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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UNIRIO)
CENTRO DE LETRAS E ARTES (CLA)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO (PPGT)
DOUTORADO EM TEATRO
O LAMENTO DA IMPERATRIZ
A linguagem em trânsito de Pina Bausch
A questão do espaço e a cidade na obra bauschiana
SOLANGE PIMENTEL CALDEIRA
RIO DE JANEIRO, 2006
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O LAMENTO DA IMPERATRIZ:
a linguagem em trânsito de Pina Bausch
e a questão do espaço e a cidade na obra bauschiana
Por
Solange Pimentel Caldeira
Tese submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Teatro do Centro de Letras
e Artes da UNIRIO, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor sob a
orientação da Profª Dra. Evelyn Furquim
Werneck Lima.
Rio de Janeiro, 2006
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CALDEIRA, Solange Pimentel.
O Lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito de Pina
Bausch e a questão do espaço e a cidade na obra bauschiana/ Solange
Pimentel Caldeira. - Rio de Janeiro, abril de 2006.
ii, 511 p.
Orientador: Profª.Drª. Evelyn Furquim Werneck Lima
Tese. Universidade do Rio de Janeiro. Doutorado em Teatro.
Bibliografia: p. 319 - 344.
Anexos: p.345 - 511.
Dança-Teatro. 2. História da Dança 3. Dança e dramaturgia. I.
Orientador: Profª.Drª. Evelyn Furquim Werneck Lima II. Universidade
do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Teatro (2005-). III.
Título: O Lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito de Pina
Bausch e a questão do espaço e a cidade na obra bauschiana.
Dedico este trabalho a todos aqueles que
caminharam e caminharão, através da Dança e do
Teatro, pelos palcos da vida.
In Memorian
Antonio dos Santos Caldeira Filho, meu pai.
i
AGRADECIMENTOS
AGRADEÇO a todo o corpo docente do Centro de
Letras e Artes da UNIRIO, que tornou possível este meu
caminho.
AGRADEÇO à minha orientadora e artista, Drª.
Evelyn Furquim Werneck Lima, pelo permanente apoio,
aconselhamento, paciência e enorme carinho com que trata
AS ARTES - fatores vitais para a consecução dessa tese.
AGRADEÇO à vida por me permitir, mais uma vez,
estar em contato com a criação artística.
Ii
RESUMO
A presente tese tem por meta analisar O Lamento da Imperatriz, primeiro e único filme
de Pina Bausch, bem como seu texto narrativo-corporal e seus componentes estruturais,
discutindo as relações entre as formas de construção do texto e suas técnicas, investigando o
percurso dessa escritura corporal. O trabalho divide-se em seis capítulos e alguns anexos, que
informam sobre as obras de Pina Bausch resultantes de suas residências em diversas cidades,
incluindo também a análise das peças Cafe Müeller e Nelken.
O primeiro capítulo mostra a trajetória da história da dança até o Tanztheater de Pina
Bausch; o segundo discute a presença e uso do corpo e do espaço na dança contemporânea e
na dança-teatro. O terceiro capítulo enfoca a interatividade como instrumento recorrente nas
artes contemporâneas, salientando-se as tradições e contradições da condição pós-moderna dos
corpos. O quarto capítulo apresenta a cidade como repertório de temas contemporâneos e sua
presença na obra bauschiana. O quinto capítulo analisa o filme de Pina Bausch, evidenciando
sua construção a partir da corporalidade e das relações mítico-simbólicas. As conclusões
encerram o trabalho sobre a metodologia fílmica de Pina Bausch na dança-teatro e em seu
universo teatral.
Obra marginal, experimental e independente, O Lamento da Imperatriz registra o
processo criador de Bausch e a ligação imediata com sua dança-teatro por meio do seu
principal elemento: o corpo - corpo-personagem, que perambula na sua imensa solidão
humana, e corpo-cidade, cuja protagonista é Wuppertal. Chamando a atenção do espectador
para a transitoriedade das imagens, Pina Bausch consegue efetivar nesta obra a transmigração
entre as linguagens da dança, do teatro e do cinema, sem renúncias.
ABSTRACT
The present thesis aims to analyze The Lament of the Empress, first and only film of
Pina Bausch, as well as its narrative-corporal text and its structural components,
arguing the relations between the forms of construction of the text and its
techniques, investigating the passage of this corporal writing. The work is divided
in six chapters and some annexes, with inform on the workmanships of resultant Pina
Bausch of its residences in diverse cities, also including the analysis of some
parts of Cafe Müeller and of Nelken.
The first chapter discusses the history of dance up to the Tanztheater de Pina
Bausch; the second argues the presence and use of body and space in contemporary
dance and in dance-theater. The third chapter focuses the mixing of different arts
as a recurrent instrument in contemporary arts, enhancing the traditions and
contradictions of the post-modern condition. Chapter fourth presents the city as
repertoire of contemporary subjects and its presence in the bauschian conceptions.
The fifth chapter analyzes the film of Pina Bausch, evidencing its construction from
the importance of the artist body and of its mythical-symbolic relations. The
conclusions reveal the unusual work on the film making methodology applied by
Pina Bausch, through her hability in the dance-theater and its teatrical universe.
Out of the common expectatives, experimental and independent, The Lament of the
Empress registers the creative process of Bausch and the immediate link to its
dance-theater by means of its main element: the body - body-personage, who rambles
in its immense solitude, and accomplishes to fulfill simultaneously the
languages of dance, theater and cinema.
SUMÁRIO
Resumo 01
Abstract 02
Introdução 05
Capítulo1 História e fundamentos da dança 16
1.1 Alguns aspectos da História da Dança 16
1.2 A dança moderna: a escola americana e a escola germânica 20
1.3 Dança contemporânea e pós-moderna 31
1.3.1 Dança é techné 31
1.3.2 Pina Bausch e o Tanztheater 42
1.3.3 A construção poética de Pina Bausch 46
Capíltulo 2 Corpo e Espaço na Dança Contemporânea: a hibridização 59
2.1 Que corpo dança? 59
2.2 Dançar no espaço 69
2.3 Corpo, espaço, movimento, formas 78
2.4 Dança e virtual 80
2.5 A pós-modernidade 87
2.6 Arte: um tanto de real, um muito de semântico 88
2.7 O movimento pós-moderno na dança 91
Capítulo 3 Interatividade: Dança, Teatro, Cinema
96
3.1 A estética da arte do século XXI 96
3.2 Corpo: expressão estética 102
3.3 O espaço e as imagens 120
3.4 Corpo e cinema: imagens em ação 125
3.5 A partilha de representações estéticas 126
3.6 A partilha da técnica 130
3.7 Cinema: nova maneira de olhar o mundo 130
Capítulo 4 Espaço-cidade
135
4.1 As cidades e suas imagens 135
4.2 A imagem urbana como índice social 136
4.3 A imagem urbana como contraste 138
4.4 A imagem urbana como universo 139
4.5 A imagem urbana como poesia 140
4.6 A imagem urbana do ócio 141
4.7 A imagem urbana como reminiscência 142
4.8 A imagem urbana como objeto 145
4.9 Cidades complexas 147
4.10 As práticas de espaço 154
4.11 Os espaços sociais 156
4.12 Caminhos, caminhares e representações 157
4.13 A escrita corporal urbana 158
4.14 O mundo como espetáculo e a cidade espetacular 164
4.15 Cidades e seu imaginário 165
4.16 A cidade por Pina Bausch 169
Capítulo 5 O Lamento da Imperatriz: Um percurso de identidade
míticas 175
5.1 O pensamento simbólico 175
5.2 A dança-teatro de Pina Bausch: narrativas da contemporaneidade 180
5.3 Os cronotopos 195
5.4 O lamento da Imperatriz: descrição e análise 197
5.5 História de cronotopos 255
5.6 Humor dialógico 259
5.7 A linguagem: um sonho dirigido 267
5.8 Uma alegoria do cinema 268
6. Conclusão: Toda imagem é uma narrativa, todo gesto tem uma história 279
6.1 A Viagem 279
6.2 O sujeito 282
6.3 O agente da ação 286
6.4 As viagens de Bausch 290
6.5 Como homenagem e reflexão 293
6.6 Escrever com a tesoura 296
6.7. A cidade personagem 301
6.8 Uma certa crueldade e afetividade 304
6.9 A escrita-ato de Pina Bausch 306
Referências 319
Livros 319
Ensaios e artigos em periódicos 339
Videografia 344
Anexo 1: Café Muller 345
Conclusões 374
Anexo 2: Nelken 382
Conclusões 402
Anexo 3: As residências: uma cartografia do imaginário 405
As residências: uma cartografia do imaginário 407
Viktor (1986) 413
Palermo Palermo (1989) 419
Ganzabend II (1991) 429
Ein Tranerspiel (1994) 432
Nur Du (1996) 436
Der Fensterputzer (1997) 447
Mazurca Fogo (1998) 452
O Dido (1999) 459
Wiesenland (2000) 463
Água (2001) 468
Nefés (2003) 479
Ten Chi (2004) 484
Rough Cut (2005) 492
Pina Bausch e Ítalo Calvino: os olhares para a cidade 495
Anexo 4: Rudolf Laban e o Gráfico do Esforço 504
INTRODUÇÃO
A dança-teatro se insere na contemporaneidade, revelando o cotidiano transformador
que oferece o espaço urbano e salientando as tradições e contradições da condição pós-
moderna dos corpos.
Desde a invenção da machadinha de pedra lascada, o híbrido pode ser considerado
como uma forma de operar da humanidade na sua origem: “o processo de formação do homem
vem junto com o processo de manipulação dos primeiros instrumentos”
1
. Nosso corpo já não
seria “puro” desde o começo. A vida não se constitui apenas de constituintes biológicos, já não
existem apenas árvores, o sol, o ar puro, a natureza; existem os carros, os computadores, a
Internet.
Através dos meios de transporte, por exemplo, aumenta a capacidade de deslocamento;
com os novos meios de comunicação, tem-se uma nova camada espacial, comunicação com
pessoas em lugares distantes e diferentes. Utiliza-se a energia, resultante do híbrido, teorizada
por Marshall McLuhan em sua célebre citação: “o cruzamento ou hibridização dos meios libera
grande força ou energia, por fissão ou fusão”
2
, para vivermos o atual momento tecnológico.
São híbridas as formas geradas do encontro entre arte da dança e as novas tecnologias
da comunicação e da imagem. Os coreógrafos exploram a hibridação, incorporando
conhecimentos diversos em suas formações. Além da arte coreográfica, que ter
conhecimentos da linguagem teatral, cinematográfica, informática e, em muitos momentos, as
transpõem justamente pelo seu modo artístico e sinuoso de operar. É importante observar que a
força híbrida reside nesta intersecção entre natural/artificial, homem/tecnologia, antigos pólos
1
LEMOS, A. Técnica, sociabilidade e civilização. In: PRETTO, Nelson de Lucca (Org.) Globalização &
Educação: mercado de trabalho, tecnologias de comunicação, educação à distância, e sociedade planetária.
Rio Grande do Sul: Unijuí, 1999. p. 80. Lemos parte dos estudos de André Leroi-Gourhan, que estabelece que a
formação do homem é integrada com a formação da técnica, um processo simbiótico. Ver: LEROI -GOURHAN,
A Le geste et la parole. Paris: Albin Michael, 1964.
2
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 67
dualistas que hoje podem viver a fusão. O híbrido é mais do que apenas a soma de suas partes,
conforme o pressuposto de McLuhan.
"O híbrido, ou o encontro de dois meios constitui um momento de verdade
e revelação, do qual nasce a forma nova. Isto porque, o paralelo de dois meios
nos mantém nas fronteiras entre formas que nos despertam da narcose narcísica.
O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade e libertação do
entorpecimento e do transe que eles impõem aos nossos sentidos."
3
McLuhan se refere a “meios” não se restringindo aos meios midiáticos, como a
imprensa, a TV, o rádio, mas também aos meios expressivos das linguagens artísticas, como
teatro, cinema, dança, literatura. Ele mesmo cita alguns exemplos de obras híbridas como
Picture de Lillian Ross - que unia o meio literário com o meio cinematográfico - ou ainda as
obras de James Joyce, como Ulysses, que utilizava exemplos clássicos para fazer paralelos com
situações da vida cotidiana. Com isso, antigas barreiras e delimitações caem por terra. No
híbrido, não possibilidade de definições tão precisas de limites, mas de um lugar para
produtivas mixagens, colagens. Considerando que o híbrido é uma forma humana de operar, na
arte também ocorre hibridação.
A questão aqui, pressupondo que somos e vivemos o híbrido, é caracterizar o tipo de
hibridação atual, de que maneira esta época contemporânea fabrica e é fabricada, a partir de
suas técnicas e instrumentos, pela sua hibridação particular. Tudo parte da hibridação
contemporânea entre corpos e tecnologias, redes formadas pelo emaranhado de relações e
novas significações, que redimensionam a criação artística, como no caso da dança-teatro.
O corpo é incisivamente invadido, inspecionado, inquirido. O que se estabelece de novo
na criação híbrida contemporânea é que ele se constitui como um folheado. Tem-se uma
imagem que se vincula a um texto, que se vincula a um deo, que abre outras inúmeras portas
de outras tantas imagens.
3
McLUHAN. Op. Cit., p. 75.
A dança-teatro conecta diversas formas e mídias, não como um movimento de adição e
sim de inter-relação, um fio que se desenrola em outros possíveis. Quando a imagem se
interliga com um texto, e o texto sugere um outro, e outra imagem, e mais outra, o fio se
complexifica e cria caminhos rizomáticos.
As obras coreográficas da dança-teatro utilizam essa intersecção, exemplificam o
encontro entre dança e outras áreas, utilizam a energia híbrida que é gerada a partir do
encontro. Assim, surgem modificações na forma, no limite, favorecendo a expressividade
artística contemporânea, possibilitando o encontro e a dissonância aos artistas que buscam
novas linguagens, novas expressões, novas formas, exercitando e atualizando imaginários.
Para Marc Augé
4
, podemos considerar a contemporaneidade como que constituída por
três figuras de excesso: a superabundância factual, a superabundância espacial e a
individualização das referências. Para ele, vivemos o excesso e nem percebemos como ele
é/está totalmente impregnado em nossas vidas; lidamos com um número gigantesco de
informações durante o nosso dia-a-dia e estamos acomodados a utilizá -lo sem maiores
reflexões. A primeira figura de excesso, proposta por Augé, a superabundância factual, se
constitui a partir das transformações ocorridas em relação ao uso e à percepção do tempo pela
humanidade. Com o fim da modernidade, o homem passa a viver num contexto intenso de
fatos em que a “história se acelera”; os fatos históricos se sucedem com profusão e velocidade.
Esta aceleração temporal vertiginosa precipita a história. Regimes políticos vêm abaixo,
inúmeras crises eclodem, além de todas as descobertas tecnológicas que cotidianamente
surgem.
Os historiadores estão impossibilitados de tornar o tempo um princípio de
inteligibilidade, um princípio de identidade; esta dificuldade advém da profusão e velocidade
dos fatos.
4
AUGÉ, Marc. o-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1992.
Não como construir verdades absolutas fundamentadas em fatos que sucumbiram
no último instante histórico. Este excesso nos turva a visão, nos confunde os sentidos e faz com
que não consigamos ver todos os “sinais visíveis daquilo que foi”, o que facilitaria a construção
de uma diferença e de um encontro à nossa identidade. Augé alerta que “o que é novo não é
que o mundo não tenha ou tenha pouco ou menos sentido, é que sentíamos explícita e
intensamente a necessidade diária de dar-lhe um: de dar um sentido ao mundo (...)”
5
.
Uma segunda figura de excesso é o excesso de espaço. Segundo Augé vive-se o
“encolhimento” do planeta. Estamos na era das mudanças de escala, tornando os lugares
ligados entre si onde podemos acompanhar fatos que acontecem do outro lado do mundo
simultaneamente. A superabundância espacial traz algumas modificações importantes no
cenário urbano: concentrações urbanas, transferências de população, e multiplicação daquilo a
que Augé chama de “não-lugares”,
em oposição à noção sociológica de lugar.
Diametralmente oposta ao excesso, a solidão, segundo Augé, também constitui a
contemporaneidade. Convivendo assim, cidadãos que se deslocam por diversos países e que se
comunicam numa velocidade instantânea, habitantes dos “não-lugares”, com aqueles que
clamam por solidão, por silêncio, ou ainda, por uma pátria. Vive-se uma época paradoxal, onde
coexiste a constituição de grandes redes multirraciais, com o clamor dos particularismos, da
solidão.
A terceira figura de excesso é a figura do ego. Augé considera que mais do que nunca a
produção individual de sentido se fez necessária, que os pontos de identificação coletiva são
tão imprecisos. Vivendo o excesso espacial, temporal e factual, onde o homem tende à
individualização dos procedimentos, é que a produção individual de sentido - o indivíduo
e interage com o mundo. Este indivíduo vive num mundo sem fronteiras, aparentemente com
todas as possibilidades ao seu alcance, com múltiplas informações de fatos que acontecem do
5
AUGÉ. Op. Cit., p. 32.
outro lado do mundo. A construção do seu ego tem como intenção oferecer a estabilidade de
uma identidade e alteridade, mesmo que o contexto seja efêmero e instável.
Considerando que a arte é uma das formas possíveis de produção individual de sentido,
ao artista cabe olhar, refletir, polemizar, propor o mundo ao mundo, e ele o faz mediante suas
criações. O processo artístico nutre-se deste excesso; ele tende à individualização dos
procedimentos, ele requer um ego expressivo, identitário e autônomo. Ao artista que vive sob
as pressões de uma sociedade homogeneizadora, cabe o desvio, por uma espécie de elaboração
diária. assim ele consegue “traçar seu cenário e seus itinerários particulares”
6
. Entretanto,
assim como o excesso coexiste com a solidão, dentro do processo artístico, a presença
marcante do ego do artista coexiste com o compartilhamento comunitário das referências e
experiências. O que entra em jogo aqui é que na modernidade o protagonista era sempre o
artista, a sua obra; a partir da possibilidade criada atualmente favorece-se o intercâmbio, em
que os egos se diluem no aprendizado comunitário. Estas idéias são também defendidas por
Howard Rheingold
7
.
Na arte, como reflexos devido à superabundância factual e à qualidade instantânea do
tempo, surgiu o happening
8
e a performance
9
. Os artistas vêm utilizando todos os espaços de
comunicação e linguagens várias, do teatro à computação gráfica, para criarem suas obras.
6
Ibidem, p. 40.
7
RHEINGOLD, Howard. A comunidade virtual. Lisboa: Gradiva, 1996. Rheingold acredita que é no
ciberespaço que seremos capazes de recuperar, restabelecer o significado e a experiência de comunidade,
reconstruir a comunidade vizinha e a esfera pública da cidade pequena, expandindo este ideal também para a
escala de aldeia global.
8
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. SP: Ed. Perspectiva.1999. p. 191. Happening:Forma de atividade que
não usa texto ou programa prefixado (no máximo um roteiro ou um ‘modo de usar’) e que propõe aquilo que ora
se chama acontecimento (George Brecht), ora ação (Beyus), procedimento, movimento, performance, ou seja,
atividade proposta e realizada por artistas e participantes, utilizando o acaso, o imprevisto e o aleatório, sem
vontade de imitar uma ação exterior, de contar uma história, de produzir um significado, usando tanto as todas as
artes e técnicas imagináveis quanto a realidade circundante.
9
SCHECHNER, Richard. O que é Performance. Texto apresentado na aula do Prof. Zeca Ligiéro. Teatro na
Comunidade, em novembro de 2003. UNIRIO Pós-Graduação em Teatro. Tradução de Dandara. Performance:
No contexto dos negócios, do esporte ou do sexo, dizer que alguém “fez uma boa performance” é afirmar que
tal pessoa realizou aquela coisa conforme um alto padrão, que foi bem sucedida, que superou a si mesma e aos
demais. Na arte, o performer é aquele que atua num show, num espetáculo de teatro, dança, música. Na vida
cotidiana, performar é ser exibido ao extremo, sublinhando uma ação para aqueles que a assistem. No século
XXI, as pessoas têm vivido, como nunca antes, através da performance. Fazer performance é um ato que pode
também ser entendido em relação a ser, fazer, mostrar-se fazendo, explicar ações demonstradas.
Cabe, então, revelar que o espaço não se limita de forma alguma a três dimensões. “A
expressão de uma idéia ou linha de pensamento pode incluir uma rede multidimensional de
indicadores apontando para novas formulações ou argumentos (...)”
10
. A instantaneidade e a
assincronia temporal, a interatividade e o não-lugar destas novas propostas redimensionam a
noção de tempo e espaço nas obras artísticas contemporâneas. Dentro deste processo lugar
para atualização do imaginário artístico contemporâneo, pois a instantaneidade tecnológica se
propõe como um não-lugar de acesso livre e ilimitado a todos.
Na dança-teatro, observamos a superabundância espacial na utilização cada vez mais
freqüente de diferentes espaços. Pina Bausch, ao levar para o palco água e terra, troncos de
árvores e folhas secas, milhares de cravos ou dezenas de cadeiras, instaura um novo modelo
espacial para a dança, até então inédito.
A mudança cênica é irrevogável e não há como detê-la. A medida em que vai se
apresentando, muitos dos valores tradicionais cedem lugar a novas possibilidades. O antigo
espaço físico desobstruído, desejável para a dança, reformula-se. Dançar na água ou na lama
certamente não é o mesmo que dançar num chão de madeira uniforme. O espaço transforma-se
e, com ele, também o movimento-imagem dos corpos dançantes. Utilizados e reutilizados em
conjunto ou separadamente, os espaços físicos, orgânicos, do mundo são estruturalmente
maleáveis. O sistema coreográfico pode crescer, adaptar-se mais do que nos sistemas
anteriores. É o novo se oferecendo à arte do movimento.
O mérito desse processo está na compreensão de que a partir de novos dados
cenográficos importante transformação na estrutura coreográfica. A transmissão de
informações através de um instrumento apenas corporal, na dança, altera-se radicalmente.
Novos canais fundem-se: tem-se sim o movimento corporal, mas reelaborado em novos
espaços.
10
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Cia das Letras,1995.p.72.
A dança pós-moderna surge do cotidiano, da vida, do acaso. Reflete a vida das pessoas
do final do século XX: a incomunicabilidade humana, a solidão introjetada nos corpos. A
dança-teatro incluiu e expressa este estado do mundo. Na condição pós-moderna, os artistas
criam tendo por base referenciais pessoais, culturais e sociais. Suas obras estarão utilizando,
expondo e questionando o cotidiano urbano do final do século XX.
No cenário caótico da humanidade, descobre-se que a fonte de todas as fontes chama-se
informação e que a dança assim como qualquer modalidade de conhecimento nada mais é do
que um certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações. Isso abrange os
conhecimentos mobilizados na arte da dança e seus encontros com outras linguagens.
Estabelece-se um novo jogo, totalmente imerso neste movimento de troca, de apropriação. A
dança-teatro também é unidade de informação, ela apresenta e representa seu momento
histórico. Nela, expandem-se cada vez mais os estudos e as pesquisas sobre as diferentes
linguagens que usa, com o objetivo de conhecer a mecânica da produção catastrófica do século
XX. A dança-teatro passa a ser vista como um conjunto de mensagens possíveis de serem
traduzidas, revelando um processo intersemiótico entre dança, teatro, pintura, circo, cinema,
tecnologia.
A dança e o corpo humano, seu instrumento primeiro, mais técnico, complexo e
heterogêneo do que se possa pensar, tenta expressar esse homem, cuja faculdade de raciocinar,
de aprender, de se emocionar, parece estar em decomposição. As pesquisas coreográficas
realizadas voltam-se para a construção de novos jogos de linguagens, que questionam num
mesmo fazer, a miserabilidade da experiência humana.
No híbrido analisado nesta tese, dança-teatro e cinema, considera-se que dança e
cinema são fraternos, pois ambos virtualizam, desencadeiam processos de conexão através da
imagem em movimento. O artista inicia seu processo de criação a partir de uma experiência, de
um estímulo, ou qualquer outro motivo, para, logo em seguida, recomeçar o processo em outro
circuito, que problematiza o estímulo, que colhe mais e mais informações, que faz conexões a
princípio impossíveis, mas que aos poucos vai operando e constituindo uma lógica que
configura a obra. A dança-teatro e o cinema operam da mesma forma, abrem portas, conexões,
desviam, informam e propõem imagens, dando direção ao mesmo tempo em que confundem. O
que transforma o espaço dança-teatro-cinema num lugar propício e promissor para o trabalho
do artista. As cidades, por sua vez, são labirintos da vida, do pensamento e da produção no
século XX, que deixam heranças ao século XXI. Traduções da ordem contemporânea são
objetos técnicos e, mais do que meros espaços organizados, segundo a evolução tecno-
científica, são complexos sistemas significantes, extensões ainda mais amplas dos órgãos
corpóreos
11
.
O panorama urbano apresenta significações em constantes e variados processos de
virtualização e atualização, além dos olhos e do estado de coisas, se configurando num campo
para realização dos desejos humanos, onde formas de interação são construídas no movimento
intermitente do trânsito caótico, do vai e vêm de milhares de pessoas, do excesso de
informação estampada em outdoors, placas, alto-falantes e vozes. Lugar onde os fluxos trazem
o emaranhado de significações. Resta ao habitante extrair da paisagem urbana seus textos e
mensagens possíveis.
Qual a compreensão do espaço que se constitui a cidade? As respostas escapam o
tempo todo. Nesse sentido mostra-se fundamental entender como a reapropriação do espaço, as
redes telemáticas, a noção de tempo presente e a “morte do social” no mundo contemporâneo
se inter-relacionam favorecendo a criação de novas ocupações físicas e simbólicas das cidades.
A cidade se esboça como narrativa fragmentada intermediando realidades distintas que
existem como projeção de um não-lugar, uma geografia de similaridades e contradições
esboçada na percepção, no deslocamento, no percorrer por infindável sucessão de imagens, que
traduz um sentido de passagem pela paisagem urbana. Porém, mais do que a abstração do
11
MCLUHAN, Op. cit. p.144.
mapa, a cidade é concebida segundo o itinerário que traçamos em nosso dia a dia, assim, uma
leitura possível de cidade tem com o fluxo o caminho traçado no tecido urbano, que funciona
como código de tradução da urbanidade onde o que chamamos de paisagem é um resultado da
sinergia entre forma e conteúdo, entre o concreto e o que ele serve de suporte, onde não se sabe
o que é preponderante. Portanto essa cidade contemporânea pode ser entendida como processo
hipertextual, que a metáfora do hipertexto não se aplica às situações geradas em ambientes
alfanuméricos, mas ambientes de informação, essa cidade se presta a uma outra flânerie, jamais
pensada por Baudelaire, um deslizar de dados entre as ruas.
São essas cidades que, a partir de um determinado momento, tornam-se temas na obra
de Pina Bausch. Bausch enfoca os significados contidos no panorama urbano que não são
possíveis segundo a lógica do urbanismo, mas no entendimento daquilo que a experiência com
esse ambiente traz de antemão: noções de tempo e espaço da vivência, motivados pelas
residências que faz nas cidades. Aspectos em que, na apreensão do que está posto na matéria
urbana, vale o jogo de sentido entre forma, conteúdo e movimento, numa cidade que não é
moderna, mas uma cidade da sociedade de simulação, que joga com os símbolos da sociedade
do espetáculo. Mas, no olhar de Bausch, a cidade não pertence mais à sociedade do espetáculo,
no sentido dado a esta pelo situacionista francês Guy Débord. Ela é mais do que o espetáculo,
configurando-se como uma espécie de manipulação do espetáculo
12
, que possibilita e
estabelece novas apropriações do tecido urbano, que vence as barreiras imaginárias da
ocupação do espaço urbano. É esse repensar sobre a cidade, que existe como metáfora da rede
de relações esboçada em suas peças e, que se faz ntese em seu único filme: O Lamento da
Imperatriz, objeto desta tese, que integra as pesquisas desenvolvidas junto ao Laboratório de
Estudos do Espaço Teatral, coordenado pela Draª Evelyn Furquim Werneck Lima
12
LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina. 2002.
p. 96.
Nosso trabalho, na busca da demolição das convenções estéticas propostas por Pina
Bausch, divide-se em seis capítulos e alguns anexos
13
, que descrevem e analisam a iconografia
do filme O Lamento da Imperatriz, filme de Bausch sobre a cidade de Wuppertal, no qual a
cidade é personagem protagonista, uma bela homenagem à cidade sede de sua companhia, em
que Bausch apresenta, por trás da falência do espaço urbano, a habitação de uma nova ordem
de coisas, que nos aproxima do mundo mítico, da nostalgia de uma cidade mítica perdida,
provocada pela incompreensão generalizada do deserto do real.
No capítulo 1, História e fundamentos da Dança-Teatro -que tem um caráter histórico-,
mostra-se a trajetória da história da dança até o Tanztheater de Pina Bausch.
O capítulo 2, Corpo e espaço na dança contemporânea: a hibridização, permite
discutir a presença e uso do corpo e do espaço na dança contemporânea e na dança-teatro.
No capítulo 3, Interatividade: dança, teatro, cinema, enfoca-se a interatividade como
instrumento recorrente nas artes contemporâneas, apropriado e utilizado com singularidade por
Pina Bausch, salientando-se as tradições e contradições da condição pós-moderna dos corpos.
o capítulo 4, Espaço cidade, apresenta a cidade como repertório de temas
contemporâneos: a cultura do medo, as relações de poder, a cidade da memória e a memória da
cidade, e como metáfora contemporânea da fluidez, da interatividade e hibridização da cultura
na obra bauschiana.
No capítulo 5, faz-se a análise do filme de Pina Bausch, O Lamento da Imperatriz: um
percurso de identidades míticas, a partir do prisma da visualidade, utilizando-se elementos da
análise do espetáculo teatral, evidenciando sua construção a partir da corporalidade e das
relações mítico-simbólicas.
O capítulo 6, Toda imagem é uma narrativa, todo gesto tem uma história, encerra o
trabalho, com uma reflexão, a partir do estudo do filme e de outros trabalhos de Bausch, sobre
13
Os anexos informam sobre as obras de Pina Bausch resultantes de suas residências em diversas cidades,
incluindo também uma análise de Cafe Müeller e Nelken, peças referidas durante o desenvolvimento do trabalho.
sua metodologia fílmica na dança-teatro e em seu universo teatral: uma visão do tenso mundo
em que vivemos e da linguagem esgarçada que se expõe como camuflagem da solidão humana,
apontando o absurdo do mundo pós-moderno, a inutilidade da atividade humana e sua
desesperada busca de amor.
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA E FUNDAMENTOS DA DANÇA
1.1. Alguns aspectos da História da Dança
A dança está presente na história da humanidade, quer seja como atividade quotidiana
totalmente inserida na vida humana, quer seja como espetáculo, onde uns dançam e outros se
deleitam (ou não) assistindo, desde o surgimento da nossa espécie. Para o filósofo Roger
Garaudy, “a dança esteve enraizada em todas as experiências vitais das sociedades e dos
indivíduos: as do amor e da morte, das guerras e das religiões”
14
.
Os primeiros registros de “atividades dançantes”
15
se remetem ao período Paleolítico
Superior da Pré-História. Nesta fase, o homem vivia em pequenas hordas, caçando animais
para sobreviver. A representação pictórica era utilizada para alcançar determinado objetivo,
havendo registros de figuras humanas disfarçadas realizando danças com determinados fins,
como matar um bisão, por exemplo. Helena Katz
16
cita como a mais remota inscrição da
atividade dançante os desenhos na gruta de Gabilou, entre 12.000 e 8.000 mil a.C.; Paul
Boucier
17
registra o primeiro dançarino em 14000 a.C.
Uma cena gravada na gruta de Addaura, datada de 8.000 a.C., representando uma roda
de sete personagens dançando em torno de outros dois, é considerada por Boucier a mais antiga
representação da dança de grupo. Para ele, a dança nos períodos mesolítico e paleolítico,
14
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1980. p.27.
15
MENDES, Miriam. A dança. São Paulo: Ática, 1987. p.8. Segundo Mendes, não registros de que os
homens deste período histórico cultuassem alguma divindade, ou acreditassem em vida após a morte, nem que
possuíssem pensamento lógico.
16
KATZ, Helena. Um, dois, três; a dança é o pensamento do corpo. São Paulo: 1994. Tese (Doutorado em
Comunicação e Semiótica) - PUC/SP,1994. p. 27.
17
BOUCIER, Paul. História da dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.2.
através do êxtase e da despersonalização vividos, propicia o abandono da identidade pessoal
em favor da identidade de grupo.
Segundo Boucier
18
, no período seguinte, o Neolítico, o homem de predador transforma-
se em produtor, organiza-se em grupos mais poderosos que a família, e nascem as cidades.
Nesse momento, ele passa a adorar os espíritos e a cultuar seus mortos. Surgem danças fixas,
cumprindo papel importante dentro das cerimônias e dos rituais; essas danças rituais eram
dirigidas às divindades protetoras. Sua execução se restringia aos homens, especialmente aos
magos e aos sacerdotes, e a sua prática era revestida do caráter mágico e encantatório. A partir
de então, a dança torna-se um rito cívico “integrado à vida da cidade e comandado por ela”
19
.
Do período Neolítico até o ano 30 da nossa era, Boucier concebe a dança como sendo
amplamente praticada no Egito, primeiramente sob forma sagrada, depois litúrgica,
principalmente litúrgica funerária
20
, e depois recreativa. Já o povo hebreu, marcado pelo seu
conservadorismo rigoroso, parece abandonar a dança à espontaneidade da multidão, e não a
inscreve no ritual das celebrações. As alusões à dança, mesmo com alguns registros nos livros
líricos, como os “Salmos”, são vagas.
Na Antiguidade Clássica, considerando a cultura ocidental de matriz européia, o
florescer de novas civilizações e etnias, que continuavam dançando. Estes novos grupos
praticavam a dança tanto em seu caráter mais sagrado, como parte das cerimônias religiosas e
ritos (de guerra, de fertilidade), como em sua forma profana, em apresentações que tinham a
finalidade de divertir o público.
A civilização grega sempre esteve impregnada pela dança. Ritos religiosos, cerimônias
cívicas, festas, educação das crianças, treinamento militar ou na vida cotidiana, a dança
18
BOUCIER. Op. cit.., p. 10.
19
Ibidem, p. 12.
20
Nos túmulos egípcios deste período, independente da condição social do seu proprietário, registros de
dançarinos e dançarinas, acompanhando cortejos funerários e “guiando” os defuntos.
intervinha em todos os momentos da vida dos gregos, do nascimento à morte
21
. Para os gregos,
foi em Creta que “os deuses ensinaram a dança aos mortais”
22
; os primeiros grupos de
celebrantes dançaram em honra a Dioniso, e os ditirambos
23
foram criados, bem como o
choros
24
trágico e a tragédia. A dança era de essência religiosa, dom dos imortais e meio de
comunicação com eles.
A dança dionisíaca foi a princípio sagrada, depois dança de loucura
25
, cerimônia
litúrgica fixa no calendário, cerimônia civil, ato teatral, até dissolver -se em dança de diversão.
Sob sua forma específica, a dança dionisíaca é a dança mais antiga conhecida na Grécia,
Dioniso aparece como o deus do despertar primaveril da vegetação e, portanto, como deus da
fertilidade-fecundidade: muitos dos ritos dionisíacos são ritos agrários e comportam a
ostentação do phallos. Por outro lado, é o deus do ubris, do entusiasmo, da embriaguez, do
transe, do êxtase.
26
Com o declínio da cultura grega, a dança perde a sua importância e transmuta-se em
atividade de mero entretenimento, sendo principalmente executada por cortesãs, afastando-se
do culto original a Dioniso. Durante a Idade Média, seria alvo de retaliações da Igreja.
Na Idade Média houve uma ruptura brutal na evolução da dança: de sagrada que era na
Antiguidade, passa a ser perseguida. Os dançarinos eram marginalizados, associados a ladrões.
Apesar disso, e talvez por contar com o respaldo e a força popular, ela sobreviveu, fato este
aliado à perseverança de atores e dançarinos que se apresentavam em feiras e praças públicas.
Tornaram-se então alvo dos olhares dos nobres da época que passaram a imitá-los, primeiro
como forma de divertimento e depois decodificando e ornamentando esta mesma dança através
dos maîtres de baile, transformando-a em danças da corte.
21
Boucier relata a prática entre os gregos de danças de nascimento e s-parto, danças que celebram a passagem
dos efebos à categoria de cidadãos, danças nupciais e danças de banquetes. Ver Id., ibid., p.37-38.
22
Id., ibid., p.20.
23
Hinos cantados e dançados em honra a Dioniso.
24
BOUCIER. Op. cit.., p. 22: um jogo de etimologia que os gregos adoravam: choros deriva de chora, a
alegria. Enfim, a dança é divina porque dá alegria”.
25
Era celebrada pelas mênades, mulheres possuídas pela mania, a loucura sagrada.
No Renascimento (meados do século XV até o final do século XVI), em que a busca de
um saber racional e lógico ocorria em todas as áreas, foram produzidos conhecimentos
sistematizados no campo da dança, fazendo inclusive com que ela se dividisse em duas formas:
uma mais popular, lúdica e não-profissional, e a outra intelectualizada, com caráter de
espetáculo, praticada por profissionais e admirada pela aristocracia.
Historicamente, o que se segue são quatro séculos de transformações do balleto à
linguagem do ballet clássico. Esse processo se inicia no século XVI, intensifica-se no século
XVII, passa pelo Romantismo do século XVIII e chega ao seu apogeu através dos russos no
século XIX.
No século XVI, dois países foram os grandes responsáveis pelo desenvolvimento dos
balletos: a Itália e a França. Na França, a dança esteve sob proteção da rainha-mãe Catarina de
Médici e do seu mestre-de-baile, o italiano Baltasar Beaujoyeux. Beaujoyeux foi o criador do
Ballet comique de la reine, gênero de dança que reunia a dança com outras formas de arte
como a mímica, a poesia, o canto e a cenotécnica
27
. Foi Beaujoyeux também que idealizou o
primeiro espetáculo dividido em três partes: abertura, exposição do tema e o grand ballet final.
Cabe ressaltar que, neste período, os ballets de corte eram totalmente realizados, organizados e
executados pelos nobres, sendo uma dança de características simples, com passos cadenciados;
nada muito complexo ou com grandes acrobacias.
O século XVII pode ser considerado como o grande século do ballet, devido às
transformações que aconteceram. Primeiro, o ballet de la reine se desestruturou dando espaço
para o surgimento de novas formas mais associadas à comédia e à tragédia. Depois, uma
progressiva profissionalização na área, desencadeada pelo músico e mestre de ballet Jean-
Baptiste de Lully e sedimentada pelo rei e dançarino Luís XIV, responsável pela criação da
Academia Real de Dança e de Música (1661).
26
BOUCIER. Op. cit.., p. 24.
No século XVIII, a dança ganha uma nova forma ao se aliar à pantomima
28
, tornando-se
mais dramática
29
. Destaca-se o francês Jean Georges Noverre como o principal defensor desta
nova forma. Houve também outras figuras importantes nesta época, como Maria Sallé, que
revolucionou o figurino na dança, priorizando a liberdade do corpo em oposição aos pesados
figurinos. Neste século, observa-se que a dança revigora-se na Itália e expande-se até São
Petersburgo, alargando suas fronteiras.
O Romantismo, surgido no final do século XVIII até meados do século XIX, propunha
o papel da arte como fuga da realidade. A dança desta época registra encenações de contos de
fadas e romances. A harmonia, a leveza e a técnica perfeita de suas dançarinas (e o declínio da
figura masculina), que passavam a utilizar as sapatilhas de ponta, aliadas à ação dramática da
pantomima, podem ser consideradas os conceitos-sínteses do ballet romântico. Na Rússia, do
final do século XIX até início do século XX, o coreógrafo Serge Diaghilev e seus sucessores
levam a linguagem do ballet ao apogeu.
No início do século XX, certezas seculares foram postas em questão nas artes, nas
ciências, nas sociedades e nas religiões. Havia a necessidade de que fossem checados todos
os postulados e regras então codificados no Renascimento, e foi neste século que surgiu a
dança moderna.
1.2. A dança moderna: a escola americana e a escola germânica
A dança moderna teve duas vertentes: a escola americana e a germânica. O precursor da
escola americana foi François Delsarte, segundo Boucier um cantor fracassado que, a partir de
sua experiência de vida, refletiu sobre os mecanismos pelos quais o corpo traduz os estados
sensíveis interiores. As idéias de Delsarte influenciaram artistas das mais variadas áreas; na
27
A cenotécnica é o conjunto de aparatos técnicos utilizados visando a construção dos cenários, iluminação e
efeitos especiais de uma peça de teatro, ópera ou espetáculos de dança.
28
Pantomima: o conteúdo narrativo dos ballets transforma-se, por meio da pantomima, numa ação sem palavras.
29
Dramática no sentido de ter início, meio e fim. (Poética, de Aristóteles).
dança ele propunha que “a intensidade do sentimento comandasse a intensidade do gesto (...)”,
considerava que o corpo, principalmente o torso, constitui a fonte e o motor do gesto,
defendendo a expressão obtida pela contração e pelo relaxamento dos músculos: tension-
release
30
.
para o historiador Antonio Faro, a dança moderna é considerada primitiva, “porque é
a primeira, porque voltou aos essenciais, ou seja, ao início básico da dança, liberada de
artifícios, sendo um meio através do qual o artista pode expressar seus anseios mais de acordo
com a vida do homem atual”
31
. O primeiro movimento contra as regras e os artifícios do ballet
clássico é pontuado, por exemplo, pelo aparecimento de uma figura singular e pioneira da
dança moderna americana, Isadora Duncan.
Duncan se opôs radicalmente às formas codificadas e preestabelecidas do ballet, e se
propôs a dançar a própria vida: gestos naturais, andar, correr, saltar, reencontrar o ritmo dos
movimentos inatos do homem, “escutar as pulsações da terra, obedecer à lei da gravitação”
32
.
Os temas de suas danças, inspirados na natureza, eram as ondas, as nuvens, o vento; também a
música clássica sustentava suas criações. Pretendia devolver à dança o papel de comunhão e
comunicação que tinha perdido ao longo da história. Esta coreógrafa pôde, junto com um dos
seus mestres, Nietzsche, voltar às origens gregas da dança e se opor claramente aos dois mil
anos de um cristianismo que lutava contra a dança, contra o corpo e contra a natureza. Ela
criou coreografias a partir das danças dionisíacas, das figuras de vasos gregos, da tragédia e da
história grega, resultando numa dança lírica, natural e de grande riqueza vital. Considera-se
Duncan, a primeira matriarca da dança moderna.
Ted Shawn e Ruth Saint-Denis foram incisivamente influenciados por Duncan, a quem
viram dançar em Londres (1900) e, juntos, formaram a primeira escola de dança moderna, a
Denishawn. Ao se unirem, contribuíram com dois principais fundamentos para a dança
30
BOUCIER. Op. cit.., p. 244-245.
31
FARO, Antonio José. Pequena história da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1986. p.116.
moderna: o enriquecimento do vocabulário (com a absorção dos conhecimentos das danças do
Oriente) e a criação de uma teoria e de um treinamento técnico da dança. Ted Shawn
apregoava um retorno aos sentidos unificadores da dança vividos pelo homem em seu estágio
inicial. Para ele, a dança deveria estar no centro da educação por ser ela raiz de toda cultura.
Um registro importante é que Ruth Saint-Denis, que praticava a dança como uma
verdadeira religião do espírito, apregoando sua revitalização e universalização, conseguiu
reintroduzir a dança na liturgia, combatendo mais uma vez, na história, o dualismo cristão:
alma e corpo como partes dissociadas entre si. Exemplos de suas criações coreográficas
baseadas nestes princípios são O Mika, The Yogi e Rhada, de 1906, A máscara de Maria e A
Natividade, de 1917.
A partir da Denishawn surgiram três gerações de criadores da dança moderna
americana. Uma primeira com Martha Graham, Doris Humprey e Charles Weidman;
posteriormente, Merce Cunningham e Eric Hawkins, que se formaram com Martha Graham, e
o mexicano José Limon, que foi aluno de Doris Humprey, e uma terceira geração composta por
bailarinos e coreógrafos como Paul Taylor, ex-dançarino de Graham, Twyla Tharp e outros.
Com Martha Graham, aparece a segunda grande matriarca da dança moderna. Se
Isadora se opôs ao ballet propondo transgressão e renovação à linguagem da dança, Graham se
opôs, por sua vez, à Isadora e à própria Denishawn, onde teve sua formação. Por não se
identificar nem com as danças que partiam dos fenômenos da natureza, como queria Isadora,
ou ainda a partir de culturas exóticas e tão distantes, como propunha Ruth Saint-Denis, Graham
queria dançar o homem deste século
33
, perturbado pelas máquinas e que convivia com as
guerras, trazendo assim à tona as emoções humanas e revelando seus instintos. Sua dança
32
BOUCIER. Op. cit.., p. 248.
33
GARAUDY, Op. cit., p. 91: “Às vezes seu trabalho faz referência direta ao fato histórico: “Deep Song”, de
1937, é o primeiro solo em que vibra em uníssono com a Revolução Espanhola. Mais tarde, realizou “Immediate
Tragedy” sobre a Guerra da Espanha, ao mesmo tempo em que Picasso pintava “Guernica”, sob inspiração
semelhante. Na época da Segunda Guerra Mundial, criou a coreografia “Carta ao Mundo”, acentuando no
homem o que ele tem de monstruoso e de glorioso”.
também tinha caráter nacionalista, que acreditava que, por seu intermédio, o homem
expressa o que faz, e isso não se refere a ele, abrange também o seu país e sua época. Para
Graham, a dança revela o espírito do país onde tem suas raízes. Esta é a temática da
coreografia Frontiers de 1935. Já em 1944, Graham evocou os limites não mais de seu país,
mas sim do seu povo, com a coreografia Apalachian Spring.
A partir de 1944, ela começa a compor seus grandes balés míticos; a maioria dos temas
escolhidos era de fundo grego, expondo problemas fundamentais da humanidade. Para ela, “a
origem da dança está no rito, esta aspiração de todos os tempos à imortalidade”
34
. Graham
pôde reviver grandes mitos reveladores da essência humana, revelando significações
profundas.
Tinha preferência pelos mitos que pudessem exprimir intensamente o drama vivido a
partir da ótica feminina, representando Medéia (Cave of the heart), Joana d’Arc (The Triumph
of Joan d’Arc, 1951), Clitemnestra (Clytemnestre, 1958), entre outros. Acreditava que, ao
utilizar os mitos em suas temáticas, estava conservando a chama de seus antepassados,
utilizando-se das fontes primitivas do mundo em que o primitivo tinha o papel não de criar
obras de arte e sim de criar armas míticas para defender e melhorar a vida humana.
O mais singular em Graham é que ela viveu numa época cercada de angústias,
incertezas, guerras, revoltas e, para expressar tudo isso, criou uma nova linguagem técnica.
Graham retoma um princípio, oriundo de Delsarte, e comum a todas as tendências da dança
moderna: a força do gesto acontece em função da força da emoção. Se olharmos um pouco
para trás, podemos confrontar a visão onírica das concepções dos ballets românticos com esta
nova forma para a dança, retratando as angústias de uma época: total mudança nos paradigmas
da dança; da fantasia ao pesadelo.
Graham desenvolveu o conceito de que o centro de irradiação de toda a energia se
encontra no mesmo lugar onde todas as nossas emoções são experimentadas fisicamente, ou
seja, no abdômen. A partir da respiração fundamentou sua técnica, os movimentos de
inspiração e expiração, de contração e release
35
; e é em conseqüência da respiração que surgem
os movimentos.
Em uma outra linhagem da escola americana da dança moderna encontramos Doris
Humprey, que propõe que todos os elementos da dança são encontrados na vida, sendo que a
dança se alimenta dos movimentos da vida. A partir de seus estudos, classificou os gestos
humanos em sociais, funcionais, rituais e emocionais
36
. Baseou sua técnica no ciclo da
respiração e nas de ações de "queda e recuperação" - para ela os movimentos deveriam criar
desenhos assimétricos. Em seu livro, The Art of Making Dances (1959)
37
, enfoca o movimento
humano como uma transição entre queda e recuperação, indicando que em vez de desafiar a
gravidade, como no balé clássico, os dançarinos modernos deveriam assumir e explorar o
próprio peso. Até mesmo os movimentos de saltos e altas extensões de pernas, que aparecem
nas suas coreografias, são momentâneos, como se houvesse uma força ctoniana descendente
que os puxasse para o chão. Por isso a grande variedade de movimentos executados perto ou no
chão em suas coreografias New Dance, Water Study, Pasacaglia e The Shakers, entre outras.
Como o balé buscou esconder ou desafiar a força de gravidade, assim também se
esforçou para esconder a tensão de dançar. A dança moderna, por outro lado, particularmente
no trabalho de Graham, enfatizou essas qualidades, abusando de frases coreográficas com
gestos angulares e fortes, que estruturam linhas de tensão que transpassam o movimento. A
coreografia de Martha Graham não só expressou a luta do dançarino contra as limitações
físicas, mas também o poder da paixão e frustração, sempre através de ações carregadas de
34
BOUCIER. Op. cit., p.277
35
Liberação muscular.
36
Os gestos sociais seriam os gestos que expressam as relações entre os homens. Os funcionais seriam os do
trabalho e revelam a relação do homem com o homem e também com a natureza. Os gestos rituais exprimiriam a
relação dos homens com seus deuses e seus ritos. Os emocionais revelariam as relações do homem com seus
sentimentos, e, assim sendo, se constituiriam como os mais importantes para os dançarinos.
37
HUMPHREY, Doris. The Art of Making Dances New York.Grove Press.1959.
sentido, sem jamais cair no vazio da forma decorativa, instaurando assim uma escrita
dramática feita pelo corpo.
A estrutura dos trabalhos de dança moderna correspondeu, em parte, à tendência à
narrativa fragmentada, característica da arte modernista. Graham, por exemplo, empregou
freqüentemente grupos de dançarinos, que formavam um todo escultural, para representar
forças sociais ou psicológicas, como em Clytemnestra (1958), ou vários dançarinos para
retratar facetas diferentes de um único caráter, como em Seraphic Dialogue (1955) e Dark
Meadow (1957). Aboliu também a divisão hierárquica entre os bailarinos principais e o corpo
de baile, uma tradição da dança clássica.
Ao mesmo tempo em que nos Estados Unidos se desenvolviam estas correntes, no
princípio do século na Europa, surgiu um movimento paralelo, produzido por algo que não
existia ainda na América do Norte: o Expressionismo.
O Expressionismo foi um movimento artístico surgido na Alemanha no início do século
XX, que privilegiava a emoção, a intuição e o inconsciente, e visava a descarga violenta de
sentimentos, especialmente os de dor e de perda, tornados mais prementes nos indivíduos após
os horrores da Primeira Guerra Mundial.
Na tentativa de traduzir com a máxima intensidade o sofrimento humano individual e
coletivo, abusava-se da exacerbação e da distorção formais. A realidade assim deformada
provocava um efeito de estranheza e de grotesco. Na pintura, no teatro, no cinema e na dança,
cores fortes, contrastes do claro-escuro, criavam atmosferas sombrias, mórbidas, trágicas. . Os
teóricos de dança Émile Jacques-Dalcroze
38
e Rudolf Von Laban
39
são os maiores
38
DALCROZE, Émile-Jacques (1865-1950): professor do Conservatório de Música de Genebra, constata que
uma educação corporal pode ajudar na iniciação musical. Em 1910, abre um Instituto em Hellerau, onde
desenvolve seu método - a Eurritmia, chamando a atenção de alguns artistas da dança. Eurritmia: educação
psicomotora com base na repetição de ritmos, que cria reflexos na progressão da complexidade e da
sobreposição de ritmos. O método consiste em educar o aluno fazendo-lhe praticar um solfejo corporal cada vez
mais complexo, com movimentos tão claros e econômicos quanto possível.
39
LABAN, Rudolf Von (1879-1958): cientista da dança, coreógrafo e dançarino húngaro. Líder da dança
moderna na Europa Central, inventou a escrita cinética denominada Labanotation. Contribuiu de maneira
especial para o desenvolvimento das teorias sobre o movimento de dança e a partir de 1938 concentrou seus
representantes dessa tendência, gerando uma rica produção de escritos, onde descrevem seus
métodos e técnicas e expõem reflexões sobre questões estéticas e pedagógicas relacionadas à
dança.
Dentro desta corrente européia, surge a dança moderna alemã que se originou e se
desenvolveu no seio do movimento expressionista, tendo como principais representantes o
mesmo Rudolf Von Laban, Mary Wigman e Kurt Jooss.
Talvez o mais importante representante da vertente alemã tenha sido Rudolf Von Laban
(1879-1958) que, embora húngaro, desenvolveu seu trabalho na Alemanha e na Inglaterra. Ele
cria uma poética própria. Para ele, a dança é a arte dos movimentos do corpo no espaço, cada
movimento, cada simples gesto de qualquer parte do corpo, revela um aspecto do estado
interior, ou seja, os movimentos são manifestações de sentimentos.
Assim, o maior problema da dança é fazer aparecer às motivações afetivas dos
movimentos na própria concretude do ato corporal. Deve-se pensar por movimentos e não por
palavras ou mímica, entender que uma seqüência corporal deve revelar, ao mesmo tempo, o
caráter de quem a realiza, o fim pretendido, os obstáculos exteriores e os conflitos interiores
que nascem desse esforço. As estruturas coreográficas devem decorrer dos significados
internos da ação: a dança passa a ser literalmente dramaturgia pelo movimento.
Laban criou um importante método para análise do movimento humano, em que
espaço, tempo, peso e energia são os parâmetros principais e um sistema de registro gráfico do
movimento - Labanotation. Desenvolveu também uma metodologia para o ensino da dança
cujo objetivo principal era preparar o corpo do bailarino para que ele pudesse responder a
diferentes exigências e solicitações relativas à expressão de sentimentos, sensações e emoções.
Por isso seu método era também chamado de dança livre, pois a partir da assimilação de seus
princípios, as pessoas poderiam movimentar-se livremente, criando suas próprias seqüências
estudos em dança educativa. Fundador do Art of Movement Studio, posteriormente transformado em Laban Art
of Movement Center Trust. Autor dos livros Choreographie, Jena, 1926; A Life for Dance, Londres, 1948;
gestuais, isto é, partituras corporais. Isso nos permite falar em texto corporal e, por extensão, a
dança em conjunto passa a ser considerada como um diálogo de textos corporais. Laban,
descontente com o nazismo alemão, vai para a Inglaterra, mas deixa na Alemanha sua
assistente, Mary Wigman.
Mary Wigman (1886-1973) dançarina, professora e coreógrafa, aluna de Dalcroze e
Von Laban, criou coreografias de conjunto e solos, consideradas marcos da dança
expressionista alemã, como: Cattulli Carmina, Carmina Burana, Saul, Orpheus and Eurydice.
O destino trágico do homem e da humanidade é o tema da sua obra. Para ela, formar o
bailarino é torná-lo consciente dos impulsos que estão dentro dele. Não busca adestramento
físico em sistemas preestabelecidos. Quer que o bailarino se ponha à escuta de si mesmo para,
deste modo, ouvir o eco do mundo. Acredita que, no final desse caminho, o artista conhecerá
suas forças criadoras profundas e adquirirá meios corporais para exprimi-las.
Para ela, a música é o meio indispensável de união entre o ritmo corporal e o ritmo
mental, como em Dalcroze, porém, em nenhum caso o ritmo sonoro deveria comandar o ritmo
mental (o que diferenciava a sua proposta da do mestre de Hellerau). A dança de Wigman era
fundamentalmente expressionista, explorando o grotesco e o demoníaco. Sua obra, construída
no período entre guerras, é permeada pela angústia e sofrimento. Seu estilo caracteriza-se por
movimentos de joelhos ou no plano baixo, cabeça freqüentemente pendida para o chão e braços
que raramente se erguem no ar, para o alto. Os corpos ficam tensos, deformados até, e os rostos
transformam-se em máscaras de dor, ironia, desprezo e solidão. Não como negar a presença
de uma carga dramática em sua dança, o que permite perceber já a existência uma dramaturgia
corporal.
Um aspecto importante da sua técnica é a relação do dançarino com o espaço. Para
Wigman o espaço é limitador, é uma resistência contra a qual é preciso lutar. Dessa premissa
surge uma concepção do movimento como fruto da interação do homem com esse espaço que
Principles of Dance and Movement, Londres, 1956 e Choreutics, Londres, 1966, entre outros.
lhe é ameaçador. O movimento assim toma um novo sentido, torna-se descontínuo e
imprevisto, remete a uma tensão que nada mais é do que a reunião de forças para resistir a este
espaço opressor. Em 1931, Mary Wigman funda uma escola de dança em Nova Iorque, que foi
mantida e dirigida por sua aluna e seguidora Hanya Holm (1898-1990). Hanya Holm
influenciou uma série de coreógrafos norte-americanos, dentre os quais Alwin Nikolaïs.
Nikolaïs (1912-1992) definia suas obras como peças de som e visão. No seu trabalho, o
movimento é um dos elementos da encenação, em paridade com os acessórios, as projeções
luminosas e o som, formando seqüências de imagens coreográficas plásticas, sonoras. O corpo
dos bailarinos é muitas vezes alterado e despersonalizado por adereços cênicos
40
. Trata-se aqui
ainda de uma escrita corporal, não obstante o processo de desmascaramento e
despersonalização do corpo.
41
Nikolais desenvolveu nos Estados Unidos, toda a sua
genialidade de coreógrafo na utilização da luz como elemento principal do espetáculo. Os
corpos dos seus dançarinos perdem o aspecto humano através do uso de acessórios, figurinos
de tecidos elásticos e, sobretudo, através do emprego da luz para adquirir formas surrealistas.
Ele é o primeiro coreógrafo a utilizar projeção de slides sobre o corpo dos dançarinos,
propondo a dança como elemento móvel num universo irreal, onde a sensação visual criada é
tão intensa que faz nascer o estranhamento.
Oskar Schlemmer, da Bauhaus, embora não fosse coreógrafo de formação (era pintor),
é também considerado um artista associado à dança moderna alemã. Schlemmer absorveu suas
idéias sobre a cena principalmente de um ensaio do escritor romântico alemão Heinrich Von
40
A inclusão significante da iluminação e dos figurinos na dança, tem Loie Fuller (1862-1928) como pioneira.
Bailarina e coreógrafa norte-americana, cujos desempenhos no final de 1890 e início de 1900 consistiam em
movimentos muito simples com efeitos visuais complexos. Embrulhando-se em metros de panos diáfanos, ela
criava formas elaboradas que se transformavam em uma variedade de fenômenos mágicos. As ilusões eram
aumentadas por luzes coloridas e projeções, que deslizavam pelos tecidos flutuantes, e varas que lhes
encompridavam os braços. Trabalhou sobretudo com improvisação.
41
Com dois filmes; Totem e Fusion (1963), experiência a fusão entre pintura, cinema e dança, Enquanto em
Sanctum (1964), usa suportes de iluminação e figurinos para criar um mundo estranho, de formas desumanas.
Kleist. O texto, Sobre o teatro de marionetes (1810)
42
, questiona a superioridade do dançarino
humano em relação aos fantoches e marionetes, defendendo a tese de que o movimento dos
marionetes teria muito a ensinar à dança. Em 1922, Schlemmer estreou, no Teatro Municipal
de Jena, seu Balé Triádico
43
, espécie de síntese de suas idéias em teatro, obra em progresso,
cujas montagens sucessivas chegaram a 1932
44
. Interessado em extrair novas possibilidades
perceptivas do corpo, Schlemmer idealiza figurinos, máscaras e aparatos de cena que
constringem o livre movimento do bailarino. Tal elaboração determina um novo padrão gestual
que apresenta uma qualidade mecânica, evocando imagens de bonecos, autômatos ou
máquinas. Para realizar esta meta, Schlemmer produziu inúmeros desenhos. Todos os seus
espetáculos, do Balé Triádico às danças da Bauhaus (desenvolvidas nos anos de 1926/27),
tinham roteiros gráficos minuciosamente planejados. Os desenhos dos figurinos de Schlemmer,
vistos pelo olhar de hoje, se assemelham a projetos de wire-frames
45
que facilitam
incrivelmente a digitalização. A cena de Schlemmer era, na verdade, a antevisão da cena do
computador que os atuais programas de 3-D conseguem realizar com facilidade.
E, finalmente, Kurt Jooss (1901-1979), dançarino, professor e coreógrafo alemão, aluno
e colaborador de Rudolf Von Laban. Inicialmente um estudante de música, Jooss começa seus
estudos de dança em 1920. Depois de estudar balé em Viena e Paris, Jooss volta à Alemanha e
estabelece uma escola (1927) e uma companhia (1928).
42
In CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. Estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade. SP: UNESP Ed.,
1997. p.182. - Heinrich Von Kleist, Über das Marionettentheater (1810) mtliche Werke, Münich.p.884.
43
LIMA, Evelyn Furquim Werneck . 'Concepções espaciais: o teatro e a Bauhaus'. In O Percevejo. 7 . RJ:
PPGT / UNIRIO.1999. p. 54. "A cena para a Bauhaus era arte e movimento, era o ato mágico da criação plástica
que se concretizaria no Triadische Ballet, concebido por Schlemmer. O espetáculo compunha-se de três partes
que constituem uma construção a partir de cenas de danças concebidas de maneira típica e indo, no que tange ao
sentido, da galanteria ao sério. A primeira parte apresenta-se como um burlesco alegre, num palco decorado de
amarelo limão; a segunda é solene, encenada num palco cor de rosa, e a terceira é de um gênero místico-
fantástico sobre um palco negro. As doze danças diferentes, nas quais o autor utiliza dezoito tipos de figurino,
são encenadas alternativamente por três personagens: dois bailarinos e uma bailarina".
44
Ver mais sobre este assunto em: LIMA. 1999. Op. cit. p. 44-60.
45
Programas de computação em que é possível se elaborar figuras em três dimensões e com movimentação.
Em 1930 ele se torna o mestre de balé da Ópera de Essen, onde cria seu próprio grupo.
Em 1932 ele ganha o primeiro lugar na competição coreográfica organizada pelos Arquivos
Internacionais da Dança, em Paris, com A Mesa Verde, que viria a ser sua obra-prima.
Seu grupo fica conhecido como Jooss Ballet e faz uma excursão mundial durante 1933
e 1934. Com a subida de Adolf Hitler ao poder, Jooss vai para a Inglaterra, onde abre um
estúdio com Sigurd Leeder, só retornando a Essen em 1949, como um cidadão britânico.
Reabre sua escola e, em 1953, sua companhia torna-se estatal.
Jooss manteve em suas obras as posições básicas do balé, mas usando múltiplas
possibilidades de gesto expressivo e eliminando exibições de simples virtuosismo, como
dançar nas pontas e piruetas. Em sua escola em Dartington e depois em Essen, formaliza e
desenvolve, a partir dos estudos de Laban, uma técnica que permite ao dançarino executar uma
ampla variedade de estilos de dança com expressão e controle.
Convencido de que a dança é essencialmente teatro, que deve expressar a problemática
de seu tempo, Kurt Jooss no Expressionismo a forma correspondente às exigências da
época. Cada movimento, no seu entender, deveria ter um sentido. As expressões vigorosas
dos personagens, do drama e da mensagem para Jooss, são essenciais à dança. Num insight
revelador, Roger Garaudy
46
afirma que: "Para ele, o papel e o sentido da dança moderna era
criar os grandes símbolos e mitos reveladores da idade do homem".
Seu trabalho é reconhecido internacionalmente como uma síntese da dança clássica e da
dança moderna em produções marcadamente teatrais, responsáveis por uma ampliação técnica
e temática da dança. Entre suas coreografias temos Bailes de Viena, A Grande Cidade, O
Espelho e Dithyrambus, mas sua obra-prima é A Mesa Verde
47
. É preciso que os bailarinos se
46
GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. RJ: Nova Fronteira,1981.p.121
47
ROCA, Octavio. Oakland Back on Table .In The San Francisco Chronicle.13 November 1995. P.K1.
Atualmente, Anna Markard, filha de Kurt Jooss, dedica-se a remontar as obras de seu pai. Tendo trabalhado com
Jooss até sua morte, domina em profundidade sua estética e pensamento. Segundo declarações de seus
bailarinos, suas remontagens são preciosas devido às descrições minuciosas das intenções que devem sublinhar a
movimentação coreográfica de cada personagem. Orientando os bailarinos que personificam os políticos na
primeira cena, ela diz: "É preciso se sentir com o peito cheio de medalhas, assumir toda a sua importância. Os
identifiquem expressivamente com seus papéis. Essa será a mais importante herança deixada
por Jooss, Wigman e Laban: cada movimento tem um sentido e uma história por trás.
A partir de Isadora Duncan e tendo seu desenvolvimento em Graham, Humprey,
Weidman, Cunningham, Wigman, Laban, Jooss, Schlemmer e Nikolais, a dança deixa de ser
mero entretenimento e passa a ser também expressionista, expressão do homem e sua relação
com o mundo; um mundo povoado por guerras, máquinas e por novas regras e engrenagens. É
clara a preocupação com o ser humano e suas percepções do mundo, suas dores e suas paixões.
A dança está voltada neste momento para expressar esse homem e o que ele vive
historicamente.
Este é o espírito da dança no século XX: uma nova dança que se opõe àquela,
decorativa e acrobática do ballet clássico, propondo uma expressão do espírito humano por
intermédio dos movimentos do corpo, fundamentando o princípio da expressividade do
movimento. “Os modernos exploram de forma quase científica as possibilidades motoras e as
limitações do corpo humano, o uso de seu dinamismo, o emprego dramático do espaço e do
ritmo corporal em movimentos”
48
.
Esse é o panorama do que convencionamos nomear como dança moderna, e que
abrange toda a primeira metade do século XX. Numa linha de continuidade com a história da
dança moderna traçada até aqui, vincula-se a dança contemporânea e o gênero dança-teatro,
que surge na segunda metade do século XX.
1. 3. Dança contemporânea e pós-moderna
1.3.1. Dança é techné
bailarinos riem, tentam o 'olhar de importantes', mas seguem a indicação, que vai estruturar o caráter da falsa
polidez na conversação". Outro exemplo significativo aparece durante o ensaio da primeira cena da Morte, em
que Markard propõe aos dançarinos que avancem para frente: "Vocês estão passando através do povo,
atravessando uma massa humana, vocês são como um tanque que avança, uma máquina poderosa".
48
FARO. Op. cit., p.118.
Se, na Pré-História, a dança é o todo; na Antiguidade é rito e é mito; na Pré-
Modernidade é o culto à fantasia e aos sonhos, e na Modernidade é revelação de emoções e
sentimentos de uma época marcada pela angústia e pela dor. Imagina-se que outras definições
surgirão a partir das alterações que ocorreram e ainda ocorrerão no contexto histórico.
Para Isadora Duncan, “a dança é resultado de um movimento interno”
49
. Duncan
considera que a dança não é, como se tende a acreditar, um conjunto de passos mais ou menos
arbitrários que são o resultado de combinações mecânicas e que, embora possam ser úteis
como exercícios técnicos, não poderiam ter a pretensão de constituírem uma arte. Já para
Martha Graham, a dança é uma participação na vida, uma celebração, e não um espelho dela,
onde corpo e a alma estão implicados de forma indivisível nesta experiência, pois para ela a
arte pode ser vivida por um ser total. Em Graham também se percebe a relação dos ritos e
dos mitos, considerando que a dança “é criação e encarnação dos grandes mitos (...) cada
grande mito é um indicador de transcendência”
50
.
Com Mary Wigman, a concepção de dança também se une à própria concepção de vida.
Segundo ela “a arte tem a mesma raiz que a existência. O artista é habitado pelos movimentos
da vida de seu tempo, cuja imagem simbólica exprime”
51
. Esta definição de Wigman ajuda a
retomar a proposição de que, ao definir-se dança, necessariamente que se considerar o
tempo histórico em que vive o criador.
Roger Garaudy
52
explica que a palavra dança, em todas as línguas européias danza,
dance, tanz, deriva da raiz tan, que significa em sânscrito “tensão”; por isso ele conclui que
“dançar é vivenciar e exprimir, com o máximo de intensidade, a relação do homem com a
natureza, com a sociedade, com o futuro e com seus deuses”
53
. Em sua raiz, a dança sempre
49
BOUCIER. Op. cit.., p.251.
50
GRAHAM apud GARAUDY. Op. cit., p. 92.
51
WIGMAN apud GARAUDY. Op. cit., p. 108.
52
GARAUDY. Op. cit.
53
Ibidem, p.14.
veio revestida deste significado, canal de comunicação entre os homens e os deuses, por meio
do qual transcendemos a própria existência.
Nesta mesma direção, Maurice Béjart considera que “dança é união. União do homem
com seu próximo. União do indivíduo com a realidade cósmica”
54
. A dança é uma arte que
transcende o poder das palavras, da mímica, do traduzível para tornar-se um “meio de dizer o
indizível”
55
. Se ao teatro cabe construir um mundo, uma história em que o imaginário
simbólico do artista toma forma de palavras, gestos e cenário, a dança pode dar forma até
àquilo que não é possível de ser descrito em palavras ou cenas. A dança revela o inominável, o
indescritível. Ela até pode, como acontece nos espetáculos de ballet, encenar uma história, ter
um conteúdo narrativo, mas mesmo que a isolássemos do contexto, ela continuaria existindo
enquanto forma de puro movimento.
A dança moderna como espetáculo das paixões humanas e dos grandes
questionamentos temáticos - tanto no expressionismo alemão, quanto nas criações dos
coreógrafos americanos da primeira geração - foi a estética predominante por muitas décadas.
Porém, nos anos quarenta, começa nos Estados Unidos uma reação crescente contra essa
tendência, encabeçada por Merce Cunningham.
Cunningham norteia seu trabalho por sete princípios básicos: 1) qualquer movimento
pode ser base para uma dança; 2) qualquer procedimento pode ser válido como método de
composição; 3) qualquer parte ou partes do corpo podem ser usadas, desde que nos sujeitemos
às suas limitações naturais; 4) a música, os figurinos, o cenário, a iluminação e a dança
possuem uma identidade própria; 5) qualquer espaço pode ser utilizado para dançar; 6)
qualquer dançarino de uma companhia pode ser solista; e 7) a dança pode tratar de qualquer
54
BÉJART, Maurice. Prefácio. In: GARAUDY, Op. cit., p. 8.
55
Citação de Rudolf Laban In: BOUCIER, Op. cit., p. 295.
assunto, mas primordialmente deve tratar do corpo humano e do nascimento e trajetória de seus
movimentos
56
.
Cunningham estava interessado em trabalhar o movimento puro, uma dança que não
fosse servil às demandas da expressão narrativa ou emocional. Recusava, portanto, a idéia de
criar a dança a partir de uma música, de uma cenografia ou de um libreto. Entretanto, muitos
dos seus trabalhos apresentavam colaborações preciosas com músicos e cenógrafos. Música e
cenário eram, porém, concebidos e trabalhados independentemente da coreografia e depois
sobrepostas a ela. Ele sentia que era mais interessante e desafiador para o espectador ser
confrontado com estes elementos, desassociados na origem, e então escolher como relacioná-
los a partir de sua perspectiva pessoal, num ato de co-participação criativa.
Acreditando que todo o movimento era, em potencial, material de dança, Cunningham
desenvolveu um estilo que mesclava ações naturais, cotidianas, como sentar e caminhar, com
movimentos virtuosísticos de dança. Na contramão de um dos princípios constitutivos da dança
moderna (a negação do academicismo), acolhe até mesmo as formas do balé clássico: saltos
claros e aéreos, complexo trabalho de pés e uso de extensões de pernas controladas.
Contrariando de novo a estética moderna, ele colocou maior ênfase na verticalidade e menos
no peso do corpo e na força de gravidade. Como em Martha Graham, muitos dos movimentos
de Merce Cunningham estão centrados no uso do torso, mas tendem menos para contrações
dramáticas e espirais, e mais para curvas e torções definidas e suaves. As frases de
Cunningham são elaboradas coordenando movimentos da cabeça, pés, corpo e membros em
um tecido de posições rápidas e variáveis. O arranjo dos bailarinos no palco é igualmente
complexo: em qualquer momento pode haver agrupamentos fortuitos de dançarinos, que
executem, ao mesmo tempo, frases diferentes. Sem ação principal como foco que domine a
cena, o espectador acha-se livre para acompanhar qualquer parte da dança.
56
Segundo Sally Banes, autora do livro Terpsichore in sneakers, Boston, Hougton Mifflin Company, 1980.
Inventando a obra aberta na dança, que possibilita a leitura individual e diferenciada do
espectador, tornado co-autor da encenação, Cunningham um passo gigantesco no sentido da
renovação de sua arte.
Enquanto Martha Graham normalmente estruturava seus trabalhos ao redor dos eventos
de uma narrativa, a dança de Cunningham tematizava o próprio movimento. Seus trabalhos
normalmente emergiam da exploração de uma ou várias idéias coreográficas, cujo
desenvolvimento, isto é, a ordenação dos movimentos em frases, poderia ser determinada até
pelo acaso. Porém, mesmo partindo de concepções formais, não falta poder expressivo nas suas
criações. Como exemplo, pode-se citar uma parte de sua coreografia Winterbranch (1964). A
idéia original é um estudo de pura ação física: evoluir no espaço e cair. Mas o resultado
produziu um efeito poderoso nos espectadores, sendo interpretado por alguns como uma cena
de guerra, um campo de concentração ou uma tempestade no mar. Cunningham acreditava que,
para ser expressiva e envolvente, a dança não precisava depender de conteúdos narrativos ou
psicológicos. Poesia e emoção podiam emergir do movimento puro.
Cunningham também apresenta inovações no uso do cenário, trabalhando
freqüentemente com estruturas cenográficas que quase anulavam o dançarino. Em Walkaround
Time (1968), a dança acontece ao redor de construções cenográficas atrás das quais se
escondiam os intérpretes.
57
Walkaround Time (1968)
Coreografia de Merce Cunningham
57
Coreografia de Merce Cunningham, com direção de Charles Atlas, música e soundtrack de David Behrman: O
cenário teve supervisão de Jasper Johns. Embora a coreografia, a música e o cenário tenham sido concebidos
independentemente, compartilham de uma finalidade temática comum: uma homenagem ao trabalho de Marcel
Duchamp. Cunningham traduziu o interesse de Duchamp pela transparência nos termos de uma dança que
explorasse as possibilidades de movimento que atravessasse o espaço do proscênio.
A dança moderna, em sua primeira fase, atribuiu-se a tarefa de viver intensamente o que
havia de mais significativo nas angústias e nas promessas do mundo moderno, inventando
signos inusitados capazes de exprimi-las. Mas os novos coreógrafos, liderados nos Estados
Unidos por Merce Cunningham e Alwin Nikolaïs passaram a rejeitar, por sua vez, as
motivações e as linguagens de seus predecessores. Negavam o "conteúdo" no sentido
tradicional, isto é, a narração e a emoção, para reter apenas o movimento pelo movimento,
como matéria única da dança: a dança deveria existir como uma realidade autônoma sem
depender de música, cenários, figurinos, enredo ou sentimento expresso.
Por isso não é de se estranhar que estes novos coreógrafos sejam menos hostis que seus
antecessores à dança clássica. Evidentemente não voltam às sapatilhas de pontas nem às
fórmulas mitológicas, mas não rejeitam o movimento executado por ele mesmo, independente
de qualquer ligação com a vida real. Surge assim uma espécie de dialética na história da dança
de nossa época. A dança moderna, no começo do século, é a primeira negação do balé clássico,
e em meados do século, aparece a negação da negação.
Nos anos sessenta e setenta, uma nova geração de coreógrafos americanos, geralmente
chamados coreógrafos pós-modernos, desenvolveu algumas das idéias de Merce Cunningham.
Eles concordavam que se deveriam usar movimentos cotidianos em dança, mas rejeitaram o
virtuosismo da técnica de Cunningham e as complexidades de suas estruturas coreográficas,
insistindo em um estilo que procurava captar o processo de sentir e construir o movimento. Por
conseguinte, os pós-modernistas substituíram passos de dança convencionais por movimentos
simples como rolar, caminhar, saltar, correr e, se concentraram nos princípios básicos da
dança: espaço, tempo, peso e energia corporal. Era uma época de experimentação, onde artistas
interessados em dança, se reuniam em grupos para criar infra-estruturas que lhes permitissem
trabalhar mais, com menos custos e maior informalidade. Novos locais de apresentação foram
utilizados e a dança aparece nas performances e happenings da época (eventos de música,
cinema, arte visual, teatro e poesia).
Nesses grupos trabalhavam tanto coreógrafos-bailarinos, como pessoas com
treinamento corporal que não o da dança e gente sem treino corporal algum. Como, para as
experimentações, eram necessários muitos participantes, todos eram aceitos. Os ruídos e a
palavra são utilizados, em vez da música, para pontuar os movimentos. Alguns coreógrafos
optam por mostrar no palco seu processo de trabalho, acreditando que este valeria mais do que
o produto final. Muitas vezes, o que se apresentava eram repetições de exercícios corporais ou
improvisações. A única diferença que existia em algumas destas reuniões, quase uma aula, era
a presença de uma platéia. Muitos desses encontros pareciam sessões de psicodrama sem
qualquer consistência artística.
Os pós-modernos desmistificam a narrativa emocionada, assim como o virtuosismo de
qualquer técnica e buscam a improvisação para mostrar que o processo coreográfico também se
constrói sobre tentativa e erro. Nas improvisações, surge a necessidade de simplificar a técnica
e, para isso, a saída é a utilização dos movimentos naturais do homem (caminhar, sentar,
levantar). A naturalidade do movimento passa a ser uma das tônicas deste momento da dança
contemporânea.
Descartam do espetáculo quaisquer elementos que pudessem tirar a atenção do trabalho
do movimento. Os figurinos eram freqüentemente roupas práticas do dia-a-dia, havia pouca ou
nenhuma iluminação especial e muitas performances aconteciam em sótãos e galerias, fora de
edifícios teatrais convencionais. Narrativa e expressão eram desprezadas, e as estruturas
coreográficas eram muito simples, envolvendo a repetição e acumulação de frases, jogos de
movimento ou tarefas, como em uma coreografia de Tom Johnson (1976), Running Out of
Breath, onde o dançarino simplesmente corria ao redor do palco enquanto recitava um texto,
até ficar realmente sem fôlego.
Estes grupos de vanguarda eram pequenos, em geral, e não ocuparam posição de
destaque no mundo da dança profissional, atraindo uma platéia reduzida de aficionados.
Embora atualmente a dança contemporânea atraia um grande público na Europa e América do
Norte, foi durante muitas décadas um tipo de arte minoritária e sem reconhecimento. Sem
receber subsídios, essas companhias tendiam a uma produção menos elaborada e se
apresentavam em espaços pequenos, onde o contato com a audiência era mais íntimo.
Em 1962, era fundado o Judson Dance Theater (JDT), na Judson Church, em
Manhattan apresentando trabalhos de coreógrafos experimentais. O primeiro espetáculo foi
feito pelos diplomados do curso de composição da dança do músico Robert Dunn. O JDT foi
influenciado pelas teorias e práticas do mundo da arte contemporânea: minimalismo,
conceitualismo, antiilusionismo, etc. A Dança era definida como qualquer movimento para se
olhar. A Judson Church só durou até 1966, mas do grupo fizeram parte nomes que
posteriormente se tornariam famosos, como: Trisha Brown, Lucinda Childs, David Gordon,
Douglas Dunn, Meredith Monk, Yvonne Ranier, James Waring, Steve Paxton, Simone Forti,
Sally Gross, Elaine Summers, Phoebe Neville, Ruth Emerson, Deborah Hay.
Alguns deles vão formar suas próprias companhias, como Trisha Brown.
58
. Nas décadas
de 70 e 80, Brown começa a incorporar cenografia e música em suas peças e a trabalhar em
teatros tradicionais, em vez de ao ar livre. Reclassificada como coreógrafa
59
, ela apresentou
trabalhos como If You Couldn't See Me (1994), um solo no qual Brown está de costas para o
58
Trisha Brown estudou dança moderna no Mills College, em Oakland, California (1958). Seu estilo próprio
começou a se desenvolver depois que ela conheceu a coreógrafa Yvonne Rainer e passaram a trabalhar no
Judson Dance Theater (1962).
59
Durante muito tempo os trabalhos experimentais não foram considerados como espetáculos de dança,
principalmente pela ousadia de suas propostas. Assim, Trisha Brown é reconhecida como coreógrafa a partir
do momento que resolve dançar no espaço tradicional do edifício teatral.
público quase todo o tempo. O estilo desenvolvido por Trisha Brown influenciou a maioria da
vanguarda da dança americana durante os anos sessenta e setenta.
