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VICENTE CARLOS PEREIRA JÚNIOR
ESCUTAR O TEMPO:
UM ESTUDO SOBRE AQUELA VEZ DE SAMUEL BECKETT
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de
mestre em teatro.
Orientadora: Profª Drª Maria Helena Vicente Werneck.
Rio de Janeiro
2008
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Pereira Júnior, Vicente Carlos.
P436 Escutar o tempo : um estudo sobre Aquela Vez de Samuel Beckett, 2008.
141f.
Orientador: Maria Helena Vicente Werneck.
Dissertação (Mestrado em Teatro) Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2008.
1. Beckett, Samuel, 1906-1989 Crítica e interpretação. 2. Aquela Vez (Pe-
ça de teatro). 3. Teatro irlandês História e crítica. 4. Espaço e tempo na lite-
ratura. 5. Teatro (Literatura) História e crítica. I. Werneck, Maria Helena. II.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e
Artes. Curso de Mestrado em Teatro. III. Título.
CDD Ir822
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VICENTE CARLOS PEREIRA JÚNIOR
ESCUTAR O TEMPO:
UM ESTUDO SOBRE AQUELA VEZ DE SAMUEL BECKETT
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção do título de
mestre em teatro.
Aprovado em _____ de ____________ de 2008.
BANCA EXAMINADORA:
Profª Drª Maria Helena Werneck (UNIRIO) (Orientadora)
Prof. Dr. José da Costa (UNIRIO)
Prof. Dr. Karl Erik Scholhammer (PUC-Rio)
AGRADECIMENTOS:
Gostaria de registrar meu agradecimento a todos aqueles que, de algum modo,
contribuíram para que esta pesquisa se desenvolvesse.
Ao Programa de Pós-Graduação da UNIRIO, através de sua coordenação, professores
e funcionários, que abriu suas portas a um estudante vindo de uma distante universidade.
Ao CNPQ, agência que financiou um período importante deste estudo.
A Maria Helena Werneck, orientadora que praticou, nos nossos encontros, uma escuta
moderna, de modo a me fazer expressar além do que eu intencionava. Por todos os seus gestos
de amizade, por sua correção inteligente, pela sua atenção em todas as etapas, dialogando
comigo mesmo nos momentos em que um encontro pessoal não era possível.
A Rubens Rusche, encenador responsável por algumas das mais importantes
montagens de Beckett no Brasil. Por sua cordialidade e gentileza. Por ter compartilhado
comigo, em conversas pessoais e virtuais, um pouco do seu vasto conhecimento da obra. Por
ter me cedido a sua tradução meticulosa, por me permitir vinculá-la a este estudo. Pela
oportunidade de assistir a seu trabalho e comprovar o potencial da escrita beckettiana.
Ao Prof. Dr. José da Costa, que me socorreu na busca por uma orientadora, dialogou
com meu projeto desde o início e teve uma importância capital, com sua leitura sensível do
meu texto, na etapa de qualificação e na banca final.
À Profa. Dra. Angela Materno, pela leitura de meu projeto inicial, por sua
disponibilidade para atuar em minha banca de qualificação e pelo rigor das suas observações.
Ao Prof. Dr. Karl Erik, pela disponibilidade em integrar a banca examinadora deste
estudo, pela generosidade e perspicácia de seus comentários, pelas sugestões fundamentais de
adequação relativa ao material teórico e a um aspecto importante da tradução.
À Profa. Dra. Flora Süssekind, por suas aulas sobre Beckett e por seu conselho bem
fundamentado, que alterou o objeto desta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Walder de Sousa, presente desde a etapa de seleção, foi quem me deu as
boas-vindas no programa. Por sua inteligência, sensibilidade e carinho.
Ao Prof. Dr. Luiz Camilo Osório, por sua disponibilidade e pelas importantes
referências apresentadas.
Ao Prof. Dr. Fábio Furlanete, da Universidade Estadual de Londrina, por ter
intermediado o meu contato com a música experimental, durante a graduação. Pela
disponibilidade em dialogar comigo, durante uma etapa desta pesquisa.
À amiga mais querida, pela sua presença desde as primeiras visitas ao Rio, pela
ligação telefônica que confirmou o meu ingresso no programa, por representar, desde então e
cada dia mais, muito mais do que uma família para mim, Tatiana.
Aos meus pais, Vicente e Elza, pelo carinho de todos os dias, mesmo longe, pelo
socorro nos momentos mais aflitos.
Ao Roger, meu grande irmão, que me enviou de Londres o objeto central deste estudo.
À amiga de longa data, que me abrigou nas primeiras incursões ao Rio, Patricinha, e
também a seu namorado, que me amparou e ciceroneou na cidade, Piu.
Ao João, sem o qual o Rio jamais teria sido.
Ao grande amigo Magela, mais uma conquista deste período de pós-graduação.
A Laura, companheira expressiva (muito expressiva).
Ao meu amigo Marlon, cuja presença tornou o Rio mais agradável para mim.
Aos colegas do curso de mestrado, com quem dividi as primeiras angústias e que
foram importantes interlocutores, na criação desta pesquisa: Cláudia Petrina, Miguel
Vellinho, Andréa Stelzer, Gabriela Saboya, Kenny Neoob. Especialmente, Andréia Elias e
Mônica, que foram mais do que colegas, e Eduardo Vaccari, que compartilhou importante
material sobre Beckett comigo.
Ao Adolescentro Paulo Freire, especialmente à sua coordenadora Dilma e a todos os
participantes do grupo de teatro. Por ter se tornado, para mim, um espaço de trabalho, de
experimentação, de amizade, mas, principalmente, um espaço de escuta.
Ao Cras Rinaldo de Lamare, a seus funcionários e a suas lindas crianças, um estímulo
importante e uma fonte de sobrevivência, ao longo de grande parte do período desta pesquisa.
A meus irmãos José Ernani, Isabel e Luís Carlos, que me propiciaram apoio logístico
fundamental, em algumas etapas de trabalho.
A Raphael Lima, que não pensou duas vezes antes de me oferecer sua casa para que eu
escrevesse importantes laudas da pesquisa.
A Alexandre Ficagna, meu sonoplasta favorito, importante interlocutor, durante o
processo desta pesquisa.
A Álvaro Okura, por sua amizade, inteligência e pelo apoio nas traduções.
Ao André de Oliveira, pelas nossas conversas musicais.
