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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
HENRIQUE DE CARVALHO PEREIRA
O LABORATÓRIO ANALÍTICO:
A PSICOLOGIA DE C. G. JUNG EXAMINADA PELA TEORIA
DO ATOR-REDE
Rio de Janeiro
Setembro, 2007
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
HENRIQUE DE CARVALHO PEREIRA
O LABORATÓRIO ANALÍTICO:
A PSICOLOGIA DE C. G. JUNG EXAMINADA PELA TEORIA
DO ATOR-REDE
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro como requisito
parcial para obtenção do Título de Doutor em
Psicologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Rio de Janeiro
Setembro, 2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / CEH/A
P 436 Pereira, Henrique de Carvalho.
O laboratório analítico : a psicologia de C. G. Jung
examinada pela teoria do ator-rede / Henrique de
Carvalho Pereira. - 2007.
173 f.
Orientador: Ronald João Jacques Arendt
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia.
1. Jung, C. G. (Carl Gustav), 1875-1961 – Teses. 2.
Psicologia Social – Teses. 3. Psicoterapia – Teses. I.
Arendt, Ronald João Jacques. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III.
Título.
CDU 301.151
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Ronald Arendt, por ter-me aceitado como orientando quando “duas
estradas divergiam” em meu caminho, e por introduzir-me no fascinante mundo das
redes, dos híbridos, das proposições articuladas, dos coletivos...
À psicóloga Lorena Richter, pelos incontáveis esclarecimentos quanto aos
significados das palavras e expressões alemãs empregadas por Jung.
Ao Prof. Dr. Carlos Bernardi, por ter-me ensinado a gostar de Jung.
Aos colegas do “grupo das quintas-feiras” do Prof. Ronald, pela troca de idéias
sempre enriquecedora.
A todos que de alguma maneira me ajudaram nesta importante etapa de minha
trajetória acadêmica.
RESUMO
Palavras-chave: psicologia analítica, C. G. Jung, teoria do ator-rede
O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) é um dos principais nomes da
psicologia e da psicoterapia do século XX. Algumas de suas maiores contribuições
teórico-metodológicas são as idéias de realidade psíquica, complexo, arquétipo
(inconsciente coletivo), processo de individuação, método dialético, método
construtivo e imaginação ativa. A psicologia analítica de Jung, ao longo de sua
formação, foi influenciada por diversas disciplinas, dentre elas a etnologia (ciências
sociais). Este trabalho buscou dar continuidade a este processo de construção
epistêmica, mediante exame das concepções de Jung por intermédio da teoria do
ator-rede (TAR), uma importante corrente da sociologia contemporânea. Pretendeu-
se também saber se a psicologia analítica se mantém atual ou se já é uma teoria e
prática clínica anacrônicas.
O principal autor relacionado à TAR a quem se recorreu neste trabalho foi o
sociólogo francês Bruno Latour. De sua perspectiva, o “acordo moderno”, disjuntor
de Natureza e Cultura, é insuficiente para explicar a complicação inerente às
entidades que compõem a realidade. Para escapar das armadilhas conceptuais da
modernidade, Latour opera com constructos tais como coletivo (social), ator-rede,
proposição, vínculo e plasma. Além do pensamento de Latour, este trabalho valeu-
se das idéias sociológicas de Gabriel Tarde e da influenciologia etnopsicanalítica de
Tobie Nathan, aproveitando-se da afinidade teórica que compartilham com Latour.
Nathan, por desenvolver uma prática em psicoterapia, permitiu propor à psicologia
clínica de Jung determinadas questões que o enfoque mais estritamente sociológico
de Latour não possibilitava.
Uma vez expostas as concepções de Latour, Tarde e Nathan, apresentaram-se os
elementos da psicologia analítica com os quais se esperava que elas fossem
compatíveis. Concluiu-se que, apesar das diferenças, muitas aproximações são
plausíveis entre psicologia analítica e TAR. Constatou-se que a concepção de Jung
de um psiquismo multifacetado, em devir, cujos componentes se relacionam de
diferentes maneiras, é comparável à noção de ator-rede trabalhada por Latour e à
monadologia de Tarde. Verificou-se também que a abordagem pragmática e
construtiva identificada na psicoterapia junguiana é em muitos aspectos análoga à
prática da etnopsicanálise. Assim, foi possível afirmar que a TAR e a psicologia
analítica podem formar aliança.
ABSTRACT
Key words: Analytical Psychology, C. G. Jung, Actor-Network Theory
The Swiss psychiatrist Carl Gustav Jung is one of the leading names of the
psychology and psychotherapy of the twentieth century. Some of his major
theoretical-methodological contributions are the ideas of the psychic reality, complex,
archetype (collective unconscious), individuation process, dialectical method,
constructive method and active imagination. Jung’s Analytical Psychology, during its
formation, was influenced by many disciplines, one of them the ethnology (social
sciences). The present work has intended to follow on that process of epistemic
construction, by analyzing Jung’s conceptions with the Actor-Network Theory (ANT),
an important trend of contemporary sociology. This author also wanted to know
whether Analytical Psychology is an up-to-date subject or anachronistic theory and
clinical practice.
The main author connected to the ANT dealt with in the present work is the French
sociologist Bruno Latour. From his perspective, the “modern settlement”, that keeps
Nature and Culture apart, is insufficient to clear the complication embedded in the
entities that form reality. In order to escape from the conceptual traps of Modernity,
Latour operates with constructs such as the collective (social), actor-network,
proposition, attachment and plasm. The present work is based on Latour’s thoughts
and, in addition, on Gabriel Tarde’s sociological ideas and on Tobie Nathan’s
ethnopsychoanalystic influenciology, they all being theoretically alike. Nathan, by
developing a practice in psychotherapy, permits us to raise to Jung’s clinical
psychology certain questions that Latour’s approach, more strictly sociological, does
not allow.
After exposing the conceptions of Latour, Tarde and Nathan, the present work
pointed out the elements of the Analytical Psychology that, assumedly, were
compatible with those conceptions. This author came to see that, notwithstanding the
differences, there are many similarities between Analytical Psychology and ANT. It
was found out that the Jung’s conception of a multifaceted psyche, in becoming,
made up by components that relate to each other in different ways, shows to be
comparable to the notion of the actor-network developed by Latour, and to Tarde’s
monadology. This author concluded as well that the pragmatic and constructive
approach identified in Jungian psychotherapy is in many aspects analogous to the
practice of ethnopsychoanalysis. Therefore, it was possible to state that ANT and
Analytical Psychology may go along as allies.
SUMÁRIO
Introdução
1. A teoria do ator-rede: Bruno Latour e seus aliados........................................22
1.1 Por que a teoria do ator-rede?................................................................22
1.2 O Céu e a Caverna.................................................................................26
1.3 Redefinindo o social: o social como o coletivo em expansão.................28
1.4 Desdobrando o social.............................................................................34
1.4.1 Embaraços de fala...........................................................................35
1.4.2 Ação: atores, rede, actantes e agências..........................................36
1.4.3 Realidade e recalcitrância................................................................43
1.5 Reunindo o social....................................................................................44
1.5.1 Os psicomorfos.................................................................................47
1.6 O laboratório de etnopsiquiatria e os avatares do sujeito.......................49
1.6.1Os operadores terapêuticos...............................................................52
1.6.2 Mediação e analogia: a influência como exigência lógica................57
1.6.3 Os transpavores................................................................................57
2. A psique e suas agências..............................................................................62
2.1 A realidade psíquica................................................................................62
2.1.1 “A psicologia com a psique”.............................................................66
2.2 A teoria dos complexos...........................................................................70
2.2.1 Complexos, mônadas e teoria do ator-rede.....................................77
2.3 Os arquétipos e o inconsciente coletivo.................................................79
2.3.1 O homem do falo solar e as “reminiscências da humanidade”.........82
2.3.2 Arquétipo, natureza e cultura............................................................93
2.3.3 Revendo a teoria dos arquétipos......................................................99
2.3.4 Os arquétipos e a República da Psique...........................................102
3. A psicologia das relações...............................................................................105
3.1 As relações psíquicas e suas patologias................................................105
3.1.1 Vínculos patológicos.........................................................................108
3.1.2 Redirecionando a libido, substituindo os objetos dos vínculos.........112
3.2 As relações analíticas..............................................................................120
3.2.1 Interpretando sonhos a caminho da América....................................122
3.2.2 Resistência em análise, resistências à análise..................................126
3.2.3 Método dialético e recalcitrância....................................................... 129
3.3 O processo de individuação ou a arte de fazer bons vínculos.............133
4. O laboratório analítico.....................................................................................139
4.1 Novos caminhos da psicologia................................................................139
4.2 Jung, o pragmatismo de William James e das Wirksame.......................142
4.3 A introspecção re-imaginada e o “caso Jung”.........................................145
4.4 A função transcendente e o método da imaginação ativa.......................152
4.5 Desdobrando e compondo o psíquico.....................................................159
4.6 O método construtivo e a influenciologia.................................................162
4.7 Últimas palavras... ..................................................................................166
Referências Bibliográficas
8
Introdução
“Two roads diverged in a wood, and I —
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
1
— Robert Frost
O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) é o criador da psicologia
analítica, uma das principais correntes da psicologia e psicoterapia do século XX.
Suas concepções sobre a psique são o produto de mais de 50 anos de observação
clínica de pacientes, do exame de sua própria vida anímica e de vasta pesquisa
bibliográfica. Movido por um forte espírito interdisciplinar, buscou inspiração na
filosofia, etnologia (ciências sociais), biologia, mitologia, religião, alquimia e física. O
resultado deste esforço prático e intelectual está consolidado em uma extensa obra
escrita, que compreende cerca de 30 volumes entre livros, seminários e cartas.
Jung iniciou sua carreira profissional em 1900 como psiquiatra assistente no
Hospital Psiquiátrico Burghölzli, em Zurique, então dirigido por Eugen Bleuler. No
período de cerca de 10 anos em que trabalhou na instituição, desempenhou um
papel fundamental na concepção do moderno conceito de esquizofrenia,
colaborando para a formulação de uma etiologia psíquica da psicose. Mas o que de
fato lhe rendeu fama internacional no campo da psiquiatria, já naquela época, foram
seus experimentos com associação de palavras e sua teoria dos complexos. Nestes
primeiros anos de exercício da psiquiatria, Jung travou contato profissional com
importantes nomes no tratamento de doenças mentais, além de Bleuler, que
influenciaram sobremaneira sua pesquisa psicológica nos anos posteriores, como o
psiquiatra francês Pierre Janet, o psicólogo suíço Théodore Flournoy e o psicanalista
vienense Sigmund Freud.
1
“Duas estradas divergiam em um bosque e —/ Tomei a menos trafegada,/ E isto fez toda a
diferença” (Tradução de Ubirajara Pereira). As demais traduções de citações de textos em língua
estrangeira utilizados nesta tese são minhas.
9
Em 1906, Jung escreve a Freud dando início tanto a uma colaboração
profissional quanto a uma amizade pessoal, que se estenderam durante os seis
anos seguintes, aproximadamente. Neste período de adesão às idéias freudianas,
Jung ajudou a fazer da psicanálise um movimento de alcance internacional. Exerceu
então as funções de presidente da Associação Psicanalítica Internacional e de editor
do primeiro periódico psicanalítico
2
. Ajudou a organizar os primeiros congressos
internacionais de psicanálise. Sugeriu ainda a exigência da análise didática para
futuros analistas, procedimento até hoje básico na formação dos psicoterapeutas,
sejam freudianos ou junguianos (cf. Shamdasani, 2003).
Divergências pessoais e teóricas fizeram Jung afastar-se de Freud e da
psicanálise (ou seria o caso de dizer que Freud e a psicanálise se afastaram de
Jung?). Este afastamento significou, ao mesmo tempo, o aprofundamento da
pesquisa de outros saberes — filosóficos, biológicos, etnológicos etc. — que, em
conjunto, contribuíram para a elaboração de uma teoria psicológica e prática
psicoterapêutica próprias, que Jung denominou “psicologia analítica”. No período
que vai de 1914 até 1920, lançou as bases teóricas de sua psicologia por intermédio
da formulação de concepções como as de símbolo, imaginação ativa, função
prospectiva do inconsciente, inconsciente coletivo, arquétipo, processo de
individuação, função transcendente, realidade psíquica e tipos psicológicos. Nestes
anos ocorreu, ainda, o nascimento do Clube Psicológico, local de debate das idéias
nascentes da psicologia analítica. O Clube foi a semente do que mais tarde, em
1948, veio a ser o Instituto C. G. Jung, até hoje o principal centro mundial de
formação de analistas junguianos.
A saída definitiva do Burghölzli, em 1910, implicou uma mudança significativa
no perfil da clientela de Jung. Como o hospital psiquiátrico era uma instituição
pública, boa parte de seus pacientes era proveniente das classes mais baixas.
Clinicamente, havia grande quantidade de pacientes psicóticos ou sofrendo de
transtornos mentais similarmente graves. No seu consultório privado,
diferentemente, Jung passou a atender apenas pacientes neuróticos (salvo raras
exceções), em sua maioria pessoas bem educadas, das classes média e alta, bem
adaptadas do ponto de vista social (cf. Bair, 2003). Nomes ilustres como o escritor
2
O periódico se chamava “O anuário de psicologia e pesquisas psicanalíticas e psicopatológicas”.
Seu primeiro meio-volume foi lançado em fevereiro de 1909.
10
Hermann Hesse, o físico Wolfgang Pauli e o psicólogo Henry Murray foram seus
pacientes particulares.
A partir de 1929, Jung passou a investigar o simbolismo alquímico e religioso
como fenômeno psíquico, procurando traçar paralelos entre o material proveniente
destas áreas e as experiências observadas em seus pacientes. Seus interesses,
sempre variegados, fizeram-no levar suas reflexões psicológicas para além do
setting analítico e discutir problemas contemporâneos como o nazismo, a
massificação do homem moderno e a crença em discos voadores. Jung (cf. 1981)
buscou ainda aproximar a pesquisa dos processos inconscientes das formulações
da física contemporânea
3
.
Jung faleceu em 1961, aos 86 anos. Após quase 50 anos transcorridos desde
sua morte, qual a sua contribuição para a cultura contemporânea, em particular para
a psicologia? Que ele tem a ainda a oferecer-nos? Dito de outro modo, qual a sua
herança?
Herança e heresia
Pode-se pensar a herança de Jung de diversas maneiras. Poderíamos
invocar, primeiramente, sua contribuição teórica: 1) a noção de psique como um
fenômeno sui generis; 2) a teoria dos complexos como indicador de um psiquismo
irredutivelmente multifacetado; 3) a teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo
como tentativa de articular biologia, etnologia e psicologia, o arcaico e o moderno, o
individual e o “coletivo”; 4) o conceito de individuação como meio de descrever a
personalidade em termos de uma tendência à diferenciação; 5) a teoria dos tipos
psicológicos, que deu ensejo à formulação de inventários contemporâneos de
personalidade
4
e 6) a psicologia do inconsciente como instrumento de estudo da
psicologia da religião. Mas poderíamos igualmente considerar, como principal
legado, seus aportes para a prática clínica: 1) a transformação do experimento de
associação de palavras de Galton e Wundt no primeiro teste projetivo em psicologia;
2) a sugestão de que o analista deve ser ele próprio analisado; 3) a atenção para
com o aspecto prospectivo da experiência psíquica; 4) a criação do método da
3
Em 1952 foi publicado Naturerklärung und Psyche (Interpretação da natureza e psique), livro onde
Jung e Wolfgang Pauli, eminente físico quântico e ex-paciente seu, tratam de psicologia e física,
respectivamente.
4
Inventários de personalidade como, por exemplo, o MBTI (Myers-Briggs Type Indicator).
11
imaginação ativa no trabalho com as imagens psíquicas e 5) o método dialético
como o procedimento fundamental na relação entre analista e paciente.
Entretanto, acredito que a contribuição maior de Jung para a cultura e
psicologia contemporâneas não resida exatamente em nenhum destes tópicos. Seu
legado teria mais a ver com uma espécie de atitude ou modo de ação do que
propriamente com o conteúdo ou ato em si. Como bem observou James Hillman
(1988) — certamente o nome mais importante surgido no universo da psicologia
analítica depois de seu fundador — Jung parecia ter “o olhar para idéias heréticas,
radicais” (p.9). Com efeito, desde o começo de sua atividade profissional, o interesse
pelo lado estranho, anômalo, excepcional da psique se fazia presente. Um primeiro
exemplo: em vez de seguir a pesquisa do funcionamento das associações de
palavras, nos moldes de Wundt, Kraepelin e Aschaffenburg, Jung se interessou
exatamente em saber como, quando e por que as associações não funcionavam, ou
seja, falhavam (ver Capítulo 2). Isto o conduziu à formulação da teoria dos
complexos, que descreve a psique como constituída de agrupamentos ideo-afetivos
semi-autônomos. Em virtude de sua “intencionalidade”, os complexos podem ser
comparados a espíritos, daimones e divindades. Para Jung, o homem moderno, ao
menosprezar tais fatores como “nada mais que” atividade psíquica — mesmo
quando, na forma de uma neurose ou psicose, destroem sua vida —, coloca-se em
desvantagem em relação ao “primitivo”, que sabe reconhecer a potência desses
fatores quando os denomina “deuses” ou “espíritos” e com eles tenta haver-se.
Nota-se a atitude herética, controversa, subversiva de Jung no seu
entusiasmo por outro subversivo da história da psicologia, Sigmund Freud. O
psiquiatra suíço foi um dos raros leitores da primeira edição de A interpretação dos
sonhos, datada de1900 — o livro de Freud vendeu apenas 351 cópias nos primeiros
seis anos de publicação. Jung escolheu tomar o partido de Freud quando este não
era ainda a figura notável no campo da psicopatologia, que veio a tornar-se.
Diferentemente de si mesmo e de Bleuler, que gozavam de reputação internacional
no círculo psiquiátrico em meados da primeira década do século XX (cf. Kerr, 1997),
Freud e sua psicanálise causavam profunda desconfiança entre seus pares.
Posteriormente, em 1912, quando Jung já não podia desconsiderar suas
divergências em relação a Freud — o rompimento “oficial” dos dois era apenas uma
questão de tempo — foi por meio das palavras de outro “herege”, o filósofo
Friederich Nietzsche, que se pronunciou. Na carta de três de março daquele ano,
12
citando o Zaratustra, anotou: “Paga-se mal a um professor se se permanece apenas
um aluno” (Jung apud McGuire, 1993, p.496). Ao término da citação, concluiu: “Foi
isso que o senhor me ensinou através da ΨA [psicanálise]” (id., ibid., p.497).
A heresia de Jung se mostrou também presente na eleição de temáticas
estranhas à ortodoxia científica, como a mitologia, o gnosticismo e mais tarde a
alquimia, que considerou a antecessora histórica da psicologia do inconsciente. Ao
fazer a aproximação entre psicologia analítica e alquimia, um saber considerado pela
comunidade científica como inteiramente ultrapassado, Jung estava sem dúvida
arriscando a credibilidade como psiquiatra e cientista, mesmo que sua comparação
se restringisse tão-somente à esfera psicológica. Escreveu ainda sobre I-Ching, Zen-
Budismo e parapsicologia antes de esses assuntos se tornarem bens de consumo
pelo insosso mercado da New Age. E mesmo quando abordava um tema
contemporâneo, como o fenômeno do nazismo nos 1930 e 1940, seu olhar era no
mínimo “singular”. Percebeu na ascensão do nacional-socialismo a presença mítica
do furioso Wotan, o velho deus germânico da tormenta. Descreveu os alemães de
da época como “possuídos” por esse deus. Traduzida em linguagem psicológica, tal
possessão significaria a identificação da consciência subjetiva com um fator psíquico
irracional, um arquétipo (ver Capítulos 2 e 3).
Outra matéria em que Jung foi mais uma vez “escandaloso” e “iconoclasta”
foi a religião cristã. E aparentemente desde muito cedo. Filho de pai pastor, o
menino Carl Gustav foi criado, no final do século XIX, em uma atmosfera marcada
pela religiosidade protestante, o que não o impediu, entretanto, de viver experiências
psíquicas perturbadoras e demasiado estranhas à mentalidade cristã. A primeira
delas foi um sonho de quando tinha três ou quatro anos de idade. Sonhou que se
achava em um campina; notou que havia uma cova no chão e, curioso, decidiu
explorá-la. Dentro, deparou-se com um trono sobre o qual se erguia uma figura
grande como uma árvore, feito de pele e carne viva. Sua parte superior era cônica e
arredonda. Não tinha rosto, salvo um único olho que, imóvel, fitava o sonhador.
Ouviu então a voz de sua mãe dizendo para olhar bem para a criatura porque se
tratava do “devorador de homens”. Aterrorizado, despertou. O pavor gerado pelo
sonho foi tão forte que por vários dias não queria dormir, temendo a repetição do
pesadelo. Mais tarde veio a reconhecer na “forma estranha”, monstruosa, sobre o
trono um “falo ritualístico” (cf. Jung, 1985a).
13
A segunda experiência de Jung reveladora de uma espécie de atitude
iconoclasta face ao cristianismo foi uma visão que lhe arrebatou a alma quando tinha
então 12 anos. Diante de seus olhos “viu” a bela catedral de sua cidade sob o céu
azul. Muito acima, no alto, estava Deus instalado em seu trono de ouro. Segundo
suas próprias palavras, “debaixo do trono, um enorme excremento cai sobre o teto
novo e colorido da igreja; este se despedaça e os muros desabam” (Jung, 1985a,
p.47).
Muitos anos depois — década de 1930 em diante — quando já era um
profissional renomado, Jung transformou sua inquietação juvenil com o cristianismo
em madura reflexão psicológica. Apontou uma grave lacuna no símbolo maior do
cristianismo, isto é, o símbolo do Cristo. Tratar-se ia de uma imagem inadequada
para descrever a totalidade paradoxal da experiência humana (o si-mesmo) porque,
identificada exclusivamente com o Bem ou a luz, não reconhece em si sua
contraparte inseparável, o Mal, a escuridão do ser. Por sua vez, a figura do homem
sem este lado sombrio “carece de corpo e humanidade” (id., 1978a, p.42). Para
Jung, a doutrina cristã da privatio boni (ausência do bem), que buscou reduzir o mal
a uma simples “falta acidental de perfeição”, não possuindo desse modo substância
enquanto tal, em nada corresponde à realidade ao nível da psicologia empírica,
onde o mal é “substancialmente” deletério.
Em 1953, no texto “Resposta a Jó”, Jung (cf. 1988b) foi além em sua análise
herética do cristianismo. Descreveu Javé (ou Yaweh) como tendo sido terrivelmente
injusto com Jó, ao projetar Sua sombra, isto é, Seu “mal”, sobre o pobre mortal.
Nesse sentido, o advento de Cristo foi o modo que Javé encontrou para redimir-se
da iniqüidade cometida com Jó, sofrendo Ele próprio na carne tal como um homem.
Assim, Jung está nos dizendo que o homem salvou Deus e não o contrário. Com
esta interpretação “herética”, deslocou o maior sujeito/tema da cultura ocidental (cf.
Hillman, 1988). O livro causou enorme mal estar entre os teólogos. Em sua carta de
resposta ao padre Victor White, que havia feito uma resenha duríssima do texto — e
principalmente de seu autor —, Jung (2002) anotou: “Acho que sou um herege”
(p.148). Mais adiante, concluiu: “Decididamente não estou do lado do vencedor, mas
sou muito impopular tanto na esquerda quando na direita. Não sei se mereço ser
incluído em suas orações” (id., ibid., p.148).
Heresia, subversão e deslocamento do habitual como o principal legado de
Jung? Não entendo a atitude “herética” junguiana como um libelo a favor da ação
14
“revolucionária” ou algo semelhante, mas, antes, como metáfora sugestiva da
importância do risco para poder-se produzir diferenças, criar novidade. Mas será que
todos os que se dizem seguidores da psicologia analítica pensam assim? Ora, a
herança, qualquer que seja, não existe por si só. É preciso práticas reiteradas para
sustentá-la e prolongá-la, sem as quais ela simplesmente não existiria. Como
mostrou a psicóloga belga Vincienne Despret (2001), nossas práticas efetuam nossa
herança; são o seu vetor. Isto transforma a herança em um problema e não mais em
solução. Paradoxalmente, uma herança se torna algo que ao mesmo tempo se
recebe e se constrói. Quer dizer, somos efeito e agentes construtores de nossa
própria tradição. Pensando desse modo, podemos indagar o que os junguianos têm
feito com sua herança? Qual a sua atitude em face da tradição que receberam?
Para responder esta questão convém primeiro diferenciar “visão de mundo” e
“versão de mundo”.
“Subvertendo” Jung
Podemos definir teorias e práticas em termos de visões ou versões de mundo
(cf. Despret, 2001). Quando julgamos nossas concepções e ações de modo
adversativo como verdadeiras ou falsas e conseqüentemente eliminamos a
possibilidade de convivência entre diferentes e múltiplos saberes, estamos adotando
uma visão de mundo. Assim como uma estrada percorrida repetidas vezes, uma
visão de mundo produz em nós o sentimento de segurança, a fantasia de estar em
um território protegido e resguardado. Ocorre, porém, que toda esta proteção tem
um preço: sem correr riscos, as teorias e as práticas se tornam deterministas e
unilaterais, não produzindo senão tautologia.
Falar em versões de mundo, diferentemente, significa reconhecer a
“coexistência múltipla de saberes, de definições contraditórias e de controvérsias”
(Despret, 2001, p.37). Uma versão implica necessariamente outra versão ou
“contraversão”, a qual vem contrapor-se ou modificar. Afirmar a pluralidade de
saberes não significa, entretanto, sustentar que se equivalham. Em vez de avaliá-los
como verdadeiros ou falsos — como no caso de uma visão — devemos nos
perguntar qual versão é mais articulada. Por articulação de uma versão entenda-se a
sua capacidade de produzir diferenças e permitir integrar-se com outras versões,
prolongando-as e transformando-as. Escolher o caminho desconhecido ou talvez
15
pouco percorrido de uma versão implica risco; risco de gerar versões pouco
articuladas, que não produzirão senão redundância e repetição — aproximando-se
da noção de visão — e oportunidade de criar-se outras versões mais articuladas que
darão ensejo a mais fenômenos existirem e combinarem-se entre si.
Com estas considerações em mente, voltemos à questão levantada
anteriormente sobre o modo como os junguianos têm se apropriado de sua herança.
Parece-me que muitos fizeram da psicologia de Jung uma visão de mundo. Quer
dizer, contentam-se em tomar suas idéias como definitivas e portanto não querem
correr o risco de confrontá-las com outros saberes, fogem da controvérsia como o
diabo da cruz. Para estas pessoas basta o que Jung escreveu. Hillman (1989b), com
um comentário ácido, referiu-se à maioria dos junguianos como “gente de segunda
linha com mente de terceira categoria” (p.45). Complementou sua avaliação com a
seguinte observação:
“Eles apenas vivem das idéias de Jung (ou Freud, tanto faz), sem
acrescentar nem mesmo uma vírgula por si mesmos. Isto é uma traição
gigantesca, uma desonestidade. Você deve pagar por aquilo que ganha
de uma escola levando suas idéias adiante” (id., ibid., p.45).
Este “levar adiante as idéias de sua escola” significa, primeiramente, conforme
Hillman (ibid.), questionar, duvidar de nossos pressupostos, “permitir-se ser
desafiado, arriscar-se em público” (p.45). Segundo outro psicólogo analítico, Michael
Vannoy Adams (cf. 2004), a fraca presença de junguianos na universidade, em
escala mundial, teria a ver, precisamente, com esta atitude de não “permitir-se ser
desafiado” pelo confronto com idéias diferentes. Adams descreve esse fenômeno em
termos de um “isolamento defensivo” dos junguianos.
O próprio Jung, aliás, temia tornar-se doutrina, objeto de culto de seguidores
acríticos. Em 1946, explanou seu anseio quanto a isto: “Só espero e desejo que
ninguém se torne junguiano. Eu não represento nenhuma doutrina, mas descrevo
fatos e apresento certos pontos de vista que julgo merecedores de discussão” (Jung,
2002, p.9). Entretanto, se nos fiarmos nas observações de Hillman, parece que,
infelizmente, o desejo de Jung não se realizou.
Não obstante, para mim, assim como para tantos outros “pós-junguianos”
além de Hillman e Adams, as idéias de Jung (como de qualquer outro autor, diga-se
de passagem) são tudo menos definitivas e inquestionáveis. Tal como Andrew
Samuels, Wolfgang Giegerich, Christopher Hauke, Paul Kugler e outros, encaro a
16
psicologia de Jung como uma tradição a ser transformada, até para que possa
enfrentar as questões do mundo contemporâneo. Penso esta psicologia como uma
versão que, de acordo com a herança herética de seu criador, deve ser
precisamente posta em risco, deslocada de seu sentido habitual, subvertida e
controvertida. Na prática, tal “subversão” ou “controvérsia” significa simplesmente
questionar seus pressupostos e conceitos fundamentais, suas proposições teóricas
de base, a partir de outro referencial teórico-metodológico. Esta tese se propôs a ser
este exercício epistêmico de questionamento e troca.
Para levantar as questões que me ajudaram a reimaginar a tradição da
psicologia analítica, adotei como referencial teórico-metodológico a teoria do ator-
rede (TAR), também denominada sociologia das associações. Michel Callon, John
Law e Bruno Latour são comumente considerados seus fundadores, embora
certamente outros nomes possam ser-lhes acrescentados. Contudo, como esta tese
não trata precipuamente sobre a TAR, mas se limita a empregá-la como referencial
analítico, decidi por razões de ordem operacional concentrar-me na obra de Latour,
principalmente. Dois “aliados” seus, entretanto, foram fundamentais para o
enriquecimento da discussão: o sociólogo e jurista francês Gabriel Tarde, com sua
definição do que é o “social”, e o etnopsicanalista franco-egípcio Tobie Nathan, com
seu trabalho na área da psicoterapia. Que o leitor não estranhe o emprego de uma
teoria sociológica para analisar a psicologia analítica. Como será mostrado no início
do Capítulo 1, Jung e a etnologia têm em comum muito mais do que se imagina.
Em linhas gerais, a TAR tem-se afirmado como um saber que rejeita a
descrição do mundo “moderna”. Latour (cf. 2005) não se refere à modernidade como
um período histórico marcado pela ruptura com um passado. Antes, entende que se
trata de um conjunto de práticas que não coincidem com sua teoria. Os modernos
teriam teoricamente concebido uma realidade bifurcada em natureza e cultura,
sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, liberdade e determinismo. Porém, na prática,
não era assim que operavam, já que estavam todo o tempo trabalhando com seres
híbridos, entidades simultaneamente sociais e naturais. Latour vai então chamar de
“não modernos” todos aqueles que partem primeiramente desse lugar central de
mistura e indeterminação.
A TAR, como versão não moderna de ciência social, propõe, no lugar dos
grandes divisores modernos citados, noções e conceitos como coletivo, ator, rede,
fatiche, mediador, vínculo e outros, a fim de descrever os eventos e processos
17
sociais de modo mais próximo da complicação que lhes é inerente (ver Capítulo. 1).
Esta tese buscou então examinar onde a psicologia analítica pode ser considerada
não moderna, articulando-se com a TAR, e apontar também onde as duas não
combinam, como nas ocasiões em que a psicologia analítica reproduz a lógica
moderna. Portanto, não se tratou de querer reduzir a psicologia de Jung à TAR. Em
vez disso, seria mais adequado pensar o emprego da TAR como uma espécie de
reagente químico que, aplicado à substância “psicologia analítica”, promoveu
determinadas “reações” que se desejou conhecer. O texto, isto é, a tese, tornou-se
desse modo um laboratório de experimentação do pensamento e da imaginação.
Trata-se, vale dizer, de uma abordagem inédita. Com efeito, são raríssimas às
referências a Latour nas obras de junguianos
5
. Acredito que, reapropriando-se da
herança de Jung por intermédio da TAR, podemos propor-lhe novos problemas, abri-
la a novos sentidos. As diferenças, conforme observou Latour (cf. 2002b), são
alimento para o pensamento. Que versão de psicologia analítica então é esta que
desponta depois de efetuada a sua mistura com a sociologia das associações? O
leitor benevolente que tire suas próprias conclusões ao cabo do texto.
A psicologia analítica: pré-moderna, moderna, pós-moderna... e não moderna!
Convém recordar que, curiososamente, a psicologia analítica foi
anteriormente classificada como “pré-moderna”, “moderna” e “pós-moderna”, o que
sugere uma complexidade ao nível de suas idéias fundamentais, visto permitirem
leituras tão heterogêneas. Vejamos resumidamente o que dizem os defensores
destas análises.
Em 1981, o renomado psicanalista francês J.-A. Miller (1999) acusou de ser
“o movimento junguiano anterior ao discurso da ciência”
6
(p.61). Assim como
astrologia, a psicologia de Jung operaria instituindo correspondências entre o micro
e o macrocosmo, disse Miller. Segundo Michel Foucault (cf. 1976), a episteme pré-
moderna do século XVI se caracterizava por uma mescla de razão, magia (cabala,
alquimia, astrologia etc.) e erudição textual. O principal traço deste saber era o
raciocínio por semelhanças. Em cada coisa — os astros, o Homem, os animais, as
5
S. Shamdasani (cf. 2003) e C. Hauke (cf. 2003), embora mencionem Latour, não aprofundam o
diálogo entre a TAR e a psicologia analítica, como pretendi fazer.
6
Resta a dúvida, ao ler-se o texto de Miller, se este autor de fato leu Jung para poder elaborar sua
crítica.
18
plantas, os minerais — era possível identificar uma correspondência ou analogia
com outra coisa. O mundo se dobrava sobre si mesmo, como imenso espelho onde
umas figuras se projetavam nas outras, num jogo de afinidades e similitudes infinito.
Com o advento da ciência moderna, esse mundo de correspondências foi aos
poucos se desfazendo, as palavras se separando das coisas. Com estas
considerações em vista, Miller parece sugerir que Jung não teria realizado a
necessária separação entre palavras e coisas, característica da ciência moderna.
Dessa maneira, a crítica está posta, a acusação consumada: o psiquiatra suíço é
ultrapassado, anacrônico. Jung é, dir-se-ia, um “pré-moderno”.
Sonu Shamdasani, historiador da psicologia ligado a University College of
London, publicou em 2003 Jung and the Making of Modern Psychology, livro
fundamental para compreender-se o lugar ocupado por Jung na história da
psicologia “moderna”. Shamdasani chama a atenção para a preocupação de Jung
com o estado de fragmentação em que se encontrava a psicologia à sua época.
Para o psiquiatra suíço, a grande dificuldade de fazer-se da psicologia uma ciência
residia justamente no fato de que seu objeto, a psique, coincidia com o sujeito que
deveria observá-la. Assim, as diversas teorias psicológicas existentes — inclusive a
sua — simplesmente refletiam a subjetividade, a “equação pessoal”, de seus
autores. O estado atual da psicologia, escreveu Jung (apud Shamdasani, 2003) nos
anos 1920, “pode ser comparada à posição da ciência natural no século XIII” (p.89).
Como forma de remediar esta situação, acreditava ser necessário criar-se um
vocabulário comum, uma quantidade mínima de princípios comuns entre essas
diversas teorias para estabelecer-se uma psicologia minimamente geral (ver
Capítulo 2). De modo algum, contudo, Jung pretendia que a psicologia analítica
fosse a “Psicologia”, mas uma teoria que pudesse contribuir para esse projeto de
uma psicologia geral. E é exatamente aqui que Shamdasani (ibid.) situa o conceito
de inconsciente coletivo (e seus conteúdos, os arquétipos). Tratar-se-ia da tentativa
de Jung de estabelecer um nível de universalidade da personalidade subjacente às
diferenças individuais. O inconsciente coletivo, ultrapassando as contingências
culturais, seria o “natural” psíquico. Sua universalidade é que asseguraria a
cientificidade da psicologia. Refletindo de acordo com a abordagem sociológica de
Latour, o esforço de Jung em demarcar um inconsciente coletivo natural revelaria um
trabalho teórico tipicamente moderno de purificação dos fatos das crenças que os
obscurecem. Desse ponto de vista, Jung é um moderno.
19
Finalmente, o analista junguiano inglês Christophe Hauke (cf. 2003) nos
oferece uma terceira via para situarmos Jung, a pós-modernidade. No seu livro Jung
and the Postmodern, de 2000, Hauke identifica o termo “moderno” com o estilo de
racionalidade vigente no Ocidente desde o Iluminismo, sobretudo. Estilo que poderia
ser resumido como a crença no Progresso, na Verdade e na Razão. Pós-moderno,
então, não seria exatamente um período histórico mas, antes, uma posição crítica
diante desses valores. A psicologia de Jung, segundo o analista inglês, teria
aspectos pós-modernos quando em muitos momentos põe em causa os preceitos
estabelecidos da modernidade.
Se pensarmos como Latour, o problema do enfoque de Hauke talvez seja o
mesmo do de Miller: acreditar que o projeto moderno efetivamente se consumou.
Isto é, se de fato “jamais fomos modernos”, que dizer então de uma suposta pré-
modernidade ou pós-modernidade?
Moderno, pré-moderno, ou pós-moderno... Jung foi provavelmente um pouco
dos três, dependendo do ângulo em que nos situarmos para analisá-lo. Creio,
entretanto, que nenhum desses enfoques esgota o debate em torno da psicologia
analítica. Cada um ao seu modo, supõe que de fato houve uma “modernidade”, que
seu projeto de separar natureza e cultura foi, na prática, em algum momento
vitorioso. Por outro lado, pensar a psicologia analítica não modernamente significa
enfatizar aquilo que os modernos faziam mas não admitiam, ou seja, operar com
entidades sócio-naturais, híbridas, vinculadas. Em suma, aqui se está propondo a
possibilidade de mais uma versão da psicologia analítica; versão que se deseja,
antes de mais nada, bem articulada.
A tese está dividida em quatro capítulos.
O Capítulo 1 discute questões como a divisão moderna da realidade em
natureza e cultura, os diferentes sentidos para o “social” e a crise da objetividade.
Buscou-se descrever as idéias, os conceitos e os princípios metodológicos da TAR,
tais como coletivo, proposição, ator-rede, plasma, vínculo etc, que serviram de termo
de comparação e análise da psicologia analítica nos demais capítulos. Os escritos
de Bruno Latour são aqui a principal fonte de informações, seguidos em menor grau
dos trabalhos de Tobie Nathan e Gabriel Tarde. Convém dizer que Nathan, por
desenvolver uma prática em psicoterapia, permitiu propor à psicologia clínica de
20
Jung determinadas questões que o enfoque mais estritamente sociológico de Latour
e Tarde não possibilitavam.
O Capítulo 2 inicia a apresentação da psicologia analítica de Jung. Trata
essencialmente da definição de psique e da descrição de suas agências. Procurou-
se aproximar o conceito junguiano de realidade psíquica da noção de mediador de
Latour. De modo análogo, tentou-se mostrar a compatibilidade entre as de idéias de
ator-rede, interação das mônadas e a teoria dos complexos. No que concerne à
teoria dos arquétipos, destacou-se o movimento caracteristicamente moderno de
Jung no sentido de separar natureza e cultura e, ao mesmo tempo, reatá-las.
Buscou-se, ainda, ressaltar uma leitura pragmática dos arquétipos, tornando
possível que fossem comparados aos transpavores de Latour.
O Capítulo 3 procurou enfatizar o aspecto relacional dos conteúdos anímicos.
A noção junguiana de “relação” permitiu uma comparação promissora com a noção
de vínculo de Latour. A “relação” pode ser observada tanto intrapsiquicamente,
quando se refere às interações entre os diferentes componentes anímicos, quanto
interpsiquicamente como, por exemplo, no encontro analítico entre terapeuta e
paciente. Procurou-se ainda mostrar como o método dialético de Jung guarda forte
semelhança com certas regras metodológicas da TAR.
O Capítulo 4, o derradeiro, focou-se sobre o método da imaginação ativa e o
método construtivo de Jung. A imaginação ativa envolve, ao nível psíquico, tarefas
semelhantes às descritas por Latour em relação ao “coletivo”. Revela, ainda, a
inseparabilidade das esferas natural e social na experiência psíquica de fantasia. O
método construtivo, por sua vez, mostra-se, em muitos aspectos, afinado com a
influenciologia etnopsicanalítica de Nathan.
Em todo o texto, busquei seguir o “ator” Jung de tão perto quanto possível.
Com isto, quero dizer que tentei ser primeiramente descritivo para, só em um
segundo momento, propor as comparações com a TAR. Esta ênfase sobre a
descrição se traduziu, como era de esperar-se, na preferência por fontes primárias
7
.
Não obstante, alguns livros de “comentaristas” foram fundamentais para realização
deste trabalho: o fenomenal Jung and the Making of Modern Psychology, de Sonu
7
Não sendo eu capaz de ler alemão, fui obrigado a contentar-me com traduções. Sempre que pude,
dei preferência à tradução de língua inglesa por causa de sua indiscutível melhor qualidade quando
comparada com a nacional (há de fato erros medonhos nas traduções brasileiras dos livros de Jung!).
Contei, felizmente, com a colaboração da psicóloga Lorena Richter que, leitora de Jung no original,
ajudou-me a esclarecer problemas das traduções sempre que precisei.
21
Shamdasani, Jung and the Postmodern, de Christopher Hauke, e os escritos de
James Hillman, em particular Healing Fiction.
O “laboratório analítico” a que o título deste trabalho faz referência tem um
duplo aspecto, que convém explicitar. De um lado, trata-se da concepção que Jung
fazia de seu trabalho psicoterapêutico, como se procurou mostrar no Capítulo 4. De
outro, aponta a função experimental inerente à escrita da tese ela própria: isto é,
este texto como “laboratório” de idéias ou do pensamento — o texto como
“laboratório analítico”.
22
Capítulo 1 – A Teoria do Ator-Rede: Bruno Latour e seus aliados
“Este mundo é muito misturado...”.
— Guimarães Rosa
1.1 Por que a teoria do ator-rede?
O sociólogo francês Bruno Latour, juntamente com Michel Callon e John Law,
é um dos criadores da teoria do ator-rede (TAR). Latour ele próprio, aliás, pode ser
considerado um “ator dentro de uma rede”
8
, visto que seus textos exibem a
significativa influência de múltiplos autores provenientes de domínios heterogêneos
como a filosofia, a sociologia e a semiótica. Da filosofia contemporânea, podemos
citar a contribuição de Michel Serres, Isabelle Stengers e Gilles Deleuze. E se
recuarmos um pouco no tempo, é impossível deixar de mencionar os nomes dos
filósofos William James e Alfred North Whitehead. No campo das ciências sociais, as
idéias do sociólogo Gabriel Tarde são, provavelmente, a principal fonte de inspiração
de Latour. Entretanto, para os propósitos desta tese, um de seus interlocutores mais
interessantes é o etnopsicanalista Tobie Nathan, por seu trabalho no campo da
psicoterapia, a área de maior atuação prática da psicologia analítica.
Três são as principais razões da escolha da TAR como referencial de análise
das idéias de Jung.
Em primeiro lugar, a contribuição das ciências sociais ou da etnologia foi
historicamente muito importante para a elaboração da psicologia analítica. Jung
absorveu em seu corpus teórico conceitos e idéias de etnólogos como Adolf Bastian,
Lucien Lévy-Bruhl, Marcel Mauss e John Layard. Entretanto, não satisfeito com a
informação bibliográfica de segunda mão, Jung decidiu ir “a campo” para colher
dados, buscando assim desenvolver uma espécie de “etnopsicologia comparada”.
8
A noção de ator-rede será explicada mais adiante, ainda neste capitulo.
23
Ao longo dos anos 1920, visitou os índios Pueblo, nos Estados Unidos, e a tribo dos
Elgony, em Uganda, na África central.
A partir dos anos 1920, foi a psicologia de Jung que começou a despertar o
interesse dos cientistas sociais, tanto positiva quanto negativamente
9
. Se é verdade
que nomes como Paul Radin e Bronislaw Malinowski rejeitaram, respectivamente, a
concepção de Jung da mentalidade dos “primitivos” e do inconsciente coletivo,
também é igualmente verdadeiro que Edward Sapir e Margaret Mead inspiraram-se
na sua teoria dos tipos psicológicos. Mais notável ainda foi a tentativa do
antropólogo John Layard de “interpretar os padrões de parentesco e as estruturas
sociais dos Vao em termos da psicologia analítica” (Shamdasani, 2003, p. 337). Este
trabalho, assim como o que Layard escreveu sobre o tabu do incesto, chamaram a
atenção de Jung, que veio depois a incorporá-los no seu livro Psicologia da
transferência. Mais recentemente, Jung aparece como uma importante influência
sobre a antropologia do imaginário de Gilbert Durand
10
e a sociologia do imaginário
de Michel Maffesoli
11
, seu seguidor.
Um trabalho pioneiro no sentido de aprofundar a relação entre a psicologia
analítica e as ciências sociais é o livro Jung’s Psychology and its Social Meaning, do
cientista social americano Ira Progoff (cf. 1981), publicado originalmente em 1953.
Fundamentalmente, Progoff procurou aventar em seu texto a relevância das idéias
de Jung para compreensão de questões de cunho histórico e social. Apontou
semelhanças, por exemplo, entre os enfoques dos historiadores Lewis Mumford e
Arnold Toynbee, e certas abordagens da psicologia analítica. Mostrou principalmente
a forte influência que a sociologia francesa de Emile Durkheim exerceu sobre as
concepções junguianas. Segundo Progoff, Jung tal como Durkheim considerou o
homem como um ser primariamente “social”. Isto é, em primeiro lugar viria a
sociedade depois, o indivíduo. Na linguagem junguiana, ainda de acordo com
Progoff, este “social” é sinônimo do inconsciente coletivo, a parte mais profunda da
psique, que atuaria como uma espécie de estrutura formadora da consciência
individual. A análise de Progoff é, sem dúvida, legítima — o próprio Jung, aliás,
9
Sobre a complexa relação de Jung com a etnologia e, simetricamente, dos etnólogos com a
psicologia analítica, ver o capítulo 4, “O antigo no moderno”, de Jung and the Making of Modern
Psychology do historiador Sonu Shamdasani (2003).
10
Para entender como Durand interpreta as idéias de Jung, ver As estruturas antropológicas do
imaginário: introdução à arquetipologia geral e A imaginação simbólica.
11
Ver, por exemplo, O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas, A parte do
diabo: resumo da subversão moderna e O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno.
24
aprovou-a. Entretanto, vale adiantar que ela segue praticamente na direção oposta à
almejada pelo presente trabalho. Aqui, como se poderá constatar, pretendeu-se
exatamente afastar a psicologia analítica da versão de sociologia de sabor
durkheimiano, denominada por Latour “sociologia do social”.
Depois de expostas estas várias tentativas de diálogo entre a etnologia e as
idéias de Jung, não deve causar estranheza ao leitor a proposta de apreciação da
psicologia analítica pela sociologia das associações, que é afinal o objetivo deste
trabalho. Abraçando uma teoria sociológica, estou aqui simplesmente dando
prosseguimento a uma história de trocas de saberes que já dura cerca de 100 anos!
A novidade está propriamente no referencial teórico-metodológico escolhido, a TAR:
até o momento nenhum exame sistemático da psicologia analítica foi realizado por
intermédio desta metodologia.
Em segundo lugar, acredito que a TAR, por tratar-se de um enfoque
contemporâneo das ciências sociais, pode atuar como uma espécie de instrumento
de avaliação da “vitalidade” — ou “atualidade”, se preferirmos — da psicologia
analítica. Assim, ao final da tese, espera-se saber se esta versão de psicologia,
parcial ou totalmente, mostra-se compatível com os princípios metodológicos
propostos pela TAR e, assim sendo, prova-se “atual”.
A terceira e última razão se refere à própria sociologia das associações.
Historicamente, a sociologia da ciência é a subárea da sociologia que tomou como
objeto de investigação a atividade dos cientistas das ditas “ciências duras”, como a
física e a química. Pretendia estender às ciências o mesmo tipo de explanação
social anteriormente aplicado aos estudos de religião, classe, lei, cultura popular etc.
A TAR, por sua vez, surgiu exatamente como o ramo da sociologia da ciência que
reconheceu o fracasso da teoria social em explicar os fatos obstinados produzidos
pelos cientistas. Quer dizer, se a teoria social falhou em explicar a ciência, pode-se
deduzir que falhou igualmente nas demais áreas em que foi aplicada: “As
explicações sociais não podem ser ‘estendidas’ à ciência, assim elas não podem ser
expandidas a lugar algum” (Latour, 2005a, p.94). Ora, teria então a ciência destruído
a teoria social?
Latour argumentou que não é a sociologia da ciência, depois de admitido seu
fracasso heurístico, que tem de ser abandonada, mas a teoria social que a sustenta
é que precisa ser refeita. Apelar ao “social” como o agente ou a causa dos
25
fenômenos sociais não basta: afinal, como o social não explica nada, é ele próprio
que deve ser explicado.
Ao voltar-se para a ciência como objeto de pesquisa, pela primeira vez a
sociologia viu-se estudando “para cima”. Estudar religião, cultura popular, mercados,
arte etc. significava um movimento “para baixo”, na medida em que os analistas
sociais sempre consideraram os informantes destas áreas menos racionais, menos
objetivos, menos científicos que eles próprios. A força da ciência, estando ao lado
dos sociólogos, era empregada para impor a sua explanação social sobre os relatos
ou as versões dos informantes. Este quadro se modificou totalmente quando a
sociologia tomou como objeto as ciências duras. Nunca dantes havia estudado
fenômenos tão obstinados e resistentes à explanação social. E desta vez já não
podia mais apelar à racionalidade científica, posto que ela agora estava, em maior
grau, com os informantes. Latour (2005a) conta que, depois de passar uma semana
no laboratório de Roger Guillemin, chegou a uma conclusão inelutável: “O social não
pode ser substituído pelo mais ínfimo polipeptídio, pela menor rocha, pelo mais
inócuo elétron, pelo mais domesticado babuíno. Objetos da ciência podem explicar o
social, não o contrário” (p.99).
