantes e
paralelas às de Tolstoi, que, ou apontam para sua influência e a polinização
cruzada de suas idéias, ou evidenciam que estes grandes pensadores trilharam
caminhos semelhantes em sua análise de mundo e especificamente da
educação, a partir de contextos diversos e chegaram a conclusões
assombrosamente semelhantes.
Sobre Tolstoi, por sua vez, se pode reconhecer a influência que
exerceram Montaigne, Etienne de La Boétie, Rousseau, Comenius, Uchinski,
Thoreau
91
, Proudhon - com quem manteve contato e correspondência entre
1859/60 - e Charles Dickens - a quem conheceu assistindo a uma conferência
sobre educação em 1859 na Inglaterra (YEGOROV, 1994).
A suspeita, igualmente citada e evidenciada por alguns autores
posteriormente citados em minha pesquisa, é de que, na verdade, como seres
históricos e autores de parte da história da educação, mais de que de seus
livros, de forma direta pela leitura ou pela sua imersão contextual, existe uma
enorme quantidade de coincidências entre propostas e que com muita
possibilidade as idéias de Tolstoi tiveram papel seminal nas reflexões sobre a
educação, transformação social e liberdade, defendidas por Freire e Illich. Tal
suspeita é corroborada por alguns artigos e livros que citarei quando da análise
conjunta dos três autores.
A educação está tão forte, pressuposta, indelével e
dependentemente ligada à escolarização compulsória a comando do Estado,
do modelo de sociedade industrial administrada e a serviço do modelo vigente,
que esta pode ser uma das razões para que mesmo autores exaustivos na
89
Ver também: GATTO, John Taylor Emburrecendo-nos Cada Vez Mais - o currículo oculto
da escolaridade obrigatória porto editora, 2005, e A Different Kind of Teacher: Solving the
Crisis of American Schooling, Berkeley, 2002.
90
Ver também: DENNISON, George. The Lives Of Children. The story of the First Street
School,.EUA: 1969).
91
As obras destes autores e outros clássicos podem ser encontradas na forma de e-book no
site http://www.culturabrasil.org/download.htm
. Como A desobediência civil de Thoureau,
citada em três das obras de Tolstoi, e O discurso da servidão voluntária de Etienne de la
Boétie.
106
área, como PALACIOS (1984) nem sequer mencionem Tolstoi e suas críticas a
estes dois sistemas - ainda que autores por ele estudados, como os já citados
Neil e Steiner, além de Dewey e Montessori, assumidamente tenham se
inspirado em suas idéias. Um fato que causa espanto ao se investigar o
pensamento educacional de Tolstoi é relacionar o conhecimento universal de
suas obras e sua importância na literatura mundial, ao fato da pouca ou
nenhuma referência a seu grande número de livros e artigos sobre educação
no ocidente. A investigação que pretendo relatar neste capítulo é uma forma de
resgatar parte deste conhecimento e relacioná-lo com as propostas críticas e
libertárias mais presentes e conhecidas em nosso contexto e na realidade
latino-americana em educação.
Para Tolstoi, escrever foi a grande motivação para ensinar a
escrever (MOSSMANN, 1993). Na metade do século XIX a maior parte da
população russa, os camponeses, era analfabeta. O abismo entre ricos e
pobres e a manutenção das massas oprimidas em silêncio apático eram em
parte sustentadas por essa situação, o que explicava em grande parte a inércia
dos problemas e antagonismos sociais e a permanência da exclusão
(YEGOROV, 1994). Semelhante a Paulo Freire, Tolstoi entendeu que a
alfabetização e a educação eram “a mais premente necessidade do povo
russo”. No entanto, sua preocupação com estes temas não o colocava na
trincheira do progresso, uma vez que trazia embutida uma crítica ao uso da
educação como instrumento de domesticação, pela razão de que ele percebia
que o desenvolvimento do recente capitalismo russo estava subordinando a
alfabetização e o conhecimento técnico e científico a seus próprios objetivos,
não levando em conta o bem comum e somente servindo para criar novos
antagonismos sociais (YEGOROV, 1988). Neste sentido ele afirma sobre o
conhecimento levado a cabo pela educação escolar:
“Não somente este conhecimento não satisfaz o principal critério para a
essência da ciência, o qual é servir para o bem do povo, mas ele persegue
um alvo, deliberada e diametralmente oposto, objetivamente: manter a
maioria do povo em sujeição à minoria, recorrendo a toda sorte de sofismas,
interpretações equivocadas, fraudes e trapaças para que assim se consiga”
(TOLSTOI, citado por YEGOROV, 1994, p.648)
92
.
92
“Not only does this knowledge not satisfy the main criterion for the essence of science, which
is to serve the good of the people, but it pursues a diametrically opposed and quite deliberate
107
É interessante, neste ponto, entender duas categorias
claramente diferenciadas por Tolstoi: Educação e Cultura
93
. Na concepção do
autor, a confusão entre educação e cultura reside na falsa pressuposição de
que onde não existe educação não existe cultura. (COHEN, 1981). Ele cria que
a cultura, em seu amplo sentido, emerge das numerosas influências que
desenvolvem o ser humano, expandindo seu conceito de mundo e provendo-o
com novos conhecimentos.
A cultura, para Tolstoi, é conferida a alguém através dos jogos
infantis, sofrimento, festas, perdas. realizações, livros, trabalho, instrução,
artes, ciência e pela vida como um todo (TOLSTOI, 1988, p. 135-156) e seria
derivada da mescla entre a instrução consciente no sentido pedagógico e da
sugestão inconsciente manifestada no ambiente social e natural e nas ações
do educador (CHAPPELL, 1978). Assim:
a cultura deveria ser vista como a combinação total de influências de um ser
humano sobre outro; enquanto a educação é a influência de um ser humano
sobre outro de modo a inculcar certos costumes morais. Educação é
compulsória, um ato de força de um ser humano sobre outro para moldá-lo
de modo agradável a nossos próprios olhos. Por outro lado, cultura é um
produto das relações livres entre pessoas, baseado na necessidade de uma
em adquirir conhecimento e da outra compartilhar o conhecimento que
tenha adquirido. (COHEN, 1981, p. 244)
94
Nas palavras de Tolstoi:
A educação é a acção coercitiva e violenta de uma pessoa sobre outra com
o fim de educar um homem que nos parece ser bom; e a instrução -
obrazovavic - é a relação livre das pessoas que tem como base a
necessidade de um adquirir informação e de outro comunicar a informação
aim, namely to keep the majority of people in thrall to the minority, resorting to all kinds of
sophistry, misinterpretation, deception and cheating to do so.”
93
Sempre que a palavra cultura aparecer referenciada em Tolstoi como em oposição à
educação, é devido ao fato de que em português, como em francês e inglês, não existe um
termo tão amplo como o russo obrazovavic. Optei pelo uso semelhante à tradução inglesa
(culture) uma vez que a tradução francesa (instruction) remete mais ao seu oposto em
português. O termo alemão Bildung e o termo grego Paidéia, se aproximam mais do conceito
original russo que envolve as letras, as artes, as ciências, as experiências pessoais e o
desenvolvimento físico na formação de uma pessoa.
94
Thus culture should be viewed as the combined total of influences that life exerts upon man;
whereas education is the influence of one man on another in order to inculcate certain moral
customs. Education is compulsory, an act of force of one man upon another to fashion him
pleasingly in our eyes. On the other hand, culture is a product of the free relations between
people, based on the need of one to acquire knowledge and of the other to share the
knowledge he has acquired.
108
já adquirida (TOLSTOI, 1988, p. 139 - citação do russo em itálico não consta da
versão portuguesa
).
Ainda citado por COHEN (1981), Tolstoi afirma que “Não existe
o direito a ser educado”, mas o privilégio de todos de se ter acesso à cultura,
que além da passagem de conhecimento possibilita a geração de
conhecimento novo oriundo do interesse dos que dele participam e não de
outrem. Este seria o ponto de inflexão onde Tolstoi se afasta do pensamento
de Rousseau ao defender o protagonismo e a centralidade do interesse do
educando e não o do educador ou da sociedade que o educa, numa posição de
maior valor dado ao indivíduo do que ao contrato social e ao tutor.
Em 1901, em carta endereçada a um amigo (TOLSTOI, 1988,
p. 234) ele diminui a distância entre os dois conceitos e admite que marcá-los
como diferentes, tão fortemente como fez a princípio (1862), tendia a ser
artificial, uma vez que “educação e instrução são inseparáveis”, mas
continuava, na mesma carta a manter a diferença conceitual entre as duas
categorias e a questionar a concepção burguesa de educação determinada
pela sociedade e o Estado, baseada na ausência de liberdade e igualdade.
O desapontamento de Tolstoi com o sistema educacional
europeu se baseava em que, na sua opinião, os educandos, que deveriam ser
o centro, a motivação e o objetivo do sistema, eram na verdade o fator mais
negligenciado no pensamento educacional (COHEN, 1981), em outras
palavras, os menos ouvidos, e sobre quem se decidia da maneira mais
arbitrária.
A partir de tais concepções Tolstoi fundou a Escola de Yasnaia
Poliana, em sua fazenda natal, primeiramente e de maneira experimental em
1849 e depois brevemente de 1859 a 1862, com a contratação de alguns
educadores treinados por ele, após sua viagem de investigação sobre a
pedagogia Européia. Após 1862 a escola foi fechada pela polícia, e reaberta de
1870 a 1876, de novo fechada, reabrindo na década de 1880 funcionando até o
fim de sua vida em 1910 (YEGOROV, 1988). Esta experiência serviu de
inspiração para a abertura de mais de uma centena de escolas semelhantes
em sua província e influenciou a pedagogia soviética, principalmente a reforma
109
da escola geral e profissional russa dos anos 80 do século XX (YEGOROV,
1988, p. 28).
Coerente com sua concepção de que a escola deveria ser um
laboratório, Yasnaia Poliana foi o lugar onde ele encontrou a inspiração para
seus escritos sobre educação, para a elaboração de sua cartilha, dos quatro
livros de leitura e de sua “Nova Cartilha”, esta com mais de 36 edições e mais
de 100 mil exemplares vendidos antes de 1910. Sua opinião pessoal sobre a
primeira cartilha, expressa em carta ao amigo Strakhov em 12 de Novembro de
1872, era de que tinha “certeza de ter erigido um monumento” (BERNARDINI,
2005), assim parecia ao autor que considerava suas outras obras primas –
como “Guerra e Paz” - como “menores”. Os contos da Nova Cartilha se
encontram disponíveis em português em uma cuidadosa tradução do russo
desde 2005
95
. Foi sua “Nova Cartilha”, e seus quatro livros de leitura, que
receberam o mesmo reconhecimento público como sendo, na opinião dos
críticos da época, “a obra capital de sua vida” (BERNARDINI, 2005, p. 22).
Em 1861, Tolstoi publica uma revista pedagógica mensal com
o nome de “Revista da Escola de Yasnaia Poliana”, que contou com doze
edições até ser proibida pelo governo. Os artigos, eram na maior parte de sua
autoria, mas vários professores que utilizavam seus métodos e autores
europeus contra e a favor de suas idéias a utilizaram para ampla discussão
sobre a ciência da educação. Parte destes artigos encontra-se disponível em
português no livro “Obras pedagógicas”, de 1938, em re-edição impressa em
1988. Entre estes artigos se destacam para os fins desta pesquisa: “As
crianças camponesas devem aprender a escrever conosco ou nós devemos
aprender com elas?”, de Setembro de 1862 e “Sobre os métodos de ensinar a
ler e a escrever”, de Fevereiro do mesmo ano. Do mesmo livro “Conselhos ao
professor” de 1872, traz algumas descrições do papel e conceito de educador
para Tolstoi.
Apesar de extremamente interessante, o estudo sobre sua
escola - que sempre manteve sobre sua porta uma placa com os dizeres “Entre
e saia livremente”, numa alusão bem humorada à placa na entrada do inferno
de Dante: “Deixai toda esperança, vós que entrais” – e sobre suas posições
95
TOLSTOI, Liev. Contos da Nova Cartilha. Primeiro livro de leitura. Trad. Maria Aparecida
B. P. Soares. Cotia, SP: Ateliê editorial, 2005.
110
sobre a educação, o governo e a humanidade, será deixado aqui como
sugestão para aprofundamento futuro, uma vez que o objetivo perseguido
nesta pesquisa é de desvelar o perfil do educador que emerge de suas obras.
O importante ao citar estes fatos que cercam sua atividade na formação de um
pensamento sobre educação, sua escola e seus escritos, é deixar claro que o
perfil de educador proposto por este que foi cognominado por ZWEIG de
“pedagogo do universo”, não foi oriundo do idealismo de um nobre sonhador
enfadado com a futilidade de sua vida campestre, mas de um homem, que
principalmente após a sua crise existencial e conversão cristã em 1875, obteve
suas impressões pedagógicas da observação da experiência e que por isso,
construiu teorias que se apresentam como expressão da prática, nunca como
idealizações desconectadas de fatos e pessoas reais, mas sim localizadas e
contextualizadas no tempo e no espaço e oriundas de vivências e pessoas com
quem conviveu. Antes de aprofundar-me na descrição do perfil de educador,
fica o estímulo à leitura e investigação de suas cartas, seu contato com o jovem
Gandhi pouco antes de morrer, com Trotski e Checkov de quem foi inspirador,
sua influência sobre Vygotski e Makarenko, seus inúmeros pequenos contos,
alguns dos quais contados e redigidos pelos alunos camponeses de sua
escola, sua “Confissão” e sua proposta de não-violência em seu livro mais
querido “O Reino de Deus está em vós”.
3.2.1 O Educador em Tolstoi
“Os olhos são a parte da mente voltada para fora”
Henry Geiger
A principal ênfase do educador Leão Tolstoi esteve sempre
ligada à característica que o tornou conhecido: a criatividade.
Se o aluno não aprende desde a escola a criar, ele saberá apenas imitar
durante toda a vida. Depois de ter aprendido a copiar, bem poucos são
capazes de fazer uma aplicação pessoal de seus conhecimentos
(TOLSTOI, 2000)
96
.
96
TOLSTOI, Leo. La escuela de Yasnaya Poliana. Barcelona: coletivo anarquista. E-book
edition. 2002, sem paginação.
111
Seus métodos de ensinar a ler e escrever enfatizavam também
a necessidade da criatividade do educador e de sua capacidade de usá-la em
resposta às necessidades percebidas à sua volta. Esta criatividade do
educador se manifestava através do trabalho prático, e se mostrava como
necessária diante da confiança na criança e da defesa de que a esta deveria
ser garantida a máxima liberdade, que ele reputava como sendo o “único e
essencial critério da educação” (YEGOROV, 1994). Ao se observar seu
primeiro livro: “Os quatro períodos do desenvolvimento”, escrito na forma de
artigos entre 1852 e 1857, é possível perceber que em todas as histórias fica
clara a necessidade de uma atitude respeitosa com relação à personalidade
da criança (YEGOROV, 1994). Estas características da pedagogia de Tolstoi
antecipam aquelas que hoje são amplamente reconhecidas como valores
presentes na chamada “educação progressista” ,desenvolvida no século XX
(COHEN, 1981).
Além de as crianças possuírem a liberdade de entrar e sair de
sua escola quando quisessem (apesar de o fato que realmente ocorresse fosse
que elas costumavam permanecer lá até altas horas e terem de ser mandadas
de volta a casa com insistência, conforme relatado por escritos de seus ex-
estudantes e por ele mesmo em diversas ocasiões) (YEGOROV, 1988)
97
, os
educadores e educadoras também eram livres para ensinar da forma e da
maneira que eles percebessem que melhor se encaixava na situação
vivenciada, e que melhor dominassem, tão somente sendo requerido que
houvesse um tato especial e o uso da sensibilidade (SIMMONS,2000).
O caos e o barulho eram a ordem natural das coisas:
Penso que a desordem aparente é útil e insubstituível, embora pareça
estranha e incômoda para o professor. Vejo-me obrigado a falar muitas
vezes das vantagens desta organização e digo o seguinte sobre as
supostas inconveniências. Primeiro, esta desordem ou ordem livre parece-
nos horrível porque estamos habituados ao sistema em que fomos
educados. Segundo, aqui, assim como em muitos casos semelhantes, a
violência só é empregue devido à precipitação e à falta de respeito pela
natureza humana... se esperarmos um pouco mais, a desordem (ou
animação) transforma-se naturalmente numa ordem muito melhor e mais
forte do que as pessoas imaginam (TOLSTOI, 1988; p. 73).
97
Conforme se encontra citado em seu livro La escuela de Yasnaia Poliana, e nas obras de
Morrosov, que foi seu aluno e num relato em jornal de Yevgni Markov, citado por
YEGOROV,1988.
112
A principal tarefa do professor era saber ouvir e perceber o
que este barulho dizia e a ele responder com a citada criatividade, mais do que
saber fazer uma exposição a um grupo de estudantes silenciosos.
Conforme anteriormente afirmado, um dos conceitos chave
para a atuação do educador era o de cultura e não o de educação. Porém, a
cultura transmitida não era o ponto de chegada ou a tarefa dada ao educador.
A emergência da cultura era o ponto de partida para a busca de formas
melhores e novas de fazer as coisas que dela faziam parte. Um conceito de
educação onde a cultura é dependente do educador e da instituição, onde o
educador permite que o mundo exterior incida sobre o pupilo
98
somente na
medida em que isto interesse ao seu objetivo pedagógico, que cerca o aluno de
uma barreira impermeável contra as influências mundanas, e que só permite
que aquilo que ele ou ela considera vantajoso, atual e útil atinja seu estudante
era contrário aos princípios de Tolstoi. “Deve haver algo mais fundamental para
ensinar do que esta versão da ‘última palavra’ do que existe na cultura e na
educação” (TOLSTOI apud GEIGER, 1968, p.10). O educador e a educadora
deveriam permitir as livres relações entre as pessoas, baseadas na
necessidade de um de adquirir a cultura e do outro compartilhá-la, e nesse
papel ambos se intercambiavam na posição de aprendentes, professor e aluno.
Nesta relação pessoal, o professor - como era e ainda parece
ser o caso dos representantes da educação compulsória, estatal ou privada -
não deveria poder interferir para moldar o caráter ou “melhorar” as
qualidades de seu ensinando. Segundo Tolstoi, o educador não possui o direito
de introduzir seus próprios padrões morais e pontos de vista sociais na
santidade do espaço familiar (COHEN, 1981; SIMMONS 2000), e a este
respeito este mesmo autor, citando um texto sarcástico de Tolstoi sobre este
tema, nos revela:
A senhora professora, uma estranha criatura, distorcida pela vida, que
estabelece a perfeição da natureza humana na arte da mesura e da
elegância, em saber colocar um colar, e em falar francês, o informará
confidencialmente que ela é uma mártir de seu dever; que todos os seus
esforços são em vão devido à impossibilidade de remover completamente a
criança da influência de seus pais (COHEN, 1981, p. 245).
98
Pupilo, termo muito usado por Tolstoi, tem muito mais o sentido de ser um termo de época
do que o sentido semântico de ser o outro uma imagem diminuída de si mesmo.
113
O tipo de professor que Tolstoi buscava para compor sua
escola era tão difícil de encontrar quanto o que esperava Godwin e que foi
experimentado por Ferrer, citados anteriormente. Com vistas a suprir esta
necessidade ele empreendeu mais uma vez e criou uma “universidade leiga”,
por ele chamada de “Universidade dos tamancos” (YEGOROV, 1988) para
treinar professores camponeses – mais uma aproximação com Paulo Freire e
seus educadores populares e um paralelo que se pode construir com a
campanha “De pé no chão também se aprende a ler” (DE GÓES, 1980)
implementada por Djalma Maranhão, prefeito de Natal e que durou de 1961 a
1964 até ser interrompida pelo golpe de estado
99
- e começou propondo um
currículo anti-sistema, que culminou em seu ensaio de 1909 “Da formação”,
onde as três habilidades, ler, escrever e contar, foram delegadas ao segundo
plano:
Eu penso que, com a colocação da religião e da ética na base da educação,
o estudo da vida daqueles semelhantes a nós, isto é, nossos companheiros
humanos, o que é chamado de etnografia, tomará então o primeiro lugar no
currículo, e, compatível com sua importância para a vida racional, a
zoologia, matemática, física, química e outras disciplinas seguirão a essa
em seus lugares apropriados (TOLSTOI apud MOSSMAN, 1993, p.125).
Quanto ao currículo a ser seguido em Yasnaia Poliana pelo
educador, este não necessitava ser um conteúdo a ser completado, nem
precisava ser exaustivo ou ser prescrito com base em convenções ou
tradições, não havia assuntos sacrossantos e que todos deveriam saber. O
educador e educadora deveriam ter em mente que as desejáveis habilidades
oferecidas e os assuntos abordados eram uma porta aberta para a ciência,
uma vez que esta é parte da cultura, não algo a ser repetido de cor, mas a ser
buscado autonomamente. Para ele não havia método bom ou método ruim,
somente o método que era apropriado para a relação entre aprendente e
ensinante (SIMMONS, 2000), e adequado ao caráter e à mente de cada
criança em particular:
99
O documentário sobre a experiência pode ser baixado no site abaixo:
http://www.correodelsur.ch/arte/cine/portugues.html
114
Na escola de Yasnaia Poliana nós reconhecemos a legitimidade de todos os
métodos conhecidos para o estudo da linguagem – inclusive o estudo da
gramática. Nós empregamos estes métodos se o estudante os aceita
alegremente e se estão de acordo com seu próprio conhecimento. Ao
mesmo tempo nós não reconhecemos nenhum método como exclusivo, e
nós estamos continuamente procurando encontrar novos métodos (Tolstoi,
2000, p. 122).
Uma das principais tarefas do educador e da educadora era
encontrar uma maneira de fazer do objeto da aprendizagem algo
significativo para a criança, inspirar sua motivação e trazer-lhe satisfação
oriunda de seus estudos. Esta tarefa, quando bem cumprida, permitia o
surgimento do desejo, fundamental para a verdadeira aprendizagem, conforme
lembra Yegorov (1994):
O conhecimento que tenha sido assimilado não poderia simplesmente ser
transmitido e certamente não poderia ser confiado aos pupilos se eles assim
não o desejassem. Os pupilos deviam aplicar seu próprio esforço e se
engajar em atividades cognitivas independentes. Isto eles fariam melhor se
não fossem forçados por um professor mas guiados pela sua própria
vontade (YEGOROV, 1994, p.648).
Do ponto de vista da didática, sua recomendação era de que
quando um pupilo estivesse empolgado com um trabalho em particular, o
educador se veria obrigado a encorajá-lo e a fortalecer sua empolgação.
Aqui reside uma indicação de que a pedagogia de Tolstoi nada tinha de
laissez-faire, a tarefa do professor e da professora nos bastidores se baseava
na convicção de que “a criança ama a liberdade, mas não gosta de ser deixada
à sua própria sorte” (COHEN, 1981). Toda criança, para Tolstoi, possui
natureza investigativa, curiosa, inquiridora, ama aprender e criar, mas se o
professor e a professora não a encorajassem mediante sua participação, o
interesse inicialmente demonstrado diminuiria e se enfraqueceria até
desaparecer. Alguém deveria atiçar este interesse de modo a torná-lo em
envolvimento dinâmico com a formação cultural.
Como afirma Cohen, apesar de vários destes princípios
estarem presentes em Dewey, de quem Paulo Freire foi buscar algumas idéias
no início de sua carreira e com quem manteve uma proximidade teórica por
115
toda a vida, se percebe que a educação centrada na criança está bem
evidenciada em Tolstoi. No entanto, de forma mais próxima da conhecida
posição de Paulo Freire que da de Dewey, Tolstoi considerava que não havia
significância nas formas históricas de vida serem fixas e transmitidas (mesmo
reformadas), mas que estas eram como que um fluxo que não pode ser
capturado
100
, que não tem início nem fim, e que o que fazemos não pode ser
fixado, mas é parte da mudança constante na qual se encontram o ser humano
e a humanidade. Transplantar conhecimento, de acordo com esta reflexão
carecia completamente de sentido. A história é parte do futuro. A ativa
participação de cada envolvido no processo cultural como elo de uma corrente
na qual influencia e é influenciado, traz em si a possibilidade da mudança e do
avanço de que tanto falou Freire.
Outra característica da teoria pedagógica de Tolstoi, se assim a
podemos chamar, era a superação da fragmentação disciplinar – hoje
referenciada como transdisciplinaridade - e a complexidade. Em 1870, ele já
chamava a atenção para o fato de que o educador não estava lidando com
uma função em separado, mas com uma personalidade em processo de
formação, um pupilo (SIMMONS, 2000). E o que era necessário ao educador
era manter uma visão integral de seu pupilo. Por esta razão, o método chefe
de Tolstoi era a “análise multilateral”, cobrindo aspectos sociológicos e
psicológicos e buscando conclusões lógicas que fossem compreensíveis como
um todo coerente. Esta intrincada perspectiva se tornava alcançável quando
traduzida de forma simples e acessível em imagens, figuras e histórias vívidas
baseadas na realidade circundante. Lendo suas descrições pode-se perceber
não uma foto rígida, mas quase se pode enxergar o movimento de uma criança
real, aliás esta também uma marca de suas obras literárias. Ele demonstrava
que uma criança aprendia melhor por imagens, fossem elas reais reproduções
pictóricas ou vívidas descrições e histórias, principalmente aquelas que já
fizessem parte de seu dia-a-dia e de seu folclore local. Neste sentido ele cria
que uma imagem continha um volume de informações muito maior do que a
expressão de uma conclusão lógica, fazendo recordar aqui a força do
100
Como em Heráclito.
116
simbólico
101
na apreensão de conteúdos e da complexidade. O pensamento
pictórico, o uso da imaginação, seguia sendo utilizado em estágios avançados
do desenvolvimento e mesmo da pesquisa em educação por ele conduzida,
uma vez que, diferente do pensamento lógico a imaginação revela não um ou
vários aspectos de um fenômeno, mas uma visão abrangente (YEGOROV,
1994).
Sendo um dos primeiros autores modernos a tratar o
conhecimento transdisciplinarmente, não fazia sentido para Tolstoi aulas
separadas, de matérias isoladas, em classes compartimentalizadas por idades
ou habilidades. Era possível ensinar matemática a partir de conhecimentos
históricos, usar contos para revelar um princípio científico, utilizar um fato da
vida para descobrir a física, em salas multietárias . Para ele, a vida não se
fragmentava, mas estava unida em um único todo entrelaçado (YEGOROV,
1994). Um fato interessante para quem crê ser uma descoberta recente a
integração disciplinar, a complexidade e a ausência de muros.