Em memória de Davi Rodrigues, cujo desaparecimento nas águas da praia de São
Conrado, despertou em mim a realidade de uma perda, aprofundando meu contato com aquilo
que constitui o frágil tempo de uma vida.
RESUMO
Análise da peça teatral Aquela vez (That Time), escrita em inglês por Samuel Beckett (1906-
1989), no ano de 1975, a partir da temática do tempo e do modo como esta instância é
articulada pela obra. A primeira parte deste trabalho investiga a abordagem do elemento
tempo na obra deste autor, principalmente a partir de seus escritos teóricos sobre literatura e
artes visuais. Este capítulo mostra, a partir da teoria de Emile Benveniste, que a análise do
tempo depende da verificação do sujeito enunciador, o que faz com que o capítulo seguinte se
destine a examinar o tempo e a enunciação subjetiva em alguns de seus romances e peças. São
eles: a trilogia de romances Molloy, Malone morre e O inominável; as peças de longa duração
Fim de Jogo e Dias Felizes e as peças de curta duração, Ato sem palavras, Peça, Respiração.
As referências que fundamentaram o contato com a obra são, principalmente: Aldo
Tagliaferri, Fábio de Souza Andrade, Wolfgang Iser, Theodor Adorno, Enoch Brater, James
Knowlson e Paul Lawley. O terceiro capítulo abriga a análise de Aquela vez. Esta análise se
inicia com um estudo sobre a escuta, sentido privilegiado na peça, em detrimento da
faculdade da fala. A referência que sustenta esta etapa da pesquisa é Roland Barthes, em seu
artigo sobre aquele sentido. A seguir, a peça é analisada, em sua relação com a forma sonata,
estrutura musical que inspirou sua composição. O estudo se conclui tendo demonstrado um
uso original da faculdade da escuta, promovido por esta peça, e suas implicações sobre a
figuração do personagem, a produção da mensagem no teatro e a relação da obra de arte com
o espectador.
Palavras-chaves: Aquela vez Beckett monólogo escuta tempo peças curtas.
ABSTRACT
Analysis of the play That time, written in English by Samuel Beckett (1906-1989), in the year
of 1975, from de theme of time and how this instance is articulated by the work. The first part
of this work investigates the approach of the time element in the works of that author,
primarily from his theoretical writings on literature and visual arts. This chapter shows, from
the theory of Emile Benveniste, that the analysis of time depends on the verification of the
speaking subject, which makes the following chapter being intended to examine the time and
subjective listing in some of his novels and plays. They are: the trilogy of novels Molloy,
Malone dies and The Unamable; the plays of long duration Endgame and Happy Days and the
short plays Act without words, Play, Breath. The references which allows the contact to the
work are mainly: Aldo Tagliaferri, Fábio de Souza Andrade, Wolfgang Iser, Theodor Adorno,
Enoch Brater, James Knowlson and Paul Lawley. The third chapter houses the analysis of
That Time. This analysis begins with a study on the sense of listening, the privileged one in
that play, at the expense of faculty of speech. The reference that sustains this stage of the
research is Roland Barthes, in his article on that sense. Then, the piece is analyzed, in their
relationship with the sonata form, structure musical that inspired its composition. The study
concludes having shown an original use of the sense of listening, promoted by this piece, and
their implications on the figuration of the character, the production of the message in the
theater and the relationship of the work of art to the audience.
Keywords: That time - Beckett - monologue - listening - time - short plays.
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09
1. PRIMEIRO CAPÍTULO: UM TEMPO PARA SE PENSAR AQUELA
VEZ..........................................................................................................................................16
1.1.Qual Aquela vez?................................................................................................................17
1.2.Tempo e arte.......................................................................................................................21
1.3.Tempo e imaginação...........................................................................................................33
2. SEGUNDO CAPÍTULO: SUJEITO E TEMPO, ROMANCE E
TEATRO..................................................................................................................................42
2.1.Molloy: o delínio da memória, o avanço da invenção........................................................43
2.2. Malone: o tempo como brinquedo.....................................................................................50
2.3. O inominável: no lugar de personagem,voz.......................................................................57
2.4. Peças que duram muito......................................................................................................64
2.5. Peças que passam rápido....................................................................................................78
3. TERCEIRO CAPÍTULO: ESCUTA.................................................................................94
3.1. As três escutas....................................................................................................................95
3.2. Forma sonata e Aquela vez...............................................................................................102
3.3. Escutar o tempo em Aquela vez.......................................................................................120
4. CONCLUSÃO...................................................................................................................126
REFERÊNCIAS....................................................................................................................128
ANEXO A “AQUELA VEZ”............................................................................................134
9
INTRODUÇÃO
Antes de iniciar sua leitura da obra pictórica dos irmãos van Velde, Beckett (1989, p.
24-5) adverte o leitor de que tal empreendimento consistirá num “duplo massacre”:
“assassinato verbal de emoções que só dizem respeito a mim”, “desfiguração (…) menos de
uma realidade afetiva do que de sua risível impressão cerebral”.
Meu primeiro contato com a obra de Samuel Beckett deu-se no período de minha
graduação em interpretação teatral, na Universidade Estadual de Londrina. Distingo tal
momento como a primeira leitura de Eu não (Not I), tradução feita por Rubens Rusche e Luiz
Roberto Benatti a partir do original inglês e da versão francesa. Não era a primeira leitura de
uma obra de Beckett. Já tivera contato com Esperando Godot, mas a chegada desta peça até
mim fora acompanhada das muitas leituras e comentários que ela despertara ao longo de sua
história e que se tornaram referências para “facilitar” a sua compreensão percebo hoje que
grande parte destes comentários privam a obra da sua originalidade e da sua radicalidade,
devido à pretensão de cobrir algumas lacunas de significado que são geradoras de alguns dos
seus efeitos mais poderosos. Muitos daqueles comentários me preveniram de que a peça
abrigava uma visão de mundo resignada, niilista, absurda. Isto fez com que eu logo me
desinteressasse por Godot e me voltasse para outras peças, portadoras de “verdades” mais
estimulantes.
Quando descobri a existência da Boca e procedi a uma primeira leitura do seu discurso
caótico e fragmentado, percebi imediatamente que o seu autor não estava limitado àquelas
referências. A obra renovou a minha crença na dramaturgia, revelando-me que a escrita para o
palco ainda era capaz de configurar uma experiência sensível, que resistisse a uma metafísica
pretensiosa e decepcionante. Naquele momento, percebi claramente que Beckett era um
homem de teatro e que, em suas peças, havia alguma coisa que atestava o vigor e a atualidade
desta arte.
