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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
CHRISTINA PINTO DA SILVA BASTOS
O QUE PODE UMA REFORMA DE ENSINO: OS EFEITOS NO
COTIDIANO DOCENTE NO CONTEXTO DOS GOVERNOS DO PT EM
CHAPECÓ-SC
Rio de Janeiro
Abril, 2008.
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
CHRISTINA PINTO DA SILVA BASTOS
O QUE PODE UMA REFORMA DE ENSINO: OS EFEITOS NO
COTIDIANO DOCENTE NO CONTEXTO DOS GOVERNOS DO PT EM
CHAPECÓ-SC
Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título
de Doutor em Psicologia.
Orientadora: Marisa Lopes da Rocha
Co-Orientadora: Heliana de Barros Conde Rodrigues
Rio de Janeiro
Abril, 2008.
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BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________
Profa. Dra. Marisa Lopes da Rocha
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Orientadora)
_____________________________________
Profa. Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Co-Orientadora)
_____________________________________
Profa. Dra. Kátia Faria de Aguiar
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Profa. Dra. Ana Lúcia Coelho Heckert
Universidade Federal do Espírito Santo
_____________________________________
Prof. Dr. Walter Omar Kohan
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Suplentes:
_____________________________________
Profa. Dra. Cecilia Maria Bouças Coimbra
Universidade Federal Fluminense
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À Clara,
Sonhando que no seu mundo e na sua escola a
potência da vida seja valorizada.
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AGRADECIMENTOS
Ao Laurentino, companheiro que entrou na minha vida na hora certa, por dividir comigo
as descobertas surpreendentes que fazemos em nosso cotidiano e por estranhar minhas
ansiedades. Ao Mateus por me acolher tão carinhosamente em sua família e pelo incentivo
para continuar trabalhando.
A Marisa Rocha, minha orientadora em quem descobri uma amiga, pela paciência, pelo
incentivo e pela confiança. Marisa, você ganhou uma fã! A Heliana Conde, minha co-
orientadora a quem tinha como amiga, pelas dicas e sugestões que eu nem sempre soube
aproveitar ... – quem sabe de uma próxima vez?
A Cecília Coimbra e Ana Monteiro, amigas queridas, por me acolherem, me sustentarem,
e me apoiarem nos momentos mais difíceis e por partilharem comigo boas risadas e os
estranhamentos que a vida nos proporciona.
As amigas do “Rede Meninas” Irene Bulcão, Alessandra Daflon e Wilma Mascarenhas
porque sei que nessa rede eu posso me deitar e relaxar, dividindo alegrias e tristezas,
expectativas e decepções, sonhos e indignações. Meninas, vocês são mil!!! A Rose Portela
por seu sorriso tranqüilizador e sua “comidinha inspiradora”.
Aos professores do PPGPS Ana Uziel, Milton Athayde, Jorge Coelho e Ronald Arendt,
que em todas as aulas e em todos os trabalhos me estimularam a pensar... Aos Funcionários
do programa – Aníbal, Marcos e Jussara que sempre foram solícitos e prestativos.
Aos meus pais Carlindo e Eunice –, porque sem o apoio e o incentivo de vocês esta
aventura não teria começado. Aos manos e compadres Wagner e Adriana, por me terem me
dado o maior presente de todos: a Clara.
A todas a professoras da Secretaria Municipal de Educação de Chapecó com as quais
convivi, por terem despertado em mim o desejo de contar a sua história e por terem se
disposto a compartilhar comigo seus sonhos e suas conquistas.
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RESUMO
Esta tese versa sobre a história da implantação de uma reforma de ensino implementada
durante dois governos petistas no município de Chapecó, Santa Catarina. No desenvolvimento
do texto busco, a partir das falas coletadas em entrevistas realizadas com professoras, analisar
os efeitos produzidos no cotidiano docente a partir da referida reforma. Inicio o trabalho
apresentando diversos momentos da história política e educacional brasileiros nos quais
diferentes reformas de ensino foram realizadas, apontando as inter-relações existentes entre as
políticas governamentais e as políticas de educação. Em seguida, apresento o cenário
específico Chapecó no qual ocorreu a reforma estudada. Neste ponto procuro apresentar a
constituição política do município e discutir a novidade que um governo, considerado
progressista, pode trazer para o campo da educação. Ao final analiso as entrevistas apontando
e discutindo os efeitos que a reforma do ensino provocou, a partir das considerações feitas
pelas professoras. Partindo de uma perspectiva transdisciplinar busco, auxiliada por
referências das ciências humanas e sociais (política, história, sociologia, economia,
psicologia) e da filosofia da diferença, compor um dispositivo metodológico que abarque a
complexidade da temática proposta. Concluo o trabalho considerando que os efeitos
produzidos pela citada reforma de ensino foram variados e devem ser considerados em sua
provisoriedade.
Palavras-chave: Reformas de Ensino; Governo Petista; Efeitos no Cotidiano Docente.
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ABSTRACT
This thesis deals with an educational reform implemation history during two ´petistas`
governments in the municipality of Chapecó, Santa Catarina. The effects in daily teaching
were anlyzed through the text from speeches collected in interviews with teachers. The work
began presenting differente moments of brazilians political and educacional history, in which
various educational reforms of were realized, indicates the relationships between
governmental and educational policies. Then, the specific scenarie where the reform own
studied, Chapecó, is presented. At this point, the work brings up the municipality´s political
configuration and discurs the news that can be brought to the educational area by a
considered. At the end the interviews are analyzed and, from the teacher´s comments, the
reform´s efects are discussed. From a transsubject perspective, aided by Human and Social
Sciences (politics, history, sociology, economics, psychology) and the philosophy of
difference, it is intented compose a methodological device wich embraces the proposed
theme´s complexity. The work concludes that the educational reform effects are various and
they should be considered by its temporarity.
Key words: . Reforms of Education; Government Petista; Effects on Life Teacher.
8
SUMÁRIO
INTRODUZINDO
COMO TUDO COMEÇOU... ...............................................................................................10
CAPÍTULO I
FLASH-BACK........................................................................................................................26
1.1 – A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO DAS ALMAS.....................................................26
1.2 – A ESCOLA NOVA E O ESTADO NOVO..................................................................32
1.3 – EDUCAÇÃO X COMUNISMO: RELAÇÕES COMPLICADAS ...........................35
1.4 – AS MINORIAS: MOVIMENTOS INSTITUINTES EM EDUCAÇÃO..................43
1.5 – OS MOVIMENTOS SOCIAIS: LUTAS PELA EDUCAÇÃO E PELA
DEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA. ....................................................................................53
1.6 – EDUCAÇÃO E NEOLIBERALISMO: NOVAS IMAGENS, ANTIGOS IDEAIS 64
1.7 – PT: UM PARTIDO EDUCADOR? .............................................................................73
CAPÍTULO II
CLOSE EM CHAPECÓ: UM CENÁRIO, UM ACONTECIMENTO.............................80
2.1 – UM CENÁRIO...............................................................................................................80
2.2 – UM ACONTECIMENTO?...........................................................................................84
2.3 – CONCEITOS E CONCEITUAÇÕES.........................................................................93
CAPÍTULO III
AS PROTAGONISTAS EM CENA....................................................................................105
3.1 – O PASSADO NUNCA TERMINA (...) O FUTURO NUNCA CHEGA.................106
3.2 – CENA UM: DEMOCRACIA .....................................................................................110
9
3.3 – CENA DOIS: RESGATE DA CIDADANIA E VALORIZAÇÃO DO
PROFESSOR........................................................................................................................119
3.4 – CENA TRÊS: AUTONOMIA....................................................................................126
3.5 – CENA QUATRO: COLETIVO .................................................................................136
3.6 – CENA CINCO: PARTICIPAÇÃO............................................................................144
3.7 – OS ANALISADORES DA MICROPOLÍTICA NO COTIDIANO DOCENTE...153
3.8 – ÚLTIMA CENA: CAI O PANO................................................................................155
CONCLUINDO
EFEITOS E EFETUAÇÕES...............................................................................................158
REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS..................................................................................162
INTRODUZINDO
COMO TUDO COMEÇOU...
Acreditar no mundo é o que mais falta; nós
perdemos completamente o mundo, nos
desapossaram dele. Acreditar no mundo significa
principalmente suscitar acontecimentos, mesmo que
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar
novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou
volume reduzidos. (...) É ao nível de cada tentativa
que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao
contrário, a submissão a um controle. Necessita-se
ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE,
1992, p. 218).
Em um dia de março de 1999 fiquei sabendo que haveria concurso para professor da
área de psicologia em uma universidade na cidade de Chapecó, interior do estado de Santa
Catarina. Eu não tinha noção de onde era essa cidade e não tinha qualquer informação sobre
ela. Apenas tinha ouvido falar de um time de voleibol masculino que havia disputado um
campeonato brasileiro e, começavam a ver chegar aos supermercados do Rio produtos da
agroindústria (frangos e frios) que traziam o nome da cidade na embalagem.
Assim, desprovida de maiores informações, candidatei-me ao cargo e, após o processo
seletivo, desembarquei de “mala e cuia” na cidade de Chapecó que fica a cerca de 1.200km do
Rio de Janeiro.
Após cerca de 20 horas de viagem em terras catarinenses, a paisagem ao
amanhecer me pareceu estrangeira: grandes extensões de terra plantadas com uma
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vegetação que eu desconhecia (mais tarde fiquei sabendo que eram culturas de soja e feijão),
casinhas de madeira com chaminés de onde saía fumaça, grandes galpões fechados com luzes
acesas (onde se criam galinhas e perus para a indústria avícola principal atividade
econômica da região que abriga grandes indústrias como Sadia e Perdigão), e o eterno cheiro
de madeira queimada misturado com poeira de milho.
Situada a oeste do estado de Santa Catarina (mais próxima da divisa com a Argentina
do que com a capital do estado) Chapecó é uma cidade que conta hoje com cerca de 160.000
habitantes e foi colonizada basicamente por migrantes, de origem italiana e alemã, que vieram
do Rio Grande do Sul.
Minha primeira impressão, ao desembarcar após mais ou menos 22 horas de viagem,
foi de que a cidade era organizada, limpa e “desenvolvida”, apesar de pequena para os
padrões aos quais eu estava acostumada. É bem verdade que fiquei um pouco assustada ao
perceber que não havia qualquer lugar para almoçar no domingo após as 13 horas. Comecei a
entender que muitas diferenças, no modo de viver, me aguardavam.
Nas primeiras semanas, enquanto me instalava, notei que todos na rua me olhavam e
me reconheciam como sendo alguém que não era dali. Isso me incomodava um pouco, mas
de certa maneira também facilitou as coisas: no comércio e mesmo para alugar um
apartamento quando percebiam o sotaque diferente e ao saberem que eu era professora da
universidade as portas se abriam e o crédito se tornava imediato e quase sem limites. Na
universidade eu era apresentada como “a carioca”, e isso se tornou quase uma credencial
fato que me deixava um pouco aborrecida, pois a maioria das pessoas me olhava como se eu
fosse uma estrangeira e era exatamente assim que eu me sentia.
Com o passar do tempo eu fui me habituando à cidade e as pessoas a mim. Fui
percebendo semelhanças profundas no modo de organização da cidade – guardadas as devidas
proporções – com o Rio: os bairros nobres e a periferia, as dificuldades no sistema de
transporte coletivo, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, etc. Ao mesmo tempo, fui
descobrindo e sentindo um certo movimento de participação popular na discussão dos
problemas municipais. A cidade estava descobrindo as “dores e delícias” de implantar e
efetivar diversos conselhos municipais (de saúde, de educação, dos direitos da mulher, dos
direitos da criança) e a estratégia de gestão pública chamada de orçamento participativo.
O município de Chapecó tem 90 anos de existência e conta uma história política que
indica um pensamento hegemônico extremamente conservador. Apesar disso, em 1997 um
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governo popular conquistou a administração municipal através da eleição de um prefeito do
PT.
Logo que cheguei à universidade fui convidada para participar, com colegas do curso
de Serviço Social, de um programa de extensão universitária denominado PPEPL
(Participação Popular no Espaço de Poder Local). Este programa estava em andamento
havia uns dois anos e, quando cheguei um dos primeiros projetos em que me envolvi tratava
de um “curso de capacitação” para delegados, das diversas comunidades do município, na
mobilização, organização e participação nas assembléias do orçamento participativo.
desde o primeiro contato com as pessoas que participavam desse curso notei vários
comentários, queixas, críticas e elogios relacionados à proposta educacional que vinha sendo
implementada nas escolas públicas do município.
O trabalho que pretendo desenvolver é fruto de diversas inquietações antigas que
assaltam minha prática como psicóloga nas escolas. E, ultimamente, uma questão específica
tem me acompanhado quando procuro compreender a dinâmica do cotidiano no espaço
escolar: que efeitos têm sido produzidos, a partir da reforma de ensino dos governos PT no
cotidiano dos professores da rede pública municipal de ensino fundamental de Chapecó?
Desde minha graduação em psicologia tenho me debatido com diversas questões que
dizem respeito à vida dos professores das escolas públicas. Questões que vão desde a sua
formação até o seu cotidiano em sala de aula.
No meu trabalho como supervisora de estágio em psicologia escolar nessa
universidade do interior de Santa Catarina, vinha levantando outros questionamentos que
dizem respeito ao cotidiano dos professores em suas relações com o conhecimento, com os
alunos, com os seus pares, com as direções das escolas e com a Secretaria Municipal de
Educação, entre outras. Também fiz um trabalho de assessoria à Secretaria Municipal de
Educação, ajudando-os a refletir sobre as dificuldades encontradas nas escolas tanto no que
diz respeito aos problemas de relacionamento interpessoal, quanto aos problemas de condução
da proposta político-pedagógica instituída.
A partir dessas implicações com o cotidiano escolar, tenho percebido que se não
compreendemos o que ocorre com os professores em seu trabalho cotidiano nas escolas, será
difícil construir estratégias de intervenção capazes de restituir aos professores toda a sua
capacidade de criação em favor de uma transformação da educação e da sociedade, seja em
nível local ou nacional.
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As políticas de educação não serão transformadas se no espaço escolar as
micropolíticas do cotidiano não forem analisadas e explicitadas; não serão efetivadas se não
entendermos como os professores se reconhecem e se posicionam em relação a elas. Pois,
afinal de contas, são os professores os agentes executores da maioria das ações educativas, no
espaço escolar.
Os efeitos das reformas de ensino no cotidiano dos professores parecem despontar
como questão em todos os municípios do país que, a partir de 1996, fizeram reformas
curriculares nas suas redes de ensino. No entanto, esta pesquisa buscará analisar esta questão
no âmbito do município de Chapecó, em Santa Catarina.
Em 1998 implantou-se uma proposta pedagógica baseada nos princípios da educação
popular de Paulo Freire. Apesar de todo o entusiasmo dos seus dirigentes, durante os oito
anos de governo petista, a Secretaria de Educação teve muitos problemas e enfrentou muitos
obstáculos para efetivar esta proposta educacional: resistências dos pais, das direções das
escolas e, especialmente de muitos professores. Qual seria o motivo para tantas resistências?
Seriam resistências à proposta político-pedagógica ou resistências à proposta político-
partidária?
Em meio a tais acontecimentos, procurarei trazer para o centro da cena, o que as
professoras entrevistadas declaram como sendo as mudanças mais importantes na sua prática
cotidiana no espaço escolar.
Para compreender o processo de reformulação da educação, no caso, a Proposta
Político-Pedagógica do município de Chapecó, não basta apenas discutir as questões político-
sociais e culturais ou as questões administrativas do estabelecimento escolar. Torna-se
necessário também um olhar atento voltado ao profissional docente, considerado o
responsável pela construção no processo ensino-aprendizagem dos alunos. Os professores
encontram-se inseridos em um contexto de trabalho que passa por modificações na sua
estrutura, através da implantação da proposta curricular do município. Como vem
funcionando o cotidiano dos professores a partir da implantação desta proposta?
É interessante destacarmos que as entrevistadas ao responderem sobre as mudanças
ocorridas em vários aspectos do cotidiano escolar, com a implantação da proposta político-
pedagógica, foram unânimes ao apontar como mais importantes: a reformulação da
organização curricular (passando do sistema de seriação para o sistema de ciclos de
aprendizagem por idade) e introdução das turmas de progressão; a adoção da perspectiva da
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educação popular (proposta por Paulo Freire) que pressupõe a necessidade de, a partir da
pesquisa sócio-antropológica, escolher as falas mais significativas encontradas na comunidade
onde se situa a escola e em seguida montar o complexo temático (ou tema gerador) que
subsidiará a organização dos conteúdos a serem trabalhados em sala de aula – com um
conseqüente “abandono” do livro didático; a substituição do sistema de avaliação dos alunos
através de notas, por um sistema de avaliação descritiva que implica não somente na avaliação
da aprendizagem, mas do “desenvolvimento/progresso” do aluno como um todo (inclusive
seu comportamento). Todas essas alterações afetaram o dia-a-dia dos professores e segundo
eles mesmos: houve um aumento de horas para o planejamento das aulas; maior integração
dos professores em função da criação dos coletivos de trabalho (os planejamentos, avaliações
e discussões sobre o funcionamento da escola são feitos pelos grupos de professores e direção
das escolas, de forma coletiva, o que gerou a necessidade de uma integração maior dos
professores para a realização do planejamento e execução das tarefas); a maior participação
dos pais nas questões relativas ao aprendizado dos filhos e das crianças em sala de aula (para
os professores isso indica uma maior abertura da escola para a comunidade); a maior
autonomia dos professores na proposição e realização das atividades em sala de aula; a
necessidade de estudar mais, de pesquisar mais (uma vez que não se adotam mais os livros
didáticos e organizam os conteúdos e objetivos de ensino a partir dos temas geradores). E,
acompanhando as respostas, muitas exclamações do tipo: no início foi bem difícil (CECILIA,
2004), no início não foi fácil porque não estávamos acostumadas com aquele hábito (ANA,
2004), meu Deus do céu, o que será isso? (ROSE, 2004)
Após a realização das entrevistas, agrupamos as respostas em três eixos: a) sobre as
mudanças (se houve mudanças e quais foram elas, o que elas representaram, o que melhorou e
piorou com tais mudanças); b) dificuldades e facilidades encontradas; c) sentimentos
envolvidos.
A partir dos mil e duzentos professores constantes da lista de profissionais fornecidos
pela Secretaria Municipal de Educação, foi feita uma primeira seleção baseada no critério de
tempo de serviço na rede de ensino acima de dez anos, uma vez que pretendíamos entrevistar
aqueles que passaram pelo processo de implantação da nova Proposta Político-Pedagógica
(PPP). Após essa primeira triagem chegamos a um número de cerca de 700 professores,
sendo que cerca de 20% deles encontravam-se fora da sala de aula (em licença médica ou em
atividades administrativas). Optamos por fazer uma segunda seleção e, desta vez, a exemplo
de pesquisas realizadas com o mesmo público anteriormente, através de uma divisão entre as
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escolas situadas em cada uma das dez regiões do Orçamento Participativo da Prefeitura
Municipal uma vez que o município não conta com uma divisão das descolas por regionais
de educação, como as CRE do Rio de Janeiro, por exemplo. Esta divisão possibilitaria uma
maior abrangência da pesquisa. Após observar em quais escolas de cada região havia
professores que atendiam ao critério básico (ter mais de dez anos de trabalho na rede
municipal de ensino) chegamos às escolas e perguntamos quem gostaria e poderia participar
das entrevistas. Dessa forma, todas as entrevistadas foram voluntárias.
Infelizmente, devido à dificuldade de deslocamento da pesquisadora para a realização
das entrevistas, optou-se por excluir as três regiões que abrangem as comunidades, distritos e
bairros localizados fora do perímetro urbano do município. Realizamos 6 (seis) entrevistas
em 6 (seis) diferentes regiões da cidade. Nas entrevistas realizadas pudemos perceber uma
confluência nas respostas a respeito dos questionamentos feitos.
Realizamos entrevistas semi-estruturadas com a seguinte pergunta básica: Você
percebe se houve mudanças com a implantação desta proposta curricular no seu cotidiano de
trabalho? A partir daí as perguntas se sucediam em função do caminho que as professoras
escolhiam para dar continuidade à entrevista.
Cabe aqui destacar como pensei a utilização de entrevistas no processo de pesquisa.
Como ressaltam Rocha, Daher & Sant’Anna (2004) a entrevista não deve ser encarada como
uma simples ferramenta de coleta de dados, mas como um “(...) dispositivo de
produção/captação de textos, isto é, um dispositivo que permite retomar/condensar várias
situações de enunciação ocorridas em momentos anteriores” (p. 175). Nessa perspectiva, os
autores observam que só há sentido em se fazer entrevistas, ao longo de uma pesquisa, quando
se sabe que existem determinados textos que foram produzidos num universo discursivo
sendo este conceito entendido como “um conjunto dos discursos que interagem em uma dada
conjuntura” (Charaudeau & Maingueneau, apud ROCHA, DAHER & SANT’ÀNNA, 2004,
p.169). Assim, os diversos discursos (representados por documentos como o Projeto de Lei,
debates dos quais participei, ocorridos nas escolas, pesquisas e conversas anteriores que tive
com os professores sobre esse tema, etc.) que foram produzidos e circularam a respeito da
construção e da implantação do PPP do município de Chapecó puderam ser retomados na
perspectiva de produção de um novo texto do qual são autores os entrevistados e a
pesquisadora. Nesse sentido, encaro a entrevista como um espaço em que se pode construir
uma versão da realidade e não como um “retrato fiel” da verdade. Mesmo porque, ao
apresentar as entrevistas realizadas, procuro dialogar com as vozes das professoras, com as
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vozes oficiais (registradas em documentos) e com os sussurros de autores que me ajudam a
pensar nas questões levantadas.
A esse respeito, Cleide Pedrosa (2007) observa que todo discurso se estabelece num
campo de luta das vozes, na perspectiva bakthiniana, onde a minha voz como pesquisadora-
narradora entra em relação íntima e direta com as vozes dos outros professoras,
documento, textos de teóricos numa tentativa de constituir um diálogo. Assim, as
alteridades devem aparecer a partir da polifonia de vozes que se opõe ou se complementam.
Como não pensamos em “revelar uma verdade histórica”, mas possibilitar a
atualização da memória como uma outra forma de entender os acontecimentos de um passado
recente que se constituem como história, a escolha de uma pequena amostra não se torna
problema, pois nos interessa observar o que, nos diversos acontecimentos, ganham especial
significação para o grupo de professores em questão. Para Ferreira (1994) “a memória é
também uma construção do passado, mas pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os
eventos são lembrados à luz da experiência subseqüente e das necessidades do presente” (p.8).
Tento recompor aqui os diversos momentos e as diversas circunstâncias que me
desassossegaram e fizeram com que eu me mantivesse engajada neste trabalho de pesquisa. Ir
e voltar nesse trajeto não é apenas uma opção, senão uma necessidade e, talvez também, um
não conseguir fazer de outra forma. Por isso, peço aos leitores que tenham paciência e me
acompanhem nessa tentativa de escrever um roteiro inteligível.
Na verdade, quando falo em ir e vir, não estou usando de uma metáfora, mas de 2.400
km de vigem Rio - Chapecó, pois durante todo o ano de 2004 e início de 2005 continuei como
professora da universidade daquela cidade. Além das idas-e-vindas concretas houve outras,
de pensamentos, de sentimentos, de espantos, surpresas e alegrias e de algumas decepções.
Todo o processo de realização dessa pesquisa me deixou, em vários momentos, sem
saber o que pensar ou fazer: que caminhos seguir, como continuar, para que prosseguir?
Muitas vezes sentimentos de impotência, de inadequação, de estar perdida me assaltaram
por exemplo, quando fui questionada sobre a pertinência de continuar a pesquisa com as
professoras que estão vivendo no momento (desde 2005) uma outra realidade, com a eleição
de um prefeito do PFL (Partido da Frente Liberal). De qualquer forma, me mantiveram no
desassossego, me obrigaram a fazer, constantemente, a minha “análise das implicações” com
o problema da pesquisa. Este conceito-ferramenta do Institucionalismo francês explicita, no
caso da pesquisa, o lugar que eu ocupo como pesquisadora, na relação com a temática
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pesquisada. Ao me afastar do lugar de observadora neutra, a análise das implicações me leva
à discussão dos afetos envolvidos na intervenção-pesquisa realizada.
Como disse a professora Wilma
1
“a gente sente falta, é como se faltasse o chão”. Foi
exatamente assim que me senti em alguns momentos. Processos de desterritorialização e de
reterritorialização... Para Deleuze e Guattari (1997) o processo de desterritorialização
consiste num movimento de se abandonar um território sendo o território o domínio do ter:
certezas, verdades, modo de perceber e pensar, comportamentos automatizados, afetos
constantes, potencializadores ou despotencializadores, etc. e, ao mesmo tempo, não existem
territórios absolutamente fixos, uma vez que eles estão intrinsecamente ligados a vetores que
os desestabilizam; um território existe porque existem vetores de desterritorialização. Por
outro lado, sempre que acontece um movimento de desterritorialização um outro
movimento/processo o acompanha: a reterritorialização. Processo este que não significa,
necessariamente, o retorno ao território anterior pois isso nada mais seria do que impedir o
fluxo de uma linha de fuga (ou de ruptura que opera fissuras num território e conjuga os
movimentos de desterritorialização) e a criação de um novo território de fixidez mas a
reterritorialização pode indicar a construção de um novo plano de consistência que ignora a
substância e a forma, uma vez que não são distintas, mas abarca intensidades e velocidades de
conexão: “(...) tem consistência, aquilo que aumenta o número de conexões a cada nível da
divisão ou da composição.” (p. 223). Isto implica que, para a construção de um novo
território condizente com um plano de consistência são necessários novos agenciamentos.
Agenciamentos ou dispositivos, como diz Foucault. Agenciamento que implica
multiplicidade, todo um jogo de articulação entre práticas discursivas e não-discursivas,
conexões de elementos, forças e intensidades heterogêneas: “Um agenciamento tem quatro
dimensões: estados de coisas [que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha],
enunciações [enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu estilo, um modo de
falar], territórios, movimentos de desterritorialização[o modo como saímos do território]. E é
aí que o desejo corre...” (DELEUZE & PARNET, 1996)
O desejo para Deleuze se traduz pela construção de um agenciamento, ou seja, deseja-
se em um conjunto:
1
Fala da professora Wilma, refletindo sobre como é difícil trabalhar com o a perspectiva do Tema Gerador e
sem seguir” um livro didático. A pedido das professoras, não as identificamos por seus nomes, mas para
garantir a singularidade das falas, optamos por substituí-los pelos nomes de amigas que me “sustentaram”
durante a realização desse trabalho. Também optamos por não identificar as escolas nas quais trabalham.
18
Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações
entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem
desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de
dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo
uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher,
paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver
desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja,
meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Nunca desejo algo
sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em
um conjunto. Não desejo que não corra para um agenciamento.
(DELEUZE & PARNET, 1996)
O desejo de construir um outro território, instável e provisório, onde pudesse conectar
os movimentos moleculares das linhas que escapam às totalizações, onde possam se iluminar
as micropolíticas do cotidiano no espaço escolar, foi isso que me permitiu continuar com a
pesquisa, o que me instigou a fazer dos encontros na pesquisa um acontecimento, produtor de
novas práticas. Colocar em questão as forças que estão em jogo implica em buscar explicitar
as práticas para entender como as professoras entrevistadas se constituíram como sujeitos de
saber e fazer. Que intensidades estão presentes na micropolítica do cotidiano dessas
professoras e que efeitos se produziram a partir delas?
Foi assim, entre processos de desterritorialização e reterritorialização
reconhecidos como tais numa avaliação posterior – que fui construindo meu método de
trabalho. Entendendo método como uma escolha a partir dos afetos; método não no sentido
de caminhar para uma meta, com uma finalidade delineada, mas no sentido inverso: de
caminhar e ao caminhar ir processando, construindo, produzindo lugares de chegada não
como metas antecipadas, mas como territórios/história possíveis parciais, temporários e
instáveis.
No momento me proponho a pensar a história não como conteúdo, mas como método.
Por hora, creio que seja bastante dizer que entendo esta pesquisa como uma prática, uma
militância política que recorre à história para se exercer. Afinal, entendo que a história não é
alguma coisa para ser contada apenas num tempo futuro, mas vivida num tempo presente.
Além disso, a história faz parte da vida como a vida faz parte da história de todos e de cada
um de nós. Como prática política, contar as experiências da vida de professores possibilita
dar visibilidade ao fato de que a história é feita pelos homens no cotidiano. Contar a história
dos homens comuns é reconstituir “a história que os homens não sabem que fazem”
(GINZBURG, 1991).
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Contar a história de um tempo presente e me incluir nesse processo é por si um
exercício de tentar explicitar as idas-e-vindas, construções e desconstruções de territórios, o
movimento de linhas de fuga e linhas flexíveis, o adensamento e sedentarização de segmentos
duros. É uma experimentação política ativa, por não termos certeza de saber o que acontecerá
com uma linha. Para Deleuze (1998)
É sobre diferentes linhas de agenciamentos complexos que os poderes
conduzem suas experimentações, mas onde surgem também
experimentadores de uma outra espécie, frustrando as previsões,
traçando linhas de fuga ativas, procurando a conjugação dessas linhas,
precipitando suas velocidade ou sua lentidão, criando pedaço por
pedaço o plano de consistência, com uma máquina de guerra que
mediria, a cada passo, os perigos que ela encontra. (p. 168)
Pensar a história como método e como experimentação política implica pensar em que
escala queremos fazer nossas observações e análises. Para alguns historiadores (Lepetit,
Bensa, Revel, entre outros) a Micro-História ou a microanálise histórica nasce como uma
reação a um certo estado de coisas concepções, exigências e procedimentos no campo da
história social francesa. Ao final dos anos 70 do século passado, o projeto de uma
inteligibilidade global do social, ou seja, de uma abordagem macrossocial na história, começa
a ser colocada em questão, especialmente por alguns historiadores italianos como Carlo
Ginzburb e Geovani Levi.
Os micro-historiadores consideram que a mudança da escala de observação e análise
(...) produz efeitos de conhecimento, e pode ser posta a serviço de
estratégias de conhecimento. Variar a objetiva não significa apenas
aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa
modificar sua forma e sua trama (...) mudar as escalas de
representação em cartografia não consiste em representar uma
realidade constante em tamanho maior ou menor, e sim em
transformar o conteúdo da representação (ou seja, a escolha daquilo
que é representável). (REVEL, 1998, p. 20).
Ao alterarmos a escala de observação e análise, seria possível levar em contas os mais
variados aspectos da experiência social. Ao estudar um determinado evento e procurar
acompanhar um pequeno número de pessoas envolvidas com esse evento, poderíamos
explorar uma variedade maior de aspectos. Isso não significa que o conhecimento produzido
desta forma seria menor, menos qualificado, mutilado, mas, uma versão diferente, na qual se
considera a ação social de cada pessoa, em seu grupo social, em relação ao evento estudado.
20
“A adoção de uma escala é antes de mais nada a escolha de um ponto de vista do
conhecimento” (LEPETIT, 1998, p. 94).
Como na perspectiva da história do tempo presente, os micro-historiadores têm a
preocupação de trazer o homem concreto e vivo para a história e apreender através das suas
diversas interações com sua coletividade que dinâmicas sociais estão em jogo, quais são as
margens de escolha e participação das pessoas frente a determinado evento. Nas palavras de
Revel (1998) “levando em conta em suas análises uma pluralidade de destinos particulares,
eles [os micro-historiadores] procuram reconstituir um espaço de possíveis em função dos
recursos próprios de cada indivíduo ou de cada grupo no interior de uma configuração dada”
(p. 26). Cabe aqui uma interrogação: como, a partir das relações dos professores no seu grupo
social, um horizonte de possíveis se faz presente no cotidiano do espaço escolar?
Gribaudi (1998) defende a idéia de que a discussão sobre escala na análise histórica é,
de certa forma, equivocada uma vez que o que estaria em jogo não seriam os processos ou os
fenômenos a serem investigados em maior ou menor escala –, mas a abordagem a ser
utilizada para análise. Ele afirma que tanto os princípios de explicação como a forma de
construir e apresentar o objeto de estudo, determinam o método de análise e não propriamente
a escala de observação e análise:
A oposição “micro”/“macro” esconde portanto, antes de tudo, uma
ruptura entre modelos de causalidade baseados em retóricas
demonstrativas diferentes (...) a abordagem macrossociológica, de tipo
dedutivo, procura e constrói suas provas a partir de um modelo global.
A argumentação segue a própria direção que as hierarquias causais
pressupostas implicam. A peça-mestra da demonstração está
inteiramente pré-inscrita nas categorias utilizadas no modelo,
enquanto os dados empíricos têm uma função que é
fundamentalmente de ilustração. Indutiva, a abordagem
microssociológica, constrói, inversamente, o conjunto de sua
argumentação a partir dos dados empíricos. A retórica da
demonstração é de tipo generativo. As fontes fornecem o material
bruto para individualizar e analisar mecanismos e dinâmicas sociais
que se considera existirem aquém dos objetos e das categorias
historiográficas (p. 137).
A observação e a análise micro-historica, portanto, abre espaço para observarmos os
processos de criação de novos planos de consistência. Não é o tempo, a duração do evento ou
o tamanho da amostra que estão em jogo, mas a simultaneidade de movimentos e conexões, o
embate das forças, o acontecimento.
21
É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado,
um reino ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte,
um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra os
seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se
envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada. As forças que
se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma
destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Elas também
não se manifestam como formas sucessivas de uma intenção
primordial; como também não têm o aspecto de um resultado. Elas
aparecem sempre na álea singular do acontecimento. (FOUCAULT,
1988, p. 28)
Referindo-se a Deleuze, Foucault (2000) afirma que o acontecimento “(...) é sempre
efeito, inteiramente produzido por corpos que se entrechocam, se misturam ou se separam (...)
o acontecimento não é um estado de coisa que poderia servir de referente a uma proposição
(...)” (p. 236). Acontecimento, portanto, não é um fato. Mas um encontro de forças que faz
emergir uma intensidade que se manifesta em fatos, muitos deles históricos. Sendo assim,
Foucault propõe que “... espreitemos o que ocorre: em mil pontos dispersos, por todo lado
fulguram batalhas...” (p. 235).
Eliana Moura (2004), discorrendo sobre a filosofia deleuziana e sua importância para
pensar um método de pesquisa que utiliza a (auto)biografia, no campo da psicologia, observa
que o acontecimento “é o que consistência ao virtual, na sua atualização em fatos. Mas o
acontecimento é sempre empurrado pelo devir, dando forma a novos fatos; ele é a sucessão de
acontecimentos sem regra ou princípio, sem necessidade.” (p. 131). Ora, se estamos
pensando em termos de forças, de intensidades, não podemos entender que o acontecimento
independe das ações, das práticas cotidianas. Na verdade a autora afirma que “cada
acontecimento implica uma ação, uma eficiência própria que o se reduz a um outro que
seria a sua causa” (idem).
Pensar o acontecimento dessa forma rompe com a perspectiva de causalidade e de
linearidade presente em várias concepções históricas. E vem daí a dificuldade de pensar em
termos cartográficos, como propõe Deleuze. Desenhar as diversas linhas que compõem e
decompõem, que formam e deformam territórios existenciais entendidos como espaços
onde se encontram histórias, saberes, vivências, sonhos ucrônicos
2
, possíveis e horizonte de
novos possíveis, memórias e práticas comuns no cotidiano.
2
Refiro-me a um texto em que Alessandro Portelli apresenta o depoimento de um operário comunista italiano
sobre eventos ocorridos em 1943-44. No texto, Portelli afirma que “todos estes relatos não se referem à forma
pela qual a história se desenrolou, mas como ela poderia ter ocorrido. Seu campo não incide na realidade, mas
22
Da mesma forma que a composição dos espaços derivados dos processos de
desterritorialização/reterritorialização se de forma fragmentada e descontínua, o processo
de recomposição da história a partir depoimentos orais, com base em elementos da memória,
se processa de forma não-linear.
Tzvetan Todorov (2002) observa que “os acontecimentos passados deixam dois tipos
de rastros: uns chamados ‘mnésicos’, na mente dos seres humanos; ou outros no mundo, sob a
forma de fatos materiais: uma marca, um vestígio, uma carta, um decreto (as palavras também
são fatos)” (p. 142). Esses rastros passam fazer parte de uma trama que identificamos como
memória, lembrança ou reminiscência. De certa forma, não escolhemos os elementos que
farão parte de nossa memória, eles apenas se acoplam, se relacionam, se justapõem, posto que
a memória se componha num campo de forças, muitas vezes antagônico: “... a memória não
se opõe absolutamente ao esquecimento. Os dois termos que formam contraste são a
supressão (esquecimento) e a conservação; a memória é, sempre e necessariamente uma
interação dos dois” (p. 149). Para Alistair Thomson (1997) o trabalho psíquico em torno da
memória é o da composição:
Compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida
passada e presente. Composição é um termo adequadamente ambíguo
para descrever o processo de ‘construção’ de reminiscências (...).
O processo de recordar é uma das principais formas de nos
identificarmos quando narramos uma história. Ao narrar uma história,
identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem
pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As
histórias que relembramos não são representações exatas do nosso
passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se
ajustem às nossas identidades e aspirações atuais. (...) Reminiscências
são passados importantes que compomos para dar um sentido mais
satisfatório à nossa vida (...). (pp. 56-57).
Portanto, tanto a evocação das lembranças das professoras entrevistadas, quanto as
lembranças da pesquisadora, são compostas e apresentadas de forma fragmentada, não como
uma opção, mas como uma realidade possível.
Na elaboração deste trabalho fui compondo diversos pensamentos teóricos e
metodológicos. Como não me filio a nenhum pensamento ou autor, mas me alio aos que mais
me potencializam, busco aglutinar as diversas contribuições que me trazem o pensamento de
na possibilidade... Pondo em contraste o mundo desejável com o existente e reclamando que por acidente
aquilo não aconteceu, as hipóteses ucrônicas permitem ao narrador “transcender” a realidade como dada e
recusar a se identificar e se satisfazer com a ordem existente.” (PORTELLI, A., 1993, p. 50).
23
Foucault, Guattari e Deleuze, especialmente, de alguns autores da história oral e da micro-
história e algumas ferramentas da Análise Institucional, procurando construir um dispositivo
de pesquisa e intervenção.
Baremblitt (1992) define dispositivo como
(...) uma montagem (...) de elementos extraordinariamente
heterogêneos que podem incluir “pedaços” sociais, naturais,
tecnológicos e até subjetivos. Um dispositivo se caracteriza porque o
importante nele é seu funcionamento, sempre simultâneo à sua
formação e sempre a serviço da produção, do desejo, da vida, do novo
(p. 74).
Na perspectiva da Análise Institucional os dispositivos ou agenciamentos não
costumam respeitar os territórios previamente estabelecidos e consagrados e, por isso mesmo,
tendem a produzir linhas de fuga onde acontecimentos insuspeitáveis, imprevisíveis e inéditos
podem acontecer. Nesse sentido, a idéia de transversalidade
3
está presente na produção de
agenciamentos e é, ao mesmo tempo, seu efeito.
Durante as leituras que fiz encontrei muitos pontos de contato – aproximações e
alguns afastamentos – entre História Oral, Micro-História e Análise Institucional e a Pesquisa-
Intervenção. É dessa forma como agenciamento que penso a “mistura” que realizo entre
as diversas contribuições metodológicas e teóricas dos autores pelos quais me senti afetada.
Este trabalho de pesquisa tem como referencial de ação a pesquisa-intervenção, que
como uma tendência das pesquisas participativas, pretende provocar a reflexão sobre as
possibilidades de ações coletivas levando em conta as diferenças existentes em qualquer
grupo de pessoas.
A pesquisa-intervenção, ao apontar a necessária interferência do pesquisador no
campo de pesquisa, constituindo essa interferência uma condição necessária para a produção
de conhecimento, aprofunda a ruptura com as perspectivas positivistas de ciência e
conhecimento (de objetividade, neutralidade e generalização) apontadas pelas pesquisas
participativas afirmando o ato político que toda investigação carrega em si. A partir dessa
interferência, que se constitui como a própria intervenção é possível provocar não apenas a
reflexão sobre como os professores entendem seu lugar e seu fazer na manutenção das
instituições cristalizadas no espaço escolar (questionando as condutas, os sentimentos, os
3
“Interpenetração, entrelaçamento no rizoma (modelo de uma raiz vegetal que não tem membranas celulares
nem limites externos), que é imanente à rede social, das forças produtivo-desejantes-instituintes-organizantes”
(BAREMBLITT, 1992, p. 195).
24
pensamentos e conhecimentos que estão instituídos como verdades perenes e naturais), mas
também como percebem sua capacidade de criação, de agenciamentos coletivos de desejo, de
produzir movimentos instituintes no cotidiano.
Nesse ponto, as ferramentas da Análise Institucional, a pesquisa-intervenção e a
história oral se encontram, pois nas palavras de Thompson (1998):
A história não deve apenas confortar; deve apresentar um desafio,
uma compreensão que ajude no sentido da mudança. Para isso, o mito
precisa tornar-se dinâmico. Tem que abarcar as complexidades do
conflito (...). O que se requer é uma história que leve à ação; não para
confirmar, mas para mudar o mundo (p. 43).
Forjadas, pelas diversas práticas cotidianas, verdades são estabelecidas e passam a
constituir os sujeitos de diversas maneiras, que tomamos como naturais. A proposta
foucaultina em relação à história não é a reconstrução do passado, mas, ao contrário –
inquietando-se com o cotidiano inquietar o presente mostrando sua fragilidade, sua “não-
naturalidade” e encontrar forças para mudar a realidade. Dessa forma, Foucault propõe que
olhemos para nós mesmos em nossa relação com a “verdade” o que permite nos
constituirmos como sujeitos de conhecimento; que olhemos para nossas relações com um
campo de poder o que permite nos constituirmos como sujeitos agindo sobre os outros; e
que observemos nossas relações com os valores morais vigentes o que permite nos
constituirmos como sujeitos éticos.
Essa proposta de Foucault se aproxima muito de uma prática fundamental para aqueles
que trabalham com a perspectiva da Análise Institucional a análise das implicações. No
caso da pesquisa, o pesquisador possui diferentes vínculos com o campo de pesquisa, ocupa
um lugar enquanto pesquisador – isso influenciará na pesquisa de maneira dinâmica. Por isso,
considera-se o fato do pesquisador influenciar na pesquisa o como uma dificuldade, mas
como condição ao próprio conhecimento.
Lourau (2004) observa que “a implicação é um de relações; não é “boa” (...) nem
“má” (...). O útil para a ética, a pesquisa e a ética da pesquisa não é a implicação (...) mas a
análise dessa implicação” (p. 190).
Sendo assim, minha formação, minha posição como pesquisadora, minha condição de
“estrangeira” na cidade, minha condição como ex-assessora da secretaria de educação e ex-
professora da universidade local, minha posição como ex-supervisora de estágio, minhas
referências teóricas, minhas opções político-partidárias, minha vontade de produzir história, a
25
condição dos professores como “pesquisados”, a disponibilidade de tempo dos professores, os
locais e condições físicas em que as entrevistas foram realizadas, enfim, tudo o que me afeta
como pesquisadora, tudo o que afeta o campo de intervenção/pesquisa e o campo de análise
deve e precisa ser colocado em análise não para “preservar”, “limpar” ou purificar o campo
de análise, mas ao contrário, para explicitar a diversidade complexa que compõe a interação
das pessoas no ato de pesquisar. E, como adverte Lourau (2004) “a implicação (...) deve ser
analisada individual e coletivamente, o que supõe atividade intensa e, muitas vezes, penosa”
(p. 191).
Utilizando as ferramentas da Análise Institucional
4
especialmente os conceitos de
implicação, transversalidade, atravessamento e instituinte buscamos apontar analisadores
que nos permitam compreender a constituição histórica dos “saberes e fazeres” dos
professores no âmbito do cotidiano escolar.
Para viabilizar a leitura, o trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro
capítulo, provocada pela fala de uma das professoras entrevistadas, procuro demonstrar como,
ao longo de quase cem anos de história de educação brasileira, diversas reformas de ensino
foram sendo propostas e implementadas concomitantemente às mudanças de governantes.
Neste primeiro capítulo me atenho a uma narrativa que contempla apenas uma análise
macropolítica.
No segundo capítulo procuro apresentar a constituição política do município de
Chapecó e refletir sobre o que significou a apresentação de um novo projeto político-
pedagógico após o início da gestão de um prefeito eleito pelo Partido dos Trabalhadores.
O capítulo três traz fragmentos das entrevistas feitas com as professoras da rede
municipal de educação pública daquela cidade. Nesse capítulo procuro interagir com a fala
dessas professoras buscando dialogar com elas e com os autores que me auxiliaram a fazer as
análises das situações relatadas. No terceiro capítulo procuro abordar a micropolítica do
cotidiano docente a partir da implementação do projeto.
4
Refiro-me, aqui, a uma parte do movimento institucionalista identificada com o pensamento de Lourau e
Lapassade – que, no Brasil, ganha as contribuições de Deleuze e Guattari.
26
CAPÍTULO I
FLASH-BACK...
Num grande livro de filosofia, Clio, Peguy explicava
que duas maneiras de considerar o
acontecimento, uma consiste em passar ao longo do
acontecimento, recolher dele sua efetuação na
história, o condicionamento e o apodrecimento na
história, mas outra consiste em remontar o
acontecimento, em instalar-se nele como num devir,
em nele rejuvenescer e envelhecer a um só tempo,
em passar por todos os seus componentes ou
singularidades. O devir não é história; a história
designa somente o conjunto das condições, por mais
recentes que sejam, das quais desvia-se a fim de
“devir”, isto é, para criar algo novo. (DELEUZE,
1992, p. 211).
“Eu acho que a educação é que nem a moda, sempre vai e vem”
5
Por que mudar tudo?
1.1 – A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO DAS ALMAS
Sabemos que as transformações mundiais nas esferas política e econômica repercutem
de maneira profunda no campo da educação. A lógica mercantilista que atravessa o campo
5
Fala da Professora Rose em entrevista realizada em outubro de 2004.