Para Tolstoi, alfabetizar-se era a habilidade de ler e escrever a
partir da cultura local – no seu caso o uso de provérbios populares
(BERTHOFF, 1978, p.251) - e a cultura era o conhecimento do mundo ao
redor, inclusive das relações sociais e dos vínculos com a realidade. Mais uma
vez é impossível não pensar em Paulo Freire, na pedagogia do oprimido, nos
temas geradores e em ler o mundo ao ler a palavra (FREIRE, 2001).
O papel do educador e da educadora na escola de Tolstoi era
mais complexo do que nas escolas com currículos pré-fixados, métodos
estabelecidos e uma série de punições e coerções. Eles se viam forçados a
usar toda sua habilidade (SIMMONS, 2000), estabelecer relacionamentos
reais e a levar em consideração tanto seus saberes quanto os conhecimentos
possuídos e revelados pelos seus pupilos, que eram considerados não
somente conhecimentos importantes mas um pré-requisito para o sucesso da
escola (YEGOROV, 1988 e 1994).
Dessa compreensão, surgia uma escola diferente, onde o
professor e os métodos saiam do centro, e onde o papel, ainda freqüentemente
observado, de um educador que ativa, organiza, inicia, inventa um milhão de
101
Lembrando a conhecida relação entre o simbólico e o diabólico, o que une o todo e o que o
separa.
117
atividades, encanta os pais com seus artesanatos em cada data festiva e trata
a criança como um objeto passivo, um recipiente de métodos impostos a
ambos pelo sistema educacional, era não só estranho, mas acima de tudo
rejeitado.
Nessa dinâmica, nunca era o professor a selecionar assuntos,
mas os pupilos que lhe pediam para serem ensinados e juntos ambos decidiam
o que seria ensinado. “Cada instrução deve ser somente uma resposta à
questão colocada pela vida”, dizia o autor. Ele defendia que cada uma destas
respostas deveria ser “Bela, breve, simples e, acima de tudo, clara”
(YEGOROV, 1994). O ambiente no qual se buscavam estas respostas era o do
diálogo. A ênfase dada por Tolstoi como conseqüência desta postura era à
participação e à atividade como permanentes experimentações:
Somente quando o experimento estiver nos fundamentos da escola,
somente então cada escola será, por assim dizer, um laboratório
pedagógico, a escola não ficará atrás do avanço universal e a
experimentação será capaz de lançar firmes fundamentos para a ciência da
educação (TOLSTOI apud COHEN, 1981, p. 247)
102
.
Devido à mútua liberdade, defendia Tolstoi, educadores e
estudantes se tornavam próximos, amigos, e influenciavam um ao outro:
O elemento educacional se encontra no ensino das ciências, no amor do
professor pela sua ciência, e no amor com o qual é compartilhada, - na
relação do professor para com seus estudantes. Se você deseja educar o
estudante pela ciência, ame sua ciência e saiba-a, e então os estudantes
amarão a ambos, a você e à sua ciência, e você educará (TOLSTOI apud
GEIGER, 1979, p.10).
Educação para Tolstoi era uma experiência comum com a
finalidade de tornar a vida mais compreensível, e a educação se tornava
dialogo na medida em que houvesse uma relação real entre as pessoas
envolvidas. Estas conversas educacionais tinham lugar ao caminhar, passear,
esquiar e de modo por vezes acidental e sempre espontâneo (KLEMM, 2002),
102
A partir de fragmento de TOLSTOI, Leo. La liberte dans L’école. Paris: Nouvelle Librarie
Parisienne, 1888.
118
uma clara semelhança com a celebre frase de Freire de que “ninguém ensina
ninguém, ninguém aprende sozinho” (Freire, 1987) à comunhão.
Esta relação acontecia muito mais fora do que dentro de
quatro paredes (SIMMONS, 2000), e assim a sala de aula era o mundo
103
, não
mais carteiras e pódios, mas uma combinação de bibliotecas, museus, teatro,
mercado, oficina, praça, plantação e etc., muito próxima da proposta de redes
de aprendizagem feita por Illich quase cem anos depois.
Um dos melhores instrumentos para o fortalecimento desta
relação era o uso e a exposição às artes, em sua concepção o adesivo mais
forte entre os seres humanos por ser capaz de unir através da igualdade dos
sentimentos e da ruptura de barreiras (WERTZ, 1998, p. 80). Um letrado
professor e um simples camponês podem se encontrar na mesma emoção
diante de uma canção, de uma dança alegre e da obra prima de um pintor. O
mesmo autor ainda nos lembra algo que pode ser assustador em tempos de
pragmatismo de mercado e competências:
Ignorar a parte sensitiva de nossa natureza nos levaria (segundo Tolstoi) a
nos tornarmos seres frios e calculistas, insensíveis sem empatia para com
os outros. Deixado só, o pensamento fomentaria um senso de isolamento
ou alienação e a interrupção da comunidade (WERTZ, 1998, p. 78).
Diante de uma situação de violência, esta nunca era reprimida.
As brigas não eram apartadas. Quando ocorriam discussões entre as crianças,
os professores não deveriam intervir para tentar impor alguma justiça externa,
uma vez que para Tolstoi, qualquer justiça externa desaguaria
necessariamente em injustiça. Mais que a violência do indivíduo, preocupava a
Tolstoi a violência institucionalizada, permitida e autorizada, imposta pelo
Estado como ameaça freqüente sobre a cabeça de quem ousasse pensar de
forma diferente, para ele, a “ordem moral brota das relações humanas,
vivenciadas de forma não-violenta” (INCONTRI, 1991).
Quanto aos castigos e humilhações tão freqüentes nas
escolas, Tolstoi (2004) narra o incidente de um menino que tinha o hábito de
furtar e que acabou punido por exigência dos demais alunos. A severidade da
103
O que é o exato oposto de transformar todo o mundo em uma sala de aula.
119
assembléia das crianças foi enorme e lhe impuseram caminhar com uma placa
pendurada no pescoço com a acusação de ladrão. Vendo a vergonha, a raiva e
o ressentimento do menino ao envergar o castigo, tomou posição, retirou-lhe a
placa num impulso e mandou-o brincar. Com essa experiência ele se
convenceu de maneira definitiva da ineficiência e da não necessidade da
punição na vida escolar, e provavelmente o estimulou em suas futuras
conclusões de não-violência expressas em “O Reino de Deus está em Vós”.
Uma posição marcante em Tolstoi se relaciona ao objetivo da
educação, revelando ecos das idéias de Rousseau sobre a bondade natural da
criança, mas com uma clara concepção de que a formação era tanto fruto do
meio quanto do estado de equilíbrio natural da criança, Tolstoi denuncia que “a
educação estraga as pessoas, não as corrige” (TOLSTOI, 1988, p. 207). Ele
denuncia a pretensão geral da pedagogia de desenvolver ou materializar um
adulto integral como “erro eterno de todas as pedagogias”. Na sua concepção,
muito próxima neste caso da denúncia de Marx de Ideologia como falsa
consciência, ele entende como idealismo otimista o objetivo de
desenvolvimento de um cidadão adulto pleno. Como esta parte de uma idéia
pré-concebida de como deva ser o adulto, lançada para um futuro nunca
presente, ele crê que “por muito imperfeito que seja o desenvolvimento da
criança, nela ficam sempre traços primitivos da harmonia”. Por isso ele
apontava que
temos tanta confiança em nós próprios, somos tão fiéis ao falso ideal da
perfeição adulta, somos tão intolerantes para com as incorrecções que
estão perto de nós e estamos tão convencidos na sua força de corrigi-las,
sabemos compreender e avaliar tão pouco a beleza primária da criança,
que empolamos o mais rapidamente possível, corrigimos e educamos a
criança (TOLSTOI, 1988, p.202).
Ele cria que o objetivo da formação estava “atrás e não à
frente”, pela simples razão de que “a criança está mais perto do que eu, mais
perto do que cada adulto do ideal da harmonia, verdade, beleza e bondade,
para o qual eu, com o meu orgulho, a tento levar” (TOLSTOI,1988).
Se fosse possível, por fim, marcar alguns pontos centrais na
atividade do educador e da educadora na escola de Tolstoi, poderíamos
120
destacar: Não haviam tabelas fixas de tempos e horas para lições, que podiam
ser estendidas, encurtadas ou canceladas de acordo com o interesse das
crianças; Havia tempo para o processo, como ele disse em seu artigo
“Conselhos gerais ao professor”: “Não tenham pressa” (TOLSTOI, 1988). O
planejamento semanal em equipe era feito aos sábados na busca do
discernimento comum e em reação ao observado; não havia obrigação à
adesão a nenhum programa em particular; cada professor era tratado como
adulto e era livre para fazer o que desejasse; e cada um mantinha um diário
onde, com sincera falta de piedade, anotava suas falhas e sucessos. A
amizade e o diálogo eram as chaves do processo ensino e aprendizagem,
cercadas de liberdade (INCONTRI, 1991) e de igualdade.
A forma principal de aulas era a conversa livre do professor
com os alunos. Com a ajuda deste método, as crianças aprendiam a ler e a
escrever, aritmética, religião, regras gramaticais, estudavam noções,
acessíveis na sua idade, de história russa, geografia e história natural.
Aprendiam também os fundamentos do desenho e do canto (YEGOROV, 1988)
Outra marca é a total rejeição a qualquer forma de punição,
humilhação ou castigo, para ele é “muito importante que o aluno não tenha
medo dos castigos por estudar mal, ou por não compreender; o intelecto do
homem só pode actuar quando não é esmagado por influências externas”
(TOLSTOI, 1988, p. 212).
Um detalhe importante, que dava um indicativo de quem estava
no centro do processo ensino/aprendizagem se traduzia em que:
Quanto mais fácil é para o professor ensinar, mais difícil é para o aluno
estudar, e vice-versa... Quanto mais o aluno for abandonado a si mesmo e
às aulas que não exigem a atenção do professor: cópia, ditado, leitura em
voz alta, sem se compreender o que se lê, estudo de cor de poemas, mais
dificuldade terá em estudar (TOLSTOI, 1988, p. 212).
Nos dizeres de COHEN (1981): “O espírito que guiava Yasnaia
Poliana era a originalidade; e a liberdade prevalecia, mas nunca em um grau
que levasse à baderna”. E isso se devia, com certeza, ao princípio mais
fundamental a guiar toda a atividade ali, e que era seu último e mais importante
121
conselho, que achei por bem usar para fechar esta seção sobre o grande
pedagogo:
É preciso ter uma qualidade para, não obstante o descontentamento
constante consigo mesmo, ter a consciência de que se é útil. Esta qualidade
completa toda a arte de ensinar e toda a preparação, porque com esta
qualidade o professor adquire facilmente os conhecimentos que lhe faltam.
Se o professor não sentir durante uma aula de três horas um minuto de
tédio, ele possui esta qualidade.
Esta qualidade é o amor. Se o professor apenas ama a causa, será um bom
professor. Se o professor ama o aluno...será melhor do que o professor que
leu todos os livros mas que não manifesta amor à causa, para com os
alunos. Se o professor une em si o amor à causa e aos alunos, ele é um
professor perfeito. L.N. Tolstoi, 1872 (TOLSTOI, 1988, p.220).
3.3 UM CERTO IVAN ILLICH
“Corruptio optimi pessima.”
“A corrupção do ótimo é péssima.
S. Gregório Magno (540-604)
Ivan Illich (1926-2002) é hoje um nome virtualmente ausente do
ambiente acadêmico (Pombo; Canário, 2005). Quando seu nome surge em
debates ou citações, muitas vezes aparece como uma curiosidade excêntrica
dos anos 70 do séc. XX (MARTIN, 2002), ou mal-interpretado como
“anarquista”, “reformador”, “utópico”, nenhuma dessas uma descrição
adequada de quem ele foi, pensou ou do que defendeu.
Ao contrário do que possa insinuar, o desaparecimento de Ivan
Illich do debate acadêmico, ou a “morte de Ivan Illich” (STUCHUL; PRAKASH,
2004), foi um ato deliberado e pensado pelo autor, em uma direção oposta ao
senso comum presente na academia. À medida que a inserção em uma
globalização miticamente inevitável e a submissão aparentemente passiva ao
pensamento único foram sendo apresentados como indiscutíveis, seu
pensamento passou a ser considerado largamente irrelevante dentro do
establishment” acadêmico, ao mesmo tempo em que Illich a partir dos anos 80
cada vez mais se dedicou à construção de redes de amigos, intelectuais
desinstitucionalizados e à publicações e conferências em torno de seu
pensamento crítico e das propostas de outras formas e possibilidades de
convivência humana. No entanto, seu pensamento tem crescido em
importância, numa espécie de “ressurreição de Ivan Illich”, entre o que se
122
convencionou cognominar de “Intelectuais desprofissionalizados”, ativistas e
pessoas vivendo e florescendo em meio às culturas tradicionais (STUCHUL;
PRAKASH, 2004). Illich tem sido considerado por alguns autores como um dos
inspiradores principais dos movimentos ecológicos (COBB, 2004) e de
resistência à globalização e ao domínio hegemônico do mercado (ESTEVA;
PRAKASH, 1998).
3.3.1 Um crítico da sociedade
“Eu sou um pouco lua, um pouco caixeiro
viajante. Minha especialidade são aquelas horas que perderam seu registro”
Huidobras, Chile
O ponto de partida das reflexões de Illich, presente de alguma
forma como estratégia por toda sua vida, foi a observação das sociedades a
partir de um ponto de vista externo a estas, como uma base ou plataforma para
fazer a crítica do conhecimento gerado institucionalmente (INMAN, 1999).
Ler e, sobretudo, escrever sobre Ivan Illich, consciente da
necessidade de evitar as simplificações e rotulações tão ao gosto do senso
comum, é tocar a fronteira, raras vezes alcançada, do significado das
palavras
104
. Muitos de seus conceitos se encontram diante da ausência de um
nome, de um verbo, um adjetivo, um sinônimo que os definam de maneira
simples. Entrar em seu mundo é uma experiência sensorial, sensual e um
desafio ao pensamento científico, ao perceber que este se depara com as
limitações da capacidade do texto.
Como afirma Erich Fromm, na introdução de “Celebração da
Consciência” (ILLICH, 1975), é difícil categorizar um autor como Illich sem o
distorcer ou deformar. Assumindo que estava arriscando-se desta maneira, no
que parece ser a melhor maneira de explicar a abordagem de Illich na
pesquisa, Fromm denomina a abordagem Illichiana de “radicalismo
humanístico” (FROMM, apud ILLICH 1975, P.5). Ao se referir a radicalismo,
FROMM utiliza esta categoria não como um conjunto de idéias, mas como uma
atitude “de ominibus dubitandum”
105
, de duvidar de tudo, em especial dos
104
O que ressalta para o educador a importância de conhecimento etimológico, filológico e
semântico como ferramentas de conhecimento e de exercício de sua condição
105
Adágio latino: “De tudo duvidar”.
123
conceitos ideológicos, que, por serem compartilhados por todos, ganharam o
status de axiomas inquestionáveis fortemente inseridos no senso comum, com
aparência de consciência. Ao duvidar, ainda segundo FROMM, Illich desvenda
a nudez do imperador e a fantasia do Império ou, como costumo me referir em
tempos de uma tal pós-modernidade, a inconsistência da MATRIX
106
na qual
estamos imersos.
A dúvida radical, ainda segundo Fromm, é o processo de
libertação de todo pensamento idólatra, e, a meu ver, em particular das idola
theatri inquestionáveis de que falou Bacon
107
(EVA, 2006) ao se referir aos
obstáculos que impedem o conhecimento da verdade. Esta dúvida de Illich é,
no entanto, uma dúvida não niilista, mas humanista e cristã. Humanista por se
orientar pelo conhecimento da natureza humana, e cristã por assumir que
existe uma tal natureza humana e que esta se origina da alteridade
transcendente: Deus.
Quanto a este radicalismo ser objetivo ou não, se for tomado o
princípio positivista de objetividade como a teorização ausente do compromisso
com a ação transformadora e questionadora da realidade, calcada na descrição
ou na atualização da realidade pela teoria, Illich não é objetivo. No entanto, se
por objetividade se compreende a presença de provas cuidadosas em cada
etapa da construção das afirmações, do exame crítico e da crítica ao status
106
Referência ao filme “Matrix” ( Warner -1999), dos irmãos Wachowski, estrelando Keanu
Reeves e Laurence Fishburne.
107
Luiz Eva ajuda a compreender este aspecto ao citar em artigo recente: “Bacon distingue
quatro espécies de impedimentos que atuam contra nossas pretensões de obter a verdade: os
ídolos da raça” (idola tribus), decorrentes das imperfeições de nossas faculdades de
conhecer — seja o intelecto, comparado a um espelho deformante que, exposto aos raios das
coisas, mistura sua própria natureza à delas, falseando e embaralhando; uma faculdade refém
de erros sistemáticos que ela própria é incapaz de corrigir, seja pelas suas próprias forças, seja
com o auxílio da dialética; sejam as imperfeições dos sentidos, que, embora constituam a
instância à qual se deve tudo perguntar na pesquisa da natureza, diz ele, “a menos que se
queira delirar”, são por si algo de fraco e enganador e não podem, quanto a isso, ser auxiliados
pelos instrumentos inventados para aguçá-los e estender seu alcance. Em seguida, os “ídolos
da caverna” (idola specus), gerados, segundo Bacon, pela diversidade própria da natureza de
cada indivíduo, e dependentes das diferenças do corpo, da alma, da educação, do hábito, das
circunstâncias fortuitas e do modo como são afetados pelos objetos. Já os “ídolos do foro
(idola fori) são aqueles particularmente residentes nas imperfeições da linguagem humana,
enquanto que os “ídolos do teatro” (idola theatri) são aqueles pelos quais Bacon
metaforicamente alude aos mundos imaginários inventados pelos diversos sistemas filosóficos
vigentes, constituídos por noções fantasiosas e imperfeitas (dentre as quais ele enumera as de
“ser”, “substância”, “elemento”, “matéria” etc.) e por demonstrações defeituosas que são, nas
suas palavras, os sistemas em potência.”
124
quo, com a perspectiva da mudança e da transformação, estamos diante de um
dos autores mais objetivos do século XX.
A pergunta presente em cada uma das reflexões sobre as
infindáveis áreas e temas aos quais se dedicou Illich é: “Esta idéia ou
instituição contribui para aumentar ou reduzir a capacidade que tem o homem
de se abrir ainda mais para a vida e para a alegria?” (FROMM apud ILLICH,
1975, p. 6). O mais interessante nas respostas a esta pergunta, presente ao
longo de toda sua vida, foi a ausência de receio em chegar a soluções e idéias
que pudessem parecer ridículas, sendo, entretanto, interessante verificar cada
uma delas se transformando em agenda intelectual generalizada 20 ou 30 anos
depois de formuladas. Foram temas polêmicos à época e que geraram
desdobramentos até hoje, como a critica que demonstrava a insustentabilidade
do conceito de desenvolvimento (SACHS, 1992), a delicadeza e prudência
(SANTOS, 2000) necessárias ao enfrentamento da crise da modernidade, a
questão ecológica (Energia e Eqüidade de 1973; Toward A History Of Needs,
de 1980), a contraprodutividade da prática médica (Nêmesis da Medicina de
1975), a necessidade de estruturas convivenciais contrapostas à produtividade
massacrante (a Convivencialidade de 1973), o mito das necessidades básicas
(Toward A History Of Needs), A questão de gênero na sociedade moderna
(Gender de 1980) e a crise do sistema escolar (Sociedade sem escolas de
1971).
Na educação, a referência mais evidente no pensamento de
Illich é São Tomás de Aquino (INMAN, 1999), por influência de seu mentor e
amigo Jacques Maritain, que ele mesmo afirmava ter “lançado inteiramente as
fundações tomísticas de meu modo de perceber” (INMAN, 1999, p. 23). Desta
influência aparecem em Illich algumas características que lhe são marcantes: a
compatibilização entre fé, lógica e razão; a concepção integral do homem como
ser complexo fundado na unidade entre corpo e alma; a compreensão que o
portador do conhecimento é a humanidade e não a alma individual, e que essa
humanidade não é uma entidade metafísica, mas uma composição de aspectos
de materialidade bem como de espiritualidade; e - o que é bastante relevante
na construção de sua compreensão de aprendizagem - a importância do
mundo material e da experiência como fonte de conhecimento, mais uma
marca de Aquino em Illich.
125
Outra influência importante foi a de Henri Bergson (1859-1941),
que vai aparecer ao longo da obra de Illich na crítica ao materialismo que
privilegia o espaço sobre o tempo e na crítica à expansão das necessidades
impostas pela sociedade industrial. Para Bergson, o tempo é acumulativo, uma
duração, logo o futuro não tem como ser uma reprodução do passado e carece
de previsibilidade. Este autor cunhou o termo “evolução criativa” (BERGSON,
1979, p.18), para se referir às escolhas que uma pessoa faz ao longo da vida.
Dele Illich vai buscar sua ênfase permanente na importância da mudança, de
acordo com a conexão entre ser e fazer que aquele autor afirma:
O mesmo acontece quanto aos momentos de nossa vida, dos quais somos
os artesãos. Cada um deles é uma espécie de criação. E do mesmo modo
como o talento do pintor se forma ou se deforma, modificando-se, em
ambos os casos, sob a própria influência das obras que ele produz, cada
um de nossos estados, ao mesmo tempo que sai de nós, modifica nossa
pessoa, constituindo a forma que acabamos de adquirir por nós mesmos.
Estamos pois certos ao dizer que aquilo que fazemos depende do que
somos; mas impõe-se acrescentar que somos, até certo ponto, o que
fazemos, e que criamo-nos a nós mesmos continuamente (BERGSON,
1979. p 12).
A preeminência da criatividade e da imaginação, assim como a
diferenciação entre materialismo e vida, a noção de devir e a impossibilidade
de separar uma teoria do conhecimento de uma teoria da vida, são outras
contribuições deste autor identificáveis na obra de Illich
Outra influência acadêmica que se faz sentir ao longo de seus
três grandes períodos de produção intelectual segundo Patrícia Inman foi a de
Arnold J. Toynbee (1889-1975), sobre quem escreveu sua tese de PHD em
História, aos 24 anos na Universidade de Salzburg (INMAN, 1999), ainda que
não de maneira absoluta mas como contribuinte à sua preocupação com a
busca da construção de uma filosofia da história,. Dele Illich herdou uma visão
da história não determinística e a identificação da história da civilização
enquanto história das culturas e não como a historia de nações (A história da
cultura greco-romana e não da Grécia ou de Roma isoladamente, por
exemplo). Uma percepção da história como uma série de desafios e respostas,
em uma filosofia especulativa da história, onde a criatividade e a padronização
de conhecimentos são apresentadas como categorias dialeticamente opostas.
126
Na visão de Toynbee, em períodos de desafio e crescimento, impera a
criatividade e nos períodos de estabilidade reina a institucionalização e a
aquiescência generalizada a ideologias consideradas inquestionáveis. A partir
desta forma de pensar Illich escolhe olhar a sociedade de um ponto de vista
externo a ela, questionador de cada instituição estabelecida e crítico do
conhecimento institucionalmente gerado.
Outra influência indireta em sua obra, mas igualmente
assumida, foi a de Rudolf Steiner que vinha a ser amigo da família de Illich.
Suas idéias educacionais inclusivas, livres da intervenção estatal, cheias de
imaginação e de co-educação podem ser percebidas como nuances presentes
na obra de Illich. Cabe aqui ressaltar a já citada influência de Tolstoi sobre
Steiner e o entorno cultural da família Illich para se perceber o ambiente que
propicia a emergência de um pensador de seu quilate.
Para um aprofundamento final sobre os fundamentos do
pensamento social de Ivan Illich, o trabalho de REAGAN (1980), continua
sendo uma excelente fonte quase 30 anos após ser publicado, principalmente
pela percepção que apresenta do pensamento Illichiano como oposto ao que
aquele autor já denominava, no fim dos anos 70, de pensamento neoliberal,
então apenas uma tendência crescente e que posteriormente veio a se tornar
hegemônica. Uma fonte especialmente útil para tentar compreender o
pensamento Illichiano foi organizada por HOINACKI e MITCHAM (2002) no
livro “The challenges of Ivan Illich”, que reúne 20 ensaios de amigos e
colaboradores e que analisa sua trajetória e pensamento, incluíndo o último
ensaio de Illich publicado em livro antes de falecer: “The cultivation of
conspiracy”. Por fim, a melhor obra para compreender illich como fenômeno é a
transcrição literal de cinco dias de longas entrevistas com Ivan Illich “Illich in
Conversation” (CAYLEY, 1992), o mais completo retrato de Ivan Illich por ele
mesmo.
127
3.3.2 Illich, origens
É necessário uma vila para formar uma criança.
Provérbio Africano
Nascido em 1926 de uma rica família da Dalmácia, este foi o
único lugar que em toda sua vida chamou de casa - se considerando um
peregrino em todos os outros lugares onde viveu. Illich era o filho mais velho do
casamento de um diplomata católico e de uma dona de casa judia sefaradim de
origem espanhola radicada na Áustria. Na adolescência, após ter se transferido
para Viena dos 10 aos 15 anos, vai estudar em Florença e Roma, para onde se
mudou em virtude das leis anti-semitas nazistas assimiladas pela Áustria e que
o transformaram de um meio católico em um meio judeu da noite para o dia.
Após estudar química em Florença como forma de escapar da
perseguição, foi para Roma onde se preparou para o sacerdócio. Seu brilhante
desempenho acadêmico e os diversos idiomas (12) que falava
108
em função da
trajetória acima exposta e do ambiente diplomático e multicultural que fez parte
de sua vida, ajudaram a gerar o convite para seguir a carreira no corpo
diplomático do Estado do Vaticano após sua ordenação em 1951.
Ele acabou por escapar da burocracia papal e deste convite se
inscrevendo em um programa de pós-doutorado em Nova York, onde acabou
por solicitar para ser designado para trabalhar como auxiliar em uma paróquia
predominantemente porto-riquenha e multiétnica (Incarnation Church). Estes
detalhes são importantes para a compreender os futuros desenvolvimentos de
Illich como vice-reitor da Universidade Católica de San José em Porto Rico, a
abertura do CIDOC em Cuernavaca, seu compromisso com a América Latina e
sua parceria com o Brasil e com Paulo Freire, conseqüências diretas desta
decisão e de sua ligação com o Cardeal Spellman, arcebispo de Nova Iorque à
época, e ponto de contato com personagens como Dom Helder Câmara,
chaves para a futura aproximação entre Illich e Freire.
Seu enorme respeito e admiração pelas populações pobres de
Porto Rico e a sobre-exploração que ele percebia na atuação das missões
católicas e nos programas de desenvolvimento do governo americano dos anos
108
Segundo informação pessoal do Dr. Key Yuassa, membro brasileiro do Staff de Illich em
Cuernavaca nos anos 60 e hoje residente em Curitiba, coletada em entrevista realizada em
20/05/2007, além dos vários idiomas que falava, entre eles o português, Illich classificava em
25 idiomas seu material de pesquisa.