Aquela obra se tornou o objeto de minha monografia de conclusão de curso. Como
este trabalho estava inserido na área de interpretação, fui levado a pensar uma prática para
este texto e esta se deu no sentido de formular um processo de vivência que refletisse a
situação de instabilidade vivenciada pela Boca. Nesta ocasião, pude experimentar diretamente
a força que as palavras de Beckett adquirem quando pronunciadas em cena. Como ator que
dizia o texto, percebi como este, em alguns momentos, parecia ganhar vida própria, através da
renovada instabilidade do seu sentido. Um ator não escuta o seu texto ao pronunciá-lo
ensinam os manuais de interpretação. Ele o escuta no silêncio que sucede a enunciação. Ao
10
precisar as indicações de pausa, portanto, Beckett determina os pontos em que o enunciador
escuta e em que percebe a constituição de uma imagem a partir de “suas” palavras. Em cada
uma destas imagens, o enunciador (agora, um ouvinte) vislumbra algum aspecto de sua
existência. Como tais imagens tendem a se diluir, dando lugar a outras imagens, o ouvinte
deste texto é levado a confrontar-se com múltiplos aspectos de sua própria consciência e
também com o sentimento de que esta consciência encontra-se em constante produção.
Em 2007, experimentei o outro lado deste processo, quando tive a oportunidade de
assistir, em São Paulo, a um espetáculo chamado Crepúsculo, composto por três peças:
Passos (Footfalls), Solo (A piece of monologue) e Improviso de Ohio (Ohio Improptu).
Tratava-se de uma encenação de Rubens Rusche, diretor e tradutor, com mais de vinte anos
dedicados ao estudo e a montagem de peças de Beckett. Rusche é uma das poucas referências
de diretores brasileiros que se aventuraram a encenar as peças curtas e que foram bem
sucedidos. Uma das primeiras impressões que Crepúsculo oferece diz respeito ao peso da
escuridão, que, na sua luta contra a luz, deforma os corpos dos atores e violenta as percepções
mais básicas. É a escuridão e a música (entendida como organização do espaço sonoro) que
unem as diferentes peças nesta montagem. E além de unir, invadem o espaço de cada cena
particular, dissolvendo as formas fixas, diluindo a aparência das palavras, surtindo um efeito
hipnótico, quase alucinatório, que escapa tão rápido, logo que busca-se apreender o sentido da
sua poesia.
O universo das peças curtas de Beckett estimulou minhas idéias sobre como o teatro
pode abrigar importantes processos de construção do sujeito. Isto me levou em busca de
embasamento teórico a respeito da formação da subjetividade. Fui apresentado, neste
momento, aos filósofos Deleuze e Guattari, que me despertaram para um novo horizonte de
pesquisa teórica, em que a metodologia se deixa contaminar pelas propostas do objeto
estético. A investigação deste tema me levou a formular um projeto de pesquisa e a ingressar
na Pós-Graduação em Teatro da UNIRIO, no início de 2006.
Meu projeto original trazia um acúmulo de informações sobre a dramaturgia e sua
evolução, no teatro moderno; bem como a insinuação de alguns conceitos que permitiriam
equiparar as realizações desta dramaturgia com as condições contemporâneas para a
enunciação subjetiva. Apoiada na obra daqueles filósofos, trazia o título: “A máquina
dramática do Not I de Beckett: produção e consumo de sujeitos”.
Iniciado o curso de mestrado, nesta instituição, o contato com diferentes fazeres e
visibilidades, revelaram-me maneiras originais de abordar objetos de estudo tão específicos
como o são as obras artísticas. Neste contexto, a disciplina “Estudos sobre o coro”, ministrada
11
pela professora Flora Süssekind, tendo um dos seus módulos dedicado a peças de Beckett,
revelou a importância de um olhar mais atento sobre a obra, no sentido de perceber sua
originalidade, antes de solicitar o apoio de uma teoria.
A realização de um inventário da identidade da pesquisa com a fortuna crítica deste
programa de pós-graduação, solicitada pelo curso de metodologia, propiciou o contato com a
dissertação da pesquisadora Maria Isabel Tavares Cavalcanti, defendida em 2002. Esta
pesquisa revelou-se uma abordagem bastante completa da peça Eu não, promovendo uma
análise da construção da personagem através da temática da dissolução do sujeito.
Neste momento, um conselho da professora Flora apontou a possibilidade de explorar
a peça Aquela vez de Beckett, escrita após Eu não e considerada, pelo próprio autor, irmã
desta última. Este novo objeto pareceu, neste momento, mais excitante, uma vez que mais
obscuro, menos explorado pela crítica, ao menos no Brasil. Neste sentido, as teorias sobre a
história do drama e as teorias sobre a produção da subjetividade, tal como arranjadas no
projeto inicial, deram lugar a uma atenção mais direta sobre o objeto.
Uma determinante fundamental do rumo tomado por esta pesquisa foi a orientação de
Maria Helena Werneck. Como aluno proveniente de uma faculdade jovem e pequena, a
quantidade de referências que surgiam em cada uma das disciplinas cursadas no programa de
pós-graduação me revelava novos campos de aprofundamento, novos horizontes possíveis. Os
primeiros encontros de orientação equilibraram este processo, incentivando-me a fazer
convergir as novas idéias, conceitos e imagens para o foco inicial da pesquisa: a visibilidade
de alguns efeitos, bem como de um possível modo de funcionamento da máquina teatral de
Samuel Beckett para retomar um dos conceitos deleuzianos que continuou a nortear o
processo. Foi num destes encontros que surgiu a referência à música eletroacústica, enquanto
linguagem articuladora do som e do espaço. Tal referência, que pareceu tão próxima ao modo
como fora construída Aquela vez, curiosamente, reanimou um antigo projeto, esboçado
durante a graduação, de utilizar esta música tão controvertida como modelo para a análise de
determinadas obras da dramaturgia contemporânea. Coincidentemente, a música experimental
aparecera como uma novidade estimulante, num momento em que a dramaturgia parecia
incapaz de me surpreender.