27
educacional vem exigindo mudanças que vão desde a inserção de novas políticas
administrativas até modificações de conteúdos a serem trabalhados e habilidades a serem
exigidas dos alunos, com o objetivo de atender às demandas do mercado. Não queremos dizer
com isso que existe uma relação direta de causalidade entre políticas econômicas e sociais e
políticas educacionais. A escola não é uma correia de transmissão das políticas sócio-
econômicas governamentais, mas faz parte de uma engrenagem da qual ela é apenas um
componente. Com isso quero dizer que não existe separação entre escola e sociedade, visto
que a escola é um dos elementos essenciais, no mundo capitalista, de composição social. A
escola não é reflexo de uma conjuntura transcendente a ela, mas ela ajuda a conformar, a
produzir subjetividades que se coadunam com uma forma de pensar social em um
determinado momento. Podemos dizer que existem atravessamentos interpenetração,
articulação que penetram o campo educacional e o fazem funcionar de forma conservadora
ou criadora.
É bem verdade que ao longo do tempo os diversos governos nacionais acreditavam ser
necessário fazer mudanças e reformas nos sistemas de ensino para atender aos seus objetivos
políticos com respeito à educação. Por outro lado, a maioria dessas reformas encontrava-se
distante da realidade da comunidade escolar e pouco ou nada atendiam às demandas
educacionais. O que nos cabe analisar é o sentido e a direção que as reformas de ensino têm
tomado e que efeitos têm produzido nas práticas docentes.
Em 1998 foi implantado o projeto político-pedagógico do município de Chapecó, que
no ano anterior elegeu o primeiro prefeito do Partido dos Trabalhadores, na história da cidade.
Como em outros municípios nos quais o PT elegeu o prefeito, quase imediatamente foi
proposta uma nova organização do sistema de ensino
6
.
Se fizermos um passeio por vários momentos da história da educação brasileira,
veremos que várias reformas de ensino foram feitas a partir das sucessões dos políticos que
assumiam os governos nas três esferas.
Podemos observar que desde o início do movimento republicano a questão da
educação ocupa lugar central na preocupação dos futuros governantes do país.
A aproximação dos militares do exército com a classe média urbana (composta por
artesãos, bancários, funcionários públicos, advogados, médicos, estudantes, baixo clero,
6
A esse respeito, HECKERT (2004) examina a implementação dos projetos educacionais dos governos petistas
em Porto Alegre (Escola Cidadã), Belo Horizonte (Escola Plural) e Belém (Escola Cabana).
28
pequenos comerciantes, jornalistas) fez com que essa parcela da população se engajasse em
movimentos que defendiam a separação da Igreja do Estado, a reforma de ensino
7
, a reforma
eleitoral com o voto livre e censitário, a extinção do senado vitalício e a instalação de uma
federação que assegurasse a autonomia das províncias.
Um dos militares que mais contribuiu com a formação do pensamento dos
republicanos foi o coronel Benjamin Constant que influenciou a jovem oficialidade do
exército com suas idéias positivistas
8
, entre elas a da necessidade de “formar um espírito
republicano”. A esse respeito, José Murilo de Carvalho (1990) observa que desde a
Revolução Francesa para a necessária “reforma intelectual do homem” imprescindível para
a produção de uma mentalidade compatível com o futuro regime republicano a educação
(pública) torna-se uma ferramenta indispensável:
A manipulação do imaginário social é particularmente importante em
momentos de redefinição de identidades coletivas. Não foi por acaso
que a Revolução Francesa, em várias de suas fases, tornou-se um
exemplo clássico de tentativa de manipular os sentimentos coletivos
no esforço de criar um novo sistema político, uma nova sociedade, um
homem novo. Mirabeau disse-o com clareza: não basta mostrar a
verdade, é necessário fazer com que o povo a ame, é necessário
apoderar-se da imaginação do povo. Para a Revolução, a educação
pública significa acima de tudo isto: formar as almas. Em 1792, a
seção de propaganda do Ministério do Interior tinha exatamente este
nome: Bureau de l’Esprit.” (CARVALHO, 1990, p. 11) [grifo meu]
O período da Primeira República (1889-1930) é marcado, inicialmente, pela
expectativa de que o fim da monarquia trouxesse o tão sonhado desenvolvimento econômico e
social ao país. Com o passar dos anos a intelectualidade brasileira – composta principalmente
pelos filhos da burguesia que haviam se formado pelas idéias liberal-democráticas que
circulavam pela Europa e pelos Estados Unidos começa a perceber que a mudança de
sistema não era suficiente para trazer o desenvolvimento e as conquistas sociais estagnadas
durante o Império. A realidade sócio-política (desigualdade social, corrupção eleitoral,
arbítrio dos governantes, etc.) daquele período gerava insatisfação, inquietação e uma grande
indignação que, no entanto, não se traduzia em ação política concreta.
No Brasil, os intelectuais formados a partir de uma escola fundada nos
princípios da religiosidade católica e “re-formados” pela cultura da
7
Que até então era prerrogativa da Igreja Católica.
8
“O positivismo corrente filosófica desenvolvida por Auguste Comte na primeira metade do século XIX traz
como núcleo do seu pensamento a idéia de que a sociedade pode ser convenientemente organizada a partir de
uma reforma intelectual do homem(BASTOS, 1998, p. 67).
29
modernidade baseada no positivismo e justificada pelas teorias
evolucionistas, pretendendo diagnosticar e reinterpretar a realidade do
país, retratam-no como inculto, atrasado tecnicamente e conservador
nas idéias. Era necessário levá-lo à modernização, era preciso
conquistar a tão sonhada democracia, a igualdade e a justiça social
(...). A intelectualidade brasileira, apesar de sentir-se moralmente
responsável pela direção e condução da nação, sentia-se isolada, pois
vivia num país de analfabetos e seu conhecimento instrumental ainda
não podia ser utilizado devido ao atraso técnico em que o país se
encontrava. (BASTOS, 1998, p. 83)
Como meio de enfrentar os desafios para construir uma república democrática e justa,
os intelectuais brasileiros passam a apostar na escolarização universal e na educação formal.
Para eles era vital que a população participasse da vida política nacional, pois ainda havia o
risco de um retrocesso na forma de organização política brasileira a monarquia ainda não
estava “completamente enterrada”. Para que houvesse a participação da população, no
entanto, “era imperioso que a população fosse educada, pois somente através da educação o
povo atingiria a ‘maioridade racional’ e política” (BASTOS, op. cit., p. 84).
A escola e a educação passam, então, a ser um dispositivo que serviria para
testemunhar “a tese da igualdade social para todos e, ao mesmo tempo, para servir como um
processo seletivo na escolha daqueles que deveriam ascender socialmente e formar a classe
dirigente da sociedade, a partir de seus méritos e capacidades individuais” (BASTOS, op. cit.,
p. 83). Desde então, o pensamento hegemônico que alcança tanto os educadores quanto à
população em geral, baseado nos ideais liberais que afirma a igualdade de oportunidades e a
responsabilidade individual para o sucesso social, deposita na escola a esperança e a
responsabilidade de formar cidadãos capazes de, através do seu trabalho, contribuir para o
bom funcionamento da sociedade.
Dessa forma podemos entender a educação como um dispositivo, tal como nos indica
Foucault (1988). Para ele, dispositivo é
(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos.
(...) entre estes elementos, discursivos, ou não, existe um tipo de jogo,
ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também
podem ser muito diferentes.
30
(...) entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um
determinado momento histórico, teve como função principal
responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função
estratégica dominante. (p. 244)
Durante os primeiros anos da República a educação escolarizada ocupa lugar de
destaque nas discussões dos intelectuais e na capacidade de mobilização popular da
sociedade, materializando-se num movimento conhecido como entusiasmo pela educação
9
. O
movimento do entusiasmo pela educação reivindicava o aumento quantitativo da
escolarização das camadas populares e se caracterizava pela participação popular e das
entidades da sociedade civil nas campanhas de alfabetização.
Com o final da Guerra Mundial e os desdobramentos da Revolução Russa,
necessidade de uma modernização geral da sociedade brasileira. Isso provoca os educadores
brasileiros a pensar na relação entre a escola e a sociedade e suas implicações no futuro do
país. Assim, os educadores passaram a se envolver profundamente nas discussões sobre
políticas de educação modernizantes. Com suas necessidades de modernização e eficiência, a
década de 1920 favorece o nascimento de um novo movimento no meio educacional: o
otimismo pedagógico. O movimento do otimismo pedagógico visava à otimização do ensino
através da melhoria das técnicas didáticas e das ações pedagógicas e foi conduzido por
intelectuais ligados aos diversos órgãos de governo responsáveis pela educação.
As reformas de ensino no vel estadual se sucedem freneticamente:
1920 em São Paulo, 1922 no Ceará, 1924 na Bahia, 1927 em minas
Gerais e no Distrito federal. Cada estado procurava resolver no seu
âmbito de administração os problemas da educação. Empurrados pelo
otimismo pedagógico os intelectuais da educação começam suas
reformas pela escola primária e em seguida, como conseqüência,
partem para a reforma das Escolas Normais. As reformas desse
período são marcantes não só pelo conteúdo que introduzem, mas
também pela forma como são feitas. (BASTOS, 1998, p. 91)
Buffa e Nosella (1991) observam que os pensadores das décadas de 1920 e 1930
condutores das reformas educacionais da época, filiados aos princípios da Escola Nova, eram
marcados por um idealismo que se expressava de duas formas: evolucionismo econômico e
ingenuidade política:
9
Ghiraldelli Jr. (1990) observa os diferentes momentos pelos quais passou este movimento: num primeiro, entre
1887 e 1896, o movimento foi influenciado pela expectativa causada pela transição do Império e a República; no
segundo momento, de 1896 a 1910, o entusiasmo diminui em função da decepção com o sistema republicano; e
um terceiro momento a partir da segunda metade da década de 1910, marcado por intenso sentimento de
nacionalismo e ufanismo patriótico.
31
Ao lado da crença no desenvolvimento econômico, é apontada
também, uma forte dose de ingenuidade política que fazia com que os
educadores dessa época acreditassem no Estado, aceitando colaborar
com ele para viabilizar as propostas educacionais. (...) Para essa
ingenuidade política muito contribuiu o fato de as doutrinas
pedagógicas como a Escola Nova não explicitarem claramente sua
significação política (...). (BUFA & NOSELLA, 1991, pp. 65-66)
Os condutores das reformas de ensino daquele período consideravam que o
desenvolvimento econômico levaria ao fim das desigualdades sociais e fortaleceria a
democracia – fundamento e suporte do pensamento liberal da Escola Nova.
No entanto a visão idealista que afastava do campo pedagógico as análises políticas e
sociológicas, restringindo-o ao debate das questões técnico-administrativas e pedagógicas,
teve como efeito a produção de uma abordagem individualizante e pontual dos problemas da
educação nacional: as reformas foram feitas por cada um dos estados separadamente, cada
escola modificou o seu regulamento, cada turma era avaliada por suas características e cada
criança era tratada a partir das suas dificuldades. Assim foram abertos os caminhos para a
psicologização dos temas pedagógicos, e mesmo das questões sociais!
Jorge Nagle (1974) considera que o ideário escolanovista estava amplamente
disseminado no campo educacional brasileiro na cada de 1920. Analisando as reformas
educacionais iniciadas naquela década, Nagle destaca que houve uma ampla e progressiva
sistematização de um corpo doutrinário que permitiu que as reformas alcançassem desde as
estruturas (finalidade da educação, organização do espaço escolar, profissionalização dos
educadores, mudanças curriculares etc.) até o campo de ação dos serviços escolares (criação
de laboratórios de psicologia e pedagogia nas Escolas Normais, criação de gabinetes de
higiene mental e puericultura anexos às escolas, criação de creches, etc.). Para o autor, a
principal característica do movimento reformista foi ter substituído, pela primeira vez na
educação brasileira, um modelo político por um modelo pedagógico, de tal forma que “a
partir de determinado momento, estes princípios pedagógicos ganham tanta importância que
chegam a exceder a dos princípios políticos.” (NAGLE, 1974, p. 196). No entanto, ele
observa os efeitos da desvinculação da discussão dos temas educacionais e políticos:
As principais conseqüências daquele acontecimento foram a restrição
cada vez maior do campo de visualização do processo educacional, a
tentativa de segregá-lo de coordenadas histórico-sociais concretas,
pela pregação da “pureza” das instituições escolares, bem como a
justificação da predominância do “técnico” sobre o “político”, na
discussão e solucionamento dos problemas. Em resumo (...) a
32
oposição básica passa a ser entre a “escola tradicional” e a “escola
nova” (...). (NAGLE, 1974, p. 197)
Apesar desta tentativa de distanciar a educação das discussões políticas, consideramos
que é exatamente a partir de 1930 com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder que
podemos perceber a íntima relação entre as reformas de ensino e os interesses políticos dos
governantes nos debates sobre a educação.
1.2 – A ESCOLA NOVA E O ESTADO NOVO
O fim da chamada República Velha trouxe de novo a expectativa da população no
sentido de conquistar a democracia, o desenvolvimento econômico e acabar com as
desigualdades sociais tão evidentes na sociedade brasileira. Vargas atuou no sentido de
apaziguar as tensões causadas pelos diferentes interesses dos empresários e do operariado,
numa sociedade que começa a se industrializar. Para isso, entre outras medidas, adotou
medidas para financiar os produtores de café e facilitou a organização de sindicatos
“apolíticos”, voltados para as questões profissionais, na tentativa de apaziguar as relações
entre empresários e o operariado, e anular as influências dos pensamentos anarquista e
comunista que eram fortemente difundidas entre os trabalhadores. Com essa estratégia
ambígua e sedutora Vargas se aproximou e conquistou a simpatia dos trabalhadores da
educação.
Em 1931 um ano após o golpe de estado promovido pelo movimento tenentista o
presidente Getúlio Vargas e o ministro do recém-criado MESP (Ministério da Saúde e
Educação Pública) Francisco Campos participaram da IV Conferência Nacional de Educação.
Desde o final da década de 1920, a Associação Brasileira de Educação reunia os educadores
de todo o país para debater os grandes temas da educação nacional. Ao participar da abertura
da IV CNE (Conferência Nacional de Educação) que tinha como tema “As Grandes
Diretrizes da Educação Popular” Vargas “confessa que o novo governo, o ‘governo
revolucionário’ não possuía um projeto educacional para o país e conclamava os congressistas
a elaborarem o ‘sentido pedagógico da Revolução’”. (BASTOS, 1998, p. 104).
Havia naquele período quatro forças políticas que se contrapunham no campo
educacional brasileiro e todas elas se fizeram presentes na IV CNE. O primeiro grupo, e um
33
dos mais fortes, era o dos conservadores católicos que estavam descontentes com as reformas
de ensino ocorridas na década anterior; eram contrários às teses escolanovistas e contra a o
ensino laico. O segundo grupo, chamado de liberal, aglutinava os pensadores que defendiam
as teses da Escola Nova e pregavam a obrigatoriedade, a publicidade e a laicidade do ensino;
este grupo ficou conhecido como os “profissionais da educação” e terminaram por redigir o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O terceiro grupo se aproximava dos católicos,
mas seus membros mostravam-se ainda mais conservadores e organizavam-se como os
movimentos nazi-fascistas da Europa daquele período; eram contrários às melhorias
qualitativas nas escolas populares e opunham-se também à democratização das oportunidades
de escolarização para a maioria da população. ; eram conhecidos como integralistas. O
último grupo era formado por cidadãos oriundos das classes populares e fortemente
influenciado pelo pensamento do movimento operário; organizavam-se na ANL (Aliança
Nacional Libertadora) e ficaram conhecidos como aliancistas; defendiam as teses de
democratização do ensino, difundidas nos meios operários dos anos 20, apoiadas pelo Partido
Comunista do Brasil.
Os quatro grupos empenhavam-se em traçar as diretrizes educacionais para o projeto
de um “Brasil Novo”. Cada um a sua maneira pretendia contribuir para a melhoria da
educação. Na realidade, todos buscavam se tornar a força hegemônica capaz de construir as
diretrizes educacionais da Nova República. Os conservadores católicos e os liberais, tanto
quanto os governistas, pretendiam uma reforma dentro da ordem. Os integralistas e os
aliancistas sonhavam com uma nova ordem social: os integralistas sonhavam com um Estado
totalitário baseado nos princípios do nazi-fascismo; os aliancistas esperavam uma ordem
democrático-popular na perspectiva socialista.
Um dos efeitos da IV CNE foi a elaboração do Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, redigido em sua forma final por Fernando de Azevedo e divulgado em 1932.
Os signatários do Manifesto, fortemente influenciados pelas idéias elaboradas por
John Dewey para a sua “escola nova”, expressam sua divergência com a escola tradicional no
que diz respeito à formação do educando uma vez que esta considera que o aluno é modelado
exteriormente a partir da sobreposição ou acréscimo de conhecimentos fornecidos pelo
professor, enquanto a educação nova considera que o interesse e o desejo de conhecer partem
de dentro de cada aluno. A criança e sua personalidade passam a ser o eixo das ações
educativas na escola. Na escola nova “a atividade que está na base de todos os seus trabalhos,
34
é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio
indivíduo”. (GHIRALDELLI Jr., 1990, p. 50).
É interessante destacar que no Brasil, diferentemente do que ocorreu em outros países,
o ideário escolanovista se propagou muito fortemente nas redes públicas de ensino, uma vez
que os seus principais divulgadores eram aqueles responsáveis pelas reformas educacionais
que ocorreram nas décadas de 1920 e 1930.
O Período de 1937-1945 ficou conhecido como Estado Novo e marcou o período
ditatorial do primeiro governo Vargas. Entre 1942 e 1946 foram decretadas as leis orgânicas
do ensino chamadas de Reforma Capanema, o então ministro da educação – que ordenavam o
ensino primário, secundário, industrial e comercial. Para Ghiraldelli Jr. (1990) esta reforma
atendia às necessidades econômicas suscitadas pela crescente urbanização e pelo crescimento
do parque industrial brasileiro, e representava o caráter centralizador das políticas
governamentais. Assim, desde 1937 através da nova constituição brasileira, foram apontados
os caminhos que o Estado pretendia traçar para a educação: por um lado o Estado se
desobrigava da educação publica passando a ser dever da família (Artigo 125) e, por outro
lado obrigando-o a sustentar o ensino vocacional e profissionalizante para as classes
populares (Artigo 129).
O caráter centralizado e monolítico do governo possibilitou a
confecção das Leis Orgânicas do Ensino que, em última instância,
consagraram o espírito da Carta de 37 ao oficializarem o dualismo
educacional. E o que era o dualismo educacional? Era, nas letras da
Reforma Capanema, a organização de um sistema de ensino
bifurcado, com um ensino secundário público destinado às elites
condutoras e um ensino profissionalizante para as classes populares.
(GHIRALDELLI, Jr., op.cit., p. 84)
Atendendo a esses interesses foram criadas naquele período escolas para o ensino
industrial (SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), para o ensino comercial
(SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e lançadas as bases para a criação
do ISOP (Instituto de Seleção e Orientação Profissional).
A Lei Orgânica do Ensino Primário (1946), apesar de produzida no período ditatorial
do governo Vargas, resguardou os princípios do escolanovismo ao contrário da Lei
Orgânica do Ensino Secundário (1942) que “trouxe consigo todo um ranço ideológico
parafacista.” (GHIRALDELLI, Jr., op.cit., p86).
35
De fato, o receituário pedagógico escolanovista se fez presente nessa
legislação. A declaração de princípios que deveriam nortear a escola
primária foi toda de inspiração escolanovista. Falava em desenvolver
o ensino de modo sistemático e graduado segundo os interesses da
infância; colocava que o ensino deveria basear-se numa didática que
levasse em conta as atividades dos próprios discípulos; apoiar o ensino
nas realidades do ambiente; desenvolver o espírito de cooperação e o
sentimento de solidariedade social; procurar revelar as tendências e
aptidões dos alunos, etc.
(...) Assim, paradoxalmente o liberalismo pedagógico em sua vertente
escolanovista, acomodando-se ao regime ditatorial, ode sobreviver até
o período de liberalização após 45 quando voltou à tona
explicitamente em grande estilo. (GHIRALDELLI, Jr., 1990, pp. 85-
6).
1.3 – EDUCAÇÃO X COMUNISMO: RELAÇÕES
COMPLICADAS
A segunda Guerra Mundial, que sucedeu a crise e a depressão econômica dos anos 30,
promoveu uma reorganização dos países em torno da distribuição do capital financeiro e
bélico internacional, e da forma de organização política e econômica dos países. A divisão de
quase todos os países em dois grandes blocos OTAN, capitaneada pelos Estados Unidos e o
Pacto de Varsóvia, liderado pela antiga União Soviética provocou efeitos não apenas no
nível da produção material, mas também nos modos de produção de subjetividades.
Para vencer o “perigo comunista” os países aliados, em especial os países periféricos
do centro econômico capitalista representado pelos Estados Unidos, precisariam ter suas
economias fortalecidas e seus povos devidamente educados. Assim, no Brasil são produzidas
e fortalecidas políticas desenvolvimentistas irradiadas a partir das diretrizes dos governos
norte-americanos. Estas políticas têm como substrato filosófico o liberalismo e sua “fé” nas
capacidades individuais dos países e de cada homem. “Em sua nova roupagem, o pensamento
liberal se apresenta, no campo das ciências humanas, como o movimento do potencial e do
capital humano” (BASTOS, 1998, p. 127).
36
O Brasil conheceu na segunda metade da década de 1950, com o governo de Juscelino
Kubitschek, um período de estabilidade política e crescimento econômico
10
. Os “anos
dourados” nos quais se proclamava que o Brasil havia crescido “50 anos em 5”, deixaram
como herança a expectativa das classes médias urbanas ascenderem socialmente através do
aumento do nível de escolarização. Era preciso que as universidades brasileiras atendessem
aos sonhos dos pais das classes médias de terem um “filho doutor”.
A década de 1960 trouxe o declínio do crescimento industrial e com ele uma maior
dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Um título universitário aumentava as
chances dos jovens de conseguir um bom emprego e ascender socialmente. Por outro lado, o
governo populista de João Goulart tenha um grande interesse em promover uma ampla
alfabetização da população (especialmente da população adulta), uma vez que naquele
momento os analfabetos não tinham direito ao voto. Assim, enquanto nos grandes centros
urbanos as discussões sobre as necessidades educacionais da população giravam em torno do
aumento de vagas nas universidades a maioria delas públicas –, na região nordeste do país
floresceram os movimentos de educação e cultura popular que se dedicavam às campanhas de
educação e alfabetização de adultos.
Movimentos criados no início dos anos 60 como o Movimento de
Cultura Popular (MCP), no Recife, a Campanha de no Chão
Também se Aprende a Ler, em Natal, o Movimento de Educação de
Base (MEB), promovido pela Igreja Católica, o Centro Popular de
Cultura (CPC), da UNE e o Programa Nacional de Alfabetização
(PNA) os três últimos de âmbito nacional tinham como objetivo
fundador, promover e incentivar a educação de jovens e adultos,
contando com o apoio das bases comunitárias. (...) Os dirigentes
desses movimentos acreditavam que a valorização da cultura popular e
a extensão da oferta de alfabetização preparariam as classes populares
para o trabalho e colaboraria para construir uma consciência das suas
necessidades e da sua força. Com esses movimentos as lideranças
esperavam romper o ciclo miséria-analfabetismo-miséria e aproximar
a população das decisões que diziam respeito ao seu bem-estar; além
disso, procuravam demonstrar que a população era capaz de se
organizar para defender seus interesses... (BASTOS, 1998, p. 128)
Os governos militares que assumiram o poder central a partir do Golpe de 1964
tiveram que lidar com dois tipos de demanda no campo da educação: de um lado atendendo às
reivindicações das classes médias urbanas – que haviam desde o primeiro momento apoiado o
10
Não falamos de desenvolvimento econômico, visto que não houve uma mudança qualitativa na estrutura
econômica dos país com conseqüente redistribuição de renda, mas ao contrário houve uma aumento da produção
industrial com uma maior concentração da renda nas mãos da burguesia nacional.
37
golpe por aumento de vaga nas universidades; por outro lado, sufocando, reprimindo e
calando os movimentos populares por educação e cultura para as classes trabalhadoras.
O sistema escolar e a via da educação eram a mais fácil e segura forma de para
produzir e conformar intelectual e moralmente as novas gerações ao novo regime ditatorial.
Para Ghiraldelli Jr. (1990) “as reformas do ensino promovidas no período ditatorial
corresponderam a um esforço dos grupos coligados no chamado pacto político autoritário em
alinhar o sistema educacional pelo fio condutor da ideologia do ‘desenvolvimento com
segurança’” (p. 167).
Otaíza Romanelli (1994) observa que o aumento da demanda por educação e o
agravamento da crise do sistema educacional serviram, num primeiro momento, para justificar
uma série de acordos entre o MEC e a Agency for International Development (AID) os
acordos MEC-USAID
11
.
A autora afirma que houve um segundo momento no qual o delineamento de uma nova
política de educação visava não apenas adotar medidas práticas para enfrentar a crise do
sistema educacional:
Mais do que isso, o regime percebeu, daí para frente, entre outros
motivos, por influência da assistência técnica dada pela USAID, a
necessidade de se adotarem, em definitivo, as medidas para adequar o
sistema educacional ao modelo do desenvolvimento econômico que
então se intensificava no Brasil. (ROMANELLI, 1994, p. 196)
Para atender os interesses da classe média o presidente-general edita, através do MEC,
a Lei 5.540/68 que reformava a administração das universidades e aumentava o número de
vagas no ensino superior, além de conter a manifestação dos estudantes através do controle de
seus organismos representativos. Três anos depois, em 1971, foi editada a Lei 5.692/71
que reformaria o ensino de 1°e 2°graus e trazia como característica mais marcante a
profissionalização obrigatória no ensino médio. A profissionalização desse nível de ensino
complementava os objetivos da reforma universitária, pois ao se formar como técnico no nível
médio o estudante não necessitaria” ingressar na universidade; sua entrada no mercado de
trabalho era adiantada em alguns anos e as vagas das universidades ficavam reservadas para
11
Os acordos MEC-USAID foram assinados a partir de 1961, prevendo a reformulação das diretrizes da política
educacional brasileira. Tais acordos previam o assessoramento técnico para treinamento e aperfeiçoamento dos
profissionais de educação em todos os níveis (1º, e Graus), assessoramento para a reformulação
administrativa das universidades, criação e aperfeiçoamento de cursos técnico-profissionalizantes (nas escolas
rurais e urbanas), edição e distribuição de livros e outros materiais didáticos, suplementação com recursos e
pessoal para o quadro das escolas primárias, etc. Ver a respeito: Romanelli, 1994.
38
uma minoria que viria a se tornar a elite dirigente. Era a garantia da democratização das
oportunidades” de ensino e profissionalização: as oportunidades são iguais. Que vença o
melhor!
Estava concretizada a integração entre o sistema educacional e o plano global do
governo militar, o Plano Nacional de Desenvolvimento norteado e regido pela Doutrina de
Segurança Nacional.
Para garantir que as reformas implementadas seriam bem conduzidas e “aproveitadas”
pelos estudantes era preciso que as diretrizes “filosóficas” fossem transmitidas desde o início
da escolarização até o ensino superior. Com esse intuito foram criadas e tornadas obrigatórias
duas disciplinas: Educação Moral e Cívica no e graus e Estudos dos Problemas
Brasileiros (EPB) – nos cursos superiores.
Luiz Antônio Cunha (1985) observa que ao apresentar sua exposição de motivos para
a inclusão desta disciplina no currículo obrigatório, o ministro de guerra, general Costa e
Silva, ressaltam que a família moderna dissociada, na qual a mulher trabalha fora e não tem
tempo para cuidar da educação de seus filhos, expõe os jovens à influências e “insinuações
materialistas e esquerdistas”. O autor prossegue considerando que a nova disciplina viria
suprir a deficiência da educação familiar e faz uma ressalva:
Mas, ao contrário do que propunham os positivistas fundadores da
República, ela não deveria ser mais uma disciplina dos currículos
escolares. Ela deveria ser uma prática educativa visando formar nos
educandos e no povo em geral o sentimento de apreço à Pátria, de
respeito às instituições, de fortalecimento da família, de obediência à
Lei, de fidelidade ao trabalho e de integração na comunidade, de tal
forma que todos se tornem, em clima de liberdade e responsabilidade,
de cooperação e solidariedade humanas, cidadãos sinceros, convictos
e fiéis no cumprimento de seus deveres. (CUNHA, 1985, p. 74)
A maciça e competente produção de subjetividades que se consegue a partir da
introdução dessa disciplina nos currículos escolares, está perfeitamente adequada ao modelo
prescrito pela Lei de Segurança Nacional: desenvolvimento com segurança.
O “pacote” dos acordos MEC-USAID embrulhado em papel fino e com lindo laço
de fita trouxe em seu interior o “aroma” da Teoria do Capital Humano que preconizava que
a educação é o maior e mais importante investimento de uma sociedade, pois no final de um
ciclo produz mão-de-obra qualificada para o trabalho. Elaine Passos (1995) lembrando as
contribuições de Frigotto ressalta que a teoria do capital humano:
39
(...) vem se constituindo tanto como uma teoria do desenvolvimento,
quanto da educação. Teoria do desenvolvimento, ao eleger a
educação como fator preponderante à modernização do país e, como
fator de crescimento econômico, proporcionando, assim, uma
distribuição de renda, logo, um modo de solucionar a desigualdade
social. (...) Teoria da educação, porque a educação e as práticas
educativas são reduzidas a uma questão de métodos e técnicas, em
uma lógica instrumentalista e funcional, onde os parâmetros para
pensar a educação viriam do mercado de trabalho. Ao eleger métodos
e técnicas como o fator determinante da prática educativa, essa teoria
passa a fundamentar e a reforçar a tendência tecnicista em educação...
(PASSOS, 1995, p. 69).
Nesse sentido, a educação formal é concebida como um processo de acumulação de
capacidades e atitudes, e aquisição de um determinado volume de conhecimentos que
permitirão a capacitação para o trabalho. Os pressupostos da teoria do capital humano a
filosofia positivista e a economia clássica – são as vertentes complementares do ideário
liberal.
Coimbra (1995) chama atenção para o fato de que no Brasil, o ideário do capital
humano foi encampado e popularizado pelo IPES
12
– Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais –
com o objetivo de pressionar os governantes para uma reformulação da política educacional
baseada nos princípios desta teoria. A autora lembra, ainda, que muitos membros do IPES
tornaram-se ministros nos governos do pós-golpe, entre eles uma figura importantíssima do
regime militar, formado pela ESG e um dos formuladores da Doutrina de Segurança Nacional,
Golbery do Couto e Silva.
Segundo Ghiraldelli Jr. (1990), o IPES atuou antes de 1964 produzindo programas de
rádio e televisão, promovendo debates na imprensa, publicando e divulgando rios estudos
ligados aos temas nacionais, apontando os problemas e propondo soluções para resolver as
questões relativas ao desenvolvimento do país. Apesar de atuar nos meios universitário e
operário, sua maior penetração foi nas classes médias que aderiram com maior entusiasmo ao
seu discurso. Antes mesmo do golpe de 64, as ações do IPES conseguiram “desmanchar a
união entre liberais e educadores de esquerda” em torno da defesa da escola pública. Depois
de 64, o IPES passou a influenciar de forma mais efetiva a política de educação do país e ao
12
O IPES foi criado por empresários cariocas e paulistas e aglutinou em trono de si, executivos das
multinacionais, profissionais liberais, funcionários do governo e militares formados na ESG (Escola Superior de
Guerra), com o objetivo principal de combater as Reformas de Base propostas pelos partidos de esquerda e
encampadas pelo governo Goulart. Propunha disseminar no meio da sociedade civil a repulsa pela ideologia
nacionalista-desenvolvimentista e garantir o apoio ao esforço do “desenvolvimento com segurança”. Ver a
40
final dos anos 60 “responsabilizou-se diretamente pela organização de fóruns sobre educação,
no sentido de formular projetos de política educacional” (GHIRALDELLI Jr., op.cit., p. 168).
Em 1968, o IPES organizou um fórum que tinha como tema “A Educação que nos
convém”, no qual traça uma correlação direta entre educação e crescimento econômico,
promovendo a teoria do capital humano ao status de base teórico-científica para a política
educacional do governo. Como resposta às pressões populares e em obediência às diretrizes
indicadas por este fórum, o governo promove reformas no sistema educacional, a partir da
edição das Leis nº. 5.540/68 (do ensino superior) e 5.692/71 (do 1º e 2º graus), já citadas.
É interessante notarmos que a primeira das reformas do ensino superior chega
juntamente com a lei mais draconiana editada durante os governos militares, o Ato
Institucional nº5, de dezembro de 68 – o AI-5. Com o AI-5 e o subseqüente fortalecimento do
aparato repressivo baseado na Doutrina de Segurança Nacional (DSN) garantia-se o
desenvolvimento econômico através da internacionalização da economia, além de imobilizar
as oposições internas.
As produções teóricas dos cursos de Psicologia e Pedagogia, naquele período, se
adequavam e fortaleciam aos modos de produção de subjetividades hegemônicos:
(...) a teoria do capital humano, em sua lógica circular, em que a
educação determina as condições econômicas, e maiores condições
econômicas produzem maior nível educacional, revela muito mais
pelo que omite do que pelo que diz, isto é, sua visão de classe e o seu
papel de escamotear o modo capitalista de produção da existência e o
conflito de classes, transformado em uma relação entre os indivíduos
(PASSOS, 1995, p. 76).
No Brasil, as Teorias da Carência Cultural e da Marginalização Cultural circundavam
e reforçavam a teoria do capital humano e foram defendidas por muitos psicólogos e
pedagogos que a viam como uma resposta mais aceitável para responder aos questionamentos
sobre os motivos das desigualdades sociais e as dificuldades de aprendizagem dos filhos das
classes populares. Criticando as teorias deterministas que afirmam que a capacidade
intelectual é dada por características geneticamente determinadas, imutáveis e, portanto,
naturais, Patto (1977)
13
aposta nas teorias interacionistas que não abandonam as “tendências
respeito Ghiraldelli Jr. op.cit, pp. 167-8 e Souza, Maria Inês Salgado de. Os Empresários e a Educação: o
IPES e a política educacional após 1964, Petrópolis, Vozes, 1981.
13
É bem verdade que em seus livros posteriores (1984 e 1990) a autora fará uma revisão critica sobre a teoria da
carência cultural e as implicações dela decorrentes, mas nos anos 70 Patto publica um livro Privação cultural
41
naturais”, mas dão maior relevância – na verdade as equalizam – às influências ambientais. A
autora admite que as crianças das classes baixas possuam algum saber, mas que este não é o
saber requerido para o processo de aprendizagem nas escolas. A dificuldade das crianças
pobres é que elas são “carentes” do saber e das atitudes necessárias para o processo de
alfabetização. Os teóricos do ambientalismo, ou interacionismo, destacam a importância do
papel da família e do ambiente nas experiências das crianças nos seus primeiros anos de vida;
para eles, as experiências vividas pelas crianças nesse período serão determinantes para um
bom desenvolvimento cognitivo e psicológico, de uma maneira geral
14
.
Juntamente com as teorias, acima citadas, uma nova proposta de técnica pedagógica
foi importada dos Estados Unidos. A Abordagem Tecnicista em educação chega ao Brasil no
final da década de 60 e diz respeito à tentativa de “salvar” o sistema educacional brasileiro de
sua condição de ineficiência e baixa produtividade. Sua relação com a teoria do capital
humano é flagrante, pois o investimento da sociedade em educação deveria render
desenvolvimento, mas para isso, era preciso que técnicas modernas e “cientificamente
comprovadas” fossem aplicadas no âmbito pedagógico: “Daí, a ênfase dada à “modernização”
e “tecnificação” da educação, ou seja, a aplicação no ensino do que já vinha ocorrendo nos
países mais desenvolvidos: as técnicas e as máquinas que haviam produzido ótimos resultados
no desempenho industrial” (COIMBRA, 1990, p. 13).
A modernização implicava pressupostos como objetividade, racionalidade e
neutralidade, entendidos como condição básica de cientificidade. Concentrando-se nesses
princípios, as indústrias e as escolas alcançariam seus objetivos de produtividade, eficiência, e
conseqüentemente, controle. Tal controle, entretanto, não dizia respeito apenas ao produto
final obtido com o processo educacional, mas também às formas de organização e distribuição
do processo de trabalho; a vigilância sobre os modelos de produção se instala no meio
pedagógico. Como ressalta Coimbra (1990):
As escolas se organizam “racionalmente” (se burocratizam), não para
que sua produtividade seja maior, mas para que o controle possa ser
melhor exercido. Assim como nas fábricas isso era desejável em
relação aos operários, também nas escolas tal esquema passa a ser
hegemônico. Toda a política educacional brasileira é dirigida por
esses pressupostos “científicos”, “objetivos”, “racionais” e “neutros”.
(p. 14)
e educação pré-primária que estava bem de acordo com o momento político-social-científico pelo qual o país
passava.
14
A esse respeito ver BASTOS, 1998.
42
As características de controle e vigilância que norteavam e marcavam a perspectiva
tecnicista estavam bem de acordo com o momento político do país e serviam perfeitamente à
Doutrina de Segurança Nacional, num momento em que a ordem era controlar os movimentos
populares.
Racionalidade e objetividade, a fim de alcançar eficiência e maior produtividade,
passam a nortear tanto o pensamento empresarial quanto o educacional. Os princípios são os
mesmos, pois o tecnicismo em educação “é o resultado de uma transposição para a educação
da Teoria Geral de Administração formulada por Frederick W. Taylor no início do século, da
Teoria Geral dos Sistemas e do behaviorismo skinneriano” (PASSOS, 1995, p. 88).
Os princípios tayloristas serviam muito bem ao controle que os governos militares
pretendiam exercer sobre as condutas dos cidadãos, não apenas no âmbito do trabalho, mas
também no seu convívio social. Mapear as ações individuais e coletivas como estratégia de
guerra para melhor controlar e combater o inimigo. Uma das estratégias mais utilizadas era a
infiltração de “espiões” nas universidades, escolas, fábricas e repartições públicas, partidos e
organizações políticas clandestinas, etc.
A Teoria Geral dos Sistemas adequava e descrevia a função da escola como a
transmissora dos valores dominantes e considerados os mais adequados. Nesse sentido, como
foi comentado, algumas disciplinas como Moral e Cívica, OSPB e EPB cumpriram papel
fundamental. Ao mesmo tempo, dentro da própria escola, se estabeleceria a divisão e
gerenciamento do trabalho nos moldes tayloristas.
O comportamento operante considerado por Skinner, respondia de forma satisfatória
às expectativas promovidas pela Teoria da Carência Cultural sobre a relevância dos
estímulos externos na obtenção de determinados comportamentos tidos como desejáveis. Ao
mesmo tempo, respaldava a prática dos governantes às “boas respostas” correspondiam
prêmios; às “más” correspondiam punições que variavam das expulsões das escolas e
universidades, demissões de trabalhadores, até punições mais severas como exílio, prisão,
tortura, morte ou desaparecimento.
Os efeitos produzidos pela aproximação dos princípios das teorias citadas, com os
profissionais da educação deixaram marcas profundas em todo o sistema educacional e nas
práticas desses profissionais. A orientação empresarial dada à educação implicou na adoção
acrítica dos pressupostos de cientificidade, racionalidade e objetividade. A neutralidade
requerida por eles incluía a despolitização das ações pedagógicas.
43
A organização racional” (ou burocrática?) da escola era uma exigência para que a
administração e o gerenciamento fossem os mais adequados e eficientes. Para isso era
necessária a formação de “gerentes especializados” nas várias funções pedagógicas:
Decorre daí o parcelamento do trabalho pedagógico com a
especialização de funções dentro da escola. É nesse quadro que se
inscrevem os ‘especialistas em educação’, cujos saberes dominam nos
estabelecimentos de ensino a partir de então. O próprio
direcionamento do curso de pedagogia, após a reforma universitária de
1968, prevê a existência desses técnicos, pois foram criadas três áreas
de especialização: orientação, supervisão e administração
(COIMBRA, 1990, p. 14).
A criação de três áreas de especialização no nível gerencial das ações pedagógicas não
se limita a uma facilitação do trabalho dos profissionais envolvidos, mas inscreve-se numa
lógica muito mais ampla e abrangente da divisão social do trabalho.
1.4 – AS MINORIAS
15
: MOVIMENTOS INSTITUINTES EM
EDUCAÇÃO
Essa questão, da minoria, nos remete a um dos conceitos fundamentais no campo da
Análise Institucional a idéia de movimento instituinte. Podemos dizer que para os teóricos
do institucionalismo existiriam dois movimentos na produção de uma instituição: por um
lado, o instituinte que se apresenta como um movimento de forças que pretendem a
desestabilização de formas cristalizadas de organização e funcionamento de um grupo social
buscando sua transformação e a criação de novos modos de vida; por outro lado, o instituído
que representa o conjunto de normas que regem uma organização social que tendem a se
estabilizar e se cristalizar podendo produzir imobilismo e fixidez.
O instituído não deve ser entendido como algo natural e imutável, mas
como um equilíbrio momentâneo mesmo que por um período
prolongado – de forças que buscam tornarem-se hegemônicas. A
institucionalização enquanto processo, por sua vez, seria luta entre as
forças instituídas e instituintes, ao mesmo tempo contra a auto
dissolução e a transformação. (BASTOS, 1998, p. 119).
15
Minoria não significa aqui, apenas um número menor, mas a oposição a um modelo – da maioria – ao qual nos
devemos conformar. Minoria, aqui, se refere a um movimento que, mesmo sem se querer hegemônico deseja se
afirmar como possibilidade, como diferença.
44
Certamente não entendemos o movimento instituinte como algo bom em si mesmo,
mas como uma possibilidade de criação em campos onde, às vezes, parece só existir
regularidade, calmaria e mesmice.
Embora houvesse ampla hegemonia de um pensamento conservador no campo
político, que se refletia no campo da educação produzindo subjetividades
individualizantes
16
, não podemos deixar de mencionar alguns movimentos e idéias que
fervilhavam e eram debatidos nos meios acadêmicos e sociais, ainda que de forma censurada
e clandestina. A estes movimentos, práticas e idéias estamos chamando de movimentos de
resistência como processos de singularização.
Pensando a subjetividade como produto de uma luta de forças que constituem os
sujeitos em cada momento histórico, podemos entendê-la como pluralidade e multiplicidade,
não sendo, portanto, passível de totalização e “fechamento”. Sendo multiplicidade e
pluralidade em sua constituição-produção, as subjetividades
(...) circulam nos conjuntos sociais podendo ser apropriadas de forma
criativa, produzindo singularizações.
Singularizar, portanto, está no domínio da ruptura, da afirmação da
potência, do escape do que está naturalizado, separado de seus
movimentos de produção. Singularizar é inventar, criar outros
modos de existência que não sobrecodifiquem as experiências.
O que caracteriza tal processo de singularização é sua capacidade de
se automodelar, isto é, de captar os elementos da situação que
construa suas próprias referências teórico-práticas. (BARROS, 1994,
p. 9) [grifo meu].
No campo da educação se produziam “teorias alternativas” para fazer frente aos
modelos educacionais oficiais. A seguir veremos, sucintamente, alguns deles.
Ghiraldelli Jr. (1990) considera que existiram três grandes linhas de estudos e práticas
pedagógicas a serem destacados: no primeiro grupo, filiado ao pensamento liberal,
encontramos o escolanovismo piagetiano, o não-diretivismo e o tecnicismo pedagógico; num
segundo grupo se incluiriam os autores e as idéias que buscavam escapar do pensamento
liberal e aproximar-se do pensamento socialista, tais como o escolanovismo popular, as
16
Regina Barros (1994) lembra que a noção de subjetividade “... não se situa no campo individual, mas no
campo de todos os processos de produção social e material. A individualização da subjetividade, entendemos, é
simplesmente um caso de agenciamento, dentre outros possíveis. A subjetividade é, portanto, produzida. (...)
As subjetividades do tipo indivíduo são, assim, efeitos da serialização capitalísticas que investe o desejo como
sendo do indivíduo e o social como sendo algo exterior a si mesmo...” (p. 9).
45
teorias de desescolarização, as teorias antiburocráticas e as teorias crítico-reprodutivistas.
Ainda num terceiro grupo, aparece com destaque a concepção histórico-crítica, que teria o
mérito de descolar-se totalmente do pensamento liberal e superar as teorias crítico-
reprodutivistas. Trataremos de abordar de forma bem sucinta e a partir da ótica do autor, as
teorias mais conhecidas e debatidas daquele período. A apresentação e as críticas às teorias
que serão aqui apresentadas, foram elaboradas por Ghiraldelli Jr. (1990), mas são por mim
compartilhadas em sua maior parte.
Segundo este autor os textos e principais fundamentos da teoria piagetiana foram
amplamente divulgados e conhecidos no meio educacional entre os anos 60 e 80. Também os
textos críticos e/ou comentados dos principais tradutores do autor, refletiam uma tentativa de
transportar e aplicar no campo da educação, as teorias da psicologia e epistemologia genética
de Jean Piaget. Destacando-se entre as demais publicações, encontramos os livros “Didática
Psicológica” de Hans Aebli e “A Escola Secundária Moderna” de Lauro de Oliveira Lima.
Sobre o não-diretivismo, o autor destaca a contribuição da psicologia de Carl Rogers,
ressaltando, no entanto, que a grande “estrela” da literatura pedagógica sobre o tema era o
livro “Liberdade sem Medo”, no qual A. S. Neill relata as experiências práticas e teóricas,
vividas em sua escola Summerhill, na Inglaterra. Para Neill a escola “deveria estar mais
voltada para o cuidado com as relações interpessoais e menos preocupada com a problemática
da apreensão dos conteúdos” (Ghiraldelli Jr., op.cit., p. 198). O autor destaca ainda que o
não-diretivismo foi interpretado por grande parcela do professorado brasileiro como uma
teoria que se opunha ao tecnicismo pedagógico, reconhecido como a pedagogia oficial.