Latour (cf. 2004, 2005a) propõe outra teoria do social que faça jus às efetivas
práticas das ciências, que não separe de modo arbitrário os seres entre naturais e
sociais, conforme as teorias sociológicas (e psicológicas) costumam fazer. Para
tanto, é necessário ao mesmo tempo abandonar a natureza, redefinir o social e
repensar a produção científica. A TAR então pode ser definida, antes de mais nada,
como uma teoria sobre “como estudar as coisas”. Trata-se portanto de um método,
cujos princípios e procedimentos serão aos poucos expostos no decorrer deste
capítulo.
Dos estudos iniciais das práticas das ditas “ciências duras”, a sociologia das
associações logo se dispersou para outras áreas como estudos culturais, geografia
social, análise organizacional e estudos feministas (cf. Law, 2003). O vasto território
da psicologia, porém, permaneceu e permanece praticamente inexplorado pelos
autores da TAR. Com efeito, Latour nos deixa uma impressão pouco favorável da
psicologia por causa da insistência desta disciplina na separação entre os fatos da
natureza e as crenças sociais, precisamente a divisão política que deseja abandonar
(cf. Ferreira, 2003). Este trabalho, portanto, cumpre a função epistêmica de
enriquecer um diálogo até hoje incipiente.
26
1. 2 O Céu e a Caverna
A TAR reconheceu o fracasso das teorias sociais vigentes. Além disso,
verificou que essas teorias expressam um acordo político tácito, uma “constituição”,
que impõe às entidades componentes do mundo determinada forma de organização,
que passa como a única possível: o mundo partido entre Natureza e Sociedade
12
. O
problema está no fato de que estas duas idéias foram desenvolvidas ao longo dos
séculos para tornar impossível qualquer tipo de reconciliação. Latour (cf. 2004) vai
apontar o modelo ou mito de origem das noções de Natureza e Sociedade na
alegoria de Caverna de Platão. Esta alegoria apresenta duas rupturas fundamentais,
que são no fundo indissociáveis:
1. O mundo dos humanos vs. o mundo das verdades transcendentes
2. A falação humana vs. a lei objetiva
De acordo com a interpretação de Latour do mito de Platão, a caverna é a
morada dos humanos ignorantes; câmara da cacofonia política, representa o inferno
do social. Por sua vez, a realidade externa à caverna, o Céu das Idéias, é o local
onde se encontra a Verdade transcendente, a qual somente os sábios têm acesso.
O Sábio não é senão aquele que sabe ir à caverna e voltar dela; trata-se, em
linguagem hodierna, do cientista. Estes poucos eleitos que têm acesso à “Natureza”,
os cientistas, teriam o poder de decidir sobre o que é verdadeiro e real. Os demais
habitantes do mundo estariam fadados a permanecer agrilhoados no caos da vida
social. A ciência adquire, neste arranjo, o papel de espelho do mundo. Sem a
transcendência da Natureza para pôr ordem na caverna, adviria o caos na vida
pública.
A Ciência vem calar o falatório desordenado da caverna. Este acordo político
é o que Latour (cf. 2005b) denominou “Constituição moderna”. Acordo que, com
efeito, evita “toda interrogação sobre a natureza das complexas ligações entre as
ciências e as sociedades, pela invocação da Ciência como única salvação contra o
inferno social” (id., 2004, p.31). Como não há nenhum fundamento empírico que
sustente tal divisão, trata-se, por conseguinte, de uma razão política: alguns poucos
eleitos teriam o poder de “fazer falar o mundo, dizer a verdade sem ser discutida, pôr
12
Latour reconhece estar aqui retomando, com seus próprios termos, o “protesto” de A. N. Whitehead
(1994) contra a “a bifurcação da natureza em dois sistemas de realidade” (p.38).
27
fim aos debates intermináveis por uma forma indiscutível de autoridade, que se
limitaria às próprias coisas” (id., ibid., p.34). A natureza é usada, politicamente, para
por fim à própria política.
Segundo Latour, é perfeitamente legítimo e possível propor outro arranjo
para a realidade que, em vez de ocultar a política de sua conformação, torne-a
explícita. A divisão prematura do mundo em duas câmaras produziu o efeito nefasto
de abreviar o debate acerca da composição do mundo em que queremos viver. A
natureza transformou-se em um instrumento de força, em nome da razão, para
impedir a discussão pública, a Democracia, a República.
Latour mostrou que não há nem Natureza nem Sociedade constituídas a
priori; nenhuma transcendência celeste a ser invocada como meio de calar o
falatório da caverna. Será, portanto, preciso uma redefinição do quadro do mundo
que o modernismo nos legou. Sem a metafísica da Natureza e da Sociedade, pode-
se pensar o mundo como um pluriverso composto de uma multiplicidade de
proposições articuladas (associações de humanos e não-humanos) com limites
imprecisos
13
. Cabe a nós transformar este pluriverso em um “bom mundo comum”.
Para tanto, é necessário um movimento, um trabalho de composição no sentido de
organizar os seres em um “coletivo”, ou seja, um todo unificado, cuja estabilidade,
provisória, poderá ser sempre posta a prova. Ao final deste processo de
composição, e somente no final, poder-se-á classificar os seres
14
, se quisermos,
como naturais e sociais.
Assim como não há a Natureza, tampouco há a Ciência como sua imagem e
semelhança. O que existe efetivamente são ciências dispersas em uma
multiplicidade de laboratórios, centros de pesquisas, instituições; ciências que não
cessam de articular humanos e não humanos. Latour as considera como uma das
competências do coletivo que colaboram para a formação do mundo comum. E a
TAR, como metodologia, pode ser entendida como um instrumento que nos permite
descrever como uma ciência — a psicologia, por exemplo — desdobra e compõe
uma das “regiões” do coletivo.
13
Os conceitos de pluriverso e proposição serão desenvolvidos mais adiante.
14
O colóquio de Kyoto, realizado em 1997, para tratar dos problemas relativos ao meio ambiente
global, é um exemplo de como o mundo pode ser organizado de uma forma que não a modernista.
Em vez de duas câmaras, uma para os cientistas e outra para os políticos, o encontro organizou-se
ao redor de uma única assembléia, onde reuniram-se para debater cientistas, políticos, militantes e
industriais (cf. Latour, 2004).
28
Não há nada de errado em si com as práticas científicas. O acordo moderno,
disjuntor de natureza e cultura, nunca passou de um “projeto” porque as ciências,
efetivamente, desde sempre misturaram fatos naturais e crenças culturais, desde
sempre produziram híbridos e os fizeram proliferar (cf. Latour, 2005b). A grande
questão relativa às práticas científicas jaz na precipitação, na pressa redutiva, com
que elas são interpretadas segundo as categorias imutáveis de Natureza e
Sociedade. Tirar conclusões apressadas sobre as coisas é uma forma de simplificá-
las. A TAR sugere que andemos mais devagar, que sejamos como as “formigas”
15
,
para desta forma produzirmos um quadro do mundo mais coerente com a
complicação que lhe é inerente. Os grandes inimigos da TAR são a pressa e sua
irmã gêmea, a simplificação (cf. Law, 2003).
1. 3 Redefinido o social: o social como o coletivo em expansão
Conforme foi dito, a TAR rejeita a oposição Natureza vs. Sociedade adotada
pelas teorias sociais, porque se trata de um modo arbitrário de organizar o mundo.
Em seu lugar, oferece-nos um instrumental metodológico que permite descrevermos
os seres e sua composição neste mundo em outros termos, termos estes
fundamentalmente controversos e complicados. Mas como a TAR é uma teoria
social, uma versão de sociologia, é necessário primeiramente redefinir isto que vem
a ser o seu objeto, o “social”. Conforme veremos, esta diferente maneira de imaginar
o social implicará uma versão alternativa à alegoria platônica, ao “acordo moderno”.
Latour (cf. 2005a) define a noção de social retomando seu significado original
entendido como um “traçado de associações”. “Social” deriva do latim socius, cujo
significado é “companheiro” ou “associado”. A palavra socius, por sua vez, provém
da raiz seq- ou sequi, significando “seguir”. Com o decorrer dos séculos, este sentido
original do termo social, que envolvia todas as associações, foi encolhendo até
tornar-se uma espécie de “substância” remanescente depois que as demais
associações — política, biológica, psicológica, tecnológica etc. — foram discernidas.
Pode-se, portanto, distinguir dois significados da palavra “social”, que designam
coisas completamente diferentes:
15
Jogo de palavras: a sigla “TAR” é a tradução do inglês “ANT” que, além de abreviação Actor-
Network Theory, também significa “formiga”.
29
1) “Um movimento durante um processo de agrupamento” (Latour, 2005a, p.1),
que retém o sentido original do termo.
2) Refere-se a um “tipo específico de ingrediente que se supõe diferir de outros
materiais” (id., ibid., p.1), que é como hoje a palavra é comumente
empregada.
A segunda definição está relacionada a uma versão de teoria social, que
Latour vai denominar de “sociologia do social”. Fundamentalmente esta teoria
sociológica supõe a “existência de uma espécie de fenômeno diversamente
chamado ‘sociedade’, ‘ordem social’, ‘prática social’, ‘dimensão social’ ou ‘estrutura
social’” (id., ibid., p.3). O social seria um domínio à parte da biologia, física,
psicologia, economia, direito, geografia e política. Possuiria propriedades próprias
que, uma vez identificadas, permitem explicar o próprio social ou as características
sociais de um dado fenômeno não social. Por exemplo, a psicologia (ou ao menos
certa versão de psicologia) trata da descrição do funcionamento cognitivo humano,
buscando estabelecer seus invariantes. Contudo, existem determinados aspectos
obscuros da inteligência que só poderiam ser esclarecidos fazendo-se referência à
“influência social” sobre a cognição.
De acordo com esta versão de teoria social, explica Latour (ibid.),
“há um ‘contexto’ social no qual ocorrem atividades não sociais; [o social]
é um domínio específico da realidade; pode ser usado como um tipo de
causalidade para dar conta dos aspectos residuais com os quais outros
domínios (psicologia, lei, economia etc.) não podem lidar completamente”
(p.4).
Esta versão tornou-se a posição padrão nas ciências sociais. Disseminada por
múltiplos canais — jornais, revistas, livros, televisão, conversas de bar, partidos
políticos etc. — esta versão igualmente se tornou parte do senso comum. É desta
maneira como atualmente imaginamos o social.
A TAR ou sociologia das associações difere radicalmente da sociologia do
social. Segundo esta versão
16
, a sociedade não deve ser entendida como um
contexto subjacente que tudo envolve e determina. O social não é uma força oculta,
espécie de “cola”, que mantém os seres unidos. Tampouco deve ser entendido como
uma substância ou domínio especial. Trata-se, antes, de um movimento peculiar de
16
Latour distingue, além da sociologia do social e da sociologia das associações, ainda uma terceira
versão de teoria social, a “sociologia crítica”. Contudo, para os propósitos do presente trabalho, não é
necessário levá-la em consideração.
30
associação de entidades heterogêneas, “um tipo de conexão entre coisas que não
são elas próprias sociais” (id., ibid., p.5). O social, convém insistir, não explica nada,
já que é ele que precisa ser explicado. A sociologia, em vez de usar a sociedade
como um deus ex machina para explicar tudo, deveria ser a ciência preocupada em
descrever como uma sociedade se mantém reunida.
A sociologia do social pode bastar quando se trata de associações
estabilizadas de entidades já conhecidas. Entretanto, falha diante de “situações
onde as inovações proliferam, onde os limites do grupo são incertos, quando o
alcance das entidades a ser consideradas oscila” (id., ibid., p.11). Não é o objetivo
de Latour provar que as outras teorias sociais estão erradas, mas propor uma versão
mais articulada que busque descrever mais acuradamente o que os atores, isto é, os
construtores do social, efetivamente fazem. Daí o lema da TAR: “seguir os atores
eles mesmos”, ou seja, seguir os traços por eles deixados. Trata-se ainda de propor
uma teoria que inclua a incerteza e prolongue a controvérsia no seu interior para
desse modo evitar o arbítrio — e por que não a violência? — de explanações
demasiado prematuras.
As duas versões de teoria social mencionadas têm cada uma seu pai
fundador. A sociologia do social é herdeira do pensamento de Emile Durkheim
(1858-1917) enquanto que a sociologia das associações deriva das idéias do
sociólogo e jurista francês Gabriel Tarde (1843-1904). O modo a um só tempo
engenhoso e original como este último relacionou psicologia e sociologia pode
ajudar-nos a repensar a psicologia analítica de Jung e por isso deve ser examinado.
Inspirado em Leibniz, Tarde descreveu os elementos últimos da realidade em termos
de “mônadas”. Leibniz as havia definido como as substâncias formadoras dos
compostos. Com Tarde, esta idéia sofreu uma importante reformulação: as mônadas
são elas próprias compósitas até o infinitesimal. Assim qualquer fenômeno ou estado
de coisas — “o indivíduo social, a célula viva, o átomo químico” (Tarde, 2003, p.23)
— pode ser decomposto em infinitas diferenças. Com efeito, Tarde (ibid.) considerou
a diferença “a dimensão substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais próprio
e mais comum” (p.70). O seres partem de um estado inicial de diferença e na
diferença terminam. Daí o enunciado de Tarde (ibid.) — “existir é diferir” (p.70), que
parece ter sido escrito ontem e não em 1895, tamanha a proximidade com certas
correntes do pensamento filosófico contemporâneo.
31
Para Tarde, o mais importante em relação às mônadas não é contudo a
definição de sua essência, seu estado inicial e final, mas a sua ação recíproca,
conforme observou Henri Bergson. As mônadas por serem abertas e
interpenetráveis fazem de todo o fenômeno “uma nebulosa de ações emanadas de
uma multiplicidade de agentes que são como pequenos deuses invisíveis e
inumeráveis” (id., ibid., 45). Tarde descreve esta condição dos seres como uma
espécie de “politeísmo” ou “miriateísmo” (id., ibid., p.45).
Como todos os seres são compostos, Tarde (ibid.) concluiu que “toda coisa
[é] uma sociedade” (p.49). De fato falamos em sociedades estelares, animais,
celulares, atômicas etc. Desse modo, “todas as ciências parecem tornar-se ramos da
sociologia” (id., ibid., p.49). Mas o que exatamente vem a ser a qualidade distintiva
de uma sociedade? Tarde (ibid.) a descreveu como “a posse recíproca, sob formas
extremamente variadas, de todos por cada um” (p.85). Haveria, segundo ele, uma
tendência universal de uma mônada querer apropriar-se das outras mônadas, algo
como um desejo de conquista:
“Todo ser quer não ser apropriado pelos seres exteriores, mas se
apropriar deles. Aderência atômica ou molecular no mundo físico, nutrição
no mundo vivente, percepção no mundo intelectual, direito no mundo
social: a posse, em inúmeras formas, não cessa de se estender de um ser
aos outros seres, através de um entrecruzado de domínios variados, cada
vez mais sutis” (id., ibid., p.90).
A posse de um ser sobre outro se faz sob a forma de uma espécie de atração,
que Tarde denominou “imitação”. Imitar significa associar-se a outro ser ou, melhor
ainda, deixar-se por ele assimilar. O exercício da posse por meio da imitação é o que
caracteriza a vida social. Em outro momento, Tarde (apud Shamdasani, 2003)
aproximou esta noção social de imitação da psicologia do hipnotismo, ao defini-la
como uma “espécie de sonambulismo
17
” (p.284). Isto é, a condição do homem em
sociedade seria semelhante a de um estado hipnótico ou a uma forma de sonho —
“um sonho de comando e um sonho de ação” (id., ibid., p. 284).
O que impede, porém, o domínio absoluto de um ser ou uma mônada que
progressivamente fosse impondo-se pela imitação sobre a totalidade das coisas até
produzir um estado de completa uniformidade? A fecundidade dos concorrentes,
respondeu Tarde. As outras mônadas também querem possuir, também querem
17
Sobre a definição de “sonambulismo”, ver Capítulo 2.
32
realizar suas potencialidades. As formas de posse são múltiplas e seus graus
infinitamente variáveis, mas mesmo assim Tarde distinguiu duas espécies principais
de posse: a unilateral e a recíproca. Considerou a segunda como superior à
primeira:
“É ela que explica os belos mecanismos celestes nos quais, em virtude da
mútua atração, cada ponto é um centro. É ela que explica a criação
desses admiráveis organismos vivos, cujas partes são solidárias, onde
tudo é ao mesmo tempo fim e meio. É, enfim, através dela que, nas
cidades livres da Antiguidade e nos Estados modernos, a mutualidade de
serviços ou a igualdade dos direitos produzem o prodígios das nossas
ciências, de nossas indústrias, de nossas artes” (id., ibid., p.93).
Tarde também aventou a psique como uma sociedade, um composto de
mônadas, que exercem atrações unilaterais e recíprocas. Descreveu a consciência
em termos de “mônadas dirigentes”, cujo funcionamento recebe a ajuda de inúmeras
outras consciências ou mônadas auxiliares. Estas últimas indicam a existência de
processos inconscientes
18
, isto é, para além do controle da consciência dirigente,
operando silenciosamente na psique:
“Quando procuramos nos lembrar de um nome em meio a uma conversa,
de uma data, de um fato, a informação procurada freqüentemente nos
escapa, e só algumas horas mais tarde, quando pensávamos em outra
coisa completamente diferente, é que ela vem espontaneamente oferecer-
se a nós. Como explicar essa revelação inesperada? É que um secretário
misterioso, um hábil autômato trabalhou por nós enquanto a inteligência
(seria preciso dizer nossa inteligência, mônada dirigente) negligenciava
esses pequenos detalhes...” (id., ibid., p.35).
Resumindo, Tarde descreveu átomos, células, indústrias, leis e psiques como
diferentes formas de sociedade; são todos eles mônadas compostas de múltiplas
agências, que se interpenetram formando novas complexidades. Latour (2001a),
reconhecendo a enorme afinidade das idéias de Tarde com a TAR, observou que
“agência mais influência e imitação é exatamente o que tem sido chamado, embora
com outras palavras, um ator-rede” (p.2).
Latour vai então seguir a versão tardiana do social como forma de afastar-se
do impasse gerado pela divisão entre o inferno da caverna e o Céu das idéias.
18
Segundo Tarde (2003): “Há certamente desejos, juízos inconscientes. São assim os desejos
implícitos em nossos prazeres e em nossas dores, os juízos de localização e outros incorporados às
nossas sensações” (p.34).
33
Desse modo, a realidade pode ser descrita inicialmente como pluriverso — noção
que Latour toma emprestado de William James —, isto é, uma multiplicidade de
entidades cujas propriedades não estão definidas a priori. É necessário um trabalho
de composição para que este pluriverso se torne um mundo habitável e organizado,
um coletivo, um cosmo em expansão. O social torna-se, portanto, sinônimo do
pluriverso organizado como um coletivo de humanos e não humanos em expansão.
Juntar, reunir ou compor o coletivo é uma tarefa contínua e sempiterna, que visa a
produção do bom mundo comum. Conforme as palavras de Latour (2004):
“Em vez de ir da natureza ao humano, do realismo ao construtivismo,
pode-se ir, presentemente, da multiplicidade que não acolhe ainda
qualquer coletivo, o pluriverso, ao coletivo que a acolhia até aqui sob o
nome conjunto de política [sociedade] e natureza” (p.77).
A TAR vai então propor um conjunto de noções, conceitos e procedimentos
metodológicos que, resumidos, visam realizar duas tarefas em relação à experiência
social: desdobrar e compor. Esta dupla tarefa nada tem a ver com o bicameralismo
clandestino da Constituição moderna, cujo arranjo procurava exatamente ocultar a
política de sua conformação. A antiga metafísica da natureza dos modernos
supunha um mundo já unificado, totalizado, universalizado, ao qual se
acrescentariam as diferenças sociais. Já o bicameralismo explícito que Latour
descreve não denega mais a polêmica, a controvérsia, a política, como fatores
indispensáveis à formação do bom mundo comum. Em vez da metafísica da
natureza anterior, tem-se agora uma “metafísica experimental” entendida como o
conjunto de procedimentos destinados a descrever o coletivo em formação.
Assim, a primeira das tarefas de reunião do social deve ser desdobrar as
controvérsias em torno das entidades que povoam o mundo. Latour vai denominar
esta operação do coletivo de “poder de consideração”. A questão principal aqui é
saber quem são os seres que se candidatam a fazer parte do coletivo. A segunda
tarefa implica seguir como as entidades (atores) elas mesmas estabilizam as
controvérsias e desse modo “renovar nosso senso de estar no mesmo coletivo” (id.,
2005a, p.252). Latour denomina este trabalho de “poder de ordenamento”. A
questão relativa a este poder é saber se podemos viver todos juntos, formando o
bom mundo comum.
As próximas seções vão procurar desenvolver cada uma destas tarefas.
34
1. 4 Desdobrando o social
Vimos que uma sociedade pode ser definida como um agrupamento de
entidades heterogêneas. Devemos agora perguntar-nos em que consiste as
entidades que se tornam socializadas em um coletivo. A Constituição moderna nos
oferece como resposta, sem vacilar, a divisão dos seres entre objetos e sujeitos. De
um lado, haveria os fatos objetivos e, de outro, crenças e valores subjetivos. A TAR
nos ensina a não nos precipitarmos na investigação deste problema. É preciso
substituirmos as antigas certezas sobre a objetividade e a subjetividade pelas
incertezas sobre quem fala (embaraços de fala), quem age (capacidades de
associação e agências) e quem pode (recalcitrância dos acontecimentos) (cf. Latour,
2004).
O pensamento ocidental moderno se habituou a distinguir as qualidades
primeiras — as coisas enquanto tal, independentemente dos sujeitos — e as
qualidades segundas — as coisas como experienciadas pelos sujeitos
19
. As
qualidades primeiras se referem ao mundo comum que todos compartilhamos,
enquanto que as qualidades segundas dizem respeito às nossas diferenças
subjetivas psíquicas, lingüísticas e culturais (cf. Latour, 1999, 2004, 2005b). Estamos
aqui diante de uma divisão dos seres baseada em uma diferença de essência. Como
conseqüência, entre sujeito e objeto há de sempre haver um abismo intransponível a
separá-los, não importa os malabarismos teóricos que façamos para juntá-los. A
TAR considera fundamental evitarmos esta armadilha metafísica.
Assim, em vez da dicotomia sujeito-objeto dos modernos, Latour propõe a
distinção entre “humanos” e “não humanos”. Sujeito e objeto referiam-se a entidades
estáveis, “calvas”, infinitamente distantes umas das outras por sua própria ontologia.
Já humanos e não humanos são instáveis, “cabeludos” e cheios de dobras.
Associam-se por múltiplos caminhos, trocam propriedades entre si. Em vez do
essencialismo da concepção moderna, a TAR inspira-se na semiótica e adota uma
descrição performativa (pragmática) dos seres para dar conta da complicação que
envolve humanos e não humanos: ambos são considerados como “proposições”.
Uma proposição define-se pela sua “capacidade de falar”, sua “obstinação” (posição)
19
Trata-se, com efeito, da distinção proposta por John Locke, no séc. XVII: são chamadas qualidades
primárias as propriedades dos objetos, como forma, extensão e volume; já cor, odor e textura seriam
qualidades secundárias porque resultantes da ação do objeto sobre a percepção.
35
ou “recalcitrância” e, por não ter autoridade definitiva, aceita “negociar ela própria em
uma com-posição sem perder sua solidez” (id., 1999, p.4). Uma proposição, tal como
uma versão (ver Introdução), não se distingue por ser falsa ou verdadeira, mas por
ser bem ou mal articulada. Uma proposição mal articulada é aquela que não se
deixa afetar por outra proposição, que não produz diferenças, é tautológica: A é A.
Por outro lado, uma proposição é bem articulada porque se permitiu afetar por outras
proposições e, com isso, produzir diferenças: A é B, é C, é D. E são exatamente as
diferenças que geram significado. Quanto mais bem articulada é uma pessoa com o
mundo mais este lhe parecerá heterogêneo, significativo (cf. Latour,1999).
Cada uma das características das proposições mencionadas — fonação,
ação e recalcitrância — envolve controvérsias que convém aprofundar. Nesse
sentido, seguir as regras metodológicas da TAR implica trocar a certeza quanto à
natureza da subjetividade e objetividade dos modernos pelas incertezas sobre o que
uma proposição fala, faz e pode.
1.4.1 Embaraços de fala
A primeira tarefa de composição do coletivo ou de reunião do social é saber
quem são as entidades que se candidatam a participar do mundo comum em
formação. A TAR parte do princípio democrático que todas as proposições terão
direito à fala (cf. Latour, 2004). Ocorre que este direito não se limitará tão-somente
aos humanos, como no antigo acordo modernista, mas se estenderá aos não
humanos do mesmo modo. Dar “voz” a um micróbio, por exemplo, implica a
participação de um porta-voz humano que falará em seu lugar. Nesta etapa, a
dificuldade maior recai sobre os embaraços de fala, ou seja, a incerteza sobre a
legitimidade dos porta-vozes, esses intermediários/mediadores imprescindíveis: eles
falam efetivamente em nome das coisas que vêm representar ou falam em nome
próprio? Segundo Latour (2004),
“(...) pela noção de porta-voz, designa-se não a transparência desta
palavra, mas a gama inteira, indo da dúvida completa (o porta-voz fala em
seu próprio nome e não em nome de seus mandantes) à confiança total:
quando ele fala são seus mandantes que falam por sua boca” (p.124).
As ciências, ou melhor, os cientistas vão desempenhar o papel de porta-
vozes dos candidatos não humanos que pretendem fazer parte do coletivo. Os
36
laboratórios e institutos de pesquisa com seus complexos instrumentos criam os
aparelhos de fonação que estendem a palavra às entidades mudas (não-humanos)
permitindo desse modo participarem do processo de composição do coletivo
20
. Mas
esta associação de humanos e não-humanos estará sempre atravessada pela
incerteza sobre quem fala. Sim, deve-se duvidar profundamente, mas não
definitivamente” (id., ibid., p.125) da capacidade de porta-voz de um cientista quando
fala em nome de seus mandantes.
Ora, os embaraços de fala não são propriedade exclusiva dos não-humanos,
mas se encontram de igual maneira distribuídos entre os humanos: nunca se sabe
com certeza quem está falando quando uma pessoa fala em nome de outra.
1.4.2 Ação: atores, rede, actantes e agências
A associação de humanos e não-humanos não é marcada somente pelos
embaraços de fala, mas também — e talvez principalmente — pela incerteza quanto
à natureza da ação. A concepção modernista conferia aos sujeitos liberdade e
autonomia enquanto considerava os objetos como regidos pela necessidade e
determinação. As teorias sociológicas, tributárias desta concepção, costumam
contrapor a autonomia do indivíduo à determinação das estruturas sociais. Com a
psicologia, ocorre algo similar. Historicamente, o behaviorismo de J. Watson e B.
Skinner afirmou-se como uma teoria radicalmente ambientalista, onde o sujeito era
compreendido como totalmente determinado, condicionado ou moldado por forças
ambientais (estímulos), não deixando nenhuma margem à “liberdade” individual (cf.
Schultz & Schultz, 2005). A própria psicanálise freudiana parece, apesar de
teoricamente muito distante do behaviorismo, também ter proposto uma espécie de
determinismo psíquico: o “determinismo do inconsciente”. Dessa perspectiva, a
consciência seria determinada, ou melhor, “sobredeterminada” por dinamismos
inconscientes. A insatisfação com estas teorias traduziu-se no surgimento das assim
chamadas psicologias humanistas e existenciais. Aderindo à perspectiva de J.-P.
Sartre, elas enfatizaram a liberdade humana em contrapartida aos determinismos
ambiental e do inconsciente: autônomos, somos o que escolhemos ser (cf. May,
1986).
20
As ciências são a voz e a escrita dos não humanos. De fato, os sufixos “logia” e “grafia”, presente
nos nomes das ciências, são vocábulos derivados dos termos gregos logos (“palavra”) e graphos
(“escrita”).
37
A TAR apresenta uma teoria alternativa da ação: nem a suposta liberdade do
indivíduo tomado isoladamente nem o ambiente, o inconsciente e a sociedade, como
estruturas causais, bastam para explicar a ação de um ator. Diferentemente dos
sujeitos e objetos dos modernos, Latour (cf. 2001, 2004, 2005b) considera ambos
humanos e não humanos como “atores”. Um ator é, antes de mais nada, uma
proposição que age sobre outro ator, provocando neste modificações. O uso desta
expressão não é acidental. A metáfora do ator remete à incerteza sobre quem está
agindo. Estará o personagem sendo sincero ou estará fingindo? Além disso, um ator
nunca está sozinho. Mesmo num monólogo, há um diretor, um iluminador, um
figurinista etc. e, claro, a platéia. A expressão “ator-rede” procura exatamente dar
conta desta incerteza sobre a fonte da ação, que se distribui por uma rede de atores
movidos por uma multiplicidade de agências. O vocábulo “rede” da expressão “ator-
rede” designa então uma cadeia de atores onde cada ator é uma ocasião para a
ação de outro ator, fazendo assim a ação distribuir-se por toda a rede. O ator,
portanto, não é nunca a fonte isolada da ação
21
.
A concepção sociológica de ator-rede de Latour ecoa em grande medida a
“filosofia mestiça” de Michel Serres. Com esta expressão, Serres se refere a uma
ontologia monista que coloca a mistura, os híbridos, como primordiais. Recusa, por
conseguinte, a lógica moderna de purificação, responsável por descrever o mundo
como cindido entre sujeito/objeto e natureza/cultura. Entende-se então porque
Serres tomou Hermes, o deus das trocas, como o padroeiro de seu pensamento (cf.
Serres, 1999; Moraes, 2000).
Ambos os termos “ator” e “rede” não são, porém, isentos de ambigüidades.
Por isso um leitor apressado pode interpretá-los de um modo que não convém ao
sentido proposto pela TAR. Habituamo-nos a falar em rede telefônica ou em Internet,
a rede de computadores. Em ambos os casos, estamos tratando da idéia da
circulação imediata de informação. Isto é exatamente o oposto do que Latour
entende por rede. Para a TAR não há in-formação, mas apenas trans-formação, o
que vem a ser, aliás, outro de seus slogans. Um conteúdo não circula por uma rede
sem sofrer transformação porque em cada ator por onde passa uma diferença é
produzida (apenas nas redes suficientemente estabilizadas, onde os atores operam
como intermediários, é que poderíamos falar em “circulação direta de informação”).
21
Latour entende a noção de ator-rede como sinônima da de “rizoma” de Gilles Deleuze (cf. Deleuze
& Guattari, 2000).
38
Uma rede, segundo a TAR, não é uma coisa, mas um modo de descrever os
fenômenos. Um estado mental de um indivíduo, por exemplo, pode ser descrito
como rede (cf. Latour, 2005a).
A palavra “ator”, por sua vez, guarda uma forte referência antropocêntrica,
que convém ser evitada. Daí o emprego de Latour do termo “actante”
22
(actant),
tomado de empréstimo da semiótica, para definir as proposições candidatas à
formação do mundo comum. Humanos e não-humanos podem então ser
apresentados inicialmente como actantes que agem uns sobre outros, sem que
possamos prever com certeza os efeitos de suas ações nos “vínculos de risco”. Um
actante não age sozinho porque sua ação está distribuída por múltiplos agentes.
Nem os atores eles próprios nem os cientistas sociais sabem de antemão,
absolutamente, quem ou o quê participa como motor da ação. O mesmo, pode-se
dizer, vale para paciente e analista engajados no trabalho analítico (ver Capítulos 3
e 4). O melhor que se pode fazer para caminhar no labirinto produzido pela ação é
procurar seguir os traços deixados pelos atores, isto é, o que eles dizem e o que
eles fazem, nos seus próprios termos. Latour (2005a) explica:
“Temos de resistir a fingir que os atores têm apenas uma linguagem
enquanto o analista possui a meta-linguagem na qual a primeira está
‘embutida’. (...) Aos analistas é permitido possuir apenas alguma infra-
linguagem cujo papel é simplesmente ajudá-los a tornarem-se atentos às
metáforas plenamente desenvolvidas pelos próprios atores, um relato
reflexivo do que eles estão dizendo”(p. 49).
A ênfase de Latour sobre uma infra-linguagem descritiva em vez da
explicação metalingüística remonta à distinção de William James entre uma
psicologia descritiva e uma psicologia explanatória. Para o psicólogo americano, a
psicologia pode descrever experiências psíquicas, isto é, “como” ou o modo como
elas ocorrem. Já a tarefa de explicar o “por quê”, ou seja, determinar todos os
fatores que sobre ela atuam está fora de seu alcance. Afastando-se de enunciados
ontológicos e explicações metalingüísticas próprias das ciências naturais, a
linguagem psicológica assume um caráter metafórico — e por que não literário? —
cujo propósito não é mais produzir representações “fiéis” dos eventos, mas
descrevê-los de modo mais rico e articulado (cf. Shamdasani, 2006b).
22
Dependendo da tradução brasileira, actant se torna “atuante”.
39
Assim, descrever a ação de um ator significa procurar identificar como eles
descrevem as agências que sobre eles atuam. Identificar as agências, no entanto,
nada tem de simples. Segundo Latour (2005a), este “é o problema mais difícil que há
na filosofia” (p.51). Mas como os atores costumam atribuir determinadas
características a uma agência, é possível segui-las e alcançar a agência. Uma
agência só poderá ser definida como tal se o ator lhe conferir existência, figuração,
oponentes e teoria da ação.
1) Existência: uma agência se caracteriza por fazer algo; “produz alguma
diferença em um estado de coisas” (id., ibid., p.52). Se uma agência é mencionada
por um ator, deve haver um relato de sua ação. Uma agência deixa traços
observáveis.
2) Figuração: Uma agência assume uma figura, isto é, uma forma, um corpo, um
nome. As figuras podem ser abstratas como na definição estatística de um tipo A ou
B e sua relação com as doenças cardíacas, ou podem ser concretas como no
enunciado “meu vizinho sanguíneo de rosto corado morreu sábado passado de
ataque cardíaco (...) porque comia gordura demais” (id., ibid., p.53). Estas duas
figurações apesar de dessemelhantes são perfeitamente comparáveis. Com efeito,
uma mesma ação pode ter figurações distintas. Vale observar que a TAR se inspira
nos teóricos da literatura por causa do interesse que demonstram por romance,
drama, cinema e quadrinhos. Isto é, mediante a ficção o sociólogo adquire “liberdade
de movimento” (id., ibid., p.55), aprende a ser tão inventivo ou criativo quanto os
próprios atores que pretende descrever. Afinal, os atores imaginam as mais
diferentes figurações para suas próprias ações. Um informante pode dizer que agiu
movido pela sua consciência, pela vontade de Deus, pela rotina etc.
3) Oponentes: os atores criticam determinadas agências como irreais, irracionais,
falsas, absurdas. Em seus relatos, os atores costumam “adicionar novas entidades,
enquanto que retiram outras [consideradas] como ilegítimas” (id., ibid., p.56).
4)Teoria da ação: os atores costumam criar sua própria teoria da ação, sua
própria metafísica, para explicar os efeitos de uma agência. Latour observou que
“eles não entrarão apenas na controvérsia sobre qual agência está tomando o
controle mas também sobre os meios pelos quais ela faz sua influência ser sentida”
(id., ibid., p.57) . O mais importante em um relato não é propriamente o tipo de
figuração de uma agência — se concreto ou abstrato — descrito pelo ator, mas o
modo como essa agência é dita atuar: se como “mediador”, se como “intermediário”.
40
A distinção entre intermediário e mediador é de capital importância para
compreendermos como Latour aborda o problema da ação. Tratar uma agência
como intermediário é tomá-la como a causa direta de um efeito. Diferentemente,
tratar uma agência como mediador significa tratá-la como a ocasião ou oportunidade
para a ação. Quer dizer, quando uma força atua sobre outra isto não significa
necessariamente que uma causa está gerando um efeito, mas que uma ocasião
surgiu para que outras coisas começassem a agir. Neste caso, entre a agência e a
ação efetiva do ator podem surgir de surpresa incontáveis aliens. De acordo com
Latour (2005a),
“[a] primeira solução desenha um mapa do mundo composto de poucas
agências, seguido por traços de conseqüências que não são nunca mais
que efeitos, expressões ou reflexos de algo mais. A segunda solução,
aquela preferida pela TAR, imagina um mundo feito de concatenações de
mediadores onde pode ser dito que cada ponto atua completamente”
(p.59).
Segundo a TAR, portanto, a ação não é mais efeito de uma agência tratada
como intermediário, mas se encontra distribuída por múltiplos mediadores, daí a
incerteza tanto para os analistas quanto para os atores sobre o quê efetivamente
age sobre um ator.
Neste seu modo de descrever a ação a TAR mais uma vez enfatiza as
relações, os vínculos e suas conseqüências no lugar das essências. A dicotomia
moderna que separava sujeitos e objetos, e fetiches e fatos, desaparece diante de
actantes que a todo momento trocam propriedades, agem mutuamente uns sobre os
outros, formando híbridos variados. Latour (cf. 1998a, 2002b) inventou o termo
faitiche [“fatiche” ou “fe(i)tiche”, de acordo com a tradução brasileira] — com efeito
um sinônimo de “híbrido” — para expressar essa indeterminação entre o fato e o
fetiche, entre o sujeito e o objeto. Joga com a similitude fonética das palavras
francesas fait (fato) e fétiche (fetiche), e com a sua etimologia: fétiche advém do
português “feitiço” que, por sua vez, deriva de “feito” (fait, em francês), particípio
passado do verbo “fazer”. Agora pode-se dizer que a ação que havia sido fraturada
pelos modernos em fato e fetiche é restaurada pelos fatiches: a ação não é
propriedade exclusiva de nenhuma das partes. Desse modo, Latour quer evitar a
todo o custo a simplificação que a idéia de domínio ou determinação comporta.
Atores podem vincular-se, associar-se sem que um necessariamente domine o
41
outro. As relações de influência entre eles não devem ser entendidas como
determinação, mas, sim, como indução ou oportunidade para a ação.
Tomemos dois exemplos fornecidos por Latour (cf. 1998a): o marionetista e
sua marionete, e o falante e a língua. No primeiro caso, é possível dizer que titereiro
domina seu boneco ou este se impõe de modo irresistível sobre aquele? Para
Latour, a marionete com toda as suas peculiaridades de forma, tamanho e material
se constitui como uma ocasião para o exercício das habilidades do marionetista. A
marionete não determina a ação do titereiro, mas o “faz fazer”, o que é totalmente
diferente. Simetricamente, ele não age sem as condições fornecidas pelo boneco. O
titereiro “faz fazer” o títere. Desse modo, distribui-se a fonte da ação em ambos os
atores, sem que haja domínio de qualquer parte. O primeiro motor da ação é sem
dúvida o marionetista, mas isso não deve ser confundido com domínio. Uma vez
iniciada, a ação desencadeia uma cascata de eventos para além do controle do
marionetista.
O mesmo ocorre na relação da língua (langue) com a fala (parole). Se se
considera a língua como um sistema de signos que determina a fala do sujeito,
pode-se concluir que o indivíduo é falado pela língua. Mas como se trata de um
sujeito específico que efetivamente fala — e não a língua —, como explicar a sua
apropriação disto que ao mesmo tempo o determina? Para Latour, novamente o
problema está em querer-se fraturar a ação, distinguindo um ativo e um passivo, um
fazedor e um feito, um sujeito e um objeto. Em vez disso, devemos “percorrer uma
cadeia de mediadores os quais nenhum causa exatamente o sucessor mas que lhe
permite tornar-se na sua vez origem da ação de, literalmente, ‘fazer causar’ seu
sucessor” (id., 1998a, p.4). Assim, não há nenhuma língua a falar o sujeito, como
não há nenhum sujeito autônomo que se apropria da língua. Causalidade e
liberdade estão distribuídas por todos os atores envolvidos no ato de fala. Tarde
provavelmente diria que se trata aqui de “reciprocidade de influência”.
Latour aponta três obstáculos à compreensão dos fatiches e seu fazer-fazer:
um lógico, um teológico e um político. O primeiro deles, o obstáculo lógico, é
encarnado pela dialética. Esta não deve ser confundida com a expressão “fazer-
fazer”. A dialética duplica a causalidade, o domínio, enquanto que o fazer-fazer a
ignora. Tomando o escritor e seu caderno de notas, a título de exemplo, o
pensamento dialético diria que o escritor (sujeito) é feito, produzido, criado, por
aquilo que escreve, pela sua criação (objeto). Há aqui uma dupla determinação: de
42
um lado, o escritor como causa da escrita, de outro, a escrita como causa do
escritor. A dialética forma um círculo de causalidades recíprocas. Supõe que sou
feito por aquilo que faço. Trata-se de uma duplicação da determinação, do domínio.
Diversamente, o fazer-fazer implica a produção de diferenças que não nos
permitem retomar a trajetória da ação de um modo previsível — como no círculo
dialético. Não há como voltar atrás e encontrar a “causa” da ação. A mediações
operadas nos e pelos fatiches tornam qualquer fonte da ação indeterminada.
O segundo obstáculo, o teológico, é aquele que se esconde, com muita
freqüência, sob o nome de construção. Nome que por sua vez dissimula a idéia do
Criador da teologia como um ser capaz de criar sua criação ex nihilo (do nada).
Latour (ibid.) vai então oferecer outro significado para esta expressão: “‘criação ex
nihilo’ não significa que o construtor tira qualquer coisa do nada, mas que o conjunto
de condições prévias não basta nunca para determinar a ação” (p.6). Assim, um
demiurgo é uma impossibilidade porque “cada evento sempre excede suas
condições e ultrapassa [...] o artesão” (id., ibid., p.5). Dessa perspectiva
indeterminista, não há nunca um criador a dominar sua criação, seja esse criador
entendido como Deus, Sociedade ou Humanidade.
Ao afirmar a impossibilidade do domínio por um criador, Latour repensa o
problema da liberdade. Não devemos confundir ausência de domínio com ausência
de vínculo. Como não podemos viver sem formar vínculos, posto que são os
vínculos que nos fazem existir, a liberdade deve ser entendida como a possibilidade
de substituir-se maus vínculos por bons, vínculos “mórbidos” por “salvadores”. Se
quisermos compreender a subjetividade e suas idéias e fantasias e paixões, convém
identificarmos os vínculos que a colocam em movimento, que a fazem existir (cf.
Latour, 1998a).
O terceiro e último obstáculo se refere a um problema de ordem política. Os
ocidentais assim-ditos modernos se imaginam autônomos, livres, senhores da
própria ação enquanto que consideram as culturas do passado ou longínquas como
passivamente vinculadas a deuses e fetiches. Segundo Latour, o que define a
modernidade é exatamente esta crença na divisão dos seres em livres vs.
determinados, autônomos vs. heterônomos. Ora, os modernos têm dificuldade de
perceber que eles, assim como as demais culturas exóticas, também estão
vinculados. O que os difere dos “outros” não é a ausência de vínculo, mas isto com o
qual eles se vinculam. Quais seriam, pois, as entidades com as quais os modernos
43
fazem vínculo? Estas podem ser reunidas em dois grandes grupos: Natureza e
Cultura. Se os modernos não têm mais deuses e fetiches com que se conectar,
trazem por outro lado a alteridade das esferas natural e social.
Ora, por mais que se atente para todos os obstáculos citados, o mais
“formiga” dos pesquisadores que procurar traçar redes, seguir o que os atores eles
mesmos fazem, vai sempre deparar-se com um limite que é inerente à própria
formação das redes, das proposições articuladas. Latour fala em um “mar de
ignorância comum” a atravessar todos os atores engajados na experiência social. A
rede, nesse sentido, revela-se uma metáfora precisa. Afinal, uma rede é antes de
mais nada feita de interstícios, de espaços vazios. Isto indica que as associações,
isto é, as malhas da rede, passíveis de descrição e, portanto, conhecimento, são de
uma quantidade ínfima perto da enorme exterioridade desconhecida que a cerca. A
este fundo desconhecido que, tal como um líquido impalpável, preenche as malhas
do social, Latour (2005a) denominou “plasma”: “aquilo que ainda não está
formatado, ainda não socializado, ainda não engajado em cadeias metrológicas e
ainda não coberto, levantado, mobilizado ou subjetivado” (p.244). Assim, toda e
qualquer ação traçada não será senão uma pequena ilha de estabilidade envolta em
um mar de incerteza plasmática.
1.4.3 Realidade e recalcitrância
Os modernos atribuíam liberdade aos sujeitos, de um lado, e obediência e
causalidade aos objetos, de outro. Se se atribui autonomia aos sujeitos, pode-se
presumir que eles venham a resistir ou perturbar amiúde o dispositivo ao qual devem
submeter-se durante um experimento científico. Dos objetos, por sua vez, espera-se
uma tácita e resignada obediência aos procedimentos da pesquisa científica.
Contudo, um olhar mais atento sobre a prática das ciências revela um cenário de
acontecimentos inesperadamente controverso. Curiosamente são os humanos que,
ansiosos em contribuir com a pesquisa científica, freqüentemente se comportam
como verdadeiros objetos. O clássico experimento de Stanley Milgram (cf. 1974) —
e outros subseqüentes — expôs a facilidade como os humanos se instrumentalizam,
isto é, transformam-se em objetos para obedecer à autoridade do cientista. Latour
(1999), seguindo as observações de Isabelle Stengers e Vincienne Despret, anotou:
“A única verdadeira descoberta da maior parte da psicologia, sociologia, economia,
44
psicanálise (...) é que, quando impressionados pelos jalecos brancos, os humanos
transmitem objetivação obedientemente: eles literalmente imitam objetividade, isto é,
param de ‘objetar-se’ à investigação” (p.6). Com os não humanos, ocorre
exatamente o contrário. Completamente indiferentes, seja à pesquisa seja ao jaleco
branco, os supostos objetos costumam recusar-se a desempenhar o papel de
obediência que deles se espera. Então os experimentos fracassam, os testes
falham, os laboratórios explodem.
Por tudo isso, a TAR repensa a ação de humanos e não humanos como
atravessada por uma gama de incertezas que vai da liberdade à causalidade. Os
atores não são apenas dotados de voz e ação, mas também da capacidade de
desobedecer à autoridade, incomodar a dominação e interromper o fechamento e a
composição definitiva do coletivo (cf. Latour, 2004). Atores são capazes de
recalcitrar.
Segundo Latour, a pesquisa social, assim como as pesquisas das ciências
naturais, deve correr o risco de falhar, de ser contradita por seus quase-sujeitos. Sua
qualidade vai então ser avaliada pela sua competência em permitir a recalcitrância
dos atores que investiga.
Proposições articuladas, rede de atores, actantes e agências: por meio deste
instrumental conceitual a TAR nos ajuda a identificar quem são as entidades que
virão a compor o coletivo. Devemos considerar esta primeira etapa de coleta do
coletivo, de exploração do social, como uma etapa de “provocação”, ou seja,
produção de vozes. Liberdade de discutir: o coletivo não vai simplificar o número de
proposições que se candidatam a compô-lo. O próximo passo será então saber se
esses seres contraditórios poderão viver em conjunto. Como será o coletivo
resultante do somatório das antigas com as novas proposições?
1.5 Reunindo o social
O social ou o coletivo, conforme vimos, não é uma “coisa” ou substância, mas
uma experimentação sempre incerta. A qualidade desta experimentação se define
fundamentalmente pela sua competência em articular proposições. Diz-se, assim,
que um coletivo é bem ou mal articulado conforme sua capacidade de discriminar
contrastes, de distinguir-se em partes distintas. Quanto mais articulado, mais
45
diferenciado é um coletivo. Mas diferenciar-se não é bastante. A qualidade de um
coletivo também se verifica pela sua capacidade de compor ou reunir as diferentes
proposições de modo que possam viver conjuntamente. Daí a observação de Latour
(2004) de que um coletivo é “(...) um conjunto de processos para explorar, para
coletar, pouco a pouco, esta unificação potencial” (p.168).
As novas proposições coletadas devem ser compatíveis com aquelas que já
fazem parte do coletivo, de modo que formem um mundo comum. Necessidade de
decidir: rejeitam-se as proposições que não puderam ser “entendidas”, ou seja,
avaliadas como incompatíveis com o mundo comum. Com isto, corre-se o risco
inevitável de cometer-se injustiça. Por ora, as proposições novas, uma vez aceitas,
serão consideradas instituídas, membros legítimos do coletivo, e por isso dotadas de
“essência”; não se discutirá mais sua existência. Ao final do processo, pode-se até
voltar a repartir os seres em naturais e sociais, porque agora se trata de um
procedimento explícito e provisório. Os excluídos de hoje podem amanhã bater
novamente à porta do coletivo.
Latour (cf. 2004) toma o príon como exemplo de uma proposição candidata a
reunir-se ao coletivo. Trata-se da proteína provavelmente responsável pelo mal da
“vaca louca”. Primeiramente, os príons deixam o coletivo em estado de alerta.
Biólogos, veterinários, políticos, criadores de gado, açougueiros, consumidores,
vacas e bezerros ficam perplexos diante dos efeitos desta entidade. E são
exatamente todos estes atores envolvidos na questão da vaca louca que deverão
testemunhar, diretamente ou por intermédio de seus respectivos porta-vozes, contra
ou a favor do ingresso dos príons no coletivo em composição. Uma vez decidido
positivamente pela existência dos príons, cabe ao coletivo saber se eles são
compatíveis com as demais entidades que o constituem. Que mudanças serão
necessárias no coletivo para acomodá-los? Podem os príons conviver com a
bioquímica das proteínas instituída? Como ficará a epidemiologia, o controle de
qualidade na criação de gado e a carne que chega aos consumidores após a
introdução do príon no seio do coletivo? Ordenado dentro do coletivo, depois de ter
cumprido todas as exigências processuais, só então o príon passa a adquirir uma
essência; só agora poderemos dizer que ele é “natural”.
O fundamental em todo este procedimento foi não ter abreviado de modo
arbitrário o debate, saltando da perplexidade diretamente para a instituição.
Permanecendo na controvérsia o quanto foi necessário, evitou-se o apelo a uma
46
natureza transcendente, desde sempre já formada, para calar as vozes dissonantes.
Nem por isso deixou-se de alcançar o objetivo final — sempre provisório — de
ordenamento das proposições, da reunião do mundo comum, de recomposição do
coletivo.