As leituras a respeito deste novo tema apontaram para a faculdade da escuta e o modo
como a recepção é considerada, quando se trata de produzir formas diferenciadas de perceber
e de sentir. Uma referência fundamental surgiu quando o professor Luiz Camilo Osório me
apresentou o ensaio de Robert Kudielka a respeito do paradigma da pintura moderna em
Beckett, onde o autor destaca o modo como este artista trabalha com elementos “puros”, ou
12
seja, livres da função representativa e revelados em função de cada obra específica. A partir
destas novas referências, eu conseguia filtrar as leituras anteriores, através de uma maior
atenção ao texto de Aquela vez, o que me estimulou a abrir mão, temporariamente, de
conteúdos filosóficos e a considerar a qualidade da comunicação que poderia se dar entre a
peça e o espectador.
Como Aquela vez constitui uma peça predominantemente sonora, fui levado a buscar
algo de específico no modo como o espectador se relaciona com aquela através da faculdade
da escuta. Dois fatores me pareceram, desde o início, interferir sobre esta escuta: o ritmo da
fala, certamente distinto do ritmo cotidiano, dada a ausência absoluta de pontuação; e a
extensão reduzida da peça, que dá a impressão de se encerrar antes que algo de significativo
tenha sido apreendido. A consideração destes fatores me levou a pensar detidamente a
respeito do que pode ensejar o tempo de fruição desta obra. As leituras me sugeriram algumas
direções para percorrer este caminho. Devo uma preciosa indicação ao professor José da
Costa, que, em meu exame de qualificação, me aconselhou a ler o tempo em outras obras de
Samuel Beckett. Isto acabou por constituir uma etapa importante da pesquisa, que ocupou
grande parte do corpo deste trabalho.
O primeiro capítulo deste estudo busca mapear qual é a proposta temporal de Aquela
vez, visto que o próprio título já revela que a peça lida com uma questão desta natureza. A
leitura de Emile Benveniste constitui uma base forte para investigar uma instância (o tempo)
que tem uma relação fundamental com a linguagem e o estudo de Wolfgang Iser sobre a
recepção de determinadas obras de Beckett faculta pensar o espectador desta obra e ações que,
muito possivelmente, estarão implicadas em seus atos perceptivos.
A biografia produzida por Knowlson foi uma ferramenta essencial, na medida em que
ela se atém fortemente às circunstâncias que envolveram o aparecimento de cada obra. É neste
sentido que ela aparece no início do segundo subcapítulo, revelando preocupações que
adquirem forma e sentido na peça em questão. Foi uma atividade bastante reveladora, situar
vestígios desta preocupação uma preocupação com o tempo -, no ensaios literários escritos
por Beckett na juventude e nos artigos sobre artes visuais, nos anos 40. O exercício reflexivo
em torno de diferentes manifestações artísticas é uma característica da produção beckettiana
que estimula o pensamento sobre o gesto artístico, a partir da visão expressa por seu autor.
Estas leituras nos aproximam de um ideário poético e é, deste modo, que o primeiro capítulo
se encerra, tendo preparado o campo para a leitura do tempo em algumas obras do artista.
O segundo capítulo inicia-se com uma abordagem da trilogia de romances escrita no
pós-guerra. O comentador Rubin Rabinovitz afirma que, a partir destas obras, as realidades do
13
tempo e do espaço passaram a ser empregadas, de modo a iluminar aspectos de uma realidade
puramente imaginária. Neste sentido, procurei perceber particularidades no modo como o
tempo de cada uma destas obras se faz medir. Ao proceder a esta pesquisa, re-afirmava o meu
objetivo inicial de estudar a produção da subjetividade no teatro de Beckett, pois o tempo,
como uma estrutura da linguagem, só existe a partir de um sujeito que se localiza no presente
da enunciação.
Nos dois primeiros romances, os personagens desintegram-se diante da realidade mais
eminente de seus narradores. O contraste entre estes últimos e suas personas revela-se um
processo particularmente marcado pela condição temporal, que condiciona estas criaturas e a
consciência que elas têm de si. A última obra da trilogia instaura, finalmente, o problema
quanto a origem da voz que se apresenta como voz narrativa, o que se revela um dado
fundamental para se pensar a questão mais intrigante de Aquela vez: a natureza das vozes que
chegam ao Ouvinte a partir da escuridão. Deste modo, a leitura da ficção nos aproxima da
peça menos pela recorrência de temas e motivos do que pelo modo como estende os sujeitos e
suas consciências no tempo.
Estes romances são obras profundamente conscientes da expectativa que estimulam
em seus leitores, de modo que elas se tornam um importante embasamento para se pensar as
peças de teatro como obras destinadas a dialogar com o tempo que é compartilhado no teatro
e com o tempo individual de cada espectador.
Fim de Jogo é empregada como primeira referência por apresentar um contexto
particularmente significativo: uma redoma cinzenta que excluiu o tempo. Esta é uma das
formas como a peça parodia a representação dramática paródia do tempo desta
representação. Mas o tempo que se exclui é o tempo de revelação e de desenvolvimento dos
personagens em cena, uma vez que os atores vivenciam representações esavaziadas de
significado e fadadas à repetição; paralelo a esta estagnação, o tempo dos espectadores corre,
e é a partir desta tensão que a peça gera seus processos mais singulares. Como ela, Dias
Felizes é apresentada como obra que articula o tempo do espectador entre os seus elementos
significantes. O modo como a personagem se faz representar, nesta última peça, permite
estabelecer relações com o modo como o sujeito se configura, em Aquela vez especialmente
no que tange à progressiva degradação dos traços da sua figura pelo tempo.
Inúmeros autores foram importantes para a leitura destas obras, de ficção ou teatro.
Procurei, entretanto, retornar constantemente aos textos para evitar que a originalidade deles
ficasse suplantada por lugares comuns que tendem a ser expressos com relação a estas obras e
que comprometera, no passado, o meu contato com Esperando Godot. As referências
14
aparecem nos pontos em que contribuíram para destacar um determinado aspecto das obras.
Os ensaios de Adorno e de Iser foram, neste sentido, leituras norteadoras enquanto textos que
privilegiam a novidade da obra. Eles são referendados nos momentos em que auxiliaram a
traduzir os efeitos da obra para a objetividade do discurso.
As peças curtas constituem o contexto de aparecimento de Aquela vez e são a
confirmação definitiva do uso do tempo como recurso expressivo. Por isso, elas são situadas a
partir do Ato sem palavras (Act without words), de 1956, e a análise se detém em Peça (Play),
de 1963, que instaura o uso privilegiado de outros elementos da comunicação teatral, como
voz e iluminação. Além disto, um ensaio de Paul Lawley, a respeito desta última peça,
apresenta um conceito esclarecedor sobre como se dá a presença dos sujeitos no palco destas
obras: a “paródia de presença”. Este conceito reforça a idéia de abandono da interioridade no
âmbito do discurso e possibilita a análise da escuta a partir da dispersão do sentido.