“Assim, o debate diretivismo versus não-diretivismo manifestava em relação ao trabalho
didático a problemática do autoritarismo versus não-autoritarismo colocada na sociedade”
(GHIRALDELLI Jr., idem).
Coimbra (1995) destaca que esta corrente foi amplamente difundida no meio
educacional nos anos 70. Objetivando a modernização da educação, os defensores desta
corrente enfatizavam os aspectos técnico-psicológicos, preocupando-se com técnicas e
métodos que melhorassem as relações interpessoais (professor/aluno, professor/especialistas
educacionais, etc.) e o processo de aprendizagem, acompanhados de um “verdadeiro
crescimento pessoal”. Para isso, o chamado “aconselhamento não-diretivo” preconizado por
Rogers, defendia que a postura dos profissionais envolvidos nesse processo fosse a de
“facilitador” do desenvolvimento humano.
46
Nos grupos que seguiam a orientação rogeriana, as técnicas de dinâmica de grupo
buscavam ressaltar os aspectos igualitário e democrático que deveriam nortear o
funcionamento grupal no intuito de melhorar o entendimento e a compreensão de si mesmo e
do outro, na busca de melhores relações interpessoais, no ambiente de trabalho
Embora tivesse um caráter mais democrático” e menos opressor, o não-diretivismo
em pouco se diferenciava das outras teorias ligadas ao pensamento liberal, uma vez que
localizava nos sujeitos individuais as respostas para uma boa convivência social e um melhor
aproveitamento no processo de aprendizagem.
Se por um lado as técnicas do “não-diretivismo” aparecem como democratizadoras das
relações grupais, por outro, o fato de as atividades serem dirigidas por um especialista
psicólogo ou não, dono de um “poder” fundado no seu “saber” – faz com que os participantes
do grupo o possam agir de forma espontânea na busca de novas formas de relacionamento
com os demais. Existe uma normatização dos comportamentos no grupo: os sujeitos devem
ser honestos, autênticos e espontâneos.
No grupo do escolanovismo popular podemos encontrar o que o autor chama de “duas
distintas e originais versões da Pedagogia Nova: a pedagogia Freinet e a Pedagogia
Libertadora” (GHIRALDELLI Jr., 1990, p. 200). Para este autor, enquanto a Pedagogia
Freinet lutava contra a pedagogia tradicional introduzindo métodos ativos como a imprensa
escolar e a produção de textos livres e adotando o trabalho como princípio educativo, a
Pedagogia Libertadora se caracterizava como uma “pedagogia da conscientização” e era
amplamente discutida e utilizada pelos grupos que trabalhavam com a educação de adultos e
educação popular, em especial entre os educadores que militavam nas Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs).
Ghiraldelli Jr. (op.cit.) arrola como autores representativos desta corrente de
pensamento os nomes de Paulo Freire e Maria Tereza Nidelcoff. Segundo o autor, o livro de
Freire “Pedagogia do Oprimido” publicado em 1970, teve sua 15ª edição em 1985; o de
Nidelcoff “Uma escola para o povo” foi publicado em 1978 e, em 1985, contava com 24
edições. Por esses números podemos perceber a divulgação e a relevância que esta corrente
de pensamento alcançou entre alguns segmentos dos meios educacionais no final dos anos 70
e nos 80.
Uma outra corrente de pensamento que procurava criticar a pedagogia e a escola
tradicionais e embora não conseguisse construir uma proposta alternativa a elas
47
organizou-se num conjunto teórico conhecido como teorias crítico-reprodutivistas. O autor
considera que, apesar das diferenças, os autores crítico-reprodutivistas defendiam que “à
escola formal restava o papel de reprodutora da sociedade de classes, reforçadora do modo de
produção capitalista e, por isso mesmo, repressora, autoritária e inculcadora da ideologia
dominante” (GHIRALDELLI Jr, 1990, p. 202).
Os autores agrupados nesta corrente terminaram por compor, segundo o autor, uma
espécie de antipedagogia e, cada um a seu modo, influenciados pelas teses marxistas,
buscaram romper com a educação tradicional.
Os principais autores, seus livros e suas idéias podem ser assim resumidos : 1) Jean
Claude Passeron e Pierre Bourdieu escreveram “A reprodução” e consideravam a escola como
um aparelho reprodutor das relações sociais de dominação, sem levar em consideração a
dinâmica da luta de classes; 2) Roger Establet e Christian Baudelot lançaram “L’ecole
capitaliste em France” que teve um de seus capítulos traduzido e publicado pela revista
Tempo Brasileiro em 1974 –, no qual reconhecem a existência da luta de classes, embora,
para eles, esta envolvesse apenas a sociedade, “sendo que a escola apartada da sociedade,
serviria como instrumento da burguesia na luta contra o proletariado”; 3) Louis Althusser
defendia em “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado” que apesar de a luta de classes
poder se instalar no interior de um Aparelho Ideológico de Estado (AIE) considerava a
escola como um AIE –, “segundo tal teoria seria muito difícil uma reversão quanto a
dominação, ou qualquer alteração no status quo” (GHIRALDELLI JR, op.cit., pp. 203-4)
17
.
Para o autor,
As teorias crítico-reprodutivistas, de maneira sistemática e organizada,
forneceram à intelectualidade um instrumental capaz de desmistificar
a idéia de que a educação (ou a escola) teria um poder de intervenção
nas tramas sociais capaz de corrigir as injustiças e obter equalização
social. Tais teorias foram muito bem aceitas pelos cientistas sociais e
economistas de esquerda, que passaram a demonstrar o fenômeno
educativo a partir de seus condicionantes sociais (p. 202).
A respeito da importância das teorias crítico-reprodutivistas para o pensamento
educacional daquele período, Patto (1990) considera que a apropriação destas idéias se deu de
forma deturpada e comprometida, pois
17
Alguns outros autores fazem críticas que ressaltam outros aspectos da contribuição que estes autores franceses
deram para uma discussão progressista sobre a escola e a educação. Cf. Patto, 1984.
48
... a convivência da teoria da reprodução com a convincente teoria da
carência cultural, aliada a uma concepção positivista de produção de
conhecimentos, resultou em distorções conceituais que levaram a
aplicação da concepção da escola como aparelho ideológico de Estado
a descaminhos teóricos (p. 11).
Para a autora, o conceito de dominação” central naquela teoria deixa de ser
entendido como a face cultural da exploração econômica, para ser utilizado como uma
imposição da cultura da maioria sobre uma minoria. Nesse caso a solução proposta seria uma
acomodação, uma socialização dos valores das classes dominantes. Também no caso da
interpretação da relação escola-sociedade, numa sociedade de classes, a explicação passa a ser
dada através de uma suposta dificuldade de comunicação entre professor e aluno, divergindo
significativamente dos princípios das teorias reprodutivistas.
Ao mesmo tempo, Patto (1990) considera que as teses crítico-reprodutivistas tiveram
papel importante na mudança do pensamento educacional brasileiro:
Em primeiro lugar, colocou em foco a dimensão relacional do
processo de ensino-aprendizagem, abrindo espaço para a percepção da
importância da relação professor-aluno numa época em que
predominava uma concepção tecnicista do ensino (...). Em segundo
lugar, chamou a atenção para dominação e a discriminação social
presentes no ensino, mesmo que nesse primeiro momento os
pesquisadores tenham definido equivocadamente os interesses em
jogo e as classes sociais envolvidas na dominação. Em terceiro lugar,
tornou mais próxima a possibilidade da educação escolar ser pensada
a partir de seus condicionantes sociais, contribuindo, assim, para a
superação do mito da neutralidade do processo educativo e abrindo
caminho não para uma melhor compreensão posterior das próprias
idéias reprodutivistas como para a incorporação de teorias que
permitiram inserir a reflexão sobre a escola numa concepção dialética
da totalidade social (p. 117).
As teorias de desescolarização e antiburocráticas, também listadas por Ghiraldelli Jr.
(1990), engrossaram a corrente de pensamento que juntamente com o escolanovismo popular
e as teorias crítico-reprodutivistas buscaram se opor e se tornar uma opção à pedagogia
oficial-institucionalizada. Tentando se afastar do pensamento liberal oficial princípio
filosófico e gerencial da educação nacional sem, no entanto, superá-lo, as teorias de
desescolarização e as antiburocráticas pretendiam valorizar outras formas de organização
escolar que não a oficial.
O principal representante das teorias de desescolarização foi Ivan Illich que teve seu
livro “Uma sociedade sem escola”, publicado no Brasil no início dos anos 70 que
49
“decretavaque uma educação democrática só poderia se desenvolver fora da escola, uma vez
que esta (a escola pública universal e oficial) era fruto da sociedade capitalista
industrializada. Para ele as populações pobres dos países subdesenvolvidos, foram levadas a
acreditar que somente a escola capitalista promoveria o progresso. Em oposição e como
alternativa à educação tradicional das escolas oficiais, Illich pregava que as bibliotecas,
laboratórios, centros de pesquisas e seus instrumentos (como também todo o material de
ensino) deveriam ser colocados à disposição da população e liberados para o uso de qualquer
pessoa que desejasse ensinar e/ou aprender hoje em dia os defensores do uso da Internet na
educação acreditam pode cumprir essa função. Somente dessa forma, acreditava ele, haveria
democracia na educação. No Brasil, num momento em que o discurso oficial elevava o país
de uma categoria de subdesenvolvido para uma de “país em desenvolvimento”, “o
instrumental fornecido por Illich, de certo modo, pareceu ser interessante às esquerdas que
desejavam desmistificar o discurso oficial”. Miguel Arroyo foi um dos maiores defensores
das teses illichianas e defendeu formas alternativas de educação, “aproximando as teses de
Illich com os desejos dos Movimentos de Educação Popular inspirados no clima deixado pelo
MEB, MCPs e CPCs dos anos 60” (GHIRALDELLI Jr., 1990, pp. 202-3)
18
.
Ainda na década de 70, alguns pensadores brasileiros procuraram construir uma sólida
crítica às organizações burocráticas, em especial à escola oficial. Para isso, organizaram um
embasamento teórico-técnico (científico) para os princípios políticos da Pedagogia Libertária.
Maurício Tragtenberg (1978) procurou recuperar o pensamento pedagógico anarquista e
discutir o papel da escola enquanto uma instituição burocrática. Apesar de construir seu
pensamento sobre as bases do pensamento weberiano e do marxismo heterodoxo, Tragtenberg
superou os teóricos crítico-reprodutivistas ao introduzir os princípios da Pedagogia Libertária
nos meios universitários, suscitando discussões sobre autogestão do ensino, autonomia
individual, solidariedade operária, educação gratuita, total liberdade sindical, etc. Deste
modo, Tragtenberg colocou a Pedagogia Libertária “novamente no plano do pensamento
progressista e de esquerda e, portanto, diferenciando-a das pedagogias libertárias não-
progressistas como no caso das pedagogias não-diretivas de Rogers e especialmente de
A.S.Neill” (GHIRALDELLI Jr., op.cit., p. 204).
18
Segundo os autores da análise institucional francesa, o pensamento defendido por Illich no campo da educação
se liga e corresponde ao movimento da anti-psiquiatria dos ingleses Laing e Cooper que tinham como proposta a
desospitalização dos doentes mentais e a criação de centros de convivência nos quais estes doentes pudessem
interagir com a comunidade.
50
Com maior destaque, o autor apresenta as contribuições de Dermeval Saviani (1978)
para os debates sobre reformas e organização de uma política educacional voltadas para os
interesses e necessidades das classes trabalhadoras, colocando-o como o grande teórico da
Concepção histórico-crítica.
Embora os principais estudos e publicações de Saviani tenham sido desenvolvidos e
divulgados com maior intensidade no final dos anos 70 e principalmente durante as décadas
de 80 e 90, abordaremos aqui sua participação num momento de ebulição política e grande
transformação na organização dos movimentos sociais a partir da segunda metade dos 70.
Ghiraldelli Jr. (1990) argumenta que a multiplicação dos cursos de pós-graduação,
fomentados pela política governamental que pretendia criar uma elite de pesquisadores,
professores e especialistas em educação, trouxe como contrapartida uma discussão mais
ampliada e possibilitou uma crítica mais contundente sobre os destinos da educação nacional
e sobre o compromisso dos educadores com as camadas mais desfavorecidas da população. A
reflexão sobre o ensino tornou-se mais sistemática, ao mesmo tempo em que nos fóruns de
discussão mais ampliados (nas reuniões anuais da SBPC e nos encontros da Associação
Nacional de Educação – ANDE) os debates se tornavam mais carregados de conotação
política e passou-se a defender, publicamente, o ensino público, gratuito, laico e de boa
qualidade como haviam feito os pioneiros educadores progressistas nos anos anteriores à
ditadura militar. A ANDE, o CEDES (Centro de Estudos Educação & Sociedade), e a
ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação) organizaram vários encontros
nacionais, a partir de 1980. “Retomou-se, portanto, ao nível nacional, e no interior da
sociedade civil, um espaço de crescente participação e fluição de idéias no campo
educacional” (GHIRALDELLI Jr., op.cit., 205). O autor ressalta que este momento, rico e
conturbado, foi uma campo propício aos estudos e à produção teórica:
Todo esse clima de ebulição ideológica, geralmente próprio dos anos
finais de qualquer regime político, gerou um saldo de produção teórica
riquíssima no campo educacional. O pensamento marxista no Brasil,
carente de aprofundamento sistemático, foi reativado e,
especificamente no campo pedagógico, veio dar contribuições
decisivas para vislumbramento de possíveis saídas para impasses da
teoria educacional (Ghiraldelli Jr., idem).
Em meio a todo esse clima de grande produção teórica no campo educacional, Saviani
faz uma releitura, e uma adaptação para o caso brasileiro, das obras de Georges Snyders e de
Mário Manacorda. A partir de um referencial teórico-metodológico marxista, Saviani
51
provocou uma reviravolta no pensamento pedagógico brasileiro ao fazer análises originais
das questões da Política, da Filosofia, da História e Historiografia e da Economia da
Educação, além da Teoria Didática.
Em seu texto, Ghiraldelli Jr. (1990) destaca o artigo “Tendências e Correntes da
Educação Brasileira” no qual Saviani (1983) descreve quatro grandes correntes da Filosofia
da Educação nacional: a Concepção Humanista Tradicional, a Concepção Humanista
Moderna, a Concepção Analítica e a Concepção Dialética esta última foi renomeada como
Concepção Histórico-crítica
19
.
Três contribuições importantes do pensamento de Saviani são ressaltadas por
Ghiraldelli Jr (op.cit.): a primeira, situada no campo da Filosofia da Educação, diz respeito ao
entendimento daquele autor sobre o espaço e a relevância que a categoria “luta de classes”
detém nas discussões no campo educacional; a segunda, abordando criticamente a política
educacional, refere-se à contraposição entre política econômica e políticas sociais; a terceira,
no âmbito da Economia da Educação, é a formulação de hipóteses para solucionar o impasse
estabelecido entre educação escolar e processo produtivo. Apresentaremos de forma sucinta e
através do seu próprio texto, a maneira como o autor entende as contribuições dadas por
Saviani ao debate sobre as questões educacionais que estavam em maior evidência no início
dos anos 80.
No campo da Filosofia da Educação Ghiraldelli Jr. (op.cit.) ressalta que:
Explicitando as insuficiências das teorias pedagógicas liberais, que
chamou de não-críticas, Saviani superou também os críticos-
reprodutivistas. A partir de uma análise onde a categoria luta de
classes se mostra presente objetivamente na realidade e em particular
na trama relativa aos fenômenos educacionais, Saviani pôde dar um
passo decisivo para além dos críticos-reprodutivistas. (...) Entendendo
a escola como um campo de batalhas políticas e político-pedagógicas,
Saviani requalificou o trabalho do magistério enquanto atividade
objetiva, que é um saber/fazer político ideológico inserido na ‘luta
pela socialização da cultura sob hegemonia burguesa versus
hegemonia operária’. Caberia, portanto, pender a balança para o pólo
19
Ghiraldelli Jr. ressalta que a partir deste trabalho, outros autores se debruçaram sobre o tema e desenvolveram
estudos sobre as relações entre as características político-ideológicas e didáticas das diversas pedagogias, no
intuito de melhor compreender a realidade educacional. “Assim, um importante texto publicado na primeira
metade dos anos 80 foi o de José Carlos Libâneo, com o título ‘Tendências pedagógicas na prática escolar’ (...)
Esse texto teve grande influência junto ao professorado dos grandes centros. (...) José Carlos Libâneo agrupou
as pedagogias em dois conjuntos: as liberais (tradicional, renovada progressista, renovada não-diretiva,
tecnicista) e as progressistas (libertadora, libertária e crítico-social dos conteúdos).(Ghiraldelli Jr., op.cit., p.
207)
52
proletário, em favor da hegemonia operária.” (GHIRALDELLI Jr.,
op.cit., p. 205-6)
No âmbito da Política Educacional, o autor destaca um texto de Saviani “A política
educacional no conjunto das políticas sociais” apresentado em 1984 na III Conferência
Brasileira de Educação como sendo representativo de sua análise crítica sobre o tema. Para
ele, neste texto,
Saviani mostrou a contraposição entre a política econômica e a
política social num Estado capitalista, sendo que a primeira estaria a
serviço da exploração capitalista e a segunda como contrapeso à
exploração, de maneira a não deixar que o modo de produção
capitalista pudesse se inviabilizar através de um esgotamento
completo da mão-de-obra (GHIRALDELLI Jr., 1990, p. 208).
Ghiraldelli Jr. (op.cit.) reconhece como significativo o livro de Saviani, publicado em
1984, sob o título “Ensino público e algumas falas sobre universidade” que trata de questões
de Economia da Educação, e no qual sugere importantes interpretações sobre o processo
“evolutivo” da educação escolar no sistema capitalista. Para o autor:
Grosso modo, segundo Saviani, a escola não seria necessária para o
desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo pelas suas
possibilidades de fornecer um ensino técnico-especializado. Para tal,
as empresas forjaram seus próprios sistemas e métodos. A escola
pública universal teria crescido e tenderia a crescer ainda mais, à
medida que sua necessidade se colocasse no plano de uma agência
socializadora de conhecimentos básicos gerais, propiciadores de uma
maior integração do homem na sociedade urbano-industrial.
Contraditoriamente, essa escola, justamente nos centros mais
avançados, chegou até o trabalhador fabril, colaborando na preparação
do operariado não para a cidadania burguesa, mas sim, também,
para uma instrumentalização teórica possibilitadora de lutas sociais
mais organizadas e até mesmo de participação política mais radical
(GHIRALDELLI Jr., idem).
Pareceu-nos importante destacar estas contribuições de Saviani, uma vez que tais
questões continuam sendo amplamente debatidas no meio educacional. Em especial, a análise
feita pelo autor sobre este aspecto da Economia da educação, pois, como veremos adiante, o
papel da escola no processo produtivo é uma questão fundamental quando se discute a
“Qualidade Total” em educação.
Enquanto no campo da educação e da psicologia ocorriam esses embates teóricos, no
campo da política nacional, a população se organizava a partir de possibilidades limitadas,
53
mas contínuas. As manifestações aconteciam tanto através dos movimentos sociais, como
através das organizações políticas.
1.5 – OS MOVIMENTOS SOCIAIS: LUTAS PELA EDUCAÇÃO
E PELA DEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA.
Quando o general Ernesto Geisel tomou posse na presidência em 1974, o país entrava
num processo de aceleração inflacionária que anunciava o final da era do “milagre
econômico”. Somado a este problema, o déficit da balança comercial criava um grande
impasse para a definição da política econômica, pois para combater a inflação era preciso
reduzir o crédito bancário – o que provocaria a desaceleração da economia.
A crise econômica e o aumento da inflação tiveram reflexos no resultado das eleições
de novembro de 74. Naquela ocasião o único partido de oposição legal o MDB quase
dobrou o número de cadeiras na Câmara dos Deputados e, praticamente triplicou o número de
cadeiras no Senado. O resultado das eleições parlamentares não modificou o perfil do
Congresso Nacional, pois o partido da situação a ARENA – mantinha a maioria, mas serviu
como sinal de que uma grande parcela da população começava a contestar, pelo menos
através do voto, o autoritarismo dos governos militares. Os dirigentes podiam perceber que
no caso de eleições livres a ARENA seria derrotada nas urnas.
Apesar de seu discurso “democratizante” o governo de Geisel foi marcado pelo
recrudescimento das ações criminosas dos órgãos de repressão: o extermínio dos militantes da
Guerrilha do Araguaia (1974): o assassinato do jornalista Vladimir Herzog numa cela do II
Exército, em São Paulo (1975); o assassinato do metalúrgico Manuel Fiel Filho, nas mesmas
condições torturas durante um interrogatório. Em resposta ao desafio dos “duros”, Geisel
começa a tentar controlar um pouco mais de perto os órgãos de repressão.
Na realidade, temos que considerar que as formas de pensar e exercitar o poder de
governo não era hegemônico no interior das forças militares. As expectativas de manutenção
de um estado de exceção não eram compartilhadas por todo o alto escalão militar. O general-
presidente Geisel era representante de um grupo das Forças Armadas que apresentava um
perfil um pouco diferente dos dirigentes anteriores, pois não acreditava que fosse possível
54
manter a população sob um regime repressivo por muito tempo. Ele entendia que “a
permanente falta de liberdade, o medo e a dominação repressiva impopularizariam o regime
militar e poderiam resultar numa explosão social de conseqüências incalculáveis”. (SILVA,
1992, p. 307).
Naquele período, os donos do poder dividiam-se em duas correntes: os “moderados” –
que compartilhavam as idéias de Geisel e os “duros” que pretendiam manter o regime de
terror e autoritarismo instalado no país desde o golpe militar de 64.
Ao presidente e aos ‘moderados’ competia convencer os ‘duros’ da
necessidade de distensão política, cuja execução dependia do apoio
majoritário da oficialidade, da redução do poder da linha dura e do
controle dos torturadores e dos órgãos de repressão, já que a subversão
armada estava praticamente aniquilada (SILVA, 1992, p. 309).
Esta atitude, no entanto, tinha um preço, e para manter a liderança e o apoio da maioria
da oficialidade o presidente precisava criar novos mecanismos políticos para impedir a vitória
de um candidato do MDB nas eleições presidenciais indiretas que se dariam em outubro de
1978.
Os “mecanismos” encontrados foram a Lei Falcão que limitava a propaganda
eleitoral no rádio e na televisão e tinha por objetivo impedir a derrota da ARENA nas
próximas eleições parlamentares – e o Pacote de Abril – um conjunto de medidas destinadas a
garantir a maioria do partido da situação, no Congresso Nacional; para isso, uma das medidas
determinava que um terço do Senado fosse ocupado por “parlamentares” escolhidos pelo
governo (sem serem eleitos) – os chamados “senadores biônicos”.
No Colégio Eleitoral formado por representantes do Congresso Nacional, das
Assembléias Legislativas dos estados, e das Câmaras Municipais, foram “eleitos” o general
João Batista Figueiredo, como presidente e, Aureliano Chaves, como vice-presidente.
O último presidente-general, Figueiredo, assume a presidência em 1979 prometendo
“fazer do país uma democracia”, mesmo que para isso fosse preciso “prender e arrebentar”.
Seu primeiro ato no sentido de uma redemocratização do país aconteceu em agosto de
79, quando sancionou a Lei da Anistia fato que culminava um processo de reivindicação
popular que pretendia devolver os direitos de cidadania àqueles que haviam sido perseguidos
politicamente, exilados do país ou que tivessem tido seus direitos cassados pelas leis de
exceção, durante os longos anos de ditadura militar. A mobilização em torno da “Anistia
ampla geral e irrestrita” iniciou-se em 72 quando o partido de oposição MDB incluiu esta
55
palavra de ordem em seu programa. Juntaram-se ao partido, na defesa da anistia, algumas
organizações como a OAB, a SBPC, algumas parcelas progressistas da Igreja representadas
por D. Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, e outros bispos – além da população que se
manifestou através de comícios e passeatas
20
lideradas, em especial, pelo senador Teotônio
Vilela carinhosamente chamado de “cavaleiro da esperança”, e os Comitês Brasileiros pela
Anistia, espalhados desde 1977 por vários estados do país. E, além de toda essa pressão
popular, o governo Figueiredo enfrentou a pressão da política de direitos humanos
“recomendada” pelo então presidente norte-americano, Jimmy Carter.
Ao mesmo tempo em que ocorriam as mobilizações pela anistia, alguns outros
movimentos de caráter popular eram organizados e colocados em marcha. Dentre eles
destacaremos apenas dois pelas suas características de organização de massas, pelos
desdobramentos que tiveram e pela abrangência que alcançaram: a organização dos
trabalhadores e as greves do ABC e, a organização das Associações de Moradores.
Com o fracasso da luta armada e dos movimentos de guerrilha contra a ditadura militar
e o exílio de vários líderes políticos, as populações urbanas especialmente das periferias
pobres das grandes cidades começaram a se reorganizar em torno de questões relativas às
dificuldades e necessidades do cotidiano da cidade. A maioria desses movimentos foi
apoiado, e muitas vezes sustentado, pelas Comunidades Eclesiais de Base e setores
progressistas da Igreja.
Em São Paulo, o Movimento Custo de Vida (MCV) exigia, através de um abaixo-
assinado com cerca de um milhão e trezentas mil assinaturas, a redução do custo de vida que
se tornava insuportável para a maioria da população de baixa renda, colocada em situação de
miséria após o final do “milagre econômico”. Além de reivindicar melhoria das condições de
transporte, várias associações de moradores se reuniam para reivindicar melhorias nas
condições de saneamento, calçamento de ruas, criação de áreas de cultura e lazer, aumento da
oferta e das condições de compra de habitações populares, aumento e manutenção de postos
de saúde, hospitais e escolas públicas
21
.
20
Desde 1968 não acontecia uma manifestação popular como a que ocorreu em 14 de agosto de 1979, quando
cerca de 20 mil pessoa reuniram-se numa passeata, no Rio de Janeiro, em defesa da anistia. Cf. Piletti, 1996.
21
No Rio de Janeiro, os movimentos das Associações de moradores alcançaram tal abrangência e importância
que alguns dos líderes da FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro)
chegaram a posições de destaque na vida política do município do Rio de Janeiro: Jó Rezende foi vice-prefeito
de Saturnino Braga no período 1985-1988; Chico Alencar foi vereador no período 1988-1996 e candidato a
prefeito nas eleições de 1996 (mais tarde tornou-se deputado estadual e, hoje em dia é deputado federal pelo
PSOL), e outros que se elegeram vereadores e deputados estaduais vieram desses movimentos “comunitários”.
56
As greves de várias categorias profissionais no final dos anos 70 foram a
demonstração mais cabal de que a força e os métodos de repressão dos governos militares
estavam se esgotando: “em 1979 explodiram em todo o país aproximadamente quatrocentas
greves de professores, garis, empregados na construção civil, motoristas de ônibus, portuários,
bancários, etc.” (SILVA, 1992, p. 310). No entanto, a greve dos metalúrgicos do ABC ganha
destaque por sua dimensão política. Durante vários meses os metalúrgicos da mais
importante região de produção automobilística do país, produziram uma greve que teve como
resposta das autoridades a prisão de diversos dirigentes sindicais inclusive do líder do
movimento, Luís Inácio da Silva, o Lula e a intervenção nos sindicatos. Mas o apoio de
diversas organizações da sociedade civil e a resistência organizada dos trabalhadores
possibilitou que acontecesse uma negociação direta entre patrões e empregados que resultou
em um aumento de 63% nos salários e a readmissão dos rios dirigentes sindicais que
haviam sido demitidos. Esta negociação direta entre as partes interessadas, sem passar pela
mediação dos órgãos governamentais contrariava uma norma segundo a qual a política
salarial cabia única e exclusivamente ao poder central, isto é, ao governo federal.
Eder Sader (1988) recordando a manifestação de de maio de 1980 Dia do
Trabalhador – em São Bernardo, o núcleo das greves da região do ABC, diz que àquela altura
a greve alcançava um mês de duração, fato que levou o chefe do SNI a aumentar e reforçar
a capacidade repressiva da polícia, armando oito mil policiais e os incumbindo de impedir
qualquer concentração e/ou manifestação que objetivasse a comemoração daquela data tão
significativa. Para Sader,
(...) o que poderia ter permanecido um dissídio salarial tornara-se um
enfrentamento político que polarizava a sociedade. Movidos pela
solidariedade à greve formaram-se comitês de apoio em fábricas e
bairros da Grande São Paulo. Pastorais da Igreja, parlamentares da
oposição, Ordem dos Advogados, sindicatos, artistas, estudantes,
jornalistas, professores assumiram a greve do ABC como expressão da
luta democrática em curso. (SADER, 1988, p. 27)
22
Ainda analisando os movimentos sociais encabeçados pelas classes trabalhadoras,
Sader argumenta que a noção de necessidades básicas é partilhada e construída a partir de
uma elaboração cultural comum, em uma mesma sociedade. Assim, a alimentação suficiente,
o transporte eficiente, as boas condições de moradia, a oferta de saúde e educação e a
22
A partir do reconhecimento da capacidade de organização e da força política dos movimentos sociais
populares e da classe trabalhadora, é fundado em 1980, sob a liderança de Lula, o Partido dos Trabalhadores
(PT) que tem até hoje posição de destaque no cenário político nacional.
57
possibilidade de lazer podem ser compreendidas como necessidades básicas comuns a todos
os trabalhadores:
É certo que, constituindo-se no campo genérico das chamadas classes
trabalhadoras, tais como se inscrevem num conjunto de práticas que
podem ser identificadas como lutas pela obtenção de bens e serviços
que satisfaçam suas necessidades de reprodução. (...) Ainda assim, o
modo como o fazem (que tipo de ações para alcançar seus objetivos),
tanto quanto a importância relativa atribuída aos diferentes bens,
materiais e simbólicos, que reivindicam, depende de uma constelação
de significados que orientam suas ações.(SADER, 1988, p. 43)
Analisando um desses movimentos a luta por educação nos movimentos populares –
Marilia Sposito (1993) adverte que os estudos sobre os movimentos populares têm procurado
captar e entender o novo “quefazer” político, inaugurado e introduzido pelos movimentos
sociais nas décadas de 1970 e 1980. A autora considera que:
Mais do que mecanismos capazes de transformar as instituições
políticas, os movimentos criaram modos diversos de realizar a prática
política, valorizando as decisões democráticas, a participação das
bases, enfim, um conjunto de novas regras que vieram a constituir
uma nova cultura política na sociedade brasileira. (SPOSITO, 1993,
p. 326)
Sposito considera que as novas alternativas das práticas políticas possibilitariam uma
redefinição, um redimensionamento das relações entre público e privado e, entre indivíduo e
cidadão:
(...) a resignificação da prática política permite não a reapropriação
do espaço público, mas, também, uma nova reapropriação do privado.
Nesse processo, pode ser gestado um novo modo de organização da
vida, ao existir a possibilidade de superação da dicotomia indivíduo e
cidadão, vida pública e privada. (SPOSITO, op.cit., p. 327)
Destacamos este texto de Sposito com um sentimento de estar olhando para uma
profecia não cumprida, pois a própria autora considera a reação “neoconservadora” como
resposta a esta tentativa de organização e participação política mais efetiva das classes
trabalhadoras. Consideramos que, na realidade, em algum momento, muitos dos movimentos
sociais daquele período com seu caráter instituinte, inovador, criador de outras formas e
possibilidades de ação foram capturados, desviados, esvaziados, paralisados, enfim
descaracterizados como forças populares potentes e capazes.
58
Com o arrefecimento da Guerra Fria, no âmbito internacional, e o processo de desgaste
dos métodos repressivos da ditadura militar, os movimentos de redemocratização do país
ganham novo impulso e a exigência passa a ser de eleições diretas em todos os níveis de
governo, inclusive para presidente.
Veiga-Netto (2005) discutindo o conceito gouvernementalité, cunhado por Foucault,
propõe que o termo seja traduzido por governamentalidade. Nesse artigo o autor distingue os
termos governo, governamento e governamentalidade, embora os dois últimos não sejam
encontrados em dicionários da língua portuguesa. Para ele a utilização do vocábulo governo
para designar, ao mesmo tempo, a instituição do Estado e a ação de governar, gera
dificuldades. Assim o autor sugere que o vocábulo “governo... seja substituído por
governamento nos casos em que estiver sendo tratada a questão da ação ou do ato de
governar(p. 19). Nesse caso, o governamento traduziria a ação ou o ato de governar as
ações alheias. Ainda segundo o autor, o Estado moderno sofreu um processo de
governamentalização e tornou-se governamental na medida em que foi capturando para si
determinadas técnicas de governamento (governo das ações alheias). Dessa forma, quando
dizemos que a população passou a exigir “eleições diretas em todos os níveis de governo”,
devemos considerar que favorecemos cada vez mais a governamentalidade do Estado (como
qualidade do Estado que foi se tornando governamental), pois delegamos a ele a possibilidade
de governar as ações alheias as nossas ações; portanto, não estamos reivindicando,
necessariamente, uma maior autonomia nas nossas ações cotidianas, nem uma maior
participação nas decisões do Governo.
Obviamente os generais-presidentes e seus aliados na manutenção da ditadura, não
“entregaram o osso” com tanta facilidade. Ainda no final dos anos 70 e início dos 80 vivemos
situações que demonstram os movimentos de resistência interna
23
, no meio militar, no sentido
de manter a “situação sob controle” como, por exemplo, a dura repressão aos movimentos
grevistas do ABC paulista, as bombas plantadas na OAB e no Riocentro.
Como já citamos, o início dos anos 80, no Brasil, foi marcado pela ampliação e
fortalecimento dos movimentos sociais em favor dos serviços básicos de saúde, educação,
moradia e garantia de empregos e pelos movimentos políticos em favor da democracia.
23
Falo aqui de resistência no sentido de reação, de ação contrária a um novo que se quer instituir, tal como
Nietzsche aborda o tema. Este ponto de vista será melhor explorado mais adiante.
59
Em 1980, o presidente Figueiredo decreta o restabelecimento das eleições diretas para
governadores de estados e as eleições são marcadas para 1982. Entre o decreto e a realização
das eleições ocorre, no entanto, um episódio que demonstra o desespero dos militares de
extrema direita com a perda do poder com o processo de redemocratização: em 30 de abril de
1981, quando se comemora o dia do trabalhador em um show popular realizado no Riocentro
no Rio de Janeiro ocorre um atentado à bomba do qual as únicas vítimas são um capitão e
um sargento do exército que conduziam o artefato. Ao contrário do que esperavam os
militares da linha dura que acreditavam que o episódio intimidaria os opositores e abalaria o
processo democrático, este acontecimento serviu para reforçar a política de abertura do
governo e permitir que a oposição denunciasse o terrorismo da direita e formasse uma frente
de luta contra ele.
Com o crescimento e fortalecimento dos movimentos sociais, a deterioração da
economia e a revolta causada por este último ato de violência praticado pelos militares, as
classes trabalhadoras, mais uma vez, demonstram com seu voto o grande descontentamento
com o regime militar elegendo como governadores dos maiores estados (Rio e Rio Grande do
Sul PDT, São Paulo e Minas Gerais – PMDB) e como maioria dos deputados para a Câmara
Federal políticos opositores à ditadura militar.
Com essa vitória a população e a oposição parlamentar se animam e em 1983 se inicia
uma campanha para as eleições diretas para presidente, a campanha das Diretas, já! A partir
de então começa a tramitar no Congresso uma Emenda Constitucional que previa eleição
direta para presidente em 1985; foi uma emenda que ficou conhecida como Emenda Dante de
Oliveira nome do deputado que a propôs. Ao mesmo tempo, a população dava mostras de
estar disposta a conquistar, nas ruas e de forma coletiva, o direito de escolher o seu maior
dirigente. Vários comícios, shows e manifestações se realizaram por todo o país, com o
objetivo de demonstrar o desejo pelas “Diretas-já”. Mas as mais significativas dessas
manifestações foram os comícios da Candelária, no Rio de Janeiro, e o do Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, que reuniram mais de um milhão de cidadãos, cada um, liderados
por grandes figuras da política nacional, como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Luís
Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola, Franco Montoro e Tancredo Neves – este último,
contrariando sua postura cautelosa, foi “arrastado” para o movimento devido ao apelo popular
e à dimensão política que a campanha pelas diretas alcançou.
Contrariando todas as expectativas populares, a Emenda Dante de Oliveira é derrotada
no Congresso Nacional, por 22 votos, no dia 25 de Abril de 1984. Nas ruas das grandes
60
cidades, onde milhares de pessoas se reuniram para acompanhar a votação da emenda (por
rádio ou TV), o clima reinante era de frustração e revolta pela traição à vontade popular.
Mais uma vez o presidente seria eleito por um Colégio Eleitoral. Foi assim que, em 14 de
janeiro de 1985, Tancredo Neves é escolhido, indiretamente, o presidente do país. Em março
do mesmo ano, após a morte de Tancredo, José Sarney seu vice assume a presidência e
governa até o final de 1989.
Os cinco anos do governo Sarney foram marcados por planos econômicos sucessivos
que pretendiam controlar a inflação e a crise econômica. Em termos político-administrativos,
o período foi marcado por vários escândalos financeiros, desvio de dinheiro público para
particulares, investimento em massa do governo federal no estado natal do presidente, e a
diminuição dos investimentos nas áreas sociais. Ao mesmo tempo, em 1987 é instalada a
Assembléia Nacional Constituinte, com o objetivo de elaborar uma nova constituição para o
país.
Além de diversos avanços sobre os direitos e garantias fundamentais, a Constituição
promulgada em 1988, trouxe novidades para as classes trabalhadoras, tais como a liberdade
sindical e o direito de greve, a licença maternidade de 120 dias e a redução da jornada de
trabalho para 44 horas semanais, entre outras.
No aspecto da educação também houve modificações no texto constitucional, mas não
iremos aqui analisar tais modificações, apenas citaremos os artigos 205 que afirma ser a
educação direito de todos e dever do Estado e da família, o art. 212 que garante a aplicação de
recursos mínimos entre 18 e 25% do orçamento da União, Estados e Municípios para a
manutenção e desenvolvimento do ensino, e o art. 206 que afirma que o ensino será
ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II liberdade para aprender, ensinar pesquisar e divulgar o
pensamento a arte e o saber;
III pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência
de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V valorização dos profissionais do ensino, garantido, na forma da
lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial
profissional e ingresso por concurso público de provas e títulos,
assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas
pela União;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
61
VII – garantia de padrão de qualidade.
Apenas por estes exemplos, através da nossa experiência cotidiana, podemos perceber
como a Constituição tem sido esquecida, ignorada ou simplesmente desrespeitada, pois
sabemos que muitos dos direitos básicos, nela inscritos, não têm sido garantidos. E, talvez
por ter aprendido que a lei pode se tornar “letra morta”, a população brasileira e, em especial
uma grande parcela dos educadores, continuou se mobilizando para garantir o direito dos
brasileiros à educação.
Seguindo o movimento de discussões amplas e democráticas, generalizadas naquele
momento entre todas as organizações da sociedade civil, a Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Educação (ANPEd) dedica suas reuniões de 87, 88 e 89 ao estudo,
discussão e encaminhamento de propostas à elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases
(LDB). A IV Conferência Brasileira de Educação (1986) aprova ao final do seu encontro a
“Carta de Goiânia”, na qual elabora princípios a serem inseridos no texto constitucional, no
sentido de garantir educação pública, gratuita e de qualidade à totalidade da população. A V
CBE (1988) aprova documento visando à elaboração da nova LDB.
Acompanhando os trabalhos da Assembléia Constituinte, a década de 80 foi marcada
por intensas discussões no meio educacional. Discutia-se a democratização da gestão das
escolas, a garantia do acesso ao ensino, a repetência e a evasão escolar, os currículos e seus
conteúdos, os sentidos e objetivos da educação, enfim era chegado o momento de se entrar na
discussão sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A participação das entidades
ligadas às questões da Educação Nacional (ANDE, ANPEd, CNTE, FASUBRA, UNE, etc.
que vieram a formar o Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública) mantém-se durante a
apreciação do projeto da LDB.
Em termos de fundamentos e propostas filosóficas para a educação, os principais
temas debatidos giravam em torno do método divulgado, em especial, por Emília Ferreiro.
Na realidade, este método utilizado com eficácia para a alfabetização de crianças, baseia-se
nas teorias psicogenéticas de Jean Piaget nesse sentido, esta corrente de pensamento pode
ser chamada de “neo-piagetianismo”.
De qualquer forma, o que nos parece mais importante nesta questão é poder observar
que num momento em que movimentos populares buscam conquistar direitos e respostas às
suas necessidades, de forma coletiva, ainda haja espaço e condições para se pensar as
dificuldades de aprendizagem de forma individual e personalista. Ao mesmo tempo em que
62
ocorrem essas discussões no meio acadêmico, a população assiste incrédula, ao muitos
descasos e desmandos que acontecem na política nacional. O presidente “negocia” no
Congresso mais um ano para o seu governo; no Parlamento o deputado Roberto Cardoso
Alves, do chamado “Centrão”
24
, anuncia que “é dando que se recebe”; na mídia se veicula
através de um comercial de cigarros, aquela que ficou conhecida como Lei de Gerson: “o
importante é levar vantagem em tudo”.
O descrédito do governo Sarney e dos organismos “político-institucionais” somado ao
desgaste econômico provocado por sucessivos planos fracassados tem efeito devastador sobre
os movimentos sociais organizados que “vão perdendo o gás, vão simplesmente se colocando
na defensiva e lutam desesperadamente por questões salariais e/ou estabilidade no emprego”
(COIMBRA, 1995, p. 319). Com este clima de desânimo e desengano inicia-se a campanha
para sucessão presidencial de 1989; a primeira eleição para presidente após quase 30 anos.
Entre os 21 candidatos à presidência da República, destacam-se os dois candidatos que
passam ao turno das eleições: Fernando Collor de Mello, candidato pelo inexpressivo e
recém-criado Partido da Reconstrução Nacional (PRN), apoiado por amplos setores do
empresariado nacional e por grande parcela da população de baixa renda que confiava em seu
discurso populista de “caçador de marajás”; e Luís Inácio Lula da Silva, candidato da Frente
Brasil Popular que congregava diversos partidos de esquerda (PT, PcdoB, PCB e PSB) e era
apoiado pela maioria dos movimentos sociais organizados e por grande parcela da população
trabalhadora que apostava em sua proposta de desenvolver uma política democrática voltada
aos interesses e necessidades das classes populares.
A polarização entre os dois candidatos se baseava na caracterização de ambos como
figuras absolutamente distintas e incompatíveis: de um lado Collor, “o candidato jovem”,
culto e bem preparado para o exercício do poder (já havia sido prefeito “biônico” de Maceió,
deputado federal e governador de Alagoas) representante das velhas oligarquias nacionais,
comprometido com os interesses econômicos dominantes; de outro lado Lula, “o candidato
inculto, despreparado (havia sido apenas o deputado constituinte com a maior votação da
história do país), com uma mentalidade sindicalista atrasada e revanchista e ligado ao passado
comunista que estava sendo derrubado no Leste europeu”. A dia teve papel decisivo na
elaboração de tais caracterizações e no resultado final das eleições.
24
Os parlamentares de extrema direita ligados à União Democrática Ruralista (UDR), que em sua grande maioria
teve ampla participação nos governos durante a ditadura militar, reuniram-se em um bloco parlamentar
conhecido como Centrão e que, em troca de “favores” oferecidos pelo governo, aprovava seus projetos de lei.
63
O governo Collor foi recheado de escândalos e denúncias de corrupção e mau uso do
dinheiro público. Houve queda de vários ministros
25
. Mas o maior e mais grave dos
escândalos atingiu diretamente o presidente, acusado de corrupção passiva e “formação de
quadrilha” por seu envolvimento com o tesoureiro de sua campanha eleitoral o chamado
“esquema PC”.
A população revoltada pelo fracasso econômico do governo e pela sucessão de
escândalos volta às ruas para pedir a derrubada de Collor. A juventude estudantil, muito
envolvida e estimulada pela mídia em especial pela rede Globo volta às praças públicas e
comanda a palavra de ordem do momento: “Fora Collor!”. Ao mesmo tempo o Congresso
Nacional se agita e começa, a partir de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), um
processo que termina com o impeachment do presidente e a cassação de seus direitos políticos
por 8 anos.
No lugar de Collor assume seu vice, Itamar Franco um “velho político conservador
mineiro”. Itamar convoca uma série de “políticos da velha guarda”, mas também surpreende
ao convidar para o Ministério da Fazenda não um economista-tecnocrata e sim um sociólogo
que defendia as idéias da social-democracia, Fernando Henrique Cardoso. Parecia que enfim
teríamos um ministro da área econômica que entendia e poderia melhor defender os direitos
sociais da população. Mas não foi bem isso que aconteceu. Fernando Henrique convocou,
para sua equipe econômica, vários técnicos que já haviam participado da elaboração de planos
econômicos de governos anteriores, com o objetivo de baixar a inflação e estabilizar a
economia até, pelo menos, a próxima eleição presidencial – marcada para 1994.
Em 1994 as eleições presidenciais chegam ao segundo turno de forma tão polarizada
quanto às de 89. Desta vez os candidatos são Fernando Henrique Cardoso, apoiado pela
coligação PSDB-PFL-PTB, e Lula, apoiado por uma frente de partidos de esquerda (PSB, PV,
PPS, e PC do B). Novamente se estabelece um confronto entre a posição dos candidatos
frente aos problemas nacionais: de um lado o “pai” do Plano Real, um Doutor em Sociologia
comprometido com um projeto de “modernização” do país; de outro lado um candidato com
25
Foram muitos os escândalos, mas alguns deles envolvendo ministros ficaram marcados como sendo piadas”
do anedotário político brasileiro. Por exemplo, a queda do Ministro da Saúde, Alceni Guerra, pela compra
indevida de milhares de bicicletas e guarda-chuvas para o seu ministério; ou a queda do Ministro da Justiça,
Bernardo Cabral, por seu envolvimento amoroso com a então Ministra da Economia, Zélia Cardoso de Melo - o
assunto teria sido considerado pelo presidente como “nitroglicerina pura”; e ainda a queda do Ministro do
Trabalho, Rogério Magri, que considerava normal levar sua cadela ao veterinário em um carro oficial, pois
segundo ele sua cadela “é um ser humano como outro qualquer” Magri caiu após se descobrir que tinha
aceitado um suborno de 30 mil dólares para favorecer, com verbas do FGTS dos trabalhadores, uma empreiteira
na construção de obras públicas no Acre.
