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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: GESTÃO AMBIENTAL E
TERRITORIAL
A ERRADICAÇÃO DA VILA IAPI:
MARCAS DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESPAÇO
URBANO DE BRASÍLIA
TONY MARCELO GOMES DE OLIVEIRA
Orientadora: Marília Luiza Peluso
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
BRASÍLIA
Setembro de 2007
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
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DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
A ERRADICAÇÃO DA VILA IAPI:
MARCAS DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESPAÇO
URBANO DE BRASÍLIA
TONY MARCELO GOMES DE OLIVEIRA
Dissertação de Mestrado submetida ao Departamento de Geografia da
Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para obtenção do grau de
Mestre em Geografia, área de concentração Gestão Ambiental e Territorial.
Aprovado por:
____________________________________
Professora Drª. Marília Luiza Peluso, Professora do Departamento de Geografia
da Universidade de Brasília
(Orientadora)
_____________________________________
Professor Dr. Neio Lúcio de Oliveira Campos, Professor do Departamento de
Geografia da Universidade de Brasília
(examinador interno)
____________________________________
Professora Drª. Cristiane Scolari Gosch, Ministério da Saúde
(Examinadora externa)
Brasília-DF, 15 de agosto de 2007
FICHA CATALOGRÁFICA
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OLIVEIRA, TONY MARCELO GOMES
A erradicação da Vila IAPI: Marcas do processo de formação do espaço urbano
de Brasília/Tony Marcelo Gomes de Oliveira – Bralia: Instituto de Ciências
Humanas: Departamento de Geografia: UnB, 2007.
137 p. : Il. Color.; 21X29 cm.
Dissertação de Mestrado do autor (Mestrado – Universidade de Brasília).
1. Geografia. 2. Segregação socioespacial. 3. Planejamento Urbano. 4. Práticas
Sociais do Cotidiano. 5. Brasília.
.
É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta
dissertação e emprestar ou vender tais pias somente para propósitos acadêmicos
e científicos. O autor reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta
dissertação de mestrado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do
autor.
_________________________________
Tony Marcelo Gomes de Oliveira
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Dedico a todos os erradicados” como erva daninha do
sonho de Brasília, vítimas da violência do capital e dos
oportunistas da Capital.
CONFRONTO
A suntuosa Brasília
e a esquálida Ceilândia contemplam-se.
Qual delas falará primeiro?
Que tem a dizer ou a esconder uma
em face da outra?
Que mágoas, que ressentimentos
prestes a saltar da goela coletiva e não se
exprimem?
Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho
da flórea capital ?
Por que Brasília resplandece ante a pobreza
exposta dos barracos de Ceilândia filhos da
majestade de Brasília ?
E pensam-se, remiram-se em silêncio as
gêmeas criações do bom brasileiro.
Carlos Drummond de
Andrade
AGRADECIMENTOS
A Deus – compreendido como energia cósmica que em mim tudo move.
Aos meus pais – Oldack Gomes de Oliveira e Geni Evangelista de Oliveira –
mestres maiores de minha existência, que me possibilitaram vivenciar e
compreender a natureza de família.
15
Aos meus irmãos João, Gláucia, Magna, Maíza, Josafá, Magnólia, Mariza,
Bruno, Clayton, Dalmo, Luiz, Oldenei e Willams guerreiros, base de sustentação
para construir e vencer desafios.
Aos meus sobrinhos de rocha, amigos do UniCEUB, da UnB, do futebol, dos
Rocks, da cultura, amigos parceiros/irmãos - Adalberto, Ernane, Nilton, Robson e
Wélcio obrigado pela disponibilidade e positividade sempre.
À querida Mestra amiga Odette Rezende Roncador e a todos os educadores que
tive em minha formação. De cada um deles, carrego a dignidade da luta e
resistência por meio da educação.
À Professora orientadora Marília Luiza Peluso, pela dedicação e serenidade. Aos
professores Aldo Paviani,cia Cony Cidade, Nelba Azevedo Penna, Manoel
Jevan, incansável lutador da Ceilândia e ao camarada Valdir Steinke. Em especial,
agradeço aos professores Neio Campos e Antonio Carlos Carpintero, pelas valiosas
contribuições e esclarecimentos.
E finalmente agradeço, à minha companheira nia Freitas, a quem tudo devo, a
quem tudo faço e a meu filho Murilo, a quem tudo farei. Vocês são sempre: luz e
abrigo.
À todos, muito obrigado.
“dackni simplesmente quer dizer: nobreza
RESUMO
A Erradicação da Vila IAPI: Marcas do Processo de Formação do Espaço Urbano
de Brasília nos fornece uma relevante contribuição para a compreensão da
dinâmica urbana e territorial da capital Federal. A pesquisa identifica marcas,
rastros e sinais na historiografia da cidade através do recorte espacial definido
como Vila IAPI. Possibilita perceber nela, embates entre o planejamento
racionalista/funcionalista fruto do advento da modernidade e as práticas sociais
do cotidiano. Nesta contextualização, busca-se avaliar e interpretar as
16
conseqüências da ação governamental de erradicar favelas na década de 70 em
Brasília, tendo a Vila IAPI como referencial empírico e a sua articulação direta
com os ditames tecnicistas induzido pelo planejamento da cidade e também, com a
qualidade de vida de seus habitantes. Assim, o trabalho proposto se apresenta com
o intuito de contribuir, por meio do resgate de um importante fato histórico de
Brasília, para melhor compreensão do processo de formação do espaço urbano da
capital do país.
Palavras-chave: Planejamento racionalista; práticas sociais cotidianas;
modernidade; espaço urbano; Vila IAPI.
ABSTRACT
The eradication of VILA IAPI Process Marks of Urban Space in Brasilia capital
of Brazil- provides us a relevant contribution to the understanding of the urban and
territorial dynamic of the capital. The research identifies marks, tracks and signs in
the historiography of the city through the spatial cut defined as VILA IAPI. It
makes possible to perceive the oppositions between rationalist and functionalist
planning fruit of the modernity advent and the current social practices. In this
context, it aims to evaluate and to interpret the consequences of the governmental
17
action to eradicate the shanty towns in Brasilia in the 1970’s, having the VILA
IAPI as an empiric referential and its direct articulation with the technical
commands induced by the city planning, interfering directly in its inhabitants life
quality.Thus, the proposed work presents with the aim to contribute by means of
recovering an important historical fact in Brasilia, for a better understanding of the
ground process of the urban space in Brasilia.
Word Key: Urban Space; the current social practices; modernity; Vila IAPI; rationalist
and functionalist planning
LISTA DE SIGLAS
CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna
CEI – Campanha de Erradicação de Invasões
CODEPLAN – Companhia de Desenvolvimento do Planalto
EPCT Estrada Parque Contorno
ESEC – Estação Ecológica
GDF – Governo do Distrito Federal
18
GER – Grupo de Executivo de Remoção
HJKO – Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira
IAPI Instituto de Aposentadoria e Pensões dos industriários
ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros
NOVACAP – Companhia Urbanizadora da Nova Capital
PARNA – Parque Nacional de Brasília
PLANIDRO – Plano Diretor de água, esgoto e controle de poluição do Distrito
Federal
RA – Região Administrativa
SMAC – Setor de Manes Águas Claras
SMBS Setor de Mansões Bernardo Sayão
SMIAPI – Setor de Mansões IAPI
SMPW Setor de Mansões Park Way
UNESCO – Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a
Cultura
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Foto: Rua da Vila IAPI
Pág: 21
FIGURA 2: Foto: Método de entrevista com imagem
Pág: 22
FIGURA 3: Mapa 1: Ocupação Primária do Espaço – R.E
Pág: 26
FIGURA 4: Demarcações - Distrito Federal
Pág: 78
19
FIGURA 5: Mapa 2: Divisor de Águas da Bacia do Paranoá e a EPCT
Pág: 92
FIGURA 6: Foto: Complexo IAPI (1969)
Pág: 100
FIGURA 7: Foto: Espaçamento de rua na Vila IAPI (1971)
Pág: 101
FIGURA 8: Foto: Comércio e cotidiano da Vila IAPI (1970)
Pág: 102
FIGURA 9: Foto: Segregação socioespacial Ceilândia (1971)
Pág: 105
FIGURA 10: Imagem: Percurso IAPI e Ceilândia (1971)
Pág: 106
FIGURA 11: Mapa 3: Configuração Atual do Espaço – R.E
Pág: 108
FIGURA 12: Foto: Cotidiano invisível
Pág: 111
FIGURA 13: Foto: Remoção do Complexo IAPI (1971/2)
Pág: 114
FIGURA 14: Foto: Ceindia (1971/2) - Tempos difíceis
Pág: 117
FIGURA 15: Foto: Resistência no novo IAPI
Pág: 119
FIGURA 16: Foto: Um resistente à remoção
Pág: 120
FIGURA 17: Foto: Erradicado da Vila, morador da Ceilândia
Pág: 121
FIGURA 18: Foto: Chácara remanescente no S.M.IAPI
Pág: 125
FIGURA 19: Foto: Rua da ex-vila, hoje setor de mansões
Pág: 125
20
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................