Dos sucessores de Graham, é Merce Cunningham que realiza um papel inovador na
dança moderna. Cunningham se inscreve na linhagem de Graham, mas desenvolve-se em
sentido oposto à suas teorias. Desde o início de sua carreira, realizou trabalhos conjuntamente
com o músico John Cage. Uma de suas obras mais significativas é Events (1974), em que ele
“se exprime por uma obra que parece uma seqüência de variações a partir de um único tema, o
acaso”
60
. Cunningham rejeita o contexto e a noção de obra dramática dos seus antecessores,
oferecendo liberdade à criação. Deu origem a duas novas tendências na dança moderna: a
nouvelle danse e o post modern.
Twyla Tharp é considerada a representante mais significativa da nouvelle danse;
exercita uma dança “aleatória”, em que a ordem dos fragmentos pode variar em sucessão e
justaposição. Assim como Cunningham apresenta suas danças em locais pouco comuns. A
exarcebação destes conceitos é realizada pelos coreógrafos da post modern: retomam os
elementos brutos do movimento, como andar, correr, girar, saltar.
Estes inovadores pretenderam provocar através da realização de sucessivos giros,
estados psicossomáticos, procurando mesmo sem conhecimento, o estado dionisíaco do transe.
São exemplos desta tendência os coreógrafos Andrew de Groat e Lucinda Childs
61
.
Mas, talvez seja Twyla Tharp a representante da dança americana de vanguarda mais
conhecida internacionalmente. Nascida em Portland, Indiana, aluna de Erick Hawkins, Merce
Cunningham, Carolyn Brown e Paul Taylor, Tharp sai da companhia de Paul Taylor em 1965
para formar sua própria companhia. Como Merce Cunningham, gostava de apresentar suas
danças em lugares pouco comuns.
60
BOUCIER. Op. cit.., p. 283. As seqüências desenvolvidas por Cunningham são designadas por números,
podendo variar de uma apresentação à outra, sendo concebidas para serem dançadas em qualquer lugar.
As composições coreográficas de Twyla Tharp se caracterizam como seqüências muito
elaboradas, que podem se sobrepor umas às outras ou se sucederem em encadeamentos não
obrigatórios, constituindo uma dança aparentemente aleatória que responde com precisão à
concepção da música aleatória, em que a organização dos fragmentos escritos pode variar
incessantemente. Pode-se encontrar uma atitude parecida nos pintores expressionistas
abstratos: simultaneamente liberdade de reunião das partes entre si e rigor na execução de cada
uma delas.
Por volta dos anos 80, surgem novos coreógrafos europeus, como: Jean-Claude
Gallotta
62
, Maguy Marin
63
, François Verret
64
e Mathilde Monnier
65
. Permitem-se tudo, exceto
ser enfadonhos ou se parecerem com os antecessores. Alguns receberam uma formação técnica
61
Ver mais sobre este assunto em: BOUCIER. Op. cit.., p. 285-287.
62
Estréia em Julho de 1998, no Théâtre La Rampe. Ulisses, onde, a partir de seqüências improvisadas, cria um
simulacro do episódio entre Odisseu e Circe. Nos movimentos, a oposição entre a potência dos corpos
masculinos e a fragilidade do gesto feminino. Usa, em sua coreografia, tanto quanto a dança, a palavra, o
cinema, a música, porém, os elementos estão sempre submetidos à dança.
63
A preocupação de Maguy Marin com o drama da natureza humana a leva a coreografar uma série de peças
com grande variação temática. Algumas são inspiradas na Bíblia - Babel,Babel e Eden. Também reelabora um
tema de contos de fadas, na montagem de Cinderela, para o Ballet de Lyon. May B, apresenta homens solitários e
desesperados, enquanto Qu'est-ce que ça fait à moi? olha sarcasticamente para o bicentenário da Revolução
Francesa. Seus dançarinos interagem igualmente com música, texto, acessórios, cenários, luzes e figurinos.
Todos os elementos servem como instrumentos para comunicar suas idéias e preocupações. Para Marin a dança é
drama narrativo contado por meio de elementos integrados.
64
Fin et Début, de François Verret, é estreado em maio de 1999, dançado por sua companhia (Compagnie
François Verret) e produzido pelo Théâtre de la Commune, no Centre Dramatique National d'Aubervilliers.
Numa variação do vasto tema masculino/feminino, Verret encena uma estranha metamorfose de uma mulher em
raposa. O espaço é uma paisagem feita com um feixe de fios vermelhos. Três bailarinos (dois homens e uma
mulher), movem-se como numa luta. Ruídos enchem o espaço, juntando-se a outros sons que saem de duas
máquinas, manipuladas pelos homens. No meio do barulho, entra uma voz, ou melhor, um efeito de voz. A
mulher começa a mudar seus gestos, que acabam se assemelhando aos dos homens Aos poucos se vai
instaurando uma harmonia entre os gestos, a música e o efeito de voz. Porém, com a restauração do equilíbrio, a
cena não termina, mas convida para uma outra viagem, dando a entender o término com a diminuição da
intensidade da iluminação até o escurecimento total da cena.
65
A dança de Mathilde Monnier não apresenta ruptura com a história da dança moderna, mas procura, no íntimo
do movimento moderno, razões que o liguem com a realidade contemporânea. Influenciada por Merce
Cunningham, conserva um rigor formal na sua escritura coreográfica, dando porém uma liberdade maior aos
dançarinos, às possibilidades individuais de expressão. Entre suas obras temos Chinoise (1991), um solo que
evolui ao som do jazz do clarinetista Louis Sclavis. Interessada no processo de criação através de improvisação,
ela une a improvisação coreográfica à musical, o que concretiza em Antigone (1993). Em 1995, torna-se diretora
do Centre Choreographic National de Montpellier. Atualmente sua pesquisa está dirigida à área psiquiátrica,
onde estuda o fenômeno do autismo.
clássica ou contemporânea, mas o momento não é para trabalhar a técnica, mas para criar e,
como autores, retomam a preocupação com a temática.
Todo esse movimento contemporâneo e pós-moderno estabelece uma alteração que será
vital para a Dança: pela primeira vez, o bailarino participa diretamente do processo de criação
coreográfica - antes exclusividade dos coreógrafos - através do uso da improvisação, um
método conhecido do teatro, mas estranho à dança. Assim, após treinar formas e possibilidades
corporais isentas de qualquer interpretação dramática, e negar a narratividade e o envolvimento
emocional dos 'pais da dança moderna', a dança contemporânea caminha na direção da
recuperação do pessoal e interno do homem e suas relações com o mundo. A emoção e as
histórias passam então a serem contadas pelos corpos individuais.
Deste modo, um parentesco maior se estabelece com o trabalho do ator, pois Constantin
Stanislavski pontua os mesmos elementos a serem observados no processo de construção da
personagem, no método realista de interpretação. O ator deve construir conjuntos lógicos,
articulados e contínuos em cena, observando a linha contínua da ação e o super-objetivo do
personagem, entre outros elementos, ou seja, tudo deve ter 'um sentido e uma história por trás'.
A dança na pós-modernidade viveu também o happening, a body-art, a performance,
uniu-se ao teatro, ao circo, ao vídeo, colou-se e amalgamou-se com muitas linguagens,
expandindo alguns limites rígidos que a constituíam.
A condição pós-moderna constitui-se a partir da relação intensa e veloz com as novas
tecnologias. Manuel Castells
66
ressalta que um vínculo explícito entre tecnologia da
informação e sociedade contemporânea que esta última é essencialmente informacional, ou
seja, aquela em que a economia e as relações sociais associam-se diretamente à tecnologia.
Diversos teóricos contemporâneos defendem a idéia de que vivemos na pós-
modernidade, outros tantos afirmam o contrário. Aqui interessa olhar o contexto cultural em
66
CASTELLS, Manuel. Les flux, les réseaux et les identités: sont les sujets dans la société informationelle?
In: DUBET, François e WIEVIORKA, M. Penser le sujet. Paris: Arthème Fayard, 1995.
que se produz o híbrido estético dança-teatro. Ele é essencialmente resultado de mixagens,
colagens, apropriações, paródias, pastiches, cruzamento de linguagens e pluralismos. Todas
estas também características definidoras da pós-modernidade.
A dança que se insere neste contexto traduz-se, assim, em uma forte prática de pesquisa
de linguagens, em que coreógrafos criam e utilizam seus próprios códigos, ao mesmo tempo
em que se apropriam de outros. Ela absorve as tecnologias da comunicação e da imagem em
sua forma, tornando-se cada vez mais tecnológica, como a própria cultura onde ela se insere.
É a partir desse entendimento que, no final da década de 1960, Pina Bausch, uma das
alunas de Kurt Jooss, inaugura o novo gênero, o tanztheater, que terá como núcleo de origem
as experiências das danças expressionistas de Kurt Jooss, Mary Wigman e Rudolf Von Laban.
1.3.2. Pina Bausch e o tanztheater
Pina Bausch nasceu em 1940, em Solingen, na Alemanha. Na cidade industrial da
Westphalia, na parte oriental da Alemanha, célebre por suas fábricas de aço, Philippine (nome
de batismo da artista) cresceu gravitando ao redor do café do qual seus pais eram proprietários.
Aos 15 anos, mudou-se para Essen. Deixou de lado o nome Philippine por sua abreviatura,
Pina. Inscreveu-se na escola Folkwang e foi estudar dança com Kurt Jooss (1901-1971), o
grande mestre expressionista.
Em 1959, sem saber uma palavra de inglês, mudou-se para os EUA. Em Nova York,
trabalhou em trupes de vários coreógrafos contemporâneos antes de ser convidada pelo inglês
Antony Tudor para integrar o Metropolitan Opera Ballet. Em 1962, tomou outra decisão. Em
vez de fazer carreira como solista no Metropolitan, decidiu voltar para a Alemanha. Retornou a
Essen e foi trabalhar com seu mestre, Kurt Jooss. Ali, seu impulso para a criação começou a
tomar forma. Em 1973, foi convidada a dirigir o balé da Ópera de Wuppertal. Formou o
núcleo de sua companhia, que surgiu um ano depois.
Os alemães haviam abolido desde o começo do século as sapatilhas, tutus, pas-de-deux
e arabesques. Tudo em nome de uma arte nova, provocadora, que levava para o palco
angústias, dores, impotências e raivas que passavam a quilômetros das harmonias barrocas do
balé clássico. As criações dos pioneiros expressionistas, Rudolf Laban, Mary Wigman e Kurt
Jooss, pareciam levar a dança até seus limites.
Mas Pina Bausch provou que as fronteiras da dança ainda não haviam se expandido até
a ruptura. Ao inventar nos anos 70 o tanztheater - dança-teatro - ela estabeleceu novos desafios
e riscos para bailarinos e coreógrafos.
Suas primeiras coreografias elaboradas a partir de obras de Gluck (Ifigênia em Tauris,
1974; Orfeu e Eurídice, 1975), Stravinsky (Sagração da Primavera) e Weill (Os Sete Pecados
Capitais, 1977), foram hostilizadas pela platéia da cidade, que não se mostrava disposta a
aceitar coreografias agressivas, despidas de glamour e magia. O sucesso veio apenas depois
que o grupo passou a excursionar.
A aclamação em Londres e Paris levou os cidadãos de Wuppertal a descobrir a
dimensão de Pina Bausch. Hoje o Tanztheater é uma das glórias da cidade. Os pacatos
burgueses de Wuppertal colocam Bausch no mesmo nível de outras ilustres figuras locais:
Friedrich Engels, o teórico do Partido Comunista, e Friedrich Bayer, o inventor da aspirina.
O efeito de suas idéias sobre o tecido artístico da dança e também do teatro, foi fundar
um novo processo de construção dramática, um híbrido das linguagens da dança, do teatro, das
artes plásticas e do cinema. Através de um discurso poético fragmentado e repleto de imagens
oníricas, Pina Bausch induz o espectador a uma leitura pessoal da realidade focalizada,
realidade esta que passa a ser uma "recriação" e não uma "interpretação" de modelos
comportamentais conhecidos. O que de mais sério ela fez foi requalificar o que se entendia, até
então, por expressividade. Pina Bausch construiu a dramaturgia do expressionismo via dança.
Exatamente por isso, trouxe uma dificuldade suplementar para os que preferem as
classificações. Para lidar com o que ela criava, foi necessário nomear uma categoria que a um
olhar pouco treinado pode parecer um hibridismo, mas que na realidade, representa uma nova
instauração: a dança-teatro ou tanztheater.
Na sua dança está também o cinema de Walter Murnau (Fausto), Fritz Lang (O
Vampiro de Düsseldorf, Metrópolis) e Robert Wiene (O Gabinete do Dr. Caligari). Podemos
encontrar também influências do Dadaísmo do Cabaret Voltaire. Não à toa, do balé trouxe um
ar de Antony Tudor (1908-1987)
67
, o mestre da caracterização psicológica via coreografia. Na
verdade, sua arte responde a questões formuladas na dança desde Noverre. Para o autor das
Lettres sur la Danse, a dança precisava incorporar a pantomima e a expressão gestual para
conseguir criar a ilusão da realidade e, então, distinguir-se da dança mecânica, aquela dos
passos, que se dedicava apenas a 'agradar aos olhos'.
Como outros artistas alemães de sua geração, Pina Bausch reexplorou a tradição da
subjetividade da Ausdruckstanz
68
, a dança da expressão, legada nos anos vinte pelos coros de
movimento de coreógrafos expressionistas como Rudolf Laban, Mary Wigman e Kurt Jooss - o
mentor de Bausch durante os anos sessenta. Como coloca Raimund Hoghe:
"No teatro de Pina Bausch a pessoa pode experimentar muitos modos de
olhar, sempre atenta ao modo subjetivo que cada pessoa tem de assistir às
relações e situações humanas [...] muitos modos de ver algo dentro de si
mesmo como também dentro dos outros".
69
Mas suspeitamos também que Bausch queria ser entendida bastante literalmente quando
fala de uma cena fundada no que "move as pessoas", referindo-se a emoções ou feridas
67
Antony Tudor (1909-1987): Bailarino e coreógrafo inglês. Dança no Sadlers Wells Ballet e é nesta companhia
que começa também como coreógrafo. Em 1936-37, cria obras importantes como: O Jardim Lilás (1936) e
Elegias (1937). Em 1938 funda o Ballet de Londres. Em 1939, é convidado pelo New York City Ballet para
remontar alguns de seus balés para aquela companhia. É lá que cria alguns de seus melhores balés, como
Lysistrata (1932), Julgamento de ris (1938) e Coluna de Fogo (1942). Os temas de seus balés geralmente
envolvem personagens em conflitos psicológicos, o que lhe valeu o título de "coreógrafo psicológico". Como em
Coluna de Fogo: que narra o drama se uma mulher, Hagar, que teme perder o homem que ama para sua irmã
mais nova. No desespero entrega-se a um desconhecido, mas é perdoada por seu amante, que lhe mostra simpatia
e compreensão. Outro exemplo é Elegias: o balé, acompanhado por um coro de vozes (Kindertotenlieder, de
Gustav Mahler), expressa o cruel jogo da Morte, que ronda as crianças. A narrativa culmina com a tragédia final,
a morte das crianças, que Tudor relaciona não ao desespero, mas à renúncia e aceitação dos demais personagens.
68
Ausdruckstanz : Dança expressionista.
69
HOGHE, Raimund. The Theatre of Pina Bausch. The Drama Review 24/1/1980.p. 73.
psíquicas e trajetórias privadas do corpo individual, que ela, fisicamente, mostra ao público
através de um processo de criação onde o corpo se apresenta como núcleo dramático, fonte
original de suas histórias recordadas. Bausch diz que as histórias dos seus jogos são sobre
relações humanas: "Eu tentei vê-los e falar sobre eles... Eu não sei de nada mais importante".
70
Os assuntos de Bausch são as pessoas na rua, na vida cotidiana: o modo como alguém
caminha ou como inclina seu pescoço, lhe conta algo sobre como vive ou sobre as coisas que
lhe aconteceram, o que nos lembra as pesquisas de Delsarte. Semelhantes idiossincrasias ela
procura nos seus bailarinos-atores. "Eu escolho meus dançarinos como pessoas. Eu não os
escolho por seus corpos agradáveis, por ter a mesma altura. [...] Eu procuro a pessoa [...] a
personalidade.”
71
·
O ineditismo desse processo de criação de Bausch, é que ele parte de perguntas pessoais
feitas a seus bailarinos. A partir de um certo momento de sua trajetória, ela passa a iniciar uma
nova obra a partir dessas questões. O resultado é a construção de cenas baseadas nos impulsos
mais profundos, arquivados na memória corporal de seus bailarinos-atores.
Curiosamente não foi em Wuppertal que Pina Bausch desenvolveu esse processo, mas
em Bochum, também na Alemanha, em 1978, durante a preparação do balé Ele:
“Para a peça, tive além dos bailarinos vários atores e percebi que não
podia criar a partir de evoluções do corpo, mas sim da cabeça e por isso
comecei a fazer perguntas sobre o que o grupo pensava sobre o texto e o vínculo
com a vida pessoal de cada um; percebi que funcionou bem e, desde então,
sempre faço perguntas.”
72
Com isso, a coreógrafa voltou para Wuppertal não apenas com uma nova peça, mas
com um novo método. Esse método, que se tornou clichê na criação da dança
contemporânea, possibilita a Pina Bausch um resultado teatral que nenhuma outra companhia
alcança e que a própria coreógrafa não consegue ou não quer explicar: “Busco certos
70
Ibidem, p.65.
71
Ibidem, p. 66.
72
HOGHE, Raimund. The Theatre of Pina Bausch. The Drama Review 24/1/1980.p. 70. Tradução do autor.
momentos nos quais haja força, energia e esperança”, explica. “Mas em verdade acho bobagem
tentar explicar meu processo em palavras.”
73
Não se trata de uma maneira ou outra de representar os mesmos conteúdos preexistentes
como dança ou teatro. Pina Bausch cria novas formas-conteúdo. Através de uma nova sintaxe
para o teatro e para a dança, ela inventa uma singular modalidade de dramaturgia, uma
dramaturgia escrita e inscrita nos movimentos dos atores-bailarinos, também co-autores, uma
dramaturgia corporal que rompe os limites tradicionais entre o teatro e a dança, e aponta Pina
Bausch como uma das artistas mais inovadoras para o teatro e para a dança no século XX .
1.3.3. A construção poética de Pina Bausch
São as polaridades da natureza humana, seus traços de alegria com tristeza, de
perturbação com tranqüilidade, de humor com recalques, que, na cena inventada por Bausch, se
transformam em jogos múltiplos incorporados nos corpos de seus dançarinos, os quais também
falam e cantam. Certa vez, questionada sobre essa habilidade seletora ela respondeu:
"Se você coloca uma determinada ação ao lado de outra, elas se
transformam mutuamente e as suas direções também. Quando todas estão juntas
cada uma também se altera".
74
O fotógrafo e pesquisador Jochen Schmidt, ocupado em mapear as principais
intervenções na construção da dança-teatro, assim as define:
"(...) os protagonistas no terreno da dança-teatro (...) desenvolveram uma
espécie de dança-colagem, capaz de fundir os elementos mais díspares sobre a
base de uma revista musical."
75
O próprio sintagma escolhido por Jochen Schmidt para conceituar a dança-teatro de
Bausch é significativo: colagem. Tal qual como no cinema, uma dança-colagem .
73
Ibidem p.72.
74
In KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal de Tarde . SP: 11/12/1980. p. 14.
75
SCHMIDT, Jochen From Isadora to Pina. The Renewal of the Human Image in Dance.Ballet Internacional.
May, 1994. p.34-
Pina Bausch faz apelo a várias percepções sensoriais em suas criações. Essa
multiplicidade torna difícil qualquer tentativa de organização de suas idéias como um sistema
de aprendizado de técnicas ou como código. Artes plásticas, ópera, teatro, cinema partilham de
seu universo em harmonia. Seu interesse está não no movimento corporal dançante em si, mas
no impulso, na vontade ou necessidade interna que origem à ação, que se revela através de
imagens em movimento.
Bausch está interessada no drama. Antes que qualquer linguagem intervenha no seu
jogo coreográfico, ela dramatiza, de muitas formas, as cicatrizes psíquicas do homem
contemporâneo: "Eu tento achar o que eu não posso dizer em palavras (...) embora eu conheça,
eu estou olhando para achar o que é"
76
.
Os passos de Bausch são como rotinas banais e filosóficas, reverentes e irreverentes.
Ela diz: "Eu não estou interessada tanto em como as pessoas se movem como 'no quê' as
move"
77
. "O trabalho [...] é sobre relações, infância, medo da morte e quanto nós todos
desejamos ser amados"
78
.
Suas respostas a propósito de questões sobre seu trabalho são sempre cautelosamente
meticulosas:
"Eu posso fazer algo muito aberto, eu não estou mostrando uma visão.
conflitos entre pessoas, mas eles podem ser olhados de cada lado, de ângulos
diferentes"
79
.Ou: "Você pode ver isto assim ou assim. Depende do modo que você
assiste. [...] Você sempre pode assistir de outro modo".
80
“Você pode ver isto assim ou assim”, ou seja, tudo depende da direção, do foco do
olhar, do momento pessoal, eles podem ser olhados de cada lado, de ângulos diferentes”:
76
In KISSELGOFF, Anna. Pina Bausch Dance: Key is Emotion. In The New York Times, 4 October 1985. C4.
Tradução do autor.
77
In MANNING, Susan Allene. An American Perspective on Tanztheater. TDR 30/ 2/ 1986 (T110). p. 58.
Tradução do autor.
78
In PRICE, David W. The Politics of the Body: Pina Bausch's Tanztheater. In Theater Journal , Nº 42, March
1990. p. 325. Tradução do autor.
79
In HOFFMAN, Eva. Pina Bausch: Catching Intuitions on the Wing. In The New York Times, 1 September
1994.p.12. Tradução do autor.
80
In HOGHE, Raimund .The Theatre of Pina Bausch. In The Drama Review 24, 1 (T85) 1980 . p. 73. Tradução
do autor.
pode-se perceber em suas próprias declarações evidência dessa perspectiva fílmica das diversas
possibilidades de se observar uma ação, um momento.
Bausch é uma grande catalisadora. Primeiro sugere temas, depois seleciona partes do
fluxo que acontece ao seu redor, dando-lhes forma: elabora uma montagem. Como ela mesma
diz, o que mais interessa são as relações entre os seres humanos. Para isso observa, observa e
observa. Seleciona, recorta e monta os pedaços. Quer que a vida esteja presente em seus
trabalhos e certamente consegue. O trabalho de Bausch tem o mérito de gravar os fracassos da
comunicação cotidiana, questionar seu significado, descobrir seu vazio e com ele o fator
distorcido das relações dos seres humanos de hoje.
Johannes Birringer sugere que a teatralidade dialética de Bausch está vinculada a uma
prática social:
"O incerto no tanztheater de Bausch é o corpo humano concreto, um
corpo que tem qualidades específicas e uma história pessoal, mas um corpo que
também está escrevendo sobre algo, e escreve sobre representações sociais de
gênero, raça e classe ".
81
A estética de seu tanztheater só pode ser definida pelo que não é. Não é nenhuma dança
no senso convencional, pois os dançarinos dela raramente 'dançam'. Não é nenhum teatro
ortodoxo que não é o diálogo que sustenta seu drama. Ao invés disso, são gestos repetidos,
sons, cheiros e expressões vocais fortuitas que o estruturam. Como Bausch coloca:
"Nosso trabalho é uma mistura de elementos [...] as pessoas dançam; as
pessoas falam; outros cantam. Nós usamos os atores e nós usamos os músicos
nos trabalhos, é teatro realmente".
82
Os atos performáticos jamais são gratuitos. Estão sempre examinando e questionando
relações de poder. Se a platéia muitas vezes sente-se inconfortável, é porque é implicada e
confrontada como "(...) membro de uma sociedade de consumo"
83
, preconceituosa e egoísta. E
81
BIRRINGER, Johannes. Dancing Across Borders. TDR 30, 2 (T110) 1986. p. 86. Tradução do autor.
82
In LONEY. Op.cit.. p.19. .Tradução do autor.
83
BIRRINGER. Op.Cit. p. 87-91 .Tradução do autor.
é para essa sociedade que Bausch chama a atenção: "(...) nós temos que olhar novamente e
novamente"
84
e refletir sobre isso. Seu teatro remete o espectador para sua própria realidade e
exige uma cumplicidade. Algumas vezes, um doloroso envolvimento, ao reconhecer seu
próprio 'eu' sendo dissecado.
Como notou Heiner Müller, no teatro de Bausch, “(...) a imagem é um espinho no olho
e os corpos escrevem um texto que desafia publicação, que aprisiona o sentido".
85
Difícil e engraçado, nu e atravancado, sujo e desigual, o teatro de Bausch também é um
oneroso negócio de representação, se levarmos em conta a produção de seus cenários
megalíticos, como as quarenta árvores que cobrem o palco em Auf dem Gebirge hat man ein
Geschrei gehört, as dezenas de cadeiras de Cafe Müller ou os três mil cravos de Nelken -
objetos que a cada espetáculo requerem reposição. Mais um sinal da necessidade bauschiana de
uma ambientação externa e natural, como no cinema. Na impossibilidade de levar o público ao
cenário desejado, traz o cenário ao público.
Mesmo pedindo emprestados recursos do arsenal do modernismo, Bausch é
decididamente pós-moderna por não descrever a possibilidade de alterar o mundo social que
dramatiza tão corajosamente.
Embora levante um repertório de temas contemporâneos, como a proliferação das
diversas formas de violência atreladas à cultura do medo, as relações de poder, a cidade da
memória e a memória da cidade; a contracultura e suas relações com o universo urbano, que
propicia o surgimento da cultura do narcisismo; a relação espaço-tempo dos percursos
circulares e opressivos dos personagens na cidade, sem nome e sem futuro, marcados pela
ausência de respostas, pela impossibilidade da comunicação, a memória é, com certeza, o mais
forte elemento articulador desses temas.
84
Ibidem, p. 90. Tradução do autor.
85
Citado por DALY, Ann. In Tanztheater: The Thrill of the Lynch Mob or the Rage of a Woman? In TDR 30, 2
(T110) 1986. p.56.. Tradução do autor.
Exemplar nesta ótica é O Lamento da Imperatriz, de Pina Bausch. Seu material é a
reflexão produtiva sobre histórias vivas, sobre os momentos fragmentários que ficaram
marcados no emocional de seus atores-bailarinos, co-autores de suas peças, sobre a releitura
desse material, sobre as leituras contraditórias que nele se cruzam, em suas idas e vindas como
matéria simbólica. A obra de Bausch traz consigo seu próprio absurdo: a dúvida sobre si
mesma. Se tudo parece visto, as coisas da arte não apontam uma direção clara positiva ou
negativa, porém sua processualidade decide tudo nesse sentido. Espaço e tempo são rompidos,
talvez seja este o lado mais ricamente proveitoso da crítica pós-moderna. Espelho de uma crise,
que é mais do que econômica, porque dos universais (da razão, do pensamento globalizante, da
ciência, das formas conceituais de representação, da cultura que desde séculos sustenta a
performance das funções econômicas), o pós-moderno expressa-a como e através do que é
mais humano no homem: a crise e desencontro da linguagem de representação espacial do
mundo.
As cenas insólitas de Bausch desafiam a lógica, mas é por meio dessa perversão da
lógica, que a arte de Bausch adquire uma força de expressividade única, que carrega os traços
das lutas do homem contemporâneo e sua contradição com o sistema da cultura. É através da
materialidade de sua obra que Bausch pratica a sua política, a questão é interrogá-la no registro
correto, na sua historicidade imanente, pois o seu trabalho artístico se mostra na trama
problemática de sua própria constituição. O objeto está sempre em conflito com o sistema que
o engendra, revelando um antagonismo profundo com sua circulação social como mercadoria.
O uso de diversas linguagens, a transição de Bausch pelo teatro, dança e cinema, surge não
como reflexo das lutas sociais, mas como possibilidade múltipla dentro da ordem simbólica. A
sua arte é real e inelutável e, astuciosamente, define seu posicionamento do real. Conferindo à
arte pensar o impensável, fabricando o ‘infabricável’, ainda que seja no terreno da criação, seu
trabalho faz-se como arte pós-moderna: constrói ilusões de verdade e destroi as ilusões da
verdade.
Escrever significa fazer estremecer o mundo, colocar uma pergunta
indirecta à qual o escritor, numa derradeira indeterminação, se abstém de
responder. A resposta quem a é cada um de nós, que lhe traz a sua história, a
sua linguagem, a sua liberdade.”
86
O espectador-leitor do texto de Pina Bausch não deve participar passivamente na
narrativa porque ler é entrar em diálogo com o texto, é um processo ativo de produção de
sentido. O espectador-leitor necessariamente contaminado por outras leituras e por
experiências de vida, grau cultural e preconceitos diversos atualiza com cada nova leitura a
obra. Para Umberto Eco
87
, a fruição é equivalente à interpretação, dado que a obra se atualiza
em novas perspectivas individuais. E quanto mais espaço branco, causado pela omissão da vox
auctoritas, mais se exige ao espectador-leitor que entre em osmose com o texto.
Marianne Goldberg
88
adverte que Bausch caminha numa tênue linha entre a exploração
espetacular da mulher como vítima e a denúncia dessa exploração. Sua desconstrução dos
papéis homem / mulher, precisa ser vista como paródia. Se for vista como mero pastiche, sua
interrogação cultural poderia ser lida erroneamente como um "(...) estranho entretenimento que
reinscreve valores opressivos em detrimento da mulher, que é sadicamente exibida"
89
.
Ann Daly, por sua vez, conclui que o ”(...) estridente político-social-sexual conteúdo"
90
de Bausch, força as mulheres a colaborarem com seus opressores sem examinar por que elas
são passivas:
"Quase sem exceção, a violência é de homens para mulheres. Não
nenhum registro de mudança de um movimento feminino para a liberdade. Ela
permanece totalmente impotente, sem qualquer recurso ou perspectiva de
86
Barthes citado por Umberto Eco in Obra Aberta,Editora Perspectiva: S. Paulo. 1976, nota 2 de rodapé, p.40.
87
ECO, Umberto. Obra Aberta. Editora Perspectiva: S. Paulo. 1976.
88
GOLDBERG, Marianne. Artifice and Authenticity. In Women and Performance 4, 2. 1989.
89
Ibidem, p.111. Tradução do autor.
90
DALY, Ann. Op.cit.. p. 55. Tradução do autor.
libertação. [...] Que ideologia está mediando a obra de Bausch? Não
nenhuma".
91
Mas, como argumenta Kirchman, Bausch pode ser "(...) superficialmente resumida,
em termos políticos"
92
. As cenas de Bausch são sobre a perda em um nível mais primordial.
Seu tema essencial é a necessidade de amor. A mediação ideológica de Bausch é precisamente
não ter nenhuma ideologia mediadora. Para ela, estabelecer qualquer uma seria render-se aos
mesmos clichês culturais que ela cuidadosamente desconstrói.
O que Bausch parece entender claramente é que "ver" é sempre ver de algum lugar e
"olhar" um objeto é mergulhar nele. Mas, ela também é consciente da impossibilidade de
conhecer o objeto como uma totalidade acabada. Assim, em sua criação, Bausch se lança nesse
mundo de multiplicidade aberta e indefinida, onde as relações acontecem em todo seu drama,
que é tão físico quanto psíquico. As peças de Bausch trabalham sempre com um olhar sobre o
objeto-tema, que pode ser o amor, a solidão, a infância, o poder...E para 'ver' um objeto é
preciso tê-lo ao alcance do campo visual e poder fixá-lo a partir de um ponto do vista. Como o
enfoque do olho da câmara, na fotografia ou no cinema.
Isso a levou, a partir de um determinado momento, a começar seus trabalhos com
perguntas a todo o elenco. Com essa estratégia, Bausch faz com que seus artistas venham
habitar o objeto-tema, observando que todas as perspectivas individuais apresentadas formam
um sistema ou um mundo de olhares que perspectivam o referido objeto.
Assim, ela deixa em aberto sua própria perspectiva, na medida em que é confrontada
com outras. O mundo assim (re)presentado é sempre um objeto inacabado e aberto. E, como
um diretor de cinema, Bausch vai observando as imagens, selecionando fotogramas, para
posterior montagem.
91
Ibidem, p. 56 Tradução do autor.
92
KIRCHMAN . Op. cit. p.40. Tradução do autor.
Pode-se acompanhar esse processo de trabalho peculiar através do vídeo dirigido pela
belga Chantal Ackerman
93
, em 1986, Un Jour Pina a Demandé, que acompanha a Companhia
de Wuppertal em uma tournée por Veneza, Milão e Avignon. A forma de documentário
permite que se observe não os espetáculos, como os ensaios, os bastidores e as opiniões dos
atores-bailarinos sobre a prática de composição coreográfica de Pina Bausch - perguntas aos
atores-bailarinos e, simultaneamente, respostas verbais e motor-sensórias, num trabalho
exaustivo de coleta de material. Como afirma corretamente Mark Johnson
94
, "os coreógrafos
do teatro-dança recolhem movimentos e modos de comportamento triviais, cotidianos; é menos
o que inventam que o que descobrem". Um excelente momento para ilustrar o processo de
decupagem que Bausch normalmente utiliza em suas montagens está num exercício pedido
durante um dos laboratórios feitos pelos bailarinos, para o balé Walzer (Valsas), registrado
tanto nas filmagens de Chantal Ackerman, quanto no vídeo de Klaus Wildenhahn
95
, O que
fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
No filme de Ackerman, vêem-se três casais se tocando, aparentemente numa
brincadeira de troca de carinhos. A seqüência corporal para os homens é a seguinte: mãos na
cintura da moça vão subindo pelos braços, ombros, passam pelo rosto da mulher e voltam para
a cintura; a seqüência conclui-se com eles abaixando a cabeça e beijando a moça no rosto, no
lado esquerdo. Simultaneamente, ela mexe no queixo do rapaz, nos cabelos, coloca a mão
direita deslizando por dentro da camisa dele, no peito. Tudo isso é feito pelas mulheres sempre
com um balanço nos quadris, e termina com o toque e beijo, por parte delas, na mão esquerda
dos homens. Durante todo o tempo os dois estão se balançando. Aos poucos vão se separando,
continuam a caminhar no ritmo da música. Os movimentos do torso continuam com o par
93
ACKERMAN, Chantal Un Jour Pina a Deman A programme based on idea by Alain Plagne; editors:
Dominique Forgue and Patrick Mimouni; BRT-INA-RTBS Films Arts, 1986.
94
JOHNSON, Mark. Philosophy in the flesh. NY: Basic Books.1999. p.431.
95
WILDENHAHM, Klaus O que fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?. Vídeo 1.15 min.
Documentário. Inter Nationes.Wuppertal:1987.
desfeito. Os movimentos das pernas são sincronizados: passo, passo, chassé, chassé
96
, tanto
para os homens como para as moças, com uma diferença - o chassé das mulheres termina com
degagé en l'air
97
, enquanto que o dos homens é par terre.
98
Desse pas-de-deux inicial persiste a intenção, a ação básica, a sensação. A cena final
emergente desse laboratório apresenta-se bem diferente. O sujeito está sem o objeto. A
estranha fila continua, ou melhor, duas filas, uma de mulheres e outra de homens, evoluindo
em direções opostas. A separação física é evidente, mas a emoção do encontro, dos carinhos,
continua nos corpos, como a inscrição de um afago ou de um beijo que fica impressa na carne
após o amor. É isso que 'falam' os corpos. O processo de criação dessa cena está documentado
no vídeo de Klaus Wildenhahn.
Durante os exercícios que Bausch idealiza para compor sua peça Walzer (Valsas), ela
pede aos bailarinos que experimentem diversas formas de acariciar. Ao fim das várias
improvisações, uma é selecionada por ela e, passadas três semanas, a improvisação escolhida é
repassada ao elenco. A improvisação original é de Nazareth Panadero e Cristian Trouillas.
Bausch aproveita a seqüência inteira.
99
O casal a mostra para o grupo, que a vai repetindo: as
moças aprendem a parte de Panadero e os homens à de Trouillas. Num segundo momento,
Bausch começa o detalhamento e esgarçamento da partitura corporal. Questiona Panadero
sobre o movimento de seu pé direito, pois durante a seqüência, ele está indefinido.
É nesse ponto que reside uma das qualidades básicas da dança-teatro. É claro que a
intenção do movimento é fundamental, porém, ela está sempre ligada a uma consciência
96
Designação de um passo do ballet onde se uma deslizada com pequeno salto com as duas pernas ao mesmo
tempo.
97
Nomenclatura do ballet que designa um alongamento da perna, quando en l'air, a perna fica fora do chão,
quando par terre, o pé toca o chão.
98
Ibidem.
99
O momento em que o casal tem conhecimento de que a seqüência foi escolhida é muito bonito, ficam felizes
como duas crianças e pode-se perceber que, embora todos sejam executantes profissionais, a participação na
criação empresta um novo entusiasmo aos atores-bailarinos. Os momentos de exaustão dos ensaios, onde
normalmente se observa, em qualquer companhia profissional, dançarinos espalhados pelo chão, quase sempre
com as pernas para cima e alheios ao que não lhes diga respeito, não acontecem em Wuppertal, certamente pela
formal, que possibilita que a escrita dramatúrgica corporal não se perca. Cada detalhe do
movimento tem de ser claro, pois uma articulação de tornozelo, uma torção de cintura ou uma
inclinação de cabeça imprecisa ou diferente, pode mudar o sentido de toda uma seqüência
corporal.
As perguntas da coreógrafa surpreendem a bailarina, pois o movimento original é tão
orgânico que ela não havia reparado no que acontecia com o direito. Observa, surpresa, que
o está meio torto, virado para dentro, flexionado. A seqüência começa a ser burilada, até a
clareza absoluta. O 'pé torto', original de Panadero, passa a um degagé en l'air, com o bem
esticado, para as bailarinas. São a seleção e as adaptações feitas, que conferem um sentido à
seqüência.
Exatamente como numa edição fílmica, a seleção, o corte e posterior colagem. Bem,
poderiam ponderar, mas é sacrificado o sentido original, a criação dos bailarinos. Talvez sofra
alteração, mas tudo isto faz parte dessa construção dramático-fílmica. Não há mágoas ou
melindres por um movimento ter sido aproveitado em lugar de outro ou por ter sido
modificado, cortado e editado com alguma outra partitura corporal. Uma coisa é certa, é
Bausch quem decide. Não consultas ao grupo, o fio narrativo é definido por ela. É dela a
edição.
A seqüência redefinida é agora experimentada em duas filas, uma de mulheres e outra
de homens. A movimentação em sua nova forma é deliciosa. E é esta forma que será anexada à
peça Walzer.
Durante os ensaios as questões se sucedem, "quatro ou cinco por ensaio, mais de cem,
no decorrer do trabalho"
100
. O vídeo de Klaus Wildenhahn mostra Pina Bausch concentrada,
integração vital que é a essência dessa dramaturgia escrita com os corpos dos bailarinos e as histórias que
estão gravadas.
100
HOGHE, Raimund . Bandoneon. Em que o Tango pode ser bom para tudo.SP: Attar Ed.,1989. p.14. Este
livro faz uma análise sobre o processo criativo de Bausch e seus atores-dançarinos.
tranqüila e acompanhando a busca de respostas de seu grupo. Ela incentiva cada um a se
posicionar individualmente, a lembrar e redescobrir suas próprias histórias.
"Experimentem carregar uns aos outros como se fossem bebês", diz Bausch, enquanto
ela própria carrega sua criança (seu filho ainda bebê). E continua sugerindo exercícios
baseados em frases como: "pregar uma peça em alguém", "descobrir símbolos da paz",
"comunicar através de ruídos", "cantar uma canção para uma árvore", "abrir a casca de um ovo
quente", "brincar para reprimir o medo", "fazer algo novo por meio de um truque".
É este o caminho da escrita dramático-fílmica de Pina Bausch. As formas, as tensões e
relações são produto de uma co-autoria de seus bailarinos, mas a linha editorial é dela. Ela
propõe a improvisação, depois seleciona dentre os resultados, fragmenta, descontextualiza,
muitas vezes, alterna as partes, repetindo-as ou justapondo-as e eis que as imagens explodem
numa multiplicidade de significados. Em seguida, trabalha a montagem desses pedaços,
exatamente como um diretor de cinema. Pina Bausch é uma artista escrevendo uma peça com
um vocabulário especialíssimo: o corpo e a memória corporal de seus bailarinos. Toda sua obra
depende do que eles lhe oferecem ou sugerem como material. Obviamente é desgastante.
Um único problema na sua metodologia coreográfica: não é possível um roteiro prévio.
O roteiro surge somente a posteriori, de questões que podem indicar incontáveis caminhos.
Bausch interfere com alguma rispidez quando percebe que não está havendo concentração
total dos atores-bailarinos. Essa é uma exigência irrevogável e que a deixa visivelmente irritada
quando não é atendida. Por mais cômicas que se delineiem as situações é preciso que o
bailarino permaneça impassível. Em muitas cenas, os que estão observando riem, mas os
atuantes devem permanecer neutros. É nesses momentos que se nota que o drama está
realmente no movimento do corpo, nas relações e atos desses corpos. Não máscara facial
que ajude na expressão, a escrita e a leitura derivam das seqüências corporais, como de um
texto. Quando se escrevem, as palavras não escapam do papel, mas quando a escrita é com
músculos e nervos, é preciso domínio e consciência total do desenho e da intenção dos
movimentos, para que se possa repeti-los com precisão, como em qualquer dramaturgia
encenada.
Incansável, Pina Bausch envia sua platéia para mundos remotos e estranhos. Paisagens
abandonadas, fascinantemente belas ou desertas, como um campo coberto por cravos (Nelken),
um deserto aquático (Arien), uma floresta de cactos (Ahnen), uma estepe barrenta (Das Stück
mit dem Schiff), troncos de árvores (Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört), grama
(1980) ou terra (Sagração da Primavera), dominam seus cenários. Insistentemente traz ao
palco o ambiente natural, o que já lhe valeu severas críticas dos ecologistas, mas não se
questionou o porquê dessa recorrência a elementos da natureza. Depois da desmontagem dos
ideais de beleza e ilusão realizada pelos dadaístas berlinenses a partir do fim da Guerra, e
especialmente do "teatro-merz" de Kurt Schwitters, nos anos 20, onde a colagem tinha o
objetivo de desengessar a percepção habitual, depois do movimento da Judson Church, em
Nova York, dos happenings nos anos 70/80, e dos espetáculos de Richard Foreman e Tadeusz
Kantor, Pina Bausch ainda consegue continuar a desenvolver um jeito próprio de dar
fisicalidade a seus entendimentos sobre as artes da cena.
Misturas se tornam matrizes em Pina Bausch, e irrigam todos os aspectos da sua
criação. Entrar em contato com o universo de Pina Bausch continua sendo uma proposta de
aventura. Ela é responsável por grandes mudanças nas artes cênicas, influenciando o teatro, o
circo, a ópera e, claro, a dança. Construiu a dramaturgia do expressionismo via dança, criando
uma nova forma de atuar: a dança-teatro, estilo que incorpora elementos do gestual e do
cotidiano para criar coreografias. A coreografia é composta por experiências transformadas em
improvisações, que, são selecionadas e depois resultam na montagem de uma peça. A bailarina
brasileira, Regina Advento, há mais de dez anos na companhia, explica:
“Temos que buscar material interior, mas o resultado é gratificante. A
maneira de compor é a seguinte: ela faz perguntas para cada um, em seguida
compomos movimentos improvisados e ela observa o que cada um produziu.
Depois, faz uma seleção e pede para que repitamos o que foi realizado. Esse ato
de refazer é muito difícil e muita coisa acaba se perdendo. É feita, então, outra
seleção."
101
Após as seleções, a coreógrafa corrige os movimentos e acrescenta no trabalho. As
coreografias são como um quebra-cabeça, cada peça é cuidadosamente encaixada até formar
um espetáculo. Outro aspecto que torna o método ainda mais interessante é o fato de a
companhia ser composta por artistas de várias nacionalidades, com formações distintas. Essa
pluralidade cultural se reflete nos movimentos e na composição de cada trabalho. Pina Bausch
agrupa as idéias e as marcações, a elas uma conotação e, por fim, uma forma, ou seja, edita,
como no cinema. Na verdade, sua concepção de montagem da dança-teatro recorre a métodos
conhecidos da arte cinematográfica: fragmentação do gesto, repetição de uma seqüência, efeito
de close e de focalização, fades, olhares para a câmara, elipse narrativa, montagem em câmara
rápida. Como se a maneira de coreografar passasse por um olhar mediado pela câmara ou a
mesa de montagem do cinema ou vídeo.
101
In KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal de Tarde . SP: 11/12/1980. p. 14.
CAPÍTULO 2
CORPO E ESPAÇO NA DANÇA CONTEMPORÂNEA: A HIBRIDIZAÇÃO
2.1. Que corpo dança?
Dentro da imensa massa de matéria de que o universo se
compõe assumindo formações particulares das mais diversas
espécies e formas - (...), podemos dizer que nosso corpo é o
organismo mais complexamente organizado de todos, o mais
versatilmente adaptável, o mais ricamente dotado de
possibilidades.
Rolf Gelewski
102
Muito pouco se tem escrito a respeito do corpo
103
que dança. Dentro da literatura,
encontram-se referências sobre o corpo fenômeno lógico (Merleau-Ponty
104
), o corpo vigiado
e punido (Michel Foucault
105
), o corpo na tradição filosófica (Marc Richir
106
) e um último
estágio evolutivo, o corpo pós -humano (Stelarc
107
), mas o corpo que dança pouco é olhado e
refletido. Ressaltemos este paradoxo. Na dança não poderíamos nada sem ele, mas talvez por
não dissociarmos dança de corpo, acabamos por não refletir sobre ele. Visando a construção
de conhecimentos sobre o corpo que dança, observaremos, a partir de Marc Richir
108
, alguns
elementos da história simbólica do corpo na tradição filosófica.
Com os gregos, raiz fundamental de toda nossa história e cultura, a discussão do corpo
se remetia às questões da dualidade corpo e alma: “a alma e o corpo são partes distintas de
uma natureza humana. Cada uma dessas partes possui as suas excelências”
109
. A filosofia
socrática compreendeu que a alma e o corpo estão unidos em toda natureza física, inclusive
no homem. Embora Sócrates não afirmasse que a alma fosse separável do corpo, a alma teria
o papel de fortalecer o corpo e o corpo de refletir sobre ela (alma) a sua própria existência.
102
GELEWSKI, Rolf. O trabalho em nosso corpo. Salvador: Casa Sri Aurobindo, 1977. p.5.
103
A palavra corpo tem origem no latim, corpus (“cadáver”).
104
MERLEAU-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins, 1994. 1a parte.
105
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
106
Ver RICHIR, Marc. Le corps: essai sur l’íntériorité; optiques philosophiques.Paris: Hatier.1993. Cap.3.
107
STELARC. Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota. In:
DOMINGUES, Diana (Org.) A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp, 1997.
108
RICHIR. Op. cit.
109
JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1979, p. 496. As virtudes morais constituem as
excelências da alma, no mesmo sentido em que a saúde, a força e a beleza são as virtudes do corpo. As
excelências físicas e as virtudes espirituais não são mais do que a “simetria das partes”.
Sócrates apresentava o corpo como um obstáculo ao conhecimento, por ser local de afecções e
doenças, paixões e ilusões, de tudo que nos suscita desequilíbrio e conflito; mas acreditava
que a filosofia poderia purificá-lo.
Baseado em Sócrates, Platão sustenta que o corpo é cárcere da alma. Com o Mito da
Caverna
110
, Platão estabelece que a caverna seria o mundo sensível, interior, que existe dentro
de nós; já o exterior da caverna significa o mundo real, o mundo das idéias: “O homem feito de
corpo e alma pertence simultaneamente a esses dois mundos”
111
, mas a alma, escravizada no
corpo, não possuiria mais a dimensão divina anterior, quando em sua primeira morada no meio
das essências puras. Esta união entre alma e corpo, foi por Platão identificada como o ser vivo
e mortal, sustentando que a alma se separa do corpo depois da sua morte, quando então
retorna ao mundo das essências. Aristóteles, discípulo de Platão, descarta qualquer dualismo
metafísico da alma e do corpo; ele propõe que “a alma é uma forma substancial de todo
organismo vivo e é inseparável do corpo”
112
. A partir de uma mutação global da civilização
grega, o estoicismo provoca uma mudança radical no ambiente das discussões sobre o corpo. O
estoicismo considera que tudo é corporal, inclusive as virtudes, a alma, os deuses e todos os
seus valores. A unidade monista é a união da alma e do corpo na corporeidade, que conduz à
mais extrema disciplina do corpo, fazendo-o integrar-se à unidade cósmica. O acesso à
sabedoria fica condicionado a uma cultura do corpo; a uma técnica, por exemplo, respiratória.
Bem diferente do estoicismo, mas surgido no mesmo contexto, o epicurismo mostra que
a alma está intimamente ligada ao corpo, segue-o em toda a sua existência e, portanto, também
está sujeita às doenças do corpo, mas, diferente dele, é constituída por átomos num estado
110
PLATÃO. Diálogos - A República. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, liv. VII, 1965. p. 253 a 256.
111
LEITE, Áurea. O corpo e a alma na representação linear e gráfica da figura humana em Aubrey Beardsley.
Rio de Janeiro, 1986. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
1986. p.43.
112
JAEGER. Op. cit., p. 23.
menos denso. Por isso, no momento da morte, dissipa-se no ar. O epicurismo busca libertar o
homem de seus vãos desejos, crenças e pavores
113
.
A verdadeira revolução no pensamento filosófico sobre o corpo ocorre com
Descartes
114
. Em A Nova Psicologia: Relações da alma e do corpo
115
, defende Descartes uma
união entre a alma e o corpo maior do que a simples convivência, de modo a haver interação de
movimentos. O corpo não age diretamente sobre a alma e nem a alma diretamente sobre o
corpo, mas, a ação da alma para o corpo, embora não direta, é explicada por Descartes pela
idéia de força. É uma noção primitiva que encontramos em nós, dada pela união como a força
pela qual a alma age sobre o corpo. Aparece assim a idéia de força como algo de específico
destinado apenas para a função da união da alma e do corpo. Em tudo o mais fica inexplicável
a referida união, conforme declara o mesmo Descartes, em virtude de não ser possível conceber
como uma coisa é uma ou quando efetivamente é dois, a saber alma e corpo. É este encontro
que constitui nosso ser e a nossa existência. Para Descartes, a alma é “a coisa que pensa” (res
cogitans) e o corpo “coisa material e espacial” (res estensa) e o pensamento está em estado de
nascimento de tudo junto, sem distinguir realidade e aparência, verdade e ilusão, do que é
relevante à alma ou relevante ao corpo. Estaria “a fusão da alma e do corpo na experiência
íntima da certeza factícia de existir”
116
.
Nietzsche, na tradição moderna, é o primeiro a pensar no excesso do corpo sobre ele
mesmo. Uma das dimensões fundamentais do pensamento nietzschiano é tomar o corpo como
“fio condutor”. Ele constrói uma dialética da afetividade em que o corpo vive encarnado, ao
mesmo tempo em que a paixão o desencarna. A paixão deprecia o corpo em proveito de uma
113
O cristianismo, segundo Richir, coloca uma questão nova no pensamento filosófico. Ao invés de nos
tornarmos deuses e imortais como queriam os gregos, nos tornamos homens de Deus. A encarnação de Deus no
seu “Filho” humano traduz a unidade íntima da alma e o corpo.
114
www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Descartes/3686y250.html Art. 2
o
. A nova psicologia de
Descartes. 3686y274.II - Relações da alma e do corpo. 3686y285.
115
Descartes observa que sentimentos de fome, sede, dor, etc., nada mais são que certos modos de pensar
confusos que procedem e dependem da íntima união do espírito com o corpo, porém essa união não chega a ser
substancial. O corpo e a alma continuam duas substâncias completas e irredutivelmente opostas.
transcendência exclusiva. O olhar de Nietzsche volta-se para o corpo e seus excessos
multiformes, próprios da existência humana. A filosofia nietzschiana se opõe ao “exercício da
morte” (Platão, estoicismo) para propor o “exercício da vida”.
Contemporaneamente, consideremos um dos mais conceituados teóricos nesta área,
Maurice Merleau-Ponty, que dedica uma grande parte do seu livro Fenomenologia da
Percepção
117
ao esforço de compreender fenomenologicamente o corpo. Merleau-Ponty inicia
suas conceituações considerando que o corpo nos permite centrar nossa existência, mas
também nos impede de centrá-la absolutamente. Nesta visão dialética, o corpo seria centro e
não-centro da existência humana, ponto de chegada e de saída. Merleau-Ponty refere-se ao
corpo como “um objeto que não me deixa”
118
. Este objeto seria capaz de observar, inspecionar
e manejar objetos exteriores a ele, mas seria preciso dispor de um “segundo corpo” para que
pudéssemos observar o nosso próprio corpo: “Ele tenta tocar-se tocando, ele esboça ‘um tipo
de reflexão’, e bastaria isso para distingui-lo dos objetos”
119
. Considerando a espacialidade do
corpo, Merleau-Ponty faz várias afirmações: o seu contorno é uma fronteira que as relações de
espaço ordinárias não transpõem; o corpo está no mundo, e suas partes envolvidas umas nas
outras; quando o corpo está em movimento, vê-se melhor como ele habita o espaço e o tempo,
porque o movimento não se submete a eles; o corpo não está no espaço nem tampouco está no
tempo; ele habita o espaço e o tempo. É interessante observar que Merleau-Ponty, mesmo não
sendo dançarino ou coreógrafo, propõe o corpo como um espaço expressivo.
O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos
necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um
mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu
sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo
de significação: é o caso dos hábitos motores como a dança.
120
116
RICHIR Op. cit., p. 64: “fusion de l’âme et du corps dans l’expérience intime de la certitude factice
d’exister”. (T.da A.).
117
MERLEAU-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins, 1994. 1a parte.
118
MERLEAU-PONTY Op. Cit, p.133.
119
Ibidem, p.137.
120
Ibidem, p. 203.
na visão de Jean-François Lyotard, “o corpo pode ser considerado como o hardware
do complexo dispositivo técnico que é o pensamento”
121
. Segundo as idéias de Lyotard, o
software humano, no caso da linguagem, não pode existir sem que haja um hardware, ou seja,
o corpo. Para ele, seria conveniente tomar o corpo como exemplo na produção e programação
das inteligências artificiais, que o hard/soft humano é muito complexo e heterogêneo. O
pensamento humano não raciocina em termos da lógica binária, e sim por configurações
intuitivas e hipotéticas; aceita dados imprecisos e ambíguos, e por isso talvez o fracasso de
algumas “máquinas” criadas para reproduzi-lo: elas funcionam em lógica binária, por unidades
de informação (os bits), funcionam segundo um código ou uma linguagem pré-estabelecidos.
Para Lyotard:
"O que torna inseparáveis o pensamento e o corpo, é muito simplesmente o
fato deste último ser o indispensável hardware do primeiro; a sua condição
material de existência é que cada um deles é análogo ao outro no seu
relacionamento com o respectivo ambiente (sensível, simbólico), sendo o próprio
relacionamento em si do tipo analógico nos dois casos".
122
Partindo do pressuposto de Merleau-Ponty, ou seja, que a partir do corpo o
desenvolvimento de um novo núcleo de significações, entende-se o corpo como lugar
expressivo da dança-teatro, lugar de elaboração de novos significados. A questão não se remete
mais ao dualismo corpo/alma e sim ao não antagonismo do corpo/pensamento. Concordando
que a “dança é o pensamento do corpo”
123
, e que é impossível distinguir a expressão (dança) do
veículo expressivo (corpo), observa-se a proposição feita por Louise Steinman
124
. Steinman
induz a pensar o corpo como casa, lugar onde residem todas as lembranças seja de um passado
mítico, seja do sonho da noite passada ou da conversa de hoje de manhã. A partir destes traços
iniciados na experiência corporal é criada a memória do corpo, servindo como inspiração para
121
LYOTARD, Jean-François. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa,1989. p. 21.
122
LYOTARD. Op. cit., p. 24
123
KATZ, Helena. Um, dois, três; a dança é o pensamento do corpo . São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em
Comunicação e Semiótica) - PUC/SP,1994.
124
Ver STEINMAN, Louise. The knowing body: elements of contemporary performance and dance. Boston:
Shambala, 1986. Cap. 1: The body as home.
a criação de performances e de coreografias. Ou seja, parte-se dele e retorna-se a ele, o corpo.
Habita-se, neste sentido, esta experiência unitária, sem as antigas dualidades corpo-mente.
Mesmo reconhecendo que atualmente muitos performers têm utilizado das maravilhas
da tecnologia, usando vídeos, computadores, sintetizadores, Steinman ressalta que também,
ao mesmo tempo, uma crescente fascinação pelos movimentos básicos como os movimentos
animais e infantis, gerando uma curiosa dialética entre complexidade e simplicidade, natureza e
artificialidade. Para complementar essa idéia, retoma-se algumas considerações feitas por
Marcel Mauss e Clifford Geertz
125
. Para Mauss, “o corpo é o primeiro e mais natural
instrumento do homem (...) o primeiro e mais natural objeto técnico”
126
. Mauss parte do
pressuposto que o homem não é um ser dissociável, “no fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se
mistura”
127
, sendo que os movimentos do corpo podem ser vistos como tradutores de elementos
de uma cultura ou sociedade. Cada corpo expressa diferentemente a história de um povo e o
uso que fazem de seus corpos. Ou seja, o corpo é um objeto técnico, um objeto cultural, que
evolui e se insere na cultura. Geertz também parte do mesmo pressuposto: é impossível pensar
a natureza humana como exclusivamente biológica e desvinculada da cultura, sendo que o
homem se constitui nesta relação interativa entre componentes biológicos e socioculturais. Para
ele, é a própria cultura que dá o caráter de humanidade a esta espécie animal.
Mauss devolve ao corpo sua importância enquanto transmissor de técnica e tradição. A
técnica corporal consiste “nas maneiras” como os homens e as sociedades serviram-se de seus
corpos, podendo ser transmitida através de gerações, constituindo então uma tradição: “Quando
uma geração passa à outra geração a ciência de seus gestos e de seus atos manuais, tanta
autoridade e tradição social como quando a transmissão se faz pela linguagem”
128
. O corpo e
os movimentos humanos são expressões simbólicas de uma sociedade, já que podem ser
125
GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
126
MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 1974. p. 372.
127
Ibidem, p.198.
128
OLIVEIRA, Roberto C. (Org.).Marcel Mauss: antropologia.São Paulo: Ática,1979. p.199.
passadas às gerações futuras por meio de símbolos. A técnica que um corpo comporta pode ser
transmitida de forma impressa ou oral conceituada, descrita, relatada; mas pode ainda ser
transmitida por atitudes corporais e pelo próprio movimento: “Quem transmite acredita e
pratica aquele gesto. Quem recebe a transmissão aceita, aprende e passa a imitar aquele
movimento. Enfim, é um gesto eficaz”
129
, ou seja, é técnica. Torna-se o corpo sede de signos
onde “estão inscritos todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma sociedade
específica”
130
. Mauss presume dança como techné, técnica, técnica do corpo. “Um estudo sobre
a dança começará, necessariamente, por um estudo da técnica do corpo que ela comporta”
131
.
Torna-se assim o corpo que dança um depositário único da técnica ou das mais variadas
técnicas de dança que ele possa abrigar.
Esta forma de conceituar o corpo que dança, proposta por Mauss, merece ser ainda mais
afunilada; o corpo que dança não é apenas técnico e cultural. Observa-se esta perspectiva num
conceito recentemente construído, idealizado por Christine Greiner
132
. Greiner parte da
concordância de que a “dança é o pensamento do corpo”
133
para construir a hipótese de que a
dança Butoh
134
seria o pensamento em evolução. Para Greiner, a dança Butoh não é técnica,
é também constituída de algo de qualidade invisível, que captura espíritos, essências e os
revela. Greiner, a partir do trabalho de Tatsumi Hijikata, fundador da dança-teatro Butoh,
ressalta que em algumas formas de dança, os movimentos vêm de técnicas e convenções fixas,
como, por exemplo, é o caso do ballet clássico. Mas a dança butoh de Hijikata não era apenas
129
DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. São Paulo: Papirus, 1994. p.47.
130
DAOLIO. Op. cit., p. 39.
131
MAUSS, M. Op. cit., p. 110.
132
GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras, 1998.
133
Ver KATZ. Op. cit.
134
Butoh: Traduzindo-se o termo 'butoh', 'bu' significa dança e 'toh' quer dizer passo. Literalmente,dança
compassada. O primeiro coletivo de artistas de butô foi formado Hijikata, Kazuo Ohno, Yoshito, Mitsutaka Ishii
e Akira Kasai. Este grupo sobreviveria por cinco anos e tanto Ohno quanto Hijikata saíram e ganharam o mundo,
popularizando e aperfeiçoando a dança a partir do final dos anos 70. A primeira performance de butoh na Europa
aconteceu em 1978. O Brasil tomou conhecimento da dança nos anos 80, através de Kazuo Ohno, atualmente
um senhor do mais de noventa anos que continua dançando e é sem dúvidas o principal nome do Butoh em todo
o mundo.
isso e sim “reflexo da sua vida interior e não dessas convenções”
135
. Assim, tem-se na dança-
teatro, seja Butoh ou não, a intenção de “estabelecer novas organizações no corpo e no
espaço.”
136
. O corpo que dança contemporaneamente não é apenas técnico, ele possui uma
qualidade invisível e intraduzível semelhante àquela de que nos fala Greiner.
Podem-se ainda visualizar outras colocações interessantes, na visão de Greiner, tanto
para a dança-teatro japonesa como para a ocidental. um princípio comum às duas: “todo
tipo de conhecimento e percepção surge a partir e/ou no próprio corpo”
137
; “primeiro, você
precisa matar seu corpo para construir um corpo com(o) uma ficção maior”
138
. Difícil é
também resistir à tentação de discutir este conceito de “corpo morto” japonês e deste corpus”,
que foi gerado pela cisão entre alma e corpo, carne e espírito, permeando as ciências biológicas
ocidentais, como a medicina e a anatomia. Estas se basearam no corpusmorto e em seus
pedaços, influenciando até hoje toda a forma de estudar e compreender corporalmente o
movimento e sua fisiologia. Conceituar o que viria a ser esse “corpo morto” não parece ser
tarefa fácil, mas Greiner se propõe a isto:
“O corpo morto é um corpo que trabalha em um universo de leis
particulares. Ele não as despreza, as conhece. Trabalha com processos
invisíveis, emprestados de outros universos de criação, como aqueles que
coexistem em nosso corpo mas não aparecem com clareza. (...) O corpo morto é
o receptáculo do lugar onde está (...)”.
139
Cabe aqui ainda ressaltar algumas reflexões teóricas sobre o corpo que dança,
construídas pela crítica de dança Helena Katz. Katz entende a dança como “um pensamento do
corpo”, sustentando que “quando o corpo organiza o seu movimento na forma de um
pensamento, então ele dança”
140
. Esta característica, inclusive, a diferencia de todas as outras
construções de movimento que o corpo possa fazer, como, por exemplo, as atividades
135
GREINER. Op. cit.,, p. 89.
136
Ibidem, p. 4.
137
Ibidem, p. 67.
138
MARO, apud GREINER. Op. cit., p. 22.
139
GREINER. Op. cit., p. 89.
140
KATZ. Op. cit., p. 1.
esportivas. O corpo, para Katz, seria o suporte físico específico da dança. Este suporte se
aprimora e evolui em direção à dança ou não. O que Katz explica é que qualquer prática
técnica, como andar de bicicleta, tende a melhorar gradualmente, através do treino. Ao
praticarmos, novos circuitos neuro-musculares acontecem desenvolvendo uma forma de
“inteligência” corporal. O corpo tem a capacidade de produzir e abrigar todas as formas de
qualidades do pensamento dele próprio, seja pular corda, andar de patins, mas, “a mais
completa, aquela a que se pode identificar com o nome de pensamento do corpo, essa é a
dança”
141
.
Com isso, Katz não está negando que o cérebro seja centro da inteligência, criatividade,
emoção, consciência e memória, como afirmam os estudos da neurobiologia. Katz, em sua tese,
explica o processo de funcionamento neuronial e, a partir daí, mesmo não tendo instrumentos e
meios para comprovar, os exporta para a dança. Ela diz que “a dança nasce quando no corpo se
desenha um determinado tipo de mapa neuronial/muscular. Este mapa, exclusivamente ele, tem
o caráter de um pensamento. Quando ele se dá a ver no corpo, o corpo dança”
142
.
Obviamente, a partir desta hipótese, Katz demonstra que a dança não existe se não foi
construída. O fato de o corpo ter a aptidão para dançar não significa que ele esteja
“naturalmente” pronto. Esta construção é diária, no árduo exercício das aulas e dos ensaios e
tanto isso acontece que Katz cita o trabalho dos pesquisadores, Michael Merzenich, John Kaas
e Randy Nelson, que comprovaram que novos mapas corticais somato-sensórios se
constroem a cada novo dia, a depender do novo treinamento realizado no corpo. Ampliando as
idéias de Mauss e Geertz, para Katz, o corpo que dança seria:
"A mais rica interseção da natureza com a cultura que a evolução
produziu. O corpo como ambiente onde a dança se instala como fenômeno
multidimensional, intersemiótico. Conjunção do físico com o biológico, com o
químico, o elétrico, o cerebral, o energético, com o psicológico, o individual, o
transpessoal, o coletivo, com o mental, o social, o cultural."
143
141
Ibidem, p. 24.
142
Ibidem, p. 33.
143
Ibidem, p. 64.
Também para Norval Baitello, “todo corpo é uma construção da cultura, evidentemente
em intenso e profundo diálogo com a sua natureza biológica e social”
144
. Assim, o corpo que
dança revela os códigos, os signos, o espaço-tempo da cultura que ele espelha, sendo uma
“mídia primária”
145
. O conceito de corpo como “mídia primária” evolui com Greiner, quando
ela propõe o corpo como “mídia de si próprio, vale dizer, de sua cultura, uma construção
histórica gerada pelo próprio corpo, instância primeira da inteligência da vida”
146
. está a
hipótese de Greiner: tem-se novos corpos e espaços para dançar e essas novas possibilidades
espelham a cultura contemporânea em que estão inseridos. Para formar-se, o corpo de um
dançarino, além das necessidades comuns a todos os seres humanos, como alimentação,
higiene, precisa de outras. Precisa ser modelado, trabalhado tecnicamente, construído, para
poder construir pensamentos. Este trabalho é árduo, doloroso, requer dedicação, fé. Martha
Graham explica que:
“Primeiro vêm o estudo e o exercício da técnica, que é a escola na qual se
trabalha o fortalecimento da estrutura muscular do corpo. O corpo é modelado,
disciplinado, honrado, e com o tempo, adquire confiança. O movimento torna-se
limpo, preciso, eloqüente, verdadeiro”
147
.
Por isso, o corpo de um dançarino deve ser reverenciado por ele próprio como lugar de
sua oração. Para Graham:
“O corpo é um traje sagrado. É o primeiro e o último traje de uma pessoa:
é nele que se entra na vida e é com ele que se parte dela; deve ser tratado com
honra, e com alegria e medo também. Mas sempre com graça”
148
.
Graham defende uma “memória de sangue”, que tem correlação com a idéia de que o
resgate ou vivência de uma experiência produz inscrição, memória no corpo, e de que esta
memória é fundamental à dança: “para todos nós, mas particularmente para um bailarino com
144
BAITELLO Jr., Norval. Prefácio In: GREINER. Op. cit., p. XI.
145
O conceito de “mídia primária” utilizado por Baitello, parte dos fundamentos desenvolvidos por Harry Pross
em seu livro Medienforschung. Pross afirma que “o corpo e sua capacidade de gerar linguagens - voz, gestos,
odores, imagens, constitui a primeira mídia, a partir da qual todas as outras se desenvolvem, superpondo-se
cumulativamente a ela”. In: BAITELLO. Op. cit., p.XIII.
146
Ibidem, loc. cit.
147
GRAHAM, Martha. Memória de sangue: uma autobiografia.São Paulo: Siciliano, 1993. p. 12.
148
Ibidem, p.14.
sua intensificação da vida e do corpo, existe uma memória do sangue que pode falar
conosco”
149
. Nesta memória estaria contida toda a ancestralidade, os fundamentos genéticos
transmitidos por gerações, mas também as experiências colhidas durante a vida. Com todo este
“material”, possui-se as próprias referências para a criação, como numa análise combinatória
universal da dança. “Chega-se ao ponto em que seu corpo é alguma outra coisa e adquire um
mundo de culturas do passado, uma idéia que é muito difícil de exprimir em palavras”
150
.
Se até este momento histórico a dança necessitou do corpo humano para ser seu
principal lugar, conclui-se que, com as novas possibilidades tecnológicas da cultura
contemporânea e, sendo o corpo espelho desta cultura, surgem novas formas de dançar. Martha
Graham teve a oportunidade de coreografar corpos humanos. Atualmente, mais do que
isso. Tanto a possibilidade de cada vez mais o homem se superar fisicamente, mediante
próteses, cirurgias, substâncias que potencializam o corpo humano, como também inserir a
dança em novas possibilidades de espaço, como no cinema, teatros virtuais, e até mesmo
coreografar para novos corpos: corpos sintéticos, construídos artificialmente através de
complexos softwares de computação gráfica. Os coreógrafos contemporâneos possuem novas
possibilidades não contempladas anteriormente.
2. 2. Dançar no espaço
O espaço é um dos elementos essenciais da dança - um espaço de qualidade simbólica.
A dança-teatro não se propõe a ocupar apenas espaço físico, real, cotidiano, concreto, mas se
propõe a extrapolá-lo e, mesmo usando do espaço real, ela tem a intenção de criar um espaço
onde simbolismos possam ser revelados. Os coreógrafos, quando criam os espaços
coreográficos, produzem sentidos, construídos a partir de experiência e ótica particulares.
Considere-se que os sentidos/imagens que os artistas criam através do espaço em suas obras se
149
Ibidem, p.16.
150
Ibidem, p.18.
reportam às experiências espaciais
151
já vividas e/ou almejadas. Estas experiências são re-
elaboradas, constituindo um baú de memórias e desejos do artista.
Na dança, utilizam-se pontos, linhas geométricas, num sistema de representação
simbólica. Doris Humprey, a partir de sua prática coreográfica e convívio com Charles
Weidman que era um homem de teatro, elaborou uma teoria sistematizada sobre composição
coreográfica, relacionando espaço, movimento, forma. Seu livro El arte de criar danzas
152
foi,
por muito tempo, uma verdadeira bíblia para os coreógrafos, que sistematizava a arte de
coreografar em postulados. No capítulo IX deste livro, Humprey se dedica a estudar o espaço
cênico da dança. Considerando o palco como um lugar mágico e especial, inicialmente ela
informa o tamanho adequado
153
para um espaço de trabalho, para em seguida, elaborar alguns
postulados na tentativa de traduzir alguns de seus simbolismos.
O delicado aspecto desses pressupostos é que, em alguns momentos, segundo a autora,
eles devem ser seguidos como leis. Deve-se esclarecer que estas “leis”, naquele momento
histórico, foram condizentes e seguidas por muitos criadores, mas atualmente não podem ser
vistas desta forma.
Humprey afirma, por exemplo, que se um dançarino estiver localizado em qualquer
uma das quatro verticais
154
que compõem o palco, possuirá muita energia e força física e
espiritual, devido às projeções das verticais e também pelos ângulos retos formados, que
sempre criam conflitos e força. Ela estabelece que o centro do palco, muito conhecido como
“ponto morto”, é o ponto mais intenso, mais expressivo.
151
Se nossas casas tinham escadas, sótão, porão, se só andamos de ônibus ou se andamos de trem ou de barco,
se mudamos muito de cidade, enfim, como foram nossos caminhos físicos, sensoriais, psicológicos, e quais
caminhos queremos percorrer no futuro. Ver BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. SP: Martins
Fontes,1989.
152
HUMPREY, Doris. El arte de criar danzas. Buenos Aires: Eudeba, 1965.
153
Ela afirma que, para um dançarino de proporções normais (?), é adequado um espaço de trabalho de 8 x 6 m,
um espaço não tão imenso para se perder o corpo, mas também não tão pequeno que impeça os movimentos.
Para grupos, o espaço deve ser de 10 x 8 ou 9 m, conforme o número de dançarinos.
154
O palco seria formado por quatro linhas verticais: a da direita frente, a da direita fundo, a da esquerda frente, a
da esquerda fundo.
O abuso esgota-o, e o descanso refresca-o e revigora-o. Já alguém que queira parecer
gracioso ou até mesmo fazer rir, este deverá estar sempre da metade para frente do palco
porque seria praticamente impossível alguém parecer engraçado no fundo do palco, onde tudo
conspiraria contra ele. O fundo do palco é um lugar especial e místico favorecido pela distância
da platéia
155
.
Quanto à forma do palco, em sua concepção, o circular é prejudicial à dança porque
permite várias direções e, sendo a dança uma arte visual que acontece melhor em uma direção,
como uma escultura, este tipo de palco a enfraqueceria. Também o palco circular, pela
proximidade que permite entre o dançarino e o público, diminuiria a mágica da dança, pois a
intimidade estabelecida não a favorece, já que a dança em essência não busca o real e o natural,
e sim o estilizado e o mágico. Humprey reconhece algumas exceções no que se refere às
danças populares que possuem formações geométricas. Pela própria natureza da dança popular,
não seria necessário que acontecesse uma projeção dramática e linear.
Para Humprey, o espaço na dança parte da experiência espacial da vida cotidiana, mas
ele é refinado pela precisão e artifício da arte, neste caso da coreografia, tornando-se assim
uma coordenada das funções simbólicas e técnicas de seu criador. O espaço utilizado na dança
é o espaço simbólico, onde se configuram relações, onde utilização do espaço real de forma
abstrata e não como um espaço apenas de ação. Este espaço é classificado num vel acima do
espaço orgânico, no patamar do estágio do espaço perceptivo, onde elementos de diferentes
experiências.
155
Humprey divide o palco em 6 zonas fracas e 7 zonas fortes. As zonas fortes são: 1a.) o centro; 2a) as duas
esquinas do fundo sustentadas por grandes verticais; 3a) as duas esquinas da frente; 4a.) o centro do fundo do
palco e, por último, o centro da frente do palco. As zonas fracas seriam as zonas restantes entre duas zonas
fortes. Ela exemplifica as zonas fracas e as zonas fortes: Quando um dançarino se locomove na diagonal
esquerda, do fundo do palco para frente, ele inicia com a força advinda do ângulo reto do palco, perde um pouco
desta força antes de chegar ao centro e, quando chega ao centro, ganha força. Ao sair do centro, perde força
novamente, e retorna a ganhar força quando ele consegue chegar ao fim da diagonal, tendo uma vertical
apoiando-o e o ângulo reto fortificando-o. Para Humprey, neste jogo de forças, a diagonal esquerda torna-se
vigorosa que o dançarino, ao percorrê-la, chega ao proscênio tendo-se transformado de um desconhecido,
quando começou no fundo do palco, em um amigo, ao terminá-la.
Um outro termo também bastante comum usado entre os profissionais de dança e que
tem simetria com espaço simbólico, é o espaço virtual. O espaço virtual inicia-se no espaço
real, mas não se restringe a ele. O espaço real é aquele que o dançarino utiliza, o espaço que
existe.
Visando ampliar as dimensões reais do palco, os cenógrafos da época da Renascença
criaram vários recursos, muitas vezes usando grandes cenários, pintados em perspectiva, com a
finalidade de criar um efeito de profundidade ilusória. Esta ilusão criada é chamada de espaço
virtual.
Lia Robatto
156
alerta que os coreógrafos contemporâneos não necessariamente precisam
da cenografia ou de qualquer outro fator, a não ser o próprio movimento do dançarino para
criar espaços virtuais.
"Na dança, o espaço virtual não depende apenas da técnica ilusória dos
telões pintados, dos cenários ou dos efeitos ópticos, como os de Alwin Nikolais na
década de 60. Imagens potenciais podem ser criadas com recursos baseados
nos movimentos dos dançarinos, estabelecendo relações entre: Tamanho,
Proporção e Dimensão; Nível, Distância e Direção e Disposição no palco e
formas corporais. Um gesto expressivo pode dar a sugestão de um amplo salão
ou, inversamente, de um espaço apertado, sem a necessidade de um cenário
realista. (...) Nós, coreógrafos, é que daremos a importância e a conotação
expressiva que quisermos (se tivermos competência para isso), em qualquer parte
das áreas cênicas".
157
Regina Miranda, em seu livro O movimento expressivo, tece as seguintes considerações:
o corpo tem uma orientação espacial tridimensional, ou seja, tem acesso à altura, largura e
profundidade do espaço que o circunda, utilizando o conceito de kinesfera, desenvolvido por
Laban, que não é senão a área espacial em volta do corpo, delimitada pelos movimentos de
braços e pernas em extensão máxima e cujo centro é o centro do corpo. Todos possuem sua
esfera pessoal de movimento e a carregam através do espaço global. O espaço global ou
156
ROBATTO, Lia. Dança em processo: a linguagem do indisível . Salvador: Centro Editorial e Didático da
UFBA. 1994.
157
ROBATTO. Op. Cit., p. 116.
comum pode ser definido como o espaço que fica além do corpo em extensão máxima.
Miranda, ao descrever a extrapolação do espaço real, define também o espaço virtual na dança:
A atenção para este espaço global deve ser constantemente trabalhada,
para que os gestos e movimentos do dançarino consigam atingir, em intenção,
distâncias maiores do que as realmente percorridas pelo movimento. (...) A
intenção espacial tem que ser sempre superior ao espaço realmente percorrido.
E ao atravessar um espaço andando, girando ou saltando, a atenção no objetivo
final, distante do limite da ação do momento, é fundamental.”
158
Numa evolução histórica, vive-se no início deste novo século a necessidade de novas
transformações em que o espaço, além de ré-significado, pode ser totalmente criado, inclusive
sem referência ao real. Como é o caso das novas experiências da dança através de
computadores.
Na contemporaneidade novos espaços se configuram apresentando-se como
possibilidades para a linguagem da dança. Novas experiências estão surgindo, como os
trabalhos de Isabelle Choinière, em que dança e tecnologia se unem para formar a cena
coreográfica, experiências de criação coletiva em rede, como é o exemplo do Gertrude Stein
Repertory Theater, de Nova York. Além de várias experiências em vídeo e no cinema, como
Bodas da Sangue e Carmem, da parceria entre o diretor de cinema Carlos Saura e o coreógrafo
espanhol Antonio Gades, e O lamento da Imperatriz, filme de Pina Bausch, objeto desta tese.
Nestes novos espaços, também há “lugar” para o simbolismo, a expressão estética
própria do coreógrafo. Mesmo que adotando outros procedimentos, outros instrumentos, o
necessário à expressão artística coreográfica existe: um espaço onde o imaginário do artista se
atualize
159
. Assim, o cinema, o teatro, as técnicas fílmicas e teatrais, tornam-se também
instrumentos e espaços contemporâneos para a dança-teatro.
158
MIRANDA, Regina. O movimento expressivo . Rio de Janeiro: Funarte, 1975. p. 47.
159
Este termo está sendo usado aqui em concordância com o que define Piérre Levy em O que é o virtual ? São
Paulo: Editora 34,1995.
Para compreender este patamar, cabe olhar para os espaços anteriormente ocupados
pela dança em sua evolução, como propõe Robatto
160
. Nas danças tribais quase nunca uma
diferenciação exclusiva entre o espaço de uso cotidiano e o uso do espaço para rituais, sendo a
separação entre o espaço ocupado pelo dançarino e pelo espectador relativizada e notadamente
mais interativa; ou seja, todos participam de uma mesma unidade, sem distinção. Este tipo de
espaço revela uma relação sagrada com a vida, além de igualdade e integração social. Uma das
figuras geométricas mais utilizadas por estas tribos é o círculo, que Doris Humprey
161
traduz
como símbolo de união, ciclo. Robatto propõe, como tradução deste símbolo, a idéia destes
povos sobre o tempo, para eles, sinônimo de eternidade.
As chamadas “danças rurais”
162
fazem uso de uma estrutura tradicional de duas fileiras
paralelas e variações que significariam o princípio da dualidade, ou seja, o confronto de
elementos opostos, como por exemplo damas e cavalheiros, boi azul e boi encarnado. Esse
simbolismo revelaria uma sociedade mais competitiva e a quebra de harmonia com a mãe
natureza. nas danças sagradas, é fácil perceber a organização do espaço de forma
hierárquica: sacerdotes no altar, fiéis na nave.