O estudo de Roland Barthes que define três modalidades da escuta torna-se um
instrumento eficaz para promover o retorno ao texto que justifica este estudo: Aquela vez. O
terceiro capítulo inicia-se, deste modo, com uma análise deste campo perceptivo que Beckett
optou por privilegiar na peça em questão. Barthes investiga as determinantes antropológicas e
psicanalíticas deste sentido, direcionando-as para o que chamou de uma escuta de “abordagem
moderna”, representada pela “atenção flutuante” de Freud e pela música de John Cage. Esta
escuta constitui uma “escuta possível”, a se constituir, e por isso permite explorar a obra de
Beckett como expressão libertadora da prisão do significado.
A “pureza” de meios praticada pela obra pode ser avaliada pelo modo como emprega a
forma tradicional da sonata - expressão fundamental da música tonal e portadora de estreita
relação com o pensamento dialético em proveito de um modo de articular temas relativos ao
passado do sujeito, independente de seu gesto enunciador. Através da referência de José
Miguel Wisnik, sugerida pela professora Ângela Materno, em meu exame de qualificação, foi
possível analisar o modo muito específico como o discurso se constrói em Aquela vez: como
uma inter-relação de tonalidades. É evidente que não há notação musical determinada nesta
peça, mas a referência da sonata permite supor uma estrutura onde os sons dialogam, de modo
a compor uma história. Não deixa de ser curioso supor que Beckett tenha se aproximado deste
gênero, em que a música se aproxima do romance, para configurar uma obra que não se cansa
de oferecer elementos que depõem contra a constituição de uma fábula. É neste sentido que,
ao emprestar qualidades da sonata, Beckett se dirige para uma escuta muito particular, que
não é a da música convencional, nem a da decifração dos significados. A tradição musical
15
permite a expressão da subjetividade como processo da linguagem e do tempo produção
incessante do sujeito, ocupando até mesmo os instantes em que ele se cala.
A escuta é o “velho refúgio” de um personagem que, sem acreditar nos dados de sua
própria história, não pode se furtar a produzi-la. Esta revelação demanda uma nova escuta. O
foco deste estudo torna-se, portanto, avaliar como Beckett renovou nesta peça o uso daquele
sentido, afirmando a capacidade do teatro de apresentar idéias que desafiam o entendimento.
PRIMEIRO CAPÍTULO:
UM TEMPO PARA SE PENSAR AQUELA VEZ
17
1.1. QUAL AQUELA VEZ?
A que se refere o título desta peça, a décima quarta escrita para o palco, segundo o
volume da obra dramática completa de Samuel Beckett? A que instância se dirige Aquela vez
e o que ela abriga?
A expressão designa o tempo específico de um fato, que o pronome demonstrativo
“aquela” se encarrega de situar distante de quem fala e distante de quem ouve. Sua descrição
já a situa entre aquelas expressões que Emile Benveniste (1976, p. 280) chamou
“indicadores”: expressões que remetem a posições definidas no tempo e no espaço, mas que,
para fazê-lo, solicitam o apoio de uma outra instância, sem a qual não poderão referir-se a um
dado objetivo. Tal instância se apresenta todas as vezes em que um locutor assume um destes
signos, propiciando uma base (o presente no qual ele fala), a partir da qual é possível indicar.
Assim, estas formas remetem a possíveis e a inesgotáveis contextos, que se atualizam e se
fixam a partir da “enunciação, cada vez única, que as contém”. Antes de se dirigir, portanto, a
um fato situado no passado, o nome desta peça obriga a lidar com o contexto no qual esta
expressão é pronunciada. Em Aquela vez, temos que lidar com três enunciações distintas, mas
ao mesmo tempo similares, visto se tratar de uma única voz, o que torna a configuração do
passado extremamente instável.
As primeiras indicações sugerem a aparição gradativa de uma figura, um rosto
focalizado pela luz, flutuando na escuridão a três metros do nível do palco, um pouco
descentrado. Trata-se de um “velho rosto branco”, com “longos cabelos brancos
esparramados, como se, vistos do alto, contra um travesseiro”. Os olhos estão abertos. O
personagem é chamado Ouvinte (Listener), na versão original inglesa, mas o autor preferiu
chamá-lo Recordador (Souvenant), na tradução francesa que empreendeu. Audição e
recordação relacionam-se aqui através do elemento que aparece a seguir, indicado pelas
rubricas: três vozes, chamadas A, B e C, que correspondem à voz deste Ouvinte,
anteriormente gravada, e emitida a partir de três diferentes fontes, situadas em pontos
diferentes do espaço - nas duas laterais e no alto. A tecnologia favorece aqui a possibilidade
de que estas vozes soem em um tempo diferente daquele em que o sujeito as emitiu. O
Ouvinte percebe, desta forma, vozes do passado, que, por sua vez, referem-se a instantes
anteriores à cena.
As vozes falam na segunda pessoa, dirigindo-se, portanto, ao único habitante da cena
como a pessoa que viveu os eventos referidos. Esta disposição, que permite, às vezes,
acreditar que há duas pessoas em cena, repete-se no romance Companhia, escrito por Beckett
18
em 1980, cinco anos após a concepção de Aquela vez. Nele, “uma voz chega a alguém deitado
no escuro”. “O uso da segunda pessoa caracteriza a voz. O da terceira, aquele outro, o intruso.
Se ele pudesse falar a quem e de quem fala a voz, então haveria uma primeira. Mas não se
pode. Não o fará. Não podes. Não o fará” (BECKETT, 1982, p. 43).
O emprego de “você”, assim como o de um timbre único, unifica as três vozes. Esta
forma pronominal supõe a “noção de pessoa”, pessoa a quem este discurso é dirigido, mas
também pessoa que enuncia. De acordo com Benveniste (1976, p. 278), o uso do pronome
“ele” abole esta noção e permite a configuração de um tempo objetivo, realidade separada do
sujeito que a descreve. A peça que antecede Aquela vez, na produção beckettiana, Eu não, de
1972, desenvolve esta possibilidade, ao conceber uma boca desgarrada que emite um longo
discurso e que o distancia, na medida em que manifesta uma “veemente recusa em abrir mão
da terceira pessoa”(BECKETT, 2007b, p. 02). Esta possibilidade é vetada, quando se trata da
primeira e da segunda pessoa. “Você”, como “eu”, são expressões que apenas adquirem
realidade na instância do discurso que as contém. A peça em questão, ao obscurecer a
produção do discurso, acentua a procura por um “eu”, sem o qual este “você” não permite ser
pensado.