128
50 e 60 foram motivo para uma enorme tensão entre ele e as elites porto-
riquenhas quando se tornou vice-reitor da Universidade Católica de San José e
que acabaram por fazê-lo voltar a Nova York em 1960 para, a partir da
Fordham University – que lhe dava o respaldo acadêmico -, iniciar um
programa para reduzir a ignorância e a falta de sensibilidade dos programas de
“ajuda”, religiosos e públicos, promovidos por europeus e americanos. Esta
universidade americana foi a base para a criação nos anos 1960 de dois
Centros para a formação intercultural, um em Cuernavaca no México, mais
famoso em sua relação com Illich e outro em Petrópolis, Brasil (SOUZA, 2002).
À guisa de curiosidade, pelo centro de Petrópolis passaram
Dom Pedro Casaldaliga, Dom Helder Câmara, a missionária Dorothy Stang,
recentemente assassinada, e inúmeros outros personagens ainda presentes e
relevantes no pensamento e na articulação política brasileira. Por meio desta
rede de contatos também se estabeleceram fortes conexões com Paulo Freire,
que de alguma forma esteve relacionado ao início do centro devido a suas
conexões com o movimento católico e à expressão que alcançava como
intelectual antes do golpe de 1964.
De suas relações com Dom Helder Câmara, fortalecidas neste
centro, surgiu a idéia de um concílio Vaticano III (SOUZA, 2002), a ser
começado em Medellín em 1968. O encontro de Medellín, fortemente
construído a partir de Cuernavaca, se mescla à origem do movimento
posteriormente conhecido como Teologia da libertação, nascido em Puebla, e
que contou com a forte influência do pensamento de Freire como uma de suas
referências teóricas. Os movimentos jovens católicos, aos quais estava ligada
uma parte da intelectualidade posteriormente banida do Brasil com o golpe de
1964, possuíam muitos vínculos com Ivan Illich. O Centro de Petrópolis
funciona até o presente, com menos relações com sua inspiração inicial, mas
ainda ligado ao movimento franciscano. Foi provavelmente desta relação e
presença que vários livros da autoria de Illich foram traduzidos para o
Português e disponibilizados pela Editora Vozes.
O CIDOC em Cuernavaca, foi uma espécie de anti-escola de
Illich (INMAN, 1999) e um “think-tank
109
que reuniu pessoas tão marcantes na
109
Expressão que significa literalmente “tanque de pensar” e diz respeito a espaços onde se
desenvolvem idéias e se reúnem pensadores.
129
segunda metade do século XX, como Erich Fromm, de quem Illich era amigo,
Jacques Ellul, Paulo Freire, Pierre Furter, Everett Reimer, John Holt, Edgar
Friedenberg, Jonathan Kozol, George Dennnison, Gustavo Esteva, entre tantos
outros (FIELDS, 1971). Os Boletins do CIDOC (SONDEOS e DOSSIÊS), são
fonte inesgotável para se conhecer muito dos pensamentos originais destes
autores. Suas discussões e os documentos gerados ali se tornaram livros como
“A sociedade sem escolas” , “A convivencialidade”, “Nêmesis da Medicina”, “A
escola está morta” (REIMER, 1979)
110
.Foi por meio das conexões de Paulo
Freire com Illich que aquele teve sua obra publicada pela primeira vez em outro
idioma, o inglês (CAYLEY, 1992).
Em 1966, um processo foi iniciado pela Santa Inquisição - que
acabara de ser transformada em “Congregação para a doutrina da fé” - e que
terminou, em 1968, por proibir qualquer católico de freqüentar o CIDOC. Esta
sentença levou Illich a duas decisões chave: deixar o sacerdócio, mantendo
seus votos de castidade e de leitura diária do lecionário; e tornar publicas as
atas e as bases da acusação, fato que acabou por expor ao ridículo a Santa Sé
e a causar a reversão da condenação, na onda de uma forte reação no meio
católico norte americano.
Participaram como membros do Staff do CIDOC dois
brasileiros: Luiz Gomes de Souza
111
e Key Yuassa, este segundo foi o único
protestante, responsável pela reflexão sobre o protestantismo na América
Latina e facilitador da compreensão desta forma de cristianismo para os
estudadntes do CIDOC. Yuassa vive hoje em Curitiba e concedeu de forma
pessoal algumas das informações aqui contidas. Por decisão pessoal, Illich
fechou o CIDOC em 1976 por considerar a instituição uma etapa cumprida. A
festa de fechamento coincidindo com a celebração do aniversário de 10 anos
de fundação da instituição.
Iniciou assim sua carreira como pesquisador e palestrante
itinerante livre da instituição que dirigia, continuando a produção intensa de
livros e artigos, e se tornando referência obrigatória para a maioria dos
intelectuais envolvidos nos movimentos anti-globalização, ambientalistas e
principalmente para os que trabalham com comunidades tradicionais
110
REIMER, Everett; Tonie Thonson. A escola esta morta. 2 ed. Rio de janeiro: F. Alves, 1979.
111
IHU online - Ano 2 - Nº 46 – 9 de dezembro de 2002.
130
(grassroots) em todo mundo. Sua vida ficou desde então dividida entre o
México, os Estados Unidos e Bremen, na Alemanha aonde veio a falecer em
2002.
3.3.3 O pensamento illichiano
“É melhor para o homem não receber educação
alguma, do que recebê-la de seus governantes, pois
esta espécie de educação nada mais é que a sujeição à
canga, A mera disciplina do cão perdigueiro que,
através de rigorosa severidade, aprende a sufocar o
mais forte instinto de sua natureza e, em vez de devorar
sua presa, a leva docilmente aos pés de seu dono.”
Thomas Hodgskin (1787-1869), 1823.
A produção intelectual de Ivan Illich pode ser dividida em três
períodos a partir de sua popularidade como autor e pensador no meio dos anos
sessenta, e se a preocupação for somente estabelecer uma relação entre o
pensamento de Illich e a educação (INMAN, 1999). Esta divisão poderia se
expandir para cinco fases se fossem incluídos seu período no sacerdócio e na
Universidade em Porto Rico, quando sua preocupação se voltava para a
sociologia e a missiologia, de onde se iniciou sua preocupação sobre o tema
da educação, e seu período final que vai de 1998 até sua morte em 2002, com
seu foco de produção intelectual voltado a desenvolver uma filosofia da
história.
Em sua vida de produção acadêmica, Illich demonstra seu
fascínio pelo que nós, pessoas modernas, perdemos ao longo do tempo e das
opções utópicas diferentes que se podem abrir em contraposição a esta perda.
Para ele, a origem de nossa cultura atual
112
pode ser retrocedida à Idade
Média, principalmente entre os séculos X e XII e fortemente relacionada à
hegemonia da Igreja Católica Romana. O sentido de utopia em Illich,
construído a partir desta perspectiva pode ser bem captado nas palavras de
Olga Pombo:
Há duas espécies de utopias e Illich pertence à espécie mais bonita. A
primeira espécie é constituída por aquelas utopias que conjugam os verbos
no futuro: “será”, “amanhã será.” Estas utopias têm por base a crença no
progresso e é a partir dessa crença que idealizam a sociedade futura. Ivan
112
Expressão aqui utilizada como sinônima de era presente do conceito grego aion, que
significa o conjunto de princípios, valores, paradigmas e modos de produção de um sistema.
131
Illich pertence ao segundo grupo, que eu aprecio mais, aquele que conjuga
os verbos no imperfeito do condicional. Aqui, não se diz “será” mas sim:
“poderia ter sido”, “poderia vir a ser”. Em vez de partir da crença num
desenvolvimento mais ou menos linear, Illich tem aquilo a que eu chamaria
uma apurada sensibilidade à alteridade. As coisas são assim mas poderiam
ter sido outras, ou podem ainda vir a ser de outra maneira. Daí a sua
capacidade para, ao olhar o mundo, descolar rapidamente do real para o
possível. Isto é assim mas não é inevitável que assim seja. Nada na história
justifica que assim tivesse sido. E não é necessário que assim continue a
ser. Podemos sempre admitir a possibilidade de que as coisas possam ser
de outra maneira (POMBO, 2005, p.41).
Usando como ponto de partida a idade média e a hegemonia
do pensamento religioso, a utopia de Illich se funda na cosmovisão pré-
moderna cristã. Apesar de Cristo ter afirmado que seu Reino “não era deste
mundo”, é a partir da Idade Média que a igreja por Ele fundada se firma como
uma força imperial e desta se propõe uma ordem cristã terrena com a
finalidade de garantir a paz, administrar o bem-estar e garantir a salvação por
seu intermédio. A este posicionamento da Igreja Illich chamava de “corrupção
da cristandade” (CAYLEY, 1992) e esta mesma pressuposição e corrupção,
segundo ele, modela e inspira as instituições da vida moderna com a mesma
distorção desde sua base. A partir deste raciocínio, o direito, a economia, a
medicina, a política e a educação estão contaminadas pela mesma promessa
de serem os responsáveis por darem conta e de cuidarem de todos os
aspectos da vida comum, e só poderiam ser entendidas como sistemas através
da compreensão de sua origem na fé religiosa cristã medieval. Esta concepção
de origem medieval das instituições modernas se desdobra em uma concepção
sistemática da vida e de rede de sistemas de sustentação, igualmente
provedores das bênçãos, cuidados e benefícios, somente dispensados àqueles
subordinadamente dependentes dos mesmos. Desta forma Illich analisou, ao
longo da vida, o sistema econômico, o sistema médico, o sistema de
transportes e, o ponto de interesse de minha dissertação, o sistema
educacional. Para Illich, a “temerária renúncia voluntária na Era dos sistemas”
113
e o reforço da amizade
114
e da convivência como posicionamentos radicais
seriam capazes de ultrapassar a contraprodutividade paradoxal dos sistemas
113
“Foolish Renunciation in the Age of Systems”.
114
Philia – uma das formas de amor.
132
de atendimento para o bem-estar, criados a partir da concepção de mundo
acima descrita.
Conforme afirmado acima, os três períodos nos quais Patricia
Inman (1999) divide a biografia intelectual de Illich, do ponto de interesse da
educação são: 1968-1978, que ela denomina de “Os perigos do conhecimento
Institucionalmente Gerado”; 1978-1988, “As conexões do conhecimento”; 1988-
1998, “Encontrando a verdade através da Amizade”. Utilizando seu trabalho
como uma espécie de “linha vermelha”, pretendo a seguir buscar indicações
nas diversas obras de e sobre o autor, descobrir o que se poderia considerar
um perfil de educador, mentor ou facilitador no processo de aquisição e
produção de conhecimento.
3.3.4 Educador... em Illich?
“Não imagine que você possa ter amizade
com pessoas de quem não suporta o cheiro”
Alejandro Del Corro, jesuita argentino
“Ich Kann Dich gut riechen”
Adágio alemão
Antes de dedicar-me a tentar descrever o que poderia ser
considerado como um perfil da pessoa que educa no pensamento Illichiano, é
importante reconstruir a trajetória histórica de alguns conceitos centrais para o
autor. A primeira parte deste subtítulo será dedicada a rever esta trajetória de
conceitos, sem os quais eu poderia dirigir esta análise para mais uma
equivocada impressão de que Illich possa ser entendido como propositor de
alguma reforma educacional, ou de uma nova forma escolar ou de educação
popular. Todos os conceitos de Illich não visam melhorar, reformar ou sugerir
adaptações ao sistema vigente, mas sua completa substituição por escolhas
fortemente baseadas na prudência e na convivencialidade tradicionalmente
presentes na história humana.
Entender o que para o autor significavam a educação, o
conhecimento, a aprendizagem, além de sua denúncia dos mitos subjacentes
de desenvolvimento, progresso e evolução, são os pontos de partida para que
eu possa vir a construir um perfil da pessoa que educa, ou melhor dizendo, do
que possa ser uma descrição do perfil facilitador do processo de aprendizagem
na relação entre seres humanos.
133
Seria redundante voltar a todos os autores citados
anteriormente como críticos da educação e da compulsoriedade escolar para
apresentar as conexões destes com os pontos defendidos por Ivan Illich. Basta
observar cada afirmação deste para encontrar ali ecos e afirmações muito
semelhantes ao que já foi dito até aqui por aqueles, o que creio será facilmente
perceptível ao longo da exposição.
O que, sim, é interessante notar é o aprofundamento, os
desdobramentos e as análises que Illich constrói para além das críticas já
conhecidas de outras fontes. As análises de Illich são análises sobre o ser
humano e a sociedade, desde uma perspectiva que insiste em afirmar a
possibilidade de um outro mundo e a negação da negação da existência de
alternativas.
Ele vê o ser humano na sociedade moderna como artificial ou
manipulativamente tornado pobre por dois mecanismos complementares: (a) o
convencimento de que, como espécie, o ser humano possui necessidades a
serem supridas por serviços ou por produtos, um aspecto antes desconhecido
ao longo da história e agora transmutado em necessidades básicas - e da
própria ressignificação da necessidade como a expressão de algo sem o qual a
sobrevivência é ameaçada e não como parte das limitações naturais com as
quais se deve conviver como parte da experiência humana – e (b) a
dependência da satisfação destas necessidades criadas por provedores de
serviços e profissionais institucionalmente autorizados. Assim, como exemplo,
ao invés de ser capaz de curar-se por meios tradicionais e disponíveis em sua
comunidade, o ser humano se encontra convencido de que deve depender de
serviços médicos providos pelo Estado ou vendidos pelo Setor Privado; ao
invés de produzir a própria comida, passa a obtê-la industrializada, semipronta
e embalada para a compra; ao invés de aprender, passa a ter de ser ensinado
e educado para atender a outros interesses que não os seus próprios, através
da aprendizagem em instituições licenciadas para tanto.
A educação na sociedade ocidental, de acordo com Illich, não
possui analogia em outras culturas fora da distorção da teologia cristã, na sua
concepção gestada em Agostinho e vinda à luz plenamente com o Iluminismo.
Segundo Illich (1980, p.88) é freqüente esquecermos o quão recentemente o
termo educação foi cunhado. Ele localiza sua primeira aparição como datada
134
de 1498, em um documento francês sobre a formação de crianças. Em inglês o
termo aparece pela primeira vez em 1530 e em espanhol, Lopes de Vega, em
1632, se refere ao termo como uma novidade. Centros de aprendizagem, por
certo, foram anteriores a estas datas, a diferença reside em que estes eram
lugares onde se liam as leis e tratados, compartilhava-se o saber pelo
mentoreamento e se estudavam as ciências. Na concepção de Illich estas não
eram instituições onde alguém era educado para a vida e certificado para o
mercado, eram lugares de encontro, produção e sistematização do saber.
Durante o século XVI, após o cisma da Igreja com a Reforma,
houve muita discussão teológica sobre a necessidade de salvação, sobre em
que medida o ser humano era originalmente carente da mesma e como ter
acesso a ele. Esta idéia de uma necessidade de salvação a priori evoluiu, já no
século XVII, para uma extrapolação que definiu o ser humano como
incompetente a priori. Assim afirma ILLICH:
Cerca do início do século XVII um novo consenso começou a crescer: a
idéia de que o homem era nascido incompetente para a sociedade e assim
permanecia a menos que fosse provido de “educação”. Educação veio a
significar o reverso de competência vital (ILLICH, 1980, p. 89)
115
.
Mais do que aos saberes, a educação assim compreendida
está vinculada à sua versão reduzida: o conhecimento, e este transmutado em
uma commodity
116
, materializada em um currículo de conteúdos que devem ser
produzidos e reproduzidos, da maneira mais universal possível, para o
benefício de todos, pressupostamente necessitados dela a priori.
Bem estabelecido, para Illich, o mito da educação, inicia-se o
estabelecimento de seu ritual: a escolarização. “Escolarização e educação
estão relacionadas uma à outra, como a igreja e a religião, ou em termos mais
115
By the early seventeenth century a new consensus began to arise: the idea that man was
born incompetent for society and remained so unless he was provided with “education”.
Education came to mean the inverse of vital competence.
116
1.qualquer bem em estado bruto,...produzido em larga escala mundial e com características
físicas homogêneas, seja qual for a sua origem, ger. destinado ao comércio externo. Obs: mais
usado no plural. 1.1cada um dos produtos primários (p.ex., café, açúcar, soja, trigo, petróleo,
ouro, diversos minérios etc.), cujo preço é determinado pela oferta e procura internacional. 1.2
qualquer produto produzido em massa. Etimologia: do inglês commodity (1486) 'mercadoria,
produto etc.', do lat. commodìtas,átis 'medida devida, oportunidade, utilidade, proveito,
proporção' HOUAISS, Dicionário eletrônico edição 2002.
135
gerais, como ritual e mito” (ILLICH, 1980. p. 89)
117
. Sendo assim, os saberes
tradicionalmente acessíveis a todos mediante os processos convivenciais das
culturas tradicionais e que garantiram à espécie humana a sobrevivência
dentro de ordens sociais e econômicas anteriores à nossa, foram substituídos
por ‘conhecimentos’ – uma redução e sistematização empobrecida de tais
saberes, tornados acessíveis mediante a educação, por meio de seus
profissionais licenciados para tanto.
Decididos quais conteúdos do saber devem fazer parte do
“conhecimento’ e estabelecido o mito da ”incompetência original” – um espelho
do pecado original -, é proposto então o ritual de salvação e iniciação: A
Escolarização, ministrada compulsoriamente por sacerdotes licenciados para
tal ministração, especialistas nos detalhes míticos e expertos nas
particularidades do rito. Tal situação leva a poder afirmar que, numa charada
interminável, o mito cria o ritual e este mantém o mito através de um currículo
ritualizado, forma expressa do conhecimento que a ele está relacionado e que
se torna seu símbolo perpetuador e instrumento de aferição.
Onde reside o problema com a educação na concepção
Illichiana? O autor ilustra sua posição com o auxílio de Marx, conhecido por
suas afirmações sobre a alienação entre o trabalhador e seu trabalho. Illich
(1980) compara esta à alienação crescente entre o ser humano e o
conhecimento que possui, quando este se torna uma commodity, adquirida
como produto de um serviço profissional. Assim o conhecimento, esta nova
commodity, pode ser acumulado, possuído, certificado, legalizado, medido,
guardado e utilizado como vantagem competitiva, sendo desta forma gerador
de estratificação de classes, separação em castas, segregação e alienação.
Não é mais, prioritariamente, a acumulação de capital e de meios de produção
materiais que criam a tensão entre classes, mas a acumulação de
conhecimento commoditizado, sempre escasso e pouco disponível, encarecido
e gerador da sociedade de classes: “Somente consumidores oficiais de
conhecimento são admitidos à cidadania” (ILLICH, 1980, p.90)
118
.
117
Schooling and education are related to each other like church and religion, or in more
general terms, like ritual and myth. ILLICH, op. cit. 1980, p. 89.
118
Only certified consumers of knowledge are admitted to citizenship
136
Esta alienação se evidencia ainda mais na medida em que a
educação se projeta sempre na direção do futuro, de um lugar a ser atualizado,
que forma o ser humano para o porvir:
Mas eles [os estabelecimentos educacionais] não o(s) liberam para esta
tarefa antes que este(s) tenha(m) desenvolvido um alto nível de tolerância à
maneira de ser de seus anciãos: educação para a vida ao invés de na vida
cotidiana (ILLICH, 1980, p.92 grifo no original)
119
.
Neste particular modo de pensar, Illich é mais amplamente
reconhecido no Brasil por suas obras “A sociedade sem escolas” e “Nêmesis
da Medicina”, sendo a primeira a de interesse mais concreto para a finalidade
de minha pesquisa. A obra, cujo título emula o título francês e que não
expressa corretamente o sentido do título original inglês - que seria mais bem
traduzido como “Sociedade desescolarizada” -, se constitui em uma forte crítica
ao sistema de produção e consumo de conhecimento institucionalizado e
formador de dependência baseado na escola. Ainda nos primeiros anos após
sua publicação o livro se tornou um best-seller internacional e serviu como
justificativa para uma série de extrapolações que não faziam parte das
intenções do autor, da defesa de reformas à constituição de um mercado-livre
do conhecimento, e que o levaram a escrever uma série de artigos e
comentários esclarecedores de suas posições até o ponto em que Illich
acabasse por evitar a ênfase na desescolarização, da mesma forma que Paulo
Freire com relação ao termo “conscientização”.
A escola, para Illich, precisa ser ‘desestabelecida’ e
‘desconsagrada’
120
, da mesma forma que as igrejas o foram quando da
separação entre a Igreja e o Estado. Illich não se opunha à existência de
escolas enquanto organizações humanas onde saberes específicos possam
ser compartilhados de acordo com o interesse de cada um. Foram a
compulsoriedade, a sacralização e o aspecto de ritual de entrada na sociedade
de consumo, assumidos pela escola, os elementos sobre os quais ele construiu
sua crítica. Nos anos 1990, no livro que transcreve sua longa entrevista com
119
But they do not release them for this task before they have developed a high level of
tolerance to the ways of their elders: education for life rather than in everyday life.
120
Do inglês desestablished.
137
David Cayley, ele revela ainda que sua crítica à escola havia errado o alvo, o
que lhe foi chamado a atenção por um de seus estudantes, e depois amigo até
o fim da vida, Wolfgang Sachs:
A primeira pessoa a me mostrar que eu estava errado foi Wolfgang Sachs.
Ele foi meu aluno. Na Alemanha eu encontrei com ele e um pequeno grupo
de estudantes de vinte e poucos anos, que criticaram os artigos que
compunham “Deschooling Society”. Eles chamaram a atenção de que ao
enfatizar tanto os efeitos colaterais da escolarização compulsória, eu havia
ficado cego para o fato de que a função educacional já estava emigrando
das escolas, e que, crescentemente, outras formas de aprendizagem
compulsória seriam instituídas na sociedade. Tornar-se-iam compulsórias
não por meio da lei, mas por outros truques tais como fazer as pessoas
crerem que estavam aprendendo algo através da televisão ou compelindo
as pessoas a assistirem treinamentos em serviço, ou fazerem as pessoas
pagarem grandes quantidades de dinheiro para serem ensinadas sobre
como se prepararem bem para seus relacionamentos, como serem mais
sensíveis, como saber mais sobre as vitaminas que elas precisam, como
jogar jogos, e assim por diante. Eles me fizeram compreender que minha
crítica à escolarização em “A sociedade sem escolas” pode ter ajudado
pessoas como você mesmo a refletir, mas que eu estava “latindo para a
árvore errada”
121
e que eu deveria perguntar a mim mesmo: Como
podemos compreender melhor o fato de que as sociedades se tornaram
viciadas – como em uma droga – em educação? (ILLICH in CAYLEY, 1992.
p. 70)
122
A partir daí a crítica de Illich mudou para se tornar mais uma
crítica à definição de educação como aprendizagem adquirida sob a
pressuposição da escassez e da dependência de provedores de conhecimento
estabelecido. E se torna importante ressaltar que um ponto importante dessa
121
Preferi aqui manter a tradução literal de "bark up the wrong tree": desperdiçar o esforço de
alguém perseguindo a coisa ou o caminho errado, como em "se você pensa que pode entrar
por ter mais dinheiro você está ladrando para a árvore errada". Este termo vem da perseguição
noturna na caça ao quati com a ajuda de cachorros. Ocasionalmente os quatis enganavam os
cachorros, que se aglomeravam em volta da árvore errada, latindo alto, não percebendo que
seu perseguido havia tomado outro caminho. Daí a expressão inglesa.
122
The first person who told me I was wrong and would be proven wrong was Wolfgang Sachs.
He was a student of mine. In Germany, I met with him and a small group of other students, then
in their mid-twenties, who criticized the articles collected in Deschooling Society. They claimed
that by making so much of the unwanted side-effects of compulsory schooling, I had become
blind to the fact that the educational function was already emigrating from the schools and that,
increasingly, other forms of compulsory learning would be instituted in modern society. It would
become compulsory, not by law, but by other tricks like making people believe that they are
learning something from TV or compelling people to attend in-service training, or getting people
to pay huge amounts of money in order to be taught how to prepare better for intercourse, how
to be more sensitive, how to know more about the vitamins which they need, how to play
games, and so on. They made me understand that my criticism of schooling in Deschooling
Society might have helped people like yourself to reflect but that I was barking up the wrong tree
and that I should ask myself: How can we better understand the fact that societies get addicted -
as to a drug - to education?
138
crítica esteve sempre focalizado naquilo a que o autor deu o nome de “currículo
oculto” (ILLICH, 1971, 1980).
Ao distinguir aprender de escolarizar, Illich desvelava a
estrutura escondida na escolarização e que permanece para além do controle
do professor ou da coordenação escolar (ILLICH, 1980,p. 82) na forma de um
“Currículo oculto” por ele definido como aquele
Que diz que [1] somente através da escolarização pode um indivíduo se
preparar para a vida adulta na sociedade, [2] que o que não é ensinado na
escola é de pouco valor, e [3] que o que é aprendido fora da escola não vale
a pena ser sabido... [4] que a educação que vale é aquela adquirida na
escola, [5] que o grau de sucesso que um individuo desfrutará na sociedade
depende da quantidade de aprendizagem que ele consome e que [6]
aprender sobre o mundo é mais valioso que aprender do mundo (ILLICH,
1980, p.82-83 –
numeração entre colchetes não presente no original).
A palavra aprendizagem, substantivada e relacionada a algo
ensinado curricularmente, e que pode assim ser aferido, também se tornou
outro ponto da crítica de Illich. Aprender, curar e habitar designavam atividades
humanas até bem pouco tempo na história (ILLICH, 1980, p. 93). A substituição
destes verbos por suas formas substantivadas - nomes que caracterizam a
posse - os transformou em commodities ou serviços a serem dispensados à
sociedade na forma de aprendizagem, saúde e habitação. Ainda segundo o
autor, em tal sociedade as pessoas são levadas a crer que serviços
profissionais são mais importantes que o cuidado interpessoal. Como exemplo
ele cita: “ao invés de aprender a cuidar de sua avó, uma adolescente aprende
como reivindicar diante do hospital que não a recebe” (idem).
Aprendizagem, dentro desta lógica e ligada a um conteúdo
ensinado e autorizador, passa a ser aferida, programada, distanciada e,
quando apresenta sinais de não conformidade com as expectativas,
problematizada e terapeutizada. Conforme lembra Miguel Arroyo (1996), isso
se estabelece principalmente na relação ensino e aprendizagem, que revela a
perda da noção do aprender como programação humana inata e como ação
processual, para ser substituída por algo a ser possuído ou não, em relação ao
que foi ensinado formalmente.