Na dança como expressão cênica, como linguagem de espetáculos, as relações espaciais
criadas surgiram a partir da organização do espaço cênico, mais especificamente, do
desenvolvimento da arquitetura da casa de espetáculos. Localizamos na Grécia Antiga a
primeira manifestação de arte cênica a elaborar seu próprio espaço. O anfiteatro grego possuía
em sua arquitetura todas as limitações hierárquicas que deviam ser respeitadas. No palco
principal apenas os protagonistas, entre o palco e arquibancada, ou seja, na orquestra, os
dançarinos dos coros, e na arquibancada, a platéia. Segundo Robatto, os dançarinos que
ocupavam esta faixa entre o palco e o público tinham como função representar os comentários
160
ROBATTO. Op. Cit.
161
HUMPREY. Op. Cit.
162
Danças relacionadas com ciclos da agricultura: plantação e colheita.
e reações do povo perante os nobres e os deuses representados pelos protagonistas. Havia,
assim, uma grande interatividade entre os artistas e o público.
No Império Romano, percebe-se que os dançarinos foram desvalorizados e, por
conseguinte, tiveram que ocupar espaços não muito nobres, como carroças, tablados, praças,
não possuindo um espaço específico para apresentar seus espetáculos. Durante a Idade Média,
com a dança dividida em sagrada e profana e sendo perseguida pelo cristianismo da época,
houve apenas oportunidade de ocupar o átrio da Igreja para se realizar os “Mistérios”. Nesta
mesma época, devido a essa perseguição das danças profanas, surgiram as Cirandas, “Caroles”,
dançadas nas aldeias pelo povo e nos castelos pelos nobres. Houve também as danças
macabras, dançadas nos cemitérios.
A dança volta a ser prestigiada na época dos ballets de corte que aconteciam nos
espaços nobres dos salões palacianos. Na França ocorre uma grande modificação nos padrões
anteriormente utilizados. O mestre italiano Baltasar Beaujoyeux
163
introduz os ballets de corte,
vistos do alto, de cima dos balcões dos castelos, priorizando-se assim, a formação de figuras
geométricas na coreografia.
Mas é o mestre francês Charles-Louis-Pierre Beauchamps que tem papel decisivo na
elaboração e codificação da técnica da dança clássica: foi ele que definiu as cinco posições
básicas dos pés no ballet. Também enfatizava os desenhos horizontais em suas criações. Em
seguida, por terem se tornados mais apoteóticos e espetaculares, os ballets vão ocupar as arenas
e praças públicas para o deleite do povo. Com a evolução, houve a necessidade de adequação
das danças, que antes eram vistas de cima, a um espetáculo que passou a ser visto de frente,
com distanciamento entre atores e platéia. Além disso, os dançarinos estavam agora no palco,
distanciados do público e não mais no meio deles. Todas essas transformações espaciais
163
BOURCIER. Op. Cit. p. 86 : "Seu nome de origem era Baldassarino da Belgioso, um piemontês que fora para
a França com um conjunto de violinos. ele concebe o balé como uma ação falada, cantada e dançada.
fizeram com que se criassem passos mais verticais e posições corporais especialmente voltadas
para a platéia, como, por exemplo, o en dehors
164
.
Caracterizam-se, assim, os espaços utilizados na dança em relação ao seu estilo, às suas
diversas linguagens. O ballet clássico, por exemplo, desenvolvido nos séculos XVIII e XIX,
teve como principal espaço de atuação o palco italiano
165
, idealizado também para os
espetáculos operísticos.
166
Lima afirma que o palco italiano
167
, adotado em todo o mundo ocidental devido à
exportação de gosto pelo espetáculo lírico, foi modelo que se reproduziu por mais de 150
anos
168
, resultando num fenômeno de longa duração na história da arquitetura do
espetáculo.
169
No ballet, os movimentos dos dançarinos são criados para serem vistos de frente, com
saltos e portés
170
enfatizando a verticalidade. Nesta linguagem, há o destaque das áreas
centrais e do proscênio do palco para os solistas, e do fundo ou das laterais do palco para o
grande corpo de baile. Enfatiza-se a utilização de linhas espaciais simétricas, em sua maioria
retas, e também a utilização da diagonal esquerda, considerada a mais forte do palco. O nível
164
O en dehors é uma posição do ballet clássico em que pés e joelhos estão voltados para fora."
165
In: ROBATTO, op. cit., loc. cit.: “Uma caixa de palco com quatro lados, com a platéia de frente a um dos
lados, oferecendo ao público um único ponto de vista”. O palco italiano foi criado na Itália (séc. XVI), Robatto
ressalta que eram construídos nesta época teatros especificamente para a finalidade de realização de espetáculos.
Estes teatros foram planejados para criar um ambiente de ilusão e magia, com o espaço cênico separado da
orquestra e da platéia. Mesmo sendo palcos limitados, possuíam equipamentos de maquinaria cênica que
permitiam efeitos especiais como dançarinas suspensas por cabos para dar ilusão de vôos, etc. O palco italiano
foi e é tão importante para a dança, que até hoje é um dos principais espaços onde, a dança sob forma de
espetáculo, se realiza.
166
LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do Espetáculo: teatros e cinemas na formação da Praça
Tiradentes e da Cinelândia Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.
167
Ver mais sobre o assunto em LIMA. Op. Cit. A autora faz um apurado estudo sobre a manutenção da forma
italiana até nos cinemas do século XX.
168
Ibidem. p.315.
169
Ibidem, p. 316: "Até a década de 1950, apesar de algumas tendências estéticas terem se alterado, permaneceu
na arquitetura a ordem italiana. Este tipo de organização interna do teatro valorizou a cenografia, separando a
sala de palco, em benefício do teatro de ilusão baseado na decoração trompe l'oeil. Sob a influência de gêneros
dramáticos e líricos, o teatro italiano inventou cnicas cenográficas que se inseriram numa arquitetura teatral
específica".
170
São assim chamados os movimentos em que o bailarino carrega a bailarina, geralmente para posições
elevadas, o que requer dele grande força física para sustentá-la.
alto, tão buscado através dos saltos e dos portés
171
, teria a intenção de expressar a dicotomia
entre corpo x espírito e a busca do divino e do etéreo, negando o peso material do corpo.
Já a dança moderna americana e a expressionista alemã, da primeira metade deste
século, utilizam o espaço para revelar todas as transformações e pressões de uma época
povoada de guerras e perdas. Evidencia-se a utilização do espaço como símbolo do imaginário
de uma época. Martha Graham enfatizava o espaço dos seus movimentos - contorções e
releases - em seu próprio corpo, para simbolizar a angústia que vivia. Doris Humprey
propunha um espaço dialético, revelando com suas quedas e recuperações todo o sentido de
equilíbrio que existe entre a vida e a morte, além de definir e identificar diversas regras de
utilização do espaço. E Mary Wigman, usando com freqüência o espaço limitado, espelhava
toda opressão, tensão e resistência às pressões vividas historicamente no cenário entre as duas
grandes guerras mundiais.
A partir da metade do século XX, todo espaço cênico começou a ser visto com igual
poder entre suas áreas. Na última metade do século XX, além do palco italiano, outros tipos de
palco foram também utilizados, além de praças públicas, jardins, escadarias, pátios de Igreja e
outros, em propostas de dança ambiental ou de performances.
Milly Barranger
172
classifica quatro diferentes tipos de palco: o proscênico
173
, o
arena
174
, o aberto
175
e a caixa preta
176
. Atualmente surgem mais possibilidades de espaço para a
171
Ibidem.
172
BARRANGER, Milly. Theatre: a way of seeing. Califórnia: Wadsworth, 1991.
173
O palco proscênico, segundo Barranger, nos oferece uma visão como se fosse uma moldura de quadro. O
andar da platéia inclina-se para baixo, começando esta inclinação da parte de trás da platéia, oferecendo, assim,
uma grande visibilidade. Neste tipo de palco, a idéia é de que haveria uma quarta parede removida, ou seja, a
abertura proscênica é pensada como uma parede invisível.
174
No palco de arena, que é também chamado de teatro de arena, uma quebra da formalidade do palco
proscênico. O palco se localiza no centro de um círculo com assentos para os espectadores em volta deste
círculo, ou nos quatro lados possíveis. Este palco oferece mais intimidade entre ator e platéia, desde que não haja
barreiras separando-os.
175
Barranger ressalta que a qualidade sica deste tipo de palco é que ele combina as melhores qualidades dos
outros dois palcos citados anteriormente: o sentido de intimidade com a platéia e um palco com um único fundo
que permite desenho cênico e elementos visuais como no palco proscênico. No palco aberto geralmente existem
três quartos de assentos para a platéia.
176
O palco tipo caixa preta é um tipo de espaço performático mínimo, desenvolvido na década de 60 para
trabalhos experimentais e/ou novas peças. Essencialmente, seria uma grande sala retangular, totalmente pintada
dança. Se a dança foi, num passado remoto, parte da vida de todos os homens, e se a vida hoje
está povoada de máquinas, não é incoerente pensar que a dança também pode surgir e ser
veiculada através das máquinas. Neste sentido, a dança teria como objetivo absorver estas
novas tecnologias para transcendê-las, problematizando assim as tecnologias de comunicação
na cultura contemporânea. As definições de dança se alteram conforme o contexto histórico
que envolve.
A dança, hoje, continua sendo expressão do imaginário humano, expressão de
sentimentos ou puro movimento, como quer Merce Cunningham, mas também inclui
possibilidades de tradução e composição conjuntas com outras linguagens. Jean Baptiste Lully
introduziu a dança nos palcos italianos com a intenção de profissionalizá-la, alterando-a
profundamente em sua forma. Mais recentemente, com as performances e os happenings dos
anos 70, a dança utilizou espaços não tradicionais e rompeu limites em concordância com uma
época, que aproximava arte e vida e que questionava as relações de poder e o lugar das coisas.
Brigava-se com o autoritarismo, invadindo os espaços “formais”, como os próprios museus,
praças públicas.
Contemporaneamente habita-se um estágio de evolução simbólica, que requisita novos
espaços para comportar o imaginário da época, o imaginário dos seres que vivem em meio à
revolução informacional, ao espaço cinético.
2.3. Corpo, espaço, movimento, formas
Contextualizar definições sobre o que é dança é considerar o cotidiano, olhar o mundo
com antenas parabólicas para, junto com o imaginário e o inconsciente, configurar obras.
Vivemos num momento em que as transformações tecnológicas são intensas. Por isso estas
percepções são substratos para a dança. Como dançar o amor entre um homem e uma mulher,
de preto, geralmente equipado com um complexo de iluminação acima das cabeças e assentos móveis, com
aproximadamente 90 a 200 lugares. Esses assentos sendo móveis permitem experimentar com a forma e o tipo
por exemplo, nos dias de hoje quando as pessoas se comunicam intensamente via Internet? É
natural que surjam na dança esses conteúdos das transformações, inclusive sensoriais, que
estamos vivendo.
A dança-teatro contemporânea e pós-moderna é expressão simbólica de conteúdos
significativos, reveladora de anseios, medos, buscas e evolução inerentes à condição humana.
Os seus criadores são revelados e a revelam, exploram e instigam questões existenciais.
É resgate dos registros de experiências vividas, de imagens, sons, percepções, odores,
bem como uma oportunidade para novas experiências. É essencialmente expressionista, mas
não expressão superficial, pois se faz necessária à experiência, o mergulho profundo, a
investigação.
Recriar a experiência muitas vezes é extenuante, mas é necessário: depois dela o
registro da situação vivida se inscreve em cada célula, em cada músculo do corpo, numa
memória celular corporal. Com o auxílio técnico do coreógrafo, os movimentos corporais
surgidos no laboratório são retomados e realizados de forma consciente, estabelecendo uma
seqüência coreográfica. A dança-teatro surge, nessa “verdade” vivida e registrada na carne,
como uma escrita cênica corpórea que passa a ser o texto dramatúrgico. Nem todos os
dançarinos conseguem se expor visceralmente e produzir arte com esta exposição, nem todos
os coreógrafos conseguem ajudar o dançarino a realizar este processo; este é o diferencial que
distingue um dançarino profissional de um cidadão cotidiano que dança.
A experiência contemporânea se constitui também nesta relação (tensão) travada entre o
homem e as novas tecnologias, são os motivos que o fazem criar, porque esta é sua
experiência: habitar o cenário tecnológico contemporâneo.
A partir do conceito de que a dança é a união dos seus elementos essenciais movimento
(ação), espaço, forma e tempo novos meios são oferecidos a esses elementos neste momento,
pois não há mais somente uma sala e dançarinos. Concordando com o coreógrafo Yacov
de espaço da performance.
Sharir
177
, temos hoje o dançarino, a sala e o ciberespaço. A partir das novas tecnologias, a
possibilidade de novas montagens. Os corpos dançam no espaço real e em possibilidades
híbridas, sincrônicas e assincrônicas, onde se fundem as linguagens do teatro, do cinema e até
mesmo as do ciberespaço, dos computadores. Abre-se um leque de outras possibilidades para
os corpos e o espaço na dança.
2.4. Dança e virtual
Para Pierre Lévy
178
, “a palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por
sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e
não em ato”
179
. Dentro do cenário do século XX, a utilização freqüente da palavra “virtual”
para designar fenômenos diversos. Assiste-se a projeções de “realidade virtual”, por meio dos
computadores, cria-se e navega-se num espaço “virtual”. Em muitos exemplos, a palavra
“virtual” é utilizada em oposição ao que é real, palpável, concreto.
vy, a partir das idéias de Gilles Deleuze
180
, desenvolve uma teoria sobre o real e o
virtual que nos interessa na constituição da contemporaneidade. Visando conceituar essas
diferenças, ele fundamenta os quatro conceitos básicos de sua teoria: o atual e o virtual, o
possível e o real. Aqui nos interessam particularmente os conceitos de atual e virtual, apesar de
todos estarem intrinsecamente problematizados.
Para Lévy, a palavra virtual é empregada com freqüência para significar a ausência de
existência concreta, supondo a realidade como uma efetuação material, enquanto o virtual seria
da ordem do não tangível, da ilusão. Para ele, “o virtual é como o complexo problemático, o nó
de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto, ou
177
Em entrevista a TCAnet, Sharir revela que, antes da integração com as novas tecnologias, as ferramentas na
dança eram poucas e se resumiam pelo menos em ter uma sala e um dançarino, mas atualmente, além do espaço
e do dançarino, temos o ciberespaço. http://www.arts.state.tx.us/artist_studio/sharir/tools.htm (12/12/98).
178
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
179
LÉVY. Op. Cit., p.15.
180
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução: Roberto Machado e Luiz Orlandi. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. Lévy se baseou principalmente nesta obra de Deleuze.
uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização”
181
. O virtual
tende a atualizar-se
182
, e, ao concretizar-se, atualiza-se; assim, segundo Lévy, o virtual se opõe
ao atual e não ao real, como estamos acostumados a ouvir no cotidiano.
Esclarecendo a diferença entre o virtual e o possível, vy explica que o possível é
algo constituído, mas lhe falta a existência. A virtualização
183
implicaria na criação, na
produção inovadora de uma idéia ou de uma forma. Exportando estes pressupostos, o processo
criativo coreográfico é um processo virtual, envolvendo uma série de questões durante a
criação, até se conseguir uma resposta: a obra. A coreografia está virtualmente presente no
coreógrafo, no criador; ela reside nele. Suas virtualizações são únicas e pessoais e partem de
todas as suas experiências, memórias e sensibilidades de vida. A virtualização coreográfica
tende a atualizar-se em forma de imagem-movimento no espetáculo.
O processo criativo está no real, flutuando entre processos de atualização e
virtualização. Exemplifica-se: o coreógrafo, no seu processo de criação, às vezes parte de um
tema, de uma música, ou apenas de uma motivação do momento, ele envolve, problematiza,
cria, inova. Ao criar a coreografia, definir figurinos, cenários, tomar suas resoluções criativas,
criar movimentos, ele atualiza. Assim, a atualização do processo coreográfico, a coreografia,
poderia ser definida como uma produção de formas novas, transformações de idéias. A obra
artística ao ser apresentada sensibiliza o público, então o processo de novo é ativado, ou seja, o
público parte para suas próprias virtualidades.
É importante ressaltar que a idéia filosófica subjacente à conceituação de real e virtual
não é nova. Novo é lidar com esta questão diante das novas tecnologias. O que se assinala é
que o processo de virtualização do mundo contemporâneo tem uma característica
181
LÉVY. Op. Cit., p. 16.
182
Idem: Pierre Lévy define a atualização como “uma criação, invenção de uma forma a partir de uma
configuração dinâmica de forças e de finalidades.”
183
LÉVY. Op. Cit., pág. 18 a 19: .A virtualização, sintagma criado por Pierre Lévy, opõe-se à atualização pois
não se trata de uma solução, mas sim uma “mutação de entidade, uma deslocação da entidade no espaço (...)
operações de problematização, de desterritorialização, de comunhão, de constituição recíproca da interioridade e
de exterioridade.”
diferenciadora. Lévy acredita que “nunca antes as mudanças das técnicas, da economia e dos
costumes foram tão rápidas e desestabilizantes”
184
, e esse processo “não é catastrófico, exprime
uma busca da hominalidade”
185
. A virtualização é “um modo de ser fecundo e poderoso, que
põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a monotonia da
presença física imediata”
186
. A humanidade estaria como sempre vivendo um processo de
virtualização individual e coletiva, simultaneamente radicalizado pelas novas tecnologias.
Direcionando o olhar de forma mais incisiva aos processos de virtualização do corpo,
observa-se o que acontece contemporaneamente, quando o corpo pode viver a experiência de
estar aqui e ao mesmo tempo, devido às técnicas de comunicação e de telepresença, como no
cinema, vídeo ou televisão.
Vive-se num corpo desterritorializado que forma um grande corpo coletivo em que
“cada corpo individual torna-se parte integrante de um imenso corpo híbrido e
mundializado”
187
. Lévy cita alguns exemplos do processo contemporâneo de virtualização do
corpo: o telefone
188
virtualiza a audição, a televisão virtualizaria a visão, ou seja, os sistemas de
telecomunicação virtualizam nossas percepções. Por meio de gestos, modificam-se resoluções,
acionam-se à distância aparelhos reais. A complexa e heterogênea interação sensório-motora
humana é transferida, tecnologicamente, para esses dispositivos contemporâneos.
O processo mais abrangente de virtualização é, na verdade, o processo artístico que, em
essência, virtualiza o homem, o mundo. Tudo é possível de virtualização por intermédio da
arte, pois o virtual, existe como faculdade, e é suscetível de se realizar. Quando um artista toma
para si conhecimentos (linguagens) e os virtualiza, propondo uma obra plástica ou uma obra
multi-midiática, ele está colocando em exercício, ou efeito atual, o que era virtual.
184
Ibidem, p.12.
185
Ibidem, p.11.
186
Idem.
187
Ibidem, p. 31.
188
Ibidem. p. 29: O telefone também pode ser visto, como um dispositivo ubíquo de telepresença, já que
transporta a própria voz, virtualiza o corpo, pois “o meu corpo tangível está aqui, meu corpo sonoro, desdobrado,
está aqui e lá”.
Dentro da dança, exemplificamos este mesmo processo observando que, quando um
coreógrafo absorve conhecimentos de uma determinada técnica de dança e depois a torna mais
complexa e a reestrutura, conjugando, neste caso específico, a técnicas do cinema e do teatro,
ele também está realizando um processo virtual, daquilo que está predeterminado e contém
todas as condições essenciais à sua realização. Um novo tipo de artista aparece, que não conta
mais uma história. É um arquiteto do espaço dos acontecimentos, um engenheiro de mundos
para bilhões de histórias por vir. Ele esculpe o virtual.
O retorno à autocriação do sujeito propiciado pela abertura do atual é virtualização. O
atual é o virtual tornado objeto, um objeto que pressupõe o sujeito, o homem. A passagem do
virtual para o atual, ou seja, o processo de atualização, é o próprio processo de criação do novo,
de um novo que adquire o estatuto ontológico de objeto criado pelo homem.
O corpo humano tornou-se um objeto modificável através de operações plásticas,
dietas, drogas, hormônios, quase tudo passou a ser possível de alteração. Além disso as
tecnologias de comunicação permitem ao Homem estar “aqui e ali”, estar num espaço físico e
noutro ao mesmo tempo, independentemente da distância, pois a velocidade de transmissão é
muito rápida. Convém aqui lembrar uma frase de Pierre vy “a sincronização substitui a
unidade do espaço, a interconexão substitui a unidade do tempo”
189
.
Tal como foi a da economia e a do texto, a virtualização do corpo é uma etapa que
começa ainda a dar os primeiros passos,. Os nossos desejos, atividades físicas e psíquicas
necessitam de uma exterioridade que ocorre na virtualização. A exteriorização é feita por todos
e na virtualização podemos ter acesso às sensações do outro, nos sistemas avançados da
realidade virtual, em que quase tudo da experiência do outro é semelhante à nossa. Mas o
Homem não parece ficar por aí. Até o corpo já é projetado no virtual, onde através da técnica
consegue-se reconstruir modelos numéricos do corpo em três dimensões.
189
LÉVY. Op. Cit., p. 45.
vy oferece um parágrafo onde descreve de forma sucinta todo o processo do
hipercorpo num texto narrativo com tonalidades poéticas que cabe bem neste estudo:
“O meu corpo é a atualização temporária de um enorme hipercorpo
híbrido, social e tecnobiológico. O corpo contemporâneo é como uma chama,
muitas vezes minúsculo, isolado, separado, quase imobilizado. Depois, ele sai de
si mesmo, intensificado, pelos desportos ou pelas drogas, passa por um satélite,
liga-se então ao corpo público e queima-se com a própria chama, brilha com a
mesma luz do que os outros corpos chama”. Em seguida, volta a si,
transformado, numa esfera quase privada aqui e por todo o lado, tanto em si como
misturado. Um dia, ele separa-se completamente do hipercorpo e apaga-se.”
190
Enquanto que a virtualização do corpo ainda é um processo que está a decorrer, a
virtualização do texto ocorreu. Pierre Lévy indica-nos que o texto escrito sempre foi um
objeto virtual, não está nem esteve dependente de um suporte físico específico. No entanto,
apesar do texto escrito ser um objeto virtual quando o lemos automaticamente atualizamos o
assunto, construindo uma paisagem semântica móvel e acidentada para o que se lê.
O texto projeta-se no mundo virtual através do efeito Moebius
191
, o 'texto' na dança-
teatro também acontece desse modo diferente. Procura-se o pensamento no aqui e agora e não
o pensamento do autor. Assim, também na dança-teatro, virtualizar uma coisa significa
"descobrir a questão geral à qual ela se reporta, e transferir a entidade em direção desta
interrogação"
192
.
A virtualização coloca uma nova questão, ela desterritorializa, ela passa de uma solução
dada (atual) a um novo problema. A virtualização é "um dos principais vetores da criação de
190
LÉVY. Op. Cit., p. 33.
191
Descoberta em 1865 pelo matemático e astrônomo alemão August Ferdinand Moebius (1790-1868), a faixa
de Moebius foi o embrião de um ramo inteiramente novo da matemática conhecido como topologia, o estudo das
propriedades de uma superfície que permanecem invariantes quando a superfície sofre uma deformação
contínua. Pegue uma faixa retangular de papel e una suas pontas para formar um 'anel'. Se unirmos da maneira
usual, juntando A com C e B com D, temos um anel circular comum: uma faixa sem fim, com lado de dentro e
de fora. Mas se antes demos um meio giro, e então juntarmos os pontos A com D e B com C, o resultado será a
faixa de Moebius. A primeira coisa que notamos na Faixa de Moebius é que ela tem um lado: podemos ir de
um ponto de um 'lado' da faixa a qualquer ponto do 'outro' lado através de um caminho contínuo sem nunca
perfurar a superfície nem passar pela fronteira. Então a faixa de Moebius não tem um lado de 'dentro' nem de
'fora', somente um. Além disso, ela tem uma única borda. Além da desterritorialização, um outro caráter é
freqüentemente associado à virtualização: a passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior. Esse
"efeito Moebius" declina-se em vários registros: o das relações entre privado e público, próprio e comum,
subjetivo e objetivo, mapa e território, autor e leitor etc.
realidade"
193
, revela a desterritorialização, uma problematização do aqui e agora, para um
além-daqui, é sempre uma problematização complexa do atual. Virtualizar é questionar.
Ao elaborar sua escrita dramático-corporal, Pina Bausch atualiza diversas questões
sobre o momento e o homem contemporâneo. O espectador-leitor, ao tomar contato com esse
texto-imagem, virtualiza-o, na medida em que questiona o que está sendo dito, e na medida em
que isso o remete a referências próprias e individuais. Uma leitura é sempre uma virtualização,
sendo essa diretamente ligada a uma desterritorialização, no caso, uma desterritorialização do
texto-imagem.
Em nenhum momento a virtualização é um desaparecimento ou uma ilusão. Ela é,
afirma Lévy, uma dessubstancialização que se inclina na desterritorialização, num efeito
Moebius, na passagem sucessiva do privado ao público, do interior ao exterior e vice-versa. A
subjetivação - dispositivos técnicos, semióticos e sociais no funcionamento somático e
fisiológico do indivíduo - e a objetivação - influência dos atos subjetivos na construção do
mundo - são dois movimentos complementares desse processo virtualizante. Para Lévy, a
virtualização não é um fenômeno recente, pois toda a espécie humana se construiu por
virtualizações (gramaticais, dialéticas e retóricas). O real, o possível, o atual e o virtual são
complementares e possuem uma dignidade ontológica equivalente.
Toda arte, techné, exprime um processo de virtualização e de atualização. Toda técnica
é a virtualização de uma ação e, ao mesmo tempo, atualização de uma questão. A arte/técnica,
como atividade poietica, é um dom original do homem. Como afirma Giorgio Agamben
194
: "O
homem tem sobre terra um estatuto poético porque é a poiesis que estrutura o espaço original
do seu mundo"
195
.
192
LÉVY. Op. Cit., p. 49.
193
Idem.
194
AGAMBEN, Giorgio. The end of the poem:studies in poetics. Translated by Daniel Heller-Roazen. Stanford,
Calif.: Stanford University Press, 1999.
195
AGAMBEN. Op. Cit. p.143.
A arte é assim constitutiva do homem. Ela não é nem um objeto privilegiado, nem valor
cultural, nem mesmo um objeto para espectadores, afirma Agamben. Antes, ela é uma
"dimensão essencial, porque ela faz o homem perceber sua posição original na história e no
tempo"
196
.
O objeto técnico/artístico é um operador de virtualização. A arte encontra-se no meio
dos processos de virtualização da linguagem, da técnica e da ética buscando, ao mesmo tempo,
escapar do aqui e do agora (virtualizando) e propor soluções concretas às suas questões
(atualizando). A arte virtualiza as virtualizações, tentando saídas de situações limitadas à um
aqui e agora físico e/ou simbólico. Esse processo não é exclusivo da arte eletrônica, fazendo
parte de toda forma artística. Toda arte é virtualização de uma virtualização, que ela procura
trazer ao sensível, problematizações do real e alargar os limites do possível
197
.
A hibridação - espaço, tempo e corpo - parece ser o paradigma das artes do final do
século XX, a dança-teatro é assim uma arte interativa híbrida, existindo um movimento do
tempo subjetivo e individual ao tempo imediato, real. O que está em jogo é uma certa edição da
realidade, edição da sociedade do espetáculo, a partir de seus múltiplos fragmentos. A estética
se recheia de citações, referências, colagens de todos os gêneros, num contexto onde opera em
zappings de signos, desestabilizando os discursos lineares, investindo na sua trágica vinculação
ao presente. O que está em jogo é essa colagem de informações. O caráter é aberto, interativo e
não hierarquizado, e não é por acaso que conexão, interação, participação plural e interativa,
constituem o espaço híbrido fundamental da dança-teatro de Pina Bausch. Como diz Pierre
vy:
"Para nós, o mundo, nosso mundo humano, é um campo problemático,
uma configuração dinâmica, um imenso hipertexto em constante metamorfose,
atravessado de tensões, cinzento e pouco investido em certas zonas, intensamente
investido e luxuosamente detalhado em outras. As proximidades geográficas, as
196
Ibidem. p.156.
197
No contexto da arte eletrônica contemporânea, esse processo atinge uma radicalização sem precedentes, pois a
arte continua a ser virtualização de uma virtualização, que agora sob uma forma puramente digital, utilizando-
se de uma tecnologia também virtualizante (digital).
conexidades causais clássicas são apenas um pequeno subconjunto das ligações
de significação, de analogia e de circulação afetiva que estruturam nosso universo
subjetivo. O universo físico é um caso particular do mundo subjetivo que o cerca,
o impregna e o sustenta. O sujeito não é outra coisa senão seu mundo, com a
condição de entender-se por este termo tudo o que o afeto envolve. Assim é pouco
afirmar que o psiquismo está aberto para o exterior; ele é apenas o exterior, mas
um exterior infiltrado, tensionado, complicado, transubstanciado, animado pela
afetividade. O sujeito é um mundo banhado de sentido e de emoção."
198
2.5. A pós-modernidade
O híbrido desse estudo, o filme O Lamento da Imperatriz, dança-teatro-cinema, está
inserido na pós-modernidade. O termo pós-moderno foi cunhado nas ciências sociais pelo
historiador Arnold Toynbee, em 1947, e passou a ser utilizado, principalmente por sociólogos
americanos, para nomear o período posterior à Segunda Guerra Mundial
199
.
O pós-moderno é a ruptura com as meta-narrativas. O rompimento com a forma de ler
e explicar o mundo, referenciada no conceito de totalidade. O mundo deixa de ser o universal
metafísico da unidade, constância, regularidade, para tornar-se a diversidade, a
fragmentaridade, a descontinuidade de Foucault, o efêmero.
Uma vez que deixa de ser a totalidade, a razão global, o contexto, tem lugar o
intertexto, o entrecruzamento de vários mundos. A idéia de um alguém que pensa o mundo
como totalidade e nele intervém em termos de totalidade perde sentido, morrendo o sujeito.
Junto com o sujeito, morre o projeto, projeto da revolução, projeto da história. E nessa medida
da morte do sujeito e do seu projeto, desaparece o mundo como objeto do sujeito. Morre a
relação sujeito-objeto. Morre a história linear e seqüencial.
198
LÉVY. Op. Cit., p. 107-108.
199
Décio Torres afirma que “aqui no Brasil, Mário Pedrosa utilizou esse termo na década de 60 referindo-se à
arte contemporânea, marcada pela diferença qualitativa introduzida pelos meios eletrônicos, retirando-o da esfera
da História e da Sociologia e aplicando-o à área da crítica e da criação artística”. In: CRUZ, Décio T. Pós-
moderno: trajetória angustiante. Jornal da Tarde, S.Paulo, 19 jun.1993. Caderno Dois, p. 6 e 7.
Finda assim toda uma forma de representação de mundo referenciada em princípios e
fundações. Não mais fundamentos, raízes fincadas, lógicas totalizantes. Some o padrão,
fica o múltiplo.
É a linguagem que ganha um novo sentido. A grande característica do pós-moderno é
exatamente a maneira como se passa a entender a leitura. Toda forma de expressão e
organização de mundo é texto. Todo meio e modo de representação é linguagem. Uma
paisagem, uma pintura, um espaço vivido, um movimento, são texto e intertexto, formas de
linguagem. Tudo libera a linguagem do horizonte estrito da razão e a aproxima do símbolo e
do semiológico.
Significa isso este início do século XXI é um momento de transformação cultural de
profundidade extraordinariamente ampla. E quando é a cultura que se encontra em processo
de des-construção, o tema é o homem, com as suas representações.
Daí a sensação de se estar num momento parecido com o que a humanidade se
encontrou na época do Renascimento. Viveu-se uma ruptura na forma do olhar, houve a
necessidade da humanidade colocar-se sob uma outra forma de atitude diante do mundo, relê-
lo por completo, construí-lo sob uma forma distinta da anterior.
2.6. Arte: um tanto de real, um muito de semântico
Num simbolismo desafiante, pois foi onde o discurso moderno começou, é a arte quem
primeiro detecta a crise da modernidade, e onde, não por acaso, o pós-moderno nasce e
cresce.
Antena da sensibilidade, e não da razão, a arte o mundo através da linguagem da
representação espacial - situação que divide com a geografia. É quem enfrenta a dificuldade
maior de captar e representar as mudanças do conteúdo. E busca resolvê-la, mudando
freqüentemente de estilo.
Estado eterno na história da arte, a mudança de estilo se torna uma constante a partir
dos fins do século XIX, quando a segunda revolução industrial imprime às transformações
técnicas uma aceleração que não pára. Desde então, mal um estilo surge, outro o supera.
Uma corrida incessante da linguagem da representação espacial para manter-se
contemporânea do movimento de mudança do tempo.
A pintura impressionista é o primeiro momento desta fase. E o primeiro indício
manifesto do início da modernidade. A reação do público, negando-lhe qualquer valor
artístico, é o melhor termômetro. Culturalizado na linguagem de representação espacial
institucionalizada, a clássica do espaço-tempo renascentista, o público de arte age de modo
conservador, considera a representação impressionista ilógica, não artística e
incompreensível. Só mais tarde se dará conta do seu significado: a luta tenaz da arte, a
escultura, a música ou a arquitetura, no caso a pintura, para criar a forma de representação
espacial que conta do ritmo de transformação dos conteúdos reais da história acelerados
pelas novas tecnologias. O artista, ao contrário, percebe a defasagem da forma diante da
transformação do tempo, manifesta-a na criação da nova linguagem e saboreia a multiplicação
dos estilos, desde 1874, ano da primeira exposição impressionista, tão veloz, que por ela se
pode acompanhar a marcha de mutação técnica das sociedades industriais modernas. Se o
impressionismo é um momento de estupefação, o surrealismo é o de solução radical e a pop
art mais radical ainda. A repetitibilidade da mesma imagem na seqüência de fotos de Marilyn
Monroe, de Andy Warhol, tentando, tanto quanto a colagem, registrar pela seriação, ou pela
superposição visual, uma temporalidade que teima em não se enquadrar em nenhuma forma
permanente de representação espacial, equivale a um discurso pós-moderno.
O cinema, a forma de arte por excelência de nosso tempo, resplandece de filmes
expressivos dessa ótica. O Exterminador do Futuro, 2001: Uma Odisséia no Espaço, O
Caçador de Andróides, filmes passados num mundo técnico, pleno de objetos biotecnológicos
e novas regras de trabalho, são cenários pós-modernos. Aqui, reina a percepção caótica do
espaço-tempo típico da terceira revolução industrial, o relato ficcional do inesperado,
ocasional e efêmero. Não por acaso o pós-moderno é uma época de ficção científica
revigorante. Arte do fantástico, do tempo que declara mortas todas as metanarrativas, da crise
e ruína de todas as referências, o cinema coloca diante de nós a velha indagação moderna de
para onde o mundo vai. Quem melhor discursa sobre esse tempo é a ficção científica, a
extrapolação do mundo sem que dele se saia, sua linguagem de intertextos e livre de controles
é quem melhor pensa sobre o mundo. Uma ironia espetacular, que no momento em que a
própria crítica pós-moderna decreta a morte do sujeito e do projeto, os filmes de ficção
científica trazem de volta a utopia, uma utopia resignada e conservadora, mas que reaviva em
nós as sociedades utópicas sempre eternamente tão desejadas.
Um dado recorrente sempre se ressalta, entretanto nesses discursos pós-modernos: o
problema da regulação e do controle. O único dos universais da modernidade não sucumbido.
Eis porque a televisão é a maquininha de nosso tempo. Dublê de controle e catarse,
por um lado é controle estrutural dos homens, mas por outro é cinema. Nela se revela a
própria ambigüidade pós-moderna: é controle e porta de fuga.
Talvez seja este o lado mais ricamente proveitoso da crítica pós-moderna. Espelho de
uma crise, que é mais do que econômica, porquê dos universais, da razão, do pensamento
globalizante, da ciência, das formas conceituais de representação, da cultura que sustenta a
performance das funções econômicas, o pós-moderno a expressa como e através do que é
mais humano no homem: a crise e desencontro da linguagem de representação espacial do
mundo. Um convite a pensar.
Uma característica marcante do pós-modernismo é a pluralidade de discursos que ele
abrange, permitindo a diferença, a alteridade, as combinações e as “mixagens”.
uma preocupação com a reintrodução de dimensões simbólicas polivalentes nas
artes, em que coexistem a mistura de códigos e a apropriação de vernáculos locais e tradições
regionais. Esta profusão vivida, essa esquizofrenia pós-moderna
200
poderá tanto nos levar a
obras bem-sucedidas como a uma frágil e banalizada mistura de estilos.
Dois novos fatores se adicionaram neste período cultural pós-moderno: a perda pela arte
de sua aura, devido à sua nova dimensão de reprodutibilidade e sua difusão através dos meios
de comunicação, ou seja, o que foi visto como a “banalização da arte” (Walter Benjamin) e o
outro, a não ocupação mais do “pedestal anterior da grande arte”, com discussões intensas
referentes à “morte da grande arte”. A arte perde o “A” maiúsculo, não existindo mais a visão
heróica da arte como força de mudança social. Como diz Huyssen, “não quero dizer que o
pedestal da grande arte deixou de existir, é claro que existe, mas já não é o mesmo de antes”
201
.
Vive-se o ruído, a estranheza, a incerteza, a superposição, a superexposição, a colisão,
tudo isso junto agora. Não mais o conforto de “correntes estilísticas” nas quais os artistas se
enquadrariam. Não significados ou narrativas contínuas. muitas dúvidas do que seja ou
não arte. o confisco, a citação, a referência, a acumulação, a repetição, a leitura, a mixagem,
a colagem, a apropriação.
Jean Baudrillard considera que não “existe regra fundamental, critério de julgamento
nem de prazer”
202
na arte contemporânea. Assim, todas as tendências coexistem: modelos de
representação e anti-representação. Estaríamos vivendo o período do “infra-estético”, sendo
por isso “inútil procurar em nossa arte coerência ou destino estético”
203
.
200
Ver JAMESON, Frederic. Postmodernism or the cultural logic of late capitalism. New Left Review, n. 146,
July-Aug. 1984 p.77 e seg.
201
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.) s-
modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 77.
202
BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. S. Paulo: Papirus,
1996. p.60
203
Ibidem. p.25.
2.7. O movimento pós-moderno na dança
Mais especificamente no campo da dança, segundo Sally Banes
204
, podemos nomear de
dança pós-moderna aquela que surge a partir dos anos sessenta, uma dança que vivia, como
todas as artes em geral, uma nova crise quanto à sua forma e conteúdo. Bannes alerta que desde
os anos 40 e 50 a dança estava em crise devido à falta de criatividade e inovação. Surge então,
a partir dessa época, inicialmente no meio underground, novos conceitos, como performance,
improvisação, happenings. O que acontecia era uma ampliação dos limites, criando-se novas
estruturas e atitudes. Nesta mistura, estabeleciam-se alguns novos princípios como: repetições,
estruturas não-lineares, acontecimentos simultâneos e a mistura de linguagens - poesia, música,
teatro, dança, artes plásticas.
Foi neste contexto que aconteceram diversos eventos, nos Estados Unidos, unindo o
músico John Cage e o coreógrafo Merce Cunningham, e influenciando posteriormente diversos
artistas. Sally Banes, identificando alguns desses artistas, relata:
Os happenings de Allan Kaprov abriram precedentes para rupturas entre
a arte e vida; os de Robert Whitman combinaram habilmente multimedia com
manipulação de objetos conseguindo efeitos extraordinários. Jim Dine usou objetos
no lugar de dançarinos, construindo colagens de texturas e imagens. Claes
Oldenburg colocou objetos em movimento, transformando a escala e o material
com resultados cômicos, enfatizando detalhes do trabalho, ao invés da composição
total, usando uma estrutura mais associativa do que narrativa”.
205
Durante a década de 60, acontece uma efervescência de performances e happenings,
unindo artistas de várias áreas em que prevaleciam os acasos, a descoberta, as experimentações
e a multiplicidade de linguagens. Este encontro enriqueceu a linguagem da dança, ao mesmo
tempo em que a dança se aprofundava na sua estrutura mais simples, tornava-se complexa
mediante das experimentações tecnológicas que surgiam. Para Banes:
“Originalmente reagindo contra o expressionismo da dança moderna, que
ancorava o movimento à uma idéia literal ou à uma estrutura musical, os pós-
204
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers: post-modern dance. USA: Houghton Mifflin Company, 1980.
205
BANES. Op. Cit., p.54.
modernistas estabeleceram que as qualidades formais da dança eram por si
mesmas suficientes para a coreografia e que fazer danças era simplesmente criar
uma moldura através da qual pudéssemos olhar apenas o movimento”.
206
Coreógrafos, como Trisha Brown, atualizavam o discurso relativo à queda do conceito
de separação entre a vida e a arte, em suas coreografias. Tinham como proposta coreográfica o
simples prazer de criar, sem levar em consideração a platéia ou a acessibilidade à dança. Os
métodos eram múltiplos na criação coreográfica: um esquema matemático para uso do espaço,
tempo ou do corpo, uma junção arbitrária, ou fragmentação, justaposição, improvisação, ou o
acaso, ou seja, muitas novas possibilidades criativas coreográficas.
Uma mudança fundamental desta época foi quanto à importância do movimento
natural, cotidiano e ordinário que podia ser transposto para a linguagem da dança. A dança
exercita sua própria desmistificação partindo de motivos e de acasos da própria vida. Há
ludicidade e relaxamento nas estruturas do tempo e da música, construindo assim um novo
espaço para as mais diversas experimentações. Se com Isadora Duncan o movimento natural
era o da natureza, e para Martha Graham era reflexo de sua dor e angústias, para os pós-
modernistas o movimento natural era despojado e partia do cotidiano, do acaso, com o objetivo
de extrapolá-lo. O movimento deveria manter as qualidades que continha na realidade. O corpo
não seria mais ou menos tenso do que na vida.
Ao final da década de 70, muitos coreógrafos descobriram suas próprias formas e
métodos. Uns criavam a partir de estudos espaciais; outros, como Merce Cunningham,
priorizavam o movimento. Cunningham continua construindo sua dança no princípio de que
qualquer movimento pode ser material para uma dança, qualquer procedimento pode ser um
método de composição, qualquer dançarino pode ser solista, qualquer área do espaço cênico
pode ser utilizada, cada componente - música, figurino, cenário, iluminação e dança - tem sua
lógica e identidade. A dança pode ser qualquer coisa, mas fundamentalmente é sobre os
movimentos humanos.
206
Ibidem, p.67.
Para ele, os movimentos não precisam significar algum conteúdo porque um
movimento por si é significante. Outra característica da dança de Cunningham é quanto à
forma de trabalho em seus espetáculos. Muitas vezes, os dançarinos se reuniam totalmente
ou conheciam a música no momento do espetáculo, condições estas que obrigavam seu elenco
a estar preparado sensorialmente para responder aos estímulos que recebia, revelando a
correlação arbitrária que estava sendo proposta.
A proposta de Cunningham era oferecer ao público uma variedade de experiências,
auditivas, visuais, cinéticas, em que o público estava livre para interpretar, absorver, apenas
ver, e não formular uma mensagem/conteúdo que devesse ser “entendida” por eles. Que
coerência tinha essa proposta com o tempo histórico que ele vivia? Toda. Revelava o próprio
pulsar da vida moderna na qual somos instigados a responder a todo instante, seguindo o
próprio bom senso, ao invés de seguir regras. Num mundo onde as coisas raramente acontecem
conforme planejamos, viver significa estar constantemente mudando de planos, e assim
tentamos dar uma ordem pessoal a essa experiência caótica. Para Banes, as coreografias de
Cunningham, “descentralizam o espaço, condensam ou expandem o tempo, permitem
uníssono, repetição, variedade e dispersão”
207
. Assim Cunningham extermina com o
movimento tradicional e previsível, aquele que segue ou a estrutura musical, ou uma estória, ou
uma adequação à moldura do proscênio. Aparentemente o que pareceria uma “desordem” do
artista era sua própria lógica formal, onde havia espaço para o acaso, para os sentidos em
alerta, para uma técnica aprimorada de seus dançarinos. Em seu estilo havia também a síntese
de outras técnicas. Ele combinou o trabalho dos pés do ballet à flexibilidade da coluna e dos
braços da técnica de Martha Graham, acrescentado-os às suas próprias descobertas. A dança de
Cunningham se preocupava fundamentalmente com a técnica do movimento, ou seja, o
207
Ibidem, p.67.
movimento pelo movimento
208
. Enquanto forma artística, o pós-modernismo prefere “formas
lúdicas, disjuntivas, abertas, processuais, anárquicas”
209
. No movimento pós-moderno da
dança, cada um encontrará interesses, técnicas e métodos próprios.
A história da dança do século XX foi fortemente marcada por rupturas e
questionamentos entre as fronteiras existentes entre as várias artes; a dança pôde voltar-se mais
à pesquisa e experimentação, tanto da forma como da linguagem propriamente dita. Algumas
das características da dança produzida nestas últimas décadas do século XX são concordantes
com a caracterização da pós-modernidade proposta por Harvey, ou seja, multiplicam-se os
discursos no campo da dança, coexistindo as várias expressões. Há o fortalecimento das
expressões individuais dos coreógrafos, a superabundância do ego (Augé
210
), tornando o
discurso da dança fragmentado, indeterminado e ricamente heterogêneo.
Nas formas cristalizadas de dança, como o ballet clássico e a dança moderna de Martha
Graham, um domínio de uma linguagem, tornando-se uma técnica totalitária, constituindo
uma forma fechada. Já na dança criada a partir dos anos 70, iniciada com Merce Cunningham e
com o grupo da Judson School
211
, a dança apropria-se da forma caótica, anárquica, do acaso e
do jogo, próprios da pós-modernidade. A rigor, a dança pós-moderna não rompe
fundamentalmente com a tradição clássica ou com a dança moderna; ela parte dos mesmos
referenciais, nutre-se deles para redimensioná-los, tensionando, provocando.
É também nesse momento que nasce o tanztheater de Pina Bausch, na Alemanha, e o
Butoh, de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, no Japão. Híbridos de dança e teatro. Estas formas
novas de dança tornam mais complexa a relação tempo, espaço e corpo. Isso porque o tempo
208
Outros, como James Waring, propuseram uma dança com uso descentralizado do espaço, colagens e
estruturas desconexas, com métodos baseados em sua própria intuição. Waring abandona a estrutura dramática e
narrativa dos anos 50 e propõe uma mistura de estilos variados, princípios da collage na dança.
209
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 255.
210
AUGÉ. Op. Cit.: Ele explica que uma das características da supermodernidade é a superabundância do ego.
211
BANES. Op. Cit., p.78.
não pode ser aquele anterior, dos grandes ballets. O corpo técnico do dançarino não está
sozinho, une-se a projeções, a monitores de TV, o espaço amplia-se.
CAPÍTULO 3
INTERATIVIDADE: DANÇA, TEATRO, CINEMA
3.1. A estética da arte do século XXI
Em obras contemporâneas, os artistas revelam sua relação com a tecnologia e com
tempo e o espaço a ela pertinente. Uma nova estética se apresenta e continuamente se
transforma desde o aparecimento de novas tecnologias como o daguerreótipo (1839), o telefone
(1877), o fonógrafo (1878); esta é a idéia defendida por Mário Costa
212
, professor de História
da Doutrina Estética da Universidade de Salerno, na Itália. Para ele, uma “nova estética”
porque “a produção e a conservação tecnológicas das imagens e dos sons e a comunicação à
distância provocam nos domínios da arte algumas transformações profundas e um movimento
de aceleração que dela consume e exaure todos os possíveis modos de ser”
213
. Vivemos uma
dinâmica estética iniciada desde as primeira décadas do século XIX e que se estende até hoje.
Para facilitar nosso olhar em direção a esta produção contemporânea do final do século
XX, utilizamos as definições do que viria a constituir “as novas tecnologias” de Mário Costa.
Seriam elas “as neotecnologias comunicacionais”, constituídas pelos circuitos televisivos in
live, redes telemáticas, slow-scan, TV, telefax, tecnologias de satélites e as tecnologias de
síntese, quer seja de imagens, sons, formas plásticas. Costa, a partir das idéias de Kant
214
vai
nomear este momento estético constituído pelas neotecnologias comunicacionais e de ntese
como “sublime tecnológico”.
Inicialmente, Costa nos introduz a diferença entre o belo e o sublime. Segundo Kant, “o
belo é ligado à forma, ao objeto; encontra-se na natureza e na arte (...), faz-nos amar qualquer
coisa sem interesse e provoca o prazer do gosto”
215
; o sublime “implica um movimento da
alma que não é simplesmente atraída pelo objeto, mas alternadamente atraída e repelida; o que
212
COSTA, Mário. O sublime tecnológico. São P aulo: Experimento, 1995.
213
COSTA. Op. Cit., p.15.
214
Costa (op. cit., p.21) faz referências a dois livros de Kant: KANT, E. Observações sobre o sentimento do belo
e do sublime de 1764, e Crítica da faculdade do juízo, de 1790.
é ‘absolutamente grande gera um sentimento negativo de terror ou de impotência (...), o
sublime nasce do ‘absolutamente grande’ que nos transcende
216
.
O que seria para nós inatingível, por ser “absolutamente grande”, por fugir às nossas
capacidades, por pertencer somente à natureza, se torna objetivado através da técnica: “com a
técnica, portanto, o sublime cessa de pertencer somente à natureza, e principia realmente a
pertencer também à arte”
217
. Para Costa, a arte contemporânea é uma estética do sublime
atuando de dois modos fundamentais: na estética das tecnologias comunicacionais e nas
tecnologias de síntese.
Costa identifica quatro momentos históricos da relação entre produção artística e
tecnologias da comunicação. São eles: o momento da “transmissão à distância” , quando alguns
produtos artísticos criados de forma tradicional passam a ser transmitidos utilizando
meramente esta possibilidade, por exemplo: um concerto televisado. As redes comunicacionais
eram subutilizadas e o espaço artístico continuava físico. Um exemplo dado por Costa é o
Poème éléctronique (1958), de Edgar Varèse, em que eram utilizados 350 alto - falantes e uma
série de terminais telefônicos que dividiam e distribuíam o som em todo o espaço físico do
edifício.
O segundo momento é o da transmutação do meio como, por exemplo, um concerto de
música clássica disponível apenas na web, transmutando o meio e a essência espetacular. O
terceiro momento é o da investigação das formas estéticas, em que a pesquisa e a criação se
nutrem da especificidade que os canais de comunicação oferecem, de forma intencional e
exclusivamente visando à transmissão, ou seja, a possibilidade de se “confeccionar alguns
produtos estéticos com os mesmos recursos lingüísticos das tecnologias comunicacionais nas
quais são veiculadas”
218
.
215
Ibidem, p. 21.
216
Ibidem, p. 22.
217
Ibidem, p. 23.
218
COSTA. Op. Cit., p. 30.
A arte radiofônica, a música concreta e eletrônica, a poesia eletroacústica, a video-arte,
a art-computer são formas estéticas deste momento. Um exemplo deste estágio seria Imaginary
Lanscape n.4 (1951), de John Cage, em que 12 aparelhos de rádio eram controlados por 24
“executores”, os quais alteravam a sintonia e o volume dos programas de rádio, que eram
escolhidos por acaso.
O quarto momento é quando surgem “as formas estéticas específicas das tecnologias
comunicacionais”, que Costa nomeia de “estética da comunicação”. Aqui, as redes e os canais
de comunicação estariam totalmente subtraídos de sua função e sendo utilizados na sua
essência de dispositivos tecnológicos de comunicação à distância visando a produção artística.
Nesta fase, “todo o campo do estético submete-se a uma verdadeira e própria mutação, e o que
na realidade se verifica é a passagem da ‘produção artística’ à colocação em obra do sublime
tecnológico”
219
. Para Costa, esta fase é a que foi menos explorada e compreendida até agora,
pois ela implica em utilizar a lógica própria da interatividade do sistema, além da supressão
tecnológica do espaço-tempo, característica das tecnologias comunicacionais. Neste estágio, a
noção de “artista”, de “forma” e de “lugar da performance” é alterada e destituída.
Ao artista cabe, além de exprimir simbologias próprias, criar formas sensíveis ao novo
estágio tecnológico vivido. Para Costa, o momento é de ultrapassagem da dimensão artística na
direção do “sublime tecnológico”. Costa nos um exemplo de “sublime tecnológico” na
dança, um evento pioneiro criado por Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz intitulado Sattelite
Art Project (1977). O evento consistia na ação entre dois grupos de bailarinos, um em
Maryland e outro na Califórnia. Um grupo criava os próprios movimentos a partir do que
recebia do outro grupo por meio de um monitor via satélite; enquanto isso a ação dos dois
grupos era representada e transmitida somando-se em um único monitor.
Uma das principais questões deste estágio artístico é questionar que espaço é este em
que se realiza o “sublime tecnológico”, que, para Costa, “é o espaço não-físico e não
geográfico da rede e dos sistemas de comunicação eletrônica”
220
. Qual o significado desta obra
artística, que forma é esta, e onde está localizada a figura do autor? Para Costa, “tudo isso
constitui a premissa de uma profunda transformação no domínio da experiência estética: os
princípios de ‘criatividade’, ‘subjetividade’, ‘expressividade’, passam por uma crise
irreversível, e na estética do belo (ou do feio) inscreve-se a estética do sublime.”
221
Ele explica
que a passagem das técnicas às tecnologias no campo do artístico constitui uma mutação, onde
sons, palavras, movimentos, são produzidos, conservados e recriados, tecnologicamente.
Quando a Profª Diana Domingues reúne em seu livro A Arte no Século XXI: a
humanização das tecnologias
222
, textos de diversos autores que remetem à questão da arte
neste final de século, observa-se que em alguns deles tentativas similares de categorizar o
estágio atual. Ela mesma inicia esta tentativa quando explica que depois da revolução da
informática e das comunicações, as relações do homem com o mundo não são mais as mesmas,
que “nos colocam diante do numérico, da inteligência artificial, da realidade virtual, da
robótica e de outros inventos que vêm irrompendo no cenário das últimas décadas do século
XX”
223
. Não como discordar que a relação entre os artistas e a tecnologia vem se
modificando, num momento em que “as manifestações artísticas com tecnologias são na sua
maioria efêmeras, variáveis, mutante um campo de possibilidades que se altera conforme as
escolhas ou programas dos dispositivos e as variáveis dos sistemas”
224
e que “computadores,
softwares, câmeras, sensores, mixers, CD-ROMS, rede Internet, sintetizadores são utilizados
por artistas”
225
.
Desenhar com um mouse ou uma caneta digital é diferente de desenhar à mão livre.
Coreografar por meio de softwares dançarinos sintéticos é diferente de trabalhar com
219
Ibidem, p. 32.
220
Ibidem, p. 41.
221
Ibidem, p. 46.
222
DOMINGUES, Diana (Org.) A arte no século XXI: a humanização das tecnologias . São Paulo: Editora
Unesp, 1997.
223
DOMINGUES. Op. Cit., p. 17.
224
Ibidem, p. 16.
dançarinos humanos. Novas habilidades técnicas são desenvolvidas. O produto artístico sofre
alterações, mas talvez seja o processo o que mais se altera; além do mais, há o aparecimento de
obras antes tecnologicamente impossíveis.
A arte dos períodos anteriores se remetia às questões como peso, vazio, resistência,
fragilidade, escala, reações, qualidade de formas, ou seja, uma arte que se fazia com materiais,
com suporte, que trata da permanência. a arte que se faz com as tecnologias interativas tem
como pressupostos básicos, além dos anteriores, “a mutabilidade, a conectividade, a não-
linearidade, a efemeridade, a colaboração”. A arte tecnológica interativa pressupõe a parceria,
o fim das verdades acabadas, do imutável, do linear”
226
.
O momento da arte não é mais apenas material. Ela se estabelece agora, como o próprio
Costa mostrou, por meio das novas tecnologias de comunicação e de imagens. O produto não é
necessariamente palpável, o processo tende a ser grupal, interativo e mundial. Onde os egos se
diluem, se diluem também as fronteiras físicas entre as “máquinas” e os corpos, entre artistas e
público, questiona-se a autoria. Retomam-se cada vez mais os pressupostos de Mauss e Geertz,
onde não como dissociar o homem da técnica, da cultura, das formas tecnológicas. Alguns
artistas chegam a ter seus corpos invadidos, expostos e manipulados, na tentativa de
dissolverem barreiras anteriores, como é o exemplo do performer Sterlarc
227
.
Percorre-se mais uma etapa da História da Arte. um novo mundo, um
tecnocosmo
228
, e, como conseqüência, deve surgir uma nova arte, estando o artista permeável
ao meio que o circunda, às condições técnicas possíveis, à todo território existencial e ambiente
que o cerca, de se concluir que a natureza da arte mudou. “A natureza da arte mudou, é
porque os meios que produzem subjetividade hoje mudaram. O artista sabe muito bem que a
225
Ibidem, p. 17.
226
Ibidem, p. 19.
227
Sterlarc: performer que utiliza técnicas médicas, membros artificiais e sistemas audiovisuais para compor
suas performances. Ver homepage oficial do artista em: http://www.merlin.com.au/stelarc (05/02/98).
228
Ver COSTA, Rogério. Do tecnocosmo à tecno-arte. In: DOMINGUES, Diana (Org.) A arte no século XXI;
Op. Cit., p. 63. Costa nos explica que o tecnocosmo é este mundo perturbador e novo, construído na simbiose
entre nós humanos e nossos instrumentos, nossas máquinas, nossos remédios e nossas bactérias.
tecnologia nada mais é que o devir-outro do humano”
229
, modificando substancialmente com
este pensamento a relação homem-técnica.
Para a arte da dança e do teatro, o gênero que surge no final do século XX, com
projeção para o século XXI, é a dança-teatro. O Tanztheater, na Alemanha, e a dança-teatro
Butoh, no Japão, são os ícones de nova etapa. Gênero que neste momento abusa da
interatividade, das possibilidades das colagens, dos processos fractais e complexos, da não
linearidade do discurso, da possibilidade de recombinações sucessivas, que faz com que surja
uma arte em processo.
Explorando a desmaterialização pela qual passa, e em que se fundamenta a atual
civilização, a dança-teatro encarna o imaginário de um momento histórico: civilização da
desumanização, da interatividade e possibilidades de circulação de informações por redes
planetárias. A arte, neste momento, expõe o processo que vive o homem pós-moderno. Isso
certamente pressupõe a utilização das tecnologias pela arte, tomando e aliando-se a quaisquer
outras linguagens.
A dança-teatro é assim uma arte interativa híbrida, cria conexões, viabiliza-se se
apropriando de tudo que se traduz em imagens, movimentos, ação, ampliando a forma de
criação. Monitores e câmeras instaladas nos palcos não são mais novidade, as novas
tecnologias de comunicação propiciaram, com seu crescente desenvolvimento, novos processos
criativos, transformando inclusive a recepção em interação.
Para Abraham Moles
230
, os artistas teriam a “função de renovar as artes, quer dizer,
procurar outras novas (...) a função criadora desvia-se da idéia de fazer novas obras para a de
criar novas artes”
231
. Moles ressalta que “o papel do artista modificou-se: compete-lhe, não
criar novas obras, mas formas novas de conformação do sensível, recorrendo à combinatória do
229
COSTA, Op. Cit., p. 65.
230
MOLES Abraham. Arte e computador. Porto: Edições Afrontamento, 1990.
231
MOLES. Op. Cit., p.257.
pensamento (...) procurando nas combinações que lhe são abertas as que foram exploradas e as
que, ignoradas até aqui, propõem ao espírito domínios a explorar”
232
.
Esta nova condição não se impõe ao artista de forma obrigatória, pois na
contemporaneidade coexistem formas primitivas e tradicionais com estas que priorizam a
utilização das novas tecnologias. Ao artista é oferecida uma busca de autenticidade no novo
meio, mas apenas se este novo meio interessar a ele, excitando-o e estimulando-o à criação.
Como em todas as escolhas de material e forma, o artista pode ter sua preferência em
trabalhar com escultura e fotografia e não gostar de pintura ou instalação, assim ele pode
escolher em trabalhar com cinema, vídeo, computação gráfica, bailarinos sintéticos ou não,
permanecendo com formas estabelecidas. Ao artista é feito um convite de novas
conformações, ele saberá responder, em suas obras, se este convite se traduz em respostas.
Entretanto, como antena parabólica de seu tempo, ele não poderá desconhecer que vive num
contexto em que as pessoas travam novas relações a partir das novas tecnologias de
comunicação, pois seria negar o seu próprio tempo.
3.2. Corpo: expressão estética
No campo das artes, a primeira a utilizar o corpo humano como instrumento específico
de expressão estética e mais incisivo de sua linguagem foi a dança. Desde a Pré-História que o
homem utiliza seu corpo como expressão, traduzindo os medos, os sonhos, os ideais de uma
época. A dança se insere no corpo desde a Idade da Pedra, conforme atesta Curt Sachs
233
, mas
é a partir da Idade do Metal que a dança “desestruturou-se, e seus diferentes elementos
emanciparam-se, tornando-se atividades e artes separadas, como jogos, exercícios físicos,
232
Ibidem, p.259.
233
SACHS, Curt.World history of the dance. New York: W.W. Norton, 1990.
teatro e religiões
234
. Em concordância com esse pressuposto Marcel Mauss afirma que “a dança
está na origem de todas as artes”
·.
Contemporaneamente, o corpo é um dos pilares do paradigma da hibridização nas artes.
O corpo é muito tempo objeto técnico de manipulação, transformação e produção, inclusive
artística.
A partir de Jorge Glusberg
235
, podemos situar historicamente os movimentos artísticos
como o happening nos anos 60 e a body-art nos anos 70, anteriores à performance dos anos 80,
apresentando, como denominador comum, o desfetiche do corpo humano, trazendo-o à sua
verdadeira função: a de instrumento do homem.
A performance dos anos 1980,conforme Glusberg
236
, pode ser definida como algo que
ainda não foi nomeado, que carece de uma tradição, ou de lugar nas instituições. Uma espécie
de matriz de todas as artes. Caberia referendar a idéia de matriz. Esta matriz
237
teria sido
iniciada por Yves Klein: “Em uma manhã de 1962, em Nice,Yves Klein realizou um de seus,
trabalhos mais conhecidos: Salto no Vazio. Ele mesmo fotografado no instante que saltava para
a rua, de um edifício era o protagonista de sua obra e, nesse sentido, a obra em si”
238
.
Glusberg considera como movimentos precursores da performance, o kabuki, o , o
Futurismo, o Dadaísmo, o Surrealismo e a Bauhaus. Contudo, a performance é um gênero
artístico independente a partir do início dos anos setenta.
Contribuição interessante é feita por Richard Schechner
239
, em seus estudos sobre a
performance, que assim define:
234
MENDES, Miriam. A dança. São Paulo: Ática, 1987. p. 7.
235
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1987.
236
Ibidem.
237
Glusberg nos confunde apenas quando em seu livro utiliza o termo performance tanto para se referir a um
estágio artístico, “matriz” que englobaria a body-art, o happening e a própria performance, como também como
uma categoria singular dentro deste contexto. Quando ele expõe o exemplo de Klein, o conceito a ser empregado
de forma mais precisa seria de body-art, mas ele está considerando performance como um todo maior e
abrangente, nomenclatura de um momento/movimento artístico que centrou suas investigações no corpo.
238
GLUSBERG. Op. Cit., p. 11.
239
SCHECHNER, Richard. O que é Performance?. Texto apresentado na aula do Prof. Zeca Ligiéro. Teatro na
Comunidade, em novembro de 2003. UNIRIO Pós-Graduação em Teatro. Tradução de Dandara.
"Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e
adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas
são todas feitas de “comportamentos duplamente exercidos”, “comportamentos
restaurados”, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que
têm que repetir e ensaiar".
240
É especialmente importante seu exame da noção de comportamentos restaurados:
"(...) a vida cotidiana, religiosa ou artística consiste em grande parte em
rotinas, hábitos e ritualizações e de recombinação de comportamentos
previamente exercidos. O que é “novo”, original”, “chocante”, ou
“avantgarde” é, quase sempre, uma recombinação de comportamentos
conhecidos, ou o deslocamento de um comportamento do lugar onde ele é
aceitável ou esperado, para um espaço ou situação em que este seja inaceitável
ou inesperado.
241
De acordo com Schechner, os hábitos, rituais e rotinas da vida são comportamentos
restaurados, e esses pedaços de comportamento podem ser rearranjados ou reconstruídos por
serem independentes do sistema pessoal, social, político ou tecnológico que os levou a existir.
"Eles têm uma vida própria. A “verdade” ou “fonte” que originou o
comportamento pode ser desconhecida, perdida, ignorada ou contradita mesmo
quando essa verdade, ou fonte, está sendo honrada e reconhecida. O modo como
os pedaços de comportamento foram criados, achados ou desenvolvidos, pode ser
desconhecido ou oculto, elaborado, distorcido pelo mito ou pela tradição, mas o
comportamento restaurado existe no “mundo real”, como algo separado e
independente de “mim”.
242
Colocando isto em termos pessoais, o comportamento restaurado é: “eu me
comportando como se fosse outra pessoa, ou eu me comportando como me mandaram, ou eu
me comportando como aprendi”
243
.
Assim, continua Schechner, "pessoas a quem se credita a criação de um jogo ou rito,
geralmente revelam ser sintetizadores, recombinadores, compiladores ou editores de ações já
praticadas anteriormente"
244
. O comportamento pode ser restaurado em ações marcadas por
convenções estéticas, como em teatro, dança e música, pode estar contido nas ações
codificadas como regras do jogo, etiqueta, protocolo diplomático, ou quaisquer outras ações
240
SCHECHNER. Op.Cit.,p. 1.
241
Ibidem.p.4.
242
Ibidem.p. 5.
243
SCHECHNER. Op.Cit.,p.5.
previamente conhecidas que executamos na vida e, por que é marcado, emoldurado e
separado, o comportamento restaurado pode ser aprimorado, guardado e resgatado, usado por
puro divertimento, transmutado em outro, transmitido e transformado.
Performance, no sentido do comportamento restaurado, significa nunca
pela primeira, sempre pela segunda ou enésima vez: comportamento duas vezes
exercido."
245
Em 1952, John Cage apresentava seu espetáculo multimídia Untitled Event, cuja
proposta era a fusão de cinco artes: a dança, o teatro, a poesia, a pintura e a música,
conservando, entretanto a individualidade de cada linguagem e, ao mesmo tempo, constituindo
uma nova linguagem. Cage, que era músico, trabalhava junto com nomes marcantes da época
como o coreógrafo Mercê Cunningham, o pintor Rauschenberg, o pianista David Tudor e os
poetas Mary Richards e Charles Olsen, numa verdadeira collage de mídias, uma arte híbrida.
Cage propôs conceitos que viriam a caracterizar o happening. Aplicava suas idéias sobre acaso,
indeterminação, com os participantes que não recebiam instruções sobre o quê e como fazer,
ele apenas distribuía uma “partitura” com momentos de ação, quietude e silêncio.
O happening articulava sonhos e atitudes coletivas, não sendo nem abstrato nem
figurativo, não era trágico, nem cômico, renovando-se a cada ocasião. Com o happening ocorre
o fim da noção de atores e público, não existindo mais uma só direção.
a body-art pode ser tragicamente inscrita quando os artistas Brus, Mühl e
Schwarzkogler, pertencentes ao Grupo de Viena, nos fins dos anos 60, se automutilam
chegando até a morte propriamente dita, como foi o caso de Schwarzkogler, morto aos 29 anos
em conseqüência das repetidas flagelações. No caso da body-art a presença física do artista,
expondo seu próprio corpo à serviço da arte, é o ponto mais limítrofe para com as outras
vertentes da performance. Merleau-Ponty
246
descreve a relação com o corpo: “em se tratando
do meu próprio corpo ou de algum outro, não tenho nenhum outro modo de conhecer o corpo
244
Idem.
245
Idem.
humano senão vivendo-o. Isso significa assumir total responsabilidade do drama que flui
através de mim, e fundir-me com ele”
247
. Na body-art, está implícito o viés sacrificial da arte,
onde a “imolação” que se propõe em cena, faz mudar de estado, lugar e de existência.
A performance vem como resposta a uma tentativa de recolocar as artes no campo das
necessidades humanas básicas, introduz novos conceitos que também integrarão o conceito da
dança-teatro, como: collage, hibridização, interatividade, participação do público, co-autoria,
remetendo a um dos três pilares
248
do paradigma das artes contemporâneas: o corpo.
Glusberg define performance como “cerimônias sem Deus, rituais sem crenças”
249
, em
que o corpo humano torna-se objeto/instrumento de simbologias, lugar primordialmente de
trabalho. A essência da performance é que ela não trabalha com o corpo e sim com o discurso
sobre ele, havendo um processo de “re-semantização” do corpo. Este processo de re-
semantização parte dos movimentos “naturais” significativos e, numa fase posterior, há a
apropriação destes pelas formas de arte tradicional, como a dança, o teatro e depois, numa
última fase, é que se conclui uma re-significação total de todo o processo, vindo a dar origem à
performance.
Seria função da performance promover o questionamento de dogmas anteriores tocando
a interioridade do sujeito e pondo em crise sua estabilidade, estabilidade esta que se
fundamenta na repetição normatizada pelas convenções. A performance vem com a intenção
de questionar o desenvolvimento normal estereotipado, as convenções, os códigos instituídos.
O artista propõe ao receptor um questionamento do seu próprio corpo, estabelecendo-se um
fenômeno: a arte-corpo-comunicação.
Na performance, o corpo humano aparece como metáfora para todas as manifestações
de arte contemporânea, tornando-se suporte semântico que vai servir de eixo fundamental para
246
MERLEAU-PONTY apud GLUSBERG. Op. Cit., p. 39
247
Ibidem. loc.cit.
248
Os outros dois seriam o espaço e o tempo.
249
GLUSBERG. Op. Cit., p. 51.
a experiência. Assim, a performance re-significa o corpo historicamente elevando-o à categoria
do espetáculo em si. Formam-se novas concepções do corpo, que nesta forma artística, o
corpo não é concebido para atender formalidades previstas, sendo sim um objeto, mas de
caráter particular, um objeto semiótico, objeto-fonte de mensagens e não uma mensagem em si
mesmo.
É fundamental perceber esta re-significação do corpo que acontece na performance
porque é ela que influencia o conceito de corpo na arte híbrida contemporânea, no tanztheater e
também no Butoh. A performance possui caráter transgressor, pois propõe:
“(...) investigar o próprio corpo, apresentá-lo nu, dedicar-se a observar
suas funções íntimas, investigar suas potencialidades sensoriais, seu perfil
moral, significa transgredir um dos principais tabus de nossa sociedade, que
regula cuidadosamente, por meio de proibição, a distinção entre corpo e
alma”
250
.
Os artistas da dança-teatro, como os da performance, rompem com a estrutura de
codificação das artes, incitando uma minuciosa investigação dos ritmos internos do corpo, das
relações que o artista constrói a partir dele, seus códigos e tempo próprios, elaborando uma
nova retórica artística.
No vídeo de Klaus Wildenhahn
251
, por exemplo, Pina Bausch pede aos bailarinos que
descrevam como é o choro, como choram, em que situações choram: "Existem inúmeras
maneiras de chorar. Cada um chora diferente. Quero ver como sai o som de cada um".
Nazareth Panadero, bailarina da companhia, explica que quando chora a garganta se
expande e a respiração fica entrecortada, a cabeça parece que incha e, quando fala, faltam-lhe
nuances na voz. E conclui: "Por um momento meu rosto fica impassível e aí correm as
lágrimas".
O depoimento de outro bailarino, Ed Kortlandt, é breve: "Em mim tudo acontece sem
sons ou ruídos, apenas lágrimas. Aos poucos começa o teatro e o pranto é acompanhado por
250
Ibidem, p. 100.
som". Jan Minarik resiste à questão de Bausch, negando-se a se expor: "Outro dia chorei à
noite, mas o motivo por que chorei, isso é coisa sobre a qual prefiro não falar".
Pina Bausch refuta, dizendo que ele não precisa realmente fazer isso, não é isso que
interessa à criação. O que deve ser estudado é a maneira de chorar, o que acontece fisicamente
com o corpo quando se chora:
"(...) não é preciso que ninguém desabafe aqui, ninguém é obrigado a
fazer o que não quer, cada um diga o que quer dizer ou invente. Eu não
disse que era para chorar de verdade. O exercício pede que a pessoa se
mantenha fria, procurando raciocinar sobre o que acontece durante o choro.
A gente talvez saiba de memória o que faz com a boca ou, ao respirar, que
sons são produzidos, não é para me dizerem porque choram ou quando
choraram pela última vez. Minha pergunta é como é que se chora? Uma
pergunta, portanto, impessoal."
252
Dessa maneira, Bausch desafia o dançarino-ator a se colocar diante dele mesmo,
compor uma ação absolutamente corpórea, que, porém, é derivada diretamente de uma
vivência físico-emocional. Está, assim, construindo uma dramaturgia corporal cujo vocabulário
são as tensões e distensões dos nervos e músculos corporais, comandados conscientemente
pelo cérebro. A riqueza dessa gramática dependerá sempre tanto da sensibilidade dos atores-
bailarinos, de suas performances, quanto da condução e seleção da diretora-coreógrafa.
Considerando as performances como transgressões dentro de uma cultura em que o
corpo é cotidianamente condicionado às convenções vigentes, e alienado de si próprio, o corpo
da dança-teatro vai continuar sendo questionado, revisto, revistado, interrogado e transgredido
por outros tipos de inserções artísticas, como o cinema e o vídeo, inserções estas que cada vez
mais aproximam arte-ciência-tecnologia.
Estamos inseridos numa realidade quotidiana em que o corpo não é mais só biológico; a
hibridização, com as novas tecnologias, permite, atualmente, que este corpo seja,
simultaneamente, ponto de saída e chegada da criação. No processo evolutivo do homem,
251
WILDENHAHM, Klaus. O que fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal? Vídeo 1.15 min.
Documentário. Inter Nationes.Wuppertal: 1987.
sempre se potencializou o corpo, absorvendo técnicas, numa tentativa primeira de
sobrevivência, mas que vai até o almejado ideal da imortalidade. A dança também contribui
para este papel de evolução, que faz o corpo evoluir por meio de suas técnicas. Auto-
intitulando-se delirante, Jean Baudrillard
253
, evidencia que o corpo vive o estágio da pós-orgia
e afirma que:
Outrora o corpo foi metáfora da alma; depois, foi a metáfora do sexo;
hoje, não é mais metáfora de coisa nenhuma. É o lugar da metástase, do
encadeamento maquínico de todos os seus processos, de uma programação
infinita, sem organização simbólica, sem objetivo transcendente, na pura
promiscuidade consigo mesmo, que é também a das redes e dos circuitos
integrados”.
254
Para Baudrillard, o destino do corpo é tornar-se prótese, e assim surgem, na
contemporaneidade, corpos mutantes, transexuais
255
. A partir das idéias de McLuhan, ele
propõe uma generalização sobre as “extensões do homem”, considerando que tudo do ser
humano, o seu corpo biológico e mental, realiza órbita em torno dele mesmo, na forma de
próteses mecânicas.
Refletindo sobre a relação máquina x homem, Baudrillard se pergunta : “Sou um
homem, sou uma máquina? Acreditando não haver mais resposta para essa questão
antropológica devido à incerteza nascida do aperfeiçoamento das redes maquínicas, ele mostra
que, na relação com as máquinas tradicionais, não ambigüidade, o homem é alienado pela
máquina; neste novo estágio o homem forma com as novas tecnologias um circuito
integrado: “Vídeo, televisão, computador, minitel são, tanto quanto lentes de contato, próteses
transparentes que estão como que integradas ao corpo até fazer parte dele “geneticamente”
256
.
252
Ibidem.
253
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal; ensaio sobre os fenômenos extremos. São Paulo: Papirus,
1990. p.2 (Tradução por Estela dos Santos Abreu) Explica este autor que todas as liberações explosivas
requisitadas pela modernidade já aconteceram.
254
BAUDRILLARD. Op. Cit., p. 13.
255
Baudrillard exemplifica alguns mutantes: “O ectoplasma carnal que é a Cicciolina encontra-se com a
nitroglicerina artificial de Madonna ou com o charme andrógino e frankensteiniano de Michael Jackson. São
todos mutantes, travestis, seres geneticamente barrocos, cujo visual erótico esconde a indeterminação genética.”
(BAUDRILLARD, Op. cit, p. 28).
256
BAUDRILLARD. Op. Cit., p. 66.
Em Kontakthof
257
, por exemplo, Bausch requer de sua companhia, enfrentar a projeção
numa tela, na parede da parte de trás, de um filme documentário dos rituais de acasalamento
dos patos, que congela a ação dos bailarinos e, durante minutos, disputa a atenção do público.
Mas Baudrillard é apocalíptico porque acredita que neste estágio de tanta comunicação,
“de tanta transparência a seu ser genético, biológico e cibernético, o corpo torna-se alérgico até
a sua sombra. (...) Torna-se seu anticorpo. Isso é também a transparência do Mal”
258
. Por isso,
essa relação homem x máquina, para Baudrillard, é canibal
259
, pois ao mesmo tempo em que a
tecnologia integra, absorve, imita, também devora o homem."
260
.
Os dançarinos de Bausch reconhecem e freqüentemente confrontam a audiência com
cicatrizes físicas e psíquicas, restituindo esse exame do corpo culpável para sua audiência,
responsável pelo que vê e dolorosamente atenta ao seu próprio eu que o olho disseca .
Bausch pede aos seus artistas para 'brincarem' em cenas baseadas em exercícios e
improvisações, localizando ao redor deles uma emoção específica. O trabalho deles acontece
no tempo real e com esforço por vezes doloroso. Em 1980,
261
uma mulher salta ao redor do
palco 50 vezes, repetindo a frase "eu estou cansada " até que o corpo dela seja superado pelo
esgotamento. Em Palermo, Palermo
262
, Francis Viet toca "Stormy Weather" em um sax com
velas gotejando cera sobre sua carne. Em Bandoneon
263
, uma dançarina põe bifes de carne de
vitela em suas sapatilhas e dança 'sur le pointe' (nas pontas), com o sangue escoando fora delas.
257
Kontakthof : Estréia: 09/12/1978. Cena documentada por Chantal Ackerman, no vídeo Un jour Pina a
demandé
258
BAUDRILLARD. Op. Cit., p. 129.
259
Baudrillard explica canibalismo como uma forma extrema de relação com o outro, inclusive no amor, uma
forma de hospitalidade radical (Op.cit., p.150) Ele está utilizando o termo em relação ao confronto cultural, mas
no livro como um todo está idéia também pode ser explorada para a relação homem x máquina.
260
DALY, Ann. "Tanztheater: The Thrill of the Lynch Mob or the Rage of a Woman?" In TDR 30, 2 (T110)
1986. p.56.
261
1980 - Ein Stück von Pina Bausch: Estréia em 18.05.1980. Esta cena é apresentada no vídeo de Klaus
Wildenhahn, O que fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
262
Palermo, Palermo: Estréia em17.12.1989. Esta cena é apresentada no vídeo de Klaus Wildenhahn, O que
fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
263
Bandoneon. Estréia em 21.12.1980. Esta cena é apresentada no vídeo de Klaus Wildenhahn, O que fazem
Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
Em Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört:
264
, um homem de 'leotard' (collant), tiara e
um chicote, de repente cruza o palco até a boca de cena e pára perguntando para a audiência:
"Por que você está olhando para mim "?
O urbanista francês Paul Virilio traduz este mesmo patamar como um processo de
construção de um “metacorpo atualizado”
265
no momento contemporâneo. Em que consiste
esta nova etapa? Em um corpo que vive outro estágio de evolução biológica e tecnológica- que
não é mais darwiniana-, onde existe um suporte biológico ineficaz para as necessidades
contemporâneas, por isso permite a intrusão fisiológica, a intrusão intra-orgânica de próteses e
micromáquinas. Virilio descreve um corpo com formas precisas: sem excesso de peso, com
melhores reflexos, uma infra-estrutura corporal que favorece a condução elétrica, sendo,
portanto, um corpo condutor e retilíneo aparelhado para suportar a velocidade necessária à
condução das ondas eletromagnéticas.
Apesar de não ter utilizado os corpos dançantes nesse amplo aspecto, em Kontakthof
266
,
por exemplo, os dançarinos automatizados de Bausch formam um singular sexo chamado
'gado'. As partes de seus corpos, como num leilão, são expostas ao público: dentes, perfis,
braços e pernas. Como sugere Manning
267
, estas são "imagens de narcisismo do ego-
exibicionista". Mas os gestos repetidos também remetem ao espetáculo maligno que nosso
olhar ajuda a produzir. Contudo essas cenas hieroglíficas nos convidam momentaneamente,
através da nossa memória coletiva, a nos colocarmos no papel desses corpos para que, ao longo
da história, decidamos quais corpos, ou partes de corpos são 'leiloáveis'. Em momentos como
estes Bausch parece estar utilizando simultaneamente noções de Artaud sobre o corpo dividido
da história ocidental - o grito da unidade perdida - e do ‘metacorpo atualizado’ de Paul Virilio.