O uso do indicativo no título da peça chama a atenção para a realidade do discurso,
para o instante, portanto, em que tal indicativo adquiriria sentido. Como em Companhia e em
Eu não, entretanto, a primeira pessoa está ausente. Reconhecemos, no Ouvinte, o “você” que
habitou as experiências descritas, de modo que podemos discernir alguns fatos objetivos,
situados em tempos distantes. A voz A descreve um adulto que procura um ambiente de sua
infância; a voz B evoca, principalmente, momentos da juventude, passados junto de uma
companheira; C trata de um homem mais velho, que adentra instituições públicas, abrigando-
se do frio e da chuva. As vozes têm em comum um ritmo monótono, sem acentuações, que as
reúne num fluxo contínuo. O uso da segunda pessoa e o encobrimento da fonte emissora
(suposto “eu”) pelo escuro gera uma tensão que é agravada pelo fato de que a ação de tais
vozes não se restringe a descrever o evento passado. Elas se repetem, contradizem-se,
contaminam-se umas às outras com posturas, expressões, idéias.
A: (...) quando foi estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito
tempo aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína
onde criança você se escondia a ruína de uma antiga como era mesmo o nome
C: estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo [grifos
meus] (BECKETT, 2007a, p. 02)
19
Estes discursos são povoados por expressões que denotam incerteza (“quando foi”,
“como era mesmo o nome”), e que constituem uma realidade não do evento evocado, mas do
presente da enunciação. A repetição destas expressões e a de afirmações enfáticas, como a
que reforça a perda da mãe e a de tudo mais, solicita a atenção para a instância que produz o
discurso. Este “artifício” é desmascarado, em Companhia:
Mais uma característica é a de repetir-se. Repetidamente, com pequenas diferenças,
o mesmo que já foi dito. Como se para induzi-lo, através deste artifício, a torná-la
sua. A confessar. Sim, eu me lembro. Talvez até a ter uma voz. Para murmurar, Sim,
eu me lembro (BECKETT, 1982, p. 54).
O silêncio do Ouvinte nega ao “você”, emitido por aquela voz que só pode ser a sua, a
oportunidade de atualizar-se em um “eu”. Mesmo esquartejadas, entretanto, as vozes traçam
indícios de sua origem. Ao dizer “alguma vez você se disse eu em sua vida ora vamos”
(BECKETT, 2007a, p. 02), a voz C evidencia a impossibilidade do sujeito se reconhecer
naquele discurso. Mas a expressão “ora vamos” é a manifestação direta deste “Eu poroso e
agonizante”, nas palavras de Blanchot (2005, p. 312), que se apresenta neste palco, ao se
recusar a ser representado. Neste sentido, o silêncio do Ouvinte é tão eloqüente quanto o
“Ela!”, enfatizado pela Boca de Eu não. É possível afirmar que esta escuta fala e o faz através
de cada expressão que retifica, ou que anula aquilo que acabou de ser dito. A capacidade de
lembrar encontra-se tão comprometida quanto a capacidade de se propor como autor deste
monólogo.
“Aquela vez”, portanto, como um evento distanciado do locutor e do alocutado, torna-
se inviável como a presença de Godot, na peça mais célebre de Beckett. Em sua análise do
riso sufocado, em algumas peças deste autor, Wolfgang Iser (1989a, p. 160) observa que o
título, enquanto estrutura de sentido, deve oferecer um background, que antepare todas
aquelas situações singulares que uma peça abriga. Trata-se de uma estrutura que permite que
um personagem que fracassou em grande parte de suas intenções possa, ao final, ainda ser
restituído em uma totalidade. Em Esperando Godot, as situações singulares são ações
fracassadas, a partir das quais os personagens nada aprendem. Quando a ação principal desta
peça, descrita no título, se mostra duplamente fracassada, a oposição entre ela e as ações
isoladas se dilui, anulando um “pré-requisito dos nossos atos de compreensão”. Igualmente, o
título Aquela vez induz a uma expectativa não cumprida quanto a esta peça.
B (...) aquela vez juntos na pedra ao sol ou aquela vez juntos à beira do rio ou aquela
vez juntos nas dunas aquela vez aquela vez e cada vez melhor sempre juntos em
algum lugar ao sol à beira do rio diante da foz o sol se pondo os detritos que desciam
20
o rio levados pela correnteza ou detidos pelos caniços o rato morto ou algo assim
boiando ao seu encontro levado pela correnteza lentamente até perder de vista
(BECKETT, 2007a, p. 04)
O fragmento expressa a ansiedade com que o indicador “aquela vez” patina e
escorrega em seu objetivo de conduzir a um sítio exterior à linguagem, um recorte espaço-
temporal onde determinada experiência tenha se cumprido. Por outro lado, afirma plenamente
sua condição de elemento lingüístico, realidade virtual sempre disponível a atualizar-se na re-
presentação de um “eu”. O modo como este signo é empregado nesta peça reforça a relação
da linguagem com a fala, que oferece um tempo e uma ponte para que aquela se ligue à
realidade objetiva. A dificuldade em acessar uma realidade já ultrapassada e para sempre
perdida que agora pode apenas existir no campo da linguagem atualiza o tempo presente
um tempo que não se deixa fixar, tempo de fluxo, de passagem.
Com a pouca sensibilidade que lhe resta, como se sente ele agora, em comparação
com aquela época? Quando, com o pouco discernimento que lhe restava, julgara seu
estado terminal. Mas vale perguntar o que sentia naquela época em relação àquela
época, comparada como antes. Quando ainda se movia, ou se demorava nos restos
de luz. Assim como naquela época não havia aquela época, não há nenhuma agora
(BECKETT, 1982, p. 60-1).
Em artigo que examinaremos a seguir, Beckett aborda um determinado dinamismo na
pintura do holandês Geer van Velde. A respeito de tal dinamismo, Beckett (1989, p. 36)
qualifica de “modesto” o cálculo do filósofo pré-socrático Heráclito, de que um homem não
entra duas vezes no mesmo rio. A despeito da ironia, a citação potencializa a emergência de
um homem cuja mais insignificante experiência (qualquer “vez”, portanto) é, por natureza,
inapreensível.