139
Seguindo sua autocrítica ao foco exclusivo na instituição
escolar que Illich manteve nos anos 70, mas sem se deter em analisar apenas
a educação, tomando o cuidado de não se fixar exclusivamente no problema
da escolarização da sociedade, Illich continua aprofundando a crítica ao
conceito vigente de sistemas. Como expressa INMAN (1999), a partir deste
ponto “Illich não mais criticava instituições individuais, mas, mais do que isso, o
modelo mental no qual as instituições fazem sentido”. Já em 1980, segue
apontando que o maior perigo residia no que ele chamava de a “mais perigosa
categoria de reformadores educacionais” (ILLICH, 1980, p. 90): aqueles que
vêem o mundo transformado em uma imensa sala de aula, um mercado aberto
de recursos disponíveis para além do controle da escola. O que parece ser a
princípio uma dessacralização da escola, como ele mesmo propunha, se torna
uma armadilha na medida em que se pode manter separada do processo de
aprender disponibilizado desta forma, a mensuração e a certificação da
aprendizagem, mantidas nas mãos de poderes autorizados e autorizadores.
Assim, neste caso, mesmo que a aprendizagem se livre da
especificação de um currículo ministrado em grades e tempos pré-
determinados e da compulsoriedade de presença de acordo com a idade, o
sistema mantém “mãos ocultas” de alquimia tecnocrática a certificar,
estabelecer nichos e controlar a demanda e a acumulação de conhecimento
como o mais importante capital a ser conquistado. Por fim ele diz, numa
antecipação da imagem popularmente reconhecida 20 anos depois em
MATRIX: ”Sob a aparência de um mercado livre, a aldeia global se tornaria em
útero ambiental onde terapeutas pedagógicos controlariam uma complexa
placenta pela qual cada ser humano seria nutrido” (ILLICH, 1980, p. 94).
Para entender o caminho seguido por Illich para chegar a
essas conclusões, e na limitação que se faz necessária ao escopo desta
dissertação, me proponho a explicar a trajetória teórica de Illich da crítica à
escola e à educação para a vida como um todo, de maneira resumida.
A formação básica de Illich foi como teólogo, dentro da
Teologia ele se dedicou ao estudo da Eclesiologia. Nesta, a abordagem que
fazia à igreja era a de estudar sua natureza dual em relação dialética: a igreja
como comunidade visível e encarnação da presença de Deus e ao mesmo
tempo a igreja como comunidade institucionalizada, como “Cidade de Deus” e
140
Estado. Na Eclesiologia seus estudos mais profundos foram na área da
Liturgia, que explora o papel do culto no fenômeno Igreja. Nestes estudos,
criticava a característica mitopoeiética
123
dos rituais que se criam e perpetuam
a si mesmos como empobrecedores da rica possibilidade estilística, e do
impedimento da emancipação humana, da qual, por fim, acabam por se tornar
em obstáculos.
Usando a mesma abordagem na educação, ele descreve como
a liturgia escolar cria a realidade social que se vê dependente da necessidade
permanente de instrução. Em suas próprias palavras:
Comecei a discernir os sinais que a escola deixa na estrutura mental de
seus participantes. Concentrei a atenção na forma da liturgia escolar,
deixando de lado não só a liturgia da aprendizagem, mas também a
pesquisa voltada a medir a chegada aos objetivos da aprendizagem....
tentei uma fenomenologia da escola: no Brooklin como na Bolívia, consiste
em uma assembléia de indivíduos pertencentes a determinadas faixas de
idade, que se reúnem em torno do assim chamado professor durante três a
seis horas por dia, duzentos dias por ano; em promoções anuais. Que
sancionam a exclusão dos que falharam, ou os relegam a níveis inferiores;
em matérias mais particularizadas e cuidadosamente escolhidas do que
qualquer liturgia monacal que se conheça. Em qualquer lugar as classes
são formadas por 12 a 48 alunos, e nelas podem ensinar só os que
absorveram esta litania por muito mais tempo do que seus alunos. E em
toda parte se admite que os alunos recebam uma assim chamada instrução,
da qual se admite que a escola tenha o monopólio, e que essa instrução
seja necessária para transformar os alunos em bons cidadãos, cada um dos
quais deverá estar ciente do nível escolar atingido [e assim de seu lugar na
estratificação social em classes, proporcionada por esta nova modalidade
de acumulação de capital] em sua “preparação para a vida” (ILLICH, 1990,
p. 16-17 –
nota entre colchetes de minha autoria).
Após a publicação de “Sociedade sem escolas” Illich se
concentrou de maneira mais intensa no estudo dos mitos da sociedade, em
especial os mitos e rituais do desenvolvimento, do progresso, das
necessidades e da inevitabilidade de suas conseqüências contraprodutivas.
Do ponto de vista da educação, ele passou a se preocupar com
o papel das bases culturais (grassroots) e das maneiras tradicionais a serem
preservadas ou recuperadas e que pudessem reservar o ser humano à
sobrevivência; ao estudo da importância dos valores vernaculares e dos
123
Geradora de mitos.
141
relacionamentos e das opções de restrição auto-impostas e de sustentabilidade
e convivência, em oposição à adicção ao desenvolvimento sem limites.
Um artigo fundamental para entender o pensamento de Illich a
partir de sua autocrítica do final dos anos 70 e começo dos 80, como um
aprofundamento ainda maior da crítica para além da escola em direção à
sociedade foi escrito em 1979 sob o nome de “Valores Vernaculares e
Educação” (ILLICH, 1979). A partir deste artigo sua crítica passou a ser muito
mais clara e focada no que ele chamou de “Necessidades” enquanto mitos
(ILLICH, 1980).
Como pensador independente, sua crítica partia em todas
direções, indo desde os “Chicago Boys” até o restritivo sistema Chinês,
defendendo que, em especial na área de educação, a cosmovisão dominante,
e independente de posicionamento político ou econômico, era de natureza
copernicana e que esta visão educacional carecia de passar ainda por uma
revolução paradigmática kepleriana
124
. Demonstrando que apesar de todos os
avanços as esferas sociais da modernidade são tomadas, em sua maioria,
como dadas e pressupostas, sem começo nem fim e sem chance de virem a
deixar de existir:
Sejam Keynesianos ou marxistas, planejadores curriculares ou defensores
da escola livre, chineses ou americanos, todos estão convencidos de que o
homo é educandus, de que seu bem-estar – não somente isso mas sua
própria existência – depende dos serviços de uma esfera educacional
125
(ILLICH, 1979, p. 65).
Sejam quais forem estas esferas – educação, saúde, produção,
organização política – ele dividia os pesquisadores, em especial os da
educação, em dois tipos, de acordo com sua metáfora de Copérnico e Kepler:
124
Para Copérnico, e a maior parte de seus contemporâneos, o universo era constituído de um
conjunto de esferas de cristal concêntricas, relativas às órbitas circulares de cada planeta em
torno do sol em um universo fixo, previsível e imutável, sem começo, nem fim. Kepler desfez
esta idéia ao demonstrar a trajetória elíptica e independente de cada astro e permitir uma visão
relativa do universo, não eterno mas infinito, onde estruturas nascem e morrem.
125
Yet, Keynesians and Marxist, Curriculum Planners and Free Schoolers, Chinese and
Americans, are all convinced that homos is educandus, that his well-being – nay, existence –
depends on services from an educational sphere.
142
O primeiro está preocupado em explorar a possível reestruturação da esfera
educacional (ou outra), redefinindo sua esfera central, recalculando sua
amplitude, integrando mais epiciclos dentro do currículo, ou reinscrevendo-
se nele em um novo local ou ordem dentro da hierarquia das esferas
sociais. O segundo pesquisa pelas origens do próprio paradigma e, em
conseqüência, reconhece implicitamente que, assim como as esferas
celestes, as modernas esferas sociais podem um dia desaparecer
126
(ILLICH, 1979).
Neste artigo citado, Illich traça a origem do sistema educacional
e escolar ligando-o à origem da primeira gramática moderna, escrita por
Nebrija para Isabel de Castela em 1492 e publicada 15 dias após a saída de
Colombo para a América, sob os auspícios da mesma Rainha. Essa data, 18
de Agosto de 1492, Illich jocosamente sugere como o dia do nascimento da
atual esfera educacional, posteriormente aperfeiçoada e sistematizada por
Comênio. Este Nebrija foi o primeiro a apontar o pacto possível entre a espada
e o livro – depois celebrado entre a lei e a escolarização na compulsoriedade –
como complementar à existente entre o Estado e a Igreja e essencial para
garantir o que viria a ser o conceito moderno de nações e domínios. O
interessante é notar que na introdução de sua gramática ele aponta-a como
essencial para o exercício do controle político diante do perigo gerado pela
nascente invenção da imprensa, que permitia aos idiomas vernaculares,
calcados no povo, gerarem excessiva autonomia pela sua divulgação, contra o
que ele propunha a “estandardização da linguagem coloquial para remover a
nova tecnologia da imprensa do domínio vernacular” (ILLICH, 1979a, p.39). A
habitual leitura em voz alta, a necessária atenção do grupo, promoviam o
relacionamento comunitário, fortaleciam os aspectos locais em detrimento do
controle central. Transformar a leitura comunitária no exercício de domínio de
uma habilidade tornada necessária mediante a gramática foi a base de toda a
esfera educacional baseada na escassez e na dependência de especialistas
como a conhecemos hoje, segundo Illich. Um século e meio separaram Nebrija
e sua gramática para ensinar todos os súditos a falarem, da idéia de Comênio
126
The former is concerned with exploring the possible restructuring of the educational (or
other) sphere by redefining its centerpiece, recalculating its amplitude, integrating more
epicycles into its curriculum, or reassigning to it a new place or order within the hierarchy of
social spheres. The latter research searches for the origins of the paradigm itself and, therefore,
implicitly recognizes that, like heavenly spheres, modern social spheres might one day
disappear.
143
de ensinar tudo a todos de maneira perfeita e de uma educação dirigida e
começada no útero e permanente até o fim da vida. Neste mundo idealizado,
esta educação é mais bem organizada em uma função traduzida em escolas
para todos, onde todos, velhos e jovens, ricos e pobres, nobres e plebeus,
homens e mulheres, sejam ensinados efetivamente.
Eu resumiria a primeira parte deste artigo de Illich como uma
clara e concisa demonstração de como o conceito de uma igreja mãe do século
XI (mater, magistra et domina
127
), evolui para o de uma língua materna
unificadora, então para um estado provedor e posteriormente para um mercado
sustentador e que a tudo domina neste início de século XXI. “A idéia do idioma
materno de Gorz
128
, a imposição da estandardização por Nebrija, o ensino de
todas as coisas através do método de Comênio” (ILLICH, 1979a, p.39) são a
base da chamada esfera educacional na organização corpenicana da atual
sociedade moderna para Illich.
Neste transcurso os domínios vernaculares perderam espaço e
importância na medida que o uso de um idioma formal, e de uma ciência formal
conseqüente, foi transformado em necessidade que pode ser planejada,
programada, produzida e distribuída, acumulada e protegida da popularização
e do acesso autônomo.
Após 1988, e até o fim de sua vida, Illich centrou sua visão
crítica de mundo nos aspectos relacionais e humanos da vida e do aprender,
para ele uma e a mesma coisa (INMAN, 1999), e passou ao estudo
aprofundado da renovação da amizade (Philia) - um aspecto do amor - como a
base de ambos. É a partir daí, que idéias expostas em obras como “O direito
ao desemprego criador” (ILLICH, 1979b) e “In the Vineyard of text”
129
(ILLICH,
1996) estabelecem a forte relação entre aprendizagem e comunidade.
Confirmando suas observações sobre o desenvolvimento
conforme descrito na obra de SACHS (2000) e testemunhando os
desdobramentos da sociedade ao longo dos trinta anos anteriores a 1998, Illich
propõe caminhos não totalizadores e nem generalizantes para a vida em
confrontação com o pensamento dominante. Se eu pudesse me referir a uma
127
Gregório VII – 1073-1085.
128
Abadia em Lorraine, considerada como foco emanador da reforma monástica germânica do
século X, e onde o termo idioma materno aparece pela primeira vez.
129
Na Vinha do Texto – obra não traduzida, disponível apenas em inglês.
144
de suas expressões para definir sua estratégia de contraposição aos sistemas
da sociedade escolheria a que ele definiu como uma “tola renúncia consciente
à dependência dos sistemas”, sejam eles sistemas de saúde, transporte,
abastecimento, educação ou economia. Revendo energia e educação como
ferramentas (outro conceito fundamental em Illich) ele propõe a amizade como
forma de austeridade como o tema emergente mais freqüente em seus
trabalhos deste período. Austeridade, como expressão da amizade, é a chave
do comportamento sustentável e a porta aberta para a aprendizagem efetiva:
Aprender a viver, aprender a sobreviver e aprender a morrer.
Em um mundo que entende cada necessidade como algo a ser
satisfeito e cada limitação como barreira a ser ultrapassada, ele via emergir
uma sociedade a-mortal, onde a habilidade de morrer (ILLICH, 1995), de ser
consciente dos limites impostos pela existência, se perde em um sem-número
de artifícios de prolongamento da vida a despeito de sua qualidade, de
submissão a sistemas de morte em favor de uma sub-vida sujeita ao mercado,
de pressa para chegar a lugar nenhum, como em uma corrida sob as esteiras
de uma academia. Suas propostas passaram a ser a opção pelo relacional, a
renuncia ao artificialismo e a valorização do local em detrimento do global.
A partir do estudo das obras de Hugo de São Vitor (Séc.XI)
130
,
Illich aponta para a amizade como o aspecto capaz de transformar a
informação, em conhecimento e este em sabedoria, ou “conhecimento
saboroso” (ILLICH, 1996, p.27), um objetivo bastante presente e perseguido
por propositores atuais como Assman, Pozo, Merrieu e Morin. O papel da
amizade se apresenta em sua proposta como auxilio para a peregrinação ao
longo da vida ao prover conexão, apoio e, acima de tudo, outro de seus
conceitos prediletos: hospitalidade – a base da idéia da atitude de alguém que
providencia um lugar para o que sofre, em uma metáfora do acolhimento a ser
reservado ao que se envolve na dolorosa tarefa de aprender, uma vez que a
aquisição de conhecimentos e sua aplicação em sabedoria demandam um rigor
e atenção que por vezes implica em dor e sofrimento, que pode levar a
demandar este tipo de apoio.
130
Didascalion.
145
Outro aspecto da amizade é a obediência. Diferente da
sujeição, a obediência a um amigo implica no cuidadoso ouvir e responder
presentes no diálogo. Obediência, da raiz latina audire, significa ouvir em
submissa atenção que paradoxalmente acaba por resultar em liberdade, uma
vez que a pergunta de abertura passa a ser não mais por saber:
“Quão lógico é este pensamento?” Mas “De quem é a voz por trás dele?
Como eu posso entrar e responder à relação deste pensador para com o
mundo?” Estas questões não excluem a inteligência lógica e crítica, mas
nos lembram que o verdadeiro conhecimento envolve mais do que um dado
computado em um intelecto desencarnado. Conhecimento da verdade
requer um diálogo pessoal entre o conhecedor e o conhecido, um diálogo
no qual o que conhece ouve ao mundo com obediência (ILLICH, 1998).
Por fim, neste período, a crítica de Illich se consolidou em
aspectos que levaram ao questionamento da aprendizagem crescentemente
dependente da mediação de máquinas, mais do que da ajuda de amigos. Seu
pensamento passou a ser menos focado na instituição escolar como fora nos
anos 70, ou na estrutura da sociedade como nos anos 80. Sem abandonar
suas convicções originais, e na verdade aprofundando-as, suas baterias se
voltaram para origem do problema: a sujeição voluntária e apática aos sistemas
que gera uma vida confortavelmente miserável, dependente das aparentes
facilidades e comodidades do individualismo, do estado provedor, da
“macdonaldização” (PRAKASH; STUCHUL, 2004) do conhecimento. A
responsabilidade do sujeito, não somente mais uma vítima do sistema, mas um
cliente exigente do sistema, convencido das vantagens de não sentir dor ou
conviver com necessidades, foram incluídas em seu pensamento crítico. E
neste sentido, suas propostas, ainda radicais e inusitadas, ganharam um grau
de factibilidade efetiva, na medida que ele, de uma certa forma, deixou de
propor a simples desinstitucionalização de uma organização, a escola, ou a
transformação das bases sociais, mas a colocá-las em função da deliberada
decisão de pessoas e grupos de, temerária e tolamente, se desligarem dos
sistemas que os mantém dependentes. Na minha opinião, ao circunscrever o
campo de batalha, seus outros objetivos passaram a ganhar a consistência de
que pareciam carecer ao propor grandes mudanças sociais sem levar em conta
a dependência individual.
146
Desta forma e com este sentido, o essencial em sua proposta
de aprender se traduz a partir em uma função do que ele chamou de os três
“Cs” presentes no processo humano de aprendizagem: cuidado, preocupação e
conexão (em inglês: care, concern and connection). Nesta perspectiva
illichiana ninguém é destinado a sentir-se sem esperança ou dependente do
outro, caso que se torna tão comum para os que assumem o computador, um
sistema ou uma máquina como um amigo, ou que esperam pela alimentação
intelectual sem dor e pré-cozida, em interfaces amigáveis que nos fornecem
informações sobre o mundo enquanto nos mantêm habilmente afastados deste
mesmo mundo. Entendendo a aprendizagem de forma oposta, aprender e vida
se conectam, e a vida se apresenta potencialmente plena na capacidade de
cuidadosamente manter relacionamentos que nos ajudam a preocupar-nos em
transformar o aprendido em sabedoria aplicada à própria vida e às suas
conexões complexas.
Para construir o conceito deste que educa compartilhando sua
vida, escolho fazer o caminho inverso ao feito até aqui, buscando desenhar
este perfil a partir do último capítulo de um livro publicado às vésperas de sua
morte: “The Challenges of Ivan Illich”, revisitando suas obras principais até
sociedade sem escolas.
No fim da vida ele diria que a “amizade torna os laços únicos”,
e de maneira peculiar para ele o educador é aquele que oferece a aprendida e
relaxada hospitalidade como antídoto para a esperteza morta adquirida na
perseguição do conhecimento seguro, profissionalmente construído (ILLICH
apud HOINACKI, 2002). A função do educador para Illich era construir um
ambiente de “indulgência temperada” ou seja, no qual a aprendizagem possa
acontecer respeitando ritmos, tempos e diálogos, mas no qual se percebam o
rigor e a consistência. A palavra que marca a relação entre o que aprende e o
que ensina é a amizade, não da forma habitualmente reconhecida e superficial,
mas aquela traduzida numa das formas de amor no grego: philia. Aprender
neste ambiente de experiência real do outro, compartilhando sua presença, era
visto para Illich com uma perspectiva de salvação. Esta palavra, que remete
imediatamente aos conteúdos do senso comum de livrar-se de um perigo
externo, aqui se coloca, tenho forte convicção, na perspectiva de seu correlato
grego soteros, que vem a dar origem a nosso termo sutura: algo que restaura,
147
que restitui a plenitude e a inteireza. Ou seja, aprender entendido desta forma,
nos restaura a integralidade, nos coloca em direção a quem somos e nos livra
das ciladas de nós mesmos, o que não é um exercício solitário, mas uma
caminhada entre amigos, de quem “sentimos o cheiro”.
Ao que ele [Illich] se opunha era prender tal relação na armadilha de um
currículo, um programa, um ensino, uma ideologia, um plano , um objetivo.
O mestre não está transferindo certo conhecimento ou habilidade para o
pupilo. Ele/ela não possui objetivos educacionais para o outro; ele/ela não
está interessado em transformá-lo(a) em algo. Ele/ela ama-o(a). Ele/ela
possui um cuidado amoroso pelo outro(a). Sem condições. Ele/Ela nutre a
esperança sobre seu/sua pupilo(a), mas ele/ela não tem expectativas.
(ESTEVA, 2004,
documento eletrônico sem paginação)
131
Esta amizade não é unilateral, do mentor para com o aprendiz,
mas se traduz também na atitude do aprendiz que mantém a consciência de
que sua presença impõe uma inconveniência, uma concessão daquele que
ensina. Pessoas que se olham com este grau de respeito assistem á
possibilidade da emergência de aprendizagem que se traduz em sabedoria. Na
verdade, o mentor é aquele que sabe que a aprendizagem traz consigo um
componente de surpresa para aquele que se percebe subitamente sabendo e
desta forma o que mentoreia descansa “na confiança, amizade, maturidade e
esperança” (DUDEN, 2003) como propiciadores do inesperado.
A expressão da relação do educador - sempre aqui um
sinônimo de mentor - com o aprendiz e que melhor traduz a visão illichiana é a
conspiração. Do latim conspiratio, e baseada em um rito cristão primitivo, a
palavra se refere ao ato de aproximar boca a boca de modo a que a inspiração
e a expiração sejam compartilhadas, simbolizando o ato de inspirar e animar
um ao outro em igualdade, sabendo que ninguém tem a posse do ar comum
aos dois, e que ambos possuem o que dar e têm o que receber. Esta a melhor
tradução da relação aprendiz e mentor na visão do autor, que é uma relação de
“natureza intrinsecamente conspiracional” (ILLICH,2002) e gera como resultado
a paz, não a que é conseqüência de um ato autoritário – como as “forças de
paz” no oriente médio – ou como um dom da natureza ou de deuses, nem o
131
Notas da apresentação organizada por TALC New Vision, Milwauke, 9 de Outubro de 2004
no “Schooling and Education: A Symposium with friends of Ivan Illich”, gentilmente cedidas pelo
autor.
148
resultado de planejamento, administração e de projetos, mas como fruto da
conspiração: um mútuo, deliberado, somático e gratuito presente de um ao
outro, traduzida na hospitalidade de um para com o outro.
A crítica independente da ordem estabelecida de nossa sociedade
moderna, tecnogênica, centrada na informação somente pode surgir de um
meio social de intensa hospitalidade... uma atmosfera propicia ao
pensamento independente é a hospitalidade cultivada pelo hospedeiro; uma
hospitalidade que exclui a condescendência tão escrupulosamente quanto a
sedução; uma hospitalidade que pela sua simplicidade derrota o medo do
plágio assim como do clientelismo; a hospitalidade que pela sua abertura
dissolve a intimidação de maneira tão estudada quanto o faz com o
servilismo; uma hospitalidade que demanda do convidado tanta
generosidade quanto a que está imposta ao que hospeda... ambos
pacientes um com o outro (ILLICH, 2002, p.242).
Esta ambientação se dá ainda envolta na consciência de que o
educador não forma o outro e que cada um é responsável por quem se torna
(FIELDS, 1971) e que o planejamento na relação de aprendizagem nos
defende tanto contra a surpresa quanto contra a interdependência (INMAN,
1999). O conceito de planejamento educacional está baseado na
pressuposição de que os indivíduos não podem tomar para si a
responsabilidade por sua própria aprendizagem e mais do que basear a
aprendizagem em interesses e talentos existentes, a educação escolar se
baseia em déficits diagnosticados, prescrições e objetivos alheios ao sujeito
(INMAN, 1999). Em contraposição a este modelo, o papel do mentor seria o de
acender a fagulha (PRICE, 1996, p.88), e usar seu ofício para estimular a
formação e não para asfixiar o espírito de seus alunos, que se espera
correspondam com o rigor e a disciplina necessárias ao processo.
Esta relação responsável entre as pessoas no processo de
aprender se dá em espaços reais. No entanto, o espaço da aprendizagem para
Illich não se circunscreve às paredes da sala de aula, nem tampouco ao etéreo
espaço virtual ou mesmo ao ilimitado espaço aberto do mundo. Com a
finalidade de marcar sua concepção espacial na aprendizagem, por muitos
anos ele rejeitou qualquer ajuda mecânica ou eletrônica para a projeção da
voz, mesmo nos ambientes superlotados de suas conferências. Para Illich o
educador não impõe sua voz (ILLICH, 2000), mas possui a consciência de que
a palavra cria um espaço, e de que é neste espaço da conversa e do diálogo
149
que se cria a comunidade, os limites do espaço de aprendizagem são os
limites do alcance da fala nua, e nestes limites se constrói o saber .
Outro aspecto importante nesta relação é o da abundância e
da prodigalidade por parte do mentor como oposta à escassez na
aprendizagem no modelo escolar. O conceito moderno de educação, baseada
em um conhecimento a ser consumido, está construído sobre a pressuposição
da escassez, traduzida pelas noticias diárias da necessidade de mais e mais
profissionais, em relações igualmente institucionais, nunca em número
suficiente à demanda e com a percepção de igual escassez de tempo e
espaços para incluir todos os aspectos privilegiados pelo currículo, sempre
administrados a partir da ótica e das soluções de mercado, traduzidas, por
exemplo, na digitalização e distanciamento do processo de aprender. Para Illich
a digitalização da aprendizagem não é linguagem, não é cultura e não nos
recupera a base social, ao contrário é a própria criação do mais fluido mercado
jamais imaginado, o da informação (ILLICH, 1999). O educador compartilha o
que sabe de forma pródiga, na medida do interesse do outro, não se limitando
ao escasso currículo, mas superando-o, em relações presenciais, envoltas na
linguagem e culturalmente relevantes, sem economia, mistérios ou segredos
guardados entre seus participantes.
Outro aspecto bem resolvido na perspectiva de Illich é o da
liderança. Como ele dizia: “aprendizes necessitam de liderança experiente
quando eles encontram um terreno acidentado” (ILLICH, 1971, p.45), e nisso
ele reconhecia o papel do pedagogo e do líder como complementares. O
primeiro chama a atenção para o conhecimento sobre a aprendizagem humana
e sobre os recursos educacionais disponíveis, o segundo para a experiência
necessária para qualquer tipo de exploração em qualquer área. Ambos papéis
indispensáveis no desafio educacional, e infelizmente empacotados e exigidos
como demanda e mais valia sobre a mesma pessoa no ambiente escolar.
Neste ambiente por ele criticado, ele advogava que o melhor mentor/educador
é aquele que sabe “manter-se a si e a outros fora do caminho das pessoas e
facilitar o encontro entre estudantes, modelos de habilidades, lideranças e
objetos educativos”.
A liderança para Illich é algo mais impreciso que o papel de
administrador escolar ou pedagogo.