64
idéias “antigas” sobre economia e justiça social, um torneiro mecânico que poderia prejudicar
os interesses dos grandes industriais e banqueiros brasileiros. De um lado, o poder da mídia e
o apoio das maiores empresas de comunicação do país; de outro, uma campanha popular com
grandes comícios e manifestações nas ruas das principais cidades do país. De um lado, a
intelligentsia nacional e do outro, um representante dos trabalhadores pouco qualificados.
Alguns intelectuais” chegaram a dizer que se tratava da disputa entre um sociólogo e um
encanador.
O presidente eleito tem como seu vice Marco Maciel – personagem famoso por habitar
o palácio do poder desde a ditadura militar representante dos interesses dos grandes
financistas e das oligarquias tradicionais, traduzidas pelos princípios e pela sigla do seu
partido: Partido da Frente Liberal (PFL).
1.6 – EDUCAÇÃO E NEOLIBERALISMO: NOVAS IMAGENS,
ANTIGOS IDEAIS
A política econômica adotada no governo Fernando Henrique simplesmente amplia e
aprofunda o neoliberalismo econômico instaurado pelo governo Collor. A redução da
participação direta do Estado na economia, a redução da inflação, a abertura do mercado aos
produtos e aos capitais estrangeiros e a privatização das empresas estatais foram as primeiras
medidas adotadas pelo governo para cumprir as exigências dos “parceiros” econômicos
estrangeiros para garantir recursos financeiros e apoio político internacionais.
Retomemos agora o que disse Sposito (1993) sobre a reação neoconservadora, pois
segundo esta autora, os movimentos sociais e o clima político existentes no final dos anos 70
propiciaram as condições para que se estabelecesse um novo “quefazer” político coletivo, no
qual as questões sociais seriam determinantes para a condução das políticas de Estado. No
entanto, a própria autora observa que também se apresentava uma resposta neoconservadora
que, a nosso ver, prevaleceu e tem se constituído como hegemônica em níveis planetários. A
reação neoconservadora, que identificamos como a expansão neoliberal, pressupõe a
substituição da discussão política pela econômica e, como conseqüência, a substituição do
“personagem cidadão” pelo “personagem consumidor”.
65
Michael Peters (1995) observa que:
Desde o início dos anos 80, a Nova Direita tem sido notavelmente
bem sucedida em fazer prevalecer uma razão fundacionalista e
universalista a filosofia de um individualismo neo-liberal como a
base para uma reconstrução radical de todos os aspectos da sociedade:
uma mudança na política econômica, favorecendo uma economia da
oferta (supply-side economics) e o monetarismo, uma completa
reestruturação do setor público e um distanciamento em relação ao
tradicional estado do bem-estar social. A forma de razão política que
veio a dominar as agendas políticas dos governos liberal-capitalistas é
eurocêntrica em sua origem e racionalista e totalizadora em seus
efeitos. Nos seus termos mais simples, podemos dizer que esta forma
de razão é motivada por um racionalismo econômico extremo, que
o mercado não apenas como um mecanismo superior de alocação para
a distribuição de recursos públicos escassos, mas também como uma
forma superior de economia política. O princípio central das teorias
que subjazem à reestruturação do setor público, incluindo as
estratégias de privatização e um ataque orquestrado aos princípios do
Estado social-democrático, é uma filosofia do individualismo que
representa uma renovação do principal artigo de do liberalismo
econômico clássico. Ele afirma que todo o comportamento humano é
dominado pelo auto-interesse. Sua principal inovação, em sua versão
contemporânea, consiste em elevar este princípio ao status de um
paradigma para compreender a própria política e, na verdade, para
compreender todo comportamento...
Com o colapso histórico do comunismo e o aparente declínio popular
do marxismo, o liberalismo tornou-se progressivamente mais
transparente como a ideologia oficial de legitimação do capitalismo
multinacional avançado (p. 212).
Os princípios liberais que transformam o cidadão em consumidor e contribuinte
transformam também as relações do sujeito com o Estado. A participação direta na vida da
república não é mais necessária nem possível. Para substituí-lo aparecem tecnocratas que
assumirão a vez de tutores dos indefesos consumidores através das Comissões e Procuradorias
de Defesa do Consumidor.
Num mundo “regulado” pelas relações de mercado, os meios de comunicação dão as
diretrizes para o comportamento do “cidadão-consumidor”. Como diz Eugênio Bucci (1997),
o consumo serve para situar o indivíduo: “num tempo em que a esfera e os espaços públicos
estão enquadrados pelos meios de comunicação e pela linguagem publicitária, o homem se
contextualiza pelo consumo” (p. 45).
Podemos entender o que Guattari (2006) quer dizer quando aponta o efeito conseguido
quando o capitalismo pós-industrial descentra “seus focos de poder das estruturas de produção
66
de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade,
por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as
sondagens, etc.” (p. 31). Se por um lado a constatação do “irremediável” a impossibilidade
de melhores condições de vida afetiva, familiar, econômico-financeira, social e política
promove a apatia e a desmobilização, de outro lado a busca pelo saciamento e pelo
preenchimento de um grande vazio promove a “necessidade” de preparação para uma melhor
colocação no mercado de consumo. Se no pensamento liberal a maioria das pessoas é vista
como consumidora e esta seria a “cidadania concedida” –, uma minoria conquistaria uma
“cidadania plena” que envolve, além do poder de compra, o poder de saber. Nesse sentido,
mais uma vez o ideário liberal aposta na educação como a chave para a passagem a uma
cidadania sem aspas.
Ao retornarmos a Peters (1995) encontramos a indicação de que a nova direita projeta
para o futuro uma “visão utópica pós-industrial, baseada na , na ciência, na tecnologia e na
educação como setores-chave que aumentarão, a longo prazo, a vantagem nacional na
economia global”. Nesse sentido, diz ele, a narrativa política da nova direita “é orientada para
o futuro, embora esteja ancorada no passado”, e chama atenção para o fato de que embora a
doutrina liberal pregue a auto-limitação do Estado, este tem se tornado mais poderoso “sob as
políticas neoliberais de mercado” (pp. 212-3). O autor considera o “paradoxo do Estado neo-
liberal”:
Embora as políticas neoliberais de privatização dos recursos estatais e
de comercialização da esfera pública possam ter levado a um estado
mínimo ou, ao menos, a uma ‘diminuição’ significativa, o Estado tem
retido seu poder institucional através de uma nova forma de
individualização, na qual os seres humanos transformam-se em
sujeitos do mercado, sob o signo do Homo economicus. Esta é a base
para compreender o ‘governo dos indivíduos’ na educação como uma
técnica ou forma de poder que é promovida através da adoção de
formas de mercado. (PETERS, idem)
Peters (1995) considera que a área da vida social que mais sofreu a influência da
lógica de mercado palavra de ordem” do neoliberalismo foi a educação, e lembra que
neste modelo a educação é tratada como qualquer outra mercadoria. Por isso mesmo, tanto as
atividades como as relações estabelecidas no meio educacional transformam-se: “o resultado é
que os alunos e aprendizes se tornam ‘consumidores’ ou ‘clientes’ e os cursos se tornam
‘pacotes’ ou ‘produtos’” (p. 213).
67
Como proposta para a educação, os pensadores neoliberais invadem o âmbito
educacional dos anos 90 com um modelo trazido dos métodos de organização das fábricas e
das grandes empresas: Total Quality Control (TQC) ou Gestão da Qualidade Total (GQT).
Antes de nos determos por alguns instantes nos programas de qualidade total aplicados
à educação, deveríamos nos perguntar: de onde vem esta questão? Qual sua relação com o
pensamento neoliberal? Quais os princípios que norteiam os parâmetros de qualidade em
educação? Para que serve esta discussão?
Para começarmos a pensar sobre isto, devemos levar em conta o que nos adverte
Tomaz Tadeu da Silva (1994) ao lembrar que, com os governos de Ronald Reagan, nos
Estados Unidos e de Margaret Tatcher, na Inglaterra, inicia-se uma ofensiva neoliberal que
inaugura um “novo jeito” de se fazer política e de se entender o mundo, as relações sociais, e
com eles, a educação:
A construção da política como manipulação do afeto e do sentimento;
a transformação do espaço de discussão política em estratégias de
convencimento publicitário; a celebração da suposta eficiência e
produtividade da iniciativa privada em oposição à ineficiência e ao
desperdício dos serviços públicos; a redefinição da cidadania pela qual
o agente político se transforma em agente econômico e o cidadão em
consumidor, são todos elementos centrais importantes do projeto neo-
liberal global. É nesse projeto global que se insere a redefinição da
educação em termos de mercado... (SILVA, 1994, p. 15).
O autor ressalta que neste momento, não se trata apenas da discussão em termos
político-econômicos, mas de uma “luta para criar as próprias categorias, noções e termos
através dos quais se pode nomear a sociedade e o mundo” (Silva, op.cit., p. 16). Para isso, os
meios de comunicação de massa cumprem importante papel tanto ao produzir meios de
representação da realidade, quanto ao difundi-los. Assim, a produção da imagem do Estado
como um grande elefante lento, ineficiente e improdutivo, por exemplo, é de tal modo
divulgada maciçamente que se torna uma verdade comum; ou melhor, torna-se senso comum;
algo natural e imutável. E assim como esta, outras idéias tornam-se “verdadesaceitas sem
contestação ou crítica, pois são “provadas” pela mídia. Trata-se de novamente “formar as
almas”. Desta maneira é fácil comprovar que a situação de decadência e agonia que alunos e
professores enfrentam diariamente nas salas de aula, não passa de uma questão de mau
gerenciamento, que acarreta um desperdício dos recursos públicos e uma baixa produtividade,
como conseqüência de métodos ineficientes e atrasados. A partir do diagnóstico é possível
prescrever um remédio adequado.
68
Tudo se reduz, nessa solução, a uma questão de melhor gestão e
administração e de reforma de métodos de ensino e conteúdos
curriculares inadequados. Para problemas técnicos, soluções técnicas,
ou melhor, soluções políticas traduzidas como técnicas (tal como a
privatização, por exemplo) É nesse raciocínio que se insere o discurso
sobre a qualidade e sobre a gerência da qualidade total. É nesse ponto
também que convergem as presentes propostas neoliberais e a atual
hegemonia do discurso construtivista em educação. (...) uma
conveniente compatibilidade também entre o tipo de sujeito
pressuposto no discurso liberal de reestruturação da produção
(qualidade total e outros esquemas similares) e o tipo de “eu”
subjacente às propostas do construtivismo pedagógico: “autônomo,
racional, participativo, responsável” (SILVA, 1994, p. 19).
Para o autor, quando uma forma de discurso se torna hegemônico, ocorre não apenas o
aparecimento de novas questões, categorias e conceitos, mas um deslocamento e uma
supressão de outras categorias e conceitos “obscurece a memória popular, ocupa o lugar de
categorias que moveram nossas lutas no passado, redefinidas agora como anacrônicas e
ultrapassadas”. Com essa perspectiva podemos compreender que o discurso neoliberal com
suas idéias de qualidade total, da “privatização para a qualificação”, da liberdade de escolha
do consumidor, não se apresenta como uma possibilidade entre tantas outras, mas “tende a
suprimir as categorias com as quais tendíamos a pensar a vida social e a educação” (Silva,
op.cit., p. 21). Por isso, o autor continua explicando que
O discurso da qualidade total, das excelências da livre iniciativa, da
‘modernização’, dos males da administração pública reprime e desloca
o discurso da igualdade/ desigualdade, da justiça/injustiça, da
participação política numa esfera pública de discussão e decisão,
tornando quase impossível pensar numa sociedade e numa
comunidade que transcendam os imperativos do mercado e do capital.
Ao redefinir o significado de termos como ‘direitos’, ‘cidadania’,
‘democracia’, o neoliberalismo em geral e o neoliberalismo
educacional, em particular, estreitam e restringem o campo do social e
do político, obrigando-nos a viver num ambiente habitado por
competitividade, individualismo e darwinismo social” (SILVA, idem).
Mariano Enguita (1994) corrobora o pensamento de Silva, e acrescenta sua
colaboração ao assinalar que a preocupação com a qualidade sempre esteve presente no
discurso educacional basta lembrar o movimento pela qualidade na educação do início do
século –, mas que nunca havia alcançado tal grau de centralidade. Enguita afirma que a
problemática da qualidade “vem substituir a problemática da igualdade e a da igualdade de
oportunidades, que eram então coringas desse jogo” (p. 97).
69
Podemos nos perguntar como ocorre tal deslocamento da discussão sobre a igualdade
e a democracia, para as questões da qualidade e do consumo?
Para respondermos a essa questão podemos nos filiar a duas idéias diversas e
complementares encontradas no próprio Enguita e em Pablo Gentili (1994). Enguita, no
mesmo artigo já citado, começa sua explicação observando que quando os recursos são
escassos, a discussão começa pelo problema da quantidade; quando a escassez é menor, a
questão passa a ser de qualidade. Assim, Enguita acredita que a atual “palavra de ordem” do
neoliberalismo educacional – qualidade –, enquanto conceito, no campo educacional,
(...) inicialmente foi identificado tão-somente com a dotação de
recursos humanos e materiais dos sistemas escolares ou suas partes
componentes (...) Mais tarde, o foco da atenção do conceito se
deslocou dos recursos para a eficácia do processo: conseguir o
máximo resultado com o mínimo custo. Hoje em dia se identifica
antes com os resultados obtidos pelos escolares, qualquer que seja a
forma de medi-los: taxas de retenção, taxas de promoção, egressos dos
cursos superiores, comparações internacionais do rendimento escolar,
etc. (ENGUITA, 1994, p. 98).
Pablo Gentili (1994) acrescenta sua contribuição informando que o deslocamento da
discussão sobre a democracia, para a discussão sobre a qualidade, ocorre na década de 80 em
uma América Latina traumatizada por anos de terror provocados pelas diversas ditaduras
militares espalhadas pelo continente. Ao lado disso, Gentili observa que esta operação foi
possível quando o discurso sobre a qualidade assume o conteúdo que lhe é atribuído no campo
da produção, imprimindo aos debates e às propostas políticas do setor um claro sentido
mercantil...” (GENTILI, 1994, p. 115). O autor observa que para o conceito de qualidade
assumir seu caráter mercantil, foi preciso esvaziar, e mesmo eliminar, da agenda política as
demandas democratizadoras. E ele nos uma pista de como isso aconteceu ao lembrar que
no período final das ditaduras, nos chamados “períodos de transição” foram criadas
(...) as condições para o retorno a uma institucionalidade democrática
controlada, uma democracia da derrota ou, mais paradoxalmente, uma
democracia ‘não-democrática’, cuja base material se imbricava em
duas das mais claras conquistas pós-ditatoriais: a traumatização
subjetiva e a transformação objetiva da sociedade.
Neste contexto, as já quase esquecidas demandas democráticas no
campo das políticas públicas (entre elas a educação) não
correspondiam à natureza mesma da democracia capitalista controlada
e à base material em que esta se inseria adquirindo sentido. Exigia-se
de um Estado democrático que havia sido produto da necessidade
dominante de reproduzir um modelo de exclusão e dualização social
70
que definisse estratégias políticas tendentes a superar
progressivamente a miséria e a marginalidade. Ainda quando graças
às lutas populares algumas conquistas democráticas foram
arrancadas destes Estados da transição, o fracasso de uma política
tendente à democratização dos direitos da cidadania e a uma
ampliação dos espaços públicos não tardou a evidenciar-se. (...) Daí,
as demandas de democratização se imprimiram em um marco
caracterizado pela negação mesma de uma institucionalidade
democrática ou, mais corretamente, pela imposição autoritária de um
novo tipo de democracia: a democracia delegativa. (...) este contexto
era um cenário bastante mais propício para as políticas de ajuste
neoconservadora que para o desenvolvimento das vocações
democratizantes de caráter social-democrata (...). Começava a tornar-
se cada vez mais claro que, em um contexto de profunda desigualdade
social, a democracia era possível somente se ela era de “novo tipo”
(delegativa, controlada, tutelada, etc.) (GENTILI, 1994, pp. 118-20).
Penso que a análise acima feita serve para responder às questões que nos assaltam e
inquietam quando pensamos nas condições que nos arrastaram para o estado de letargia e
desarticulação social, que num momento político anterior eram impensáveis e descabidos; e
não apenas no campo da educação, mas no campo social como um todo. A “democracia
concedida” e a “cidadania concedida” ganham mais sentido.
De que maneira o discurso da Qualidade Total chega ao campo da educação?
Exatamente da mesma maneira como chega às grandes empresas do setor produtivo, ou seja,
não foi feita qualquer adaptação no sentido de tornar mais “apropriado” ou mais “palatável”
tal discurso. Afirmamos isto, ao analisarmos o livro de Cosete Ramos (1992), “Excelência na
educação. A Escola de Qualidade Total”. A autora, que participava da coordenação do
Núcleo Central de Qualidade e Produtividade do Ministério da Educação, resume, traduz e
traz para o Brasil as experiências com o Programa de Qualidade Total (TQC) de algumas
escolas norte-americanas. Não vamos nos deter aqui, pretendemos apenas pontuar quais são
os princípios que norteiam este projeto, quais os entraves que Ramos assinala para a plena
execução do mesmo, e quais as conseqüências que Gentili aponta, criticamente, ao programa
“Escola de Qualidade Total” (EQT).
Em primeiro lugar devemos esclarecer que iremos apenas citar os pontos chaves nos
quais se baseia o programa, uma vez que este não é o foco central de nosso trabalho e, que,
além disso, esta proposta (EQT) ainda não alcançou grande espaço de discussão e difusão no
Brasil, como adverte Gentili.
71
Cosete Ramos (1992) propõe que se aplique no ambiente escolar o Método Deming de
Administração, que consiste em 14 Pontos, pois segundo a autora “este ideário, inicialmente
utilizado para empresas privadas, pode ser extrapolado para qualquer tipo de organização
humana, independentemente de seu vínculo, caráter, tamanho, localização, área de atuação ou
razão de ser” (p. 12).
Os tópicos são os seguintes :
1- Filosofia da Qualidade 8- Distanciamento do medo
2- Constância de propósitos 9- Eliminação de barreiras
3- Avaliação do processo 10- Comunicação produtiva
4- Transação de longo prazo 11- Abandono da quotas numéricas
5- Melhoria constante 12- Orgulho na execução
6- Treinamento em serviço 13- Educação e aperfeiçoamento
7- Liderança 14- Ação para a transformação
Estes tópicos são acompanhados e complementados por princípios elaborados por
William Glasser, que foi quem primeiro transportou os princípios de Deming para o âmbito
escolar. Podemos observar que Glasser tornou mais próxima da realidade escolar, a gestão da
qualidade ao apontar alguns itens a serem seguidos:
1- Gestão democrática ou por liderança da escola e das salas de aula.
2- O diretor como líder da comunidade educativa.
3- O professor como líder dos alunos.
4- A escola como ambiente de satisfação das necessidades de seus membros.
5- Ensino baseado no aprendizado cooperativo.
6- Participação do aluno na avaliação de seu próprio trabalho.
7- Trabalho escolar de alta qualidade como produto de uma Escola de Qualidade.
Ramos (1992) observa que algumas das características da escola, tal como ela se
apresenta hoje, podem funcionar como barreiras ou entraves ao bom desempenho e aplicação
do projeto de Escola de Qualidade Total. Em primeiro lugar, a autora considera que a
habitual maneira centralizadora que os diretores de escola usam para administrá-las,
representa um risco à “qualidade”. Em segundo lugar, a autora salienta a barreira que
72
representam para a “qualidade”, os professores que se encastelam no seu saber e fazem dele
uma forma de poder; eles não estão abertos às possibilidades de mudança e são uma ameaça à
“qualidade”. Por último, a autora destaca como um grande entrave e como algo a ser
rejeitado, a participação e interferência de “grupos informais” que “aparecem, algumas vezes,
em um estabelecimento de ensino com o objetivo de ‘proteger os servidores contra a
administração’. Sua atuação, quando é guiada por interesses puramente corporativos, tem
efeitos altamente prejudiciais para a Escola” (RAMOS, 1992, p. 30).
Em sua crítica ao projeto de qualidade, Gentili (1994) destaca que não se trata de
negar ou minimizar a questão da qualidade, mas explicitar de qual qualidade estamos falando,
para quem a estamos reivindicando e, com qual objetivo a estamos propondo. O autor
observa que na verdade, o que se pretende é formar centros de excelência de qualidade, aos
quais uma pequena minoria terá acesso às mais variadas inovações tecnológicas, e nos quais
serão formadas as novas elites dirigentes, pois segundo a lógica de mercado, a disputa pelos
parcos recursos financeiros será ferrenha e, somente sobreviverá aquele que for
“competitivo”, que certamente não serão as escolas das classes populares. Ele destaca que
Um novo discurso da qualidade deve inserir-se na democratização
radical do direito à educação. (...) Assim como não há democratização
sem igualdade no acesso, tampouco haverá sem igualdade na
qualidade recebida por todos os cidadãos e sem a abolição definitiva
de qualquer tipo de diferenciação ou segmentação social. (...)
transformando a qualidade em um direito e o em uma mercadoria
vendida ao que lhe der a melhor oferta. A escola pública é o espaço
onde se exercita este direito, não o mercado.(...)
Não existe “qualidade” com dualização social. Não existe
“qualidade” possível quando se discrimina, quando as maiorias são
submetidas à miséria e condenadas à marginalidade, quando se nega o
direito à cidadania a mais de dois terços da população. Reiteramos
enfaticamente: “qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio”.
Nosso desafio é outro: consiste em construir uma sociedade onde os
“excluídos” tenham espaço, onde possam fazer-se ouvir, onde possam
gozar do direito a uma educação radicalmente democrática. Em suma,
uma sociedade onde o discurso da qualidade como retórica
conservadora seja apenas uma lembrança deplorável da barbárie que
significa negar às maiorias seus direitos (GENTILI, op.cit., pp. 176-
177).
Durante a década de 1980, diversos movimentos populares buscaram discutir os
problemas da educação e passaram a reivindicar a participação da comunidade escolar (pais,
estudantes e profissionais da educação) no planejamento de novas reformas de ensino.
73
1.7 – PT: UM PARTIDO EDUCADOR?
Partindo de uma concepção completamente contrária à da lógica do mercado e das
proposições do neoliberalismo para a educação, o Partido dos Trabalhadores (PT) que fora
fundado em 1980 a partir do movimento sindicalista urbano, dos movimentos camponeses,
das manifestações da sociedade civil contra a ditadura militar, das associações de moradores,
entre outros –, realizou em 1988 um encontro nacional visando discutir e elaborar as “Bases e
Diretrizes Para Um Plano de Educação Nacional Popular”. Esse encontro tinha como
objetivo imediato oferecer alternativas à lógica de educação “oficial” para os possíveis futuros
prefeitos que o partido conseguisse eleger nas eleições municipais daquele ano
26
e fomentar as
discussões em torno da elaboração da nova LDB – que só seria promulgada em 1996.
No Encontro Nacional de Trabalhadores em Educação (1980) um grupo de
educadores, filiados e simpatizantes do PT, procurou estabelecer uma diretriz única que
norteasse a discussão do partido no campo da educação. Esse grupo acreditava
(...) que essa diretriz ‘deveria brotar do esforço conjunto dos
militantes e pessoas de alguma maneira comprometidas com aquela
prática educativa, voltada para os interesses dos trabalhadores’. As
novas bases e diretrizes, em conseqüência, o deveriam ser apenas
elaboradas por especialistas e profissionais da área, mas também ser
resultado da intervenção dos pais, alunos e trabalhadores em geral
(COMISSÃO PROVISÓRIA do I ENCONTRO DE EDUCAÇÃO do
PT, 1988, p. 9).
No Encontro de 1988 os participantes foram convocados a debater algumas premissas,
pontos a serem aprofundados e princípios, apresentados a seguir:
Premissas...
1 formação de profissionais e técnicos que tenham presente não o
funcionamento do sistema produtivo, mas a melhoria das condições de
trabalho, da mesma forma que o desenvolvimento de linhas de ensino
e pesquisa que respondam às aspirações populares no sentido da
melhoria das condições de vida;
2 livre debate das idéias, de maneira que a escola possa ser,
igualmente, uma instância onde os trabalhadores definam seus
projetos de sociedade;
26
Segundo HECKERT (2007) em 1982 o PT elegeu dois prefeitos Diadema/SP e Santa Quitéria/Maranhão –;
em 1988 foram eleitos 31 prefeitos pelo partido, inclusive nos municípios de Porto Alegre/RS, Vitória/ES e
São Paulo/SP.
74
3 uma pedagogia que contribua para a formação de um espírito
crítico, elemento essencial para a construção de uma sociedade de
homens livres;
4 real integração com a comunidade, na qual esta possa controlar o
sistema educativo em cada localidade. (p. 10).
Pontos...
a) Democracia na escola: o papel dos estudantes, professores,
funcionários e pais de alunos na direção da escola, as associações das
partes da comunidade escolar; a relação professor-aluno e direção-
professor.
b) Relação escola-comunidade: o papel das associações de moradores;
a relação escola-mercado de trabalho.
c) Papel do trabalhador em educação: suas condições de trabalho;
suas formas associativas; a valorização de seu trabalho (idem).
Princípios...
1. A defesa do ensino público e gratuito em todos os níveis para as
classes trabalhadoras (...).
2. A luta por uma outra escola. (...) Trata-se, portanto, não apenas de
ampliar as oportunidades educacionais. Não significa ‘estender’ o
ensino que está para todos (...). Nem se trata de ‘melhorar’ o que
está, introduzindo novas reformas sobre as reformas. Será preciso
mobilizar as classes populares para uma mudança mais radical: para
que não apenas elas estejam dentro da escola, mas tenham o ensino
que lhes interessa (...).
3. A formação do professor-educador. (...) Sem valorizar esse
profissional, sem lhe tirar as amarras que hoje fazem dele um executor
de programas, não será possível uma outra escola: uma escola popular,
criativa, autônoma inclusive no plano didático-pedagógico (...) (p. 12).
Os organizadores desse encontro observavam que “insistimos nos últimos anos que a
educação é um ato político. Hoje pretendemos avançar essa tese mostrando o quanto a
educação além de ser um ato político, é um ato político ‘partidário’...”(COMISSÃO
PROVISÓRIA do I ENCONTRO DE EDUCAÇÃO do PT, op. cit., p. 11). [grifo meu]
Eis uma questão que me parece contraditória: por um lado se afirma que é
necessária a participação popular na escola, debatendo os temas relativos à educação formal,
por outro lado se afirma que a educação é um ato político partidário, ou seja, uma ação
organizada e dirigida por um grupo restrito a um partido. Que efeitos essa contradição pode
produzir?
75
Heckert analisando os movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980 aponta que
vários estudos consideravam esses movimentos “(...) do ponto de vista de sua capacidade
organizativa, como frágeis no encaminhamento de suas reivindicações. E essa ‘fragilidade’
possivelmente é antevista por não compreendermos que a organização não precede a luta, ao
contrário ela é efeito na luta” (HECKERT, 2004, p. 102).
A desmobilização dos movimentos sociais no final dos anos de 1980 e início dos 90
em função de um desgaste dos movimentos em verem atendidas suas demandas frente às
necessidades da sobrevivência cotidiana levou a população, de uma maneira geral, a
desacreditar no engajamento das pessoas nos diversos partidos políticos. Cecilia Coimbra
(1995) desta que:
Consolidam-se cada vez mais as subjetividades hegemônicas dos anos
80: a do ‘cinismo consensual’, por meio da qual a corrupção é
naturalizada e a ‘troca de favores’ penetra nos diversos micro espaços,
época em que a mídia expõe numerosas e infindáveis ‘falcatruas’ dos
chamados ‘colarinhos brancos’ e nada acontece a esses ‘senhores’...
Forjam-se também outros processos de subjetivação que se insinuam
pelos mais diversos segmentos sociais: a descrença na política, nos
seus representantes; a crença de que todos os políticos são iguais e que
não adiante lutar ou reivindicar, pois se ‘meter’ em política é lidar
com coisa suja, espúria, anti-ética e sem princípios (pp. 319-20).
Por isso, talvez o PT ao mesmo tempo em que, de forma inovadora traz para si e
para o interior do partido a preocupação em debater e construir uma proposta ‘alternativa’ em
educação – restringe a possibilidade de realizar um debate mais amplo com os diversos
setores das classes trabalhadoras.
Em um texto de 1981, Carlos Rodrigues Brandão (1988) afirma:
tarefas imediatas de luta pela educação para o povo; tarefas de
longo alcance por uma educação do povo. momentos de lutar pela
educação sem ter o poder que oficialmente a controla. momentos
conjugados de luta pelo poder político, usando também a educação.
Há momentos de lutar, tendo o poder, por uma outra educação (p. 21).
Se naquele momento existia um descrédito da população em geral com relação aos
partidos políticos e alguns movimentos sociais, havia, por outro lado, esse novo partido
político que apostava na organização popular para conquistar os pretendidos avanços nas
condições básicas de vida, inclusive na educação. Sonia Silva (2007) discorrendo sobre os
76
movimentos sociais organizados ao redor e com apoio da Igreja Católica na Baixada
Fluminense observa que:
Demandar políticas públicas ao governo é um direito de cidadania,
pois ele foi constituído para isso. Mas, muitas vezes, essa demanda a
um poder transcendente do Estado gera muita frustração, pois o
mesmo não responde e ficamos com a impressão de que existimos
para demandar coisas ao Estado, e isso não é verdade. Existimos e
fazemos o movimento para fazer fluir a vida em seus mais variados
aspectos, e se o Estado não faz o que ele próprio afirma que deveria
fazer, nós fazemos, porque queremos viver. Sendo assim, pensamos
ser viável reivindicar políticas públicas, mas não cabe ficarmos presos
a isso, pois estes dispositivos são limitados, insuficientes, o dão
conta. Há sempre o que inventar. (p. 32)
Pensar as lutas dos movimentos sociais (inclusive dos profissionais da educação) e do
PT pela educação nos anos 80 e 90 impõe considerar a aposta numa ação coletiva de criação e
não apenas de reação, pois como diz Heckert (2004):
Dizer que as lutas são respostas ao modo de operar do Estado e/ou de
funcionamento do capitalismo acaba por enclausurá-las como reação a
um modo de ação, retirando-lhe sua potência inventiva. Mais do que
resposta ao Estado, essas lutas afirmam outras formas possíveis e
obrigam-no em alguns momentos a mudar seu funcionamento (...). (p.
130)
Moacir Gadotti (1988), por sua vez, afirma em um texto de 1982: “a novidade do PT
talvez não seja a proposta educacional que tem, mas as formas que está encontrando para pô-
la em prática, de acordo com as condições concretas de cada região ou local” (p. 33).
Ana Heckert (2004) faz um belo estudo sobre a implantação das propostas político-
pedagógicas pelos governos do PT em Porto Alegre (a partir de 1989), em Belo-Horizonte (a
partir de 1995) e Belém (a partir de 1997). Ressaltando as diferenças nos processos de
implementação das propostas nesses três municípios, a autora destaca, no entanto,
(...) pelo menos três vetores que delineiam esses projetos: criação de
mecanismos que viabilizassem processos de autonomia na escola com
maior participação em sua administração denominada como
princípios de gestão democrática do ensino procedimentos que
possibilitassem ultrapassar os índices de evasão e repetência, e
formulação do trabalho pedagógico a partir de questões referentes à
realidade sócio-política e cultural da vida dos alunos, atravessando os
conhecimentos escolares com questões referentes à ética e ao
exercício da cidadania (p. 213).
77
Veremos, mais adiante, como essas experiências petistas na gestão da educação se
atualizaram no processo de construção e implementação do Projeto Político-Pedagógico do
município de Chapecó.
A última reforma de ensino proposta no Brasil, no século XX, veio sob a forma da
Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Entre as primeiras discussões e a sua
promulgação passaram-se cerca de dez anos.
A elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB-N) de 1996
veio, de certa forma, responder às exigências do mercado internacional a partir do processo de
globalização econômico-financeira, política e cultural. Desde então, os estados e municípios
brasileiros foram obrigados a rever suas políticas e diretrizes para o ensino médio e
fundamental, propondo novos projetos político-pedagógicos. Tais propostas implicavam em
diversos desafios, muitos dos quais dizem respeito diretamente à prática pedagógica do
professor e à gestão do espaço escolar. Concepções e metodologias de ensino precisavam ser
modificadas. Concepções de homem e de sociedade precisavam ser reconstruídas.
Concepções e certezas sobre o professor e sua função precisavam ser revistas. Alternativas de
gerenciamento precisavam ser criadas, em função das exigências da nova LDB.
De acordo com a LDB, fica garantida, aos sistemas de ensino, liberdade de
organização, podendo a educação básica se organizar em séries anuais, períodos semestrais,
ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na
competência e em outros critérios e facultando, aos sistemas de ensino, o desdobramento do
ensino fundamental em ciclos. Abre também a possibilidade de avaliação/classificação dos
educandos independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola
de acordo com a regulamentação do sistema de ensino, assim como a possibilidade de avanço
mediante verificação do aprendizado.
Estas diretrizes são reforçadas e detalhadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) de dezembro de 1997, que a partir de um diagnóstico do ensino fundamental no país,
denunciou as altas taxas de reprovação e evasão escolar, assim como de repetência, passando
a elaborar propostas centradas nesses problemas, assim como na lógica econômica de
racionalização dos recursos destinados à educação.
O sistema de ciclos de ensino é uma das propostas defendidas por educadores, que
entendem que esta lógica de organização respeita os diversos tempos de aprendizagem e
desenvolvimento dos educandos, os quais possuem ritmos diferenciados. Nesta lógica,
78
entende-se que os processos de aprendizagem se verificam via uma grande diversidade de
formas e tempos. Assim, a organização do ensino em ciclos de formação, garantiria um
tempo mais longo, possibilitando um respeito maior pelo tempo de formação de cada
estudante; um respeito à diversidade, possibilitando um tempo maior para que cada um se
aproprie do saber socialmente elaborado, diminuindo por conseqüência as taxas de reprovação
prematuras e a evasão escolar.
O sistema de ciclos possibilitaria, em parte, satisfazer algumas
necessidades/prioridades definidas pelo poder público federal em relação à educação
brasileira. Passando a ser recomendada, esta forma de organização, pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais, com o objetivo político de minimizar a repetência e a evasão escolar,
pois possibilitaria uma flexibilização do sistema seriado, ampliando o tempo para a
aprendizagem e para a decisão aprovação/reprovação.
O documento afirma, ainda, que a opção pela organização do ensino por ciclos permite
evitar que o processo de aprendizagem tenha obstáculos inúteis, desnecessários e nocivos. E
ainda que a organização por ciclos tende a evitar a excessiva fragmentação, assegurando a
continuidade do processo educativo.
Em 1998, entrou em vigor, o Plano Nacional de Educação, o qual teve como
referências legais a Constituição Federal de 1988, a LDB de 1996, a Ementa Constitucional n
o
14 de 1995, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério. Além de seguir orientações da UNESCO.
Este documento, assim como os Parâmetros Curriculares Nacionais, também apresenta
uma análise da situação da educação brasileira, apontando como causas do inchaço nas
matrículas do ensino fundamental, os elevados índices de reprovação. Em outras palavras
propõe, no lugar da ampliação do número de vagas, a diminuição do tempo de formação dos
alunos (em média 10,4 anos para completar as oito séries do ensino fundamental) prova a
ineficiência do sistema de ensino do país, o que provoca custos adicionais aos sistemas de
ensino. Uma proposta fundamentada na Qualidade Total: formar o maior número de alunos,
com o menor custo possível.
Os temas transversais também fazem parte de um dos aspectos inovadores das
reformas curriculares, através dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), elaborado pelo
MEC, porém, provocam o desenvolvimento de muitos debates fomentados pelas denúncias de
países que introduziram os temas transversais em seu currículo, mencionando as dificuldades
79
na sua implantação, os riscos de trivialização e a superficialidade na implementação desses
temas aos currículos.
A implantação dos temas transversais serviria para complementar os conhecimentos
oferecidos pelas disciplinas que não dão conta da realidade dos sujeitos, entendidos como
cidadãos ativos. Seriam temas de importância social, utilizados como tentativa de articulação
dos conhecimentos científicos com os conhecimentos “não-científicos”, para que se pudesse
dar conta dos problemas enfrentados no dia-a-dia dos sujeitos, que seriam introduzidos,
quando a lógica disciplinar permitisse, em diferentes áreas do saber.
As possibilidades de organização do sistema escolar promovidas pela LDB de 1996,
além da obrigação constitucional de os municípios arcarem com os custos do ensino
fundamental, deixaram a critério destes a opção de qual perspectiva de educação adotar na
formação de seus cidadãos.
80
CAPÍTULO II
CLOSE EM CHAPECÓ: UM CENÁRIO, UM
ACONTECIMENTO...
2.1 – UM CENÁRIO
Figura 1 Escultura em homenagem ao “Desbravador” – Esta escultura fica na praça central da cidade, em
frente ao “Hotel Bertaso” e ao lado da Igreja Matriz de Chapecó.
81
Figura 2 – Igreja Matriz – ao seu lado esquerdo encontramos a escultura (acima) e ao seu lado direito a antiga
sede da Prefeitura (hoje ocupada pela Secretaria de Educação).
O município de Chapecó
27
, fundado em 1917, tem uma história que remonta o período
imperial brasileiro e passou por várias modificações – tanto em sua extensão territorial quanto
em seu status como unidade (colônia, vila, município) do Império e posteriormente da
Federação.
A disputada pela posse da região sul do país, entre a Argentina e o Brasil no século
XVIII (que foi terminada com o Tratado de Madri, em 1759), incentivou o governo Imperial a
criar (em 1859) e fundar (em 1882) a Colônia Militar de Chapecó.
Como parte da região oeste de Santa Catarina, Chapecó também se viu envolvido em
disputas territoriais com o estado do Paraná a conhecida “Guerra do Contestado” (1912 a
1916)
28
sendo mantido sob controle catarinense. Os acordos para o final da guerra
envolviam a concessão de terras à empresa americana “Brazil Railway Co” que havia
construído a estrada de ferro São-Paulo Rio Grande, no extremo-oeste catarinense. Uma
filial desta empresa a “Brasil Development & Colonization Co” assumiu a tarefa de
colonizar aquela região, e repassou esta empreitada a outras empresas colonizadoras.
27
Chapecó é palavra de origem Kaigang tribo indígena nativa da região e origina-se dos termos “echa” +
“apê” + “go” e significa, na língua nativa, “donde se avista o caminho da roça”.
28
A Disputa encerrada nesta guerra envolvia a posse de uma faixa de terra ao longo da estrada de ferro que
ligava os estados de São Paulo ao Rio Grande do Sul cortando os estados do Paraná e de Santa Catarina ao
longo do Vale do Rio do Peixe.
82
Entre as principais empresas colonizadoras destacam-se a Empresa Colonizadora
Irmãos Lunardi e a Empresa F. Bertaso (Empresa Colonizadora Bertaso, Maia e Cia.). Esta
última instalou sua sede no território a ser colonizado,
(...) promovendo a ocupação da área que corresponde ao atual
município de Chapecó e arredores (Coronel Freitas e Quilombo).
Retalhando as enormes propriedades existentes na área, a empresa
forçou a estrutura minifundiária que caracteriza a região, alterando as
relações socioeconômicas e políticas, vigentes. (HASS, 2001, p. 64).
A Empresa Colonizadora Bertaso, além do processo de colonização também
empreendeu esforços nas primeiras atividades econômicas da região (ampliação da
exploração, com a instalação de serrarias, e exportação de madeira especialmente para os
países da região do Prata –, indústrias cerâmicas, frigoríficos, moinhos de trigo, etc.). Os
colonos trazidos pela empresa eram, em sua maioria, famílias de ítalo-brasileiros oriundos do
Rio Grande do Sul.
O Conhecido coronel Bertaso título militar que teria sido comprado pelo imigrante
italiano nacionalizado brasileiro mantinha algumas semelhanças com os antigos “coronéis”
da política nordestina
29
. No entanto, uma grande diferença é o fato de que o Coronel Bertaso
não era um latifundiário (proprietário de uma grande extensão de terra explorada através da
agricultura), mas um comerciante de terras, e, acima de tudo, um colonizador que tinha como
principal função tornar a região oeste de Santa Catarina habitada e habitável. Mônica Hass
(2001) observa que
Bertaso é lembrado pelos moradores mais antigos de Chapecó como
um coronel “bonzinho” “gente boa, um santo homem”. Paternalista,
doador de coisas e patrocinador de causas, organizava festas de
integração comunitária, além de facilitar o pagamento e doar lotes de
terra. A maioria dos terrenos dos estabelecimentos públicos,
religiosos, filantrópicos e de entidades com fins recreativos e
esportivos foram doados pela Colonizadora Bertaso. Além disso, a
empresa colonizadora preocupava-se com a infra-estrutura das
localidades, como ruas traçadas, lotes urbanos demarcados, e serviços
indispensáveis casa comercial, igreja, escola e hotel como forma
de garantir o progresso dos núcleos de povoação. (p. 69).
29
Desde os princípios da República brasileira, o comando dos velhos políticos locais é representado pela figura
do coronel. O coronelismo torna-se a prática freqüente de apadrinhamento político e obediência servil aos
interesses do coronel geralmente um grande latifundiário. A total fidelidade aos coronéis locais se manifestava
durante os períodos eleitorais (que garantiam uma capa de democracia republicana) e eram revelados pela
prática do “voto de cabresto” e pela manutenção dos “currais eleitorais”. A Esse respeito ver: FRAGOSO, 1990.
83
O governo do estado de Santa Catarina, com a intenção de legitimar a ocupação do
município de Chapecó, alia-se aos colonizadores da empresa Bertaso e nomeia um de seus
sócios como delegado de polícia (1919). A aliança do governo do estado com os
colonizadores trazia inúmeras vantagens, pois além da dificuldade para ocupar a região com
escassos recursos públicos, da dificuldade de comunicação entre a capital do estado e a região
oeste, havia ainda uma disputa intensa disputa que gerava violentas ações armadas entre
os novos moradores (trazidos pelas colonizadoras) e os antigos proprietários de terra que
exploravam a extração de erva-mate e da madeira, os caboclos e os índios Kaigang.
As disputas políticas locais incluíam nomeações de delegados, mudanças da sede da
comarca para outra Vila (Xanxerê), a prisão e assassinato (linchamento) de quatro homens
acusados de tentativa de roubo e de incendiarem a igreja matriz e uma serraria local
30
,
intimidação e ameaças de invasão do município em períodos de eleições, denúncias de
corrupção e desmando administrativo, etc., revelando os intensos conflitos existentes entre a
elite política chapecoense na disputa pelo poder local, desde a fundação do município.
Ressalta-se que os conflitos violentos dessa época em torno da
conquista e/ou manutenção do poder local, nos ajudam a compreender
a radicalidade dos conflitos partidários posteriores, principalmente nos
primeiros anos do período pluripartidário.
A intensificação do processo de urbanização e as transformações na
economia da região, a partir do final dos anos 30 (...) ocasionam novas
transformações na configuração do poder local, bem como o novo
contexto político, a partir de 1945 (...). (HASS, 2001, p. 102)
Em seu estudo Hass (2001) observa que durante o primeiro governo Vargas (1930-
1945) o mandonismo foi perdendo força em Chapecó, pois o poder político local foi sendo
diluído entre vários partidos políticos. A autora destaca três partidos que se desenvolveram e
ganharam força nas disputas locais: PSD (Partido Social Democrata), UDN (União
Democrática Nacional) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).
Segundo SOLA (1987) essas três agremiações políticas tinham, de alguma forma,
ligação com o presidente Vargas, uma vez que o PSD composto pelas oligarquias rurais,
industriais e banqueiros tivera sua organização “supervisionada por Vargas”; a UDN
constituída por “antigos liberais constitucionalistas” antigetulistas contava em seu quadro com
a “burguesia comercial urbana, ligada aos interesses exportadores e importadores” e contava
com o apoio das camadas médias urbanas teve seu candidato à presidência (Brigadeiro
30
A esse respeito ver HASS, 1999.
84
Eduardo Gomes) apoiado por Vargas; o PTB que “mobilizava a burocracia sindical” se
tornaria o partido do presidente nas próximas eleições, pois “a ideologia populista desse
partido mantinha e reforçava a tradição inaugurada por Vargas”. (SOLA, 1987, pp. 280-1).
Em Chapecó, segundo Hass (2001), esses mesmos partidos políticos ganham
características específicas a partir de um viés étnico, religioso e de origem socioeconômica na
composição e organização partidária. Assim, o PSD único partido organizado no município
até 1945 era composto por “colonizadores e madeireiros, em sua maioria católicos e em
menor número os comerciantes. A sua base concentrava-se nos distritos de colonização
italiana e dos caboclos”; na UDN, por sua vez, “participam tanto os protestantes como os
católicos. O partido era mais forte nos distritos de colonização alemã, e na sua composição
social constata-se uma origem socioeconômica diversificada, prevalecendo, no entanto, os
comerciantes”; o PTB tem uma composição socioeconômica diversa contando com os
setores médios urbanos advogados, funcionários públicos, comerciantes e industriais
madeireiros – e “também predominam os católicos, uma vez que o partido disputava a mesma
base eleitoral do PSD, ou seja, as áreas de imigração italiana e dos caboclos” (p. 331).
Os estudos de Hass englobam o período de 1930 a 1965. A partir daí, infelizmente
não encontramos mais estudos no campo das disputas político-partidárias em Chapecó. De
qualquer forma, acredito que pelo que foi exposto, podemos constatar que a formação do
pensamento político da cidade encontra-se num campo conservador, que se torna hegemônico.
Por isso, talvez, a vitória de uma candidatura do PT em 1997 tenha sido um fato tão inédito e
surpreendente
31
.
2.2 – UM ACONTECIMENTO?