264
Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört: Estréia em 13.05.1984. Esta cena é apresentada no vídeo de
Klaus Wildenhahn, O que fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
265
VIRILIO, P. Do super-homem ao homem superexcitado In A arte do motor.São Paulo: Estação Liberdade,
1996.
266
Kontakthof : Estréia: 09/12/1978. Cena documentada por Chantal Ackerman, no vídeo Un jour Pina a
demandé.
267
MANNING, Susan Allene. "An American Perspective on Tanztheater." TDR 30/ 2/ 1986 (T110). p. 68.
O teatro de experiência de Pina Bausch muitas vezes impede um esquema hermenêutico
quando a "mudança é provocada por necessidade da experiência em vez de por um insight
intelectual".
268
O trabalho dela "remete o espectador diretamente para realidade"
269
, porque
"aponta para um envolvimento emocional na formação dos problemas, não no caráter"
270
e se
oferece à "compreensão dos investigadores, arqueologistas e fisionomistas por todos os
compartimentos do corpo".
271
Mais do que apenas mutantes biológicos, o momento é do corpo híbrido. Vive-se
muito tempo este processo simbiótico com o artificial, com o sintético. A própria evolução da
espécie humana e o desenvolvimento das sociedades se formam pelo processo de
artificialização, e isto não implica um pensar dicotômico entre homem e artificialidade. O
natural e o artificial
272
vivem atualmente numa natural simbiose. Assim, a artificialidade é um
componente do gênero humano. No estágio contemporâneo, vivemos um processo que é
justamente a possibilidade que o homem tem de evoluir do estágio natural, em que vive a
natureza, e construir uma “segunda ordem artificial”.
Dentro do processo de virtualização que vem sofrendo a cultura contemporânea, o
corpo também será modificado, alterado. E o corpo, que sempre foi um espaço de experiência,
torna-se espaço de novas experiências. As peças de Bausch invariavelmente dramatizam a
noção de que o gênero, masculino ou feminino, não constitui um fato, mas que os vários atos
dos gêneros criam a idéia de gênero, e sem esses atos, não haveria nenhum gênero masculino
ou feminino, nada. [...] Esta repetição é imediatamente um reencontro e uma re-
268
SERVOS, Norbert. The Emancipation of Dance: Pina Bausch and the Wuppertal Dance Theatre. Translated
by Peter Harris and Pia Kleber. In Modern Drama. 1981.p. 440.
269
Ibidem. p.437.
270
Ibidem. p.439.
271
KIRCHMAN, Kay. The Totality of the Body:An Essay on Pina Bausch's Aesthetic. Ballett International/Tanz
aktuell. 1994.p.86.
272
Lemos explica que o artificial “é tudo aquilo produzido pelo homem e que não tem, por si mesmo, a
possibilidade de se auto-reproduzir (auto-poiético) ou de criar um gênero. LEMOS, A. Bodynet e netcyborgs:
sociabilidade e novas tecnologias na cultura contemporânea In: RUBIM, A., BENTZ, I., PINTO, M. (Org.)
Comunicação e sociabilidade nas culturas contemporâneas. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. p. 9-26.
experimentação de um jogo de significados socialmente estabelecidos ; é a mundana e
ritualizada forma de sua legitimação."
273
Os jogos de Bausch estão carregados com figuras cujo local de luta é a relação entre
seus corpos culturalmente sancionados por 'capas' de legitimação. As mulheres se arrastam
freqüentemente dentro de cintas e sofrem com os sapatos de salto-alto, mostrando-se para
homens inquietos e sem conforto na uniformidade mortal dos ternos e gravatas. E quando os
homens aparecem de vestido, eles igualmente se comprometem, se arriscam. Como é o caso
em uma cena de Dois Cigarros na Noite
274
: um homem entra de vestido de noite, mas quase
imediatamente o tira fora. Ele pára no meio do palco com suas roupas íntimas e de sapatos de
salto-alto, incapaz de se mover. Finalmente ele remove os sapatos femininos, coloca 'pés-de-
pato' e entra num enorme aquário que está no canto do palco, onde imerge na água.
Em concordância com estes pressupostos, Rosanne Stone
275
deixa claro que o corpo
passa por uma releitura em seus significados: “conceitos como distância, dentro/fora, mudam
de significado e até o corpo físico toma novos sentidos e freqüentemente vem alterando
significados”
276
. Stone ressalta que a interação do indivíduo com o espaço pós-moderno,
criando múltiplas e diferentes identidades, pode alterar a vida deste indivíduo.
Como coloca, com propriedade, Kay Kirchman:
"A genealogia de Bausch dramatiza o corpo multilingüe como texto, o
potencial discursivo do corpo, nos modos pelos quais foi arregimentado,
controlado, suprimido, traído, abandonado e reformado por sua própria história.
A história do corpo é [...] a história do que foi escrito desta forma: como danos,
como esperanças, como decepções, como qualquer experiência.”·
277
.
273
DIAMOND, Elin. Mimesis, Mimicry, and The True-Real. In Modern Drama 32, 1. 1989. p. 59. (Tradução do
autor).
274
Two Cigarettes in the Dark: Estréia em 31.03.1985. Esta cena é apresentada no vídeo de Klaus Wildenhahn,
O que fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
275
STONE, Rosanne. Will the real body please stand up? Boundary stories about virtual cultures. In:
BENEDIKT, M. Cyberspace; first steps. Massachusetts: MIT Press, 1992.
276
STONE, Op. Cit. p.47: “concepts like distance, inside/outside, disturbing meaning and even the physical body
take on new and frequently disturbing meanings”. (T. A.).
277
KIRCHMAN, Kay. The Totality of Body: an essays on Pina Bausch’s Aesthetic. Ballet Internacional/Tanz
Aktuell. 1994. p 86.
Bausch apresenta uma estética da dança que confronta a significação cultural e histórica
de corpos. O corpo é o texto de Bausch. Corpos para ela são documentos com seus assuntos. A
escolha de seu elenco é seleção determinante de toda sua produção - pois são os co-autores de
suas peças. Bausch os escolhe em razão da expressão das histórias de seus corpos individuais e
em relação à sua história cultural. Isso talvez explique por que seus vinte e poucos bailarinos
são de dezessete nacionalidades diferentes.
Essa dramaturgia nascente recoloca na ordem do dia uma evidência: a dança é o
movimento do corpo entregue ao seu mistério, à sua humanidade. Fazer advir essa linguagem
interior, comum a todos e desconhecida de cada um, é a aposta paradoxal dessa dramaturgia:
fundada na significação do movimento, no pensamento-movimento, que traduz narrações que
se superpõem, narrações de corpos técnicos, psicológicos, afetivos, biográficos e culturais -
corpos que enunciam e refletem consciências.
Considerando o corpo como ponto de vista de cada um sobre o mundo e um dos objetos
desse mundo, Pina Bausch organiza a sua dramaturgia centrada nas relações dos corpos com o
mundo objetivo. Mas esse discurso não é feito com idéias. O que Pina Bausch faz é colocar o
público frente a frente com o corpo como ponto de vista sobre o mundo, como local da
experiência perceptiva, como meio de conhecer. E se é nele que está registrada a história, é
com ele que se pode escrevê-la, ou seja, é a própria sintaxe de sua dramaturgia. "Sobre o corpo
quem pensa é o corpo"
278
.
Elisa Vacarino (1995)
279
fala do interesse da coreógrafa em colocar os corpos no espaço
na sua totalidade, despertando as lembranças e memórias dos seus atores-dançarinos, os fatos
individuais, ou ainda os 'índices da realidade', que se dilatam em sentimentos universais:
278
Frase pronunciada por Helena Katz em sua comunicação do Seminário A dança é o pensamento do corpo,
promovido pelo Grupo de Estudos em Dança do Rio de Janeiro, realizado na Universidade do Rio de Janeiro
(UNIRIO), nos dias 19 e 20 de junho de 1999.
279
VACARINO, Elisa. Bausch, un monde, un langage, tant de questions. In: Pina Bausch Parlez-moi
d’amour un colloque. Paris: L’Arche Éditeur, 1995. Neste artigo, Vacarino questiona a existência de um
método Pina Bausch e analisa sua reincidência a partir da obra Blaubart, apresentado em 1977.
“A dança vem como um elemento unificador, uma presença latente dos
corpos que se confrontam com o espaço, o tempo e os ritmos do teatro. (...) A
música, a palavra, o gesto misturam-se com talento, colocando-se a serviço de
verdades que são representadas por meio da dança, que tende a sublimar e a
abstrair os movimentos.”
280
Após a primeira etapa, de respostas verbais, os bailarinos fazem improvisações em que
se podem observar as respostas em forma de movimento corporal. É preciso atentar para o fato
de que cada um improvisa não só sobre sua própria frase, mas também sobre as dos outros.
No seguinte caso, registrado no deo de Chantal Ackerman, Un Jour Pina a
Demandé
281
, por exemplo, Meryl Tankard e Dominique Mercy ilustram as frases de Jean
Sasportes e Lutz Förster: ela corre para ele, os corpos se unem no abraço que ela lhe dá. Os
braços da mulher circundam o corpo do homem, mas o homem não se mexe. A mulher larga-o
e volta de marcha à ré, para o ponto de início do movimento. De novo corre e repete a ação de
apertar seus braços em volta do homem. Não reciprocidade. O referencial sintagmático é:
O amor vai e vem, no momento está indo. Na maioria das vezes o amor está condenado ao
fracasso, mas continuo tentando”
282
.
Numa outra improvisação, a ação do abraçar continua, agora num casal que se sustenta
mutuamente. O abraço se transforma, através da rapidez da mudança dos pontos de equilíbrio,
num jogo que sugere a instabilidade da relação. O que poderia ser uma ação de apoio, de ajuda,
vai se metamorfoseando numa repetição obsessiva que nega qualquer envolvimento amoroso,
mas que aponta para o desgaste do relacionamento
283
.
O tema do amor associa-se ao da dor num outro momento, onde todo o grupo caminha
até formar um bloco. Todos olham para baixo e se movem uniformemente: batem as palmas da
mão e levam a mão direita à altura dos olhos, onde fazem um pequeno movimento com o dedo
280
Ibidem. p. 18.
281
ACKERMAN, Chantal Un Jour Pina a Demandé A programme based on idea by Alain Plagne; editors:
Dominique Forgue and Patrick Mimouni; BRT-INA-RTBS Films Arts, 1986.
282
Ibidem.
283
Ibidem.
indicador, como se estivessem enxugando uma lágrima, e voltam às palmas, continuando a
mesma partitura.
Um novo desdobramento temático é o da solidão. Em outro exercício, no mesmo vídeo,
temos o grupo, também em bloco compacto, olhando fixamente para uma mulher, que está de
costas para o público, de frente para eles. Ninguém se mexe. Apenas se olham. A sensação de
solidão é imensa. Ao som de La vie en rose, uma mulher, absolutamente estática no meio da
cena, coloca as mãos sobre a cabeça, as pontas dos dedos se tocando. Sua ação tem como fator
dominante o esforço de pressionar. Enquanto se ouve a música romântica, as mãos, num
movimento de fluxo contínuo e lento, vão deslizando pelo rosto da mulher. Apesar de não
haver máscara facial inicial, a própria ação pressionar-deslizar, vai conferindo uma
transformação a esse rosto - o que era impassível no início vai se tornando uma careta disforme
de agonia. Toda a dor do amor na dramaticidade de uma única ação física.
As tentativas de relacionamentos estão presentes em todas as obras de Bausch e são, na
maioria das vezes, violentas, como o pas-de-deux entre Dominique Mercy e Helena Pikon, em
Bandoneon
284
. Ela abraça Mercy, que se solta e cai sentado no chão. Ela tenta pegar
delicadamente a mão do rapaz, mas ele a retira bruscamente. A mulher insiste, agora tentando
segurar a cabeça do homem. De novo ele escapa com violência e se levanta, voltando à posição
do início. Até aqui, os fatores de movimento dominantes para a bailarina são tempo lento,
espaço direto, peso leve, o que estrutura uma atitude mental indulgente ou complacente
285
,
enquanto que a partitura do homem se organiza em movimentos rápidos, curtos, indiretos, com
dominância do socar-pontuar, o que determina uma atitude mental lutante ou resistente.
286
A mulher recomeça a seqüência: abraça o homem, que cai ao chão. Ela se joga no chão,
deita-se com as pernas em flexão e abertas. O homem se levanta e tenta se colocar no meio das
284
WILDENHAHM, Klaus O que fazem Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?. Vídeo 1.15 min.
Documentário. Inter Nationes. Wuppertal: 1987.
285
LABAN, Rudolf von. O Domínio do Movimento. São Paulo: Summus Editorial, 1978. p. 117-120.
286
Ibid.
pernas da mulher, mas ela o empurra com as mãos, virando-se para outro lado. Ele continua
tentando se deitar com a mulher, mas é repelido. Então o homem pega a mulher pelas pernas,
joga-a sobre o ombro e sai carregando-a como um fardo pesado e inútil. Não há música, apenas
os ruídos dos corpos completam a estrutura do drama corporal.
Em Kontakthof
287
(Pátio de Contatos) uma cena em que também se pode observar
uma singular relação, em que, apesar do contato físico, a solidão é o elemento que se destaca.
Um grupo de homens toca uma mulher (Meryl Tankard), por todo seu corpo. Massageiam,
sacodem-na, mas ela se mantém impassível. São carinhos, afagos, cócegas e tapinhas. Não
reação da parte dela. O toque vai se tornando mais pesado. Passam então a beliscar, morder,
friccionar seu corpo, puxando-a, mexendo incessantemente no seu nariz, bochechas, no corpo
todo. A mulher começa estão a esboçar no rosto uma crispação indicativa de sua agonia.
Os homens insistem, suas mãos continuam passando sobre os cabelos, olhos, testa,
boca, nariz, orelhas, pescoço, braços, pernas, peito, ventre e costas da moça, até o momento em
que entra outra mulher (Melanie Karen Lien) num caminhar ondulante.
O grupo masculino então literalmente abandona a primeira (Tankard) e segue atrás da
nova mulher. Tankard, agora visivelmente alterada, toda desarrumada, contrasta com a
elegância impecável do grupo. Ela pega seus sapatos e retira-se, carregando com ela a
dimensão do desprezo e da solidão.
Assistir a Kontakthof é participar de uma reflexão sobre a ternura. As questões de
Bausch, sobre as quais os seus artistas trabalharam para esta peça, aparecem no programa
288
distribuído ao público: "O que é que se faz quando se é terno? No que resulta e até que ponto
se vai? Quando deixa de ser ternura ou quando é ainda ternura? O mesmo de sempre. Toma-me
no seus braços, vamos dançar um tango".
287
ACKERMAN, Chantal Op.cit.
288
Programa distribuído na tournée do Wuppertaler Tanztheater, em 1980, no Teatro Municipal de São Paulo,
Brasil.
Tudo em Kontakthof são exercícios, tentativas, ânsias. Pares sorrindo amavelmente
face a face se tocam. Um homem pega a mão de uma mulher e dobra os seus dedos para trás.
Uma mulher se aproxima de um homem e morde a sua orelha. Homem/mulher belisca o
parceiro debaixo dos braços, fecha-lhe os olhos, arranca-lhe um cabelo, tira-lhe a cadeira,
saindo depois com ele de braços dados. Voltam a se tocar. Gestos ternos se tornam agressões
físicas. A transição é imperceptível. depois de transpor o limite, constata-se com surpresa
que os gestos de aproximação se transformaram no seu oposto.
O brilho dos jogos cênicos de Bausch - e o potencial deles como prática radical - é que
justamente, "ao dramatizarem corpos que significam, imediatamente lhes escapam o
significado"
289
e quem encarnou as "histórias" nos leva para fora do discurso, dentro da
visceral e caótica impossibilidade real do amor, da arte, da história. Porque a mimesis é
considerada por Bausch como a perversa reprodução de atos de um ego alienado, o drama dos
corpos dos seus artistas é mostrado para superar um sistema representacional que não os
contém.
Outra cena significativa dos ensaios de Bandoneon
290
, que Chantal Ackerman reproduz
em seu documentário Un Jour Pina a Demandé, apresenta uma relação patética entre o
masculino e o feminino, o humano e o autômato. A mulher fuma um cigarro que o homem
coloca e retira da sua boca. A ação da mulher é tragar e expelir a fumaça. A cena é posicionada
frontalmente à platéia e evidencia que o homem está mostrando a 'habilidade' da mulher. A
cena lembra um pouco os ventríloquos, pois a atitude da mulher é de um boneco inanimado.
Em certo momento, o homem pega a cabeça da moça, vira-a para ele e, puxando para os lados
a sua boca, 'constrói' um sorriso. Em seguida beija-a, pega-a no colo e sai. A mulher continua
como um autômato inanimado até o fim.
289
DIAMOND . Op.cit.. 1989.
290
Bandoneon. Estréia em 21.12.1980. Esta cena é apresentada no vídeo de Klaus Wildenhahn, O que fazem
Pina Bausch e seus bailarinos em Wuppertal?
Esse colapso nos limites do corpo faz parte do imaginário pós-moderno em que
vivemos, tem correlação com a idéia de virtualização que nos propôs Lévy. O que é nítido
perceber é que está em exercício uma nova reestruturação nos conceitos e fronteiras do corpo,
do sujeito, com o mundo.
O corpo vem absorvendo um gradual processo de transformação para se refigurar e
reinscrever em novos espaços. É este corpo híbrido contemporâneo que vem sendo
curiosamente investigado por diversos artistas. Dentro de uma linha histórica evolutiva, se o
artista vinha questionando o corpo desde o happening, a body-art e a performance, é na
dança-teatro que os artistas utilizam este corpo híbrido.
3.3. O espaço e as imagens
Para Susanne Langer
291
, o espaço como conhecemos em nossa vida prática não tem
forma, mesmo na ciência. O que existem são relações espaciais. O espaço “é um substrato de
toda nossa experiência, descoberto gradualmente pela colaboração de nossos sentidos, ora
visto, ora sentido, ora percebido como um fator em nossos movimentos e ações”
292
.
Em específico na arte, o que está em jogo são justamente as relações espaciais, quer
seja num quadro, numa coreografia ou numa composição musical, mais do que a realidade
física do espaço. Gaston Bachelard delimita que o espaço utilizado nas artes não é
simplesmente o de natureza física, pois, “o espaço percebido pela imaginação não pode ser o
espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido”
293
.
Consideremos que o primeiro espaço do artista tende ser o interno, o das imagens do
imaginário, o espaço das imagens-em-ação, atos da imaginação tão reais quanto os atos da
percepção. Ao artista, cabe a virtualização do espaço apenas físico, geométrico e cotidiano para
as atualizações em espaços carregados de simbolismos e de autenticidade.
291
LANGER, Susanne. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, 1980.
292
Ibid.
Em consonância com Bachelard, Bruno Adriani
294
explica que o espaço artístico não é
o mesmo do conceito geométrico de tridimensionalidade, ou da teoria física da unidade
tetradimensional espaço-tempo de Einstein. Para ele, o espaço na arte pode ser percebido
através de nossa sensibilidade, sendo o cenário sensorial de nossas experiências humanas, a
esfera de nossa atividade e de nossas relações com nosso meio ambiente, cabendo ao artista
através da intuição torná-lo perceptível numa criação formal.
Langer distingue o espaço nas artes do espaço cotidiano vivido por nossos sentidos.
Explica que o espaço nas artes é o espaço virtual, aqui “virtual” vem como significado da
“ilusão primária em que todas as formas harmoniosas existem como ilusões secundárias,
símbolos criados para a expressão de sentimento e emoção”
295
. Os dados espaciais reais
captados pelos sentidos são transformados, criando a ilusão primária da visão artística. Uma
tela em branco deixa de ser apenas um espaço físico real e torna-se um espaço virtual. Mas
para que tal tela se torne um espaço virtual, é necessário que (quer seja na pintura, arquitetura
ou cerâmica) a forma criada expresse vida, na qual “o espectador reconheça as formas de
sentimento humano: emoções, humores, até sensações”
296
. Para Langer, cabe ao artista utilizar-
se de suas qualidades sensoriais para criar espaços virtuais e, ao espectador, contemplar estas
formas criadas pelos artistas e diante da arte, ter dificuldade em dar atenção ao meio real. O
espaço virtual, esta ilusão primária de qualquer gênero de arte, é a criação básica na qual todos
os seus elementos existem: e estes, por sua vez, produzem-na e sustentam-na. A arte não existe
por si mesma; “primário” aqui não significa estabelecido em primeiro lugar, mas sempre
estabelecido, constituinte. Criar e utilizar espaços virtuais consiste, em essência, uma das
possibilidades do fazer artístico, incluindo a dança.
293
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989
294
ADRIANI. Problems of the Sculptor. apud LANGER. Op. Cit., p. 96.
295
LANGER. Op. Cit., p. 79.
296
Ibidem, p. 86.
Na contemporaneidade, surge um novo espaço para a criação: um espaço híbrido. O
espaço híbrido tem sua origem a partir do encontro dos espaços tradicionais utilizados nas
artes, quer seja um palco italiano, uma tela em branco, ou a dimensão que as cibertecnologias
oferecem. A dança é resultado da interação de seus quatro elementos essenciais: espaço, forma,
tempo e movimento; assim, que outros espaços se apresentam, é conseqüente que sua forma
se altere.
Mesmo sendo uma “realidade artificial”, o cinema faz parte do real, e pode trazer
conseqüências ao mundo real. Permite que se entre num ambiente de realidade virtual e em que
se tenha nova interação. Ele é uma realidade inserida em outra realidade, ou seja, uma
realidade sintética inserida na realidade quotidiana, mas constitui uma realidade espacial
híbrida contemporânea. Dentro desta nova realidade, os artistas vão criar e produzir
hibridamente: criam quando usam o cinema ou o deo, e produzem hibridamente quando
unem o espaço cinematográfico aos tradicionais teatrais.
Para Robbins
297
, o artista busca uma realidade mais desejável do que esta que nos
contém. Para ele, essa é uma utopia pós-moderna, como a cidade de Oz para Alice. Ele percebe
uma nova desordem mundial proporcionada pelo virtual world em oposição ao real world.
Robbins descreve duas características desse espaço: a imaterialidade e a maleabilidade,
tornando-o o mais sedutor espaço/palco para os artistas visionários, uma inevitável expansão
da capacidade e necessidade de habitar planos míticos, tão apropriado à criação simbólica da
dança. O espaço imaginário sempre fez parte do ser humano e é condição primária do trabalho
artístico. As tecnologias vêm-se tornando mais uma possibilidade para formalizar o espaço do
imaginário do artista, mais uma “camada”, para “virtualizações” e “atualizações” (Lévy)
criativas. É um novo espaço que é inserido no cotidiano.
Quando Pina Bausch cria o filme O Lamento da Imperatriz, está dando uma nova forma
à sua arte, que é a dança-teatro, utilizando uma nova poética. O Lamento da Imperatriz é
dança-teatro? Não dança-teatro como conhecida em seu formato tradicional, mas também não é
um filme comum. É uma forma artística, que parte da dança, mas já não é dança.
As formas híbridas contemporâneas, por outro lado, consistem na coexistência de uma
linguagem anterior tradicional com uma tecnologia, ou seja, no encontro de formas anteriores e
tradicionalmente conhecidas nas artes, com as novas possibilidades tecnológicas, resultando
deste encontro o que chamamos de “obra híbrida”. A partir desse pressuposto, sugere-se novo
nome-conceito como o “cinedançateatro”.
Quando Cheryl Faver
298
propõe uma interpretação teatral no Gertrude Stein Repertory
Theater (NY) onde a co-atuação de atores humanos - que estão no palco do teatro - com
atores que estão sendo transmitidos via Internet, Faver nos propicia também uma obra híbrida.
Se do encontro entre dança “tradicional” - mesmo que contemporânea - com ciberespaço, surge
um exemplo de ciberdança, a dança-teatro com o cinema é um exemplo de nova forma
constituída desse encontro. Portanto, a obra híbrida está inserida no paradigma da pós-
modernidade, que se constitui na interatividade e imaterialidade da cultura contemporânea. Ela
questiona limites anteriores: o espaço, o corpo, o tempo. Circula no novo e não-lugar do espaço
cinético, e revela em sua forma os processos de hibridação que vive a cultura contemporânea:
tempo sincrônico/tempo assincrônico, espaço/ corpo/tecnologia.
3. 4. Corpo e cinema: imagens em ação
O corpo humano sempre foi objeto do olhar e da criação artística. Neste século, mais
acentuadamente neste final de século, quando nossos corpos atingem um vel de plasticidade
extrema e de dissolução de suas fronteiras físicas, sensíveis, cognitivas, não é de se estranhar
que o corpo tenha se tornado o grande tema, foco, representação, objeto performático e objeto
simulado das artes.
297
ROBBINS, K. Into the image: culture and politics in the field of vision. London: Routledge,1996.
298
Ver mais no site http://www.ibm.com/sfasp/3d.htm (03/05/98)
As simbioses, atrofias e hipertrofias do corpo maquínico e do corpo em transformação
faziam parte do imaginário plástico das vanguardas modernistas no início do século XX.
Sem nenhuma intenção de exaustividade, mas apenas para sinalizar algumas passagens, vale
notar que esses mesmos caracteres, em intensidade acentuada e em traços pouco óbvios,
trouxeram a fama a Francis Bacon e Lucien Freud, para citar dois exemplos. Nos
happenings dos anos 60, o corpo vivo, em atuação, era, por si e em si mesmo, arte. Nas
instalações interrogativas de Beuys, os vestígios de um corpo ausente, denunciavam sua
inexplicável presença. Enfim, as aparições do corpo, não na dança, mas nas artes do século
XX são inesgotáveis. Basta, portanto, apontar para o fato de que, pelo menos duas décadas,
o corpo se tornou, decididamente, o grande ponto de convergência das artes, desde as artes
artesanais, performáticas, instalações, até as artes que utilizam as tecnologias de ponta para
explorar a desfronteirização do corpo físico, sensorial, psíquico, cognitivo.
Atualmente, por exemplo, artistas se voltam para a criação de registros sui-generis, por
vezes insólitos, da fisicalidade de seus corpos
299
. É tal a compulsividade com que
manifestações desse tipo se repetem que nos leva a pensar na necessidade manifesta pelo artista
de lançar esses registros para o futuro. Mas sempre a representação pela imagem, a imagem em
movimento.
A relação com as imagens tem propiciado, ao longo das últimas décadas, um debate
filosófico e epistemológico centrado nas questões da objetividade/subjetividade do mundo
representado (Bazin, 1945
300
, Kracauer, 1960
301
). A influência dos dispositivos técnicos sobre
os modos de representação adotados (McLuhan
302
, 1964, Debray
303
, 1991), o papel da recepção
299
Exemplar perturbadoramente nítido dessa tendência é a obra de Del Pilar Sallum, especialmente na série
Ataduras, em que “a artista molda fios metálicos, compulsivamente ao redor de suas mãos e dedos, que se
tornam moldes. Desenformados, os moldes se tornam passado, e a forma escultórica resultante conta o vazio de
um corpo e um tempo que passou”. Cf. CANTON, Katia. "Antenas da nova sensibilidade". Bravo. Ano 1, no.
1.1997, p.47.
300
BAZIN, André, O que é o cinema. Lisboa, Livros Horizonte, 1992 (1
ª
edição em francês, 1945).
301
KRACAUER, Siegfried. Theory of film: The redemption of physical reality. Princeton: Princeton University
Press. 1997 (1
ª
edição, 1960).
302
McLUHAN, Marshall. Pour comprendre les média.Paris: Mame/Seuil, 1968 (1
ª
edição canadiana 1964)
na construção do sentido das imagens (Eco
304
, 1962, Hall
305
, 1973, Certeau
306
, 1980, Katz e
Liebes
307
, 1990), a relação das imagens com a escrita (Postman
308
, 1986) são alguns exemplos
mais recentes de questionamentos em volta da imagem.
Um primeiro movimento pode ser definido à volta das questões de representação que a
imagem consubstancia, ou seja, das relações das imagens com os modos de as fabricar. Um
segundo movimento pode agrupar-se à volta dos modos de conhecer associados à imagem, ou
seja, das relações epistêmicas que levantam. Um terceiro movimento pode encarar-se no
sentido da partilha social das imagens, logo da relação social que estas provocam, estimulam
ou neutralizam. Um quarto movimento tem a ver com os olhares dos receptores, isto é, centra-
se nas multifacetadas relações dos olhares com as imagens.
Movimento das imagens que se traduz obviamente no cinema. A imagem-tempo e a
imagem-movimento
309
criam uma narratividade associada ao novo tipo de imagens. O próprio
objeto move-se. Rapidamente o cinema instaura outros movimentos associados à narratividade
em descoberta. Assim, um operador dos Lumière, ao colocar uma câmara numa gôndola
descobre, com perplexidade, o travelling. A imagem torna-se uma forma de movimento, torna-
se imagem-movimento. Estes movimentos narrativos iriam ser progressivamente enriquecidos
pela criação de planos específicos (como o grande plano) ou da montagem como forma de
criar estruturas narrativas. Tais narrativas vêm a construir-se num duplo sentido: ora
procurando a imitação mimética dos movimentos da realidade, ora tentando soluções mais
adequadas à reconstrução, a interpretação fílmica desses movimentos encontrados no real.
Nos dias de hoje, o movimento saiu do exterior da imagem para se situar no seu
interior, na sua estrutura interna. A imagem cria-se pelo cálculo, pela digitalização, sem que a
303
DEBRAY, R. Cours de médiologie générale. Paris: Gallimard, 1991.
304
ECO, Umberto. L'oeuvre ouverte. Paris: Editions du Seuil, 1965 (1
ª
edição italiana 1962).
305
HALL, S., Encoding/Decoding. In: Culture, medias, language. London: Hutchinson, 1980 (1
ª
edição
policopiada em 1973).
306
DE CERTEAU, Michael. L'invention du quotidien: 1'arts de faire. Paris: Folio, 1990.
307
KATZ, E. e LIEBES, T. Watching Dallas: The export of meaning. New York: Oxford University Press, 1990
308
POSTMANN, N. Amusing ourselves to death. London: Heinemann, 1986.
realidade exista como prévio indício físico. Por outro lado, na imagem fabricada pelos meios
tradicionais tornou-se possível juntar, tirar, modificar, transformar.
Numa investigação publicada na revista American Scientist, Ulrich Neisser
310
, da
Universidade de Cornell, considera que a mudança mais significativa ocorrida no ambiente
intelectual do século XX foi a exposição aos media visuais - fotografia, cinema, televisão,
vídeo, banda desenhada, cartazes, imagens virtuais - , que teriam criado ambientes icônicos
progressivamente enriquecidos. Segundo Neisser, nós não olhamos apenas as imagens, também
as analisamos.
reflexões que questionam o ato de ver, que obrigam a movimentos de pensamento
sobre a relação do que é visto com o mundo. Discussão que não está terminada e mesmo se
tornou mais premente pelos novos dispositivos de visão do mundo de hoje. Questões que têm
toda a pertinência em relação às imagens mentais que fabricamos sobre (com) o mundo, mas
que os dispositivos técnicos mediadores, entre a nossa visão e a realidade, amplificam de forma
gigantesca.
Estamos agora a deixar que a imagem nos diga sobre o que é verdade e o que não é.
Estamos no coração de um movimento epistemológico gerado pelo papel da imagem, pois
ligamos irremediavelmente o nosso modo de ver a dispositivos técnicos fabricantes de
imagens, como o cinema, a fotografia, o computador e a televisão.
3. 5. A partilha de representações estéticas
A estética é outro terreno de movimento profundamente ligado à imagem. É certo que
existem estéticas literárias e de outros tipos. A imagem provocou, porém, movimentos
individuais e coletivos indiscutíveis. O que é belo, o que é feio, quantas vezes passa pelo olhar?
309
DELEUZE, Gilles. L'image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.
310
NEISSER, Ulrich. Rising scores on intelligence tests. In: American scientist, September/October 1997.
A perspectiva renascentista pôs o homem no centro do mundo, os pintores do
renascimento procuram a ilusão que nos aproxima da realidade
311
. A busca dessa ilusão é o
reflexo de escolhas estéticas e provoca um usufruto estético sobre quem vê. Provoca outras
vezes perturbação em quem vê: Veronese foi chamado à Inquisição por ter pintado criados e
cães, pouco representados até então. Respondeu aos seus interrogadores: "Pinto o que vejo".
Esse "pintar o que vejo" estava em contradição com as práticas anteriores, muito centradas na
perspectiva hierárquica, que dava apenas lugar ao que era importante e atribuía maior relevo
visual aos elementos mais valorizados nas representações das épocas precedentes (por
exemplo, Cristo, os santos, os reis eram geralmente representados em tamanho maior do que
outros personagens).
No romantismo, os pintores usam estéticas que obrigam o espectador a investir os seus
sentimentos, a sua cultura, na leitura das obras
312
. O século XX deu origem a estéticas novas
provindas do cinema, da televisão, da cultura de massas em geral, da imagem virtual, das
performances artísticas.
Descoberto no fim do século XIX, a história do cinema se confunde com a história do
século XX. As revoluções políticas e econômicas, as reestruturações espaciais, o processo de
descentralização das instituições, a fragmentação do tempo, as correntes filosóficas e as
descobertas científicas, passando pelas mudanças sociais e por toda a metamorfose sofrida pelo
imaginário do homem no século XX, todos esses fatores interligam-se à evolução do cinema,
sem que, obrigatoriamente, descrevam uma relação de causa e efeito, mas, acima disso, uma
relação quase tautológica, sendo impossível acusar se foi, por exemplo, o imaginário
americano do período pós-guerra que gerou o apogeu de Hollywood ou se, ao contrário, a
indústria cinematográfica foi quem descreveu e determinou todo um paradigma cultural.
311
KRAUßE, Anna-Carola. Historia de la pintura; Del renascimiento a nuestros dias. Colonia: Könemann,
1995. p. 6-13.
312
Ibidem, p.56-64.
Com o cinema, a manifestação artística deixa de ser simplesmente uma descrição
mimética da realidade e passa a ser, ela própria, uma segunda realidade, capaz de não somente
descrever o mundo real como também interferir e com ele manter um diálogo, proposta essa
iniciada no cinema construtivista soviético e posteriormente absorvida por quase todas as
demais escolas.
Todavia a arte não é unicamente uma arma de contestação da realidade objetiva, ela
pode ser também uma potente arma (talvez a única) de contestação de uma realidade subjetiva,
isto é, se a arte pode analisar, descrever e alterar a realidade dos fatos pode também, e nisso o
cinema é pioneiro, analisar, descrever e alterar a realidade subjetiva do espectador. Este fato
não significa que as demais manifestações artísticas como a literatura, as artes plásticas, a
dança, a música ou a poesia, não consigam agir em nível subjetivo. A arte de uma forma geral
é capaz de atuar nesse campo. Mas o cinema dispõe de recursos que lhe permitem atingir um
número maior de pessoas num período ainda menor de tempo, obedecendo a toda uma lógica
da dinâmica do século XX.
Se a literatura conta com um enredo para tocar nossa alma; se as artes plásticas com
formas que descrevem nosso interior; se a poesia, a dança e a música tocam nossa harmonia,
nosso ritmo; o cinema é capaz de conjugar em um único golpe o enredo, a harmonia e a
imagem. E, ainda mais, é capaz de manipular cada um desses elementos separadamente, se
assim o desejar, e pode, como nenhuma outra arte, quebrar o tempo e remontá-lo conforme sua
vontade. O cinema, então, é uma arma poderosa, não em interferir na realidade dos fatos,
mas também em tocar e modificar o imaginário e o paradigma subjetivo do espectador.
O advento do cinema data de um delicado momento histórico onde dois fatores
antagônicos se encontram. De um lado existe a euforia burguesa, a exaltação do capitalismo, a
crença de que a ciência se encontra dominada e de que o homem finalmente venceu num
mundo sem Deus; do outro lado, um profundo pessimismo, um niilismo decadente acusado
décadas antes por Nietzsche, um desespero por um número crescente de mercados
consumidores que iria resultar na I Guerra Mundial.
Do choque dessas duas realidades que coexistem nos primeiros anos do século XX
nasce um ambiente fértil para o despertar de novas artes e propostas artísticas. Intelectuais se
organizam em diversas escolas, em diversos lugares, mais ou menos ao mesmo tempo, e
lançam propostas artísticas diferentes de negação do decadentismo simbolista. O Futurismo, o
Expressionismo, o Cubismo, o Dadaísmo e o Surrealismo, passando pelo Construtivismo, são
as principais correntes vanguardistas que terão forte influência na literatura, na pintura, na
poesia, na dança e, é claro, no cinema.
É possível encontrar exemplos de filmes produzidos sob cada uma dessas correntes e
todas elas, de uma forma geral, utilizam-se do elemento da crueldade para efetivar o golpe no
inconsciente dos espectadores. É importante que se diga que todos esses movimentos foram,
inicialmente, propostos para outros meios de divulgação artística e que o cinema se utilizou do
contexto em que estava inserido e passou a produzir obras que dialogavam com tais
movimentos.
Não se pode considerar que a característica não-narrativa esteja presente em toda a
vanguarda artística, enfim, não se pode considerar que todo o movimento artístico do século
XX se propôs a não narrar absolutamente nada, embora de fato seja possível destacar exemplos
de produtos com propostas assim. Entretanto, pode-se considerar que em todos os movimentos
artísticos, manifestados em quaisquer veículos, existe uma efetiva e constante proposta de se
modificar o logos artístico, isto é, uma real preocupação em se experimentar novos
caminhos, novas formas de se contar algo, novos meios de se produzir arte. A característica
experimental desses movimentos, apesar de também se dar em termos de conteúdo, se
concentra na forma. No caso do cinema, especificamente, as experimentações se darão em
termos de técnicas de montagem, iluminação, ângulos de planos, cenário e, também, é claro,
conteúdo e temática dos enredos.
O cinema, como arte e como indústria, nasceu em simultâneo, os milhões de bilheteira
nasceram ao mesmo tempo em que a montagem paralela. Juntem-se hoje as receitas do
multimídia, das imagens virtuais, da publicidade, da televisão, da internet, da imagem médica,
do mercado artístico. Movimentos das imagens que soam, neste aspecto, qual jackpots
contínuos onde a imagem é figura de proa.
3.6. A partilha da técnica
Todos estes movimentos se baseiam numa outra partilha: a partilha das técnicas
associadas ao fabrico e manipulação das imagens. Tais partilhas têm permanentemente
revolucionado os equipamentos, tornando-os de pesados a leves, de grandes a miniaturizados,
de toscos a esteticamente apetecíveis. Tais partilhas têm criado movimentos de
democratização no uso e apropriação das técnicas (a fotografia, o vídeo). Mas por outro lado,
podem também se ver nestes movimentos, outros pólos de desenvolvimento mais afuniladores
da capacidade de criação. Por exemplo: a estandardização estereotipada da imagem de
televisão, ou mesmo de interpretação técnica especializada das imagens, como o caso da
imagem médica.
Movimentos que nunca terão uma direção única, mas antes serão portadores de sentidos
múltiplos, de forças de atuação contraditórias, de interpretações complexas. Movimentos que
desencadeiam outros movimentos, como trazer para o fazer processual da dança-teatro os
procedimentos fílmicos, as diferentes possibilidades na apropriação das imagens quotidianas.
3.7. Cinema: nova maneira de olhar o mundo
O cinema inaugura uma maneira nova de estar e de olhar para o mundo e, mais ainda,
estabelece uma nova forma de inteligibilidade. Pela força que a imagem visual adquiriu, as
narrativas do cinema são aquelas que, em quantidade e intensidade, povoam a imaginação de
um número significativo de pessoas. A linguagem do cinema tem como elemento essencial a
realidade, mas mais do que uma realidade composta de elementos reconhecidos, identificados,
verdadeiros, o cinema cria imagens e sons que possam construir para o espectador uma
sensação de realidade.
Assim, o cinema cria uma linguagem que expressa o real, com toda a multiplicidade de
aspectos que o compõem. Muitos destes aspectos não são vistos ou ouvidos objetivamente, são
apenas sugeridos. Alguns podem ser encontrados no espaço que Gilles Deleuze chamou de
extra-campo ou espaço-off
313
.
Para Pier Paolo Pasolini:
"O cinema não evoca a realidade como a língua da literatura; não copia
a realidade como a pintura; não mima a realidade como o teatro. O cinema
reproduz a realidade: imagem e som! E reproduzindo a realidade, que faz o
cinema então? Expressa a realidade pela realidade."
314
E é ainda Pasolini, já em outro texto, que fala desse novo olhar que o cinema cria:
"Nada como fazer um filme obriga a olhar as coisas. O olhar de um
literato sobre uma paisagem, campestre ou urbana, pode excluir uma infinidade
de coisas, recortando do conjunto só as que o emocionam ou lhe servem. O olhar
de um cineasta - sobre a mesma paisagem - não pode deixar, pelo contrário, de
tomar consciência de todas as coisas que ali se encontram, quase as
enumerando. De fato, enquanto para o literato as coisas estão destinadas a se
tornar palavras, isto é, símbolos, na expressão de um cineasta as coisas
continuam sendo coisas: os signos do sistema verbal são, portanto simbólicos e
convencionais, ao passo que os signos do sistema cinematográfico são
efetivamente as próprias coisas, na sua materialidade e na sua realidade."
315
313
O extra-campo pode ter duas naturezas distintas: "um aspecto relativo, através do qual um sistema fechado
remete no espaço a um conjunto que não se e que pode, por sua vez, ser visto, com o risco de suscitar um
novo conjunto visto, ao infinito; um aspecto absoluto, através do que o sistema fechado se abre para uma
duração imanente ao todo do universo, que não é mais um conjunto e não pertence à ordem do visível". Deleuze,
Gilles. Cinema: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.29.
314
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Hereje. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p. 107.
315
PASOLINI, Pier Paolo. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: Os jovens infelizes: antologia de
ensaios corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990.
O cinema é feito de imagens e sons em seqüência e, embora se expressando por meio da
realidade, convencionou uma linguagem que revela um modo de ver completamente artificial,
criado através do olhar ciclópico das câmeras e de todo o aparato tecnológico que está presente
desde o momento da captação das imagens até o instante em que surgem, iluminando as telas e
contando todos os tipos de dramas, comédias, tragédias, reais ou fictícias. As inúmeras
possibilidades do olhar que a câmera criou, as múltiplas formas de aproximação e
distanciamento que vão dos enormes planos gerais ao close-up
316
, os enquadramentos e
movimentos que as novas tecnologias de captação de imagens permitem, quando percorrem
grandes distâncias indo de um ponto de vista a outro na mesma tomada, deram origem à
linguagem cinematográfica atual e, ao mesmo tempo alteraram irreversivelmente a própria
percepção visual das pessoas e por isso a própria realidade em que vivem.
Tudo isso acontece no mesmo espaço 4x3 das telas, que permanece inalterado enquanto
coisas, pessoas, detalhes aumentam ou diminuem à frente do espectador, que está acostumado
com a forma de expressar que o cinema inventou, pois nasceu mergulhado nesse universo de
imagens criadas pela linguagem cinematográfica. As cabeças decepadas do início do cinema já
não surpreendem mais
317
. Porque o espectador aprendeu, cedo, como todas as pessoas com as
quais convive, a decifrar os códigos do cinema que perpassam as relações da sociedade
contemporânea.
Todo espectador é capaz de perceber, identificar e reconstituir, por inteiro, a imagem
que se apresenta fragmentada na tela, um big close é hoje tão natural quanto qualquer figura
316
Plano para a linguagem cinematográfica pode significar duas coisas: primeiro a composição de cada imagem
que, de acordo com enquadramento e distância do assunto, pode ser classificada em: plano geral, plano de
conjunto, plano americano, primeiro plano, plano detalhe; e, ainda, o espaço-tempo contido em uma única
tomada.
317
Massimo Canevacci, citando Béla Balàzs diz que este "usa palavras cheias e comoção para descrever a
'descoberta' do primeiro plano, por ele atribuída a D.W. Griffith, que inventou também a montagem alternada.
Graças à fisionômica, o cinema exalta a correspondência entre os sentimentos interiores até os mais escondidos
do homem e os traços do rosto: os movimentos da alma impressos, 'marcados' no código facial que, de tal modo,
se torna a máscara da tela. (...) No primeiro plano freqüentemente está a dramática revelação daquilo que
realmente se esconde na aparência do homem." CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual.
São Paulo: Brasiliense, 1990.
que aparece inteira na tela. Posso dizer que é natural apenas no cinema, pois essa não é uma
experiência que as pessoas possam ter sem contar com os aparatos de captação e tratamento de
imagem - câmera, lentes, gravadores, editores. A linguagem cinematográfica é o resultado de
um processo de elaboração que envolveu muitas escolhas e precisou de certo tempo para
tornar-se a linguagem global que é hoje. Jean-Claude Carrière
318
conta que, no início do
cinema, para que espectadores entendessem a narrativa, havia a figura do explicador, uma
pessoa que, postada ao lado da tela, ia fazendo a relação entre as imagens e contando a história.
Ninguém enquadrado, ou mesmo se aproxima de tal maneira de coisas e pessoas
para captar determinados detalhes que compõem muitas narrativas fílmicas. São lentes
especiais que realizam esse trabalho. Essa naturalização da linguagem faz que não haja uma
maior preocupação com ela. Ver um filme é algo trivial para alguém que nasceu no século
passado. O olhar enquadrado é parte essencial e corriqueira do viver contemporâneo, mas
requer uma infinidade de técnicos e profissionais e movimenta uma indústria poderosa que
lança, no mercado dos consumidores de histórias, uma profusão cada vez maior de narrativas,
procurando atender a todos os gêneros e gostos.
Um filme é feito de tudo o que vemos estampado na tela e ouvimos pelas caixas de
som, mas também por tudo o que os cortes, que conduzem o olhar do espectador de uma para
outra cena, evocam. Os vazios entre os planos supõem uma supressão temporal e abrem o
espaço para a imaginação do espectador. Por isso, talvez, o procedimento da montagem do
filme é chamado de específico fílmico, ou seja, aquilo que faz do cinema, cinema. Traduz a
essência da linguagem cinematográfica e diferencia o cinema da realidade da qual se destaca e
se separa. Como explica Pasolini: "A realidade seria um plano-seqüência infinito, e o filme, ao
contrário, um plano-seqüência finito; começa, desenvolve e termina
319
.
318
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
319
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Hereje. Op.cit.
O filme é feito de tudo o que se oferece à visão e, igualmente, do que não será visto.
Algumas coisas serão apenas sugeridas e irão compor os vazios, os intervalos que, no cinema,
são tão significativos quanto o que as imagens e sons explicitam. É nesse intervalo que os
sentidos conversam: o sentido do filme que o diretor quis expressar e o sentido acrescido de
quem vê. Pode-se dizer, portanto, que o filme é sempre uma obra aberta. Não se presta a uma
única interpretação. Pode ser visto e revisto de várias maneiras, tudo fica a depender do
contexto, da capacidade, do interesse, das expectativas de quem vê.
O cinema cria uma linguagem específica, uma inteligibilidade peculiar. Assim, ao
pensar o cinema, pode-se também refletir sobre seus métodos e a sua organização. Como a
linguagem cinematográfica chega à dança-teatro é a questão básica que permeia este trabalho,
em que se discute as possíveis relações dos procedimentos fílmicos com a dança e com o
teatro, o vigor que a linguagem audiovisual adquiriu na sociedade contemporânea.
Com o seu aparato tecnológico apropriado para documentar, encenar e narrar histórias,
o cinema construiu uma nova maneira de olhar para o mundo e, com isso, estabeleceu uma
forma peculiar de inteligibilidade e conhecimento recorrente nas artes contemporâneas, que é
apropriada e utilizada com singularidade por Pina Bausch e seu Tanztheater.
CAPÍTULO 4
ESPAÇO CIDADE
Desenhar a cidade dos sonhos é fácil; reconstruir a vida requer imaginação.
(Jane Jacobs. The city reader. 1996
320
)
4.1. As cidades e suas imagens
Ao final do século XX, é nas cidades que estão mergulhadas as vidas de milhões de
seres humanos, locomovendo-se diariamente por uma espécie de labirinto. Daí serem tão
complexas, quão complexas são as perspectivas da vida urbana. Mas nem por isso deixam de
fascinar cada vez mais, e atrair o homem. Talvez porque a urbanidade seja inerente à condição
humana.
A mercadoria, o comércio, a industrialização, o êxodo rural, a explosão demográfica, a
fábrica, a linha de montagem, a especialização da mão-de-obra, o salário, o patrão, o operário,
a manufatura, a tecnologia, a eletricidade, a eletrônica - nessas imagens, estão as
representações, a linguagem urbana através da qual não se apreende explicações abstratas, mas
aquelas constantes que atingem e modelam o nosso quotidiano. As imagens urbanas despertam
a nossa percepção na medida em que marcam o cenário cultural da nossa rotina e a identificam
como urbana: o movimento, os adensamentos humanos, os transportes, o barulho, o tráfego, a
verticalização, a vida fervilhante; uma atmosfera que assinala um modo de vida e certo tipo de
relações sociais.
Conhece-se o fenômeno urbano através da linguagem que o representa e constitui a
mediação necessária para a sua percepção: não pensamos o urbano senão através dos seus
signos. As transformações econômicas e sociais deixam, na cidade, marcas ou sinais que
contam uma história não-verbal pontilhada de imagens, de máscaras que têm como significado
o conjunto de valores, usos, hábitos, desejos e crenças que nutriram, através dos tempos, o
quotidiano dos homens. A imagem polissensorial da cidade vem marcada por determinadas
categorias que geram padrões quase emblemáticos, assinalam momentos históricos e atraem a
atenção dos que se ocupam da cultura urbana.
Dadas as dimensões do assunto, é óbvio que não se pretende nenhum tipo de cobertura
abrangente, mas, apenas, fixar algumas imagens urbanas no decorrer da história, tendo em vista
estabelecer as categorias de sua manifestação.
Charles Baudelaire
321
publica suas Flores do mal em 1857 e cria uma grande
personagem poética: a cidade, que é o tema de bom número de poemas. Porém, não a cidade,
mas uma cidade concretizada na sua alegoria: a multidão como imagem flutuante, instável e
fugaz através da qual o poeta via Paris e se transformaria num dos mais renomados
fisionomistas da imagem urbana.
A exemplo de Baudelaire, a história da imagem urbana é aquela que culmina com o
relato sensível das formas de ver a cidade; não é descrição física, mas os instantâneos culturais
que a focalizam como organismo vivo, mutante e ágil para agasalhar as relações sociais que a
caracterizam. A história da imagem urbana colide ou se completa na história cultural da cidade
que vem à luz sempre que se focaliza o espaço urbano na sua dimensão social.
4.2. A imagem urbana como índice social
A cidade medieval deu origem a algumas imagens urbanas que, submetendo-se a várias
transformações, permanecem até os dias de hoje. A cidade medieval foi um exercício de
ousadia e inteligência de uma população rural que, capacitando-se profissionalmente,
associava-se para encontrar um novo modo de ganhar a vida. Sua expressão econômica foram
as guildas, porém suas características sociais e culturais passaram a se confundir com a própria
320
JACOBS, J. e APPLEYARD, D. "Towards an urban design manifesto". In: LEGATES, R. e STOUT, R. The
city reader. Nova York, Routledge, 1996.
cidade. A vida, livre da tutela dos senhores feudais, a liberdade para produzir e superar suas
dificuldades e, sobretudo, uma nova relação social: a ajuda mútua. Para isso havia apenas uma
lei: a competência no ofício e a associação com seus iguais: a guilda de ofícios e seus artífices.
Tendo a produção e a habilidade como núcleo do quotidiano, a guilda era a
demonstração de uma vida comunitária que tinha seu estilo, suas crenças e religião marcada,
até hoje, nos vitrais, rosáceas e murais dos seus monumentos, capelas e catedrais edificados
com o vintém poupado na disciplina e ordem das corporações. Ao lado da competência no
ofício, não se dispensava a demonstração da sua identidade sígnica, os índices, as marcas de
um grupo ostentados nos trajes exibidos em praças públicas nas procissões solenes, o corpo
como suporte sígnico de uma sólida consciência da linguagem como mediação, como
representação da estrutura social:
"No domingo depois da Assunção de Nossa Querida Senhora, eu vi a
grande procissão da Igreja de Nossa Senhora de Antuérpia, quando a cidade
inteira, de todos os ofícios e de todas as condições, achava-se reunida, cada qual
a usar as suas melhores roupas, conforme a sua posição. E todas as ordens e
corporações ostentavam as suas insígnias, pelas quais podiam ser
reconhecidas.(...) Vi a procissão passar ao longo da rua, o povo alinhado em
fileiras muito próximas umas das outras. Estavam ali os Ourives, os Pintores, os
Pedreiros, os Bordadores, os Escultores, os Marceneiros, os Carpinteiros, os
Marinheiros, os Pescadores, os Alfaiates, os Sapateiros e, enfim, trabalhadores
de todas as espécies, e muitos artesãos e negociantes que trabalhavam para
ganhar a vida"
322
.
Essa corporação do trabalho organizava-se pela competência e disciplina, mas
identificava-se pelas insígnias da sua profissão: a necessidade de mediar, pela linguagem, o
reconhecimento do trabalho como objeto de classificação social. Este signo indicial tinha o
próprio corpo como suporte e a cidade como moldura. Corpo e cidade encontravam-se na
procissão para exibir, na praça pública ou na catedral, o instrumento sígnico do trabalho
321
BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1954.
322
Citação de Albrecht Dürer,pintor do princípio do século XVI, em A cidade na história, suas origens,
transformações e perspectivas, Lewis Mumford, São Paulo, Martins Fontes/Editora da Universidade de Brasília,
2a ed. brasileira, 1982, p. 304.
manual. Uma imagem urbana que apontava o homem e o seu trabalho como senhores de sua
grande invenção: a cidade.
Porém, o mesmo rigoroso apego à ordem e à disciplina deu origem a uma pesada
estrutura hierárquica burguesa, que tinha, na riqueza, o elemento de destaque: estava sendo
preparado o terreno para uma outra imagem urbana medieval que se transformou e se
prolongou até hoje: os desfiles carnavalescos.
4. 3. A imagem urbana como contraste
No panorama cultural da estrutura econômico-social das guildas, não demorou que
surgisse um espaço característico, o Paço Municipal, onde as famílias de destaque, os mais
ricos artesãos e mercadores realizavam bailes, saraus, banquetes e casamentos com a devida
pompa. Eram as festas oficiais que consagravam uma ordem social apoiada no reconhecimento
da estabilidade econômica e da perenidade da ordem social, onde todos tinham um lugar
determinado: predominavam a hierarquia, os valores e, sobretudo, as leis e tabus religiosos
políticos e morais. Bakhtin e, mais recentemente, Burke são os grandes estudiosos dessa
oficialidade festiva e do seu contraponto: o carnaval
323
.
Com a riqueza e o rompimento da ordem social corporativa das guildas, as camadas rica
e pobre da população se delinearam de modo que apenas alguns eram admitidos nas festas
oficiais do Paço Municipal; aos demais não cabia, senão, o espaço e o tempo passageiros do
carnaval, que deu origem a uma outra imagem urbana que brota na Idade Média e traz, até
hoje, a sua grande personagem: a multidão.
A mistura de tipos e atividades aglomerados uma outra função à praça pública
que, durante alguns dias, abandona sua função comercial para abrigar um momento de
quebra da rotina diária do trabalho e da vida comedida para desperdiçar, comer, beber e
323
BAKHTIN, M. La cultura popular en la Edad Media y en el renacimiento. Barcelona: Barral Ed., 1971;
BURKE, Peter Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1989.
consumir todas as posses. Sobre esta ruptura do quotidiano, o carnaval na praça permite a
exibição de uma das suas características básicas: a des-hierarquização. Rompe-se a
distinção entre ricos e pobres, popular e erudito, particular e público, para criar um
momento em que tudo ocorre ao ar livre, na praça ou na rua. Nessa primeira característica,
cria-se uma imagem urbana franca e livre de restrições de qualquer norma ou etiqueta; sua
característica sensorial é a sonoridade que produz uma linguagem em que a comunicação se
faz aos brados e aos palavrões. Nesse momento, a praça é o espaço livre e público que
rompe a barreira da vida privada, das normas familiares, dos tabus morais e, sobretudo, da
hierarquia social: uma festa, não somente popular, mas um espaço de todos e para todos.
4.4. A imagem urbana como inversão
Com o seu desenvolvimento, a imagem urbana carnavalesca do caos e da desordem se
aprofunda e se torna mais complexa, ou seja, a quebra das convenções cria, na praça pública, o
espaço da inversão, da exposição da intimidade que passa a ser controlada pela exibição. A
praça já não é apenas o espaço público, mas o palco onde se dramatiza a inversão: o "mundo de
cabeça para baixo"
324
.
A praça é a cena em que todos são atores e espectadores ao mesmo tempo; vive-se a
ficção onde se exibem palhaços e mágicos mascarados num espetáculo de rua onde todos riem,
um riso geral e universal. O espaço urbano transforma-se nesse local ambivalente: praça
pública que abriga a festa da multidão e cena dramática em que se invertem posições sociais e
se exibe, sob a forma de paródia, a intimidade familiar ou individual nos seus aspectos
caricaturais; é a máscara, o indivíduo, os defeitos, os sexos travestidos.
A praça como cena dramática torna mais complexa a imagem do carnaval anti-
hierárquico e cria a imagem urbana da inversão do privado que se torna público, do individual
que se coletiviza, do defeito que se modifica em qualidade, da cultura popular que se oficializa
e se impõe ao reconhecimento. Seu veículo sensorial é o gesto que, freqüentemente obsceno, se
dramatiza e se multiplica na repetição. Na praça carnavalesca, a multidão colide com a
inversão e sua imagem é espontânea e descontraída.
4.5. A imagem urbana como poesia
No século XIX, essa imagem urbana da multidão que se acotovela e colide transforma o
uso coletivo no olhar que se cruza e se perde em inúmeros olhos aturdidos, surpresos e
medrosos ao mesmo tempo.
O poeta dessa máscara da cidade é Baudelaire, e o seu crítico, no início do século XX, é
Walter Benjamin. Poeta e intelectual se unem para sentirem o impacto da cidade européia,
Paris ou Berlim, e o local dessa imagem urbana não é a praça pública, mas as longas ruas, as
avenidas, os bulevares, as galerias, os becos da cidade que sofrem o impacto da
metropolização.
Nas Flores do mal, Baudelaire insinua a figura urbana do olhar que com ele se cruza na
multidão, o olhar momentâneo, recluso e entediado da mulher que se exibe, à medida que se
oculta, que se nega à medida que se oferece: o bulevar é o local que permite e estimula esse
olhar feito sexo e a multidão é a espectadora, talvez desinteressada, dessa posse.
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'eternité?
324
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 210 e segs.
Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais"
325
.
Esse anônimo habitante da metrópole é recolhido por Benjamin na figura do flâneur,
estranha figura urbana que circula na Paris, capital do século XIX, como sua terra prometida
326
.
4.6. A imagem urbana do ócio
O flâneur é a personagem que agita a imagem do homem na multidão que difere
totalmente de O homem da multidão, conto de Edgar Poe, traduzido por Baudelaire. O flâneur
não é um autômato, mas, ao contrário, é um ocioso paradoxal que transforma a ociosidade em
valor, porque a realiza produtivamente quando transforma as ruas, os pavilhões, os grandes
magazines - que atendem à necessidade coletiva da multidão, - em instrumentos indiciais que
atribuem referenciais ao labirinto emocional despertado pela cidade moderna.
Como um homem na multidão, o flâneur desenvolve, metodologicamente, em torno de
si um escudo que, por paradoxo, o situa na massa urbana sem permitir que nela se envolva, seu
contacto urbano é aquele do olhar, é a imagem da cidade sob a égide do olhar. Essa proteção
metodológica faz do flâneur um habitante da cidade que rumina a imagem urbana na solidão
do seu quarto quando revive, na memória, a lembrança de uma imagem, da visão passageira
resgatada, aprisionada no fluxo amorfo dos quilômetros das ruas percorridas. É o homem na
multidão que luta diante da linha evanescente que ainda persiste entre o espaço público e a
reserva da intimidade e, por isso, ainda pode surpreender-se, chocar-se ante a imagem urbana.
Não está condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação da
325
BAUDELAIRE, Charles. "À une passante". In Les fleurs du mal (Tableaux parisiens), Oevres complètes.
Paris: Gallimard, 1954.
326
BENJAMIN, Walter. Parigi capitale del XIX secolo. Turim: Einaudi. 1986, pp. 5 e segs. e pp. 543 e segs.
cidade pelo cidadão, essa doença a que, perplexos, assistimos corroer a imagem da metrópole
moderna.
A Paris do século XIX, que encanta Benjamin através de Baudelaire, é a cidade da
experiência urbana assumida e, por isso, torna-se a cidade rica que faz do poeta um
fisionomista da imagem urbana.
4. 7. A imagem urbana como reminiscência
A prudência metodológica, para não se perder na multidão e resgatar a imagem da
cidade que Benjamin capta no ócio baudelairiano, acaba por atingi-lo em outra vertente, no
fascínio com que se entrega à sedução urbana em inúmeras passagens da sua obra, mas,
sobretudo, em três textos básicos: Rua de mão única, Infância em Berlim e Imagens do
pensamento
327
.
A reminiscência de Benjamin, em lugar de ser de mão única, está, na verdade, na
contramão, porque busca reavivar não a lembrança do que foi perdido, mas acender a
curiosidade para saber por que foi perdido. Uma outra e estranha maneira de surpreender a
história da imagem urbana: uma história em que o coletivo e o individual se cruzam numa
avalanche alegórica, até não sabermos se a imagem é a da cidade ou a do crítico à procura de
um espaço perdido.
Desse cruzamento surge um método, ao mesmo tempo efetivo e cognitivo:
"Aquelas (rotas) que para os outros o desvios, são, para mim, os dados
que definem a minha rota. Eu baseio os meus cálculos nos diferenciais do tempo
que para os outros perturbam as 'grandes linhas' da pesquisa.(...) Este trabalho
deve desenvolver ao máximo grau a arte de citar sem aspas. A sua teoria está
intimamente relacionada com aquela da montagem (...) Nada tenho para dizer.
Apenas para mostrar"
328
.
As reflexões do adulto montadas sobre as reminiscências infantis desenvolvem uma
sensibilidade inteligente que garante a passagem da subjetividade impressionista à construção
327
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II.o Paulo: Brasiliense. 1987.
328
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. In Obras escolhidas II, São Paulo, Brasiliense, 1987. p.93.
de um lugar no espaço urbano: a rua de mão única, a rua Asja Lacis não é a justaposição de
casas e lojas, mas um lugar onde ecoam as vozes do passado, acordadas pelas lembranças e,
alegoricamente, representadas por detalhes e fragmentos:
"Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se
numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso,
o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto
seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia
tão nitidamente quanto um desfiladeiro. Essa arte, aprendi tardiamente; ela
tornou real o sonho cujos labirintos nos mata-borrões de meus cadernos foram os
primeiros vestígios. Não, não os primeiros, pois houve antes um labirinto que
sobreviveu a eles. O caminho a esse labirinto, onde não faltava sua Ariadne,
passava por sobre a ponte Bendler, cujo arco suave se tornou minha primeira
escarpa"
329
.
Pelo método da montagem de reminiscências, a cidade é percorrida como um livro
tridimensional em prontidão de linguagem onde o acúmulo de objetos, estátuas, passagens,
becos sem saída, publicidades, escritas verticais são semblantes realistas de um macrocosmo
social e ensinam pelo método mais direto, aquele da experiência. Apenas esse método, que
trabalha por dentro e através das sensações, permitiria que o intelectual criasse uma imagem
tão insólita de Paris, outra cidade que o atrai e fascina como cidade no espelho: "Pois sobre os
desnudos quais do Sena séculos se deitou a hera de folhas eruditas: Paris é um grande salão
de biblioteca atravessado pelo Sena"
330
.
As reminiscências, o método da montagem sem aspas e a prontidão da linguagem
fazem da imagem urbana de Benjamin um recorte de quadros e detalhes selecionados pela
memória e localizados alegoricamente; em conseqüência, temos uma imagem descentrada
fisicamente, porém concentrada de emoções. Não se pode saber onde está a realidade, se no
detalhe da cidade gerado por uma lembrança, ou na retórica com que se aprisiona uma emoção.
Na realidade, não se tem propriamente, em Benjamin, uma imagem urbana, mas a atenta
observação de quem procura descobrir o processo de percepção responsável pela geração
329
BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim por volta de 1900. In Obras escolhidas II, p. 73.
330
BENJAMIN, Walter. Imagens do pensamento. In Obras escolhidas II, p. 195.
daquela imagem descontínua, produzida aos saltos. Uma outra forma de escrever a história da
imagem urbana: dar aos locais a fisionomia capaz de torná-los significativos e legíveis.
4. 8. A imagem urbana como objeto
Conforme muitos diagnósticos conhecidos, a segunda metade do século XX sofre o
impacto de uma cultura e consumo de massa, possibilitados pelo acesso à informação, via
televisão, e ao produto, via um processo crescente e diversificado do mundo industrial e da
superprodução. Esta realidade traz conseqüências em todos os prismas da sociedade
contemporânea e a imagem da cidade apresenta os sinais inelutáveis desse desafio social.
A competitividade do capitalismo industrial projetando-se sobre a imagem cultural
urbana descaracteriza a cidade enquanto espaço público, na medida em que lhe tira todo caráter
próprio e declarado de expressão social através do espaço.
Como vimos, da cidade medieval até aquela do século XIX, encontramos definitivas
manifestações culturais que, ao socializarem o espaço, conferem-lhe as imagens que o apontam
como o lugar onde o indivíduo, ampliando-se no povo, na multidão, expressa, publicamente,
seus anseios, valores e crenças. A imagem atual da cidade esvazia-se das manifestações
culturais que tinham a multidão como personagem, e o indivíduo podia expressar, em público,
suas emoções urbanas. A imagem urbana esvaziou-se, na medida em que desaparece a sua
grande protagonista: a multidão. Esvaziou-se a imagem e, em conseqüência, alterou-se a
linguagem e o significado do espaço urbano.
A praça, a avenida, a multidão, enquanto expressões públicas da cidade, foram
substituídas pelas versões urbanas íntimas, demarca-se claramente o espaço individual
separando-o do coletivo e reivindica-se a demonstração sígnica dessa divisão em nome da
propriedade, da segurança, da tranqüilidade íntima e da livre expressão.
Nessa nova imagem urbana colidem o público e o privado, prevalecendo o segundo
sobre o primeiro na medida em que, agora, os espaços coletivos urbanos - praças, avenidas,
ruas, galerias, lojas, pavilhões - cedem lugar à habitação como espaço urbano da intimidade,
espaço vedado, seguramente protegido por portões, grades, muros - múltiplos signos de
vedação, o mundo da solidão, a casa como lugar onde nos escondemos.
Truncada definitivamente a imagem urbana da sociabilidade, os signos, agora, são
outros. Subtraindo-se à ansiedade e agressão que lhe causa qualquer contato público, o urbanita
de hoje refugia-se em esquemas de proteção.
Voltada para o interior da habitação, a imagem urbana nutre-se dos signos que a
distinguem e diversificam. Os objetos são motivos de conquista de uma luta diária, entendidos
como prolongamento, extensão das qualidades dos proprietários ou, mais ainda, a posse do
objeto como fator de nova e otimista compreensão do universo.
A crença no objeto ultrapassa seu caráter racional funcionalista e valoriza-se a
representação, a linguagem. Marx
331
chamou essa atração de "fetichismo das mercadorias",
uma espécie de religião ou de narcótico, e foi um, dentre muitos, que se impressionou com o
fato de se revestir coisas materiais com atributos sociais e afetivos, com sua fácil manifestação
em termos de massa e, sobretudo, com o seu resultado: uma inevitável homogeneização da
aparência.
Realmente, possuir os mesmos objetos passou a significar ser igual, atuar igual,
aparecer igual e, sobretudo, pensar igual: condição de defesa pessoal nas relações sociais
urbanas.
Daí decorrem duas conseqüências básicas. Em primeiro lugar, a presença dos mesmos
objetos não é responsável por aquela pasteurização, mas a posse dos mesmos objetos traz a
distinção e a segurança sociais. Essa recompensa passa a ser procurada compulsivamente e
331
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Portugal : Ed. Presença. 1974.
assume o caráter icônico da acumulação kitsch: do amontoado de objetos de porcelana ou vidro
até o eletroeletrônico de vários modelos, procedências e funções que conferem “aura” à feição
de obra de arte e, sobretudo, expostos nas indefectíveis estantes de madeira barata e desenho
duvidoso. O fetiche da mercadoria passa antes de tudo, pela posse e exibição dela.
Grandes perguntas decorrem dessa representação urbana: qual a razão desse caráter
antropológico dos objetos? O que teria levado o indivíduo a resgatar sua imagem pública pela
representação das suas posses? As respostas a estas duas questões nos levam à segunda
característica anunciada.
A imagem urbana desse final de século, dominada pela intimidade em detrimento da
exposição pública, é uma ficção. Na realidade, ainda é a aceitação pública que domina a vida
privada, é o reconhecimento de todos que determina a segurança individual. Daí a aparência, as
fachadas das habitações ou dos edifícios serem altamente reveladoras: as grades altas e
pontiagudas não estão como segurança e proteção, mas são signos do poder econômico e,
sobretudo, da propriedade, demarcam e exibem a divisão entre o público e o privado para que
se promova o ambicionado reconhecimento coletivo. A aceitação social passa pela exibição
dos bens particulares, grades e portões vedam para poder exibir e estão lado a lado com os
acabamentos decorativos.
A crença na posse do objeto e a necessidade de sua ostentação criam uma linguagem
que permite compreender as pessoas e a cidade: a posse dos objetos é uma nova consciência
de classe e a cidade é o seu altar: a posse do objeto transformado em quantidade codifica o
lugar de cada um e digitaliza, torna visível, tangível aquela demonstração de classe; essa
representação, essa linguagem é mais funcional do que o próprio objeto e varre todas as
classes, pois é possível encontrar o mesmo "fetiche das mercadorias" exposto, das mansões
de elite às habitações populares; agora, a classe é possuir ou não o objeto em grande
quantidade e modelos diferentes e atuais.
A posse do objeto tudo unifica e torna igual: espaços, habitações, pessoas,
personalidades e, paradoxalmente, a contraposição entre a vida privada e pública, mais que
separação, é a ostentação dos opostos como marca de uma nova imagem urbana que se elabora
pela aceitação dos valores individuais, exibidos para a consideração pública. E tudo ocorre
naturalmente, essa cultura da posse do objeto não causa espanto e o que parece estranho é
não aderir a ela.
A imagem urbana apoiada nos ícones da vida privada, acaba por desintegrar aquela
outra imagem que valorizava os espaços coletivos: a rua, a praça, o largo, a avenida; o uso da
cidade se transforma em rotina organizada pela pressa que automatiza e unifica todos os
lugares; perdem-se os pontos de referência, as marcas urbanas, os pontos de encontro.
Desintegra-se a cidade ou constatamos a sua velhice? Desaparece o cidadão ou surge o
usuário ausente da sua condição urbana? Pasteuriza-se a imagem urbana que nos impede de ver
e, sobretudo, de pensar?
Linguagem de linguagem, a imagem urbana é mediação para compreender o significado
das relações socioculturais na cidade, sua "sintaxe" se apóia na própria urbanização, isto é, a
imagem da cidade atual revela o momento crucial que ela atravessa: transforma-se o
significado da cidade ou seria ela descartável como os objetos e sua imagem passaria por
sucessiva e cada vez mais rápida substituição? Ou, ao contrário, essa imagem urbana apontaria,
apenas, para uma radical mudança? Da cidade do século XIX e início do século XX a sofrer os
primeiros impactos da metropolização, como as transformações introduzidas em Paris pelo
prefeito Haussman, à cidade de hoje, asfixiada pelo gigantismo da megalópole, encontramos
uma imagem urbana cada vez mais vulnerável e intrigante, na medida em que se descaracteriza
como espaço de uso coletivo, para tornar-se anônima, mas necessária. Essa imagem urbana não
é natural, mas esconde um desafio que exige resposta criativa.
4. 9. Cidades complexas
Marshall McLuhan sugeriu, em 1960, que o mundo inteiro iria se tornar, um dia,
uma "aldeia global", na qual todos os membros da humanidade poderiam interagir num
simulacro em tempo real de uma comunidade neolítica. Passados mais de 40 anos, a
presença das assim chamadas comunidades virtuais expressa, de certo modo, a realização
dessa profecia.
As imagens do futuro tecnológico apresentadas pela literatura e pelos filmes têm como
motor uma visão pós-apocalíptica da sociedade industrial e das grandes cidades, sugerindo
perspectivas pouco promissoras para as cidades contemporâneas. De fato, artistas, poetas,
romancistas e filósofos expressam sua preocupação com o futuro urbano.
Lewis Mumford
332
construiu a metáfora da cidade como "megamáquina moderna" para
expressar suas preocupações sobre as tendências observadas em cidades baseadas no
desenvolvimento de um sistema de gestão e administração "maquinal".
uma máquina enorme e irracional que ordena, organiza e controla
tudo o que pode [¼] como o Pentágono, a megamáquina é insensível à
informação, especialmente a informação da qualidade, que não é compatível
com o seu sistema e atrai especialistas, poder e dinheiro para fins que
ultrapassam os limites da razão humana. tem uma velocidade de
funcionamento mais rápido; um destino atrativo mais longe; um
tamanho desejável – maior; só um objetivo racional – mais"
333
.
A escala e complexidade propiciada por essa megamáquina moderna podem ser
percebidas em seus produtos, que incluem arranha-céus, reatores atômicos, terrenos
suburbanos sendo ocupados crescentemente, centros comerciais, aeroportos internacionais,
parques, shopping centers e tudo o mais que compõe a paisagem contemporânea.
Aquilo que deveria ser evidente não é, ou seja, em tal escala e complexidade, tudo o
que a compõe depende e resulta de conhecimentos técnicos e de níveis de organização
332
MUMFORD apud RELPH, Edward. A paisagem urbana moderna. Lisboa: Edições 70, 1990.
333
MUMFORD apud RELPH. Op.Cit., p. 120-21
sofisticados. De fato, essa percepção parece não ser imediata, quer porque a preocupação maior
esteja voltada à paisagem em si e não às suas origens, quer porque estejamos alienados com as
ilusões "imaginadas", conforme observa Edward Relph.
334
A maior preocupação dos urbanistas, planejadores e administradores tem se
voltado à cidade, ao território físico, mas suas propostas não alcançam aspectos
essenciais que dizem respeito à forma pela qual os habitantes de uma cidade vivem,
percebem e imaginam o espaço em que constroem suas vidas.
A sensibilidade dos filósofos, artistas e literatos talvez seja um bom caminho para se
apreender a cidade. Articulando ética e estética, são capazes de perceber outras formas de
sociabilidade, que remetem ao "direito à cidade", tal como Henri Lefebvre
335
definiu, em sua
utopia urbana.
Tais ‘leituras’ estabelecem a necessidade de se observar alguns elementos essenciais à
compreensão das cidades, que têm sido tratados, freqüentemente, de modo fragmentário. Uma
questão primordial diz respeito à forma de olhar a cidade que, longe de traduzir apenas
imagens parciais, revela "qualificações" do espaço urbano. Além de desvelar o imaginário
urbano presente em cada momento, um "olhar consciente" sobre a cidade permite a
identificação da relação entre esta e o próprio pensamento, entre o público e o privado, entre os
espaços da intimidade e os grandes espaços coletivos urbanos, entre a emergência de distintas
formas de sociabilidade e os signos que as sustentam, recuperando algumas das promessas de
nossa cultura.
334
RELPH, Edward. A paisagem urbana moderna. Lisboa: Edições 70, 1990. Edward Relph desenvolveu o
conceito de "imaginharia" como engenharia imaginativa da ilusão. É o mundo de Walt Disney, que capta o
verdadeiro caráter da criatividade apoiada técnica e cientificamente, que subjaz às ilusões da Segunda Idade da
Máquina. Embora mais concentrada em lugares como a Disneylândia, em produções televisivas e cenários de
filmes, a imaginharia ultrapassa esses limites, constituindo a base para a construção de aldeias-museu
cuidadosamente recriadas em seus pormenores, mas que omitem seus aspectos negativos. Exemplos disso são as
réplicas de colônias americanas como Pilgrim Fathers, em Massachusetts, as Habitações Históricas para o
Futuro, em Toronto e Kimberley, réplica de uma cidade de mineradores construída na Columbia Britânica.
335
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. o Paulo: Ed. Moraes,.1991.p.116-117. "O direito à cidade não pode
ser concebido como um direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. pode ser formulado como
direito à vida urbana, transformada, renovada"
Conforme aponta Richard Sennett
336
, ao procurar entender como os diversos aspectos
da experiência urbana em sua diferença, complexidade, estranheza sustentam a
sociabilidade humana em sua resistência à dominação.
"Se a cidade tem sido um locus de poder, cujos espaços tornaram-se
coerentes e completos à imagem do próprio homem, também tem sido nela que
essas imagens se estilhaçaram, no contexto de agrupamentos de pessoas
diferentes fator de intensificação da complexidade social e que se
apresentam umas às outras como estranhas
337
".
Considerando a cidade como "obra de arte" e não como mero artefato, Sennett
338
acredita que o desenvolvimento de um olhar consciente possa ser a fonte necessária para a
emergência e mobilização de energias criativas, tornando as pessoas visíveis e recuperando a
plenitude dos sentidos. Assumindo a consciência dos efeitos urbanos, a arte aponta e fornece
instrumentos de reflexão sobre o fenômeno urbano, que traduz por um vocabulário capaz de
descrever o que circunscreve as novas situações híbridas.
Outro aspecto importante volta-se à necessidade de se reinserir nas análises
da cidade a relação entre tempo e espaço, muitas vezes elidida. É importante, sem
dúvida, recuperar a dimensão "antropológica" do espaço, pois os seres humanos não
habitam somente um espaço físico ou geométrico, mas também afetivo, estético,
social, histórico. À arte cabe, talvez, o papel de identificar uma nova forma de refletir
sobre o urbano, colocando em foco a incerteza e o caos do momento atual.
É hora de trabalhar buscando correlações de identidade ou uma substância que articule
as pessoas, aos cidadãos, à comunidade. A definição do "agora" é fundamental para se estar
inserido na temporalidade presente, como forma de escapar às políticas que derivam de
projeções autoritárias de princípios universais das cidades dos sonhos. Essa é, também, uma
336
SENNETT, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997.
337
Ibidem, p.24.
338
SENNETT, Richard. The conscience of the eye. The design and social life of cities. Nova York: Norton.
1990.p.170.
questão de liberdade, que consiste, tal como aponta Foucault, numa reflexão crítica sobre o
presente.
Isso implica a necessidade de se enfatizar a multiplicidade de sentidos e significações
que o mundo urbano oferece. A resposta possível ao futuro das grandes cidades dirige-se a uma
questão fundamental em nossos dias: revitalizar o sentido das utopias, buscando as energias
criativas das manifestações artísticas e retomando o caráter instaurativo das imagens urbanas
como elemento fundamental. Em outros termos, pensar a cidade não a partir de perspectivas
dualistas, mas colocando em relação dialógica com a sensibilidade artística e a racionalidade
técnica.
Os conceitos de cidade como virtude (medieval); como vício (moderna),
situada entre um passado de trevas (a visão do Iluminismo) ou como traições de um
passado áureo (a visão antiindustrial), povoaram o imaginário humano na passagem
do século XIX ao XX. O lugar da cidade nesse imaginário só poderia ser salvo por
utopia ou projeto radical de volta ao passado ou de salto para o futuro.
Não obstante, ainda nesta passagem de século, o pensamento sobre a cidade
ainda se nutre de significados que reforçam as tensões, associando-as, tanto aos
demônios da natureza humana, com todas as suas perversidades e contradições
reais, como à idéia de cidades ideais.
Nas utopias urbanas contemporâneas, a cidade se transforma em um atributo atemporal,
refutando as bases de cem anos atrás, em que se assentavam as experiências urbanas sem, no
entanto, desvencilhar-se das ambigüidades então presentes naquele período. Recorrendo a Carl
Schorske
339
, pode-se afirmar que se "a cidade moderna oferecia um hic et nunc eterno, cujo
conteúdo era a transitoriedade, mas cuja transitoriedade era permanente", apresentando-se
"como uma sucessão de momentos variados, fugazes, e cada um deles deveria ser saboreado
em sua passagem da inexistência ao esquecimento"
340
, nas tecnotopias pós-modernas essa
transitoriedade é retomada como algo não apenas presente, mas desejável e algo inescapável.