150
Isto é assim porque liderança é algo de difícil definição em si mesma. Na
prática, um indivíduo é um líder se as pessoas seguem suas iniciativas e se
tornam aprendizes de suas descobertas progressivas. É difícil ampliar esta
definição exceto à luz de valores pessoais ou preferências. Freqüentemente,
isto envolve uma visão profética de padrões inteiramente novos, nos quais o
presente “errado” passa a se tornar “certo”. ... Liderança não depende de se
estar certo... Depende de uma disciplina intelectual superior e de
imaginação, e da vontade de estar associado com outros em seu exercício…
charlatães, demagogos, palhaços, proselitistas, mestres corruptos e
sacerdotes simoníacos, vigaristas, fazedores de milagres, tem provado a
capacidade de assumir liderança e assim mostrar os perigos de qualquer
dependência de um discípulo para com seu mestre (ILLICH, 1971, p.52)
O caráter era outro pressuposto de valor incalculável para o
educador e par inseparável da liderança. Lançando mão de Aristóteles e de
Tomás de Aquino, esta característica se torna inevitavelmente um ato de amor
e misericórdia. “Este tipo de ensino é sempre um luxo para o professor e uma
forma de lazer (scholé) para ele e seu pupilo: uma atividade significativa para
ambos – sem nenhum propósito ulterior” (ILLICH, 1971, p.80). A emergência de
tal expressão de caráter possui um componente utópico que pressupõe a
construção de uma nova sociedade na qual “atos pessoais em si readquirem
um valor mais alto do que fazer coisas ou manipular pessoas” (ILLICH, 1971,
p.81)
Em tal sociedade o ensino exploratório, inventivo, criativo seria contado
entre as mais desejáveis formas de “desemprego” criativo. Mas nós não
temos de esperar até o advento da utopia. Mesmo agora, uma das mais
importantes conseqüências da desescolarização e do estabelecimento de
estruturas de encontro de amigos [peer-matching] seria a iniciativa na qual
“mestres” poderiam se reunir a discípulos congêneres. E poderia também –
como temos visto – prover amplas oportunidades para potenciais discípulos
compartilharem informações ou selecionar um mestre (ILLICH, 1971, p.65).
Outro valor para o educador dentro da proposta de Illich é ser
alguém que tem em mente a importância da experiência direta, que valoriza
mais o uso de fenômenos naturais do que imagens e abstrações. Para Illich, a
insistência no uso do virtual auxilia a construir a idéia de sistemas mais do que
a idéia de vida complexa, removendo lentamente o indivíduo do contato com o
real. A fragmentação do saber e seu afastamento da experiência de vida,
mediante a desencarnação da aprendizagem, facilita os fenômenos
151
freqüentemente observados de dissociação entre o real e o virtual e
surgimento de comportamento sociais distorcidos (INMAN, 1999, p. 50).
A principal experiência que provê o contexto da aprendizagem
é proporcionada pelo lugar e a cultura na qual o indivíduo está imerso, e a
relação do educador com o contexto do aprendiz, é enormemente facilitada
pela admiração e apreciação em um gesto de compreensão e amizade.
Logicamente, em se tratando de alguém pertencente ao mesmo ambiente
cultural, este aspecto se torna simplificado, no entanto, em se tratando de
alguém oriundo de outro lugar e cultura, este passa a ser um aspecto a ser
mantido em mente em atitude reflexiva, tanto pela artificialidade facilmente
desmascarada em tentativas de emular a admiração, quanto pelas barreiras a
serem removidas quando o educador expressa de maneira honesta sua
apreciação. Paradoxalmente, para ele, a maior demonstração deste interesse é
o silêncio, e “quanto maior a distância cultural, mais o silêncio revela um sinal
de amor”, diferente do silêncio “missionário” que silencia por não compreender
o outro. O silencio do educador é o silêncio da paciência, que compreende a
limitação das palavras, e que sabe que em determinados momentos ‘está dito’
e nada pode sobrepassar o momento da descoberta e que o que havia de ser
falado o foi (ILLICH, 1975). Neste sentido, aprender está diretamente
relacionado com autodescoberta, dependente da humildade e da abertura ao
diferente e inusitado por parte do educador, preparado para a surpresa e
sustentado pela fé no outro. “Colocar nossa fé nas instituições mais do que no
potencial humano conectado é uma das mais sérias ameaças à fé” (INMAN,
1999, p. 67). Esta aprendizagem, diferente da que se dá nas instituições,
possui pouca possibilidade de ser cuidadosamente planejada, e administrada,
a ela se lhe permite tão somente acontecer.
A experiência da aprendizagem assim descrita se encontra
perfeitamente adaptada ao espaço comunal.
O espaço comunal é aquela parte do ambiente que se estende para além
do limiar da própria pessoa e para fora de sua possessão, mas para o qual
aquela pessoa reconhece o direito de uso – não para a produção de bens,
mas para a subsistência da parentela (ILLICH, 1979b).
152
Para o autor, o contexto da aprendizagem não tem porque
deixar de ser aquele que tem sido o mesmo por todas as eras – o espaço de
viver onde se vive uma vida integrada entre aqueles com quem se experimenta
a amizade. O ambiente familiar e comunal, moral e relacional previne a
possibilidade do conhecimento neutro, gerado em um vácuo moral, no mínimo
de valor irrisório, para ele blasfemo quando de seu uso desenfreado em favor
de um único beneficiário, hoje melhor expresso na onipresente figura do
mercado.
3.4 FREIRE, ADVOGADO DO POSSÍVEL
“Procuro fazer ao máximo, o mínimo que
posso fazer, e o que pode ser feito agora
para que se faça amanhã o que hoje não
pode ser feito”
Paulo Freire
Se Illich analisava e criticava a sociedade industrial moderna a
partir de uma plataforma externa a ela – a cosmovisão pré-moderna -, Freire
constrói a mesma análise e crítica de dentro das entranhas da sociedade,
fundado em categorias modernas e a partir das condições objetivas de seu
contexto, assumindo as limitações espaço-temporais, que ele compreendia
como sendo as fronteiras da possibilidade. Sua obra, desta forma, pode ser lida
e entendida como parte do sistema moderno e comprometida com seus mitos e
pressuposições. De qualquer forma uma obra, sob qualquer ponto de vista,
indubitavelmente plena de honestidade, lealdade e compromisso com a
humanidade.
Ao começar a analisar Paulo Freire, tomei a decisão de evitar a
redundância. Sendo o mais investigado dentre os intelectuais brasileiros, e
dada a incontável sucessão de trabalhos que se repetem em situá-lo histórica,
bibliográfica e conceitualmente, seja em livros, artigos, dissertações ou em
teses, creio ser desnecessário neste espaço repetir os fatos de seu nascimento
em Recife em 1921, seu nome completo, a perda de seu pai, o exemplo de sua
mãe, sua dificuldade no concurso de admissão aos 15 anos, ou que ele
escrevia ‘rato’ com dois erres, seu amor por Recife e sua prática incipiente
como advogado, nem que passou dificuldades na infância ou que se casou
153
com Elza e teve 5 filhos, ou que era sogro de Francisco Welfort. Os trabalhos
acadêmicos se repetem à exaustão neste sentido e muitos com muito mais
competência e profundidade do que eu seria capaz de aqui relatar.
Esta não é uma fuga do assunto, mas um tributo ao enorme
conhecimento sobre a pessoa e biografia de Freire. Além disso, meu intuito é
tentar produzir algo que efetivamente acrescente e não simplesmente repita,
nem se incline diante do caminho fácil da cópia e do pastiche.
Analisar, tentar entender e mesmo tecer considerações críticas
a Paulo Freire, não é tarefa que se faça sem emoção, sem temor e sem
cuidado. É inegável a emoção de estar diante de quem escrevia prosa como
quem faz poesia, que esteve sempre presente inteiro em cada página escrita e
que se desnudava em boniteza, como gostava de dizer, e sobre quem se pode
aplicar o adágio latino, tão antigo quanto apropriado: “Poeta nascitur non fit” ,
(poetas nascem, não se fazem). Estou consciente do temor de estar diante de
uma obra maior, de influência inegável e de dissertar sobre alguém que,
mesmo seus críticos mais severos, sempre consideraram “um homem de
integridade e profundos compromissos sociais” (BOWERS, 2005, p. 13). E do
cuidado de tentar reconhecer os limites da tentativa de uma análise mais
abrangente de uma obra tão extensa e influente, de efeitos amplos e
desdobramentos globais, baseado-me na certeza de estar diante de uma das
principais contribuições pedagógicas do século XX.
É impossível imergir-se na obra de Freire e não perceber que,
como todo autor seminal, seu nome ganha um caráter mítico, tão
desabusadamente citado e usado como se fosse um selo, que, ao ser aplicado,
legitimasse e desse um manto de credibilidade a qualquer idéia, e como se o
que ele escreveu, citado fora de contexto, servisse para justificar quase tudo,
até as coisas que, como ele mesmo cita em alguns escritos que ao ler em
algumas análises de suas obras, nem saber que havia dito o que se lhe
atribuía.
Freire foi aquilo que defendeu que todos fossem: um ser
humano inteiro, com toda a intensidade da experiência humana, seus amores,
gostos e desgostos, qualidades e deficiências, brilhantismo e limitações. Desde
já assumo que mitificá-lo é diminuí-lo, o que já discuti brevemente acima como
sendo uma forma de, na verdade, anular a influência de um autor.
154
O caminho que tomei ao estudá-lo teve como eixo central sua
obra fundamental, “Pedagogia do Oprimido” (1987), porque dela parte sua
influência no mundo, e para ela, como referência, convergiram todas as suas
obras posteriores. Além das obras diversas que foram pesquisadas, escolhi
resumir-me à “Pedagogia da Esperança” (1992) e à “Pedagogia da Autonomia”
(1997) para delas desvelar o conceito de educador e educadora em Paulo
Freire. Como forma de preparar o terreno para a análise comparativa de suas
idéias com as de Illich o livro “Conscientização” (1980) serviu como referência
sobre os fundamentos da relação entre educador e educadora com educando e
educanda e dos objetivos da prática educativa.
Devido ao amplo conhecimento sobre sua biografia (Jorge,
1981; Freire, 2000; Souza, 2001), ao contrário dos dois autores anteriormente
estudados, preferirei contextualizar Paulo Freire a partir dos anos 60, mantendo
o foco em suas relações de amizade, seu posicionamento político e sua
estratégia de luta, tentando trazer à memória um educador muito mais ácido e
ameaçador ao Status Quo do que o mito que se vai formando em torno de
idealizações, citações descontextualizadas de suas falas, construções
metafísicas inspiradas em frases soltas, inócuas com relação á crítica ao
pensamento globalizante, que causam impacto psicológico sem no entanto
convocar à ação, principalmente política. Paulo Freire sempre soube onde
estava a cada momento de sua vida, sua capacidade dialógica nunca se
confundiu, ao que parece, com subserviência ou acomodação, e sua
capacidade de interagir não implicava no comprometimento de suas idéias ou a
negação de sua posição revolucionária.
Cristão assumido, criticado pela esquerda e temido pela direita,
partidário da guerra de posição de Gramsci, ao mesmo tempo leitor e
conhecedor profundo de Lênin, era capaz de compreender Mao Tsé Tung
como sendo portador de uma teoria do conhecimento (FREIRE, 1975),
enquanto aproximava sua práxis de maneira inequívoca da pedagogia de
Jesus (ELIAS, 1976, p. 41), fato que ficou ainda mais evidente nas publicações
de cunho mais teológico (ELIAS, 1976), principalmente durante seu período no
Concílio Mundial de Igrejas. Este Paulo Freire complexo foi fruto de seu
condicionamento histórico, e sua obra transmite a ressonância de sua cultura,
época, lugares, experiências e leituras (FREIRE, 2005; p.121).
155
Como forma de registrar as impressões de Freire sobre o perfil
do educador, sem a pretensão de esgotar o assunto, buscarei lançar mão das
obras citadas acima e apresentar alguns trabalhos seus em parceira com
outros autores, e de pouca circulação no meio Brasileiro: “Diálogo Illich Freire”
de 1975, “Educación para el cambio social”, que escreveu com Furter e Illich
(1974), “Dossier Freire Illich”, de 1975 (OLIVEIRA; DOMINICE, 1975), entre
outros artigos e livros escritos, sem no entanto deixar de lançar mão de obras
mais conhecidas e consultadas ao longo da pesquisa.
Essa escolha de obras e de viés, que inclui alguns escritos
principais sobre diferentes olhares para a Pedagogia e outros pouco
conhecidos, se deve à intenção de buscar a percepção do processo de
construção do pensamento de Paulo Freire sobre o educador ao longo de três
décadas onde, como ele mesmo afirmava inúmeras vezes, seus conceitos se
faziam e refaziam, se aprimoravam, se reinventavam e se reconstituíam em
função das críticas e da autocrítica.
Antes de iniciar a análise creio ser importante demarcar que
Paulo Freire não é nem nunca foi isento de críticas, como será analisado na
próxima seção, e que ele mesmo deixou clara a necessidade destas críticas e
a incompletude de sua obra (FREIRE, 1992)
132
. Por este motivo, suas idéias
aqui não serão apresentadas como oráculos inquestionáveis, mas como um
conjunto desvelador, parte de um processo e, acima de tudo, parte da tentativa
freireana de superar o sistema de dentro do próprio sistema, sustentada na
esperança de não ser assimilado e a partir de um caráter determinado a ser o
que era, sem negociar convicções enquanto esteve vivo.
O uso que se faz da obra de Paulo Freire após a sua morte não
será aqui tratado, uma vez que o educador Paulo Freire sempre foi, sendo, e
carecendo hoje de sua presença, seria injusto pretender tratar deste tema sem
a possibilidade do diálogo real com o autor ou do conhecimento não sabido,
que só é possível àqueles que com ele conviveram e perceberam a “diferença
que faz diferença” (BATESON, 1972, p. 318), no tom de voz, no jeito de olhar,
na postura corporal.
132
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança. Introdução.
156
Para se compreender as influências que geram a obra e o
pensamento de Paulo Freire, creio valer a pena lembrar e ressaltar a enorme
plasticidade Freireana, evidenciada pelo fato de que suas posições intelectuais
se constroem e reconstroem ao longo da vida. “Posso, no processo de agir-
pensar... mudar de posição. Minha coerência assim... se faz com novos
parâmetros. O impossível para mim é a falta de coerência” (Freire, 2005, p. 66)
Uma divisão que talvez ajude a compreensão desta evolução
de pensamento poderia ser feita em três períodos, coincidentes com sua
trajetória pública: o primeiro da década de 1950 até o exílio em 1964; o
segundo quando de sua passagem pelo Chile, Estados Unidos e Genebra e o
terceiro após sua volta na década de 80 e até seu falecimento.
Como afirma Torres (1979), tentar desvelar esta trajetória é
uma tarefa complexa e cheia de interconexões. Se já o era nos anos 1970,
suas construções posteriores, em realidades testadas como na Secretaria de
Educação da cidade de São Paulo, em embates acadêmicos e sínteses que no
fim da vida pareciam de ordem mais universalista, desafiam qualquer tentativa
simplista de manter unidas partes tão difusas, como afirmava o autor citado na
década de 1970:
É por isto que quem pretender seguir o itinerário intelectual de Freire se
defrontará com um conjunto de caminhos diversos, amalgamados numa
estranha conexão. Deverá transitar por textos filosóficos, mais
especificamente gnosiológicos ou, às vezes, epistemológicos. Deverá
aprofundar-se em considerações teológicas...deverá indagar-se sobre
sociologia do conhecimento...deverá considerar as implicações
psicossociais do seu método (TORRES, 1979, p.6).
Tentar analisar Paulo Freire é uma tarefa que demanda não
deixar de contextualizá-lo como um pensador dentro da matriz iluminista e
moderna. Seja em seu primeiro período, antes do exílio, seja no fim de sua
vida, estão presentes em sua obra as concepções iluministas típicas do
pensamento moderno contemporâneo: O desenvolvimento, o progresso, a
separação entre homem e natureza, o antropocentrismo, as concepções de
sujeito e objeto como entes separados, a prevalência, como ponto de partida,
da análise econômica e social, a necessidade de mudança como
pressuposição, a transformação permanente, os conceitos de Estado e Nação,
157
a política partidária e a democracia representativa, as noções de indivíduo e de
autonomia.
Este alicerce é lançado sobre a base e no terreno da influência
de seu cristianismo, dentro da matriz católica, brasileira e identificada com a
Ação Católica
133
, no escopo da Doutrina Social Católica. Assim como Illich, a
influência de São Tomás de Aquino sobre Paulo Freire é observável e se
manifesta em seu pensamento, que apresenta o homem e a natureza como
dados e pré-determinados. O próprio conceito de palavra a ser falada tem
fortes tradições judaico-cristãs e se baseia na idéia do Logos, presente nos
pais da igreja, na literatura de sabedoria judaica (apócrifa) e em especial nos
escritos de São João. Como diz Elias (1976, p.30) “Freire vê a relação entre o
homem e um ser transcendente como a norma para julgar o relacionamento
que deveria existir entre homem e homem”. Nas palavras do próprio Freire
podemos ver como este tipo de reflexão teológica se constrói e como esta
influência fundamenta sua práxis:
A palavra de Deus está me convidando a re-criar o mundo, não para a
dominação de meus irmãos mas para sua liberação.... A palavra de Deus
não é algum conteúdo a ser colocado dentro de nós como se fossemos
meros recipientes estáticos dela. E porque salva, esta palavra também
liberta, mas os homens devem aceitar isto historicamente. Devem fazer de
si mesmos sujeitos, agentes de sua salvação e libertação (FREIRE, 1972,
p.7).
O pensamento teológico de Freire, posteriormente aprofundado
durante seu período no Concílio Mundial de Igrejas, tem origem no pensamento
de autores católicos brasileiros como Tristão de Athayde - por quem ele
sempre nutriu admiração – e por influência indireta do conservador Jackson de
Figueiredo (Jorge,1981, p. 20). A influência de Jacques Maritain, colocando o
homem em primeiro lugar na ordem do Cosmos, é evidente na prioridade que
dá à natureza humana e aos valores ontológicos do mesmo. Provavelmente
esta foi outra peça importante na construção da amizade com Ivan Illich, ele
próprio discípulo pessoal de Maritain. Suas citações a Kierkegaard, e sua
133
Para aprofundamento sobre o tema recomendo a leitura de "A ação social católica e a luta
operária: a experiência dos jovens operários católicos em Santo André (1954-1964)" , Tese de
doutorado: Moraes, Maria Blassioli. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH), USP, 2003.
158
ênfase no homem histórico também o aproximam da perspectiva existencialista
daquele autor cristão.
Em sua primeira fase, a influência existencialista é marcante, o
indivíduo a liberar-se não está engendrado na luta de classes ainda, mas na
expansão possível à existência humana. Sua dialética é mais metafísica e
hegeliana nesta fase, sem levar em conta as posições de correntes marxistas -
Marx, Gramsci, Goldman, Lukács, Hobsbawn, Sartre – que farão parte de suas
reflexões após o exílio e as quais assumirá posteriormente como ferramentas
de análise. Sua opção desenvolvimentista e democrática, é uma característica
do pensamento do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) do qual fez
parte. No que se refere à educação sofreu enorme influência das idéias de
Dewey, a qual, apesar de todas as demais influências posteriores, nunca foi
totalmente superada. O oprimido se identifica nesta fase com o camponês
privado da civilização e do desenvolvimento da sociedade ocidental. Ele
mesmo afirma, posteriormente, “é preciso aumentar o grau de consciência dos
problemas de seu tempo e de seu espaço. É dar-lhe uma ideologia do
desenvolvimento” (FREIRE, 1982, p.28).
Uma referência em Freire e na maioria dos autores modernos,
e que serve de base a algumas críticas posteriores a Freire é a concepção de
mundo como realidade objetiva separada do ser humano, de onde decorre sua
resistência, semelhante à de Mounier, quanto a coisificar o homem. Como será
verificado na análise de sua obra quando comparada à de Illich, esta
objetificação e a aceitação da separação entre sujeito e objeto será
considerada parte das sugeridas revisões da obra de Freire por autores mais
recentes como Bowers e Esteva.
Sua ênfase no diálogo também é oriunda da obra de dois
outros autores, o primeiro o teólogo Martin Buber (BUBER, 1965) e o segundo
o filósofo Karl Jaspers (JORGE, 1981). Assim como sua ênfase na pergunta o
relaciona ao filósofo Martin Heidegger, que , assim como Freire, entende o
homem como o ser da pergunta e que se pergunta, busca respostas e se dá
respostas, em sua relação inquieta com o mundo e nele inserido em busca de
saber-se e conhecer-se.
Quanto à educação do ser humano, é necessário voltar à
influência de Dewey sobre Freire. Apesar de aquele autor ser mais interessado
159
na solução de problemas que na problematização como Freire, é a partir dele
que Freire vai construir várias de suas concepções. O mais relevante dos
pontos de conexão entre ambos é a definição de educação como liberdade e o
ataque aos sistemas representacionais, metafísicos, dualísticos, abstratos e ao
tomismo aristotélico
134
que se encontram relacionados ao que Freire chama de
educação bancária ou que Dewey chama de tradicional (PETRUZZI, 1999).
Outros sinais de influência de Dewey sobre Freire podem ser citados como: a
noção de desvelamento, em oposição à exposição; a crítica a valores
estabelecidos e tradicionais que se observa na ênfase de ambos na relação
crítica aos valores culturais estabelecidos; o “pensamento crítico” de Dewey e a
“consciência crítica” de Freire; a adesão ao conceito ocidental de democracia,
principalmente em sua vertente participativa e representativa; a natureza não-
representacional do conhecimento, não abstrata, mas construída e vivida em
sociedade, que de novo os aproxima na concepção de educação e liberdade;
que tais representações abstratas apontam para o individualismo e
desumanizam o indivíduo ao desconectá-lo do todo social e inseri-lo na
máquina do sistema. Outra forte aproximação é a concepção de que cada
geração deve re-inventar-se, re-fazer-se:
Para Dewey e Freire, em uma visão não representacional da educação, não
existem existências antecedentes, nem valores absolutos que estejam fora
das contingências da existência, nem qualidades essenciais, propriedades,
totalidades, racionalidades, permanências, verdades, conceitos valorizados
de bem ou de substâncias estáticas, nem “funções ulteriores” ou
“propriedades originais” as quais possam ser reificadas dentro de um
conceito de “Ser real fundamental” (PETRUZZI, 1999, p.110).
134
Para melhor compreensão ler SAMPAIO, C.; SANTOS, M. e MESQUIDA, P. Do conceito
de educação
à educação no neoliberalismo Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 3, n.7, p.
174 , set./dez. 2002: “tomismo-aristotélico, materializado em prática pedagógica no “ratio
studiorum”, o plano de “estudos racionais”....constitui-se em um monólogo pedagógico fundado
na autoridade do mestre, detentor do saber, ... Ao discípulo (aquele que repete o que outro
diz), cabe somente a tarefa de apreender o conhecimento transmitido e, eventualmente, dar
resposta às questões apresentadas pela autoridade pedagógica (uma “pedagogia da
resposta”). A “resposta” final, no entanto, é prerrogativa do mestre, adulto acabado – potência
atualizada. Ele é o escultor que possui a idéia da obra. O aluno (aquele que é destituído de luz)
é visto como uma folha em branco sobre a qual será impresso o
carimbo do saber – um
elemento passivo que se con-formará pouco-a-pouco ao modelo que está na mente do
mestre…”.
160
Será exatamente desta proximidade entre Dewey e Freire, e
destes com a matriz do pensamento moderno que serve de fundamento à
concepção tecnológica de transformação da realidade, que autores como
Bowers (2005) e Esteva e Prakash (2004) partirão para construírem suas
críticas. É igualmente semelhante a resistência de Dewey e Freire no que diz
respeito à adaptação, à aceitação passiva e ao comportamento adaptativo -
que Freire reconhecia como um sinal de desumanização - mais uma vez
reforçando seu ponto de vista de separação entre ser humano e natureza,
sinônimos de sujeito e objeto, gente e coisa. Sua definição de Ser verdadeiro,
como aquele Ser que age e transforma o que está fora dele e com ele se
identifica, será também um ponto de crítica a ser relembrado pelos autores que
defendem uma posição de ecojustiça na educação (BOWERS, 2005, p.140,ss).
Admirador de Erich Fromm, a quem teve a oportunidade de
conhecer e se relacionar pessoalmente por intermédio de Ivan Illich (FREIRE,
2005; p.106), vai encontrar neste autor pontos de intersecção entre a
psicanálise e o marxismo que o próprio Fromm reconhecia na obra de Freire.
Com as relações estabelecidas no exílio, em especial por meio de Ivan Illich,
que foi o responsável por sua primeira publicação em inglês (Cayley, 1999) e
por parcerias interessantes como com Pierre Furter, e a partir do
desenvolvimento de um conceito de utopia mais próximo do de Ernst Bloch e
com forte influência do pensamento de Marx, Engels e Lênin, instalam-se e
fortalecem-se no pensamento freireano categorias epistemológicas como o
“inédito viável”, “situações limite” e “atos limite” (Freire, 2005, p.11 e 205).
Ainda no exílio, e talvez estimulado por este, sua concepção
reformista da educação foi embalada pelo clima de possibilidades do final dos
anos 60, e sua narrativa se apresenta plena de citações a heróis
revolucionários como o Che e Camilo Torres, de Cuba, à resistência vietnamita
e ao pensamento de Lênin e Mao. A passagem pelo CMI
135
, em Genebra, vai
de um lado suavizar o discurso, mas de outro servirá de balão de ensaios para
suas propostas em outros contextos, para a criação do IDAC
136
, como forma de
difundir e aprofundar as teses de sua pedagogia e para a contribuição ativa no
processo de gestação da Teologia da Libertação. Também é neste período,
135
Concílio Mundial de Igrejas.
136
Instituto de Ação Cultural.
161
mais africano que latino-americano, que ele vai se apropriar definitivamente
das idéias de Gramsci e que darão subsídio à sua militância política posterior
na volta ao Brasil, no engajamento com o Partido dos Trabalhadores, com o
Movimento dos Sem Terra, com a CNBB
137
. Ainda sobre a contribuição de
Gramsci ao pensamento freireano nesta fase, afirma SCOCUGLIA (1999, p.30)
que “Nos ‘escritos africanos’ a influência de Antonio Gramsci, também
influenciador do líder da guerrilha guineense Amílcar Cabral, pode ser notada
com freqüência.” De Cabral, Freire usa o ‘suicídio de classe’ como categoria.
Quando de sua volta ao Brasil, amplia-se a influência de
Gramsci, o comprometimento com os movimentos sociais do fim dos anos 80,
a militância, a renúncia ao economicismo ortodoxo do marxismo e a ampliação
para a inclusão de outros motores da história (FREIRE, 1992) para além da luta
de classes, e por fim sua caminhada final, após a viuvez, a depressão e o
reencontro do amor, mais universal, mais inclusivo, mais ecologicamente
preocupado com a sobrevivência da espécie humana e que marcaram a etapa
final da evolução deste pensamento, que se houvesse permanecido entre nós,
ampliaria ainda mais os horizontes em sua insistente valorização do diálogo,
talvez então incluindo os “pontos cegos” (Bowers, 2005), ressaltados por
alguns artigos fortemente críticos, direcionados muito mais aos seguidores de
Paulo Freire do que propriamente ao autor.
Ainda que breve e incompleta, esta breve trajetória serve para
ilustrar o amálgama de influências, que poderia ser aprofundada muito mais e
com dados ainda mais amplos e profundos do que os aqui citados de forma
limitada pela característica e limitações de espaço de uma dissertação.