11
Capítulo 1 - Planejamento e Intervenção Urbana ....................................................
30
1.1. O pré-planejamento ................................................................................................ 30
1.2. A Concepção do Planejamento ............................................................................. 37
1.3. A Cidade Planejada ................................................................................................ 42
Capítulo 2 – Planejamento e o Discurso da Modernidade ...................................... 49
2.1. O Discurso da Modernidade: Representações ........................................................
54
2.2. A Meta é a Modernidade - A Ótica do Planejador no Brasil ................................. 67
Capítulo 3 - Brasília: O Discurso em Construção do Espaço Urbano ....................
75
3.1. A cidade e o mito ou o mito e a cidade .................................................................. 79
3.2. A concepção e expansão espacial da cidade .......................................................... 83
3.3. A segregação como ação de Estado ....................................................................... 87
A. Da construção à inauguração – Práticas ................................................................... 94
B. A erradicação como ação ordenadora .......................................................................
98
Capítulo 4 – A Ótica dos Erradicados e Resistentes em Resultados de Análises ...
109
Resultados de análises 114
Considerações finais ................................................................................................... 127
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 132
21
INTRODUÇÃO
“Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na
cidade ideal. Mas, enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e
o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro”.
Ítalo Calvino, 1990.
O tema e o objeto desta dissertação definem-se no âmbito do debate das
abordagens do planejamento urbano, implementado pelo Estado brasileiro como
forma de intervenção na realidade e de produção do espaço urbano. Delimitamos
como objeto de estudo a cidade de Brasília
1
, pensada e gestada a partir da
interferência do Estado e de momentos expressivos da modernidade no Centro-
Oeste brasileiro.
Trataremos aqui, de forma particularizada, a Vila IAPI e o denominado
Complexo IAPI
2
, em que nos oportuniza identificar em um determinado momento
ações diretas dos órgãos planejadores e sua política de erradicação de favelas,
satisfazendo às exigências e necessidades do mercado imobiliário. Ações que
contribuíram para a degradação socioespacial da população de baixa renda, no
processo de formação urbana de Brasília.
Como elemento norteador de nossa pesquisa, focamos a atenção nas
relações entre o planejamento racional e a realidade das práticas sociais na
trajetória da construção de Brasília, analisada por meio da dimica urbana
vivenciada no recorte espacial apresentado - Vila IAPI - em que se percebe, por sua
historiografia, como sendo bastante representativo para identificarmos elementos
definidores da configuração do espaço urbano da capital brasileira – Brasília.
Será abordada por esta pesquisa, a busca em reconhecer a evolução do
planejamento racionalista, movido pelos fluxos avassaladores da modernidade
vindos da Europa e sua influência no território brasileiro, sobretudo na trajetória da
1
Entende-se que Brasília é constituída pelo Plano Piloto (o centro) e as regiões administrativas
(cidades satélites), disseminadas no território do Distrito Federal.
2
Entende-se por complexo do IAPI o conjunto de favelas margeando a favela principal (Vila do
IAPI): Morro do Urubu, Morro do Querosene, Vila Tenório, Vila Bernardo Sayão, Vila Esperança,
Curral das Éguas, Placa das Mercedes e outros pequenos aglomerados.
22
construção de Brasília e sua evolução urbana, herdeira maior no país da ideologia
da modernidade. Será focado também na pesquisa, a proximidade entre o
planejamento racionalista e sua convivência com a ampliação dos problemas
sociais e espaciais na cidade, desde sua inauguração em 1960 e consequentemente,
bastante viva na atualidade, atingindo diretamente a população de baixa renda. Esta
que veio erguer a capital atendendo ao chamado da modernização, irradiadora de
desenvolvimentos para todo o Brasil.
Na interpretação dos fatos, num primeiro momento, analisaremos o
planejamento significando a adoção, pelo poder público, de princípios racionais de
ordem política ou técnica, para substituir, alterar, controlar e regular situações
consideradas problema no espaço urbano; em outro, o planejamento será abordado
como instrumento que pode e deve dialogar francamente com os anseios
populares, na tentativa de buscar harmonizar o espaço urbano - e assim, evitar
conflitos e mazelas sociais.
Dessa forma, buscaremos identificar e analisar marcas no tempo e espaço,
junto ao processo de formação do espaço urbano de Brasília, o caso da Vila IAPI.
Como amparo, a interligação dos fatos ocorridos em esfera global (modernidade),
atingindo o local (Brasil e Brasília), respondendo sempre a lógica mercadológica.
Quanto à disposição espacial e adequação urbana na Vila IAPI, no final da
década de 60, vale ressaltar o desenho de suas ruas, que favorecia o contato
constante da vizinhança, constituído por muitos laços familiares, proporcionando
uma convivência comunitária. Havia distribuição aparentemente igualitária de
barracos e dimensão de lotes. A riqueza arbórea e hídrica local oferecia boa
qualidade de vida, por facilitar a higienização, alimentação, plantio de horta e
pomar, pequena criação e fonte de renda complementar com a lavagem de roupa.
Equiparada a todas essas facilidades, a proximidade ao centro, Plano Piloto,
garantia oferta de trabalho.
As características socioespaciais foram reconhecidas também pelos agentes
governamentais envolvidos no plano de erradicação da Vila. “Ela (IAPI)
apresentava ruas bem traçadas, lotes cercados e em alguns setores um processo
23
espontâneo de fixação, uma verdadeira comunidade de vivência e serviço” (Gouvêa
apud Plano de Erradicação de Invasões, 1995: 68), composta por um contingente
populacional de 82 mil pessoas e de 12 mil barracos.
Apesar das características vantajosas aos moradores da Vila, o governo cria,
em 14 de outubro de 1970, conforme Decreto 1.473, o GER Grupo Executivo
de Remoção, visando a erradicação de favelas. Seu discurso era baseado em
melhorias sociais e ambientais aos moradores e a todos do Distrito Federal,
respondendo a exigência oficial do PLANIDRO – Plano Diretor de Água, Esgoto e
Controle da Poluição do Distrito Federal. “As invasões se localizavam dentro do
anel de segurança sanitária, o que era uma ameaça à saúde, tanto da população
favelada como de todo o Distrito Federal(Bastos, 1979: 14). O argumento oficial
erguido pelo PLANIDRO fez o governo agir com urgência na resolução do caso,
atribuindo ao morador favelado de Brasília a condão de invasor
3
. O discurso
racionalista/tecnicista legitimou a estratégia de convencimento adotado pela
política de remoção de favelas.
A política de erradicação de invasões
4
se revelou bastante negativa para os
removidos, principalmente do ponto de vista social, ambiental e espacial. Fato
reconhecido pelos erradicacionistas
5
: {...} “As ‘invasões’ tinham sentido para as
famílias faveladas. Deixar um local onde viveu por vários anos foi difícil, mas a
idéia do lote próprio falou mais alto” (GDF, 1986: 09). A lógica de valorização dos
espaços nobres, retirando favelas, seguiu com a implantação de loteamentos
distantes do centro urbano, detentor de empregos.
A partir de 27 de março de 1971, a população da Vila IAPI, agora removida
para Ceilândia, apresentou queda na qualidade de vida, uma vez que o local para
onde os moradores foram destinados não possuía o mínimo de estrutura básica.
Além da redução drástica da renda familiar por acentuar completa dependência da
população aos locais estruturados com o mobiliário urbano. “Morava na Vila
3
Em Brasília o favelado é chamado, pelo governo, de invasor tendendo transmitir na própria
denominação a idéia de transgressão.
4
Em Brasília as favelas são chamadas, pelo governo, de invasões, tendendo transmitir na própria
denominação a idéia de transgressão.
5
Termo utilizado pelo autor da pesquisa para identificar os defensores e envolvidos diretamente
com o governo de Brasília no processo de remoção e erradicação de favelas durante a década 70.
24
Esperança. Acho eu que minha velha moradia era bem melhor, pois lá meu marido
tinha uma oficina que transcorria muito dinheiro” (depoimento da comunidade
removida, 1982: 07).
A perda da qualidade de vida contribuiu para os índices degradantes de
violência, alcoolismo, prostituição, tráfico e desesperança na nova cidade satélite
de Ceilândia. Como conseqüência, em menos de dez anos a cidade satélite, criada
para resolver os graves problemas sociais das Vilas-Invasões, se destacou com o
maior índice de criminalidade de todo o Distrito Federal (Bastos, 1979: 32), sendo
considerada, até hoje, como uma das Regiões Administrativas
6
mais violentas do
espaço urbano de Brasília.