Fico me perguntando: a vitória do PT e a proposta de um novo projeto político
pedagógico seriam um acontecimento? Em que sentido? Voltemos à noção de acontecimento!
Foucault e Deleuze, ao longo de suas obras, tomam como ponto de partida e referência
os conceitos de Nietzsche para pensar as noções de acontecimento, de forças e de campo de
31
Em conversa com militantes petistas e com representantes de outros partidos mais conservadores, esta vitória
do PT deveu-se, em grande parte à divisão das forças políticas mais influentes na região: PMDB, PFL, PTB e
PSDB.
85
forças. Colocar em questão as forças que estão em jogo na história implica em buscar não as
causas e conseqüências de um determinado evento, mas em procurar ressaltar quais práticas
devem ser observadas e analisadas na expectativa de explicitar como os saberes e fazeres nos
constituem como sujeitos em uma determinada época, em uma determinada sociedade.
O que seriam essas forças? Como se apresentam e se relacionam? Como se compõem
e o que produzem?
Para Nietzsche existem dois tipos de força: ativa e reativa. Estas forças são
impulsionadas por uma vontade de poder: de afirmação e de negação. Não iremos considerar
todos os pormenores e senões envolvidos neste pensamento, mas apenas destacar os efeitos
que ele pode produzir ao pensarmos o acontecimento como conceito tecido a partir das forças.
Partindo de Nietzsche, Deleuze (1976) considera que os corpos se definem a partir da
relação das forças ativa e reativa – que o afetam. A força ativa se caracteriza pela tendência
ao poder: “apropriar-se, apoderar-se, subjugar, dominar são os caracteres da força ativa.
Apropriar-se quer dizer impor formas, criar formas explorando as circunstâncias (...) o poder
de transformação, o poder dionisíaco, é a primeira definição da atividade”. Por outro lado, a
reação também se apresenta como uma força, mas apenas a compreendemos em sua relação
com a força ativa: “reativo é uma qualidade original da força mas que só pode ser interpretada
como tal em relação com o ativo, a partir do ativo (...) ativo e reativo são as qualidades das
forças” (DELEUZE, 1976, pp. 34-5).
O impulso motriz das forças é o que Nietzsche chama de vontade de poder (ou vontade
de potência). As qualidades da vontade de poder são a afirmação e a negação, que para ele,
devem ser absolutas: a vontade de poder afirmativa corresponde à criação, à invenção, à
multiplicidade “o sentido da filosofia de Nietzsche é o de que o múltiplo, o devir, o acaso
são objetos de afirmação pura” (DELEUZE, op. cit., p. 164) a vontade de poder negativa
corresponde ao nada, à morte, à destruição, ao niilismo completo (daí a defesa do niilismo
como uma vontade de poder legítima) “a negação ativa, a destruição ativa, é o estado dos
espíritos fortes que destroem o que neles de reativo, submetendo-o à prova do eterno
retorno (...), com o risco de querem o declínio se si mesmos” (DELEUZE, op. cit., p. 57).
A vontade de poder (afirmação ou negação) manifesta-se nas forças (ativa ou reativa),
no entanto ela pode ser determinada pela relação entre as forças. Isto é, uma vontade de poder
afirmativa ao ser profundamente afetada por uma força reativa pode tornar-se uma vontade de
poder de negação. Quanto mais sensível (poder de afetar e ser afetada) a força, mais forte a
86
vontade de poder que ela qualifica. Para Deleuze (1976) “a vontade de poder manifesta-se,
em primeiro lugar, como sensibilidade das forças e, em segundo lugar, como devir sensível
das forças” (p. 52).
A vontade de poder afirmativa tende a uma afinidade com a força ativa, assim como a
vontade de poder negativa tem afinidade com a reação. Cabe, porém, uma ressalva: “há
forças reativas que se tornam grandiosas e fascinantes por força de seguirem a vontade de
nada; mas forças afirmativas que caem porque não sabem seguir os poderes de afirmação”
(DELEUZE, op. cit., p. 55).
Um acontecimento, como dissemos, se no confronto das forças que a todo o
momento se combatem entre a expansão, a criação e a conservação, a estagnação. Mesmo
que tenha “nascido” de um devir ativo, impelida por uma vontade de poder afirmativa, uma
força ativa pode se enfraquecer, se perder em sua ação e potência criativa.
Eis o que quero colocar em questão: em que medida podemos considerar que a eleição
do PT em Chapecó e a posterior implantação de um projeto político pedagógico se constitui
como um acontecimento? Que forças estavam em jogo? Que práticas se fortalecem e que tipo
de sujeitos elas ajudam a conformar? A força criativa de uma vontade afirmativa se mantém?
Até que ponto?
Naquele momento ainda acreditávamos que uma proposta de educação de um governo
petista seria impulsionada por uma vontade de mudança tanto em seus princípios quantos em
suas práticas. Talvez o desencanto venha exatamente daí: mudança em lugar de
transformação, transvaloração. Acreditávamos nos “ideais” tão ricos às “esquerdas”.
Ignorávamos (ou fingíamos ignorar) as micropolíticas do fascismo existentes nos partidos de
esquerda. Negligenciávamos a singularidade do desejo em detrimento de um bem coletivo
idealizado
32
.
Bem, passado o desabafo, voltemos às nossas questões!
Em 1998 a Secretaria Municipal de Educação e Cultura do “governo popular” do PT
em Chapecó apresentou ao Conselho Municipal de Educação, que aprovou, a “Proposta
Curricular da Organização do Ensino Fundamental em Ciclos”. Apontando para a
participação da comunidade escolar na construção do projeto político-pedagógico, o
documento traz quatro princípios que devem nortear o processo pedagógico na perspectiva da
32
Guattari havia nos advertido sobre estes perigos. A esse respeito, ver: “Somos todos grupelhos” e
“Micropolítica do fascismo” In: Guattari, 1987.
87
educação popular, como forma de garantir a “qualidade social” (sic): resgate da cidadania,
democracia, trabalho coletivo, autonomia.
Este documento traz, ainda, como diretrizes: 1ª Toda criança na escola; 2ª 2.500
Jovens e adultos alfabetizados por ano; Que todo (a) aluno (a) aprenda; Valorização do
(a) educador (a); Descentralização das decisões; Envolvimento da comunidade;
Valorização da cultura popular; Meio ambiente educação ambiental. Cabe ressaltar que
para cada uma das diretrizes existe o desenvolvimento de um pequeno texto explicativo,
exceto na diretriz que trata da descentralização das decisões. Cabe ainda destacar que os
documentos desenvolvidos por esta secretaria são fortemente marcados pela influência das
experiências educacionais dos governos petistas de São Paulo e, especialmente, de Porto
Alegre/Rio Grande do Sul.
O município de Chapecó optou pela organização do ensino fundamental em ciclos que
atendem cidadãos de 6 a 14 anos, com a inclusão de temas geradores/transversais
construídos a partir da pesquisa investigativa conduzida pelos professores e das “falas”
relevantes dos alunos sobre sua realidade social.
A Secretaria da Educação e Cultura de Chapecó, buscando fazer da escola e do
processo educativo um espaço para o resgate da cidadania de todos os atores da comunidade
escolar (sic), elaborou uma Proposta Político-Pedagógica na qual a construção do
conhecimento deve enfatizar o caráter político da prática pedagógica. Nesse sentido, o
exercício da democracia, a construção de um trabalho coletivo, o estímulo à autonomia e a
descentralização das decisões apontariam não somente para a valorização do educador, mas
também para o resgate da cidadania do profissional educador.
No entanto, sabemos que estes aspectos políticos não totalizam a experiência cotidiana
do professor em seu ambiente escolar. Aspectos como a afetividade, a confiança, o
reconhecimento e valorização do conhecimento e da criatividade do professor, entre outros,
podem, muitas vezes, significar a decisão de participar ou não de uma nova proposta
pedagógica, de forma responsável, dedicada e comprometida. Não bastam documentos com
prescrições sobre a forma de organização do trabalho ou sobre a adoção de uma concepção
pedagógica calcada na educação popular.
Os pontos destacados acima apontariam para as intenções “inovadoras” e
“progressistas” que um governo do PT poderia introduzir na gestão educacional do município.
88
Durante os anos da ditadura militar no país os educadores brasileiros se viram diante
de um confronto estabelecido de forma bastante clara: de um lado a política educacional
oficial ditada pelos ministros da educação dos governos militares amparadas, como vimos,
nas diversas teorias importadas especialmente dos Estados Unidos que serviam à
manutenção e ao aprofundamento dos privilégios das camadas sociais mais ricas; por outro
lado diversas propostas políticas e pedagógicas que defendiam profundas transformações no
campo educacional com vistas a transformar a realidade social brasileira. Tínhamos, então,
uma política educacional “oficial” versus uma política educacional alternativa.
Com as mudanças na forma de organização política, econômica e cultural que se
expandem por todo o mundo, especialmente a partir da década de 1980 (o denominado
processo de globalização), os contornos, as delimitações, as fronteiras, enfim, as referências
se modificaram, se ampliaram, se misturaram, ou deixaram de se manifestar. Alguns teóricos
(cientistas políticos, economistas, historiadores, cientistas sociais, etc. passaram a defender
o “fim da história”, a regulação social através da “mão invisível do mercado”, a extinção de
“direita e esquerda” como conceitos no campo da política, etc. A expansão e consolidação do
neoliberalismo tiveram reflexos, também, no campo educacional brasileiro: as fronteiras entre
o oficial e o alternativo se tornam nebulosas.
Sandra Corazza (2001) faz uma comparação entre as propostas educacionais
apresentadas nos documentos dos governos federal (Parâmetros Curriculares Nacionais –
PCNs) e do estado do Rio Grande do Sul (Constituinte Escolar), no período de 1998 a 2000.
Através de um jogo de ocultamento da autoria dos documentos dos dois governos, a autora
vai demonstrando que poucas diferenças estabelecidas entre as propostas do governo do
presidente Fernando Henrique Cardoso – tida pelos petistas como a política educacional
oficial e as do governador petista Olívio Dutra, em sua primeira administração à frente
daquele estado, tida como uma proposta alternativa. Corazza ressalta que, obviamente, assim
que lançada por um governo, mesmo que de oposição ao governo central, a proposta do
governo petista gaúcho, se torna uma proposta oficial.
Não vamos nos deter em todas as comparações que aquela autora estabelece, mas em
dois pontos, a saber: os processos de elaboração das propostas e o uso de alguns conceitos
cidadania, democracia e participação, educação de qualidade presentes nos documentos dos
dois governos. Depois disso buscaremos refletir sobre essas questões no processo da reforma
de ensino do governo petista de Chapecó.
89
Com relação aos processos de elaboração das propostas, Corazza (2001) observa que
houve diferenças: se, por um lado, a proposta do governo federal foi elaborada por
especialistas educacionais em seus gabinetes refrigerados do Distrito Federal, a proposta do
governo estadual do Rio Grande do Sul foi elaborada a partir de um processo longo e gradual
que envolvia uma ampla parcela da comunidade escolar e foi denominada como “Constituinte
Escolar”.
Façamos agora um pequeno parêntesis!
O Partido dos Trabalhadores elegeu o primeiro prefeito de Potro Alegre em 1988 e
administrou a cidade por quatro mandatos consecutivos (até 2004).
Diversas publicações da SMED
33
de Porto Alegre, durante esse período, contribuíram
para a cumulação de discussões dos aspectos políticos, pedagógicos, teórico-conceituais e de
organização social envolvidos no processo de construção de uma proposta educacional que
encarnasse os princípios democráticos e participativos ambicionados por um governo popular.
Em 1998 foi publicado um livro
34
que trazia as contribuições de diversos estudiosos do campo
da educação na edição do Seminário de Reestruturação Curricular, realizado com o apoio e
promoção daquela secretaria.
Chamo atenção para o fato de que mesmo com todo esse acúmulo de discussões e
experimentações as publicações que relatam a experiência de elaboração e implementação da
proposta político-pedagógica do governo petista do RS nem sequer citam o processo
desenvolvido pela prefeitura petista por cerca de 15 anos. Por que será? Talvez os dirigentes
desses dois processos pertencessem a “tendências”
35
diferentes dentro do partido? Os
princípios políticos e educacionais não eram os mesmos? lembremos das diretrizes
propostas pelo partido no Encontro Nacional de 1988. Aos processos envolvendo município e
estado não cabem comparações? Essas são interrogações para as quais não me sinto capaz de
responder. Entretanto, são questões que não me permito ignorar.
Fechemos o parêntesis e voltemos à análise proposta por Corazza (2001).
33
Especialmente os periódicos Cadernos Pedagógicos e Paixão de Aprender.
34
SILVA, Luiz Heron (org.) A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998.
35
O Partido dos Trabalhadores, durante muitos, anos abrigou em seu meio diversos pequenos partidos de origem
leninista, trotskista e maoísta que durante o período da ditadura militar eram proibidos que não quiseram ou
não conseguiram se constituir como partidos independentes após a constituição de 1988 e eram chamados de
“tendências”.
90
A autora observa que “uma das críticas mais recorrentemente feitas aos PCNs referia-
se à ausência de um processo democrático e participativo, em sua elaboração, que ficou
restrita a um grupo limitado de especialistas e consultores”. (p. 106)
Por outro lado, Lucia Camini (2001) observa que,
(...) a sociedade atual tem a exclusão como regra... neste modelo de
sociedade, a democracia resume-se a eleger representantes que
elaboram, decidem e executam as políticas públicas. No caso da
educação, os projetos são, tradicionalmente, elaborados em gabinetes
e repassados para as escolas através de pacotes com fórmulas e
manuais pedagógicos para serem executados. (p. 46)
Esta afirmação introduz e justifica o pensamento da autora em relação ao processo
proposto pelo governo de Olívio Dutra:
O Governo Democrático e Popular do Rio Grande do sul, tem como
objetivo inverter esta regra. Na construção da Escola Democrática e
Popular, processo e resultado forma e conteúdo estão profundamente
interligados. faremos uma escola com conteúdo democrático
desenvolvendo processos democráticos, faremos uma escola
popular, com a participação direta de todos os sujeitos envolvidos nos
processos educativos. (CAMINI, 2001, p. 47)
Camini (2001) faz toda uma reflexão a respeito da democracia representativa e seus
efeitos na limitação da participação popular na elaboração de políticas públicas que afetam,
especialmente, as camadas mais pobres da população como a educação, por exemplo. Ela
observa que muito se tem dito sobre gestão democrática, eleição de dirigentes, participação de
voluntários em atividades da escola, mas que realmente isso apenas esconde o fato de que a
maioria das pessoas que convivem cotidianamente no espaço escolar são meros executores de
políticas para as quais não foram chamados a opinar.
Mais uma vez, o que está escondido é uma concepção elitista de que a
educação é um assunto sério demais para deixar a cargo de alunos/as,
pais e mães, funcionários e professores decidirem. Aliás, pelas novas
tendências, nem mesmo os pedagogos precisam opinar porque o
problema não é pedagógico, mas de qualidade na gestão
administrativa e financeira. (p. 53)
Fazendo uma crítica aberta aos princípios da Qualidade Total na educação, que
ancorados no pensamento neoliberal permeiam os documentos do governo federal – e a
“educação oficial” a autora se pergunta como um ente da Federação (o estado) poderia
propor as transformações necessárias à escola e concomitantemente à sociedade? E ela
91
própria responde considerando que a secretaria de educação daquele estado desenvolveu um
processo de envolvimento da comunidade escolar, organizações da sociedade civil e do poder
público para elaborar e implementar diretrizes para e educação pública gaúcha. Este processo
foi denominado Constituinte Escolar.
Tanto Corazza (2001) como Camini (2001) apontam momentos distintos nesse
processo: 1º Momento – elaboração e lançamento de uma proposta de ampla mobilização para
a produção de uma nova política educacional para o estado (abril de 1999); Momento
estudo da realidade política, social, cultural econômica, etc., discussão e resgates das práticas
pedagógicas experimentadas na prática docente, e levantamento de outras questões pertinentes
ao debate (maio-novembro de 1999); Momento aprofundamento das problemáticas
levantadas anteriormente, com a realização de pré-conferências municipais e microrregionais
de educação (até junho de 2000); Momento definição de princípios e diretrizes para a
Escola Democrática e Popular, na Conferência Estadual de Educação da qual participaram
de 3.500 delegados (membros da comunidade escolar, movimentos populares e sindicais,
estabelecimentos de ensino superior, órgãos públicos, ONGs, etc.) eleitos nas pré-
conferências (agosto de 2000); Momento (re) construção dos Projetos Político-
Pedagógicos nas diversas instâncias da Secretaria de Estado da Educação (a partir de agosto
de 2000).
Camini (2001) sustenta que os princípios que nortearam o processo da Constituinte
Escolar foram:
a) Educação como um direito de todos...enfatizando principalmente a
situação daqueles que, ao longo da história, tiveram este direito
negado (...).
b) Participação popular como método de gestão das políticas públicas
na área de educação, estimulando e garantindo condições para a
construção coletiva de uma educação libertadora.
c) Dialogicidade como princípio ético-existencial de um projeto
humanista e solidário, respeitador das diferenças e da pluralidade de
visões de mundo, porém crítico e propositivo diante das desigualdades
e injustiças sociais.
d) Radicalização da democracia enquanto objetivo de um Governo
Democrático e Popular (...) estimulando a co-gestão da esfera pública
na direção da soberania e controle popular sobre o Estado.
e) Utopia enquanto sonho impulsionador da educação e da Escola
Democrática e Popular (...). A utopia enquanto força impulsionadora
de uma educação emancipatória. (p. 55)
92
Embora descritos dessa forma, esses princípios ganhem fulgores de “palavras de
ordem”, o contexto no qual são enunciados lhes conferem um caráter de força ativa, criadora e
expansiva, convocando para a ação.
No entanto, embora os princípios e o processo da Constituinte Escolar se apresentem
como uma diferença em relação à elaboração dos PCNs, Corazza (2001) se pergunta: “não é
no mínimo ‘estranho’ que, mesmo vivendo processos de elaboração tão distintos, os
resultados discursivos das duas propostas apresentem tantas similaridades?” (p. 108).
Vejamos então alguns conceitos que aparecem em ambos os documentos (federal e
estadual) de forma similar.
a. Educação de Qualidade embora nenhum dos documentos defina claramente o
que vem a ser educação de qualidade, os dois documentos afirmam que como
direito de todos e dever do estado, a educação de qualidade não se restringe a
garantir o acesso e a permanência dos alunos na escola, mas também deve garantir
aprendizagens significativas para a formação de cidadãos “críticos, responsáveis e
participativos”.
b. Cidadania ambos os documentos assinalam que a cidadania (ou a formação para
a cidadania o que seria isso?) é o eixo fundamental que norteia a ação educativa
escolar; apontam, também, para a perspectiva de que a ação cidadã implica em
participação popular nos espaços públicos como forma de garantir e ampliar a
democracia.
c. Participação os dois documentos exortam a necessidade de participação da
comunidade escolar nos destinos da escola como um “ensaio”, uma preparação
para o “exercício da cidadania ativa” na gestão pública (federal) tendo um papel
importante a participação da comunidade “na construção de uma educação e escola
comprometidas com o desenvolvimento social” (estadual). Cabe ressaltar que o
documento gaúcho explicita que a participação da comunidade se estende às
decisões financeiras, administrativas e pedagógicas.
d. Democracia ambos os documentos que o processo de construção, ampliação e
garantia da democracia é um direito, um dever, uma responsabilidade de todos os
cidadãos; que a democracia seria uma “forma de sociabilidade que penetra todos
os espaços sociais” (federal) inclusive a escola, pois “democratizar é construir
participativamente um projeto de educação de Qualidade Social” (estadual).
93
2.3 – CONCEITOS E CONCEITUAÇÕES
Façamos uma pequena reflexão a respeito das idéias e conceitos acima citados, pois
eles são importantes para vislumbrarmos a educação e a escola que estão sendo propostas.
O pensamento hegemônico, reforçado pelo pensamento neoliberal continua conferindo
à escola a responsabilidade de formar “cidadãos” capazes de contribuir para o equilíbrio da
sociedade
36
. A boa escola, a escola de qualidade, portanto, seria aquela que prepara o
estudante-trabalhador-cidadão para o mercado de trabalho.
Embasados nas propostas de “qualidade total” na educação boa parte dos especialistas
em educação acreditam que a racionalização de recursos financeiros, a racionalização de
espaços e tempos no âmbito da escola e a formação, treinamento e fiscalização do trabalho
docente na aplicação de novos métodos pedagógicos, garantiriam a qualidade do ensino e,
conseqüentemente a eficiência da escola pública.
A fala da professora Irene ilustra bem essa perspectiva:
Eu sou professora orientadora educacional de formação de
graduação e pós. Hoje eu estou fazendo mestrado em gestão de
empresas. Estou tentando levar a pedagogia para o lado empresarial,
que a gente sabe que a escola está sempre atendendo a demanda de
trabalho do povo. Do povo não. A demanda de trabalho das
empresas, né? E isso para formar o trabalhador (...) Porque a escola
só responde de acordo com a exigência do mercado (...).
─ E como é ter que trabalhar de acordo com essa lógica de mercado?
É assim, toda lógica de mercado é, a gente está correndo atrás de
uma máquina, que é uma engrenagem maior. Então a necessidade do
povo vem andando, vem surgindo, ampliando as necessidades de
acordo com o momento que estamos vivendo. Aí você chega na
questão da educação.
Acredito ser interessante a conclusão que esta professora elabora sobre as razões e a
pertinência da adoção de uma proposta de educação popular como resposta às necessidades do
mercado de trabalho:
36
A rádio CBN uma cadeia nacional apresenta diariamente um programa chamado “Capital Humano” no
qual são apresentadas propostas “alternativas e inovadoras” no campo da educação, segundo o jornalista
responsável (Gilberto Dimenstein). Mesmo desconsiderando o fato de que as experiências e propostas
apresentadas no programa se assentem na perspectiva da Qualidade Total em Educação, destaco a forma como é
feita a chamada – ou o slogan – para o programa: “Como a educação pode formar melhores estudantes,
trabalhadores, cidadãos!”
94
O momento vai exigindo que se eduque o povo desta forma, sabe?
Não é porque a nossa rede definiu essa questão da educação
popular, mas porque ela realmente vem de encontro a uma
necessidade que não é de hoje, é de bastante tempo (...) As
empresas não querem mais um trabalhador que só sabia apertar o
botão. Ele tem que saber apertar o botão, tem que saber interpretar
por que ele está apertando o botão e como resolver os problemas que
essa máquina der (...).
No entanto, universo dos educadores essa discussão não é consensual, pois muitos
contrapõem essa perspectiva de qualidade a uma outra que defende que qualidade do ensino
diz respeito à capacidade da escola em formar cidadãos preparados para intervir
democraticamente na realidade social.
Os teóricos baseados na abordagem sócio-histórica – de inspiração marxista – da
educação defendem que a escola deve fundamentalmente preparar o aluno para se apropriar
do saber historicamente produzido pelos homens. Vitor Paro (2001) observa que
A escola pública tem baixa qualidade, antes de tudo e principalmente,
porque não fornece o mínimo necessário para a criança e o
adolescente construírem-se como seres humanos, diferenciados do
simples animal. Quando se fala em educação para a formação do
cidadão é esse pressuposto que deveria estar por trás: o de que, como
condição para elevar-se a um nível humano de liberdade,
diferenciando-se da mera necessidade natural, o indivíduo precisa
atualizar-se historicamente pela apropriação de um mínimo do saber
alcançado pela sociedade da qual faz parte. (p. 61)
Paro (op. cit.) considera que existem vários fatores que tornam a escola pública
ineficiente, entre elas as “precárias condições de funcionamento das escolas mantidas pelo
estado”. (p. 62) Essas precárias condições incluem o grande número de alunos em sala de
aula, falta de material pedagógico, falta de orientação pedagógica, baixos salários dos
profissionais, excesso de horas de trabalho, métodos inadequados, professores mal formados,
enfim péssimas condições de trabalho. Além disso, parece que as crianças não têm interesse
em “dar o retorno,” esperado pela escola, aos esforços de ensino que ela empreende. O autor
ainda destaca a necessidade de uma cooperação por parte da família no sentido de valorização
do trabalho educativo realizado na escola, pois
Levar o aluno a querer aprender implica em um acordo tanto com
educandos, fazendo-os sujeitos, quanto com seus pais, trazendo-os
para o convívio da escola, mostrando-lhes quão importante é sua
participação e fazendo uma escola pública de acordo com seus
interesses de cidadão.
95
É isso que justifica investigar, no âmbito da escola pública
fundamental, as dimensões de uma possível participação da família na
promoção, junto a seus filhos estudantes, de valores favoráveis ao
estudo e à aquisição do saber, bem como na adoção de posturas e
comportamentos diante deles que contribuam para a melhoria da
qualidade de seu aprendizado. (PARO, 2001, p. 67)
Para coordenar as diferentes expectativas e necessidades dos diferentes participantes
(educadores, estudantes e família) do cotidiano escolar, a maioria dos estudiosos da educação
considera ser necessária uma nova forma de gestão.
Lucia Camini (2001) ao discutir a democratização da gestão na rede pública de ensino
do Rio Grande do Sul, destaca aspectos ligados à escolha de dirigentes de escolas por voto
direto da comunidade escolar como garantia de participação e democratização da rede de
ensino, a centralização das vagas para as escolas que permite um melhor planejamento de
cada unidade escolar, o repasse de verbas para a merenda diretamente às escolas que
permitiria uma dieta mais adequada a cada região, a autonomia financeira das escolas, entre
outras, como novidades trazidas pelo governo de Olívio Dutra para o sistema público de
ensino daquele estado: “O somatório destas ões propicia a abertura de um novo período
para a gestão democrática da educação no Rio Grande do Sul” (p. 103). Entretanto,
consideramos que ainda se trata de uma concepção que toma como sinônimos os termos
gestão e administração, tão comum ao mundo empresarial. Dessa forma, promover uma
cultura gerencial no âmbito escolar seria o mesmo que propor metas ou fins e adequar os
meios para alcançá-los. Metas de “produtividade e qualidade” que poderiam ser mensurados
através do número de estudantes egressos da escola pública que conseguiriam ingressar no
mercado formal de trabalho ou, com maiores e melhores expectativas, no ensino superior.
Carlos Jamil Cury (1997) observa que tanto a Constituição Federal, a LDBN de 96
leis mais conhecidas pelos educadores como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
destacam a determinação da implementação de uma gestão democrática no âmbito escolar,
exemplificando com o parágrafo único do art. 53 do ECA: “É direito dos pais ou
responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das
propostas educacionais”. O autor observa, ainda, que “a gestão democrática do ensino
público supõe a transparência de processos e atos. Ao caráter público e aberto se opõe o
privado e o secreto. (...) a gestão democrática do ensino público não anula, mas convive com
certas especificidades hierárquicas da escola” (p. 205). Diante dessas constatações parece que
a questão da gestão se resolveria ao se tornarem explícitos e transparentes os atos e ações
96
realizadas por aqueles que exercem algum tipo de governo sobre os outros, em função de sua
posição hierárquica mesmo que se mantenha e se favoreça uma hierarquia “específicano
espaço escolar.
Marisa Duarte (1997) discutindo a gestão dos trabalhadores em educação refere-se,
exclusivamente, às necessidades administrativas do Estado, na prestação de um serviço
público de qualidade, e as demandas econômicas e sociais que lhe são dirigidas e conclui:
Os arranjos institucionais que regulamentam as relações de trabalho
no setor público podem restringir ou ampliar o escopo para a
formulação de alternativas às políticas sociais. Professores do ensino
fundamental e profissionais de saúde constituem parcelas do
funcionalismo cujas atividades importam em vínculos diretos com a
população. No entanto, o resultado dos serviços prestados respondem
por um lado a demandas provenientes do mercado de interesses
sociais e, por outro, a ordem institucional que tensiona com o
mercado. A realização desse desafio implica na reestruturação dos
órgãos estatais. Além de dotá-lo de maior eficiência, exige-se,
primordialmente, a institucionalização de fóruns democráticos de
participação e deliberação. (p. 262)
Ainda que coloque em questão a necessidade de qualificar o serviço público o que
por si só já merece reflexão – parece que a autora limita essa discussão às adequações técnico-
administrativas necessárias para a prestação de um serviço eficiente, o que em termos da
educação mostra-se absolutamente insuficiente se considerarmos a complexidade de “saberes
e fazeres” que se cruzam no cotidiano escolar, decompondo e compondo diversas formas de
atuação.
Como apontou Corazza (2001) os limites e referências estão se diluindo... Em que
difere essa perspectiva, dos ditos educadores de esquerda, daqueles que se baseiam nos
pressupostos neoliberais de qualidade da educação e da necessidade de uma gestão eficiente,
para alcançá-la?
Alguns educadores consideram que a discussão sobre a gestão escolar vai além da
aplicação técnica de métodos administrativos empresariais no cenário da escola pública, como
ressalta a professora Irene:
Nas aulas de julho, da minha pós, tive algumas coisas de gestão
empresarial onde falavam sobre como você fazer o trabalho realmente.
eu pensava: meu Deus do u, se na sala de aula fosse fácil como
nas aulas. Você funciona assim, assim, assado e agora todo mundo
trabalhando. Se a sala de aula, o ser humano fosse assim, nós o
teríamos grandes problemas. Mas não é!
97
Therrien & Therrien (2001) discutindo os saberes docentes que se atualizam na sala de
aula, destacam que os professores produzem, a todo o momento, várias articulações de
saberes para fundamentar explicar e justificar suas decisões de ão pedagógica. Os autores
observam que muitas vezes os professores orientam sua prática em sala de aula, não pelo que
está prescrito ou foi definido em planejamento, a partir do projeto pedagógico da escola, e
isso permitiria revelar quais são os fundamentos epistemológicos que estariam constituindo a
identidade e a competência desses professores. Destacam que existe uma grande
complexidade na condução das atividades docentes no cotidiano da sala de aula e que esse
espaço (a sala de aula) é por excelência o espaço de gestão pedagógica do professor:
“concebemos a prática docente como gestão pedagógica da sala de aula que se manifesta em
gestão das atividades curriculares e gestão disciplinar do tempo, do espaço e das interações”
(p. 79).
Não pretendo estabelecer uma relação de causalidade entre gestão e qualidade de
ensino, mas por hora, interrogar: quem sabe questionar a gestão no espaço escolar não
produza efeitos na qualidade de ensino?
Como afirma Heckert (2004):
A temática da gestão se entrelaça aos exercícios de autonomia. (...) a
autonomia constitui-se como processo de luta permanente, e não como
um modo de administrar que reduz apenas á operacionalização de
procedimentos administrativos, financeiros e pedagógicos, colocando-
os para funcionar de forma descentralizada. Esses modos
descentralizados (...) esboçam previamente o lugar, o tempo e o
conteúdo do que deverá ser gerido autonomamente. (...) a autonomia
não é um princípio que possa ser garantido e assegurado a priori nas
formalizações que a prescrevem, ela se exerce nas ações que efetua.
Esse exercício se faz quando criamos outras práticas que desafiam e
interrogam os regimes de verdade que balizam nossa existência,
quando mudamos os procedimentos que utilizamos habitualmente ao
designar o que pode/não pode ser feito, o que é aprender, o que é
ensinar, o que é participar. (pp. 153-4)
Ter como uma prática de existência colocar em questão aquilo que acreditamos que
nos define não seria um exercício ético? Nesse sentido, está é uma prática que precisa ser
exercitada por todos os que participam do cotidiano escolar alunos, professores,
funcionários, pais, e quem mais quiser. Questionar os modos como temos nos colocado e nos
deslocado em nossas ações cotidianas na escola implica, sempre, em movimentos que são
98
coletivos. A ética, referida ao exercício do pensamento sobre os valores (sociais, políticos,
educacionais, etc.), implica na relação existente entre os membros de um espaço comum.
De nada adianta, a administração escolar propor, determinar, sugerir ou impor formas
de ação pedagógicas, de participação, ou de gerência financeira se todos aqueles que de
alguma forma são afetados por essas ações não puderem refletir, opinar e intervir.
Uma gestão, ou melhor, um exercício de autonomia, de auto-governo que estenda o
questionamento sobre os interesses, expectativas, práticas e saberes que circulam entre todos
os membros da comunidade escolar e não apenas aos professores não poderia produzir
efeitos no que se aprende/ensina? Quem sabe talvez pudesse produzir uma nova qualidade do
ensino, para aqueles que dele compartilham.
Quem sabe, talvez possamos engendrar práticas políticas, pois derivadas de uma
reflexão ética, em que a coletividade produza uma gestão tão democrática quanto qualificada
do ensino.
Com relação à noção de cidadania implicada nas propostas acima referidas, devemos
considerar algumas questões: Que cidadania? Cidadania para quê?
No artigo “Qual educação para qual cidadania? Reflexões sobre a formação do sujeito
democrático”, Pablo Gentili (2000) considera que “a educação da cidadania, assim como os
direitos que a garantem, são um requisito fundamental para a consolidação e o
desenvolvimento de uma sociedade mais justa e democrática” (p. 143). No entanto, ele
observa que tal afirmação se torna discutível, “porque a possibilidade de encontrar uma
definição unívoca aos significados implicados em semelhante afirmação possa ser
dificilmente alcançada de forma consensual” (idem) podendo expressar tanta coisa, quanto
coisa nenhuma.
Se para uns educar para a cidadania se restringe a formar pessoas que conhecem seus
direitos e deveres e respeita-las para exercitar sua participação política no espaço público,
para outros educar para a cidadania implica em formar pessoas capazes de se adaptarem às
rápidas modificações pelas quais passa o mundo do trabalho, capacitando-as para contribuir
com o desenvolvimento econômico e social do país
37
.
37
A capacitação para se adaptar às transformações do mundo não se restringe à vida no trabalho, mas a toda uma
gama de transformações pelas quais tem passado a organização social brasileira. Atualmente o Tribunal
Superior Eleitoral tem veiculado em canais abertos de TV uma propaganda na qual se uma professora numa
sala de aula com seus alunos adultos, conjugando o verbo estar: “Eu estou de olho, você está de olho..., nós
estamos de olho”. Ao fundo da sala em um quadro negro vê-se escrita a palavra cidadania. Ali a cidadania se
apresenta como uma capacidade individual de regular o comportamento dos governantes.
99
Gentili (2000) desenvolve seu pensamento a partir de uma série de questionamentos
que vão se desdobrando em novas perguntas e nas diversas respostas possíveis. O autor nos
propõe a pensar e analisar a cidadania em duas dimensões: como condição legal “essa
concepção limita a cidadania a um conjunto de atributos formais (o igual reconhecimento de
direitos comuns) (...) acaba condenando a condição cidadã à esfera da lei e ao compromisso
por respeitá-la”; como atividade desejável “exige uma dimensão mais substantiva e radical”
(p. 146). Nestes termos,
(...) a posse de direitos deve combinar-se com uma série de atributos e
virtudes que fazem dos indivíduos cidadãos ativos em consonância e
mais além do que a lei lhes concede. O exercício da cidadania se
vincula, assim, ao reconhecimento de certas responsabilidades
derivadas de um conjunto de valores constitutivos daquilo que se
poderia definir como o campo da ética cidadã.
(...) pensada como prática desejável, como aspiração radical de uma
vida emancipatória, a cidadania se constrói socialmente como um
espaço de valores, de ações e de instituições comuns que integram os
indivíduos, permitindo seu mútuo reconhecimento como membros de
uma comunidade.
A cidadania é, desta forma, o exercício de uma prática
indefectivelmente política e fundamentada em valores como a
liberdade, a igualdade, a autonomia, o respeito à diferença e às
identidades, a solidariedade, a tolerância e a desobediência a poderes
totalitários. (p. 147)
A educação para a cidadania na concepção legal se limita a difundir e socializar os
direitos (civis, políticos, etc.) destinando a ação pedagógica ao aprendizado das leis. Isso por
si “não forma a cidadania, embora a faça mais consciente” (GENTILI, 2000, p. 146). Mas
no caso da cidadania como atividade desejável o problema de educação se torna bem mais
complexo, pois se a educação cidadã se define a partir de uma possibilidade de construção de
valores comuns e de práticas que a garantam, como escolher esses valores e práticas? Quem o
fará, com que legitimidade? Como serão difundidos e socializados?
(...) se aceitamos que a cidadania é sempre um processo em
construção, em que medida a transmissão predeterminada de valores e
práticas por parte dos (as) educadores (as) não impediria aos
indivíduos tornarem-se protagonista da sua própria cidadania?
Analiticamente, essa é uma questão complexa: que tipo de ação
educativa é coerente com a formação de cidadãos e cidadãs? ...
Torna-se evidente que se a cidadania implica sempre uma ética cidadã,
a questão central reside em definir as ações pedagógicas que, dentro
ou fora da escola, sejam mais consistentes e coerentes com os
princípios éticos que a sustentam.
100
Em outras palavras, não se pode educar para a autonomia através de
práticas heterônimas, não se pode educar para a humanidade a partir
de práticas autoritárias e não se pode educar para a democracia a partir
de práticas autocráticas.
A formação de cidadãos e de cidadãs é, ao mesmo tempo, um desafio
ético e político. No desafio ético da formação cidadã, se põe em jogo
o caráter constitutivamente político da ação educativa (GENTILI,
2000, p. 149).
Por sua vez, Corazza (2001) destaca o dispositivo de cidadaneidade (sic) como uma
estratégia de governamentalidade do liberalismo na sociedade moderna. Com o objetivo de
moralizar e ordenar a sociedade os governos liberais, desde o final do século XIX,
necessitavam operar não apenas os aparelhos de Estado, mas também e à distância, as
populações – regulamentando as ações e condutas individuais. A incorporação dessas normas
de controle da conduta de cada indivíduo com o objetivo de regular, normatizar e moralizar
as ações no meio social – passa a constituir o status de cidadania. Assim, cidadão seria aquele
que livremente submete suas condutas ao controle do Estado, por entender que seus direitos e
deveres fazem parte de um acordo social que visa o bem comum. Desta forma, a autonomia
do cidadão dependeria da aceitação dos limites direitos e deveres estabelecidos no contrato
social entre o Estado e cada pessoa individualmente.
Com a nova organização do poder estatal, nas sociedades globalizadas, produz-se
hegemonicamente uma subjetividade: “operando por meio de estratégias e técnicas próprias à
sua racionalidade, o liberalismo subjetiva cidadãos e cidadãs como agentes autônomos e livres
de seu próprio governo.” (CORAZZA, op. cit., p. 95). Desde então o apelo a uma
participação democrática na condução das questões sociais tem se tornado uma tônica. Desta
forma, a democracia participativa pode ser entendida como uma nova forma de controle
social, uma vez que dela podem participar os cidadãos autônomos. Mas quem são, ou
melhor, como se formam estes “cidadãos autônomos”? De que forma esses cidadãos podem
participar da gestão de espaços públicos como a escola?
As práticas pedagógicas aliadas às formas de organização curricular e de organização
do trabalho docente inscrevem, no âmbito escolar, uma forma de ser e de estar no mundo
identificada com o que Guattari (2000) chama de subjetividade, que não deve ser entendida
como uma instância ou como uma natureza individual, mas como efeito de uma produção
101
maquínica das sociedades capitalísticas
38
que modela, serializa e massifica os sentimentos, os
pensamentos e as ações das pessoas. Subjetividade-estudante e subjetividade-professor.
Subjetividades hegemônicas que conformam as ações, os pensamentos e os sentimentos em
torno de um modo de ser-cidadão, numa democracia participativa. Nesses termos, para ser
cidadão na escola cada pessoa deve ter um espírito crítico, ser autônoma, mas produzir (ações
e conhecimento) coletivamente e ser capaz de opinar na gestão do espaço escolar. No
entanto, todas essas habilidades devem ser restritas a parâmetros dados pelas diretrizes e bases
da política educacional. O aprendizado de uma forma específica de “cidadania” atinge a
todos (pais, alunos e professores) que reivindicarem participação democrática na gestão do
cotidiano escolar.
Na concepção dos intelectuais do PT, o exercício da participação democrática é efeito
de uma educação da população e, ao mesmo tempo, uma tarefa pedagógica de um partido
político. Brandão (1998) afirma que:
Para um partido de trabalhadores (...) a sua dimensão de educador, a
sua crítica da educação dominante e o seu projeto para uma nova
educação têm a ver com as questões políticas que envolvem a
educação do povo e têm a ver com as questões pedagógicas que
envolvem o trabalho político do povo (...) (p. 19)
As ações e movimentos dos cidadãos produzidos a partir de uma política de educação
(escolar ou não) me remetem a uma outra discussão: como seria possível a autonomia e a
liberdade dos cidadãos para pensar, sentir e agir?
No âmbito da educação escolar, Corazza (2001) observa que durante muitos anos os
estudiosos do campo curricular especialmente os educadores que se opunham à educação
fundada no pensamento liberal preocupavam-se em denunciar a moral subjacente aos
currículos, mas não passava de uma denúncia, pois continuavam se produzindo subjetividades
encharcadas do modelo liberal de indivíduo. Para ela, esse tipo de estudo e pesquisa acabava
por neutralizar, emperrar e anular a historicidade das produções de subjetividades inscritas
nos textos curriculares. Atualmente
A política governamental dessa subjetividade liberal resulta em: 1) um
código moral: por formular um conjunto de valores, e regras de ação
propostos de modo sistemático, aos infantis também aos/às
professores/as, famílias, grupos culturais –, através do aparelho
38
Maquínica porque produz incessantemente, engendrando e selecionando formas de existência; capitalística
porque diz respeito às formas de produção de subjetividades existentes em esquema planetário neste mundo
globalizado.
102
prescritivo da Escola; 2) uma moralidade do comportamento: por
normatizar o comportamento efetivo de cada infantil, em relação às
regras e valores desse código; 3) um conjunto de práticas de si: por
levar o infantil a realizar o modo “cidadão” de sujeição, mediante
relações consigo mesmo, que o fazem adquirir a natureza moral
“cidadã”, e constituir-se como sujeito moral de suas ações cidadãs.
(CORAZZA, 2001, p. 95)
Agnes Heller (1989) nos lembra que no dia-a-dia as pessoas agem por algumas
características que são próprias do cotidiano: espontaneidade, pragmatismo, previsão de
probabilidade, juízo provisório, ultrageneralização, imitação, entre outras. Estas
características possibilitam uma economia de tempo nos afazeres e condutas diárias. No
entanto, os efeitos dessa economia podem ser observados por uma conduta pessoal que se
respalda e se afiança em pactos, acordos e crenças que não merecem por parte de grande
parcela das pessoas – qualquer reflexão crítica ou questionamento.
Pra Marisa Rocha (2000) a conduta irrefletida, apoiada em tais consensos e crenças
que, geralmente, são carregados de preconceitos e estereótipos caracterizam a ação do sujeito
moral:
Eis o homem da moral que atualiza em ações um conjunto de valores
transcendentes às suas práticas. Apresenta um certo tipo de
subjetividade restrita à sobrecodificação e traz a ilusão da unidade do
eu, de um equilíbrio interior, fazendo viver o estranhamento como
ameaça de desintegração. (...) para o homem da moral, problema,
conflito e crise não se constituem em índices de mudança, mas em
sinalização de caos, loucura, desordem.
(...) O homem da moral-em-nós cumpre a função de aumentar
permanentemente a coesão social homogeneidade produtora de
identidade social que se constitui como bloqueio às transformações.
(pp. 195-6)
A liberdade e a autonomia do cidadão moral produzido pela subjetivação hegemônica
existente no espaço escolar, diz respeito mais aos pensamentos, aos sentimentos e
conhecimentos do que propriamente e às práticas criativas no cotidiano. Assim, entendemos
que os anseios por liberdade e autonomia podem ser plenamente garantidos no cotidiano das
escolas desde que as práticas não se associem aos pensamentos, sentimentos, às condutas
(ações irrefletidas) e aos conhecimentos normatizados. A dissociação entre pensamento-
conhecimento-conduta-sentimento e práticas (conjunto de ações refletidas que visam
determinado objetivo) garantem a liberdade do cidadão moral. A conduta do cidadão moral
guiada por padrões e valores previamente acordados garante a permanência e a homeostase da
103
organização social. No entanto, não garante os agenciamentos coletivos que tentam decidir e
promover as práticas que favorecem e potencializam a vida.
Discorrendo sobre a filosofia deleuziana, Sílvio Gallo (2003) aponta as características
dos conceitos, naquela perspectiva:
(...) todo conceito é necessariamente assinado; cada filósofo, ao criar
um conceito, resignifica um termo da língua com um sentido
propriamente seu.(...)
Todo conceito é multiplicidade, não conceito simples. O conceito
é formado por componentes e define-se por eles; (...) Todo conceito é
criado a partir de problemas. (...) um problema deve ser posto pelo
filósofo, para que conceitos possam ser criados.(...)
Todo conceito tem uma história. Cada conceito remete a outros
conceitos do mesmo filósofo e a conceitos de outros filósofos, que são
tomados, assimilados, retrabalhados, recriados.(...)
Todo conceito é uma heterogênese (...). Ele é o ponto de
coincidência, de condensação, de convergência de seus componentes
que permite uma significação singular, um mundo possível, em meio à
multiplicidade de possibilidades. (...)
Todo conceito é um incorporal, embora esteja sempre encarnado nos
corpos. Não pode, entretanto, ser confundido com as coisas, um
conceito nunca é coisa-mesma (...). Todo conceito é, pois, um
acontecimento, um dizer o acontecimento; portanto, se não diz a coisa
ou a essência, mas o evento, o conceito é sempre devir.
Um conceito é absoluto e relativo ao mesmo tempo. Relativo pois
remete a seus componentes e a outros conceitos; relativo aos
problemas aos quais se dirige. No entanto, adquire ar de absoluto,
pois condensa possibilidade de resposta ao problema. (...)