Isso vem possibilitando a emergência de uma consciência que supera a
contraposição entre aquilo que é natural, o que é humano e o que é tecnológico.
Assim, o desenvolvimento da tecnologia, da natureza e da sociedade constituem
elementos fundantes de um projeto de cidade de cidadãos, que necessita um olhar
macroscópico, capaz de superar as disjunções entre lugar e não-lugar,
territorialização e desterritorialização, natureza e cultura.
Por outro lado, escapando às formas tradicionais do pensamento, as fontes artísticas
permitem não apenas captar a "imaginação poética", mas contribuir para a percepção do
imaginário urbano em sentido amplo, isto é, os complexos processos e as múltiplas
sociabilidades que a vida apresenta. E se a imaginação poética difere da imaginação
racionalista, isto ocorre, antes de tudo, porque a própria noção de espaço obedece a outras
regras. Ela é sensível à história dos diversos modos de mapear e representar o espaço de visão,
perspectiva, plano e representação, convenções cartográficas, da simultaneidade do cubismo,
das montagens cinemáticas, mas também aos diferentes modos da experiência subjetiva, em
seus aspectos psíquicos, de projeção e introjeção.
Quem não reconhece a Paris moderna nas telas de pintores impressionistas como
Manet, Monet, Renoir; ou São Petersburgo retratado nos textos de Dostoievski, ou ainda, a
Paris de Baudelaire, Londres de Dickens, a Nova York de Woody Allen? O olhar do artista, no
caso, de Pina Bausch, longe de traduzir apenas imagens fragmentárias, revela "qualificações"
do espaço urbano. A cidade surge como espaço de experiência polissensorial e dinâmica, a
partir de estruturas denotativas de sua estrutura mental, cultural e física.
339
SCHORSKE, Carl. Pensando com a história. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
340
Ibidem, p.67.
A metrópole representada, evocada ou reinventada pelos artistas, literatos e cineastas
desde o final do século XIX até nossos dias, suscita interpretações múltiplas e contraditórias,
revelando as metamorfoses profundas, as ameaças da civilização urbana, os modos de
apropriação material e simbólica, os elementos vitais do imaginário urbano, resultando em
imagens paradigmáticas.
Assim, o recurso à literatura, às artes cênicas, às artes plásticas e ao cinema permite um
processo de compreensão que evidencia uma forte correspondência entre a produção cultural e
as experiências e modos de subjetividade especificamente urbanos: a fragmentação, a falta de
profundidade, o caráter de dispersão, a instabilidade, a descontinuidade, a experiência do
tempo, o caráter espacial. Artistas, escritores e cineastas, como Pina Bausch, aparecem como
portadores de um pensamento e um conhecimento que sintetizam, simultaneamente, uma
realidade material e ideal. Sua atividade não pode ser reduzida à interpretação do espaço
urbano a partir de elementos visuais ou traços mnemônicos e imaginários, mas deve ser
percebida como experiência produzida por uma necessidade: "O que a produz é a necessidade,
para quem vive e opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida
a situação espacial em que opera"
341
.
Em síntese, as artes realizam o que Jameson denomina "mapeamento cognitivo"
342
,
constituindo imagens capazes de fornecer um sentido de tempo e de lugar a partir do qual se
constrói formas de compreensão da realidade cultural e sociopolítica que esta representa.
Ao olhar as grandes cidades, chamam a atenção o tráfego, as edificações, o
movimento das pessoas, as diferentes combinações de informações e signos que
341
ARGAN, G.C. La storia dell'arte. Milão: Einaudi, n.1-2, 1969. p.21
342
JAMENSON, Fredric. Espaço e imagem. Teoria do pós-modernismo e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ. 1995. p.14. Conforme Jameson: O autor constrói o conceito de mapeamento cognitivo reportando-se ao
pós-modernismo, atribuindo-lhe uma função política, na medida em que considera a efetividade do aparato
cultural do pós-modernismo como veículo de um novo tipo de hegemonia ideológica, por meio da exportação da
lógica consumista norte-americana, bem como de seus produtos e valores culturais, pelos instrumentos da
globalização. Tomo emprestado o conceito não como instrumento de despolitização, conforme o sentido
atribuído pelo autor, mas como instrumento de politização, isto é, como elemento instaurativo de estratégias de
representação e mapeamento da cidade, presentes nas formas e práticas urbanas.
permitem ao pensamento sociológico, político, econômico e cultural uma série de
associações. Em nível mais profundo, tem-se de reconhecer que tais associações
condensam um rigoroso espaço simbólico. Fala-se em estar na cidade, em percebê-
la e vivê-la não apenas porque vemos, ouvimos e sentimos, atribuindo significados a
seus espaços, mas porque ela própria se converte em categoria do pensamento e da
experiência.
que se pensar as formas pelas quais os ambientes são criados e recriados, tanto em
sua dimensão lógica quanto estética. Mas a cidade não pode ser pensada apenas como projeto,
espaço produzido, mas como um sistema aberto. Seus processos de desenvolvimento devem ser
percebidos, assim como os aspectos e lugares simbólicos da cultura. Quando o artista se
debruça sobre a memória coletiva, povoada por descontinuidades, desejos, sonhos, abre
caminho para alimentá-la quanto às prospectivas para o tempo que está por vir.
Ética, estética e política devem e podem caminhar juntas para pensar o viver a cidade.
Para isso torna-se condição necessária o reconhecimento da diferença, da singularidade e da
universalidade, fazendo emergir o jogo das temporalidades e das incertezas presentes no
contexto das metrópoles contemporâneas.
Pensar, apresentar cidades através da arte, é percebê-las no alargamento da imaginação,
que deve contribuir para a apropriação do tempo, do espaço, da vida e do desejo daqueles que
as habitam. A arte, ao fazer uma reflexão sobre a cidade, em perspectiva dialógica, pode
contribuir para apontar a emergência da realidade urbana, de formas de sociabilidade pautadas
pela apropriação e fruição de espaços e temporalidades múltiplas, reafirmando o direito à
cidade, à vida urbana.
"O direito à cidade não pode ser concebido como um direito de visita ou
de retorno às cidades tradicionais. pode ser formulado como direito à vida
urbana, transformada, renovada"
343
.
343
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes. 1991.p.116-117.
Se a cidade é um espaço simbólico no qual exercita-se a imaginação, é possível que ela
própria contribua com respostas para a definição de nosso ethos.
“De como estar 'em casa', num mundo no qual nossa identidade não é
dada, nosso estar junto está em questão, nosso destino é contingente e incerto: o
mundo da violência de nossa própria auto-instituição
344
".
4. 10. As práticas de espaço
“A imagem de uma cidade vista do alto de seu ponto culminante é a de
uma imensidão imóvel, que aquele que olha vê e lê. Do alto, de longe, pode-se ver
o conjunto, escapar do cotidiano e, à distância, ver a totalidade. (...) Ela permite
lê-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão escópica e
gnóstica. Ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber”
345
.
A partir desse ‘olhar’ a complexidade da cidade é transmutada em legibilidade, a vida
com suas trajetórias, ações, corpo e alma, redes de fazeres em permanente movimento, é
esquecida. De acordo com Michel de Certeau, o cotidiano da cidade, no qual tecem suas redes
de fazeres, onde vivem, agem, sentem , sofrem, amam, os seus 'praticantes ordinários' só existe
onde cessa esta visibilidade.
A cidade-panorama é um simulacro "teórico", ou seja, visual, que tem como condição
um esquecimento e um desconhecimento das práticas. A vida cotidiana na cidade é um
espaço/tempo de práticas invisíveis a este olhar totalizante, onde as multidões visíveis do alto,
desenvolvem táticas e usos através de práticas de espaço que remetem a uma forma específica
de "operações" - maneiras de fazer -, a uma outra espacialidade, não cartográfica ou
cartografável, mas poética, mítica, antropológica. As redes dessas escrituras avançando e
entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em
fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços. Em relação às suas representações, a
cidade permanece cotidianamente, indefinidamente, outra. Esta cidade-conceito de Certeau, se
define por uma tríplice operação de produção de um espaço próprio, de estabelecimento de um
não-tempo, e de criação de um sujeito universal e anônimo que é a própria cidade.
344
RAJCHMANN, J. Truth and Eros. Foucault, Lacan and question of Ethics. Londres: Routledge, 1991. p.48.
A alternativa para o desenvolvimento de um outro conhecimento da cidade exige o
traçar de um outro caminho. Cabe pensar e estudar não mais os processos de exercício do
poder e de disciplinamento - como o fez Foucault - mas as práticas de espaço que penetram nos
vazios das redes de ordem e de disciplina, que não são explicadas pelos modelos de sistema,
mas que tecem as condições determinantes da vida social.
O estudo a ser feito é, portanto, a respeito dos procedimentos - multiformes, resistentes,
astuciosos e teimosos - que escapam à disciplina, com o objetivo de chegar ao espaço vivido,
de uma inquietante familiaridade, o espaço-tempo do homem.
É essa prática de espaço, é esse espaço vivido que Pina Bausch observa e (re)apresenta.
É essa ‘personalidade’ urbana que motiva suas reflexões artísticas.
4. 11. Os espaços sociais
Michel de Certeau
346
trata os espaços sociais como instâncias mais abertas à
criatividade e à ação do homem. O andar sugere, define um espaço de enunciação. Aliás, o
autor estabelece uma distinção entre espaço e lugar. O lugar é a ordem, seja qual for, segundo a
qual se distribuem elementos nas relações de coexistência, excluindo a possibilidade de duas
coisas ocuparem o mesmo local. É o domínio do próprio, do estável. O espaço está para o lugar
como a palavra para a ngua. O espaço é o lugar praticado. Assim, a rua geometricamente
definida pelo urbanista é transformada em espaço pelos pedestres.
Merleau-Ponty
347
distinguia de um espaço geométrico - espacialidade homogênea e
isotrópica, análoga ao "lugar" de Certeau - uma outra espacialidade denominada espaço
antropológico, onde o espaço é existencial e a existência é espacial. Desse ponto de vista,
existiriam tantos espaços quantas experiências espaciais distintas.
345
Ibidem, p.105.
346
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996.
347
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.
A importância do retorno dos contatos corporais é enfatizada por Richard Sennett
348
,
afirmando que uma cidade é construída por diferentes tipos de homens e que pessoas iguais
não podem fazê-la existir. Em seu livro Carne e pedra, Sennett estabelece, a partir da Grécia
clássica, relações entre o espaço e as representações do corpo na ciência, na cultura e nas
interações sociais. Discordando de Michel Foucault sobre a perene relação de poder, propõe
um maior contato e solidariedade entre corpos comunicativos.
O arquiteto Paul Virilio
349
, a propósito das novas tecnologias e do mundo
globalizado, salienta a perda da inscrição espacial do corpo. Observa o autor que a questão
da corporeidade que nos toca a todos abrange três corpos: o corpo territorial do planeta e da
ecologia, o corpo social e, enfim, o corpo animal ou humano. Daí a necessidade de nos
situarmos em relação ao próprio corpo, em relação ao outro - a questão do próximo e da
alteridade - e, finalmente, em relação ao mundo.
O corpo próprio é aqui e agora, hic et nunc ele é in situ . A medicina e a biologia
perderam o monopólio do objeto corpo em proveito das ciências humanas que o revelam
trabalhado pelo inconsciente, a sexualidade, a linguagem, atravessado pelo imaginário, pelo
fantasmático e também construído pelo social, como produto de valores e crenças culturais.
Cada sociedade privilegia regras e rituais de interação, maneiras de gerir o corpo. O corpo,
como presença, ordena significações outras que a da linguagem falada. Os corpos são objetos
marcados pelas normas culturais e a leitura de suas articulações, de sua maior ou menor
proximidade, possibilita a compreensão da organização social.
4. 12. Caminhos, caminhares e representações
As motricidades dos pedestres formam um desses "sistemas reais cuja existência faz
efetivamente a cidade". São esses passos pela cidade, esses caminhos estipulados não pelo
348
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal. 1979.
349
VIRILIO, Paul. Estratégia da decepção. SP: Ed. Estação Liberdade. 2000.
arquiteto urbano, mas pelo homem que vive a cidade, que vão determinar essas redes. Elas não
se localizam, mas são elas que espacializam. Isso não impede, entretanto, que os processos de
caminhar sejam representados por traços e trajetórias em mapas.
Transformando o agir, os caminhos e caminhares, em leitura, a arte de Bausch aponta,
através da observação das especificidades das formas de agir, a maneira de estar no mundo.
Para isso, faz uso da lógica da prática, aquela que trabalha com os passos perdidos, que
não podem ser contados e a que não interessa contar, pois cada um é algo qualitativo. Não pode
usar o sabido, nem as leis, nem as regras e nem os processos. Cada lugar é um lugar, cada
cidade é uma história, é um ‘corpo’. É preciso buscar, criar uma nova organização do
pensamento, sentir esse ‘corpus’ urbano, e então hierarquizar, classificar, separar, recortar,
agrupar. É sempre um novo processo, já que estas práticas se estabelecem no próprio alheio,
com traços leves, murmúrios, formando tecidos, muitas vezes, pobremente trançados.
O caminhante, o homem, age sobre a ordem espacial organizada quando as multiplica,
desloca, reinventa. Pela criação de variações e de improvisações no uso que faz dos espaços,
cria uma organicidade móvel do ambiente, uma sucessão de 'topoi' fáticos
350
.
Ao selecionar os lugares por onde quer e vai passar, ou ao utilizar outros de modo não
convencional, o caminhante arrisca, transgride ou respeita os espaços, as trajetórias. Da mesma
forma, elas são produzidas de modo diverso por cada caminhante e esta é a razão pela qual não
é possível reduzi-la a um traçado gráfico que a poderia representar. A caminhada afirma, lança
suspeita, "fala".
Esta arte de moldar percursos implica e combina estilos e usos, que visam e definem
uma maneira de fazer pelo "tratamento singular do simbólico"
351
. As práticas de espaço
estabelecem, deste modo, relações com a ordem construída, inserindo-se em suas lacunas e nas
possibilidades de variação que comporta.
350
Ibidem, p.176.
351
Ibidem, p.179.
4. 13. A escrita corporal urbana
As sociedades ocidentais, nas relações interpessoais, escolheram a distância e, entre os
cinco sentidos, privilegiaram o olhar, relegando o olfato, o toque, a escuta e o gosto. Na vida
corrente, o lugar do corpo como carne é o do silêncio, da discrição, do apagamento e do
escamoteamento. Não se deve tocar o outro, salvo em casos previamente codificados (aperto de
mão, abraço); não se deve mostrar o corpo nu, salvo no médico ou na praia. É necessário
regular os contatos físicos, conservando, mesmo em lugares como o metrô em horas de muita
procura, uma distância entre os rostos, olhares e corpos. Assim, o homem ocidental tenta
apagar o corpo o máximo possível.
Em situações de proximidade - ônibus, sala de espera, elevador - o escamoteamento
do corpo aumenta e o olhar se ausenta para evitar constrangimentos. Quando tocamos
inadvertidamente um desconhecido, as desculpas metabolizam a transgressão do interdito.
Mesmo os ritos fortes da vida - luto, nascimento, doença - integram a emoção num campo
simbólico delimitado, evitando manifestações excessivas. Em certos casos, o embaraço da
situação é aliviado ritualmente pela indiferença, pelo humor que dissipa a vergonha ou pelo
riso que alivia o abuso.
Muitas vezes a quebra dos limites da etiqueta, seu desrespeito, quer ritualizar a tomada
do poder simbólico por uma das partes. Mesmo a mitologia da liberação recente do corpo não
modificou radicalmente os ritos de interação. Na vida corrente permanece o hábito de manter o
corpo no claro/escuro da presença ausente, salvo em ocasiões especiais como manifestações
esportivas e festas de um modo geral.
A pergunta a respeito do corpo fascina o imaginário contemporâneo. Mary Douglas
352
,
em Purity and Danger, sugere uma possível explicação para esse tipo de fenômeno na relação
entre o corpo e a estrutura social. Para a autora, o corpo é um modelo que pode dar apoio à
definição de qualquer sistema e seus limites podem representar fronteiras precárias ou
ameaçadas. Nesse sentido, temos de estar preparados para entender o corpo como símbolo da
sociedade e para vermos reproduzidos no próprio corpo, em uma escala menor, os perigos e
poderes creditados à estrutura social . Não dúvida, conforme aponta Mary Douglas, que o
corpo é utilizado como metáfora da sociedade como um todo.
O período pós-moderno das comunicações e da visualização em que vivemos torna
permeáveis as fronteiras dos antigos sistemas e as margens de nossa cultura, resultando num
grande interesse em definir os limites do corpo físico e do corpo social. Tal questão parece
ligada diretamente à problemática do poder e suas margens. As mudanças trazidas pela
tecnocracia abalam as relações binárias mente/corpo, cultura/corpo e cultura/natureza, exigindo
novas acomodações ou quebra das antigas categorias de identidade e alteridade.
A civilização ocidental se desenvolveu a partir da dicotomia do mesmo e do diferente e,
para lidar com a multiplicidade de culturas, procurou uma verdade transcendental que balizasse
seus referentes, garantindo uma epistemologia fundada nos princípios de perfeição,
estabilidade, permanência, unidade e racionalidade.
É notável a oscilação e a mudança que sofre esse paradigma quando se percorrem
exemplos registrados ao longo da história. Percebe-se que a desestruturação do logos, na tarefa
de sustentar o sentido de um centro e sua autoridade contra as margens, se espelhou e se
desdobrou no colapso do humano como categoria demarcada. Para a filosofia modernista, não
interessava a substância corpórea como tal, mas a instância abstrata, lugar fundador do
conhecimento. O corpo mesmo deveria ser transcendido, banido. O humano se confundia com
o possuidor do sentido do self, como um sujeito contínuo com suas experiências. O colapso
dessa visão humanista que normalmente identificava o sujeito com o sexo masculino, nos tocou
a todos.
352
DOUGLAS. Op.cit.
Para Mikhail Bakhtin
353
, os corpos modernos são caracterizados por sua aparência
acabada e diferem dos modelos rabelaisianos por terem se abstraído da relação direta com a
vida social e o cosmo como um todo. Os corpos do Iluminismo assumiram uma mesma
unidade, evitando os sinais de dualidade ou paradoxalidade: a morte separa-se do nascimento; a
velhice, da juventude. Para o moderno, é o outro que precisa ser excluído para poder manter
seus limites. O outro é o que ameaça pela sua diferença e deve ser nomeado como tal.
Na modernidade, uma política de identidade e diferença garante as margens de
segurança e de perigo. O diferente precisa ser colocado fora das fronteiras: negros,
estrangeiros, animais, classes inferiores, doentes e mulheres. São corpos considerados
ameaças à norma, significantes transgressores. Numa tradição datada pelo menos dos
parâmetros pitagóricos, o corpo masculino foi associado ao limite e o feminino ao sem
limite, evidenciado na gravidez, lactação, menstruação. As mulheres estavam fora de
controle, imprevisíveis, vazadas: monstruosas.
No final do século XX somos todos quimeras, híbridos, teorizados e fabricados como
máquina e organismo. Na tradição da política e da ciência ocidentais - do capitalismo racista
comandado pelos homens, passando pela ideologia do progresso, pela apropriação da natureza
para produção de cultura, pela reprodução do eu a partir dos reflexos do outro - as relações
humanas têm sido uma guerra de fronteiras.
Numa perspectiva não-naturalista e pós-moderna, imagina-se utopicamente um mundo
sem gênero, um universo sem gênese que pode ser um mundo sem fim. Ele não se define na
oposição entre público e privado, mas numa polis parcialmente baseada na revolução das
relações sociais.
A imagem corporal, no teatro, disputa hoje com a hegemonia da palavra a preferência
de diretores como, por exemplo, no Brasil, Moacyr Góes, Gabriel Villela, Denise Stocklos e
Gerald Thomas, fazendo com que, freqüentemente, as fronteiras entre a cena dramatúrgica e a
353
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: HUCITEC,1998.
circense desapareçam por completo. Nas artes plásticas, sobretudo a body art é representativa
dessa estratégia como indistinção de fronteiras na criação de um estilo corporal mais intenso.
Em meio à discussão entre humanismo e pós-humanismo, pergunta-se se a tão aludida
valorização do corpo no rompimento de todos os seus limites o libera realmente ou se apenas
vive-se tempos de hiperbolização das disciplinas foucaultianas.
Nas configurações discursivas e corporais que deslocam o humano, o humanismo e as
humanidades, está a escrita de Pina Bausch, apontando em representações, tornando inteligível
muito do que realmente nos interessa e que evitamos reconhecer. Não lhe interessa,
propriamente, o "pós" do pós-humano no sentido de positivar algum desenvolvimento
subseqüente, mas o seu colapso em sub - inter - infra - trans - pré - anti, num compromisso com
o mundo e com a multiplicidade.
Ao contrário do que possa parecer, os corpos bauschianos não são escravos das grandes
narrativas, mas emergem onde corpos de discurso e discursos de corpos se enlaçam para
impedir qualquer distinção fácil entre ator e palco, emissor e receptor, canal, código,
mensagem e contexto.
A corporificação humana não tem um lugar fixo num corpo reificado de mulher ou
outro. O corpo bauschiano é causa e efeito das relações pós-modernas de poder e prazer,
virtualidade e realidade, sexo e suas conseqüências. O corpo é uma tecnologia, uma tela, uma
imagem projetada; é um corpo sob o signo da Aids, um corpo contaminado, um tecnobody um
queer body, um corpo fílmico, virtual.
A desmaterialização do corpo pós-moderno, as desconformidades do apelo ao grotesco,
as formas híbridas e protéticas do contemporâneo são, desta forma, manifestações da quebra
dos limites da espacialidade corporal da modernidade e apelam para um repensar o imaginário
em suas formas. É dentro desse contexto que está a escritura corporal do tanztheater de Pina
Bausch. Impossível negar-se a influência de uma Alemanha pós-holocausto, impossível não se
perceber em sua obra o caos do século XX.
Eminentemente urbana, é essa sociedade em decadência, feita de erros, guerras e
desumanização, que se faz tema em Bausch. A cidade é a grande protagonista, envolvendo e
determinando as relações.
As práticas cotidianas indicam uma 'historicidade' social na qual os sistemas de
representações ou os procedimentos não aparecem mais como quadros normativos, mas
como instrumentos manipuláveis.
Há "maneiras de fazer" - caminhar, ler, produzir, falar -, "maneiras de utilizar"
354
que se
tecem em redes de ações reais, que não são e não poderiam ser mera repetição de uma ordem
social preestabelecida. A tessitura das redes de práticas sociais reais se através de usos e
táticas dos praticantes, que inserem na estrutura social criatividade e pluralidade. São
modificadores das regras e das relações entre o suposto poder das estruturas e a vida dos que a
ele estão, supostamente, submetidos.
As noções de 'estratégias' e 'táticas' construídas por Michael de Certeau
355
situam-se na base da construção de um novo modelo de compreensão da realidade
social e das ações que nela são desenvolvidas, de um lado, pelo sistema e, de outro
lado, pelos sujeitos 'praticantes' em sua vida cotidiana.
Sem lugar próprio, sem visão globalizante comandada pelos acasos do tempo, a tática é
determinada pela 'ausência de poder' assim como a estratégia é organizada pelo postulado de
um poder.
356
As estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um lugar de poder,
elaboram lugares teóricos sistemas e discursos totalizadores -, capazes de articular um
354
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996.
355
Idem.
356
CERTEAU, Michel de. Op. Cit. p.101.
conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Privilegiam, portanto as relações
espaciais.
as táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo. São
circunstâncias em que a precisão de uma intervenção transforma a situação em favorável. Diz
respeito à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre
momentos sucessivos, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos.
357
A partir desses entendimentos, abrem-se espaços para a expressão e compreensão das
táticas e práticas, que vem a ser a pesquisa do/no cotidiano, que permeia o tanztheater de Pina
Bausch.
4. 14. O mundo como espectáculo e a cidade espectacular
A partir da segunda metade do século XX, começamos a assistir a uma
descontextualização/recontextualização pelas formas de compressão espaço-temporal em
heterotopias
358
espetaculares. O espetáculo, extensão do palco e depois do ecrã, é o signo
descontextualizador que se tem vindo a sobrepor ao organismo. O espetáculo é, de fato, o
resultado do esvaziamento do tempo e do espaço da subsequente constituição de cronotopos,
ou seja, de nexos privilegiados em que unidades temporais se cruzam com unidades espaciais.
357
Ibidem, p.102
358
s-modernidade apresenta maneiras novas de pensar sobre tudo, e não é diferente com as idéias sobre o
espaço. Essa é a idéia das heterotopias. Foi publicada na Arquitetura Mouvement Continuité, revista francesa, em
1986, um ensaio escrito por Michel Foucault nos anos 60. Nele Foucault inventou a noção das heterotopias --
outros espaços sociais diferenciados. As idéias que apresentou deram forma e base às escritas contemporâneas
sobre a natureza do espaço. A Internet pode ser o espaço pós-moderno arquetípico, assim como é útil a idéia das
heterotopias para considerar o Cyberspace. Em seu ensaio, Foucault contrastou sua noção de Utopia – concepção
idealizada da sociedade, impossível de localizar na realidade -- com a idéia das heterotopias, estas sugerindo
outros espaços sociais construídos pelos moradores locais.
Foucault apresentou exemplos das heterotopias, e um jogo dos princípios que governam sua existência; um tipo
de heterotopologia. Sugeriu que cada cultura humana é composta por heterotopias e, em sua descrição, persistem
implícitas as oposições sociais, morais e políticas. Generalizou inicialmente dois tipos de heterotopias.
heterotopias da crise, tais como a escola ou o serviço militar, e as heterotopias da separação, tais como repousos
em clínicas, ou das prisões, onde aqueles considerados anormais poderiam ser isolados.
As cidades constróem, cada vez mais, uma determinada imagística em que uma cidade
imaginária adere a uma cidade vivida em função da introjeção e projeção de figuras
estruturais ou conjunturais como as de “cidade histórica”; “cidade-museu”; “cidade
universitária”; “capital do gótico”; “cidade do futuro”; “capital da cultura”.
A cidade pensada e praticada segundo o princípio do espetáculo implica uma mudança
na política da diferença. Tornava-se necessária uma nova política adequada a um novo
paradigma socioespacial em emergência.
A sociedade moderna atinge o seu limite com a globalização, ideológica sem dúvida,
mas também econômica, tecnológica, cultural e política. As regiões internacionais antes
concebidas como centrais deram lugar às cidades mundiais que passam a ter funções centrais,
mesclando-se assim a centralidade e a periferia. As cidades industriais transformaram-se em
metrópoles, em regiões urbanas polinucleadas, deixando também aí, cada vez mais, de ter
sentido uma rígida diferenciação entre centro e periferia.
É esta deslocalização da noção de centro e de periferia que a metáfora do espetáculo
utiliza para transformar qualquer aqui e agora num palco hiper-real e espetacular que se torne
centro do mundo.
Todos os locais parecem constituir-se como potenciais nexos espaço-temporais do
programa de sedução-espectáculo / consumo-resgate e é essa potencialidade que a cidade-
espetáculo vai gerindo, que Pina Bausch questiona e reflexiona em seu tanztheater.
4. 15. Cidades e seu imaginário
O interesse pelas cidades e seu imaginário se inscreve numa linha de preocupações
que marca o final do século XX, século por excelência da afirmação do urbano. Ler as
representações da cidade contemporânea, percebendo a utopia em ruína e os traços infernais
das megalópoles em que se vive, faz parte da operação poética de muitos artistas.
As artes, filhas desse tempo de subtração dessas certezas, são também filhas das
megalópoles que põem em questão a própria concepção de urbano arquitetada pelo mundo
moderno. De tema privilegiado pelos modernos, a cidade torna-se problema. Constitui-se
elemento forte da pauta das questões pós-modernas, quando se constata que a era das cidades
ideais caiu por terra
359
. Observa-se o momento em que o mundo se torna eminentemente
urbano; em que se agudizam as tensões entre o local e o global; em que se desestabilizam as
marcas identitárias; em que as relações sociais parecem mais desterritorializadas; em que o
fato social se mistura com o estético
360
.
O olhar plural, nesse momento, procura representar a experiência urbana da
contemporaneidade, considerando o espaço urbano como o lugar privilegiado de intercâmbio
material e simbólico do habitante.
O sujeito que e interpreta as cidades faz-se um detetive de subtrações, de ausências.
Subtrai das narrativas urbanas a idéia de utopia, a visão una, organizada e totalizante do país,
a cidade compartilhada, as marcas identitárias exclusivas e singulares da própria cidade, e de
homens, e mulheres nesse espaço plural e fragmentário.
Paradigmáticas neste sentido são as obras de Pina Bausch que têm as cidades como
personagem protagonista. Esgotar a possibilidade da cena ainda sobrecarregada de sentido
parece ser traço marcante de suas narrativas urbanas.
Ela, a cidade, personagem secundária da vida, vê-se de repente no centro das atenções.
Transforma-se em espetáculo, hipótese a ser investigada. É esta hipótese que Pina Bausch
explora, numa espécie de polifonia que toma a personagem-cidade como objeto de pesquisa.
Na impossibilidade de ser sujeito, a personagem que não tem fala, é falada pelo
discurso dos outros, pelos desdobramentos do discurso do narrador.
359
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:
Cotez, 1996.
360
Idem.
Bausch parece querer demonstrar que a verdade da cidade é uma construção discursiva
da multiplicidade de vozes que circulam pelo espaço, inclusive a dos espectadores anônimos
que se divertem com o espetáculo do cotidiano.
Sem abolir a aparência de uma significação em cena, as obras de Bausch apontam para
um paradoxo: como a protagonista requer uma legibilidade, uma carga semântica
diferenciada, é como se estivesse a reinstaurar sua significação.
A promessa de significação se concretiza quando apresenta a cidade enquanto “teatro
de uma guerra de relatos”
361
levantando um repertório de temas contemporâneos: a
proliferação das diversas formas de violência atreladas à cultura do medo, as relações de
poder, a cidade da memória e a memória da cidade que se tece com o tema da nostalgia de
uma cidade mítica perdida e a impossibilidade de resgate na cidade atual.
São as relações do universo mítico com o urbano, que Bausch abre à contemplação e
reflexão. Pina Bausch apreende e expõe elementos da vida da metrópole, momentos em que o
indivíduo se excluído do convívio humano e sem possibilidade de comunicação com seus
pares. Na cidade-solidão da ficção de Bausch, as relações de espaço-tempo, tornam-se
opressivas, no percurso de personagens sem nome e sem futuro, marcados pela ausência de
respostas, pela impossibilidade da linguagem e da fabulação.
Esses temas apontam semanticamente para a subtração: o tanztheater fala de ausências
e perdas, daquilo que busca pela memória, com certeza o mais forte elemento articulador dos
temas urbanos, que se encaminha para outra questão básica que Bausch dramatiza: até que
ponto ainda, em tempos pós-utópicos da crise dos grandes paradigmas ideológicos, é a
memória que oferece identidade à cidade e aos homens.
Os percursos de seus personagens em seus deslocamentos no espaço narrativo abrem
possibilidades de veios múltiplos na tessitura dos relatos, que possibilitam verificar sua
significação.
Assim, o próprio espectador-leitor pode investir-se da máscara discursiva de um
“detector de ausências”
362
, que aí formula: “A arte na cidade contemporânea só pode aludir ao
que ali nos escapa, ao que ali não tem lugar”
363
. É por esse viés que tais narrativas dão
destaque ao papel fundamental atribuído à memória, que abre caminho à atualização da
temática da “nostalgia”, realizada plenamente em seu belo sentido etimológico: a dor da
perda.
Perda, ausências, subtrações, que fazem desembocar em “distopia”: lugar, estado ou
situação hipotética, em que as condições e as qualidades de vida são penosas
364
. Ao lado da
memória, a distopia estabelece um código comum que possibilita articular os textos de
Bausch. Nostalgia/ distopia são um binômio que marca outra tendência da ficção
contemporânea, que se alimenta, romanticamente, da nostalgia projetada num passado
idealizado, quando os mitos se desgastam, no momento em que se sabe que a era dos ideais
caiu por terra.
A narrativa quer desentranhar do presente, resíduos de significados de uma cidade
perdida, de uma cena que foi sendo esgotada pela corrosão. Enquanto anda e olha, cada
bailarino registra a cidade polifônica em sua superfície chapada. Cidade dividida, não-
compartilhada e perversa. Bausch enfoca a corrosão do diálogo, a perda dos referenciais de
sua cartografia afetiva, a violência da destruição da memória da cidade mítica.
Em seu projeto de articular o texto, a cidade e a memória, o escritor andarilho percebe
a perda da alma encantadora. Deseja, em seu processo de escrita redescobri-la, reinventar-lhe
uma cena legível, com todas as promessas de significação. Tenta resistir nostalgicamente ao
estilhaçamento da cena; quer recuperar o enraizamento na cidade de sua origem, num
momento em que tudo é previamente dado, exposto em visibilidade total. O projeto de Bausch
361
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1997.
362
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: SENAC: Marca D’Água, 1996.Título de uma
instalação do artista Rubens Mano, analisada no livro.
363
Ibidem.
mantém simultaneamente o tom nostálgico e a desilusão pós-utópica, ao alimentar o desejo de
tornar legível o espaço urbano, salvando em sua escrita as promessas de significação que a
cena pós-moderna permite.
É por esta ótica que a cidade e suas representações na dança-teatro de Bausch, não são
meros reflexos especulares da realidade representada, mas condicionam escolhas estilísticas e
temáticas. Seu trabalho permite perceber claramente que “não se deve confundir a cidade com
o discurso que a descreve, ainda que haja uma relação entre eles” como disse Ítalo
Calvino
365
. A realidade urbana construída deriva da grande cidade moderna, mas deságua no
domínio do não-lugar
366
: cidades sem face, sem nome, rarefeitas, que se podem tornar toda e
qualquer uma.
Essas narrativas contextualizam-se numa época em que, contraditoriamente, as cidades
voltam a pensar em si mesmas, quando se deseja reverter à decadência de centros urbanos
com a recuperação do papel das cidades, que o italiano Aldo Bonini chamou de “renascimento
das cidades”
367
, quando ganha força a noção de multiculturalidade, ou seja, a coexistência de
múltiplas culturas urbanas no espaço que chamamos, todavia de urbano.
É neste estado de coisas que tais narrativas, constroem o cenário das cidades como
espaço público e arena cultural. Ao mesmo tempo em que revelam, permitem detectar que a
cidade determina o cotidiano, forma aos quadros de vida e é o presente turbulento, de
velhos medos
368
.
Estar nela, ou procurar lê-la através de ‘escrituras’ que a leram, é engendrar respostas
para o processo de autodescoberta de cada um. É justamente a alma mítica das cidades, com
364
Como consta no Dicionário Webster.1990.
365
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
366
SHARPE, William & WALLOCK, Leonard. From ‘great town’to ‘nonplace urban realm’: reading tha
modern city”. In: Visions of modern city: essays in history, art and literature. Baltimore: London: The John
Hopkins University Press, 1987.
367
Apud CANCLINI, Néstor García. Imaginarios urbanos. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos
Aires, 1997.p.39.
368
BARRÉ, François. “Préface”. In: DETHIER, Jean & GUIEUX, Alain (org.). La ville, art et architecture en
Europe, 1970-1993. Paris: Centre George Pompidou, 1994.
seus encantos e problemas, que se expressam no desejo de seus habitantes, a fonte poética que
alimenta e conduz Pina Bausch, em cada uma de suas obras que têm a cidade como
protagonista.
4. 16. A cidade por Pina Bausch
“Cidades são como pessoas, é preciso se apaixonar para descobri-las”
369
.
É assim que Pina Bausch fala sobre o tipo de produção que inaugurou em 1986, ao
aceitar um convite do Teatro Argentina para criar um espetáculo sobre Roma. Viktor viria a
ser apenas a primeira de suas declarações de amor àquela cidade, complementada 12 anos
mais tarde com O Dido, a segunda co-produção sobre Roma.
Em 1980, o Tanztheater de Wuppertal teve cortes no orçamento. Para suprir esses
cortes, foi necessário arranjar co-produtores para os espetáculos. O projeto das residências foi
a solução encontrada e deu tão certo que passou a fazer parte do planejamento da companhia.
A cada um ou dois anos, é feita uma residência em um lugar e dela resulta uma
coreografia. O repertório é vasto, tem início com Bandoneon, inspirado na cidade de Buenos
Aires (1980), porém Bandoneon não foi uma co-produção, e continua em seqüência, em peças
inspiradas em cidades-países: Viktor (Roma, 1986), Palermo, Palermo (Itália, 1989),
Tanzabend II (Madri, Espanha, 1991), Ein Trauerspiel (Viena, 1994), Nur Du (Estados
Unidos, 1996), Der Fensterputzer (O Limpador de Vidraças - Hong Kong, 1997), Masurca
Fogo (Lisboa, Portugal, 1998), O Dido (Roma, 1999), Wiesenland (Budapeste, 2000), Água
(Brasil, 2001), Nefés (Turquia, 2003), Ten Chi (Tóquio, 2004), Rough Cut (Seul, 2005).
O método é simples e se repete em todas as cidades eleitas. Conta Regina Advento,
bailarina brasileira, integrante da companhia de Bausch, da experiência com a peça Masurca
Fogo. Masurca Fogo é um espetáculo que lida justamente com esse contraste de ritmos e
gestos. O cenário conta com enormes rochas vulcânicas, inspirado na Ilha do Fogo, no
arquipélago de Cabo Verde, onde a dança tradicional é a masurca - daí o nome. No começo de
1998, a companhia esteve na ilha, depois rumaram para Lisboa, onde passaram três semanas.
Percorreram a capital portuguesa colhendo impressões e material de pesquisa.
"Saímos pela cidade em busca de algo que nos parece comum, dessa
forma, cada um captou uma coisa em Lisboa e Pina reuniu em uma coreografia.
O público poderá entrar em conexão com vários aspectos de Masurca. A obra é
alegre e otimista, fala sobre o amor e a sensualidade. Também, durante o
processo de criação, houve uma passagem pelo Brasil, que resultou na escolha
de uma valsa de Radamés Gnatalli e um samba de Baden Powell para compor a
trilha sonora que ainda conta com fados de Amália Rodrigues e Alfredo
Marceneiro, músicas típicas de Cabo Verde.”
370
Quando recebeu o segundo convite do Teatro Argentino para outra criação sobre
Roma, conta que titubeou:
"A questão que eu me colocava era se eu teria ou não alguma outra
chance de me apaixonar de forma diferente pelo mesmo lugar e aceitei porque
percebi que é exatamente isso que sempre acontece com todos nós, que muitas
e não apenas duas maneiras de sentir os lugares porque eles são organismos
vivos tal qual pessoas, com quem podemos levar uma vida inteira sem esgotar as
descobertas."
371
Mas há algo mais que a interessa dos lugares, são as pessoas :
"Não são as paisagens e sim as pessoas dessas paisagens que me atraem
porque são as paisagens dentro dessas pessoas que contam como material para
a pesquisa que desenvolvo".
372
Além das pessoas, também os animais. muitos deles espalhados em vários de seus
espetáculos. Em Masurca Fogo, além do leão-marinho (encarnado por um bailarino) e sua
voz (gravada), há os flamingos e os búfalos em vídeo e uma galinha ao vivo.
"Claro que a natureza me interessa e eu adoraria ter tempo para ir a
muitos desses lugares privilegiados, mas o meu material de trabalho básico são
as pessoas, tanto na rua quanto dentro da minha companhia, esse é meu foco."
373
369
KATZ, Helena. Pina Bausch coreógrafa. Jornal da Tarde.SP, 15 de dezembro de 2000. p. 15
370
DUNDER, Karla. Pina Bausch traz Masurca Fogo ao Brasil. Revista Marie Claire. Nº 117. Dezembro.
2000.p.46.
371
KATZ, Helena. Pina Bausch coreógrafa. Jornal da Tarde.SP, 15 de dezembro de 2000. p. 15
372
DUNDER, Karla. Op.Cit.p.46.
373
Ibidem.
Ela criou obras para Roma, Palermo, Madri, Viena, Estados Unidos, Hong Kong,
Lisboa.
"As questões centrais dos seres humanos não variam tanto assim de lugar
para lugar, mas, de fato, algo no modo como elas são enunciadas nas pessoas
que ganha cor local. O mais curioso é que essa particularidade também não é
uma só, partilhada igualmente por todos, e sim, ao contrário, embora preserve
algo que nos permite identificá-la nos diferentes modos como se expressa em
cada um. Tenho tido o privilégio de encontrar pessoas tão especiais ao longo
destes anos, que fica difícil concordar que elas são especiais por serem dos
lugares onde as encontrei. Vejo que nelas, que pertencem a lugares os mais
estranhos um ao outro, algo de semelhante, como se o muito particular, aquilo
pelo qual nós nos distinguimos de todos os outros, fosse também aquilo que nos
une a eles."
374
Acreditando que os lugares ganham identidade por intermédio das pessoas que
estão, Pina Bausch assume a temática do urbano e dos corpos quotidianos em suas montagens.
Interessa a ela ir ao lugar, perceber as pessoas que lá estão.
"Eu acredito que as formas de contato pessoais, presenciais, as que
dependem fundamentalmente da afetividade, vão sobreviver e proliferar com
mais qualidade, embora pareça que tudo será virtual num futuro bem próximo
porque, na verdade, estamos apenas no início de algo que ainda não sabemos
direito como vai nos modificar e que, embora pareça muito desenvolvido e
consolidado, ainda é ralo."
375
Seu modo peculiar de tentar compreender o urbano de cada um tem porém um fator
comum, que ela crê como universal: a busca eterna da felicidade, do amor.
"Tudo o que fiz e faço acontece porque acredito que o que modifica as
pessoas e o mundo, aquilo que é capaz de nos mover é o amor e caso não
acreditasse profundamente nisso e no fato de que a dança é capaz de comunicar
essa crença, não poderia ter feito nem tampouco fazer o que faço."
376
Assim, a Lisboa de Masurca Fogo não é feita de fados, mas de valsas brasileiras de
Radamés Gnatalli, percussão de Baden Powell, Marcos Suzano, misturadas com K.D.Lang,
música de Cabo Verde, Duke Ellington, Lisa Ekdahl, Ben Webster e mais Tupi Nago, Vince
Guaraldi, Mecca Bodega, Quarteto Alexander Balanescu, Nicolette, música de tambores
portugueses de Rui Jr., um tango com Gidon Kremer e, é claro, dois fados de Amália e
374
KATZ, Helena. Pina Bausch coreógrafa. Jornal da Tarde.SP, 15 de dezembro de 2000. p. 15
375
Ibidem.
Alfredo Marceneiro. Assim como todas essas sonoridades se auto-organizam como Lisboa, as
pessoalidades dos intérpretes dessa companhia conservam seus traços e, ao mesmo tempo,
produzem uma textura que traz a assinatura de Pina Bausch.
Como encontramos o Brasil dentro de Masurca Fogo, pode ser que venhamos a
descobrir a África que ainda temos ou somos pelos olhos de Pina Bausch. Ela confia no acaso.
Sobre Água, coreografada depois da residência no Brasil, Salvador, Rio de Janeiro e São
Paulo, comenta: "Nunca estive na África e encaro Salvador como a minha introdução
também a esse outro lugar que, por enquanto, é um vazio para mim."
377
Não se trata de uma edição autoral de materiais também autorais, mas de outro tipo de
organização. Para entender melhor isso, vale prestar atenção no cenário de Peter Pabst, que
ocupa boa parte do espaço do palco, em Masurca Fogo, com um relevo vulcânico cuspido por
uma arquitetura que entende a sua função como a de criar e não como a de organizar os
espaços. Explica Peter Pabst:
"Existem dois cenários prontos, um com o tamanho do palco de Portugal,
onde estreamos, que foi trazido ao Brasil, e um outro, menor, com o tamanho do
nosso palco de Wuppertal"
378
O modo suave e carinhoso de tratar as pessoas, a intensidade do olhar de Pina Bausch,
com que cerca qualquer interlocutor, talvez espantem quem busca uma encarnação do mundo
povoado de dificuldades com que tem nos abastecido com seus espetáculos. Mas esta
qualidade da sua atenção é responsável por suas singulares e mágicas leituras das ‘cidades’,
que apresenta em suas obras.
"Lembro da vez que estávamos na Índia e que paramos numa praça e, de
repente, surgiram algumas meninas vestidas de branco e segurando velas, numa
espécie de procissão que ia parando para dançar de casa em casa. Simplesmente
fomos atrás dela, como se fosse a coisa mais natural do mundo aquilo acontecer
naquele lugar e àquela hora, tarde da noite, e andamos por cerca de três horas
com eles, atravessando lugares e seguindo juntos e essa aparição poderosa que
nos arrebatou representa um pouco aquilo que busco quando exploro um lugar e
376
Ibidem.
377
KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal da Tarde.SP, 7 de maio de 2001. p. 7.
378
DUNDER, Karla. Op.Cit.p.46.
que é basicamente, contar com a chance de encontrar o que não está na
superfície, mas que justamente nos permite rasgá-la."
379
E completa, explicando seu conceito de cidade:
"As cidades são como cebolas, feitas de camadas que se ligam e que podem
ser abordadas de vários pontos distintos. Mesmo quando se permanece no mesmo
anel dessa cebola, sempre se aquilo que fica ao redor a partir de um lugar
diferente porque, como o ser humano está sempre se modificando, isso permite que
quando se volta ao mesmo lugar, ele não seja mais o mesmo."
380
E nessas cidades, em camadas que se interpenetram, estão os corpos, corpos pós-
holocausto, pós-tecnos, pós-humanos. Corpos que se transformam sem que se perceba, como
atingidos pela radiação de um mundo em decomposição, ou irradiação de um mundo mítico
ancestral.
379
Ibidem.
380
Ibidem.
CAPÍTULO 5
O LAMENTO DA IMPERATRIZ:
UM PERCURSO DE IDENTIDADES MÍTICAS
5. 1. O Pensamento Simbólico
Ao mostrar que o pensamento simbólico é uma dádiva que permeia toda a vida humana,
plasmando, desde a Antigüidade, o modo como o homem compreende a si mesmo e ao mundo,
Carl Gustav Jung
381
trouxe de volta ao mundo científico, através de sua leitura da psique,
fontes que, por força de um enfoque por demais racionalista das ciências humanas, haviam sido
relegadas a um plano inferior, como os mitos, os contos de fada, as fábulas. Dentro desse
contexto, é inegável toda a relevância dada ao símbolo, enquanto fruto da psique.
Contudo, o que caracteriza uma determinada imagem como simbólica? O que diferencia
o mbolo das demais figuras, tais como, signo, emblema? Cumpre, portanto, ir mais a fundo
sobre estes pontos mostrando as demais figuras de representação, o que significam, para poder
voltar ao símbolo em si, enfatizando sua origem, seu significado e aquilo a que se presta dentro
do campo artístico. Dentro de uma abordagem terminológica, “se na prática nem sempre são
claras as fronteiras entre os valores destas imagens, esta é uma razão suplementar para
assinalá-las fortemente na teoria” "
382
.
Uma das figuras de representação, o emblema, é uma figura visível que dentro de um
certo contexto passa a ser representação de uma certa idéia. Outra, o atributo, corresponde a
uma realidade ou imagem que é escolhida para caracterizar e distinguir um personagem ou uma
coletividade: a balança, por exemplo, é um acessório que, como figuração da equidade, serve
de atributo à Justiça.
381
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique . Rio de Janeiro: Ed. Vozes. 1985.
382
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio. 1993.
a alegoria é uma figuração que pode tomar a forma humana, de um animal, de um
vegetal, ou mesmo de um feito heróico, de uma virtude. Um exemplo seria a mulher alada
como figuração da vitória. Um outro caso, a metáfora, sugere apenas a comparação entre dois
seres ou duas situações, enquanto a analogia diz respeito à relação existente entre seres e
noções, que devido ao fato de manterem entre si uma tênue semelhança, posto que em suas
essências mantêm-se diferenciadas, se prestam a tal figuração: a cólera de Deus pode apenas
em termos de analogia ser comparada à cólera do homem.
Aquilo que de comum se apresenta em todas essas formas de expressão é o fato delas
serem signos, de não ultrapassarem os limites de sua própria significação e representação. É
nesse instante que o símbolo distancia-se irremediavelmente do signo, surgindo prenhe de
sentido, pronto a oferecer inúmeras possibilidades à consciência que o contempla.
O signo, portanto, encerra em si mesmo seu próprio significado, suas próprias
potencialidades, enquanto " o que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo
uma imagem que... possua conotações especiais além do seu significado evidente e
convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida e oculta para nós ".
383
Ou, como
coloca Doering
384
: "Os símbolos são parábolas do imperecível, apresentadas em manifestações
do perecível "
385
.
No dizer de Henri Cobin:
"O símbolo anuncia um outro plano da consciência, que não é o da
evidência racional; é a chave de um mistério, o único modo de se dizer aquilo que
não pode ser apreendido de outra forma; ele jamais é explicado de modo
definitivo e deve sempre ser decifrado de novo "
386
.
383
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. 1993.p.30.
384
DOERING. Símbolos cristãos apud JACOBI, J. Complexo, Arquétipo e Símbolo. S.Paulo: Ed. Cultrix. 1992.
385
Ibidem, p.75
386
Apud CHEVALIER & GHEERBRANT. Op. Cit. p.XVI
Mircea Eliade afirma que "o pensamento simbólico precede à linguagem e a razão
discursiva "
387
e que " o símbolo pertence à vida espiritual, podemos camuflá-lo, mutilá-lo,
degradá-lo, mas jamais poderemos extirpá-lo."
388
Ernest Cassirer chega a dizer que o homem poderia ser caracterizado como um animal
simbólico ao invés de um animal racional
389
. Assim, é possível se caracterizar o símbolo como
uma imagem que encerra em si algo oculto, e que vai muito além de sua representação
imediata
390
.
Como o signo encerra em si tantos significados, tem o poder de seduzir o homem
através do desejo de desvendá-lo. Por fundar-se na gênese da alma humana, o símbolo
adquire a capacidade de tocar interiormente o homem; é um poder de ressonância, uma
identificação entre o símbolo e a consciência que o contempla. Isto acontece porque a
realidade que o símbolo expressa não está presa aos traços da imagem em si, mas devido a
profundidade de sua essência encontra-se livre para ligar-se a um novo significado a cada
instante, ressurgindo como algo novo em cada parte da alma humana
Nada que acontece no universo da psique acontece por acaso; assim quando uma
imagem em particular é escolhida pela psique para revestir e dar forma a um arquétipo, ela o é
porque naquela determinada constelação representa a melhor forma de configuração para
aquele conteúdo psíquico que esta a ser constelado. Então, uma imagem simbólica é sempre a
melhor maneira da psique vivenciar um fato físico ao nível do psíquico.
O símbolo tem o poder de exprimir o mundo percebido e vivido pelo homem em função
de todo o seu psiquismo e não apenas da consciência. Assim, funciona como um substituto de
relações, atuando como um comunicador entre o inconsciente, a consciência e o meio. Podem
ser constelados ou não, das mais variadas formas e nos mais diferentes momentos da vida,
387
ELIADE, Mircea . Imagens e Símbolos. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 1991. P.7
388
Ibidem, p.8.
389
CASSIRER. Ernest. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Ed. Zahar. 1976. P.77.
dependendo da vivência pessoal de cada sujeito. No fim, é a consciência, com seu caráter
individual que irá determinar a realidade e o significado da imagem simbólica. Enquanto um
observador qualquer pode ver numa cruz simplesmente o cruzamento de dois pedaços de
madeira, um cristão pode vislumbrar na mesma figura todo o mistério referente a ressurreição
do Cristo. Embora cada arquétipo tenha um caráter coletivo, é na dimensão da individualidade
que eles serão constelados, representados e vividos.
Esta é a característica do símbolo. De sua origem obscura ele traz a característica do
insondável; em suas potencialidades, ele convida a consciência para participar ativamente da
vida inconsciente, gerando vida e estimulando o próprio desenvolvimento humano. Em seu
jogo, ele nos faz entrar em contato com algo que não é conhecido, mas pressentido, seduzindo-
nos e lançando-nos numa busca de tentar desvendar-lhe o significado e a origem, ao mesmo
tempo formadora e destruidora, pois o símbolo se revela naquilo que é simultaneamente
rompimento e união de suas partes separadas, como o princípio incessante da tensão dos
contrários unidos numa síntese para logo depois serem separados novamente e a seguir
reunidos, constituindo, enfim, o próprio fluxo de nossa vida psíquica.
Para O Lamento da Imperatriz a referência mítica se faz necessária, é através do
encadeamento de sua simbologia que se traça sua fragmentada narrativa.
Quase em poesia, Joseph Campbell define o fascínio da mitologia:
“A mitologia é a canção do universo, música que nós dançamos mesmo
quando não somos capazes de reconhecer a melodia (...) Mitos são aquilo que os
seres humanos têm em comum, são histórias de nossa busca da verdade, de
sentido, de significação, através dos tempos (...) São metáforas da potencialidade
espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida animam a
vida do mundo.”
391
.
A partir destas definições, vai se tornando evidente a relação entre mitos e arquétipos,
pois os mitos nada mais são do que uma forma de expressão dos arquétipos, falando daquilo
390
Não é sem importância lembrar que muitos autores que utilizam o termo símbolo o fazem com um sentido
diferente do que foi até agora apresentado, privilegiando sempre o caráter semiótico.
391
CAMPBELL, Joseph & MOYERS, Bill. O poder do mito. São Paulo: Ed. Martins Fontes.1990.p.5; p.24.
que é comum aos homens de todas as épocas, porque falam dos valores eternos da condição
humana.
Os mitos se referem sempre a realidades arquetípicas, isto é, a situações a que todo ser
humano se depara ao longo de sua vida, decorrentes de sua condição humana. São situações
padrões tais como: nascimento, casamento, envelhecimento, morte. Os mitos explicam,
auxiliam, e promovem as transformações psíquicas que se passam, tanto no nível individual,
como no coletivo de uma determinada cultura.
Somos seres singulares sem dúvida, contudo temos heranças na qualidade de seres
humanos, temos vivências e sentimentos comuns, quando pensamos em mitos é sugerido que
alguém também tenha passado pelo caminho que estamos passando, deixando pistas de
como prosseguir, de enfrentar, suportar os conflitos que nos cercam. Toda mitologia é de
alguma forma uma tomada de consciência, é o poder ver através de outra perspectiva, é termos
um elemento para nos identificar, é o encontrar de um valor.
Existem os mitos universais e os de cada cultura, existem os mitos iguais para todas as
épocas, e as novas roupagens, porque o que é arquetípico é o tema, e deste tema podem surgir
novas formas de colocação.
Um dos mitos do homem contemporâneo é o símbolo da insatisfação e da
impermanência. Seu maior sonho é encontrar dentro de si uma correspondência harmônica com
a natureza universal, um sentido. Mas o assustador é perceber que na falta do sentido tudo fica
vil e o homem torna-se capaz das maiores atrocidades com o próximo e consigo mesmo.
Ora, a função primeira do arquétipo e do mito é a reflexão sobre nós mesmos,
sobre a condição humana, sobre o nosso processo de vida. Cito Joseph Campbell:
“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os
heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em
toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde
temíamos encontrar algo abominável, encontramos um deus. E lá, onde
esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar
para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde
pensávamos estar a sós, estaremos na companhia do mundo todo.”
392
Então porque não de se apropriar desse universo hoje e sempre? É esta a leitura
proposta para o filme-dança-teatro O Lamento da Imperatriz, que leva o espectador a passear
entre ficção distanciada e performance vivida, ancorando-o em uma ficção em que se misturam
os espaços-tempos míticos da natureza humana.
5. 2. A Dança-Teatro de Pina Bausch: narrativas da contemporaneidade
A dança-teatro de Bausch, sua narração e escrita são um saber emergente do mundo
contemporâneo: observa o mundo, elabora, confronta fatos e atos, cria narrativas. É ampliada
pela literatura, filosofia, artes plásticas, teatro, cinema e até pelas ciências sociais. As obras
apresentam a sociedade contemporânea com suas transformações, onde as crises se refletem
num grande relato.
Protagonistas e contexto espaço–temporal situam os acontecimentos aliados a
cronotopos que revelam e contextualizam a cena. Abordada como uma redefinição de práticas
em que as experiências e falas individuais ficam registradas nos textos corporais, a dança-
teatro de Bausch propõe uma epistemologia da complexidade que reformula todo o fazer da
escrita coreográfica da dança. Os modos de representação são imagens-metáforas com as quais
se pode experimentar e, sobretudo dialogar.
Sua autoria dialógica e polifônica, apresenta o lugar de produção de sentido articulado
através de mediações com o cotidiano e a subjetividade, reconstruídos empiricamente pela
observação e participação dos atores-bailarinos em laboratórios que abordam questões sobre
suas próprias histórias de vida.
A complexidade dos fatos da vida está dentro do homem, é questão que não
pode enunciar-se melhor do que na linguagem do espaço-tempo, pois, no momento
392
Ibidem, p.43.
em que a imagem muda de sentido e ganha mais sentido, e nessa mudança, abre
novos caminhos para experiência. O passado irrompe no presente e o futuro está
como revelação. Bachelard instiga:
"Que poeta nos dará as metáforas desta nova linguagem? Como
chegaremos a imaginar a associação do temporal e do espacial? Que
visão suprema sobre a harmonia nos permitirá conciliar a repetição no
tempo com a simetria no espaço?”.
393
História resgatada na memória é caminho para a dança-teatro, muito próximo do
proposto por Boaventura de Sousa Santos
394
: pensar a transformação e a emancipação social
reinventando o passado, de modo a restituir-lhe a capacidade de explosão e redenção.
Boaventura de Sousa Santos recomenda:
“(...) um novo equilíbrio entre as teorias da separação e as teorias da união, uma maior
comunicação e cumplicidade através das fronteiras. (...) interpelando o passado como
indesculpável iniciativa humana, de modo a permitir que ele se reanime e fulgure na nossa
direção. Estas imagens são isso mesmo, imagens. Não são idéias, até porque as idéias
perderam toda a capacidade de desestabilização. São novas constelações onde se combinam
idéias, emoções, sentimentos de espanto e de indignação, paixões de sentidos inesgotáveis.
São monogramas do espírito postos em novas práticas rebeldes e inconformistas”.
395
E o que é o Tanztheater senão uma narrativa da contemporaneidade que reinventa o
passado, uma cultura da existência de abertura a outrem? Os atores-bailarinos são seres
humanos imersos em uma cultura. Suas imagens do passado são metáforas em movimento que
emergem das águas da memória para fazer da dança-teatro uma forma que, como disse
Boaventura de Sousa Santos, ajude a viver com dignidade este momento e a sobreviver-lhe
pelo aprofundamento das energias emancipatórias, oportunidade que nos oferece este começo
de século.
393
BACHELARD, Gaston. Os pensadores: O novo espírito científico. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 128.
394
SOUSA SANTOS, Boaventura de. "A queda do angelus novus: para além da equação moderna entre raízes e
opções". In Revista Novos Estudos CEBRAP, n° 47, março de 1997.
395
SOUSA SANTOS, Op.cit. pp. 103-104.
O movimento, esse acontecer do sentido, é parte crucial nos espaços vitais das
sociedades contemporâneas: a megalópole, a metrópole, a grande cidade, o bairro, a favela, a
rua, a casa. São novos os cenários e os modos de estarem juntos, uma reformulação das
fronteiras do dentro e do fora, do privado e do público. Surgem novas tribos urbanas e redes de
comunicação. O primeiro a apontar a relação entre meios de comunicação e cultura urbana foi
Walter Benjamin, em seus escritos sobre Paris, a capital do século XIX. Benjamin traça uma
relação entre a experiência nova do caminhante nas avenidas da grande cidade com a
experiência do espectador do cinema, conforme analisado no capítulo 4.
Benjamin apresenta dois dispositivos que permitem ver essa relação: o primeiro é a
imagem múltipla e a dispersão. Ele mostra como o caminhante das grandes avenidas toma
vistas múltiplas da cidade. Sua memória registra uma multiplicidade de instantâneos da cidade
ao caminhar no meio da multidão. Esse alguém precisa andar com uma atenção dispersa,
aberta, e, ao mesmo tempo, não pode ensimesmar-se, deve seguir com a multidão e isso lhe
demanda uma atenção solta. Exatamente o contrário da concentração contemplativa na obra,
exigida pela arte clássica. Benjamin propõe que o caminhante da grande cidade esteja
preparado para desfrutar a nova arte, o cinema. A primeira arte realmente moderna. No cinema,
ele exerce essa atenção dispersa a uma multiplicidade de lugares da imagem e ao mesmo tempo
essa multiplicidade encontra no cinema sua própria sintaxe, a montagem. A sintaxe dessa
multiplicidade de imagens se assemelha às instantâneas do caminhante tomadas na cidade.
Benjamin fala de uma transformação do sensorium, da mudança do modo de perceber a arte.
Benjamin liga a aparição deste novo sensorium, à arte secularizada. Uma percepção
secularizada que não se dirige ao ritual quase religioso em que se inseria e onde mora a
percepção da arte clássica. Diante daquela percepção quase religiosa, ritualística, da arte, o
cinema, em lugar da contemplação, precisa da dispersão e da sintaxe dessa imagem múltipla.
Benjamin afirma que o cidadão do século XIX se apropria da cidade em multidão. No
século XIX, os cidadãos se apropriam de suas as metrópoles, em uma experiência coletiva. O
segundo dispositivo nos revela que o cinema media esta mudança da percepção, lembrando que
durante muito tempo os críticos da arte especularam se o cinema poderia ser ou não
considerado arte. Eles chegaram a afirmar que, se o cinema procurava tanto o prazer das
massas analfabetas, nunca poderia ser uma expressão de verdadeira arte. O cinema nasce com
um aberto desapreço dos críticos que o qualificam de não-arte por ser desfrutado e
compreendido prazerosamente pelos setores populares.
Benjamin escreveu que, com a fotografia e o cinema, mudou o sentido da função social
da arte. Os modos de produção e fruição artística se alteraram radicalmente. Não se trata de
colocar o cinema nas categorias da arte que vinham do renascimento. Era hora de começar a
elaborar novas categorias para compreender os novos modos de fazer arte e os novos modos de
desfrutá-lo. Nesse sentido, Benjamin atribui uma importância a essa mudança na percepção do
mundo que o cinema introduz. Como na experiência da projeção da cidade, que também se
produz em uma experiência coletiva, assistir ao cinema significou durante muitos anos uma
experiência coletiva. Implicava em sair de casa, fazer fila e ver um filme com muitas pessoas.
Nos primeiros tempos do cinema, assistia-se a filmes nas barracas do circo, que eram os
espaços maiores; depois se passou também a usar o espaço do Music Hall no caso dos Estados
Unidos e da França, onde havia salas de Music Hall de até 3.000 pessoas; sem esquecer que as
primeiras salas eram cinematógrafos sem palco/platéia, conforme atesta Evelyn Furquim
Werneck Lima
396
, em Arquitetura do Espetáculo: teatros e cinemas na formação da Praça
Tiradentes e da Cinelândia, citando o registro da exibição do primeiro cinematógrafo no
396
LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do Espetáculo: teatros e cinemas na formação da Praça
Tiradentes e da Cinelândia Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.
Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em 8 de junho de 1896, numa loja da Rua do Ouvidor,
adaptada para o evento
397
.
Pertinente também é a aproximação que faz Jesús Martín-Barbero
398
de como os
veículos de comunicação mediam as transformações da cidade e da cultura urbana, a partir da
reflexão do escritor mexicano Carlos Monsivais
399
, sobre o papel fundamental do cinema
mexicano no surgimento de uma cultura nacional urbana.
Segundo Barbero, Monsivais lembra que as pessoas nos anos 20, 30 e 40 iam ao cinema
não para divertir-se, mas para aprenderem a serem mexicanos; porque o cinema foi a primeira
arte a legitimar, no sentido de fazer visível social e culturalmente, os modos de ser dos setores
populares. Emergiu no cinema a forma de caminhar, de falar, de relacionar-se, de amar, de
viver em família, tudo aquilo que a elite tratava de ocultar porque eram os modos indecentes,
mal-falados, mal-educados. Por isso, Monsivais se atreve a escrever que, por mais reacionários
que ideologicamente fossem os roteiros do cinema, por mais mascarada que se supusesse uma
atuação em que a maioria dos atores imitava de uma maneira torpe os grandes atores norte-
americanos, o cinema no México teve um papel estratégico na formação de uma identidade
popular urbana moderna. É importante lembrar que a comédia é o gênero mais local que existe
e a tragédia é um gênero que universaliza, ainda que a comédia sempre trabalhe com os
espaços, os personagens, os temas do lugar. O México foi capaz de produzir um personagem
que era na paródia a expressão da nova cultura urbana. E tal nova cultura urbana popular, de
alguma maneira tão consciente da ruptura operada por ela, como Monsivais escreveu várias
vezes, faz Cantinflas falar para ninguém entender. As classes subalternas sentem que pela
397
. LIMA, Op. cit. Ibid. p. 236: "Porém, é a partir de 1907 que acontece a inauguração de uma série de cinemas
na Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), que chegará ao seu apogeu graças ao empenho do empresário
Francisco Serrador e sua articulação quanto à remodelação da Praça Floriano, no Rio de Janeiro, introduzindo
luxuosos cinemas e projetando culturalmente aquela área no contexto da cidade, espaço que mais tarde fica
conhecido como Cinelândia".
398
Seminário Ciudad, Comunicación y Democracia, ministrado por Jesús Martín-Barbero, de 18 a 22 de Agosto
de 1997, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
399
Citado por Jesús Martín-Barbero no Seminário Ciudad, Comunicación y Democracia, dia 19 de agosto de
1997, na ECA/USP.
linguagem passa uma chave de dominação. Então Cantinflas desbarata a linguagem, destrói o
meio com que os setores poderosos humilham, dominam, reprimem, castram a espontaneidade
do corpo, não somente da linguagem, da fala. Cantinflas fala mais com o corpo que com a boca
e toda uma paródia a romper com as figuras civilizadas, educadas do corpo. Todas estas
reflexões de Benjamin, Barbero e Monsivais servem para falar de um tema apenas
aparentemente leve, mas que não é: são os sentidos. Sentidos estes que, como forma de
perceber o mundo, são vitais para a dança-teatro.
Quanto aos espaços, os lugares, disse Milton Santos
400
, "podem ser vistos como um
intermédio entre o mundo e o indivíduo, por isso cada lugar é, à sua maneira, o mundo"
401
. Mas
cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se
exponencialmente diverso dos demais. A uma maior globalidade corresponde uma maior
individualidade.
“Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um
tratamento localista, que o mundo se encontra em toda parte. Também devemos
evitar o risco de nos perder em uma simplificação, a partir de uma noção de
particularidade que apenas leve em conta os fenômenos gerais dominados pelas
forças sociais globais. A história concreta de nosso tempo repõe a questão do
lugar numa posição (...) Impõe-se, ao mesmo tempo, a necessidade de, revisitando
o lugar no mundo atual, encontrar os seus novos significados. Uma possibilidade
nos é dada através da consideração do cotidiano (...).
402
No cotidiano onde o ser humano vive a história, a partir das circunstâncias e
possibilidades, desvelam-se lógicas da ciência e reflete-se sobre a compreensão, descobrindo
relações transcendentais impensáveis no esquema sujeito-objeto. O Ser no mundo, na
perspectiva sujeito-sujeito, mergulha no tempo profundo (passado, presente, futuro) e, nos
modos da compreensão, apresenta a percepção sensorial, a descoberta do sentido. É que o
ator-bailarino busca inspiração, porque se ele deixa de saber de onde veio, não poderá saber
onde está, e muito menos falar desse espaço-tempo.
400
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Editora Hucitec. 1990, introdução.
401
Ibidem, p.9.
402
Ibidem.
Na trama de uma educação do gosto e da sensibilidade, na busca de uma articulação do
público com o privado, da macropolítica dos planos estatais com a micropolítica da vida
cotidiana, das análises magistrais da cultura com a microsociologia e a psicologia da
intimidade, é a criação poética que põe a evidência interior como elemento fundador da
atividade metacomunicável do ser humano nas narrativas da contemporaneidade. Como afirma
Bachelard:
“A compreensão tem um eixo dinâmico, é um impulso espiritual, um
impulso vital (...)Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética é
preciso voltar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do
fenômeno da imagem poética no momento em que ela emerge na consciência
como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem na sua
atualidade”.
403
Mulheres e homens se unem ao mundo no processo de criação, em uma nova
sensibilidade dos sentidos, no espaço que “é acumulação desigual de tempos”
404
. É esse
espaço-tempo que o ator-bailarino está pronto para ver, ouvir, cheirar, provar, tocar a real
compreensão das ações da vida, indo das aparências às essências humanas, do senso comum às
evidências das relações, da realidade externa para realidade interna, que a semente está
dentro dele. Assim, a dança-teatro percebe a anarquia atual da cidade grande e seus efeitos na
alteração das formas da experiência, que também entram no sujeito (ator-bailarino) epistêmico.
Desta forma o processo de criação na dança-teatro é compreendido como movimento, como
signos em ação, onde a escrita reflete um despertar dos tempos múltiplos e dos sentidos.
Os sentidos exploram, descobrem, observam, pesquisam, inquirem o mundo exterior – e
desfrutam dele. Também falam sobre o ser humano. Como os processos perceptivos
geralmente são inconscientes, mediante sua pesquisa experimental pode-se descobrir algo
sobre a maneira de se decifrar o mundo dos objetos e interpretar os significados das imagens e
dos símbolos.
403
BACHELARD, Gaston. Os pensadores: A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 184.
404
Ibidem.
De que modo se conhece, realmente, as coisas através da experiência sensorial e qual o
papel da consciência? Vale a pena perguntar por que temos percepções e concepções do
mundo. A percepção atua rapidamente, enquanto se pode demorar anos em conceber as noções,
porque em certa forma o conhecimento e as idéias são eternos. Contudo:
“A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um
grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da
consciência individual, a matéria do seu desenvolvimeno e ela reflete sua lógica e
suas leis […] Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico
não sobra nada”.
405
Nesta perspectiva, a narrativa da dança-teatro é uma produção de sentidos da atualidade
que parte da leitura de fatos sociais vividos pelo ser humano em seu cotidiano que são
incorporados à linguagem artística entendida como elaboração simbólica de uma forma
expressiva de cultura.
O discurso de cada obra lê o presente e contém as várias vozes e enunciados que ecoam.
Se partirmos dos conceitos de Mikhail Bakhtin, o discurso tem, ele mesmo, uma significação
profunda que vai muito além do quadro da sintaxe (gramática).
A forma como são ditas as coisas, no texto corporal da dança-teatro, marca o caminho a
percorrer. Em autoria múltipla, ecoam as vozes, a realidade, a eterna mudança, os sonhos e
fantasias (desejos) que constituem vidas e que são narradas pelos sujeitos junto do inconsciente
coletivo, esse depósito de traços de memória onde encontramos os arquétipos. Que se leia a
obra de arte utilizando o intelecto, mas é preciso ouvir todas as outras vozes tão importantes e
tão negligenciadas: as vozes do inconsciente coletivo, estreitamente ligado à nossa ideologia,
ou seja, ao nosso imaginário coletivo. Nesse intervalo (construção-desconstrução), o relato tece
seu significado. Nessa relação das condições de feitura do discurso artístico da dança-teatro se
constrói outra memória, a memória escrita corporalmente, que tem sua essência em outras
memórias. A dança-teatro mergulha no cotidiano e, com sua narrativa, dialoga com as outras
405
BAKHTIN, Mikhail (V.N. Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec,
1981, pp. 35-36.
formas do dizer. A noção de dança-teatro apresentada por Pina Bausch permite um diálogo
com as teses de Bakhtin sobre polifonia e dialogia, onde a multiplicidade de vozes ecoa e se
expressa através do pensamento artístico.
A dança-teatro polifônica de ser lúdica e aberta, diálogo de saberes, mito e
metáfora
406
na descoberta do tempo, silêncio e voz, possessão e despossessão da linguagem;
busca do espaço, invenção de tempo; criação de cronotopia (tempo e espaço); transformação do
espaço em tempo e do tempo em espaço, porque o autor, o crítico, o leitor em sintonia
profunda, sabe que não há textos que não descendam de outros textos.
“Mas seriam muitos os caminhos da sondagem. Claro, sempre se seleciona
o lugar e o momento, outras vezes as circunstâncias empurram à escolha: eis um
duplo eixo que o ser-mediador não pode desprezar, tanto o mergulho
verticalizante quanto o horizontal.”
407
Nosso objeto de estudo, a dança-teatro-filme, deve ser reconstruído através do estudo
crítico de seus falares e narrativas, que definem seus fundamentos, valores e alcances. Ela não
é só técnica e laboratorial; nela uma concepção do mundo; um modo de pensar de uma
época, uma temporalidade e senso comum de que se precisa para narrar o presente, reconstruir
o passado e vislumbrar o futuro.
O Lamento da Imperatriz é uma narração do acontecer cotidiano, que se nutre de
pensamentos, falas e conhecimentos, chega a ser um modus vivendi tanto dos autores como dos
leitores, onde o autor-narrador, ao mexer com as emoções e sentimentos do ser humano, faz e
constrói uma antropologia moderna. Assim, O Lamento da Imperatriz e projeta o presente e
não é uma simples fórmula de contar uma história. Para chegar à essência das cenas, é preciso
406
“La más importante de las alhajas literarias que adornan el estilo era para Aristóteles la metáfora. El
primero en advertir semejante equivocación fue Gianbattista Vico, quien afirmó que la poesía y el lenguaje son
esencialmente idénticos y que la metáfora, lejos de ser un recurso “literario”, constituye el cuerpo principal de
todas las lenguas (Cf. Sciencia Nuova). En los comienzos, consistía en actos mudos o en ademanes con cuerpos
que tuvieran alguna relación con las ideas o sentimientos que se querían expresar. También los jeroglíficos, los
blasones y los emblemas no son otra cosa que métaforas. Y hasta la propia palabra figura ya es una figura. Es
imposible hablar o escribir sin metáforas, y cuando parece que no lo hacemos es porque se han hecho tan
familiares que se han vuelto invisibles”. SABATO, Ernesto. El escritor y sus fantasmas. Barcelona, Editorial
Seix Barral, 1983, pp. 159-160.
407
MEDINA, Cremilda. Povo e Personagem. Canoas: Editora da Ulbra, 1996, p. 173.
buscar aquelas faculdades congênitas que permitem ver além da aparência dos fenômenos. Mas
por onde começa o dito caminho? Pelo núcleo, o “lugar escondido e secreto da consciência”
408
,
esse órgão central, bem visível e relativamente grande do indivíduo: o coração. É ele que
reproduz, por um complexo processo de mitose, a memória. “Para os wuitotos (sul da
Colômbia) coração, peito, memória e pensamento são a mesma coisa.
409
Quiçá dessa mitose
venham os mitos.
“Se o Ocidente fez do coração a sede dos sentimentos, todas as
civilizações tradicionais localizam nele, ao contrário, a inteligência e a intuição:
talvez o centro da personalidade se tenha deslocado da intelectualidade para a
afetividade. Mas Pascal não diz que os grandes pensamentos vêm do coração?
Pode-se acrescentar que, nas culturas tradicionais, conhecimento tem sentido
muito amplo, que não exclui os valores afetivos”.
410
Pascal viu o universo como uma esfera infinita, cujo centro está em toda parte, e o
nosso centro é o coração, que junto com os sentidos, tece o ritmo da existência. Reconhecer
seus poderes é recriar a realidade, sempre presente; é fundar a afetividade, muito desejada pela
curiosidade de ver, saber, desvendar, aprender, conhecer, despertar, descobrir, identificar; mas
especialmente observar, o que é contemplação (Theoria), compreensão e participação na visão,
audição, olfato, paladar e tato do mundo, não com cinco sentidos, mas com Os Doze
Sentidos
411
, hoje negados. Os sentidos eram muito mais despertos, eram órgãos cheios de vida,
apropriados apenas para a antiga clarividência onírica do ser humano. Os sentidos não tinham a
excessiva racionalidade de hoje. O ser humano, atualmente, admite cinco sentidos, porém
aprende-se com Rudolf Steiner que na verdade é preciso distinguir doze sentidos humanos: 1)
O sentido do tato é aquele por cujo intermédio o homem se relaciona com a forma mais
materializada do mundo exterior. O que passa quando ele toca um objeto ocorre,
evidentemente, no lado interior da pele, dentro do corpo. 2) Em um espaço do organismo
408
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: Editora José Olympio,
1990, p. 280-283.
409
Ibidem, p.283.
410
Ibidem, p. 280.
humano ainda mais interno do que o do processo do sentido do tato encontrasse o que
podemos denominar sentido da vida. Porém
este sentido por cujo intermédio sentimos a vida em nós– existe nitidamente, da mesma
maneira como vemos com nossos olhos um pouco do que nos cerca. Não teríamos noção
alguma do nosso processo vital se não possuíssemos esse sentido da vida. 3) Mais
interiorizado, mais corporalmente interiorizado do que o sentido da vida é o que podemos
chamar de sentido do movimento. Não é a situação em que o homem todo se movimenta –isso
é algo diferente mas aquela em que curvamos um braço, curvamos uma perna; quando
falamos a laringe se movimenta; tudo isso nós percebemos com o sentido do movimento. 4)
Quando sentimos tontura e caímos, desmaiamos, é porque o sentido do equilíbrio está
interrompido, assim como o sentido da visão fica interrompido quando fechamos os olhos.
Assim como notamos a mudança de posição interna, nós percebemos nosso equilíbrio ao
simplesmente nos colocarmos em relação aos fatores em cima, embaixo, à direita, à esquerda,
e nos posicionarmos no mundo de maneira a sentir-nos dentro dele –sentir que agora estamos
de pé. Esse sentido funciona de tal forma que, na verdade, tudo acontece no interior do
organismo. O sentido do tato é algo que nos acontece interiormente, em nossa corporeidade.
Quando me movimento fora de mim, também me movimento dentro de mim. 5) Já no caso do
sentido do olfato saímos um pouco de nós. 6) Com o sentido do paladar, o ser humano quer
ter um contato maior com o mundo exterior. 7) Isso acontece mais ainda no caso do sentido da
visão; com ele nós interiorizamos muito mais das características do mundo exterior. 8) Por
meio do sentido do calor, nós temos um relacionamento muito próximo com o mundo exterior.
Com o sentido do calor, não podemos mais distinguir isso. Com ele se vivencia intensamente o
interior do objeto percebido. 9) Nós nos relacionamos de maneira ainda mais íntima com o
interior do mundo externo pelo sentido da audição. 10) Penetramos mais fundo no universo
411
STEINER, Rudolf. Os Doze Sentidos e os Sete Processos Vitais. São Paulo: Antroposófica, 1997, pp. 7-28.
exterior quando não percebemos meramente com o sentido da audição algo que soa, e sim
quando compreendemos, por meio do sentido da palavra, algo que tenha significado. 11)
Porém, no relacionamento vivo com o ser que emite a palavra, posso transportar-me
imediatamente, por meio dessa palavra, para dentro desse ser que está pensando, desse ser
capaz de representações mentais, e isto requer um sentido mais denso do que o mero sentido da
palavra –isto requer o sentido do pensar, como Steiner o denominou. 12) E um relacionamento
mais interno com o mundo exterior do que o pensar nos é dado por aquele sentido que nos
possibilita unir a outro ser –nós passamos a percebê-lo como a nós mesmos. Isso acontece ao
nos debruçarmos - por meio do pensar, do pensar vivo que nos é enviado por um ser sobre o
eu desse ser: é o sentido do eu. Nós obtivemos nosso 'eu' em um processo de muitos anos de
experiências no mundo “(...) saboroso manjar para os sentidos” porquenão há modo de
compreender o mundo sem detectá-lo antes com o radar dos sentidos”
412
. Steiner vai mais a
fundo quando afirma que assim como percebemos imediatamente uma cor, nós percebemos o
'eu' alheio quando nos deparamos com ele. Assim como por meio da visão percebemos o
escuro, o claro, as cores, também percebemos imediatamente os outros 'eus' por meio do
sentido do 'eu'. Os poetas vivenciam melhor esse processo. Segundo Johann Wolfgang Von
Goethe
413
:
“Todos temos certos poderes elétricos e magnéticos em nosso interior que
exercem uma força que atrai e que rejeita. Por isso nos aproximamos de algo
semelhante ou diferente”
414
.