A violência em Ceilândia passou a ser uma marca negativa no decorrer de
sua formação. As cidades se constituem marcada por sinais que registram nuances
particulares, utopias, minúcias e sonhos que se acumulam na passagem dos dias ou
das gerações. Mutáveis no tempo e no espo, elas são ressignificadas pelos usos e
funções que os diferentes agentes sociais e o sistema de poder econômico, político
e social lhes conferem. A cultura, ao estabelecer uma relação de intimidade com a
cidade, também compartilha dessa fonte de ressignificação e criação de novas
marcas na imagem e no seu traçado. Portanto, as características conhecidas hoje na
cidade satélite Ceilândia registram as ações soberanas promovidas pelos
organizadores do espaço, confirmando conseqüências que comprometem o bem
estar coletivo.
As cidades nascem, ou o fundadas, segundo a representação adequada a
uma dominação política, econômica, religiosa ou militar. Nesse sentido, o seu
traçado deve favorecer a segurança e obedecer a uma ordem estética,
correspondendo, assim, a uma imagem simbólica e a uma imagem da ordem.
Segundo Le Goff os arquitetos do Renascimento produziam modelo de cidade,
tendo como função principal a proteção de seus habitantes,
A cidade em forma de estrela, militarmente bem
protegida, com muitos ângulos mortos inatingíveis ao
assediante, uma cidade de onde se pode atirar de muitos
6
As Regiões Administrativas do Distrito Federal são comumente referidas como cidades-satélites,
servindo apenas como recurso burocrático.
25
ângulos; é também, com toda evidência, um conceito
simbólico: a estrela implica uma idéia de ordenamento.
(Le Goff, 1994: 13)
Traçadas de forma a representar concepções de mundo e poder, as cidades são
verdadeiros paradigmas de representações em tempos e espaços diversos. Como
afirma Baudelaire “a forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente,
que o coração de um mortal”. E acrescenta Le Goff, citando Baudelaire:
Ainda assim, a continuidade se firma em certas formas.
A Idade Média deu à cidade, ou à maioria delas, um
espaço rodeado por uma muralha, cujo vestígio subsiste
mesmo quando as muralhas desaparecem. De outro
modo, persiste uma conexão entre uma cidade
propriamente dita, o que na Idade Média se chamava de
cidade (cité), e os burgos, que se tornaram, em seguida,
isso que nós chamamos de arrabaldes: daí a articulação-
centro-subúrbio (Le Goff, 1994: 145)
Por outro lado, os lugares transmudam-se em novos fluxos e redes simbólicas,
segundo as funções assumidas pela cidade.
no século XII, a intromissão urbana inicialmente estava voltada para
problemas materiais, como a proibição de animais na rua e calçamento de estradas
para inibir acidentes. Presidia em seu contexto significação de ordem, razão,
verticalização e luz. As normas de planejamento nasciam como objeto de
intervenção oficializada nas recém cidades.
Os fluxos da modernidade na Europa fizeram do planejamento urbano o
orientador na organização das cidades, servindo como influência maior para todo o
mundo, mesmo em diferentes contextos sociais e culturais.
Assim, o planejamento urbano brasileiro ainda se ressente da ausência de
paradigmas adequados, que levem em conta não apenas a sua concepção tecnicista
e instrumental de intervenção racional no espaço, mas que considerem este espaço
como uma totalidade viva, dinâmica e composta de agentes sociais diversos que
também nele interferem. Para Souza, o desafio do ato de planejar,
de modo não-racionalista e flexível, entendendo-se que
a história é uma mistura complexa de determinação e
indeterminação, de regras e de contingências, de veis
de condicionamento estrutural e de graus de liberdade
para a ação individual, em que o esperável é,
frequentemente, sabotado pelo inesperado – o que torna
26
qualquer planejamento algo, ao mesmo tempo,
necessário e arriscado. (Souza, 2006:51)
Nesse sentido, é necessário extrapolar os limites tecnicistas e aproximar o
planejamento cada vez mais de esferas políticas e de outras que atuam na
configuração do espaço urbano, como as perspectivas de ocupação e de morada da
população de baixa renda. É notório saber que experiências de planejamentos
participativos permeiam os discursos urbanos contemporâneos, porém, são
praticados ainda de forma tímida no sentido de ampla democracia e autonomia,
sendo positivo pensar que “as mudaas promovidas pelo planejamento bem
podem ser efetivadas com o objetivo de consolidar e estabilizar uma ordem social
injusta” (Souza, 2006:55).
A tentativa em interpretar o discurso de intervenção racional do espo
instrumentado pelos planejadores urbanos não parece ser tarefa simples, pois o
caso Brasília, se apresenta de forma paradoxal e complexa, surgindo no decorrer da
construção embates entre o discurso e prática, entre o planejamento ideal e o real.
Permeada nos argumentos explicativos para a transferência e formação de
Brasília, a promessa era de que a cidade seria centro irradiador de desenvolvimento
da nação. Negando modelos estéticos arcaicos e falidos, a cidade seria, também,
centro irradiador de desenvolvimento do país e capital da esperança dinamizadora
de novas práticas e posturas políticas. Os preceitos ideológicos da modernidade
parecem ter ficado aprisionados apenas nos discursos e desfigurados pela realidade
cotidiana urbana da nação.
Em seus 47 anos, Brasília reproduziu e incorporou o passado e o tradicional
urbano do país. Assim, o discurso desenvolvimentista, tecnicista - presentes na
ideologia da modernidade comprometeu a qualidade de vida da população de
baixa renda, como também ocorreu em outras metrópoles brasileiras.
A periferização urbana atual se apresenta como um modelo esgotado, se
levarmos em conta as nossas metrópoles nacionais São Paulo e Rio de Janeiro, em
que parecem ter chegado ao limite da ocupação urbana. No entanto, para novas
27
metrópoles que surgem como é o caso de Brasília, a sua periferização urbana
representa um fato que não pode ser ignorado.
Nesse contexto, ganha importância a reflexão sobre a influência e atuação
do planejamento racionalista/funcionalista, gestada do movimento de
modernização e do advento da estética modernista. Articulada com a expansão
mercadológica capitalista, a estética modernista contribuiu, também, na
configuração do espaço urbano de Brasília, como instrumento de segregação
socioespacial.
A exclusividade das ações de planejamento racionalista/funcionalista de
Brasília não reconheceu, no momento inicial da construção da cidade, a
contribuição das práticas sociais do cotidiano na formação do espaço urbano da
Capital Federal, o que nos leva a supor que agravou problemas habitacionais e
socioeconômicos da população de baixa renda local. Apesar dessa convivência
autoritária por parte do planejamento racionalista, nota-se, porém que, na formação
do espaço urbano de Brasília, experiências e práticas de diálogo entre o
planejamento racionalista e os anseios da comunidade - representados aqui como
práticas sociais do cotidiano - também ocorreram, possibilitando uma melhor
qualidade de vida e menor segregação socioespacial.
Assim sendo, ressalta-se como problema de pesquisa, a percepção de sinais
e marcas referentes ao embate, junto ao processo de formação do espaço urbano de
Brasília, entre práticas que presidem o planejamento racionalista e as que movem
práticas sociais do cotidiano - ora se apresentando de forma complementar, ora se
apresentando de forma conflitante.
Tal discussão faz-se necessária a seguinte questão de pesquisa:
- Quais as conseqüências geradas a partir da prática de erradicação de
favelas adotada pelo governo local na formação do espaço urbano de Brasília?
O presente estudo aponta como hipóteses norteadoras: 1) que o processo de
remoção de favelas adotado pelo governo local durante a década de 70 no recorte
espacial definido como complexo IAPI contribuiu para ampliar a segregação
28
socioespacial da população de baixa renda na formação do espaço urbano de
Brasília. 2) As ações de planejamento racionalista praticadas pela Campanha de
Erradicação de Invasões CEI, podem ser interpretadas como inibidoras de
resistência.
A primeira forma de racionalidade, a de quem planeja, coloca em evidência
a figura do Estado, que assume, desde o início, o processo de construção de
Brasília. O Estado se faz presente, quer através da elaboração do projeto
urbanístico, da construção de prédios e equipamentos destinados à administração,
quer pela criação das normas necessárias ao controle do processo de ocupação. Ou
ainda pelo incremento de infra-estrutura necessária à dinamização das novas
relações sociais, como a melhoria no sistema viário pela construção de rodovias e
ferrovias. A atuação de quem planeja é marcada por princípios políticos e técnicos,
que buscam viabilizar ações racionais de cunho autoritário, com pouca participação
popular, até que processos segregacionistas gerem movimentos espontâneos ou
organizados com objetivos de interferir e reorganizar o espaço urbano. Essa
concepção do Estado é assim representada:
A busca de racionalidade, quer de cunho tecnicista,
quer de cunho político, evoca um modelo cartesiano de
“administração” da cidade, de caráter autoritário,
mesmo quando procura atenuar as injustiças sociais ou
assegurar o bem-estar coletivo”. (Souza, 1994: 116)
O uso do espaço, na segunda forma de abordagem urbana, é uma realidade
viva, dinâmica, em que se entrelaçam as necessidades reais da população e as
possibilidades que são criadas para o atendimento delas. É essa realidade que cria
costumes, tradições e mentalidades, forja cidadania, confere novos significados e
usos ao espaço urbano, mas do ponto de vista da análise do sistema capitalista, é
contraditória. As contradições aparecem não apenas entre o que foi planejado e
aquilo que é vivenciado, mas também decorrem do fato de a sociedade ser o palco
de interesses conflitantes. Neste caso, o planejamento de uma cidade também se
confronta com os interesses dos empreendedores imobiliários em sua luta para
acumular capital.