Somente ao final deste duplo procedimento de consideração e organização é
que se poderá falar em alguma espécie de conhecimento “universal”. Não mais a
universalidade transcendente e absoluta das noções modernas de Natureza e
Sociedade, mas uma universalidade construída e relativa. É possível relacionar
proposições e mesmo redes distintas com a condição de que as medidas que
tornam possíveis as relações sejam negociadas, trabalhadas, construídas. As
medidas, anotou Latour,
“constroem uma comensurabilidade que não existia antes que fossem
desenvolvidas. Nenhuma coisa é, por si só, redutível ou irredutível a
qualquer outra. Nunca por si mesma, mas sempre por intermédio de uma
outra que a mede e transfere esta medida à coisa” (id., 2005b, p.111).
Desta perspectiva relacionista, os universais, antes absolutos para os universalistas,
tornam-se relativos porque produzidos pelos trabalhos de tradução, mediação e
negociação. Que é o tempo universalmente compartilhado senão uma convenção
que precisa da manutenção de instituições (Greenwich) e instrumentos para
continuar existindo? Daí a conclusão de que “o universal não está nem atrás, nem
por cima, nem por baixo, mas na frente” (id., 2004, p.357).
A TAR oferece certas ferramentas que nos permitem descrever como uma
ciência participa deste processo de unificação ou reunião do social, isto é, permite-
nos descrever como ela articula proposições de modo a traçar uma rede ou redes e
quais as conseqüências disto — se boas ou ruins — para o próprio coletivo. Mas
como se trata evidentemente de um trabalho sobre psicologia, e não sobre as
ciências em geral, convém concentrarmos nosso foco sobre a psicologia e seu
objeto, a psique ou “subjetividade” humana. Mais ainda, não devemos confundir a
questão de como traçar uma rede — método — com o objeto a ser pesquisado, que
em sua forma em nada pode parecer com uma rede. Um estado mental, por
exemplo, pode ser descrito como uma rede, segundo a definição de rede da TAR e,
inversamente, uma rede telefônica, conforme mencionado, pode ser descrita sem
fazer-se referência à TAR.
47
1.5.1 Os psicomorfos
Foi dito páginas atrás que o diálogo de Latour com a psicologia é superficial e
insuficiente. Isto já não é mais de todo verdadeiro. Seu livro mais recente,
Reassembling the Social, trouxe interessantes aportes para a ampliação do
intercâmbio entre psicologia e sociologia, cobrindo, ao menos em parte, a lacuna
referida. O que basicamente Latour ali nos conta é que a psicologia do ator humano,
do ponto de vista da sociologia das associações, também não deve ser apreendida
em termos essencialistas. Não há nenhuma natureza psíquica a priori, mas uma
progressiva construção da subjetividade a partir de fora, isto é, de fatores externos à
pessoa, que denominou plug-ins. Literalmente, plug-ins são programas
informacionais que precisam ser instalados no sistema para tornar o computador
capaz de realizar uma dada tarefa. Como metáfora, o plug-in sugere que uma
competência cognitiva ou comportamental não vem em grandes quantidades mas
aos pedaços (cf. Latour, 2005a). Do ponto de vista psicológico (ou
psicossociológico), um ator humano pode então ser descrito como um compósito de
múltiplas camadas heterogêneas — mônadas? — resultantes da contribuição de
múltiplos plug-ins. Estes são, portanto, subjetivadores, personalizadores,
individualizadores, psicomorfos.
Um exemplo simples de plug-in são os documentos de identidade, que
designam quem é você. Outros são mais difíceis de discernir, como aqueles
produtores das nossas idiossincrasias e sentimentos interiores. Mas, mesmo estes,
podem ser traçados e desdobrados: conversas, livros, filmes, jornais, revistas,
internet, canções etc. nos ensinam gestos, posturas, inflexões, modos de caminhar,
amar, comer, vestir... ser. Quantas canções tive de escutar, quantos filmes de
Hollywood tive de assistir e romances tive de ler para que eu aprendesse a amar
desta e não daquela maneira? Quer dizer, “os plug-ins emprestam aos atores as
ferramentas suplementares — as almas suplementares — para tornarem uma
situação interpretável” (id., 2005a, p.209).
Habilidades cognitivas dependem de diferentes tecnologias intelectuais que,
como plug-ins, precisam ser “baixados” (downloaded). Experimente fazer um cálculo
48
matemático, sugere Latour, sem usar ao menos lápis e papel, e você se aperceberá
de como nossa inteligência é dependente destes pequenos plug-ins
23
.
Nesse sentido, é possível pensar que a própria psicologia profunda
24
, por
exemplo, atua como um plug-in sobre nossas psiques individuais, dotando-nos da
capacidade de ter complexos, pulsões, libido, arquétipos e inconsciente. Todos
estes intricados componentes psíquicos são dados ao nascimento? Não, diria
Latour, é necessário que baixemos o programa “psicologia”, que façamos a
“assinatura” desta ciência, por intermédio de seus múltiplos canais, como jornais,
revistas de divulgação, livros, programas de televisão e conferências. Assim como o
cidadão metropolitano tem de assinar pelos serviços de luz, gás e telefone, também
precisa de uma assinatura — ou plug-in — para ter uma psicologia. O problema é
que há conflitos de plug-ins: “o que uma rede atribui à psique, outra transforma em
doença física” (Latour, 2006, p.93). Isto porque Latour não menciona os conflitos de
programa relativos à própria psicologia. Imagine assinar simultaneamente os
serviços da psicologia cognitivo-comportamental, da psicologia humanista-existencial
e da psicanálise? O computador certamente “travaria”.
Repensando os limites entre o interior e o exterior, Latour reformula as
fronteiras entre psicologia e sociologia. Mais ainda, provoca-nos a questionar o que
vem a ser uma “psicologia social” quando exatamente não há mais nenhuma
substância social a ser acrescentada ao psiquismo, posto que o psíquico, como
rede, é ele próprio social. Para Latour, a interioridade subjetiva ou psique não é um
dado, mas uma construção cujo material vem “de fora”. Inspirado em Tarde,
considera nosso interior como o depósito de múltiplos psicomorfos que ao longo dos
anos fomos acumulando. Nenhum destes plug-ins, entretanto, têm o poder de
determinar o que somos; eles simplesmente nos fazem fazer algo, são “ofertas
positivas de subjetivação” (id., 2005a, p.213). A intra-psique é o resultado do
relacionamento entre diversas extra-psiques: “Se você tratar o que vem do exterior
como mediadores oferecendo uma ocasião para o próximo agente se comportar
como mediador, todo o cenário de interior e exterior poderia se modificar para
sempre.” (id., ibid., p. 216).
23
Este parece ser também o ponto de vista de P. Lévy (cf. 1993) em relação à participação das
tecnologias da inteligência sobre a cognição humana.
24
Expressão cunhada por E. Bleuler no início do século XX para designar as psicologias do
inconsciente.
49
1. 6 O laboratório de etnopsiquiatria e os avatares do sujeito
Em a Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches, pequeno ensaio
publicado em 1996, Latour definiu seu trabalho sócio-antropológico como centrado
nos “avatares do objeto”. Nesse sentido, seu esforço tinha sido o de descrever o
longo percurso de mediações sócio-técnicas que levam à produção do fato científico.
Desse modo, esperava suspender o golpe do martelo modernista, disjuntor de
Natureza e Cultura. Contudo, percebeu que isto não bastava. Restava,
simetricamente, investigar os “avatares do sujeito”. Que actantes, agências ou
psicomorfos participam da fabricação da subjetividade se, conforme vimos, não era
mais possível continuar afirmando o sujeito como a única fonte da ação?
Na segunda parte do ensaio, Latour deslocou seu olhar dos laboratórios das
ciências naturais para as sessões de etnopsiquiatria conduzidas por Tobie Nathan,
um etnopsicanalista judeu-egípcio radicado na França, no núcleo de assistência às
famílias de imigrantes da Universidade Paris VIII. Latour identificou em Nathan um
importante interlocutor no vasto campo das psicologias. Assim como Latour havia
“desepistemologizado” os objetos das ciências exatas, Nathan “despsicologizava”
seus pacientes imigrantes. Ali, nas sessões de etnopsiquiatria, “reencontravam suas
divindades ao perderem a sua psicologia” (Latour, 2002b, p.73)
25
.
Latour, que participou de uma sessão de etnopsiquiatria, descreveu-a como
um dispositivo experimental artificial. Comparou-a a um “acelerador” e a uma
“máquina de calcular”. Isto é, uma sessão de etnopsiquiatria se reveste da mesma
artificialidade de um laboratório das ciências naturais. Os terapeutas participantes
induzem, mediante uma série de procedimentos de influência, a fabricação de
quase-sujeitos atravessados por quase-objetos. Assim, a idéia de que a intra-psique
é constituída por intermédio da ação de extra-psiques encontrou uma notável
demonstração empírica na prática clínica de Nathan.
A proximidade metodológica de Nathan com Latour, como veremos, constata-
se pela sua observação do procedimento da TAR de “seguir os atores”, em vez de
impor-lhes arbitrariamente concepções estranhas, e na sua ênfase sobre os
25
A análise que Latour faz de Nathan está baseada, não apenas na sua participação numa sessão de
etnopsicanálise, mas também nos seguintes textos: Nathan, Tobie ...Fier de n’avoir ni pays, ni amis,
quelle sottise c’était. Paris: La Pensée Sauvage, 1993; L’influence qui guérit, Paris: Odile Jacob,
1994; Nathan, Tobie; Stengers, Isabelle. Médecins et sorciers. Les Empêcheurs de penser en rond,
Paris, 1995.
50
desempenhos ou ações mais do que em supostas essências ou mecanismos
psíquicos universais, como fatores explicativos da doença assim como da saúde
mental. Além disso, a prática etnopsiquiátrica problematiza a divisão tipicamente
moderna entre “primitivo” e “civilizado” (moderno), uma vez que torna plausível
aproximar procedimentos de cura “primitivos” das modernas técnicas
psicoterapêuticas, como a psicanálise.
Desde 1979, Tobie Nathan vem atendendo imigrantes provenientes de
sociedades não ocidentais, nas diversas instituições psiquiátricas francesas por
onde passou. Trata-se de pacientes oriundos de lugares heterogêneos como o norte
da África, a África negra, as ex-colônias francesas do Caribe e do oceano Índico, a
Turquia e o sudeste asiático. Na maioria das vezes, estas pessoas já passaram sem
sucesso por outros serviços psiquiátricos e buscam o trabalho de Nathan como o
último recurso. Na tentativa de melhor abordar esse tipo de clientela, o psicanalista e
sua equipe desenvolveram um dispositivo clínico denominado “etnopsicanálise” (cf.
Nathan, 1999).
Os muitos anos de prática clínica com imigrantes não ocidentais levaram
Nathan a questionar a universalidade do modelo psicopatológico dominante tanto na
psiquiatria quanto na psicanálise. A psicopatologia procura descrever uma espécie
de “natureza” psíquica que, assim como a matéria, “seria independente do
observador e suscetível de descrição sistemática, talvez inclusive de
experimentação” (Nathan, 1999, p.12). Ocorre que o meio de acesso aos fatos
relativos à psique, seja em psiquiatria seja em psicanálise, é a entrevista, um
procedimento onde o modelo teórico do terapeuta-observador é determinante na
constituição do fenômeno-observado. Assim, a prática da psiquiatria estaria baseada
primeiramente na ação ou influência do terapeuta e não em um conhecimento
supostamente objetivo do funcionamento psíquico.
Esta ênfase sobre a ação do terapeuta faz de Nathan um pragmatista. O
pragmatismo é criação dos filósofos norte-americanos Charles Sanders Peirce
(1839-1914), William James (1841-1910) e John Dewey (1859-1952). Peirce foi
quem primeiro formulou os princípios da filosofia pragmática, em um artigo de
1878. Suas idéias, no entanto, passaram praticamente desapercebidas por cerca de
20 anos até ser retomadas e desenvolvidas por James e Dewey. O termo
“pragmatismo” deriva do grego pragma, que significa “ação”. Segundo James, o
pragmatismo é “primeiramente um método de resolução de disputas metafísicas
51
que, de outro modo, poderiam ser intermináveis” (James, 2005, pp.1-2). O método
pragmático opera avaliando as idéias em termos de suas conseqüências ou eficácia
prática. O real ou a verdade, segundo a versão pragmatista, é aquilo que atua,
funciona.
Com os pacientes imigrantes, Nathan aprendeu que as categorias
nosográficas existentes em psicopatologia são insuficientes para compreender e
tratar seu sofrimento. Onde o paciente não ocidental espera um sentido para seu
mal, a psiquiatria oferece uma causa, agregando assim um sofrimento aos males
que o paciente já trazia. Nathan observa que parece ter sido um prejuízo para os
pacientes a troca, por exemplo, do diagnóstico de possessão pelo de histeria. Um
doente possesso ao menos compartilha um universo povoado de seres
sobrenaturais tais como espíritos, demônios, divindades, enquanto ao histérico lhe
resta apenas o isolamento de sua patologia. Não por acaso no Ocidente as
categorias nosográficas (histeria, obsessão, paranóia etc.) tendem a tornar-se
injúrias.
Para que não se submeta a prática psicopatológica a uma ideologia
disfarçada de ciência — conforme tem acontecido — o fator determinante no
tratamento da doença mental deve ser procurado nos procedimentos do terapeuta
sobre o paciente, nas suas estratégias de influência. Nesse sentido, entretanto,
Nathan (ibid.) constata não ter encontrado “uma única teoria conseqüente que parta
da ação do terapeuta e não de uma suposta natureza do paciente” (p.14). Diante
desta carência teórica, foi buscar na observação das terapias tradicionais — aquelas
praticadas por curandeiros, feiticeiros e bruxos de sociedades não ocidentais —
dados que lhe permitissem compreender como se processa a influência sobre o
outro. Mediante um trabalho de comparação dos métodos psicanalíticos com os
tradicionais, Nathan (ibid.) propõe uma teoria geral da influência para além das
diferenças culturais (“metacultural”), uma “influenciologia”, que tem “como objeto de
análise os diferentes procedimentos de modificação do outro” (p.18).
O enfoque comparativo de Nathan não é propriamente novo. O etnólogo
alemão Adolf Bastian, já no final do século XIX, havia destacado a relevância das
práticas de curas “primitivas” para o aprimoramento da ciência. Veremos no Capítulo
3 que Jung — conhecedor do trabalho de Bastian, aliás —, antecipando em décadas
Nathan, chamara a atenção para o efeito terapêutico de práticas mágicas e
religiosas, como as que ocorrem nos rituais de iniciação dos assim chamados
52
“primitivos”. Isto sem falar no antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que na
década de 1950 apontou a identidade entre procedimentos da medicina “primitiva” e
os da psicoterapia contemporânea.
Não se pode ainda deixar de mencionar, nesse sentido, The Discovery of the
Unconscious, o magistral relato historiográfico do desenvolvimento da psiquiatria
dinâmica moderna, escrito pelo psicólogo existencial suíço Henri Ellenberger, em
1970. Este autor descreveu o fio de continuidade que vai das práticas medievais de
exorcismo aos sistemas psicoterapêuticos da primeira metade do século XX. Assim
como Nathan (porém cerca de 20 anos à sua frente), Ellenberger (1970) observou a
importância do estudo da “cura primitiva” para o avanço da psiquiatria, “como a base
para uma nova ciência da psicoterapia comparada” (p.3).
1.6.1 Os operadores terapêuticos
A influenciologia de Nathan é resultado de muitos anos de trabalho clínico
com o sofrimento psíquico. Três são os enunciados básicos que resumem suas
premissas metodológicas. Em primeiro lugar, qualquer afirmação a priori sobre a
natureza do objeto investigado elimina a possibilidade de estabelecer-se uma
relação psicoterapêutica efetiva com este objeto. Em termos latourianos, significa
que o terapeuta deve dar oportunidade ao paciente para recalcitrar. Segundo, como
a teoria ajuda a construir seu objeto, os casos clínicos devem ser considerados
metáforas — ou, na melhor das hipóteses, ilustrações — e nunca demonstrações
dos enunciados teóricos. E terceiro, o objeto (o paciente) ele próprio contém o “a
priori teórico” necessário para a prática da psicoterapia. Em outras palavras, deve-se
“seguir os atores eles mesmos”. Estes enunciados conduzem à conclusão de que
uma investigação em psicopatologia necessariamente é produto do cruzamento de
três fatores: “um determinado observador, o instrumento de observação — a relação
psicoterapêutica e seus a priori teóricos e técnicos — e o objeto em si”. (id., ibid.,
p.45).
Com base nestas premissas, Nathan (ibid.) procurou identificar, pela análise
do trabalho dos terapeutas tradicionais, os operadores terapêuticos “universais”, isto
é, “os procedimentos lógicos induzidos pelo terapeuta que exercem uma verdadeira
53
coação sobre o enfermo (a pensar, atuar, ordenar)” (p.88). São quatro
26
os principais
operadores: a teoria do terapeuta, os indutores culturais, os mecanismos de inversão
e a mediação (objeto e analogia).
A teoria do terapeuta atua de maneira indireta, ajudando a desviar a atenção
do público e do paciente dos reais procedimentos técnicos em curso para um
universo sobrenatural, oculto, mágico. Mais ainda, é a própria patologia do paciente
que adquire sentido ao se localizar em um registro extraordinário. Nathan (ibid.),
demonstrando todo o seu pragmatismo, assevera que a teoria “é sempre certa
porque é funcional” (p.46). Ao estabelecer um universo povoado de demônios e
outras entidades maléficas, que eventualmente invadem as pessoas, a teoria ajuda
a criar o cenário para os procedimentos terapêuticos de inversão e mediação.
Os indutores culturais são “elementos de sentido situados na fronteira entre o
público e o privado” (id., ibid., p.46). Trata-se de elos de ligação entre o indivíduo e
sua ambiência cultural, e são comumente expressos na forma de “relatos”. O relato é
um “objeto” culturalmente codificado que se assemelha ao conto e talvez mais ainda
ao mito. Opera como uma matriz de sentidos, transcendendo os limites do discurso.
Isto quer dizer que o relato tem o poder de efetuar mudanças psíquicas no ouvinte,
produzir uma espécie de eureka em quem o experimenta. Segundo Nathan (ibid.),
“as mesmas histórias, apenas modificadas, estão em todo o mundo” (p.85). Cita o
exemplo de uma paciente “fixada” em sua mãe. Durante suas consultas, ela
mencionou ter sido vítima de feitiçaria. Este relato nada tem a ver com a questão da
paciente, no entanto é indispensável que seja levado em consideração para que se
produza uma mudança em seu quadro patológico.
Tanto as terapias “científicas” quanto as tradicionais se organizam na forma
de relatos. Os terapeutas deste último grupo costumam usar o relato para fazer sua
intervenção. Por intermédio de relatos estruturados culturalmente, o terapeuta
enuncia a etiologia do paciente, conforme o exemplo de uma curandeira da Ilha da
Reunião: “Esta criança foi capturada (se assustou) durante o acidente, enquanto
estava no ventre de sua mãe. Desde então ficou fixada na posição em que foi
surpreendida nesse momento” (id., ibid. p.85). Parece que o poder terapêutico de um
26
Nathan menciona ainda a vidência. Esta indica a supremacia do “visto” sobre o “dito”: “Aquilo que
se faz ver fragmenta o sentido construído através das palavras e redistribui seus elementos em um
objeto concreto” (Nathan, 1999, p.44). A vidência ajuda ainda a provocar a “transferência” e atua
como gerador de sentido. Freqüentemente, usam-se dispositivos intermediários — conchas, tiras de
couro, borra de café etc — para exercê-la.
54
relato reside na sua capacidade de produzir sentidos e com isto algum tipo de
reorganização psíquica no enfermo. Todo relato, ademais, obedece a uma estrutura
causal. O discurso científico, nesse sentido, aproxima-se de um relato tradicional.
Ocorre que o “relato científico” não produz sentidos entre os imigrantes não
ocidentais, carecendo, por conseguinte, de efeito terapêutico. Desse modo, Nathan
está sugerindo que um mesmo relato pode produzir efeitos distintos, tornando-se
portanto necessário que o terapeuta atente para a espécie de relato mais eficaz para
dado paciente.
As terapias tradicionais empregam mecanismos de inversão de diferentes
tipos como operadores terapêuticos. Em muitas culturas, a saúde pressupõe o corpo
humano como um eixo espacial: a parte inferior, os pés, toca o solo e a superior, o
céu. Sob o solo habitam os espíritos, acima no céu, Deus. Adoecer significa inverter
esta ordem. A palavra árabe para doença é makloub, literalmente “estar invertido” ou
“estar sacudido”. Os pés devem estar quentes enquanto a cabeça, fresca. Quando
ocorre o contrário, trata-se de uma enfermidade. Não somente o espaço pode ser
invertido, mas também os ritmos corporais. “Conservar um ritmo é sinônimo de estar
vivo” (id., ibid., p.47), enquanto que sua perda ou perturbação — um tremor corporal,
e.g. — é sinal de enfermidade, isto é, a manifestação de um espírito ou uma ação de
feitiçaria. Na prática, o terapeuta induz com uma série de artifícios — por exemplo,
jogar sal nos olhos do enfermo de modo a produzir-lhe um desconforto concreto — o
estado de “possessão demoníaca”. Uma vez demonstrada a possessão, o terapeuta
novamente apoiado em artifícios mobiliza um processo terapêutico de inversão (a
“expulsão do demônio”). Nathan acredita que o terapeuta, apoiando-se em
manipulações concretas do corpo, de objetos e dos indutores culturais, pode
mobilizar mecanismos psíquicos
27
(defesas) de inversão do paciente e assim
restaurar sua saúde.
A teoria do terapeuta delimita a existência de espaços distintos, como o
mundo dos humanos e o mundo dos espíritos. Os curadores tradicionais descrevem
ataques de feitiçaria e possessão por espíritos como causas freqüentes de doenças.
É necessário, portanto, estabelecer um vínculo com o “outro mundo”. Cabe ao
27
Segundo Nathan (1999), “os inversores, mobilizados na fronteira privado/público, atuariam por
contágio e desencadeariam os inversores psíquicos e, em conseqüência, os mais arcaicos
mecanismos de defesa que, neste caso, não seriam espontâneos, mas dirigidos pelo terapeuta e pelo
grupo social” [itálicos meus] (p.49). Contudo, o etnopsicanalista não deixa claro o que entende por
“arcaicos mecanismos de defesa”. Parece-me, de qualquer modo, que aqui Nathan estaria tomando
como universal a noção freudiana de “defesa”.
55
terapeuta fazer esta mediação. Mas para que ela seja crível, é indispensável um
terceiro termo que produza a mediação. Por isto, o recurso freqüente de
instrumentos de vidência, como a areia e o chumbo fundido, para concretizar e
tornar manipulável a mediação. Não se pode interferir diretamente em um espírito,
mas no chumbo isto é possível. A analogia não deixa de ser uma forma de
mediação. Como operador, ajuda a tornar comparáveis elementos heterogêneos,
tendo efeito de sentido: “Um sentimento de eureka acompanha a aparição desse
raciocínio” (id., ibid., p.91). É induzida pelo terapeuta por meio de intervenções,
como as interpretações, prescrições e elaborações. Nathan (id., ibid.) observou que
“a maioria das interpretações de Freud são formalmente analógicas” (p.91, nota).
Objetos, tais como amuletos e talismãs dos mais variados materiais, são
comumente empregados nas terapias tradicionais como operadores terapêuticos.
Segundo Nathan, o objeto é ao mesmo tempo real e ilusório. Real porque feito de
material sensível à percepção; e ilusório já que representa o “vínculo
transferencial”
28
invisível com aquele que o produziu. O objeto atua como forma de
defesa diante de fortes cargas afetivas que, caso não fossem materializadas e
socializadas, tornar-se-iam incontroláveis.
A psicanálise trabalha, diversamente das terapias tradicionais,
essencialmente com a arte da interpretação, observou Nathan. Na interpretação,
encontram-se os quatro primeiros operadores terapêuticos
29
. Restaria fora da prática
psicanalítica o objeto. Questiona-se, então, como seria uma psicanálise que
pudesse incluir esse importante operador no seu repertório de técnicas. As terapias
tradicionais enfatizam os continentes formais — os objetos, ritmos e formas — em
vez do discurso, como na psicanálise, que está mais preocupada com os conteúdos.
Oferecer um novo continente formal ao paciente pode desencadear processos
associativos de efeito terapêutico. Os continentes formais — objetos, ritmos ou
imagens — em si não têm sentido, já que se trata da condição de possibilidade do
sentido. Por isso não se deve interpretá-los simbolicamente. Sua natureza não é
28
Se Nathan não explica o significado do termo “transferência”, usado em determinadas passagens
de seu livro, é porque muito provavelmente o emprega no mesmo sentido que Freud. J. Laplanche e
J.-B Pontalis (1970), em seu Vocabulário da psicanálise, definem a transferência em psicanálise
como “o processo pelo qual desejos inconscientes se actualizam sobre determinados objectos no
quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação
analítica./ Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de
actualidade acentuada” (pp.668-669).
29
Nathan não descreve, porém, exatamente como esses quatro operadores aparecem na prática
psicanalítica.
56
afetiva, mas lógica. O consultório de psicanálise, assim como um talismã, opera
como um continente formal:
“Quando um paciente apresenta uma neurose e eu respondo com uma
indução formal divã-poltrona, procedo a uma operação lógica que não é de
natureza diferente da do curador que, em resposta a demanda de seu
paciente, oferece-lhe um talismã formado por elementos heterogêneos e
benéficos. Os conteúdos não podem ser comparados, mas sim o fato de
prescrever um continente da mesma natureza lógica que a suposta
patologia, que vai informar a lógica da patologia do paciente” (id., ibid.,
p.61).
Em um dos casos clínicos apresentados em seu livro La influencia que cura,
Nathan relata ter pedido a uma paciente de origem beduína, de 32 anos de idade,
que trouxesse um ovo para a sessão de etnopsicanálise. O ovo é uma espécie de
envoltura com conteúdo distribuído de forma ordenada (a clara separada da gema).
Sua função na terapia é de fornecer um continente para os delírios persecutórios da
paciente, auxiliando assim no processo de elaboração de sua patologia. Em relação
a esta paciente, Iphigénie, Nathan distingue dois tipos de processos inconscientes:
os afetivos e os lógicos. Os afetivos estariam para além de qualquer possibilidade de
influência por parte do terapeuta
30
. Os processo lógicos, entretanto, indicam a
demanda da paciente por um continente para a desordem de sua vida psíquica.
Nathan (ibid.) considera o objeto como o “operador terapêutico por
excelência” (p.66). Os curandeiros tradicionais lhe atribuem propriedades mágicas e
misteriosas, não mais absurdas e intangíveis, segundo ele, que o conceito
psicanalítico de libido
31
. O decisivo é que essas coisas — areia, chumbo fundido,
tiras de couro etc. — possuem eficácia terapêutica.
30
Nathan parece contradizer-se em seu texto quanto à possibilidade de o paciente ser influenciado
em um nível afetivo. Em um momento, refere-se ao objeto como aquilo que “materializa e socializa as
expressões evitando as fortes cargas afetivas que se tornariam incontroláveis em uma sociedade
comunitária” (id., ibid., p.50). Nesse sentido, o objeto produzido durante as sessões de
etnopsicanálise influenciaria afetivamente, sim, o paciente. Ao longo do texto, entretanto, Nathan
sustenta outra hipótese: ao contrário dos processos psíquicos de natureza lógica, os afetivos seriam
inacessíveis à influencia terapêutica.
31
Ver no Capítulo 3 a definição de Jung para “libido”; definição esta que não coincide com a de
Freud.
57
1.6. 2 Mediação e analogia: a influência como exigência lógica
Nathan define a psicanálise como um método e um procedimento de
modificação do outro. É uma técnica de influência comparável às terapias
tradicionais, assim como à propaganda, à tortura e à iniciação. A etnopsicanálise
busca cotejar procedimentos terapêuticos heterogêneos — como a psicanálise e as
diversas técnicas tradicionais de cura — com o objetivo de construir uma
metodologia transconceptual. Este procedimento comparativo levou Nathan a
formular a hipótese de que a influência exercida pelo terapeuta sobre o paciente
decorre de uma exigência lógica. Nesse sentido, retoma a noção de maná (ou mana)
estudada por Marcel Mauss. De acordo com os melanésios pesquisados por Mauss,
maná é uma força ou ação espiritual à distância e, ao mesmo tempo, o meio onde
ocorre esta ação. Lévi-Strauss (apud Nathan, 1999) observou que se trata uma
concepção difundida em tantas culturas, que talvez fosse correto considerá-la um
“pensamento universal e permanente (...) — parte de uma determinada situação da
alma perante coisas que fazem aparição em situações dadas” (p.71). Para Nathan,
objetos e rituais atuam movidos por sua própria força intrínseca ou maná, isto é, pela
exigência lógica que impõem. Afirma que esta exigência lógica, em si, nada tem de
“simbólico” porque é justamente aquilo que vem a “desencadear o funcionamento de
cadeias simbólicas” (id., ibid., p.84).
O efeito terapêutico de um dispositivo clínico está na sua capacidade de
articular universos logicamente heterogêneos. Num atendimento psicanalítico,
explica Nathan, estão presentes três dispositivos: A) espacial, B) teórico e C)
emocional. O primeiro e o terceiro dispositivos não apresentam nenhuma relação
entre si. O espaço é normalmente experienciado como um continente enquanto que
as emoções se compõem de conteúdos. A teoria, por sua vez, está numa posição
intermediária, já que é tanto continente quanto conteúdo. Como continente, a teoria
confere uma “natureza” ao terapeuta (diz-se “eu sou freudiano”, por exemplo, como
se diria “eu sou francês”). Na medida em que é constituída de idéias e conceitos, o
universo teórico é igualmente formado de conteúdos. Assim, observou Nathan
(1999): “A indução analógica do dispositivo logra fazer comparáveis elementos-
continente com elementos-conteúdo através de um sistema geral de analogias (...) e
de uma mediação que intercala um universo teórico entre o universo espacial e o
universo espacial totalmente heterogêneos entre si” (p.75).
58
A força de convicção de uma interpretação psicanalítica, tal como a de um
objeto ativo, reside na sua capacidade de articulação dos distintos universos
(emocional e espacial) em causa numa terapia. Nesse sentido, um sintoma pode ser
entendido como um texto sem contexto, que o terapeuta espera rearticular no novo
contexto oferecido pelo dispositivo clínico. A mesma apreciação lógica vale
igualmente para as terapias tradicionais. Tendo em vista estas considerações,
Nathan (ibid.) formula então a hipótese de que a eficácia terapêutica do dispositivo
psicoterapêutico está na sua “capacidade de produzir analogias e mediações por
intermédio de uma redundância entre continentes e conteúdos” (p.76). E, para obtê-
la, não se furta a introduzir na terapia relatos míticos da cultura do paciente como
meio de produzir um novo contexto ou matriz de significação para o sintoma.
A cura, finalmente, é sinônimo de uma boa articulação. Dessa maneira, o
sofrimento psíquico de muitos imigrantes não ocidentais, na França, pode ser
compreendido como decorrente da sua impossibilidade de articular universos
culturais distintos. Na terminologia da TAR, entretanto, seria mais adequado dizer
“redes” em vez de “universos culturais”.
1.6.3 Os transpavores
A epistemologia criou os objetos calvos, duros, inflexíveis da exterioridade.
Em contrapartida, a psicologia produziu o sujeito da interioridade, consciente e fonte
da ação. Este sujeito projeta sobre o mundo exterior suas fantasias e crenças que
são, por sua vez, representações deste mesmo mundo exterior cuja existência não
depende dele.
Os psicólogos sociais vão então denominar “representações sociais” estas
crenças e arbítrios subjetivos, responsáveis pela fragmentação da realidade objetiva
exterior. Para escapar deste relativismo cultural, as psicologias procuraram então
naturalizar a vida interior, povoando a interioridade psíquica de disposições e
mecanismos universais, na forma de invariantes cognitivos, emoções, pulsões,
impulsos, instintos, arquétipos, defesas do eu etc. Mas assim como Latour nos
mostrou que a teoria social dominante na sociologia da ciência fracassou em
explicar as práticas cientificas, Nathan nos revelou que as abordagens
psicopatológicas e psicanalíticas dominantes falharam em aplacar o sofrimento
psíquico dos pacientes de culturas não ocidentais.
59
Em vez do essencialismo das teorias psicopatológicas, psicológicas e
psicanalíticas, a etnopsicanálise de Nathan nos convida a pensar a psique a partir
de um critério pragmático ou performativo: o real, psicologicamente falando, deve ser
aquilo que atua sobre a psique, e não uma suposta natureza do enfermo. Cabe
então à psicologia fornecer uma infra-linguagem que permita ao terapeuta descrever
a ação de influência que as diferentes agências exercem sobre o paciente. Desta
perspectiva, as divindades dos pacientes de Nathan investidas na cura, esses seres
de “ontologias de geometria variável” (Latour, 2002b, p.80), são “reais”. A sua
existência, porém, não é material, bruta, inflexível. As divindades
32
não são
substâncias ou essências
33
. Elas são modus operandi, elas são ação. É exatamente
como actantes que Latour entende que as divindades devem juntar-se ao coletivo de
humanos e não humanos em expansão.
O dispositivo etnopsicanalítico despsicologiza o paciente. O antigo sujeito da
psicologia (ou psicanálise) continha na sua interioridade a totalidade do seu ser;
totalidade descrita em termos de um inconsciente, de fantasias, complexos e jogos
de significante. O sujeito que emerge de uma sessão de etnopsiquiatria,
diferentemente, assemelha-se a “um quase-sujeito misturado aos quase-objetos”
(id., ibid. p.94), um ser formado de múltiplas camadas heterogêneas, atravessado
por variegados veículos, como as invisíveis divindades. A divindade exerce sobre a
pessoa a função de uma agência psicomorfa, um plug-in.
Em um certo sentido, o inconsciente freudiano representaria mais ou menos o
mesmo papel, para nós ocidentais, que uma divindade representa para os adeptos
de práticas mágicas, tais como os pacientes imigrantes de Nathan: trata-se de uma
agência invisível que nos faz agir e a qual o terapeuta tenta mobilizar durante a
psicoterapia. Por outro lado, afirma Latour (1998b), o inconsciente psicanalítico
apresenta
“a enorme desvantagem de não se tornar público, de não poder ser
aludido nem por ritual, nem por um grupo organizado de pacientes, de não
poder ser apreendido senão pelo silêncio do foro privado. Em suma, o
inconsciente possui justamente o defeito maior de ser invisível, secreto e
universal — ou seja, de ser inconsciente!” (p.2).
32
Latour explica que uma “divindade” não é o mesmo que um “deus”. O que ele chama de divindade
seria o que os imigrantes assistidos por Nathan denominam gênio ou espírito (em árabe, djinn).
33
Como tampouco o é o fermento de ácido lático estudado por Pasteur. Ver o artigo de Latour
(2001b) “Da fabricação à realidade – Pasteur e seu fermento de ácido lático”, em A esperança de
Pandora.
60
As divindades parecem mais afeitas às influências exteriores, aos artifícios e
às manipulações do que o inconsciente freudiano. Daí sua vantagem sobre uma
suposta agência inconsciente, em termos da prática da psicoterapia.
Ora, como atuam as divindades? Elas agem como relações de força. A
divindades atuam como pavores (frayeurs) que acometem o indivíduo, constatou
Latour a partir das pesquisas de Nathan. Latour (ibid.) considera que o termo pavor
“tem a vantagem de não supor nem essência nem pessoa” (p.96). Os pavores,
acrescenta, “não necessitam mais do sujeito pessoal do que a frase ‘il pleut
(‘chove’)” (id., ibid., p.96). O quase-sujeito das divindades substitui o sujeito da
psicologia. Somos, querendo ou não, atravessados por pavores que não
dominamos: “Os pavores passam, atravessam, saltam sobre o sujeito; caso eles se
prendam a este último, será por engano, quase por inadvertência; caso eles o
possuam, será porque eles se enganaram de alvo” (id., ibid., p.96). Esta descrição
sugere que a experiência dos pavores seria, antes de mais nada, uma espécie de
experiência afetiva, isto é, uma excitação emocional intensa. Afinal, “apavorar-se”
significa experienciar o afeto ou a emoção “pavor’.
Um sujeito enfermo ou louco pode ser definido como alguém que foi, por
engano, possuído por um pavor. A “cura” consistiria então em deixar o pavor passar
ou não deixar que ele se fixe na pessoa. Latour cunhou a expressão “transferências
de pavores” — ou abreviadamente “transpavores” — para designar a operação de
travessia desses invisíveis. No trato com os pavores, convém primeiramente ter uma
atitude de “cuidado”, que é como Michel Serres define “religião”. Além disso, deve
usar-se de artimanhas para enganá-los, para fazê-los passar. Um transtorno mental,
a partir destas considerações, deve ser repensado como uma doença do vínculo.
Em vez de um vínculo sobre o qual a ação ou força se distribui, a experiência
psicopatológica exibe um sujeito passivo diante de uma agência ativa, que não é
senão o pavor.
Agora que já conhecemos as principais idéias, proposições e regras
metodológicas para o exame da psicologia analítica, podemos formular com mais
precisão as perguntas que os próximos capítulos tentarão responder.
61
1) A psicologia analítica reproduz o acordo moderno, isto é, reitera a prematura
disjunção entre natureza e cultura, ou permite uma experimentação do
psíquico em termos da dupla tarefa de exploração e composição?
2) Como teoria, a psicologia analítica oferece uma infra-linguagem para se
descrever o que os atores eles mesmos dizem e fazem? Como prática,
obedece à regra metodológica da TAR de “seguir os atores”?
3) Como a psicologia analítica enfrenta a questão da liberdade e do domínio?
Ela de algum modo reconheceu a indeterminação dos vínculos como
alternativa à dupla mencionada acima para descrever a ação dos atores?
4) De que modo Jung pensou o problema das agências? Qual o papel atribuído
aos pavores (afetos) ou transpavores na constituição da psique e de suas
patologias?
5) Em relação à pratica clínica, qual a natureza e extensão da influência do
terapeuta e de seus procedimentos sobre a terapia? Em particular, dá o
terapeuta oportunidade ao seu paciente de recalcitrar?
62
Capítulo 2 – A psique e suas agências
“Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que
possa dizer — eu sou eu?”
— Fernando Pessoa
2.1 A realidade psíquica
A psicologia moderna nasceu sob a égide do materialismo científico do século
XIX. Desta perspectiva, os processos psíquicos são necessariamente redutíveis a
processos fisiológicos elementares. Pensamentos, por exemplo, seriam resultantes
da atividade de glândulas. Não havendo nada de psíquico por si mesmo, a mente
não passaria de um epifenômeno do cérebro. O materialismo, enfim, acabou por
gerar uma “psicologia sem a alma”. Desse modo Jung (cf. 1981) interpretou o
surgimento da psicologia científica, em 1934, no artigo “Postulados básicos da
psicologia analítica”. De fato, se examinarmos as idéias de alguns autores
importantes na formação desta jovem “ciência”
34
, como E. Mach (1838-1916), H.
Ebbinghaus (1850-1909) e E. B. Titchener (1867-1927), este último discípulo de
Wilhelm Wundt, encontraremos o materialismo ou mecanicismo que Jung apontou.
Em linhas gerais, estes psicólogos buscaram decompor a consciência em seus
elementos básicos — elementos estes derivados da experiência sensorial
35
.
Entretanto, o materialismo crescente da modernidade não teria ocorrido por
acaso. Tratar-se-ia, para Jung, de uma reação compensatória contra o
“espiritualismo” reinante no período medieval anterior. O homem medievo acreditava
34
Não é o objetivo deste trabalho discutir se a psicologia efetivamente pode ser considerada
“ciência”. Discussão que, por si só, seria matéria para outra tese de doutorado! Convém apenas
marcar que o questionamento da cientificidade da psicologia é tão antigo quanto ela própria (cf.
Shamdasani, 2006b).
35
Sobre a influência do atomicismo e do mecanicismo na psicologia, ver Matrizes do pensamento
psicológico, de L. C. Figueiredo.
63
poder atribuir toda a complexidade da vida a causas espirituais. Insatisfeito com esta
“metafísica do espírito”, o homem moderno foi buscar na matéria outra explicação
para a realidade. No entendimento de Jung, tanto um quanto o outro se enganam
porque a “matéria é tão inescrutável quanto a mente” (id., ibid., p.657). O homem
moderno, no seu ardor por explicar o mundo a partir de causas materiais, mas ao
mesmo tempo sem dados empíricos suficientes que sustentassem essa perspectiva,
acabou ele também fazendo metafísica — “metafísica da matéria”. Com efeito, um
levantamento das internações dos últimos quatros anos no Hospital Psiquiátrico
Burghölzli, divulgado em 1908, revelou que três quartos dos 1325 pacientes ali
admitidos não apresentavam qualquer traço de anomalia cerebral (cf. Jung, 1990d).
Portanto, Jung acredita não ser possível reduzir a mente à matéria ou vice-
versa: “a psique depende do corpo, e o corpo depende da psique” (id., 1988a, p.2).
Esta é uma das antinomias básicas com a qual a psicologia tem de conviver. Um
exemplo pode servir para esclarecermos a posição de Jung. Certa vez, quando
indagado se a causa de um afeto deveria ser buscada em processos fisiológicos ou
em fatores psíquicos inconscientes que, ao invadir a consciência produziriam, além
de sentimento, alterações fisiológicas associadas, comentou:
“Tudo o que podemos saber empiricamente é que os processos corporais
e os processos mentais acontecem de modo simultâneo, que é de certa
forma misterioso para nós. É devido à nossa lamentável mente que não
podemos pensar corpo e mente como uma única e mesma coisa;
provavelmente eles são uma única coisa, mas somos incapazes de pensá-
lo” (id.,1976, p.33).
Está claro que Jung não questiona a ligação da vida psíquica com processos
corporais. Questiona, sim, a sua redução. Em vez de reduzir o afeto a esta ou
aquela causa, Jung prefere permanecer na incerteza, prolongar a controvérsia
36
.
Tudo o que nos chega do mundo material externo assim como do próprio
corpo, por meio do sistema nervoso, é vivido como imagem psíquica: “Tudo o que
experimento é psíquico. Mesmo uma dor física é uma imagem psíquica que eu
experimento” (id, ibid, p.353). E o mais importante é que esta experiência
imaginativa não é um decalque, uma mera reprodução dos dados sensoriais, mas a
sua transformação ou ainda falsificação. Anotou Jung (ibid.): “Minha própria psique
36
Jung, ao propor a indeterminação do afeto, alinha-se (mais uma vez) com a psicologia de William
James. Sobre a versão psicológica de James sobre as emoções, ver Despret (2001) em Ces
émotions qui nous fabriquent: ethnopsychologie de l’authenticité.
64
inclusive transforma e falsifica a realidade, e isso a tal ponto que preciso recorrer a
meios artificiais para determinar como são as coisas exteriores a mim” (p.353). Esta
atividade psíquica de transformação, de produção de diferenças, é essencialmente
uma atividade criativa. Jung (1990c) chamou-a de “fantasia” (Phantasie):
“Essa atividade autônoma da psique que não pode ser explicada nem
como ação reflexa a estímulos sensórios nem como órgão executivo de
idéias eternas é, como todo processo vital, um ato continuamente criativo.
A psique cria realidade todo dia. A única expressão que posso usar para
essa atividade é fantasia” (p.52).
Assim, quando Jung se refere à fantasia ou a uma imagem de fantasia não
está se referindo ao reflexo direto de um objeto exterior, mas a um “conceito
derivado do uso poético” (ibid., p. 442). O termo “poético” indica que a psique, tal
como a produção literária, não é apenas repetição, mas criação de realidades. A
mente inventa espontaneamente ficções, histórias, dramas. Gaston Bachelard
37
, na
sua faceta de filósofo do devaneio poético (e não de epistemólogo), descreveu a
faculdade imaginativa da alma de modo similar e pode ajudar-nos a entender o
caráter poético ou criativo da psique a que se refere Jung. Segundo Bachelard
(2001), a imaginação não é propriamente a faculdade de formar imagens mas,
antes, “a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo
a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há
mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há imaginação, não há
ação imaginante” (p.1).
Transformar, falsificar, criar, mudar e deformar imagens são as ações básicas
que caracterizam o funcionamento psíquico. Isto permite afirmar que a alma opera
como um mediador, no sentido que Latour confere a este termo, das relações do
indivíduo com seus mundos externo e interno. Um mediador, conforme se viu no
Capítulo 1, significa a ocasião para que algo aja, a oportunidade de produção de
uma diferença (diversamente da determinação própria do intermediário). Na fantasia
mediadora, então, as fronteiras entre sujeito e objeto se esfumam, não conseguimos
decidir-nos com certeza se o que vivenciamos é exclusivamente subjetivo ou
objetivo. Talvez seja melhor dizer que são ambos. A experiência primeira psíquica é
da ordem de uma indeterminação ontológica.
37
Bachelard trocou correspondência com Jung. Em 1938, enviou-lhe seu livro A psicanálise do fogo,
cujo conteúdo revela uma forte influência da psicologia junguiana. Em sua resposta, Jung elogiou
sobremaneira o livro.
65
Esta indeterminação entre o que é subjetivo e objetivo, própria da fantasia, foi
apontada por William James (cf. 2005) já em 1904. Segundo a tese de James, o
mundo é composto por uma única matéria ou substância (stuff), a qual denomina
“experiência pura”. Inicialmente, a experiência não se parte em consciência subjetiva
e realidade objetiva. A divisão da experiência ocorre quando, por um processo de
“adição”, uma porção de experiência se associa com outro conjunto de experiências,
produzindo funções diferenciadas de estado mental ou consciência, de um lado, e
de conteúdo objetivo, de outro. Coisa e pensamento são ontologicamente muito
mais semelhantes do que os espíritos cartesianos habitualmente imaginam.
Pensamentos, de acordo com James, enquanto experiência pura, são a um só
tempo subjetivos e objetivos.
Contra a redução materialista da psicologia científica e a favor de uma
“psicologia com a alma”, Jung vai ainda acrescentar um argumento pragmático cuja
origem, embora não explicitada, deve ser buscada nas idéias de William James
38
:
“real” é tudo o que atua sobre a psique. Nesse sentido, pergunta-se o próprio Jung
(1981): “Um pensamento é ‘real’” (p.383)? Responde: “O pensamento existia e
existe, ainda que não se refira a nenhuma realidade tangível; ele produz inclusive
um efeito, de outro modo ninguém o notaria” (id., ibid., p.383). Um pensamento pode
ainda deixar traços de realidade bastante desagradáveis, como quando resolvemos
especular com ele criando, literalmente, um “doloroso rombo na nossa conta
bancária” (id., ibid., p.383).
Há quanto ao significado do termo “realidade” uma diferença da língua alemã
em relação às línguas latinas, e mesmo ao inglês, que convém explicar. O vocábulo
português “realidade” provém do latim res, que significa “coisa”. Em alemão se diria
“realidade-coisa”, Dinglichkeit, para referir-se à realidade como coisa (res). Acontece
que a palavra comumente usada por Jung para “realidade” é Wirklichkeit — e não
Dinglichkeit —, que designa um tipo especial de realidade, uma “realidade de
atuação” ou de “validade na vida” (Jung, 1989, p.59). Assim, quando Jung fala na
realidade psíquica ou da alma (Wirklichkeit der Seele) está indicando uma realidade
que se constata pela sua atividade ou desempenho sobre o indivíduo e não por
algum tipo de substancialidade (coisa). Esta ênfase sobre desempenho do fator
38
No Capítulo 4, tornar-se-á a discutir a influência das idéias de William James sobre Jung.
66
atuante revela uma faceta da psicologia de Jung que poderíamos qualificar de
“pragmática” (ver Capítulo 4).
2.1.1 “A psicologia com a psique”
A psicologia analítica é herdeira espiritual do Romantismo alemão do século
XIX. Idéias de importantes filósofos deste período como Arthur Schopenhauer, Carl
Gustav Carus e Eduard von Hartmann exerceram uma forte atração sobre o jovem
Jung. Isto sem falar, é claro, na literatura de Johann W. Goethe — o Fausto,
sobretudo — cujas citações varam a obra junguiana do início ao fim. Uma das
principais características do movimento romântico foi exatamente ter-se oposto ao
elementarismo e mecanicismo derivados do Iluminismo. Goethe, por exemplo,
concebeu a natureza como potência criadora e transformadora. Apreendida em sua
totalidade, ela não se prestaria à dissecação analítica, revelando-se, em vez disso,
mediante símbolos que exigem interpretação (cf. Figueiredo, 2003). Nenhuma
coincidência, portanto, entre estas concepções e a idéia de Jung de uma psique
criativa. Muitos anos antes de Freud propor uma “psicologia” do inconsciente, Carus
e Hartmann já haviam elaborado uma “filosofia do inconsciente”.
Outra notável marca do movimento romântico foi ter valorizado o
sobrenatural, o irracional e o onírico, também como forma de reação à inflação da
Razão produzida pelo Iluminismo, no século XVIII. Nesse aspecto, a psicopatologia
franco-suíço-anglo-americana de matizes funcionalistas, do final do século XIX e
início do XX, aproxima-se do Romantismo. Nomes importantes nos campos da
psiquiatria, neurologia e pesquisa psicológica como os franceses Jean Martin
Charcot e Pierre Janet, os suíços Théodore Flournoy e Eugen Bleuler, o inglês
Frederik W. H. Myers e o norte americano William James se interessaram pelo
estudo da mente “subconsciente”, por técnicas de cura heterodoxas como a hipnose
e por fenômenos como a “mediunidade”, até então tidos como meras superstições
pela maioria da comunidade científica. Flournoy, por exemplo, asseverava que a
psicologia não podia omitir-se de pesquisar nada que é humano. No seu famoso
estudo sobre a “médium” Helen Smith, mostrou como suas fantasias, isto é, os
supostos “espíritos”, cumpriam as funções de compensação e proteção em sua
debilitada organização psíquica (cf. Ellenberger,1970).