(...) o conceito não é discursivo, não é proposicional. (...) (pp. 46-9)
O que vimos até aqui, é que conceitos como cidadania, democracia, participação, etc.,
são cada um deles um índice da idéia que eles representam para alguns pensadores em um
determinado momento. Cada conceito traz consigo uma “cauda de cometa” que é história de
sua passagem por vários planos discursivos. Cada conceito é recriado, retrabalhado,
re(in)escrito num determinado contexto e está a serviço de concepções e visões de mundo que
podem ser muito diversas. Mais importante que isso é entender que a produção de um
conceito criação exclusiva da filosofia implica sempre em uma intervenção no mundo,
pois cria realidades. Um conceito é um pensamento que opera realidades possíveis. Portanto,
um conceito não pode ser pensado separado da sua função, da sua política, das possibilidades
de pensamento e ação que ele ativa. Por isso ele não pode ser mera opinião idéia
104
generalizada, vulgarizada e vazia de sentido, crença que acalma e nos protege do caos do
pensamento
39
–, mas deve ser entendido como uma ferramenta de intervenção no mundo. Nas
palavras de Gallo (2003)
Talvez a melhor definição de conceito na visão de Deleuze e Guattari
seja a de que o conceito é um dispositivo para usar o termo de
Foucault, ou um agenciamento, pra ficar com um termo próprio a
nossos autores. O conceito é um operador, algo que faz acontecer,
que produz. O conceito não é uma opinião (...) o conceito é mais
propriamente uma forma de reagir à opinião. (p. 50)
Se pensarmos na ética das práticas e não na moral das condutas, se propusermos a
análise dos desejos e não do poder, se pretendermos os agenciamentos coletivos e não a
solidão dos indivíduos, no espaço escolar, precisamos inventar novas formas de pensar e
intervir no cotidiano das escolas. Precisamos criar conceitos que potencializem a vida no
cotidiano escolar. Talvez devêssemos pensar, como nos diz Guattari (1992), em deixar de
colocar a ênfase nos conceitos que se tornaram instâncias transcendentes, ou instituições
como o Homem, o Ser, a Cidadania, etc. –, “mas sobre a maneira de ser, a maquinação
existente, as práxis geradoras de heterogeneidade e de complexidade” (p. 139).
Para isso o autor propõe que componhamos um novo paradigma que, baseado em
territórios coletivos de existência produzam criativamente novos modos de ser. Um
paradigma baseado na potência estética de sentir, na potência de pensar (filosoficamente) e
conhecer (cientificamente) e na potência de agir (politicamente). Um paradigma estético que
engloba as dimensões ética e política:
O novo paradigma estético tem implicações ético-políticas porque
quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora
em relação à coisa criada, em inflexão de estado de coisas, em
bifurcação para além de esquemas pré-estabelecidos e aqui, mais uma
vez, em consideração do destino da alteridade em suas modalidades
extremas. Mas essa escolha ética não mais emana de uma enunciação
transcendente, de um código de lei ou de um deus único e todo-
poderoso. A própria gênese da enunciação encontra-se tomada pelo
movimento de criação processual. (GUATTARI, 1992, p. 137)
39
Fazendo uma crítica à organização do pensamento proposto por Kant (na Critica da Razão Pura) Deleuze e
Guattari (1997) observam que: “E”, enfim, para que haja acordo entre coisas e pensamento, é preciso queda
sensação se reproduza, como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de pesado cada vez que
tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o vemos, com nossos órgãos do corpo, que não
percebem o presente, sem lhe impor uma conformidade com o passado. É tudo isso que pedimos para formar
uma opinião, como uma espécie de “guarda-sol” que nos protege do caos. (p. 259).
105
CAPÍTULO III
AS PROTAGONISTAS EM CENA
O que me interessava eram as criações coletivas,
mais que as representações. Nas “instituições”
todo um movimento que se distingue ao mesmo
tempo das leis e dos contratos. (...) O que me
interessa não é a lei nem as leis (...), nem mesmo o
direito ou os direitos, e sim a jurisprudência. É a
jurisprudência que é verdadeiramente criadora de
direitos (...). (DELEUZE, 1992, p. 209)
“Vai ver como eles estão vivendo, o que eles estão sentindo, o que
estão mudando; o que pensam da política, do meio ambiente, da
escola, da violência
40
.
O que pretendemos, a partir de agora, é focalizar aquilo que as professoras
entrevistadas destacam como sendo as mais importantes mudanças que sentiram no seu
cotidiano de trabalho com a implantação do projeto da SEC-Chapecó. Não gostaríamos, no
entanto, de apenas descrever tais mudanças, mas destacar os sentimentos, emoções e reflexões
que as professoras elaboraram a partir das lembranças de suas experiências cotidianas.
40
Fala da professora Alessandra em entrevista realizada em setembro de 2004. Essa fala aponta para suas
reflexões a respeito da pesquisa sócio-antropológica realizada no início de cada ano escolar, a partir da qual são
escolhidas as falas mais significativas (encontradas na comunidade onde se situa a escola) para que seja montado
o complexo temático (ou tema gerador) que será trabalhado em sala de aula.
106
3.1 – O PASSADO NUNCA TERMINA (...) O FUTURO NUNCA
CHEGA.
É aí mesmo, nesse tempo que não passa e que não para, nessa lacuna que não se fecha,
nessa temporalidade cheia de tempos e modos de existir que se situa o cotidiano. O cotidiano,
não como dia-a-dia imperceptível, invisível e vazio, carente de sentido, cadência do tempo de
vida, mas o cotidiano espaço e tempo da produção, de processo de vida e história, de
movimentos e paralisias; cotidiano como “saturação de agoras”, campo de conflitos e
criações, campo de forças e de pausas: “a lacuna não é um mero intervalo, mas um campo de
forças gerado pelo esforço do homem para pensar (...) à medida que a modernidade
prossegue, a lacuna se torna uma experiência para todos, um fato político, enfim”
(PASSERINI, 1998, p. 214).
Muitos historiadores têm demonstrado que a disciplina histórica tem passado por
várias transformações: de conteúdo, de forma, de interesses, enfim de fazeres como práticas
políticas, chamando a atenção para o fato de que esta disciplina nasce com o compromisso de
sustentar e reforçar projetos culturais e políticos heterogêneos. A pretensão de uma história
total e geral, como parte de um “discurso universalista do Ocidente” (FERREIRA, 1994, p. 2)
tornava necessária a noção de que a história necessitaria recorrer às “estruturas duráveis” para
fazer as relações entre passado e presente e, prognosticar o futuro. Ferreira (op. cit.) aponta a
École des Annales como ficou conhecida esta corrente como aquela que questiona a
relevância da história política, descrevendo-a como “elitista, anedótica, individualista, factual,
subjetiva, psicologizante. Em contra partida, esse grupo defendia uma nova concepção, em
que o econômico e o social ocupavam lugar privilegiado.” (idem)
Para garantir um caráter mais “objetivo” ao estudo da história, tornava-se necessário
(...) identificar as relações que, independentemente das percepções e
das intenções dos indivíduos, comandam os mecanismos econômicos,
organizam as relações sociais, engendram as formas do discurso. Daí
a afirmação de uma separação radical entre o objeto do conhecimento
histórico propriamente dito e a consciência subjetiva dos atores.
(FERREIRA, 1994, p. 2)
Talvez a pretensão de garantir à disciplina histórica um status de cientificidade, tenha
imputado aos historiadores uma prática que os distanciasse do risco de, ao utilizar fontes
orais, cair num simples relato jornalístico ou numa crônica ficcional. Daí a necessidade de
107
recorrer predominantemente às fontes escritas (documentos) dispostas em séries e submetidas
às técnicas de quantificação, na tentativa de “descrever e entender” as estruturas nos
processos de longa duração pois para eles o perigo de não poder precisar a importância de
um fenômeno a longo prazo, impossibilita ao historiador lidar com questões
contemporâneas
41
.
Abandonando a história das estruturas e trabalhando com o cotidiano trazemos de
volta à cena o papel do sujeito vivo na história. A esse respeito, Odila Dias (1998) salienta
que a história do cotidiano,
(...) ao documentar a inserção dos sujeitos históricos no conjunto das
relações de poder (...) contribui para historicizar estereótipos e
desmistifica-los, pois através do esmiuçar das mediações sociais, pode
trabalhar a inserção dos sujeitos históricos concretos, homens e
mulheres, no contexto mais amplo da sociedade em que viveram. (p.
232)
Dias (1998) afirma que houve um despertar dos historiadores para o fato de que “os
projetos hegemônicos de uma sociedade dificilmente coincidiam com as experiências
concretas de setores oprimidos da população” (p. 233). E, lembrando a contribuição de
Michel de Certeau para o questionamento do cotidiano, a autora destaca que o trabalho do
historiador é “o esmiuçar das práticas de sobrevivência que se configuravam como fontes de
resistência, intercalando-se como táticas e subterfúgios possíveis de um cotidiano
improvisado, sempre em processo de ser re-inventado” (p. 228).
Dessa forma podemos entender o cotidiano na história do tempo presente como
espaço/tempo da ação política no qual, como diz Chartier (1998), é possível ao historiador
fazer
(...) a articulação entre a parte voluntária e consciente da ação dos
homens e os fatores ignorados que as circunscrevem e limitam (...).
Mas acaso os trabalhos mais argutos dos historiadores do
contemporâneo não são aqueles que, recusando-se a identificar a essa
filosofia mutilante do sujeito e da consciência, inserem as escolhas, os
compromissos ou as decisões mais voluntárias nas circunstâncias que
os tornam cogitáveis e, logo, possíveis, bem como nos determinantes
que os regem e comandam? (p. 217).
41
Daí os estudos da École des Annales que ganha força a partir da França, no final dos anos 20 do séc. XX
se concentrarem sobre os períodos medieval e moderno. “A justificativa para tal posicionamento era a
concepção de que uma história nasce para uma época quando está totalmente morta (...)” (FERREIRA,
1994, p. 2).
108
Os documentos produzidos pela secretaria de educação do município e os estudos
teóricos, dos quais lançamos mão para fazer a análise das falas das professoras, nos servem
mais como parâmetro para reflexão do que como verdades estabelecidas ou como parâmetros
legais.
Após marcarmos previamente as entrevistas, através de telefonemas, invariavelmente
éramos recebidas pela diretora ou pela coordenadora da escola. Escolhemos as escolas como
palco para a realização do trabalho especialmente porque esse era o local escolhido pelas
professoras para serem entrevistadas. Algumas chegaram a dizer que era por pura
comodidade que escolheram esse local. Outras disseram que se sentiam mais à vontade para
falar sobre o seu trabalho, no próprio local de trabalho. Uma afirmou que precisava ganhar
tempo, pois enquanto conversávamos, ela continuava recortando e colando figuras,
preparando material para ser usado em sala de aula. De qualquer forma, nenhuma das
professoras se mostrou interessada em receber-nos em sua casa ou outro local.
Quase todas as entrevistas foram realizadas na sala dos professores, na biblioteca da
escola ou na sala de aula da professora. Apenas uma delas foi realizada na sala da diretora,
pois não havia qualquer outro espaço disponível no momento. É interessante observar que as
professoras que foram entrevistadas em suas próprias salas de aula mostraram-se mais
relaxadas e confortáveis.
Vale destacar que a maioria das professoras entrevistadas me conhecia de outras
atividades (palestras, intervenções na escola, supervisão de atividades de estágio, etc.)
realizadas nas escolas e junto a SEC. Embora eu acreditasse que esse fato pudesse interferir
diretamente no comportamento das professoras durante as entrevistas, dois fatos me fazem
refletir sobre a importância dessa preocupação para o resultado da pesquisa. O primeiro é que
minha ex-aluna Michelle Fassina participou de quase todos os encontros e sua presença de
certa forma ajudou a descontrair e tornar menos formal o ambiente e o ritual das entrevistas.
Além disso, creio que observei uma advertência que Alessandro Portelli (1997) nos faz ao
tratar as “complicações” relacionadas ao ato de entrevistar:
Devemos, não obstante, fazer um esforço para criar um ambiente em
que as pessoas tenham condições de estabelecer os próprios limites e
de tomar decisões a esse respeito. Não o conseguiremos ignorando as
diferenças que nos tornam desiguais, nem paternalística (e
desonestamente) simulando uma igualdade que inexiste. Em vez
disso, devemos deitar por terra a diferença e encará-la menos como
uma distorção da comunicação do que como a própria base desta e
situar a conversa no contexto da luta e do trabalho, com o intuito de
109
criar igualdade. Temos um interesse não apenas ético, mas também
profissional nesse processo (...). Embora possamos ser doutores em
qualquer matéria entrevistando analfabetos, na situação de campo são
eles que têm os conhecimentos (...). Podemos ter status, mas são eles
que têm as informações e, gentilmente, compartilham conosco.
Manter em mente esse fator significa lembrar que estamos falando não
com ‘fontes’ nem que estamos por elas sendo ajudados mas com
pessoas (pp. 20-5).
O outro fato relaciona-se à adoção da perspectiva da pesquisa-intervenção que aponta
a necessária interferência do pesquisador no campo de pesquisa, constituindo essa
interferência uma condição necessária para a produção de conhecimento, aprofundando a
ruptura com as perspectivas positivistas de ciência e conhecimento (de objetividade,
neutralidade e generalização) apontadas pelas pesquisas participativas afirmando o ato
político que toda investigação carrega em si. A partir dessa interferência, que se constitui
como a própria intervenção é possível provocar não apenas a reflexão sobre como os
professores entendem seu lugar e seu fazer na manutenção das instituições cristalizadas no
espaço escolar (questionando as condutas, os sentimentos, os pensamentos e conhecimentos
que estão instituídos como verdades perenes e naturais), mas também como percebem sua
capacidade de criação, de agenciamentos coletivos de desejo, de produzir movimentos
instituintes no cotidiano. Chamamos de instituintes os movimentos que reinventam formas de
funcionar, nos grupos, com o objetivo de transformar as instituições normalmente
entendidas como formas cristalizadas e naturalizadas de uma idéia que se materializa em
organizações e estabelecimentos como, por exemplo, as escolas.
“Na hora que a gente separa as falas significativas, o que a gente
pensa? A gente pensa que uma fala é significativa. É pra nós e
não pro aluno
42
.
Já é difícil, muitas vezes, justificar a seleção que fazemos como a “amostra” da
pesquisa. Penso que é muito mais difícil justificar as “falas” mais significativas. Mas, como
diz Portelli (1996), “na escravidão como na antropologia, o poder julgar e definir pertence
42
Fala da professora Rose em entrevista realizada em outubro de 2004. Essa fala aponta para suas reflexões a
respeito da pesquisa sócio-antropológica realizada no início de cada ano escolar, a partir da qual são escolhidas
as falas mais significativas (encontradas na comunidade onde se situa a escola) para que seja montado o
complexo temático (ou tema gerador) que será trabalhado em sala de aula.
110
institucionalmente a quem maneja o chicote, a lapiseira e o gravador” (p. 62). Como
admitimos que entrevistador e entrevistado partem de condições desiguais e, que o
pesquisador interfere no campo de pesquisa, não como negar que as falas escolhidas
atendem ao interesse da pesquisadora de realçar aspectos relevantes da experiência das
professoras ao se ver diante de uma nova perspectiva político-pedagógica. Assim, todo o
recorte feito nesta pesquisa procurará iluminar o que as professoras consideraram mais
importante em termos de mudanças em seu cotidiano de trabalho.
Após todo o trabalho de transcrição e digitação obrigada pela força, Michelle ao
reler as entrevistas observei que, apesar de numa forma geral as respostas aos
questionamentos serem bastante parecidas, cada uma das professoras destacou um aspecto
que lhe dizia respeito particularmente. Para esse fato, mais uma vez Portelli (1997) adverte:
Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de
dados, poderemos constatar que à semelhança da linguagem, a
memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou
verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que
ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos
socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações
podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em
hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas – assim como as
impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes são
exatamente iguais (p. 16).
Por isso, talvez, a professora Irene tenha abordado o tema inclusão/discriminação em
sala de aula, a professora Cecilia tenha destacado a oportunidade que tiveram para divulgar o
seu trabalho através do jornal e a professora Wilma tenha ressaltado as dificuldades relativas à
progressão/retenção dos alunos de um ciclo para o outro, por exemplo.
3.2 – CENA UM: DEMOCRACIA
Michele e Christina chegam à escola da professora Cecilia e logo são levadas a sua
sala de aula. Cecilia parece meio preocupada em terminar a correção de alguns cadernos.
Logo o assunto da entrevista vem à tona e ela nos diz que trabalha no município desde 1986,
tendo se formado em pedagogia (séries iniciais) há cerca de um ano.
111
Trabalho à tarde com a turma de sete anos, no primeiro ciclo e de
manhã com o segundo ciclo, com turmas de quarta e quinta, que daí o
segundo ciclo vai até a quinta série. No município é um pouco
diferente a proposta.
E no que se difere essa proposta? Houve mudanças com a sua
implantação?
Eu participei desde o início desta proposta do ciclo. A gente teve
vários estudos, cursos, pra gente entender um pouco essa proposta.
Mas, assim, não teve muito que você se preparar pra entrar nessa
proposta porque era uma coisa muito nova, que o pessoal até não sabia
como ia andar (...). No início foi bem difícil porque era uma coisa
totalmente diferente (...) no primeiro ano que foi implantado houve
bastante dificuldade porque teria de ser uma turma de seis, sete, oito
anos, tudo por idade.
Embora a professora tenha dito que participou dede o início, as coisas não
aconteceram bem assim. Solange Poli (2003) observa que a nova equipe que assumiu a
secretaria de educação do município em 1997 desencadeou o processo de construção do
projeto político pedagógico objetivando a criação de uma escola popular e emancipatória.
Segundo a autora:
A intenção da secretaria era envolver, pelo menos, a grande maioria
dos educadores da rede municipal no debate de linhas ou princípios
norteadores da política educacional a ser desenvolvida. A caminhada
foi desencadeada a partir das direções das escolas (...). A partir de
então, o projeto chega aos professores e começa a se espraiar por toda
a rede através de instrumentos de levantamento da realidade,
ganhando um aspecto cada vez mais amplo em termos de participação
de toda a comunidade escolar: professores, alunos e pais. (POLI,
2003, p. 37)
Desde o primeiro momento em que entrei em contato com os profissionais de
educação de Chapecó, comecei a indagar sobre como havia se desenvolvido o processo de
elaboração e implantação no novo projeto político-pedagógico.
Os professores respondiam que foi tudo muito complicado porque não sabiam ao certo
em que direção estavam caminhando. As dificuldades e angústias, geradas pela proposta,
relativas à adoção do tema gerador como ponto de partida para os conteúdos a serem
trabalhados em sala de aula e a mudança do sistema de seriação pelo de ciclos de
aprendizagem podem ser exemplificadas pelas falas das professoras:
As mudanças foram discutidas na época da implantação? E hoje,
se discute?
112
Claro que foram discutidas, quer dizer, quando foi implantado o
sistema de ciclos. Trocar a seriação por ciclo, eu lembro foi meio
brusco, a mudança foi de repente. Foi tudo novo, até gerou espanto,
um monte de críticas. Meu Deus do céu o que será isso? (...) Eu
depois que entendi isso achei a coisa interessante, que tinha de ser
assim mesmo, a mudança, a organização, mas no começo não foi
fácil... Então demorou um bom tempo pra gente se adaptar. (ROSE,
2004)
Foi discutido com a comunidade não uma vez. Pra nós não foi
fácil essa mudança no início. Imagina pros pais, aqueles pais
analfabetos, que tinham medo de chegar perto de você, tinham medo
de trazer o filho pra escola (...) com a própria comunidade a gente fez
várias reuniões, foi colocado. A direção, os professores também
colocaram e no fim a gente teve que chamar o pessoal da prefeitura.
Não foi uma vez só, um ano, foram vários anos. Repetia a mesma
coisa até que os pais entenderam (...) (ANA, 2004)
─ E como foi feita essa discussão com vocês, professores?
Antes de iniciar o ciclo mesmo, a gente teve várias reuniões,
encontros. Porque nós achávamos o “bicho de sete cabeças”, isso. E
pra nós foi difícil, implantar o ciclo... (ANA, 2004)
─ Essas mudanças foram discutidas, estão sendo discutidas?
─ A gente faz, desde a formação do ciclo, quando trocou de um
prefeito pro outro, de partido. No início foi um choque, se reuniram e
o pessoal colocou essa proposta e tudo o que é novidade a gente fica
com um atrás. Daí eles colocaram, explanaram o que ia ser o ciclo,
como ia ser a proposta. No início foi assim, eles colocaram,
explicaram que a partir daquele momento ia ser assim. Então a gente
não estava preparada pra isso, não sabia que ia acontecer isso (...).
Vai ser o ciclo a partir de agora. E a partir dali a gente começou a se
reunir, teve encontros, seminários, enfim, a prefeitura promoveu o que
pôde pra estar mudando as nossa idéias de aceitação dos ciclos, de
aceitação dessas mudanças. Porque a gente o sabia o que era e a
gente patinou bastante. eles foram dando suporte pra gente estar
trabalhando dentro dessa proposta. Então teve por parte da secretaria
esse apoio: pessoal, palestrantes, a própria Unochapecó [Universidade
comunitária da cidade] que eles traziam. Eles também não sabiam,
mas estavam procurando, buscando. Foram pra Porto Alegre, traziam
textos de POA, levavam o pessoal daqui pra lá pra conhecer (...). Eles
foram fazendo tudo gradativamente e a gente foi entrando, foi
entrando e quando vimos estamos aqui dentro. Acho que isso foi
legal. (Wilma)
(...) Eu acredito que outros professores, como eu, demoraram um
tempo para compreender. E eu, sinceramente, acho que o pessoal que
nos auxiliava também demorou pra compreende o que era o filtrar da
fala para chegar aos elementos mais reais em sala de aula. Não
acredito que o pessoal, quando começou, tinha uma clareza. E nós
ainda não chegamos a uma clareza total (...). Quando a gente
113
começou a compreender, aí a gente começou a formar um pouco
melhor as redes. (IRENE, 2004)
Poli (2003) corrobora a sensação, que tivemos, de que o processo de elaboração e
implementação da proposta da SMED foi um tanto conturbada, embora os dirigentes tivessem
clareza da pertinência e da necessidade de mudanças na política educacional do município.
Este processo foi marcado por angústia e desafios, por contradições e conflitos, tanto em
termos de posições teóricas quanto de posições políticas. Para ela,
Evidentemente, a implementação do sistema por ciclos de formação
não se deu de forma linear, tampouco harmônica. O momento inicial
caracterizou-se muito mais pela angústia, pelo medo e pelo conflito
que se mostrava sob pelo menos dois aspectos: pela oposição de
caráter político-partidário presente na categoria docente que,
muito embora não revelasse explicitamente, empenhou todas as forças
no insucesso da proposta; pelo desafio que se colocava para a equipe
coordenadora do processo que tinha muito claro o que não queria, mas
muitas dúvidas sobre como proceder a construção de uma proposta
emancipatória em educação. (p. 21) [grifo meu]
Para enfrentar o desafio colocado a equipe da SMED operou em duas frentes: por um
lado assumindo uma postura de liderança moral e política que conduziria o processo de
mudanças com firmeza e autoridade, posto se tratar de uma tarefa da “liderança política que
se quer revolucionária”. Nesse sentido Poli (2003) defende a opção adotada por aquela
equipe afirmando que:
Uma das críticas efetuadas à equipe coordenadora do processo de
construção da proposta política de educação da SMED diz respeito ao
fato de se ter partido das direções para então chegar aos educadores.
Entretanto, esse encaminhamento precisa ser avaliado em termos
políticos e mediante a necessidade dessa equipe cumprir sua tarefa de
direção política do processo nos termos que, segundo Gramsci,
caracterizam o papel do intelectual orgânico. Não se trata de um
populismo que acaba materializando uma pseudoparticipação, mas de
uma direção séria que visa a construção de propostas de caráter
democrático e popular. (p. 151)
Por outro lado, a mesma equipe abriu-se para o diálogo, os questionamentos e a
admissão de que muito ainda precisavam aprender e aprimorar. Procuraram através de
diversos encontros e debates exercitar a reflexão e a crítica em relação à proposta que
apresentavam, tal como podemos observar na seguinte fala:
(...) Quando a gente vai nos encontros por áreas ou por pólos a
gente fala. O pessoal fala o que está errado, o que está certo, coloca,
114
expõe. No início o pessoal ficava com medo de falar. Medo até de se
expor, de se indispor com o pessoal. Mas agora não, o pessoal fala,
discute o que tem que mudar. Tem essa abertura sim e a gente
consegue estar falando, criticando, elogiando, tudo pro melhor, pra
que o processo todo melhore. Tem essa abertura com o pessoal pra
estar trocando idéias, mudando. (Wilma)
Temos aqui uma questão interessante! Pensar o modo de encaminhamento político
dado ao processo que, a meu ver, se apresenta sob dois aspectos: de um lado certo espaço de
liberdade que sugere a possibilidade de expressão dos desejos, de outro lado uma forma de
condução política que conduz ao assujeitamento dos mesmos.
No final da década de 1970 Guattari (1987) criticava a burocratização e as disputas
internas do Partido Comunista Francês. Ele chamava a atenção para a distância que se
estabelecia entre a direção e base dos militantes partidários quando aquela desconsiderava o
desejo “das massas”:
(...) está mais do que na hora de os revolucionários reexaminarem
seus programas, pois há alguns anos que começam a caducar (...).
A luta de classe não passa mais simplesmente por um front delimitado
entre os proletários e os burgueses (...) ela está igualmente inscrita
através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorados, pelas
marcas de autoridade, de posição, de nível de vida; é preciso decifrá-la
a partir do vocabulário de uns e de outros (...). A luta de classe
contaminou, como um vírus, a atitude do professor com seus alunos, a
dos pais com suas crianças, a do médico com seus doentes; ela ganhou
o interior de cada um de nós com seu eu, como um ideal de status que
acreditamos ter de adotar para nós mesmos. (...) De que serviria, por
exemplo, propor às massas um programa de revolucionarização anti-
autoritária contra os chefinhos e companhia limitada, se os próprios
militantes continuam sendo portadores de vírus burocráticos
superativos (...). De que serve afirmar a legitimidade das aspirações
das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na
realidade cotidiana? (pp. 14-5).
E quem não queria mudanças nas suas práticas pedagógicas? E quem não concordava
com a proposta da educação popular?
Embora Poli (2003) afirme que a equipe coordenadora “seguindo o princípio da
autonomia pedagógica colocado no projeto, a Secretaria ouviu todas as experiências e a partir
de então, tendo presentes os propósitos do Projeto Educativo, passou a definir o seu olhar
sobre a organização dos ciclos de formação” (p. 42), parece-me que fica claro, através da fala
das professoras que apenas as direções das escolas participaram das discussões iniciais.
115
Diferentemente do que aconteceu em Chapecó, Heckert (2004) observa que as
experiências dos governos petistas nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e Belém
com a implantação de novos projetos pedagógicos, aconteceu a partir de uma ampla
mobilização com a participação em debates de toda a comunidade escolar. Vejamos:
PORTO ALEGRE
No que diz respeito às políticas encaminhadas pela Secretaria
Municipal de Educação (SMED), segundo depoimentos de professores
e de representantes do sindicato dos professores, a primeira gestão
1990-1993 caracterizou-se por intensos debates acerca das
concepções de aprendizagem e das metodologias de ensino, como
também por ações voltadas para a formação dos profissionais do
ensino que resultaram em significativos avanços nas práticas
pedagógicas. A segunda gestão 1993-1996 enfatizou a
implantação da gestão democrática articulada à discussão da prática
político-pedagógica. A constituinte escolar, realizada nesse
período, delineou os princípios e diretrizes da escola cidadã. A
terceira gestão 1997-2000 focalizou-se nas conquistas
alcançadas, dar continuidade aos ciclos, superando os problemas
decorrentes de sua implantação, e ampliar os debates em torno da
qualidade da escola. (p. 218) [grifo meu]
BELO HORIZONTE
(...) O processo que desemboca na formulação desse projeto está
vinculado aos movimentos dos profissionais de ensino, à diversidade
de experiências esboçadas pelos educadores mineiros no cotidiano do
trabalho nas escolas, às lutas das camadas populares pelo acesso à
escola Publica.
Vários professores se referem ao movimento de renovação
pedagógica, que se efetiva em Minas Gerais, desde os anos 70, como
uma das linhas que tecem a Escola Plural, como também as
experiências de gestão democrática efetivada em algumas escolas
municipais em Belo Horizonte. (...)
Ressaltando a multiplicidade de experiências que emergiam na rede
municipal, o documento elaborado pela equipe da SME, sinalizava
que tais ações apontavam para direções comuns que poderiam ser
assumidas como proposta coletiva da rede. Segundo este
documento, assumir essas ações como proposta de governo
permitiria enfrentar o risco de interrupção de práticas
inovadoras, tidas como transgressoras à organização institucional
vigente (pp. 225-6). [grifo meu]
BELÉM
116
O processo de construção da proposta cabana implicou vários debates
que contaram com a presença de professores, técnicos, funcionários,
alunos, pais, dos diversos setores que fazem parte da Secretaria
Municipal de Educação (SEMEC), dos movimentos sociais, dos
sindicatos e várias entidades envolvidas com a escola pública. Deste
modo, a partir de 1997, vários fóruns de discussão foram criados no
sentido alinhavar a proposta político-pedagógica da Rede
Municipal de Ensino de Belém. (...) Ressalta-se que, após a
elaboração da proposta, esses encontros se mantiveram, passando
a ter como foco a implantação da proposta e a reformulação de
aspectos considerados necessários para atender a novas
expectativas enunciadas pelo conjunto dos profissionais da rede
municipal, pela equipe coordenadora da Secretaria e pelos
usuários da escola. (pp. 235-6) [grifo meu]
Em Chapecó, a reforma de ensino se inicia pela Educação de Jovens e Adultos (EJA),
ainda no primeiro ano do governo petista e se destaca como um dos principais marcos da
administração do então prefeito, José Fritsch. Em suas palavras:
(...) entre tantos programas que a Prefeitura de Chapecó desenvolve, e
que são referência pela qualidade, proposta e eficiência, o Programa
de Educação de Jovens e Adultos é sem dúvida, um dos mais
importantes e simbólicos, da nossa visão pública implantada em 1997,
quando assumimos a Prefeitura. (Chapecó: Prefeitura Municipal,
2000, p. 7)
A proposta de reformulação do ensino para a EJA, foi aprovada pelo Conselho
Municipal de Educação em junho de 1998, embora tivesse começado a se efetuar no ano
anterior. nesta proposta está clara a opção da secretaria pela educação popular freiriana,
com nos indica o depoimento de uma das professoras do EJA:
Fazem cinco anos que iniciamos uma nova caminhada. Logo no
início, nós não sabíamos como seria e nem imaginávamos, pois eu
com vinte e três anos de trabalho como “alfabetizadora”, achava que
seria mais um curso e que continuaria da mesma maneira, mas sempre
as novas orientadoras diziam, falavam vamos construir juntas a
EDUCAÇÃO POPULAR. (Chapecó: Prefeitura, 2002, p. 37).
A partir da experiência com a EJA se confirma a educação popular como uma
metodologia educacional fundamental para a implementação de uma política, não somente em
termos educacionais, em que a participação e a autonomia dos grupos sociais se fortalecem,
coadunando-se com a perspectiva política do PT e reafirmando a “educação como político
partidário”:
117
A Educação Popular na Rede Municipal de educação de Chapecó
caracteriza-se como uma opção político-filosófica e pedagógica, que
vem rompendo com o modelo excludente de educação e propõe a
construção de uma nova práxis educacional comprometida com a
transformação da realidade sociocultural e econômica vigente.
(...) A educação que vem sendo construída tem a intenção de
contribuir para a construção de uma nova sociedade. Através desta
perspectiva de educação a escola colocar-se a serviço da
conscientização da população que historicamente foi excluída do
processo educacional, político, econômico e social, pois se a educação
não é a única alavanca no processo de transformação, sua participação
crítica é fundamental. (Chapecó: Prefeitura Municipal, 2001, p. 3).
Assim, quando a equipe coordenadora da secretaria de educação apresentou a proposta
de organização do ensino fundamental por ciclos de aprendizagem, também estava definida
a proposta metodológica da educação popular. Ao ser aprovado parecer referente a essa
matéria pelo Conselho Municipal de Educação (11/11/1998) estavam incluídas as formas
de avaliação de aprendizagem e a criação de projetos de aceleração da aprendizagem que
mais tarde se desdobraram em “turmas de progressão”.
Penso que o ineditismo da eleição de um prefeito do PT em uma cidade que apresenta
um pensamento político conservador favoreceu a adoção da postura da equipe da secretaria de
educação em assumir a direção do processo a partir de uma opção político-pedagógica sem
considerar o desejo e as experiências anteriores dos docentes. Era preciso “garantir” em
quatro anos uma reforma de ensino que marcasse a administração petista na história da
cidade. Daí, talvez, as resistências observadas no início do processo de implantação do PPP.
A forma de condução do processo indica não somente o pensamento político da equipe
coordenadora, mas também um modo de fazer.
Parece que estão em jogo, aqui, as relações de poder e as estratégias de exercício de
poder, tal como nos indica Foucault. Em vários textos Foucault discute o que é o poder, como
ele se exerce, e a que serve. Essa discussão aponta para uma questão fundamental quando
pensamos a relação dos indivíduos com o Estado a racionalidade política. Para Foucault
(2003):
1 O poder não é uma substância. (...) O poder não é senão um tipo
particular de relações entre indivíduos. (...) O traço distintivo do
poder é que alguns homens podem mais ou menos determinar
inteiramente a conduta de outros homens mas nunca de maneira
exaustiva ou coercitiva. (...) Se um indivíduo pode permanecer livre,
por mais limitada que possa ser sua liberdade, o poder pode sujeita-lo
ao governo. Não há poder sem recusa ou revolta em potencial.
118
2 No que concerne às relações entre os homens, vário fatores
determinam o poder. (...) O governo dos homens pelos homens – quer
eles formem grupos modestos ou importantes, quer se trate do poder
dos homens sobre as mulheres, dos adultos sobre as crianças, de uma
classe sobre uma outra, ou de uma burocracia sobre uma população
supõe uma certa forma de racionalidade, e não uma violência
instrumental.
3 Conseqüentemente, os que resistem ou se rebelam contra uma
forma de poder não poderiam contentar-se em denunciar a violência
ou em criticar uma instituição. (...) O que é preciso recolocar em
questão é a forma de racionalidade com que se depara. (...) A questão
é: como são racionalizadas as relações de poder? Apresenta-la é a
única maneira de evitar outras instituições com os mesmos objetivos e
os mesmos efeitos, tomem o seu lugar. (pp. 384-5)
As artes de governar, de dirigir, de conduzir, de guiar respondem a uma razão, a uma
intenção:
Para resumir, a razão de Estado não é uma arte de governar segundo
as leis divinas, naturais ou humanas. Esse governo não tem de
respeitar a ordem geral do mundo. Trata-se de um governo em
concordância com a potência do Estado. É um governo cujo objetivo
é aumentar essa potência em um quadro extensivo e competitivo.
(FOUCAULT, 2003, p. 376)
A educadora argentina Adriana Puigrós observa que numa reforma de ensino as
políticas de mudança pedagógica deveriam respeitar a participação, a experimentação, a
gradação e a formação. Considerando as reformas como processos profundos que colocam
em movimento aspectos da vida social e cultural comprometendo o imaginário coletivo, a
memória e a perspectiva histórica, sendo necessária a incorporação de experiências
acumuladas pela sociedade. Numa reforma de ensino, deveria haver o respeito ao tempo e ao
direito da comunidade educativa participar das mudanças na educação. No entanto, sabemos
que o tempo institucional e político nem sempre ou quase nunca coincidem com o tempo
do fazer cotidiano. A micropolítica das práticas pedagógicas no cotidiano exige uma pausa
(que pode ser bastante longa) para a surpresa, a reflexão, as incertezas e a decisão de
investimento afetivo e intelectual dos professores no projeto pedagógico proposto. Pois “as
políticas impostas verticalmente, de forma homogênea e sem consulta, constituem fracassos
prováveis e requerem medidas autoritárias para se sustentar” (Puigrós apud CANDAU, 2000,
p. 39).
119
3.3 – CENA DOIS: RESGATE DA CIDADANIA E
VALORIZAÇÃO DO PROFESSOR
Christina e Michele chegam a uma escola, por volta das 10h30minh, para fazer a
entrevista com a professora Wilma. Após escolherem o local para a realização da entrevista –
sala dos professores são feitos comentários corriqueiros sobre o clima frio (faz muito frio
em Chapecó, mesmo em setembro ou outubro), sobre a dificuldade para encontrar a escola (a
escola fica em uma comunidade um pouco distante do centro da cidade) e as condições de
acesso (a rua não é pavimentada).
Wilma começa por nos contar que trabalha vinte e um anos na rede pública do
município e que no momento trabalha como coordenadora de ciclo. Então perguntamos:
Você percebe se houve mudanças, com a implantação da proposta
do município, no cotidiano?
Houve mudanças sim, em todos os aspectos. Quanto a nós,
professores, a gente está acostumado a ter um tipo de trabalho em sala
de aula. Você tinha aquele plano..., no caso, fazia e seguia os
conteúdos pré-estabelecidos. (...) Nós professores temos que nos
dedicar bem mais a pesquisar, ler mais, buscar mais. (...) A gente tem
que ler bem mais para estar trabalhando em cima desse jeito de
trabalha, que é o ciclo, nessa formação de rede (...). Tem professores
que ainda não entraram no ritmo. Houve uma mudança bem grande.
No início não foi fácil. A gente estava acostumado com um ritmo e
agora de vez em quando a gente fica perdido..., antes você pegava o
livro e seguia agora não dá, né? A gente sente falta, é como se
faltasse o chão. (...) Dentro dessa proposta a gente teve, na verdade,
que se mexer mais e quem não se adaptou fica para trás mesmo. (...)
No início eu levei um choque realmente. Foi assim: meu Deus do céu
uma mudança! Fazia tantos anos que trabalhava daquele jeito.
E qual foi o choque que trouxe uma maior mudança no cotidiano
de vocês?.
O choque maior foi que a gente estava acostumada com um ritmo.
Com os conteúdos prontos, programados, e aqui você não tinha nada.
(...) Antes estava tudo prontinho, tudo ali. Claro que você ia
mudando, mas era mais tranqüilo. Agora não, você tem que estar
sempre alerta. (...) No início todos os professores ... foi uma
mudança, mas a gente foi se adaptando, foi, foi. A mudança, agente
tem que se adaptar.
Tomamos emprestado de Guattari (1992) um trecho de seu texto que me parece ajudar
a entender o motivo do choque provocado quando foi “tirado o chão”:
120
Complexificação desterritorializante essencialmente precária, porque
constantemente ameaçada de enfraquecimento reterritorializante,
sobretudo no contexto contemporâneo onde o primado dos fluxos
informativos engendrados maquinicamente ameaça conduzir a uma
dissolução generalizada das antigas territorialidades existenciais (p.
31).
As mudanças, apontadas incidiram na forma de organização do trabalho docente.
Os professores, habituados a uma forma de trabalho bastante individualizada e feita a partir de
alguns modelos previamente elaborados pelos especialistas em educação, passaram a fazer
seus planejamentos de aulas coletivamente. Passaram também a ter que se organizar para
alcançar os objetivos de ensino por ciclos de três anos, o que implicava na necessidade de
planejamento a longo prazo e com a participação e compromisso de todos os professores de
cada ciclo.
Durante as pesquisas realizadas, observamos que as modificações no sistema de
avaliação dos alunos, o “abandono” dos livros didáticos e a necessidade de estudar/pesquisar
mais, a utilização do “tema geradorcomo ponto de partida para o planejamento das aulas, a
necessidade de uma integração maior dos professores para a realização do planejamento e
execução das tarefas modificaram o seu cotidiano de trabalho:
Realmente é uma coisa muito complexa, essa caminhada na
educação popular. Ela não é simples. Ela é bem complexa mesmo,
ela exige muito da gente, ela exige tudo. Exige concentração, exige
você estar fazendo um monte de material novo, que não existe ainda.
A gente tem que criar, tem que formar, buscar, sabe? Então isso que é
o novo que dificulta bastante essa parte ali. (IRENE, 2004)
(...) Antes a gente se preocupava tanto em buscar o novo, porque a
gente seguia o livro didático. Vinha pronto, o planejamento vinha
pronto e acabado. Você tinha que fazer aquele conteúdo do começo
do ano até julho, tinha que dar jeito. (...) No início não foi fácil
porque você não estava acostumada com aquele hábito. (ANA, 2004)
— (...) Então, não vem nada pronto. (...) E o que aconteceu de
mudança é que antes as coisas vinham mais prontas e a gente (...) a
pessoa ia pros cursos e vinha com as apostilas para trabalhar. Você ia
e vinha mais com respostas. Agora, você vai e volta com mais
dúvidas do que foi. (CECILIA, 2004)
É fácil perceber que os cursos de formação de professores prepararam os professores
para novas propostas pedagógicas e, certamente para a necessidade de outras formas de gestão
do trabalho. Lembremos que este projeto pedagógico tem como fundamento metodológico a
Educação Popular de Paulo Freire e como fundamento teórico de Vigotski. Ora, as idéias
121
desses dois pensadores foram reintroduzidas e ganharam força no campo educacional
brasileiro na década de 1990 e a professora entrevistada com menos tempo de formação tinha,
pelo menos 15 anos de trabalho, portanto formou-se ainda nos anos de 1980. Além disso, e
por isso mesmo, a formação dos professores, naquele período, se dava a partir de uma
hierarquia bastante clara e rígida estabelecida pelas habilitações/especializações pedagógicas.
A esse respeito, “Beth” Barros (1997) observa que a formação do educador está
referida tanto à capacitação e a competência técnica e pedagógica quanto à consciência e ao
compromisso político. No entanto, ela adverte que
(...) prática pedagógica e prática política não se constituem pólos
distintos a serem articulados. São práticas que vão se ligando e se
produzindo no social. (...) A prática do professor não é um resultado
“alheio” a certa pedagogia competente que lhe foi ensinada. (p. 67)
Formadas em um período em que a divisão social do trabalho está claramente
estabelecida pelas habilitações/especializações no nível gerencial das ações pedagógicas
(administração, orientação e supervisão educacional) a sensação de “dependência” em relação
à orientação desses especialistas “competentes e autorizados” a emitir um discurso científico,
se faz sentir.
Ancorada em Foucault, Coimbra (1990) destaca a força do discurso dos especialistas e
sua capacidade de fixar os lugares daqueles que “podem falar” e daqueles que “devem
escutar”:
Cada formação social tem seu regime de “verdade”; tais “verdades”,
segundo a concepção positivista, são dadas pelas ciências. Estas
acolhem determinados tipos de discursos como “verdadeiros”, fazendo
distinção entre os enunciados considerados “verdadeiros” e aqueles
considerados “falsos”. Não se estabelecem relações entre os saberes,
mas se desqualificam uns como não competentes, sobrepondo-se os
considerados “científicos”, “verdadeiros”, “objetivos” e “neutros”.
(...)
Portanto, os discursos ditos “científicos” e “neutros produzem no
social “verdades” dotadas de efeitos poderosíssimos. Dentre eles o de
naturalizar a divisão entre trabalho manual e intelectual, marcar esses
lugares como território do não saber e saber, respectivamente, e
portanto percebidos como inferior e superior. (pp. 15-6)
A intimidação produzida pelo discurso científico pode se traduzir pelo sentimento de
incompetência daqueles que não o dominam. O sentimento de incompetência submete os que
“não sabem” aos especialistas. Entretanto, ao mesmo tempo, coerente com os princípios do
122
pensamento liberal essa situação poderia ser uma questão de tempo e esforço, uma vez que
através do esforço pessoal, da dedicação e de uma “boa educação” qualquer um poderia
chegar ao nível de especialista e, portanto, ao nível de gerência do trabalho pedagógico. Não
é a toa que a professora Wilma diz:
E o que essas mudanças representaram no cotidiano de vocês?
Para a profissão?
(...) O próprio projeto do município faz a gente fazer mais isso...
buscar mais, interagir mais, ler mais, voltar a estudar, que foi uma
mudança e quem ficou pra trás, ficou e muitas vezes fica perdido. No
início, acho até engraçado, quando começou o ciclo, o pessoal falava
uns termos, umas palavras, palavras de Paulo Freire. A gente lê, mas
a gente não conhecia direito, a gente foi obrigada a voltar a estudar
porque falavam num nível, assim, de terceiro grau. Então quem não
voltou a estudar, quem ficou parado no tempo não acompanhou. Não
o que o pessoal falava. (...) Eu fui uma, voltei a fazer pedagogia (...).
Aliás, as colegas todas daqui da escola,nós não tínhamos pedagogia.
E aqueles que não voltaram a estudar, aqueles que não desejaram ou não conseguiram
ascender a um outro patamar em sua carreira? Aceitam e incorporam sua “incompetência” e
se submetem a executar as tarefas planejadas por seus especialistas-gerentes-supervisores
educacionais? Aceitam também a desqualificação de seu trabalho e o rebaixamento dos seus
salários “justificado” por não serem trabalhadores especializados? A própria professora
Wilma indica:
Tinha que ter uma formação de terceiro grau e, quem não fez...
tem pessoas que não fizeram. Sabe? Elas não têm tanto aquela
leitura, elas não vão tanto na leitura... quando você fala, você lê, elas
não dão muita importância. E a gente percebe, assim, pelos encontros.
Tem professores que estão ainda no magistério, não fora além. Não
foram fazer uma formação, uma pós.
A quase obsessão pela competência técnica acaba por fazer surgirem
artifícios promotores de conhecimento que relegam as pessoas a se
submeterem ao discurso do especialista, enquanto detentores dos
segredos da realidade vivida. Aos não especialistas fica a ilusão de
participar do saber. (...) A competência instituída e institucional passa
a ser uma arma importante no projeto de intimidação social e política.
(...) O “despreparo” e a “insegurança” do educador são fruto, portanto,
de um determinado projeto político. O saber-fazer concretiza uma
determinada linha de opção política. (BARROS, 1997, p. 66)
Não acredito que a equipe coordenadora quisesse, propositalmente, submeter o fazer
cotidiano dos professores ao saber especializado dos dirigentes da secretaria de educação.