As duas formas de abordagens (planejamento racionalista e práticas sociais
do cotidiano), em constantes embates na formação do espaço urbano, não estão
29
isentas de processos simbólicos e culturais, como também, ao se entrelaçarem,
produzem novos imaginários, novas representações simbólicas e novos legados. Ou
seja, o reconhecimento de que o planejamento idealizado e a realidade viva nascem
do entrecruzamento das dimensões econômicas (vinculados à especulação
imobiliária), sociais, simbólicas e imaginárias, aparentemente bastante
representativo na dinâmica urbana de Brasília, analisada e ambientada no nosso
referencial empírico - a Vila IAPI.
O desafio em compreender o embate das abordagens urbanas configuradas
entre o planejado e o real, ganha realce especial, no âmbito dos nossos objetivos.
De um lado, a implementação da ação de tipo racional, com a finalidade de alocar o
“novo”, que se contrapõe à velha ordem oligárquica, às metas de planificação. De
outro, processo de rotinização que incorpora a esse “novo”, elementos tradicionais,
interesses diversificados, desejos coletivos, de modo a emprestar ao plano das
práticas vivenciadas, contornos que escapam aos anseios das ações
racionalizadoras originais. Essa interpretação permitirá levantar os pontos frágeis
que, pelo menos hipoteticamente, sustenta o modelo de planejamento.
Como objetivo geral, a pesquisa busca compreender, por meio das análises
geográficas sinais e marcas que o processo de transformação social, através do
recorte espacial definido como Complexo IAPI, deixou gravado no tempo e no
espaço percebido no embate entre o planejamento racionalista e as práticas sociais
do cotidiano, na formação do espaço urbano de Brasília.
Também serão contemplados como objetivos específicos: a) examinar as
raízes teóricas de discussão do planejamento urbano, como processo de intervenção
e de criação do espaço habitado; b) identificar articulação do projeto de construção
de Brasília com a política nacional de ocupação do interior; c) explicitar pontos
frágeis que sustenta o modelo de planejamento racionalista; d) Interpretar as
estratégias no discurso da Campanha de Erradicações de Invasões CEI junto ao
processo de retirada de favelas em Brasília; e) identificar na cidade satélite do
Núcleo Bandeirante e especialmente na Vila IAPI, referencial empírico de embates
das abordagens urbanas - a que preside o planejamento e práticas cotidianas -
articuladas aos fluxos de formação urbana da nova Capital Federal.
30
No que tange aos procedimentos da pesquisa, diferentes caminhos
conduzem-nos aos elementos que compõem o campo do abstrato social. Baczko
(1985) sugere, por exemplo, estudos de casos concretos, a partir dos quais seja
possível apreender as redes de sentido presentes nos imaginários. Admite, ainda,
que o campo de investigão do imaginário social é eclético e ainda não dispõe de
um referencial teórico que sirva de suporte à interpretação das interfaces oriunda
das fronteiras de diferentes disciplinas e a conseqüente diversidade de abordagens
delas derivadas.
Esta pesquisa busca sinais que dão forma à imagem como manifestação
paisagística. Para atingir os objetivos, foi necessário procurar enfoques teóricos e
metodológicos que implicassem numa ótica interdisciplinar, que conjugasse a visão
da Geografia, preocupada com a construção do espaço pela sociedade; da
Sociologia por constituir expressões das novas condições de existência da
sociedade no século XIX, dentre outras. “A busca de novos enfoques será
importante, pois trará contribuições para compreender a dinâmica espacial por
meio da subjetividade do homem (Peluso, 1998: 03). Além do valioso suporte em
outras disciplinas, como a Hisria e o Urbanismo.
Para entrelaçar ainda mais, processos espaciais e processos sociais,
seguiremos o que Santos considera do espaço geográfico como
Um conjunto indissociável de que participam, de um
lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos
naturais e objetos sociais e, de outro, a vida que os
preenche e anima, ou seja, a sociedade em movimento.
O conteúdo (a sociedade) não é independente da forma
(os conteúdos geográficos) e cada forma encerra uma
fração de conteúdo. O espaço, por conseguinte, é isso:
um conjunto de formas, contendo cada qual frações da
sociedade em movimento (Santos, 1994: 26).
A cidade animada pela sociedade em movimento é concebida e vista aqui como
superfície de leitura. Partimos então, das análises geográficas de suas marcas que o
processo de transformação social deixou gravada no tempo materializado.
Outros instrumentos foram utilizados, como: projetos técnicos oficiais,
entrevistas e pesquisa em campo, tendo como foco duas regiões administrativas
Guará (cidade-salite de domínio da área do antigo complexo IAPI) e Ceilândia
31
(cidade-satélite de acomodação de moradores do complexo IAPI), além de
materiais fotográficos referentes aos diferentes momentos delimitados na
contextualização do objeto.
Por meio de fotografias do período vivenciado pelos moradores do IAPI
procuramos compor processos interativos entre as refencias contidas nas imagens
e a memória dos informantes. “A imagem é o resultado de um processo onde
intervêm não as mediações que estiveram no olhar de quem as produziu, mas,
sobretudo, aquelas que estão presentes no olhar daqueles que as recebem” (Ribeiro,
1994: 15). A interação dessas imagens com o universo dos informantes provocou
associações e estimulou lembranças, facilitando a compreensão do tempo vivido e
culturas. Além de se destacar como importante fonte de registro do cotidiano.
Pela vasta pesquisa, as fotografias, anexadas nesta dissertação foram
adquiridas em arquivos pessoais de antigos moradores, do Professor Aldo Paviani,
órgãos públicos e das publicações sobre a temática urbana de Brasília. Por seu
imediato valor iconográfico, o trabalho com a fotografia contribuiu
contextualizando tempos distintos na realidade dos envolvidos, no processo de
erradicação do complexo IAPI e na formação do espaço urbano da Capital.
Figura 1: Foto: Rua da Vila IAPI 1970 Foto: Aldo Paviani
32
Figura 2: Foto: Método de entrevista com imagem Foto: Oldenei Woodzala/(2007)
Um outro importante referencial metodológico, pelo esforço em apreender a
imagem urbana, no que toca esse projeto, é a historiografia fisionômica
desenvolvida por Benjamim
7
. O autor, a exemplo de Edgar Allan Poe, Baudelaire,
Goethe, Engels e dos grandes “detetives”, é um fisionomista urbano, que persegue
rastros, detalhes, fragmentos necessários, fundamentais, ao montar o “quebra-
cabeça” da dinâmica social do espaço. Bolle considera que a historiografia
benjaminiana centra-se na imagem:
Partindo da superfície, da epiderme de sua época, ele
(Benjamin) atribui à fisiognomia das cidades, à cultura
do cotidiano, às imagens do desejo e fantasmagorias,
aos resíduos e materiais aparentemente insignificantes a
mesma importância que às “grandes idéias” e às obras
de arte consagradas. Decifrar todas aquelas imagens e
expressá-las em imagens “dialéticas coincide, para ele,
com a produção de conhecimento da história” (Bolle,
1994 : 43).
A luz metodológica de Benjamin foi valiosa para a presente pesquisa, por
captar um tipo de expressão e leitura da imagem urbana instannea na apreensão
de momentos, mas que não recua frente ao caráter fragmentário do vivenciado
que permite contrapor o planejamento racionalista e práticas cias cotidianas, o
passado e o presente.
7
Conceões metodológicas. Ver Benjamim (1994,II e 1994, IV).
33
Benjamin é considerado o escritor, por excelência, da modernidade e,
consequentemente, da metrópole moderna. A cidade estrutura-se, para ele, como se
fosse um mosaico em que cada parte é dada por letreiros. Benjamin dialoga com a
história e mostra como a modernidade é historicista. “O século XIX não sabia
como reagir ao presente senão buscando no passado mais remoto ecos de antigas
relações sociais que, impregnadas do novo, remetiam à utopia” (Rouanet, 1992:
23). Permite assim, ao historiógrafo caminhar pela complexidade dos sonhos e do
imaginário coletivo, utilizando o método da montagem e, através dele, de seus
percursos pela cidade, relatando os progressos que a modificam.