67
Envolvido por tal atmosfera — a um só tempo romântica e funcionalista —
Jung constatou que a realidade da psique se faz notar com mais intensidade
naquelas experiências incontroláveis pela consciência e irredutíveis a mecanismos
fisiológicos, como os transes sonambúlicos, os sintomas psicopatológicos e os
sonhos. Por isto, interessou-se tanto por estes fenômenos. Seu primeiro trabalho de
expressão em psiquiatria — com efeito, sua tese de doutorado —, a monografia
intitulada “Sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos”
39
,
examinava o sonambulismo de uma jovem, a senhorita S. W. Por sonambulismo,
entenda-se um subtipo de histeria, caracterizado por um “estado de vigília
sistematicamente parcial” (Jung, 1993a, p.21), que abrange diversas manifestações
de automatismos psíquicos como amnésias, ausências e, é claro, o caminhar
dormindo. S.W. fora na verdade Hélène (“Helly”) Preiswerk, prima de Jung. As
séances ocorreram entre os anos 1895 e 1899, quando Jung ainda residia na
Basiléia, portanto antes de sua entrada no Burghölzli (cf. Bair, 2003).
Durante as sessões “mediúnicas”, que Jung participou pessoalmente, a
jovem dizia incorporar “espíritos”, alguns de familiares falecidos. Jung concluiu tratar-
se de um caso de dissociação patológica (histérica) da personalidade, ou seja,
determinadas partes de seu psiquismo assumiam um alto grau de autonomia em
relação à consciência
40
, comportando-se como se fossem “espíritos”. Sugeriu que a
personalidade automática subconsciente mais importante, chamada “Ivenes”,
poderia representar um desenvolvimento futuro do caráter de S. W. Observou ainda
elementos de criptomnésia nos relatos da “médium”. O termo “criptomnésia” foi
popularizado na literatura psicopatológica por Flournoy, significando memórias
esquecidas que reaparecem na consciência como novas. Nas últimas sessões, os
transes aparentavam cada vez menos espontaneidade, levando Jung a supor que se
tratava de “mentiras conscientes”.
À época da publicação da monografia de Jung, em 1902, figuras notáveis nos
campos da psiquiatria, neurologia e psicologia como Charcot, Janet, Bleuler e
William James, além do referido Flournoy, já haviam estudado casos de
“mediunidade”. Portanto, a acusação freqüente de “misticismo” imputada a Jung,
decorrente, em parte, de seu interesse por fenômenos marginais à ciência
39
Quando publicada, a monografia recebeu uma resenha positiva de Flournoy.
40
Jung, ao descrever os “espíritos” de S. W. como “personalidades automáticas”, antecipa o conceito
de complexo, que será discutido mais à frente ainda neste capítulo.
68
dominante, deve ser estendida igualmente a estes pesquisadores da alma
humana
41
.
Fenômenos similares ao transe sonambúlico, isto é, fenômenos que
indicavam uma atividade espontânea ou autônoma da psique, Jung veio a observar
em grande quantidade nos pacientes psicóticos e inclusive nas pessoas “normais”
que se submetiam aos experimentos de associação de palavras, durante os anos
em trabalhou no Hospital Burghölzli. Os sonhos, por sua vez, desde criança
deixavam nele uma forte impressão emocional, conforme relatou em sua
autobiografia. Seu trabalho clínico de interpretação onírica com pacientes neuróticos
só veio a confirmar esta primeira impressão. Nos sonhos, qualquer um pode
observar atividade psíquica ocorrendo fora do domínio da mente consciente.
Outro campo rico de experiências psicológicas é a religião. Jung voltou-se
para ela como um psicólogo interessado em examiná-la como um “problema
psicológico” e não para fazer afirmações metafísicas ou teológicas. Não por acaso,
conseguiu desagradar tanto católicos quanto protestantes. Em um texto onde
discutiu o satori, que é como os zen-budistas denominam o estado de iluminação,
observou:
“Nunca estamos em condições de decidir, definitivamente, se uma pessoa
foi realmente ‘iluminada’ ou ‘redimida’, ou se apenas imagina que o tenha
sido. Falta-nos para isto qualquer critério. Além disso, sabemos muito bem
que uma dor imaginária é muito vezes mais dolorosa do que uma dor
pretensamente real, pois é acompanhada de um sofrimento moral sutil,
provocado por um sombrio e secreto sentimento de culpa pessoal. Não se
trata portanto de um ‘fato concreto’, mas de uma realidade espiritual, isto
é, de um acontecimento psíquico do processo conhecido por satori” (Jung,
1988b, p.550).
Não é fundamental para o psicólogo saber se a iluminação é “concretamente”
real ou ilusória. Em qualquer dos casos, tratar-se-ia de uma experiência psíquica.
Poder-se-ia ainda objetar que uma experiência religiosa não passa de falsificação
consciente. Em relação a esta última hipótese, Jung escreve que “ainda que todos
os relatos religiosos nada mais fossem do que invenções e falsificações conscientes,
poderia ser escrito um tratado psicológico muito interessante a respeito de tais
41
Convém lembrar que, paralelamente à redação de sua tese de doutorado, Jung conduzia
experimentos de associação de palavras, nos moldes mais estritos da psicologia experimental da
época, como será mostrado na próxima seção.
69
mentiras, com o mesmo rigor científico apresentado pela psicopatologia das ilusões”
(id., ibid., pp.550-551).
Para Jung, essa irisada coleção de acontecimentos psíquicos não podia ser
deixada à margem da investigação científica. Rompendo com o materialismo e
mecanicismo dominantes das psicologias sem a psique, Jung propôs-se então a
fazer uma psicologia que incluísse os aspectos anômalos, irracionais, fantásticos e
sublimes da experiência psíquica; propôs-se a fazer, enfim, uma “psicologia com a
psique”.
Se existe uma vida psíquica que escapa ao domínio e intenções da
consciência subjetiva, é porque ela é “objetiva”. Devemos entender a objetividade
dos delírios e alucinações do psicótico, das fobias, compulsões e obsessões do
neurótico ou dos sonhos das pessoas “normais” como experiências que
simplesmente não foram criadas voluntariamente pela consciência subjetiva.
Objetividade e autonomia aqui se confundem. Nesse sentido, a psicologia de Jung
se aproxima da concepção de alma dos antigos e dos povos assim chamados
“primitivos”. Sem preconceito, ele examinou o que gregos, romanos, índios norte-
americanos e negros africanos entendiam ou ainda entendem por psique.
Basicamente eles lhe atribuíam uma existência objetiva. Imaginaram-na literalmente
como uma espécie de sopro ou presença fantasmagórica. Sopro este que
comumente é o princípio da própria vida.
Mas é, antes de mais nada, como metáfora que Jung retomou a tradição dos
antigos e das culturas não-ocidentais. A objetividade da psique a que se refere Jung
é uma realidade ao nível da experiência do sujeito — que se constata pelos efeitos
produzidos — e não uma realidade substantiva, essencial, concreta. Da mesma
maneira que Jung se afasta do materialismo “material” da psicologia experimental,
rejeita o materialismo “espiritual” das crenças religiosas. Em ambos os casos, trata-
se de concepções metafísicas sobre as quais a psicologia nada tem a declarar:
“Entre as essências desconhecidas do espírito e da matéria situa-se a realidade do
psíquico — a realidade psíquica, a única realidade que experimentamos
imediatamente” (id, 1981,p.384).
A psique, na psicologia de Jung, pode ser entendida como a experiência
primeira da realidade, onde os limites entre as crenças do sujeito e os fatos objetivos
se confundem. Nesse sentido, parece-me plausível repensá-la segundo a noção de
fatiche ou híbrido. Sua atividade de transformação e criação de imagens, e não
70
apenas de reprodução — confere-lhe um papel de mediador, como anteriormente
sugerido.
Na tentativa de entender o que movimenta a psique, Jung formulou teorias
psicológicas sobre as agências psíquicas. Seguindo uma ordem cronológica,
veremos nas próximas seções a teoria dos complexos e a teoria dos arquétipos.
2.2 A teoria dos complexos
Jung percebeu desde o início de sua prática clínica e de suas pesquisas que
processos fisiológicos elementares ou instintos básicos não eram suficientes para
explicar o funcionamento da psique e suas patologias. Para chegar a este
entendimento, foram-lhe importantes as pesquisas com experimentos de associação
de palavras, que realizou com a colaboração do colega Franz Riklin e de outros
psiquiatras do Hospital Psiquiátrico Burghölzli, sob a supervisão de Eugen Bleuler,
seu diretor. No começo do século XX, o Burghölzli era considerado um dos principais
hospitais europeus no tratamento de doenças mentais. Ali se praticava a
Anstaltpsychiatrie, um método terapêutico proveniente do século XIX, baseado na
interação entre médicos e pacientes. Na prática, isto significava a eventual
participação dos enfermos no planejamento de sua própria terapia assim como na
direção do hospital (cf. Bair, 2003). Novidades no campo da pesquisa
psicopatológica, como os estudos com associação de palavras, ademais, eram
sempre bem-vindas no Burghölzli.
O experimento de Jung (cf. 1997) era uma variante do experimento criado por
Sir Francis Galton, depois modificado por Wundt. Na psiquiatria, Emil Kraepelin e
Gustav Aschaffenburg foram pioneiros em adaptá-lo à investigação da doença
mental. Seguindo seus passos, Bleuler decidiu estudar experimentalmente a
associação de palavras em pacientes psicóticos. Mas um problema logo se tornou
evidente: havia grande dificuldade em distinguirem-se as associações normais
daquelas patológicas. Era portanto necessário estabelecer critérios que permitissem
tal distinção. Jung assumiu a condução dos experimentos a partir deste ponto, em
1901. As primeiras experiências que realizou foram com pessoas consideradas
sadias e já aí percebeu a dificuldade que era formular um conceito de
71
“normalidade”
42
. Em primeiro lugar, buscava-se identificar nas reações “se havia
uma certa regularidade em geral e, depois, se apareceriam regularidades individuais,
isto é, se era possível encontrar certos tipos reativos” (id., 1997, p.13).
Antes do início do experimento o participante era orientado a responder o
mais rápido possível a cada palavra-estímulo com a primeira palavra que lhe viesse
à mente. Dito isto, o aplicador passava a enunciar as palavras do teste, que no total
formavam uma lista de 100 vocábulos de uso quotidiano, dentre substantivos,
adjetivos, verbos, advérbios e numerais. As associações eram anotadas e seus
respectivos tempos de reação medidos em quintos de segundo. Jung ainda
acrescentou uma segunda fase ao teste, o chamado “método de reprodução”, onde
se verificava a capacidade de o participante reproduzir as associações que havia
acabado de enunciar. Posteriormente, Jung introduziu o uso do psicogalvanômentro
no experimento. Este aparelho permitia observar e medir alterações na resistência
elétrica do corpo.
Os resultados das primeiras pesquisas de Jung e Riklin, publicados no livro
“Estudos diagnósticos de associações”, em 1904, foram algo surpreendentes. Eles
confirmaram, como se imaginava, que associações lingüísticas ocorrem segundo
princípios de associação anteriormente descritos, como a semelhança e
contigüidade. Entretanto, os mesmos experimentos apontaram que o fator
determinante no processo associativo não era de caráter intelectual mas, sim, afetivo
ou emocional
43
. Os autores constataram alguns padrões de respostas. Pessoas
cultas, por exemplo, costumam responder às palavras-estímulo de modo mais
objetivo ou com menor riqueza de conteúdo do que pessoas incultas. Contudo, o
fator decisivo nas respostas nada tinha a ver com educação ou inteligência, mas
com a atitude emocional dos participantes: as pessoas cultas simplesmente não se
envolvem no experimento ou não têm por ele tanto interesse quanto as pessoas
incultas, para quem o experimento assume considerável importância.
42
Anos mais tarde, em 1936, Jung (2001) comentou em carta ao neurologista americano Smith Ely
Jelliffe: “(...) a normalidade é um conceito altamente relativo. Mas é uma concepção sem a qual é
difícil virar-se na vida prática. É óbvio que os nossos pontos de vista mudam de século em século ou,
até mesmo, de mês em mês; mas sempre existe um certo número de pessoas ou situações que
representam a média e o que chamamos de ‘normal’. Não existisse o conceito de normal, não
poderíamos falar do anormal, com o que exprimimos o fato de que certas funções ou acontecimentos
não correspondem ao seu curso médio” (p.223).
43
Em uma nota de rodapé de “A psicologia da dementia praecox: um ensaio”, de 1907, Jung (1990d)
observou: “Idéias isoladas relacionam-se entre si pelas diferentes leis de associação (semelhança,
coexistência, etc.) embora sejam selecionados (sic) e agrupadas em combinações mais amplas pelos
afetos” (p.33).
72
Mas o que mais chamou a atenção de Jung foram as falhas de reação
ocorridas durante os testes. Diante de certas palavras-estímulo, os participantes
desobedeciam à instrução original e respondiam com mais de uma palavra, repetiam
a palavra-estímulo, não reagiam absolutamente ficando calados e, sobretudo,
demoravam a reagir. A delonga em uma determinada associação era avaliada pela
comparação com o tempo médio do conjunto de reações. Os reflexos galvânicos,
por sua vez, tendiam a ser maiores onde incidiam as falhas. Quanto à fase da
reprodução, Jung observou que nas palavras-estímulo onde houve distúrbio era
freqüente o participante esquecer o que havia respondido anteriormente.
Jung fez o que ninguém havia feito até aquele momento: levar a sério os
distúrbios do teste (isto, aliás, só foi possível porque de algum modo o experimento
dava ao participante a chance de recalcitrar). Mais importante do que descrever leis
de associação, interessava-lhe saber “como e por que e quando uma associação
não funciona” (Hillman,1988, p.10) No entender de Hillman, essa mudança de
perspectiva em relação ao método associativo é um importante exemplo da atitude
“herética” de Jung com as idéias, que veio a ser provavelmente sua qualidade mais
marcante, como destacado na Introdução. A investigação das falhas de reação —
eram realizadas entrevistas com os sujeitos experimentais após o teste — mostrou
que elas ocorriam onde as palavras-estímulo se referiam a um “assunto pessoal” do
participante; assunto este quase sempre doloroso. Poucos ou mesmo um destes
problemas íntimos era suficiente para provocar distúrbios no experimento. Isto já
havia sido observado anteriormente por Georg T. Ziehen, que então cunhou a
expressão “complexo de representações emocionalmente carregado”
(gefühlsbetonter Vorstellungskomplex) para referir-se a eles (Ellenberger, 1970,
p.692). Seguindo esta indicação, Jung (1997) e Riklin introduziram “o termo
complexo para designar este ‘assunto pessoal’ pois este é sempre um conjunto de
idéias que se mantém unidas através de uma carga emocional, comum a todas”
(p.607).
Jung constatou que em muitos casos o participante do experimento procurava
esconder conscientemente seu(s) complexo(s), mas em algum momento finalmente
se deixava trair. Havia outras pessoas, diversamente, para quem o complexo era
simplesmente “oculto”. Apoiado na teoria freudiana do inconsciente e do recalque,
formulou a hipótese de que, neste caso, o fator psíquico responsável por manter o
complexo fora do campo da consciência do sujeito, isto é, mantê-lo inconsciente, era
73
o “recalque”. Desse modo, Jung estava demonstrando experimentalmente — ou
inventando por meio da artificialidade laboriatorial, se preferirmos — “o
inconsciente”. É importante assinalar que a presença de um complexo não é
exclusivamente psíquica, mas se faz também notar no organismo, conforme
sugerem os reflexos galvânicos. Nesse sentido, Jung (1976) observou que o
complexo “apresenta uma espécie de corpo e uma determinada quantidade de
fisiologia própria. Pode perturbar o estômago. Perturba a respiração, perturba o
coração — em suma, comporta-se como uma personalidade parcial” (p.72).
A aplicação do experimento de associação mostrou a presença de complexos
em maior grau e intensidade em pacientes neuróticos e psicóticos do que nas
pessoas sadias. Vale dizer que os próprios médicos do Burghölzli se submetiam ao
experimento de associação de palavras. Ludwig Binswanger, um psiquiatra iniciante
à época, aplicou-o em Jung mais de uma vez. (cf. Kerr, 1997; Bair, 2003).
Jung concluiu que o complexo era o agente patogênico por trás das doenças
mentais de etiologia psíquica. O experimento tornou-se desse modo um importante
instrumento de diagnóstico de psicopatologias. Na neurose, o complexo “se
comporta de forma autônoma à intenções do indivíduo” (id., 1997, p.608). Jung
explica que o eu também é um complexo, isto é, um conjunto de representações
dotadas de afeto. A consciência do corpo e o sentido de continuidade existencial
(registros de memória) são os seus principais componentes (cf. Jung, 1976). Em
1907, Jung (1990d) definiu o eu como “a expressão psicológica de uma combinação
firmemente associada entre todas as sensações corporais” (p.33). Na hierarquia da
psique cabe a ele o posto de comando, representando nesse aspecto a atitude
dominante do indivíduo, seu modo habitual de ser e agir. O complexo secundário
patogênico, por sua vez, com sua intencionalidade contraria à do complexo do eu,
pode ser comparado a um “vassalo rebelde” (cf. Jung, 1997). A luta entre senhor e
vassalo produz os sintomas neuróticos.
No artigo “Psicanálise e experimento de associações”, de 1905, Jung
descreve o caso clínico de uma neurótica obsessiva, a “senhorita E.”. A paciente era
torturada por idéias obsessivas: acreditava, por exemplo, ser responsável pela morte
de uma vizinha e a de um rapaz criado por ela, “em conseqüência de pequenos
castigos que às vezes lhe aplicava” (id. 1997, p.308). Como a paciente não revelava
informações adicionais aos sintomas, o caso parecia de difícil solução. Jung então a
submeteu ao experimento de associação, que acabou lhe fornecendo preciosas
74
indicações de um complexo erótico patogênico subjacente às idéias obsessivas. O
tempo veio confirmar esta suspeita. À medida que os pensamentos de forte caráter
sexual constituintes do complexo puderam ser aceitos pela consciência da senhorita
E., as idéias obsessivas que lhe serviam de substituto foram perdendo sua
autonomia. O tratamento, então, teve um desfecho feliz. É importante destacar que
este sucesso se deveu não à rendição do vassalo rebelde (complexo patogênico),
mas à mudança de atitude do senhor (complexo do eu).
Em relação à neurose, Jung notou que há casos em que o complexo atinge
tamanha intensidade emocional, e portanto autonomia, que pode “recalcar” o
complexo do eu e assumir temporariamente o comando da consciência. É o que se
observa, por exemplo, nos delírios histéricos. Na neurose, de qualquer modo, ainda
há movimentos na psique de adaptação à realidade externa; os complexos exibem
capacidade de transformação. Na esquizofrenia (dementia praecox), diferentemente,
“os complexos se fixam de tal forma a paralisarem o progresso da personalidade
como um todo” (id., ibid., p.610). Outra diferença é que na esquizofrenia a autonomia
do complexo é ainda maior que nas neuroses. Os complexos se emancipam a tal
ponto do controle, consciente que são vividos pelo sujeito como pessoas audíveis e
visíveis, ou seja, como alucinações.
O experimento de associação de palavras, com seu rigor metodológico
(quantitativo), muito agradou aos espíritos nomotéticos da época, preocupados em
reproduzir os métodos das ciências naturais no estudo da alma, contribuindo
sobremaneira para a notoriedade de Jung no campo da psiquiatria. Mas ele sabia de
suas limitações: o teste não passava de “um simulacro da vida psicológica diária”
(id., 1990d, p.39). Olhos atentos e ouvidos afinados são capazes de perceber os
complexos no dia-a-dia dos homens, sem a necessidade de recorrer-se aos
enfadonhos procedimentos laboratoriais. Tome-se o exemplo de uma paixão
amorosa como um caso típico de influência de um complexo sobre a psique
“normal”:
O apaixonado é possuído pelo seu complexo: todo seu interesse volta-se
para o complexo e as coisas que lhe dizem respeito. Cada palavra, cada
objeto evoca o amado (igualmente nos experimentos, onde palavras-
estímulo aparentemente indiferentes acionam o complexo). As coisas mais
insignificantes que, de algum modo, estejam relacionadas ao complexo
são guardadas como jóias preciosas; todo o meio ambiente é observado
sob o aspecto do amor. O que não diz respeito ao complexo é excluído e
75
os demais interesses desaparecem no nada; surge uma atrofia temporária
e um esvaziamento da personalidade. Somente o que se encontra
associado ao complexo provoca afetos e é assimilado pela psique. O
pensamento e a ação vão em direção ao complexo e tudo que não pode
ser desviado para essa direção é desprezado ou feito com total
superficialidade, indiferença ou descaso” (id., ibid. p.40).
No amoroso, o complexo está escancarado, exposto à vista de todos. Mais
freqüentemente, entretanto, encontra-se dissimulado, disfarçado sob a capa da
etiqueta e das convenções sociais. Basta, porém, “uma só palavra, um só gesto
[para] atingir a ferida e evidenciar o complexo residente no fundo da alma” (id. ibid.,
p.43). Entende-se, então, por que Jung abandonou os “grosseiros métodos
experimentais” (id. ibid., p.43). No trabalho clínico, eles podem ser úteis, mas não
indispensáveis, já que perfeitamente substituíveis pelo exame cuidadoso dos
sintomas (obsessões, alucinações, idéias delirantes etc.), visões
44
e principalmente
sonhos, como meio de identificar complexos. Após afastar-se definitivamente do
Burghölzli, em 1910, Jung cessou inteiramente a pesquisa experimental com
associações de palavras. Continuou, sim, a fazer-lhe referência ao longo dos anos
como forma de respaldar sua psicologia dos complexos em bases mais palatáveis
ao gosto da comunidade psiquiátrica da época.
Sem o método de associação, Jung concentrou-se na investigação de
sintomas e sonhos como indicadores de complexos. Os sonhos, conforme
observado, revelam uma atividade psíquica para além do domínio da consciência.
Consciência esta que não desaparece de todo durante o sono, mas tem seu
funcionamento muito restringido. O sólido complexo do eu do estado de vigília, que é
quem responde pela função de consciência, aparece habitualmente nos sonhos
como um pálido e frágil “eu-onírico”. Assim como o eu em vigília lida com coisas e
pessoas reais e “autônomas”, o eu-onírico durante o sonho se relaciona com
imagens oníricas também dotadas de uma espécie de “realidade” e “autonomia”,
posto que não foi ele quem as criou. Estas imagens são na verdade “complexos
psíquicos autônomos que se formam a si mesmos a partir de seu próprio material”
(Jung, 1981, p.306). Eles entram e saem do campo da consciência ao seu bel-
prazer. Por não sabermos sua origem com certeza, dizemos que “os sonhos provêm
do inconsciente” (id, ibid., p.306).
44
Jung (1981) considera a visão “uma irrupção momentânea de um conteúdo do inconsciente”
(p.307) na consciência, durante o estado de vigília.
76
A diferença entre a vigília e o sono é que naquela o eu supõe controlar os
complexos enquanto neste eles irrompem na consciência como seres vindo de
“outro mundo”. É exatamente esta relativa autonomia dos complexos, ou seja, sua
capacidade de interferir nas intenções do eu, que levou Jung a compará-los à
“primitiva teoria dos espíritos” ou à demonologia. Neste aspecto a teoria dos
complexos pode servir como uma infra-linguagem, no sentido conferido por Latour,
para o estudo de experiências descritas pelas pessoas como “espirituais”, tais como
as aparições de “fantasmas”, a “perda da alma” e a “possessão por espíritos”. Infra-
linguagem porque a teoria dos complexos pode atuar sobre o analista na sua prática
clínica como um “relato reflexivo” da experiência dos atores, um instrumento para
ajudá-lo a “ficar atento às metáforas” produzidas pelos próprios atores (ver Capítulo
1). Vimos que Jung já havia analisado em sua tese de doutorado, em 1902, o caso
de uma jovem que dizia receber espíritos. Naquela época, entretanto, ele não havia
ainda desenvolvido a teoria dos complexos para auxiliá-lo.
Ao contrário do que se poderia imaginar, investigação da crença nos espíritos
aproxima primitivos e modernos em vez de afastá-los. Jung (cf. 1981) comenta que a
humanidade sempre acreditou na existência de seres imateriais e invisíveis — os
assim chamados “espíritos” — que interferem na vida humana, seja para o bem seja
para o mal. Esta crença teria entrado em declínio no mundo ocidental com a
ascensão do racionalismo iluminista, no século XVIII. Desde então, como o europeu
civilizado não vê mais fantasmas, tende a atribuí-los a mera superstição, restos de
tradições equivocadas do passado. Contudo, observou Jung, se o europeu moderno
deixou de crer em espíritos, por outro lado, como qualquer primitivo, exibe uma
coleção irisada de sintomas psicopatológicos, de fantasias e, não bastasse tudo
isso, sonha. Todos estas experiências psíquicas se referem a uma alteridade — os
complexos — da qual a consciência subjetiva não pode fugir. A diferença entre
primitivos e modernos é apenas uma questão de interpretação: nos primeiros, os
complexos estão projetados na realidade externa e reconhecidos como agências
que efetivamente afetam os humanos, enquanto que nos últimos, não; na verdade,
os modernos pouca importância lhes dão, em prejuízo de sua própria saúde mental.
O essencial é que tanto os primitivos quanto os modernos experienciam um
psiquismo múltiplo, fragmentado em complexos que tendem a personificar-se de
diversas maneiras, como nas vozes das alucinações auditivas, nas personagens
oníricas ou nos “fantasmas”. O enfoque de Jung sobre este assunto parece ser,
77
antes de mais nada, pragmático. Em vez de perder-se em especulações sobre a
existência “real” ou não dos espíritos, ele reconhece que, como complexos, atuam
efetivamente sobre a psique das pessoas.
O retrato que Jung começou a traçar da psique, com base nestas
observações, é a de uma paisagem policromática, onde cada tonalidade
corresponde a uma das personalidades parciais ou complexos. Quer dizer, para
além do matiz predominante do complexo do eu habitam a psique outras cores,
outros complexos, veículos de atitudes estranhas à consciência. Em 1935, na sua
terceira conferência na Clínica Tavistock, em Londres, Jung (1976) afirmou: “(...) a
assim chamada unidade da consciência é uma ilusão. É realmente um sonho de
desejo. Gostamos de pensar que somos unificados; mas não somos, decididamente
não” (pp.72-73).
2.2.1 Complexos, mônadas e a teoria do ator-rede
O conceito de complexo pode ser aproximado da noção de mônada de
Tarde
45
: em ambos os casos, estamos diante de uma entidade compósita que
apresenta intencionalidade e cuja ação é exercida sobre outras entidades. Como
agrupamento de idéias matizadas de afeto, o complexo é uma espécie de
“sociedade”. Sua carga afetiva própria lhe concede uma relativa autonomia, que é
notada como um desejo estranho ao eu (que também é um complexo). Os
complexos, esses vassalos rebeldes, podem ser pensados, a partir de Latour, como
actantes ou agências
46
, que interferem nos nossos atos e pensamentos. E quando
apresentam figuração seja como “almas selvagens”, “espíritos possessores” e
“divindades”, seja como as pessoas que visitam nossos sonhos, os complexos
equivalem ao que na TAR se denomina “ator”.
Se tomarmos uma ação de um indivíduo como decorrente de um “processo”
envolvendo a atividade de múltiplos complexos teremos uma descrição da psique
como rede: “Nenhuma ação humana é inteiramente simples — como se fosse uma
reação isolada a um único estímulo. Cada uma de nossas ações e reações é
45
Segundo Shamdasani (2003), “Tarde estava lecionando no Collège de France quando Jung lá
esteve para assistir as aulas de Janet em 1902-1903. Não há provas de que Jung ouviu a palestra de
Tarde, mas é possível que ele possa ter encontrado seu trabalho nesta época” (p.284, nota).
46
Escreveu Jung (1981) em “Uma revisão da teoria do complexo”: “(...) os complexos são agências
psíquicas cuja natureza mais profunda está ainda insondada” (p.104).
78
influenciada por complicados fatores psíquicos ”, escreveu Jung (1981, p.359). Um
último exemplo pode ajudar a reforçar o argumento de que sua descrição do
psiquismo é compatível com o que Latour chamou de rede. Jung (ibid.) comparou as
ações e reações humanas à situação de um quartel general:
“Para o soldado raso poderia parecer que o exército se retirou
simplesmente porque foi atacado ou que um ataque foi lançado porque o
inimigo foi localizado. Nossa mente consciente esta sempre disposta a
desempenhar o papel do soldado comum e acreditar na simplicidade de
suas ações. Mas, na realidade, uma batalha aconteceu neste lugar
particular e neste momento particular por causa de um plano geral de
ataque que, ordenado dias antes, deslocou o soldado comum a este
ponto. De novo, esse plano geral não é simplesmente uma reação a
informes de reconhecimento, mas resulta de uma iniciativa criadora do
comandante. Além disso, está condicionado pela ação do inimigo e
também talvez por considerações políticas não militares desconhecidas
pelo soldado comum. Esses últimos fatores são de natureza muito
complexa e residem fora do alcance da compreensão do soldado comum,
embora possam parecer inteiramente claros para o comandante do
exército. Mas mesmo para este certos fatores sejam desconhecidos, tais
como sua própria psicologia pessoal e seus complicados pressupostos.
Assim, o exército se encontra sob um comando unificado e simples, mas
esse comando é resultado da operação coordenada de fatores
infinitamente complexos.
“A ação psíquica acontece sob bases similarmente complicadas. (...) O
eu é o comandante do exército; suas reflexões e decisões, suas razões e
dúvidas, suas intenções e expectativas são o Estado-maior, e sua
dependência de fatores externos é a dependência do comandante de
influências quase incalculáveis emanadas do quartel-general e das
obscuras maquinações da política nos bastidores” (pp.359-360).
Incerteza e complicação são as palavras que melhor resumem a ação
psíquica humana. Sua aparente simplicidade, se explorada e desdobrada, revela
uma teia “quase incalculável” de agências atuantes. O eu-comandante não está
sozinho. Não há ação isolada, mas em rede. Assim, diante da ação de um ator
humano qualquer, devemos indagar-nos “quem”, isto é, que complexos estão
agindo? Importante também é questionarmos se esta ação de um complexo é o
transporte de uma informação direta, sem modificação, através da consciência, ou
se é a condição de possibilidade para que uma diferença se produza na consciência.
No primeiro caso estaríamos diante de um intermediário, no segundo, de um
mediador. Jung dá a entender que a experiência psicopatológica, pela sua natureza
quase irreprimível, apresenta a atuação de um complexo como uma autoridade
79
impositiva sobre o eu. Nesta relação de domínio, o complexo atua como um
intermediário. Já no funcionamento saudável ou “normal” da psique, os complexos
atuariam como influências ou “perturbações”, mas não como causas determinantes.
Como os mediadores de Latour, eles se concatenariam em ações recíprocas e
coordenadas, sem portanto dominarem a consciência subjetiva. A diferença entre
estas duas possibilidades — se intermediário ou mediador — decorre da intensidade
afetiva do complexo: “Dependendo de sua carga energética, ele [o complexo] pode
aparecer como uma mera perturbação das atividades conscientes ou como uma
autoridade supraordenada que pode subordinar o eu a seu propósito” (id., 1984,
p.75). A qualidade dos vínculos psíquicos — se de domínio, se de cooperação — é
um assunto que será discutido com detalhes no próximo capítulo.
Outro aporte significativo da teoria dos complexos é o papel central que
confere à afetividade na psique humana. Jung (1990d) reconheceu que: “A base
essencial de nossa personalidade é a afetividade. Pensar e agir são, por assim
dizer, meros sintomas da afetividade” (p.31). Na verdade, mostrou-nos que afeto,
idéia e corpo, diferentemente da disjunção que os modernos lhe impuseram, são
inseparáveis, posto que toda representação está carregada de maior ou menor valor
afetivo, cujos efeitos são observados no organismo. A experiência de complexo, em
sua indeterminação, é a experiência de um híbrido (cf. Hauke, 2003).
2. 3 Os arquétipos e o inconsciente coletivo
A teoria dos complexos foi a primeira incursão de Jung no problema das
agências psíquicas. Dessa perspectiva, a psique se configura como uma espécie de
coleção de complexos subjetivos mais ou menos inconscientes, que atuam sobre o
complexo do eu e vice-versa. Neste estágio de elaboração teórica de Jung, o
inconsciente designa a parte da mente separada da consciência subjetiva seja pelo
recalque seja pela sua inerente tendência à dissociação. De qualquer modo, trata-se
sempre de um inconsciente “pessoal”, porque seus conteúdos, organizados como
complexos, são oriundos de experiências adquiridas durante a vida do indivíduo.
Entretanto, o contínuo exercício da clínica, o aprofundamento intelectual e ainda
determinadas vivências pessoais levaram Jung a não mais satisfazer-se com esta
descrição; antes, fizeram-no hipotetizar que nem tudo que é psíquico é
necessariamente pessoal. A psique tal como o corpo seria produto de um longo
80
processo evolutivo cujas marcas, embora pálidas, não desapareceram de todo. A
esta herança anímica comum da humanidade Jung passou a denominar, desde
1916, “inconsciente coletivo”. Seus conteúdos são “arquétipos”, isto é,
predisposições inatas estruturantes da vida psíquica e do comportamento. As
diversas expressões culturais tais como mito, religião e arte trazem a sua marca,
embora já com a influência de fatores ambientais externos em maior ou menor grau.
Por outro lado, sonhos e visões dos indivíduos ditos normais assim como os delírios
e as alucinações dos psicóticos mostrariam a presença dos arquétipos de maneira
mais direta e espontânea.
Assim, para além dos complexos pessoais, existiriam arquétipos impessoais
agindo na psique de cada indivíduo. Dito de outro modo, nossa vida mental não é
completamente subjetiva, mas encerra funções idênticas a todos os demais
indivíduos da espécie humana. O conceito de arquétipo e seu correlato, o de
inconsciente coletivo, têm sido um dos principais fatores de reprovação da psicologia
analítica de Jung. Eles de fato apresentam determinados obstáculos que o crítico
nem sempre tem a paciência necessária ou o desejo sincero de analisar. Em
primeiro lugar, Jung não apresentou a concepção de arquétipo pronta e acabada, tal
como uma Atená parida de elmo na cabeça e armas em punho do crânio de Zeus.
Ao contrário, é resultado de um longo e difícil processo de elaboração (cf. Humbert,
1985). Convém por isso estarmos atentos às variações de significado que o conceito
foi sofrendo. Em segundo, o próprio Jung é em determinados momentos impreciso
com sua terminologia, gerando assim mal-entendidos. Isto ocorre, notadamente,
quando confunde o arquétipo como forma ou categoria com a representação ou
imagem arquetípica.
O terceiro obstáculo é o mais difícil de ser superado porque de ordem
metafísica: a teoria dos arquétipos é tributária do acordo moderno abordado no
capítulo anterior, como, aliás, praticamente toda a psicologia “científica” o é. Ora, a
assim chamada psicologia “fisiológica” ou “experimental”, nascida no último quartel
do século XIX com a aspiração de tornar-se ciência, era essencialmente uma
psicologia da consciência individual. Por outro lado, os problemas relativos à cultura
ou sociedade eram objeto de outras ciências humanas, também emergentes, como a
antropologia, sociologia e etnopsicologia (psicologia social). Esta divisão entre o
“individual” e o “coletivo” pode ser compreendida como mais um avatar do acordo
moderno. O problema não é exatamente simples porque natureza e cultura flutuam
81
de acordo com contexto ou teoria em questão, podendo ser alocados ora no
indivíduo ora na coletividade, respectivamente. Assim, por exemplo, a natureza pode
ser identificada com uma essência psíquica universal, na forma de leis cognitivas,
em oposição às variações contingentes da cultura. Mas o contrário também é
possível: as diferentes sociedades compartilhariam de esquemas universais
invariantes, isto é, “naturais”, na forma de mitos, crenças e costumes análogos,
enquanto caberia ao indivíduo produzir distinções dentro deste quadro coletivo
natural. De qualquer modo a cisão se reitera: há uma natureza ontologicamente
distinta da cultura.
Jung parecia estranhar essa divisão entre o pessoal e o coletivo, embora a
reproduzisse. Percebeu que a fragmentação crescente das ciências, em vez de
contribuir para o avanço do saber, tornava-as ignorantes umas das outras. Portanto,
sua atitude teórico-prática era marcadamente a favor da interdisciplinaridade e a
psicologia que criou refletia esta preocupação. Assim, é possível considerar que, de
um lado, Jung visou a articular a psicologia individual com a psicologia do coletivo,
daí seu interesse pelo referencial teórico próprio das ciências sociais (etnologia); de
outro, tentou fundamentar a psicologia em bases biológicas, já que para ele a psique
individual enraíza-se no natural do corpo.
O projeto de Jung de uma ciência da psique visava a não fragmentar o
homem em corpo, alma e mundo. Ao contrário, tratava de propor um modelo teórico
que permitisse pensá-lo em sua totalidade. No entanto, este projeto esbarrou nas
armadilhas próprias do pensamento moderno. Ao tentar fundamentar a hipótese do
inconsciente coletivo e dos arquétipos de acordo com as concepções da biologia do
início do século passado — concepções, aliás, em grande medida ultrapassadas —,
Jung acabou criando mais problemas para suas teorias do que soluções. Como
veremos, Jung reproduz o “acordo moderno” apontado por Latour, ao propor uma
natureza humana destacada da cultura. Ao mesmo tempo, por outro lado, propõe as
idéias de complexo e fantasia (imagem) que, tal como híbridos ou fatiches, reatam-
nas.
Ao contrário da atitude binária de refutação ou adesão plena, penso na teoria
dos arquétipos como um problema legado pela psicologia de Jung que demanda
reflexão. Como retomar este legado sem repeti-lo dogmaticamente? Como fazer
proliferar outras versões, outros sentidos para os arquétipos? Acredito que a TAR
ofereça condições de repensar-se a teoria dos arquétipos com argumentos que
82
estão presentes de algum modo no texto de Jung. O desafio, creio, é tentarmos
reimaginar sua psicologia não modernamente, ressaltando as misturas como
ontologicamente primordiais, assim como o pragmatismo metodológico, que põem
em risco as certezas e determinações próprias da modernidade.
A teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos não nasceu de um lampejo
de genialidade ou de uma “manifestação espontânea do inconsciente” do psiquiatra
suíço, diversamente do que às vezes o próprio Jung parece insinuar. Antes, parece
mais precisamente o resultado de um conjunto de laboriosos procedimentos
metodológicos. Por isto, pode ser interessante seguir de perto os passos dados pelo
“ator” Jung até formular essas concepções. Eles nos mostram o processo de
construção ativa da teoria como envolvendo o exame da própria experiência interior
do autor-ator, por intermédio dos sonhos, como também a importação de idéias
provenientes de diferentes campos. Idéias elas mesmas “atores”, já que contribuíram
efetivamente para Jung elaborar isto que se chama “arquétipo” e “inconsciente
coletivo”.
2.3.1 O homem do falo solar e as “reminiscências da humanidade”
Entre os anos 1907 e 1913, Jung participou ativamente do movimento
psicanalítico. Contudo, sua adesão às idéias de Freud nunca foi irrestrita. Entendia
que a teoria freudiana exclusivamente sexual da libido era insuficiente para explicar
a psicodinâmica da dementia praecox. Insatisfeito com a psicanálise, foi buscar na
teoria da evolução das espécies, na mitologia e na arqueologia dados que o
conduzissem a uma compreensão mais adequada da neurose e da psicose. Em 8
de novembro de 1909, escreveu a Freud, dizendo estar mergulhado no estudo de
mitologia e arqueologia. Ali, afirmou, “encontram-se fontes valiosas para a
fundamentação filogenética da teoria da neurose” (Jung apud McGuire, 1993,
p.279). Uma semana depois, em outra carta, Jung disse não ter mais dúvidas do que
“os mitos mais antigos e mais naturais querem dizer”: referem-se ao “complexo
nuclear da neurose” (id., ibid., p.284). Para ele, a psique e suas patologias só podem
ser compreendidas se levar-se em consideração a sua história evolutiva.
Desse prisma, a biologia se torna o modelo de comparação entre mitologia e
psicologia. Assim como a filogênese é a base do estudo da ontogênese, a mitologia
83
e a história cultural são o fundamento da compreensão da psique individual. É o que
Jung explicou a Freud, com outras palavras, na carta de 25 de dezembro de 1909:
“Tornou-se absolutamente claro que não desvendaremos os segredos
finais da neurose e da psicose sem a mitologia e a história da civilização,
pois a embriologia vai de par com a anatomia comparada e sem a última a
primeira não passa de uma contrafação da natureza que permanece
incompreendida no âmago” (id., ibid., pp.298-299).
Entretanto, Jung, ele próprio, afirma que esta mudança de perspectiva teórica
nasceu meses antes de um determinado sonho, que depois viria contar a Freud na
viagem que fizeram juntos de volta dos Estados Unidos, em setembro de 1909 (ver
Capítulo 3). Tal sonho, anotou, “levou-me pela primeira vez à noção de inconsciente
coletivo” (Jung, 1985a, p.143). Ei-lo, segundo a versão de Memórias, sonhos,
reflexões
47
. Jung se achava em uma casa estranha de dois andares que, não
obstante, era “sua casa”. Via-se em um salão ricamente decorado no estilo rococó.
Desceu então ao andar térreo, curioso por conhecer o restante da construção. Ali a
casa lhe pareceu mais antiga, datando algo do século XV ou XVI. A instalação,
porém, era medieval. Encontrou uma escada de pedra que conduzia à adega.
Desceu os degraus e se achou numa sala muito antiga, abobadada, da época
romana. O interesse do sonhador “chegara ao máximo”. Examinando o piso
recoberto de lajes, deparou-se com uma argola. Puxou-a e a laje se deslocou,
revelando-lhe outra escada. Desceu por ela, chegando finalmente a uma gruta baixa
e rochosa. No solo encontrou “ossadas, restos de vasos, e vestígios de uma
civilização primitiva” (id., ibid., p.143). Descobriu ainda “dois crânios humanos,
provavelmente muito velhos, já meio desintegrados” (id., ibid., p.143). Acordou.
O sonho intrigou sobremaneira Jung. No Seminário de 1925, disse que até
aquele momento entendia a consciência como o “quarto de cima” da psique e o
inconsciente como seu “porão”. Sem dúvida, uma concepção alinhada teoricamente
com a psicanálise freudiana. O sonho, porém, sugeria-lhe que, para além do porão,
existia algo como “vestígios do homem pré-histórico”. A fim de solucionar o enigma
onírico, voltou-se primeiramente para o estudo da arqueologia
48
e depois para a
47
Interessante observar as diferenças entre a descrição deste sonho em Memórias, escrito nos
últimos anos da vida de Jung, e sua versão em Analytical Psychology: Notes of a Seminar Given in
1925. Para mais informações, ver Jung: a Biography (Bair, 2003).
48
A arqueologia foi a primeira opção de carreira de Jung, depois trocada pela medicina.
84
mitologia. Chegou então às articulações teóricas entre biologia, mitologia e
psicologia comentadas anteriormente.
No texto de Memórias, diferentemente, Jung ofereceu outra versão para este
episódio. Afirmou que inicialmente examinou as questões que o vinham
preocupando nos dias que antecederam ao sonho. Constatou que um dos principais
problemas era como situar a psicanálise freudiana no pensamento humano. Isto é,
“qual a relação entre seu personalismo quase exclusivo e os antecedentes históricos
gerais?” (id., ibid., p.145). O sonho lhe apontava uma resposta. Jung interpretou-o
como “um diagrama estrutural da alma humana” (id., ibid., p.145), que descrevia a
“história dos estados sucessivos da consciência” (id., ibid., p.145). A casa, portanto,
era uma imagem da psique. A consciência como o equivalente da sala de estar,
“habitável apesar do estilo antiquado” (p.144). Os andares inferiores representavam
“níveis de consciência ultrapassados” (p.144). No homem contemporâneo tais níveis
corresponderiam às camadas sucessivamente mais profundas do inconsciente. O
sonho tornou-se uma “imagem diretriz” (p.145) para Jung. Por causa dele, afirmou:
“Pensei, pela primeira vez, na existência de um a-priori coletivo da psique
pessoal, a-priori que considerei primeiramente como sendo os vestígios
funcionais anteriores. Só mais tarde, quando minhas experiências se
multiplicaram e meu saber se consolidou, reconheci que esses modos
funcionais eram formas de instinto: os arquétipos” (id., ibid., p.145).
Estas reflexões então convergiram para um caso clínico particular, ao qual
posteriormente Jung veio a referir como um “exemplo” da existência do inconsciente
coletivo. Jung identificou a presença de vestígios funcionais arcaicos de caráter
mitológico em Emile Schwyser, paciente do Burghölzli desde 1901, quando tinha
então 39 anos. Schwyser trabalhara como vendedor de loja; era proveniente de uma
família humilde e tivera apenas a educação básica. Ambicioso, tentara a sorte em
Londres. Pouco depois de chegar à cidade, começaram os delírios persecutórios,
que culminaram em uma tentativa de suicídio, com um tiro no próprio rosto. A partir
daí, iniciaram-se os vários episódios de hospitalização que terminaram por conduzi-
lo ao Burghölzli.
Desde o primeiro momento Jung se interessou pelo paciente. Em 1906,
apresentou seu caso clínico à equipe do hospital, tratando-o como um episódio de
dementia praecox. Os relatos sobre Schwyser descrevem-no como tendo delírios
alternados de perseguição e megalomania. Considerava-se o dono do asilo e
85
Salvador do mundo. Chamava a si próprio de Deus. E porque era Deus dizia ter “a
obrigação de distribuir seu sêmen, caso contrário o mundo pereceria” (Bair, 2003,
p.175). Mas o que realmente intrigou Jung — afinal os delírios megalomaníacos
descritos não são incomuns nas psicoses — foi uma produção delirante singular: o
paciente dizia ser capaz de produzir vento. Para tanto, bastava semicerrar os olhos,
mirar o sol e balançar a cabeça para os lados de modo que o “falo” que pende do
astro se moveria.
Em 1909, um jovem e brilhante estudante de medicina, Johann Jacob
Honegger Jr. procurou Jung para tratamento dias após ter passado por uma crise
psicótica ou “perda de realidade”. Honegger contou a Jung seu interesse em
especializar-se em psiquiatria e ingressar no Burghölzli (onde trabalhou como
voluntário entre 7 de janeiro a 12 de março de 1910). Apesar de reconhecer a
gravidade da doença mental de Honegger, Jung também soube reconhecer suas
qualidades. Assim, no início de 1910, aceitou-o como seu assistente de pesquisa
49
.
Por sugestão de Jung, Honegger passou a dedicar-se ao caso de Schwyser, como
objeto de pesquisa de sua dissertação em psiquiatria. Mas em poucos meses de
colaboração Jung já se mostrava incomodado com a indisciplina de seu assistente.
Em carta a Freud, datada de 9 de junho de 1910, queixou-se: “Acho que ele lê muito
pouco e se fia excessivamente em lampejos de criatividade”
50
(Jung apud
McGuire,1993, p.341). Nos meses seguintes, o estado emocional de Honegger
continuou demasiado instável, dando razão a Jung para preocupar-se. De qualquer
modo, conseguiu apresentar no final de março um trabalho sobre o caso de
Schwyser no Segundo Congresso Psicanalítico Internacional, em Nuremberg.
Honegger, entretanto, jamais logrou concluir sua dissertação. Em 28 de março de
1911, pôs fim à própria vida com uma injeção letal de morfina.
Sem seu assistente, Jung decidiu seguir sozinho no estudo sobre o “homem
do falo solar”. Relatou que em 1910 se deparou com o livro Eines Mithrasliturgie
(Uma liturgia de Mitra), escrito pelo filólogo alemão Albrecht Dieterich. O texto,
editado originalmente em 1903 e republicado sete anos depois, tratava de papiros
49
Shamdasani (cf. 2003) observou que, como Jung já havia oficialmente se afastado do Burghölzli,
não tinha mais acesso irrestrito aos casos clínicos como antes. Por isto, era-lhe conveniente ter
estudantes sob sua orientação de forma que pudesse estar a par de material casuístico
eventualmente relacionado à sua emergente teoria do inconsciente coletivo.
50
Bair interpreta o modo persuasivo, interesseiro e mesmo intolerante como Jung tratou Honegger
como análogo ao tratamento de Freud concedido a Jung. Sobre o relacionamento entre Freud e Jung
e suas possíveis implicações para o método clínico da psicologia analítica, ver Capítulo 3.
86
gregos pertencentes à Biblioteca Nacional de Paris. Seu conteúdo se referia, como o
título ilustra, à descrição de rituais mitraicos. O mitraísmo era uma religião de origem
oriental, que floresceu na Roma antiga, como tantas outras. Uma passagem em
particular do livro de Dieterich chamou a atenção de Jung. Ali o autor do papiro dizia:
“... O caminho dos deuses visíveis aparecerá através do disco solar, que é
Deus, meu pai. Do mesmo modo, o assim chamado tubo, a origem do
vento propiciatório. Portanto verás pendendo do disco solar algo
semelhante a um tubo. E rumo às regiões ocidentais, é como se lá
houvesse um vento leste infinito. Mas se o outro vento prevalecer rumo às
regiões do leste, verás, de modo semelhante, a vista movendo-se naquela
direção” (Dieterich apud Jung, 1990a, p.51).
Jung ficou impressionado com o paralelismo entre a narrativa da liturgia mitraica e o
delírio de Schwyser sobre a origem do vento. O paciente havia sido internado antes
de primeira edição do livro de Dieterich, sendo assim praticamente impossível que
tivesse tido qualquer contato com o texto. Jung então interpretou o delírio como
resultante da condição psicótica do paciente, a qual fazia a libido regredir ou
introverter às camadas mais arcaicas da psique humana
51
. Conforme escreveu a
Freud em 12 de junho de 1911, a introversão na dementia praecox “parece levar não
apenas a uma recrudescência das memórias infantis, como na histeria, mas também
a um afrouxamento das camadas históricas do inconsciente, dando assim origem a
perigosas formações que só em casos excepcionais vêm à luz” [itálicos meus] (Jung
apud McGuire,1993, p.434). E ainda, segundo o resumo da conferência de Jung no
Terceiro Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Weimar no final de
setembro de 1911, “na dementia praecox, o paciente sofre de reminiscências da
humanidade” [itálicos meus] (Jung, 1976, p.446). Portanto, o delírio do falo do sol de
Schwyser não seria oriundo de experiências adquiridas durante sua vida, mas
conseqüência da invasão na consciência de uma “reminiscência da humanidade”
proveniente das “camadas históricas do inconsciente”.
