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o seu olho percebedor. Ao enfatizar este processo, Beckett instabiliza um dado fundamental e,
portanto, inquestionável do teatro, a presença
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. Ele faz deste pressuposto uma questão e
torna-o mais importante do que todo o drama ou toda a comédia que podem estar contidos nos
desdobramentos do triângulo amoroso que constitui o enredo.
A paródia da presença é atribuída, deste modo, a uma ênfase na “percepção
sincrônica”, em detrimento da “percepção diacrônica”, percepção da narrativa e de seus
desdobramentos, a qual não é inteiramente anulada, mas adquire uma importância secundária.
Este processo pode ser bastante explicitado, através das peças mais recentes, como Passos, de
1975. Trata-se de uma peça para uma personagem, May, e uma voz gravada, V, a voz de sua
mãe, que emerge do escuro. A peça é dividida por blecautes em quatro partes. Na primeira
delas, May dialoga com a voz; na segunda, May permanece em silêncio e apenas a voz
aparece; na terceira, a voz se cala e May fala sozinha; finalmente, na última parte, não há
ninguém em cena. Nas três primeiras partes, May se locomove, ritmadamente, de um lado a
outro, sobre uma faixa de luz, paralela ao proscênio - fortemente iluminada “no nível do chão,
menos no corpo, menos ainda na cabeça” (BECKETT, 1990, p. 399). O resto do palco
permanece nas trevas.
Na segunda parte, a voz revela que a faixa de chão foi outrora coberta por carpete e
que um dia May teria dito que “o movimento apenas não é suficiente, eu preciso ouvir os pés,
por mais fraco que eles pisem”
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(BECKETT, 1990, p. 401). O emprego da narrativa em cena,
através da voz da mãe, frustra a expectativa quanto à instauração de uma “percepção
diacrônica”, ou seja, tal narrativa não instaura um desenvolvimento temporal linear que
envolva seus personagens, mas torna-se apenas uma descrição da cena, servindo para
enfatizar o gesto que acontece aí. Os passos de May devem ser “claramente audíveis”, de
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É possível fazer este processo dialogar com algumas passagens da prosa e da obra dramática, como a descrição
pela personagem Mrs. Rooney, na peça radiofônica Todos os que caem (All That Fall), de uma conferência
proferida por um psicanalista. Este cientista teria se referido a uma paciente jovem, muito estranha e infeliz, que
ele não pôde curar. Durante esta conferência, o homem teria tido uma luz e revelado a seguinte descoberta: “O
seu problema era que ela nunca havia realmente nascido!” [The trouble with her was she had never really been
born!] (BECKETT, 1990, p. 196)
Em Fim de Jogo, Hamm pede a Clov que observe a Terra, para em seguida confessar: “Eu nunca estive
lá” [I was never there] (BECKETT, 1990, p. 128).
E um dos pequenos textos em prosa dos anos 60, chamados foirades, se inicia assim: “Eu desisti antes
de nascer, não dá pra ser de outro jeito, é preciso que se nasça, entretanto, eu estou dentro, é por aí que eu vejo a
coisa, foi ele que gritou, foi ele que viu o dia, eu não gritei, eu não vi o dia, é impossível que eu tenha uma voz, é
impossível que eu tenha pensamentos, e eu falo e penso, eu faço o impossível” [J’ai renoncé avant de naître, ce
n’est pás possible autrement, il fallait cependant que ça naisse, ce fut lui, j’étais dedans, c’est comme ça que je
vois la chose, c’est lui qui a crie, c’est lui qui a vu lê jour, moi je n’ai pás crie, je n’ai pás vu lê jour, il est
impossible que j’aie des pensées, et je parle et pense, je fais l’impossible] (BECKETT, 1991, p. 27)
Todos os trechos citados sugerem uma ruptura profunda entre a vida e as formas como ela se manifesta
(representações). A “paródia da presença” foi o procedimento desenvolvido para que os meios teatrais
expressassem esta tensão.