Utilizando o auxílio da “Nova História”, adotamos como fontes não
diretamente observáveis em documentos oficiais: lembranças, memórias, histórias
de vida, colhidas em depoimentos de pessoas que atuaram de alguma forma na
construção de Brasília e de sua ocupação espacial motivada pelo dinamismo,
materializado na ascensão e remoção da Vila IAPI abordado por essa pesquisa.
Essas fontes comprovaram-se decisivas para intermediar os níveis simbólicos e
imaginários contidos nos discursos das pessoas contatadas, que muito contribuiu
interpretação das entrevistas.
Em nossas entrevistas, destacamos temas relacionados com a imagem, a
apresentação urbana e formas de ver a cidade. Tomamos por referência a
concepção desenvolvida por Michelat (1982), que é a de trabalhar com entrevistas
o diretivas. Modalidade que proporciona maior liberdade ao entrevistado na
exposição de suas idéias. A escolha dos entrevistados seguiu cririos de
representatividade em função da problemática definida na pesquisa, no intuito de
aproximar o discurso dos agentes envolvidos aos fatos historiogeográficos
interpretados em nosso estudo.
O que caracteriza o poder simbólico encarnado pelo discurso é o poder das
palavras. Para Bourdieu,
Poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que
é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito
específico de mobilização, se exerce se for reconhecido, quer
dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder
simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de
uma “illocutionary force mas que se define numa relação
34
determinada e por meio desta entre os que exercem o poder
e os que lhes estão sujeitos, isto é, na própria estrutura do campo
em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das
palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é
a crença na legitimidade das palavras e daquele que as
pronuncia, crença cuja produção não é da competência das
palavras. (Bourdieu, 1989: 14 -15).
O argumento de Bourdieu oferece pistas para apreender as representações
imaginárias da modernidade, presentes nos discursos e falas de determinados
grupos, localizados em lugares específicos. Essa noção ajuda a interpretar e
reinterpretar a significação imaginária presente nos ideais de modernidade segundo
princípios racionais da funcionalidade, tomando forma na concepção da cidade
planejada.
Os objetivos das entrevistas com os envolvidos foram:
a) avaliar as conseqüências que a prática de remoção de favelas na década
de 70 representou para os moradores transferidos e distanciados do Plano Piloto e
para o espaço urbano de Brasília com a criação de cidades-satélites;
b) obter informações que permitissem uma avaliação da reconstituição dos
fatos nos ambientes citados, particularmente no que se refere à influência das formas
de apropriação do espo, das ações oficializadas pelo governo e resistência da
população. Fatos interligados aos fluxos formadores da cidade de Brasília;
c) buscar subdios para dar suporte às indagações propostas neste trabalho,
referente ao processo de formação urbana da capital. Identificando nos
entrevistados percepções, compreensões e práticas do momento de origem e
remoção dos recortes espaciais escolhidos (na ex-invasão IAPI e Ceilândia).
Na pesquisa foram entrevistadas 40 pessoas, ligadas diretamente à dinâmica
envolvendo o complexo IAPI e a Ceilândia, obedecendo a critérios de
representatividade em função da problemática definida na pesquisa. Tomamos por
referência trabalhar com entrevistas não diretivas, proporcionando maior liberdade
ao entrevistado na exposição de suas idéias. Método este que melhor se adapta à
pesquisa por centrar no campo dos valores e práticas cotidianas.
Por promover uma situação com maior flexibilidade, na entrevista não
directiva o entrevistado é responsável por direcionar a entrevista. O entrevistador
35
limita-se a esclarecer pontos duvidosos e a provar hipóteses. As principais
características da entrevista não directiva são o controle e orientação mínima
exibido pelo entrevistador e a liberdade do entrevistado em expressar os seus
sentimentos de maneira completa e espontânea quanto pretenda.
Este método se adequa mais a situações que envolvem atitudes complexas.
É considerado útil por conseguir alcançar atitudes e percepções mais profundas da
pessoa entrevistada, de modo a minimizar a influência exercida pelo entrevistador.
A opção pela entrevista não directiva contribuiu para uma maior aproximação do
entrevistador com os entrevistados, porém para a confirmação da hipótese
levantada foi necessário elaborar um questionário norteador afim de contribuir com
o entrevistado na busca de lembranças e vivências do período, no referencial
empírico abordado - Vila IAPI.
O Complexo IAPI como referencial empírico
No contexto da construção de Brasília e sua convivência estreita com a
vinda da massa trabalhadora em busca de melhores dias”, medrou,
inevitavelmente, diversas ocupões designadas pelos agentes políticos como
invasões, principalmente próximos aos canteiros de obras. As invasões mais
conhecidas no início da construção da cidade eram a Cidade Livre, hoje
formalizada como cidade-satélite de cleo Bandeirante e a Vila IAPI, ambas
localizadas espacialmente em áreas próximas, de grande interesse político e
especulativo com desenrolar histórico e conseqüências sociais diferenciadas, como
veremos a seguir.
Mapa 1: Configuração Urbana Primária do Espaço – Referencial Empírico
36
O HJKO (Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira), o primeiro hospital
da cidade, também foi sede do alojamento dos funcionários do IAPI (Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários), e em pouquíssimo tempo, ganhara o
status de vila, conurbando com outras vilas “invasões” de menor porte,
desencadeando o que chamamos aqui de complexo IAPI. Todas elas circundando o
domínio espacial do primeiro hospital da capital federal. Com acidez, Kowarick
escreve sobre o invasor, sob a ótica da sociedade, como:
[...] ocupante de terra alheia, o favelado passa a ser
definido por sua situação de ilegalidade e, sobre ele,
desaba o império draconiano da propriedade privada,
cuja contrapartida necessária é a anulação de suas
prerrogativas enquanto morador. Assim, nem neste
aspecto mínimo o favelado tem aparecido enquanto
cidadão urbano, surgindo, aos olhos da sociedade, como
um usurpador que pode ser destituído sem a
possibilidade de defesa, pois contra ele paira o reino da
legalidade em que se acenta o direito de expulsá-lo.
(Kowarick, 1979: 91)
Os trabalhadores que vieram para a construção de Brasília não
abandonaram seus sonhos idealizados nos quais buscaram referência para resolver
os seus problemas de moradia e atuar no mundo. Nesses “sonhos” estão registrados
elementos de identidade instituídos a partir de sua própria cultura: crenças, mitos,
37
idéias, valores, fantasias, desejos e expectativas que, para as análises empreendidas,
consideramos necessárias. Também, caracterizam-nos, identidades heterogêneas do
ponto de vista cultural, uma vez que os trabalhadores vieram das mais diferentes
regiões do país e eram portadores de diferentes trajetórias no mundo do trabalho, e
fora dele. A busca e a esperança de melhores condições de vida, significando,
sobretudo, a habitação, constituíram os pontos comuns na composição de sua
identidade. É na década de 50, sugere Blay, que:
[...] se inicia com clareza a grande inversão que marca
até hoje a mentalidade do trabalhador urbano brasileiro:
o importante é ter uma casa própria, ela garante a
fixação na cidade. Conseguir um emprego é difícil,
instável, precário. A casa, porém, é a proteção para os
momentos de desemprego, é a certeza de ter um teto
enquanto se busca um novo trabalho. (Blay, 1979 : 81)
Os problemas de habitação, porém, são também problemas da cidade de
Brasília, então:
Buscou-se resolvê-los por meio da própria cidade, que
sofreria uma radical mudança para eliminar as s
condições de vida da classe trabalhadora. Foram
propostas cidades-satélites e cidades-jardins
intensamente arborizadas, pequenas e economicamente
independentes (Peluso, 1998: 28).
A complexidade urbana de Brasília, herdeira de práticas racionalistas, expõe
problemas de ordem habitacional na cidade planejada, mostrando que as
transformações e metamorfoses espaciais são designadas também pela dinâmica
social.
O processo de investigação resultou na sistematização deste trabalho em
quatro capítulos, a seguir:
No capítulo 1, “Planejamento e Intervenção Urbana”, para compreensão do
contexto e análise do planejamento de Brasília, procuramos discutir os paradigmas
norteadores da análise do planejamento urbano, levando em consideração não
apenas a concepção tecnicista e instrumental de intervenção racional, mas
considerando o planejamento como uma realidade viva, dinâmica, composta de
agentes sociais diversos que também nele interferem. Para isso, percorremos o
discurso racionalista-iluminista recém produzido na Europa e sua força de atuação
como explicação filosófica do mundo, atingindo e definindo também a
38
complexidade urbana. Assim, as cidades passam a ser o palco principal das
experiências tecnicistas-modernas, em que a arquitetura e o urbanismo se
transformam em solução exclusiva para conter degradação espacial e mazelas
sociais, em conformidade com a evolução capitalista. Nesse complexo processo de
compreensão de um novo mundo racionalista, possibilitou a concepção do
planejamento como ciência do controle do processo irracional de ocupação.