“O homem do falo solar” se tornou um caso exemplar da hipótese de um
inconsciente mitológico formado de memórias da raça humana, o que
posteriormente veio a ser a teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos.
Mencionado pela primeira vez textualmente em 1912 (Metamorfoses e símbolos da
libido/Símbolos da transformação), Jung o revisitou em 1927 (“A estrutura da
51
Sobre o conceito de libido na psicologia analítica, ver Capítulo 3.
87
psique”), 1935 (“Fundamentos da psicologia analítica”) e 1936 (“O conceito de
inconsciente coletivo”). Na entrevista concedida a John Freeman em 1958, exibida
no filme Face to face, mais uma vez fez referência ao caso como exemplo de uma
experiência arquetípica.
Em 1912, Jung publica Metamorfoses e símbolos da libido
52
, monografia que
marca seu afastamento teórico da psicanálise freudiana. Neste livro, Jung (cf. 1995)
interpreta os devaneios de uma jovem americana chamada Frank Miller, a quem
supõe tratar-se de um caso prodrômico de esquizofrenia. Miller tivera, em 1905, um
conjunto de fantasias suas publicadas nos Archives de Psychologie, editado por
Flournoy. O que mais interessou Jung no caso foi a presença de fantasia mitológicas
que podiam fornecer-lhe subsídios para reformular a psicologia individual sobre
bases histórico-antropológicas e evolutivas, seguindo a trilha teórica aberta em 1909.
Neste texto, Jung introduziu de modo mais explícito o método comparativo, comum
na etnologia, depois renomeado de “amplificação” (ver Capítulo 4). Em outro texto,
“O conceito de inconsciente coletivo”, escrito anos depois, explicou que para o
método ter validade é preciso que os símbolos mitológicos utilizados na comparação
tenham o mesmo significado funcional do material (sonhos, fantasia, delírios etc.)
produzido pela pessoa em questão. Quer dizer, como não se pode simplesmente
arrancar um símbolo de seu contexto, são necessárias descrições exaustivas tanto
do material individual quanto do mitológico.
Jung aplicou o método comparativo no exame dos devaneios de Miss Miller,
tal como fizera na análise dos delírios de Schwyser, caso que, conforme assinalado,
menciona no livro. Seguindo portanto este método, Jung cotejou dados provenientes
de diferentes culturas e épocas com as fantasias da jovem americana, para daí
extrair temas ou motivos similares recorrentes, que apontariam a existência de um
substrato psíquico comum a toda a humanidade.
O distanciamento progressivo de Jung da psicanálise freudiana significou, ao
mesmo tempo, o desencadeamento de dois processos decisivos em sua vida. De
um lado, uma crise pessoal que provocou, em meados dos anos 1910, sua “auto-
análise”, isto é, um profundo mergulho em sua própria vida psíquica inconsciente.
Como conseqüência deste período de “doença criativa”, conforme a expressão de
Henri Ellenberger, Jung desenvolveu um método psicoterapêutico de acesso ao
52
Em 1950, o texto foi quase que totalmente reescrito por Jung, sendo relançado com o título de
Símbolos da transformação.
88
inconsciente, denominado “imaginação ativa” (ver Capítulo 4). De outro, um
movimento reflexivo de retomada das idéias de autores importantes para sua
formação intelectual nos tempos de estudante, como Kant, Schopenhauer, Carus e
Nietzsche. Em Metamorfoses e símbolos da libido, Jung se voltou a este último para
sustentar seu argumento de que a psique do homem moderno guarda vestígios de
uma mentalidade arcaica, conforme indicaria o exame dos sonhos. Segue abaixo um
trecho de Humano, demasiado humano de Nietzsche citado por Jung:
“...no sono e no sonho tornamos a atravessar o pensamento da
humanidade antiga. Quero dizer: como o homem ainda hoje raciocina no
sonho, a humanidade raciocinava também no estado acordado durante
muitos milênios: a primeira causa que lhe ocorria para explicar qualquer
coisa que necessitasse de explicação lhe bastava e valia como verdade...
No sonho esta parcela antiqüíssima da humanidade continua agindo em
nós, pois é a base sobre a qual a razão superior se desenvolveu e
continua se desenvolvendo em cada ser humano: o sonho nos traz de
volta a situações remotas da cultura humana e nos fornece um meio para
compreendê-las melhor” (Nietzsche apud Jung, 1995, p.20).
O indivíduo ao sonhar repete modos arcaicos de funcionamento mental. Esta
repetição, como vimos, foi descrita anteriormente por Jung como a reativação de
memórias raciais ou filogenéticas. Em outros termos, trata-se da ampliação do
conceito de criptomnésia, formulado por Flournoy — Jung já o havia empregado no
passado para explicar a “mediunidade” de Helly Preiswerk —, de modo a abarcar a
memória da humanidade.
No artigo “A estrutura do inconsciente”, de 1916, Jung (cf. 1966) finalmente
diferenciou e nomeou dois níveis de inconsciente: o “inconsciente pessoal’ e o
“inconsciente impessoal” ou a “psique coletiva”. O primeiro se refere aos conteúdos
psíquicos recalcados em decorrência de sua incompatibilidade com a personalidade
consciente. Além disso, inclui os componentes psíquicos que ainda não alcançaram
o limiar da consciência — as sementes do que poderá tornar-se a consciência no
futuro. De qualquer modo, os conteúdos deste inconsciente são sempre de caráter
pessoal, posto que adquiridos durante a vida do indivíduo.
No entanto, disse Jung (1966), a “experiência” mostra que há conteúdos
psíquicos que não derivam da história individual, mas que são “simplesmente uma
parte da propriedade comum da humanidade, a qual, por princípio, todos
compartilham” (p.272), ou seja, o inconsciente impessoal. Chamou tais conteúdos de
89
“imagens primordiais” (Urbilder). A expressão não é de sua autoria, mas se acha,
com efeito, em Kant, Carus e Burckhardt. Como exemplo de imagem primordial,
Jung cita o delírio de um paciente esquizofrênico do amigo e colega psiquiatra,
Alphonse Maeder. Trata-se de um obtuso aprendiz de serralheiro que, muito jovem,
foi tomado pela idéia de que o mundo era seu livro de imagens, que podia folhear
enquanto olhava ao seu redor. Jung (ibid.) afirmou que esta concepção “é
exatamente a mesma de Schopenhauer do ‘mundo como vontade e representação’”
(p.272). E acrescentou que o leitor pode encontrar mais exemplos de imagens
primordiais no seu livro Metamorfoses e símbolos da libido. No adendo do artigo,
escrito em data indefinida, introduz a expressão “inconsciente coletivo”, que veio
depois a tornar-se sua expressão predileta para designar a região transpessoal da
psique.
No ano seguinte, Jung lança “A psicologia dos processos inconscientes”,
onde permuta a expressão “inconsciente coletivo” com a de “inconsciente absoluto”.
Esta última, aliás, que havia sido usada por Carus décadas antes. No artigo, Jung
descreve o inconsciente coletivo como formado por “dominantes”. Trata-se do
mesmo termo empregado pelo historiador germânico Karl Lamprecht, no começo do
século XX, para designar as formas psíquicas hegemônicas em um dado período
histórico (cf. Shamdasani, 2003). Para Jung, tais dominantes são constituídos pelos
“sedimentos de todas as experiências do mundo de todos os tempos (...) construídos
há eras” (Jung apud Shamdasani, p.233). Esta concepção de herança lembra
sobremaneira a concepção de “engrama” do teórico alemão da memória orgânica
Richard Semon. Um engrama é definido como um traço mnêmico deixado sobre a
matéria sensível que, sob determinadas condições, pode ser reavivado. Trata-se de
uma concepção tributária do pensamento de Jean-Baptiste Lamarck, que sustentava
ser possível que características adquiridas durante a vida de um indivíduo fossem
transmitidas aos seus descendentes.
A forte afinidade da idéia de “sedimentos das experiências do mundo” com o
pensamento lamarckiano parece ter incomodado Jung. Este ponto merece um breve
comentário antes de prosseguirmos. Jung nunca negou nem afirmou ser
“lamarckiano”. Porém, ao continuar asseverando em seus textos que as imagens
primordiais (ou os arquétipos) derivam de experiências vividas incontáveis vezes
pelos ancestrais do ser humano e não por mutação, conforme a versão
neodarwinista mais aceita na biologia já na sua época, Jung termina por subscrever
90
a teoria de Lamarck
53
. Vale ainda observar que, enquanto Jung afirmava a
transmissão por hereditariedade de “categorias” ou “formas vazias” e não de
representações, Freud assumia uma posição mais frágil epistemologicamente, para
não dizer insustentável, já que ainda mais “lamarckiana” que a de Jung. Para Freud
(cf. 1975), “conteúdos específicos” são transmitidos por hereditariedade
54
.
Em 1918, no artigo “Sobre o inconsciente”, Jung procurou esclarecer o que
entendia como os componentes herdados da psique. Observou que não se trata de
idéias herdadas, “mas sim de possibilidades inatas de idéias, condições a priori de
produzir fantasias, comparáveis talvez às categorias de Kant” (Jung, 1993b, pp.15-
16). Immanuel Kant postulou a existência de estruturas universais apriorísticas,
responsáveis por modelar nossa experiência sensorial, que chamou de “categorias”.
Isto significa que nunca percebemos o objeto tal como realmente é — a “coisa em si”
—, mas somente o “fenômeno”, isto é, a experiência mediada pelas categorias da
razão.
Estas passagens mostram o esforço de Jung em articular duas teorias
distintas — engramas de Semon e categorias a priori de Kant — para fundamentar
com mais precisão a hipótese do inconsciente coletivo. As imagens primordiais
seriam, tal como os engramas, resíduos de experiências vividas incontáveis vezes
pelos ancestrais do ser humano. Ao mesmo tempo, Jung as define, conforme Kant,
como “categorias a priori de produzir fantasias”. Ocorre que as duas posições são
incompatíveis: o engrama é produzido pela experiência enquanto que a categoria é
“inata”. Há pelo menos duas hipóteses para explicar por que Jung teria se metido
nesse cul-de-sac epistemológico. Ele poderia ter interpretado equivocadamente as
idéias desses autores ou poderia, propositalmente, tê-las distorcido para satisfazer
as exigências heurísticas de sua nova teoria (cf. Shamdasani, 2003).
No artigo “Instinto e inconsciente”, publicado em 1919, Jung usa pela primeira
a vez o termo “arquétipo” (Archetypus) ou mais exatamente “arquétipos de
percepção e apreensão” para referir-se aos conteúdos do inconsciente coletivo.
Neste nível último de “profundidade” psíquica, assinalou,
53
Para um aprofundamento desta questão, ver Clarke (1993).
54
Em “Análise terminável e interminável”, Freud (1975) anotou: “A experiência analítica nos impôs a
convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo, não possuem
outras fontes senão a transmissão hereditária, e pesquisas em diversos campos da antropologia
social tornam plausível supor que outros precipitados, igualmente especializados, deixados pelo
primitivo desenvolvimento humano, também estão presentes na herança arcaica” (p.274).
91
“encontramos as formas inatas, a priori, de ‘intuição’, isto é, os arquétipos
de percepção e apreensão, que são os determinantes a priori necessários
de todos os processos psíquicos. Assim como os instintos compelem o
homem a um modo de existência especificamente humano, também os
arquétipos forçam seus modos de percepção e apreensão em padrões
especificamente humanos. Os instintos e os arquétipos juntos formam o
‘inconsciente coletivo’” (Jung, 1981, pp.132-133).
A palavra “arquétipo” — assim como “complexo”, “libido” e “imagem
primordial” — é mais um empréstimo terminológico feito pela psicologia analítica.
Como mais tarde Jung veio a explicar, surge originalmente na obra do filósofo
helenístico Filo de Alexandria, do início da era Cristã. A partir de 1919, “arquétipo”
tornou-se o principal vocábulo usado por Jung para designar os conteúdos do
inconsciente coletivo. Isto não significou, contudo, o abandono completo dos termos
anteriores, “imagem primordial” e “dominante”, que continuaram ocasionalmente a
aparecer em seus escritos.
A teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos continuou sendo descrita
nos termos destacados acima até 1954, quando Jung a revisou pela última vez.
Grande parte de seu esforço intelectual desde que apresentou a hipótese do
inconsciente coletivo foi dedicado a mapear os arquétipos formadores da psique.
Seguindo o método comparativo, que desde 1929 foi tornando-se cada vez mais
amparado em paralelos entre a alquimia e o material casuístico oriundo da clínica,
Jung buscou descrever os principais arquétipos organizadores da experiência
psíquica, tais como mãe, pai, criança, velho-sábio, herói, trickster e renascimento.
Em termos de sua influência sobre a consciência do eu, destacou os arquétipos da
sombra, da sizígia (anima e animus) e do si-mesmo.
Resumidamente, a sombra se refere à parte inferior da personalidade, ou
seja, às qualidades do indivíduo incompatíveis com a atitude consciente. Anima e
animus dizem respeito à contraparte psíquica sexual de cada um dos sexos.
Finalmente, o si-mesmo é o arquétipo da totalidade da psique, que se faz notar
comumente por meio de símbolos de integração e união, como no caso das imagens
circulares e quaternárias. Jung ainda sugeriu que o fator distintivo de uma
experiência arquetípica não é algo propriamente no seu conteúdo, mas uma forte
emotividade, um fascínio extraordinário causado por uma alteridade que não fomos
nós que arbitrariamente produzimos.
92
Diferentemente da imagem algo determinada do “falo do sol”, os arquétipos
citados são abertos ou indeterminados o suficiente para cobrir uma vasta extensão
da experiência humana, podendo realmente ser definidos como categorias ou
formas vazias. Importante destacar a observação de Jung em “A estrutura da
psique”, de 1927, de que não há provas para existência do inconsciente coletivo. De
qualquer modo, isto não o fez desistir de tentar delinear uma vida psíquica impessoal
enraizada no corpo, o substrato mental de toda a humanidade. Nesse sentido, sua
teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo foi objeto de crítica de opositores e
sofreu revisão da parte de seus partidários (retornar-se-á a este último ponto ainda
neste capítulo).
Mas, afinal, para que “serve” um arquétipo? Jung (cf. 1984, 1990a) formulou
uma resposta “funcionalista” para esta questão. Atribuiu aos arquétipos a função de
correção ou compensação da atitude “unilateral” ou “falsa” da consciência subjetiva,
a qual, aliás, é a função do inconsciente de modo geral (ver Capítulo 3). Com efeito,
observou: “Sempre que a vida consciente se torna unilateral ou adota uma falsa
atitude, essas imagens [arquetípicas] ‘instintivamente’ se erguem à superfície em
sonhos e visões de artistas e videntes para restaurar o equilíbrio psíquico seja do
individuo seja da época (id. ibid., p.104). Ora, se um arquétipo serve a um propósito
de auto-regulação psíquica, que dizer do “falo do sol” de Schwyser? Que função
estaria a cumprir na sua debilitada economia psíquica?
É no mínimo curioso constatar o surgimento da imagem do falo do sol em três
pinturas de um paciente esquizofrênico do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de
Janeiro. Conforme o relato da psiquiatra Nise da Silveira, uma das principais
introdutoras das idéias de Jung no Brasil, este enfermo era um sapateiro que tivera
instrução apenas elementar. O único comentário do paciente sobre as imagens foi:
“o sopro de meu nariz muda qualquer circunstância” (Silveira, 1981, p.142).
O conceito de arquétipo é, em certa medida, herdeiro do conceito de
complexo. Ambos se referem às agências que movem a alma humana. Tal como
fizera com os complexos, Jung (1995) comparou os arquétipos aos daimones ou
espíritos: “(...) os arquétipos, enquanto não apresentam apenas relações funcionais,
revelam-se como daimones, como agentes pessoais” (p.248). Em outro momento,
Jung (1984) os aproximou das divindades de antanho: “Em si mesmo, um arquétipo
não é bom nem mau. É moralmente neutro, como os deuses da antiguidade, e se
torna bom ou mau apenas pelo contato com a mente consciente ou ainda pela
93
mistura de ambos” (p.104). A comparação dos arquétipos com daimones e deuses
pode ser interpretada como um movimento arriscado da psicologia analítica em
direção às névoas densas da metafísica. Mas a “metafísica analítica” parece não
afirmar nada; tratar-se-ia tão-somente do reconhecimento dos limites do
conhecimento e da liberdade humanos. O inconsciente coletivo, escreveu Jung
(2002) em carta, no ano de 1946: “É mais uma atmosfera na qual vivemos do que
algo que está dentro de nós. É simplesmente o desconhecimento do mundo” (p.37).
Como não deixar de comparar essa idéia de “desconhecimento do mundo”, que é o
inconsciente, com a noção de “plasma” proposta por Latour, isto é, o “mar de
ignorância comum” que nos envolve a todos, conforme assinalado na Introdução?
Os arquétipos, tais como daimones ou deuses, são uma tentativa de
descrever-se a estranha experiência de ser tocado, atravessado ou possuído por
uma alteridade radical que nunca sabemos com certeza o que significa. Os
arquétipos são dinamismos, tais como as divindades de Nathan ou os transpavores
de Latour. Fazem notar-se principalmente por meio da forte emoção que causam no
indivíduo. Nesse aspecto, a experiência de um arquétipo é similar ao “pavor”
produzido pelas divindades que resolvem atravessar ou possuir os pacientes
freqüentadores das sessões de etnopsiquiatria de Nathan.
Com a entrada em cena do conceito de arquétipo, a idéia de complexo perde
importância no quadro teórico da psicologia analítica, porque se tornou praticamente
restrita à esfera do inconsciente pessoal. Quer dizer, foi em uma natureza humana
distinta das variações culturais que a investigação teórica de Jung passou a
concentrar-se após os anos 1910.
2.3.1 Arquétipo, natureza e cultura
Em Metamorfoses e símbolos da libido / Símbolos da transformação, é
possível constatar a influência que a etnologia do século XIX e início do século XX
exerceu sobre a psicologia de Jung. Influência que nas décadas seguintes se
tornaria explícita em seus escritos. Jung parece ali ter combinado idéias do etnólogo
alemão Adolf Bastian com a do antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (cf.
Shamdasani, 2003). Do primeiro, retira o conceito de “pensamentos elementares”.
De acordo com Bastian, haveria idéias análogas em todos os tempos e lugares.
94
Seria possível, por exemplo, reconhecer, para além das variações geográficas e
históricas dos povos, analogias entre o fetichismo do selvagem e a estética do
homem civilizado, na forma de pensamentos elementares. A atualização destes
últimos em representações culturais específicas, como conseqüência de
contingências ambientais, Bastian denominou “pensamentos étnicos”. Embora
admitindo o papel da migração e da difusão na transmissão das idéias elementares,
sua origem em última instância seria intrapsíquica, tratando-se, pois, de universais
da mente. A cruz, segundo Bastian, seria um pensamento elementar, já que é
encontrada em múltiplas formas em inúmeras culturas.
A influência de Lévy-Bruhl sobre Jung parece ter sido ainda maior que a de
Bastian. Seguidor de Durkheim, Lévy-Bruhl desenvolveu o conceito de
“representações coletivas” para designar as representações comuns a um grupo
social. Tais representações são fonte de respeito, temor e adoração pelos
indivíduos, sendo a sua origem social, ou seja, adquirida. Os assim chamados povos
“primitivos” produziriam um tipo de representação distinto da dos “civilizados”,
definida como “mística”. Para os “primitivos”, não apenas as representações são
diferentes mas também o modo como se articulam. Entidades — uma pedra ou
pedaço de madeira, por exemplo — são algo mais do que si próprios. Adquirem
poderes extraordinários, já que a barreira entre sujeito e objeto se esmaece. Lévy-
Bruhl denomina “participação mística” esse estado mental do primitivo (id., ibid.).
Outro seguidor de Durkheim importante para a formação da teoria dos
arquétipos foi seu sobrinho, o etnólogo Marcel Mauss. Em parceria com Henri
Hubert, Mauss desenvolveu a noção de “categorias a priori da imaginação”.
Presentes na linguagem, essas categorias atuariam como “hábitos diretores da
consciência”, embora fossem elas próprias inconscientes. Os autores citam como
exemplo de catégorie a idéia de mana, que representa um poder mágico ou espécie
de essência da magia. E sustentam que tais categorias são produzidas socialmente.
Com efeito, Jung percebeu uma forte correspondência entre os “pensamentos
elementares” de Bastian, as “representações coletivas” de Lévy-Bruhl, as “categorias
da imaginação” de Hubert e Mauss e o seu conceito de arquétipo
55
. Em “O conceito
de inconsciente coletivo”, texto de 1936/1937, ressalta esta afinidade:
55
A influência da etnologia sobre a teoria dos arquétipos não se limita aos etnólogos citados. Mas,
para os objetivos deste trabalho, eles são suficientes. Para mais informações sobre a contribuição da
etnologia na formação da psicologia analítica, ver Shamdasani (2003).
95
“O conceito de arquétipo, que é um correlato indispensável da idéia de
inconsciente coletivo, indica a existência de formas definidas na psique
que parecem estar presentes sempre e em todo lugar. A pesquisa
mitológica as denomina ‘motivos’; na psicologia dos primitivos elas
correspondem ao conceito de Lévy-Bruhl de ‘represéntations collectives’, e
no campo da religião comparada elas têm sido definidas por Hubert e
Mauss como ‘categorias da imaginação’. Adolf Bastian tempos atrás as
chamou de ‘pensamentos elementares’ ou ‘primordiais’. A partir destas
referências, deve estar suficientemente claro que minha idéia de arquétipo
— literalmente uma forma pré-existente — não está sozinha mas é algo
reconhecido e nomeado em outros campos do conhecimento” [itálicos
meus] (Jung,1990a, pp.42-43).
Ora, tanto as representações coletivas quanto as categorias da imaginação
têm derivação “social” (como o oposto de “natural”), de acordo com Lévy-Bruhl, e
Hubert e Mauss, respectivamente, não sendo, portanto, formas pré-existentes “que
parecem estar presentes sempre e em todo lugar”, como quer Jung. Ao compará-las
com os arquétipos, Jung desconsidera esta importante diferença. Nesse sentido,
está mais próximo de Bastian, que também aponta uma procedência psíquica inata
para os pensamentos elementares.
Em suma, para o psiquiatra suíço é possível extrair da multiplicidade de
fenômenos culturais — mitos, religião, arte, costumes, hábitos etc.— temas ou
padrões comuns, universais, isto é, arquétipos cuja transmissão seria hereditária.
Jung vai então buscar nas ciências do corpo (biologia, etologia, fisiologia e zoologia)
idéias que o ajudem a explicar a natureza e origem biológica dos arquétipos. Jung
sempre fez questão de apresentar-se como cientista. Portanto, parecia-lhe essencial
que sua psicologia estivesse alicerçada sobre ciências de sólida base empírica.
Caso contrário, poderia ser considerada erroneamente especulação filosófica,
confundida com “metafísica”.
Em 1919, no texto “Instinto e inconsciente”, Jung procurou articular os
arquétipos com os “instintos”, mesmo admitindo tratar-se de um assunto polêmico.
Ressalvou, porém, que importantes nomes na psicologia, como William James,
usaram o conceito de instinto para relacionar a psique ao corpo. Ao falar dos
instintos, Jung os definiu como modos herdados de ação e reação, isto é, processos
inconscientes universais e de ocorrência regular. Trata-se de impulsos que
conduzem nossas ações sem motivação consciente. Os arquétipos, como os
instintos, são “determinantes necessários a priori de todos os processos psíquicos”
96
(Jung, 1981, p.133). Somados formam o inconsciente coletivo. Não há como falar de
instintos sem abordar os arquétipos e vice-versa; são os arquétipos que vão dar
forma e direção aos instintos
56
. Nesse sentido, funcionam como o “auto-retrato dos
instintos”.
Jung, ainda neste texto, referiu-se literalmente aos arquétipos como “formas
inatas” e “modos típicos de apreensão”. Seguindo a mesma linha de raciocínio de
“Sobre o inconsciente”, artigo do ano anterior, Jung explicou que os conteúdos
transmitidos por hereditariedade podem ser mais bem descritos em termos de um
padrão ou disposição para determinadas apreensões e experiências, e não
propriamente como imagens, representações ou pensamentos específicos. Porém,
Jung manteve o uso da expressão “imagem primordial” (Urbild), confundindo forma e
representação. Esta mesma confusão ocorre quando compara “categorias da
imaginação” com “representações coletivas”. E ainda quando associa seu conceito
formalista de arquétipo aos “pensamentos elementares” de Bastian.
Jung retomou a aproximação da teoria dos arquétipos com a biologia em
vários momentos de sua vasta obra. Um texto fundamental, nesse aspecto, intitula-
se “Da natureza do psíquico”, de 1954. Segundo Shamdasani (2003), trata-se da
“maior reconceituação de sua concepção de arquétipos, instintos e inconsciente”
(p.258). Neste texto, Jung (cf. 1981) aproxima instintos e arquétipos da concepção
biológica de pattern of behavior (“padrão de comportamento”), já que ambos
participam da vida do organismo como “dinamismos”. Para diferenciá-los, retoma a
noção de Janet de “parte inferior” e “parte superior” de uma função. Considera os
instintos como a parte inferior do fenômeno vital, ou seja, como relacionados à
fisiologia e à vida hormonal. Os arquétipos representariam a parte superior da
função, descrita como propriamente psíquica, isto é, “espírito” ou função formadora
de idéias. Daí Jung introduz a importante distinção entre o arquétipo em si
(Archetypus an sich) e a representação arquetípica (archetypische Vorstellung). O
primeiro seria uma forma incognoscível, “irrepresentável” e “transcendente”, assim
como o instinto, do qual deduzimos a existência a partir da ação que exerce sobre a
consciência, ou seja, mediante as representações arquetípicas, estas, sim,
fenômenos psíquicos
57
. O arquétipo em si, tal como o instinto, deve ser considerado
56
Mais tarde, em “Determinantes psicológicos do comportamento humano”, texto de 1936, Jung
(1981) chamou este processo de “psiquização”.
57
Como se pode notar, há nesta formulação de Jung uma forte influência da filosofia kantiana.
97
como um processo ou fator inconsciente “psicóide”, para marcar sua qualidade
indeterminada, algo entre o psíquico e o somático.
Com esta descrição dos arquétipos e instintos, Jung localiza teoricamente na
psique humana a sua porção “natural” ainda não transformada pela cultura. O
arquétipo, assinalou, “é natureza pura, não deturpada” (Jung, 1981, p.210). E por
“natureza” entendia “simplesmente aquilo que é, e sempre foi, dado” (ibid., p.210).
Desse ponto de vista, os arquétipos são implacáveis como os “deuses”, inexoráveis
como o Destino. A vida psíquica seria de um determinismo feroz não fosse o
advento da consciência. Nesse aspecto, ela significa um afastamento, espécie de
clinamen
58
, das raízes naturais arquetípicas e instintivas do ser humano. Em 1931,
no artigo “Estágios de vida”, já havia deixado clara esta posição: “É o afastamento
do homem em relação ao instinto — sua oposição ao instinto — que cria a
consciência. Instinto é natureza e procura perpetuar a natureza, enquanto que a
consciência pode apenas procurar a cultura ou a sua negação” (Jung, 1981, p.388).
A consciência, então, é responsável pelas múltiplas variações de costumes e hábitos
que constituem as diferentes culturas.
Embora a consciência signifique a possibilidade de o indivíduo produzir
diferença em relação à natureza, sua margem de ação estará sempre limitada pela
coerção dos arquétipos e instintos. Jung está, portanto, apresentando uma teoria
que secciona em dois pólos opostos o fato natural (arquétipo e instinto) e a criação
cultural (consciência). Uma passagem do texto “O significado da linha suíça no
espectro europeu”, de 1928, reforça esta tese: “Uma das características mais
fundamentais de toda cultura é a sua permanência enquanto algo criado e forçado
pelo homem frente ao caos insensato da natureza. Cada casa, cada ponte, cada rua
significa um valor de persistência contra a natureza” (id., 1990b, p.74).
Por outro lado, Jung aponta como esta oposição entre natureza arquetípica e
consciência/cultura se desfaz na experiência psíquica dos complexos e da fantasia.
Conforme visto, o complexo é comparável ao híbrido de Latour, uma mistura entre o
afeto e a representação, o corpo e a psique. As experiências de associação de
palavras, por intermédio do psicogalvanômetro, demonstraram que o complexo está
arraigado no corpo. A qualidade fisiológica do complexo indica que suas raízes se
58
Epicuro propõe o clinamen, como forma de perturbação da trajetória estável dos átomos, para
solucionar o determinismo da física estóica. I. Prigogine (1996) observa que, para este filósofo, “o
problema da ciência, da inteligibilidade da natureza e o do destino dos homens eram inseparáveis”
(p.18).
98
aprofundam nos instintos. E estes, segundo Jung, não são senão a contraparte
somática dos arquétipos do inconsciente coletivo. Desse modo, a singularidade da
biografia pessoal se torna inseparável das predisposições comuns à espécie
humana.
Jung apontou uma espécie de linha contínua que vai do complexo ao
arquétipo: “Cada parcela desagregada de libido, isto é, cada complexo, tem ou é
uma personalidade (fragmentária). Assim é se analisarmos as coisas pela
observação pura. Mas se formos ao fundo da questão, veremos que se trata de
formações arquetípicas” (id., 1995, pp.247-248). Ora, como determinar onde termina
um complexo e começa um arquétipo, onde cessa a esfera pessoal e inicia a
coletiva? O que permite distinguir um complexo de arquétipo, já que não temos
nunca acesso ao arquétipo em si? Jung diria que a intensidade emocional ou
fascínio causado sobre a consciência subjetiva seria o parâmetro para avaliar se tal
experiência é arquetípica ou não. Mas não se trata de um critério demasiado
subjetivo para estabelecer uma diferença objetiva?
A “fatichização” na psicologia analítica inclui também a noção de fantasia. Em
Tipos psicológicos, Jung conceituou a própria psique como um “mediador” entre o
intelecto subjetivo e a coisa objetiva. O que caracteriza a sua atividade é a produção
de fantasia. E esta Jung (1990c) descreveu como “o que modela a ponte entre as
reivindicações irreconciliáveis do sujeito e do objeto” (p.52). A fantasia ou
imaginação é “a mãe de todas as possibilidades (...) onde os mundos interno e
externo se juntam numa união viva” (id., ibid., p.52). Isto significa que a psique
objetiva, ou seja, os arquétipos do inconsciente coletivo, misturam-se com os
conteúdos da consciência e do inconsciente pessoal adquiridos ao longo da história
individual na experiência primeira da fantasia.
Fantasia e complexo são ambos em parte inconscientes, relativamente
autônomos e fundamentalmente imagéticos. São igualmente mediadores entre as
esferas dos instintos/arquétipos e o eu (centro da consciência), e entre sujeito e
objeto. Onde então estaria a diferença entre estas duas concepções? Parece que o
cerne da distinção residiria na qualidade de organização, mais presente no
complexo que na fantasia. Nesse aspecto, a fantasia seria primordial. De fato, Jung
atribui uma precedência ontológica à imaginação em relação a tudo o que há: “Mas
que coisa maior jamais veio a existir que não fosse primeiro fantasia” (id., ibid., p.59).
A impressão mais forte que Jung nos deixa é a de que as imagens, organizadas em
99
complexos ou apenas como imagens de fantasia, são a realidade primeira ou o
fatiche, na linguagem de Latour, que, como ponte mediadora, supera o abismo
ontológico aparentemente intransponível entre sujeito e objeto.
2.3.3 Revendo a teoria dos arquétipos
Sim, Jung segue a regra do jogo dos modernos, é o que podemos concluir.
Resumindo, a teoria dos arquétipos efetua um corte entre o fato natural e a
fabricação social e, ao mesmo tempo, costura-os, fazendo proliferar entidades e
experiências a um só tempo naturais e sociais, tais como os híbridos de Latour. No
pólo dos fatos naturais se situam os arquétipos psicossomáticos do inconsciente
coletivo. Trata-se de formas inatas, universais e psicóides. No pólo da fabricação
social se encontra a consciência e seu apêndice, o inconsciente pessoal, parte da
psique constituída por conteúdos que variam de acordo com as peculiaridades
individuais e que é condição sine qua non da cultura. Embora separadas, estas duas
partes se misturam na experiência psíquica da fantasia e dos complexos, que
funcionam como autênticos híbridos.
Não é de estranhar-se que Jung (cf. 1994) tenha ficado tão impressionado
com a literatura alquímica da Idade Média e do início da Era Moderna. Estava ciente,
claro, de que, do ponto de vista da química e das demais ciências naturais
contemporâneas, a alquimia havia sido um equívoco. Por outro lado, percebeu que,
da perspectiva da moderna psicologia do inconsciente, a alquimia exibia um rico
repertório de processos psíquicos em ação. O alquimista, ao projetar sua
subjetividade nas substâncias trabalhadas em laboratório, retratava com seu
linguajar sui generis, a um só tempo metafórico e concreto, a mesma experiência
ontologicamente híbrida que ele, Jung, vinha observando no curso do tratamento
analítico de seus pacientes. No entanto, ao nível da teoria, Jung continuou sua
tentativa de extração de uma natureza psíquica do caldo cultural que a envolve.
Ora, como então pensar não modernamente a teoria dos arquétipos, cientes
que estamos do jogo duplo dos modernos de cortar e reatar a realidade sócio-
natural? Isto é, como ressaltar na psicologia de Jung a indeterminação e a incerteza
próprias dos fatiches, dos híbridos? É preciso em primeiro lugar partir da mistura, do
emaranhado indeterminado de imagens, sensações, afetos, arquétipos e instintos
que são as fantasias e os complexos. Na prática da psicoterapia, por exemplo, é
100
com eles que lidamos o tempo todo (ver Capítulo 4). Por intermédio de um fazer,
uma operação, “extraímos” destes fatiches sua parte arquetípica, fascinante e
“universal”. Desse ponto de vista, não há nenhum arquétipo em si, transcendente, a
priori.
Esta análise faz coro com a versão de arquétipo proposta por James Hillman
(1977, 1997a), que recusou o conceito de Jung de arquétipo em si, mantendo tão-
somente o de imagem arquetípica. O “arquetípico” a que se refere Hillman não diz
respeito a uma “substância” ou categoria transcendental, mas a um valor
59
. Assim,
toda e qualquer imagem pode ser considerada arquetípica quando for de valor
psicológico para o indivíduo. Para tanto, é necessário um trabalho com a imagem
(image work) para aprofundar seu significado e distinguir sua “presença afetiva”.
Uma imagem arquetípica se torna psicologicamente “universal” porque adquire
importância coletiva, movendo a alma para fora das limitações de seu egocentrismo.
“Universalidade”, nesse sentido, quer dizer ampliação e “de-personalização” (de-
personalization) da psique (id.,1997a). E o que significa “ampliar” senão “relacionar”?
O “universal’ de Hillman, assim como o “universal relativo” de Latour, é um universal
produzido na e pela relação. Em ambos os casos, a universalidade não é um dado a
priori, não está no início, mas é o resultado final de uma operação. O arquétipo
manipulado, filtrado, depurado pelas operações analíticas, torna-se então um
universal relativo, posto que fabricado, comparado e relacionado. O método
comparativo adotado por Jung é, antes tudo, um método produtor de relações. Esta
ênfase sobre o trabalho envolvido na composição de uma experiência de valor, isto
é, arquetípica, torna possível descrever a psique do mesmo modo como a TAR
compreende o social, isto é, como um movimento ou processo. No Capítulo 1, vale
recordar, mostrou-se que, para Latour, o social não é uma espécie de ingrediente já
constituído que se adiciona às coisas, mas um trabalho sempre incerto de
associação de entidades heterogêneas.
Um dos aspectos mais interessantes da teoria dos arquétipos talvez tenha
sido a tentativa de Jung relacionar o local com o global — uma recusa da disjunção
moderna entre indivíduo e sociedade — e assim produzir uma parcial
“dessubjetivação” da experiência psíquica. Esta, apesar de localizada em um
indivíduo, não é nunca uma experiência absolutamente individual, posto que há
59
“O arquetípico, como o empregamos, é uma palavra de importância (no sentido de Whitehead),
uma palavra que valoriza”, explica Hillman (1977, p.82).
101
sempre algo de coletivo atravessando-a, como os inúmeros plug-ins exteriores que
vamos “baixando” desde que nascemos. Nesse aspecto, a neurose individual é
inseparável dos problemas sociais. Nos termos de Jung (1966),
“Sempre encontramos no paciente um conflito que em certo ponto está
conectado com os grandes problemas da sociedade. Daí, quando a
análise é levada a esse ponto, o conflito aparentemente individual do
paciente se revela como um conflito universal de seu ambiente e sua
época. A neurose é assim nada menos que uma tentativa individual,
embora fracassada, de resolver um problema universal” (p.265).
O problema surge quando Jung procura, à maneira moderna, naturalizar este
universal, de modo a distingui-lo de um domínio da experiência tomado como
cultural, abreviando o debate sobre isto que viria a constituir propriamente a psique.
Daí o seu modelo da psique em “níveis”. Tal como a casa de seu sonho de 1909,
estes níveis significam o aprofundamento crescente da experiência psíquica em uma
suposta “natureza”, o inconsciente coletivo. Mas se retomarmos como referência a
ação mediadora dos complexos e a indeterminação própria da fantasia, conforme
discutido, outro quadro da psique se desenha: a psique como rede sócio-natural de
complexos. A rede não cresce apenas para baixo, mas para todos os lados,
tornando impossível, a priori, dividir natureza e cultura.
O analista junguiano inglês Andrew Samuels propôs algo semelhante.
Insatisfeito com o modelo hierárquico, em “andares”, da psique, procurou descrevê-
la segundo a metáfora da “rede imaginal”. Para ele, o interessante desta metáfora é
que ela também serve como um instrumento de “monitoração da atividade dentro da
própria personalidade” (Samuels, 1992, p.60). Assim como a rede da TAR, sua
noção de rede parece enfatizar a distribuição da ação sobre variados agentes, no
caso, as imagens: “Sabemos da presença da rede imaginativa através de suas
ações, e sabemos de suas ações aos sermos incomodados por elas, e através de
suas contribuições para os estados arquetípicos da mente” (id., ibid., p.66). Samuels
também reviu o conceito de arquétipo. Dispensou a face kantiana do conceito para,
em troca, sublinhar sua ação afetiva: o arquetípico como gradação de afeto.
Pode-se a esta altura concluir que Jung abordou os arquétipos de mais de
uma maneira. Sua mixórdia de teoria orgânica da memória com criticismo kantiano
não ajudou na elucidação da teoria do inconsciente coletivo. A busca de uma
natureza psíquica distinta das experiências adquiridas conduziu sua psicologia, sem
102
querer, no sentido de uma “metafísica da natureza”, conseqüência inevitável de
quem subscreve o acordo moderno. Por outro lado, sua ênfase sobre a afetividade
ou força emocional de uma experiência arquetípica, passível por isso de ser
comparada a algo “divino”, aproxima-o da psicologia “despsicologizada” de Nathan e
da noção de transpavor de Latour. Conforme assinalado anteriormente, o conceito
de complexo, assim como o de arquétipo, também destaca a dimensão afetiva da
experiência psíquica, mas sem preocupar-se em afirmar uma natureza subjacente à
própria vivência efetiva. Ora, não estaria então o conceito de arquétipo, depois da
análise aqui realizada, reduzido ao de complexo?
2. 3. 4 Os arquétipos e a República da Psique
Outro modo de imaginar-se os arquétipos — e na verdade qualquer entidade
conceitual — seria tomá-los como proposições candidatas à existência no mundo
comum. Em sua defesa, seus porta-vozes poderiam alegar que os arquétipos não
são “substantivos” ou “categorias a priori”, diferentemente do que uma determinada
versão de Jung nos levaria a crer, mas, conforme outra versão também de Jung, os
arquétipos são, antes de mais nada, “performativos”. Nesse sentido equivalem às
divindades referidas por Nathan e aos transpavores de Latour. A realidade de um
arquétipo se definiria como uma realidade de atuação ao nível da experiência vivida
do indivíduo.
Supondo que os arquétipos sejam considerados nestes termos, deveríamos
primeiro perguntarmo-nos se lhes é concedido algum lugar no coletivo da psicologia
contemporânea antes de indagar se podem vir a compor o mundo comum com as
demais entidades instituídas de outros campos do saber. Ocorre que não há algo
como a psicologia, no singular. Não há nenhum coletivo psicológico instituído para
onde os arquétipos se dirigiriam clamando por aceitação! O estado atual (e pretérito)
da psicologia poderia ser comparado, retomando-se a metáfora política de Latour, a
um conjunto de Cidades-Estado, onde cada uma representa uma teoria diferente —
psicanálise, psicologia analítica, psicologia existencial-humanista, psicologia
cognitivo-comportamental, psicologia gestaltista etc. Com efeito, embaixadores
destas cidades costumam encontrar-se periodicamente para debater e trocar idéias
em eventos específicos, como congressos e simpósios, o que não impede, por sua
vez, exibições de hostilidade à versão de psicologia do outro (situação que acontece
103
também por intermédio de publicações). Terminadas as assembléias, os emissários
retornam aos seus respectivos territórios, deixando por fazer a tarefa de construir um
“mundo comum psicológico”, a “República da Psique”. Tarefa esta que poderia ser
resumida na forma das seguintes questões: Como combinar, por exemplo,
proposições diversas como realidade psíquica, complexo, arquétipo, inconsciente,
pulsão, objeto transicional, ser-aí, couraça caracterológica, hierarquia de
necessidades, condicionamento vicariante e insight? Podem elas todas habitar
conjuntamente a mesma República da Psique? Ou será necessário impedir a
cidadania desta ou daquela proposta em prol do bem comum?
Justiça seja feita a Jung. Embora tenha dito certa vez que a unificação das
teorias psicológicas produziria “unilateralidade” e “esvaziamento” (Jung, 1988a,
p.85), mostrando-se um ferrenho defensor do desdobramento das controvérsias,
também entendia, pragmaticamente, ser interessante um consenso mínimo entre as
correntes de psicologia voltadas ao exercício psicoterapêutico, para “estabelecer
uma base para o trabalho prático e abandonar a discussão fútil de teoria” (Jung apud
Shamdasani, 2006a, p.3). Na terminologia proposta por Latour, dir-se-ia que se
quisermos erigir a República da Alma não basta o poder de consideração, é preciso
seguir até a etapa seguinte do poder de ordenamento, para transformar a cacofonia
das proposições psicológicas em alguma espécie de ordem.
Em um artigo intitulado “Os problemas da psicoterapia”, de 1929, Jung
apresentou uma tentativa de síntese de algumas das principais tendências da
psicoterapia de então. Revestido de cautela, qualificou o projeto de um
“empreendimento provisório”, podendo inclusive ser taxado de “arbitrário” (Jung,
1988a, p.53). Basicamente, descreveu o processo analítico como envolvendo quatro
etapas: confissão, esclarecimento, educação e transformação. A primeira etapa, a
“confissão”, refere-se ao método catártico desenvolvido pelo médico vienense
Joseph Breuer no final do século XIX. O “esclarecimento” seria equivalente ao que
Freud denominou “análise da transferência”. A educação corresponderia à “atitude
fundamental da escola de Alfred Adler”, com sua preocupação de adaptação social.
Finalmente, a “transformação”, a contribuição da psicologia analítica do próprio Jung,
que descreveu como uma prática de influência baseada na personalidade
“transformada” ou analisada do analista.
Anos mais tarde, em 1938, Jung liderou a fundação do Instituto de Ensino da
Psicoterapia, na Universidade de Zurique. Participaram como membros do instituto
104
nomes notáveis da psiquiatria suíça, entre eles, Gustav Bally (psicanálise) Medard
Boss (análise existencial), Kurt Binswanger e Alphonse Maeder. Jung tentou
desenvolver no instituto um programa comum mínimo para a formação de
psicoterapeutas, que abarcasse as teorias junguiana, freudiana, adleriana e
existencial de influência heideggeriana. Em meados de 1938, apresentou-se no
Décimo Congresso Médico Internacional de Psicoterapia, em Oxford, Inglaterra.
Também ali falou sobre a necessidade de unificação da profissão. Propôs, então,
uma lista de quatorze pontos com que as diversas correntes de análise psicológica
poderiam concordar.
O Instituto de Ensino da Psicoterapia funcionou até 1948, quando encerrou
definitivamente suas atividades. Jung ficou profundamente decepcionado pelo
projeto não ter vingado.
Findo este Capítulo 2, façamos uma síntese dos principais temas até aqui
trabalhados, em relação às indagações levantadas no capítulo anterior. Jung
descreveu a psique como um agente transformador da realidade, comparável ao que
a TAR denomina mediador. Ela se organiza em complexos e arquétipos, que atuam
como agências sobre a consciência individual. A psicologia analítica reproduz o
acordo moderno ao definir o inconsciente coletivo e seus arquétipos como uma
natureza psíquica não maculada por aquisições individuais. Entretanto, fornece as
condições teóricas necessárias para recusar-se este mesmo acordo, bastando
atentar-se para a noção de fantasia e para a teoria dos complexos. Esta última pode
ainda exercer perfeitamente a função de infra-linguagem na descrição da
experiência psíquica.
105
Capítulo 3 – A psicologia das relações
“É preciso ir mais longe: fazer com que o encontro
com as relações penetre e corrompa tudo, mine o
ser, faça-o vacilar.”
— Gilles Deleuze
3.1 As relações psíquicas e suas patologias
No capítulo anterior, procurou-se apresentar a descrição de Jung da psique
em termos de suas agências (complexos e arquétipos). Entretanto, talvez mais
importante do que distinguir os componentes anímicos seja tentar traçar as suas
associações, seu vínculos, suas relações e os efeitos que produzem sobre o
indivíduo. Tanto a doença quanto a saúde mental refletem os diferentes tipos de
relação entre o indivíduo e os seus mundos interno e externo. Com efeito, existem
dois significados principais para o termo “relação” (Beziehung) na obra de Jung que
é necessário distinguir: há a “relação” entre analista e paciente, que se desdobra nos
fenômenos clínicos da transferência, contratransferência e relação pessoal, e há a
“relação” entre o eu e os demais objetos psíquicos, ou seja, complexos e imagens
arquetípicas. Com efeito, uma separação completa entre essas duas significações é
na prática impossível, visto que o analista é também vivenciado como figura
psíquica, podendo, portanto, ser assimilado a este ou aquele objeto.
Espera-se no decorrer do presente capítulo demonstrar que a psicologia
analítica pode ser considerada uma espécie de “psicologia das relações”
60
compatível com certos aspectos teórico-metodológicos da TAR discutidos
anteriormente. De fato, as questões em torno das idéias de liberdade, domínio e
60
Segundo Samuels (cf. 1989a, 1989b), a psicologia analítica de Jung teria antecipado a psicologia
das relações objetais. Por esta expressão, entenda-se o desenvolvimento ocorrido na psicanálise
pós-freudiana desde os anos 1930, que implicou a ênfase na inter-relação do sujeito com os objetos
que o afetam, em detrimento da descrição de um psiquismo isolado.
106
vínculo se fazem igualmente presentes na psicologia de Jung e é nelas que agora
este trabalho vai focar-se.
A idéia de que as diversas partes da psique se relacionam gerando resultados
distintos para o funcionamento mental do indivíduo aparece na obra de Jung desde
a formulação da sua teoria dos complexos, conforme aduzido no capítulo anterior.
Em Metamorfoses e símbolos da libido — monografia escrita numa fase de transição
entre o seu período psicanalítico e o da psicologia analítica propriamente dito —
Jung abordou as dificuldades psicológicas implícitas no relacionamento entre o
indivíduo e sua “mãe” tanto real como “imago” (imagem arquetípica). Contudo, foi em
um ensaio de 1928, “As relações entre o eu e o inconsciente”, que Jung
desenvolveu mais profundamente a noção de relação (este texto é na verdade um
desdobramento do artigo de 1916, “A estrutura do inconsciente”, já mencionado).
Embora a palavra “relação” posteriormente tenha praticamente desaparecido do
vocabulário conceitual de Jung, seu significado se manteve distribuído em outras
idéias que fazem referências aos diversos tipos de vínculo entre o eu e o “não eu”:
identidade (como uma forma de “não relação”), identificação, assimilação,
integração, restauração regressiva da persona e individuação.
A existência da consciência subjetiva está atrelada a conteúdos psíquicos
provenientes de duas fontes: a consciência coletiva e o inconsciente coletivo. Por
“consciência coletiva”, Jung se refere ao conjunto de idéias e opiniões socialmente
compartilhadas, que “se passam por verdades geralmente aceitas” (Jung, 1981,
p.218). O inconsciente coletivo, conforme dito, é a camada psíquica constituída de
arquétipos e instintos. A patologia e a saúde mental não vão depender apenas dos
diferentes objetos que se vinculam à consciência do eu, mas também da qualidade
deste vínculo. Isto não significa, contudo, que a fronteira entre o normal e o
patológico seja sempre fácil de demarcar-se. Ao contrário, a normalidade pode
disfarçar uma profunda alienação do indivíduo de si mesmo, enquanto que a
patologia pode ser o princípio de um benéfico processo de diferenciação da
personalidade.
Aquele que procurar descrever as relações entre o eu e o inconsciente deve
estar preparado para deixar de lado qualquer esperança de um conhecimento
objetivo, seguro, inequívoco. A respeito do inconsciente, só podemos falar por
inferência, em termos dos efeitos que produz sobre a consciência (cf. Jung, 1981).
Assim, qualquer afirmação sobre a relação entre o eu e o inconsciente vai sempre
107
revestir-se de alguma imprecisão e controvérsia. Similarmente ao que ocorre na
física de partículas
61
, parece que próprio ato de observação consciente perturba o
exame do fenômeno observado, quando se trata da psique inconsciente. Nesse
sentido, Jung observou:
“Entre o consciente e o inconsciente há uma espécie de ‘relacionamento
de incerteza’, porque o observador é inseparável do observado e sempre o
perturba pelo ato de observação. Em outras palavras, a observação do
inconsciente prejudica a observação do consciente e vice-versa”. (id.,
1978a, p.226).