Gabriel García Márquez reflete
415
:
“Desde la aparición de la vida visible en la tierra debieron transcurrir
trescientos millones de años para que una mariposa aprendiera a volar, otros
ciento ochenta millones de años para fabricar una rosa sin otro compromiso que
el de ser hermosa, y cuatro eras geológicas para que los seres humanos –a
412
ACKERMAN, Diane. Una historia natural de los sentidos. Barcelona: Editorial Anagrama, 1993. p.13.
413
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. SP: Ed Record. 1971.
414
GOETHE, Op. cit. p. 165.
415
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. SP: Ed. Record.
1973
.
diferencia del bisabuelo Pitecántropo– fueran capaces de cantar mejor que los
pajáros y de morirse de amor
416
.
Outro colombiano, psiquiatra e pesquisador, Luis Carlos Restrepo, disse que três
sentidos foram atrofiados por esse analfabetismo moderno: olfato, paladar e tato. Adverte,
também, que os sentimentos não podem continuar confinados ao terreno do inefável, do
inexprimível, enquanto a razão ostenta uma certa assepsia emocional, apatia que a coloca
acima das realidades mundanas.
“Ao excluir o tato e o olfato do processo pedagógico, nega-se a
possibilidade de fomentar uma intimidade e proximidade afetiva com o aluno,
perpetuando-se uma distância corporal que reforça a posição de poder do mestre,
que agora se torna incontestável”.
417
O ato de narrar e de viver o mundo é um ato pedagógico. Erich Fromm já defendera que
“o amor é a resposta ao problema da existência humana”
418
. O ato de reconhecer o mundo
através da observação tem sido muito importante para o desenvolvimento do Ser Humano, em
todas as áreas do conhecimento, e para a arte de narrar a vida é imprescindível; é o manancial
onde bebem, semeiam e florescem nossos sentidos. Contudo, somente através de uma
libertação de nossa forma de ler o mundo poderemos enxergar sua complexidade e criar um
modo de vida que nos revele em nossa múltipla dimensão. Este é o grande desafio: encher-se
do mundo pela via da sensibilidade e abandonar as prisões que impedem a comunhão com a
vida. Visão de mundo é racionalizar, mas também viver e sentir, através de todos os sentidos
(os doze), que devemos reacordar. Esse caminho implica superar os preconceitos sobre os
“outros” e desentupir os poros da pele, para respirar o novo ar da crônica (de chronos: tempo)
do mundo que alimenta o criador.
A vida se e todo ato, por insignificante que pareça, merece ser levado em conta, pois
faz parte desse tecido geral chamado narração em que o Ser Humano constrói a consciência de
416
MÁRQUEZ, Op.cit. p.123.
417
RESTREPO, Luis Carlos. O Direito à Ternura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998, pp. 34 e 37.
418
FROMM, Erich. El arte de amar. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1970, pp. 19-51.
seu mundo. Nesse relacionamento dialético (sujeito-objeto-sujeito) faz-se memória para
encarnar a maior narrativa do mundo, denominada História. Cada obra que se escreva com esse
novo sentir será mais uma pincelada inscrita na narrativa do homem.
Nesse ato de criar, aparência e essência se conjugam para serem desconstruídas pela
senda do detalhe revelador, abordado com ferramentas de observação, como a curiosidade pela
vida e a criatividade em uma reflexão e uma análise próxima. O alvo, o pormenor revelador e
significativo dos mitos, faz perceptível e impregna a narração de sentido, pensamento e
linguagem.
O Lamento da Imperatriz, como obra aberta, constrói, aos poucos, um retrato do
mundo, através de uma linguagem simbólica. Ao narrar o ato revelador, Pina Bausch, como
arqueóloga do presente, restitui a plenitude do sentido da vida. Assim, os traços do espaço
breve de tempo e o ato mínimo conformam uma constelação muito significativa na qual o local
se torna universal. Intimidade, desejo, ansiedade, condições de vida, espaços e tempos
despontam no processo criativo de O Lamento da Imperatriz, no percurso das descobertas.
Enxerga-se as coisas de uma nova forma e perspectiva, uma vez que a voz interior e a visão
estabelecem o diálogo infinito entre pensamentos, linguagem, mitologia e realidade. Narrativas
transcendentes revelam-se, porque se trata do estar vivo e não coisificado. A questão é se
comunicar com os outros, procurando novas necessidades vitais.
A partir das idéias criativas de Bausch, descobre-se o diferente, a constante inovação.
Cada ator-bailarino proporciona uma possível narrativa, mas é preciso aprender a ler essa
possibilidade. Porque, apesar de se morar por anos em cidades, não as conhecemos, que a
observação e o olhar são superficiais.
Para identificar a essência das cidades e de seus habitantes, devemos aprender a escutar
sua fala, ouvir, perceber seus sons a fundo. Os vestígios e as pegadas reconstroem o caminho,
os instantes que fazem o acontecimento. Eis o caminho para o homem do novo século:
observador penetrante, interpretador e pensador de relevo, com seu trabalho de campo e os
sentidos acordados de uma forma lúdica, ele deve procurar desenvolver a sensibilidade e
criatividade. Nesta ótica entende-se o meio expressivo de O Lamento da Imperatriz:
(...) o thymós ou afetividade adquire uma importância tão grande ou
maior do que aquela que atribuímos ao nous ou intelecto. Inversão que supõe
passar da vista como sentido ordenador da realidade ao tato como analisador
privilegiado da proximidade”.
419
Nossa rotina está friamente calculada para impedir os contatos. Os espaços dos
escritórios e dos apartamentos permitem que passemos, uns ao lado dos outros, como
estranhos, mas não estimulam a partilha. Quando o ônibus e o metrô ficam cheios, os corpos
são exigidos a se tocarem: os hálitos se encontram, as mãos tocam, os suores exalam... e nossa
reação é o afastamento pelo medo ou pelo escrúpulo. Atrofiamos os sentidos que aqui estão
para comunicar. Assim, desamor e desafeto nos inundam. No final do século XX, início do
século XXI, a população urbana passa a ser “autista”. A velocidade desmedida e o morar em
espaços “pós-modernos” do não-tempo nos fazem maquinais, incapazes de entender as
emoções, as paixões e as tristezas; e transformam os contatos físicos em tortura, como se o
homem fosse cego para a existência dos outros. A principal emoção que se conserva é o medo,
o mais primitivo dos sentimentos. Decoram-se convenções e códigos sociais enquanto a cabeça
vira um enorme banco de dados onde a memória é xerocópia e não imaginativa. Essa
dificuldade de comunicação que se desenvolve leva ao mutismo, à incompreensão da
linguagem criativa, ao isolamento intenso, à agressividade, aos atos estereotipados e
repetitivos. Perde-se o objeto do desejo, a dimensão simbólica. O olhar clínico, frio e
“científico”, degrada o agir. Entra-se em pânico, em acessos de cólera e explosões, até nos
tornarmos autômatos, quer dizer, “autistas”. Mas onde fica o ser humano?“O homem é um
419
Ibidem, p.11.
Deus quando sonha e um mendigo quando pensa, escreveu Hölderlin ao começo de sua
Hyperión”.
420
Vivemos sem tempo, em espaços compartimentados. Entretanto, onde podemos buscar
o tempo perdido de que falou Marcel Proust? No poder das doses mínimas da vida; na fala, no
olhar e em todos os sentidos entretecidos com as vozes dos outros; e longe das regras e técnicas
habituais: pirâmide invertida, frigidez e objetivismo.
“A visão reveladora da realidade tende a uma síntese baseada na analogia
entre os detalhes, desvendando o seu significado unitário. O detalhe em si não
interessa. Interessa como estímulo para procurar a sua afinidade com outros, por
meio da analogia. Daí a importância da metáfora, mais que da descrição, porque
ela mostra as analogias e vincula uma variedade de pormenores”.
421
Assim, movimento, viagem humana, acontecer, trabalho, linguagem, criação, todas
essas ações são a alquimia para a arte de transmutação que se chama dança-teatro. Porque não
é mais um gênero e sim a mestiça maior das narrativas cênicas. A miscigenação a que foi
exposta durante os últimos trinta anos produziu uma complexa e dinâmica narrativa de ações
humanas. Tanto assim, que está por se escrever a sua história. Mas ela merece, porque como
arte do movimento nos liberta e nos compreende. A dança-teatro é assim, não passa por nós
sem deixar seu sinal, pois relata o amor do ser humano. O amor que impulsiona a vencer os
limites do corpo.
Dançar é viver. Darcy Ribeiro
422
disse: “Quem tem amor, tem tudo”. A linguagem da
dança-teatro, sua forma de escrita corporal, sensibilidade e imaginário, constrói seu repertório
narrativo e poético para que o tempo, Chronos, sentimento de duração, não seja esquecido.
que “O homem é como a casa: deve ser visto por dentro!”
423
420
OSPINA, William. Es tarde para el hombre. Santafé de Bogotá, Colombia: Grupo Editorial Norma, 1996, pp.
31-32.
421
CÂNDIDO, Antônio. "Realidade e realismo (via Marcel Proust)". In: Recortes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993, p. 127.
422
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das
Letras.1995. p 47.
423
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1995, p. 108.
5.3. Os cronotopos
“Temos necessidade justamente daquilo que não sabemos e
sabemos aquilo que não sabemos utilizar”.
(GOETHE . Fausto. 1806)
A análise de O Lamento da Imperatriz privilegia o trinômio tempo-espaço-ação, sua
interdependência para o entendimento do espaço-tempo dramatúrgico.
Para tanto, constatando-se a necessidade de se aliar a enunciação correta do espaço e do
tempo na cena, com a simbolização do tempo e espaço dramático, toma-se emprestado de
Mikhail Bakhtin a noção de cronotopo, um cronotopo artístico, que é o que o romance,
segundo Bakhtin, consegue fazer: criar um símbolo, a partir de dados concretos, uma figura,
uma imagem do mundo, que permita uma metaforização espacial e uma experiência temporal.
Este primeiro filme de Pina Bausch, marca a relação que a autora mantinha com
referência aos seus processos de composição coreográfica, mais esperados na estética do filme
ou vídeo: fragmentação do gesto, repetição de seqüências, efeitos de close e de focalização,
fades (câmara lenta), olhares para a câmara, elipse narrativa, montagem em câmara rápida.
Como se a maneira de coreografar passasse por um olhar mediado pela câmara ou mesa de
montagem do cinema ou vídeo.
Certamente sua estética de dança-teatro foi influenciada pelo cinema, não no uso do
cinema como alargamento técnico das possibilidades da dança-teatro, mas na incorporação das
implicações estéticas do olhar fílmico. Se as noções de close ou de montagem encontram um
equivalente gestual na noção de mobilidade/ imobilidade de uma parte do corpo e na
fragmentação do corpo, em que cada segmento utiliza por vez, também a oposição entre a
observação pontuada (o glance) e a contemplação panorâmica (o gaze), está presente nas obras
de Bausch., como foi teorizada por Patrice Pavis
424
:
“O coup d’oeil é olhar externo, o olhar da câmara e da montagem, que
introduz uma quebra de plano a plano e uma descontinuidade de um plano a
outro. Tais olhadas da visão ávida
425
agridem seu objeto e introduzem um staccato
424
PAVIS, Patrice. Film est un film. Paris: Protée, vol.19. No. 3, 1991.p.12.
425
No original “haptique”, neologismo formado a partir do verbo happer: abocanhar com avidez.(N. do T.)
que se reflete na descontinuidade espaço-temporal dos planos (...) A contemplação
dos objetos se faz, pelo contrário, em um movimento de legato e de panorâmica,
percorrendo sem arrancos o mundo externo que se torna assim mais estável e
global, e que preexiste ao olhar: as coisas e o espaço parecem já estar lá à espera
de um olhar colocado sobre eles, como se tais objetos estivessem constantemente
expostos à vista.”
426
A palavra artística é dialógica, e no diálogo espaço-tempo-corpo se entrelaçam
complexas relações. As imagens escolhidas recorrem a metáforas que vão construindo, de
forma descontínua, traços arquetípicos da natureza humana.
Curta e precisa, a linguagem é direta, ilustrando na mínima ação um grande tema. O
narrador (diretor-autor) toma certa distância para relatar os fatos, não se solidariza com
nenhum personagem em particular, não condena, não defende, não tem complacência com seus
personagens; narra com uma objetividade composta de planos americanos, de conjunto e
alguns closes, mas conserva sempre uma perspectiva crítica.
Assim é a colina coberta de folhas da primeira cena, a elevação seca e árida em que
tropeça a ‘coelhinha’, o campo coberto de neve por onde passa cantando a moça do acordeão,
ou a planície verde onde pastam os carneiros.
Da análise estrutural do filme releva-se uma série de grandes blocos que se definem por
homogeneidade em seus cronotopos, e cuja sucessão é a chave da encenação.
5.4. O Lamento da Imperatriz: descrição e análise
De sol e de mundos nada sei dizer, vejo apenas como os
homens se atormentam. O pequeno Deus do mundo (o homem)
continua na mesma e está tão admirável assim como no
primeiro dia. Um pouco melhor ele viveria, não lhe tivesses
dado o brilho da luz celeste; ele chama isto razão e lança mão
dela somente para ser mais animalesco do que cada animal .
(GOETHE . Fausto. 1806)
Cena 1
426
PAVIS, Op.cit. p.44.
Na primeira tomada do filme, ao som de uma marcha fúnebre siciliana, num declive
coberto e folhas secas, uma mulher puxa uma estranha máquina, que parece um cortador de
grama. Da máquina sai um vento que espalha as folhas, formando espaços verdes no declive.
Em termos de movimento, observa-se a dominância do espaço direto nas ações da mulher e da
máquina, e espaço indireto em relação às folhas secas.
A natureza é alterada pela máquina, ao mesmo tempo em que também a mulher parece
ser, em alguns momentos, subjugada pela máquina. Na mão direita, ela tem um revólver, que
aponta e dá tiros em alvo(s) que não se vê.
O revólver, como objeto ou símbolo, apresenta-se como conector na instalação da
dimensão cronotópica da Morte. Nesta cena, o tempo, espaço e ação apresentam um foco de
observação: vê-se a mulher atirando, mas não se sabe em quê ou em quem. Outras imagens vão
estar associadas a essa primeira, como: os corpos caídos em duas cenas, um outro corpo na
neve, o enigmático monte marrom na frente de uma mulher que parece o estar velando, um
estranho ponto escuro no chão do bosque, e mesmo a frase dita pelo rapaz ruivo: Sou um jovem
formoso, oro todos os dias. Eu peço: meu Jesus, não me deixe morrer.
O som da marcha fúnebre, ao fundo, não poderia ser mais óbvio. Mas o que se instaura,
através das seqüências de imagens, acontece através da acumulação de diferentes unidades
narrativas, que, no princípio, atordoam pelas sucessivas rupturas, deslocamentos e novas
conexões. Transposta para o campo de trabalho de análise da cena percebe-se uma elaboração
secundária, que consiste em tomar consciência da figurabilidade das imagens, em tirar qualquer
aparência de absurdo e dotá-las de uma ordenação inteligível. Apesar de Pina Bausch impor
uma linguagem articulada a um material corpo-espaço-temporal que não parece conhecer nada
do pensamento razoável, cabe ao pesquisador/analista a crítica-análise da encenação, ou do
produto fílmico.
Cena 2
A próxima imagem é de duas mulheres que passeiam com cachorros por uma espécie de
bosque, com poucas árvores. A natureza está desnuda, das árvores só restam os esqueletos,
troncos sem folhas, árvores sem vida. Em contraposição, as mulheres têm seus corpos vestidos,
envolvidos em grossos casacos, que indicam proteção do meio natural.
Caminham para algum lugar definido. Têm certeza dessa direção. Vêm de algum lugar,
vão para outro. Essa dimensão da determinação, da certeza, do espaço direto, constrói o
cronotopo da objetividade. Conectadas a ele associam-se algumas cenas, como: o caminhar dos
dois senhores idosos, a corrida das moças de maiô, a ação decisiva do transporte dos animais
pela mulher de lenço vermelho na cabeça, os homens que levam as crianças através do bosque,
entre outras. Aparentemente, todos sabem quais são seus objetivos: para onde vão e o porquê.
As árvores sem folhas, aliadas às folhas caídas da cena anterior estabelecem o tempo
outonal, em sentido figurado, o ocaso, a idade que antecede a velhice, mas também o momento
da colheita, que é o tempo do renascer.
Cena 3
Na próxima cena, uma mulher, vestida com o figurino das “Coelhinhas Playboy”, maiô
preto e meias de seda também negras, anda tropegamente por uma elevação de terra
acinzentada, um solo árido, sem vegetação. A mulher tem os sapatos de salto alto nas mãos,
anda meio perdida, em círculos. Usa uma máscara, da qual saem orelhas compridas, como as
de um coelho. Seu maiô, curto demais, deixa seu busto à mostra. Bausch rompe com a idéia de
glamour, sexo, beleza e dinheiro, sugerida pela possível associação do figurino de Bunny Girl,
do famoso clube norte-americano de Hugh Heffner, usado pela personagem. Com o
deslocamento para esse lugar árido, certamente propõe uma reflexão sobre identidades e
aparências, o que se é realmente e o que se aparenta ser, características marcantes da natureza
humana.
Vê-se uma paisagem desoladora, e uma personagem também em pedaços, em
decomposição, como o lugar onde anda, ao fundo pode-se avistar torres e postes de
eletricidade. De repente, ouve-se um barulho de avião e a mulher começa a andar mais rápido.
Anda, corre, tropeça, cai, levanta e continua, cada vez mais cansada.
Em ruptura à certeza da cena anterior, como vetor seccionante-embreador do espaço
direto, estrutura-se o oposto, o indireto, a incerteza. A mulher está caminhando sem saber para
onde, à procura de algo, mas tudo indeterminado. Esta personagem vai reaparecer várias vezes,
continuamente ratificando o sentido do perdido, sem direção, em busca de alguma coisa.
Cena 4
Na seqüência, aparece uma mulher, vestindo short azul claro, ela corre através de um
bosque gritando “mamãe”. Traz laçarotes presos no cabelo em desalinho e usa meias soquetes,
o que remete à figura de uma menina. Tem-se uma acumulação da busca, do procurar algo, do
perdido da cena anterior, mas aqui com uma pista, a palavra, o grito: "mamãe", que por si
desloca e condensa o signo da proteção, do amor, da única certeza humana: a da maternidade.
Nesse sentido, a mãe representa a segurança do abrigo, do calor, da ternura.
Em contraposição, o bosque, a floresta, como símbolo gera, ao mesmo tempo, angústia
e serenidade, opressão e simpatia, como todas as manifestações poderosas da vida. Por sua
obscuridade e seu enraizamento profundo, simboliza o inconsciente. Os terrores da floresta, tal
como os pânicos, seriam inspirados, segundo a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, pelo
medo das revelações do inconsciente. É, portanto, um espaço-tempo simbólico o cenário
utilizado, que atua como vetor conector ao cronotopo da busca, da procura de algo perdido.
Cena 5
Nova imagem da “Coelhinha Playboy” no mesmo ermo cinza, cada vez mais
cambaleante: anda, cai, rasteja, levanta. Através dessas ações, já presentes desde as cenas três e
quatro, começa a afigurar-se o sentido de desespero, que vai seguir, em acumulações com o
sentido de urgência, estabelecido pela intensidade corporal das personagens nas cenas, como a
corrida desesperada da ‘menina’ pelo bosque, gritando "mamãe".
Nessa vetorização, a procura, a busca do perdido, relaciona-se ao amor, à maternidade,
à figura da mãe, da mulher, numa condensação que aponta a eterna busca da felicidade.
Cena 6
Sobre o mesmo terreno de solo acinzentado, da cena anterior, dois senhores idosos, com
compridos e pesados sobretudos marrons, andam com dificuldade, com cuidado, mas com
direção determinada. Andam um atrás do outro, ordenadamente. São muito parecidos
fisicamente. Apesar de caminharem em espaço aberto, o olhar para o chão e a fisionomia
fechada, estruturam um espaço pessoal limitado, em contraste com o espaço físico circundante
da natureza, aberto, ilimitado. Os grossos capotes, as passadas pequenas e dificultosas, a idade
mais avançada dos homens, estabelecem a dominância do fator peso, da opressão, da pressão.
Todo este sentido será reiterado na cena 23, em que os mesmos homens retornam pelo mesmo
caminho.
Cena 7
Num brusco corte, como em contraponto ao peso da cena anterior, duas moças vestindo
maiôs, um azul, outro verde claro, com uma espécie de trouxa de roupas na cabeça, param à
beira da estrada, sob um céu nublado, que indica possível chuva. Atrás delas, pôneis pastam e
vêem-se postes de eletricidade. Aparentemente, desistindo de esperar uma carona que passe
pela estrada. As duas começam a correr por um caminho com placas indicadoras. O som dos
passos correndo lembra o mesmo som do trotar de cavalos. leveza e facilidade corporal,
dominância do tempo rápido, espaço ilimitado circundante. Mas uma certeza de direção,
indicadas pelas placas nominais de estrada-rua, que sinalizam as direções. urgência, pressa,
mas sabem para onde estão indo.
Cena 8
Mais uma vez aparece a “Coelhinha” que, exausta, continua a andar em círculos, sem
sair do lugar. Ao nível de partitura de movimento dominância do espaço indireto, com os
vários focos de atenção estabelecendo a indecisão, e
o trabalho do fator peso, que constrói a exaustão física da
personagem. Voltando-se a atenção para o
espaço físico, a elevação de terra acinzentada, solo
árido, quase sem vegetação, troncos sem folhas e
folhas caídas das primeiras cenas, é possível observar-se o outono, como o tempo-espaço
efetivo.
O Lamento da
Imperatriz
Foto: Detlef Erler
Cena 9
Na mesma estrada da cena sete, agora anda, apressadamente, uma mulher. Com um
leve casaquinho vermelho sobre uma blusa branca, fumando, de salto-alto, só de calcinhas. Ela
caminha com total objetividade. O espaço direto de seu movimento só tem como contraponto a
fumaça livre do cigarro. Ela passa por uma estufa e por outra construção em ruínas. Uma
mulher andando numa estrada não é nada fora do comum, mas de calcinhas. Esse
estranhamento é vetor-embreador de uma série de imagens e ações singulares que serão
apontadas em cenas posteriores.
Cena 10
Uma mulher, vestida com um short e blusa leve colorida, turbante vermelho na cabeça e
salto-alto, arrasta, empurra e, finalmente, carrega no colo um cordeiro. Transporta o animal de
um aparente celeiro até outro, em frente. Em seguida traz do lugar para onde levou o cordeiro,
um bode, de novo arrastando o animal pelos chifres. À ação decisiva da mulher contrapõe-se à
resistência dos animais. Ao fundo ouve-se o latido de cães.
Numa mesma cena três animais. O cordeiro, em sua brancura imaculada, encarna o
triunfo da renovação, a vitória da vida sobre morte. Função arquetípica que faz do cordeiro, por
excelência, a vítima, aquela que tem de se sacrificar para assegurar a própria salvação. Em
oposição, o bode: santo, divino e satânico, simboliza a força vital, a libido, a fecundidade.
Animal impuro e absorvido por sua necessidade de procriar, capta o mal, mas também o mal é
levado embora nele. A troca de lugar, a permanência desses opostos, ainda que em tempo
diferente, no mesmo lugar onde o outro esteve, remete metaforicamente a existência dessas
duas forças no mesmo ser, no mesmo lugar, no mesmo corpo. Divino e satânico, puro e impuro
é o homem. Ao fundo os latidos, o aviso do cão, daquele que tem a função de guia do homem,
companheiro na vida.
Cena 11
Numa casa no meio do bosque, com aspecto de antiga e desgastada, que, pela cor, meio
que se confunde com as árvores, um homem, usando roupas femininas, avental e um lenço
amarrado na cabeça, como as mulheres usam quando limpam as casas, varre a varanda do
chalé. O fator dominante peso-forte, espaço direto, da cena anterior, contrasta com esta
imagem, que mostra alguém varrendo, ou seja, tirando poeira, empurrando para fora, com
movimentos mais leves, sem resistência do material. Do mesmo modo que é interessante
observar a inversão de papéis quanto ao fator peso. É a mulher na cena anterior que tem que
usar força física para transportar os animais, enquanto que nesta cena é um homem que faz a
limpeza do chalé, trabalho que despende menos energia, porém, o sentido da ação física é o
mesmo: tirar, empurrar de um lugar para outro. Pode-se determinar também, a partir das
árvores e da cor das folhas, que a casa fica no mesmo bosque onde andam as mulheres com os
cães, na cena dois.
Cena 12
Uma outra tomada do mesmo bosque da cena anterior, mostra muitas árvores, com
números pregados nos troncos, como casas numeradas. No meio dessa surreal avenida,
caminha uma mulher com uma garrafa térmica na mão. Apesar da numeração excessiva das
árvores, desta ordenação imposta à da natureza, a mulher anda de um lado para o outro,
perdida. Em seu caminhar coloca e retira o braço esquerdo da manga do seu longo vestido de
noite. Esse bosque de placas numeradas nas árvores, como se fosse uma grande e confusa
avenida, em contraponto à elevação desnuda (cenas 3, 5 e 8) estabelecem uma conexão-
deslocamento: em ambas as situações as personagens estão sem rumo certo, perdidas por
excesso ou falta de indicativos de direção.
Também as placas indicativas da estrada-cenário da seqüência 7 são vetores
embreadores, que remetem a esta cena: um bosque com árvores numeradas, onde, apesar da
simbologia de orientação das placas, uma personagem transita aparentemente perdida.
Cena 13
Num brusco corte, esta cena mostra o centro da cidade. Sentada em uma poltrona no
meio do trânsito, num cruzamento, uma mulher fuma tranqüilamente seu cigarro. A mulher é a
mesma que na cena nove caminhava com pressa. Enquanto na cena 12 pode-se observar o
movimento humano rodeado pela estática natureza, nesta cena isto se inverte: temos a mulher
estática o movimento é do ambiente circundante (os carros, o trânsito e as pessoas que
passam).
Porém do mesmo modo que as árvores da cena 12, o trânsito, os carros que passam,
ignorando totalmente o elemento cênico colocado bem no centro - mulher sentada em uma
poltrona no meio do trânsito. Apenas uma pessoa a olha surpresa, por um segundo, e continua
seu caminho. Mas os carros continuam a passar como se nada houvesse. O mesmo que com
a mulher, que continua imperturbável, fumando seu cigarro. Configura-se assim a dimensão da
solidão humana que parece ser um exercício da contemporaneidade urbana. Apesar de se estar
no meio de centenas de pessoas, elas não se vêem, ou se evitam com discreta indiferença.
Símbolos da estabilidade, as cidades, instaladas no centro do mundo, refletem a ordem
celeste e recebem a sua influência. Duas vias perpendiculares ligam-se às quatro portas
principais e fazem com que o plano da cidade assemelhe-se a mandala. Segundo a psicanálise
contemporânea, a cidade é um dos símbolos da mãe, em seu duplo aspecto de proteção e de
limite. Da mesma forma que a cidade possui seus habitantes, a mulher encerra nela seus filhos.
Segundo o pensamento medieval, o homem é um peregrino entre duas cidades, a vida é uma
passagem da cidade de baixo à de cima. Uma mãe terrível, se nos reportamos ao mundo urbano
atual, cada vez mais solitário, com filhos cada vez mais imersos na angústia existencial.
Talvez, por isso, seja tão fácil se entender a relação entre o centro nervoso da cidade e o
vazio do bosque. A situação é a mesma, seja da mulher sentada no centro da cidade, ou da
mulher no meio do bosque, está inexoravelmente só.
Cena 14
No mesmo bosque de árvores numeradas, homens caminham levando no colo crianças
que choram e chamam pela mãe. Caminham com determinação, sem sinal de preocupação com
o choro das crianças, parecem certos do caminho a percorrer. Quanto à movimentação, tem-se
ênfase no espaço direto para os homens e o indireto no choro das crianças. Esta é a segunda
cena em que se tem, em forma de grito, a palavra "mamãe", vetor conector ao apelo da cena 4.
Essa dimensão da busca do afeto perpassa todo o filme, apontando, em vários momentos, a
figura materna como suporte afetivo.
Cena 15
Até aqui todas as tomadas foram externas. Esta é a primeira em espaço fechado.
Um salão com afrescos nas paredes e barras em volta, provavelmente uma sala para
aulas de dança. Um rapaz ruivo, de olhos fechados, trajando um vestido de noite, desliza a
mão pela barra. Seu toque, bem delicado, sugere um momento de recordação, assim como o
vestido longo que usa. Pode-se ainda associar a imagem da barra como um dos paradoxos da
dança, que tem a barra como lugar inicial de apoio (que o aluno conta para poder exercitar seu
equilíbrio) e que deve ser abolido (enquanto apoio físico) para os futuros momentos de
virtuosismo – na verdade, é uma aliada dos primeiros passos.
Metaforicamente, o choro das crianças da cena 14, pode se relacionar com o caminhar-
deslizar do rapaz, no sentido da lembrança talvez dos seus primeiros momentos da dança. Por
outro lado, o vestido longo, aberto nas costas, que usa o rapaz ruivo, sugere uma figura
f7eminina, a lembrança dessa mulher, provavelmente dona do vestido, ou mesmo a
transformação nessa mulher. O que nos remete, por deslocamento e conexão, à figura citada
da "mãe" - mãe que se quer imitar, da qual fica, para sempre, as lembranças: como o toque
gentil na barra.
Esta é a segunda cena em que um homem está de saia, a primeira vez foi na cena 11, o
que começa estruturar a dimensão do masculino-feminino, do travestimento, e todos seus
possíveis desdobramentos.
O masculino-feminino, “compreendido num plano mais elevado, mais amplo, da alma é
a combinação desses princípios, elementos que vêm das esferas cósmicas”
427
. O masculino
emite a força da vida, esse princípio de vida está sujeito à morte. A fêmea é a portadora de
vida, ela anima. No vel místico, o espírito é considerado masculino, a alma que anima a
carne, feminina; é inevitável a dualidade do animus e da anima. Mesmo se colocados no campo
da sexualidade, é evidente que o homem ou a mulher, comportam os dois elementos. Essas
duas palavras, masculino e feminino, não são apenas expressão da sexualidade, mas
427
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro. Ed. José Olympio.
1993.p.123.
simbolizam dois aspectos complementares ou perfeitamente unificados do ser, do homem, de
Deus.
Por outro lado, tem-se o andrógino. Partindo do entendimento que todo ser humano
é indiferenciado na sua origem, tornar-se una é a finalidade da vida humana. A androginia
aparece, assim, como uma das características da perfeição espiritual, estado inicial que deve
ser reconquistado. Sem pretensão de polemizar o assunto, apenas pretende-se expor sua
simbologia, importante para a análise proposta.
Cena 16
Um homem de terno escuro, com uma pá, cava um buraco no mesmo solo acinzentado
da cena da “Coelhinha” (cena 5). Em seguida, pega várias pedras coloca-as no buraco e
começa a cobri-las, com urgência, agora usando as próprias mãos e não a pá. Sua ação é abrir
a terra e esconder algo nela, sua movimentação é direta e rápida. Ao seu lado aparece um
guarda-chuva masculino, fechado e enfiado no solo. Conecta esta cena, por deslocamento, à
primeira, do revólver. A dimensão da suspeição, da dúvida, de algo que não se realmente,
mas do qual se suspeita, vai sendo construído. algo escondido, algo proibido, interdito, não
legal, que se percebe nas entrelinhas.
A cor acinzentada desse espaço percorrido pela ‘coelhinha’ e agora pelo homem de
terno escuro, se conecta ao cronotopo da Morte, pois a cinza é um valor residual por
excelência, o que resta após o fogo, o cadáver, o que resta depois que se extinguiu o fogo da
vida. A cinza representa a nulidade ligada à vida humana, por sua precariedade. Tristeza,
melancolia, enfado. Por sua vez, o buraco, que o homem cava, pode ser entendido como
símbolo da abertura para o desconhecido, repleto de potencialidades. Unido ao guarda-chuva,
que se prende ao lado sombrio, do encolhimento, da proteção, revela uma recusa tímida aos
princípios da fecundação, seja ela material ou espiritual. Abrigar-se sob um guarda-chuva é
uma fuga das realidades e das responsabilidades. A pessoa se ergue debaixo de um pára-sol,
mas se curva sob o guarda-chuva. A proteção assim aceita traduz-se em uma diminuição de
dignidade, de independência e de potencial de vida.
Desse modo, a cena projeta-se como vetor condensador do cronotopo da sombra, do
lado sombrio da natureza humana. A sombra é, de um lado, o que se opõe à luz, de outro, a
própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes. A análise junguiana qualifica de sombra
tudo o que o indivíduo recusa reconhecer ou admitir. Ficam reprimidas no inconsciente,
tendências ocultadas. Equivalente ao reflexo ou ao duplo.
É nesse momento que também termina a marcha fúnebre siciliana, que esteve como
fundo musical durante todas as cenas até aqui.
Cena 17
A próxima seqüência é em silêncio. Tem-se a imagem de uma mulher de busto nu. Os
olhos estão vedados por uma tarja preta, como em fotos proibidas. O busto nu, assim exposto,
remete a uma regra social desrespeitada, uma transgressão – o proibido.
Se na tomada anterior o homem escondia algo, enterrava, nesta cena a mulher está
escondida por uma tarja negra. É possível a associação desse “proibido”, escondido
intencionalmente pela tarja, com o “proibido-escondido” da cena anterior, em que o homem
esconde, por sua própria opção, algo no buraco. Na verdade dois momentos do ato de esconder:
um definido pela sociedade, pelos tabus sociais ocidentais - o nu; outro pela deliberação
pessoal, mas que remete também a alguma ação interdita ou, no mínimo, suspeita. E o silêncio
que acompanha o close da câmara pode ser entendido como prelúdio de abertura à revelação,
ou como mutismo, impedimento à revelação. O silêncio abre uma passagem, o mutismo a
obstrui. Um dá grandeza às coisas, o outro as deprecia e degrada.
A nudez é símbolo que se desenvolve em duas direções: a pureza física, moral,
intelectual e espiritual, e a da vaidade lasciva, provocante, em benefício da matéria e dos
sentidos. Símbolo de um estado em que tudo está manifesto, não oculto. Mas por vezes, é
pejorativo: a nudez é a vergonha. Mas uma coisa é certa: tanto o buraco, como a tarja,
impede a revelação. A conexão com o cronotopo da sombra é evidente.
Cena 18
Em seguida, ao som do Kaichin, uma meditação Zen, abre-se um plano geral: num
imenso campo verde, um homem caminha com dificuldade, carregando um enorme armário
nas costas. O fundo musical lembra o som de vendedores ambulantes portugueses e
brasileiros, os chamados “cavalo-sem-rabo”, que caminhavam apregoando seu material, suas
vendas ou compras. O homem pára, coloca o armário no chão, arquejante.
Em flash-back, Bausch retoma a imagem do rapaz de vestido, deslizando a mão pela
barra (cena 15), o fator de peso leve contrasta com o fator peso-forte trabalhado pelo homem
do armário, nesta cena, e à imagem da mulher de busto nu com a tarja nos olhos que se
relaciona ao limite social, do mesmo modo que carregar o armário aponta para um limite do
esforço físico.
É interessante observar essa figura do homem como símbolo, não apenas o dotado
de força, coragem e vigor sexual. Nessa acepção, ele toca nos três níveis cósmicos: no
terrestre, pelos pés; na atmosfera, pelo busto; no celeste, pela cabeça. Participa dos três
reinos: mineral, vegetal e animal. O homem é símbolo de um de relações cósmicas. O
homem é espírito e carne. Mas existem os privados de espírito. Um dia virá, talvez, que o
homem será apenas carne e, nesse caso, ele corre o risco de perder a sua imortalidade.
Quanto ao aspecto da força, também vale se observar sua simbologia: o leão domado
por uma Virgem, força física versus força espiritual. Vitória do espírito sobre a matéria,
uma sublimação dos instintos. Mais uma vez Bausch parece convidar à reflexão sobre o
masculino-feminino em outra esfera.
Cena 19
O som de uma música latina, um bolero, inicia nova seqüência. Um close enfoca um
rosto cuidadosamente maquilado de uma mulher, um rosto belo, de linhas clássicas. Alguém
mexe delicadamente em seu nariz, mas o rosto continua impassível. Belo, mas estranhamente
sem vida, porém, a música tem calor, opondo-se, ou rompendo com a frigidez do rosto em
foco. Dá-se início ao cronotopo do idílio.
Esse rosto, imagem que vai reaparecer inúmeras vezes, é simbólico do desvendamento,
incompleto e passageiro da pessoa. Símbolo do mistério é uma porta para o invisível, cuja
chave se perdeu. Ninguém jamais viu seu próprio rosto, é possível reconhecê-lo através do
espelho. Assim, o rosto não é para si mesmo, é para o ouro, é para deus; é a linguagem
silenciosa. É a parte mais viva e mais sensível, que apresentamos aos outros. É o eu mais
íntimo parcialmente desnudado, mais revelador que todo o resto do corpo. Não é por acaso,
portanto, que este rosto específico, seja apresentado por Bausch absolutamente neutro. Ao
contrário do que poderia esperar, ele nada revela, perece destituído de emoção, e nisso é
revelador sim, da condição contemporânea do homem, na sua apatia, solidão e
incomunicabilidade. É um rosto, mas é também sombra a que o calor do bolero faz terrível
contraponto. Se a cabeça representa um microcosmo do homem, este microcosmo está
impenetrável e cada vez mais defendido, parece afirmar Bausch.
Cena 20
Um rápido corte e tem-se uma estufa de flores, onde uma mulher aperta o cinto que está
usando o máximo que pode. Em seguida conta nos dedos o tempo que consegue prender a
respiração, repete a ação várias vezes. Mais um trabalho sobre o limite físico, aqui provocado
conscientemente pela própria pessoa, o limite corporal. Que se conecta com o homem do
armário da cena anterior
A estufa, jardim fabricado, pode ser entendida como símbolo do paraíso, ou do poder
do homem sobre a natureza domesticada. é possível determinar o tempo, além de definir o
espaço.
Na mesma estufa de flores, outra mulher acompanha o ritmo sincopado da música
usando o corpo como instrumento, batendo em várias partes do corpo. Aqui, o corpo é
experimentado enquanto possibilidade de sons, enquanto possibilidade de comunicação.
Porém, é uma comunicação do corpo com ele mesmo, pois nada indica que haja mais alguém
por perto. A mulher sorri, aparentemente satisfeita com sua brincadeira. Ao mesmo tempo,
uma espécie de cortina de água cai sem parar sobre um vidro, turvando a imagem, mas é
impossível saber se ela corre por dentro ou por fora da estufa. O que oferece uma possibilidade
de leitura da dubiedade da alegria da mulher, estará ela feliz consigo mesma, com os sons, com
a composição sonora corpo-bolero-água? Estará sorrindo por dentro ou por fora?
O Lamento da Imperatriz
Malou Airaudo
Foto: Detlef Erler
Cena 21
Continuando nessa dimensão do impreciso, do dúbio, do enganoso, um novo corte, um
close apresenta uma imagem de um corpo caído na terra com passarinhos em volta, ciscando
no terreno. Aos poucos, a câmara se afasta e a imagem se transforma. Agora é como se a
câmara olhasse através de um vidro e a cena se passasse do outro lado.
Mais uma vez, como na cena anterior, confunde-se a perspectiva do espectador, que não
mais pode ter certeza se a cena se passa no ambiente externo ou se o corpo caído está dentro de
algum lugar, ou seja, se aquilo que se viu como 1ª imagem era um reflexo na vidraça que unia
a imagem do ambiente interno (corpo caído) com o ambiente externo (passarinhos ciscando).
Também não é possível determinar se o corpo é de um homem ou de uma mulher. Mas um
corpo no chão, vetor conector à dimensão da Morte, do suspeito. Observa-se que à imobilidade
do corpo opõe-se o movimento leve dos passarinhos e o calor do bolero, que permanece como
fundo musical. Na verdade o que se configura também é a impossibilidade de uma Verdade. Lá
está, é uma imagem concreta, mas não é possível se determinar uma verdade absoluta.
Cena 22
Novo corte, volta-se ao bosque, o tempo-espaço é o mesmo das cenas iniciais, outono
provavelmente. Um homem iça uma criança presa pela cintura, até um alto ramo de uma
árvore. Ele a deixa ali, chorando e balançando, ao mesmo tempo em que ela chama, entre os
soluços, pela mãe. Na cena 14, observou-se um grupo de homens se dirigindo para algum lugar
com as crianças. A seqüência da próxima cena que se conecta seria esta, podendo-se concluir
que esse é um método bastante eficiente de se tomar conta de uma criança, que é pouco
provável que ela possa escapulir.
Agregando a essa dimensão do cuidar de algo, ou de alguém, obtém-se vetores-
deslocamento que poderiam confirmar essa dimensão - a dificuldade já conhecida que os
homens têm de cuidar de crianças – as cenas seriam a da menina que corre no bosque
chamando pela mãe (cena 4), o cortejo dos homens com crianças andando pelo bosque (cena
14), a presença constante do choro das crianças e a chamada pela 'mãe' em várias cenas, e a
efetiva culminância nesta tomada.
O aparelho, ou instrumento apresentado, corda que iça e prende a criança no alto, pode
muito bem servir para se entender o motivo do desespero dessas crianças, pois deviam saber
o que as esperava. De novo o apelo materno é reiterado como a única busca de ajuda e afeto. E
o bosque, continua gerador de angústia por sua obscuridade e seu enraizamento profundo. A
criança abandonada na floresta, balançando no galho de uma árvore, certamente remete às
torturas medievais, das clausuras nas torres.
Cena 23
Os dois senhores idosos da cena 6 voltam, descem pelo mesmo caminho, com a mesma
dificuldade para andar, pois os pés afundam na terra cinza, mas com a mesma certeza do
caminho a percorrer. O espaço físico apresentado nesta cena é o mesmo das cenas iniciais.
Portanto um caminho importante, por onde transitam várias personagens em momentos
diferentes. Fica claro que está perto do bosque, das árvores, talvez perto da estrada que conduz
à cidade. É com certeza parte dos arredores da área urbana. Um caminho difícil, mas passagem
de muitos. Por quê? A questão talvez seja: por que existem tantos caminhos difíceis a serem
percorridos? E porque pacientemente os percorremos durante toda a vida?
Cena 24
A mulher vestida de “Coelhinha” agora cava com as mãos no mesmo lugar da cena 16,
em que o homem de terno escondeu algo em um buraco. Não acha nada. Apesar de ter uma
nova ação em sua partitura, cavar, que é forte e direta, esta não consegue ser dominante. A
mulher permanece com sua característica de indecisão, de procura, com dominância do fator de
espaço indireto, aparentando estar mais exausta.
O lugar é o 'caminho difícil', o mesmo comentado na cena anterior. Lugar árido,
suspeito, onde algo é escondido, em que umas pessoas ficam meio perdidas, e outras parecem
tão certas das direções. O espaço físico da dúvida e da certeza está concretizado num monte de
terra úmida: material da natureza indiferente às angústias do homem, e único conhecedor e
guardião da Verdade, se é que existe. A terra que é a prima matéria, mãe que alimenta, símbolo
de fecundidade e regeneração, sustento de toda sociedade, também se apresenta como arena de
conflitos da consciência do ser humano. E, ao fundo, o som do bolero, que não consegue
romper o peso opressivo instaurado.
Cena 25
Novo corte radical. Um homem dança sozinho na estufa de flores, tranqüilo e feliz, no
seu corpo integra-se a própria natureza, através da lama que o recobre. Não é possível ver-lhe
as feições, cobertas pela lama. Na seqüência, é o terceiro personagem 'mascarado', por assim
dizer. O primeiro foi a "Coelhinha", literalmente de máscara, depois a mulher de busto nu, com
a tarja no rosto, agora o homem-lama. A dimensão da identidade é visivelmente acionada
durante todo o filme, de uma maneira sutil, não esses personagens, mas quase todos são
caracterizadores de um perfil humano, mas não aparecem em suas individualidades, senão
como marcas, traços de personalidades distintas.
Quanto ao lugar - estufa - por si remete à dimensão da proteção. Um lugar
artificialmente produzido para cultivo e guarda de plantas especiais. Lugar onde é possível se
ter a mesma temperatura durante qualquer estação. Metaforicamente, lugar de clima ideal, o
espaço-tempo perfeito construído pelo homem. Por analogia, o fora da estufa, seria o espaço-
tempo não controlável pelo homem, sujeito às mudanças da natureza.
Nesse sentido, o estar na estufa seria estar num lugar perfeito. Até este ponto três
cenas na estufa. A primeira, da mulher que aperta o cinto, segunda, a que tira sons de percussão
do próprio corpo e esta, o homem-lama. Embora a mulher que tira sons e o homem-lama
aparentem tranqüilidade, alegria, a mulher do cinto rompe com isso, pois sua ação mais parece
tortura corporal que um jogo feliz. Porém, sem perder o sentido dessa dimensão, é possível se
entender o apertar o cinto e prender o fôlego como uma tentativa de controlar interiormente o
corpo, do mesmo modo que é possível se controlar o tempo dentro da estufa.
Mas e a lama? Entendida como símbolo da matéria primordial e fecunda, da qual o
homem foi tirado, segundo a tradição bíblica, é mistura de terra e água. A lama une o princípio
receptivo e matricial (a terra), ao princípio dinâmico da mutação e das transformações (a água).
Todavia, se tomarmos a terra como ponto de partida, a lama passará a simbolizar o nascimento
de uma evolução, a terra que se agita, fermenta, que se torna plástica. Mas se, ao contrário,
considerarmos como ponto de partida a água com sua pureza original, a lama se apresenta
como um processo involutivo, um início de degradação. Entre terra vivificada pela água e a
água poluída pela terra, escalonam-se todos os níveis do simbolismo cósmico e moral. No
homem-lama, talvez a tentativa dessa união homem e natureza prima.
Cena 26
Novo corte. Uma mulher, Metchild Grossman, anda na beira de uma piscina de modo
sensual. Usa um vestido justo, sem alças e sapatos de salto-alto. Move-se lentamente, olhando
fixamente para a câmara, estabelecendo um cronotopo da sedução. De repente, numa ação que
aparentemente seria de subir um pouco o soutein, nos surpreende, ao tirar de um dos seios um
enchimento e recolocá-lo. Em seguida a câmara se afasta e percebe-se, mais uma vez, o jogo
de perspectivas, entre o que está em primeiro plano ou não. Desta vez não para determinar
se a mulher está andando pela borda da piscina e sendo filmada por trás de um vidro ou se a
mulher está atrás do vidro, ou seja, está em algum ambiente que fica antes da piscina. Mas fica
a questão: onde estaria a câmara? De que ponto de vista observa-se?
O Lamento da Imperatriz
Metchild Grosman
Foto: Detlef Erler
Através desse jogo, Bausch compromete qualquer tentativa do olhar de uma só perspectiva, de
um ângulo. Consegue abalar ainda a dimensão da sensualidade e até a simbologia do seio,
como medida da maternidade, da suavidade, de segurança, de recursos ao desmascarar os
seios falsos – e, pelo menos por alguns instantes, nos confunde sobre onde exatamente estão os
elementos da cena. O que é uma forma sutil de crítica ao “olho central” onipotente do cinema,
e a ilusão que sempre existe em qualquer olhar. O som do bolero, que perpassou todas as
cenas, da 19 a 26, termina aqui.
Cena 27
O fundo musical agora é como um lamento. Reaparece o rosto bonito, clássico e bem
maquiado da mulher da cena 19. Alguém fala e brinca passando a ponta dos dedos pelo seu
rosto num carinho. Um rosto masculino se aproxima do dela e o homem repousa a cabeça ao
lado da mulher, que esboça então um meio-sorriso. A dimensão do carinho físico, do afago, do
contato, estranhamente tem como fundo musical um lamento, que remete a algo doloroso e não
feliz. Mais uma vez o cronotopo do idílio é sabotado, não reciprocidade ao carinho
masculino.
Cena 28
Numa rápida seqüência, aparece outro rosto de uma mulher que chora, ou melhor,
lágrimas que correm pelas faces e de novo o da mulher maquiada, agora meio rindo, meio
chorando, no mesmo salão em que passeava o rapaz da cena 15.
Nas transições efetivadas observam-se pequenos movimentos, muito sutis, movimentos
aparentemente involuntários, mas que determinam uma enorme mudança emocional. O
equilíbrio ou mesmo a “frieza” da mulher maquiada fica definitivamente comprometido com
sua imagem rindo/chorando. O mais interessante é que agora focalizado de outro ângulo seu
rosto é diferente e nem mesmo fica perto do belo rosto sugerido nas cenas anteriores. A mulher
não é bonita. Novos ângulos, novas leituras, outras percepções que destroem, mais uma vez,
qualquer certeza. Mesmo as imagens em close podem enganar.
Cena 29
Do lamento se passa para uma música forte e ritualística, a Devil Dance, dos índios
norte-americanos, é a vetorização embreadora definitiva para a dimensão do risco, do perigo.
Novo cronotopo. Um homem (Jan Minarik) carrega em cima dos seus ombros, equilibrada, de
pé, uma mulher
428
.
Pode-se relacionar esta cena com a dimensão do esforço físico, podendo-se elencá-la
com a do homem com a (cena 16), a da mulher empurrando-puxando os animais (cena 10) e
a mulher apertando o cinto (cena20). Mas a conexão mais evidente é o equilíbrio desse par em
contraposição com o insucesso do homem do armário ao tentar restaurar seu equilíbrio (cena
18). Uma situação de risco, acompanhada por uma
música repetitiva, ritualística. Os corpos estão em
atenção e tensão absoluta.
O movimento do equilíbrio nos ombros, que aparece em várias
obras, como nesta foto da peça Ahnen
428
Esta partitura corporal – mulher de pé em cima dos ombros de um homem- acontece em várias obras de Pina
Bausch, mas com sentidos diversos.
Foto: Gert Weigelt
Cena 30
Em rápidas seqüências vê-se um rosto de japonesa produzido como uma “gueixa”. Mas
não está impecável - como as gueixas tradicionais - o rosto está manchado, o batom meio
borrado e a peruca em desalinho. A japonesa rasga uma tira de papel com as mãos, em
pedaços iguais, com precisão total. O som é o do papel rasgado e da música ritualística.
Em seguida, uma mulher, vestindo apenas uma combinação, no meio da chuva se move
sem parar. Ouve-se apenas o ruído da chuva e da música ritual, no seu fluxo constante. É um
corpo entregue a um estado especial, um corpo que dança a água que por ele escorre, está em
um tempo também especial, o tempo da chuva, um ritmo da natureza, apoiado pela música
ritual
429
.
Aparece mais uma vez a imagem da “queixa”, que continua a rasgar o papel. Sua
“máscara” mal feita contrasta com o rosto perfeitamente pintado da mulher da cena 21. Todos
os corpos estão em um estado especial de tensão e atenção concentradas.
Cena 31
A partir desse ponto, o elemento água surge dominando e caracterizando a dimensão do
fluxo livre, de acordo com sua própria natureza. São várias e rápidas cenas com a presença do
elemento água.
429
A presença da água na obra de Pina Bausch é constante, elemento que determina radical mudança na
movimentação corporal e suas escritas. Sobre esse assunto, ver artigo: SERVOS Norbert. Het water van Pina
Bausch. Translation: Gabriel Smeets. In www.pina-bausch.de en -www.hollandfestival.nl
Retorna a dança da “mulher na chuva”, da Cena 30. O seu corpo se alonga, se estica e
depois se recolhe, tudo muito ligado, veste uma espécie de combinação ou camisola fina.
A coreografia continua com a mesma bailarina, que agora traja um longo vestido
vermelho de veludo. A movimentação é a mesma, com a água caindo sem parar, um pouco
mais rápida. Uma variação apenas no tempo rítmico. Em seguida, volta a imagem dela com a
combinação.
O eixo das três tomadas é sem dúvida o fluxo livre da chuva que cai insistentemente,
assim como a movimentação da mulher na chuva. Do mesmo modo que é impossível se
dominar ou dirigir esse cair da chuva, o corpo da bailarina parece amalgamar-se nessa água, e
como num ritual, ele dança a chuva, ou as águas.
Entre os germanos, são as águas que correm primeiro na primavera, na superfície dos
gelos eternos, que constituem a origem ancestral de toda a vida. Vivificadas pelo ar do sul, elas
se juntam para formar um corpo vivo, o do primeiro gigante Ymir, do qual procedem aos
demais gigantes e os homens. Semente divina, origem da criação, a água é pureza, é vida.
a chuva vinda do céu fertiliza a terra. Filha das nuvens pesadas e da tempestade, a
terra reúne em si os símbolos do fogo (relâmpago) e da água. Fertilização espiritual e material
é a substância do céu. Esperma, agente fecundador do solo.
Cena 32: O Corpo em diversos estados
Do estado líquido, uma transição para o ar, um estado gasoso. O vetor seccionante-
embreador, organizado pela ação da bailarina, uma série de saltos-estrela, introduz nova
dominante: o flutuar. Sem parar, tendo o corpo coberto por panos diáfanos, provavelmente
saias, ela atravessa um espaço indefinido
430
. Sem peso, sem direção, num fluxo contínuo.
430
Esta cena é parte da obra Walzer (1982), em que a bailarina circunda o palco três vezes, sem interrupção, com
o salto conhecido como 'estrela'.
O Lamento da Imperatriz
Bénédicte Billiet
Foto: Detlef Erler
Nesse momento, a música ritual pára, tem início um toque surdo de percussão e metal,
de novo o Kaichin, música de meditação Zen. Surge a figura de um homem (Dominique
Mercy), usando maquiagem e roupa feminina, um vestido longo de pano muito leve, que
esvoaça no ar, e lembra a roupa da bailarina anterior.
Reaparece a bailarina, fazendo o salto “estrela”. Em seguida, o homem travestido
(Mercy), entra numa espécie de aquário de vidro transparente, cheio de água e submerge, ou
melhor, flutua. Andrógino, uma das características da perfeição espiritual. Estado inicial a ser
reconquistado.
O núcleo comum das tomadas é o fluxo contínuo e a leveza. A dominância desses
fatores à cena uma atmosfera etérea, principalmente pelo uso do material leve dos panos.
As imagens são oníricas. Domínio total da leveza, do fluxo livre, experimenta-se o flutuar na
terra, na água e no ar. Desmaterialização, passagem ao corpo sutil, símbolos de estado
espiritual. Por momentos, abandona-se o mundo terreno para ter acesso ao celeste: é liberdade.
Cena 33
Contrastando com o total equilíbrio da cena anterior, esta cena, em câmara lenta, mostra
uma mulher que sobe nos ombros de um homem e se atira de cima, sendo amparada por
outros homens, que estão à frente. Apesar do aparente desequilíbrio, é possível se notar
também o fluxo livre, no momento da queda. que aqui o fluxo é contido pelos outros
bailarinos. A situação de risco, de limite, também se configura, aliada ao elemento confiança,
que o sucesso da ação depende dos outros participantes da cena: os que aparam, sustentam a
queda. Tem-se o fluxo livre e o sustentado integrado. A música que acompanha as cenas é
ritualística, como é ritual esse corpo que flutua, salta, vai além do seu provável, ousa estar sob
a água e no ar.
Cena 34
O vetor seccionante acontece através da mudança musical, agora um solo de
contrabaixo, que emite um som profundo, sugerindo as entranhas, mas que é fundo musical
de uma cena de estruturado distanciamento.
No centro da cidade, com carros passando, um homem, agachado no meio fio, faz a
barba. Ele está de terno e com uma mala tipo executivo, elementos que poderiam indicar um
pequeno burguês. Porém ele rompe com qualquer regra sociocultural por sua atitude. A rua
está molhada pela chuva e o homem usa a água empoçada para fazer sua barba. Os carros,
passando em alta velocidade, respingam água no homem. Este permanece imperturbável na
sua ação lenta - que contrasta com a velocidade do trânsito - e direta, os carros não parecem
notar a estranha figura.
Sem dúvida uma cena que faz refletir sobre a solidão urbana, ainda que em torno
estejam centenas de pessoas. Vetor conector que se aproxima da cena da mulher sentada no
meio do trânsito, a mesma situação, mesma dimensão. Interessante observar que o absurdo da
situação, que no primeiro olhar parece engraçado, ridículo, em fração de segundos, apaga
qualquer vislumbre de sorriso, levando o espectador a uma séria reflexão.
Cena 35
Em contraponto à cena anterior, à paciente ação de escanhoar o próprio rosto, aparece a
imagem da mulher do longo vestido de veludo vermelho, da cena 31, batendo no chão com um
saco. Ela o abre, pega alguns tijolos no chão, coloca dentro do saco, e continua a sua ação
rápida e forte: quebrar os tijolos. A cor vermelha do seu vestido colabora na estruturação dessa
dimensão de fúria, de violência, que também permite associar esta cena à raiva do homem que
carrega o armário. Há uma espécie de catarse corpórea caracterizando a violência.
Por outro lado, observa-se, tomando como ponto de análise o tijolo, outra possibilidade.
Como símbolo, o tijolo representa a construção, a casa, o abrigo, a proteção. Sua destruição
aponta talvez para o esfacelamento, infelizmente consciente, desses valores humanos. Valores
que têm estreita relação com os laços familiares, com os relacionamentos originais do homem.
Símbolo do homem preso à sua casa, sua terra e sua família, representa a segurança da
moradia, mas também o limite Ele é regra, medida, uniformidade, que a personagem destrói
exaustivamente.
Cena 36
Se a cena anterior permite, por deslocamento, a associação a valores em decomposição,
esta oferece uma reflexão sobre a comunicação.
Em um banheiro, uma mulher, com um telefone na mão, tira o fone do gancho, escuta o
sinal e disca um número. Abre a torneira da pia e coloca o fone perto da água (do som da
água). Fecha a torneira, pega um papel e o amassa, fazendo com que este som seja captado
pelo telefone. Vai até o vaso sanitário e a descarga (colocando o telefone perto). Leva o
fone ao ouvido e desliga com um meio-sorriso. Uma comunicação evidentemente diferente, a
partir dos diversos sons. O que apresenta nova reflexão sobre o porquê de se usar apenas a fala
para nos comunicarmos. Bausch experiência uma forma alternativa, ou a não comunicação
humana é talvez reafirmada de modo sutil.
O Lamento da Imperatriz
Mechthild Grossman
Foto: Detlef Erler
Por outro lado, observa-se uma nova utilização do elemento água nesta cena. A água
aqui é linguagem cifrada para alguém que não se vê, o que também a relaciona à cena 1, em
que não se sabe em quem a mulher atira, e à cena16: o que o homem esconde. Volta-se,
portanto, também à dimensão do suspeito, da dúvida, do segredo, que tanto pode ser fonte de
angústia, para quem o guarda como para o que o teme, como também privilégio do poder,
como ilustra a cena.
Cena 37
Continuando na dimensão do suspeito, do que não se vê, a próxima tomada mostra três
cachorros que latem para alguma coisa que está acima deles. Em seguida temos a imagem de
um enorme cão em em cima de uma miniatura de sofá. Ao seu lado, no chão, dorme uma
criança. A sugestão é do animal que cuida e protege o bebê, no lugar dos pais ou parentes. Se
os três primeiros cachorros mostram um quê de violência, o segundo quadro aponta um cão
tranqüilo, em posição de protetor, não de “invasor”, como os anteriores. O som do latido de
cães está presente em diversas cenas, o que estabelece determinada localização espacial. Os
cães estão perto da casa, vide as paredes perto dos três cães, um deles está dentro da casa, perto
da criança que dorme. Na cena 10, em que a mulher transfere animais de um lugar para outro,
ouve-se latidos de cães, o que sugere ser aquele lugar, talvez o mesmo desta cena.
Outra conexão por deslocamento seria a desta cena do cão tomando conta da criança
com a do homem que iça a criança e a deixa no bosque. Ambas podem ser entendidas como
maneiras de 'guardar' crianças. Durante todo o tempo, o som grave do contrabaixo lembra uma
estranha canção de ninar. Simbolicamente, o cão tem a função mítica de psicopompo, guia do
homem na noite da morte, depois de ter sido seu companheiro no dia da vida.
Cena 38
Outro corte, e retorno, por deslocamento e conexão à dança na chuva. É a mesma
mulher de vestido de veludo vermelho, da cena 31, no seu solo da dança com os dedos, na
chuva. A seqüência de movimentos é a mesma. Ela continua a “escrever no ar” com os dedos,
enquanto seu corpo se abre e fecha em espasmos, que parecem ser resposta ao castigo corporal
da chuva. Apenas a mudança no fundo musical, da música ritualística para o som profundo
do contrabaixo, como um grande e solitário lamento. Lembrando que o signo água está ligado a
purificação, limpeza, pode-se associar ainda esta estranha dança a um ritual de batismo, de
purificação.
A dança, que pouco aparece no filme, na forma tradicional, é celebração, é linguagem
para aquém da palavra. Porque as palavras não bastam os homens apelam para a dança. Sua
identificação é com o imperecível; celebra-o. Simboliza estados de alma distintos, exprime e
pede uma espécie de fusão num mesmo movimento estético, emotivo, religioso ou místico, que
é como uma volta ao Ser único, de onde tudo emana, para onde tudo retorna, por um ir e vir da
energia vital. Nesse sentido, a dança da chuva é perfeita.
Cena 39
Outro corte, outro retorno. Reaparece a mulher com o telefone. Continua em um
banheiro, segurando o aparelho telefônico. Olha-se no espelho em cima da pia, ajeita os
cabelos, remetendo ao cronotopo da sedução.
O som da água mistura-se ao som do contrabaixo, o barulho da água é música. A água é
o elo entre a cena anterior e esta, água que cai naturalmente, livremente, na cena 38, enquanto
nesta ela corre, mas dirigida, aprisionada pelos canos. A água também é comunicação, como
também o foram os latidos dos cães.
Cena 40
Novo vetor seccionante. Ao lado de uma mesinha redonda, com pratos, bebida e cálices
finos, está sentado um homem. Ele traja um robe de chambre de cetim acinzentado, meias de
nylon femininas, seguras por uma liga, sapatos femininos de salto alto, usa óculos escuros.
Senta-se, cruzando as pernas de modo que lembra uma estereotipada pose sensual feminina.
Fuma displicentemente um cigarro em sua piteira. Ele está junto a uma grande janela de vidro,
de onde se pode ver a rua molhada pela chuva. Uma atmosfera cinza, assim como
estranhamente cinza é a comida que está nos pratos e a figura do homem. Cor que remete à
podridão, decomposição. O local onde está fica na parte urbana da cidade. Os tons cinzas da
cena parecem dar um peso maior ao som grave do contrabaixo, uma maior densidade à cena,
apesar da suavidade da ação de fumar do homem. O travestimento da figura choca-se com a
'normalidade' da cena urbana que se vislumbra pela janela.
Embora indiretamente, a cidade está na cena, ela é o fundo do quadro, totalmente
indiferente. Como se o movimento externo nada tivesse a ver com o interno. Porém, pode-se
também entender como mudanças internas que não são percebidas externamente, ou, que se
ignora por comodidade. A cor cinza remete por conexão e deslocamento à cinza É um valor
residual por excelência, o que resta após o fogo, o cadáver, o que resta depois que se extinguiu
o fogo da vida. A cinza representa a nulidade ligada à vida humana, por sua precariedade.
Tristeza, melancolia, enfado. Qualidades certamente observáveis nesta cena.
Cena 41
Corte e inversão marcante, apresenta um rapaz ruivo sentado numa poltrona. Atrás dele
um painel com uma gravura de uma super-heroína. As cores quentes predominam na cena -
vermelho, laranja e amarelo, o que contrasta com a monocromática cena anterior. O rapaz diz
um texto: Sou um jovem formoso, oro todos os dias. Eu peço: meu Jesus, não me deixe
morrer”. É o mesmo homem que aparece na cena 15, trajando um vestido de noite e deslizando
a mão pela barra.
O Lamento da Imperatriz
Filmagem: Pina Bausch e Mark Sieczkarek
Foto: Detlef Erler
O ambiente de cores quentes apresenta um personagem com um discurso que indica
certa angústia, enquanto que o homem da cena 40, apesar dos tons cinzas da cena, aparenta
uma tranqüilidade absoluta aliada à sua estranha figura homossexual. Apesar da sua 'oração', a
figura atrás dele é o desenho de uma sensual mulher, como os que se em histórias de
quadrinhos. O desenho, que tem como dominante as linhas curvas, faz um estranho fundo ao
rosto do rapaz, pois suas orelhas têm o mesmo feitio da folhagem que está abaixo da mulher. O
desenho colabora para o ar demoníaco, evocando o fogo devorador, os delírios da luxúria, a
paixão, o desejo, o calor de baixo, que consomem o ser físico e espiritual.
Cena 42
Mudança de música, agora começa um som de música oriental, sensual. A câmara
focaliza, em close, um torso masculino nu que executa uma movimentação dos órgãos internos,
do diafragma. Uma dança interna que apresenta um domínio muscular desses órgãos, e remete
por associação, à dança do ventre.
Num segundo momento, tem-se um rosto de mulher, com os olhos cerrados. Sobre as
pálpebras e sobre os lábios estão pequenas manchas de tinta vermelha. Dos olhos cerrados
escorrem lágrimas. Ao contrário, do domínio orgânico do homem de torso nu, as lágrimas que
brotam no rosto da mulher sinalizam a impossibilidade do controle do emocional, que não
depende só de um controle muscular, orgânico, mas também do psíquico.
O elemento água aparece mais uma vez, com nova conotação semântica, como água
que brota de dentro do corpo, intimamente ligada à emoção. Lágrima, gota que morre
evaporando-se, após ter dado testemunho: símbolo da dor e da intercessão.
Cena 43
Novo close, alguém segura o rosto de uma mulher japonesa fortemente, enquanto, com
a outra mão, raspa sua nuca com uma navalha. Numa seqüência rápida reaparece o corpo
coberto de lama que dança livre dentro da estufa de flores. O contraste entre o corpo
submetido, da japonesa, e o corpo livre da estufa é óbvio.
Cena 44
Mudança de música, para uma latina, um bolero. A mesma seqüência da dança na
chuva com os dedos, cena 31, reaparece, agora executada pela bailarina japonesa. Ela traja
um leve vestido de verão, mas está no meio de uma tempestade de neve. Observa-se que,
ainda que submetido ao suplício do frio e da neve, o corpo continua a trabalhar, luta sem se
deixar subjugar, em sua dança-escrita
431
. O elemento água continua presente, agora em
forma sólida, como pequenos flocos de neve. Enquanto o inverno se apresenta, em
contraponto, a música que o introduz é um 'caloroso' bolero. A neve ilustra o novo tempo: o
inverno.
Cena 45
Em um ambiente fechado, provavelmente um quarto, um homem e uma mulher estão
numa cama. É a mesma mulher bem maquiada da cena 19. A mulher tem um vestido de saia
ampla. Ela arruma as saias e deita. O homem leva seu corpo (torso nu), por cima da mulher.
431
Em Tanzabend II (1991), Bausch também usa um simulador de neve para cobrir o palco, trazendo, mais uma
vez elementos naturais para a cena.
Ela pede um momento, o afasta e torna a arrumar seu vestido para que não amarrote. De novo,
o rapaz reinicia sua investida amorosa e mais uma vez a mulher o pára para se arrumar.
O choque entre um corpo que tem como preocupação primeira o aspecto externo se
contrapõe ao corpo sensível, que tem sua ação determinada pelo movimento interno do desejo.
A dimensão da sensualidade, que começou a ser delineada na cena 19, com o rapaz fazendo
carinho no rosto da mulher, é retomada. Esta cena é a primeira de uma seqüência em que se
observam relacionamentos amorosos, mas mais uma vez o cronotopo do idílio é sabotado pela
mulher.
Cena 46
Dividida em diversas tomadas, com conexões na dimensão da sensualidade e do
suspeito. Um rapaz, vestindo uma cueca preta, coloca um vestido de musselina negra,
transparente. Sai caminhando normalmente pela sala/quarto.
Em seguida apresenta-se uma senhora loura, de blusa preta, apoiada no batente de uma
janela, com cortinas de renda, que observa fixamente alguma coisa fora, tem o rosto fechado.
Talvez seja por estar olhando o rapaz vestido de musselina negra.
Num rápido close, vê-se sentados numa cama um homem e uma mulher, ambos
trajando vestidos de saias amplas. Arrumam suas saias até que estas se integrem em uma só.
Pela janela, vê-se o teleférico.
Aparece outro casal, um homem e uma mulher, eles brincam com espuma de sabão.
Fazem muitas bolhas e espuma e sopram a espuma um no outro. Riem alegremente. Reaparece
a senhora que estava na janela, ela percebe que está sendo observada, filmada, e entra,
fechando com determinação suas cortinas.
Retorna a imagem do casal que continua a brincadeira com a espuma do sabão. Volta o
rapaz de vestido de musselina negra, que agora escova vigorosamente seu cabelo com um
garfo. Ainda numa última tomada rápida, vê-se o bosque e um homem subindo numa árvore,
como que tentando olhar, observar algo mais além.
Transgressões, brincadeiras carinhosas, situações diferentes, onde o olhar crítico da
mulher da janela contrasta com a liberdade das ações e inter-relações das cenas. O não-aceito,
o condenável parece afirmar-se na sutil fisionomia fechada da senhora da janela, reiterado pelo
cerrar da cortina, quando é surpreendida pela câmara. A observação-vigilância é restabelecida
pela ação do homem que sobe na árvore, também para olhar algo, talvez vigiar. As bolhas
simbolizam a criação leve, efêmera e gratuita estourando subitamente, sem deixar vestígio, da
mesma maneira que esses momentos. O único em que se apresentou o riso: rápido, diluído na
cena, o carinho em forma de brincadeira.
Cena 47
Duas mulheres asiáticas, com toalhas enroladas no corpo, conversam numa sauna
432
. O
calor enche o lugar com uma densa nuvem. Numa seqüência rápida ressurge a bailarina
japonesa com sua dança de dedos no vento e na tempestade de neve. Remetendo a uma
específica dimensão de temperaturas, onde o quente e o gelado também sinalizam as emoções
humanas. É se repensar a situação de caloroso afeto que oferece o rapaz à mulher
maquilada, e a resposta absolutamente 'gelada' dela.
O calor e o frio submetem os corpos, que continuam a resistir e a responder de
diferentes formas. A partir de certos enfoques, Bausch desconstrói o mito de o calor ter de estar
sempre, necessariamente, relacionado ao amor.
Cena 48
Retorna-se à dimensão do suspeito, do observar algo. Crianças, de uma janela,
olham um homem na rua, que equilibra uma estaca na testa. Desta vez os pequenos
432
A sauna, com seus vapores, aparece em Palermo Palermo (1989), representando as termas de tradição
romana.
observadores, apenas olham com interesse, sem julgamento e sorriem ao se sentirem
observados pela câmara, evidenciando na infância o símbolo da inocência.
Numa continuação à cena 47, ressurge a imagem da bailarina japonesa em sua dança na
tempestade de neve Na dança da neve, talvez o aspecto da sublimação desse corpo etéreo,
divino, que baila no branco, cor da revelação, da graça, da transfiguração, cor da pureza,
virginal. Em contraste, em rápida seqüência, reaparece, em close, o rosto do rapaz ruivo da
cena 15 e 41, cercado das cores quentes, vermelho, laranja, com suas estranhas orelhas de
aspecto demoníaco. Não por acaso, o ruivo caracteriza o fogo impuro, que queima sob a terra,
o fogo do inferno, relacionando-se à paixão, ao desejo do ser físico.
Cena 49
A música pára, no silêncio aparece uma mulher, Metchild Grossman, a mesma das
cenas com o telefone. Ela está totalmente molhada, embaixo de uma água que cai sem cessar.
Diz: está bom? Estou gelada. Fala para alguém que a filma, provocando um distanciamento
brechtiano. Não há resposta.
Surge um homem, Dominique Mercy, que se coloca ao lado de Metchild Grossman.
Dão-se os braços. Ela com um vestido claro e ele de terno, formam um casal numa pose das
mais tradicionais. que os dois estão debaixo de uma chuva interminável encharcados. A
mulher pergunta para onde deve olhar. É evidente que a pergunta é da atriz para o diretor.
Não resposta à questão de Grossman, apenas os dois permanecem na pose de 'casal
tradicional', o olhar no infinito.
Bausch, ao inserir essa cena provoca um dos maiores distanciamentos do filme. O
estranhamento é tal que é possível não vê-lo como ruptura, mas sim como o ilusionismo da
ruptura, uma crítica à crítica antiilusionista. Ao mesmo tempo, a idéia do casal, o par eterno, o
amor, é desconstruído quer pela posição estática e indiferente do par, quer pela impessoalidade
dos personagens. Nenhuma palavra entre os dois, apenas silêncio e o barulho da água que cai.
Cena 50
O mesmo homem, Mercy, agora rege uma orquestra invisível, continuando sob a chuva
torrencial. À sua frente uma mesa com tigelas e pratos, sua orquestra talvez. Repete várias
vezes a mesma frase musical, elaborada por sua voz e o ruído da água que cai, sem esmorecer.
O Lamento da Imperatriz
Dominique Mercy
Foto: Detlef Erler
O vigor do regente é impressionante, como se medisse energia com a própria natureza.
O poder do homem e da natureza em confronto. O homem se altera, a natureza apenas
permanece em sua soberania.
O recurso à música, como arte que objetiva a perfeição, que comanda a ordem, surge
num papel mediador, para alargar as comunicações, No comando o homem que, ironicamente,
‘regea matéria estática dos objetos e a força indomável da natureza. Mais uma cena do sutil
humor reflexivo de Pina Bausch.
Nova imagem: a mulher, Grossman, e o homem, Mercy, se olham fixamente.
Simbolicamente, o olhar é instrumento das ordens interiores: ele mata, fascina, fulmina,
seduz, assim como exprime. As metamorfoses do olhar não revelam apenas quem olha,
revelam também quem é olhado, tanto a si como ao observador. Empregar o olhar não é
brincar com o mundo das aparências, é desvendá-lo, para nele se descobrir. Apesar de
próximos, ligados pelo olhar, entre o casal a terrível dimensão da solidão cercando a
cena, reiterada, ao fundo, pelo som da água que cai implacável.
Cena 51
Tem início uma música oriental repetitiva, Lament of Lebanon. Dois rapazes usando
vestidos de baile patinam numa sala em forma de círculo. Seus movimentos sugerem os das
mulheres ao se arrumarem para sair: as mãos ajeitam o corpete e a cintura, indo até os cabelos
com coqueteria. Deslizam suavemente, ao som de uma música árabe. O uso de uma música
árabe para uma cena de dois rapazes travestidos, é no nimo ferino, pois se pode imaginar a
transgressão de tal amizade entre homens nas sociedades muçulmanas, absolutamente
machistas. E ainda a aparência física dos dois rapazes, sugestivamente árabe, sem que se
esqueça que a música de fundo é Lament of Lebanon.
Mais um relacionamento para a dimensão de sensualidade, da sedução amorosa, ainda
que transgressora. Pode-se conectar também ao cronotopo do idílio, aqui referendado pelos
sorrisos, ação de acariciar o próprio corpo e a dominância do deslizar, que sugere a languidez
do estado quase onírico do amor.
Cena 52
O mesmo casal da cena 50 - Mercy e Grossman - estão sentados numa mesa de bar,
tendo à sua frente bebidas, cálices, cinzeiro e cigarros. Ele traja um terno preto. Bebe e fuma,
enquanto escuta a mulher falar. Esta tem à cabeça um arranjo de lenço com uma serpente na
frente, como os usados pelos antigos egípcios. Usa um vestido que cai, expondo seu torso nu.
No começo ela pede desculpas e recoloca o braço na manga do vestido, mas depois ele cai
outra vez e ela continua seminua, apenas de calcinha. A mulher narra uma história.
Em primeiro lugar é evidente que escavaram a sala do faraó, conta. O vestido cai, ela
o recoloca. O homem pega um cigarro, ela pede licença e apanha o cigarro do homem, uma
tragada. O homem pega de novo o maço e acende outro cigarro. A mulher continua sua
narração, parando às vezes para tirar uma tragada do cigarro ou rir da situação absurda.
Ao deixar o momento da risada no filme, Bausch, mais uma vez, deixa registrado um
momento em que o “distanciamento” brechtiano aparece na sua forma mais espontânea
possível. Pois é evidente que entre o casal, como atores, uma percepção da realidade
cômica e absurda da cena os dois riem por segundos, mas retornam rapidamente ao “teatral”
do ator. Interessante observar que o “distanciamento” feito pelos atores, aparentemente casual,
acontece no mesmo momento em que é ativada a “reflexão” do espectador o tempo real dos
atores - ativa o reflexivo do receptor.
Grossman continua: Eram milhões e milhões construindo pedra sobre pedra. A mulher
se levanta da cadeira, o vestido cai outra vez, mas desta vez ela continua sem tentar recolocá-
lo. O homem também ouve atentamente, sem dar mostras de qualquer atenção à nudez da
mulher. E na frente de tudo, haviam colocado uma esfinge, a cabeça exatamente para o norte.
Diz Grossman, enquanto se coloca na posição da Esfinge em cima da cadeira. O homem
observa que ela está virada para o sul. A mulher responde: Ou ao sul, eu não sei.
Apesar do tema dessa narração ser bastante dramático, pois fala sobre um momento da
humanidade onde milhões morreram para erigir edificações tumulares no meio do deserto, a
cena apresenta e leva à reflexão o absurdo histórico desse mundo egípcio, terrível e grotesco,
que tinha como “sentinela” a Esfinge, com cabeça de mulher e corpo de leão um monumento
enigmático, como é até hoje a psique do ser humano.
A dimensão de sensualidade ou do idílio, que poderia apontar a nudez da mulher, é
anulada pela indiferença e formal atenção do homem. Por mais ações sensuais provocativas
que tenham sido feitas pela mulher, não nenhuma resposta de teor afetivo do par masculino.
Mais uma vez, o mesmo casal, absolutamente junto e sem um elo que os una emocionalmente.
A cena conta sobre as pirâmides, símbolo de monte funerário, da ascensão ao céu, que
tem dupla significação de integração e convergência. Convergência ascendente, consciência de
síntese, é o lugar de encontro de dois mundos: um mágico, ligado aos ritos funerários, de
retenção indefinida da vida ou de passagem para uma vida supratemporal, e um mundo
racional, que evoca a geometria e os modos de construção. Crescimento vivo, talvez exprima
melhor o simbolismo da pirâmide. Ela tende a assegurar ao faraó sua apoteose em uma
assimilação do defunto com o Deus-Sol, termo supremo e eterno do crescimento.
A esfinge, por sua vez, retratada por Grossman, é a guarda necrópoles, símbolo da
feminilidade pervertida, guardiã das entradas proibidas, que vela sobre tudo o que foi e tudo o
que será. Apresenta-se no início de um destino que é, ao mesmo tempo, mistério e necessidade.
Destino esse que de perto se associa com o humano, ou não somos mistério e necessidade?
Cena 53
Close. De um rosto de mulher, escorrem lágrimas. Ela está com um vestido negro. A
câmara desce até seu ventre. A mulher abre seu vestido e deixa à mostra seu sexo, coberto por
uma calça.
Em contraponto à cena 52, anterior, onde a mulher expõe seu corpo seu
constrangimento, esta mostra o corpo feminino como tabu, um doloroso e sofrido tabu. O que a
mulher mostra não é o sexo-amor, mas o sexo-dor. Configurando e transfigurando a dimensão
da sedução, constitui-se a dimensão do sofrimento, como a dor surda das lágrimas ou do sexo
tampado, que pode se entender como escondido ou desprezado. Símbolo do proibido e do
intocável, o sexo feminino é também símbolo da abertura às riquezas secretas, aos
conhecimentos ocultos. Porém, conectado à lágrima, gota que morre evaporando-se, após ter
dado testemunho da dor e da intercessão, reitera a dimensão dor-amor-mulher.
Cena 54
Retornando à dimensão do calor, cronotopo da sedução, pernas femininas, em sapatos
de salto alto vermelhos, andam de forma sensual de um lado para o outro. Pernas fortes, onde
se vêem os músculos trabalhados, em que a cor vermelha dos sapatos também pode ser
entendida como elemento estruturador da dimensão da sensualidade.
A sensualidade de um andar feminino com sapatos de salto alto
Foto: Gert Weigelt
Aqui o corpo feminino aparece em toda sua força sensual, em contraponto ao tabu do
sexo da cena anterior. Se antes tínhamos a fragilidade do sofrimento, aqui se estrutura força,
confiança, decisão, através do movimento forte e direto do caminhar, aliado à força muscular
dessas pernas.
As pernas, como símbolo de vínculo social, permitem aproximações, facilita contatos,
suprime distâncias. O tem simbolismo complementar. A perna cria os laços sociais, o é o
senhor e a chave. Por extensão, a perna está para o corpo social como o pênis para o corpo
humano: é o instrumento do parentesco uterino e das relações sociais. Aliada à cor vermelha
dos sapatos, estrutura ação e paixão, liberdade, vida, força, poder.