Brasília então, nesse contexto, surge como objeto de interesse para explicitar ões
nutridas pelo processo modernizante em congruência com a sua realidade espacial.
No capítulo 2 - “Planejamento e o Discurso da modernidade” - tecemos
também, considerações sobre a idéia de modernidade apresentada nos discursos
científicos, emanados de diversos lugares da sociedade, reconhecidos como
legítimos e que buscam traduzir o contexto da realidade vivenciada. Salientamos
vincular as considerações sobre a idéia de modernidade às transformações do
espaço social vivenciada no Brasil, sobretudo na influência exercida pela
construção de Brasília. Procuramos referenciar o imaginário cotidiano como uma
categoria composta de elementos importantes para o entendimento do espaço
urbano planejado e a conseqüente normatização da conduta dos diferentes agentes
sociais que habitam a cidade e nela interferem.
No capítulo 3 - “Brasília: o discurso em construção do espaço urbano” -
procuramos demonstrar a partir dos discursos dos mudancistas
8
, a idéia de
modernidade que circunda a mudança e a materialização da cidade de Brasília. O
discurso da modernidade no Centro-Oeste brasileiro, na década de 30, alicerça-se
em argumentos relativos à noção de progresso e modernização como elementos de
heterogeneização da sociedade.
Como referencial empírico e ilustrativo para delinear a formação do espaço
urbano de Brasília, explicitando a sua metamorfose, orientamos a exposição do
capítulo no sentido de identificar e analisar os elementos da modernidade
constantes no projeto da cidade e também nas projeções ensejadas por seus
habitantes. Nesse contexto, exploramos principalmente a historiografia da Vila
8
Grupo político de defensores da transferência da Capital Federal do Rio de Janeiro para Brasília.
39
IAPI como espaço de conflito entre as relações que se estabeleceram no enlace do
planejamento racionalista e o real vivenciado na trajetória urbana de Brasília.
Apresentando-se, inicialmente, de forma conflitante, exigindo a prática de
erradicação oficializada e em outro contexto temporal, de forma complementar.
No capítulo 4, “A ótica dos erradicados e resistentes em resultados de
análises”- explicita, além da metodologia seguida para desenvolver a proposta
investigativa da dissertação, também explora o campo do imaginário e dos valores
na análise das conseqüências diretas que o processo de erradicação de favelas
adotado pelo governo durante a década de 70 em Brasília, teve na população
envolvida e na formação do espaço urbano da cidade. Tendo a Vila do IAPI e a
cidade-satélite de Ceilândia como referenciais empíricos.
40
Capítulo 1 - PLANEJAMENTO E INTERVENÇÃO URBANA
1.1. O pré-planejamento
Pretendemos tecer, neste capítulo, considerações sobre os caminhos que
norteiam a análise do planejamento urbano. Consideramos que o planejar a cidade
deve levar em conta não apenas a concepção tecnicista e instrumental de
intervenção racional do espaço, mas também a que considera o espaço como uma
totalidade dinâmica, viva, composta de agentes sociais diversos que também nele
interferem. Nesse sentido, é necessário ir além dos limites cnicos do
planejamento e aproximá-lo, ainda mais, das esferas políticas e de outras atuantes
na configuração do espaço urbano, como, por exemplo, as representações culturais
e as práticas sociais cotidianas. Citando Siebel, Penna e Ferreira, sugerem que tal
mobilização pode significar verdadeira inovação,
quando os habitantes assumem a tarefa de recuperar sua
região, encontram as formas de fazê-lo e criam seus
próprios modelos e soluções. Assim, as novas
estragias recaem sobre as potencialidades endógenas,
ou seja, sobre a mobilização dos atores locais e sobre a
valorização dos recursos do lugar (Penna e Ferreira,
1996: 206).
Em meados do século XIX, ao ganhar força como explicação filosófica, o
discurso racionalista-iluminista, recém produzido na Europa, possibilitava um
redimensionamento da ciência, que se especializava e subdividia-se em ramos e
sub-ramos de disciplinas destinadas a explicar tudo o que podia ser percebido pelo
cérebro e pelos sentidos humanos. Assim,
estamos agora no processo de despertar do pesadelo da
modernidade, com sua razão manipuladora e seu fetiche
da totalidade, para o pluralismo retornado do pós-
moderno, essa gama heterogênea de estilo de vida, de
jogos de linguagem, que renunciou ao impulso
nostálgico de totalizar e legitimar a si mesmo (Harvey,
1993:19).
O discurso produzido pela ciência passa a constituir o cerne de uma nova relação
com o mundo e com a natureza ao permitir a aplicação prática dos conhecimentos.
As grandes cidades cresciam no pós-iluminismo ultrapassando seus limites
físicos e administrativos, tornando-se enigmáticas aos olhos de seus habitantes. Em
41
seus espaços, acumulavam-se trabalhadores e excedente mão-de-obra desocupada e
ameaçadora a ordem social.
Como palco de grandes concentrações de pessoas e atividades, as cidades
produzem lixo, promiscuidade, doença, desordem e imoralidade. Eram vistas, no
pós iluminismo, como foco de produção de epidemias que atingiam não apenas a
vida material e física dos habitantes, mas também a sua vida mental e moral. A
cidade adoecia e a ela associava-se uma imagem negativa que precisava ser curada
para abrigar a criação de espos necessários à reprodução dos trabalhadores, ao
reordenamento familiar e à produção do trabalho.
Em busca de solucionar o problema, iniciou-se a implantação de políticas
de higienização. No tocante à sociedade, determinou-se a implantação de medidas
direcionadas pelo poder público: eliminação de ambientes insalubres, alargamento
de ruas, instituição de normas de construção, implantação de saneamento básico.
Essas medidas foram pioneiras nas grandes intervenções urbanas, nas quais
observamos a especialização do espaço e a segregação de atividades nocivas à
saúde dos moradores da cidade. Também, visando dividir e controlar o espaço e as
doenças, instituiu-se políticas para a moralização das famílias, das escolas e das
prisões.
“Intelectuais e técnicos tomaram essa situação como estímulo para refletir e
atuar sobre o espaço urbano, adequando-o às novas linguagens econômicas e
políticas da época” (Bernardes, 1994: 24). Os primeiros a intervir foram os
médicos higienistas, apresentando diagnósticos e desafios para os males da
sociedade. Assim, os focos de doenças foram sendo expulsos para a margem da
sociedade (a periferia), onde deveriam ser localizados cemitérios, matadouros,
indústria de curtumes, hospitais e prisões. De acordo com Santos,
Sanitaristas, reformadores sociais, utopistas estão
embebidos da sede de saber característica daqueles
tempos. Querem ‘esclarecer’, ‘limpar suas cidades
escuras e sujas. É preciso poder ver o que acontece por
trás das fachadas decadentes, dentro dos casarões
promíscuos, nos pátios e arrabaldes onde se advinha
instalada a doença física e a moral. Trata-se, antes de
mais nada, de deixar entrar ar e luz. E ordem. (Santos,
1988 : 33).
42
A incipiente modernização da sociedade brasileira inicia-se na transição do
Brasil Colônia para o Império em 1808, com a chegada da corte portuguesa ao país.
A urgência e a rapidez em que a família real se instalou em nossas terras
requereram iniciativas bruscas e necessárias à adaptação da corte às condições
locais. As características do contexto urbano do Brasil Colônia, mais voltadas às
atividades e valores rurais eram inadequadas às novas condições impostas.
A chegada da família real ao Brasil desencadeou um processo de
urbanização modificando o perfil das cidades, até então marcadas por estrutura e
mentalidades rurais subordinadas às atividades desenvolvidas no campo. A entrada
do saber cienfico no mundo doméstico através da “ordem médica”, introduz
mudanças nas regras, nos hábitos e nos costumes, possibilitando a penetração do
Estado no mundo privado. O Estado reorganizou a geografia social do antigo
regime da família colonial ao inserir mudanças instauradas pela modernidade. O
discurso antes ditado pelo grupo doméstico, submeteu-se à ingerência do saber
científico. A casa colonial perdeu aos poucos as suas características (séc. XIX),
modificando-se, juntamente, à introdução do discurso sanitarista e ao processo de
urbanização da cidade.
A corte portuguesa no Brasil Colônia impôs regras, hábitos, costumes e
valores estrangeiros refinados para o contexto cultural moldado por valores e
mentalidades rurais. Essa mistura contribuiu para a transformação do espaço
público da cidade, no qual o moderno identificou-se com atitudes e
comportamentos trazidos pela corte e o tradicional relacionou-se à sociedade
patriarcal brasileira.