A idéia de um inconsciente na psicologia de Jung deve, por conseguinte, ser
tomada aqui não como uma estrutura sobrecodificante da consciência — de fato,
uma das versões possíveis de inconsciente no texto junguiano — mas, sim, como
um índice de indeterminação e desconhecimento sobre o que é efetivamente esta
experiência consciente, suas agências e seus devires. O inconsciente é “o
Desconhecido como imediatamente nos afeta” (id., 1981, p.68). Aqui, mais uma vez,
vale ressaltar a proximidade entre este “Desconhecido”, que é como Jung define o
“inconsciente”, e aquela “exterioridade não socializada” a cercar o social, que Latour
designou pelo nome de “plasma”.
Jung asseverou que em pessoas normais, habitualmente, consciência e
inconsciente se apresentam coordenados segundo uma relação de compensação ou
cooperação. A consciência apresenta três características fundamentais: 1) Seus
conteúdos apresentam um determinado valor ou intensidade energética, sem o qual
se tornariam inconscientes. Ao núcleo da atividade consciente, Jung denominou
“eu”. 2) Volta-se para o mundo exterior, funciona segundo processos psíquicos
dirigidos e definidos, promovendo a adaptação do indivíduo à realidade externa.
Nesse aspecto, a consciência tende a identificar-se com a “persona”. Em latim,
persona significa a máscara usada pelos atores no teatro clássico. Jung usou este
termo para designar uma aparente ou falsa individualidade, já que representa o
compromisso entre o indivíduo e a exigências da sociedade. Trata-se, portanto, de
um segmento da consciência coletiva, uma “imagem ideal”. 3) Os processos de
direção e definição da consciência somados à formação da persona tendem a tornar
61
Wolfang Pauli (apud Jung, 1981) comparou a relação entre consciente e inconsciente à situação da
“complementaridade” na física, o que limita a descrição objetiva dos fenômenos: “(...) qualquer
‘observação do inconsciente’, i.e, qualquer tomada de consciência dos conteúdos inconscientes, tem
um efeito reativo sobre esses mesmos conteúdos (o qual sabemos impede por princípio a
possibilidade de ‘exaurir’ o inconsciente ao torná-lo consciente)” (p.229).
108
a consciência unilateral. Desse modo, aquelas partes da psique incompatíveis com a
atitude consciente dominante são negligenciadas, recalcadas, inibidas:
“Unilateralidade é uma característica inevitável e necessária do processo dirigido,
pois direção implica unilateralidade” (id., ibid., p.71). As manifestações do
inconsciente tais com sonhos e fantasias visam a corrigir essa unilateralidade,
trazendo à consciência os conteúdos necessários à manutenção do “equilíbrio”
psíquico. As psicopatologias, por outro lado, refletem uma perturbação desta
tendência compensatória. Quanto maior a unilateralidade da consciência maior a
tendência de o inconsciente manifestar-se com autonomia, ou seja, por meio de
sintomas incontroláveis.
Dessa perspectiva dinâmica do funcionamento psíquico, neurose e psicose
diferem apenas em relação ao grau de autonomia manifestado pelo inconsciente. No
primeiro caso, a autonomia se manifesta, sobretudo, mediante humores e idéias
perturbadores do eu, no segundo, mediante delírios e alucinações que levam o
sujeito a não mais distinguir os mundos “interno” e “externo”. A vida “civilizada”, de
acordo com Jung, só fez aumentar a exigência de direção e concentração do
funcionamento psíquico consciente, tornando o homem mais suscetível à
psicopatologia.
3.1.1 Vínculos patológicos
O paciente que inicia um tratamento analítico exibe, via de regra, uma atitude
consciente unilateral. Os sintomas que o afligem indicam a existência de uma
relação disfuncional entre consciência e inconsciente. Tratando-se de um neurótico,
a unilateralidade do eu é contraposta pelo inconsciente por meio de sentimentos e
pensamentos incômodos, que tomam posse da consciência. A psicopatologia exibe
um vínculo de dominação entre inconsciente e consciência onde deveria haver
cooperação. A análise, por sua vez, visa a “libertar” o indivíduo desse domínio, ao
promover a integração dos conteúdos inconscientes na consciência, por intermédio
do exame de sonhos, fantasias e projeções. Libertar a consciência do domínio do
inconsciente não é o mesmo que eliminar o indivíduo do vínculo com os objetos, isto
é, a influência do inconsciente. Em vez de uma relação patológica de domínio,
espera-se com o tratamento analítico promover ou restaurar uma relação de
cooperação entre os dois. Jung denominou este procedimento terapêutico de
109
“assimilação dos conteúdos do inconsciente”. Descreve-o como uma tarefa
arriscada, já que em vez de o eu assimilar o inconsciente pode acontecer de o
inconsciente assimilar o eu, o que implica a identificação do eu com a psique
coletiva, ocasionando prejuízos ainda maiores à saúde mental do paciente.
Jung se pergunta: como o paciente reagirá diante da irrupção do inconsciente
na consciência? Três são as possibilidades: o paciente poderá identificar-se com os
conteúdos do inconsciente, poderá restaurar regressivamente a persona ou poderá
assumir conscientemente o processo de individuação. Cada uma destas três
alternativas representa um tipo distinto de relação entre a consciência e os mundos
interno e externo. Nos dois primeiros casos, ocorrem formações de vínculo
mórbidas; na terceira e última situação, o processo de individuação, experimenta-se
um movimento de maturação da personalidade — uma boa vinculação, diria Latour,
entre a consciência subjetiva e os demais objetos (ver a última seção deste
capítulo).
A análise atua “desmascarando” a personalidade, dissolvendo a identificação
da consciência com a persona, integrando o inconsciente à consciência. Uma das
conseqüências desta dissolução é a liberação de fantasia involuntária, um dos
traços distintivos da atividade do inconsciente. A ampliação da consciência
decorrente da invasão de material oriundo do inconsciente coletivo produz uma
condição definida por Jung como “inflação psíquica”. Uma consciência inflacionada é
uma consciência que ultrapassou as proporções humanas, daí Jung (1966),
reproduzindo a expressão de Alfred Adler, chamar tal processo anímico de
“semelhante a deus”. Os dois extremos típicos da inflação são a megalomania e a
depressão. Na megalomania, o individuo é arrebatado por uma auto-confiança
extraordinária, torna-se presunçoso, arrogante; sente-se no dever de iluminar o
mundo com seu conhecimento. Na depressão, a pessoa é tomada pelo sentimento
de impotência, transformando-se em um pessimista, um desesperado. O
megalômano, entretanto, oculta um forte sentimento de inferioridade enquanto o
depressivo, um orgulho mórbido.
Quando a inflação se instala no indivíduo, Jung se refere a uma “identificação
do eu com a psique coletiva”. Definiu identificação como “uma alienação do sujeito
de si mesmo em favor do objeto, no qual ele está, pode-se dizer, disfarçado” (id.,
1990c, p.440). Estamos neste caso diante de um vínculo patológico de domínio. O
sujeito, por exemplo, identificado com o pai, adota seu comportamento, como se pai
110
e filho fossem a mesma pessoa e não individualidades distintas. Trata-se de uma
espécie de “imitação inconsciente”, uma expressão que muito bem poderia ter saído
da pena de Tarde. A identificação não ocorre apenas com pessoas, mas com
funções psicológicas e “coisas” tais como um cargo, uma profissão, uma ideologia. É
vantajosa para o indivíduo quando ele não consegue lidar com uma situação por
conta própria, o que geralmente acontece na juventude. Nas demais situações a
identificação produz como efeito uma profunda dissociação, uma cisão patológica da
personalidade em duas. E aqui se percebe o efeito negativo da identificação do eu
com a persona. Se esta representa uma “imagem ideal”, uma máscara, ao menos
em relação à comunidade, todas as demais características da pessoa são inibidas
no inconsciente. O indivíduo se aliena de si mesmo.
A análise envolve o risco de trocar-se uma identificação por outra. Em vez da
identificação com a persona, com a consciência coletiva, o indivíduo se identifica
com algum complexo inconsciente. Jung fala em diferentes graus de identificação.
Num patamar elevado, a identificação adquire contornos psicóticos, como nos casos
citados do “homem do falo solar”, que se acreditava Deus, e do paciente de Maeder,
o aprendiz de serralheiro igualmente megalômano.
Segundo Jung (cf. 1981), estados de identificação do eu com um complexo
inconsciente são o que o que os povos ocidentais, até o advento da racionalidade
iluminista, e os “primitivos” de épocas passadas assim como do presente, chamam
de “possessão”. Com efeito, o termo possessão reflete com justiça a coerção, o
sentimento de estar dominado, por uma força superior. Curiosamente, é exatamente
quando o indivíduo acredita dominar ou controlar os complexos que eles se voltam
contra si, dominando-o, possuindo-o. Nesse sentido, a análise visa a tornar o
paciente consciente do fato de que não controla o inconsciente, mas que, quando
assim pensa e age, o inconsciente reage involuntariamente, possuindo-o. Se o
paciente se desfaz desta fantasia de domínio, automaticamente o inconsciente se
despontencializa e a possessão cessa. Nas palavras de Jung (1966, p.234), “sem
opor força ao inconsciente, não o provocamos a atacar”. Prossegue explicando que
a expressão “provocar o inconsciente” não deve levar o leitor a achar que o
inconsciente fique, tal como os deuses de antanho, ofendido e por isso se vingue do
ofensor despejando sobre ele toda sua ira. Trata-se mais propriamente de uma
questão de “dieta psíquica que perturba o equilíbrio de minha digestão” (id., ibid.,
p.234). Assim, presumir ter controle sobre o inconsciente é uma atitude que deve ser
111
evitada para a própria saúde mental do indivíduo. Por outro lado, conclui, como se
estão considerando processos psíquicos inconscientes que produzem “efeitos
morais devastadores”, talvez fosse realmente melhor falar em “ira de deuses
ofendidos” (id., ibid., p.234).
Há casos em que a inflação não é aceita pelo indivíduo e este tenta retornar à
sua condição psíquica anterior ao colapso da atitude consciente. Jung denominou tal
processo “restauração regressiva da persona”. Não se trata de uma experiência
restrita à análise, mas um processo que pode ser observado em outras situações da
vida. Jung toma o exemplo de um homem de negócios que assumiu um grande risco
em sua profissão e falhou, indo à bancarrota. Este homem, depois do incidente,
poderá manter sua atitude ousada nos negócios, talvez adicionando um pouco mais
de cautela. A experiência do fracasso não lhe terá causado maiores prejuízos. Mas
se, por outro lado, ele desiste de assumir novos riscos e confina sua personalidade a
limites muito mais estreitos que antes da falência, fazendo trabalhos aquém de seu
real potencial, é porque restaurou sua persona regressivamente. Antes, observa
Jung (ibid.), “talvez quisesse mais do que poderia realizar; agora sequer ousa tentar
aquilo de que é capaz” (p.164).
Depois do término da Segunda Guerra, nota-se uma maior preocupação de
Jung com a condição psíquica específica do homem contemporâneo. Não que ele
tenha deixado de demonstrar tal interesse anteriormente. Entretanto, eventos como
os totalitarismos nazista e soviético assim como a bomba de Hiroshima lhe
pareceram de uma gravidade extrema, a ponto de, em 1946
62
, descrever a situação
mundial como “muito sinistra” (Jung, 1981, p.222). Em “Da natureza da psique”, Jung
retomou a questão da identificação da consciência subjetiva com idéias e opiniões
coletivas, tema discutido em “A estrutura do inconsciente”. Desta vez, porém, não
empregou mais a noção de persona, mas, sim, a de consciência coletiva.
Reconheceu nos diversos “ismos” um perigoso processo de identificação do eu com
a consciência coletiva e, portanto, de alienação do sujeito. O indivíduo em tais
condições se torna o que chamou de “o homem da massa”. A massificação seria
uma espécie de neurose contemporânea mascarada por normalidade, posto que
compartilhada coletivamente. Em outras palavras, Jung está sugerindo que a
62
A passagem citada está em “Sobre a natureza da psique”, monografia publicada originalmente em
1946, no Eranos-Jahrbuch. O texto, entretanto, foi revisado e ampliado em 1954. Como não tive
acesso à publicação original, não pude estabelecer com segurança a data da citação.
112
normalidade pode ser patológica para o indivíduo. A neurose, por sua vez, na
medida em que isola o sujeito da massa, tornando-o um estranho, abre as portas
para o processo de diferenciação da personalidade, isto é, para o processo de
individuação.
Para a consciência subjetiva não sucumbir à consciência coletiva é
fundamental o reconhecimento da importância dos arquétipos. Estes atuam como
uma defesa diante da massificação (também denominada inflação social ou
nacional). Jung acreditava que, nesse aspecto, o homem medieval levava certa
vantagem sobre o homem contemporâneo porque ainda reconhecia a existência de
“potências metafísicas” tão influentes quanto as forças tangíveis mundanas. Os
símbolos religiosos, segundo Jung, seriam eficazes porque expressariam arquétipos
inconscientes, agindo desse modo como reguladores do funcionamento psíquico.
Mas na medida em que a religião também se tornou um conjunto de preceitos
dogmáticos, aproximando-se dos “ismos” dominantes, sua função terapêutica sobre
a psique enfraqueceu. Sem a ação reguladora dos arquétipos do inconsciente
coletivo, o indivíduo tende a tornar-se massificado, gerando efeitos catastróficos
para si e para a sociedade.
3.1.2 Redirecionando a libido, substituindo os vínculos
Cooperação versus identificação, inflação, massificação: a psicologia analítica
descreve os vínculos entre as diversas partes da psique como podendo ser
qualitativamente distintos. O eu pode vincular-se com um complexo para produzir
efeitos benéficos para a personalidade, como quando, por exemplo, um complexo
ajuda a corrigir a unilateralidade da consciência. Mas, por outro lado, o mesmo
complexo pode assimilar o eu — identificação do eu com o complexo —,
ocasionando sintomas psicopatológicos. Empregando o vocabulário conceitual da
TAR, podemos dizer que na primeira situação estamos diante de uma “boa
articulação” enquanto na segunda, de uma “má articulação”. Entretanto, a
experiência clínica nos ensina que nem sempre é possível modificar a qualidade do
vínculo. Nestas situações, há que substituir-se o objeto ao qual a consciência se
vinculou de modo disfuncional por outro que lhe seja benéfico. Como disse Latour,
se há alguma liberdade para o ser humano, ela reside não na sua desvinculação das
demais entidades que o fazem existir, mas na possibilidade de substituir os vínculos
113
mórbidos pelos saudáveis
63
, criadores de diferença e significado. A psicologia de
Jung sugere algo similar, como veremos.
Jung (cf. 1990c) descreve em Tipos psicológicos a condição psíquica original
do infante como um estado de identidade com o ambiente. Por “identidade”,
entenda-se a condição de não-diferenciação entre sujeito e objeto que, enquanto tal,
pressupõe-se ser necessariamente um estado de inconsciência. Ela é a base das
futuras identificações do indivíduo. Mas esta identidade não pode durar para
sempre. O cuidado e a proteção transmitidos pelos pais ao filho(a) no início da vida
fornecem as condições ambientais necessárias para o desenvolvimento da
consciência subjetiva da criança, o que implica conseqüentemente a diferenciação
entre sujeito e objeto e, portanto, o fim do estado não-relacional de identidade. A
partir daí, podemos falar em uma relação da criança com a mãe, via de regra a
figura mais importante nesta etapa da vida infantil. Esta relação sem duvida é
caracterizada pela forte dependência do filho(a) à sua mãe, sem a qual ele(a) não
poderia a princípio sobreviver.
Contudo, a partir da puberdade, habitualmente, começam a recair sobre o
indivíduo exigências de adaptação ao grupo maior em que vive, como as habituais
injunções de “casamento” e trabalho. Jung observou que persistir neste estágio da
vida numa atitude pueril de dependência parental, ou seja, insistir em permanecer no
“paraíso infantil” da ausência de responsabilidades, pode ser prejudicial para o
desenvolvimento da personalidade. Contra esta “tendência incestuosa”, o ser
humano criou o obstáculo do tabu do incesto. Esta proibição, entretanto, não visa
primariamente ao impedimento da coabitação real com a mãe ou outro membro da
família, mas substituir o vínculo psíquico com um objeto endogâmico, inadequado
em termos adaptativos tanto ao indivíduo quanto ao seu grupo, por um objeto
exogâmico mais favorável à adaptação. Quanto a isto, Jung (1995) assinalou que a
proibição do incesto, antes de mais nada, “está relacionada aos sistemas primitivos
de classes de casamento, que por sua vez constituíam uma necessidade vital para a
tribo” (p.213). A análise de certos mitos arcaicos mostra que o desejo “incestuoso”
não é um desejo de “coabitação”, “mas a idéia de voltar a ser criança, retornar ao
abrigo dos pais, penetrar na mãe para dela renascer” (id., 1995, p.213). A proibição
63
Latour (1998a) afirma ter assumido o risco de ser chamado de “reacionário” ao “trocar a noção
assimétrica de emancipação pela noção simétrica de substituição de um elo mórbido por um outro elo
salvador” (p.4).
114
do incesto parece, nesta linha de raciocínio, cumprir uma função adaptativa de
cunho psicossocial. Jung se referiu a ela como um “fenômeno teleológico”.
Pensando esta questão em termos da TAR, poderíamos interpretar que a instituição
duradoura, e mesmo ubíqua, desta proibição deve ser buscada nas suas
conseqüências, nos seus efeitos, tudo leva a crer, mais benéficos que maléficos.
A separação do ambiente familiar primário, apesar de necessária, não é uma
tarefa exatamente simples. Tanto que, observou Jung (1976), a própria “natureza
inconsciente no homem” (p.156) criou mecanismos de desprendimento do indivíduo
da influência fascinante, porque em parte arquetípica, e unilateral dos pais. Os rituais
de iniciação, freqüentes no período da puberdade entre os “primitivos”, e o batismo
cristão, originalmente, tinham exatamente este propósito
64
. Nos ritos de iniciação, o
jovem normalmente é afastado da família e recebe um novo nome para provar que
não é mais a pessoa de antes. Isto, entretanto, não basta para livrá-lo da
dependência parental. Medidas drásticas como a produção cerimonial de cicatrizes,
circuncisão ou outras marcas no corpo são tomadas com o objetivo de afastar o
jovem da influência inconsciente da família. Jung (ibid.) observou que, entre os
hotentotes da África, era comum o rapaz “cometer o incesto uma vez com sua mãe a
fim de provar que ela não era mais sua mãe, mas apenas uma mulher como as
outras” (p.158).
De modo análogo aos ritos de iniciação “primitivos”, o batismo no cristianismo
arcaico visava a proporcionar uma modificação radical na condição psíquica do
sujeito. Nas igrejas antigas, a pia batismal era muito maior que as atuais. Os cristãos
eram literalmente mergulhados na sua água. Água que o sacerdote havia
previamente purificado de todas as impurezas e forças malignas, transformando-a
em fonte pura e regeneradora da vida, a benedictio fontis. O homem batizado,
portanto, é considerado um novo homem: “A mácula do pecado é retirada de si e
sua natureza se junta à imagem de Deus. Ele não mais está contaminado por forças
meramente naturais, está regenerado como um ser espiritual” (id., ibid., p.158).
O que exatamente torna determinado vínculo tão forte e duradouro a ponto de
ter-se de empregar procedimentos enérgicos e até cruéis para modificá-lo? Para
Jung a resposta desta questão está na libido, que definiu como uma espécie de
energia psíquica indiferenciada. Vale lembrar que a formulação de uma “energética
64
Nathan, conforme apontado no Capítulo 1, comparou a psicanálise, entre outros procedimentos, à
“iniciação”, no sentido de que ambas são métodos de modificação do outro.
115
psicológica” foi tema de interesse de alguns dos mais importantes pesquisadores da
psique do início do século XX, como Wilhelm Wundt, Emil Kraepelin, William Stern,
Edouard Claparède, William James e Sigmund Freud. “Libido”, em latim, significa
“desejo” ou, conforme a definição de Cícero (apud Jung, 1995, p.117), “desejo
desenfreado” (cupiditas effrenata) contrário à razão. Santo Agostinho empregou o
termo para referir-se a qualquer espécie de “impulso” ou appetitus. Freud, por sua
vez, usou a libido na psicanálise para designar uma energia de caráter
primariamente sexual, afastando-se de seu sentido etimológico original. A
preponderância da sexualidade sobre o funcionamento psíquico, como queria Freud,
mostrou-se inaceitável para Jung não porque, nesta refutação, ele traísse algum
preconceito de origem cristã ou algo que o valha, mas porque sua experiência clínica
assim o indicava.
Jung propôs então, em 1912, uma definição de libido mais próxima de sua
origem clássica e ao mesmo tempo afim da noção de “vontade” de Schopenhauer:
libido como uma “vontade de existir”, um “tender para”, cupiditas. Como um conceito
que expressa uma força para além da consciência, “a libido se presta tanto ao
δναιμω [daimon], ao bom Deus, como ao Diabo” (id., ibid., p.100). No ano seguinte,
comparou-a ao conceito de “élan vital” de Henri Bergson. Em 1928, aproximou-a do
conceito físico de energia, tentando traçar paralelos com os princípios de
conservação e de entropia. Quer dizer, a libido, como energia psíquica, poderia ser
considerada parte específica de um processo ou energia vital mais amplo.
A libido, portanto, segundo o sentido que Jung lhe confere, é um processo
psíquico energético vivenciado sob a forma de um appetitus. Explicar, contudo, em
que se fundamenta este processo, isto é, se se trata em última instância de energia
física ou da atividade de divindades transcendentes é um problema de ordem
metafísica que não cabe à psicologia responder.
Jung descreveu a libido ainda como um “valor” que pode ser transportado a
qualquer região da experiência humana, como a fome, o sexo, o poder e a religião.
Conforme explicou na reedição de “O conteúdo da psicose”, em 1914: “Libido é um
termo que traduz a energia de valores psicológicos. O valor psicológico é algo que
produz um efeito. Portanto, é possível considerá-lo uma energia, sem pretender uma
medida precisa” (id., 1990d, p.172). De acordo com esta definição pragmática,
reconhece-se a libido pelo seu efeito. Efeito este sempre dinâmico, que se faz notar,
por exemplo, nas experiências do desejar, do querer, do afeto e da capacidade para
116
o trabalho (cf. Jung, 1981). Assim, pode dizer-se que é a libido a responsável pela
manutenção de um vínculo. Deslocando-se a energia psíquica para outro objeto ou
atividade, o vínculo perde sua força.
Entretanto, a experiência oriunda da psicopatologia demonstra que tal
transporte de energia é dificultado pelo que parece ser “certa indolência peculiar da
libido, que não quer abandonar qualquer objeto do passado mas retê-lo para
sempre” (id., 1995, p.160). Em se tratando das figuras parentais, esta inércia libidinal
não é senão uma indicação de “incesto psíquico”. Neste caso, o neurótico é aquele
que persiste no vínculo (mau) com a “mãe”; vínculo paralisante que o impede de
lançar-se ao mundo e à vida, e assim diferenciar-se.
Com estas idéias em vista, a prática da análise junguiana assume um
contorno muito semelhante ao que Nathan entende por psicoterapia: uma prática de
influência artificial. Numa passagem de “A psicologia da dementia praecox”, Jung
(1990d) descreve a tarefa analítica em termos de artifício (Nathan) e substituição de
vínculos (Latour):
“A todo indivíduo normal interessa libertar-se de um complexo obsessivo
que impede o desenvolvimento adequado da personalidade (a adaptação
ao meio ambiente
65
). Geralmente o tempo se encarrega disso. No entanto,
muitas vezes, o indivíduo precisa buscar ajuda artificial para se libertar.
Sabemos que o deslocamento constitui uma grande ajuda. Busca-se algo
novo capaz de contrastar fortemente com o complexo
(masturbação/mística). Uma histeria pode ser curada caso se consiga
introduzir um novo complexo obsessivo” (p.58).
Esta “busca de algo novo” deve ser entendida como a busca de
reconhecimento da inclinação ou movimento da libido sugerido pela experiência
psíquica manifesta do paciente (sonhos e fantasias, por exemplo), que pode vir a
modificar sua atitude neurótica, e não como uma imposição arbitrária do analista.
Jung (1966) se referiu ao trabalho psicoterapêutico como envolvendo a “construção
de linhas de vida” (p.294), cujo propósito é trazer à consciência “a direção sempre
mutante das correntes de libido” (p.294). A operação analítica com as imagens, em
particular com os símbolos, vai ser então de fundamental importância na prática
65
Sobre os diferentes sentidos da “adaptação” e sua relação com o processo de individuação na
psicologia de Jung, ver a última seção deste capítulo.
117
clínica de Jung, no sentido de auxiliar o paciente a identificar — ou seria mais
correto dizer “construir”? — estas correntes libidinais
66
.
Dois casos clínicos de pacientes tratados por Jung podem ajudar a esclarecer
este processo artificial de deslocamento de vínculo e redirecionamento da libido. Em
1909, foi internado no Burghölzli um paciente proveniente dos Estados Unidos,
Joseph Medill McCormick (1877-1925), aos cuidados exclusivos de Jung
67
. Medill,
como costumava ser chamado, era jornalista e um dos herdeiros de um poderoso
conglomerado jornalístico de Chicago. O colega americano de Jung que lhe indicara
o paciente o diagnosticou com “neurastenia alcoólica”; prognóstico, “incurável” (id.,
1985a, p.113). Medill passou duas semanas em tratamento. Jung observou que ele
sofria de uma “simples neurose” relacionada a um “complexo materno”. Havia
desenvolvido uma dependência mórbida da mãe, cuja personalidade forte o
dominava. Com efeito, o alcoolismo era uma tentativa desesperada de o paciente
narcotizar-se para livrar-se da opressão materna, o que evidentemente redundava
em fracasso. Jung (cf. 1985a) relembrou este caso, cerca de 50 anos depois de
ocorrido, em Memórias, sonhos, reflexões. Sobre a submissão do paciente à mãe,
disse:
“Sempre que estavam juntos, ou quando precisava submeter-se a uma de
suas decisões, começava a beber para abafar suas emoções ou, então,
para desembaraçar-se delas. No fundo não queria sair do ninho cálido e,
contra seu próprio instinto, sucumbiu à tentação do bem-estar e do
conforto” (Jung, ibid., p.113)
Apesar de curto, o tratamento foi aparentemente um sucesso: Medill parou de
beber. Jung, entretanto, o alertou que caso voltasse a estar sob a influência da mãe
os sintomas poderiam retornar. E realmente foi o que se sucedeu. De volta aos EUA,
sob o mesmo ambiente materno, o paciente teve uma grave recaída. Mais tarde, foi
então a vez de Kate Medill McCormick, a mãe, ir a Zurique consultar Jung sobre o
filho. Diante de uma “mulher inteligente, mas possuída por um demônio de poder de
primeira grandeza” (id., ibid., p.113), Jung se deu conta que seu paciente, um
homem de compleição frágil, não teria como resistir ao domínio dela. Tomou uma
66
Sobre o conceito de símbolo e sua relação com os métodos construtivo e da imaginação ativa, ver
Capítulo 4.
67
Medill McCormick chegou ao Burghölzli no mesmo dia em que Jung exonerou-se de sua função de
Oberarzt ou primeiro psiquiatra assistente do diretor do hospital, naquela época Eugen Bleuler. Jung
continuou freqüentando o hospital — tratando pacientes e orientando dissertações de médicos
assistentes — durante mais um ano (cf. Bair, 2003).
118
atitude radical, um “ato de violência”, como ele mesmo o definiu: sem a permissão
do paciente, emitiu um atestado onde afirmava que Medill, por causa do alcoolismo,
era incapaz de exercer suas tarefas nos negócios da família. Com isso, o paciente
ficaria afastado da influência nefasta da mãe.
De fato, separado da mãe, Medill superou o alcoolismo e desenvolveu uma
“carreira brilhante”, tornando-se inclusive senador em seu país (cf. Bair, 2003). Não
obstante, foi para sempre um ressentido com seu ex-terapeuta, ao contrário de sua
mulher, que lhe foi grata. Jung considerou este paciente o seu primeiro “assim
chamado caso brilhante” (Jung apud Bair, 2003, p.158). O sucesso no tratamento de
Medill foi um dos principais fatores da fama de Jung nos Estados Unidos. O caso
provocou a peregrinação de grande número de pacientes americanos ricos a
Zurique, com o propósito de fazer psicoterapia com Jung. Em 1925, porém, Medill se
suicidou.
Este caso sugere que nem sempre é possível mudar a qualidade de um
vínculo. Medill não conseguia desfazer-se de sua identificação com o complexo
materno, isto é, a dominação exercida por sua mãe. Assim, o melhor foi afastá-lo de
sua influência mórbida. Um procedimento eticamente perigoso porque desrespeitoso
da autonomia do paciente, que Jung classificou como “remédio para matar-ou-curar”
(Bair, 2003, p.699). O fato é que sem o vínculo com a mãe, Medill pode estabelecer
outros vínculos mais benéficos para si.
Jung foi indiretamente responsável pela criação dos Alcoólicos Anônimos. No
início dos anos 1930, Roland H., americano e alcoólico, foi a Zurique em busca de
tratamento psicoterápico com Jung. A terapia durou cerca de um ano. Pouco depois
o paciente teve uma recaída. Procurou novamente Jung que, com franqueza, disse-
lhe não haver mais esperança com qualquer tratamento psiquiátrico. Perguntado por
Roland H. se haveria alternativa, Jung lhe sugeriu tentar passar por uma genuína
experiência espiritual ou religiosa, como meio de “remotivá-lo inteiramente”
(Ellenberger, 1970, p.733). Afinal, já havia observado outras pessoas como Roland
H. terem-se recuperado daquela maneira (cf. Jung, 2003). A espiritualidade ou
religião parece operar, nesse contexto, como uma prática transformadora da
personalidade. Este, aliás, é o modo como William James interpretou a influência
psicológica da religião em The Varieties of Religious Experience, texto que Jung
conhecia muito bem (cf. Shamdasani, 2006b; Jung, 1990c).
119
Seguindo a orientação de Jung, Roland H. retorna aos Estados Unidos e
junta-se ao Grupo de Oxford, movimento religioso fundando pelo missionário cristão
Frank Buchman. Sua adesão ao grupo lhe proporcionou a experiência de conversão
religiosa sugerida por Jung, livrando-lhe efetivamente da compulsão por álcool.
Transformado, Roland H. dedicou-se a ajudar outros alcoólatras; pessoas como
Eddy (Edwin T.), para quem a participação no Grupo de Oxford também significou a
superação do alcoolismo. Eddy, por sua vez, conseguiu trazer seu amigo Bill W.
(William Griffith Wilson) — considerado um caso perdido — para o grupo. Mais uma
experiência religiosa e mais uma cura. Bill W. teve então “uma visão de uma
sociedade de alcoólicos transmitindo suas experiências uns aos outros” (Ellenberger,
1970, p.733). Eddy T. e Bill W. deixaram o Grupo de Oxford para fundar a Sociedade
dos Alcoólicos Anônimos (A.A.). Em 23 de janeiro de 1961, Bill W. escreveu uma
carta de agradecimento a Jung, reconhecendo nele um dos principais inspiradores
do A.A.
68
Se colocarmos de lado a hipótese da ação de forças sobrenaturais, mágicas,
divinas, como fator terapêutico, como podemos entender o processo de “cura” da
compulsão de Roland H., Eddy T. e Bill W.? A compulsão pode ser descrita, neste
caso, como envolvendo determinado tipo de vínculo. Certamente um vínculo
mórbido, já que produz enorme sofrimento à pessoa. Segundo Jung, as relações
patológicas entre o eu e os demais conteúdos psíquicos costumam acontecer
quando as duas partes envolvidas deixam de cooperar e uma começa a “possuir” a
outra. Nesse caso, o álcool, ainda que por razões mais ou menos inconscientes,
domina o homem, faz dele seu escravo. Ora, o que a experiência religiosa no Grupo
de Oxford proporcionou aos alcoólicos? Eliminou o vínculo com o álcool? Desfez o
seu domínio? A experiência religiosa proporcionou o redirecionamento da libido em
Roland H., Eddy T. e Bill W. Isto implicou a troca de um objeto de vínculo por outro.
Troca esta que pode ser interpretada de duas maneiras. Primeiramente, o álcool foi
substituído pelo “grupo de amigos”. Na sua carta de resposta a Bill W., Jung (2003)
observou que “o contato pessoal e honesto com os amigos” (p.316) podia ajudar a
pessoa a vencer a fixação no álcool.
68
Bill W. menciona também a forte impressão que The Varieties of Religious Experience de William
James deixou sobre si. Descreve o psicólogo e filósofo americano como outra das principais
influências na criação do A.A.
120
Outra possibilidade é interpretar que o álcool foi substituído pelo “espírito”,
vivido então na experiência religiosa como uma alteridade psíquica maior ou mais
forte que o próprio eu consciente. Ainda na mesma carta a Bill W., Jung (ibid.)
assinalou: “Veja o senhor, ‘álcool’ em latim é spiritus, a mesma palavra para a
experiência religiosa mais elevada e também para o veneno mais prejudicial. A
fórmula benéfica é pois: spiritus contra spiritum” (p.316).
Seja qual for a interpretação, a “cura” dos pioneiros do A.A. se verificou pelos
efeitos do novo vínculo, sem dúvida efeitos melhores, mais benéficos, que aqueles
produzidos pelo antigo vínculo com o álcool.
3.2 As relações analíticas
A psicoterapia
69
moderna inventada por Freud e Jung no início do século XX,
na sua forma clássica, é o encontro entre duas pessoas — paciente e terapeuta —
em um consultório. Visa a identificar as agências psíquicas inconscientes que
influenciam a atitude do indivíduo, mediante o exame de seus sintomas, sonhos,
fantasias, projeções e atos falhos. Para Jung, cabe ainda à psicoterapia promover o
desenvolvimento das peculiaridades individuais do paciente, isto é, facilitar processo
de individuação. Desde muito cedo, ele e Freud perceberam que o tipo de relação
que se estabelece entre paciente e analista é decisivo para o sucesso ou fracasso
do tratamento. Problemas práticos surgidos em torno desta relação os levaram então
à formulação de concepções como as de transferência, contratransferência,
resistência e relação pessoal. Veremos a seguir como Jung procurou na teoria e na
prática dar conta da “relação” agora não mais como um processo intrapsíquico, mas
como a interação entre analista e paciente.
No processo psicoterapêutico, o paciente tende — em virtude da situação
profissional conscientemente acordada, por um lado, e das projeções transferenciais
inconscientes, por outro — a considerar o terapeuta como uma autoridade, isto é,
uma fonte de influência, saber e poder. O terapeuta busca usar a autoridade nele
investida em benefício do próprio paciente. A confiança que este deposita naquele,
ou ainda seu amor por ele, tornam-se alento para o paciente enfrentar suas
69
Jung (cf. 1988a) usa o termo psicoterapia para referir-se genericamente às diversas técnicas de
influência sobre o outro por meios psíquicos. A psicoterapia se torna uma “análise”, em sentido
estrito, quando leva em consideração a hipótese de um psiquismo inconsciente.
121
dificuldades. Entretanto, após mais de cem anos de psicoterapia moderna, tem-se
constatado que este belo projeto ético nem sempre se consuma na prática e os
analistas no exercício de seu ofício tampouco têm sido tão virtuosos. Não são raros
os que abusam de seu poder, corrompem sua autoridade, pervertem sua influência
(cf. Guggenbühl-Craig, S/d). Desse modo, em vez de a terapia fomentar a
individuação, acaba produzindo no paciente exatamente o que quer evitar:
dependência, repressão da individualidade, submissão. Dito isto, seria conveniente
indagar sobre quais princípios deve o terapeuta sustentar sua autoridade e quais os
limites do exercício legítimo de sua influência. Mais ainda, estará ele preparado para
colocar seu saber e poder em risco quando necessário?
A psicologia analítica de Jung nos oferece uma importante contribuição para a
discussão desta questão. Para tanto, pretende-se em primeiro lugar mostrar que as
preocupações de Jung com o problema da autoridade do analista no processo
terapêutico são reflexo de sua agitada experiência pessoal com Freud, por quem ele
alega ter sido subestimado e incompreendido. Os dois desenvolveram durante o
tempo em que estiveram associados pela causa psicanalítica uma relação complexa,
movida ao mesmo tempo por interesses pessoais e sentimentos intensos, como
amor e ciúme, admiração e ressentimento (cf. Kerr, 1997; Bair 2003). Jung acusou
Freud de ter colocado a autoridade pessoal acima da verdade e da discussão
honesta de pontos de vista teóricos divergentes.
Com efeito, a história da institucionalização da psicanálise é a história da
recusa do confronto consciencioso de idéias e da verificação empírica de teorias
divergentes por Freud, o criador da nova “ciência”, e seus fiéis seguidores. Talvez o
melhor exemplo disto seja o “comitê secreto” formado, em 1912, ao redor de Freud,
por Ernest Jones, Hans Sachs, Sandor Ferenczi, Karl Abraham e Otto Rank. Este
“grupo de elite” tinha como propósito precisamente evitar “desvios” do ponto de vista
freudiano, tal como o representado pelas posições de Jung, no interior do
movimento psicanalítico.
Em segundo lugar, espera-se mostrar que Jung expressou suas
preocupações com o abuso de autoridade na terapia por meio da reformulação do
conceito psicanalítico de resistência e pela elaboração do assim chamado “método
dialético”. Estes aportes teórico-práticos abrem caminho para interessantes
aproximações com o conceito de recalcitrância da TAR e sua regra metodológica de
“seguir os atores”.
122
3.2.1 Interpretando sonhos a caminho da América
O interesse de Jung pelas idéias psicanalíticas remonta a 1900, ano em que
leu pela primeira vez A interpretação dos sonhos, de Freud. O livro inicialmente lhe
pareceu difícil. Nesta época Jung, então com 25 anos, era um jovem psiquiatra
recém-formado, que apenas iniciava sua carreira profissional no prestigiado Hospital
Burghölzli, em Zurique. Ele próprio se considerou pouco experiente para absorver as
teorias freudianas. Retomou o texto três anos depois. Desta vez, descobriu haver
forte relação entre o conceito de recalque de Freud e as perturbações nos
experimentos de associações de palavras que vinha pesquisando. O tempo de
reação prolongado, por exemplo, apresentado pelos sujeitos experimentais durante
os testes confirmava a existência de um mecanismo psíquico recalcador das idéias
incompatíveis com a atitude habitual da consciência. O assim chamado “recalque”
atuava para defender o indivíduo do “assunto íntimo” que lhe causava sofrimento.
Jung tornou-se um adepto das teorias freudianas, em uma época em que
Freud não era exatamente uma figura popular no círculo psiquiátrico internacional.
No final de agosto de 1904, é internada no Burghölzli uma jovem judia russa de
dezoito anos chamada Sabina Spielrein, com o diagnóstico de “histeria psicótica”.
Jung foi o psiquiatra encarregado de tratá-la e decidiu tentar um novo método
terapêutico: a psicanálise de Freud. O tratamento durou cerca de dois meses e
pode-se dizer que foi um sucesso. Jung considerou-o seu “caso-padrão”. Em menos
de 11 meses, Sabina recebeu alta e deixou o hospital. Em meados de 1905,
ingressou na faculdade de medicina, em Zurique, vindo posteriormente a tornar-se
psicanalista (cf. Kerr, 1997).
Os bons efeitos no tratamento psicanalítico de Sabina, somados às
similaridades encontradas entre os resultados dos experimentos de associação de
palavras e a teoria freudiana do recalcamento, fizeram aumentar o entusiasmo de
Jung com a psicanálise. Aos poucos, tornou-se um enérgico defensor de Freud.
Finalmente, em abril de 1906, escreveu-lhe, iniciando um período de intensa troca
de correspondência e uma colaboração profissional que se estendeu por sete anos.
Conforme assinalado anteriormente, o entusiasmo de Jung pela psicanálise nunca
significou uma adesão completa às suas concepções. No prefácio de “A psicologia
da dementia praecox”, monografia publicada em 1907, Jung (1990d), depois de
123
assumir a defesa da psicologia freudiana, apresenta-lhe ressalvas, marcando sua
própria “independência”:
“Fazer justiça a Freud não significa, como muitos temem, sujeitar-se
incondicionalmente a um dogma; é bastante possível manter um
julgamento independente. Se admito, por exemplo, os mecanismos
complexos dos sonhos e da histeria, não significa, de forma alguma, que
atribuo ao trauma sexual da juventude uma significação exclusiva, como
Freud parece fazer; muito menos que eu coloque a sexualidade em
primeiro plano, acima de tudo, ou lhe conceda a universalidade psicológica
que, como parece, é postulada por Freud, pela impressão do papel
poderoso que a sexualidade desempenha na psique” (p.xiv).
Poucos anos depois, como veremos, foram essas mesmas reservas de Jung
sobre o papel da sexualidade na constituição da psique que estiveram no centro do
desentendimento teórico entre ele e Freud.
Em janeiro de 1907, Jung vai a Viena a convite do pai da psicanálise. Neste
primeiro encontro pessoal, conversaram durante treze horas praticamente sem
interrupções. No fim de sua vida, Jung (1985a) relembrou este episódio se referindo
a Freud como “a primeira personalidade verdadeiramente importante” com quem se
relacionou (p.135). De sua parte, Freud encontrou no colega suíço um importante
aliado de suas idéias. Por intermédio de Jung, a psicanálise conseguiu penetrar em
uma instituição psiquiátrica de reputação internacional, o Hospital Burghölzli —
Bleuler ainda se mostrava reticente às teorias psicanalíticas —, assim como na
academia suíça, já que Jung ministrava aulas na Universidade de Zurique. Mais
ainda: sendo de origem cristã, ele poderia ajudar a vencer o forte preconceito da
época de que a psicanálise seria tão somente uma “ciência judaica”, ineficaz
conseqüentemente no tratamento de não-judeus.
O ano de 1909 foi decisivo para as relações entre Jung e Freud. Trata-se do
ano em que ambos foram convidados para ministrar conferências na celebração do
vigésimo aniversário da Universidade Clark, nos Estados Unidos. Além dos dois
analistas, o evento contou com a presença de nomes ilustres nas áreas da física,
biologia, ciências sociais e psicologia, como Ernest Rutherford (físico), Franz Boas
(antropólogo), Edward B. Tichener (psicólogo), Adolf Meyer (psicopatologista).
William James, por sua vez, foi requisitado para recepcionar os convidados
europeus.
124
Freud e Jung combinaram de viajar juntos, tendo ainda a companhia de
Sandor Ferenczi, a convite do psicanalista de Viena. O navio que os levou à América
partiu de Bremen, na Alemanha, em 21 de agosto. Durante o período total da
viagem, que durou sete semanas, os dois interpretaram sonhos um do outro. Jung
(1985a) reconhecia àquela época em Freud “o homem mais velho, mais maduro,
mais experimentado” (p.142), uma espécie de “pai” para si. No entanto, as
interpretações de Freud lhe pareciam insuficientes ou mesmo equivocadas,
provocando-lhe “violentas resistências”. Em Nova Iorque, ocorreu então um
acontecimento que Jung (ibid.) viria a mencionar anos mais tarde em Memórias,
sonhos e reflexões como decisivo na sua relação com Freud:
“Freud teve um sonho cujo conteúdo não posso revelar. Interpretei-
o mais ou menos, acrescentando que poderia talvez adiantar algo mais, se
ele me desse alguns detalhes suplementares, relativos à sua vida
particular. Tal pedido provocou em Freud um olhar estranho — cheio de
desconfiança — e disse: ‘Não posso arriscar minha autoridade!’. Nesse
momento, entretanto, ele a perdera! Esta frase ficou gravada em minha
memória. Prefigurava já, para mim, o fim iminente de nossas relações. Ele
punha sua autoridade pessoal acima da verdade” (p.142).
Jung sentia-se dividido. De um lado, havia o respeito pelo “grande homem”
que via em Freud. De outro, havia seu compromisso com a verdade, que para ele
estava acima de qualquer autoridade pessoal. Nos três anos seguintes, as
divergências teóricas e particulares entre os dois só fizeram crescer, tornando o seu
relacionamento insuportável.
Assim, ao final de 1912, a amizade entre Freud e Jung já se encontrava
irremediavelmente desgastada. Jung se considerava profundamente
incompreendido e subestimado intelectualmente por Freud. Este, por sua vez, temia
perder o controle do movimento psicanalítico, mesmo para Jung, a quem um dia se
havia referido como seu “príncipe herdeiro”. A carta de Jung a Freud, datada de três
de dezembro de 1912, é um bom exemplo para ilustrar o estado de espírito em que
se encontrava. Seu tom é duro, raivoso, ressentido. Jung (apud McGuire, 1993)
relembra o episódio do navio na seguinte passagem: “A nossa análise, o senhor
deve lembrar-se, chegou ao fim com a observação feita pelo senhor de que ‘não
poderia submeter-se à análise sem perder a sua autoridade’” (p.534).
O problema da autoridade é abordado indiretamente ainda em outro ponto na
carta. Dessa vez, Jung acusa os psicanalistas de não tolerar aqueles que
125
apresentam idéias diferentes. Usam a teoria psicanalítica para desqualificar os
críticos. Escreveu:
“(...) a maioria dos psicanalistas faz mal uso da psicanálise, com o
propósito de depreciar os outros e o seu progresso com insinuações
acerca de complexos (como se isso explicasse alguma coisa. Uma teoria
infame!) Uma amostra particularmente grotesca de absurdo que circula por
aqui é que minha teoria da libido é produto de erotismo anal. Quando
penso quem (sic) inventou essa ‘teoria’, temo pelo futuro da psicanálise”
(Jung apud McGuire, 1993, p.534).
Jung não foi o primeiro a ter idéias rejeitadas por Freud e seus discípulos com
o argumento de que decorriam de alguma mente perturbada. Dois anos antes, em
dezembro de 1910, Freud havia escrito a Jung uma missiva onde descrevia a atitude
de Adler, de subestimar a sexualidade na constituição das neuroses, como derivada
de sua “paranóia”
70
. Adler foi, então, ferozmente atacado por seus pares nas
reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena. Em vez de os psicanalistas
debaterem as inovações teóricas e os resultados terapêuticos do colega dissidente,
optaram por denunciá-lo por abandonar a teoria da libido e enfraquecer o movimento
psicanalítico (cf. Kerr, 1997). Não houve outra saída para Adler senão a de desligar-
se da psicanálise.
De fato, Jung tinha razão suficiente para ficar temeroso, não exatamente com
o futuro da psicanálise mas, sim, com o seu futuro dentro daquele movimento. Afinal,
ele parecia estar seguindo o destino de Adler. Nos bastidores, Freud vinha tecendo
comentários pouco elogiosos a seu respeito. Numa carta a James Jackson Putnam,
datada de 20 de agosto de 1912, depois de descrever Adler como um “pensador
talentoso porém paranóico maldoso” (Freud apud Kerr, 1997, p.444), Freud conta
estar tendo problemas com Jung, a quem se refere como alguém “que
aparentemente não superou sua própria neurose” (id., ibid, p.444). O fato de Jung
propor uma teoria da libido diferente da de Freud não é tratado como uma tentativa
70
Eis o trecho da carta de Freud (apud McGuire, 1993) no qual associa as reformulações teóricas de
Adler com sua “paranóia”: “Com Adler tudo vai de mal a pior. Se o senhor o compara a Bleuler, em
mim o que ele desperta é uma lembrança com Fliess, mas uma oitava abaixo. A mesma paranóia. No
segundo número da Zentralblatt, que também traz seu excelente texto sobre tagarelice escolar, o
senhor encontrará uma crítica dele à sua pequena Anna. Leia-a com cuidado, pois de outro modo é
difícil descobrir o que pretende. A apresentação de Adler sofre de uma imprecisão paranóide. (...) O
mais importante, e o que mais me alarma, é que ele subestima o impulso sexual, dando margem a
que os adversários logo se ponham a falar de um psicanalista tarimbado cujas conclusões diferem
radicalmente das nossas” (pp.388-389).
126
legítima de repensar o dinamismo da vida psíquica, mas como um sintoma
neurótico. Da perspectiva freudiana, Jung resiste à psicanálise.
3.2.2 Resistência em análise, resistências à psicanálise
O conceito de resistência é uma pedra fundamental do edifício teórico da
psicanálise. Freud ao longo de sua obra o abordou de mais de um ângulo. Para os
propósitos deste trabalho, é suficiente destacar suas duas acepções mais
freqüentes. Em primeiro lugar, há a resistência em análise. Trata-se de qualquer ato
ou palavra que impeça o paciente de ter acesso ao inconsciente. “Tudo o que
perturba a continuação do trabalho [analítico] é uma resistência”, disse Freud (apud
Laplanche & Pontalis, 1970, p.598) em 1900. A resistência corresponderia a uma
função defensiva do ego diante das representações desprazerosas do recalcado
(inconsciente). Assim, em termos práticos, não basta que o analista comunique ao
paciente os desejos que este recalcou e não sabe. É necessário, antes de mais
nada, aplacar suas resistências para que a interpretação seja aceita e surta efeito.
A segunda acepção concerne não à prática analítica, mas à psicanálise como
teoria. Freud (cf. 1976b) observou que o ser humano tem tendência a rejeitar o novo.
Toda coisa ou acontecimento novo é uma fonte potencial de desprazer psíquico na
medida em que deixa o sujeito numa condição de incerteza. A ciência, por sua vez,
costuma assumir uma posição cética diante de novas idéias porque é de sua
natureza apoiar-se em dados minuciosamente examinados. Entretanto, às vezes tal
ceticismo não passa de um disfarce para o temor primitivo da novidade. A história da
ciência, continua Freud, está repleta de exemplos de resistências a novas teorias
que depois se mostraram injustificadas. A ferocidade com que a psicanálise foi
recebida sugere que “outras resistências além das puramente intelectuais foram
excitadas, e despertaram poderosas forças emocionais” (id., ibid., p.270). Jung, em
seu período de defensor das idéias psicanalíticas, em 1910, defendeu este mesmo
argumento. Escreveu que a dificuldade dos críticos de Freud de compreender A
interpretação dos sonhos é muito mais uma questão de “resistências pessoais
subjetivas” (Jung, 1998, p.66) do que propriamente uma questão intelectual.