Cena 55
A música pára, no silêncio revela-se a imagem de uma enorme cúpula que brilha,
parecendo de metal, talvez um observatório de astronomia, no meio de árvores, possivelmente
num parque ou bosque. Ao centro aparece um quadrado azulado que poderia ser um palco visto
de longe.
Em seguida a imagem de um pequeno riacho
433
que corre no meio do bosque. É
marcante a oposição entre a estrutura artificial no meio da natureza - cúpula de metal no meio
do bosque - e o elemento natural - riacho - que corre livre no seu meio natural.
De uma enorme janela em forma de abóbada, a cabeça loura de uma criança aparece,
olhando curiosa o mundo exterior, em seguida surge outra cabecinha loura, sorrindo. A forma
oval sugere que estão na mesma construção focalizada no plano geral. Os sorrisos, o sol
batendo na cúpula, o riacho, mostram a primavera. A forma ovalada lembra o ovo, o
433
Em Ein Trauerspiel (1994), Bausch utiliza um ‘riacho’, que fica no meio do cenário.
nascimento, a estação em que os animais que hibernaram ressurgem, é a hora do renascer.
Tudo está mais colorido.
O rio, riacho, símbolo da possibilidade universal da fluidez das formas, da fertilidade,
da morte e da renovação, pode tomar o próprio significado da existência humana, como o curso
da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções, e a variedade de seus desvios.
Como a água que corre, o corpo tem existência precária, escoa-se como a água. a abóbada, é
símbolo do céu, geralmente repousa sobre uma base quadrada, e essa aliança entre as linhas
curvas do alto e as retas da base, simboliza a união do céu e da terra.
Cena 56
A música agora é um tango, é dançado por um casal. se vê as pernas, que se cruzam
e descruzam num estranho diálogo competitivo. O calor que emana da dança é reconfortante.
Há a mesma força e determinação das pernas da cena 54.
Num contraponto seccionante, aparece um corpo caído na neve, quase totalmente
coberto. Estático. É um homem. Volta a imagem das pernas dançando tango. Movimentação
dinâmica, forte, definida. A música termina. Retorna o corpo caído coberto de neve, hirto,
imóvel, sem vida.
Bausch estabelece novo jogo com estes corpos: corpo frio e estático na neve, versus
o movimento dinâmico e caloroso do tango. Aqui a dimensão da Morte é retomada,
restabelecendo conexões com o revólver, da primeira cena e com o corpo caído da cena 21.
A morte, como símbolo, é o aspecto perecível, destrutível da existência. A transformação
dos seres e das coisas, a fatalidade irreversível. Mas também é liberação das penas e
preocupações, abertura ao reino do espírito.
Cena 57
Num plano geral, tem-se um campo coberto de neve. Andando por ele vem uma mulher
com um vestido leve e curto, usa botas; caminha cantando uma canção francesa e tocando um
acordeão. A canção simples e alegre e, de alguma forma, dá vida à paisagem gelada.
Em outro plano, um homem anda entre os galhos cobertos pela neve. Ele veste um,
sobretudo e tem duas asas, como um anjo. Sacode os galhos das árvores. É o mesmo homem
caído na neve da cena anterior. Retorna a imagem da mulher do acordeão que continua
andando, tocando e cantando sua canção.
O Lamento da Imperatriz
Dominique Mercy
Foto: Detlef Erler
As seqüências desta cena sugerem não o congelado, o estático, o morto, mas a
possibilidade de um renascer, que não chega ao dinamismo de vida do tango, mas que rompe
com o inerte, com a morte, sugerida pelo homem caído na neve, que ressurge ‘anjo’ nesta cena.
A canção da moça e seu caminhar tranqüilo, sem sinal do corpo se ressentir do frio, indicam
um outro estado, como o do 'anjo', em que parece haver imunidade às temperaturas. Um estado
não-humano, onírico.
A morte tem o sentido iniciático de renovação, renascimento; condição para o progresso
e para a vida. Os anjos, simbolicamente, são seres dotados de um corpo etéreo; mensageiros,
protetores, condutores, são a corte de Deus. Observando-se apenas o fator asas, tem-se o
símbolo do alçar vôo, de desmaterialização, de passagem ao corpo sutil. mbolo de estado
espiritual, que reitera a idéia contida no anjo. Possuir asas é abandonar o mundo terreno para
ter acesso ao celeste. As asas são conquistadas. Indicam uma sublimação, liberação e vitória.
A música pode ser entendida também como meio de se associar à plenitude da vida
cósmica. Supõe um acordo da alma e do corpo. Assim como a planície é símbolo do espaço, da
ausência de limites terrestres, mas com todas as significações do horizontal em oposição ao
vertical. Para culminar a dimensão cósmica e mitológica, o branco, a neve que cobre a planície
e o bosque, é a cor da revelação, da graça, da transfiguração. É a cor do candidato, aquele que
vai mudar de condição: da morte ao renascimento.
Cena 58
A cena começa com a música francesa ao fundo, que aos poucos vai sumindo. No
proscênio de uma espécie de palco, uma atriz bêbada diz um texto.
Irmãzinha tenho tanta sede, que se soubesse de uma fonte, iria beber.
Creio que a escuto cantar: Que faz meu pequeno, que faz meu bichinho?
Venha só uma vez e não precisará voltar jamais.
Não me maravilha que alguém possa morrer diante da tenda do amado.
Só me maravilha que se possa querer e manter-se vivendo.
Eu disse: eras minha vida.
Ela disse: meu fim está chegando.
Eu disse: vem, vem lua, consola-me.
Ela disse: quando começar a brilhar.
Procriemos toda classe de criaturas, ele a persuadia.
E ela não disse não.
Um texto, o primeiro que aparece no filme, dito por uma bêbada, por analogia, alguém
não muito confiável, ou alguém profundamente abalado, fora do seu estado psicofísico normal.
Mas também não se pode deixar de lembrar o sentido da bebedeira como se abandonar ao sono
do esquecimento.
Os primeiros versos, ao falar de sede e fonte, remetem a todas as imagens de água que
aparecem no filme. A água viva que corre da fonte é como a chuva, o sangue divino, o sêmen
do céu. É um símbolo da maternidade. A água da fonte é a substância da pureza, símbolo da
origem, do gênio, da força, da graça, de toda felicidade. Mas se sede que sede é esta? Isso
parece clarificado nas estrofes seguintes, através dos sintagmas: eras minha vida, tenda do
amado. É de amor, de vida e de morte que se fala. A palavra, que aparece aqui pela terceira
vez
434
, é símbolo mais puro da manifestação do ser que pensa, que se exprime e se comunica
com outro.
O lamento, agora feito em palavras, é uma declaração em desespero sobre a
impossibilidade ou a inutilidade da vida sem amor, que define essa dimensão como o princípio
humano mais importante. Na verdade, é em torno do cronotopo do Amor que as outras
categorias se agrupam. Porém algumas estranhas categorias, como proclamam os versos:
Procriemos toda classe de criaturas, ele a persuadia.
E ela não disse não.
Associado a: Creio que a escuto cantar: Que faz meu pequeno, que faz meu bichinho?
Produz uma bizarra dimensão, onde se subentende, uma possível prole de criaturas diferentes,
como as estranhas personagens que desfilaram em algumas cenas anteriores.
Por outro lado, o sintagma meu fim está chegando, é bastante objetivo para caracterizar
a dimensão da Morte, que desponta como importante núcleo no filme: Amor-Vida x Morte.
Na linguagem como na percepção, o tempo representa um limite na duração e a
distinção mais sentida com o mundo da Eternidade. O tempo humano é finito, o divino é a
negação do tempo, o ilimitado. Está indissoluvelmente ligado ao espaço, exatamente como no
tempo poético. Do mesmo modo, observa-se na mulher bêbada uma espécie de metamorfose,
que é símbolo de identificação, em uma personagem em via de individualização que ainda não
assumiu a totalidade de seu eu nem atualizou todas as suas potencialidades.
Retornando ao primeiro verso: Irmãzinha, tenho tanta sede, que se soubesse de uma
fonte, iria beber, entendendo-se o texto como um círculo de vida, esta fonte, também poderia
434
A primeira vez, na cena onde a mulher fala sobre os egípcios e a esfinge, a segunda, na cena 41do rapaz ruivo
que pede a Deus que não o deixe morrer.
estar aqui como o sinal do renascimento, da eterna transformação, da origem, da purificação,
da renovação de forças para que prossiga a inexorável busca da felicidade.
Cena 59
Não música, um homem caminha de joelhos no meio do bosque gelado. Chegam
outros dois homens. Pegam-no pelos braços e o levam de volta para trás, de onde ele tinha
vindo. Silêncio, apenas o som da respiração dos homens e da nevasca que cai. Caminhar com
os joelhos e ser carregado à força para o bosque gelado são figurações que constroem uma
dimensão de culpa, de castigo, de penitência. Outra imagem que se conecta a dimensão da
suspeita, do demoníaco, da ilegalidade.
O Lamento da Imperatriz
Jean Sasportes
Foto: Detlef Erler
Vindo de dentro do bosque gelado, a figura do homem lembra um anão, que vindo do
mundo subterrâneo, ao qual permanece ligado, simboliza as forças obscuras, que devem ser
controladas, contidas no inconsciente (o bosque), no caso, pelos dois homens.
Cena 60
Ao som do blue Strange Fruit, na voz de Billie Holliday, uma mulher vestida com um
vestido leve, de musselina rosa, descalça, corre desesperada pelo bosque coberto de neve. Cai
perto de uma cerca de arame, passa, rastejando, por baixo da cerca. Continua a correr gritando
e gemendo: Mãe, mama, mãe, ai, ai. Corre, cai, levanta atravessa um lugar mais escuro, com
pinheiros, sempre chamando pela mãe. Segura-se a uma árvore gritando e chorando.
Retorna a dimensão da procura, a busca do perdido, relacionada ao amor, à
maternidade, à figura da mãe, da mulher, um vetor que, por deslocamento, se conecta às cenas
iniciais da menina gritando pela mãe, cena 5, e das crianças chorando e também clamando pela
mãe, cenas 12 e 22.
Cena 61
Como uma terrível resposta, no chão está uma figura caída, inerte no meio da neve.
Vêem-se os sapatos pretos de salto alto, pernas envoltas em meias de seda, um frasco de vidro
vazio, caído ao lado das pernas, vestido de flores coloridas, um cacho de bananas, um cálice
com líquido pela metade e, finalmente, o rosto de alguém. É uma mulher, envolta num casaco
marrom, sobre uma espécie de tapete, imóvel, com os olhos cerrados, no meio da neve. Ainda
se ouve ao fundo a voz da mulher da cena anterior gritando: “Mamãe, onde está você?”.
A mãe é a segurança do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação. É também, em
contrapartida, o risco da opressão, pela estreiteza do meio e pela sufocação através de um
prolongamento excessivo da função de alimentadora e guia. A Mãe divina simboliza a
sublimação mais perfeita do instinto e a harmonia mais profunda do amor. Na análise moderna,
o Símbolo da mãe assume o valor de arquétipo. É a primeira forma que toma para o indivíduo a
experiência da anima, isto é, do inconsciente. A simbologia da mãe está ligada à do mar e da
terra, são receptáculos e matrizes da vida. Nesse símbolo a mesma ambivalência que no do
mar e da terra: a vida e a morte são correlatas. Nascer é sair do ventre, morrer é retornar à terra.
Cena 62
Um homem, vestindo um longo robe caminha e corre entre as árvores cobertas de neve,
como a procura de algo. Num flash-back, aparece o mesmo homem caminhando, no mesmo
lugar, de braço dado com uma mulher de casaco escuro. Ele tem uma garrafa de bebida nas
mãos, caminham como bêbados. A cena desaparece e volta-se a ver o mesmo homem de robe
longo, sozinho, caminhando ou fugindo, no bosque gelado. A dimensão da suspeita se acresce.
O valor do frasco, da garrafa, que aparece também na cena anterior, é metonímico,
procede de seu conteúdo, tão volátil quanto precioso. A garrafa quando está tampada,
hermética, associa-se ao segredo, ou ao seu parceiro, o sagrado. Contém um elixir, um filtro,
proporciona embriaguez. O simbolismo tem duas categorias. É também a garrafa da prisão de
um espírito diabólico ou divino, que sai de dentro de uma garrafa, exatamente como todas as
reflexões dos bêbados. Ela traz conhecimentos secretos e revelações.
Cena 63
O blue termina. No silêncio, aparece, sentada no meio da neve, uma mulher de casaco
escuro, a mesma da cena anterior. À sua frente está um fardo marrom, sua atitude sugere a de
alguém que está tomando conta de alguma coisa, ou alguém em meditação, ou oração. No
último caso, o fardo seria um objeto de adoração ou cuidados. O mesmo espaço físico, o
mesmo tempo de inverno, associa as cenas 61,62 e 63. Apesar de não ser absolutamente
comprovado, é quase certo o relacionamento das personagens. Mas continua entre as
dimensões da suspeita, da busca e da morte.
Cena 64
Corte seccionante. A música que começa a tocar é a mesma do início do filme, uma
marcha fúnebre. Numa sala de aula de balé, vê-se o professor e um aluno se exercitando na
barra. O professor repreende asperamente o rapaz. Manda que repita o exercício diversas
vezes. O ritmo é mecânico e o professor corrige obsessivamente o aluno, exigindo correção
absoluta. O aluno não responde, apenas reinicia o exercício. São visíveis a exaustão do rapaz e
a tensão entre os dois. Corpos em tensão, nos seus limites, é o que mostra a cena. Mas também
é possível uma identidade com os corpos das cenas anteriores: o desespero da moça, a
prostração da mulher, o corpo inerte na neve - todos estão em seus limites extremos.
Cena 65
O mesmo aluno da cena 64 aparece com uma mulher que também briga com ele, o
repreende. O rapaz aparenta ser de nacionalidade árabe e a mulher tenta fazer com que ele fale
alemão. Observa que ele tem que falar com sua alma, ele parece não entender o que ela diz,
mas mantém-se calmo, enquanto ela tenta se acalmar. Reaparece na cena a imagem da aula de
balé, o mesmo professor, Mercy, com o mesmo aluno. O professor grita com ele, corrigindo
tudo o que o rapaz faz: - Não, o braço é mais alto. Não, o tempo não está correto.
Cena da mulher com o mesmo aluno. Ela treina, visivelmente nervosa, a pronúncia do
aluno. Diz: Encante-me e cobre-me de beijos, até arrancar-me do peito a vida. Mas a frase
romântica é dita com rispidez e agressividade, pois o rapaz não consegue a pronúncia certa.
Volta a cena da aula de balé: o professor, cada vez mais irritado, continua suas
correções com mais violência. O aluno não reclama, seu corpo está encharcado de suor e ele
continua a obedecer.
As seqüências das cenas 64 a 65 estruturam uma crítica severa ao adestramento
corporal a que são submetidos os atores-bailarinos. Pode-se observar a que constrangimentos e
excessos físicos são submetidos, apesar da preocupação e objetivo do professor ser apenas a
perfeição técnica. Outra vez, corpos em seus limites, os cronotopos da disciplina e da violência
parecem se cruzar de maneira chocante, como se um fosse parte do outro.
Cena 66
Em contrapartida a toda essa tortura física e psíquica na busca pela perfeição, Bausch
apresenta uma seqüência de estranhas cenas em que calma e euforia se alternam.
Um homem e uma mulher, ambos usando vestidos curtos e brilhantes e sapatos de
salto-alto, caminham abraçados numa sala. Vai terminando o som da marcha fúnebre e inicia-
se um boogie, Choo Choo Chboogie. O rapaz que aparece como aluno nas cenas anteriores,
agora faz par com um homem ruivo. Os dois estão empenhados numa dança de salão,
completamente relaxados. O rapaz ruivo envolve o corpo do outro com sua perna, ele sustenta
essa perna com a mão e eles seguem dançando. O homem ruivo pula em uma só das pernas.
Eles sorriem.
Retorna a imagem da cena 60, a mulher continua a correr gritando pela mãe, cada vez
mais desesperada, agora já dentro do perímetro urbano. Em contraponto, os dois rapazes
continuam, felizes, seu pas-de-deux.
Cena 67
Nova mudança musical retorna-se ao bolero e ressurge o homem da cena 25, com o
corpo coberto de lama. Agora está parado, sentado dentro da estufa de flores com os olhos
fechados.
Várias pessoas patinam em círculos. O lugar é o mesmo da cena 51. Como a tomada
nesta cena é exterior é possível determinar o lugar: uma sala de um antigo cinema de
Wuppertal, o Lichtburg
435
, local de ensaio da companhia de Pina Bausch.
Não por acaso, o nome desse antigo cinema é Castelo. Interessante notar que 'castelo' na
representação simbólica é proteção, construção sólida de difícil acesso. A localização
normalmente o isola, parece inacessível e desejável, julga-se que ele resguarde um poder
misterioso e inatingível. E não é assim um estúdio artístico?
Prédio sede do Wuppertaler Tanztheater
Antigo cinema Lichtburg
Foto: Leonore Mau
Por outro lado, o movimento circular dos patinadores. Signo da unidade de princípio
e também do céu, o círculo é um ponto estendido, é o desenvolvimento do ponto e sua
manifestação. Concentrado em si mesmo, sem princípio nem fim, o círculo é o signo absoluto.
435
Castelo.
Quando dividido em graus, representa o tempo. Jung mostrou que o símbolo do círculo é uma
imagem arquetípica da totalidade da psique, o símbolo do self, ao passo que o quadrado é o
símbolo da matéria terrestre, do corpo e da realidade. Em sua qualidade de forma envolvente, é
símbolo de proteção, proteção segura dentro de seus limites. Nada mais complementar que a
conexão castelo/círculo. Novo corte, pessoas nuas correm de um lugar a outro, alvoroçadas, no
balcão de um cinema ou teatro, provavelmente o lugar citado acima. De novo a cena tranqüila
da patinação.
Reaparece o homem com o corpo coberto de lama, agora o barro já está meio seco, seu
corpo está coberto por um robe vermelho, ele continua sentado e quieto. Sua quietude, porém
pode não ser sinal de tranqüilidade, mas, sinal da angústia silenciosa de um corpo que estava
feliz e livre na sua dança, em um tempo que passou. Observa-se o desmantelar do corpo-
lama, a impossibilidade de se perpetuar essa interação, a lama seca cairá por si mesma do
corpo: eterna questão da integração do homem com a natureza que leva a nova reflexão.
Cena 68
Um homem e uma mulher, de vestidos brilhantes, os mesmos da cena 66, dançam
abraçados, quase sem sair do lugar de um modo bastante sensual, apesar do homem estar
travestido. Uma ruptura radical a qualquer preconceito baseado na aparência exterior do corpo.
É um homem vestido de mulher, mas é ele que comanda, a mulher está absolutamente passiva.
A dimensão da sensualidade é agraciada. São corpos que se embalam, mas sempre num
amor transgressor, levando-se em conta a tradição do par heterossexual. Tanto o primeiro casal
da cena 66 - dois homens - como este segundo de mulheres - que o homem está travestido -
rompem com o 'normal'. De qualquer forma, são cenas de carinho, de tranqüilidade, de entrega
corporal, umas danças amorosas: o cronotopo do idílio é contemplado.
Cena 69
Radical mudança mostra uma alta torre de onde se vê a cidade. No alto está uma mulher
de vestido de baile apitando furiosamente, numa tentativa talvez de comandar ou chamar os
que estão passando em baixo nas ruas. A urgência, a ação violenta da mulher se conecta com a
cena da quebra de tijolos, aliás, é a mesma personagem, com o mesmo vestido vermelho. Aqui,
a dimensão da fúria, da violência, é novamente estabelecida, e permite novas associações,
como à irritação do professor de balé, cena 64, e da mulher que ensina alemão, cena 65.
uma espécie de tensão, de rigidez, nesses corpos, que contrasta com a serenidade, a languidez
da cena anterior. A qualidade do movimento determina a emoção do personagem.
Cena 70
Ao som do bolero, o casal da cena 66, o rapaz ruivo e o moreno, continuam a dançar.
Estão abraçados. A cabeça de um, encostada, de modo amoroso, no peito do outro. Os dois
dançam como um casal enamorado. Quem comanda agora é o moreno, colocando os braços do
ruivo em volta do seu próprio corpo.
Em outra tomada, o mesmo casal tem agora à sua frente comida. Estão vestidos com
traje a rigor e sérios. De repente trocam um olhar que os faz sorrir, cúmplices de algo que não
se vê, não se tem certeza. A dimensão da sedução, do amor, o cronotopo do idílio, se conecta
com o do suspeito, do escondido.
Cena 71
A câmara, num plano-seqüência, mostra o bosque escuro. Nota-se algo caído no chão,
mas não para se distinguir o que é, apenas se nota um ponto claro. O ponto simboliza o
estado limite da abstração do volume, o centro, a origem, o lar, o princípio da emanação e o
termo de retorno. Designa o poder criativo e o fim de todas as coisas. É a interseção das
ramificações da cruz. Os pontos são solitários ou agrupados, esboçam figuras. É a origem da
meditação e o ponto de chegada da integração espiritual. A luz, simbolicamente, é o
conhecimento. Sucede às trevas, é o despertar do desejo e o amor realizado. É símbolo da vida,
da salvação, da felicidade, ao contrário das trevas: símbolo do mal, da infelicidade, da perdição
e da morte. A união de sombra e ponto de luz na cena estabelece o convívio dessas forças
opostas, tangência entre trevas e esperança, entre sombra e luz, entre vida, morte e renascer.
O lugar é o mesmo que aparece na cena quatro, onde uma ‘menina’ de maiô azul corre
gritando, procurando pela mãe. Não há muita luz, o bosque está mergulhado numa quase
escuridão, o que colabora para intensificação da dimensão do suspeito, daquilo que não se vê,
do medo.
Cena 72
Num close, surge uma mulher que pressiona o seio com a mão, num movimento como
para tirar o leite para amamentar. Seio que é símbolo de proteção e de medida; da maternidade,
da suavidade, de segurança, de recursos. Porém, a mulher coloca o leite em sua própria mão e o
bebe ela mesma. Um corpo que se auto-alimenta com o leite materno. Que é a primeira bebida,
primeiro alimento, no qual todos os outros existem em potencial.
Uma cena de vetor conector com a dimensão da mãe, da proteção. Mas o ato de se auto-
alimentar pode sugerir ausência de afeto, de proteção a ela mesma, carência que é compensada
pela ingestão do alimento gerido, a ser dividido com o filho, o que ela faz sozinha, na solidão
de uma mãe sem amor. De novo retorna a imagem do bosque escuro, onde se percebe um
ponto claro, cena anterior, aumentando a ambiência de suspense. Aos poucos, o som do bolero
desaparece.
Cena 73
Ao som da marcha fúnebre siciliana que acompanha boa parte do filme, um rebanho
de ovelhas pasta tranqüilamente, numa planície primaveril. No meio aparece uma mulher
com uma ovelhinha negra em um braço e uma garrafa de bebida na outra mão. A mulher
aperta a ovelhinha contra seu peito e oferece bebida às outras ovelhas. Bebe do gargalo da
garrafa e torna a oferecer bebida aos animais, gritando com eles.
O Lamento da Imperatriz
Mechthild Grossman
Foto: Detlef Erler
Se no carneiro, o gerador do rebanho, o procriador, tem-se a simbologia da força
genésica que desperta o mundo, assegura a recondução do ciclo vital, quer na primavera da
vida ou sazonal, a ovelha é o carneiro castrado. Do mesmo modo, sua brancura imaculada,
encarna o triunfo da renovação, a vitória da vida sobre morte, enquanto a ovelha negra
simboliza o oposto. Ao aliar na cena a ovelha negra que a mulher carrega, a garrafa de bebida,
a embriaguez e os berros que a mulher dá, Bausch evidencia o caráter corrompido que macula
a serenidade da natureza.
Em close, vê-se a mulher, agora caída no chão. O rebanho está perto, alguns carneiros
se aproximam, encostando o focinho nas pernas da mulher. Ela permanece imóvel. Bêbada,
meio desmaiada. Por trás do rebanho, que agora está deitado, descansando, aparece
caminhando a figura do homem com asas de anjo, o mesmo da cena 56. A mulher continua
caída e as ovelhas se aproximam dela balindo, compondo um estranho grupo, que parece se
despedir de um morto.
A entrada do homem-anjo adiciona novas possibilidades semânticas à leitura da cena,
que pode ser interpretada como um funeral, ou melhor, um velório. Toda a cena tem como
cenário a natureza, que o verde do campo permite estabelecer como estação da primavera, e é
de uma beleza sublime.
O Lamento da Imperatriz
Dominique Mercy
Foto: Detlef Erler
Aqui se delineia uma dimensão relacionada ao mítico, ao religioso, organizada pelas
figuras das ovelhas, do homem de asas e da colina verde, primeira manifestação da criação o
mundo. Marca o começo de uma emergência e da diferenciação, tudo muito suave, tranqüilo.
Cena 74
Rompendo com a paz da cena anterior, tem-se uma mulher que esbraveja e tenta subir
nos ombros de um homem, fazendo com que ele ande de um lado para o outro a equilibrando.
O local é uma sala limitada por grandes janelas. Ela faz com que ele a leve nos ombros até ficar
de frente para as janelas.
O ritmo é certamente o oposto da cena anterior, mas a música que acompanha é a
mesma marcha fúnebre. As dimensões da fúria e do limite físico são certamente invocadas.
Porém conexão com a cena anterior, se entendermos a mulher bêbada/inerte como limítrofe,
assim como o 'anjo', um corpo-específico, também dentro de outra limitação.
Cena 75
Novamente ao ar livre, na mesma colina da cena anterior, uma revoada de pássaros,
num dia claro, que confirma a primavera. Um homem de calça curta tenta acompanhar o
caminho do vôo dos pássaros, correndo atrás deles.
Em seqüência, numa longa estrada deserta, reaparece a moça vestida de “Coelhinha
Playboy”, correndo sem parar, desta vez numa direção objetiva, que contrasta com o caminho
indireto da revoada dos pássaros.
O Lamento da Imperatriz
Foto: Detlef Erler
Retoma-se a revoada de pássaros, que mais parece um ensaiado floreio coreográfico,
com o mesmo rapaz correndo atrás inutilmente, pois os consegue acompanhar com os olhos.
A dimensão do vôo e da liberdade é uma só, ela é enriquecida pela ação de correr, tanto do
rapaz, como da 'Coelhinha'. uma total liberdade de movimento, reiterada pela amplidão do
espaço-físico descortinado pelo plano-seqüência. Essa dimensão, de certa forma, também se
conecta por deslocamento à dimensão da Vida. Entendendo-se para tal a planície como símbolo
do espaço, da ausência de limites terrestres, com todas as significações do horizontal em
oposição ao vertical, e os pássaros como símbolo do estado espiritual: sinônimo de presságio e
de mensagem do céu, símbolos da alma, intermediário entre a terra e o céu.
Cena 76
Retorna o homem com o corpo coberto de lama, da cena 25, veste um robe vermelho, o
barro está seco e ele fuma pensativo um cigarro. Continua na estufa de flores. De um
espaço-físico externo ideal, a colina verde anterior, para um espaço-físico interno ideal: a
estufa. Não fosse o cigarro e a fumaça, que podem ser entendidos como intervenções humanas
negativas na natureza, ainda mais numa estufa que tem vedação total. E também a presença da
roupa que cobre o corpo do homem, assinalando a impossibilidade dessa permanência humana
nos parâmetros naturais. Parece que o homem não pode, ou não consegue estar em harmonia
com os elementos, nem mesmo dentro de uma estufa.
Cena 77
Close. Uma mulher carrega suas duas crianças. Ela tenta sustentar as duas ao mesmo
tempo. Mas as meninas querem se ver livres uma da outra. Gritam, mordem-se, dão tapas e
choram. As meninas estão nuas. Certamente na dimensão da mãe, do afeto, esta cena revela
uma nova face desse amor maternal, filial: o egoísmo, a inveja.
Foto inspiradora da cena do filme
Beatrice Libonati e suas filhas
Foto: Leonore Mau
As crianças, embora grudadas na mãe, não estão felizes, querem exclusividade. Assim,
unido ao afeto, temos a raiva, a fúria, a violência. Estranho quadro da natureza humana.
Externamente tão belas as crianças, mas internamente, em competição eterna pela hegemonia.
O homem não divide afetos, é contra sua própria e absurda natureza. Será talvez esse o motivo
de sua incansável busca pela felicidade? Repensando os versos da cena 58: "Que classe de
criaturas procriamos?" Pelas ações, verdadeiros animaizinhos.
Cena 78
Ao som da marcha fúnebre, que está no fundo da cena, mistura-se o barulho do motor
de um helicóptero de brinquedo, e aparece a estranha figura, meio fantasmagórica, de um
homem super-maquilado, usando um etéreo vestido azulado de musselina. Ele está encostado a
uma parede. O helicóptero miniatura voltas à sua frente, numa ação que sugere
acossamento. O ruído constante e monótono do helicóptero contribui para a atmosfera
repressora, além da cor vermelha que se vê em partes do helicóptero.
Duas ações de flutuar, semanticamente opostas. A do helicóptero que remete ao perigo,
à acuação, e a das vestes do homem, que pelo deslocamento de ar causado pelas hélices do
helicóptero. A transgressão de gênero é evidente, a repressão também, porém a associação com
o flutuar, com o leve e indireto, é desconcertante. É óbvia a dimensão da vigilância, do olhar
háptico sugerida pelo helicóptero. Mas a figura fantasmática desse homem-mulher é de tal
forma desconcertante, que anula ou fragiliza o poder repressor. Tem-se a impressão de dois
elementos acuados, sem resolução, sem vencedor ou vencido, sem saída.
Cena 79
A marcha fúnebre termina. Num canto de uma casa, de paredes velhas, um músico toca
seu contrabaixo. O som de lamento, contínuo e monocórdio é o mesmo que acompanha boa
parte da trilha sonora do filme. O lugar é o mesmo da cena em que um cão guardava uma
criança. A dimensão do sofrimento é reativada.
Cena 80
De repente, a música silencia. Nova tomada da mulher com suas crianças, a mesma da
cena 77. Agora elas tentam se posicionar para um retrato. Uma claquete azul determina o
espaço para a foto. As crianças continuam contrárias a qualquer tipo de ordem externa, choram
e brigam entre si. Um homem de terno preto aparece atrás delas, comandando as direções das
fotos. É impossível um momento estático.
Em close, surge o rapaz ruivo, com um penteado inusitado
436
, é fotografado como para
um fichamento policial. De frente, de perfil, um lado, outro. O som que ritmo à cena é o
clique da máquina fotográfica. O mesmo homem de terno preto, cujo rosto não se vê, gira a
cadeira onde está sentado o rapaz, direcionando os perfis a serem fotografados.
A situação repressora é reforçada. Entre a violência e a figura materna impotente,
estabelece-se uma ponte para reflexão. À ordem estabelecida, interpõe-se a ordem natural, a
ditada pelas emoções ainda em estado puro, bruto, a das crianças.
Cena 81
Dentro do teleférico em movimento, reaparece o contrabaixista e sua música, que
permanece como fundo da cena. De novo tem-se a mulher do telhado que apita
insistentemente. O som do contrabaixo corta o ar num lamento, que contrasta com a urgência
do apito e a flamejante cor vermelha do vestido da mulher do telhado.
O espaço direto do caminho do teleférico, e do arco do contrabaixista, estabelecem o
contraponto ao espaço indireto e urgente do apito e deslocamento da mulher do telhado. No
primeiro, o espaço fechado, limitado, único, é estabelecido pelos trilhos do teleférico e pelas
cordas do instrumento. O outro tem a imprevisibilidade do caminho da mulher, da direção do
seu apito, do porquê de sua ação. Absurdamente deslocada, a mulher tenta dirigir o que não
está ao seu alcance, enquanto o tranqüilo músico domina totalmente seu instrumento. Na
dimensão do suspeito, encaixa-se a mulher, pois não se sabe a causa de sua ação.
Cena 82
Close de uma mulher no volante. Está aparentemente dirigindo o veículo, porém ela não
toca no volante. O som do contrabaixo acompanha sua ação, a entorpece, e a mulher
simplesmente fecha os olhos.
Dentro do teleférico em movimento reaparece o contrabaixista e sua música, que
permanece como fundo. A música se conecta com a serenidade, a paz do campo verde da cena
73, enquanto os olhos cerrados da mulher sugerem ligação com o cronotopo da Morte. É
evidente que se complementam: lamento, torpor, morte.
Cena 83
Aos poucos o som do contrabaixo é substituído pela música Uncle Jo. Em close,
aparece o homem de robe vermelho, da cena 76, que continua sentado, fumando, dentro da
estufa. De repente se levanta vai para frente, faz alguma coisa que não se vê. Avança além do
campo de filmagem e torna a se sentar no mesmo lugar. Nesse momento uma música começa a
tocar, o que sugere ter o homem colocado um disco. O homem se levanta e recomeça sua dança
de pequenos movimentos de quadris, um ondular constante.
A dimensão da sensualidade é retomada através do artifício da música. O movimento
ondulante dos quadris sugerem a dança do ventre, também unida à terra, ao poder de germinar,
dar vida. Um único senão: é um homem dançando, geneticamente ele não é o elemento que
gera a vida. Assim como a estufa é um artifício de espaço-tempo, esse homem também o é. A
lama não faz dele parte da natureza, nem possível gerador de vida, é no máximo fertilizante,
adubo, mas não portador de semente.
Cena 84
Recomeça a marcha fúnebre. A mulher bêbada reaparece dentro de um dos vagões do
teleférico. Diz partes do texto que já dissera na cena 58, invertendo alguns versos e
adicionando novos.
Eu disse: eras minha vida.
436
O penteado e maquilagem são os mesmos utilizados pelo bailarino em Ahnen (1987).
Ela disse: meu fim está chegando.
Eu disse: vem, vem lua, consola-me.
Ela disse: quando começar a brilhar.
Se o rei tivesse me oferecido Paris, sua grande cidade,
E eu tivesse que deixar minha vida, meu amor querido diria ao Rei:
Verdade. Podes ficar com sua Paris.
Não me maravilha que alguém possa morrer diante da tenda do amado.
Só me maravilha que se possa querer e manter-se vivendo.
Procriemos toda classe de criaturas, ele a persuadia.
E ela não disse não.
Irmãzinha tenho tanta sede, que se soubesse de uma fonte, iria beber.
Creio que a escuto cantar: Que faz meu pequeno, que faz meu bichinho?
Venha só uma vez e não precisará voltar jamais.
A paisagem vista através do teleférico em movimento associa-se a um ‘deixar para
trás’, à fugacidade do momento, à memória do passado. O lamento é intenso, inexorável. A
solidão, a perda, a falta de horizonte é incontestável. É ela, a mulher, a imperatriz do universo,
apresentada em sua forma final: só. E sozinha permanece nesse lamento infinito de dor, que
parece mais infindo pelo caminho do teleférico. Meio solta no ar, nesse metro quadrado do
vagão do teleférico, bêbada, meio alucinada, feita de lembranças, de fragmentos, a figura em
decadência de uma mulher. Mulher moldada em amor e dor, na busca eterna da felicidade.
Cena 85
Corte radical mostra agora o interior de uma casa. Casa, que é símbolo feminino,
sentido de refúgio, de proteção, de mãe. Num corredor estreito, uma senhora caminha
dançando, a música alegre é parte do folclore de danças argentinas: Lanana.
É uma mulher pequena e de certa idade, dança ao som de uma vitrola antiga. É meio
corcunda, usa um vestido leve, que segura às vezes nos seus volteios. É uma figura grotesca e,
ao mesmo tempo, singularmente bela e comovente. Rapidamente reaparece a imagem do rapaz
ruivo da cena 41. Sua juventude e harmonia de feições contrastam vivamente com a da
senhora que dança, mas ele está inerte. Nova imagem da senhora. Ela vai até a vitrola e coloca
um novo disco, uma música mais rápida, mais alegre, e continua nos seus passinhos.
Toda a cena nos leva a uma reflexão sobre os padrões de movimento do bailar. Pode
não haver uma beleza estética, de acordo com os paradigmas tradicionais de dança, no bailado
da senhora. Porém, sem dúvida, existe uma grandiosidade ímpar no seu dançar espontâneo e
único. Ali está um corpo que fala através dos seus movimentos é a dança como pensamento
do corpo em sua forma mais pura. Impossível maior sublimação.
Sua inusitada alegria apresenta um novo perfil da 'imperatriz'. Ela, mulher, velha, sem
qualquer atributo de beleza, responde com a dança às questões mais terríveis. Não se conhece
sua história, seus amores, seus lamentos. Só se sabe que na dança não cabem sofrimentos. A
cena congela e a 'imperatriz', velha e corcunda, segurando seu leve vestidinho de primavera,
permanece na sua sublime dança interna como imagem final.
5. 5. História de cronotopos
Em O Lamento da Imperatriz o lugar da ação é a cidade de Wuppertal. É lugar de um
tempo cíclico, entre o outono, inverno e a primavera. Não existe a narrativa linear de uma
história, mas um sentido que vai sendo construído através das cenas fragmentárias.
Pina Bausch explora este aspecto da temporalidade com a utilização de tomadas que
mostram os bosques de Wuppertal durante as três estações. Essa é uma das pistas do filme, que
tem como cena inicial a mulher com a máquina de fazer vento, num campo coberto de folhas
secas, que evidencia o outono. Este mesmo lugar reaparece no inverno coberto de neve, na
cena em que é atravessado por uma mulher que toca acordeão e, durante a primavera, na cena
em que está tomado por um rebanho de carneiros. A essa temporalidade inquestionável,
combinam-se os espaços por onde transitam as personagens, são espaços concretos
impregnados de sentido real de vida.
E é esse tempo-espaço que se une, de maneira surpreendente, a ações vitais e enérgicas
dos personagens elaborando diversos cronotopos. Como o cronotopo da crise, que se inicia na
primeira cena e atravessa em conexões e desdobramentos, até o último momento. É o momento
do medo, do desespero, do grito, da indecisão, da frustração, da lágrima.
Outro importante cronotopo pode-se identificar como o do idílio amoroso. A
personagem que em princípio o expressa é a mulher bem maquiada, cujo rosto ocupa
prolongados closes. Ela está submersa em seu próprio microuniverso espacial limitado e auto-
suficiente. O idílio se configura através do carinho de dedos masculinos que tocam sua face e
uma voz que sussurra palavras gentis. Estranho paradoxo: enquanto todos buscam o amor,
aquela que o recebe o ignora. Este idílio está determinado ainda por uma unidade de lugar - o
quarto, que vai sendo revelada no decorrer do filme. A este cronotopo também se conecta a
cena do casal que brinca com espuma de sabão, dos rapazes que dançam um pas-de-deux, do
casal que corre no bosque de neve, entre outros.
Em contraponto ao amor exibido, temos o cronotopo da solidão, construído tanto nas
cenas de personagens estáticas, em silêncio, em eterna espera, como nos closes de rostos por
onde rolam silenciosas lágrimas, ou a mulher de busto nu com a tarja no rosto, ou a que abre o
vestido mostrando o sexo coberto.
O cronotopo da frustração se estabelece na busca permanente, seja da mulher
‘coelhinha`, ou a corrida pela estrada das duas moças de maiô, ou da mulher de vestido rosa,
enfim, em todas as cenas em que o motor da ação é o desejo de encontrar algo. Este cronotopo
do caminho se relacionaria com o do encontro, que complementaria o primeiro. Porém este
cronotopo nunca chega a concretizar-se. O que resulta numa transformação em cronotopo da
angústia.
A partir de uma segunda leitura pode-se dizer que os caminhos não terminam na
frustração. A cidade de Wuppertal se encarna no principal cronotopo, o do tempo cíclico, e
dentro do mesmo funciona de maneira dialógica com o tempo mítico atemporal.
Pina Bausch, neste cenário, produz sua própria viajem, sai de seu estúdio e passa por
distintos lugares como as estufas, o antigo cinema onde ensaia, o salão de baile, o teleférico e
os arredores da cidade, seus bosques e campos, onde sucedem acontecimentos extracotidianos.
É impossível a leitura da obra sem levar em conta a simbologia de suas cenas e de seus
personagens. A eleição dos caminhos significa a eleição de um caminho simbólico da vida,
onde os personagens colocam uma máscara da existência cotidiana, mas não se deixam
determinar pelo espaço-tempo cíclico. As circunstâncias que os rodeiam geram seus próprios
destinos, seus próprios caminhos, criam sua temporalidade.
O filme aponta para uma reflexão mais profunda, que remete para símbolos e mitos
primordiais, no começo, aparentemente desconexos, mas cujo sentido se constrói a partir das
associações vetoriais por conexão, deslocamento, embreagem ou seccionamento.
Dois lugares são essenciais para o desenvolvimento dos acontecimentos: o bosque e o
salão. Nestes espaços acontecem os encontros e novos argumentos são gerados.
O salão funciona como lugar de interseção de tempo e espaço, e de lugar de
condensação do espaço. É o único espaço onde o transcurso do tempo provoca alguma
modificação, como nas cenas que envolvem o rapaz pequeno e moreno. Na primeira cena em
que aparece, ele é adestrado corporalmente numa aula de balé com rigor disciplinar que beira a
agressão, em seguida enfrenta nova tensão, desta vez é com a linguagem oral, que também não
domina, até finalmente, obter sua catarse, na cena em que dança com o rapaz ruivo e, em
seguida, na que está em frente a um possível jantar e sorri para o companheiro.
Os diálogos, textuais ou corporais, gerados nos ambientes fechados: no salão, no
quarto, na sala de ensaios, no teleférico, revelam relações dos personagens, suas características
e idéias. Do mesmo modo que a carência de diálogo, principalmente nas cenas externas, reflete
a incomunicabilidade crescente do homem.
Retomando o cronotopo do idílio no filme, uma cena que reflete o caráter amoroso
dos personagens, mas funciona como paródia: o rapaz e a mulher estão na cama, toda vez que
ele se aproxima, ela o impede, delicadamente, arrumando as saias volumosas de seu vestido.
Assim, a distância é mantida durante toda a cena. Em outro momento, tem-se um estranho
casal, um homem e uma mulher, ambos de vestidos de lamê, bem justos, de sapatos de salto-
alto, caminhando languidamente no salão de baile, o homem enlaçando a mulher pela cintura
carinhosamente. Se neste casal o estranhamento é produzido pelo figurino feminino, em outro
se tem dois rapazes numa diferente dança de salão.
O que torna ainda mais significativas estas cenas é que, certamente polemizando com a
questão dos gêneros, a reciprocidade amorosa só acontece no casal homossexual ou travestido.
Outro traço importante do filme é que tudo está exteriorizado, tudo se manifesta através
do diálogo da ação. Tudo está explicado na própria existência dos personagens em tempo real,
mas também existe uma temporalidade de monólogo interior nesses personagens.
Sergei Eisenstein, em A forma do cinema
437
, descrevendo as diferenças entre o conceito
de montagem norte-americano (Griffith) e o soviético (Eisenstein), chega na noção de
"primeiro plano" ou "a grande escala". Estes termos estariam refletindo a profunda diferença
que os separa. Enquanto para os norte-americanos o "primeiro plano", refere-se ao aspecto
qualitativo, ao ponto de vista; para os soviéticos a "grande escala" estaria dando conta do valor
do que se vê, não apenas de mostrar mas de dar significado. Seu traço particular seria o de
criar uma nova qualidade do todo a partir da justaposição das partes separadas. Assim é O
Lamento da Imperatriz. Não importa quanto comum possa parecer a imagem, pois o filme cria
sua própria convenção particular, é preciso situá-la e apreendê-la no contexto da cena, decifrar
o que o corpo, instrumento do discurso, representa. No corpo está a escrita, a imagem-
movimento que invade o espaço e o tempo.
437
EISENSTEIN, Sergei M.
A Forma do Cinema. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
A justaposição das partes cria novos significados no todo, que continuam dependentes
do contexto para se entender ao que está se referindo.
5. 5. Humor dialógico
Tentação quase irresistível é buscar um enredo gico, porém em Pina Bausch é busca
infrutífera. Descobrir denominadores comuns, filiações, ecos de uma obra a outra, isso sim, é
possível. Do ponto de vista temático, suas composições permitem uma recorrência na idéia de
viagem, uma leitura onde se pode assinalar o retorno a tempos e espaços passados e a mistura
de cronotopos, que estabelece a sensação de trânsito. Apresenta também aproximações de outro
gênero: o humor, meio estranho, autocorrosivo, reflexivo.
Todas as rupturas, as vetorizações seccionantes, que atravessam o filme não são
oposições, mas complementos. O filme permite fazer estes cortes para construir seus próprios
deslocamentos e novas conexões. Há um humor singular que empresta colorido ao texto
fílmico. Na realidade são jogos entre personagens que produzem o humor na medida em que
são lidos como complementos. Por exemplo: a cena do pas-de-deux, estilo dança de salão entre
os dois rapazes. A situação em si não oferece novidade, mas ela está contida na forma como
acontece essa dança: o rapaz moreno coloca sua perna direita em torno da cintura do outro, que
a sustenta com sua mão. Com o outro braço o rapaz moreno enlaça o pescoço do partner, e os
dois saem dançando, o rapaz moreno aos pulinhos, como um saci, numa perna só. A imagem é
engraçada, mas se nos reportarmos às cenas anteriores do rapaz moreno, onde ele sofreu
terríveis pressões para aprender de modo ‘correto’ de dançar e falar, esta cena produz mais que
um sorriso. É possível se perceber uma resignificação da cena e do personagem, não apenas
para provocar graça, mas porque assinala um traço distinto na movimentação corporal dos
atores-bailarinos, que rompe com o estereótipo da dança de salão, no caso, dançar em uma
perna só.
As imagens bauschianas trazem em si fortes conotações justamente por causar espanto
ao romperem com o comum, o esperado. Nesse sentido, ao aparecerem em contextos
cotidianos, produzem um estranhamento próximo do brechtiano, que leva à reflexão crítica,
usando os limites do humor. Um bom exemplo é a cena da mulher sentada numa poltrona no
meio de um cruzamento, no centro da cidade. Enquanto a mulher fuma tranqüilamente seu
cigarro, os carros cruzam sem parar. A surpresa faz sorrir, mas segundos depois é possível
reflexões complementares, sobre o absurdo da solidão humana. Nenhum carro ou ônibus pára,
e as pessoas que passam sequer olham para a mulher. Apenas um pedestre passa e vira-se para
olhar de novo, rapidamente, e segue em frente. Outra cena, também dentro do mesmo aspecto é
a do homem que faz a barba, no centro da cidade, acocorado no meio fio, usando a água que
está empoçada. É um homem de terno, com uma navalha na mão. Os carros passam sem parar
e nesta cena nada ou ninguém sugere o estranhamento. Mais uma vez o humor bauschiano se
conecta com o doloroso cronotopo da solidão urbana.
Como “(...) a interpretação tem a obrigação de interpretar-se ela mesma ao infinito (...),
em um tempo circular (...)", segundo analisa Michel Foucault
438
, a interpretação de cada
personagem reenvia novos significados e possibilidades de leitura, ao mesmo tempo em que
absorve significados de outros personagens. Algumas personagens não estão no filme para
serem reconhecidas como secundárias, mas sim como personagens da realidade que se
caracterizam por participarem desse tempo-espaço e criar histórias de ficção. São como
citações, como notas de rodapé de um livro, que deixam marcadas e expostas suas crenças. São
pessoas da cidade de Wuppertal, que no filme surgem independentes, apoiando a ruptura da
forma narrativa institucionalizada, não falam através da voz, mas denunciam, através da
imagem, o que representam naquele momento determinado em que foram flagradas pela
câmara. Não se alimentam dos mesmos meios que os atores. São os que sempre estão do outro
438
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud,Marx. El cielo por asalto. Buenos Aires: Ed. Paidós.1995, p.46.
lado da cena, que negam todo o tempo que se esteja falando deles. Seria ingênuo não
reconhecer suas vozes em suas histórias.
Como exemplo pode-se citar a cena da senhora que observa, através da janela o um
provável idílio amoroso de um casal. No início da cena ela não percebe a câmara, seu rosto se
contrai numa expressão de censura. Quando nota que está sendo focalizada, fica sem graça e
rapidamente sai da janela. Em outro momento, temos crianças que observam um homem que
equilibra um pedaço de pau na testa. A alegria é nítida na expressão facial, quando notam a
câmara, não mudam a atitude, continuam sorrindo. Ainda em mais uma tomada, tem-se um
rostinho infantil aparecendo numa janela enorme, ele brinca de esconder e aparecer com a
câmara. Suas ‘vozes’, como foi dito, estão em seus corpos atuantes, sinceras e reais.
Isto poderia implicar em pronunciados recortes no filme, mas não é o que acontece.
Pina Bausch recria suas vozes a partir da montagem das cenas, de cada um deles e do que
representam naquele determinado contexto. Não atrito, pois toda a narração do filme está
construída sobre a ruptura sutil do cinema tradicional, não existem ‘extras’ no filme, todos que
aparecem deixam rastros, sem dúvida sublinhando a marca do autor.
Alguns personagens se ausentam durante parte do filme para voltarem no final, e, nesse
retorno, se modifica a focalização, o olhar sobre estes personagens. Como o homem com o
corpo coberto de lama que está na estufa. Na primeira cena em que aparece ele dança sozinho
na estufa de flores, tranqüilo e feliz. No seu corpo, tem integrado a própria natureza, através da
lama que o recobre. Sua nova aparição é depois da metade do filme, agora está parado, sentado
dentro da estufa de flores com os olhos fechados, o barro está meio seco, seu corpo está
coberto por um robe vermelho. Ele permanece sentado e quieto. Sua quietude, porém pode
não ser sinal de tranqüilidade, mas, sinal da angústia silenciosa de um corpo que estava feliz e
livre na sua dança, em um tempo que passou. Algumas cenas mais tarde, a imagem do
homem retorna em close. Continua sentado, fumando, dentro da estufa. De repente se levanta
vai para frente, faz alguma coisa que não se vê, e torna a se sentar no mesmo lugar. Uma
música começa a tocar, o que sugere que talvez o homem tenha colocado um disco. O homem
se levanta e recomeça sua dança de pequenos movimentos de quadris, um ondular constante.
Assim, a construção do encadeamento das cenas vai sobre-dimensionando personagens
e seus relatos. No exemplo, a dimensão da sensualidade, que vai se diluindo, é retomada na
última cena através do artifício da música. Assim como a estufa é um artifício de espaço-
tempo, esse homem também o é, a lama não faz parte da sua natureza, nem o homem é possível
gerador de vida, é no máximo, metaforicamente, fertilizante, adubo, mas não portador de
semente.
Poucas cenas apoiam-se na palavra. Apesar de ser a palavra o instrumento de linguagem
narrativa, os acontecimentos para existirem, não dependem dela. Apenas a presença corporal
dos personagens, em suas ações, ditam as seqüências, rompendo com a norma tradicional das
falas. Bausch articula livremente a criatividade movendo seu foco que mostra o passar do
tempo encadeado ao espaço.
O jogo em torno da palavra acontece fundamentalmente em duas cenas, onde a atriz
bêbada (Metchild Grossman) conta uma dolorosa história de perda de amor. A
pergunta/afirmação, Não me maravilha que alguém possa morrer diante da tenda do amado.
me maravilha que se possa querer e manter-se vivendo”, faz emergir de forma definitiva a
grande questão que perpassa o filme e a obra de Pina Bausch: a desesperada busca pela
felicidade, pelo amor. Define ainda a dificuldade de se conseguir continuar a vida, de se ter
coragem para tal. A mulher bêbada é sem dúvida símbolo desse estado alterado, um dos poucos
que permite as confissões mais íntimas e extremamente doloridas do ser humano. O homem
sem amor não é nada, é este simulador que se dedica a evadir-se da vida, quando seu caminho é
insólito, essa parece ser a questão.
Eu disse: eras minha vida.
Ela disse: meu fim está chegando.
Eu disse: vem, vem lua, consola-me.
Ela disse: quando começar a brilhar.
Se o rei tivesse me oferecido Paris, sua grande cidade,
E eu tivesse que deixar minha vida, meu amor querido diria ao Rei:
Verdade. Podes ficar com sua Paris.
Não me maravilha que alguém possa morrer diante da tenda do amado.
Só me maravilha que se possa querer e manter-se vivendo.
Procriemos toda classe de criaturas, ele a persuadia.
E ela não disse não.
Irmãzinha tenho tanta sede, que se soubesse de uma fonte, iria beber.
Creio que a escuto cantar: Que faz meu pequeno, que faz meu bichinho?
Venha só uma vez e não precisará voltar jamais.
Qualquer outro texto poderia ter sido escolhido, mas nenhum representa como este,
com tanta sensibilidade, a gravidade de uma perda.
Bausch exibe a dor que sintetiza o drama e a tragédia da natureza humana. A partir de
cada personagem explora distintos aspectos da história. A intriga que se desenvolve no filme
está de tal modo esgarçada no filme, que é preciso buscar as conexões para percebê-la. Mas ela
está lá, desenvolvida com a singularidade peculiar de Pina Bausch, a narrativa do caminho
entre vida, morte e ressurreição, a qual Bausch se dedica a buscar em suas mais representativas
obras, um tempo-espaço mítico entre Eros e Tanatos, estancado no tempo, que transpõe o
grande e inelutável lamento da condição humana.
Seria impossível analisar o filme ignorando os conceitos sobre a dança-teatro, onde os
gêneros se dão as mãos, fundem-se e continuam.
Pina Bausch cria uma alegoria narrativa, constrói um universo ficcional permeado pelo
confronto entre o cenário real, natural e ficções que transportam o público a uma dimensão
mítica. O cenário do confronto é a cidade de Wuppertal e seus arredores, o tempo transcorre
em três estações: primavera, outono e inverno.
Nesse sentido, o esvanecimento da cidade é emblemático, pois a Wuppertal inserida na
diegese cede lugar às múltiplas cidades internas que o imaginário humano é capaz de construir.
A cidade que desaparece tipifica a transcendência do ato de narrar
439
.
Nessa atmosfera complexa, as identidades estão em constante construção e
mutação. Ao cruzar a história, começa a se perceber que, embora cada personagem
pareça estar confinado em uma realidade diferente, há um espaço-tempo cronotópico
comum que se configura como uma imagem que se repete, implícita, enlaçando todas
as histórias: a cidade de Wuppertal. É como se a própria cidade estivesse escrevendo
a sua memória, não apenas a sua, mas a memória desse símbolo-cidade, entendido
na sua figuração de estabilidade, reflexo de uma ordem ou, conforme a psicanálise
contemporânea, um dos símbolos da mãe, com seu duplo aspecto de proteção e de
limite.
Nessa cidade-símbolo torna-se difícil localizar as identidades segundo modelos
identitários tradicionais. As personagens transitam na fronteira entre o sonho e a
realidade. A cidade, esse espaço-tempo, é um lugar onde é possível concretizar a
transgressão da cidade real para a imaginária, que, por sua vez, se desfaz em várias
realizações possíveis, realizações estas que nada mais são do que fruto de diversas
interpretações do eu.
O Lamento da Imperatriz focaliza o processo de narrar, de constituir, de reelaborar
identidades míticas. O não-dito, o silêncio é o material que a ficção mascara, transforma e re-
localiza. Porém, ao mesmo tempo em que lança um olhar ao contexto histórico-político, o
filme, acumulando intertextos, faz da narrativa o espaço onde se pode pensar o futuro. O
mundo globalizado é, igualmente, revisitado pela ficção, pois Wuppertal é um modelo em
miniatura das grandes metrópoles.
439
CARREIRA, Shirley S. G. “A cidade ausente" In: Hispanismo 2000. Brasília: Associação Brasileira de
A atividade corporal que permeia todo o filme é um simulacro do viver, bem como a
reafirmação da capacidade infinita de produção, elaboração e busca de caminhos. Os relatos,
que se transformam continuamente, encenam a necessidade de novas construções identitárias,
de busca de soluções atuais para questionamentos do presente.
O leitor-espectador é levado a acompanhar o narrador através de todo um percurso
caracterizado pela indefinição espaço-temporal, esvaziado de qualquer tentativa de
delimitação entre o real e o imaginário. O texto de Bausch parece fundido no que de mais
banal no cotidiano, no que de mais comum e, assim mesmo, mais distante do que se espera
encontrar em um texto coreográfico. Nisso reside a singularidade do seu texto, nessa
paradoxal característica de reconhecimento e rejeição que desperta no leitor.
O incômodo produzido pelos textos de Bausch, a impressão de que tudo está em fluxo
mas nada muda, já que a experiência nunca se converte em saber narrável – remete ao
deslocamento que a ficção de Bausch impõe à tradição moderna. A itinerância é uma das
características dos seus textos. Em suas peças, as personagens vagueiam pela cidade, pelo
mundo, pela cena, sem destino certo, expostas aos próprios instintos. A materialidade do
corpo é o locus das experiências.
Em Não-lugares
440
, Marc Augè analisa a sobremodernidade, caracterizando-a como a
cultura contemporânea dos excessos. A errância, a sexualidade desenfreada, o delírio, dentre
outras coisas, surge no texto como representações da condição de sobremodernidade.
O Lamento da Imperatriz é uma permanente viagem ao “não-lugar”. Movimentando-se
em um espaço nebuloso que apregoa a impossibilidade de consolidação das marcas
identitárias, relacionais e históricas que configuram o lugar antropológico, o anonimato do
sujeito e o esmaecimento da memória fortalecem a idéia de que a voz que fala pode ser de
qualquer um. Não é, portanto, necessário buscar nenhum designador identitário. A recusa da
Hispanistas, v. II, p.973.
440
Ibidem.
dança-teatro de apegar-se a referentes que possam servir como localizadores espaço-
temporais está relacionada à crise da própria história como produtora de sentido, à crise da
identidade cultural.
Na cena de Bausch prevalece um esbatimento da referência temporal, do histórico, no
sentido de revelar a sua total ausência de sentido. A voz que fala passa de uma personagem a
outra, como um trânsito indelével entre múltiplas posições de sujeito. A desconstrução de
binários é produzida por meio de mutações. A imagem do anjo e a imagem do rapaz
travestido - que se confunde com a imagem da mulher, desfazem o binômio de gênero, assim
como desfaz a oposição entre a heterossexualidade e a homossexualidade. A nebulosidade das
situações narradas desfaz a antinomia realidade/fantasia, pois torna as categorias imprecisas.
A alegoria da incomunicabilidade é instaurada por meio de várias cenas, como a do
telefone, da menina que grita pela mãe no bosque, dos meninos que choram ou do casal na
cama, tão perto e tão completamente sós. São encontros entre pessoas que estão próximas
fisicamente, mas onde não relação, comunicação, cada uma fala do seu fluxo de memória
de um modo tão intenso que não é capaz de se comunicar com o outro.
As personagens errantes não têm reminiscências que produzam experiência. A
dificuldade de identificar um outro a partir do qual possam afirmar a própria identidade faz
com que sigam como sujeitos sem nome, sem história, presos a acontecimentos cuja
significação se esgota em sua mera faticidade. A narrativa como acontecimento, a chave para
a leitura desses textos, consagra o instante da leitura, como um convite a penetrar nos
mistérios da condição humana.
O corpo é o lugar de onde o sujeito ensaia um grito contra tudo o que a sociedade
constrói sob a forma de discurso de repressão. No espaço do corpo, os espaços geográficos se
diluem, assim como o tempo, tomando novas dimensões. Ao transgredir a forma e os códigos
da ficção, Bausch faz do delírio uma nova maneira de recontar a vida.
É apenas com a personagem da velha senhora, ao final do filme, que dança ao som da
máquina de discos, indiferente ao que a cerca, que se descobre, repentinamente, a dança:
liberta de qualquer tipo de prisão, física ou mental. É esse se mover ao som de uma melodia a
garantia de continuidade.
Nesse aspecto, vale relembrar o monólogo da mulher bêbada, ela é aquela que ainda
pode recordar as velhas vozes perdidas e sabe que tem de continuar.
5. 6. A linguagem: um sonho dirigido
Em Informe de Brodie, Jorge Luís Borges
441
afirma que a "linguagem é um sonho
dirigido"
442
. No universo ficcional de Pina Bausch, o sonho pode ser compreendido como o
locus nebuloso do encontro entre a realidade e a ficção.
Seu relato não é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo numa escala de
imagens-ação. Retomando a concepção de Borges de que a verdade nasce com a linguagem,
qualquer que seja ela, e é, portanto, uma construção humana, Bausch cria personagens que
transitam em um universo ficcional em que os limites do tempo, espaço e individualidade são
imprecisos.
As cenas introduzem personagens aparentemente sem conexões, que certamente
constituem uma ameaça ao establishment. A informação caótica e manipulada, as realidades
artificialmente construídas e os dados suprimidos constituem matéria importante na tessitura
dessa obra que prima pelo discurso intertextual. As estórias surgem sobre as lacunas e
incertezas, em busca de uma maneira de superar a morte, que aparece disseminada através de
várias cenas. Essa característica estabelece um vínculo no encontro da vida com a ficção,
insinuada por uma das personagens, a atriz bêbada, quando declama seu texto. A derrota da
441
BORGES, Jorge Luis. O informe de Brodie. Trad. Hermílo Borba Filho. Porto Alegre: Globo, 1976. O livro
de contos, publicado em 1970, faz uma síntese dos temas mais recorrentes de sua obra. Citações, reflexões,
duelos e o mito do eterno retorno são alguns dos assuntos abordados no livro, escritos na elegante prosa
borgeana.
morte se através da construção de relatos virtuais, que apresentam a ressurreição, como as
últimas cenas do homem-anjo e a cena final da mulher no teleférico, que expõe sua dor,
lamenta, mas continua a viver, sua memória e seu conhecimento.
O intertexto proporciona a idéia da mulher-dor que Bausch desenvolve não apenas em
O Lamento da Imperatriz, mas que perpassa toda a sua obra. É esta a Imperatriz de suas
memórias. Com a leitura das cenas, aos poucos, o espectador/leitor percebe que as personagens
falam de si mesmas, contam suas histórias, ainda que de forma desordenada. Parece que
quando se vê a imagem os fatos já são outros, tudo parece defasado e fora de lugar. Na
verdade, Bausch reflete uma ‘cidade interna’, em que cada um enxerga o que quer ver.
É preciso procurar se orientar nessa trama fraturada, entender porque alguma
coisa parece estar fora de controle. Uma série inesperada de dados vai se infiltrando,
como se os arquivos da memória estivessem abertos. Não revelam segredos porque
não são capazes de conhecê-los, mas dão sinais de querer dizer algo diferente
daquilo que se esperava, algo sobre o seu próprio estado interior. Contam fragmentos
de sua história, permitindo que seja reconstruída. Entram e saem dos relatos,
circulam pela cidade, procuram orientar-se nessa trama de caminhos e caminhantes,
da qual já não podem sair. Em princípio é difícil se entender o que se está vendo, é
preciso cruzar as histórias e deslocar vários registros ao mesmo tempo.
A personagem se define como o ponto de inflexão, de onde a percepção da
fratura e da heterogeneidade possibilita a compreensão de múltiplas concepções de
narrações, o segredo é se apreender à medida que se sucedem as cenas, lembrar do
que já foi visto e talvez construir uma trama comum.
5.7. Uma alegoria do cinema
442
BORGES. Op. cit. p.6.
O Lamento da Imperatriz é um filme marcado pela ref(v)erência e pela intenção de
carregar em si a transição e destilação de novos programas estéticos. O filme de Bausch é
também marginal, experimental, independente, sua classificação não se imobiliza justamente
pelo caráter de mobilidade e de experimentação de sua lógica. Ele registra o processo criador
de Bausch, e nele vemos a ligação imediata com sua dança-teatro por meio do seu principal
elemento: o corpo
É o corpo personagem que perambula na sua imensa solidão humana, como numa cena
derradeira e emblemática do filme, na qual a atriz bêbada discursa solitária no teleférico
enquanto a câmara se afasta deixando-a no isolamento completo. Mas é na perplexidade dos
rostos e no foco do individualismo de seus protagonistas que a dança-teatro-cinema de Bausch
instala-se na mudança de eixo (também determinada ou ocorrida em diversas correntes do
chamado cinema moderno) que concentra a atenção no indivíduo, personagens que vão ao
limite (limite é um termo que perpassa o universo de suas obras) de tudo, com a intenção de
chamar o testemunho do espectador diante do ‘nada’ que é o homem em sua miserabilidade. É
nesse quadro que aparece o outro (o principal) canal diegético do filme, o corpo-cidade, cujo
protagonista é Wuppertal.
Portanto, para esse particular mecanismo de formação e tratamento de personagens, e
para organizar essa dramaturgia indigesta aos padrões comuns de consumo, os procedimentos
estilísticos e a forma de escrita de sua obra escolhem, ou encontram tenazmente, o avesso do
comportamento clássico da narrativa cinematográfica, cuja decupagem define, por exemplo, a
fórmula de subjetivação e aproximação do espaço diegético com o espectador, o mecanismo de
identificação convencionado segundo valores teleológicos de construção, começo/meio/fim,
alegoria da moralidade, messianismo heroicizante, empenho na eliminação das dicotomias (o
bem sobre o mal), o paralelismo de ações narrativas de multiponto, a expressividade da câmera
que rastreia o mundo natural-realista (mimese e o poder que a realidade exerce sobre o
cinema), o plano- contra- plano; todos são recursos de linguagem definitivamente ausentes do
plano de experiências da obra de Bausch.
Quase sempre agressiva, inóspita, a obra de Bausch obriga a observar a violência e os
signos em ação e difusão permanentes, deslocando-nos para o plano do estranhamento onde
permanece a instabilidade das aparências.
Em O Lamento da Imperatriz vê-se um metacinema na ilustração alegórica, e em sua
radicalização em rejeitar o plano narrativo convencional. O estudo, a experimentação, a
investigação contínua são valores de maior probabilidade na dança-teatro, e Bausch é uma das
construtoras desse comportamento. Nos últimos trinta anos de sua carreira, ela vem
promovendo o trânsito por diversas linguagens e, de um modo geral, deixando um legado que
trata das linguagens artísticas não como campos estanques, mas que se inter-relacionam, se
integram, que somam.
Em O Lamento da Imperatriz pode-se verificar também o vivo compromisso com a
linguagem mesma, em que a imagem não está ali, ontologicamente, a serviço de um plano de
ação ou conteúdo, temperada pela representação do real; ela é a própria representação de si
mesma, ou busca a invenção de um conjunto de imagens que se constróem no ato fisiológico,
na ação mesma. Esse procedimento subverte a hierarquia do trabalho com as imagens, dando a
ele o estatuto da palavra poética que participa e enseja o poema. Essa é uma característica que,
se radicalizada, usada em profundidade, acaba por frustrar o espectador comum que anseia por
informações na esfera de um mundo narrativo e naturalista.
Foi Jan Mukarovsky
443
, o formalista russo, quem disse que a magia do cinema parte,
sempre quando assistido, da novidade, como se aprendêssemos uma língua nova a cada
instante do filme a que assistimos, portanto um exercício instantâneo de "tradução" e
reconhecimento. Nas obras de invenção, assim como as de Bausch, essa experiência relativista
443
MUKAROVSKY, Jan.
Escritos sobre Estética e Semiótica de Arte. Lisboa: Estampa.1993
teria de ser adaptada: a fruição simultânea da "tradução" teria de acontecer, por exemplo,
dando a chance a um estrangeiro de aprender o português direto de um poema de Oswald de
Andrade, o que se encaixa, analogicamente, à dramaturgia de Pina Bausch.
Ao longo de cento e três minutos, Bausch apresenta um filme não dividido conforme o
padrão dramatúrgico tradicional, de curva dramática baseada em três atos, conflitos e clímax,
com pontos de tensão definidos que empurram a narrativa no sentido teleológico, segundo
ditames da organização e da estruturação mitológica que hoje faz sucesso paradigmático nas
culturas globalizadas. Além disso, não se configura com clareza a composição gramatical de
cenas inseridas em seqüências, como um conjunto de idéias reunidas segundo uma premissa
dramática, em cuja sintagmática se resolve o processo de narração. O que vemos é uma
sucessão de blocos cênicos, aproximadamente em número de oitenta e cinco, que se seguem a
corte seco e que mantêm um certo equilíbrio hierárquico entre si; são dispostos sem o impulso
do maniqueísmo e da pressuposição e inércia da causa e efeito, sem o instinto da ação e reação
que cumpre a tarefa de envolver na luz algum sentido profético e um destino biografado. Nem
mesmo nomes são atribuídos aos personagens, que ao estarem diante da câmera parecem
sobressair numa dimensão que prescinde de identificações. Não um plano diegético que
evidencie a lógica dos acontecimentos, mas também não como negar que é a montagem o
princípio ativo que rege o mecanismo do todo.
O espectador tem de se alinhar numa espécie de cumplicidade a que é chamado para o
início de uma jornada que será possível se estiver ciente de que o programa de espacialidade
e de emolduração do discurso não se apoia e não toma como receita fundante o mundo externo
objetivo, pois nele não se completa o princípio da reciprocidade e continuidade com o espaço
da tela, que deve ser preenchido de referências pela mente do espectador. Antes disso, antes de
observar por meio da famosa "janela para o mundo", e com maior ênfase, o olho da câmara
apresenta a figurativização do real, um discurso dirigido para o centro dos quadros,
concentrado nos quatro lados da moldura, acompanhados do qual temos de suprimir ou reduzir
o grau de importância das convenções de continuidade e transparência dos sentidos, arbitradas
com enorme desenvoltura e freqüência no plano clássico narrativo em que a maioria dos filmes
produzidos está apoiada. A partir desta constatação, O Lamento da Imperatriz aparenta-se ao
jogo do cinema de montagem, e isso o faz dialogar com uma genealogia fílmica em cuja raiz
está o cinema do soviético Sergei M. Eisenstein.
444
É preciso um esforço para unir os acontecimentos dessa montagem intelectual,
compreender o que na disposição ou organização sintagmáticas, o que pode resultar numa
opinião pessoal, porque a obra não se resolve no charadismo de uma suposta camuflada
narração.
As cenas de abertura apresentam uma panorâmica mostra de Wuppertal, guiados pelo
olhar da câmara, testemunha-se a metáfora de um personagem mostrando seu reino mágico.
Bausch está preste a iniciar a viagem, um inventário visual que o espectador verá sobre a forma
mista de delírio, lembrança e documentação. Porém isso não é dito de forma representativa
natural; não se ouve um diálogo explicativo ou uma ação diegética que conte o que está
acontecendo. O que resta ao espectador é perceber que conexões entre as cenas. Essa é uma
típica alegoria radical, chamemo-la assim, que nos é dada sem a menor referência direta,
portanto uma informação que está fora do contexto imediato, e cuja informação de ser
juntada do lado de fora do filme, ou seja, requer uma investigação prévia ou posterior por parte
do espectador. Esses ‘espelhos alegóricos’ vão sendo costurados ao longo do tecido fílmico, de
forma a se evidenciar como uma das características principais da escrita bauschina - não
nesse filme, mas em toda a sua obra.
Em seguida, vem literalmente a queda, na aflição das personagens, que tropeçam, caem,
continuam andando e correndo. Depois vem o isolamento do farrapo humano na solidão dos
planos do bosque, da planície ou dos salões. As imagens se justapõem ao som de descargas de
444
EISENSTEIN, Sergei M.
A Forma do Cinema. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
em vaso sanitário ou água da torneira num dos trechos de maior estranhamento: a cena da
mulher no banheiro.
O estatuto da imagem não passa pela qualidade do coerente e do possível; oscila na
estética do que pode ser um sonho ou talvez um produto da lembrança. Na verdade essa
questão é crucial para "ler" O Lamento da Imperatriz. Bausch trabalha, quase na íntegra,
compondo o aspecto das pessoas e das idéias, e a inexistência do modelo clássico de
representação confere uma indefinição constante na instância narrativa.
Em seu universo alegórico uma espécie de previsão da estética punk misturados a
requintes masoquistas, onde mulheres e crianças dividem a cena entre a tortura e o prazer em
estranhos rituais: seios postiços, que são revelados
445
, uma nuca sendo raspada
intermitentemente, criança amarrada a uma árvore, gritos contínuos e personagens que andam,
correm, buscam e parecem sempre perdidos - uma estética que culmina na aparição do homem
travestido que imerge no tanque transparente ou é acuado pela vigilância panóptica de um
helicóptero de brinquedo, que pode ser outra transfiguração da Imperatriz.
Uma associação se faz inevitável, apontando para a idéia da oposição ao mito da femme
fatale, da mulher fatal, acentuando a ambivalência da androginia em carne e osso, uma outra
possibilidade de carnavalizar a heroína mítica e pudica; além disso, é a própria inversão de
valores na cultura romântica do cinema, onde raramente se aceita a transgressão iconoclástica
no âmbito da cultura do corpo. Dominique Mercy, na cena do helicóptero, Jan Minarik, na
cena da dança de salão, ou os dois rapazes que patinam, usando vestidos longos, são, entre
outros, personagens da transformação, anti-símbolos da identificação de gêneros, índices de
tabus sociais.
Como o navio que está preste a partir e não vai navegar no mesmo mar que o feérico E
La Nave (1982), de Federico Fellini - primeira incursão de Pina Bausch no cinema, onde
atuou com Virgínia, a princesa cega - guardada as devidas intenções estéticas e proporções
cinematográficas neles contidas, O Lamento da Imperatriz, como E La Nave , apresenta
reflexões sobre o cultivo das figuras mitológicas do universo artístico e da própria maneira do
fazer artístico, numa viagem alegórica com papel crepom e plástico, em E La Nave , ou
numa viagem-passeio pelo exterior e interior do corpo de Wuppertal, no Lamento, protagonista
que marca sua presença na viagem do improviso e das citações de Bausch.
Os diálogos que aparecem, na verdade quase monólogos, são marcados pelo humor e
pelas frases feitas, muitas delas inequivocamente aproveitadas conforme as improvisações dos
atores durante as filmagens, como a cena entre Metchild Grossman e Dominique Mercy, a
conversa surreal sobre a construção das pirâmides do Egito. As falas (termo melhor do que
diálogos nesse caso) é recurso usado principalmente pela atriz Metchild Grossman, sempre
enquadradas nos poucos cenários minimalistas formatando ambientes internos, como a
mesa/bar, sala, teleférico, um mini proscênio.
Se no plano visual as referências resolvem-se em alusão imagética, no plano verbal as
falas situam-se como importantes pistas do hieróglifo que permeia o Lamento, em diálogo com
as imagens. Enfatiza ainda o caráter da mediação e da construção valorizados no filme, como o
momento em que a atriz pára em baixo de uma água que cai copiosamente e pergunta
diretamente para a câmara se ali está bom - o que nos remete para fora e para trás da câmara.
Esse impulso de dentro-para-fora, de sabotagem da representação e da superfície plana
do filme, talvez seja o procedimento de freqüente aglutinação neste filme, que a todo instante
esconde ou desloca seus objetos para o espaço da transição entre a memória e o visível. Nesse
espaço criado com citações visuais e verbais o espectador está comprometido no jogo de uma
alegoria transcendente, ou vertical, ou seja, como nada é evidente na tela, a participação dele é
fundamental na costura dos vestígios e dos retalhos de "história" que aparecem na chave da
comicidade e da ironia.
445
Cena da mulher que anda perto de uma piscina, ele tira e recoloca seus enchimentos no soutien.
O olhar incomum é requerido para a tarefa de se familiarizar com um procedimento
comum nas obras de Bausch, que poderíamos chamar de ‘elipse de inversão’. Se a elipse é uma
técnica comum da linguagem narrativa, pois elimina o óbvio ou o dispensável do discurso, em
Bausch a elipse que elimina o principal! Muitas vezes o que vemos é o vestígio, a sobra da
ação de um personagem, que age sem sair do lugar, eliminando a passagem de tempo, e assim
também ocorre com as referências a objetos e idéias, como a figura da 'coelhinha' Playboy, que
volta e meia aparece, impondo re-conexões textuais.
A viagem pelos espaços de Wuppertal são alternadas com imagens internas do edifício-
sede da companhia, e de uma espécie de bar, cenário onde, no final, se concentram as imagens
mais contundentes do filme: a velha senhora que dança.
Nesse espaço cenográfico, produzido para aparecer como tal, ocorrem as encenações
nas quais se acentuam e se situam comentários teatralizantes, acomodados em reproduções
estilizadas de cenários com objetos essenciais, como: mesa, cadeira, uma poltrona, uma cama.
Bausch faz um jogo de contrastes entre estas imagens - mobilizando signos, segundo seus
valores estruturais míticos - e citações de aspectos da cultura urbana.
No painel kitsch e imbricado de situações apresenta-se a referência à figura lendária da
Esfinge, com Metchild Grossman, e a um estranho concerto regido, em gestos histriônicos, por
Dominique Mercy, que tem o barulho torrencial da água e a voz de Mercy, como sinfonia.
Essas seqüências refletem uma espécie de conjunto de valores e elementos essenciais à
formação da escrita de Bausch, organizada como mosaico de reescritura, síntese e
metalinguagem, cuja reincidência indica que a mobilização em torno da própria linguagem é
estratégia fundadora em sua obra.
Não nenhuma indicação de passagem ou de chegada; da mesma forma nada nunca
toma algum rumo previsível, no entanto está rapidamente um plano que mostra o campo
verde da primavera, o mesmo que aparece coberto de folhas no outono e de neve no inverno,
uma pista de que a viagem pode ter chegado ao fim. De volta ao campo verde, aparece uma
mulher, tomando goles de uma garrafa, embebedando-se, que caminha pelo campo segurando
uma ovelhinha negra nos braços. No campo pasta um rebanho de ovelhas brancas, na seqüência
adiante, tem-se a mesma mulher caída no campo, enquanto um anjo solitário brinca com os
galhos secos das árvores.
Essa alegoria muda os contornos da história, implica numa nova ambigüidade que se
apresenta em uma ação silenciosa e misteriosa. A ausência total de som nessa cena aumenta e
reforça a atitude incomum de fazer da própria imagem dos movimentos opostos a imagem
do dilaceramento, do esgarçamento conceitual como se o campo formasse um paradoxismo
visual, uma união entre terreno e divino.
Num certo trecho do filme a personagem mulher-bêbada, afirma poeticamente, que
quem se distancia do mundo tem mais chances de avaliá-lo melhor. Por outro lado, quando
filtrada pela experiência dos conceitos de ordem, de poder e de mímese, por exemplo, a
realidade estática e monolítica criada pelo homem pode ser o perfil da alienação. Assim, como
transformá-la, senão alegorizando-a com as possibilidades que o cinema oferece?
As correspondências das principais características formais de O Lamento da Imperatriz
lhe conferem o tom de um manifesto vivo da autora colocado na fala de seus personagens.
Bausch radicaliza seus procedimentos fílmicos evidenciando a mediação ao marcar sua
presença como narradora (equipe, câmara, luzes, cenários), mostrando claramente que entre o
espectador e o sonho um veículo: o cinema. Mas o distanciamento não é ainda total quando
usa esse recurso de ‘desilusão espectorial’; mais que isso, seu discurso recusa definitivamente
os mecanismos da continuidade de ação e dos raccords, despreza a montagem invisível
arbitrada como forma de fluidez e sustentação de enredo e verossimilhança. Não o menor
fragmento da função teleológica, programadora de expectativas morais e de finais elegíacos e
melodramáticos; assim como não lugar para a estrutura mítica tradicional, na qual as forças
são quase sempre gerenciadas justamente para eliminar a separação entre o homem e o mundo.
Numa outra chave oposta, o filme trabalha a seco a passagem do tempo fílmico,
mobilizando instrumentos que obrigam ao espectador uma atitude diferenciada diante da
‘desorganização’ das imagens que transbordam em aparente caos. A formação de pensamento é
dificultada pelo aspecto disjuntivo da construção sintagmática, a composição geral é truncada
ora por uma imagem que demora a dar lugar a outra, ora por outra que substitui justapõe-se
precocemente à anterior. As informações aparecem em estado lacônico, como se lhes faltasse a
parte principal encarregada de sentido; é oferecido um mínimo, um fragmento daquilo que está
oculto em algum outro lugar, em campos diferentes com os quais o cinema vai buscar suas
correspondências; mais ainda: o que sobra se afina bem ao flagrante impulso de uma alegoria.
E é com essa estratégia de minimização das aparências que vemos no filme de Bausch a
semelhança homológica com certos procedimentos das pinturas alegóricas.
"A pintura alegórica omite o sentido próprio do objeto, recobre-o de sentido figurado e
o põe para decifração"
446
, como no quadro de Leonardo da Vinci, Leda e o Cisne, ou de
Salvador Dali, Leda Atômica
447
, em que o pintor espanhol faz a figura nua de sua mulher Gala,
levitando ao lado de um cisne, ambos alegorizando o mito de Leda. Bausch nos obriga a ter as
informações a tiracolo durante a exibição do filme, porque com elas ele irá formar suas
parataxes alegóricas, diante das quais só nos resta a decifração poética de um objeto que está
sempre fora do lugar.