O processo de urbanização modifica a estrutura física e social, impondo
reformas. Os médicos participam intimamente, aconselhando como deve ser, e o
que ter e não ter em um ambiente de cidade. Escravos, percebidos como portadores
de doeas e perversão sexual, são expulsos para fora das casas, institucionalizando
o sentimento de intimidade; cria-se uma relação de dependência da família e da
casa com a ciência; o Estado, via processo de higienização, penetra no espaço
privado. A cidade moderna nascente organiza seus espaços, utilizando-se da
vivência das nações européias, a importação de práticas de planejamento. “Para que
43
esta cidade pudesse receber a corte e tornar-se, sendo Conia, sede do governo
Imperial, era preciso imprimir-lhe melhorias urbanas. Criar uma imprensa Régia e
outras instituições, construir pdios que abrigassem a monarquia e a burocracia de
Estado. Trata-se, portanto num primeiro momento em que o governo se
empenhasse num projeto de modernização da cidade” (Resende, 1994 : 127).
É no discurso científico em ascensão, respaldado por dados estatísticos de
médicos sanitaristas e reformadores sociais, que utopistas, filósofos e profissionais
oriundos de outras ciências, inclusive os relacionados ao urbanismo e à arquitetura,
buscam subsídios para teorias e conceitos capazes de orientar a prática de
intervenção e controle do espo. A credibilidade de suas idéias e práticas tem base
na ciência positivista. Para Santos,
Perspectivas idealistas se transformam, sem transição,
em atos de positividade simples e cândida, monstruosos
na verdade, apesar de ou devido à sua grande pureza.
Começam a surgir responsáveis pela forma de novos
espaços. Arquitetos e urbanistas visionários se filiam a
duas correntes principais que, daí por diante, lutarão
para transferir o patrocínio dos mecenas à aceitação
pelo ensino oficial e pelos governos locais e nacionais.
Trata-se do que Choay (1965) designa por culturalismo
e racionalismo/progressismo (Santos, 1989: 33).
É na primeira década do século XX que a observação da cidade extrapola os
limites antes definidos por questões geográficas e administrativas, para tornar-se
também categoria de saber e intervenção. É o que podemos denominar ciência da
cidade. O termo urbano nasce revestido de uma representação simbólica, com o
sentido de intervenção sistemática e permanente apontado para novas práticas de
gestão urbana. A construção desse novo saber sobre as cidades agregada a uma
nova prática administrativa de gestão urbana, constitui momento fundador das
importantes mudanças. Não mais acontecendo no Brasil somente nas bordas
litorâneas, mas também em terras pouco conhecidas do poder estadual por
apresentarem isolamento geográfico e dificuldade de locomoção. De acordo com
Ribeiro,
Em vários países consolida-se a idéia da necessidade de
um novo tipo de intervenção do poder público em
relação às formas que até então prevaleciam sistemática
e permanentes, ao ins da ão pontual; sobre o
conjunto da cidade e não mais em um dos seus
aspectos, tais como habitação; e agora fundada na
44
aplicação das regras do método científico (Ribeiro,
1994 : 107).
Os teóricos do planejamento afirmam que planejar é o contraposto da ação
improvisada. Definem planejamento como processos efetivados por pessoas ou
organismos, tendo em vista a realização de objetivos considerados prioritários. O
planejamento origina-se com o desenvolvimento industrial e comercial, ocorrido
com a estruturação do capitalismo. Com o advento da industrialização e o início da
organização racional do trabalho, o planejamento dá um salto qualitativo, passando
a ser utilizado em diferentes áreas da atuação: empresas, instituições
governamentais, controle da miséria social e ordenação do espaço urbano,
culminando com o dirigismo econômico e com o governo no papel de planejador.
Planejamento e intervenção urbana surgem como projetos de racionalização
e legitimação da nova ordem econômica, política, social e cultural, que se instaura
no final do XIX na Europa e se corporifica nas primeiras décadas do século XX.
Três características inerentes a esse processo devem ser observadas:
1ª) Em sua primeira insncia, o planejamento constitui um instrumento
disciplinador, seja da desordem nas grandes cidades do passado europeu, ou nas
grandes cidades atuais, seja nas planejadas para servir como base de estratégias
políticas, econômicas ou sociais;
2ª) Refere-se à supremacia do conteúdo político sobre as propostas arquitetônicas e
urbanísticas. Os serviços coletivos ou a necessidade de urbanização nascem de
interesses, reflexões e desejos dos políticos para em seguida, ganharem conteúdo e
forma, principalmente, nas mãos de arquitetos e urbanistas;
o os políticos e não os arquitetos que impõem
reflexões sobre a organização do espaço das cidades, os
servos coletivos, a higiene e a construção de edifícios.
Em seguida, procuram os modelos e os tipos que
materializem suas pretensões. A mudança não se
origina na teoria da arquitetura, não sai das pranchetas
(Santos, 1989: 22).
Todavia, é necessário relativizar essa supremacia do político e questionar,
da mesma forma, as concepções da cidade como produto de domínio técnico
arquitetônico. Buscar um ponto de equilíbrio entre o papel da arquitetura em
confluência com a conformação cultural da cidade é o que destaca Argan. Para ele:
É arquitetura tudo o que concerne à construção, e é com
as técnicas da construção que se intui e se organiza em
45
seu ser e em seu devir a entidade social e política que é
a cidade. Não a arquitetura lhe corpo e estrutura,
mas também a torna mais significativa com o
simbolismo implícito em suas formas (...) na cidade,
todos os edifícios, sem exclusão de nenhum, são
representativos e, com freqüência, representam as
malformações, as contradições, as vergonhas da
comunidade (Argan, 1995: 244).
Considerando que a arquitetura interfere na estrutura da cidade, o autor
desmistifica a concepção de “cidade ideal” como fruto da onipotência de um gênio
arquitetônico. Conforme o autor, “a cidade é o produto de toda uma história que se
cristaliza e manifesta” (Argan, 1995: 244). Dessa forma, a idéia de reestruturação
urbana envolve,
A necessidade de valorização do capital humano como
elemento fundamental para redefinir a nova estrutura do
lugar, possibilitando novas estragias de
desenvolvimento, calcadas na participação popular nas
possibilidades de articulação do local, com as diferentes
escalas espaciais e com os processos sociais gerais,
permitindo novas funcionalidades (Penna e Ferreira,
1996: 203).
Os estudiosos do planejamento e intervenção urbana destacam a
proeminência da arquitetura e do urbanismo modernos, dos culos XIX, XX e
nesse que inicia XXI estruturados como forma racional na “criação de novas
formas de associação coletiva, de hábitos pessoais e de vida cotidiana” (Holston,
1993).
3ª) A característica do planejamento relaciona-se diretamente com a postura
assumida em seu nascedouro, pelos produtores do novo saber sobre as cidades, no
caso, os planejadores e urbanistas. Ao mesmo tempo em que exaltam a nova
ciência baseada na aplicação das regras do método científico, portanto, no mito da
racionalidade neutra e objetiva, demonstram um profundo compromisso com o
projeto de reforma social. Este posicionamento é conseência,
das relações entre os diagnósticos que os planejadores
urbanos fazem da sociedade, os objetivos a que se
proem e a estratégia de ação e os problemas
decorrentes das transformações por que passava o
capitalismo naquela época (séc. XIX). Isto é, a
imbricação entre a questão relativa ao quadro
construído das cidades e a sua racionalização com o
projeto de transformação do modo de vida das camadas
populares, de forma a resolver um crucial problema
enfrentado pelo fordismo nascente: a inadequação das
46
práticas operárias às exigências na nova ordem
ecomica e política inerente a este regime de
acumulação (Ribeiro, 1994: 108).
Holston (1993) contextualiza o nascer do urbanismo e da arquitetura,
juntamente à estruturação das Ciências Sociais no século XIX, momento em que o
crescimento de cidades da Inglaterra e França não é acompanhado por melhorias
nas condições sanitárias e sociais. As péssimas condições, sobretudo higiênicas,
fazem com que sanitaristas e reformadores sociais se empenhem na criação de uma
legislação que regulamente a construção de residências. Na medida em que essas
práticas foram consolidadas, os poderes administrativos e políticos tornaram-se,
cada vez mais, centralizadores.