Escolhi continuar esta análise, para que sirva tanto para a
compreensão de Freire quanto ao diálogo com os dois outros autores
pesquisados, focando na conscientização, termo tão mal compreendido e
usado nos anos 70 que levou Freire a desejar abandonar seu uso, ainda que o
desejasse re-visitar quando foi surpreendido pela morte (FREIRE,2000), para
então passar a desenhar o conceito de educador que emerge de sua obra.
Mesmo sabendo que este conceito de educador seja apresentado como um
conteúdo bem definido em seu último livro, creio que aquela edição foi mais um
137
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
162
pedaço registrado de sua andarilhagem, e ao invés de repetir e reproduzir o
que ali se escreve, preferi buscar nas obras anteriores, e nos demais artigos
pesquisados, o desenho do perfil daquele que educa, em complementação ao
que ali se aponta.
3.4.1 Conscientização
“Pois o homem é escravo daquilo que o domina.”
II Carta de Pedro, capítulo 2, verso 19
Conscientização é uma palavra chave, densa e tensa na obra
de Paulo Freire. Central para compreender sua pedagogia e tão fundamental
que a própria criação do IDAC tem como pano de fundo as compreensões
distorcidas do termo e o uso equivocado de seus conceitos, foi uma palavra
abandonada por muito tempo por Paulo Freire, e conscientemente por ele
evitada, principalmente devido à dificuldade de compreensão acadêmica sobre
sua significação. No entanto, Nita Freire afirma na Pedagogia da Indignação
que perto de seu falecimento Paulo Freire tinha a intenção de retomar o uso do
termo, tão central e relevante em sua filosofia de educação. Foi também este o
termo que mais suscitou debates em torno de sua obra nos anos 70 e que
servirá nesta dissertação como ponto de apoio na comparação com as
propostas de Illich no mesmo período.
Para compreender a conscientização, é necessário voltar às
concepções de homem, de mundo e o que se poderia chamar de “antropologia
filosófica” de Paulo Freire (Bowers, 2005, p. 134). Conforme o próprio Paulo
Freire afirma, o educador “assume uma postura ética de um mentor que
verdadeiramente crê na autonomia total, liberdade e no desenvolvimento
daqueles que ele mentoreia” (FREIRE, 1997, p. 75; itálicos adicionados). Sua
compreensão de ser humano inclui esta autonomia total no protagonismo da
mudança iniciada pela expressão pessoal, sumarizada em sua conhecida
declaração de que “falar a palavra verdadeira é transformar o mundo”. Do
ponto de vista antropológico esta posição leva à inferência de que esta
compreensão possa ser uma pressuposição de sua teoria, onde a autonomia
individual, mesmo que vivida em relação com outros sujeitos, esteja
163
diretamente relacionada a um ser humano individual completamente realizado,
o que ecoa o modelo de ser humano idealizado no Iluminismo.
Historicamente gerada no contexto e como resposta às
condições específicas do terceiro mundo, diante das enormes disparidades
econômicas e debaixo da repressão a toda forma de resistência ou
questionamento, a conscientização surge como meio de libertação e superação
de uma etapa em direção a um objetivo: O desenvolvimento econômico dentro
do modelo ocidental e que pressupõe um complexo cultural onde a vida, vivida
em plenitude, não pode ser constrangida por limites de qualquer espécie
(BOWERS, 2005, p. 137).
Outra pressuposição que subjaz o conceito de conscientização
é que o conhecimento considerado ‘verdadeiro’ é gerado em dependência da
reflexão crítica e da perspectiva individual, como afirma Freire:
A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de
apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a
realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica. (FREIRE, 1980, p. 26)
138
Esta perspectiva crítica e individual de Freire aponta para a
possibilidade de que este conceito se baseie em um conjunto de pressupostos
- ou esquema cognitivo moderno - que incluem: a centralidade do humano nas
relações com a natureza, onde este tem a ação de transformar a realidade
como a um objeto, enquanto resiste a se objetificar; a mudança como uma
série de etapas de superação, lineares e progressivas por natureza; a reflexão
crítica do individuo como a única forma legítima de constituição de instâncias
de julgamento ético e moral; as formas de produção próprias da modernidade,
que incluem as relações monetarizadas, industriais, urbanas, contratadas e
tecnológicas baseadas no conhecimento científico, que consideram pelo menos
parte dos mecanismos culturais tradicionais como necessariamente superáveis
em prol de formas posteriores de produção e relacionamento humano; o
pensamento de que a mudança é uma constante e um sinal certo de
138
FREIRE, P. Conscientização. teoria e prática da libertação: Uma introdução ao pensamento
de Paulo Freire. São Paulo: Editora MORAES, 1980.
164
progresso; que o próprio progresso é de natureza inevitável
139
, a
autodeterminação individual; a iniciativa autônoma, característica do modo de
produção industrial, como superior às restrições e continuidades, próprias dos
modos de produção e troca das populações tradicionais, compreendidas como
necessariamente superáveis; a justiça social entendida como a conquista de
uma participação igualitária no estilo de vida consumidor e dependente de
tecnologia, características do pensamento pré-ecológico contemporâneo.
Creio que estabelecer estas considerações a priori ajudarão no
processo de compreensão do que constitui, essencialmente, o conceito de
conscientização, identificando o mesmo desde o começo como uma construção
relacionada à cosmovisão específica do Iluminismo, com a intenção de apontar
para a especificidade da mesma dentro da lógica do modo de produção e do
pensamento ocidental moderno. Sem isso, repete-se o risco de tomar esta
proposta freireana como panacéia e única alternativa aplicável a todos os
contextos e populações de maneira generalizada, sem respeito à diversidade
epistemológica e de transmissão de conhecimento em diferentes espaços
culturais.
Conforme dito acima, para Paulo freire o suposto básico é a
mudança e a dessacralização do existente: “Se os homens, como seres que
atuam, continuam aderindo a um mundo ‘feito’, ver-se-ão submersos numa
nova obscuridade” (FREIRE, 1980, p. 27). A conscientização é tomar posse da
realidade, desmascarar os mitos e abandoná-los é o olhar mais crítico possível
sobre a realidade com a finalidade de mudá-la (FREIRE, 1980; p. 29).
Para que essa mudança se dê, o processo de pensamento
crítico aproxima o ser humano das situações limites, não com o sentido de
impedimento por vezes por ele percebido, mas de afrontamento da realidade,
que sempre apresenta um desafio ao qual os homens devem responder. Por
elas uma vez afrontado, este mesmo ser humano, dialeticamente mantendo a
situação limite diante de si, encontra no “inédito viável”, não simplesmente o
oposto da situação limite, mas a utopia a ser buscada através da mudança a
ser implementada. Para que se oportunize a conscientização, é necessário
139
Quanto a este tema sugiro a leitura dos livros e artigos de Immanuel Wallerstein, que
considera o progresso como possibilidade, porém não necessariamente uma inevitabilidade,
dentro da teoria do “sistema mundial”,por ele fundada. Em especial na obra “Decline of
American Power: The US in a chaotic world. New York: New Press, 2003, p. 87- 88.
165
estar concomitantemente presente a noção de inacabamento, primeira situação
limite com a qual o ser humano se defronta e que rompe com a noção, oriunda
do senso comum, de que sua existência seja algo dado e acabado. Ao
reconhecer-se inacabado, abre-se, para Freire, a possibilidade da
conscientização: “Em lugar de estranha, a conscientização é natural ao ser
que, inacabado, se sabe inacabado” (FREIRE, 1997, p. 59).
Um elemento central no processo de conscientização é o
‘descodificador’ (FREIRE, 1980, p. 31). O educador e a educadora assumem
esse papel no processo de desvelamento da realidade, e com este papel se
caracteriza a dependência da existência de um elemento de fora da realidade
que serve como catalisador do processo (HIGGINS, 1997, p. 572) de passar de
uma situação existencial, representada dinamicamente por imagens no método
de alfabetização por ele criado, à discussão de uma realidade concreta
apresentada como desafio a ser superado. Em suas próprias palavras: “O
Homem não pode participar ... na transformação da realidade, se não é
auxiliado a tomar consciência da realidade e de sua própria capacidade para
transformá-la” (FREIRE, 1980, p. 40 – itálico inserido).
O método básico da conscientização é a codificação, com o
uso de imagens. Os passos seguidos pela codificação podem ser resumidos
em: a) A projeção de uma imagem que representa uma situação existencial
vivida pela população, visando o distanciamento do objeto cognoscível; b) a
reflexão crítica conjunta de educadores e educandos em torno do objeto da
mediação; c) a descodificação que se dá mediante o relacionamento entre os
vários elementos da codificação e a situação real por eles vivenciada (FREIRE,
1980, p. 31). De acordo com a reação dos educandos à descodificação
encontram-se os temas geradores, que surgem da procura do pensamento e
da ação do homem na e diante de sua realidade, de onde nasce sua práxis
140
.
As reações, provocadas pelos temas geradores, podem ser,
segundo Freire (1980), de natureza estática, fatalista ou dinâmica. Os temas a
surgirem de cada reação são diversos e em particular o que chama a atenção
do autor é a persistência do silêncio como um “tema trágico”, mesmo assim um
140
Para melhor compreensão dos diversos termos utilizados na pedagogia freireana (como
práxis, inédito viável, situação limite, entre outros) e com o intuito de evitar redundâncias
desnecessárias no texto, recomendo a leitura do livro/glossário: Conceitos de Educação em
Paulo Freire. Vasconcelos, M.L e Brito, R.H. Editora Vozes, 2006.
166
tema gerador, que sugere o fatalismo e a submissão à situação limite. A
situação estática, e que tenho observado em minha experiência como sendo
aquela que freqüentemente dá lugar a reações idealizadas, a discursos e
descrições, tende a manter imóvel e distante a relação entre situação concreta
e representação abstrata. A reação fatalista, encara a realidade como dada,
imutável, determinada e portanto tende a produzir apatia, prescrições e
adaptações. Para Freire a única reação que permite a transformação é a
atitude dinâmica, crítica e questionadora, que ocorre em grupo e situada nas
condições objetivas. Cabe aqui chamar a atenção, como o faz RASMUSSEN
(2005), que esta maneira de abordar o processo não leva em consideração
outras formas de lidar com a realidade, especificamente na assunção de que o
silêncio é mau sinal ou de que a conservação de estruturas seja um impedidor,
principalmente em culturas e populações onde o silêncio é exatamente um
passo fundamental no processo de reflexão e onde a conservação da
sacralidade de espaços e assuntos está diretamente relacionada a uma longa
tradição de convivência e sustentabilidade ambiental e social e à própria
subsistência. Isto é particularmente relevante no trato com populações
tradicionais que não possuam as ferramentas de competitividade do modo de
pensar ocidental, nem de defesa diante das circunstâncias e disponibilidades
da sociedade ocidental, relacionadas pelo autor citado, a situações específicas
de desespero, abuso de álcool e perda de autonomia, inclusive alimentar.
Outro tema importante no processo de conscientização de
Freire é a criação de cultura. A cultura para ele é oposta à natureza no sentido
em que esta é um dado enquanto aquela “é a contribuição que o homem faz ao
dado, à natureza” (FREIRE, 1980; p. 38), o que reforça minha impressão de
separação entre sujeito e objeto, homem e natureza na cosmovisão freireana.
Adicionalmente a cultura se relaciona à criação e crítica permanentes que se
tornam parte do indivíduo:
A cultura... é uma aquisição crítica e criadora, e não uma justaposição de
informações armazenadas na inteligência ou na memória e não
‘incorporadas’ no ser total e na vida plena do homem... é lícito dizer que o
homem se cultiva e cria cultura no ato de estabelecer relações, no ato de
responder aos desafios que lhe apresenta a natureza, como também, ao
mesmo tempo, de criticar, de incorporar a seu próprio ser e de traduzir por
uma ação criadora a aquisição da experiência humana feita pelos homens
167
que o rodeiam ou que o precederam (FREIRE, 1980, p. 38 – itálicos
adicionados).
É interessante notar aqui que mesmo a cultura precedente,
para ser validada por Freire, precisa passar pela crítica e pela re-tradução do
indivíduo. Mais uma vez esta maneira de construir o conceito reforça a
impressão de que a tarefa está sempre no indivíduo, renovada a cada geração
e que, por esta razão, o protagonismo está com as gerações mais novas, que
possuem o direito e o dever de reinventar o conhecido e antecedente sob pena
de, em não o fazendo, perder legitimidade. Esta posição reproduz mais uma
vez o pensamento moderno que, segundo PONDÉ (2007), sempre olha o
antecedente como superável, necessariamente re-interpretável e substituível.
Mais uma vez se pode observar os pressupostos do Iluminismo e do modo de
produção moderno como base do pensamento freireano, principalmente na
rejeição a priori de qualquer armazenamento da inteligência coletiva
precedente ou na compulsória necessidade de transformação da natureza, em
oposição a conservá-la, como ele mesmo afirma:
É preciso que a educação esteja – em seu conteúdo, em seus programas e
em seus métodos – adaptada ao fim que persegue: permitir ao homem
chegar a ser sujeito, constituir-se como pessoa, transformar o mundo,
estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a
cultura e a história... se queremos que o homem...seja reconhecido como
sujeito... que tome consciência de seu poder de transformar a natureza...
seja criador de cultura... que descruzando os braços renuncie à expectativa
e exija a intervenção (FREIRE, 1980 p. 39-40).
Por fim, reforçando a relação do homem como sujeito e da
natureza como objeto Freire afirma: “as relações entre os homens, que não
podem ser de dominação e de transformação como as relações do homem
com a natureza, mas relações entre sujeitos” (FREIRE, 1980, p. 53 – itálico
inserido). Uma epistemologia que afirme a natureza como possuidora de uma
consciência, como é o caso na epistemologia da maioria das populações
tradicionais, que com ela se relacione na dimensão do sagrado preservador,
que nutra (VASQUEZ, 2005) ao invés de dominar a natureza, que assuma a
tradição como fonte de conhecimento e que resista a compulsoriedade da
168
mudança, como forma de subsistência, é claramente considerada uma situação
de opressão para Freire. Esta posição, absolutamente defensável na
perspectiva em que foi gestada, das populações marginalizadas urbanas do
assim chamado Terceiro Mundo e dos camponeses mantidos em estado de
mais valia absoluta no confronto com latifundiários ou industriais, dentro da
situação específica, brasileira e latino americana, que catalisa a concepção da
pedagogia do oprimido, carrega, potencialmente, o risco de uma
contraprodutividade paradoxal como a define Illich e está sujeita a críticas,
mormente quando aplicada e generalizada, de forma absoluta, em outros
contextos e situações, levando em consideração a atual consciência da
necessidade de preservação ambiental, cultural e social das populações que
tem obtido sucesso no uso e convivência com o planeta por séculos.
Apesar de absolutamente consciente da relação entre a
modernidade e a dependência das populações por ela atingidas, o
desenvolvimento aparece estranhamente dissociado da modernidade para
Freire, como se dela não fosse fruto e principal mito mas fosse parte de uma
linearidade histórica, como afirma: “o conceito de desenvolvimento está ligado
ao processo de libertação das sociedades dependentes, enquanto a ação
modernizante caracteriza a ação concreta de dependência” (FREIRE, 1980, p.
62). Ainda de forma mais específica a conscientização, que tem por fim a
liberdade, imbrica esta com o desenvolvimento como objetivo. É absolutamente
compreensível esta relação se recordarmos mais uma vez da formação e do
ambiente onde se constrói o pensamento freireano, desde as reflexões do
ISEB, passando pela concepção de modo de produção industrial, o
economicismo marxista e o contexto da segunda metade do século XX.
Como conclusão desta breve revisão do processo e da
finalidade da conscientização, no que diz respeito ao que poderia chamar de
uma anatomia da estrutura, apesar das pressuposições aqui apontadas, Paulo
Freire tem muito claro que, no que diz respeito à estrutura da sociedade,
principalmente a moderna, a finalidade de seu método não é, a princípio, um
mecanismo de ‘inclusão’, que pressupõe ‘excluídos’ a serem missionariamente
salvos de sua não pertença ao mundo de quem os exclui. Como ele mesmo
afirma, “a solução de seu problema não é converterem-se em ‘seres no interior
de’, mas em homens que se libertam, porque não são homens à margem da
169
estrutura, mas oprimidos no interior desta mesma estrutura” (FREIRE, 1980, p.
75). Está claro para Freire que “não há outro caminho para a humanização... a
não ser uma autêntica transformação da estrutura desumanizante” (idem).
Mesmo que o abandono do termo e o uso paradoxal que se possa fazer da
proposta conscientizadora de Paulo Freire em diferentes contextos, é fácil
perceber que, para o autor, segue evidente a necessidade de não
conformação, de questionamento e de ação para a transformação da estrutura
da sociedade, e não somente para seu melhor funcionamento ou
cosmeticização. Mais uma vez, mesmo que sujeita a questionamentos por
alguns autores posteriores, como demonstrado aqui, evidencia-se a coerência
entre a proposta e o autor, ambos honesta e lealmente comprometidos com a
superação da dependência, da opressão e do processo de plena humanização
de homens e mulheres.
3.4.2 O educador em Paulo Freire
“Creio, mais do que creio estou convencido, de que
nunca necessitamos tanto de posições radicais
quanto hoje”
Paulo Freire, em Pedagogia da Esperança, pág. 51
Paulo Freire escreveu para fora da escola a maior parte das
vezes, e àqueles que cumpriam fora do ambiente escolar o papel de mentorear
a outros, prioritariamente adultos, no processo de aquisição de saberes. Seus
escritos passaram a enfocar e incluir a educação escolar e formal de modo
mais freqüente, e as crianças de forma mais intensa, após sua passagem pela
Secretaria de Educação do município de São Paulo na administração Luiza
Erundina.
Mesmo assim, sua obra posterior continuou apresentando um
perfil de educador mais abrangente que o que emerge da restrição do espaço
escolar e da atuação docente licenciada. Os círculos de cultura, a educação
popular, a educação nos movimentos camponeses e operários, os movimentos
populares, os partidos e as organizações não-governamentais, com
educadores e educadoras - ou mentores e mentoras, palavras que se adequam
mais propriamente ao tipo de relação de aprendizagem descrita por ele para
definir os que estão envolvidos na relação de ensinar e aprender – licenciados
170
ou não, voluntários, educadores populares, foram, de forma privilegiada, os
espaços e pessoas de onde e para onde emergem suas propostas. Sua obra
descreve um leque de agentes educacionais mais amplo do que aquele
normalmente ligado à escola - na qual ele acolhia como sujeitos da educação
todo pessoal de apoio, da faxina à segurança (FREIRE, 2005, p. 23) - ainda
que a esta englobe e considere como parte do processo de criação de cultura.
O conjunto ampliado de agentes educacionais, tão ao contrário
da presente pressão por especialização, licenciamento, hiperprofissionalização
e exclusividade dos profissionais da educação - que chega, como em caso
recente de decisão do Supremo Tribunal de Justiça
141
a atribuir aos pais a
incompetência em educar por não serem especialistas profissionais em
educação formal - tem em Paulo Freire um crítico muito específico
E não se diga, com ranço aristocrático e elitista, que alunos, pais de alunos,
mães de alunos, vigias, zeladores, cozinheiras, nada tem a ver com isto.
Que a questão dos conteúdos programáticos é de pura alçada ou
competência de especialistas que se formaram para o desenvolvimento
desta tarefa. Este discurso é irmão gêmeo de um outro – o que proclama
que analfabeto não sabe votar (Freire, 2005, p. 110 e 111).
Concluindo com as palavras: “Critiquei e continuo criticando
aquele tipo de relação educador-educando em que o educador se considera o
exclusivo educador do educando” (FREIRE, 2005, p. 119).
Quem é esta pessoa que ele chama por vezes de professor e
professora, outras de mentor, ainda outras de “descodificador” (FREIRE,1980,
p.31;FREIRE, 2005, p. 11), e de educador e educadora? Seria redundante
ressaltar o perfil de facilitador e facilitadora do processo de construção do
conhecimento que surge de sua obra. A compreensão freireana não deixa a
menor dúvida quanto a que quem cumpre este papel falha ao cumpri-lo a partir
de posições autoritárias e bancárias, como possuidor de uma saber professado
sobre um ser carente de luz, próprio do tomismo aristotélico que Paulo freire
tão veementemente rejeitava. Quem facilita, facilita em serviço, amando e
apoiando para a liberdade, nunca para gerar a transferência de domínio e
opressão de um senhor a outro.
141
MANDADO DE SEGURANÇA Nº 7.407 - DF (2001/0022843-7), pág. 4 e 5.
171
A proposta nesta seção será a de um passeio cronológico por
sua obra, da Pedagogia do Oprimido à Pedagogia da Autonomia, e a descrição
mais detalhada do perfil dos que se dedicam a aprender enquanto ensinam e
ensinar enquanto aprendem.
A finalidade do processo educacional para Freire é a liberdade,
e esta liberdade é aquela que chega a “libertar-se a si e aos opressores”
(FREIRE, 1987, p. 10) e não somente na transformação do servo de ontem em
senhor do amanhã. O primeiro a libertar-se neste processo, como foi seu caso
pessoal, é o educador. Paulo Freire não somente propôs esta libertação como
um ideal, ele viveu a experiência de libertar-se, e não apenas uma vez. Sua
libertação começa no SESI (FREIRE, 2005, p. 20 e ss.), se estende no contato
com os camponeses no Chile, e com as populações libertárias nas favelas de
Santiago sob a influência do MIR
142
.
O respeito às diferenças culturais, o respeito ao contexto a que se chega, a
crítica à “invasão cultural”, à sectarização e a defesa da radicalidade de que
falo na Pedagogia do oprimido, tudo isso é algo que, tendo começado a ser
experimentado anos antes em mim no Brasil e cujo saber trouxera comigo
para o exílio, na memória de meu próprio corpo, foi intensamente,
rigorosamente vivido por mim nos meus anos de Chile (FREIRE, 2005, p.
44).
Depois na África, aprendendo a andar literalmente de mão
dadas com um colega e se dando conta, constrangido, de seu machismo latino
americano (Freire, 1997), ou no confronto com as feministas norte-americanas
que lhe fizeram cuidar da questão de gênero em seus textos iniciais, onde ser
humano sempre aparecia ligado à palavra homem, situação que depois desta
libertação nunca mais se repetiu, segundo ele mesmo, inclusive com o
sacrifício estético do texto se necessário. Na volta para o Brasil, a inserção na
vida pública como administrador, saindo da posição de “pedra” para a de
“vidraça”, a atividade acadêmica regular em universidades brasileiras e as
exigências dos órgãos reguladores, com burocracias e ritos por vezes
reprodutores da mais valia intelectual e da sobre-exploração do trabalho
acadêmico . Em cada fase ele viveu o que propôs e, fosse-lhe dada vida, tenho
a impressão que estaria ai a se reinventar e exemplificar o processo
142
Movimiento de Izquierda Revolucionária.
172
permanente de libertação daquele que se propõe a educar para a liberdade se
libertando.
Para que não seja necessário definir posteriormente quem é o
educador no sentido oposto ao que defende Freire, creio ser interessante aqui,
a título de economizar redundâncias, citar como Freire entende o oposto do
perfil de educador e educadora o qual defende:
a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;
b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem:
c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;
d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam
docilmente;
e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;
f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que
seguem a prescrição:
g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que
atuam, na atuação do educador;
h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais
ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele;
i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional,
que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem
adaptar-se às determinações daquele;
j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo: os educandos, meros
objetos. (Freire, 1987, p. 59).
A primeira marca do educador na literatura de Freire é a
solidariedade, que exige “de quem se solidariza que ‘assuma’ a situação de
com quem se solidarizou”, uma “atitude radical” que “deixa de ser um ato
piegas e sentimental e passa a ser um ato de amor” (FREIRE, 1987, p. 36).
Este é um ato que assume a subjetividade, ou seja a ação de sujeitos,
enquanto rejeita fortemente o subjetivismo e o psicologismo (FREIRE, 1987. p.
37; FREIRE, FURTER e ILLICH, 1974, p. 139) e se manifesta com
objetividade, a partir das condições materiais existentes, na “inversão da
práxis”, tarefa feita para homens e mulheres por inteiro e não para
representantes pretensamente neutros de estruturas como governos e
Estados. Quem se solidariza o faz como sujeito e não como agente da
estrutura. O que pode ajudar a estabelecer e a permitir a emersão dessa
característica é a consciência do sujeito solidário e a autopercepção com a qual
se coloca na tarefa de educar, em nome de quem, sob interesse de quem e
para quê.
173
Esta solidariedade de quem educa não pode ser confundida
com a generosidade humanitarista do opressor:
Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos
opressores, egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos
objetos de seu humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É o
instrumento de desumanização (FREIRE, 1987, p. 41
).
Neste sentido, não podendo ser a ação de uma educação
libertadora a ação dos opressores, a ação última de quem liberta a quem é dos
que se encontram oprimidos que “libertando-se podem libertar os opressores”
(FREIRE, 1987, p. 43). Esta libertação paradoxalmente ocorre quando o
educador abandona a atitude de enxergar-se e apresentar-se como ‘libertador’,
que considera o outro carente e inferior, e portanto necessitado de sua ajuda, e
passa a buscar viver uma situação de comunhão com quem é educado. “Dizer-
se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a
quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso
equívoco” (Freire, 1987, p. 48).
Esta comunhão se traduz no diálogo, na palavra dividida. Esta
capacidade dialogal, presente da primeira à última obra do autor, é o oposto
exato do depósito, ato autoritário mesmo quando sob o manto da libertação,
traduzida e exercida então como mera “propaganda libertadora”. Como diz:
“Não está no mero ato de ‘depositar’ a crença da liberdade nos oprimidos,
pensando conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles” (Freire, p.
54). Este diálogo coloca quem educa e é educado como sujeitos no mesmo ato
de liberdade, “co-intencionados à realidade”.
A narrativa unilateral é profundamente criticada por Freire, que
denuncia esta como sendo a principal característica da educação bancária,
centrada no educador, à qual define, fazendo eco com Pichon Rivière
143
, como
a educação que “se torna um ato de depositar, em que os educados são os
depositários e o educador o depositante” (Freire, 1987, p. 58).
Seria justo dizer, a partir dos escritos freireanos, que onde não
há diálogo, não há ação cultural ou mesmo aprendizagem, somente depósito
143
Teoria dos 3 D’s.
174
de conteúdos. Neste sentido, se a escola, a escola que se observa na prática
generalizada do contexto brasileiro e não a idealizada em tratados ou prescrita
em normas, é no geral monológica, mesmo diante de honrosas exceções, é de
se perguntar se o que ocorre e se produz na escola expressa a geração de
cultura ou real aprendizagem.