De acordo com Freud, o principal fator de resistência à psicanálise residiria no
golpe psicológico que esta teoria desfechou sobre o narcisismo humano. Definiu
então “narcisismo” como a crença da criança e dos primitivos na onipotência de seu
127
pensamento. O primeiro golpe ao narcisismo da humanidade fora desferido por
Copérnico ao retirar a terra do centro do cosmo; o segundo, por Darwin, ao
descrever o homem como um animal dentre outros, produto das leis naturais da
evolução. O terceiro golpe, finalmente, coube à psicanálise, que teria abalado o
narcisismo da humanidade ao demonstrar a existência de uma região psíquica
inconsciente fora do controle do ego e uma vida pulsional impossível de ser
completamente domada
71
. Em outras palavras, “o ego não é o senhor da sua própria
casa” (id., 1976a, p.178). Assim, conclui, a maior parte dos detratores da psicanálise
age movido não por razões intelectuais mas por “dificuldades afetivas”, por
“sentimentos feridos”.
Ora, a avaliação de Freud sobre as resistências à psicanálise é de um
engenho brilhante. Permite blindar sua teoria contra qualquer objeção; torna a
psicanálise invulnerável contra qualquer ataque. Afinal, se alguém discorda desta ou
daquela idéia psicanalítica — por mais bem fundamentados que sejam seus
argumentos — restará sempre a suspeita de que se trata de uma pessoa
emocionalmente perturbada, alguém que sofre de “dificuldades afetivas”. E como os
ataques à psicanálise não demonstram senão a existência de resistências,
funcionam como prova da validade da teoria analítica ela própria (cf. Hillman, 1989).
A psicanálise, em sua invulnerabilidade e onipotência, é narcisista. Para Latour
(2004), é também antropocêntrica, porque crê não haver nenhuma relação entre o
mundo e a humanidade, ou seja, nenhuma mediação humana na descrição dos
“fatos” científicos.
A “resistência” de Jung a certas concepções psicanalíticas — a etiologia
exclusivamente sexual das psicopatologias, sobretudo — assim como às
interpretações de Freud sobre seus sonhos pessoais, sugere-nos outras
possibilidades de sentido para o fenômeno da resistência. Não se tratando,
necessariamente, de uma defesa do ego contra representações ou desejos
inconscientes desagradáveis, contra o quê então o paciente resiste? Jung (cf. 1966)
tentou responder inicialmente essa questão, em 1912, quando então esboçava sua
teoria das tipos psicológicos. Observou que diferenças excessivas de temperamento
entre pessoas — analista e paciente, no caso — podem causar resistências
71
Ao afirmar tal coisa, Freud parece “esquecer” a contribuição de Carus, Hartmann e Nietzsche, na
filosofia, assim como a de Charcot e Janet, na psicopatologia, autores que, antes dele, apontaram a
presença de atividade psíquica fora do campo da consciência.
128
desproporcionais. Segundo este raciocínio, as divergências entre as teorias de Adler
e Freud seriam antes de mais nada diferenças de atitude psicológica de seus
autores. Adler seria um introvertido. A introversão significa uma atitude diante do
mundo predominantemente orientada por pressupostos subjetivos. Já Freud seria
um extrovertido. A extroversão se caracteriza por uma atitude predominantemente
orientada pelo objeto externo. Para Jung, nenhum dos dois está absolutamente certo
nem errado. As teorias psicológicas não passam de verdades relativas. É necessário
ao analista saber reconhecer a teoria — adleriana, freudiana, junguiana etc. — mais
adequada ao temperamento de seu paciente.
A resistência assume então o caráter de um importante indicador no processo
terapêutico. Pode não apenas indicar a aproximação do eu (ego) na direção do
recalcado, mas também apontar precisamente onde o analista está se equivocando.
Neste caso, a resistência é uma resposta legítima do paciente. Jung foi quem
primeiro chamou atenção de Freud para o fenômeno da contratransferência, isto é,
para o fato que de o analista também tem complexos, zonas de sombras, pontos
cegos que facilmente podem projetar-se sobre o paciente, prejudicando o processo
terapêutico. Daí ser fundamental a análise do analista, como forma de tentar diminuir
os efeitos nefastos desta inconsciência. Toda vez que se manifestarem resistências
intransponíveis, o analista deve estar preparado para uma autocrítica e indagar-se:
“Onde será que me engano?”, “Que posso estar deixando de perceber em meu
paciente e por quê?”, “Serão meus pressupostos teóricos adequados para ajudar
este paciente que resiste fortemente?” Com efeito, Jung (1988a) comentou:
“O paciente está aí para ser tratado, e não para a verificação de uma
teoria. É que não existe teoria alguma no vasto campo da psicologia
prática que, dependendo do caso, não possa estar radicalmente errada.
Por exemplo, a opinião de que as resistências do paciente são
injustificadas em qualquer circunstância é uma opinião que deve ser
rejeitada. Pois a resistência também pode estar provando que a terapia
está baseada em pressupostos falsos (p.110)”.
A resistência do paciente, descartada a hipótese de um movimento defensivo
do paciente na análise, deve servir para que o analista repense seus métodos e
concepções. Para Jung, o terapeuta aprende muito mais com os fracassos do que
com os sucessos, que tendem apenas a fortalecer seus enganos.
129
3.2.3 Método dialético e recalcitrância
As divergências teóricas e práticas entre Jung e Freud foram-se consolidando
por meio de determinadas formulações metodológicas do psiquiatra suíço. Jung,
desde 1914 (cf. 1981, 1990d), procurou distinguir o seu método sintético-construtivo
do método freudiano, que chamou de analítico-redutivo. Para ele, a psicanálise seria
essencialmente redutiva porque operaria reduzindo processos psíquicos complexos
aos seus elementos fundamentais, em particular aos impulsos sexuais. Seu método
seria, portanto, um método causal: como todo acontecimento psíquico presente de
um paciente é determinado por experiências do passado, a análise deve
necessariamente investigá-las se quiser vencer suas dificuldades atuais.
O trabalho com pacientes psicóticos, porém, mostrou a Jung que a redução à
rígida causalidade não bastava para descrever o funcionamento da psique e tratá-la.
Os sintomas psicóticos, por traz de sua aparente desrazão e absurdo, revelavam
tentativas de adaptação do sujeito ao mundo. Diversamente, aliás, do que
sustentava a ortodoxia psiquiátrica, estes sintomas tinham sentido. Por conseguinte,
a psique é não apenas produto de uma história individual, mas também o movimento
de construção de um futuro. Jung (1990d) então desenvolveu o “método construtivo”
para o trabalho clínico (ver Capítulo 4), que comparou ao “método intuitivo” de
Bergson, com o intuito de “construir uma ponte entre esta psique e o seu futuro”
(p.166).
No artigo “O valor terapêutico da ab-reação”, de 1921, Jung lançou um olhar
novo sobre a relação entre paciente e analista, procurando distinguir o conceito
originalmente freudiano de “transferência” do que chamou de “relação pessoal”
(persönaliche Beziehung). Um ano antes, já havia definido transferência como uma
espécie de projeção do paciente sobre o analista. Por projeção, entenda-se “a
expulsão de um conteúdo subjetivo no objeto” (id., 1990c, p.457). Os conteúdos
projetados, que podem ser tanto positivos quanto negativos, indicam na verdade um
estado de identidade entre sujeito e objeto, logo uma perturbação na sua relação.
No artigo de 1921, Jung acrescentou que a transferência funciona como um
substituto ilusório para uma “relação psicológica real” ou simplesmente uma “relação
pessoal”, porque o paciente, em vez de perceber o analista como ele é, assimila-o a
outras figuras de sua psique. Mas, uma vez que essas projeções sejam
reconhecidas, o paciente passa a buscar no analista “uma relação puramente
130
humana, em que a posição de cada um é respeitada” (id., 1988a, p.130). O analista
deve então estar atento para não invalidar essa forma de relacionamento mais
saudável do paciente. Ele não deve, observou Jung (ibid.), refugiar-se atrás de um
método e “se achar no direito de aborrecer e criticar o paciente sem o menor
escrúpulo” (p.131).
A idéia de um relacionamento pessoal não ilusório entre paciente e analista
aparece desdobrada no artigo “Princípios básicos da prática da psicoterapia”, de
1935, na forma do “método dialético”. Jung (ibid.) designou com esta expressão “a
relação de troca entre dois sistemas psíquicos” (p.2), que devem ser considerados
em pé de igualdade no trabalho analítico. O analista deve ser capaz de colocar de
lado seus pressupostos teóricos se se mostrarem ineficazes; deve ser capaz de
renunciar à sua “autoridade” em prol da singularidade do paciente:
“Em toda e qualquer circunstância são normas supremas de um método
dialético que a individualidade do doente tenha a mesma dignidade e o
mesmo direito de existir que a do médico, e que, por essa razão, todos os
desenvolvimentos do paciente sejam considerados legítimos, conquanto
(sic) não se corrijam por si mesmos” (id., ibid., pp.7-8).
O respeito à individualidade do paciente embutida no método dialético pode
ser comparada à regra metodológica de “seguir os atores” da TAR. Em ambos os
casos o analista (sociólogo ou psicoterapeuta) não sabe de antemão mais que seus
“informantes”. Na psicoterapia, portanto, convém que o analista tenha cautela com o
que pensa e diz. Deve procurar conter-se em “ter idéias sobre um caso” para que o
próprio “caso” se mostre tanto quanto possível. Nas palavras de Jung:
“(...) Quanto mais se sabe de um caso, mais se deve fazer um esforço
heróico de não saber a fim de dar ao paciente uma oportunidade justa.
Tento sempre não saber e não ver. É muito melhor dizer que você é tolo
ou desempenhar um papel aparentemente tolo a fim de dar ao paciente a
oportunidade de apresentar seu próprio material” (id., 1976, p.78).
O procedimento dialético sugere que o analista deve saber não saber ou saber
exercer metodologicamente sua “tolice”. Ora, o analista não apenas não deve ter
pressa em entender, isto é, ser lento como uma ant (formiga), mas deve também ser
parvo como uma “anta”. Daí a atitude de extremo cuidado de Jung de não dar
conselhos ou prescrever condutas aos seus pacientes. Em uma carta datada de
131
1946, observou: “Podemos dizer com bastante certeza ao paciente o que está
acontecendo, mas não podemos indicar-lhe o que ele deve fazer” (id., 2002, p.26).
Ora, como o trabalho analítico não é exatamente pesquisa social, a regra
metodológica de “seguir os atores” não deve ser generalizada. Não convém que o
analista ceda a qualquer capricho do paciente com o propósito de “segui-lo”. Em
Memórias, Jung narrou o episódio de uma senhora da alta aristocracia que
costumava tratar seus empregados a bofetadas, inclusive os médicos. Um dia ela o
procurou para uma consulta. A entrevista correu bem até o momento em que Jung
lhe disse algo que a incomodou profundamente. Furiosa, a nobre dama ameaçou
agredi-lo. Jung (1985a) então se levantou e disse: “‘Pois bem, a senhora é mulher,
pode bater primeiro. Ladies first! Depois será a minha vez’” (p.129). A paciente
desistiu da agressão e comentou que ninguém nunca lhe havia falado daquela
maneira. Jung (ibid.) conclui a narrativa explicando que, depois disso, a terapia
correu muito bem: “Essa doente tinha necessidade de uma reação viril. No caso,
teria sido errado ‘seguir a doente’” (p.129).
Feita a ressalva, o exame breve de um caso clínico pode ser ilustrativo de
como funciona o método dialético. Segue abaixo o resumo do caso de um paciente
neurótico apresentado por Jung nas conferências na Clínica Tavistock, em 1935.
Trata-se de um homem de 40 anos, casado, que ocupava o cargo de diretor de uma
escola pública. Recentemente, começara a sentir um tipo particular de vertigem,
além de palpitação, náusea e astenia. A anamnese revelou que o paciente era filho
de pais camponeses pobres e, ambicioso, ascendera na escala social. No momento,
planejava assumir uma importante cátedra de professor em outra cidade. Jung
passou então à exposição dos sonhos do paciente. Basta dizer que os três sonhos
exibidos, associados ao histórico do paciente, eram todos sugestivos de desastre,
isto é, indicavam que o homem planejava dar um passo mais longo que as próprias
pernas, que sua ambição não estava levando em consideração suas próprias
limitações pessoais.
Jung lhe mostrou, baseado no material oriundo do próprio paciente, que se
ele insistisse naquela atitude acabaria em desgraça. O homem, entretanto,
desconsiderou a advertência, convicto de que seu analista exagerava o problema.
Prosseguiu com seus planos. Mas bastaram três meses, assinalou Jung, para ele
132
“perder seu cargo e entrar pelo cano”
72
. Comentando o desfecho do episódio,
afirmou:
“Não se deve trapacear as pessoas mesmo que seja para o seu bem. Não
quero tirar as pessoas de seus enganos por meio de trapaças. Talvez
tenha sido melhor para aquele homem entrar pelo cano do que ser salvo
por meios errados” (p.96).
O nome “dialética”, que Jung utilizou para designar seu método de trabalho
analítico, poderia fazer-nos pensar que este método visaria à superação das
contradições do paciente por intermédio de alguma espécie de síntese absoluta, nos
moldes da dialética hegeliana. De fato, em 1959, Jung foi questionado numa
correspondência sobre a influência do pensamento de Hegel em sua psicologia.
Respondeu explicando que o seu procedimento dialético é um método prático para
lidar com o inconsciente, que nada tem a ver com a dialética de Hegel, que é um
método intelectual. E acrescentou: “Se me conheço bem, posso dizer que a dialética
de Hegel não exerceu influência nenhuma sobre mim” (id., 2003, p.209). Isto, no
entanto, não o impediu de admitir “uma coincidência notável entre certos pontos da
filosofia de Hegel e minhas descobertas do inconsciente coletivo” (id., 2003, p.210).
O método dialético recoloca sobre novas bases o que seria a autoridade do
analista. Se a análise se resumisse a um simples problema de sugestão, bastaria a
autoridade da posição de analista para exercer uma influência benéfica sobre
paciente, como no caso de certas psicoterapias de apoio em que um bom conselho
é suficiente. Mas desde que é entendida como um processo dialético, a autoridade
do terapeuta é posta em risco. O analista, para que possa afetar o cliente. tem de
deixar-se afetar; só assim poderá “curar”. E deixar-se ser afetar significa estar
preparado para ser tocado em suas feridas, para encarar suas trevas interiores. Em
vez do médico todo-poderoso, infalível e onipotente, Jung (cf. 1988) sugere como
modelo para o papel de analista a imagem mítica do curador-ferido: o terapeuta que
só cura na medida de seu próprio sofrimento
73
.
72
O idioma original deste texto é o inglês. Afinal, trata-se de um conjunto de conferências ministradas
a uma platéia falante de língua inglesa. Jung escreveu alguns textos diretamente neste idioma e não
no alemão, sua língua materna.
73
Uma figura mítica exemplar, nesse sentido, é o centauro Quirão, que foi quem ensinou a Apolo as
artes médicas. Eduardo Vasconcelos (2007), psicólogo e cientista político, discutiu o tema do curador-
ferido no atual contexto da prática em saúde/saúde mental, no artigo “Podemos ser curadores, mas
sempre...também feridos!”.
133
O analista que ignora sua própria inferioridade, que é inconsciente de seus
complexos, tende a ocultá-la sob o manto do poder, do exercício autoritário de sua
função, sobretudo reduzindo o paciente a esquemas teóricos predeterminados. A
resistência deste último pode então atuar como uma defesa produtiva contra a estéril
unilateralidade teórica do analista. Obriga-o a refletir e refazer sua prática inefetiva,
míope, equivocada. Do ponto de vista do procedimento dialético, o paciente não é
mais tratado como um ser passivo, alguém que tão-somente sofre, mas igualmente
como um agente que participa ativamente ao lado do terapeuta no palco analítico.
Nesse sentido, seu papel é equivalente ao de um ator, entendido nos termos da
TAR. Um ator, como já dito, caracteriza-se, entre outras coisas, por sua capacidade
de recalcitrar, isto é, de resistir criativamente à submissão ao outro. Esta inclusão da
recalcitrância como um movimento legítimo do paciente no processo analítico parece
ser distintiva do método dialético.
A recalcitrância, para concluir esta seção, foi emblemática na relação entre
Freud e Jung. Não fosse ela, o analista suíço provavelmente teria repetido
monotonamente as idéias de Freud, não criando nada de novo, como tantos outros
que não souberam resistir.
3.3 O processo de individuação ou a arte de fazer bons vínculos
Resumindo o que até agora foi apresentado sobre as relações psíquicas e
analíticas, podemos afirmar que elas se dividem, segundo um critério pragmático,
entre as que produzem bons e maus efeitos para o indivíduo. As relações
disfuncionais seriam aquelas onde as diferenças inter e intra subjetivas são
anuladas, como nos vínculos identificatórios, nos processos de inflação psíquica, na
massificação e no abuso de poder do analista. As relações “saudáveis”, isto é, os
bons vínculos, são aquelas que asseguram a diferença entre a consciência subjetiva
e os demais objetos, entre o eu e os vários “outros” internos e externos. Nesse
sentido, a resistência do paciente, conforme visto, pode revelar-se um salutar
movimento de recalcitrância.
Um bom vínculo ou boa relação em análise significa que a influência de um
objeto sobre a consciência subjetiva equivale a uma condição de possibilidade para
que o eu vivencie uma atitude diferente da habitual. Dir-se-ia que neste caso o
objeto atua como um mediador. Por conseguinte, os bons vínculos são aqueles que
134
promovem a diferenciação psíquica. Assim, se quisermos falar em saúde ou
inclusive em “normalidade” na psicologia de Jung, esta deve ser buscada no desafio,
renovado a cada dia, de viver junto com o outro (vinculado), mas sendo ao mesmo
tempo diferente (sem domínio). Este processo infindo, enquanto existir vida no
indivíduo, de divergir-com-o-outro é o que Jung chamou de “individuação”
(Individuation), um dos principais conceitos de sua psicologia.
A idéia de um processo de individuação aparece inicialmente esboçada na
obra de Jung em dois textos datados de 1916: Septem sermones ad mortuos (“Sete
sermões aos mortos”) e “A estrutura do inconsciente”. Sua origem, contudo, é
anterior, podendo ser apontada em diferentes momentos da história da filosofia. No
período medieval, Santo Tomás de Aquino falou em um principium individuationis
(“princípio de individuação”) ao referir-se à determinação da matéria como esta
matéria; por exemplo, um homem é este homem delimitado por um corpo específico.
No século XIX, Schopenhauer, inspirando-se na escolástica, formulou um argumento
semelhante, mas trocando “matéria” pela idéia de “vontade”. Jung estudara ambos
74
.
Os “Sete sermões aos mortos”
75
é uma concisa monografia publicada com
pequena tiragem. O texto jamais foi posto à venda, sendo distribuído apenas a
familiares e amigos íntimos do autor
76
. Somente no seu último ano de vida, Jung
concordou, não sem hesitação, que fosse incluído como apêndice em Memórias,
sonhos e reflexões. Com efeito, “Sete sermões” lhe serviu como uma espécie de
laboratório para muitas idéias, além do próprio conceito de individuação, que mais
tarde veio a desenvolver como, por exemplo, a possibilidade do mal em Deus e o
raciocínio por paradoxos. Jung escreveu o texto no estilo de um manuscrito gnóstico,
sem dúvida um reflexo da forte influência do estudo do gnosticismo a que vinha se
dedicando naqueles anos. De fato, assinou-o com o pseudônimo de “Basílides”,
escritor gnóstico do início da era Cristã, acusado de heresia. Muitos anos depois de
ter escrito os “Sete sermões”, Jung (apud Bair, 2003) se referiu a ele como um
“material cru” (p.295) e “pecado que cometi em minha juventude” (Jung, 1988b,
p.615), embora sempre lhe tenha atribuído valor.
74
Outra provável influência sobre Jung teria sido a idéia de uma “tendência à individualização”
proposta por Maria Moltzer, no Clube Psicológico, em Zurique, no ano de 1916 (cf. Shamdasani,
2003).
75
Sobre a interessante análise que Gregory Bateson (2002) fez deste texto, ver “Form, Substance
and Difference”, em Steps to an Ecology of Mind.
76
Nesse aspecto, Bair (cf. 2003) menciona Emma Jung, Alphonse Maeder, Herman Sigg, Adolf e Tina
Keller, Toni Wolf e, provavelmente, Hermann Hesse.
135
Os “Sete sermões” começam com Basílides contando que foi visitado pelos
mortos vindos de Jerusalém. Eles lhe fazem perguntas, o gnóstico replica. Cada
resposta corresponde a um dos sermões que constituem o folheto. No primeiro
sermão, Jung descreve o pleroma como o “nada” que é ao mesmo tempo
“plenitude”. Já a criatura, apesar de fazer parte do pleroma, tem como essência a
individualidade, a tendência de diferenciar-se do pleroma. A esta propriedade
exclusiva da criatura, Jung (1985a) denomina principium individuationis:
“Qual o prejuízo, perguntaríeis, em não se distinguir a si-mesmo? Se não
nos distinguirmos, ultrapassando a nossa própria natureza, nos afastamos
da criatura. Caímos na falta de individualidade, que é outra qualidade do
pleroma. Caímos no próprio pleroma e deixamos de ser criaturas. Nos
entregamos à dissolução no nada. O que resulta na morte da criatura.
Morremos, portanto, na medida em que não nos distinguimos. Daí o
empenho natural da criatura para adquirir individualidade, para lutar contra
a igualdade inicial, perigosa. A isso dá-se o nome de PRINCIPIUM
INDIVIDUATIONIS. Esse princípio é a essência da criatura. Com isso
podeis ver por que a falta de individualidade e não-distinção constituem
grande risco para a criatura” (p.334).
Pleroma é o modo “gnóstico” de Jung (1990a) referir-se à psique coletiva
(inconsciente coletivo e consciência coletiva/persona) em geral ou ao inconsciente
coletivo
77
, em particular. O principium individuationis sugere um impulso natural no
homem no sentido de distinguir-se deste coletivo. Negar nossa tendência à
diferenciação e permanecer confundido no pleroma implica grave prejuízo à criatura,
até mesmo sua morte. Como vimos, trata-se do perigo da psicose e da massificação.
Nos “Sete sermões”, Jung descreveu o pleroma como formado de qualidades
antônimas: Efetivo e Inefetivo; Plenitude e Vácuo; Vivos e Mortos; Diferença e
Igualdade; Luz e Trevas; Quente e Frio; Força e Matéria; Tempo e Espaço; Bem e o
Mal; Beleza e Fealdade; Uno e Múltiplo etc. Contudo, por estarem contrabalançadas,
essas qualidades se anulam. Ora, como fazemos parte do pleroma, também
possuímos tais antinomias. Mas porque nossa natureza é a individualidade, cabe a
nós distingui-las e separá-las umas das outras. Pode-se perceber na descrição da
criatura, enquanto formada de antinomias, uma antecipação da concepção do si-
mesmo como o arquétipo da totalidade psíquica.
77
Em “Arquétipos do inconsciente coletivo”, texto originalmente de 1934, Jung (1990a) usa em
determinado momento “inconsciente coletivo” e “pleroma” como sinônimos.
136
Em “A estrutura do inconsciente”, Jung expressou estas mesmas idéias, só
que com uma terminologia mais de acordo com a psicologia do século XX. Neste
texto, definiu o indivíduo como o somatório de qualidades coletivas provenientes da
“estrutura social” via persona, de um lado, e das “imagos objetais
78
” do inconsciente
coletivo, de outro, e ainda de um “princípio de singularidade e distinção” (id., 1966.,
p.303). A este princípio deu o nome de “individualidade” ou “individuação”.
Dinamicamente, a individualidade contrapõe-se aos elementos da psique coletiva:
“Individualidade é o princípio de resistência ao funcionamento coletivo. Torna
possível e, caso necessário, compele a diferenciação e separação do coletivo” (id.,
ibid., p.303). Nesses termos, a individualidade ou individuação se configura como a
recalcitrância da TAR, uma resistência criativa. Um indivíduo super adaptado
socialmente, observou Jung, tende a ser um individuo “des-individualizado”.
Se parássemos a descrição da idéia de individuação neste ponto poder-se-ia
sem problemas afirmar que Jung está operando teoricamente com uma divisão
tipicamente moderna, a oposição indivíduo versus coletividade, o que, aliás, já fizera
nos “Sete sermões”. Porém, no addendum ao texto de “A estrutura do inconsciente”,
já não parece totalmente satisfeito com esta concepção. Afirmou ali que a
individualidade não é necessariamente oposta ao coletivo, mas que deve ser
entendida como “aquilo que é único na combinação dos elementos coletivos da
persona e suas manifestações” (id., ibid.p.303). O processo de individuação, como
um movimento de relação diferencial entre os conteúdos da consciência subjetiva e
os conteúdos da psique coletiva, configura-se a um só tempo individual e coletivo.
A publicação de Tipos psicológicos, em 1920, mostrou o amadurecimento da
idéia de individuação na psicologia de Jung, ao sublinhar a dimensão relacional
apontada acima, de modo que se defizesse qualquer confusão com a noção de
individualismo e ao mesmo tempo servir de contraponto à tendência teórica
nomotética embutida na teoria dos tipos psicológicos. Individuação, escreveu Jung
(1900c): “(...) é o processo pelo qual seres individuais são formados e diferenciados;
em particular, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como um ser distinto da
psicologia coletiva, geral. Individuação, portanto, é um processo de diferenciação
(p.448). Esta tendência à diferenciação do coletivo não é uma escolha particular de
cada pessoa, um capricho individual, mas uma “necessidade natural” do ser humano
78
“Imago objetal” significa arquétipo. Em 1916, recorde-se, Jung ainda não empregava o termo
“arquétipo” para referir-se aos conteúdos do inconsciente coletivo.
137
que, se desrespeitada, traz sérios prejuízos à “atividade vital do individuo” (id., ibid.,
p.448).
A psicologia de Jung sustenta, assim como a sociologia de Tarde, que “existir
é diferir”. Somos iguais na diferença. Diferença que para ambos Tarde e Jung é
elevada a estatuto de princípio ontológico. Como havia dito o sociólogo francês, as
coisas são mais comuns na sua diferença. Sem dúvida um paradoxo... De qualquer
modo, convém ressaltar que a individuação nunca deve ser confundida com
“individualismo”, posto que se trata de um processo relacional e não de isolamento
do mundo. Individuar-se significa diferenciar-se com o outro: “Como o indivíduo não
é apenas um ser separado, único, mas por sua própria existência pressupõe um
relacionamento coletivo, segue-se que o processo de individuação deve conduzir a
relacionamentos coletivos mais amplos e mais intensos e não ao isolamento” (id.,
ibid., p.448). Não seria despropositado acrescentar que a individuação é um efeito
da rede de relações ou vínculos em que o individuo se vê envolvido. Quanto mais
vinculados somos, mais oportunidades temos de diferir, de individuar.
A idéia de individuação significou uma modificação nas concepções de saúde
e “normalidade” que até então Jung subscrevia. Examinando-se textos da fase
psiquiátrica de Jung, percebe-se uma aproximação da noção de saúde ou
“normalidade” psíquica com a de adaptação externa (ao ambiente ou grupo social).
Isto parece perfeitamente plausível se levarmos em consideração que a maior parte
dos pacientes do Burghölzli provinha de classes sociais inferiores, para quem
salário, emprego e moradia são questões inelutáveis. Diferentemente, os pacientes
neuróticos que Jung passou a atender, principalmente após a Primeira Guerra, não
traziam esta demanda de “adaptação”. Tratava-se na sua grande maioria de
pessoas de classes abastadas e bem sucedidas profissionalmente. Em Tipos
psicológicos, a adaptação surge como uma precondição para a individuação. Mas,
se o individuo é nivelado à norma coletiva, ou seja, conformado à sua psicologia de
grupo, a adaptação significaria um dano à diferenciação imanente ao processo de
individuação e, portanto, ao “equilíbrio” psíquico do indivíduo. Em 1928, em “A
relações entre o eu e o inconsciente”, Jung chega a inverter a proposição de Tipos
psicológicos. Dessa vez, é a individuação que parece ser a precondição para a
adaptação, isto é, “um bom desempenho social”, e não o contrário:
138
“Individuação significa precisamente a melhor e mais completa realização
das qualidades coletivas do ser humano, visto que a consideração
adequada da peculiaridade do indivíduo é mais conducente a um melhor
desempenho social do que quando a peculiaridade é negligenciada ou
reprimida. (id., 1966, p.173)
Em suma, como um moderno que se preze, Jung parte da divisão entre
indivíduo e coletividade, para a seguir desfazê-la na complexidade irredutível das
relações hibridizadoras que tornam impossível a própria divisão em si. O processo
de individuação, diferentemente da psicose ou da massificação, não aborta a
individualidade subjetiva. Porém, diversamente da unilateralidade neurótica, não
implica a alienação ou afastamento do coletivo, seja ele o inconsciente coletivo ou a
consciência coletiva. Individuação é a arte de vincular-se sem domínio. Arte de
emaranhar-se na rede preservando a distinção deste ator em particular. Na
individuação, nem a psique individual nem a psique coletiva predominam, daí Jung
referir-se a ela como um processo de integração, de produção de uma “totalidade
em devir”
79
, porque provisória, ou “síntese”. No nível subjetivo, significa que as
várias partes da psique se diferenciam, mas mantêm-se conectadas. No nível
objetivo, significa que o indivíduo, sem identificar-se com a massa, faz vínculo com
ela.
No próximo capítulo, examinar-se-á como a análise pode contribuir para a
individuação. Nesse sentido, a questão que se levanta é: como as diferenças (intra e
interpsíquicas) identificadas por meio do dispositivo analítico podem conviver juntas
formando uma totalidade funcional, um “bom mundo comum anímico”, um “coletivo
psíquico”?
79
Jung raramente usava o termo alemão Totalität, que “sugere ou representa um todo sem restos
nem exceções”, conforme explicou C. Gaillard (2003, p.92). Em vez disso, escreve Ganzheit,
Ganzwerdung ou ganzwerden, que indicam uma “completude em curso”. Opõe explicitamente o termo
Volkommenheit, que sugere “perfeição”, à palavra Vollständgkeit, que se refere a um “conjunto-em-
via-de-ser”.
139
Capítulo 4 – O laboratório analítico
“What is now proved was once only imagin’d”
80
.
— William Blake
4.1 Novos caminhos da psicologia
Este quarto e último capítulo vai concentrar-se em algumas questões
metodológicas fundamentais para o entendimento da prática da psicoterapia,
segundo a psicologia analítica de Jung. Desse modo, pretende-se mostrar que a
clínica junguiana pode ser considerada compatível, em determinados aspectos, com
a orientação metodológica da TAR. Isto, aliás, já foi parcialmente assinalado no
capítulo anterior, quando se descreveu a operação de substituição de objetos
canalizadores de libido e o método dialético. Agora veremos que as tarefas de
“desdobrar e compor” o social propostas por Latour (ver Introdução) encontram um
equivalente no método psicoterapêutico da “imaginação ativa”. Trata-se de um
método de promoção do “autoconhecimento” ou de transformação da personalidade,
que visa exatamente a “desdobrar e compor” o psíquico. O consultório do analista,
desse prisma, torna-se um lugar de experimentação com as imagens e os afetos
que, querendo ou não, atravessam-nos. O consultório como um “laboratório
analítico”.
A particularidade do autoconhecimento promovido pela imaginação ativa, vale
esclarecer, é a de que este trata do conhecimento do “outro” que em mim atua. O
método de Jung se revela assim uma prática “de-personalizadora” ou
“despsicologizante”, se preferimos o termo de Latour, já que destitui o eu do papel
de senhor da psique. Com efeito, a imaginação ativa é uma técnica específica dentro
de um método mais amplo, denominado por Jung “método construtivo (ou sintético).
80
“O que agora está provado foi uma vez apenas imaginado”.
140
Em muitos aspectos este método se apresenta compatível com a influenciologia de
Nathan, como se pretende mostrar mais adiante.
Outro ponto de contato metodológico entre a psicologia analítica e a TAR — o
mesmo valendo para a influenciologia de Nathan — é o pragmatismo adotado e
desenvolvido por William James. O trabalho com as imagens implícito na imaginação
ativa é justificável, como Jung mesmo apontou, se pensado a partir de argumentos
pragmáticos. Isto significa que imaginar ativamente, ou seja, observar
cuidadosamente as imagens que aparecem na psique, para depois colocar-se em
interação com elas, é um procedimento terapeuticamente eficaz.
O método da imaginação ativa tem uma tríplice origem, que convém
observarmos: a insatisfação de Jung com a metodologia psicológica, psiquiátrica e
psicanalítica, a tradição introspeccionista do pensamento ocidental e a experiência
pessoal do psiquiatra suíço com o inconsciente. Comecemos pelo primeiro ponto.
Em 1912, Jung já havia cortado sua ligação com o Hospital Burghölzli, passando a
dedicar-se ao trabalho com pacientes em consultório privado. Neste ano, conforme
apontado no capítulo anterior, aconteceu o rompimento pessoal entre ele e Freud,
motivado, em parte, pelas suas diferenças teóricas. Jung, entretanto, só iria
desvincular-se oficialmente do posto de presidente da Associação Psicanalítica
Internacional dois anos mais tarde. O que ele não sabia é que, com a criação do
“comitê secreto”, em agosto de 1912, encontrava-se completamente isolado não só
de Freud, mas igualmente de seus principais acólitos. De qualquer modo, para todos
os efeitos, àquela época Jung ainda pertencia ao movimento psicanalítico.
Nesta conjuntura, Jung (cf. 1966) publicou em uma revista literária suíça um
artigo intitulado “Novos caminhos na psicologia”. O texto começa apontando a
origem filosófica da psicologia. O autor logo passa a descrever a mudança de
orientação que esta disciplina sofreu rumo à objetividade científica, com as
pesquisas experimentais psicofisiológicas pioneiras de Fechner e Wundt. Graças a
eles, a psicologia se tornou então um conhecimento essencialmente acadêmico.
Com a entrada em cena de psiquiatras como Kraepelin e Aschaffenburg, procurou-
se colocar a psicologia experimental a serviço do tratamento de doenças mentais.
Mas, prossegue Jung, essa tentativa bem intencionada fracassou, já que a
psicologia experimental não conseguiu dar conta dos processos psicológicos mais
importantes. Em seguida, faz uma recomendação àquele que deseja conhecer a
psique humana para poder tratá-la:
141
“(...) seria mais recomendado abandonar a ciência exata [e] pôr de lado
sua beca acadêmica, dar adeus a seu estudo e vagar com coração
humano através do mundo. Lá nos horrores das prisões, asilos e hospitais
de loucos, insípidos pubs suburbanos, nos bordéis e inferninhos de
jogatina, nos salões dos grã-finos, na Bolsa de Valores, encontros de
socialistas, nas igrejas, reuniões de predicantes e seitas de êxtase,
através do amor e ódio, através da experiência da paixão de todas as
formas em seu próprio corpo, ele colheria suprimentos mais ricos de
conhecimento do que os volumosos manuais poderiam dar-lhe e saberá
como tratar os doentes com conhecimento real da alma humana” (Jung,
1966, pp.246-247).
Constatada a limitação da ciência exata para a psicologia prática, Jung
propõe a psicanálise freudiana como o método mais adequado para o tratamento
das doenças mentais. O texto prossegue narrando o desenvolvimento do método
psicanalítico desde sua pré-história, com Charcot e Breuer, até sua forma atual em
Freud. Em suma, o artigo apresenta um Jung bastante fiel às concepções
psicanalíticas
81
.
Entretanto, dois outros textos, também de 1912, exibem sua insatisfação com
a psicanálise, na forma de elaborações teóricas e metodológicas heterodoxas. Jung
parecia estar buscando “novos caminhos” para a sua psicologia, sinalizando que não
se conformava mais, não somente com a rígida metodologia dos experimentos de
associação de palavras, mas tampouco com a redução freudiana da psique a
impulsos sexuais. O primeiro destes textos, Metamorfoses e símbolos da libido, foi
discutido no Capítulo 2. O segundo, “Tentativa de apresentação da teoria
psicanalítica”, originalmente um conjunto de nove conferências proferidas na
Universidade Fordham, nos Estados Unidos, exibe várias reformulações das
concepções freudianas até então estabelecidas. Contudo, a novidade mais
importante introduzida por Jung, em relação à temática do presente trabalho, é sua
adoção explícita da “regra pragmática” de William James. De algum modo, estava
vislumbrando ali um novo caminho (método) a ser seguido pela futura psicologia
analítica.
81
Uma novidade introduzida por Jung em relação às idéias freudianas, é a sua descrição do
inconsciente como constituído não apenas de reminiscências infantis recalcadas, mas também de
“memórias raciais” (ver Capítulo 2).
142
4.2 Jung, o pragmatismo de William James e das Wirksame
Jung conheceu pessoalmente William James. Encontrou-se com ele duas
vezes, durante não mais que uma hora, em sua primeira visita aos Estados Unidos,
em 1909
82
. Se o contato pessoal foi breve, o mesmo não se pode dizer do alcance
das idéias de James sobre Jung. Segundo Shamdasani (cf. 2003), o pragmatismo de
James constitui uma parte crítica da metodologia junguiana
83
. O próprio Jung, aliás,
distinguiu na visão psicológica e na filosofia pragmática do filósofo americano uma
forte influência sobre a psicologia analítica (cf. Jung, 1981).
No prefácio à primeira edição de “Tentativa de apresentação da teoria
psicanalítica”, Jung explica que suas diferenças teóricas em relação a Freud,
exibidas no texto, não devem ser tomadas como “cisão”, “apostasia” ou “cisma”,
mas, sim, como resultantes de sua experiência clínica, que lhe impôs fatos novos.
Jung (1998) prossegue dizendo que, em sua prática, adotou “como diretriz a regra
pragmática de William James”:
“Você deve extrair o valor prático de cada palavra e colocá-lo em ação
dentro da corrente de sua experiência. Isto parece menos, então, uma
solução do que um programa de mais trabalho e mais, sobretudo, uma
indicação dos meios pelos quais se podem mudar realidades existentes.
As teorias tornam-se, portanto, instrumentos e não respostas a enigmas,
em que possamos nos apoiar. Não nos detemos nelas. Nós avançamos e,
por vezes, mudamos a natureza com sua ajuda” (James apud Jung, 1998,
p.98).
Apesar do comentário favorável, a posição de Jung face ao pragmatismo de
James foi, como em outras áreas do pensamento filosófico, ambivalente. Com efeito,
pouco tempo depois da publicação do texto supracitado, Jung já não parecia tão
entusiasmado com o método pragmático. Entre os anos 1914 e 1916, ele e o
analista suíço Hans Schmid tiveram uma intensa troca de correspondência em torno
82
Cerca de 50 anos mais tarde, Jung (2003) comentou em carta o encontro: “[William James] era
uma personalidade distinta e a conversa com ele foi sumamente agradável. Foi muito espontâneo,
sem afetação e pomposidade, e respondeu às minhas perguntas e objeções de igual para igual.
Infelizmente já estava doente e não foi possível exigir muito dele. De qualquer forma, foi o único
espírito ilustre, além Th. Flournoy, com o qual pude manter uma conversação descomplicada. Cultuo,
pois, sua memória e sempre que possível me lembrarei do exemplo que ele me deu” (p.164).
83
A analista junguiana Marilyn Nagy não compartilha desta interpretação. Para ela, “a doutrina de
Jung não é hedonista nem pragmática” (Nagy, 2003, p.31). A fim de sustentar seu argumento, cita
uma passagem de Tipos psicológicos onde o psiquiatra suíço é critico do método pragmático. Parece-
me que, em sua consideração filosófica da psicologia de Jung, Nagy não atentou para textos como “A
técnica de diferenciação entre o eu e as figuras do inconsciente”, do livro Two Essays on Analytical
Psychology, e “Os objetivos da psicoterapia”, onde a abordagem de Jung é claramente pragmatista.
143
do tema dos tipos psicológicos. A certa altura da discussão, Jung declara-se um
racionalista, “uma espécie de pessoa que precisa ter uma concepção a priori antes
que possa absorver-se em qualquer coisa” (Jung apud Bair, 2003, p.279). Embora
afirme “uma admiração irrestrita por (...) William James”, Jung pondera que o
pragmatismo lhe causa um forte “sentimento de desolação” (id., ibid., p.279). Esta
mesma crítica vai reaparecer de modo mais elaborado no livro Tipos psicológicos,
em 1920.
Jung (cf. 1990c) dedicou em Tipos psicológicos todo um capítulo a analisar a
posição filosófica de James quanto ao problema dos tipos na filosofia moderna.
Elogiou o fato de James ter destacado a diferença de temperamento na elaboração
do pensamento filosófico. De fato, Jung deve primeiramente a ele a idéia de que a
“equação pessoal” é um dado subjetivo insuperável na formulação de qualquer
teoria. Contudo, demonstrou reservas à solução pragmática proposta pelo filósofo
americano. O pragmatismo, observou, “restringe o valor de ‘verdade’ à sua eficácia e
utilidade práticas, sem levar em consideração se ele pode ou não ser contestado de
algum outro ponto de vista [itálicos meus]” (id., ibid., pp.319-320). O método
pragmático é uma solução parcial, um substituto, enquanto “outras fontes não forem
descobertas”. Mas exatamente por desconsiderar outras fontes na investigação da
verdade, este método se mostra insatisfatório. Jung (ibid.) comenta: “(...) embora
não possa ser dispensado, o pragmatismo pressupõe uma resignação demasiada e
quase inevitavelmente conduz a um ressecamento da criatividade” (p.321). A
solução então para o conflito dos opostos referente aos tipos heterogêneos deve ser
buscada em outro lugar, isto é, no “ato criativo”, que “assimila os opostos como
elementos necessários de coordenação” (id., ibid., p.321).
Com o decorrer dos anos, porém, Jung parece ter novamente reavaliado o
valor do pragmatismo. Alguns textos posteriores a Tipos psicológicos parecem
confirmar esta hipótese. Em “Os objetivos da psicoterapia”, de 1929, Jung adotou o
método pragmático como eixo de conduta terapêutica, embora em nenhum momento
mencione os nomes “pragmatismo” ou “William James”. Descreveu então o campo
da psicologia aplicada como fragmentado em uma “pluralidade de opiniões
aparentemente contraditórias” (id., 1988a, p.36). Como exemplo desta diversidade,
cita os pontos de vista de Freud e Adler:
144
“Seria um erro imperdoável menosprezar a verdade contida nas
concepções tanto de Freud como de Adler, mas seria igualmente
imperdoável escolher uma delas como a única verdade. Ambas essas
verdades correspondem a realidades psíquicas. Existem, efetivamente,
casos que são mais bem descritos e se explicam melhor por uma, e
outros, pela outra dessas teorias” (id., ibid., p.35).
Diante do teoricamente indecidível, não resta ao analista senão aplicar o remédio
pragmático, ou seja, escolher aquela teoria que atue de modo mais eficaz no
problema em questão.
A adoção do método pragmático se torna ainda mais flagrante quanto Jung
discute a “neurose contemporânea generalizada”. Jung cunhou esta expressão para
designar a psicopatologia de pacientes que escapavam às classificações
nosográficas habituais. Sua doença é “a falta de sentido e conteúdo de suas vidas”
(id., ibid., p.39). Freqüentemente tais pessoas têm seus recursos conscientes de
ação esgotados. Nestes casos, disse Jung, o inconsciente costuma reagir a este
estado de estagnação. Convém então examinar os sonhos destes pacientes, não
porque se trate de teimosia ou porque são misteriosos, mas por que os sonhos “dão
ensejo à imaginação”. Jung (ibid.) percebeu em sua experiência clínica que “quase
sempre dá bons resultados fazer uma meditação verdadeira e profunda sobre o
sonho” (p.40). Jung constatou, por outro lado, que os resultados deste procedimento
não são cientificamente comprováveis. Assim, o que lhe interessa é o efeito
pragmático desta ação: “O único critério que posso admitir, portanto, é que o meu
esforço seja eficaz” (id., ibid., p.40). Deste modo, acredita que entender o porquê de
sua eficácia é um “hobby cientifico”, que deve ser deixado para as horas de lazer do
analista.
No texto, Jung repete várias vezes o argumento pragmático em frases como:
“(...) o único critério é o efeito estimulante eficaz”, “Vejo apenas a (...) eficácia [do
sonho] sobre o paciente” (id., ibid., p.41), “(...) o que é preciso fazer é procurar, junto
com o paciente, o fator eficaz — quase ia dizendo, a coisa verdadeira” (id., ibid.,
p.42) e finalmente: “A alma, provavelmente, não se importa com as nossas
categorias de realidade. Parece que para ela é real tudo o que antes de mais nada é
eficaz” (id., ibid., p.49). Nestas duas últimas passagens, Jung faz, no texto original
em alemão, um jogo de palavras reforçador da concepção pragmática entre das
Wirksame (“fator eficaz”) ou wirkt (“fazer efeito”) e das Wirkliche (o real), que no
entanto se perdeu quando traduzido para o português.
145
No capítulo derradeiro de Memórias, intitulado “Últimos pensamentos”, e que
é também um dos últimos trabalhos que escreveu, Jung redefine os arquétipos com
uma argumentação pragmática: “(...) na medida em que os arquétipos se revelam
eficazes [wirksam], são para mim efetivos [wirklich], se bem que eu não saiba em
que consistem realmente. É verdade que isso é válido não só em relação a eles,
mas à natureza mesma da psique” (p.303). Quer dizer, a psique como um todo e os
arquétipos em particular são reais porque agem efetivamente sobre o indivíduo.
4.3 A introspecção re-imaginada e o “caso Jung”
Jung buscou elaborar um método psicoterapêutico, denominado imaginação
ativa, voltado para a auto-observação dos fatores atuantes sobre a psique. Na
medida em que este método está necessariamente relacionado com o problema do
autoconhecimento, pode ser considerado como tributário da tradição
introspeccionista ocidental. Por introspecção, entenda-se o olhar para própria mente
e a descrição do que foi observado (cf. James, 1952). De acordo com Hillman (cf.
1996), o autoconhecimento via introspecção surge originalmente na cultura ocidental
por intermédio do mito de Édipo e da filosofia de Sócrates, que o resumiu com o
motto délfico “conhece-te a ti mesmo”.
A busca pelo autoconhecimento, iniciada com os gregos, varou os séculos.
No período de transição da Antiguidade para a Idade Média, Santo Agostinho
associou o platonismo à emergente doutrina cristã, no seu esforço para o
conhecimento da alma. A introspecção assumia então a roupagem eclesiástica. Na
era moderna, o método de Descartes de análise da subjetividade deu continuidade,
em certa medida, ao exame agostiniano da interioridade. O problema do
autoconhecimento foi também expresso por meio de personagens literárias: primeiro
o Hamlet de Shakespeare, depois o Fausto de Goethe. A fenomenologia de
Husserl, desenvolvida no final do século XIX, foi mais um importante avatar do
exame da subjetividade.
As últimas décadas do século XIX foram também o período em que a
psicologia moderna nascente definiu como seu objeto de estudo a experiência
consciente. O fato de que as pessoas “se sentem pensando e que distinguem o
estado mental como uma atividade ou paixão interior (...) [é] (...) o mais fundamental
de todos os postulados da Psicologia”, escreveu William James (1952, p.121), em
146
The Principles of Psychology, um dos textos fundadores da nova ciência da psique.
Wilhelm Wundt em Leipzig, Franz Brentano e Oswald Külpe em Würzburg, e o
próprio James em Harvard adotam uma forma de introspecção controlada como
método de estudo das percepções, sensações, imagens e associações conscientes
(cf. Schultz & Schultz, 2005).
De acordo com Hillman (cf. 1996), o problema com a introspecção utilizada
pelos pioneiros da psicologia moderna é que ela não consegue ir além da mente
consciente
84
. A introspecção permanece confinada no ego cogito cartesiano e na
correlata crença na unidade da experiência psíquica, mesmo quando descreve as
sutis mudanças de tonalidade da consciência. Contrariamente a esta modalidade de
subjetivismo, os escritores não se cansam de expressar surpresa diante da
autonomia que seus personagens adquirem durante a produção de suas obras. O
que parecia inicialmente a criação voluntária de um autor — os personagens —
demonstra ter “vida própria”, independente das intenções daquele que acredita tê-los
criado. Os escritos de Fernando Pessoa são exemplares nesse aspecto. Atente-se
aos seguintes versos: “Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela/ E oculta mão
colora alguém em mim” (Pessoa, 2006, p.127). E mais estes: “Cada meu sonho ou
desejo/ É do que nasce e não meu” (id., ibid., p.685). Nestes dois exemplos, pode-se
observar que o poeta reconhece o caráter involuntário das figuras de sua
imaginação, descartando assim a idéia de um controle absoluto do autor sobre sua
obra.
Para Hillman, achamos que controlamos nossas ações porque cada verbo é
antecedido pelo pronome pessoal “eu”. Ocorre que o trabalho dos verbos é feito por
eles mesmos. Os verbos, não o eu, é que ficcionalizam e imaginam. “O Autor está
morto!”, anunciou Roland Barthes. “Não há sujeito, mas agenciamentos coletivos de
enunciação”, completou Gilles Deleuze
85
(1998, p.38).
Conforme assinalado no Capítulo 1, Jung quando estudante se deparou com
a autonomia dos fenômenos psíquicos em sessões espíritas. Já psiquiatra e membro
da equipe do Burghölzli, voltou-se para os experimentos de associações de palavras
e encontrou ali, novamente, a relativa autonomia dos conteúdos anímicos. As falhas
84
Sobre as várias críticas à introspecção empregada pelos pioneiros da psicologia moderna, ver
James (1952), Dorsch, Häcker & Stapf (2001) e Schultz & Schultz (2005).
85
Segundo Deleuze (1998):“(...) os inconvenientes do Autor vêm do fato de ele constituir um ponto de
partida ou de origem, de formar um sujeito de enunciação do qual dependem todos os enunciados
produzidos, de se fazer reconhecer e identificar em uma ordem de significações dominantes ou de
poderes estabelecidos” (p.37).
147
ocorridas durante as associações sugeriram-lhe a existência de fatores psíquicos
relativamente autônomos, os complexos. Os delírios e as alucinações dos pacientes
psicóticos do hospital foram outra fonte de dados a fortalecer essa hipótese. O
somatório destas experiências foi aos poucos levando Jung a constatar que nem
tudo o que é psíquico sou eu quem produziu.