123
Acredito mesmo que estava cheia de entusiasmo com a possibilidade de compartilhar com os
professores da rede um conhecimento que lhes era tão caro; que estava sendo movida por uma
vontade de poder afirmativa (criativa, inventiva, aberta à multiplicidade). No entanto,
imbuída de um espírito de “liderança revolucionária” não chegou a ouvir as experiências
cumuladas pelos professores, não chegou a considerar que outros caminhos poderiam ser
seguidos na produção de um projeto político-pedagógico de promovesse as mudanças
necessárias para uma educação condizente com seus princípios político-partidários.
Sendo assim, não consigo deixar de considerar que a equipe se colocou, sim, como um
corpo administartivo-gerencial que tem como tarefa implementar uma nova proposta de
trabalho. Por isso mesmo temos que considerar algumas questões importantes relativas ao
duplo aspecto: administração e gestão.
Caminhando na perspectiva de Yves Schwartz (2004) e com o auxílio de Minayo-
Gomes e Barros de Barros (2002), podemos compreender que administração e gestão não se
confundem, uma vez que administração refere-se a uma ordem implementada
institucionalmente, enquanto gestão diz respeito “às formas como os humanos produzem suas
atividades no trabalho, que implicam imprevisibilidade e possibilidade de criação”
(MINAYO-GOMES & BARROS DE BARROS, op. cit, p. 6). Ora, em se tratando de um
projeto não apenas pedagógico, mas com um peso político diferenciado – por ter sido
implantado na primeira gestão do PT, na cidade podemos compreender por que uma nova
forma de organização do trabalho docente trouxe tanta surpresa, expectativa e “alvoroço”,
pois conforme Minayo-Gomes & Barros de Barros “as políticas educacionais e as diferentes
formas de organização do trabalho que elas atualizam têm decorrências importantíssimas na
gestão do trabalho portanto, nos processo de subjetivação e na saúde dos
trabalhadores/educadores” (2002, p. 6).
Em relação à questão da organização do trabalho, um ponto a ser pensado diz respeito
às regras de ofício, que segundo D. Cru (1987) se compõe de quatro regras: a regra de
ouro: cada um termina o trabalho que começou; a regra das ferramentas: cada um utiliza
as suas próprias ferramentas; a regra do tempo: nem correr, nem adormecer; a regra
da livre passagem: cada um pode circular sobre toda a obra que são coerentes entre si e
indissociáveis e, no entanto, não estão escritas em qualquer lugar. Antes, são implícitas no
saber-fazer do ofício e são compartilhadas por todos os trabalhadores daquele ofício. E mais
que isso, elas ajudam a orientar e a balizar a vida no trabalho, dando proteção contra a
ingerência, a arbitrariedade, as variações de humor de quem quer que seja. Essas regras
124
promoveriam coesão e proteção àqueles que as aceitam e as internalizam. Ao mesmo tempo,
por não serem leis ou regulamentos, sua infração não acarreta punição, mas sanciona de forma
subjetiva aquele que as infringe.
Jorge Larrosa (1995) considera que as práticas pedagógicas constroem e atravessam as
relações do sujeito consigo mesmo. Para isso utiliza tecnologias de auto-reflexão e auto-
expressão, práticas de autocontrole para alcançar a transformação do sujeito em relação a si
mesmo e, no caso dos professores, em relação ao seu trabalho.
No vocabulário pedagógico (...) utilizam-se muitos termos que
implicam algum tipo de relação do sujeito consigo mesmo. (...)
“autoconhecimento”, “auto-estima”, “autocontrole”, “autoconfiança”,
“autonomia”, “auto-regulação” e autodisciplina”. Essas formas de
relação do sujeito consigo mesmo podem ser expressadas quase
sempre em termos de ação, com um verbo reflexivo: conhecer-se,
estimar-se, controlar-se, impor-se normas, regular-se, disciplinar-se,
etc. (...) todos esses termos (...) estão mais ou menos implícitos
naquilo que para nós significa ser humano: ser uma “pessoa”, um
“sujeito” ou um “eu”.
(...) Todos esses termos, sobretudo quando são usados em um
contexto pedagógico e/ou terapêutico, costumam articular-se
normativamente. (...) a culpabilidade e a vergonha de si (...) a
irresponsabilidade, a debilidade da vontade ou do caráter, a ausência
de autoconfiança, a perda ou o debilitamento da identidade (...).
Portanto, todos os termos (...) podem ser elaborados também como se
fossem características normativas do sujeito formado ou maduro, ou
do sujeito são ou equilibrado (...) (pp. 38-9).
Assim, podemos considerar que as políticas administrativas ecoam traços de uma
intenção política mais ampla que produz modos de subjetivação que conduzem ao
assujeitamento a uma normatividade pré-fabricada, pré-inscrita e prescrita. As políticas de
administração e de gestão no espaço escolar podem produzir práticas de si que indicam modos
de subjetivação auto-reguladoras.
A respeito do ritmo de trabalho, a fala da professora Wilma (“A gente estava
acostumado com um ritmo e agora de vez em quando a gente fica perdido”) me evoca a
imagem de uma fila que prossegue, sempre em direção a um ponto de aperfeiçoamento, com
os desistentes que vão ficando para trás. Também me lembra Carlitos em “Tempos
Modernos”.
É interessante notar que o projeto defende a organização curricular por ciclos de
formação por esta ser uma forma de respeitar os tempos de aprendizagem dos alunos. No
125
entanto os próprios professores não tiveram seu tempo de aprendizagem considerado no
processo de implementação do projeto pedagógico.
Maria Tavares (1992), em sua dissertação de mestrado traz uma linda imagem,
cunhada por Jean Oury, que nos remete a pensar sobre o tempo e a apropriação dos
instrumentos necessários para a realização de um trabalho. A historia diz respeito aos
(...) lapidadores de pedras, que foram construtores de catedrais e que
atualmente são em geral chamados para refazer fachadas. O trabalho
desses operários, e talvez fosse mais fidedigno dizermos artesãos, é
bastante peculiar. Cada um deles possui uma caixa de ferramentas
particular que é tratada como seu maior tesouro, inclusive sendo
decorada por eles com adesivos e enfeites os mais diversos. Uma
caixa de ferramentas nunca é igual à outra, pois seu conteúdo vai se
modificando ao longo dos anos de prática. Além das ferramentas irem
se moldando à mão de quem trabalha com elas, outros utensílios vão
sendo acrescentados: um prego com uma ponta mais fina, um pedaço
de arame. Enfim, tudo o que for sendo considerado útil em algum
momento dessa prática, vai sendo apropriado e transformado em
ferramenta de trabalho, não importando sua natureza inicial. A
construção, apropriação, elaboração e aperfeiçoamento permanente
das ferramentas de trabalho se porque uma pedra nunca é igual a
outra, sendo necessário adequar as ferramentas a cada novo desafio.
(...) Quando um grupo de lapidadores de pedras é chamado para
trabalhar em alguma fachada, inicialmente eles se reúnem em frente
ao prédio e ficam por ali, jogando, bebendo, conversando, fazendo um
trabalho que eles chamam, e aqui vamos nos permitir um neologismo
em português para não perdermos toda a dimensão implicada nesta
parte fundamental e decisiva de seu ofício, de ‘lupagem’. Esta
‘lupagem’ pode durar várias semanas e, durante este tempo, quem
passa por ali tem idéia de que um bando de desocupados resolveu se
reunir em frente ao prédio. Mas é na ‘lupagem da fachada’ que reside
toda a arte de seu trabalho. É preciso esperar, tomar o tempo e a
distância necessários para evitar uma precipitação que poderia ser
desastrosa, encontra o ‘ponto essencial’, e então o trabalho, uma vez
iniciado, pode se fazer numa rapidez extraordinária. (p. 26)
Por outro lado, as professoras consideraram positiva a necessidade que lhes foi
provocada de procurar estudar, pesquisar, “buscar” mais.
Além disso, a secretaria deu oportunidade para que os professores mostrassem seu
trabalho, colocando em questão tanto acertos como erros – os seus e os da própria secretaria –
em congressos e seminários, além de jornais.
126
3.4 – CENA TRÊS: AUTONOMIA
Chegando atrasadas na escola, Michelle e Christina são logo conduzidas à sala da
professora Alessandra. Uma professora baixinha, muito agitada e cheia de bom humor. Ela
vai logo avisando que não teremos muito tempo para a entrevista, pois terá que sair correndo
para ir em casa almoçar e mandar suas crianças para a escola. Michelle, sem perder tempo,
inicia a entrevista:
Professora, eu gostaria de saber a quanto tempo você é professora
do município?
Eu tenho 19 anos de magistério... Eu iniciei trabalhando no
estado... e quando eu trabalhava eu trabalhava pra prefeitura...
então, eu estou na prefeitura 13 anos. Então eu tenho experiência
no estado e no município, peguei as duas propostas, a antiga e a de
agora.
Houve mudanças com a implantação desta proposta curricular do
município? – questiona Michelle.
O que a gente tem de diferente é assim... A gente tem mais tempo
para planejar, porque acredita-se, dentro da proposta, que a gente tem
que fazer muita pesquisa de campo pra conhecer a realidade do
aluno... de três horas/aula, passou pra sete horas aula. Outra coisa
que é diferente: antes da proposta a gente trabalhava assim, pegava o
livro de história, ciências e fazia uma seqüência dos conteúdos. Agora
não! No início do ano a escola geralmente retorna antes do estado e
os professores, a direção, as serventes vão fazer pesquisa de campo
nos bairros. (...) Procura envolver as entidades dos bairros, a igreja, os
pais.
A professora Alessandra fala rápido e quase sem interrupção. Ela fala de seus
sentimentos quanto à dificuldade de trabalhar com o tema gerador e suas dificuldades com a
turma de progressão.
— (...) Tinha uma preocupação inicial. Nós passamos dois anos numa
angústia, num dilema, porque a gente não conseguia achar os
conteúdos, não conseguia ver os conteúdos, mas com o passar do
tempo a gente foi vendo que não era tão difícil. Isso é a
experiência, o tempo que faz isso com a gente. (...) A progressão,
quando eu trabalhava, tinha muita angústia dentro disso, porque o
professor da progressão não é muito o aluno –, mas tem os que
sabem um pouco, outros menos, ou mais, então o professor trabalha
muito, muito, muito.
Quase ao final da entrevista Michelle questiona:
127
E como está a relação entre a teoria adotada e a prática em sala
de aula?
Nós podemos pegar um livro, um texto legal, mas a gente tem
que recortar pra nossa temática. A gente vai criar o nosso
questionamento, o nosso debate, em função da nossa intenção. Então,
a nossa intenção era desmistificar tais coisas, então as minhas
perguntas, os meus debates devem se reportar a isso, e não aquelas
perguntinhas prontas. A gente cria, tem que pesquisar, tem que ir nos
livros, mas pega alguma coisa e recorta e cola, monta. Aquilo que pra
elas é importante. Então a gente se desligou do livro didático, não que
não sirva de subsídio. Olha, a biblioteca é uma pobreza. A gente está
trabalhando a água: quem ganha e quem perde com a história da água
(...) Estamos trabalhando os estados [físicos] da água, estamos, mas
também a parte crítica: quem ganha, quem perde, o desperdício, o
prejuízo, os benefícios. Hoje você amplia os horizontes, é trabalhoso.
A gente sente que está muito desgastada, muito estressada porque a
proposta exige que você trabalhe o que a criança fala, a realidade, mas
que não se limite a esse mundinho, que você além (...) Exige
muito do professor e então momentos estressantes, acredito que
para elas que elaboraram também, porque elas querem e se preocupam
que dê certo. (ALESSANDRA, 2004)
A professora Wilma comenta como é desgastante, física e mentalmente, o
desenvolvimento da avaliação descritiva:
Antes era nota, agora é aquela avaliação descritiva, que também
toma mais tempo, mais trabalho dos professores porque ela exige
mais. (...) Exige muito mais atenção dos professores, observação
maior. E você tem que estar escrevendo depois. E uma mudança
também quanto à avaliação é que exige muito mais na área de
escrever, de passar no papel, porque é cansativo escrever. Pegar uma
por uma, aluno por aluno (...) e você tem que estar escrevendo de área
por área, e ir escrevendo. Tem horas que você está cheia de calos nos
dedo, com câimbra nos braços. Você levanta tonta de estar
escrevendo. (...) Na outra escola a gente está usando computador,
usando a tecnologia para nos facilitar, senão não tinha condições.
Você passava uma tarde inteira e levava pra casa para continuar.
(WILMA, 2004)
A professora Irene, em sua longa entrevista, se refere aos sentimentos de impotência e
angústia que tem diante de diversas dificuldades que encontra no dia-a-dia com seus alunos.
Dificuldade em lidar com os problemas pessoais dos alunos da EJA:
O adulto gosta de falar as coisas particulares da casa. As coisas da
vida íntima, os problemas com os filhos, com os amigos (...). Eles
querem que a gente resolva as coisas por eles, sabe? E não é assim. E
isso até dificulta, às vezes, a relação professor-aluno porque eles
colocam mais essa questão, mais de amigo. Mas é um amigo que ao
128
mesmo tempo não é um amigo, é um psicólogo, é uma assistente
social, sei lá o que.
Você tem essa percepção de que muitas vezes as pessoas vêm
pedindo ajuda..?
(...) Eu sei que eu não sou milagrosa, nenhum professor é
milagroso. Mas nós temos esse defeito de querer acertar o mundo.
(...) O que o professor, um simples mortal, vai fazer pra resolver isso,
sabe? Então embora você consiga auxiliar, você consiga ouvir, muitas
vezes você se sente de mãos atadas. Porque essas coisas não estão na
tua mão pra resolver. Questões sociais de falta de emprego, de falta
de dinheiro, isso foge da nossa alçada. (...) A gente tem que tomar
cuidado sim, pra não carregar a culpa. (IRENE, 2004)
A preocupação com o processo de aprendizagem da leitura e da escrita:
A angústia que eu tenho que eles aprendam, não casa com a falta
de angústia que eles têm de aprender. Não estou falando de
compreensão do mundo, porque isso eles conseguem. (...) Agora,
quando se trata da questão do registro [ler e escrever] não vai, empaca.
E você acha que essa sensação de impotência influencia no
desenvolvimento do seu trabalho?
Influencia. Influencia porque, assim, você fica pensando na tua
aula, quando planeja. Eu estava pensando essa semana, e pensava
assim: meu Deus o que eu vou fazer com eles pra tentar fazer com que
aprendam, se interessem, façam? (...) Eu, assim, de um tempo pra
tenho me sentido muito angustiada conforme vai chegando o fim do
ano. Eu sei que ali vai permanecer bastante aluno porque eles ainda
não conseguiram aprender a ler e escrever. (...) Às vezes a
impressão de que eles gostariam que a gente chegasse, afastasse o
cabelo, fizesse um cortezinho colocasse as coisas, fechasse, deixasse
cicatrizar. Pronto, aprendi! (...) Eu me angustio, me sinto impotente.
(...) Me dizem você se cobra demais, mas eu tenho que cobrar de mim
mesma. (...) eu achava que não estava fazendo a coisa correta, que a
coisa não está certa. Porque se o meu aluno não está aprendendo, que
raio de professor estou sendo? (IRENE, 2004)
A dificuldade em lidar com alunos surdos, deficientes mentais, etc.:
Outra coisa que eu vejo muito complicada... eu não sou contra a
inclusão. O que eu sou contra, é assim: eu tenho alunos na sala de
aula aqui e no outro colégio... tem um que tem limites físicos. O
aluno veio e onde ficou a preparação nossa pra aceitar esse aluno? Eu
até tinha um pouco de preparação porque eu tenho uma sobrinha com
deficiência mental, então eu sei como lidar um pouco com ela, pelo
conviver. Mas ninguém chegou e disse Irene, com os surdos-mudos
você tem que ser assim, assado; com o mental leve é assim, assim.
Falta preparação. Faltou o pessoal chegar assim: vamos incluir, mas
então vamos primeiro conhecer que tipo de portadores de
129
necessidades vamos receber. Vamos conhecer quais são seus limites e
suas capacidades. (...) Eu estou fazendo do jeito que dá. (...) Agente
não tem o material que precisaria ter pra trabalhar com esse pessoal, a
gente vive improvisando matéria. A escola não tem fundos pra ter
todo esse aparato. A gente não tem um ambiente, não tem uma rampa
pra entrar. O prédio não é apropriado. Várias coisas que não estão
certas. (...) Nesta situação que eu estava te contando, como a gente se
sente? No primeiro ano eu ia pra casa e chorava um monte. Chorava
porque não conseguia resolver as coisas, fazer as coisas direito. E
hoje, eu faço? Faço nada, não faço direito. Mas eu diminui o meu
nível de angústia porque eu ia ficar maluca antes do tempo. (IRENE,
2004)
Entendendo que o trabalho implica uma mobilização cognitiva e subjetiva, que
envolve certo custo (prazer ou dor), é compreensível que a gestão do trabalho seja
necessariamente efetuada pelo trabalhador, pois como diz Schwartz (2004, p. 23) “toda gestão
supõe escolhas, arbitragens, uma hierarquização de atos e de objetivos, portanto, de valores
em nome dos quais essas decisões se elaboram”. Fazer um curso “por conta própria”, usar o
computador para fazer as avaliações descritivas, inventar novas formas de trabalhar nas
turmas de progressão, tudo reclama novos modos de fazer para resistir às dificuldades e
manter a saúde mental.
Para Yves Clot (2001), de um modo geral, as atuais condições de organização do
trabalho empurram o trabalhador para uma situação em que cada vez mais ele assume
responsabilidades sem ser efetivamente responsável pela definição dos objetivos do trabalho.
“Uma disponibilidade psíquica cada vez maior é necessária aos trabalhadores para agir nos
meios profissionais [exigindo] que os trabalhadores coloquem cada vez mais de si no
trabalho” (p. 4).
Na década de 1990, René Lourau (2004) cunha o termo sobreimplicação e o define
como o plus, “o ponto suplementar que o docente atribui ao trabalho do aluno se encontra
esmero em seus cadernos (...). A sobreimplicação é composta igualmente de virtudes exigidas
dos empregados, hierarquizadas em grades de avaliação” (p. 192). Para ele esse conceito
indica “que se trata de exigir um suplemento de espírito, garantia de um sobretrabalho
diretamente produtor de identificação com a instituição e indiretamente produtor de mais-
valia em favor do empregador” (p. 192).
Ao atribuir a si mesmo a responsabilidade em alcançar o sucesso dos objetivos
educacionais, o professor – embora muitas vezes reconheça as más condições de trabalho com
que convive toma para si os sentimentos de impotência, de angústia e de incompetência, tal
130
como nos relataram as professoras Irene e Wilma. Problemas institucionais e políticos se
transformam em cobranças individuais.
Disso decorre a possibilidade de sofrimento no espaço de trabalho, mas, ao mesmo
tempo, convoca a iniciativa de ações criativas que ajudem a enfrentar as situações mais
dolorosas. Para Dejours e Abdoucheli (1990) existem dois tipos de sofrimento no trabalho:
sofrimento patogênico e sofrimento criativo. O sofrimento patogênico emerge quando
(...) todas as margens de liberdade na transformação gestão e
aperfeiçoamento da organização do trabalho foram utilizadas. Isto
é, quando não nada além de pressões fixas, incontornáveis,
inaugurando a repetição e a frustração, o aborrecimento, o medo ou o
sentimento de impotência. Quando foram explorados todos os
recursos defensivos (...). (p. 137)
Segundo Brito, Athayde e Neves (1998), na vida existem condições dadas que,
muitas vezes, não são as ideais ou as desejadas. A capacidade de lidar com esse meio de
modo a transformá-lo e torná-lo mais favorável, implica em saúde. Nesse sentido, as defesas
(psíquicas e biológicas) fazem parte das estratégias de adaptação a um meio adverso, até que
novas possibilidades/estratégias sejam criadas. Assim, a doença aparece quando
passividade, quando “a luta e as defesas individuais ou coletivas se enfraquecem ou se tornam
ineficazes, em face de uma mudança no ambiente (interno ou externo)” (p. 34). Pensando
dessa maneira, podemos concluir que o sofrimento pode tornar-se, mas não é necessariamente
patogênico. O sofrimento no trabalho pode gerar formas criativas de enfrentamento contra o
adoecimento. Nesse ponto, a capacidade de ser afetado pelas condições de trabalho e, ao
mesmo tempo, falar e pensar sobre isso – individual e, principalmente, coletivamente – parece
ser uma alternativa para a ação em busca de uma nova normatividade. Parece-me que o
espaço coletivo, para as discussões das angustias e para busca de alternativas, pode se
constituir como uma das estratégias fundamentais para a criação de ações contra o
adoecimento e favoráveis à potencialização da saúde no trabalho.
De acordo com Noroudine (2004), a infração das normas antecedentes aqui
entendidas como integrantes das prescrições da tarefa – traria uma situação de risco colocando
o trabalhador fora da norma que garantiria certa segurança (de sucesso, de saúde, de
manutenção do emprego). No entanto, ele alerta que o momento da infração é também um
momento de risco que possibilita uma nova normatização frente às regras antecedentes. E
pergunta:
131
Não poderíamos considerar que existe uma positividade do risco
relativa à necessidade de transgredir para tornar possível a saúde? (...)
Se saúde no trabalho é possível, ela não pode se definir como ausência
de risco, mas como capacidade de gerir e ultrapassar as dificuldades
ligadas ao risco (...). Poderíamos então considerar o risco como o ato
de criatividade necessário e jamais dominado para produzir, inventar,
realizar. (NOUROUDINE, 2004, pp. 38/58/38)
Mesmo sem saber se estão “fazendo certo”, as professoras vão inventando, vão
criando vão produzindo práticas cotidianas com as possibilidades que se apresentam visando
não apenas evitar o sofrimento, mas também para se sentirem mais coerentes com o seu
trabalho.
Certeau (1996) considera que as práticas cotidianas se dão num contínuo processo de
movimento denominado trajetória. No traçado dessa trajetória existiriam dois vetores:
estratégia e tática. Por estratégia Certeau designa “o cálculo (ou a manipulação) das relações
de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma
empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado” (p. 99). A
tática, ao contrário não pode ser delimitada, isolada em um sujeito de poder-querer, mas se
dissemina pelo grupo social e se manifesta quando as oportunidades se apresentam. “Em
suma, a tática é a arte do fraco” (p. 101). No entanto, Certeau chama atenção para o fato de
que esta é uma arte da astúcia, em nada ingênua ou concedida, mas conquistada nas batalhas
do dia-a-dia.
Sem cessar, o fraco deve tirar partido das forças que lhe são estranhas.
Ele o consegue em momentos oportunos onde combina elementos
heterogêneos (...), mas a sua síntese intelectual tem por forma não um
discurso, mas a própria decisão, o ato, a maneira de aproveitar a
“ocasião”. (...)
Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou
preparar refeições, etc.) são do tipo tática. E também, de modo mais
geral, uma grande parte das “maneiras de fazer”: vitórias do “fraco”
sobre o mais “forte” (...), pequenos sucessos, artes de dar golpes,
astúcias de “caçadores”, mobilidades da mão-de-obra (...). Essas
performances operacionais dependem de saberes muito antigos. Os
gregos as designavam pela métis. (...) Essas táticas manifestam
igualmente a que ponto a inteligência é indissociável dos combates e
dos prazeres cotidianos que articula, ao passo que as estratégias
escondem sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que os
sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição (p. 47)
Se, como entendemos, para haver satisfação no trabalho, este precisa ter conteúdo,
fazer sentido para o trabalhador, é preciso acreditar que é o próprio trabalhador que será capaz
132
de detectar dificuldades, interpretá-las e traçar táticas de ão capazes de criar novas formas
de funcionamento, no e para o trabalhado. Apostar na capacidade criativa do trabalhador e
no nosso caso, do professor é apostar na capacidade de renovação da vida e da saúde no
trabalho.
Para Neves, Athayde e Muniz (2004) as professoras
(...) fazem uso das possibilidades contidas no patrimônio do ofício e
de sua inteligência prática (...) de sua astúcia e criatividade para
realizar a atividade de modo diferente ou mais amplamente do que
estava previsto pela tarefa: recorrem a práticas de engenhosidade e de
ajustes, reinventando o cotidiano de sua atividade. (p. 319)
As dúvidas, as incertezas, os riscos que as professoras correm ao reinventarem
cotidianamente o seu trabalho se traduz em suas falas e, de forma geral, são entendidas como
uma novidade positiva.
(...) Claro, evolução teve. Eu tenho uma autonomia maior, talvez
porque eu conquistei essa autonomia (...) as falas [colhidas da rede
temática] às vezes eu deixo de fora. (...) Eu sempre busco fazer o
máximo. Até a proposta, às vezes, eu deixo de lado porque eu acho
que o quê eu penso em fazer é melhor. Eu não sou uma professora
acomodada, que fica ali assim (...). Mas quantos erros a gente comete,
mas conserta um monte, então é por aí. (...) Eu acho que pra trabalhar
com a progressão a primeira coisa que eu tenho que ter é o dom da
paciência e do jogo de cintura. As crianças são bem diferentes uma
das outras. E, assim, eu tenho que trabalhar diferente com eles. Cada
um de um jeito (...). Trabalhar com os alunos da progressão é um
grande desafio. É assim, ó, cansei de preparar aulas, chegar em sala
pra trabalhar e deixar tudo de lado e fazer aquilo que eles querem
naquela hora. tu chega e prepara umas aulas legais, em cima do
tema gerador, tem que fechar o caderno e fazer, resolver os
questionamentos deles. (...) Eu aprendi a me adaptar, a mudar, a
reprogramar a aula e, às vezes, até improvisar. (ROSE, 2004)
Quase ao fim da entrevista a professora Rose reafirma sua “desconfiança” com relação
à adoção do tema gerador como ponto de partida para trabalhar os conteúdos em sala de aula.
Por outro lado ressalta que a tentativa para achar caminhos mais adequados” estimula sua
prática docente ao desafiar para a construção de alternativas para as dificuldades do cotidiano
escolar.
(...) que com tudo isso a proposta do tema gerador não me
convenceu.
— E não convenceu por quê?
133
Pela dificuldade que é de a gente atingir certos objetivos que a
gente quer, porque até os alunos exigem da gente. (...) Mas também
tem um ponto bom. Eu agora com os alunos, dentro da matemática...
uma vez eu trabalhava primeiro a adição, a subtração, a divisão, a
multiplicação. Hoje eu trabalho todas as operações juntas e os alunos
aprendem também. É um jogo de cintura. (...) Então, diante de
muitos acertos e erros a gente consegui achar um caminho mais ou
menos adequado. (...) Nós da progressão todo mês a gente se reúne
com todos os professores da progressão e tenta estudar e aprender um
determinado assunto, uma dificuldade do aluno (...). Esse ano eu
estou achando muito produtivo nesse sentido. E às vezes vêm pessoas
de fora ensinar a gente. Eles vêm ensinar como você vai identificar
certa dificuldade do aluno. O que ele tem? Dentro das dificuldades
dos alunos, que era coisa que psicólogo fazia. Tem coisinhas que a
gente o precisa mandar pra um especialista, que a gente mesmo
pode detectar e tentar resolver aqui. O pessoal do SAPS [Serviço de
Atenção Psicossocial que atende crianças e adolescentes] também
ajudou muito a gente nesses encontros.
— E como é assumir também essa tarefa?
— Eu acho produtivo. É um aprendizado e a gente tem que ter
coragem pra fazer. (...) É desafiador. (...) As mudanças, elas sempre
são... acontecem. Eu sou a favor da mudança. Eu, no ano passado,
preparei aula num caderno e nem tenho mais o caderno. Pra mim
aquilo passou, tira algumas coisas importantes (...) eu vejo às vezes o
professor que preparava as aulas naquele bendito diário, que chegava a
ficar roxo de vem ano e vai ano e é o mesmo. (ROSE, 2004)
A Professora Cecilia, por sua vez, destaca a importância de a escola estar tentando
encontrar alternativas para enfrentar as dificuldades encontradas no processo ensino-
aprendizagem. Além disso, ela aponta para o valor de evidenciar o processo, a caminhada de
acertos e erros que a implantação da proposta político-pedagógica promoveu.
(...) Assim, a gente tem bastante oportunidade de estar divulgando
o trabalho que a gente faz: quando teve a conferência, tem eventos
grandes (...). Eu e uma colega fomos falar sobre a questão das
oficinas pedagógicas
43
e dos grupos por necessidades. (...) A escola é
livre para se organizar da forma que queira pra tentar trabalhar as
dificuldades dos alunos. Então nós, esses grupos por necessidade,
esse apoio foi a própria escola que criou. A gente fez várias mudanças
até achar esse melhor jeito de trabalhar (...). Você conquista o teu
trabalho e tem a oportunidade de mostrar, tem no jornal, não me
lembro qual agora. Toda semana vai sair uma reportagem de uma
escola diferente do município. Estar mostrando um trabalho diferente
43
A respeito das oficinas pedagógicas a professora Irene fez um comentário que eu achei genial: Então agora,
uma vez por semana, duas aulas, é o que nós chamamos de oficina, embora eu o goste do termo oficina. Pra
mim oficina é onde eu levo o meu carro pra consertar quando está quebrado e eu não acredito em ser humano
quebrado pra você consertar, a não ser que você esteja doente de moléstia patológica. (Irene).
134
da escola, da comunidade, com a participação dos alunos. Então acho
que a gente tem mais participação dos professores nesse jeito de
trabalhar, porque como é uma conquista, é um pouquinho de cada um,
não é a secretaria de educação, mas os professores também, que
estão na rede tempo e hoje temos essa oportunidade. A gente o
deve ter medo de falar o que a gente ta fazendo porque é uma coisa
que a gente está tentando acertar. Tem erros, tem várias coisas que a
gente tem que mudar, melhorar, mas como é uma construção a gente
vai fazendo aos poucos. (CECILIA, 2004)
Considero que se ao mesmo tempo em que as professoras revelam seus sentimentos de
ansiedade frente ao fato de se sentirem despreparadas para enfrentar as dificuldades de
encarar as novidades e a precariedade das condições de trabalho, as professoras vislumbram a
conquista de uma autonomia que pode ser alcançada tanto individual como coletivamente: “...
eu tenho uma autonomia maior, talvez porque eu conquistei essa autonomia.” (ROSE, 2004);
Você conquista o teu trabalho (...) E a escola tem essa liberdade de se organizar da forma
que acha que o trabalho vai.(CECILIA, 2004); Todo ano a gente muda, desde o jeito de
planejar, o jeito de avaliar (...) Tem que estar sempre mudando, sempre criando.” (WILMA,
2004)
No entanto, esta autonomia está diretamente relacionada ao compromisso:
(...) Se eu sou comprometida eu vou dar o melhor de mim pra
trabalhar com o meu aluno. (...) Eu tenho a liberdade de trabalhar
diferente com os meus alunos, a liberdade de... como vou dizer? De
fazer o meu trabalho, mas também tem que ter o compromisso de que
os alunos vão chegar ao final do ano e mostrar avanços. A nossa
escola, de fato, tem um coletivo bem comprometido (...). (CECILIA,
2004)
A liberdade de ação, a autonomia, regulada e regulamentada por um preceito
moralmente estabelecido será mesmo autonomia?
Estar comprometido significa ser obediente aos princípios divulgados pela proposta
político-pedagógica? Estar comprometido significa “fazer bem” o seu trabalho? Estar
comprometido significa não opor resistências no sentido negativo do termo? Enfim, estar
comprometido significa assegurar um lugar no grupo em que se vive?
Concordo com Heckert (2004) que aponta o caráter meramente formal da autonomia,
descrito nos projetos político-pedagógico que se multiplicaram a partir dos anos 1990: “apesar
de ressaltarem a importância da autonomia e da participação na escola, as reformas
135
educacionais instituem, por maio de relações formais e contratuais, ‘estados de autonomia’
que intensificam a tutela e burocratizam a participação na escola”. (p. 155)
A autora contrapõe ao “estado de autonomia”, um movimento, um exercício, um modo
de se colocar, de agir frente às tentativas de controle e submissão, que muitas vezes aparecem
de formas sutis, no cotidiano das escolas.
(...) a autonomia não é um princípio que possa ser garantido e
assegurado a priori nas formalizações que a prescrevem, ela se exerce
nas ações que efetua. Esse exercício se faz quando criamos outras
práticas que desafiam e interrogam os regimes de verdade que balizam
nossa existência, quando mudamos os procedimentos habitual mente
ao designar o que pode/não ser feito, o que é aprender, o que é
ensinar, o que é participar.
(...) a autonomia é o fio que percorre as lutas por uma vida digna de
ser vivida e ela tece como processo coletivo, e não como ação
individual, livre arbítrio; não se reduz, portanto, a bandeiras de luta ou
a cartas programáticas.(...) ela não se impõe por decreto, tampouco é
um imperativo a ser executado. Como capacidade sempre renovada
de diferir dos modos e existência que nos constituem, de variar as
formas, ela desafia e tenta desmontar os limites que constrangem seu
exercício. (HECKERT, 2004, p. 154)
Guilherme Castelo Branco (2005) discorrendo sobre os estudos foucaultianos a cerca
do sujeito e sua margem de liberdade diante do poder, no âmbito das lutas políticas, destaca
que “no último Foucault, restaura-se o lugar e o papel dos indivíduos, dos indivíduos éticos
sensíveis e racionais no quadro das lutas políticas. Em todo caso é o indivíduo,
ontologicamente considerado, que é livre porque sente, pensa e age” (p. 177). Para Foucault
(2004) agir eticamente pressupõe um espaço de liberdade, “pois o que é a ética senão a prática
da liberdade, a prática refletida da liberdade?” (p. 246). Castelo Branco continua afirmando
que
O índice da liberdade, todavia, não é para ser entendido como uma
petição de princípio meramente teórica; deve ser elucidado no plano
das lutas sociais, precárias, contingentes, móveis. O campo da
liberdade é o da práxis, é o da ética “encarnada”. (p. 246)
É nas práticas cotidianas, que se desenvolvem nas escolas, que as professoras podem
encontrar seu espaço de liberdade e exercitar sua autonomia. A partir de um exercício de
reflexão é possível que elas escolham, recusando ou acolhendo, o que lhes é proposto, mas
para isso é importante atentarem para a advertência de Foucault: “é preciso a cada instante
136
passo a passo, confrontar o que se pensa e o que se diz com o que se faz ou o que se é.”
(FOUCAULT, 2004, p. 219).
3.5 – CENA QUATRO: COLETIVO
A Professora Ana me recebe em sua sala de aula durante o horário reservado ao
planejamento individual. Tomamos uma cuia de chimarrão. Ainda faz frio e chove muito
alguns dias. A escola está bastante suja de barro e serragem é comum em estabelecimentos
das regiões mais periféricas da cidade e nos ônibus se colocar serragem para evitar que se
forme lama a partir do barro e Ana parece constrangida com essa situação. Ela me conta
que é professora da rede municipal quinze anos, sempre trabalhando com as séries iniciais
(no momento da entrevista trabalhava com o segundo ano do primeiro ciclo, com crianças de
sete anos). Logo começo a entrevista:
A partir do momento em que a proposta de ensino foi implantada
houve mudanças no cotidiano de vocês, da escola?
— Mudou bastante porque a gente se obrigou a ir atrás. Procurar mais
pesquisa, como se diz, no científico. Ir além do cotidiano para o
científico. E o trabalho em grupo também, que a gente trabalha.
Todos os professores, nós trabalhamos em grupo, fazendo trocas de
trabalhos e experiências, então acho que agora a gente estuda mais do
que antes. (...) Todas as quartas feiras a gente larga as crianças às dez
horas da manhã pra gente ficar planejando. Daí é no coletivo.
Quando a gente constrói a rede temática, quando a gente vai planejar o
que nós vamos trabalhar, quando tem uma data comemorativa. É tudo
decidido no coletivo, o que a gente vai trabalhar. Não é aquela coisa
que você planeja na quarta e chega na sala: agora vou trabalhar do
meu jeito, pego no livro didático e pronto. Não é assim, não. A gente
trabalha mesmo.
Como foi ter que estar mudando a forma de planejar as aulas,
tendo discussões no coletivo?
Olha, foi bem melhor porque você tem novas idéias. Às vezes
você pensa:isso não é interessante. Ai você vai no coletivo e dizem:
isso é bom, vamos trabalhar assim. Então há aquela troca de idéias. E
nós temos um coletivo muito bom aqui na escola (...) tomara que
continue assim. E não é só os professores, é todo o coletivo da escola:
é servente, é o pessoal da secretaria... (ANA, 2004)
137
A questão da criação de um espaço de discussão chamado pelas professoras apenas
como “coletivo” é citada por todas as entrevistadas e é destacada pela professora Cecilia
como uma das mudanças mais importantes introduzida no cotidiano docente:
O trabalho, em si, anda porque nós temos os horários de
planejamento garantidos. Tem os momentos em que o coletivo senta.
(...) A mudança é mais no coletivo da escola, dos professores que
trabalham com todos os alunos da escola. Então a gente senta uma
vez por semana, todo o grupo, faz estudo, trabalha na rede, os
conteúdos que vão ser trabalhados, faz repasses, cada um fala do seu
trabalho pra ver como está andando, um sugestão pro outro. É um
grupo de professores que trabalha com um grupo de alunos. (...) Se eu
tenho uma dificuldade eu vou levar pro coletivo e a gente vai discutir
junto, vai tentar achar uma saída. Então por série era o professor ali, a
minha turma, os meus alunos, os meus problemas, as minhas
conquistas. E hoje não, é uma coisa mais aberta, mais um
compromisso pra todos da escola e acho que por isso o trabalho anda
também, né? (...) na nossa escola o coletivo é bem comprometido. A
gente consegue discutir todos os problemas com os professores e a
escola tem essa liberdade de se organizar da forma que acha que o
trabalho vai. (CECILIA, 2004)
— E como é trabalhar com essa liberdade?
Desde o calendário, tudo tem que ser discutido na escola. (...)
Existem ainda aqueles professores que acham (...) acham que como
trabalham no coletivo, decidem no coletivo está tudo bem. vão pra
sala de aula, vão fazer a sua aula e deu. A gente ainda tem alguns
casos assim... (CECILIA, 2004)
— Olha, no coletivo que eu participo a gente pega firme, pega junto às
vezes, quando a gente não concorda a gente bate de frente e resolve o
problema ali. Depois desse sistema a gente teve mais tempo pra
planejar e isto é muito bom porque você resolve. Não deixa o
problema enrolar muito. A gente resolve no coletivo como fazer.
uma grande troca de experiências no coletivo e o coletivo aqui da
escola é de tirar o chapéu, é o máximo. (ROSE, 2004)
— (...) Mas eu vejo, elas param, conversam, brincam (...) faz parte, até
pra descontrair porque ficar ali, nos problemas dos alunos desgasta.
E a gente também é ser humano, também tem estresse. (...) Acho que
os professores tentam superar as dificuldades, a gente pede ajuda e vai
em busca. O objetivo é a busca desses conhecimentos para estar
trabalhando em sala de aula Esse tempo das horas-atividades só veio a
somar pra gente, pra gente se encontrar mais, conhecer até o próprio
colega. Agora você tem que chegar no colega, não fica você. Mas
sempre tem conflitos. Nem tudo é mil maravilhas. Tem discórdias...
tem o pessoal que concorda, discorda. Mas isso tudo é conhecimento.
Faz parte do relacionamento das pessoas e vem tudo a somar pra que a
escola ande, em função do aluno. Porque a gente está aqui em função
deles. Quando surgem alguns pequenos problemas, a gente resolve e
continua a caminhada. Isso que é importante. (WILMA, 2004)
138
Também é no “coletivo” que as professoras reconhecem e valorizam o seu próprio
trabalho e o de seus colegas. É no coletivo que as “avaliações profissionais” são feitas.
algo ainda que você tenha percebido como uma mudança no
cotidiano dos professores?
Acho que no dia-a-dia o trabalho da gente (...) tem as dificuldades,
tem as brigas, tem coisas assim, no coletivo. Este ano veio a avaliação
dos professores pra fazer na escola. Foi formada uma comissão para
avaliar. (...) Acho assim, o ponto positivo disso é que antes a gente
trabalhava mas não tinha uma ligação muito..., era cada um pra si,
pros seus alunos. Mesmo entre os colegas não tinha uma afinidade
muito grande. Hoje o. A gente tem uma afinidade muito maior,
mesmo porque o trabalho exige que eu tenha que conversar contigo,
que eu tenha que conversar com os outros pra saber o que ele está
trabalhando, o que eu vou trabalhar. Acho que isso uniu o grupo e
tem pessoas que têm um pouco mais de dificuldade de se relacionar
com os outros e nesses coletivos a gente também questiona isso. (...)
Então acho que isso faz a gente crescer também porque, às vezes,
outra pessoa me avaliando e me dizendo no que eu devo avançar, no
que eu devo melhorar... e coisas que de repente a gente faz no dia-a-
dia e não percebe. Tudo isso faz a gente crescer e ser valorizado no
trabalho; faz se sentir bem, porque melhor do que se sentir bem com o
que você está fazendo no local de trabalho. (CECILIA, 2004)
A professora Alessandra também comenta sobre a avaliação dos professores:
— Como é feita a avaliação dos professores?
Elas fazem por nota. Elas elaboram critérios, tipo assim: o
professor é responsável, assíduo, procura inovar? (...) Ai tem notas.
Então senta o coletivo de 4 professores, direção e mais dois e dão
anota. O professor tem direito de dizer alguma coisa. Mas a gente
questiona: se o aluno não pode ter nota, por que a gente é por nota? A
gente era avaliada uma vez por ano, agora é três vezes por ano. Será
que precisa tanto? E porque é por nota? Então tinha que ser um
parecer descritivo da gente também. (ALESSANDRA, 2004)
Por seu caráter aglutinador, as regras de ofício – tais como descritas por D. Cru (1987)
e comentadas, acima permitem pensar em termos de coletivo de trabalho, sendo este
entendido não como grupo ou somatório de trabalhadores em uma mesma função ou campo
de trabalho. Mas, como um efeito da iniciativa voluntária-e-coletiva de cooperação dos
trabalhadores, para a realização de uma obra comum. Nesse sentido, fundamentais são os
termos iniciativa voluntária e coletiva (desejo) e cooperação. Mas, o que incitaria essa
iniciativa voluntária-e-coletiva e essa cooperação?
139
A exigência de disponibilidade e mobilização subjetiva do trabalhador implica na
necessidade de trocas e no “desenvolvimento de recursos coletivos com vistas à ação [pois] a
possibilidade coletiva de elaborar os objetivos e os recursos da ação profissional tornou-se
uma condição fundamental do trabalho contemporâneo.” (CLOT, 2001, p. 5)
Parece-me, então, que as próprias transformações nos modos de organização do
trabalho favorecem o estabelecimento de laços de cooperação que possibilitarão a criação dos
coletivos de trabalho. Mas, para que a iniciativa voluntária-e-coletiva de cooperação se
mantenha, são necessárias algumas condições que Dejours (1993) aponta serem: a visibilidade
e a confiança.
A visibilidade diz respeito ao esforço do trabalhador em tornar compreensível,
inteligível, suas ões aos demais membros do coletivo de trabalho o que pressupõe relações
de confiança entre os trabalhadores.
A confiança, por sua vez, como uma relação entre pessoas, funda-se a partir da
observação e do conhecimento das ações do outro que inclui o reconhecimento das razões e
princípios éticos envolvidos na ação do outro que possibilita antecipar e prever as ações do
outro e, portanto, “circular de forma livre” por todo o coletivo. Obviamente, isso não exclui a
possibilidade de conflitos. Ao contrário, para que seja possível a manutenção dos laços de
cooperação é necessário haver um espaço de discussão que permita “construir os valores, os
princípios e as bases as quais serão a referência no coletivo para julgar o que é justo e injusto,
o que é eqüitativo e o que não é.” (DEJOURS, 1993, p. 3).
Sobre o espaço para a reflexão, fala, e a escuta dos trabalhadores denominado por
Dejours (1995) como espaço público interno –, o autor destaca que em tal espaço se permitiria
o aparecimento da diversidade representada pelas habilidades e pensamentos individuais que
podem ser “debatidos, legitimados e reconhecidos”. O autor destaca ainda que “a
transformação do sofrimento em iniciativa e mobilização criativa depende essencialmente do
uso da palavra e de um espaço de discussão em que opiniões e perplexidades se tornem
públicas.” (s/nº)
Como, segundo Dejours (1995), desse espaço de discussão devem participar também
os dirigentes, este funcionaria também como um momento em que as chefias poderiam estar
manifestando a satisfação e o reconhecimento pela contribuição dada pelo trabalhador, à
organização do trabalho. Este reconhecimento deve ser entendido em seu duplo sentido: da
gratidão das direções pela contribuição e, da “constatação, de testemunho da realidade, de
140
tomada de consciência, da contribuição dos sujeitos para a organização do trabalho e portanto,
simultaneamente, de tomada de consciência das insuficiências, dos limites, e até das falhas do
processo técnico e da concepção da organização do trabalho” (s/nº).
Não podemos, entretanto, ter uma visão ingênua sobre o “coletivo” tão valorizado
pelas professoras, pois se de um lado esse espaço serve como um fator aglutinador, por outro
lado pode se tornar um eficaz instrumento de controle para os “gestores de pessoas”.
Foucault (1999) procura demonstrar como, ao longo da história, os regimes de
ordenação social vão se modificando, no que diz respeito às relações entre Estado e corpo
social, entre os homens e entre os homens e a natureza. Para ele, no regime de soberania o
soberano dispunha de poder de vida e morte sobre cada um dos seus súditos; a ele pertencia o
poder e o direito de “fazer morrer e deixar viver”.
Entre os séc. XVII e XVIII, começam a ser engendradas técnicas, tecnologias de
poder centradas nos corpos dos indivíduos, que visavam o ordenamento da distribuição
espacial dos corpos individuais bem como a maximização do funcionamento desses corpos
com maior economia e melhor desempenho. Foucault denomina estas operações de
tecnologia disciplinar do trabalho e caracteriza este período como o da sociedade disciplinar,
regulado pelo regime disciplinar.