A condição fundamental para que ocorra o diálogo é o amor,
uma vez que para Freire “não há diálogo... se não há um profundo amor ao
mundo e aos homens” (ib., pág. 79). Amor para Freire caracterizado por ser
construído com os homens e com o mundo, sem a pieguice do romantismo dos
poderosos, mas ao contrário, em atitude de humildade, uma vez que a
pronúncia do mundo...não pode ser um ato arrogante”. Esse amor e esta
humildade são um ato de (FREIRE, 1987, p. 80-82). Fé nos homens, um
dado a priori do diálogo, que é o substrato sobre o qual se constrói a confiança
necessária à continuidade do processo dialógico da aquisição e construção do
saber.
O diálogo demanda, ainda segundo Freire, duas outras
características do educador e da educadora: A esperança, e o que ele chama
de pensar verdadeiro, como sinonímia de pensar crítico. A primeira fundada
na incompletude do homem e da mulher e no ‘porfazer-se’ de ambos e na luta
para o fazer-se, e a segunda na imersão na realidade objetiva, nas condições
históricas e nas limitações que afrontam e demandam por soluções e
alternativas. E estas construídas sem cair na tentação do salvacionismo a ser
levado missionariamente por paladinos da liberdade, mas como descoberta
comum e ação cultural interrelacionalmente construída.
A dialogicidade se dá entre companheiros, e este tipo de
relação companheira serve como plataforma para uma crítica à educação,
conforme concebida na sociedade burguesa, como instrumento de adaptação e
domesticação:
Os homens nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já são
seres passivos, cabe à educação apassi-los mais ainda e adaptá-los ao
mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais
“educados”, porque adequados ao mundo (FREIRE, 1987, p. 63).
175
E ainda seguindo a mesma posição crítica à educação, quando
refletindo sobre a necessidade da ética no diálogo diz: “O que me move a ser
ético é saber que, sendo a educação, por sua própria natureza, diretiva e
política, eu devo, sem jamais negar meu sonho ou minha utopia aos
educandos, respeitá-los.” (FREIRE, 2005, p.79). E “qualquer que seja a
qualidade da prática educativa, autoritária ou democrática, ela é sempre
diretiva.” (idem, p. 79).
A relação de companheirismo, que promove o diálogo redutor
da diretividade, ocorre mediatizada pela realidade, na intercomunicação e é de
natureza biófila, engendrando a plenitude da experiência humana, que cresce,
que não responde mecanicamente, que admira o orgânico e privilegia o ser
sobre o ter - de maneira especialmente não romântica, na expressão de que
nunca são “meus”
144
os estudantes com o sentido de posse e controle. Esta
expressão biófila se dá no mundo, sem situações herméticas, expansivamente
liberada para atuar no mundo, livre do controle e do domínio de um sobre o
outro, e por esta razão é considerada como ação revolucionária. Minha
percepção é que esta ação revolucionária de Freire, para de fato o ser,
demanda não só garantir ao oprimido “o direito de dizer sua palavra, de pensar
certo” (Freire, 1980, p. 123), mas ir além ao dar-lhes o direito de considerar
certa e legítima sua forma de pensar, expressa em formas de saber, sintaxe e
compreensão, diversos daquela do pensamento científico (FREIRE, 2005, p.
27).
A conclusão a que chega Freire me faz pensar em que o uso
da separação entre educador e educando, conquanto possa existir com a
finalidade instrumental, se mostra inócua quando observada a partir da máxima
freireana “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo”. No processo
de aquisição, transmissão e produção de saber e cultura, estamos todos
cumprindo nossa programação para aprender (JACOB, 1991), e aprender uns
com os outros, tanto na intencionalidade de educar quanto na espontaneidade
das relações, e ensinar uns aos outros seja com a finalidade de transmitir algo,
144
Quanto a este aspecto, o mito da propriedade privada, de coisas ou de pessoas
objetificadas, analisado na seção de categorias epistemológicas, está claro no pensamento de
Freire que diz: “o mito da propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da
pessoa humana, desde, porém, que as pessoas humanas sejam apenas os opressores”
(Freire, 1987, p. 137).
176
seja pela experiência das já citadas “diferenças que fazem a diferença”,
expressas nas reações, alertas e atitudes de quem, supostamente, estaria na
posição de receber a instrução. Para Freire
Esse processo não se dá automaticamente com uma mudança na política
do sistema. A modificação educador-educando só pode aparecer com a
superação dessas contradições básicas. Nesse momento o educador deixa
de ser educador exclusivo do educando, para ser também educando. E
educando deixa de ser educando exclusivo do educador, para ser o
educador do educador. Então já não há mais um educador e um educando
enquanto contraditórios. Há, agora, uma síntese entre o educador-educando
e o educando-educador (Freire, apud AZEVEDO e RODRIGUES, 1989, p.
102).
Outra característica fundamental do educador e da educadora
para Freire é a capacidade de mudar, ou re-inventar-se, não como técnica mas
baseado na honesta ‘ad-miração’ do seu educando, a quem observa e a quem
observando, conhece e conhecendo tem a oportunidade de compreender, e
assim ganhar outra compreensão de mundo, na verdade dele aprendendo no
ato de ensinar admirando (Freire, 2005, p. 69). Esta atitude de contemplação e
ação, revela mais uma vez a tradição judaico-cristã presente na obra freireana,
que ao contrário das posições dicotomizadas greco-romanas - que por vezes
parecem surgir de sua obra na relação homem-natureza e que entendem
homem-mundo como entes separados - pensam “a si mesmos e ao mundo,
simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da ação” (Freire, 2005, p.72),
caracterizando a ação de educar, como ato feito não sobre o outro, mas com o
outro, e que reconhece neste outro a capacidade de influir e interferir.
Sendo assim, a partir da concepção de que a “educação é um
quefazer permanente”, para o educador é um refazer-se permanente, que
reconhece que “para ser tem que estar sendo” ( Freire, 2005, p.73). “Ensinar e
aprender são assim momentos de um processo maior – o de conhecer, que
implica em re-conhecer” (FREIRE, 2005, p. 47), neste sentido o educador
assume a influência que exerce enquanto se abre à influência que recebe.
A partir destas afirmações, e incluída ai a amplitude de agentes
reconhecidos como educadores e educadoras, outro aspecto apriorístico no
perfil de quem mentoreia a aprendizagem do outro é a competência (FREIRE,
2001, p. 259; 2005, p. 83). A competência se desdobra como influência em
disciplina assumida pelo outro que emula a disciplina que reconhece no valor
testemunhal do mestre que leva a sério sua prática docente, que estuda o que
177
ensina, que se aprofunda e atualiza seu saber, uma vez que “ninguém ensina o
que não sabe” (FREIRE, 2005, p.131) e “a incompetência profissional
desqualifica a autoridade do professor” (FREIRE, 1997, p.102). Neste sentido,
e somente neste, “o diálogo entre professoras e professores e alunos e alunas
não os torna iguais, mas marca a posição democrática entre eles e elas”
(FREIRE, 2005, p.117).
Ao contrário da ênfase em técnicas e métodos de ensino, em
aceleradores de aprendizagem e da busca de resultados, o educador freireano
é encorajado a aprofundar-se no conhecimento sociológico e na pesquisa
epistemológica como instrumentos de sua adequação à tarefa a que se
propõe. Na concepção freireana, a tarefa de formar e capacitar fica reduzida ao
mero treinamento ser for executada “sem uma compreensão de nós mesmos
como seres históricos, políticos, sociais e culturais” e se for deficiente na
“compreensão de como a sociedade funciona” (Freire, 2005, p. 134). Por isso,
para além da preocupação com o conteúdo e com as técnicas empregadas
para torná-lo acessível e reproduzível – como no caso da febre pelas
ferramentas virtuais para o ensino – é mister ao educador “levar a sério
problemas como: que conteúdos ensinar, a favor de que ensiná-los, a favor de
quem, contra que, contra quem” para o benefício e o lucro de quem (FREIRE,
2005, p. 135). A razão de ser da necessidade desta consciência social,
contextual e coletiva está em que somente se supera o cotidiano que aliena
através da práxis histórica, pessoal, que é em si mesma, social e não individual
(FREIRE, 1974, p. 136). Esta negação do individualismo não é feita ai
idealísticamente, mas por saber que, concreta e objetivamente, “o ‘eu existo’
não precede ao ‘nós existimos”; se constitui nele” (FREIRE, 1974, p.137) e que
esse nós é um nós social, histórico e temporal.
Ao fazer tais questionamentos, o educador e a educadora
assumem outra característica central do perfil desenhado por Freire, a
ausência de neutralidade. Um mito presente, se não na fala pelo menos na
atitude mouca dos que apresentam uma suposta inocência nas atitudes que
tomam, nas propostas pedagógicas, nos instrumentos e mídias de que lançam
mão, é desafiado e assumido como uma impossibilidade por Freire
178
É por isto que devo lutar sem cansaço. ... pelo direito que você, que me lê,
professora ou aluna, tem de ser você mesma e nunca, jamais, lutar por essa
coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade. Que é
mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas
hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça?
“Lavar as mãos” em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é
optar por ele . Como posso ser neutro diante da situação, não importa qual
seja ela, em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de
espoliação e descaso? (FREIRE, 1997, p.126).
Enquanto factível, a tarefa de educar, persiste e continua
fundada em seu inacabamento, quase ontológico, razão de ser da esperança e
da possibilidade; nunca porém terminada ou acabada, sempre prenhe do novo,
ainda que nem sempre de novidades. Para que assim seja, cabe ao educador
ter em mente sua própria incompletude, para que se lembre que para que
“quem sabe possa ensinar a quem não sabe é preciso que, primeiro, quem
sabe saiba que não sabe tudo” assim como cabe a quem se ensina que “saiba
que não ignora tudo” (Freire, 2005, p. 188). Essa condição é tão apriorística
para Freire que, por fim, chega a afirmar que “Sem esse saber dialético em
torno do saber e da ignorância é impossível a quem sabe, numa perspectiva
progressista, democrática, ensinar a quem não sabe” (Freire, 2005, p. 188).
Apesar da crítica freireana à educação burguesa, ele seguiu
crendo – o que poderia até certo ponto ser considerado como um sinal de
ingenuidade - que haveria uma outra educação, de outra natureza, dentro do
sistema,
se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode.
Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também
simplesmente reprodutora da ideologia dominante. O que quero dizer é que
a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da
sociedade, porque assim eu queira, nem tampouco é a perpetuação do
‘status quo” porque o dominante o decrete. O educador e a educadora
críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do
seminário que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar
que é possível mudar. E isto reforça nele ou nela a importância de sua
tarefa político-pedagógica (FREIRE, 1997, p.126).
Esta maneira de perceber as possibilidades de uma educação
de natureza crítica e democrática, forma com outra, de natureza passiva e
autoritária, uma unidade dialética da qual se poderia afirmar que fosse
179
sempre o esforço de clarificação do concreto, no qual os educadores-
educandos, e educandos-educadores, se unem através de sua presença
atuante. É sempre práxis desmistificadora que, ao desvelar a realidade da
consciência, ajuda o descobrimento da consciência da realidade (FREIRE,
1974, p.162).
A questão do desvelamento da realidade é o que se poderia
definir como síntese hermenêutica da liberdade freireana. O educador freireano
entende que a liberdade pode ser conquistada a partir das condições
circundantes desde que ambos, educadores e educandos, participem do tipo
de hermenêutica proposto por uma compreensão crítica que desvela o que
subjaz seu “reino original de verdades” (Petruzzi, 1999, p.110). A crítica
permanente, inclusive do que se constrói criticamente, esta relacionada à
incompletude e ao caráter perfectível da realidade e à negação de seu status
de imutável.
Tal capacidade crítica está diretamente relacionada, por
extensão, a outra característica do educador e da educadora para Freire: a
autocrítica. Sendo assim, não só a realidade tem seu sentido de
inacabamento e perfectibilidade, mas acima de tudo o ser humano igualmente
possui tais características. Sem estas duas propriedades não há como atribuir
ao ser humano duas outras impossibilidades: a sabedoria absoluta e a
ignorância absoluta. É a autocrítica que garante a quem educa a possibilidade
de não atribuir a si a primeira e ao outro a segunda, nem vice-versa.
Considerando a condição falível decorrente como própria do ser humano e
reconhecendo o saber do outro, abre-se a possibilidade para, por exemplo,
pedir perdão e manter a coerência, voltar a um ponto e reconsiderá-lo, sem no
entanto perder autoridade.
A autoridade do educador é um atributo fundamental para
Freire. No entanto, esta se constrói paradoxalmente das capacidades acima
descritas de amor, sacrifício, lealdade e compromisso. Sendo assim construída,
poder-se-ia pensar na autoridade do educador como sendo a idealização ou,
em certos casos, o suicídio docente.
A construção da autoridade para Freire se dá, de forma
interessante, a partir de uma reflexão de caráter teológico. Sem autoridade
180
reconhecida, se torna comprometida a aprendizagem. Imposta, esta tende a se
tornar mero treinamento comportamental. Ausente, perde-se o rigor necessário
e a possibilidade de aprofundamento e aquisição de conhecimentos. Para
sugerir o modo de construção da autoridade, Paulo Freire propõe uma
metáfora pascal como forma de conquista da autoridade indispensável ao
exercício do papel de educador e educadora com o povo
A indispensável páscoa, que muda sua consciência, tem que ser
existenciada. A páscoa verdadeira não é verbalização comemorativa, e sim
práxis, compromisso histórico. A páscoa como verbalização é morte sem
ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica a páscoa é morrer para
viver. Mas, tal forma de experimentar-se a páscoa, eminentemente biófila,
não chega através da visão burguesa do mundo, essencialmente necrófila,
e por isto mesmo estática... A ânsia de possessão, que é uma das
conotações da forma necrófila de união com o mundo, rechaça o significado
mais profundo da Travessia. Não posso fazer a Travessia se levo em
minhas mãos, como objetos de minha possessão, a alma e o corpo
destroçados do oprimidos. Só posso empreender a Travessia junto com
eles, para que possamos também juntos, renascer como homens e
mulheres em processo de libertação (Freire, 1974, p. 121-122).
Ao renascer junto àquele que se liberta, a educadora e o
educador ganham a autoridade que lhes permite construir o diálogo e o saber.
Para que não reste dúvida, esta perspectiva de autoridade é a mesma utilizada
por Jesus, que claramente aqui serve de inspiração a Paulo Freire como
cordeiro pascal. Foi oferecendo-se no sacrifício pascal em favor de outros que
se abriu a porta à ressurreição, na história, no tempo e no espaço, não mais
como servo sofredor, mas como “CHRISTUS VICTOR”, a quem, pelo caminho
árduo da toalha que lava os pés e do sacrifício que traz a paz, se atribui toda
autoridade.
Esta metáfora teológica me permite remeter a exemplos
históricos recentes e bem sucedidos como Ghandi e Mandela, e demonstra a
armadilha na qual se pode cair diuturnamente ao não compreender, com estes
e com outros como Illich e Tolstoi, que o senso comum de auto-estima
fundamentada na defesa de direitos próprios e na busca de espaço pela força é
infinitamente menos competente em processos de libertação e humanização, e
seriam passíveis de serem realizados na vida cotidiana, no microcosmos
181
silencioso das relações comuns de ensino e aprendizagem, na escola ou, ainda
preferencialmente, fora dela.
Desta forma construída, a autoridade gera como subproduto a
segurança na docência, fruto da autenticidade pela qual foi gerada
Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o
discurso sobre sua existência, sobre si mesma. Não precisa perguntar a
ninguém, certa de sua legitimidade, se “sabe com quem está falando?”
Segura de si, ela o é por que tem autoridade, porque a exerce com
indiscutível sabedoria (FREIRE, 1997, p.102).
O processo no qual está envolvido o educador não é um
processo pragmático (FREIRE,1997, p.159), preocupado com a rapidez e
alcance numérico que satisfaçam às demandas do mercado, que amplie as
relações não presenciais em prol da produtividade. Sobre este Freire afirma: “A
mim não me cabe falar deles, os saberes necessários ao educador ‘pragmático’
neoliberal mas, denunciar sua atividade anti-humanista” (FREIRE, 1997, p.
160).
Freire aponta, em seu capítulo final de sua última obra
publicada em vida, para o oposto desse quadro. Querer bem, afetivamente e
relacionalmente, a quem se educa, sem artifícios impessoais e de maneira
direta é a característica final do educador que gostaria de destacar.
Freire afirma:
Na verdade, preciso descartar como falsa a separação radical entre
seriedade docente e afetividade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista
democrático, que serei tão melhor professor quanto mais severo, mais frio,
mais distante e "cinzento" me ponha nas minhas relações com os alunos,
no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se
acha excluída da cognoscibilidade (FREIRE, 1997, p. 160).
Se algo torna humana a aprendizagem, e a faz um processo
fundamental e diferencialmente humanizador, este algo é o bem-querer. É a
relação que inclui a admiração, a troca, o querer ouvir a voz e ver o rosto, que
explica o inexplicável sacrifício e a adaptação a condições adversas, que faz de
quem lidera servo e que cativa em quem é servido a lealdade, que estabelece
no encontro o momento de maior prazer e na ausência provoca a reflexão
calcada na memória de quem se tem saudade. Se algo estabelece a relação de
182
aprendizagem, permite de forma mais efetiva e eficiente a transmissão, síntese
e geração de novos conhecimentos, esse algo é a amizade, a forma mais
prática de amor.
De forma interessante, esta é a mesma característica final
ressaltada por Tolstoi em sua pedagogia como fundamental e mais importante,
e por Ivan Illich, na sua afirmação da amizade como fator mais facilitador ao
processo humano de aprender. De forma similar, ao fim de suas vidas, numa
afirmação do que formaria a base mais fundamental da aprendizagem, os três
afirmaram a mesma e mais essencial das essencialidades: o amor traduzido
em amizade e bem querer. Eu não temeria em afirmar que, pelo menos nesse
aspecto, não foi a influência de uns sobre os outros que os levou a afirmar a
mesma coisa, mas a serena observação daquilo que permanecia após longos
anos de observação e prática.
Mesmo diante de toda a no ser humano, mesmo fundado na
esperança de que outro mundo fosse possível, mesmo certos de que a utopia
se traduzia em um vir a ser realizável, para eles mesmo isso parece que já não
importava. Ainda que a derrota de suas posições e a hegemonia dos
poderosos se lhes assomasse, algo restava e que não lhes seria possível a
ninguém tirar. Se reproduzia ao final de suas trajetórias a afirmação de outro
grande sistematizador, quanto ao que permanece e pertence a quem o
encontra: “Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O
maior deles, porém, é o amor.”
145
145
I carta de Paulo aos Coríntios, cápitulo 13, verso 13.
183
CAPÍTULO 4
“Andar a sós é possível, mas o bom
caminhante sabe que a verdadeira
estrada é a da vida, e esta, demanda
companheiros”
Dom Helder Câmara
4.1 O ENCONTRO DE TOLSTOY, ILLICH E FREIRE
A finalidade deste capítulo será responder a duas perguntas:
Que conceitos são comuns e aproximam os três autores em
suas concepções de educador e educadora? Qual a relevância deste perfil
para a prática de educadores e educadoras em processos de educação formal
e não formal?
4.2 A VIABILIDADE DO INÉDITO
Porque questionar a realidade? Porque criticar as estruturas?
Qual a finalidade de estabelecer utopias? E ainda mais, que sentido existe em
tentar antecipá-las em projetos concretos, em condições adversas e na direção
oposta à da maioria? Por quê tentar mudar o mundo e o sistema ao invés de
simplesmente melhorá-los?
Estas são perguntas presentes nos questionamentos feitos aos
que ousam pensar e agir com vistas à construção de outras formas de
convivência humana e de organização social para além das que existem de
forma prevalente.
Diante das mazelas do ousar tentar e dos resultados negativos,
não seria melhor falar em reforma? Não haveria mais aceitação se o
fundamental fosse deixado intocado? Diante de forças tão titânicas, e por
vezes tirânicas, falar em revolução não seria traçar o caminho do insucesso?
Pior ainda, falar em limites, renúncia, solidariedade e compartilhamento
enquanto parece que nem a atmosfera serve de limite, não seria
extemporâneo? Ou falar de sagrado, referenciar-se na espiritualidade e em
transcendência não seria simples exercício metafísico, espiritualidade barata e
184
lançar mão de muletas desnecessárias, quando tudo, desde Marx, se encontra
profanado
146
. Não seria esta uma preocupação fora de questão?
Os autores que são inspiradores de minha pesquisa –
propositalmente evito dizer que sejam objetos de minha pesquisa –
representam o tipo de pessoas que não se deixam intimidar nem por tais
questionamentos, nem pelo fato de serem francamente minoritários. Ao
contrário, talvez seguindo a tradição nascida no Sinai há mais de 3500 anos,
souberam subir a pontos de observação mais elevados e de lá vislumbraram,
na forma de devir utópico, a possibilidade de um outro jeito de ser mundo.
O mundo é um campo de batalha físico no qual duas forças se
contrapõem permanentemente: Kaos e Kosmos, desordem e ordem. Segundo
a 2ª lei da termodinâmica o sentido e a organização da matéria e da energia
estão sujeitos à permanente entropia que tende a consumir, desorganizar e
anular o cosmos, apontando inexoravelmente para o caos.
Desde a Revolução Industrial, e de maneira particular a partir
da segunda metade do século XX, esta entropia acelerou-se em escala inédita
devido à intervenção humana. Fundada em mitos como o progresso e seu mito
conseqüente, o desenvolvimento, a humanidade se viu lançada em uma
armadilha de insustentabilidade, violência, desagregação e possibilidade
concreta de destruição total jamais vivenciada em nenhum outro período da
história.
A organização presente, não só da sociedade mas da dinâmica
física do planeta, se depara neste momento com o risco concreto da
aniquilação. Os modelos sociais engendrados no Iluminismo, a relação
antropocêntrica com a natureza, o modo de produção industrial e a adicção à
novidade tecnológica, a sociedade de classes fundada nas relações de
trabalho e mais valia, mostraram-se como devaneios de tal forma
insustentáveis que parte da comunidade científica vislumbra como séria a
alternativa de pesquisar outros planetas em busca de recursos que mantenham
a ilusão mítica de desenvolvimento ilimitado.
146
“Tudo o que era sólido se evapora no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e por fim o
homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas
relações com a espécie.” MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In
LASKI, Harold J. O manifesto comunista de 1848. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 93-105.
185
No entanto, a Vida insiste em desmentir o supostamente
inevitável e a desafiar e surpreender as estruturas e escolhas necrófilas,
estabelecendo a surpresa, o inédito e o impensável, viabilizando, de formas
inesperadas, saídas criativas onde tudo parece apontar para o impasse,
brotando em meio à impossibilidade.
Como demonstra o professor e ex-ministro da economia Celso
Furtado (1974), o equívoco dos proponentes do progresso e do
desenvolvimento foi pensar em um mundo de recursos inesgotáveis, ausente
de limites e neutro à ação do ser humano. Como ajuda a lembrar o autor, não
existe possibilidade de seguir incólume a agenda proposta ao mundo pelo
presidente Truman em seu discurso de posse em 20 de Janeiro de 1949
(ILLICH, 1970; ILLICH, 1990; ESTEVA, 2004; PRAKASH, 2002). Desde essa
data o mundo passou a adjetivar países e sociedade com a palavra que outrora
só possuía uso adverbial: Desenvolvimento. Conforme analisa Furtado (1974,
p.10), “caso os países hoje subdesenvolvidos conseguissem alcançar os
padrões de desenvolvimento das nações dominantes, a ausência de recursos
geraria o colapso.”
Desde a afirmação de Truman, até o estabelecimento de
programas de desenvolvimento de nações periféricas, foi necessária somente
uma década para que o mito fosse estabelecido como agenda e que todos os
países do mundo passassem a ter como objetivo emular as formas de governo,
de produção e organização do gigante hegemônico do norte. Mesmo no
período da Guerra Fria, as nações do bloco socialista se viram arrastadas para
a busca desenfreada para ocupar o lugar de seu oposto hegemônico.
Um dos principais instrumentos para a perpetuação e formação
do modelo, se não o mais importante e fundamental, tem sido a educação. Os
governos se sucedem, alguns executando, outros discursando, estabelecendo
como prioridade a educação e lançando mão da mais bem sucedida ferramenta
manufatureira da modernidade: a escolarização compulsória
(FOUCAULT,2005; ILLICH, 1970). Com seu método idealizado por Comênio,
aperfeiçoado no século XVIII, influenciado pelo panoptismo das estruturas
físicas das escolas e “orwelianizado” pelo acesso universal da educação à
distância mediada por máquinas no século XXI, a educação compulsória
escolarizada em oposição à cultura que emerge das relações (TOLSTOI,1988)
186
tornou-se ao mesmo tempo crise e panacéia prescrita a todos os males da
sociedade.
Os autores pesquisados foram críticos destes mitos, e também
propositores e praticantes de alternativas a eles. Apesar de suas teorias serem
por vezes apropriadas pela própria estrutura que criticaram, como no caso de
Freire (BOWERS, 2005). Os três souberam identificar mecanismos necessários
e contrários ao tipo de sociedade industrial oriundo do projeto iluminista. Como
afirma Elias (1976, p. 80) “Illich, como Freire, propõe uma revolução para a
sociedade, tanto para os países desenvolvidos quanto para os países em
desenvolvimento”. Tolstoi foi o primeiro a definir educação como o processo
pelo qual “alguém é transformado em alguma coisa de acordo com o interesse
de outro alguém” (YEGOROV, 1994, p. 648) e o primeiro a fazer a crítica à
compulsoriedade da escola e a opor a idéia de cultura à de educação (VIDOLI,
2007). Seguindo uma tradição de resistência à escolarização compulsória que
surge com autores anarquistas e libertários anteriores à sua obra, na
atualidade sua resistência encontra eco e aprofundamento na obra de Ivan
Illich, em suas “redes de aprendizagem” baseadas nas trocas livres entre quem
deseja aprender e quem tem algo a ensinar e em Paulo Freire, em especial nos
escritos dos anos 70 do século passado, diante da concepção compartilhada
por ambos de que “a educação compulsória destrói a liberdade humana, ...
produz uma sociedade de classes e impede o verdadeiro companheirismo
entre os homens” (ELIAS, 1976, p. 101).
Além das concepções críticas à educação e à escolarização
compartilhada por estes autores, ainda que apresentando diferenças e nuances
nas abordagens e propostas, existem categorias que os colocam em um
mesmo campo: suas concepções de homem, de liberdade, de igualdade e de
solidariedade.
O elo entre os três autores, expresso acima, tem como fio
condutor sua cosmovisão cristã da realidade, que não só lhes serve de ponto
de partida, como também estabelece uma plataforma de onde podem propor,
com a incômoda liberdade que transcende os rótulos e sem se deixar cooptar
definitivamente por nenhuma das ideologias nascidas com o Iluminismo, ainda
que delas lancem mão, utilizem como ferramentas e com elas estabeleçam
diálogos.