Contudo, apesar de importantes teoricamente, tais experiências não lhe foram
tão significativas para o reconhecimento da realidade efetiva da psique quanto o foi
vivência pessoal com o inconsciente. Foi o assim chamado “confronto com o
inconsciente”, em meados da segunda década do século XX, que o levou à
formulação de outra espécie de introspecção, o método da imaginação ativa.
Diferentemente da auto-observação adotada pela psicologia experimental desde o
final do século XIX, a imaginação ativa ultrapassa os limites do ego cogito “de-
humanizando” o sujeito, para usar a expressão de Hillman, mediante o
reconhecimento de que nele atuam dinamismos para além de seu controle
voluntário.
A imaginação ativa teve seu “caso padrão”, isto é, um “paciente” que lhe
serviu de teste: o próprio Jung. Com isto, entenda-se que o método não estava
pronto antes de Jung resolver experimentá-lo, mas que foi sendo desenvolvido
durante suas vivências com a própria alma. Ao final de 1912, a posição de Jung
dentro do movimento psicanalítico era crítica. Sentido-se isolado e desorientado
quanto ao futuro profissional, viu-se tomado por sonhos angustiantes e visões
perturbadoras incontroláveis (cf. Jung, 1985a, 1989). Pensou seriamente na
possibilidade de estar enlouquecendo. Em outubro de 1913, enquanto viajava de
trem, foi acometido por uma visão assustadora que durou cerca de uma hora. Viu a
Europa, salvo a Suíça, ser submersa por uma onda colossal que, no decorrer da
experiência, foi se transformando em um mar de sangue. Três ou quatro semanas
depois, quando novamente viajava de trem, a visão catastrófica se repetiu. Apenas o
sangue se destacara mais.
Que significaria tudo isto? Sem achar uma resposta adequada, Jung teve
então a idéia de escrever em seqüência as imagens que brotavam em sua mente
(mais tarde relacionou suas visões ao advento da Primeira Guerra Mundial). Um dia,
enquanto redigia as fantasias, ocorreu-lhe a seguinte questão: “Afinal, que é isto que
estou fazendo? Certamente que não é ciência. Mas então que será?” De súbito,
“ouviu” uma voz interior feminina dizer: “Isto é arte”. Jung teve certeza de que aquela
148
voz era a de uma ex-paciente sua. Nos “Protocolos”, os textos que serviram de base
para a redação final de Memórias, identificou a “voz” como pertencendo a Maria
Moltzer (cf. Bair, 2003). Surpreendido com aquela afirmação, porque se tratava de
uma idéia que nunca lhe ocorrera, cogitou que o inconsciente teria se personificado
na figura daquela mulher a fim de encontrar expressão na consciência. De qualquer
modo, discordou veementemente da voz, sustentando que não se tratava de arte em
absoluto. A voz, porém, retornou depois de certo silêncio e insistiu: “Isto é arte”. Ele
continuou a protestar contra aquela avaliação. Disse: “Não, não é arte; pelo
contrário, é natureza” (Jung, 1985a, p.165). Percebendo a importância daquela
experiência, concedeu à “voz” sua própria linguagem para que pudesse expressar
seus argumentos. Ela assim o fez numa longa dissertação. Anos mais tarde,
identificou esta voz feminina interior como uma imagem da anima, isto é, o arquétipo
que representa o inconsciente no homem. Este episódio, ressaltou Jung, foi o início
da técnica de manejo dos conteúdos inconscientes que depois viria a chamar de
imaginação ativa.
Nesta época, fins de 1913, Jung passou a dirigir-se à anima sempre que se
via emocionalmente perturbado. Como atravessava um período especialmente
intranqüilo, decidiu então todas as noites a redigir-lhe cartas:
“Escrevia, por assim dizer, a uma parte de mim mesmo, cujo ponto de
vista era diferente da minha atitude consciente... e recebia para minha
grande surpresa respostas bastante extraordinárias. Tinha a impressão de
ser um paciente em análise junto a um espírito feminino!” (id. ibid., p.165).
A “análise” com a anima lhe possibilitou transformar os afetos e fantasias
então desprovidos de sentido em experiências passíveis de alguma espécie de
significação. Por outro lado, Jung alega que se tivesse aceitado cegamente o
julgamento da voz feminina interior de que suas fantasias eram “arte”, não teria
assumido a responsabilidade ética necessária perante elas, contentando-se em
contemplá-las passivamente. Por conseguinte, concluiu ser imprescindível manter
uma atitude reflexiva diante do inconsciente, caso contrário corre-se o risco da
identificação com seus conteúdos. Em grau demasiado, esta identificação, como se
mostrou no Capítulo 3, arrasta o sujeito para os abismos da psicose.
Em 18 dezembro de 1913, Jung teve um sonho especialmente enigmático.
Sonhou que ele e um jovem selvagem de pele escura, ambos armados de fuzis,
atiravam e matavam Siegfried, o herói mítico germânico. Seis dias antes, ocorreu-lhe
149
uma fantasia onde avistava o cadáver de um jovem louro flutuando sobre uma
correnteza d’água.
Jung continuou desenvolvendo sua técnica pessoal de introspecção. Para
trazer à consciência as fantasias latentes do inconsciente, simulava estar “descendo”
ou “cavando um buraco”. Certa vez, desceu a profundezas que descreveu como
“cósmicas” até surgir uma cratera. Percebeu ali a presença de duas figuras: um
velho de barba branca e uma bela jovem. Segue abaixo a continuação da narrativa
da fantasia, conforme a versão de Memórias:
“Reunindo toda minha coragem, abordei-os como se fossem reais. Escutei
com atenção o que me diziam. O homem idoso declarou que era Elias, e
isto me abalou. Quanto à moça, desconcertou-me ainda mais dizendo que
se chamava Salomé! Era cega. Que estranho casal: Salomé e Elias!”
[itálicos meus] (id., ibid., p.161).
Convém destacar primeiramente na passagem citada a expressão “como se”.
Por meio dela, Jung deixa claro que não atribui nenhuma espécie de realidade física
ou substantiva (Dinglichkeit) aos seres de sua imaginação. Trata-se de figuras de
fantasia que pertencem a uma realidade estritamente psíquica de atuação
(Wirklichkeit)
86
; isto significa afirmar que, pragmaticamente, sua realidade advém da
ação exercida sobre a consciência subjetiva. Vale dizer que se Jung acreditasse
literalmente na existência destas figuras, poderia aí, sim, ser qualificado como
psicótico. Outro aspecto importante, conforme salientou Hillman (cf. 1996), é
constatar que o movimento de entrar em nossa vida ou história psíquica interior nos
remete simultaneamente à nossa história cultural. Os personagens fantásticos de
Jung, Elias e Salomé, são, com efeito, figuras históricas, ancestrais da tradição
ocidental, atuando numa alma individual. Elias foi um dos principais profetas do
Antigo Testamento, famoso pela sua acirrada defesa do culto monoteísta de Yaweh.
Salomé, também oriunda do Antigo Testamento, é tida como um ícone de beleza,
erotismo e maldade no mundo cristão. Jung estava ciente da influência de sua
formação cristã sobre a formação da fantasia, afinal seu pai fora pastor. Mas isto
pouco ajudava a esclarecer o sentido de tais imagens.
Voltando à fantasia, Jung conta que além das duas figuras bíblicas, havia
também na cena uma serpente a fazer-lhes companhia. Sentindo-se mais seguro
com Elias do que com os outros, dirigiu a ele a palavra. Tiveram uma longa
86
Ver Capítulo 1, sobre a diferença entre Dinglichkeit e Wirklichkeit.
150
conversa, que não conseguiu compreender. Nas fantasias seguintes, Elias se
transformou em Filemon, “um pagão que trouxe à superfície uma atmosfera meio-
egípcia, meio-helenística, de tonalidade algo gnóstica” (id., ibid., p.162). Porém, foi
em um sonho que esta figura apareceu a Jung pela primeira vez. O Filemon onírico
era um velho, alado e com chifres de touro. Suas asas eram como as de um martim-
pescador. Carregava um feixe de chaves na mão, sugerindo estar prestes a abrir
uma porta. Perplexo, sem compreender a imagem, Jung pintou-a.
Filemon, assim como Elias e Salomé, é outro ancestral da cultura ocidental a
visitar as fantasias de Jung. Trata-se, com efeito, de um personagem oriundo das
Metamorfoses de Ovídio e do Fausto de Goethe. Segundo Ovídio, Júpiter e Mercúrio
perambulavam pela Frígia disfarçados de mortais. Passavam de casa em casa em
busca de repouso, mas tinham sempre seu pedido recusado. Isto milhares de vezes,
até que um velho e humilde casal, Filemon e Baucis, convidou-os gentilmente a
entrarem em sua pobre cabana e lhes ofereceu comida. Os deuses durante a
refeição revelaram finalmente quem de fato eram. Informaram que puniriam todas as
pessoas da região exceto o bondoso casal. Conduziram Filemon e Baucis ao alto de
uma montanha, de onde puderam ver todo o país ser destruído por uma enchente. O
único lugar a não ser atingido foi exatamente o de sua cabana, então transformada
em um templo de colunas de mármore e teto de ouro. Os deuses concederam-lhes
ainda um pedido, na verdade, qualquer pedido em pagamento à sua hospitalidade.
O casal escolheu servir aos deuses como sacerdotes do templo e morrer juntos
como testemunho de seu amor mútuo. Seu pedido foi então realizado.
Goethe retomou os personagens Filemon e Baucis de Ovídio, na parte dois
do Fausto. Nesta narrativa, Mefistófeles queima malvadamente a cabana dos dois
velhos com eles dentro. No Capítulo 2, apontou-se a forte presença da literatura de
Goethe na obra de Jung. O Filemon de seu sonho e de suas fantasias é sem dúvida
reflexo desta influência. A atmosfera egipto-gnóstica-helenística relacionada a esta
figura fantástica também não é obra do acaso; tem a ver com estudos que Jung
vinha fazendo do gnosticismo desde 1909. A psique, portanto, parece se alimentar
dessas influências histórico-biográficas — Maria Moltzer, Siegfried, Elias, Salomé e
Filemon — para criar algo novo. Função de deformação do imaginário, diria
Bachelard. Função mediadora dos atores, diria Latour. Vimos no Capítulo1 que é
possível conceber a intrapsique como resultado da ação de várias extra-psiques.
Desde que nascemos, vamos “baixando plug-ins”, isto é, “programas” que, como
151
mediadores, dão-nos a oportunidade de ter uma subjetividade, de “fazer fazer” a
alma. Jung não seria quem foi sem sua herança cristã e romântica ou sem sua
leitura de mitologia e gnosticismo. Ausentes estes psicomorfos, como pensar a
presença tão forte de um Elias-Filemon ou de uma Salomé na sua imaginação?
Filemon, afirmou Jung, foi-lhe uma espécie de mestre e guia. Graças a ele,
principalmente, aprendeu acerca da “realidade da alma” (Wirklichkeit der Seele):
“Da mesma forma que outros personagens de minha imaginação, trouxe-
me o conhecimento decisivo de que existem na alma coisas que não são
feitas pelo eu, mas que se fazem por si mesmas, possuindo vida própria.
Filemon representava uma força que não era eu. Em imaginação,
conversei com ele e disse-me coisas que eu não pensaria
conscientemente. Percebi com clareza que era ele, e não eu, quem falava.
Explicou-me que eu lidava com os pensamentos como se eu mesmo os
tivesse criado; entretanto, segundo lhe parecia, eles possuem vida própria,
como animais na floresta, homens numa sala ou pássaros no ar” (id.,
ibid.,162).
Por meio de Filemon e das demais figuras de sua imaginação, Jung se
deparou com a multiplicidade imanente ao psíquico. A cada criação involuntária da
psique com que travava contato, seu eu sentia-se como que “derrotado”, por não ter
tomado conhecimento deles anteriormente. Mais ainda: trazer as fantasias latentes à
consciência implicava, como já se assinalou, o perigo da identificação com as
imagens do inconsciente. Hillman comparou o ato de entrar na própria “estória”
(story) interior com o início da escrita de um romance. Em ambos os casos, é
necessário coragem para “engajar-nos com pessoas cuja autonomia pode
radicalmente alterar, mesmo dominar nossos pensamentos e sentimentos” (Hillman,
1996, p.55).
O movimento de Jung (1994) em direção às imagens psíquicas e sua atitude
cuidadosa para com elas significaram uma espécie de redescoberta da perspectiva
politeísta antiga (Tarde, aliás, empregou a metáfora do “politeísmo” para descrever a
condição compósita dos seres): “No interior, reinam os deuses arcaicos, como
nunca” (p.24). O mundo greco-romano, não-cristianizado, imaginou uma realidade
intermediária nem transcendente como a dos deuses e tampouco material como a
dos homens, povoada por daimones, espíritos dos mais variados tipos, benfazejos e
maléficos, mensageiros, “vozes de orientação e cautela” (id., ibid. p.55). Contudo, a
ambivalência e multiplicidade dos daimones foi considerada ameaçadora pela
doutrina monoteísta da Igreja. Assim, no mundo cristão, daimon tornou-se
152
“demônio”, sinônimo de maldade e pecado. A ativação da imaginação tornada
método por Jung ao afirmar a realidade psíquica como povoada de daimones pode
ser descrita como um ato de “heresia”. Heresia também no que se refere à doutrina
da unidade do psiquismo dominante na psicopatologia. Da perspectiva clínica, o
risco representado por este método é a cisão da personalidade: esquizofrenia e
personalidade múltipla.
O que Jung denominou “realidade psíquica” é uma espécie de reino
intermediário. As figuras que habitam esta região não são nem projeções ilusórias
do meu eu nem entidades com substancia material, literalmente reais. Jung se refere
a elas “como se” fossem reais. Trata-se, portanto, de seres ficcionais, poéticos,
literários, mas ao mesmo tempo forças com corpo, voz e movimento que atuam em
mim. Na medida em que não são o eu, Jung descreve esses dinamismos como
potências inumanas, comparáveis a divindades ou daimones. Psicologicamente, os
daimones são agências (complexos e arquétipos) personificadas da imaginação.
4.4 A função transcendente e o método da imaginação ativa
Aos poucos, o tumulto emocional de Jung foi dissipando-se. Dois eventos
foram importantes nesse sentido. De um lado, ele aponta o afastamento da ex-
paciente que insistia no caráter artístico de suas fantasias (substituição de um
vínculo mórbido?). De outro, o trabalho de objetivação das imagens do inconsciente
por meio da escrita e da pintura, que o ajudou a compreendê-las e a assumir uma
posição frente a elas. Em 1916, Jung (cf. 1981, 2005) redige “A função
transcendente”
87
, ensaio onde pela primeira vez tentou organizar suas experiências
com o inconsciente, na forma de uma técnica psicoterapêutica específica. Porém, foi
somente em 1935, nas “Conferências Tavistock”, que veio a dar a esta técnica o
nome de “imaginação ativa” (aktive Einbildung).
O ensaio começa com Jung esclarecendo de imediato a expressão “função
transcendente”. Não se trata de nada de “misterioso” ou “metafísico”, mas de “uma
função psicológica comparável, à sua maneira, a uma função matemática do mesmo
nome, que é uma função de números reais e imaginários” (Jung, 1981, p.69). Passa
então a descrever a consciência com suas características de definição e direção,
fundamentais para a adaptação do indivíduo ao ambiente. Entretanto, o risco
87
“A função transcendente” esteve desaparecido durante décadas. Só veio a ser publicado, com
revisão, em 1958.
153
inerente aos processos conscientes é sua tendência à unilateralidade que, caso não
seja regulada, pode levar o individuo à neurose ou à psicose. Nesse sentido, o
inconsciente atua, espontaneamente a princípio, suplementando ou corrigindo a
unilateralidade da consciência. Daí ser tão importante tomar conhecimento de seus
conteúdos. Assim fazendo, podemos não apenas modificar uma atitude unilateral
disfuncional como inclusive ajudar a evitá-la.
O termo “transcendente” da função, explica Jung, designa o fato de que “ela
torna a transição de uma atitude a outra organicamente possível, sem perda do
inconsciente” (id., ibid., p.73). Assim, por tratar-se da construção ou criação de uma
nova atitude, refere-se ao seu procedimento analítico como “método construtivo” ou
“sintético”. Na prática clínica, cabe ao analista desempenhar o papel de função
transcendente para o paciente, na medida em que auxilia este último a trazer seus
conteúdos inconscientes à consciência. O paciente, por sua vez, agarra-se ao
analista como aquele que pode levá-lo à tão desejada renovação de atitude, isto é,
projeta sobre o terapeuta seu anseio vital de transformação. Para Jung, este seria
um dos significados do fenômeno da transferência.
Jung introduz a seguir uma importante distinção quanto ao modo de
tratamento dos conteúdos psíquicos, tais como as imagens oníricas ou as fantasias.
Pode-se apreendê-los como “signos” ou “símbolos”. No primeiro caso, as imagens
são tratadas como representações de processos instintivos elementares. Por
exemplo, a espada do sonho de uma paciente é reduzida ao “falo” do pai, o qual ela
deseja sem saber. No segundo caso, quando a imagem é tratada como símbolo,
indica “a melhor expressão possível de um fato complexo ainda não claramente
apreendido pela consciência” (id., ibid., p.75). Desse modo, a mesma espada do
exemplo anterior, a partir das associações fornecidas pela paciente, desdobra-se em
significados heterogêneos como “insight”, “sabedoria”, “instrumento de ataque e
defesa”, “a vontade inquebrantável do pai”, “conhecimento de uma antiga herança
da humanidade”. A paciente, observou Jung, tem necessidade desta “espada” para
superar sua neurose.
Diferentemente da redundância semântica do signo, o símbolo não tem seu
significado esgotado por qualquer definição que seja, porque “não está ainda
claramente apreendido pela consciência”. Por estender-se no desconhecido, isto é,
no inconsciente, está sempre revestido de incerteza e indeterminação (sem as quais,
aliás, não seria símbolo). Um símbolo produz diferenças, um signo, não. Jung
154
explica que o método construtivo trata as imagens principalmente como símbolos a
fim de proporcionar a mudança de atitude implícita na função transcendente.
Já que a função transcendente em análise depende necessariamente da
figura do analista, ela pode ser definida, em certo sentido, como “artificial”, observou
Jung. O analista deve então ajudar o paciente a apropriar-se dessa função para
poder “manter-se sobre os próprios pés”. Ora, onde se deve buscar pelo material
inconsciente regulador da consciência? Jung destacou em primeiro lugar os sonhos,
que qualifica como “produtos puros do inconsciente”. Ocorre que são muito difíceis
de compreender do ponto de vista do método construtivo, tornando-se, “em geral (...)
inadequados ou difíceis de fazer uso no desenvolvimento da função transcendente”
(id., ibid., p.77).
Que os sonhos freqüentemente são difíceis de compreender não há dúvida,
mas Jung dizer que são inadequados para a produção da função transcendente
parece uma afirmação algo contraditória se cotejada com argumentações presentes
em diversos outros textos seus. Isto é, Jung (cf. 1976, 1981,1988a, 1994) atribuiu
aos sonhos em vários momentos de sua obra uma enorme importância clínica.
Dedicou-lhes diversos trabalhos e, principalmente, sua própria prática analítica era
em grande medida baseada no material onírico dos pacientes. A leitura das
“Conferências Tavistock”, de 1935, e “O conceito de inconsciente coletivo”, do ano
seguinte, pode ajudar-nos a entender melhor essa aparente contradição. Ali Jung
(cf. 1976) explica que a imaginação ativa não é “panacéia”, mas que habitualmente a
emprega nos “estágios finais de análise”, quando então ela passa a substituir a
análise dos sonhos. A experiência clínica lhe mostrou que “fantasias inconscientes,
não reconhecidas, aumentam a freqüência e intensidades dos sonhos” (id., 1990a,
p.49). Na medida em que tais fantasias passam a ter acesso à consciência por
intermédio da ativação da imaginação, por exemplo, a atividade onírica diminui.
A vantagem da imaginação ativa sobre a análise dos sonhos é que naquela,
como “o material é produzido em estado consciente, o material é mais acabado do
que os sonhos com sua linguagem precária” (id., 1976, pp.172-173). Por outro lado,
no próprio texto de “A função transcendente” Jung sugere que, sem substituir a
análise onírica, a imaginação ativa pode, em muitos casos, com ela articular-se,
quando, por exemplo, propõe partir de um fragmento de sonho como estímulo inicial
155
para o processo de produção de fantasias
88
. Recorde-se que Filemon fora,
primeiramente, uma figura onírica; somente mais tarde foi ativamente imaginado.
Depois do sonho, outra via importante de acesso ao inconsciente são as
fantasias espontâneas. Infelizmente, assinalou Jung, muitos pacientes simplesmente
não conseguem produzi-las livremente. Quando isso acontece, convém então
recorrer-se à “ajuda artificial”. É a partir deste ponto do texto que Jung começa a
apresentação dos procedimentos da imaginação ativa, distinguindo três diferentes
condições iniciais. Primeiramente, há os pacientes que relatam um estado emocional
perturbado, como, por exemplo, uma depressão. O analista deve orientar o paciente
a concentrar-se no humor tanto quanto possível. Isto feito, o paciente deve então
anotar todas as fantasias e associações que aparecerem. Nesse processo, é
fundamental deixar a atitude crítica de lado, permitindo assim à mente a abertura
necessária para o livre jogo de fantasia. Desse modo, busca-se esclarecer e
enriquecer o humor com imagens. Jung (ibid.) comenta:
“(...) isto cria uma nova situação, visto que o afeto anteriormente não
relacionado se tornou uma idéia mais ou menos clara e articulada, graças
à assistência e cooperação da mente consciente. Este é o início da função
transcendente, i.e, da colaboração de dados consciente e inconscientes”
(p.82).
Outra possibilidade de abordar-se o estado afetivo desconhecido é quando o
paciente sente a inclinação de expressar-se por meio de pinturas e desenhos. O
humor é então retratado pictoricamente. Do mesmo modo que o processo intelectivo
anterior, o produto aqui criado também é influenciado por ambos consciente e
inconsciente.
A terceira e última condição para o início do processo, relata Jung, são
aqueles estados mentais vagos, difusos, como, por exemplo, um “descontentamento
enfadonho” ou um “vazio indefinido, porém excruciante”. Tais casos, geralmente,
necessitam de condições externas favoráveis, como um descanso completo, para
promover a ativação das fantasias. Aqui, também, Jung destaca a importância de
colocar-se a atenção crítica de lado.
88
Em “A função transcendente” Jung (1981) observa que, ao darmos forma visível a uma imagem
onírica, ou seja, praticar o primeiro passo da imaginação ativa, “continua-se a sonhar o sonho em
maior detalhe, no estado de vigília, e o evento inicialmente isolado, incompreensível, é integrado na
esfera da personalidade total” (pp.86-87). O caso clínico do físico Wolfgang Pauli mencionado nas
“Conferências Tavistock” e descrito com detalhes em Psicologia e alquimia (cf. Jung, 1994) é um
exemplo da aplicação conjunta da análise dos sonhos e da imaginação ativa.
156
Esta primeira fase do procedimento, não importa qual seja a condição inicial,
envolve na verdade dois processos, que devem acontecer de preferência um após o
outro: a “formulação criativa” e a “compreensão”. O princípio da formulação criativa,
como o próprio nome indica, diz respeito ao momento de dar forma aos conteúdos
do inconsciente. Somente após expressos estes conteúdos, é que o paciente deve
passar à busca de compreensão do significado das imagens produzidas. Há um
perigo para cada um dos processos, respectivamente. No primeiro caso, o indivíduo
pode perder-se na apreciação do valor estético das imagens, afastando-se do
objetivo inicial que é a função transcendente. O segundo perigo, referente à
compreensão, tem a ver com a pressa em querer-se compreender o significado das
imagens quando elas não se fizeram ainda suficientemente expressas ou
formuladas. A imaginação ativa, em tal situação, tende a perder-se em abstrações
vazias, prejudicando sua função terapêutica. Nos termos de Jung (ibid.): “Os
conteúdos do inconsciente querem, primeiramente, ser vistos claramente, o que
somente pode ser feito ao dar-lhes forma, e ser julgados apenas quando tudo o que
têm a dizer estiver tangivelmente presente” (p.86).
Nesta primeira etapa da imaginação ativa, a “condução” do processo está
com o inconsciente. Assim que os conteúdos do inconsciente tenham sido
apresentados e desdobrados, e seu significado suficientemente conhecido, entra-se
na segunda etapa do método. É a vez de o eu tomar a frente do processo; cabe a
ele, agora, confrontar-se com o material oriundo do inconsciente. Segundo Jung, o
“outro lado”, isto é, a contraposição surgida do inconsciente, deve ter o mesmo valor
que a posição consciente que o eu representa. Somente assim haverá a
oportunidade de transformar-se o efeito perturbador do inconsciente sobre a
consciência (sintoma) em uma relação de cooperação — o que não significa, porém,
tomar o inconsciente literalmente.
Jung acredita que os pacientes que conseguem distinguir a “outra” voz têm
maior facilidade para seguir o método. Para estas pessoas é relativamente simples
escrever o diálogo interior com a “voz” do inconsciente. Nem tão simples assim, com
efeito, posto que quase sempre o outro lado representa um ponto de vista conflitante
em relação à consciência subjetiva. Impossível não associar estas colocações de
Jung com a experiência com sua “falante” anima, descrita acima. Afinal, foi
precisamente um conflito de posições quanto ao seu trabalho com a imaginação —
arte vs. natureza — que ele vivenciou, com forte inquietação.
157
A aproximação com o “outro” decorrente da ativação da imaginação não
acontece apenas no nível intrapsíquico, disse Jung, mas se reproduz e é colocada à
prova na relação entre paciente e analista, cabendo a este último o papel de
advogado do diabo. A análise, nesse sentido, toca na questão mais ampla das
relações grupais ou políticas, já que é exatamente a capacidade de dialogar com o
“outro” que torna possível a “comunidade humana”. Escrito durante a Primeira
Grande Guerra, “A função transcendente” reflete aqueles tempos sombrios: “O dia
de hoje mostra com terrível claridade o quão pouco capazes as pessoas são de
reconhecer o argumento do outro, embora essa capacidade seja uma condição
indispensável e fundamental para a comunidade humana” (id. ibid., p.89).
A confrontação com o inconsciente costuma ser mais difícil para aquelas
pessoas com tendência a imaginar visualmente. Nesses casos, Jung explica não ser
necessário tornar-se consciente do processo nos mínimos detalhes. Basta ficar
atento aos “sentimentos sugestivos” que possam surgir; muitas vezes são de mais
valor que muita “conversa inteligente”.
As conseqüências do exercício de confrontação com o inconsciente, que é a
imaginação ativa, é o desenvolvimento de uma consciência continuamente
diferenciada e ampliada pela integração em sua esfera de conteúdos até então
desconhecidos. Em outros termos, trata-se de uma mudança de atitude geral ou
transformação da personalidade. A análise, por conseguinte, atua como um
facilitador do processo de individuação. Quase no fim do ensaio, Jung avalia que os
principais empecilhos para a sua prática são a “falta de coragem e auto-confiança”
ou ainda a “preguiça mental e moral” e a “covardia”.
Jung continuou a tratar do método de ativação da imaginação em outros
textos. Em “As relações entre o ego e o inconsciente”, de 1928, dedicou um capítulo
a descrever “a técnica de diferenciação entre o eu e as figuras do inconsciente”. Ali
estão reproduzidos, essencialmente, os procedimentos metodológicos do ensaio de
1916. Uma novidade importante, contudo, é o acréscimo de um argumento
pragmático como justificativa para a aplicação da técnica. Depois de comentar um
fragmento de fantasia de um paciente produzido em análise, Jung (1966) pergunta-
se: “como alguém pode afirmar que algo dessa espécie seja ‘real’ e levá-lo
seriamente?” (p.217). Explica que não devemos confundir o “levar seriamente as
fantasias” com sua concretização. As fantasias não são literalmente reais em sua
concretude, mas em sua ação:
158
“(...) o credo científico de nosso tempo desenvolveu uma fobia
supersticiosa da fantasia. Mas o real é aquilo que atua [Wirklich aber, ist
was wirkt]. E as fantasias do inconsciente atuam, não pode haver dúvida
sobre isto. Mesmo o filósofo mais inteligente pode ser vítima de uma
agorafobia completamente idiota” [itálicos meus] (id.,,ibid., p.217).
Jung mais uma vez, tal como em “A função transcendente”, adverte que o
fantasiar por si só não basta. Isto é, como “as fantasias não são nenhum substituto
para a vida” (id., ibid. p.224), cabe ao indivíduo levar para as suas tarefas
quotidianas, ordinárias, o insight adquirido em análise. Afinal, este é o propósito do
trabalho analítico: tornar o paciente apto para a vida. Somente assim poderá
realmente beneficiar-se dos frutos da imaginação. E quem ganha com essa
mudança de atitude individual é a própria sociedade: “o homem que é indigente ou
parasita nunca resolverá a questão social” (id., 1966, p.226).
Em 1950, Jung (cf. 1990a) publica “Um estudo no processo de individuação”,
com o intuito principal de suprir a falta de material textual sobre o método da
imaginação ativa. Neste estudo, analisa vinte e quatro pinturas de uma paciente sua,
a “Senhora X”, resultantes da ativação deliberada de fantasias durante o processo
analítico. Jung comenta cada uma das imagens, relacionando-as com as
associações da paciente assim como a grande quantidade de representações
mitológicas, religiosas e alquímicas semelhantes.
Quatro anos depois, Jung (cf. 1990e) revisita o método da imaginação ativa
no capítulo derradeiro de Mysterium coniunctionis. Desta vez, utiliza-se de
determinadas metáforas especialmente interessantes para a discussão do presente
trabalho. O livro como um todo aborda, por meio da comparação com o simbolismo
alquímico, a tarefa de separação e composição dos opostos psíquicos. Tarefa esta
que Jung definiu como sendo exatamente o processo de individuação. Os
alquimistas trabalhavam em laboratório os materiais (prima materia), que
primordialmente se encontram em um estado de confusão (massa confusa) ou de
inimizade (inimicitia elementorum), segundo dois procedimentos básicos
89
, a
dissolução (solutio) e a coagulação (coagulatio). Desse modo, buscavam produzir
uma substância arcana conhecida por diferentes nomes, como “substância celeste”,
“verdade”, “bálsamo”, “princípio vital”, “pedra” (lapis) etc., e também identificada com
89
Os procedimentos laboratoriais variam quantitativa e qualitativamente, de acordo com os diferentes
textos alquímicos. Para os propósitos de nossa discussão, porém, os dois citados bastam. Mais
detalhes, ver Psicologia e alquimia (Jung, 1994).
159
a “imagem de Deus”. Tanto o início da tarefa quanto seu fim não são dados naturais,
mas dependem da interferência do artifex (artífice), ou seja, do alquimista, já que
cabe a ele ordenar a mistura originalmente desordenada. Jung comparou a
elaboração desta substância mágica descrita pelos alquimistas ao processo de
individuação e, os procedimentos citados, à imaginação ativa.
Em Mysterium coniunctionis, Jung descreve as cadeias de fantasia,
produzidas a partir da concentração em dada imagem, fragmento de sonho ou afeto
perturbador, como tendo “aspecto dramático”. As fantasias, com efeito, criam todo
um “teatro particular”, onde o drama do sujeito é encenado. Drama encenado por
figuras — atores, por que não? — que personificam o “outro em nós” e que, para
nosso próprio bem, convém que levemos em consideração. Não é primeira vez que
Jung usa a metáfora do drama para referir-se à experiência psíquica. Em “Da
natureza dos sonhos”, texto de 1945, observou que muitos sonhos apresentam uma
“estrutura dramática”, obedecendo à seguinte seqüência: indicação de lugar,
desenvolvimento da trama, culminação e solução (resultado).
A comparação com a alquimia sublinha o aspecto artificial da imaginação
ativa. A comparação com o drama enfatiza a multiplicidade de agentes (atores) na
cena de nosso palco interior.
4.5 Desdobrando e compondo o psíquico
A imaginação ativa, se examinada com cuidado, revela um Jung
eminentemente não moderno, que é, aliás, o Jung que mais interessa a este estudo.
Não moderno porque a experiência de ativação de fantasias abala os divisores
tipicamente modernos como natureza vs. cultura (“arte”) e indivíduo vs. sociedade,
com que Jung teoricamente operava. Ao ativar a imaginação no consultório
psicoterapêutico, podem analista e paciente distinguir com segurança uma
experiência psíquica apriorística ou natural de uma construída ou artificial? Como
então separar a natureza arquetípica das influências culturais entranhadas na alma
do indivíduo? Onde traçar a fronteira entre os inconscientes coletivo e pessoal?
Elias e Salomé, por exemplo, eram figuras da imaginação de Jung e
simultaneamente personagens da tradição histórico-literária ocidental. Eram seres a
um só tempo individuais e coletivos (sociais). Na tentativa de compreendê-los, Jung
os relacionou, respectivamente, a dois arquétipos dos quais seriam representações:
160
o velho sábio e a anima. Tentou extrair das duas imagens, como um bom moderno,
sua porção arquetípica, natural. Mas logo percebeu que toda essa argumentação
era demasiado “intelectual” e, como tal, afastava-o da experiência efetiva de
fantasia. Assim, considerou “mais significativo deixar que esses personagens sejam,
primeiro, o que então me pareceram ser, isto é, expressões de processos que se
desenrolam no fundo do inconsciente” (id., 1985a, p.162). Pode-se, portanto, afirmar
que as imagens de fantasia descritas por Jung, em sua indeterminação ontológica
(naturais e culturais, individuais e coletivas), assemelham-se aos híbridos ou fatiches
de Latour. Nesse sentido, a experiência psíquica é, primeiramente, sempre
misturada.
Como Jung bem notou, o trabalho de produção da função transcendente tem
algo de artificial na medida em que o analista busca fomentar no paciente a criação
de fantasias. Sem este auxílio, elas provavelmente não despertariam de seu sono
psíquico. Parece então que a anima de Jung tinha razão: o que ele estava fazendo
era arte. Isto não significa, porém, que o psicoartista, tal como o demiurgo citado por
Latour, tenha o controle total do processo. Pelo contrário, como se viu na
experiência do próprio Jung, uma vez iniciado intencionalmente o fluxo de fantasias,
elas adquirem autonomia. As figuras surgidas se revelam então como tendo vida
própria: “Cada meu sonho ou desejo/ É do que nasce e não meu”. Analista e
paciente se tornam cada um a seu modo artífices no trabalho com as imagens que
surgem a um só tempo forçadas e espontâneas no setting analítico.
A psique, contemplada do ângulo do método construtivo de Jung, não é algo
pronto e acabado, mas um trabalho a realizar-se, cuja finalidade é promover no
paciente uma atitude mais adequada para a vida. Nesse sentido, parece
perfeitamente admissível aproximar o trabalho analítico da imaginação ativa dos
processos de desdobramento (poder de consideração) e composição (poder de
ordenamento) do social, descritos por Latour (ver Capítulo 1), o que inclui todas as
suas incertezas quanto a quem fala, quem age e quem pode. Na sua primeira etapa,
a imaginação ativa visa a deixar o inconsciente apresentar-se. As imagens de
fantasia devem ter total direito à expressão. Jung, ao escutar a “voz” interior
feminina, que reconheceu como de sua ex-paciente”, deu-lhe a oportunidade de
exprimir seu ponto de vista, ainda que este lhe desagradasse. De modo análogo, a
primeira tarefa de experimentação do social é a de “provocação”, isto é, operação de
produção de “vozes”, onde as proposições terão a oportunidade da palavra.
161
Na imaginação ativa também podem acontecer os embaraços de fala que
ocorrem entre as proposições e seus porta-vozes. Comparando-se uma figura da
imaginação ao que Latour denominou proposição, podemos indagar: quem de fato
se está apresentando na minha fantasia, uma figura fantástica autônoma ou uma
criação voluntária de minha consciência subjetiva — consciência esta que deveria
servir apenas como porta-voz do personagem da imaginação? Jung (1976) disse
que sempre desacreditamos na imagem de fantasia, supondo que é invenção nossa,
mas que devemos “superar essa dúvida porque não é verdade”
90
(p.173). Uma
prova disso é que todo o tempo experimentamos coisas que “caem na nossa
consciência”. Em alemão, explica, chama-se isto de Einfälle.
Vimos há pouco que Jung descreveu a psique como um teatro. As figuras de
fantasia que encenam nosso drama interior, por sua vez, são comparáveis aos
atores ou actantes da TAR. Sua realidade, conforme dito, é avaliada antes de mais
nada pela ação que exercem sobre a consciência subjetiva. Jung (cf. 1976) se
referiu às imagens como produtoras de uma “influência sugestiva” sobre o indivíduo.
Como símbolos, as imagens adquirem uma função equivalente aos mediadores de
Latour. Assim como estes últimos, os símbolos, em sua indeterminação, não
transportam informações sem produzir alguma diferença. Os símbolos são, portanto,
transformadores psíquicos.
As figuras da imaginação exibem a qualidade de recalcitrância que Latour
apontou nas proposições. O diálogo de Jung com sua anima é mais uma vez
exemplar nesse aspecto. Ela lhe dizia coisas que ele não aceitava e vice-versa. As
figuras de fantasias não se curvam à atitude da consciência. Em geral, são veículos
de versões diferentes da versão (atitude) do complexo do eu, geram controvérsia, e
por isso impedem a unilateralidade, o monoteísmo, o “fechamento” da consciência.
Depois de expressas em sua forma e suficientemente compreendidas em seu
significado, o indivíduo deve confrontar as posições do eu e aquelas advindas do
inconsciente por meio de suas figuras. A questão que agora se levanta nesta
segunda etapa da imaginação ativa é: como combinar ou conciliar os desejos, os
requerimentos, as exigências do inconsciente com a atitude dominante na
consciência? Como tornar funcional a “multiplicidade contraditória de complexos”
que é a psique? Nos termos de Deleuze (1998), “o difícil é fazer com que todos os
90
No Capítulo 1, mostrou-se que, de acordo com Latour, “deve-se duvidar profundamente mas não
definitivamente” do porta-voz.
162
elementos de um conjunto não homogêneo conspirem, fazê-los funcionar juntos”
(p.65). Ora, se se trata de um paciente neurótico, que exatamente pela sua condição
patológica necessita de uma mudança de atitude, será imperativo levar em
consideração de algum modo — não necessariamente literal, é claro — a versão (ou
as versões) produzidas pelo inconsciente. As imagens nos impõem exigências éticas
das quais não convém fugirmos. Esta etapa pode ser aproximada da tarefa de
reunião do coletivo ou composição do social enunciada por Latour.
4. 6 O método construtivo e a influenciologia
O trabalho com as imagens a que se propõe o método construtivo de Jung
também permite algumas interessantes aproximações com a prática
etnopsicanalítica de Nathan. Conforme aduzido (ver Capítulo 1), Nathan entende
que a psicoterapia é essencialmente uma prática de influência, onde o decisivo é a
ação do terapeuta e não a presença de uma suposta natureza psíquica. A prática da
psicoterapia, observou Jung (1998a) de modo similar, demonstra não haver uma
psicologia universalmente válida: “É de desesperar que na psicologia verdadeira
[wirklich] não existam normas ou preceitos universais” (p.68). Assim, a influência do
analista vai ser decisiva para o sucesso do tratamento: “Como se espera de todo
tratamento psíquico efetivo, o médico exerce uma influência sobre o paciente. Influir
é sinônimo de ser afetado.” (id., ibid., p.68). A análise, conforme discutido no capitulo
anterior, é uma atividade relacional. Jung comparou o encontro entre analista e
paciente à mistura de duas substâncias químicas diferentes que, quando reagem,
ambas saem transformadas.
Se a análise junguiana opera por meio da influência do terapeuta, cabe
explicitar quais são seus procedimentos ou operadores terapêuticos. Será
interessante nesse sentido constatar a proximidade das práticas clínicas de Jung e
Nathan. Convém então comparar cada uma das operações descritas por este último
teoria (do terapeuta), indutores culturais, inversão e mediadores (analogia e
objeto) — com os procedimentos utilizados por Jung no trabalho analítico.
1) Teoria do terapeuta. A psicologia analítica descreve a psique como
constituída de complexos, arquétipos e energia (libido), que se fazem notar pelos
seus efeitos na consciência subjetiva. Estas noções ajudam a criar a realidade
psicológica sobre a qual o terapeuta vai atuar. Por exemplo: o analista pode apontar
163
que uma determinada reação exagerada ou afetivamente desproporcional do
paciente em relação a outra pessoa (mãe, pai, irmão, amigo, colega...) está
relacionada à projeção de um complexo inconsciente
91
.
2) Indutores culturais. Jung gostava de trabalhar o material de seus pacientes
(sonhos, fantasias etc.) mediante uma técnica chamada “amplificação”. O termo é
proveniente da retórica antiga e estava relacionado a técnicas discursivas de
enriquecimento de idéias e intensificação das emoções (cf. Pieri, 2002).
Amplificação, na psicologia analítica, significa a introdução de relatos pelo analista
no processo terapêutico, como os mitos e os contos de fadas, que tenham relação
semântica análoga com a questão ou o sintoma do paciente. Algo muito similar à
técnica de Nathan de introduzir relatos míticos da cultura de seu paciente na terapia.
O objetivo de Jung é provocar uma mudança no quadro patológico do paciente, tal
como Nathan, por meio de uma espécie de enriquecimento e clarificação do
enquadre afetivo-discursivo.
Em geral, é benéfico ao paciente perceber que seu problema ou sintoma se
articula a questões humanas similares. A amplificação, nesse aspecto, ajuda a
desfazer a habitual fantasia de isolamento onipotente do eu, fornecendo um
“contexto para o sintoma”. Por outro lado, a amplificação pode revelar-se
completamente estéril se os relatos do analista forem tão estranhos em relação ao
universo cultural do paciente a ponto de não lhe proporcionarem nenhuma espécie
de ressignificação ou emoção.
3) Inversão. Nathan observou que, em muitas culturas, a doença é a inversão
de um ritmo ou postura corporal considerado normal. O terapeuta deve então
inverter o movimento perturbado do paciente para assim restabelecer a saúde. Jung
pensou algo similar. Descreveu estados psicopatológicos como distúrbios nos
processos “normais” de cooperação entre inconsciente e consciência. Assim, pode-
se afirmar que a análise junguiana também opera com mecanismos de inversão
quando analista e paciente procuram “inverter” o fluxo da doença ao se deterem
sobre determinadas imagens ou experiências significativas. Por exemplo, Jung
interpretou a depressão psicogênica como remoção da libido do campo da
consciência para o inconsciente. Observando-se atentamente os sonhos, pode-se
91
Esta indicação não significa que o analista deva empregar o termo “complexo” na sua enunciação.
164
“inverter” a canalização de libido para o inconsciente, tornando-a novamente
disponível à consciência, e assim desfazendo a depressão.
4) Mediação. Os terapeutas tradicionais buscam criar uma conexão entre o
mundo dos homens e o mundo dos espíritos. Afinal, é a este último que geralmente
atribuem a causa da doença. Nathan cita a analogia e o objeto como recursos
típicos para produzir a mediação almejada. A amplificação, há pouco mencionada,
opera exatamente de modo analógico, atuando, portanto, como um mediador (no
sentido de Nathan). Os símbolos gerados pela imaginação ativa, por sua vez, seriam
o equivalente na psicoterapia junguiana dos objetos nas terapias tradicionais. Têm a
função de ligar dois mundos heterogêneos, o dos homens (a consciência) e o dos
espíritos (o inconsciente). Jung percebeu que o símbolo, quando concretizado
materialmente, podia ser extremamente eficaz. Não apenas observou sua ação
benéfica em si mesmo, mas em muitos pacientes igualmente. Daí a sua orientação
para que escrevessem, pintassem, desenhassem, modelassem ou esculpissem as
imagens do inconsciente. Com efeito, o que Nathan considera objeto, e.g. fetiches e
amuletos, Jung interpreta como símbolo materializado. O etnopsicanalista verificou
que os objetos exercem o papel de defesa diante de fortes cargas afetivas. Jung, por
sua vez, constatou que determinados símbolos, como as mandalas (imagens
circulares), costumam atuar na psique — principalmente quando perturbada — como
agentes reorganizadores e defesas.
As semelhanças entre os modelos de Nathan e Jung não se esgotam nestes
operadores terapêuticos. O etnopsicanalista mostrou que os terapeutas tradicionais
enfatizam os continentes formais (objetos, ritmos e formas) em vez dos conteúdos.
O próprio consultório de etnopsicanálise, disse Nathan, atua sobre o paciente como
um continente formal. A comparação com a alquimia nos ajuda a entender a análise
junguiana em termos semelhantes (cf. Jung, 1994). O alquimista realizava suas
operações dentro de um recipiente fechado, o “vaso” (vas), que era comparado a
uma “matriz” ou “útero”, de onde nasceria o “filius philosoforum” (outro nome para a
substância arcana). O vaso devia ser redondo ou ter forma de “ovo”
92
. O setting
analítico, assim como um recipiente alquímico, presta-se a ser o continente formal
onde deverá produzir-se a transformação da personalidade do paciente.
92
Ver, no Capítulo1, o uso que Nathan fez do ovo na terapia de Iphigénie.
165
Importante recordar, ainda, o comentário de Nathan sobre a repetição das
“mesmas histórias” em “todo o mundo” (ver Capítulo 1). Ora, não são os arquétipos
descritos por Jung temas ou motivos recorrentes por trás dos diferentes mitos, das
narrativas religiosas, do folclore, dos sonhos etc.?
Uma diferença entre Nathan e Jung, entretanto, chama a atenção. Nathan
sustenta que os bons resultados das operações terapêuticas que descreve decorrem
de uma “exigência lógica”. Jung, por sua vez, não se cansa de ressaltar o aspecto
irracional dos processos psíquicos, principalmente no que tange aos afetos. Nathan
desconsidera a interpretação “simbólica” do efeito sugestivo de um objeto, embora
não deixe claro exatamente o que entende por “símbolo”. Para ele, trata-se tão-
somente de uma imposição lógica, que induz de algum modo o quase-sujeito a agir
ou pensar. Isto nada tem a ver com os afetos que, segundo ele, não se deixam
manejar. Já Jung sublinha a carga afetiva que é posta em movimento a partir de um
símbolo. Na verdade, ele não separa afeto e representação, conforme dito. Assim,
toda experiência psíquica é, ao mesmo tempo, afetiva e representacional. Nathan
considerou a exigência lógica decorrente de um objeto ou relato como equivalente à
noção de mana dos melanésios estudados por Mauss. Jung (cf. 1981),
curiosamente, também faz referência a ela, porém, como equivalente à energia
psíquica que torna o símbolo ativo e eficaz. De qualquer modo, não se trata de
apontar quem está certo ou errado, Jung ou Nathan, mas apenas indicar o
problema.
O espaço analítico, considerado em seu aspecto construtivo, afigura-se um
lugar de experimentação com a própria alma. Nele, os “espíritos”, daimones e as
“divindades” banidas do mundo da consciência têm novamente a chance de serem
ouvidos e respeitados. Os complexos-arquétipos antes inibidos, dissociados ou
recalcados retornam controversos, perversos e subversivos — como sempre —,
concedendo-nos a oportunidade de com eles cooperarmos, em vez de continuarmos
sofrendo sua ação via sintoma. O inconsciente nada mais é que este aspecto
inumano — arquetípico, daimônico, “transpavoroso” — que nos atravessa e com o
qual temos de nos haver
93
. A análise junguiana, nesse sentido, “despsicologiza” ou
“de-humaniza” o sujeito ao reconhecer que nele atuam dinamismos, transpavores,
para além de seu domínio.
93
“O inconsciente é inumano e precisa da mente humana para servir a fins humanos” (Jung, 2001,
p.292)
166
Latour comparou uma sessão de etnopsicanálise a uma “máquina de calcular”
e a um “acelerador”. Em 1925, Jung (1989) definiu a análise como “um experimento
de laboratório e não realidade” (p.26). Quatro anos depois, descreveu o seu objetivo
como analista da seguinte maneira:
“O que viso é produzir algo de eficaz, é produzir um estado psíquico, em
que meu paciente comece a fazer experiências com seu ser, um ser em
que nada mais é definitivo nem irremediavelmente petrificado, é produzir
um estado de fluidez, de transformação e de vir a ser” [itálicos meus] (id.,
1988a, pp.43-44).
4.7 Últimas palavras...
Agora que o fim da tese se aproxima, o daimon sopra em meu ouvido que
“mais poderia ter sido dito” — e “talvez melhor”. Quem sabe um “desdobramento
maior das idéias sociológicas de Latour”, “uma explanação mais ampla da psicologia
social de Tarde e da etnopsicanálise de Nathan”. Sobre Jung, então, sussurra o ser
imaginal: “Ele é uma figura poliédrica. No entanto, deixaste ocultas muitas de suas
faces mais belas e terríveis, à sombra deste seu lado não moderno, pragmático, que
tanto prezas”. “Esta não é uma observação justa!” — protesto com raiva. Depois,
mais calmo, pondero: “Esses outros ‘Jungs’ a que você se refere, legítimos à sua
maneira, certamente seriam fonte para mais teses, mas não para esta, com seu
objetivo específico de promover a aliança da psicologia analítica com a TAR”. Após
esta firme objeção, o daimon se calou.
Acredito que os pontos de contato, de “liga”, entre Jung, Latour e seus aliados
foram aqui descritos e discutidos. Sem desconsiderar as diferenças, podemos agora
afirmar que, sim, há vias de comunicação entre a psicologia analítica e a TAR:
realidade psíquica e mediadores; complexos, mônadas e ator-rede; arquétipos e
transpavores; psicologia das relações e proposições articuladas (vinculadas);
método dialético e recalcitrância; imaginação ativa e desdobramento/composição do
coletivo; método construtivo e influenciologia; e, last but not least, um pragmatismo
“williamjamesiano” mais ou menos explícito a unir Latour, Nathan e Jung. Existem
aspectos da psicologia de Jung que são de fato compatíveis com a TAR. Parece-me
que psicologia, psicologia social e sociologia têm muito a ganhar deixando-se afetar
umas pelas outras.
167
Finalmente, espero que esta tese tenha cumprido sua função de laboratório
de idéias. Ao comparar teorias e práticas à primeira vista heterogêneas, desejo ter
causado no leitor aquele espanto ou desassossego de espírito, que é comumente o
solo fértil de onde nascem novas idéias.
168
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