Ao lado de outras ciências, o urbanismo e a arquitetura despontam como
variáveis importantes no processo de intervenção, e funcional de planejamento das
cidades. Ao tornarem-se objeto de conhecimento e de intervenção, o urbanismo e a
arquitetura arregimentam outros saberes, seja como críticos da ordem social e
econômica, seja com objetivos de restauração do espaço urbano. E ainda, como
metas educativas visando à transformação dos indivíduos em sujeitos atuantes e
participativos, através de debates de políticas de ocupação do espo ou através de
estudos comportamentais. Bernardes ressalta que
em conjunto, estes saberes criam uma nova
representação da cidade, baseada na concepção
positivada de progresso, com funções ecomicas,
políticas e administrativas, para abrigar a mão-de-obra
necessária ao empreendimento econômico que se
instaura (Bernardes, 1994 : 31)
47
1.2. A Concepção do Planejamento
A arquitetura e o urbanismo se apossaram do discurso político, por buscar e
propor soluções para o crescimento desordenado derivado da expansão do
capitalismo e, consequentemente, da crise metropolitana. O Congresso
Internacional de Arquitetura moderna (CIAM)
9
assume as críticas do modelo
desordenado, passando a coordenar a maioria do movimento de vanguarda,
assimilando as estratégias dos partidos políticos, de implementar o planejamento
total
10
. Relevantes contribuições apresentadas por Sitte (1992)
11
, contrapondo ao
projeto modernista de Le Corbusier, são pprios também para pensar as cidades.
Seguindo a mesma linha de pensamento, Adshead, pondera que, de acordo
com os planejadores de cidades, o arquiteto deve considerar vários fatores na
determinação do plano urbano: “O perfil do terreno, as vias já existentes, os limites
da propriedade afetada, os marcos, os prédios antigos, as árvores afetadas, etc.”
(Adshead, 1992 : 196). Sitte percebia individualidade em cada conglomerado de
prédios da cidade, sua visão humanista permitia ver a cidade de uma forma
particular:
as pessoas que ocupam sua cidade devem ser aceitas tal
como as encontramos, desorganizadas ricas, pobres e
decrépitas -, e para cada uma delas, de acordo com sua
força ou decrepitude, deve ser encontrado um lugar
conveniente. Sua atitude (de Sitte) diante da
comunidade era antes a de um bispo que a de um rei.
Sua cidade deve ter um crescimento orgânico; não pode
explodir até ficar como as coortes de um ercito; seu
interesse reside na constante exibão das fraquezas e
triunfos do indivíduo. (Adshead, 1992: 197)
O planejamento de cidades torna-se para Sitte, uma proposição impossível,
algo artificial, contrário à arte de construir cidades. Ao defender a disposição das
cidades medievais em seus estudos, Sitte não fica preso ao espo e tempo
9
Os CIAM constituíram, de 1928 a meados de 1960, o mais importante fórum internacional de
debates sobre arquitetura moderna. Os encontros e as publicações dos CIAM firmaram um consenso
entre os profissionais de todo o mundo a respeito dos problemas essenciais da arquitetura, dando
especial atenção aos da cidade moderna.
10
Ver capítulo II, item 2 Holston (1993).
11
Sitte (1992). Seu livro publicado há mais de um século é um marco nas teorias urbanísticas da
segunda metade do século XIX. “Chamava atenção para a dimensão estética da cidade, ao
considerá-la como uma obra de arte e o apenas um grande artefato para atender necessidades
exclusivamente funcionais”.
48
pretérito, pelo contrário, a atualidade de sua obra deve-se ao fato de defender um
“estudo dos métodos dos construtores das cidades medievais com vistas á sua
aplicação nas condições modernas. (Adshead, 1992: 202). Daí sua influência
sobre o moderno planejamento das cidades.
Sitte e Le Corbusier são dois urbanistas com diversas visões do significado
da palavra cidade. Ao construir cidades, Sitte obedece a princípios pautados pela
ausência de planos, pela associação empática dos edifícios em vez da simetria e
pela prioridade da individualidade, em vez da concepção comunitária. Já para Le
Corbusier, “a cidade moderna vive da linha reta por motivos práticos: a construção
de prédios e esgotos. Canalização de água, calçadas e passeios. A circulação exige
a linha reta. A linha reta está em toda a história humana, em toda intenção humana,
em todo ato humano”. (Adshead, 1992: 203)
Os princípios desses urbanistas, suas distâncias marcadas pelas diferenças,
serão de grande mérito para a compreensão da dinâmica que definimos de
“planejamento racional e cidade real”. Principalmente para analisarmos os
caminhos definidos pela cidade a partir do conflito de duas categorias de análise do
urbano: uma que preside o planejamento e a outra que move as práticas sociais do
cotidiano.
As Ciências Sociais, em geral e em particular a Sociologia e a Geografia,
constituem expressões das novas condições de existência da sociedade no século
XIX, e nascem impelidas pela racionalização e secularização da cultura. Enquanto
disciplina científica,
“... o pensamento sociológico (...) pode ser entendido
como uma perspectiva científica de análise adequada à
compreensão das situações do passado e do presente.
Por outro lado, a premência de questões práticas que
impunham soluções científicas nos permite encarar a
perspectiva sociológica como modalidade inédita de
controle à proporção que explicita e torna conscientes
os fatores irracionais da vida social” (Foracchi, 1982 :
12).
Em meio a grande contribuição realizada pela sociologia urbana, deve-se
ressaltar o importante papel que a geografia desempenhou e vem desempenhando
dentro da temática, já observadas no final do século XIX, conforme afirma Abreu:
49
Embora as cidades sempre tenham interessado aos
geógrafos, é no fim do século passado que se inicia o
que chamamos hoje de geografia urbana, coincidindo
com o fato de a cidade ter se tornado o centro da
dinâmica espacial. Inicialmente a grandeza das cidades
era atribuída a sua localização, mas a partir da década
de 20, comou a surgir a idéia de que as cidades
formavam um “sistema complexo” e os estudos
passaram a contemplar as relações entre espaços
urbanos.
12
Assim sendo, as questões urbanas entraram na geografia inicialmente pelo
crescimento brusco das cidades, depois pela sua complexidade, a partir da década
de 20. Na década de 30, a geografia urbana se volta essencialmente para o
planejamento urbano e na década de 1950 os estudos urbanos passaram a
contemplar as relações entre espaço urbano, urbanização e industrialização, fase
caracterizada pela multiplicidade de referenciais trico-metodológicos para tentar
explicar a complexidade urbana. Atualmente, estudos variados possibilitam a
geografia dar respostas mais consistentes às questões urbanas enquanto que a
cidade passa a ser compreendida dentro dos processos de transformação da
sociedade.
Na tradição dos estudos urbanos em geografia, uma outra contribuição pode
ser registrada a partir da obra de Vasconcelos (1999), em que o autor levanta em
seus trabalhos as escolas geográficas engajadas com a temática urbana. Destaca,
em sua obra, a influência da escola francesa, que no início do século enfocava o
sítio urbano, a evolução, as funções urbanas e seus raios de ação. Na década de
1950 aborda a influência das escolas anglo-saxônica e alemã, cujas principais
contribuições, nesse período, são: a classificação, a distribuição, a hierarquia, os
sistemas de cidades e os padrões locacionais e espaciais. Referenciando a geografia
crítica, Vasconcelos (1999) cita o legado de Milton Santos em que o autor é
identificado por apresentar o circuito superior e inferior da economia urbana, os
elementos do espaço, a divisão territorial do trabalho, a divisão social do espaço e a
formação socioespacial, consolidando a geografia como ciência explicativa nas
análises espaciais sobre o discurso urbano.
12
Geografia urbana: questões sobre sua natureza e objeto. Irlane Gonçalves Abreu identifica várias
fases de preocupação dos geógrafos sobre a temática urbana, apontando essa preocupação a partir
do final do século XIX. Revista Bibliográfica y ciências Sociales. Universidad de Barcelona, n. 31,
16 de mayo de 1997.
50
O processo de urbanização e industrialização, como objeto de estudo da
geografia e da sociologia, possibilita, também, o nascimento do planejamento como
ciência do controle de processos irracionais de ocupação. Ele constitui o melhor
instrumento para solucionar situações de crise e de irracionalidade na sociedade.
Segundo Mannheim (1950: 12), “se os elementos irracionais da vida social podem
ser determinados, ou melhor, se podem ser discutidos na esfera racional, isto
significa serem manipuveis, portanto suscetíveis de controle social” (Mannheim,
1950: 12).
Tal entendimento - possibilidade de controlar, intervir, ingerir e manipular
os elementos irracionais da vida social - constitui a fundamentação do
planejamento. Em respeito à personalidade humana e às decisões coletivas, com os
objetivos de aprimorar situões existentes e de criar novas, se necessárias ao
processo de reintegração e continuidade do sistema social, ora preservando-o, ora
modificando-o, Mannheim aponta a idéia do planejamento democrático, assumindo
uma concepção totalizadora: “o pensamento planificado considera a si próprio
como um pensamento que é parte do processo total da vida” (Mannheim, 1950:12).
O pensamento teórico de Mannheim contribuiu, sobremaneira, ao
pensamento político e, sobretudo, a produção social no Brasil, por configurar o
planejamento democrático como uma alternativa de síntese, expressada por uma
integração de muitos pontos de vista complementares num todo compreensivo.
Acompanhar sua reflexão nos permite entender a incursão de planejamento
democrático, enquanto “configuração hisrica do presente” como concepção de
“planejamento total.
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