O rio de Aquela vez é um fluxo de palavras destituído de qualquer pontuação, o que
implica na multiplicação das possibilidades semânticas. Cada expressão pode fundir-se na
produção de uma frase, de uma imagem ou de uma idéia, bem como pode isolar-se,
anunciando algo independente, contradizendo ou aprofundando o conjunto. Desta forma,
concretiza-se a percepção de um sujeito atravessado pela linguagem, a qual, como lembra
Benveniste (1976, p. 286) “só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito,
remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela
que, sendo embora exterior a ‘mim’, torna-se o meu eco ao qual digo tu e que me diz tu”.
Não há sujeito que diga “eu”, em Aquela vez, o que faz da voz que diz “você”, uma
realidade em busca de um segundo termo. O processo de constituição da pessoa, no presente
da enunciação, permanece incompleto e, desta forma, relativiza os indicadores (“aquela vez”,
21
“alguma vez”, “quando”, “então”, etc.). Os eventos, então, ora se situam próximos (“aquela
última vez quando você tentou e não conseguiu”), ora demasiado distantes (“talvez aquela
hospedaria junto ao mar onde você não ela estava ainda ao seu lado ao seu lado”). Mas
nenhum deles pode ser capturado, pois a alusão a eles corresponde sempre a uma aparição do
presente, tempo de fuga, percorrido, em Aquela vez, pelo silêncio de uma “inesperada e
inexplicável figura” envolvida por um “sentido de melancolia e de mistério” (BRATER,
1987, p. 39).
“Aquela vez” torna-se uma expectativa não cumprida no que diz respeito a
individualizar um fato, no fluxo do tempo. Conforme ensina a lingüística, é preciso tornar
presente (através do discurso, portanto, através de um “eu” e de um “tu”), para, em seguida,
distanciar. O contexto da encenação problematiza este presente, revelando a instabilidade de
cada momento vivido, não sendo necessário mais que uma imersão no rio para que o sujeito
se perceba incapaz de expressar aquilo que de fato se passou.
.
1.2. TEMPO E ARTE
Aquela vez, peça cujo nome evoca tão fortemente a faculdade humana de lembrar, foi
moldada por Samuel Beckett, entre os meses de junho e setembro de 1974. É especialmente
significativo saber, conforme sublinhado por seu biógrafo, que o ano anterior fora marcado,
na vida do escritor, por um confronto doloroso com o fator “tempo”, intensificado pela perda
de amigos íntimos
1
. A correspondência do período revela a percepção do tempo como a de
um líquido que se esvai, sendo, contraditoriamente, precioso e sem nenhum valor. Esta
ambigüidade contamina o trabalho criativo, depondo contra o ato de escrever, o “único” capaz
de garantir permanência ao “sentido de deterioração” (KNOWLSON, 1996, p. 530-1).
Desde os anos 30, é possível perceber que o tempo já se apresentava a Beckett como
um fator limitante do poder do artista. Na obra de Marcel Proust, sugestivamente chamada Em
Busca do Tempo Perdido, Beckett percebera a expressão de um indivíduo em permanente
mobilidade, ilustrada pelo fato de a satisfação de antigos desejos ser incapaz de satisfazer ao
ego atual, parecendo corresponder aos desejos de uma criatura já desaparecida. A metáfora
1
Jack MacGowran e Christine Tsingos eram atores e tinham atuado como alguns dos memoráveis personagens
da dramaturgia beckettiana. Ele fora dirigido pelo próprio Beckett no papel de Clov, numa montagem londrina
de Fim de Jogo e fora cogitado pelo autor para interpretar o personagem de Film, que acabou sendo vivido por
Buster Keaton. Além disto, atuara como Krapp na versão de A última gravação dirigida por Alan Schneider para
22
que ilumina um sujeito, assim compreendido, tem de ser expressa em termos líquidos: “O
indivíduo é o sítio de um constante processo de decantação, decantação do recipiente
contendo o fluído do tempo futuro (..) para o recipiente contendo o fluído do tempo passado”
(BECKETT, 1986, p. 11). Desta forma, o sujeito é o correlato de um presente insubstancial,
realidade cujo reconhecimento se encontra comprometido pelo próprio sistema de percepção,
sistema em constante mudança, permanentemente adiantado em relação a seus objetos. A
consciência localiza o sujeito (ou seja, a si mesma) a partir daquilo que se fez cumprir no
tempo, de modo que, se quisermos apreender, na personalidade, alguma “realidade
permanente”, temos de procurá-la como uma “hipótese em retrospecto” (BECKETT, 1986, p.
11).
A despeito de seu silêncio, o Ouvinte de Aquela vez tem de lidar com vozes que, se
não provêm do passado, parecem lidar com este. Confusas, apáticas e contraditórias, elas
buscam estabilizar-se em torno de um argumento válido a respeito do que foi ou do que tem
sido a existência do sujeito. As palavras, através de uma dinâmica que lhes é muito particular
uma dinâmica de fuga e de instabilidade -, apontam para diferentes momentos de uma vida,
que sabemos, em função do pronome “você”, ser a vida do Ouvinte. Estas vozes, chamadas A,
B e C, que correspondem à voz do Ouvinte, são emitidas, por auto-falantes situados,
respectivamente, nas duas laterais e no alto. Os auto-falantes pluralizam esta voz e o fato de
se encontrarem encobertos pela escuridão, grande dominadora da cena, faz com que as
“vozes” adquiram algo de imaterial, provenientes do escuro, inexplicáveis, mas
absolutamente reais, elementos do tempo e do espaço.
A transição entre as fontes constitui um dos movimentos essenciais da peça e
estabelece uma espécie de círculo sonoro ao redor do Ouvinte, que deverá transmitir uma
idéia de continuidade, “sem nenhuma interrupção, exceto nos lugares indicados” (BECKETT,
2007a, p. 02), insinuando, conforme observado pelo próprio Beckett, a passagem de uma
história a outra, sendo o fragmento B ligado à juventude, C à velhice e A à meia-idade.
2
O
autor sugere, em sua nota acrescentada às rubricas, que a passagem de uma fonte à seguinte
deve ser percebida claramente, mas de uma forma suave (BECKET, 2007a, p. 07). Esta
observação tem um quê de paradoxal, inserindo, na requerida continuidade de um fluxo, uma
a tevê americana. A atriz grega interpretara a personagem Nell de Fim de Jogo e, pouco antes de sua morte,
atuara como a Winnie de Dias Felizes.