Foucault (1999) vai detectar, a partir do séc. XIX, uma mudança nas tecnologias de
poder que, não excluindo as técnicas disciplinares, as modifica e as amplia: essa nova técnica
destina-se não mais aos corpos individuais,
(...) não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo
(...) ao homem espécie (...) a nova tecnologia que se instala se dirige à
multiplicidade dos homens (...) uma massa global, afetada por
processos de conjuntos que são próprios da vida, que são processos
como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (p. 289)
À essa nova tecnologia, que configura “uma tomada de poder sobre o homem
enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico” (p. 286), Foucault chamará de
biopoder. O bipoder viria a ser a tecnologia fundamental das ditas sociedades de controle.
A partir da emergência desse regime de organização social, a preocupação do Estado
passa a englobar “as relações entre a espécie humana, os seres humanos enquanto espécie,
enquanto seres vivos, e seu meio de existência sejam os efeitos brutos do meio geográfico,
climático hidrográfico...” (FOUCAULT, 1999, p. 292). O tratamento dessas questões passa a
ser considerado como problema de Estado e compete ao que Foucault chama de biopolítica:
141
“a biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como um
problema a um tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
poder” (p. 293). O que está em jogo no regime das sociedades de controle o é mais
disciplinar os corpos individuais, mas partindo de uma regulamentação dos comportamentos
da população, garantir a vida. A consecução das tecnologias da biopolítica
(...) agrupa os efeitos de massas próprios de uma população que
procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa
massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente
modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em
compensar seus efeitos. É uma tecnologia que visa, portanto não o
treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, algo como uma
homeostase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos
internos (FOUCAULT, 1999, p. 297).
Portanto, segundo Foucault, houve uma inversão desde o poder soberano de “fazer
morrer e deixar viver” para o biopoder que ao regulamentar e controlar a vida das populações
passa a “fazer viver e deixar morrer”.
No caso das professoras entrevistadas é no “coletivo” que pode servir como espaço
de intervenção biopolítica que aquelas que são “comprometidas” são estimuladas e vivem,
mas aquelas “que ficam para trás”...
Pensar em termos de biopolítica, de imediato, me suscita algumas questões. Em
primeiro lugar, o fato de que para se exercer como tecnologia de controle e regulamentação a
biopolítica necessariamente produzirá nas pessoas modos de pensar e de sentir suas relações
com os outros e com o seu meio. Talvez pudéssemos dizer que se trata da produção, da
fabricação de emoções e sentimentos como diria Despret (2001) ou de modos de
subjetivação como diriam Foucault, Deleuze e Guattari. As maneiras de lidar com os
espaços de existência e com as relações entre as pessoas relações interpessoais de
intimidade ou de trabalho seriam então alvo de atenção e de ão por parte do Estado, no
sentido de produzir pensamentos e sentimentos compatíveis com os seus interesses. Nesse
caso, o que pensamos e sentimos seja em relação aos processos de organização de trabalho
como de nossa ocupação dos espaços físicos, seriam produzidas em nós como se fossem
naturais. Portanto, a produção e a regulamentação de nossas emoções e sentimentos seria
uma das estratégias da biopolítica.
Em segundo lugar, Foucault nos indica que alguns aspectos do meio físico (a
existência de meios insalubres como pântanos e as doenças a eles associados, por exemplo) e
142
de alguns aspectos comuns à sobrevivência das espécies (como o controle da natalidade e da
morbidade, e das incapacidades biológicas, etc.) são ao mesmo tempo campo de saber e de
intervenção da biopolítica. Parece-me, portanto que se trata de, alguma forma, uma tentativa
de domesticação da natureza nos seus aspectos mais fundamentais, com o objetivo de controle
e regulação (homeostática) da vida em sociedade. Essa domesticação seria, então, mais uma
das estratégias da biopolítica para garantir ao Estado a governamentalidade (Foucault, 2003)
das populações.
Por último, ao pensar não mais em disciplina dos corpos individuais, mas em
regulamentação das massas, as sociedades de controle precisariam encontrar espaços de
convivência e produção em termos de coletividade. Eis a discussão sobre os espaços do
coletivo”, como dizem os professores pesquisados. Se por um lado a criação e a manutenção
desses espaços podem ser encaradas como uma forma de controle e gerência por parte dos
governantes seja dos políticos nas cidades, seja dos gerentes nas empresas e escolas por
outro lado, a ocupação e a invenção de modos diferentes de conviver nesses espaços pode ser
extremamente interessante para os trabalhadores produzindo um sentimento de proteção,
segurança e pertencimento a uma coletividade, a um grupo.
Bruno Latour (2004) observa que uma forma particular de organização pública divide
o mundo em termos de oposição/composição entre natureza e sociedade, limitando a cada
uma a permanência dos seres: de um lado a quilo que não é objetivável, os humanos; de outro
lado aquilo que não é subjetivável, os não-humanos. Ele propõe uma ecologia política que
faça uma composição desses dois mundos em um mundo comum, onde humanos e não-
humanos teriam assento em uma única assembléia como cidadãos. Para isso é necessário
reunir o coletivo: “a ecologia política definir-se-ia então como a conjunção da ecologia e da
política, das coisas e das pessoas, da natureza e da sociedade” (p. 113). Infelizmente, como
diz o próprio autor, não é tão simples reunir o coletivo. Mas ele mesmo nos dá pistas de como
fazê-lo: “quanto mais associarmos materialidades, instituições, técnicas, conhecimento,
procedimentos e lentidões à palavra do coletivo, melhor será o seu uso... coletivo significa:
tudo, e não dois separados.” (pp. 116-7).
Latour destaca, ainda o que entende por não-humanos: “os não humanos, lembremos,
não são objetos e menos ainda fatos. Eles aparecem primeiro como entidades novas que
fazem falar aqueles que se reúnem em torno delas, e que discutem entre si, a seu propósito.”
(LATOUR, 2004, p. 128)
143
Ora, parece-me que o que está aqui em jogo são todas aquelas “coisas” que talvez
não saibamos, não possamos ou não queiramos nomear que compõe nossa vida no
cotidiano; aquelas forças que provocam e nos convocam a pensar, sentir e atuar no mundo, os
afetos que nos mobilizam para a vida.
Então, o que as professoras entrevistadas nos dizem faz sentido, pois não são somente
as condições físicas e materiais de trabalho que as mobiliza, mas algo como uma sensação de
conforto, de segurança e de pertencimento, apesar e por causa de todo um embate no espaço
que elas denominam como coletivo. Um pulsar da vida do trabalhador que se afeta e que
afeta tudo e todos que estão ao redor. Forças que compões e decompõem as realidades e
criam novas possibilidades.
Latour (2004) considera ainda a dificuldade de linguagem, quando precisamos coletar
as falas dos humanos e não-humanos numa mesma assembléia, e essa seria uma das maiores
dificuldades para a composição do coletivo – daí a ciência e a política acreditarem ser
necessária a figura dos porta-vozes. Deleuze e Guattari (1995) discutem a questão da
transversalização na multiplicidade das linhas na comunicação. Eles consideram ser
importante pensar nos graus de vetorialização/transversalização, não apenas no campo da fala,
mas na rede comunicacional, que vai muito além. Nesse caso, devemos considerar na
relação de comunicação entre humanos e não humanos, entre natureza e política, etc. as
diferenças, a diversidade, a multiplicidade como dimensões heterogenéticas da existência;
devemos pensar os contrastes não como contraposição, mas como múltiplos sentidos, na
composição da realidade.
Para operar a composição da realidade, considerando a multiplicidade é necessário se
fazer a transversalização das semióticas, e não nas semióticas. O que significar dizer que, é
necessário produzir novos sentidos no encontro das falas, e não tentar
entender/traduzir/interpretar o sentidos do que dizem aqueles que nos falam. E quando falo
em composição não me refiro a uma atitude pacífica e passiva em busca de um consenso, mas
ao contrário, a um embate de forças em busca de um acordo comum a todos, mas que
contemple e considere as diferenças. Como nos diz Foucault (2004) a questão é saber quais as
possibilidades de construir “um ‘nós’ a partir do trabalho feito e que fosse capaz de formar
uma comunidade de ação” (p. 229).
144
3.6 – CENA CINCO: PARTICIPAÇÃO
Figura 3 Por do sol sobre o rio Uruguai.
Michele e Christina chegam à escola da professora Rose, um pouco atrasadas, por
volta das 17 horas. A Escola fica próxima da divisa que o município faz com o Rio Grande
do Sul através do rio Uruguai é um ponto mais afastado do centro da cidade. Faz um lindo
pôr do sol e a professora está no pátio acompanhada de algumas crianças e pais, tomando um
chimarrão. Logo a professora se despede de seus alunos e acompanha as entrevistadoras até
sua sala de aula. Mostra-se surpresa e talvez um pouco intimidada com a presença de
duas pessoas para fazer a entrevista. Rose afirma que está próximo o momento de sua
aposentadoria. Rose diz que tem aprendido muito a se adaptar às necessidades de
aprendizagem dos alunos e em certo momento afirma:
O aluno tem muito mais autonomia. Como diz a minha mãe, a vez
da palavra. Então antigamente a gente chegava e blá-blá-blá, vou
trabalhar isso e pronto. Agora não. Nesse ponto foi um grande
avanço dentro da educação.
E quanto à relação da escola com a comunidade, como foram as
mudanças?
É uma relação bem mais dinâmica, os pais participam mais.
Apesar de que aqui na escola, tem dezenove anos que trabalho aqui,
145
sempre houve um bom relacionamento com todos. Claro, agora tem
uma abertura um pouquinho maior. Os pais sempre são bem-vindos
na escola. Claro que não são todos que vêm, que participam. Por
exemplo, a gente teve a entrega de avaliações essa semana e dois
pais não vieram e acabaram vindo hoje. Quer dizer, nesse sentido os
pais estão bem mais participativos. É questão de eles quererem ver os
resultados dos filhos, como eles estão. (ROSE, 2004)
Todas as professoras entrevistadas, em algum momento, destacaram a proximidade
que a escola está tendo com os pais:
(...) Outra situação bastante interessante é que os pais procuram
estar por dentro do seu filho. Hoje a gente avançou muito. Eles não
vêm pra escola pra ver os problemas dos filhos. Eles mudaram a
expressão. Antigamente pediam: meu filho está incomodando muito?
Meu filho está fazendo alguma coisa errada? E hoje: O meu filho está
aprendendo, professora? Qual o problema dele na escola para
aprender? O que nós podemos ajudar em casa? Então os pais também
estão começando a modificar as perguntas. A mudar esse jeito de ver
a avaliação também. (IRENE, 2004)
(...) A escola está promovendo mais encontros, mais debates. A
escola procura estar trazendo o pessoal da secretaria de educação
também, pra estar vindo aqui com os pais. Explicando pra eles
também ficarem sabendo o que é isso [a organização por ciclos de
formação]. A escola se abriu mais pros pais. Trouxe mais eles pra
dentro da escola. Quando a gente chama pras reuniões eles vêm mais,
participam mais. Vêm até a escola e conversam, perguntam, tiram
dúvidas. Então assim, houve uma abertura. Pelo menos aqui na
escola. A escola faz o máximo pra que eles consigam estar
entendendo esta proposta. (WILMA, 2004)
—E houve alguma mudança em relação aos alunos?
—Olha, o que eu percebo é que os alunos estão avançando (...) Então
assim, com os alunos, acho que eles também tiveram mais liberdade
para poder se expressar. (...) Como dão abertura pros pais também
dão pos alunos em sala de aula. O planejamento é feito pelos
professores, mas na sala de aula é uma troca e o os alunos dão as
idéias deles, dão sugestões pras atividades (...).
—E como está sendo trabalhar com essa maior abertura tanto para
os alunos como para os pais?
—Eu acho que pra mim está tranqüilo porque a gente tem que estar
sempre aberto pra essas mudanças (...). Então está havendo essa
abertura para os pais estarem vindo pra escola, expondo suas idéias
nas reuniões. Os pais perguntam mais, colocam mais. Assim, até as
crianças se abriram mais, questionam mais. Eles sentem que podem
chegar que a gente, os professores, vai estar mais aberta pra dialogar.
Então a escola está mais aberta pro dialogo, sim, depois que foi essa
146
proposta. Não que antes não tivesse abertura pro diálogo, mas o
próprio processo dessa caminhada foi abrindo mais. Eles sentiram e
vão chegando, vão perguntando. Claro, tem limites. Não é assim, tem
seus limites. Mas eles chegam perguntam, trocam idéias e isso é legal
pra nós, pros pais, pros alunos. (WILMA, 2004)
(...) Então eu acho que a escola está mais aberta pra comunidade
hoje.
— E como é trabalhar com essa abertura maior para a comunidade?
Não foi fácil porque os pais não falavam. Você ia nas casas e
voltava desesperada pra escola porque os pais não falavam de medo.
Eles tinham medo de colocar as coisas e você também tinha receio de
perguntar tal coisa pra eles, e hoje não. Hoje é normal pra eles. Eles
esperam a gente com chimarrão, com bolachinha. Eles sabem a época
que a gente vai e hoje eles estão mais abertos. Eles colocam mesmo a
realidade do nosso Brasil; eles colocam com a maior facilidade.
Desde as crianças. E hoje eles participam na avaliação. (...) A gente
vai descrever pra cada criança a sua avaliação e então a gente entrega
essa avaliação pros pais. A gente marca um horário que vai até às sete
e meia da noite pra pegar os pais que trabalham. E eles vêm! De dez,
falta um porque não pode vir mesmo. Mas eles vêm em outro
momento pra ver como o filho está, como está a avaliação dele, vêm
acompanhar. Então hoje a gente tem bem mais os pais junto com a
gente. Antes você dava a nota e acabou. (ANA, 2004)
Para duas professoras perguntamos diretamente sobre o tema:
— E como está a relação com a comunidade e os alunos?
A gente está conseguindo trazer mais os pais para a escola, eles
vêm. No início a gente fazia mais encontros pra entender a proposta.
Tem pais que ainda não entendem. (ALESSANDRA, 2004)
É interessante notar que, até aqui, todas as professoras justificam e valorizam a
participação dos pais em relação ao seu interesse por saber sobre os resultados da
aprendizagem dos seus filhos, ou para entender sobre a proposta pedagógica que foi
implantada. Ou, no máximo, sua participação é evocada para servir como fonte de
informações para a construção da rede temática a ser trabalhada pela escola.
Segundo José Clovis Azevedo (2001) o processo de Constituinte Escolar, ocorrido em
Porto Alegre no início dos anos 1990, afirmou a necessidade da radicalização da democracia
na escola em três dimensões: democratização da gestão, do acesso à escola e do acesso ao
conhecimento. Para ele, com este processo, “aprofundou-se a participação coletiva
transformando as relações de poder, consolidando mecanismos de participação que
147
possibilitam a todos os segmentos da Comunidade escolar a participação nas decisões
administrativas e pedagógicas nas escolas.” (p. 314). Os principais mecanismos de
participação apontados por Azevedo são a eleição para os diretores e a constituição dos
conselhos escolares dos quais participam pais, alunos, funcionários e professores, eleitos
que são os órgãos máximos das escolas e têm “poder deliberativo sobre assuntos
administrativos, financeiros e pedagógicos” (AZEVEDO, 2001, p. 315). A função do
conselho e da equipe diretora deveriam ser articuladas e complementares: “O Conselho define
as questões mais globais da escola, as linhas básicas da administração, a definição da
aplicação de recursos e a Direção, que faz parte do Conselho, responsabiliza-se pela execução
das políticas.” (p. 315)
No entanto, o próprio Azevedo (2001) considera algumas dificuldades encontradas
para “democratizar o exercício de poder no interior da escola”:
A princípio, a tendência era de os professores deterem a hegemonia
política dos Conselhos. Ao monopolizarem determinados
conhecimentos de ordem legal, administrativo, pedagógico,
monopolizavam também o poder de decisão. A Secretaria atua
intensamente no sentido de contribuir para a quebra desta hegemonia,
que tem um caráter corporativo e antidemocrático, substituindo-a pela
construção de posições majoritárias sobre as propostas de gestão da
escola. (p. 315)
Para transformar as relações entre os membros do conselho escolar, Azevedo
considera que os diversos segmentos participantes se organizem em entidades próprias:
professores e funcionários em seus sindicatos, os pais nas associações de pais e os alunos nos
grêmios estudantis. Assim, quando das eleições para diretores e para os conselhos, cada
segmento apresentaria candidatos que representariam as suas posições majoritárias através de
um programa de gestão da escola. Além de construir um acordo em torno das diretrizes que
norteariam a gestão administrativa e pedagógica da escola, Azevedo acredita que essa seria
uma maneira de educar politicamente a população:
A Escola Cidadã ensina e aprende uma “nova lição”: a prática política
conscientizadora, libertadora e radicalmente democrática. O objetivo
é o exercício do aprendizado da democracia, não reproduzindo “no
interior da escola as relações políticas viciadas, utilizadas pelas elites
conservadoras, na grande política para tutelar e manipular o povo”.
(AZEVEDO, 2001, p. 316)
148
Embora os aspectos de participação e intervenção da comunidade no espaço escolar
sejam desejáveis, não podemos deixar de assinalar a observação de Deacon e Parker (2001)
que ressaltam que:
(...) a pressão sobre os pais, sindicatos e comunidades para que se
tornem mais envolvidos, tanto financeiramente quanto em termos de
participação, indica uma reformulação, até mesmo uma intensificação
da produção da cidadania normalizada.
Dada a especificidade, historicamente arbitrária da educação moderna,
torna-se ainda mais importante deixar de naturalizá-la como uma coisa
essencialmente boa. A educação é uma faca de dois gumes ela
poder à medida que disciplina; ela oferece liberdade no mesmo
movimento em que exige obediência; (...). Em termos foucaultianos,
a educação, simultaneamente, sujeita (pacifica) e Sujeita (ativa).
(DEACON & PARKER, 2001, p. 141)
Em Chapecó, pelo que foi relatado pelas professoras, participação dos pais fica restrita
a uma posição de receptores de informações, seja sobre a proposta pedagógica, seja sobre a
aprendizagem dos filhos. Durante os anos em que vivi naquela cidade, em todos os encontros
que tive com as professoras e com os dirigentes da secretaria de educação, também não soube
e não percebi qualquer movimento de participação da comunidade no espaço escolar, além do
que foi citado pelas professoras. Ao contrário, ouvi muitas vezes pessoalmente ou através
dos relatos dos “meus” estagiários – queixas quanto ao desinteresse dos pais em participar das
discussões sobre a escola.
A esse respeito posso dizer que duas experiências que vivenciei reforçam esta
percepção. Na primeira delas, um grupo de estagiários trouxe como queixa principal da
escola uma unidade de creche e educação infantil a falta de participação dos pais. Sugeri
que os estagiários participassem da próxima reunião que a escola realizaria com os pais. Na
supervisão seguinte os estagiários, estarrecidos, contaram que durante a reunião durou cerca
de uma hora e meia e foi assim conduzida: a diretora da escola falou por cerca de 20
minutos e deu as boas-vindas aos pais; a coordenadora pedagógica falou por cerca de 40
minutos sobre as fases do desenvolvimento infantil e “puxou as orelhas” dos pais que não se
interessam em saber como o seu filho está se desenvolvendo e cobrando maior participação;
a diretora retomou a palavra e começou a organizar a participação dos pais num mutirão
para pintar as paredes externas e capinar o terreno da escola. Ao final da reunião e antes
mesmo da supervisão os estagiários tinham entendido o porquê dos pais não
“participarem”: Christina, os pais nem puderam falar. Eles não podiam falar nada! O que
149
eles iam falar sobre as fases do desenvolvimento infantil para uma coordenadora
pedagógica?”.
A segunda experiência aconteceu quando fui chamada pela direção de uma escola para
falar aos pais de alunos do ciclo (dos 12 aos 14 anos) sobre a adolescência. Era uma tarde
de sábado e a escola estava realizando a entrega das avaliações. A escola estava cheia de
alunos e seus pais. Ao começar a reunião a diretora disse aos alunos que eles poderiam se
retira porque a “palestra” era para os pais. Eu tinha sido informada de que poderia usar
entre 40 e 50minutos do tempo. Resolvi então falar apenas 20 minutos (características gerais
da adolescência na contemporaneidade) e abrir para um debate. Comecei a fazer perguntas
aos pais com o intuito de fazê-los participar da discussão. Após cerca de 10 minutos a
diretora interveio, encerrou o debate e disse que passariam à entrega das avaliações. Ou seja,
pude manter contato com os pais por cerca de 30 minutos. Perguntei a ela se tinha havido
algum problema, se ela tinha ficado insatisfeita com alguma coisa. Sua resposta foi “singela”,
porém reveladora: Não, é que se a gente deixar eles não param mais de falar!
Participação, sim. Mas como diz a professora Wilma: “Claro, tem limites. Não é
assim, tem seus limites”.
Não é sobre tudo o que se pode falar – aliás, se fala sobre muito pouca coisa – e nem a
todo o momento. Ser um cidadão participante no “exercício democrático de poder” tem
mostrado mais limites do que possibilidades concretas de intervenção no cotidiano escolar.
Cidadania “ensinada”, participação tutelada. Além disso, desponta aqui, novamente, a
intimidação que os “especialistas” podem exercer sobre as pessoas consideradas leigas, ou
seja, a desqualificação de seus saberes e de suas vozes.
Trata-se, portanto, de uma proposta de gestão participativa, e não de auto-gestão nas
escolas talvez por isso nada tenha sido explicitado, nos documentos da secretaria de
educação, quanto ao princípio da descentralização. A esse respeito Marisa Rocha (2007)
observa que
A gestão participativa se caracteriza pela colaboração em uma
atividade que existe em estrutura e finalidade, mas que,
efetivamente, é gerida por outro. Nesse sentido, a participação seria
uma habilidade dos novos dirigentes para criar interesse e suscitar
contribuições e adesão ao empreendimento a partir do sentimento de
um papel ativo e espontâneo.
(...) Nesse sentido, tanto a perspectiva que qualificamos de
“participacionista” como a “militante” fazem responder a dimensão
administrativa, pois lutando a favor ou contra, a referência ainda é a
150
administração, fragilizando a dimensão do movimento afirmativo de
outros possíveis (pp. 44-5).
Marília Spósito (2001) considera que a temática da participação da comunidade na
vida da escola tem atravessado a história da educação brasileira desde os anos de 1920 e, que
naquele momento as diretrizes que norteavam essa “integração” ancoravam-se nos princípios
higienistas e de moralização das classes populares. A autora nos adverte que atualmente é
necessário que sejam redefinidas os sentidos dados ao termo participação. Para ela “mais do
que ‘integração da escola com a família e a comunidade’ ou a ‘colaboração dos pais’, é
preciso entender essa presença como mecanismo de representação e participação política”.
(p. 49)
Spósito (2001) reconhece as dificuldades de efetiva participação da comunidade num
sistema democrático representativo: a incompatibilidade entre modelos burocráticos e práticas
democráticas; a distância entre representantes e representados. Apesar disso, a autora acredita
que os conselhos escolares podem vir a ser um espaço onde o debate sobre os destinos da
escola podem ser definidos. Mas ela adverte:
(...) é preciso ter em conta a possibilidade real de serem tomadas
decisões e, sobretudo, o reconhecimento da responsabilidade de
competências e da diversidade de interesses das partes envolvidas.
Não obstante a existência, sob o ponto de vista estratégico, de
interesses comuns, a luta pela real democratização da educação (...), é
preciso reconhecer que os sujeitos envolvidos pais, alunos e
professores – são diversos. A constituição desses atores como sujeitos
coletivos, envolve conflitos entre as partes e a diversidade de
orientações deve ser explicitada. As relações entre os protagonistas
das atividades educativas devem estar abertas ao conflito; se o
pressuposto for a harmonia e a mera adesão não obstante o caráter
progressista das propostas estaremos exprimindo apenas uma nova
modalidade de subordinação polítio-cultural e qualquer orientação
deixará de ser inovadora, reiterando o fracasso. O consenso não é
ponto de partida para a interação dos protagonistas, pois apenas
obscurece a diversidade. (p. 52)
Com a professora Cecilia a conversa mudou um pouco de rumo, pois ela mostrou um
entendimento e uma preocupação um pouco diferente sobre a relação escola-comunidade:
Você mencionou a realização da pesquisa na comunidade. Como é
essa relação entre as professoras, a escola, e a comunidade?
No início a gente ia pras casas, pra comunidade, fazia
entrevistas, observava, trabalhava e ficava por ali. Então não estava
dando retorno pra comunidade. Agora a gente tem o que se chama
151
devolutiva da pesquisa. De novo se traz a comunidade pra escola,
coloca o trabalho, faz um debate pra ver se teve uma mudança, ou não,
em relação àquilo que foi trabalhado. E muitas vezes a gente fala que
essa mudança não acontece. Na verdade, tem alguns problemas,
alguns que a gente trabalha e que não como ver a mudança porque
ela é uma coisa demorada. Você trabalha a questão do desemprego.
Você faz o que? Faz a pesquisa com os alunos, traz textos, conteúdos,
dados dessa questão, que a coisa é bem maior do que a gente, aqui
na comunidade, pode resolver. A gente pode trabalhar, mostrar que
essa questão é bem maior pra que as crianças possam entender o
porquê o pai, na casa, não consegue um emprego, um trabalho.
Então a gente já avançou nesta questão de estar devolvendo a temática
para a comunidade. Tudo é uma questão que a gente vai percebendo
enquanto vai trabalhando e depois vai dando o retorno pra
comunidade. Quando a gente faz entrega da avaliação, antes
chamava o pai pra dizer se o aluno tinha aprendido ou não. Hoje a
gente aproveita esse momento pra mostrar pros pais o trabalho que a
gente está fazendo, pra estar ouvindo a problemática deles, a angústia
deles. E tudo isso é registrado para uma próxima etapa de trabalho.
E o que mudou também nesse trabalho foi uma valorização maior
quanto aos alunos. Então assim, agente trabalha e na secretaria de
educação eles trabalham o que é a função deles que é trabalhar a
questão da igualdade, né? Então, os alunos foram bem mais
valorizados porque você tem que trabalhar a partir do que eles
pensam. (...) Então é colocado muito pra você ir em busca e houve
muito a valorização da criança, dos pais, da comunidade. Tem que
estar bastante em função da comunidade em que você trabalha.
Querem que você esteja participando de encontros na comunidade, de
eventos. Como se trabalha na comunidade se vive nesta comunidade,
tem que estar mais presente. E isso é questionado porque os
professores têm família, têm casa, tem outras coisas pra fazer, mas
assim...
E essa questão da valorização do aluno, da comunidade, interfere
no seu trabalho?
Diante dessa pergunta a professora que sempre articulava muito bem suas respostas
parece ter ficado desconcertada, parece ter sido pega de surpresa, como se nunca tivesse
pensado a esse respeito.
Eu vejo que não. Pelo menos, assim, eu acredito que não. Pelo
menos o trabalho que a gente faz, a proposta é essa. Acho que a gente
tem que estar tentando também fazer da melhor forma possível. Acho
que interferir não interfere. (CECILIA, 2004)
A disposição da professora em estar fazendo do seu trabalho algo que traga um retorno
efetivo para a comunidade do entorno da escola sinaliza uma preocupação que vai além do
interesse por uma interação formal entre escola e comunidade. Mas, ao mesmo tempo, me
152
parece que nem ela se conta disso. Como é possível que ela não perceba que ao valorizar
os pais, os alunos e a comunidade em geral, ao fazer uma devolução da pesquisa, aos trabalhar
temas de relevância para aquelas pessoas ela está afetando suas vidas e ao mesmo tempo
sendo por elas afetada, que seu trabalho está sendo modificado? O reconhecimento da
comunidade pelo trabalho desenvolvido e a vontade da professora de ir mais além são
expressos em dois momentos:
— E o que essas mudanças representaram pra vocês?
Se mudasse essa proposta, com certeza a gente não vai mais
trabalhar como trabalhava antes, de pegar tudo pronto e passar. (...)
As conquistas foram grandes e a gente teve um crescimento. A
participação, dos professores, as conquistas, o ir nas casas, querer
saber mais, isso fez com que a gente crescesse bastante enquanto
pessoa, enquanto professor, enquanto profissional. A forma de
trabalhar mudou muito e as crianças também porque eles são alunos
críticos. Como a gente constrói as coisas com eles, eles não aceitam
muitas coisas, eles questionam. (...) Então acho que isso foi um
avanço muito grande (...). E a comunidade está vendo isso também.
Está vindo pra escola, não pra cobrar (...). No início eles não
entendiam direito a proposta (...) mas agora eles estão entendendo e
vindo pra escola pra elogiar o trabalho da gente, pra falar bem. O que
representou mesmo foi a participação da comunidade. (CECILIA,
2004)
E já ao final da entrevista:
A gente está com um pouco de dificuldade de ir pro macro com as
crianças. Esqueci de te falar disso! Por exemplo, a questão da água: a
gente vai ali no riacho e constata a sujeira que existe, que tem que
estar trabalhando, cuidando, preservando; você vai pros livros, vai
pesquisar, vai trazer informações pra eles. a dificuldade é, por
exemplo... teria que estar indo ver uma nascente de rio, teria que estar
indo na CASAN [empresa estadual responsável pelo fornecimento e
tratamento de água e esgoto] ver como fazem a limpeza dessa água,
teria que ir no aterro sanitário pra ver a contaminação do lixo, ir pro
VERDE VIDA [ONG apoiada pela prefeitura que trabalha com coleta
e reciclagem de materiais descartáveis]. O transporte, às vezes a gente
consegue... A dificuldade é essa, de estar constatando mais a fundo a
problemática, o macro do trabalho. Então, é uma pena porque a gente
que as crianças têm curiosidade, que eles aprendem, que gostam,
mas na hora de estar mostrando, falta alguma coisa e de repente
trabalho fica ali, meio quebrado. Era isso que eu tinha pra falar!
(CECILIA, 2004)
153
3.7 – OS ANALISADORES DA MICROPOLÍTICA NO
COTIDIANO DOCENTE
As professora, protagonistas dessa pesquisa, compartilharam conosco um pouco de
suas vivências nas escolas após a implantação do novo projeto político pedagógico. Mesmo
que suas falas possam parecer, em algum momento, pouco reflexivas, acredito que nos
mostram como suas vidas se modificaram, como se modificou o cotidiano do seu trabalho,
como novos espaços estão sendo abertos e sendo ocupados de formas diversas, enfim, como
sua práticas estão se reconstruindo – ou novas práticas estão sendo inventadas.
Tomamos como analisadores as referências mesmo que indiretas que as
professoras fizeram a alguns termos e conceitos (cidadania, democracia, participação,
coletivo, autonomia) que aparecem como princípios norteadores para uma “educação de
qualidade social”.
A partir das falas das professoras pudemos ver como essas idéias se atualizam no
cotidiano escolar. Dizemos, então, que o conteúdo das falas nos serve como analisadores para
compreender a constituição histórica dos seus saberes e fazeres, para refletir sobre como
entendem seu lugar e seu fazer na manutenção das instituições cristalizadas no espaço
escolar ou como percebem sua capacidade de criação, de agenciamentos coletivos de desejo,
de produzir movimentos instituintes, para apontar suas práticas e suas possibilidades de
criação num espaço atravessado por movimentos de sujeição e resistência.
Na “caixa de ferramentas” da Análise Institucional o conceito-ferramenta analisador
tem uma história
44
na qual não nos deteremos e, embora não seja uma definição
totalizadora, o termo indica um elemento, um dispositivo que “introduzindo diversos tipos de
contradições na lógica da organização, enuncia as suas determinações. Seriam [os
analisadores], explicitando, operações reveladoras da estrutura institucional” (COIMBRA,
1995, p. 64). O analisador “funciona como um relé no agenciamento de combates contra a
institucionalização” (RODRIGUES, 2004, p. 145). O analisador funciona em dois
movimentos/momentos: O primeiro é o momento da “‘revelação’ (...) é a reaparição do
desejo, que esteve sempre presente e tinha sido considerado perigoso (...)”. O segundo
44
A esse respeito ver RODRIGUES (2004), MARTÍN (2004), L’ABBATE (2004), LOURAU (2004),
COIMBRA (1995), BAREMBLITT (1992), LAPASSADE (1979) entre outros.
154
momento “é o produtor do novo, é o momento do instituinte (...) [que] deixa sempre as suas
marcas que serão retomadas em outro momento e lugar.” (MARTÍN, 2004, pp. 174-5)
Os analisadores podem ser naturais ou construídos: “o analisador natural vem ao
encontro da situação sem ser intencionalmente proposto ou controlado, ao passo que o
construído é um dispositivo artificialmente instalado” (RODRIGUES, 2004, p. 146). No caso
do meu trabalho, foi a partir das falas das professoras em confronto com os documentos da
secretaria de educação, que os termos e conceitos, acima citados, se mostraram como
referências a serem analisadas, constituindo-se assim como analisadores naturais.
Foram esses analisadores que me inquietaram e permitiram observar as forças que
estavam em jogo na micropolítica do cotidiano docente, na história da implantação dessa
proposta político-pedagógica.
Colocar em questão as forças que estão em jogo na história implica em buscar não as
causa e conseqüências de um determinado evento, mas em procurar quais práticas devem ser
observadas e analisadas na expectativa de explicitar como os saberes e fazeres nos constituem
como sujeitos em uma determinada época, em uma determinada sociedade.
Optamos por observar as práticas e os saberes a partir dos analisadores, em uma
perspectiva micropolítica. Micro, nesse caso, não se apresenta como redução ou antítese do
macro, mas como uma outra possibilidade de entender as relações entre as duas dimensões
45
.
Entendendo as dimensões macro e micro, não como contraditórias, mas como
complementares e concomitantes uma não precede ou se determina pela outra podemos,
ao utilizar a abordagem micro, ressaltar aspectos e movimentos geralmente “invisíveis”, ou
pouco inteligíveis, das ações individuais/coletivas no campo social.
Procuramos trabalhar a partir de uma perspectiva transdisciplinar que implicaria na
luta pelo apagamento dos limites entre as diversas disciplinas. Nosso desafio é abordar a
produção do cotidiano escolar pelo seu múltiplo, sua complexidade, no movimento que ocorre
cotidianamente. Neste sentido a questão está no uso de tais referenciais, no modo como
vamos conjugá-los, transversalizá-los e não apenas somá-los.
Gallo (2004) observa que para irmos além da proposta da interdisciplinaridade que
ainda trabalha com a lógica de disciplinas estanques precisamos, especialmente no caso do
campo da educação no qual uma complexidade de questões que o atravessam, reconhecer
155
as possibilidades que nos trazem o paradigma rizomático, no qual a transversalidade é o modo
de operação:
A transversalidade rizomática (...) aponta para o reconhecimento da
pulverização, da multiplicização, para o respeito às diferenças,
construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem
procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo
policompreensões infinitas” (p. 33).
História, ciência política, filosofia, economia, psicologia, pedagogia, enfim, tudo se
mistura e se torna um elemento fundamental num caldo efervescente que nos faz pensar e nos
impulsiona a agir, porque tudo é possível...
É no caos do acontecimento que os conceitos se formam, se transformam, se
transvaloram. É no embate das forças que os conceitos são gestados, pois que não podem ser
separados de sua gênese social. É cotidiano das lutas dessas professoras que os conceitos
ganham novos sentidos, que as idéias podem se tornar novos conceitos. Não importa que eles
sejam claros, bem articulados, ou verdadeiros, mas que operem diferenças em nós. Como nos
lembra Gallo (2003)
O conceito é um catalisador, um fermento, que a um tempo faz
multiplicar e crescer as possibilidades de pensamento. Por isso cabe a
ele ser interessante, mas não necessariamente verdadeiro .
(...) Não nos importa se compreendemos ou não um determinado
conceito; importa que ele seja ou não operativo para nosso
pensamento; (...) Importa que tenhamos afinidade com um certo
conceito, afinidade que se produz pelo fato de ele agenciar em nós
mesmos certas possibilidades (p. 58)
3.8 – ÚLTIMA CENA: CAI O PANO
Como a fala da professora Irene foi utilizada em todas as outras “cenas”, aproveito
este espaço que me resta e proponho nesta última cena ouvir a voz do professor Celso, amigo
querido, que continua trabalhando como supervisor de psicologia escolar em Chapecó.
45
A dimensão micro entendida como o espaço/tempo onde ocorrem os processos, o movimento, a formação do
desejo, a vida cotidiana; a dimensão macro entendida como o espaço/tempo dos estados, dos planos, dos
territórios estabilizados.
156
Obviamente o que passo a relatar a seguir são apenas informações e impressões que
meu colega me transmitiu em uma conversa informal por telefone.
— E aí, Celsinho, como estão as coisas nas escolas?
Ah, Chris, eu agora estou meio afastado da secretaria de educação
do município porque os nossos alunos estão fazendo estágio mais na
rede estadual.
No início da gestão do atual prefeito (do agora DEM), houve uma série de dificuldades
que foram impostas à universidade para manter os contatos e contratos inclusive de estágio
com as diversas secretarias do município. Disso decorreu certo afastamento entre a
universidade e a comunidade. Segundo meu amigo, com a eleição do novo reitor, parece que
as relações entre a prefeitura e a universidade entraram em uma nova fase e começam a
melhorar.
Eu soube (via internet) que acabaram com a organização
curricular por ciclos de formação. Acabaram também com a
perspectiva da educação popular?
Pois é, acabaram com os ciclos e agora a proposta é de educação
por projetos temáticos. Quer dizer, usam o tema água, por exemplo, e
todas as disciplinas trabalham o mesmo tema como referência. Só que
agora, eles estão muito mais preocupados em promover uma educação
voltada para o mercado de trabalho. Tem escola, na Paulo Freire,
por exemplo, que está dando cursos de informática para os alunos
poderem acessar o mercado.
— Na Paulo Freire?
Pois é, que ironia, né? Fizeram muitas mudanças. A secretaria de
educação, todas as secretarias, está inchada de cargos de confiança.
Agora, os cursos de capacitação que a secretaria promove .. nesses
cursos vão os professores que são indicados pela direção. Aliás, os
diretores de escola agora são chamados de gestores. Pode?
— Gestores? E como os professores estão se sentindo com tudo isso?
Olha, como eu te disse, não tenho mais muito contato com eles,
mas os poucos com quem converso têm se queixado bastante e parece
que existe uma ameaça velada aos que se mostram descontentes. Eles
[a secretaria de educação] até terceirizaram a merenda escolar, ou seja,
muitos funcionários dançaram. E eles estão investindo bastante nas
creches.
— Deve ser por causa das verbas do FUNDEB...
É, deve ser. Não tem sido muito comentada a questão da educação
na cidade. Parece que a população está satisfeita com o que o prefeito
anda fazendo. O que se discute mais por aqui agora é a questão da
saúde. Mas o pessoal da educação lançou um jornalzinho
157
“Mudando a Educação” até muito mal escrito, cheio de erros de
português, pra mostrar o que eles estão fazendo, qual a proposta
educativa deles. Eu te mando um exemplar se você quiser...
Acho que a professora Rose tem razão: Eu acho que a educação é que nem a moda,
sempre vai e vem...”
158
CONCLUINDO
EFEITOS E EFETUAÇÕES
Os pares conflitantes processo-projeto,
singularidade-sujeito, composição organização,
linhas de fuga-dispositivos e estratégias, micro-
macro, etc., tudo isso permanece não apenas em
aberto mas sem cessar é reaberto, com uma vontade
teórica inusitada e uma violência que lembra o tom
das heresias. Não tenho nada contra uma tal
subversão, muito pelo contrário... Mas às vezes me
parece ouvir uma nota trágica quando não se sabe
para onde leva a maquina de guerra. (TONI NEGRI
apud DELEUZE, 1992, p. 211)
Para onde leva a maquina de guerra? Que dizer diante tal questionamento?
Não sabemos pra onde estamos indo, mas isso não quer dizer que tenhamos que nos
deixar levar. O que nos cabe é construir, no presente, territórios existenciais abertos e
instáveis que nos permitam exercitar eticamente ações políticas que fortaleçam a vida.
Contra uma perspectiva apaziguadora de uma história total e geral, necessária para
fazer as relações entre passado e presente e, prognosticar o futuro, Foucault nos provoca:
Acreditamos que o nosso presente se apóia em intenções profundas,
em necessidades estáveis; pedimos aos historiadores para nos
convencer disso. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que
vivemos sem referências nem coordenadas originárias, em miríades de
acontecimentos perdidos. (FOUCAULT, 2000, p. 273)
159
Foucault observa que devemos reconhecer que na atualidade muitos fenômenos
interessantes e intrigantes a serem analisados. Mas qual a importância de nos determos em
fazer um inventário do tempo presente?
O que eu gostaria também de dizer, a propósito dessa função do
diagnóstico sobre o que é a atualidade, é que ela não consiste
simplesmente em caracterizar o que somos, mas, segundo as linhas de
vulnerabilidade da atualidade, em conseguir apreender por onde e
como isso que existe hoje poderia não ser mais o que é. E é nesse
sentido que a descrição deve ser sempre feita de acordo com essa
espécie de fratura virtual, que abre um espaço de liberdade, entendido
como espaço de liberdade concreta, ou seja, de transformação
possível. (FOUCAULT, 2000, p. 325).
Quando comecei minha pesquisa estava interessada em saber os motivos pelos quais a
secretaria municipal de educação de Chapecó e teve tantas dificuldades com a implantação de
sua proposta político-pedagógica. Acreditava que de uma maneira geral as professoras apenas
se opunham à proposta vinda de um governo do PT. Não tinha me dado conta de quantos
atravessamentos perpassavam a realidade daquelas docentes. Acreditava também que as
professoras só tinham queixas a fazer.
Depois das entrevistas, e após leitura da transcrição dessas entrevistas, comecei a
antipatizar com algumas das entrevistadas. Só conseguia enxergar suas queixas e reclamações
e fiquei algum tempo sem saber como lidar com elas. Penso que isso aconteceu porque eu
não consegui vislumbrar respostas diretas às minhas interrogações. Não sabia aonde esse
trabalho iria me levar.
Mesmo o título inicial do meu projeto “Entre a micro e a macropolítica: o efeito no
cotidiano dos professores no contexto da reforma de ensino do governo popular em Chapecó-
SC” me deixava incomodada e não me fazia avançar, ao contrário, me imobilizava em
muitos sentidos. Muitas coisas aconteceram no percurso desses quatro anos de doutorado:
minha vida pessoal e profissional se modificou bastante, a prefeitura de Chapecó passou a ser
administrada pelo “DEM”, minhas antigas aliadas me questionavam sobre a pertinência de
continuar com a pesquisa, tive muitas decepções com a política partidária do PT... Foram
muitos processos de desterritorialização.
Depois de algum tempo retomei a leitura das transcrições das entrevistas. Deixei meus
preconceitos de lado e comecei a olhar e a ouvir de forma despretensiosa a experiência que
aquelas professoras tinham vivido. Comecei a perceber certas intensidades e certas reflexões
que apontavam outros caminhos, direções diferentes. Caminhos que elas mesmas traçavam e
160
percorriam, mesmo com incertezas, medos e angústias, mas os percorriam de uma forma
singular, que eu não tinha percebido. Comecei a entender que, independentemente dos
objetivos político-partidários da SEC com a implantação do PPP, as professoras se
apropriaram da oportunidade de mudanças que a proposta da reforma trouxe para a sua prática
docente. As professoras estavam tomando em suas mãos ou construindo com seus pés um
caminho próprio, um percurso novo.
Hoje posso dizer que aquela reforma de ensino produziu efeitos nas professoras e a
pesquisa produziu efeitos em mim. Os efeitos não devem ser entendidos como conseqüências
em relação direta com uma causa, mas como resultado da composição de sentimentos e
entendimentos diante de situações que nos são colocadas pelo cotidiano. Assim, podemos
dizer que as expressões de surpresa, de desamparo, de alegrias e conquistas, de expectativas e
desconfiança apontam para efeitos produzidos durante o processo de implantação do projeto
político pedagógico. Podemos dizer que os efeitos aparecem como “formalizações de
fenômenos recorrentes, que se produzem/reproduzem em certas condições”.
(RODRIGUES, 2004, p.143). Gosto de pensar em efeitos como expressão daquilo que nos
afeta, como ativação de potências em nós.
Com relação às professoras acredito ter percebido efeitos que potencializam forças
ativas de criação, de solidariedade, de negação, mas acima de tudo forças que apostam na
qualificação da vida.
A implantação do novo Projeto Político-Pedagógico se constituiu como um
acontecimento na medida em que propiciou um espaço-tempo, do qual as professoras
apropriaram, para a produção de outras formas de ser no cotidiano docente. Abriu espaço para
intensidades e forças criativas das quais, muitas vezes, nos esquecemos de acionar; para a
criação de novos territórios existenciais produtores de novos sentidos no cotidiano docente.
Com relação a mim, penso que os efeitos produzidos dizem respeito à reafirmação da
convicção de que como diz Guattari a revolução é molecular; de que é nas pequenas
oportunidades forjadas no cotidiano que serão possíveis as transformações dos nossos modos
de existir; de que vale a pena investir e intervir no dia-a-dia da escola; de que vale a pena
parar nas encruzilhadas do caminho e se deixar perder para construir novos caminhos; de que
pensar, se por um lado pode ser divertido, por outro lado pode ser bem doloroso; de que uma
pesquisa, um estudo tem sentido se nos tira do lugar, se nos transforma de alguma maneira,
se abala as nossas certezas.
161
Mudei minha maneira de ver o cotidiano daquelas professoras, reformulei também
meu modo de pensar sobre importância das ações políticas, em todas as dimensões. Esclareci
para mim mesma as relações inseparáveis entre a política, a ética e uma estética da existência.
A experiência vivida pelas professoras e por mim, me fazem pensar que é agora, no
presente, que fazemos o que será história ou o que devirá, para fora, para além daquilo que se
tornará histórico. São as nossas práticas as práticas e saberes que produzimos no presente –
que constituirão ou não a história. .
A efetuação da reforma de ensino do governo PT em Chapecó e a efetuação desta tese
me deixam com uma certeza: se a educação, em suas práticas e políticas, deixarem de ser um
“ato político partidário” para se tornarem um ato político amparado em um novo paradigma
ético-estético, é possível a construção de novos territórios existenciais, bem mais
“interessantes”, e então uma reforma de ensino pode muito!
“Então acho que mesmo que volte a ser por série, jamais seremos
os mesmos professores” (CECILIA, 2004).
162
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