Se O Lamento da Imperatriz processa politicamente algum registro das possibilidades
de expressão da cultura pós-moderna, ele participa na composição e na afirmação daquilo que é
imprevisível, uma espécie de signo degenerado que busca sua plenitude na instabilidade dos
símbolos, uma conduta que chama a atenção do espectador para a transitoriedade das imagens,
446
OLIVEIRA, Valdevino Soares de. Poesia e Pintura: um diálogo em três dimensões. São Paulo: Unesp.
1999.p.154.
para a transmigração que Pina Bausch consegue efetivar entre as linguagens da dança, do teatro
e do cinema, sem renúncias.
O Lamento da Imperatriz é um filme que mobiliza, sem economia, os recursos da
metalinguagem e do distanciamento para dialogar com o próprio corpo no cinema, e semear
vestígios de uma arte que pensa por imagens e discute o próprio ofício com suas ferramentas
usuais: o humor, o deboche, a ironia, o kitsch. O que é praticamente indubitável, é que esta é
mais uma obra que intriga e afasta mais espectadores do que arrebata e arrebanha. Entre outros
motivos, porque alegoriza a cidade de Wuppertal, oferecendo ao espectador posições e ângulos
nada óbvios desse urbano, transformando-o em artigo visível de experiência.
O Lamento da Imperatriz
Filmagem: Pina Bausch r Dominique Mercy
Foto: Detlef Erler
CONCLUSÃO
447
Ibidem, p. 156.
TODA IMAGEM É UMA NARRATIVA, TODO GESTO TEM UMA HISTÓRIA
"But I had only my eyes with which to speak."
(William Carlos Williams)
6. 1. A viagem
A viagem é um antigo topos como figuração recorrente para o processo de escrita
poética. A recorrência e a longevidade de tal topos não assegura, no entanto, a quem dele se
acerca, maior qualidade. Aliás, a repetição pura e simples de alguma imagem clássica parece
hoje sugerir uma leitura convencional do texto em questão. Não é o que acontece, porém, em O
Lamento da Imperatriz, cujo eixo, é a figuração de uma escrita labiríntica, viagem pela cidade
de Wuppertal de um ponto a outro, numa espécie de análise poético-reflexiva das imagens da
cidade e da representação do poeta como viajante e sujeito daquele lugar.
É com certo ceticismo que se parece fixar a viagem como motivo e objeto de reflexão.
Como se fosse este o tema, na verdade Bausch desconstrói qualquer aura aventuresca ou
ilusão ilustrada em torno da idéia de andar pelos lugares. Afirma, porém o ir e o regressar/sobre
as mesmas pegadas, o caminhar para o lugar-nenhum a que parecem conduzir os passos, num
falso movimento do corpo pelo mundo.
E às vezes são movimentos literalmente em falso, transformados em poesia corporal,
como a moça de ‘coelhinha’, tropeçando em seus próprios pés, ou a dança da mulher
encharcada numa ponte que balança, no meio de uma tempestade de neve, em que ela perde
subitamente o equilíbrio.
Como explica Wim Wenders em Le Souffle de l'Ange
448
:
"A viagem como sonho de aprendizado, para compreender o mundo, não é
mais possível para nosso tempo. O filme que se poderia fazer seria a viagem de
alguém que tem esta esperança de compreender o mundo e com quem se passa o
contrário: ele vai se dar conta de que seu movimento o leva ao nada, que, no fim,
ele não se moveu um centímetro. Daí o título: Falso movimento."
449
Esta explicação aplica-se perfeitamente aos labirintos de O Lamento da Imperatriz.
448
WENDERS, Wim. "Le Souffle de l'Ange”. In Cahiers du Cinéma. Paris: 1988.
449
Ibidem, p.25.
O antigo topos funciona no sentido de estabelecer uma relação analógica,
uma imagem que reforça a ligação, a coesão entre as cenas e com a qual Bausch
trabalha em todo o filme. Daí a referência a situações míticas através de figuras que
habitam o filme de passagem: o anjo, os corpos caídos na neve, o apelo solitário pela
mãe.
Estabelecida essa relação inicial, assiste-se, à medida que se sucedem as
cenas, a contínuos ajustes, reajustes e retomadas do motivo inicial: os tiros, a mulher
em atitude lutante, o grito pela mãe, a busca de amparo, de carinho, o andar em
direção a algum lugar mítico onde se estaria em paz. É isso que parece mover esses
corpos. Porque se a regra é a idéia de falso movimento, há um outro, um movimento
reflexivo, que de fato marca as cenas e a organização precisa, cuidada. Assim, se a
máscara que define o sujeito lírico é a do viajante que vai e volta sobre as mesmas
pegadas, sua perspectiva é a do descolamento, a de quem se interroga sobre a
própria figuração. E diverte-se em torná-la crescentemente prosaica, passando a todo
o momento do ambiente externo para o interno.
A construção poética, apoiando-se num topos clássico, propõe na verdade,
imagens desse percurso pelo corpo de Wuppertal, formas de viagem
intertextuais.Imagens características de diversas possibilidades expressivas,
organizadas pelo ritmo, por repetições quase anagramáticas e duplicações
constantes de ações físicas. E, sobretudo, de uma tensão, especialmente
significativa, entre o uso freqüente de continuidades do espaço físico externo da
cidade de Wuppertal, continuidades que lembram, sem maiores disfarces, o
movimento da viagem ou desse caminhar labiríntico das personagens, num texto que
vai se estruturando cena a cena, através de associações rápidas, cortes inesperados
e analogias, onde os corpos são sintagmas que estabelecem uma singular teia
narrativa.
A opção de Bausch pela forma não convencional da dança vem acompanhada de certa
tensão interna, que leva a um descolamento reflexivo inevitável. Como no caso da preocupação
com a técnica balética, na cena do rapaz com o professor de balé, que está presente, mas
devidamente acompanhada por um sinal de ceticismo: a execução apenas mecânica do passo, a
preocupação única com a forma, sem conteúdo. Essa é uma crítica ferina ao uso que se faz da
forma fixa da dança clássica ou ballet.
Mas também um vice-versa, na inesperada cena em que o mesmo rapaz da aula de
balé dança tranqüilamente com o homem ruivo. Quebra nada gratuita, que cumpre uma função
toda especial: a de aproximar figuras até então singulares, isoladas, como a do sujeito rico, do
homem ruivo, sempre em atitude de repouso e complacência, com a do rapaz moreno, até então
vítima do rigoroso regime disciplinar tanto do professor de balé, quanto da professora de
alemão.
Aproximação para a qual se chama a atenção, que se pode traduzir explicitamente como
corpo que é matéria, mas corpo que também pode, sabe e deseja. Numa cadeia sensorial em
que ações e desejos contaminam-se mutuamente está a bela sugestão de um sujeito-em-
metamorfose, que incorpora o movimento, a viagem (ou superposição) de uma máscara a outra,
apontando possibilidades de trânsito onde, até então, só se percebia margem, limites.
Outra questão, também ligada a trânsito e limites: o caminho impreciso. Examine-se o
que acontece especificamente nas cenas da mulher “coelhinha” e as cenas em que outras
personagens correm, chamando pela mãe. uma certa ambiência comum, todas as cenas são
externas, nos arrabaldes de Wuppertal, além da dominância do espaço indireto. Há, ainda,
certos trechos do filme em que Bausch retoma os mesmos lugares, mas em meio a um esperto
jogo de diferenças estabelecido pela estação do ano. Por exemplo, o lugar em que anda a
“coelhinha” no início do filme é o mesmo em que passeia a mulher do acordeão no final.
que nesta última cena o solo está coberto de neve. O mesmo se repete nas tomadas do bosque,
no início, aparentemente no outono, depois no inverno e na primavera. É possível esta
observação nas cenas iniciais da mulher-menina de azul, que corre chamando a mãe, na cena
de uma mulher sentada , no meio do bosque coberto de neve e na do homem de robe que
anda no mesmo bosque. O lugar é o mesmo, some e reaparece de repente, e sugere uma
redefinição temporal que o liga ao sujeito da ação, num cronotopo que pode ser conector ou
seccionante. Porém é nesse mesmo espaço físico que se aproximam, mesmo que seja para logo
em seguida patentear diferenças.
Essas retomadas, observando o que há de fundamentalmente diverso é, pois, uma
questão de limites, de delimitação espaço-temporal.
É exatamente como tensão constante entre movimento e limite, labirintos, viagens e
margens, que se definem a escrita poética e o processo de composição de Pina Bausch em O
Lamento da Imperatriz e outras obras que têm cidades como tema. Graças, sobretudo, a um
inteligente uso, desse corpus da cidade, assiste-se, à gênese de uma escrita em processo. E é
como questão de limites, de demarcação de campo, que isso se dá. Não é à toa, que no filme,
em todo momento, apresente-se essa viagem-movimento, imagem do narrador não como
viajante dos cômodos internos de um edifício, de uma casa, mas também de todo esse espaço-
tempo externo e determinante do personagem-cidade.
6. 2. O sujeito
Um critério de concisão, preocupação com a economia corporal, mas também um gosto
acentuado, é claramente perceptível nas suas encenações por segredos, esconderijos e pistas.
Talvez se possa dizer dessa identidade secreta na poética de Pina Bausch, que não se trata mais,
pura e simplesmente, de uma série de imagens, mas de uma idéia - fixa, de uma forma
particular de definição - pela sombra - do sujeito (anti)lírico. Porque, se uma das marcas
registradas do seu trabalho, contra a corrente egolátrico-expressiva dos anos 70, foi o decidido
descarte desse retrato da subjetividade, isso não implica descaso pela reflexão sobre o sujeito.
Justo o oposto. "Expulse a subjetividade, ela retorna a galope"
450
, disse certa vez Georges
Poulet
451
num texto sobre Roland Barthes. No caso de Pina Bausch, a rejeição de uma
poética cuja chave-mestra é a auto-expressão, em favor da co-autoria com seus atores-
bailarinos. Posição que acentua uma proliferação de máscaras possíveis para essa meta-eu de
suas encenações, e acelera a perseguição de uma outra figuração - nem puramente metafísica,
nem biográfica - para o sujeito lírico. É esta a direção de O Lamento da Imperatriz, que
apresenta como motivo dominante do ‘texto’ a configuração e forma de problematização
poética do sujeito.
É na sua relação com o espaço-tempo que Bausch procura configurar um sujeito
poético. De um lado, um tempo cosmológico, tempo do seu silêncio, do seu sono, dos seus
passos, tempo irreversível, de outro, o tempo psicológico, que o invade em sensação e desejo
imperioso de ser, mesmo sabendo-se puro ensaio de tempo e nada, o tempo reversível. Daí a
tentativa em paradoxo de capturar o tempo essencial no seu próprio fluxo corporal ou por meio
de um diálogo pessoal, intransferível.
Interlocutor fugidio, duro, silencioso, o tempo escapa, filosoficamente, à captura, e
invade o sujeito, e o impele a figurá-lo. A ele, tempo, que é linha desigual, curva do
pensamento e do desejo, tempo que é real.
As encenações de Pina Bausch, desde os anos 70, retomam essa tentativa, à beira da
metafísica, de compreensão do sujeito contemporâneo.
Sua obra marca o abandono ao uso sistemático de códigos tradicionais da dança, ao
mesmo tempo, que sugere uma virada prosaica no diálogo entre o teatro e a dança. Bausch
450
POULET, Georges. Etudes sur le temps humain/4. Collection Agora. Paris:Éditeur Presses Pocket .1990.p.59.
451
Ibidem.
passa a pensar o sujeito na sua relação com o outro, com o mundo, o acaso urbano, e com um
eterno presente que impõe como marcas o movimento, a transformação e a consciência, por
parte do eu, da sua finitude, da sua solidão.Questão que marca a redefinição de sujeito como
figura ou figurações. Aviso prévio de que a paisagem poética agora se tornou decididamente
outra: uma linguagem corporal extremamente econômica, e muito bem trabalhada através de
um hábil jogo de ironia.
As figurações mais tidas do sujeito poético saem de um repertório tico-ficcional
sobre possíveis identidades humanas e/ou míticas.
Como as perseguições ou buscas que atravessam o filme, em que sujeito ou objeto da
procura apenas são supostos, que não aparecem concretamente, apenas é possível suspeitar-
se sobre possíveis identidades.
Bausch acrescenta aos suspeitos - já familiares nos seus textos - figuras cuja simples
presença, em meio ao bosque sombrio de Wuppertal, ao universo anti-social, cruel, que lhe
serve de alicerce poético, parece fadada a inquietar, como, por exemplo, os homens que
acompanham as crianças pelo bosque, o homem que cava e esconde algo na colina, o que iça e
deixa pendurada uma criança na árvore, além dos corpos imóveis que aparecem no meio da
neve.
Dessa forma, vem para o primeiro plano o que ficava no fundo do quadro: a tentativa de
definição, via cisão, de uma identidade autocorrosiva secreta para um ou mais sujeitos. Duelo
particular que se espetaculariza, aos olhos do espectador-leitor, através de referências a figuras
mais conhecidas, pertencentes a um imaginário corrente, como: a mãe, a procura de amparo, a
busca do amor. Ou entre imagens quase surreais, como a da ‘coelhinha’ correndo na paisagem
árida, a mulher que dança na chuva, ou a que procura se equilibrar nos ombros de Jan Minarik,
imagens que têm em comum a dimensão lutante, de busca incansável. Ou, impasse talvez ainda
maior, entre a paixão crítica e a idéia fixa da ordem. A ponto de sugerir, em alguns momentos,
a impossibilidade de maior identificação com quaisquer figurações por parte do espectador-
leitor, mesmo que involuntariamente, pudesse ele também se comportar por vezes como uma
espécie de seguidor de pistas e rastros.
É preciso um outro elemento, aquele que permite ao intelecto penetrar nessa atmosfera
saturada de paixão. Bausch não escreveu nenhuma história de detetive, mas o cálculo, o
momento construtivo, está em sua obra associado de modo total e completo à crueldade. O que
significa essa apropriação da máscara secreta, que propõe a dúvida, a incerteza, mantendo laços
estreitos com a "tradição moderna". É necessário tentar perceber o sentido desse movimento de
aproximação com o desconhecido. Dessa figuração aparentemente bifronte para o sujeito.
O impasse dessa identidade-em-cisão do sujeito narrador retorna durante todo o filme, e
está presente em toda a obra de Bausch. É tematizada diretamente em pelo menos três ótimos
exemplos: as relações perigosas entre os homens e as crianças, entre o rapaz e o professor de
balé; o igual do desigual, no casal que dança de vestido brilhante; na identidade secreta de
todos os personagens; na desigualdade do que se apresenta em confronto. É preciso caminhar
por vias diversas para se compreender a necessidade de figurações em paradoxo para o sujeito
na poética de Pina Bausch. Poética centrada não exatamente numa definição do seu sujeito:
risível, insó1ido, infra-herói, que se sucede nas suas imagens paradoxais. Capaz de sugerir em
auto-ironia o ‘nada’ que é o ser humano.
Bausch transforma a câmara num olho que olha-para-dentro, e modificando os limites
das cenas, torna possível duvidar da imagem ‘real’, gêmea, e substituí-la por uma interrogação,
que penetra fundo no espectador-leitor, que incomoda, mas o impele a uma reflexão. Talvez a
uma resposta, ou atordoamento frente a si próprio, mas sempre uma figura, que em suas várias
redefinições, persiste na capacidade de auto-ironia, como exemplo: a cena da troca de animais
de um lugar para outro, a dança de salão em uma estranha posição, feita pelo rapaz ruivo e o
garoto moreno, a mulher de vermelho apitando furiosamente do alto de um edifício, o homem
fazendo a barba no meio-fio, no centro da cidade.
6. 3. O agente da ação
Quem fala na obra de Pina Bausch? Chama a atenção sua preferência por
indeterminações ou por alguma forma não usual como agente da ação. Não faltam
ambigüidades, como a troca do que se pensa ser o sujeito, para um outro eu que, mesmo oculto,
tem oponentes, limites, aparência sugerida e até antagonismo resolvido. Este é o caso da
figuração da ‘mãe’, em O Lamento da Imperatriz. Surge em terceira pessoa, uma abstração,
mas ao mesmo tempo figura concreta, que pode ser qualquer uma das várias personagens
femininas que aparecem, ou nenhuma. Mas a atenção que capta esse sintagma, explorado em
diversas cenas através do chamado de diferentes vozes, é capaz de construir um campo, diverso
deste vivido por esse sujeito-mãe (oculto) inicial, só por sua essência mítica e simbólica.
No caso do filme, o abandono do eu em prol de outro sujeito, quase sempre invisível ou
sugerido em algumas cenas, obedece à oposição entre aparência e essência, que estrutura a
poética bauschiana, e o movimento em direção ao essencial que parece conduzir e resolvê-la ao
final. depois de se ver todas as cenas, é possível a reconstrução do percurso, pois se pode
caminhar por traços e pegadas, recompondo, conforme a sensibilidade do receptor, a viagem
metafórica da Imperatriz de Bausch.
Além dos sujeitos cambiantes, há ainda outro ponto a observar. Não é em qualquer cena
que esses eus explícitos funcionam como sujeitos. Eles também indicam desconstrução,
destruição. Por vezes indicam captura, morte daqueles de quem falam. Como o poema dito pela
mulher bêbada, que sugere um dos movimentos mais característicos desse eu rico que narra
em agonia o sujeito-objeto amado, em desmontagem, em fracionamento. Sua descrição
detalhada da dor de uma perda, também define o lamento que é cerne do filme e temática da
obra bauschiana: Eu disse: eras minha vida.
Ela disse: meu fim está chegando.
Venha só uma vez e não precisará voltar jamais.
Não me maravilha que alguém possa morrer diante da tenda do amado.
Só me maravilha que se possa querer e manter-se vivendo.
Não é de estranhar, então, que, a certa altura, o sujeito, espécie de sujeito oculto mítico
apareça e desapareça logo depois, inconcluso, sempre em processo de montagem e
desmontagem. O que sugere uma definição, em duas trilhas, da escrita poética. De saída, a
quebra do "sentido essencial" das coisas, pertencente, necessariamente ao âmbito do
inexpresso. E, dada a destruição, a desmontagem figura-se na composição como um processo
de sucessivas e também inevitáveis dissecções. O que explica, do ponto de vista da composição
cênica, a importância do fragmento e de certo estilhaçamento na estruturação da encenação. O
percurso da 'mulher coelhinha', por exemplo, nas cenas iniciais ela caminha em círculos,
perdida, na última cena em que aparece, em que corre na estrada, usa o espaço direto. O
desespero continua, mas o caminho para seu objetivo parece definido.
no percurso poético de Bausch uma espécie de nostalgia do passado, que poderia
mesmo ser lida como mote possível do seu processo de criação. Desejo que explica em parte a
resistência à figuração explícita do sujeito, sempre meio fora da mira do espectador-leitor.
Mas um certo grupo de objetos - o bosque, a mulher, a figura clamada da mãe, os
carneiros, os elementos água, terra e ar, o anjo, os corpos caídos, a imensidão do campo verde,
ou coberto de neve, ou coberto de folhas secas, o arco-íris - que não funcionam apenas como
referentes para possíveis descrições, mas como marcos, cujo sentido se precisa aos poucos, e
que constituem uma espécie de repertório metafórico-vocabular próprio, um campo imaginário
com delimitação particular no trabalho de Pina Bausch. Não é difícil perceber que tendem a
respeitar um movimento de simbologia característico. Basta lembrar a cena da mulher bêbada
com a ovelhinha negra no colo, no meio do rebanho de carneiros. Na seqüência se tem: a
mulher caída no chão e a figura do ‘anjo’ aparecendo no mesmo lugar - uma bela síntese de
vida, morte e ressurreição. O que importa não são as paisagens outonais ou de inverno do
'corpo' de Wuppertal. Não se especifica mais quem está no chão ou o porquê. Observa-se sim,
movimentos, sombras, que apontam os símbolos, uma outra dimensão maior, mítica e universal
Neste grupo de imagens não deixa de ser curiosa, em certa medida, a inclusão do ‘anjo’.
Se, por um lado, em O Lamento da Imperatriz, a todo instante se sugerem aproximações, no
momento mesmo em que este impulso parece se intensificar a mulher bêbada aparece no
campo com a ovelha negra nos braços, em meio a um rebanho de ovelhas brancas - quebra a
seqüência lógica da narrativa a aparição do homem-anjo, sua aproximação determina uma nova
demarcação de distâncias, de tempo-espaço: o anjo inaugura a dimensão mítica desta cena,
para onde convergem agora como ícones, os animais, a colina verde, a paz, o renascer.
Atração e afastamento também marcam a perspectiva simbólica da busca da ‘mãe’. É
como um dos termos de relação de analogia que se apresenta, a princípio, a figuração da ‘mãe’
no filme. Com a impressão de distanciamento, Bausch vai estruturando essa sensação da
presença desejada e inexistente. É a menina que corre pelo bosque gritando, são as crianças
carregadas pelos homens que também chamam pela mãe, é a mulher que corre, desesperada
pelo bosque e estrada gritando por ela, enfim, é um texto composto como jogo poético-
cromático de simetrias, de tensões que têm como objetivo a ‘mãe’.
Na verdade não é bem da 'mãe' que trata o filme, mas de sua ausência. De uma figura
que é figuração composta por um leque de referências simbólicas. O que importa é o silêncio, a
sua não presença. São inúteis os gritos. A procura sintetiza-se no ‘repouso', no corpo da mulher
na neve, nele tudo descansa. De um lado, os gritos, o intenso movimento da busca; de outro, a
figuração da mulher caída, estática, semicoberta pela neve. Movimento e paralisação, vida e
morte.
Volta-se ao início, parecem dizer algumas cenas, mas na verdade narra-se o esforço de
"transfiguração" no filme. Trata-se de uma certa essência da dimensão materna, única, ao
mesmo tempo imagem e abstração.
no poema dito pela atriz, parece crescer a aproximação dessa reflexão sobre perda e
solidão. Exibe-se pequenos fragmentos que compõem o lamento da perda de um amor: Eu
disse: eras minha vida. / Ela disse: meu fim está chegando. / Eu disse: vem, vem lua, consola-
me. Acrescenta-se quase de imediato em meio a essas aproximações, o silêncio, pois o que
persiste é sempre a ausência da presença desejada. Tensão entre silêncio e som, entre equilíbrio
e desequilíbrio, está em toda a obra de Bausch, aliás, é tema reiterado incessantemente por ela.
É como se a sensação, a certeza de um sentido sempre em fuga, ao mesmo tempo impelisse e
travasse figurações. O que, no caso de O Lamento da Imperatriz, no entanto, não deixa de ter
uma bela contrapartida.
Porque se a busca pela ‘mãe’ enquanto figura mítica, simbólica, tende a ver seus
contornos dissolvidos no silêncio, no espaço-tempo fílmico alguma coisa da dimensão maternal
enforma, discretamente, quase sem que se perceba, a estruturação das cenas, assumindo a parte
lírica do texto. O que aproxima são as diversas maneiras de buscar o carinho, o abrigo, o amor.
Bausch vai compondo esse universo com cenas breves, muitas vezes enigmáticas, onde a
figuração da mãe surge em alguns momentos, inesperada, quase uma ausência, mas o mais
importante é que a mãe funciona então como "imago" da mãe mítica maior, Gaia, a terra, a
cidade de Wuppertal ou qualquer outra, pois o sentido é universal.
De uma encenação fragmentária, metafórica, onde se pode gritar ou silenciar, Bausch
acaba por marcar a escrita poética que opera. Assim, um filme-poema como O Lamento da
Imperatriz, permite tanto uma leitura vertical, interna a cada cena, quanto outra, mais regular,
linear, que configura ligações bem diversas, um vaivém realizado em meio à cidade de
Wuppertal, que funciona como eixo espaço-temporal para as várias cenas distribuídas ao longo
do texto. A quantidade de dimensões, poemas-fragmentos, que se sucedem no trabalho de
Bausch, é resultado de um hábil uso da movimentação corporal. Aos poucos, abre-se um leque
que tematiza, sem alarde, o modo como se trama a procura da felicidade em uma forma
lacerada de expressão. Trama poético-corporal que acontece quase no silêncio, na
imprevisibilidade seca de cada cena- fragmento.
6. 4. As viagens de Bausch
As viagens de Pina Bausch indicam desacordo decisivo com relação ao movimento
característico das aventuras turísticas. Itinerários previsíveis, impessoais, fotos do que se viu de
passagem, não a interessam. O pessoal é que qualifica suas geográficas viagens. Ela fez
residências em várias cidades
452
, para depois coreografar uma obra. Porém essas ‘viagens’ são
mais para dentro, ela quer perceber o sentido do lugar em que está, vai coreografar as energias
internas do lugar.
Para organizar uma metódica corrosão, parece necessário dissolverem-se inicialmente
subjetividades ingênuas, sujeitos pessoais e intransferíveis, para só depois passar às suas
percepções sobre o lugar.
Mas de que fala nessas obras sobre as cidades? De um trajeto sem guia, mapa, bens e
marcos obrigatórios. Não se trata de listar cidades, mencionando aspectos do que têm como
cartão postal. O que Bausch faz é desmontar algumas glosas turísticas e, num mesmo
movimento, compor um novo olhar sobre o que foi percebido, mas jamais uma coleção
sarcástica de cartões postais.
Porém marcar como lugar incomum a viagem não parece encerrar a questão para uma
artista movida justamente a fugir de lugares comuns. A Bausch interessa o diálogo direto com a
poesia inspirada pelo corpus das cidades. Às vezes até deixa que clichês apareçam nas séries
coreográficas para, num movimento entre o terno e o perverso, desmontá-los em cena. Por
exemplo, na cena de Nelken (1982) em que Malou Airaudo e Dominique Mercy terminam uma
cena no que parece um terno abraço. Mas, na seqüência, entra o personagem de Jan Minarik
que começa a desfazer detalhadamente o 'abraço', parte por parte. O casal fica assim face a
face. Minarik caminha para fora do palco e, como bonecos mecânicos, Airaudo e Mercy
juntam-se no 'abraço'. Minarik retorna e desfaz um pouco mais rápido a cena. Assim que ele se
vira o casal retoma a ação de abraçar. A desmontagem e montagem repetem-se oito vezes, cada
vez mais acelerada, o que vai conferindo à ação inicial novo sentido. O que era um abraço
amoroso torna-se um choque e caída de corpos, anulando qualquer impressão romântica.
O humor, devido ao seu processo especial, essencial, é utilizado para essas
desmontagens, que compõem inevitavelmente, reflexões e referências críticas, como ao balé. A
crítica sobre a disciplina balética é tema que atravessa toda sua obra, lembrando, por exemplo,
a cena de Nelken (1982), onde o bailarino, aos berros, questiona a platéia enquanto exibe
passos virtuosísticos do balé, ou o modo irônico com que apresenta, em Walzer (1982),
inspirada na cidade de Viena, uma bailarina sentada penteando o entre exclamações
desesperadas - enfocando a necessidade do estar no seu máximo de extensão. Em seguida, a
mulher levanta-se da cadeira e começa a fazer uma série de exercícios de balé, grand-
battements, passo que pretende a elevação máxima da perna do bailarino, enquanto, com uma
espécie de segunda voz, desafinada e irritada, a mesma bailarina resmunga, continuando
incansavelmente o exercício.
É como se, no interior de cada cena se condensasse, em comentários breves, um
cuidadoso processo de crítica ao tema, e as formas de registrá-lo. Como a sucessão de cenas
quase idênticas em que aparece a 'coelhinha' andando, tropeçando, correndo, cenas nada típicas
de uma cidade industrial e séria, como Wuppertal, que vão, aos poucos, e de modo cômico,
452
Sobre o assunto ver Anexo 3: As Residências: uma cartografia do imaginário.
desordenando por completo qualquer idéia de uma cidade burguesa tradicional. Enquanto na
tela persiste uma imagem urbana do centro de Wuppertal, a mulher sentada numa poltrona, no
meio de trânsito, ou o homem fazendo a barba, agachado no meio-fio, desafinam os quadros.
São formas poéticas do cotidiano que Bausch incorpora, mas para interrogar seu sentido,
apontar a indiferença e a solidão humana.
Às vezes o ponto geográfico desaparece de repente do seu sentido habitual para servir
unicamente de cenário a uma rápida fantasia, como o momento no bosque, no filme, em que
todas as árvores estão marcadas com números não seqüenciais, transformadas numa surreal
avenida, ou na cena em que a sala do estúdio torna-se um rinque de patinação.
O que parece simples edifício arquitetônico, como o Lichtburg (Castelo), um antigo
cinema onde a companhia de Pina Bausch ensaia, na verdade funciona como elemento
detonador de um jogo de correspondências que, no filme, torna-se espaço interno de
competições, rinque de patinação, sala de dança, quarto de encontro amoroso, sempre com
algum mínimo traço que bloqueia o entendimento daquele espaço apenas como lugar de ensaio
da companhia do Tanztheater Wuppertal.
As obras de Bausch caracterizam-se pela desobediência às fórmulas polidas e
previsíveis. Os marcos, os roteiros obrigatórios estão lá, mas o mundo representado
compreende o mergulho no tempo-espaço que ficou registrado nos corpos de seus atores-
bailarinos. É esse registro, simultaneamente, natural e lingüístico. Inversões nas regras são uma
constante na poética de Bausch, como o projeto de releitura de lugares-comuns da história
social que orientava outros trabalhos, como a queda do muro em Palermo, Palermo,
referência direta à queda do muro de Berlim, ou a pose tradicional de retrato de família em
Ahnen, modo bem explícito de figurar a instituição familiar no único ambiente possível: o
deserto.
Na sua linguagem peculiar algumas reflexões críticas chegam, em alguns momentos, a
fazer do cotidiano o espaço da novidade, de ver o já-visto como nunca-visto, parece estar
sublinhando sua própria preocupação com as muitas formas e idéias fixas que tenta
descristalizar.
Explica-se nessa linha, como diálogo terno, o texto recitado no filme, como o lamento
irônico que o percorre. Elegia compreensível pela identificação com a temática de tantas de
suas obras: a busca do amor. Lamento ligado à percepção da distância inevitável com que
observa a natureza humana nesse momento. Distância tão terna que, no caso de O Lamento da
Imperatriz, vira uma elegia; distância tão crítica que, no caso de Cafe Müller motiva mais que
uma recordação da infância tão distanciada, que pode parecer que um sujeito super crítico,
sem qualquer autocomplacência.
Em O Lamento da Imperatriz, a cidade está lá, com suas pedras, ruas e bosques, o
sujeito que figura essa geografia pessoal, ele sim é que é incerto. Porém, entendendo-se a
simbologia da cidade como universal, por analogia, temos o sujeito contemporâneo perdido,
feito de traços e pedaços, na busca incessante da felicidade.
6. 5. Como homenagem e reflexão
A obra de Pina Bausch apresenta diversas encenações que retomam, homenageiam ou
dialogam diretamente com várias cidades. Mas não são textos-documentários, são objeto de
uma descrição crítica, reflexiva dos lugares. Esta é a homenagem, que é sobretudo exercício da
própria linguagem física, corpórea, perceptível na maior parte dos lugares que inspiram suas
obras. Raramente temos partes que mimetizam humoristicamente imagens ou modos
característicos das cidades. Quando isso acontece, a composição surge como forma terno-
irônica de compreendê-las, em forma de pastiche. São nessas seções, explicitamente dedicadas
à linguagem do lugar referenciado, que a estética da homenagem e a (ana)lógica do pastiche
estabelecem a trilha poética.
Não se trata, evidentemente, de convenção apenas para as obras que têm como tema
alguma cidade. Lembre-se, nesse sentido, as retomadas de Bausch em O Castelo de Barba-
Azul
453
ou Os Sete Pecados Capitais
454
, montados em diálogo direto com as obras de Charles
Perrault
455
(O Castelo do Barba Azul)e Bertolt Brecht / Kurt Weill
456
, que apresentando-se
como supostas releituras das obras de origem, na verdade, encenam uma tentativa de
compreensão, via pastiche, de sua prosa. A operação é a seguinte: Bausch seleciona momentos
das obras, para colá-las, obedecendo a disposições diversas, e sempre de um conjunto singular.
O que resulta num processo pautado em colagens, como no cinema. Homenagem dupla - à
forma da montagem cinematográfica e a algumas obras primas - é o que marca, portanto, essa
apropriação de Pina Bausch.
É de algo semelhante que trata O Lamento da Imperatriz. Bausch tenta se aproximar, a
seu modo, com menor violência nos cortes, à maneira de quem configura uma viagem mítico-
ficcional por Wuppertal, o que, por sinal, sugere filiações aos arquétipos universais. Wuppertal
é uma e todas as cidades, e O Lamento da Imperatriz é homenagem/reflexão explícita de
Bausch ao mundo contemporâneo.
Se, em parte, trava em sua própria dicção poética a configuração de um sujeito lírico na
sombra de possíveis homenageados, no seu filme ficam mais do que óbvias as temáticas que
permeiam toda sua produção: a dor do amor, a solidão humana, a eterna busca da felicidade.
Uma espécie de explicação a mais, talvez já por demais repetida, e, não contente em reiterá-la e
narrar como história contínua, tenha querido eternizar em filme, que se processa em vaivém,
453
Bluebeard. Gravado em Wuppertal para o Tanztheater Wuppertal. Distribuição de Éditions Arche, Paris,
1989. VHS, colorido, 110 minutos . Estréia em teatro 08/01/1977
.
454
Die Sieben Todsünden , direção e coreografia de Pina Bausch, que estréia em 15.06.1976.
455
PERRAULT, Charles. Contos. BH: Itatiaia.1986.
456
BRECHT, Bertold e WEILL, Kurt. Os sete pecados capitais. In Teatro completo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1990. V.4
em retornos e quebras, se permitindo ainda desenvolver ambigüidades e silêncios propositados,
sem final feliz.
Uma fantasia biográfica sem solução final, isso é o que se lê em O Lamento da
Imperatriz. Desvio significativo no sentido da conciliação dança-teatro-cinema, como se
coubesse à sua criação resolver o que é de fato busca incessante, impossibilidade, história
inconclusa.
Sem solução, o próprio tema da solidão humana parece ganhar assustadora amplidão.
Ao retomá-lo em O Lamento da Imperatriz, Bausch revela esse sujeito que tenta entender, via
poesia, o fio da narrativa eterna : vida, morte, ressurreição.
O problema parece vir do próprio modo de compreender o diálogo poético. Existe, no
que se refere ao filme, uma des-historicização do percurso poético. Tudo é conquista, tem um
sentido particular neste ou naquele momento preciso da obra. Como se tivesse estado sempre
lá. Não resultasse de uma trajetória, não tivesse história ou não estivesse ligado a um esforço
técnico ou de autocompreensão determinado. É essa temporalização-espacial que permite a
Bausch, na construção de sua obra, calcar seus retornos nos cronotopos, no tempo e cenários de
Wuppertal, numa visão menos corrosiva da vida da cidade, que aparece sob o signo da
conciliação, possibilidade de desenvolvimento do fio da história.
Sem negações, sem maiores véus, no entanto, fica difícil para esse sujeito-em-retorno
impulsionar o texto para fora de si. As questões sobre ele mesmo parecem percorrer todo o
filme. Não é à toa, nesse sentido, que a imagem privilegiada do título - O Lamento da
Imperatriz -, ligada a paradas, desvios, estações do ano, um tempo que passa irreversivelmente,
se veja, na verdade, ao fundo de um quadro em que os elementos dominantes são: a vida, com
sua idéia de continuidade objetivada no deslocamento incessante das personagens; a morte,
com seu enquadramento em que aprisiona o sujeito, quer nas posições estáticas do corpo, quer
nas propostas de subjugação e clausura de várias cenas; e o renascimento, em todo momento
em que o personagem se ‘olha’, percebendo a clausura especular, ou através das fantasias
conciliatórias que exibem anjos, colinas, planícies. Não há percurso de rastros, do que se pensa
ter encontrado previamente.
Por isso, talvez, algumas das melhores cenas, tecem diálogos sutis que conduzem, se
relacionam ou buscam outras janelas, que fogem à repetição bem comportada, didática,
simplista e, mesmo centradas numa subjetividade que se observa atentamente, se faz figurando
a própria corporalidade da obra encenada.
Nesses momentos quebra-se de algum modo o impasse de um sujeito que não sai de si,
nem de um sonho feliz de passado, mas que encontra súbita contrapartida no tempo-espaço
mítico-ficcional dominante, uma espécie de presente constante. O que cria a possibilidade de
uma leitura da obra como registro cuidado do cotidiano, e também como pista para uma leitura
de determinada e singular poética contida naquela obra.
Arrumam-se e desarrumam-se tempos e espaços, menciona-se desgaste e
envelhecimento e, por fim, notifica-se o leitor que nomes são recusados, nada de explicações.
Cabe ao espectador-leitor mover-se entre lacunas e silêncios, em meio à lista de proposições:
memórias, composição cuidada, cenários prosaicos e fantásticos, que parece acompanhar a
leitura. São caminhos e caminhares que se cruzam no espaço-mítico evocado por Bausch.
Tratamento que amplia decisivamente a mobilidade desse eu em geral preso à máscara
(emprestada) que o habita.
Em O Lamento da Imperatriz, ao se aperceber de modo mais intenso a presença de um
interlocutor silencioso, de um outro que observa de fora, que olha e dirige a câmara, amplia-se
o campo possível de figuração do texto e de seus sujeitos.
6. 6. Escrever com a tesoura
Mas tudo começa com o título, idealizado pela própria Pina Bausch: O Lamento da
Imperatriz. Começo interessante, sem dúvida. Partindo da idéia de que, na rigorosa
simplicidade dessas duas sugestões de imagens, se pode enxergar uma pista semântica
fornecida pela própria criadora, para a compreensão do seu processo de composição e de sua
dicção poética característica. Além das palavras do título, que se vê? A sensação inicial é de
que se está diante de um título cuidadosamente eleito, de que a associação de tais nomes é
indispensável. Mas porque associar imperatriz a lamento? A questão é: a que remete?
Primeira cena: uma mulher -dirigindo uma máquina que faz voar as folhas caídas -
busca controlar o percurso da máquina sem muito sucesso. Corte. Segunda cena: nova
paisagem, agora um morro árido, sem vegetação, uma terra cinzenta com buracos. Uma outra
mulher, vestida com maiô e máscara, roupa que lembra as ‘coelhinhas da Playboy’ anda aos
tropeços, aparentemente sem direção. Corte. Terceira cena: uma moça ou menina-moça corre
pelo bosque em sombras gritando, chamando pela ‘mãe’.
Quadros a rigor simples. Criou-se uma espécie de cena para uma das personagens, o
cenário natural é configurado pela cidade de Wuppertal: uma montanha verde, colina cinza,
bosque sombrio. À singularização cromático-visual dos elementos que compõem as imagens,
encena-se uma relação paisagística entre elas. De um lado, imagens, campos cromáticos, com
"voz" própria da natureza, soltos, dotados de certa abstração. De outro, submetidos a um olhar
que, a partir da intromissão humana num ângulo determinado, opera seu discreto
enquadramento, transmutam-se como elementos de uma cena muda, de uma paisagem que se
torna plena de novo sentido, que põe esses elementos "em relação". Figura, teatraliza, o que
antes se definira como sugestão de paisagem.
Nada de ingenuidades, portanto. Pelo contrário. Observa-se, neste caso, como se
empreende, com incrível economia de meios expressivos, uma espécie de exposição
coreográfica de duas atitudes peculiares à escrita de Pina Bausch: teatralização da voz lírica e
recorte preciso de detalhes.
Não é difícil perceber, ao longo dos trabalhos que compõem sua obra, o trabalho
paralelo com essas duas formas de composição poética: o cenário, a cenografia, como texto
cênico básico, de suporte, e a teatralização de textos corporais, que aos poucos vai ganhando
terreno, multiplicando-se em vozes e autonomizando as falas que, apesar de singulares, são
partes de uma espécie de grande cena, reencenada, cada vez com um número maior de
personagens.
Talvez, no entanto, teatralização, cenários megalíticos, cenas, pequenos relatos, falas,
detalhes, não sigam trilhas tão autônomas assim em sua poética. E obedeçam a um mesmo
movimento de desmetaforização da sua linguagem poética, de compreensão da escrita corporal
como seleção, recorte, colagem, possibilidade de cristalizar num movimento-instantâneo, num
único texto-objeto, em uma voz, uma multiplicidade de experiências, gestos, situações. De
tensionar ao máximo, em textos corporais que tendem à condensação de movimentos, cada
uma dessas ficcionalizações de escuta e observação. Cada um desses detalhes e falas em que se
convertem as suas encenações do tanztheater.
Essa poética da aproximação do movimento cotidiano urbano de paisagens e/ou
cenários naturais, praticada por Bausch, à semelhança do que acontece à primeira vista com
uma leitura apressada de O Lamento da Imperatriz, muitas vezes é vista como hermética ou
simplesmente achados de efeito irônico. Na verdade, esta seria uma elegância a mais de seu
trabalho poético: a discrição. O que se a ver, de fato, na sua poética são as falas e os
detalhes que a enformam sob o signo da teatralização.
Quanto à teatralização, sublimou essa sua importância como procedimento
característico de composição do tanztheater. Não o que discutir: suas obras são vozes,
corpos que falam. É sempre um diálogo, um monólogo, uma cena representada, uma
dramaturgia corporal.
O que é dito é facílimo e quase nada, mas o conjunto, formado pelas vozes corporais
que contracenam, tem a complexidade da própria vida e esboça algo como uma fragmentária
dramaturgia contemporânea.
São textos corporais que se apresentam ora como diálogos, ora como pedaços de fala,
curtíssimas ou mais longas e propositadamente entrecortadas, inconclusas, ora como pequenos
relatos dirigidos não se sabe a quem, frases que se ouvem ao léu.
É como se, de fato, uma voz que ensaiava desdobramentos em O Lamento da
Imperatriz, - como na súbita declaração de amor e agonia da atriz bêbada ou no diálogo entre a
mulher do telefone e o receptor oculto - fosse aos poucos se estilhaçando em vozes diversas,
relativamente anônimas, se bem que reconhecíveis, em vozes que se conjugam no sintagma
inicial, que dá título à obra: O Lamento da Imperatriz.
Teatralização em larga escala que, se, por um lado, se mostra recurso expressivo
peculiar de Pina Bausch, por outro, a aproxima de tendência marcante para a cisão e
dramatização do sujeito, característica da poética moderna. Lembre-se, nessa linha, da
constância com que em suas encenações o sujeito se dirige a algum interlocutor, por exemplo
em Nelken, o bailarino grita com os outros para arrumar o palco, enquanto explode com a
platéia questionando o que querem assistir. Ou se exige a intervenção de uma segunda voz. Em
Cafe Müller, por exemplo, se desdobra em duas falas a cena em que Jan Minarik monta e
desmonta o casal Dominique Mercy e Malou Airaudo, um abraço que, com a repetição e
aceleração da cena, torna-se um novo texto corporal, uma voz nada amorosa, mas bastante
violenta, embora todos permaneçam mudos. É significativo, pois, que o casal não responda ao
seu interlocutor, Minarik, preferindo, ao contrário, produzir um outro sentido textual no
decorrer de sua frase corporal, e que o sujeito narrador, no caso Bausch, aponte para esses
personagens e não para aquele que controla e dirige o espaço cênico anterior, entulhado de
cadeiras, em que outro personagem abre espaço para os bailarinos fazerem seus movimentos.
Uma voz a deixa para a entrada de outra, que se dirige, ainda, a um terceiro interlocutor.
Desdobramento que aponta na direção dessa dissolução do sujeito na modernidade. Daí a
teatralização heteronímica de Pina Bausch em Cafe Müller, os desdobramentos do sujeito e
uma certa necessidade de interlocução no interior de O Lamento da Imperatriz.
Movimento que talvez pudesse ser sintetizado numa curta "fórmula" de Francis
Ponge
457
"Je parle et tu m'entends, donc nous sommes". Nela, a um hipotético "Penso, logo
existo", acrescentam-se um tu e uma atividade que exige necessariamente mais de um. Não se
diz "pensamento", mas "fala". E são dois os interlocutores. O je se biparte: Je e tu. O penser
se torna parler e entendre. Logo: a conclusão também muda. Se não há lugar para uma
concepção metafísica de sujeito, nem literatura é apenas auto-expressão; se a consciência da
perda de uma linguagem homogênea entre artista e público e das divisões inconciliáveis no
interior do público é irreversível, se o sujeito não é mais uno, todo-poderoso, sua afirmação
pode se dar "em relação". Em relação a um outro, a algum interlocutor. Em meio a uma série
de vozes que se multiplicam e contrapõem. Não é mais enquanto logos que se afirma o sujeito,
mas como interlocutor em diálogos simulados (ou não).
Desdobramento de vozes, variações de tons, multiplicação de falas e inconclusões: este
é o lado mais visível da cena bauschiana. Mas outro na aproximação quase plástica de
objetos e paisagens, na poesia dos detalhes. Porque também o tempo-espaço, quando
submetido a cuidadosa presentificação poética, pode se converter também em interlocutor. Um
interlocutor capaz de romper a monotonia de dias que passam iguais, da mudança sem surpresa
das estações do ano, que marcam o tempo e o espaço. Porque é por trás de vidraças, janelas,
parapeitos, dos olhares urbanos da senhora da janela ou das crianças, perto dos objetos em
457
PONGE, Francis . Le Parti Pris Des Choses. The Nature of Things. Translation: Barbara Wright. NY:
Paperback. 1995.p128.
repouso dos salões, quarto, teleférico e estufa, que, em geral, o sujeito narrador exercita
aproximações desses interlocutores escorregadios que são as paisagens, cenas e coisas do
mundo.
E, no meio dessas aproximações, dessas paisagens-instantâneos, com ou sem figuras,
estão algumas cenas de O Lamento da Imperatriz. Um filme-dança-teatro de Pina Bausch, obra
em que se percebe que, quando se trata de um instante singular, de transformar em poesia o
absolutamente prosaico (um morro de Wuppertal, por exemplo), não parece bastar o olhar. O
sujeito se põe, literalmente à escuta da paisagem, para captar todas as mínimas mudanças que
possam se operar aí. Parece saber que é um momento, um único instante, que perdida a
sintonia não voltará mais. A visão da mulher olhando pela janela terá retomado o seu antigo
lugar na paisagem cotidiana, deixará de ser uma personagem que observa e critica.
Por outro lado, se o próprio confronto discursivo força um tensionamento desse coro de
favores e contrários, a tensão se na tentativa de captação do objeto e de "dá-lo a ver", sem
maiores interpretações, num texto também objeto, a partir de um outro olhar, o olhar da
câmara.
Não o amor, por mais profundo que seja, mas a dura realidade da solidão, o lamento
incomensurável, este é o alvo desse arco retesado que perpassa O Lamento da Imperatriz.
Captações de detalhes da cidade de Wuppertal, dessa representação universal do urbano. Um
trabalho que, na opção pela seleção, pelo recorte e por uma linguagem que se constrói através
de montagem fílmica, recusa a tecer fios e histórias, mas parece sugerir, à maneira do que fez
certa vez Matisse ao definir o seu desenho, que é - ou, ao menos que nele é - com a tesoura que
se escreve.
6.7. A cidade personagem
Em O Lamento da Imperatriz, Pina Bausch deixa vir à tona (usando uma terminologia
heideggeriana) um mundo que não é mundo, que se mostra e se oculta ao mesmo tempo. Esse
‘deixar vir à tona’ implica uma tarefa das mais exaustivas, pois a escrita de Bausch borra uma
série de conexões que estabelecemos ao raciocinar, às quais estamos muito acostumados no
nível da nossa consciência ordinária.
Através de uma escrita corporal os personagens são traçados e constituídos, de uma
forma em que sujeito e objeto não estão mecanicamente separados, mas constituem-se de
forma recíproca. Por exemplo: as cenas no meio da cidade, ou as buscas incessantes de vários
personagens, têm um cenário 'real' como fundo, mas é uma 'realidade' que precisa dos sujeitos-
personagens para ter forma. Assim, a cidade vai tomando a forma que o olhar da câmara
revela.
também uma superposição entre o cenário maior onde se passa a narrativa, a cidade
de Wuppertal, e os elementos que a compõem: bosque, colina, estradas, o centro urbano, o
edifício sede da companhia, o teleférico, a estufa, diversos cômodos de uma casa. Esse tipo de
superposição ocorre igualmente entre o tempo e o espaço. O tempo, determinado pelas
mudanças na natureza em diferentes estações, é possível de ser detectado nas tomadas externas,
mas, às vezes, é questionável nas tomadas em ambientes fechados: indeterminado e/ou
ilimitado explodindo os limites do espaço. Nesse sentido, se observa, por exemplo, a cena que
tem uma piscina como fundo. Nesta cena, em determinado momento, fica-se sem saber se a
mulher está andando da beira da piscina ou dentro de uma sala de onde, através de uma janela,
se vê a piscina.
O próprio personagem principal da narrativa constitui a si mesmo como um objeto: o
olho da câmara, num despojamento severo, em que parece haver inclusive uma indistinção, ao
menos relativa, entre vida e não-vida, orgânico e inorgânico, como se sua existência primordial
pudesse se dar, em alguns momentos, na ante-sala do viver, como a mãe, a Imperatriz, que não
aparece.
O que seria esse personagem, que é vivo, mas que é também, antes de ser vivo, é
sintagma que traz em si toda uma carga de significados ancestrais? É algo realmente, ou seria
um feixe de possibilidades, como: os gritos, a mulher caída na neve, a mulher com as crianças
no colo, a que dança na chuva, a mulher bêbada ou a velha senhora que dança no final?
A Imperatriz significa um amálgama de todas as personagens: a incerteza, a
movimentação sempre para diante ou estática, o desespero, a busca de um caminho, um pedido,
uma súplica, a repetição do corpo no mundo, como se o indivíduo não pudesse ser figurado
senão por vários, numa ironia radical do sentido. Equilibrando-se para não desmoronar,
avançando com insolência.
Pode-se ainda considerar a cidade de Wuppertal, também como um personagem que se
manifesta concretamente, como uma força viva que pressiona com o trânsito urbano,
desumanizando o homem, indiferente ao que acontece ao seu redor. Ou como cidade-natureza,
com chão irregular, tempestades de neve e temporais, que desafia e está em combate com os
personagens.
Cenário que aponta a impossibilidade de ultrapassar essa resistência nascida da terra, de
seus elementos naturais. Nesse sentido, a cidade é uma fortaleza inconquistável! Onde as
coisas acontecem num círculo vital incontrolável, em que não se sabe se a cidade foi feita para
as pessoas ou as pessoas para a cidade.
está a cidade, onde coisas orgânicas e inorgânicas, vivas, vigiam: árvores, folhas
caídas, neve, sombras. Todos são elementos, são sujeitos desse lamento, mas não falam.
Calam-se. O silêncio é rompido pelo barulho dos corpos, o que torna enigmático o
enquadramento simbólico de toda expressão corporal. Têm uma pulsão intrínseca, pois tudo o
que é criado desencadeia associações, conexões ou rupturas.
Até mesmo as palavras, ditas pela atriz bailarina, provocadas na sua materialidade,
independente do significado que possuem, ganham vida e podem de repente saltar para fora do
filme. As palavras soam e remetem a lembranças, sonhos de sonhos.
6. 8. Uma certa crueldade e afetividade
Os personagens guardam uns dos outros sempre uma certa opacidade, não sendo nunca
inteiramente compatíveis nas suas atitudes e ações. São recíprocos numa mútua indiferença:
enquanto a mulher coelhinha anda perdida no terreno acinzentado, dois senhores caminham
pelo mesmo lugar com determinação espacial que contrasta com a da mulher. Em outro
momento, o mesmo lugar do bosque, uma espécie de avenida de árvores, por onde passa uma
fila de homens que levam as crianças pela mão, logo depois reaparece como um estranho
caminho de árvores numeradas por onde se move, meio perdida, uma mulher que segura uma
garrafa.
Às vezes, o espaço natural está lado a lado como coisa e com coisas, o que
redimensiona os objetos e a própria paisagem, apontando novas conexões ou deslocamentos.
Este é o caso do elemento água, que perpassa todo o filme com várias conotações semânticas,
que se encontram no seu valor amplo e mítico de purificação, força regeneradora, fertilizadora.
Na comunicação artística de Bausch, algo bruto, brusco, imprevisível. A
aproximação entre elementos dá-se pelas vias do constrangimento. A afetividade está enredada
com o constrangimento. Por exemplo: as tentativas de carinho do rapaz com a mulher de rosto
maquilado, o casal na cama, com amplas saias de tule, onde a cada investida do homem a
mulher se retrai e arruma as saias, como se ter as saias intactas fosse objetivo primordial. Entre
o objeto e a afetividade, vence o objeto, toda atitude amorosa é sempre alijada.
Não apenas a relação entre os personagens é opaca, mas a relação de cada um consigo
mesmo também é opaca, e por isso mesmo, concreta. Os personagens se mostram, numa
intimidade sem contato. No universo apresentado por Bausch, o acesso ao outro que poderia
ser franqueado pelo conhecimento aparece dissimulado. As coisas não são nem pensadas
inteiramente, nem comunicadas de um personagem a outro.
Mas talvez não seja preciso compreender, pois um estágio anterior à compreensão
que não pode ser traduzido completamente em conceitos e que parece bastar às obras de Baush.
Parafraseando Clarice Lispector: “O que não se sabe pensar se vê!"
458
Esse estágio implica uma tarefa que nunca se esgota, de ir de concreto em concreto,
está a verdade revelada pelo gesto, e a tentativa frustrante de descrevê-lo. Conhecer a verdade
revivendo os momentos, como se fosse possível alguém compreender e não tirar nenhuma
conclusão.
A afetividade é algo que aponta para o insubstituível de cada coisa, como a morte,
exigindo, por vezes, como é o caso do amor, uma entrega completa, que perde o sujeito. Pina
Bausch fala de amor, mas encontra simplesmente o sinal de fatalidade, esse insubstituível que
mal se adivinha nas coisas, o insubstituível da morte. Como o gesto, o amor é reduzido até
encontrar o irremediável. Com o amor se encontra o mundo, que tanto se procura, mas o que se
observa são personagens perdidas. Nesse sentido, o amor é uma ameaça. Essa ameaça só não se
torna efetiva, porque os caminhos a que leva o amor conduzem o homem de volta às coisas na
sua concretude.
Mesmo conduzindo de volta às coisas na sua concretude, o amor traz consigo a
consciência de um terrível perigo, a saber, da crueldade latente que seria a afronta da opacidade
que separa os seres.
Alguns personagens mantém-se para sempre afastados do amor, aferrando-se à sua
própria opacidade. É o caso dos homens que levam as crianças, os dois velhos, o homem de
terno preto. Não por acaso, quase sempre são personagens masculinos, corpos coberto, roupas
escuras, que estabelecem a dimensão das sombras.
Não nestes personagens nem inocência, nem danação, nenhum deles se choca com a
realidade, com o senso comum, talvez por serem a cruel realidade: homens calados, metidos
em sobretudos ou ternos escuros. Assim também se estabelece o que de uma janela: uma
senhora curiosa que afasta com a mão a cortina e rapidamente a cerra, quando se percebe
observada. Não passam disso, remetem aos edifícios sobre a chuva, impessoais e oniscientes,
cegos na cidade cega. Mas existem os outros, os que buscam, mesmo que se percam. Perder-se
também é caminho.
A obra de Bausch parece ser, portanto, um olhar de lado e depois de outro lado, para
cada coisa, sujeito, objeto, cidade. Cidade construída e perdida em vários combates, como as
cidades erguidas e destruídas, renascidas dos próprios escombros. Coisas são vistas em sua
intensidade e, à medida que sua opacidade é preservada, a afetividade expõe-se - sem nunca
chegar de fato - a um atravessamento, que implicaria em sua própria aniquilação.
6. 9. A escrita-ato de Pina Bausch
"Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e sonâmbula, me cria.
E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas,
eu, obra anônima de uma realidade anônima."
( Clarice Lispector - Água Viva)
459
A escrita de Pina Bausch tende a embaralhar a fronteira entre teatro, dança e cinema
teatro-dança como imagem em movimento que acompanha como se fossem uma carne,
continuum corporal e coreográfico. Trata-se, pois, de uma escrita como execução corporal, uma
escrita que possui a capacidade de decifrar o corpo como instrumento fundamental.
Bausch não é apenas a escritora que faz de sua escrita partitura, palavra, pintura, dança
e coreografia. O que Bausch revela em foco primordial, é o jorro de uma energia que não se
458
LISPECTOR, Clarice. A Cidade Sitiada. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1949. p.102.
459
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 4
a
edição, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978.
sabe nascida do corpo ou da cidade, que transforma a estética do movimento em pura
intensidade. Escreve em signos que são mais um gesto que voz.
Quando a escrita é do corpo em movimento, tudo se torna, por sua vez, dança. Dançar
com o corpo, pensar com os pés. Ao pensamento moderno, Friedrich Nietzsche
460
designa uma
filosofia que tem como célula seminal o pé. Cada vez que o filósofo faz do um tema de
reflexão, ele representa a reflexão com a obra, como o ato mesmo da reflexão. Para Nietzsche a
única verdade é a que o dita ao espírito: “Verdades feitas para nossos pés, verdades que se
possam dançar”
461
, exige ele. O do bailarino é para Nietzsche uma espécie de grande orelha
em marcha que apreende o mundo antes mesmo que o espírito tenha dele conhecimento: “Meu
calcanhar se empinava, os dedos do escutavam atentos para compreender-te: pois o ouvido,
o bailarino tem nos dedos dos pés".
462
Com efeito, Nietzsche aponta as premissas de uma interação que tem como origem uma
consubstancialidade do ouvido e do pé. Escrever com o gerando, assim, uma escrita de um
corpo que caminha, que anda, que dá passos, que dança talvez. Não é por acaso que os
franceses usam a expressão prendre son pied, cujo significado, no sentido mágico da palavra, é
estar possuído, por um imenso bem-estar epidérmico, numa festa completa do corpo que dança
e festeja, sob o signo de intensidades e vibrações.
Michel Serres
463
, por sua vez, recusa a precipitação de um pensamento construído com
a cabeça em proveito da elaboração da obra pela planta dos pés.
"As primeiras obras nós as construímos com a cabeça, mediante o que
sabemos ou inventamos, com a boca e a língua; a seguir, isso se faz com as mãos,
os dedos, e espraia-se em todo o corpo pelo peito, pelo ventre, pelas coxas e
joelhos, enfim pela planta dos pés onde tocamos o solo e entramos na terra."
464
460
NIETZSCHE, Friedrich Assim falou Zaratustra. “O canto da dança” I. Tradução de Mário da Silva. São
Paulo: Círculo do Livro, s/d
461
NIETZSCHE, Friedrich . Op. cit. p. 231
462
Ibidem.
463
Michel SERRES. Statues. Paris: François Bourin, 1987.
464
Ibidem, p. 21.
A escrita de Pina Bausch torna-se um lugar sem lugar, uma errância do sentido. O
sentido não pode mais ser confinado às estruturas do texto. Ele esquiva-se do espaço de fixação
e encontra um devir como onda que altera, metáfora que remete e relaciona outros elementos,
numa linha perigosa, como toda linha criativa. Com efeito, o gesto corporal, força por
excelência, desloca, absorve e reconecta sentidos.
Da máquina sonora surgem muitos perigos: os silêncios, os fechamentos, as paralisias
do corpo e as alucinações do ouvido. Um som que se transpassa e que retorna em outras cenas,
estabelecendo conexões inquietantes. Como não pensar no apelo a um sentimento, na
correspondência da marcha fúnebre que inicia o filme, quando a mulher atira em algo, com a
repetição musical nas cenas finais, em que a atriz bêbada revela toda a solidão, a perda, a falta
de horizonte. está a "imperatriz", sozinha, bêbada, meio alucinada, feita de lembranças, de
fragmentos, a figura em decadência de uma mulher. Mulher moldada em amor e dor, na busca
eterna da felicidade.
Com efeito, Bausch propõe uma escrita situada em um terreno movediço necessário aos
encontros, aos amores, a escrita corporal concebida como ritmo e movimento. Uma escrita sem
porto seguro, uma escrita que é carne e sensação. Claro, pode-se falar de uma escrita-
metafísica da carne. Mas, como essa metafísica é profana, seria mais apropriado falarmos de
uma metafísica sem sistema, sem dialética, sem dualidade, uma parametafísica,
desterritorializada, nutrida pelas incertezas e pelas dúvidas. Parametafísica produtora de
retornos e não de sistemas. Produzir um retorno desterritorializado, como meta final é mais
importante do que fazer um novo sistema.
Eis a força da escrita de Bausch. Desterritorializada, ela é composta de saltos e
saturação, visto que nunca está segura de ser suficientemente forte, pois, não tem sistema, tem
apenas linhas e movimentos. Linhas e movimentos. Eis por que a escrita de Bausch é, em toda
evidência, uma escrita de colisão. É o choque original com o Ocidente, por ela
maravilhosamente resolvida. É a colisão com os símbolos exteriores onde o outro é
imediatamente chamado por seus próprios nomes, pois o máximo do Diverso toca o Mesmo.
Pode-se dizer que O Lamento da Imperatriz mas não essa obra passa
primordialmente pela escuta da colisão e do desastre habitados pelos fluxos e refluxos que
encontram sua força numa economia dos afetos e sensações extraída do corpo, dos sonhos e de
uma solidão engendrada por um tempo não-humano, mítico.
Parece que Bausch apoia os corpos no chão, chão que vibra, espraiando ondas. Assim,
encena a vibração, substrato último no domínio da realidade, encena o mundo que treme. Mais
que um instante, encena o fluxo.
A escrita de colisão e de desastre é re-inscrição em um império de sentidos, de
sensações e signos - materiais heterogêneos que conseguem conceber uma língua singular,
corporal, que possui unidade eclodida, múltipla, multiplicadora, inserida no âmago de toda
imagem.
O sentido é situado no eixo de uma economia dos afetos que embaralham os códigos do
sujeito, da exaltação dos poderes do eu, desvelando-o como uma construção ficcional. A ênfase
se desloca para a descoberta do tu, que é em Bausch pura escrita das sensações, do
acontecimento. Uma vez evacuada a linearidade da história, a digestão é facilitada. O que era
problema torna-se desafio. O que era voz abafada do sujeito torna-se voz solta em uníssono
com a terra: à escuta da terra. Fala-se, então, de uma terceira pessoa do acontecimento. Mas,
essa terceira pessoa, para além das regras, é rizoma, isto é, movimento, invenção sem criador
nem dívida. Essa escrita da não-pessoa, de um “eu” articulador, desvela no âmbito da retórica
bauschiana verdadeiras metáforas mágicas que servem, de certo modo, para otimizar o fora si-
mesmo, engendrando, para além do sujeito-narrador, um sopro que transforma a matéria
corporal em corpo desejante, fecundador e não estéril.
Fala-se, então, de uma escrita de beleza que fere, estética marcada pela inocência do
devir
465
, segundo a economia do princípio do belo. Belo como convulsão, ruína e sacrifício
sem martírio, mais próximo de Nietzsche e Rilke – “O belo nada mais é que o primeiro grau do
terrível”
466
– que da sublimidade edificante de Kant
467
. A escrita de Bausch é, por outro lado, o
resultado de um choque a partir do qual o Outro pode emergir. Nesse choque, o Outro parece
circular e se moldar ao Mesmo, enquanto que o Mesmo se deforma para reaparecer desviado,
estrangeiro. É próprio do Diverso retornar pelo avesso do avesso. É a ruína, a morte. Mas o
Diverso renasce sempre, de supetão.
A escrita de colisão, que atravessa a obra de Pina Bausch, emerge como uma espécie de
fulgurante hesitação, no limiar do que podemos nomear, por aproximação, o indizível. Isto é, o
momento em que a autora começa a adivinhar e a contornar, no interior de seu próprio discurso
e de sua própria linguagem, a forma e a linguagem do Outro, cuja ilustração perfeita é o
momento final, em que a senhora coloca um disco na vitrola e 'dança'.
Deste modo, a escrita de Bausch pode ser entendida como texto-fonte desviado,
seduzido, transgredido, negado, mas sem denegação. É nesse sentido que sua escrita corporal
segue uma via de sedução do espectador-leitor, sem promessa de amor, sem contrato nem
sistema, sem dívida nem culpa. Eis por que ela o desvia de sua própria fonte, de seu território,
de sua língua, de seu corpo estrangulado pelo excesso de órgãos, de seus desejos camuflados.
Assim, as técnicas discursivas e retóricas que Bausch emprega em O Lamento da
Imperatriz são uma série de variações de uma única técnica alógica. O discurso apofático, a
negação afirmativa, a estética da negação plena é engendrada por uma metafísica da carne.
Uma espécie, pois, de parametafísica que macula as cenas como as da mulher embriagada
tirada de uma contabilidade de sinais negativos. Contabilidade do divino que passa
465
Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Suely
Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 170.
466
Cf. Daniel LINS. “Sujeitos e devires: o corpo-drogado” in Nietzsche e DeleuzePensamento nômade (org.
Lins e Gadelha). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 108
necessariamente pelo meio, num bilingüismo sem dualidade, que é pura repetição. Ora, a
repetição imenso desafio ao anacronismo identitário - é sempre a repetição do diferente. "O
que retorna é a diferença", diz Deleuze
468
, e é o que parece reafirmar Bausch em suas obras.
469
.
O Lamento da Imperatriz cria através da violência de uma ausência, de um espaço
vazio, linhas de fuga plenas que provocam o desvio de uma esperada linearidade narrativa,
instaurando a dissolução. Um filme sem começo nem fim. Reticências, solturas, desembaraço:
um filme-teatro-dança. Uma escrita para espectadores-leitores não preguiçosos. É assim que
Bausch começa: uma mulher atira em algo, enquanto tenta dirigir uma máquina que quase a
carrega. Esse começo sem começo, torna misteriosamente livres os signos e as lembranças que
aparecem no texto-filme, mediante uma escrita apofática na qual a ausência explícita de
predicado nada mais faz que negar sistematicamente um sujeito da escrita. Sua escrita é uma
convulsão da linguagem. Transmite não uma história, mas atos que vivem do corpo. As
imagens geram o inconcluso, uma profunda desordem orgânica. Embora seu texto seja todo
atravessado de ponta a ponta por um frágil fio condutor qual? O do mergulho na matéria
corporal, o da paixão, da busca incansável do amor.
Conforme o desejo nietzschiano de uma osmose entre a palavra e o gesto, percebe-se,
em Bausch, o passo dançado como uma metáfora poética. Segundo Edmond Jabès
470
, a idéia
nietzschiana é a de uma pontuação que se desdobra como um gestual. Para ele, as vírgulas de
um poema são vividas em termos de coreografia. Em Bausch, a frase corporal chega à
invenção de uma escrita poética que vive em equilíbrio incerto e cria a possibilidade de habitar
um estado liminar acoplado, isto é, em diversos códigos eclodidos, como da dança, do teatro e
do cinema, e em múltiplas gramáticas.
467
Ibidem.
468
DELEUZE e GUATTARI, Op.cit.
469
Sobre o assunto ver: FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro. Repetição e
Transformação. Ed. Hucitec. São Paulo, 2000.
470
Cf. JABÈS, Edmond. “Le Danser des cimes” in Le Seuil le Sable. Paris: Gallimard, 1990.
Esvaziar para criar um texto nem pleno nem vazio, seria a impressão, a marca, o
contorno de uma escrita que não é mais, e que segundo Victor Segalen
471
, “talvez nunca tenha
sido”. Ora, se o texto não é nem nunca foi, a escrita será sempre da esfera do “novo”, isto é, o
resultado implícito da criação. Neste caso, falaremos de um texto ou de uma escrita que é puro
devir, uma escrita por vir. O novo é sempre o que virá. O novo texto-dança-teatro-filme é
texto-traço, traço como corpo da escrita, traço como pele . Uma escrita, pois, rizomática que
não cheira à imitação, mas à vida enquanto plenitude desumana.
Escrita em não defasagem entre o instante e o ato. A ação é no âmago do próprio
instante. Mas de qualquer modo alguma defasagem. Começa pela questão implícita que
dirige toda sua obra: como o amor impede a morte, segue na busca da tradução do silêncio do
encontro entre os homens, da comunhão perfeita, do estado de felicidade. Terrivelmente lúcida,
parece que Bausch alcança um plano mais alto de humanidade, ou da desumanidade.
O "eu" da enunciação solicita o outro ao mesmo tempo em que abandona seu projeto de
“controle”. O que havia sido “excesso”, fragmento, fenda, jogo na estrutura, em O Lamento da
Imperatriz lugar a uma escrita, a uma nova forma que se torna, às vezes, uma
experimentação antropofágica da própria forma do tanztheater como escrita corporal. Uma
escrita órfã de significações e de significados, mas plena de sentido, que renuncia a ter apenas
um significado, um único momento de ser ato. Assim, Bausch parte para o cinema, onde o
momento pode ser repetido através da fita magnética.
A escrita de Bausch, como a dança, é arte de deslocamento, atalho, desvio: uma
geografia do corpo em movimento. Assim, as imagens bauschianas, corpos e percursos, são
uma topologia em atividade. É uma escrita-sensória, é imagem ou, para falar como Freud, é
afeto. Criando e desviando imagens na sua escrita, Bausch outorga a seu texto-movimento o
eterno deslocamento dos personagens, exigindo que eles se reencontrem e também se deixem.
471
SEGALEN, Victor. Stèles. Paris: Mercure de France, 1982. p.127.
Na viagem provocação, ao desviar ou romper com qualquer suposta narrativa linear das
imagens, a autora provoca a síncope, o movimento oblíquo.
Com isso torna disponíveis todas as visões, todas as interpretações, todos os sentidos
possíveis. Desvia o sentido para o “infinito” isto é, para a embriaguez polifônica de todos os
possíveis.
Segundo Jackson Pollock
472
, contrariamente à imagem, a escrita é prática e
deciframento. A imagem marcaria, na opinião do pintor, o divórcio entre prática e
deciframento. Nossa hipótese é que as imagens dançadas são uma prática de deciframento, o
que autoriza tanto mais a idéia de escrita coreográfica, escrita que seria uma espécie de imagem
irrigada.
Com efeito, coreografar é desmesurar, despintar, desmarcar o espaço; escrever com o
corpo organizar formas. Dançar é praticar fisicamente a multiplicidade dos possíveis em seu
deciframento cacofônico. Coreografar é dançar, é prospectar o universo! Ora, a escrita
bauschiana desvia a atenção da imagem revelada para outras imagens, não conhece a
permanência. Ela desaparece no próprio espaço-texto, espaço-cena, espaço-tempo, mas
permanece, é futuro, na nossa memória. A escrita teatral-dançante é passagem e as imagens em
Bausch são criação contínua. Tal qual um índex, elas são o relevo da escrita; ou ainda, segundo
Roland Barthes
473
, uma continuação de fragmentos, uma soma de espetáculos inteligíveis a
cada momento de duração.
Wim Wenders
474
considera que as imagens trabalham umas contras as outras sem se
excluírem mutuamente. Para o cineasta alemão: “Na relação entre a história e a imagem, a
história se assemelha a um vampiro que tenta esvaziar a imagem de seu sangue.”
475
Deste
ponto de vista, Wenders está muito próximo do coreógrafo americano Merce Cunnigham, para
472
SPRING, Justin. The Essential Jackson Pollock. NY: The Wonderland Press. 1998.
473
BARTHES, Roland. O Grão da Voz. Tradução de Anamaria Skinner, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
474
Apud REMY, Bernard. “Problèmes de physique communs à la danse moderne et au cinéma” in NICLAS,
Lorrina. Danse – Corps provisoire. Paris: Armand Colin, 1992.
quem a dança é uma sucessão de intervalos de circulação, onde fervilham os elementos
constitutivos de uma imagem dançada, desdobrando-se para uma outra dança. A imagem seria
uma fração de pose infinitesimal, enquanto a dança seria, essencialmente, o tempo que a
imagem gasta para fazer-se e desfazer-se.
Assim, em O Lamento da Imperatriz, a imagem dançada trabalha contra sua coagulação
evitando todo ajuntamento de imagens que nada mais fariam que contar uma história. Pois as
imagens têm cada uma um potencial de histórias possíveis e é o autor, no caso Bausch, que as
direciona em um sentido ou em outro. Ela prefere a complexidade inexplicável da vida, das
idéias - que é justamente fonte de intervalos, de passagem para a circulação da escrita em seu
corpo, à história que estrutura o movimento num passado, numa memória arquivada. Neste
ponto, ela se aproxima das palavras e imagens de Clarice Lispector
476
:
"Agora é o domínio de agora. E enquanto dura a improvisação eu nasço
(...) Tento entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou explicar: na pintura
como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo e não
através da memória de ter visto num instante passado. O instante é este (...) Ao
mesmo tempo em que o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante
477
As imagens de Pina Bausch são somas, poses numerosas. Uma unidade de tempo é
povoada por imagens. Ela é uma multidão, sob a força de uma figuração abstrata.
Diz Pier Paolo Pasolini: "Minha língua não consiste, pois, numa estrutura estável, mas
ela vive a inquietude motora, a necessidade de metamorfose de uma estrutura que quer ser uma
não-estrutura."
478
Semelhante à obra de Pina Bausch, ele atravessa os ares do espetacular como
um ritual público.
Na sua profusão, as imagens de Pina Bausch são nuas, despojadas do que,
tradicionalmente, se entende por movimento, são áridas. Pode-se dizer que sua obra tem a
vocação de desnudar-se dos movimentos para se tornar visível. Seu despojamento é extremo,
475
Ibidem. p. 112
476
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 4
a
edição, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978.
477
Ibidem. p. 96 e 77
478
REMY. Op.cit.p.56.
beira a austeridade. A obra de Pina Bausch é uma pedagogia da morte no trabalho, da morte
como uma parte viva da vida. Suas palavras:
"Precisamos aprender a ser mortal antecipando o encontro com nossa
morte. Este trabalho extremista afina em nós a consciência, ao mesmo tempo em
que revela, no lugar o mais fechado de nós mesmos, algo aberto para outro fora
que nós mesmos. A morte muda a interioridade obrigando a assumir como não
contraditório essa contradição : que o fora possa se interiorizar permanecendo ao
mesmo tempo estrangeiro ao dentro."
479
Como escapar, nesse contexto, à visão, às lembranças tatuadas que permanecem na
nossa memória depois de ver suas encenações? Abrem-se caminhos no espaço virtual, por esta
escrita marcada pelo corpo, pelo silêncio de uma epiderme, que se cala, ancorando-se no
inominável.
O “novo” de Pina Bausch, na sua construção de um corpo pleno, é anunciado. Na
medida em que atuam os atores-bailarinos, a escrita corporal emerge como uma espécie de
Arte-Mãe que atribui sentido e vitalidade às imagens. Pressente-se que a dança pode ser uma
via para o sentido, e que a busca poética tem de fato como pedra angular uma interrogação do
corpo. A escrita acontece pelo corpo ou não acontece. O ato fundador da modernidade é o
questionamento do corpo.
A recrudescência da questão do corpo se impõe por si mesma. Pouco importa a
ambigüidade do próprio corpo presente, o corpo, órgão do sentido, é a via para o sentido. A
esperança é que haja coincidência do corpo com a palavra. O pensar-sentir acontece enquanto
ato-ação, levado pelo corpo e nele apoiado fisicamente. Constrói-se assim, o pensamento órfão,
em que o verdadeiro pensamento parece sem autor ou de vários autores.
Almejar uma escrita corporal é se colocar em perigo, se expor. O perigo do corpo é a
prova da verdade da linguagem. A escrita do corpo busca atribuir uma verdade do corpo.
Afirmar que a escrita deve encontrar a via no corpo para tornar-se sentido, é definir uma
479
Cf. VIGÉE, Claude. L’Extase et L’Errance. Paris, Grasset 1982; La faille du regard. Paris: Flammarion,
1987.
poética na qual um dos modelos maiores é a dança. A dança-teatro oferece a exacerbação de
um pensamento como ato do corpo. Comenta Barthes:
"Vi pouco o balé de Merce Cunningham e de John Cage (...) Achei que
era um espetáculo terno e delicado; mas para além do próprio balé, fiquei de novo
subjugado pela sensualidade de certa forma imperial do espetáculo de ópera : ela
irradia para todos os lados, música, visão, perfumes da sala e daquilo a que
chamei a venustidade dos bailarinos, a presença enfática dos corpos, em um
espaço imenso e prodigiosamente iluminado".
480
Nietzsche, o grande intercessor do diálogo entre a poesia e a dança, na época moderna,
define o dançarino como a figura a mais realizada do filósofo:
"(...) e eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar
ser, senão um bom dançarino. Pois a dança é seu ideal, também a sua arte, e
afinal sua única devoção também, seu culto divino"
481
.
Uma equivalência se estabelece na obra de Nietzsche entre “dançar”, “cantar” e
“escrever”. No caminho de Profino
482
, Nietzsche não sabe muito bem se dança, se canta ou se
escreve. Não terá ele encontrado a harmonia perfeita da mousikê grega, o equilíbrio total entre
o poema, a música e a dança? Para Nietzsche, enfermo, que sofre de violentas enxaquecas, o
corpo sofre o mal onde ele pensa, onde ele obra -, o ato de pensar é a mesma coisa que
sofrer e sofrer de pensar.
Nietzsche identifica dança com alcião, ave mítica, conhecida como martim-pescador,
presságio de calma e paz. E se Nietzsche rejeita Wagner é que, diz ele, a música de Wagner
não encontrou a via alcíone que conduz à dança, isto é, a “tudo o que nós, os alciônicos,
procuramos em vão em Wagner: a gaya scienza! Os pés voadores, o espírito, a flama, a graça,
a dança das estrelas.”
483
O que diria Nietzsche se visse uma das encenações de dança-teatro de Bausch? Não
e pés-voadores, não e a graça e a dança das estrelas. Ao futuro da escrita e, sobretudo
480
BARTHES, Roland. O Grão da Voz. Tradução de Anamaria Skinner. RJ: Francisco Alves, 1995, p. 208.
481
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2001, p. 286
482
Conferir o interessante ensaio de COMMENGÉ, Béatrice. La Danse de Nietzsche. Paris: Gallimard, 1988.
483
NIETZSCHE. Nietzsche contra Wagner. Gallimard, Idées, 428, Paris: 1980
da poesia, na busca de uma verdade do corpo, Nietzsche abre a via - neste contexto - para uma
linguagem coreográfica que Bausch realiza. Numa intensificação da relação do corpo e do
mundo, a concepção-experimento coreográfico da imagem-movimento-palavra, em Bausch,
coloca os fundamentos de uma leitura nos quais a narrativa é percebida em termos de gesto,
movimento, vibração.
O corpo-escrita-partitura para Bausch é aquele que, formado pelos seus atos, produz um
gestual e uma escrita fundados numa individuação coletiva. E não é por acaso que os versos de
Clarice Lispector
484
expressam tão bem, em palavras, a poética corporal de Bausch:
"Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e são grossos
de sangue. Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem
isso? Improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante
da platéia. (...) Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das
manhãs puras. E descanso na melancolia."
485
O Lamento da Imperatriz trata do modo como se pode perpetuar o que já não existe, ou
melhor, sobre o que fazer com as imagens e vozes perdidas que persistem como fantasmas nos
vazios da memória.
A narração implica memória, pois se lembrar é contar a si mesmo uma história, ainda
que em fragmentos, em estilhaços dispersos, mas é preciso uma história. Wuppertal
apresentada por Bausch é um modelo em miniatura das grandes metrópoles transnacionais,
onde todas as línguas se misturam, onde a corporeidade é a linguagem comum, porque pode ser
lida por qualquer indivíduo, qualquer que seja sua língua.
O espaço da "cidade" é um espaço fronteiriço de reinscrição subjetiva, lugar de
contradições, onde coexistem as diferenças, mas onde se tem a sensação de que todo mundo
sonha o mesmo sonho, mas vive confinado em uma realidade diferente.
484
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 4
a
edição, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978.
485
LISPECTOR. Ibidem, p. 22-23 e 52
Percebe-se que uma mensagem que enlaça todos os relatos. O Lamento da
Imperatriz contém indícios, cuidadosamente espalhados, que são parte de um relato maior, de
um tempo mítico, que sem que se perceba está inserido nele e não pode ser ignorado.
É assim que a última cena invade o cotidiano, mistura realidade, ficção e mito, congela-
se em um monólogo sem fim, posto que foi concebida para ser eterna. E até na eternidade da
foto o encontro entre a realidade e a ficção é perceptível, pois enquanto a velha senhora baila,
sai dos sonhos e acorda o espectador em outra realidade.
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