187
Esta plataforma serve como justificativa para as críticas que
receberam ao não subscreverem de maneira absoluta nenhuma das posições
de seus críticos à direita e à esquerda, liberais, comunistas e anarquistas, que
mesmo assim sempre os cortejaram e tentaram deles apropriar-se. São
autores que se tornaram universais, parecem paradoxais, mas sobretudo
cumprem a tarefa de denunciar a loucura de um projeto de homem e sociedade
insustentável, e de anunciar e insistir em afirmar a possibilidade de outras
formas de organização e produção.
4.3 CATEGORIAS E POSICIONAMENTOS
Conforme já citado anteriormente, cada uma das categorias
epistemológicas escolhidas, e presentes no capítulo referente nesta pesquisa,
aparece de forma mais clara ou menos explícita, dependendo da obra e do
momento pesquisado, em cada um dos autores aqui estudados. Fazendo uma
breve revisão, minha intenção é demonstrar, ainda que de forma sucinta, como
cada autor se relaciona a cada conceito.
Começando pela liberdade, os três autores apresentaram
concepções que, juntas, formam um todo coerente. Para Tolstoi, a sociedade
organizada em torno da concepção de propriedade privada e o Estado, são
ameaças à liberdade ao se fundarem em uma individualidade e um projeto
diminuidor, e por isso opressor, do potencial do ser humano. Para ele, a
liberdade é, como já citado, “o único e essencial critério da Educação”
(YEGOROV, 1994), traduzido na liberdade de aprender o que se deseja, e não
o que exige o Mercado, as elites dominantes, o partido ou o Estado, e que se
vê ameaçada pela típica relação distante entre professor e aluno, contraposta à
qual ele propunha o diálogo livre, o brincar, e a clara concepção de que a
criança livre, não é livre à própria sorte mas encontra em seu educador, um
amigo que nutre e acolhe, por que é amigo e livre para sê-lo. Para Illich, a
liberdade assume aspectos aparentemente paradoxais quando se manifesta na
relação de confiança entre quem aprende e quem ensina, quando quem
aprende se vê livre para decidir obedecer em uma relação baseada no diálogo.
E Freire completa sua relação com a liberdade sendo ela o objetivo da
emancipação e uma situação que transcende a mera substituição de domínio,
188
mas objetiva a extinção de toda forma de domínio e opressão, em especial
aquela que transforma de forma vingativa o oprimido de hoje em opressor de
amanhã, logo torna todos os envolvidos em escravos de uma lógica perversa.
A verdadeira liberdade para Freire é aquela que liberta “a si e ao opressor”
(FREIRE, 1987).
Para os três autores, o conceito de propriedade, conforme
preconizado pelo contrato social, seria substituído pelo conceito de posse
responsável. Responsável diante de Deus, da natureza, da humanidade, da
coletividade e do futuro. No que diz respeito ao saber, à informação, ao
conhecimento e à sabedoria, a concepção da propriedade destes como
vantagens competitivas, capital a ser acumulado ou instrumento de poder é
não só estranha, como algo que deve ser combatido. Ao contrário, tais bens
são vistos como próprios da humanidade, de posse de alguns como guardiões
e mordomos, ministradores responsáveis em prol da plena realização do
projeto humano, e disponíveis a todos. A posse do saber, a mensuração por
testes, a repetição inconsciente, a manipulação e o domínio exercido mediante
a propriedade do conhecimento, e do poder dele decorrente, se manifestam
como a antítese das propostas destes autores, levantadas por minha pesquisa.
O ser humano livre é livre para saber e para aplicar, divulgar, compartilhar e
exercer sua destinação ontológica de plenitude. Sobre a propriedade do
conhecimento, patentes e pessoas, todos não teriam muita dificuldade de
subscrever a máxima de Proudhon: “A propriedade é um roubo”.
O conceito de autoridade se constrói nos três autores de
forma muito semelhante, principalmente em sua radical denúncia e resistência
ao autoritarismo. Fica claro que nenhum dos três discutia a autoridade
conquistada pela atitude de servir, de amar, de sacrificar-se, ou aquela
construída mediante o exemplo, os resultados e intimamente ligada, não à
posição de quem a exerce, mas ao caráter e atitude de quem a exerce. A
chave para entender este conceito é compreendê-lo como um caminho que se
constrói mediante o reconhecimento de um lado e a paciência do outro, nunca
pela imposição, nem muito menos a priori.
Ao mesmo tempo todos reconhecem que a ausência de
autoridade se constitui em perigo. É um perigo pois impede a aprendizagem, é
um perigo, pois abre a porta ao autoritarismo, e é um perigo por que traduz
189
irresponsabilidade. Os pontos mais importantes para os três, e que valem a
pena serem mais uma vez ressaltados são a autoridade que resulta da
amizade, do sacrifício, da honestidade e da disposição para a verdade, e o fato
de que esta autoridade inspira, e conspira, para a realização plena do ser
humano. A ausência desta forma de autoridade não gera liberdade, mas ao
contrário ameaça a própria vida ao não estabelecer limites, relacionamentos e
uma moldura através da qual se possa perceber a realidade, mas também as
nuances, delicadeza e peculiaridades do que é central e periférico no projeto
humano.
A comunidade ocupa um local de destaque e possui um
significado muito especial nos três autores pesquisados. Mesmo que o termo
tenha sido apropriado atualmente com um sentido de conjunto de interesses
compartilhados, por grupos reunidos por razões utilitárias, pragmáticas ou de
mero entretenimento, ou ainda para significar, na área da Educação, a reunião
em torno de objetivos educacionais de ensino e aprendizagem, para eles a
comunidade representa a base sólida da aprendizagem, seu contexto e
também sua finalidade. O isolamento e a alienação individualista,
conseqüentes da negação das emoções e das relações monetarizadas, são
denunciadas por eles como fatores que colocam em risco sua existência e
permanência da comunidade como fenômeno humano.
Além disso, suas conclusões apontam para a comunidade
como o lugar para onde se pode olhar com o objetivo de descobrir estratégias
de aprendizagem e de continuidade, principalmente no caso das comunidades
tradicionais da base social (grassroots), em especial na obra de Tolstoi e de
Ivan Illich. Em Paulo Freire, por vezes, estas populações se encontram na
situação de serem incluídas no projeto moderno de desenvolvimento, o que o
afasta da posição de Illich em especial, mesmo assim sua admiração e respeito
por estes modelos relacionais tradicionais são inegáveis.
É a comunidade, em especial para os dois primeiros autores,
mas muito fortemente também em Paulo Freire, não só o lugar onde se vive,
mas onde se encontram os recursos que podem relativizar a dependência do
Estado e do Mercado. Aprendizagem e comunidade estão relacionadas como
sendo a segunda o espaço privilegiado onde ocorre a primeira de maneira mais
190
natural e eficiente e onde o exercício da transmissão e geração de
conhecimentos acontece, preferencialmente, sempre através do diálogo.
A plenitude do Ser Humano, a realização de seu potencial e a
indignação diante da opressão, da pobreza, da ignorância e da exploração que
deformam o Ser estão inequívoca e indiscutivelmente marcadas no conjunto
das três obras de vida.
A plataforma de onde se constrói esta concepção é a dignidade
intrínseca do ser humano enquanto imagem e semelhança de Deus. Para os
três, esta constitui a base para afirmar a igualdade, a dignidade e a beleza de
homens e mulheres, de todas as raças e idades, posições políticas e
ideológicas, inclusive daqueles deformados pelo exercício do papel de
opressores.
Para todos os autores, oprimir é uma deformação, em especial
na lógica de Freire, para quem a opressão acaba sendo uma outra forma de
ser menos e de ser escravo, nesse caso das próprias pulsões e de um modo
de vida insustentável, que se alimenta de outras vidas, ao mesmo tempo que
autofágico e, por isso, suicida.
Para todos, o Ser Humano é, por ser ontologicamente
destinado a realizar sua vocação de Ser, e ser como aquele que o criou. Para
todos esta não é uma tarefa individual, mas coletiva, solidária e multi-
dependente da ação de todos os agentes envolvidos.
De maneira mais clara em Tolstoi e em Illich, mas também
perceptível em Paulo Freire, a Educação e a imposição curricular, de forma
especial aquela oriunda da escolarização compulsória, se tornam em
limitadores e ameaças à autonomia, especialmente a autonomia necessária
para decidir-se quanto ao que seja necessário e desejado de se possuir
enquanto conhecimento.
O uso da linguagem vernacular, em Illich, do interesse nascido
da curiosidade, defendido por Tolstoi, e da consciência em ação sobre a
realidade, em Freire, compõem as chaves da autonomia e do pensamento e
ação autônomos. Uma vez aberta a possibilidade da experiência da Autonomia
em sua plenitude, esta se vivencia na relação com outros seres igualmente
autônomos - ainda que não de forma individualista - , encarnada em contextos
nos quais seres autônomos decidem soberanamente limitarem-se ao se verem
191
responsáveis por seus destinos e o de seus semelhantes, a serem realizados e
deles emergirem em ações transformadoras em permanente processo de ação,
reflexão e ação. Esta autonomia é exercida, porém, humildemente emoldurada
pela noção da dependência voluntária do outro diante de quem se presta
contas, orgulhosamente resistente à dependência passiva e à submissão a um
mundo de serviços que se oferecem como essenciais e esperançosamente
atada à consciência da transcendência de sua origem.
A partir deste modo de descrevê-los, poder-se-ia perceber os
autores aqui descritos como utópicos, e o são, no melhor sentido do já exposto
ao longo desta dissertação. Os três autores reafirmam a existência da Utopia,
e eu claramente me posiciono teimosamente ao seu lado, da possibilidade de
um outro modo de viver no mundo, chamando de fantasia, ilusão e
artificialidade aquilo que se constitui no pensamento dominante e sua suposta
realidade, mistificada e mistificadora, que joga para um amanhã que nunca
chega os benefícios usufruídos apenas pela menor parte da humanidade, em
detrimento de 80% da população mundial, que jamais serão por eles atingidos.
A utopia, o futuro a ser construído, para eles ultrapassa a mera
potencialidade, mas é aguardada como advento a ser presenciado, como devir
concreto, que transcende os limites das situações limite clamando e sendo
promovido por atos limites. A noção de utopia faz intersecção com a noção de
Ser especificamente pela noção de inacabamento de ambos. Foram
persistentes nestas posições todos os três, jamais negando o privilégio de
serem portadores do sonho e de suas utopias.
Para tanto, Amor é a fonte suprema da energia, excitamento e
compromisso necessários àqueles que se dedicam a criar o contexto e as
circunstâncias que permitam emergir um ser humano em toda sua
complexidade, potencialidade e plenitude, a “Paidéia” que transcende a
educação, e está presente como central na obra de cada um dos autores.
Todos amaram a Vida, a humanidade e o mundo. Intensos, e intensamente
tomados pelo amor que tinham, experimentaram publicamente todas as suas
emoções e assumiram sua posição de não neutralidade diante da vida a partir
do amor que lhes foi tomando o coração. O amor se irrita, por vezes incendeia
uma discussão, se transborda em paixão, sofre e impede o sono de chegar; o
amor compromete, chama para a luta; o amor angustia, arranca do coração um
192
pedaço e nunca mais devolve, e depois é este mesmo amor que faz viver a
vida e optar por ela, mesmo conscientes da ausência, mesmo ansiando pela
presença. Assim é o amor, sua intensidade e sua emoção, e os três o
carregaram como componente de sua obra.
O tipo de amor que mais fica ressaltado na obra dos três
autores não se traduz em um ágape idealizado, ou em um Eros incendiado,
mas de maneira especial se evidencia na forma do amizade – filia – do querer
bem e da alegria de se estar com quem se ama. A renovação da amizade,
objetivo central de Illich no processo de ensinar e aprender, o compromisso
com os pupilos em Tolstoi e o transbordamento solidário de Freire, resumem
bem este aspecto central de suas obras.
Se esta forma de amor cria a possibilidade de ferir a quem
ama, é este próprio amor que fecha a ferida. Se aprender custa e dói, é o
ambiente de amor, manifesto na amizade que acolhe hospitaleiramente, o que
torna possível passar pelo processo de aprendizagem, que desta forma se
torna precioso, quase um luxo, e absolutamente significativo.
Em todo caso, essa amizade não é algo metafísico, antes se
concretiza na solidariedade, no compromisso e na hospitalidade. De Tolstoi
com os Mujiques, de Illich com os povos latino-americanos e de Freire com os
sertanejos e com os trabalhadores. Solidariedade em ação, que causou
excomunhão, punição, degredo e desprezo. A plataforma de onde partia esta
forma de amor nos três foi sua fé, fé em Deus, na humanidade enquanto
sagrada em sua origem, na possibilidade do projeto humano e na esperança de
um outro mundo a ser construído.
Entretanto, o objetivo da amizade não é ela própria, mas sim
criar o espaço para o desvelamento e o encontro com a Verdade. A verdade
que não se traduz em mero conteúdo, complexa e por isso incontrolável, é a
base da obra dos autores e é seu alvo. Por conta dela a denúncia da
mistificação, dos mitos sobre os quais se fundam a nossa sociedade, a radical
posição de não submissão ao culto do racionalismo, ou do Estado ou das
regras de mercado, a obsessão por Ser Mais e permitir a todos o Ser Mais, a
busca do significado preciso das palavras, a invenção de conceitos e
neologismos, a escrita abundante, o questionar-se permanente e a
inconformidade com o status quo.
193
A Verdade para os três não se encontra dada e pronta, mas se
revela em múltiplos desdobramentos, é sempre complexa, por isso impossível
de ser contida, apropriada como coisa particular, empurrada garganta abaixo
ou imposta de cima para baixo. Ao mesmo tempo a verdade não é individual,
ou maleável a ponto de não exigir um posicionamento que estabelece a clara
distinção entre justo e injusto, certo e errado, bom e mal. A Verdade não está a
serviço de ninguém, de acordo com interesses pessoais ou de grupo, mas
serve de balizamento, limite e fundamento para checar, questionar e interagir
pela mudança com as condições objetivas da realidade, das intenções e dos
desejos de quem com ela se defronta. Por fim, é a capacidade de ser livre, de
discernir e de agir a partir da consciência da Verdade que permite a homens e
mulheres interferir no mundo de maneira responsável, solidária, preservadora e
curativa.
4.4 O EDUCADOR E A EDUCADORA
Ao finalizar esta dissertação, resumindo e apontando o perfil de
educador que emerge da obra dos três autores pesquisados, surge uma infeliz
possibilidade de que o que relato que aqui faço seja compreendido como um
padrão teórico ao qual se devesse subordinar um suposto “educador, ou
educadora, ideal”. Nada poderia ser mais distante de minha intenção.
Fiel à escolha epistemológica feita do início da pesquisa, o
perfil aqui expresso é expressão oriunda da observação da realidade, feita ao
longo da vida destes autores, o qual eles construíram a partir desta
observação. Sua finalidade não pode ser enquadrar qualquer um, no que quer
que seja. A finalidade da teoria aqui expressa é contribuir de modo a servir
como instrumento de checagem da realidade, de questionamento da prática e
está sujeita a ser, por esta mesma prática, questionada, aprofundada, ampliada
e discutida. A esperança que guardo é que este material possa servir como
elemento de contribuição a uma práxis educativa transformada e
transformadora e de fonte para a principal reflexão feita por um sujeito: a auto-
reflexão.
Gostaria de abrir, a quem lê este relato, a possibilidade de que
se observe, se questione, indague-se se é assim mesmo; compare, discuta,
194
discorde, se estimule a buscar outras referências, analise sua prática,
pergunte-se o que impede que ele ou ela seja assim, enfrente as condições
objetivas de trabalho, de espaço, de tempo, de circunstâncias, de
reducionismo; e tenha coragem para a mudança. Que encare a suposta
neutralidade, o distanciamento, que faça estranhamentos e que por fim se veja,
transforme o que lhe for possível e seja transformado até onde for possível.
Não existe um educador ideal, nem um padrão ao qual alguém,
nesta tarefa, se deva encaixar. Mas, sim, existem atitudes, comportamentos,
princípios, valores que facilitam a aprendizagem e permitem a transformação
de informações disponíveis em conhecimento, destes em sabedoria e a re-
elaboração desta em construções pessoais e transmissíveis a outros. Este
conjunto aqui se apresenta como fonte para a reflexão e assim me encantaria
poder contribuir.
Cabe a quem lê julgar, lançar mão e re-elaborar o conteúdo
aqui reunido de forma crítica e potencialmente estimuladora de uma práxis
alternativa na tarefa de serem facilitadores que permitam a emergência de
homens e mulheres capazes de cumprir sua vocação humana em plenitude.
Nos próximos parágrafos, ao resumir o perfil de educador e
educadora que emergiu da pesquisa, colocarei entre parênteses, após cada
característica aqui apresentada, a página do texto da dissertação onde a
mesma é discutida em cada autor, como forma de facilitar a referência,
tornando mais simples a busca caso haja interesse em aprofundamento e
esclarecimento teórico posterior.
Uma da percepções comuns aos três autores sobre quem
educa é que ninguém é educador exclusivo de ninguém (170), são sempre
vários atores contribuindo, cumprindo diferentes papeis na formação humana,
ora expresso em saberes disciplinares, ora em valores e princípios de vida,
mas sempre a excelência é alcançada em um ambiente estabelecido pelos
laços de amizade (117, 146, 174) e fundado no diálogo (117, 147, 173),
ambientado no dia-a-dia, em atividades o mais comuns possível (115, 150).
A experiência direta, que Freire incorpora sob a influência de
seu conhecimento da obra de Dewey, aparece também de forma central em
Tolstoi (118
) e em Illich (150) que compreendem a prática e a realidade como
195
pontos de partida para o educador e se encontram, assim, bem estabelecidas
nos três autores.
O conjunto de atitudes do educador e da educadora nas
propostas dos autores relembram que é boa prática não ocupar o centro das
atenções (116), preferindo a posição de mediador entre a experiência e o
sujeito (165), como um facilitador (170) que permite a relação livre entre as
pessoas (112) e que não interfere para moldar à sua vontade (112), não
impositivo (148) e humilde (174). Esta postura delimita a ação do educador que
age por vezes como um descodificador (170) da organização da realidade e
lança as bases para o estabelecimento da atitude relacional (117
), que acolhe
(146
) e facilita o diálogo aberto entre parceiros.
Outra característica central em todos é a paciência (111) para
saber ouvir e perceber (112) o que demanda o silêncio observante (151),uma
capacidade contrária ao eterno falar que o senso comum projeta sobre o
educador e a educadora, e que proporciona a emergência de temas geradores
(165). Esta capacidade de calar-se se funda no respeito (112), em possuir tato
e sensibilidade (111), na inclusividade (116), na hospitalidade (146), na
solidariedade (172) que empatiza, e abre o espaço para a inspiração mútua, a
conspiração (147) e o companheirismo (174).
Na prática, o exercício da função demanda criatividade (110),
liberdade de formas e estratégias de ensinar (110), e a superação do currículo
e da fragmentação disciplinar (115), feita de forma desapressada (120),
embebida em abundância e prodigalidade (148
), de acordo com o interesse e
demanda do educando (104,108), não subordinada a planejamentos
predeterminados, calcada na esperança (174) de que a aprendizagem
aconteça de forma livre e libertadora (178
).
Com esta ambientação criam-se as condições para que a
experiência de aprender se torne um evento significativo (114
), porque
conduzido por alguém encorajador (114
), que possui uma visão integral do
sujeito e de si (115), assumidamente não violento (118), estimulante (148), que
mentoreia mais do que conduz (162) baseado em uma postura autêntica e de
bem querer (181).
No entanto, o educador não se vê como alguém leniente e
inexpressivo, ao contrário tem consciência de que seu papel é exercido a partir
196
de uma liderança (149) de natureza amorosa (121), que Illich descreve como
de indulgência temperada (146), plena de rigor e consistência
(46,70,84,144,146,179), fundamentada e traduzida em competência pessoal
(176), caráter (150), consciência social, contextual, cultural e coletiva (177),
temperada com a capacidade de autocrítica (179) e da tranqüila segurança
(180) do exercício de sua autoridade, (179) que ao invés de ver implantado o
desgoverno(120), abre a possibilidade para a aprendizagem livre e significativa.
Por fim, quatro áreas de conhecimento formam a base e
concentram os saberes considerados essenciais para o exercício do papel de
educador: a etnografia (113
), a etimologia (122), a sociologia e a epistemologia
(176
). Estas áreas não são propostas no lugar das demais disciplinas, mas
formam um conjunto que lhes serviria de base e que permitiria, em potencial, a
compreensão da vida e de seus estilos de organização, a percepção do poder
da palavra - que acaba por ser a ferramenta mais importante para relacionar-se
e libertar-se - e a forma pela qual se constrói o conhecimento. A partir desta
base as demais disciplinas se agregariam como formadoras do conjunto que
permite a aquisição e construção de conhecimento e o exercício da sabedoria.
Este conjunto de características, se não servir como um ideal a
ser alcançado, mas como fonte de permanente autocrítica e reflexão, pode não
somente ser uma forma de resistência, mas uma alternativa que ajude a
constituir um corpo diferente do que usualmente se coloca como fundamental
na formação de educadores e educadoras, formais ou não formais. Não
somente como contribuição à reforma curricular, mas como gerador de debates
coletivos, de meditação silenciosa e pessoal, de questionamento quanto aos
tipos e qualidades de compromisso assumidos quando alguém se envolve com
a tarefa da formação e educação de seres humanos.
197
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegando ao final desta dissertação, tenho a clara noção de
que ainda restam um caminho a percorrer e mais investigações a serem feitas.
A partir deste ponto, abre-se a necessidade e o espaço para o aprofundamento
em pesquisas complementares sobre todos e cada um dos autores.
Como forma de demonstrar e relacionar o que até este ponto
consegui expor, me proponho a buscar no futuro, as aproximações e
afastamentos entre as histórias e propostas dos três autores de maneira mais
profunda. A analisar suas trajetórias, suas posições semelhantes na crítica à
sociedade atual, à educação e o perfil daquele e daquela que facilita o
processo de aprendizagem de forma mais detalhada, apontar para
semelhanças e origens comuns, tentar vislumbrar os desdobramentos e
relevância de suas propostas como alternativas à educação, e a propor, a
partir delas, possibilidades de aplicação e de implementação de modelos
alternativos, o que em si se constitui em uma área ampla de investigação que
clama por novas pesquisas, fontes, estudos de caso e a inevitável coragem
para a experimentação e aplicação em situações concretas e objetivas, no
prosseguimento da atividade como pesquisador.
Além dos aspectos referentes ao próprio tema da pesquisa
aqui reportada, o estudo da obra destes autores me proporcionou o vislumbre
de outros caminhos a serem seguidos, perguntas a serem respondidas e
objetos a serem investigados.
As populações tradicionais, inspiradoras dos três autores,
surgiram para mim como fontes potenciais para a investigação futura e
construção de propostas que possam apresentar-se como alternativas ao
dilema citado no início deste relato. Assim como Tolstoi percebeu nos Mujiques
de sua região a fonte de onde sua angustia por respostas encontraria a
alternativa que buscava, ou Illich percebeu nas formas tradicionais de
relacionamento, produção e organização da alta Idade Média uma luz mais
potente do que o preconceito moderno que induz a pensar naquela época
como um tempo de trevas e como Paulo Freire, em interação com a periferia
do Recife, com os sertanejos, ribeirinhos e com as populações africanas de
198
origem tribal, encontrou formas de aprender, lutar, conquistar e manter a
liberdade, tenho a impressão de que na pesquisa sobre como aprendem as
populações tradicionais, a compreensão de sua cosmovisão, a forma como se
constrói e transmitem seus conhecimentos, que inclui diferentes estratégias e
formas de relações entre gerações diferentes, de inclusão do sagrado na vida
comum e em sua relação com o meio e com seus semelhantes, a sabedoria
aplicada ao dia-a-dia e principalmente a eficiência em sustentabilidade,
demonstrada por séculos de vida em equilíbrio com seu meio ambiente, podem
ser colocadas em contraste com a incapacidade de produzir paz,
sustentabilidade e justiça da sociedade moderna, que, ao contrário, conseguiu,
em menos de cem anos, gerar entre outros becos sem saída, a miséria em
inédita escala planetária, a desagregação da família, a ruptura da teia social e
a possibilidade do impensável há apenas 80 anos: a extinção da humanidade,
a destruição física do planeta e o esgotamento de recursos tão básicos e
renováveis quanto a água. Diante deste quadro, vislumbro a possibilidade de
abandonar a arrogante atitude moderna de superação do passado e, sem
negar a modernidade e seus avanços, pois que são um fato histórico, abrir a
possibilidade do diálogo desta com os saberes que ao longo de milênios têm se
mostrado mais eficientes na manutenção da vida na Terra.
Assumo com isso uma posição definitivamente não
reformadora, uma vez que não creio ser mesmo válido tentar melhorar a
eficiência de um sistema que apresenta resultados como os descritos acima,
ou encontrar estratégias que permitam sua continuidade sem discutir o mito do
desenvolvimento, as relações de consumo e a ditadura do Mercado. Ao mesmo
tempo, negar os benefícios do pensamento científico, os avanços tecnológicos,
as descobertas da pesquisa moderna seria continuar numa outra forma de erro:
a simplificação.
Creio no diálogo, mesmo no diálogo entre formas opostas de
ver o mundo, e creio que será dialogando, e não superando, que a Vida
encontrará a maneira de emergir e vencer a entropia, por meio de sua
ferramenta mais eficiente: a palavra.
Assumo o diálogo no lugar da luta, ou melhor ainda, como
ferramenta de luta. Para mim, o ponto central não é se devo lutar contra a
posição X ou Y, ou se me engajo na promoção de idéias em função de minha
199
necessidade de angariar prosélitos à minha causa. Ao contrário, diante da
organização que assume a sociedade, das escolhas que por ela ou em seu
nome são feitas, diante das propostas de educação para o consumo e do
ensino compulsório, entendo como geradora do diálogo a decisão de se
posicionar a ser tomada por cada um que deseje a mudança, a reforma ou a
manutenção e que, me parece ser, assumir se toma ou não parte do que está
estabelecido como senso comum ou pensamento geral, e se mantém-se leal
ou não ao Status Quo, se tolamente e arriscadamente renuncia ao uso dos
sistemas, que por fim escravizam e tornam homens e mulheres seres
dependentes e por isso escravos, ou se recupera o desejo, a extrema demanda
e trabalho envolvidos na liberdade. A partir da tomada de decisão, dialoga-se.
Não existe diálogo sem posicionamento.
A mim parece que desta decisão, e a partir dela, é que se inicia
o caminho na direção da utopia, construída a partir, e limitada em suas
conseqüências, das condições objetivas da realidade, mas afirmativamente
comprometido com a esperança de que um outro mundo é possível.
200
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