2
ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
23
textura de descontinuidade, produzindo um certo vazio (percebido muito rapidamente) entre
as etapas da história do Ouvinte, como se tratassem-se de materiais independentes. Este efeito
é tão necessário que o autor acrescenta uma nota às rubricas solicitando que, se o contexto da
encenação e as três diferentes fontes não forem suficientes para assegurá-lo, devem ser
empregados registros diferenciados na gravação. Deste modo, um discurso envolvendo a
busca de um esconderijo da infância
A: aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína
onde criança você se escondia quando foi (os olhos se fecham, ligeira queda da luz)
dia cinzento com o onze até o fim da linha e dali a pé não não havia mais bondes
tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou ver se estava ainda ali a
ruína onde criança você se escondia aquela última vez nenhum bonde nada só os
velhos trilhos quando foi (BECKETT, 2007a, p. 02)
dá lugar à descrição da entrada no museu em um dia chuvoso
C: quando você se abrigou da chuva sempre o inverno então sempre a chuva aquela
vez no museu ao abrigo do frio da chuva da rua à espera do momento de entrar sem
ser visto e através das salas gelado e molhado até avistar o primeiro banco laje de
mármore sentar descansar secar depois cair fora dali quando foi (BECKETT,
2007a, p. 02)
que é substituída pela referência a uma bucólica cena de amor
B: na pedra juntos ao sol na pedra na orla do pequeno bosque nada só o trigo
amarelando de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio sem jamais
se tocar ou algo assim você numa ponta da pedra ela na outra pedra longa e baixa
como pedra de moinho sem nunca se olhar apenas ali na pedra ao sol atrás o
pequeno bosque olhando o trigo ou os olhos fechados ao redor tudo imóvel nenhum
sinal de vida ninguém por perto nenhum ruído (BECKETTa, 2007, p. 02).
A fragmentação permite ao espectador divisar nesta sucessão sonora a referência a três
ocasiões distintas, através da aparição de três imagens, que se estabelecem com a força dos
elementos por elas evocados. Estes são extremamente especiais, individualizados, no interior
de cada fragmento. A primeira história evoca ruína, mas também criança, evoca uma busca,
mas também a constatação de que tudo está acabado. Esta cena é temporariamente anulada
por uma nova busca de refúgio, num dia também de mau tempo, mas é a presença de um
museu e de uma laje de mármore que singularizam o fragmento C. A seguir, é o aparecimento
de uma pedra, enfatizada por repetições, que sobrepõe-se à visão do museu. O fragmento B
distingue-se por supor companhia; mas, principalmente, por estar mergulhado na imobilidade,
de onde se destacam juras de amor intermitentes e o “movimento” dos trigais amadurecendo.
Os deslocamentos da voz entre as fontes sonoras sugerem, portanto, um deslocamento
24
temporal. Cada fragmento é povoado por cenários e elementos distintos. A presença do
Ouvinte em cena a quem esta voz (a sua voz) é endereçada faz acreditar que se tratam de
diferentes episódios de uma vida. Cada etapa é colorida por diferentes objetos, em diferentes
espaços, o que oferece a sensação de que os momentos vividos podem ser identificados a
partir das coisas que circundaram o sujeito.
Além disto, é possível perceber, desde A, uma sobreposição de objetivos, afinal a
simples menção da expressão “aquela vez” deve ser justificada por alguma necessidade
presente. Busca-se o passado por alguma razão e, neste caso, a “vez” referida diz respeito a
uma outra busca, a busca de um lugar do passado. O texto apresenta, portanto, um primeiro
espelhamento a retrospectiva do sujeito traz à tona uma outra retrospectiva. Alguém se
lembra de alguém que ia em busca de uma lembrança (o esconderijo da infância). Esta
disposição já se fazia presente, em uma peça de 1958, A última gravação de Krapp (Krapp’s
last tape). Esta, também um monólogo que faz uso da voz gravada. Neste caso, entretanto, o
gravador está presente em cena e é manipulado pelo personagem, Krapp. O aparelho é
utilizado para que ele cumpra uma espécie de ritual uma gravação a respeito de si, efetuada
a cada novo aniversário.
Neste monólogo, acompanhamos Krapp, no momento em que completa sessenta e
nove anos, se preparar para mais uma gravação. Antes disso, ele se põe a ouvir uma fita
gravada trinta anos antes. Esta fita permite ouvir uma outra textura na voz do personagem,
que se destaca pela força e pelo ânimo de uma criatura mais jovem. Em Aquela vez, a
fragmentação do fluxo e das lembranças oferece uma experiência relativa à descontinuidade
na percepção da própria história. Em A última gravação de Krapp, a diferenciação na
qualidade na voz é um primeiro recurso a partir do qual é possível entrever as deformações a
que o tempo submete o indivíduo
3
.
Na gravação, curiosamente, o Krapp de trinta e nove anos menciona ter ouvido, pouco
antes de proceder àquela gravação, “passagens ao acaso” de outra gravação, feita dez ou doze
anos antes (BECKETT, 1990, p. 218). Desta forma, temos um personagem de carne e osso
que ouve um dos únicos vestígios de seu passado uma voz gravada que, num dado momento
da maturidade, alude a um tempo ainda mais remoto, relativo aos anos de sua juventude. Por
um momento, a descrição das circunstâncias que envolvem cada um dos tempos torna-se
3
Na première desta peça, dirigida por Donald McWhinnie e interpretada por Patick Magee, em Londres, em
1958, a diferenciação entre as vozes do Krapp sexagenário e do Krapp mais jovem foi um aspecto sobre o qual
Beckett trabalhou direta e intensamente com o ator (para quem o texto havia sido especialmente escrito
(KNOWLSON, 1996, p. 408).
25
menos importante do que aquilo que ela revela uma persistência que atravessa os diferentes
episódios da vida do indivíduo, a necessidade de lembrar.
Em Aquela vez, as duas primeiras aparições da voz sugerem movimento, em etapas
mais avançadas da vida (“aquela vez que você retornou”/ “quando você se abrigou da
chuva”). Em A, entretanto, a linha que poderia conduzir ao sítio da infância está interrompida.
Linguagem e lembrança retrocedem, repetindo o movimento e detendo-se ante a visão dos
velhos trilhos. Em C, a necessidade do abrigo é estimulada pela chuva, pelo frio e pelo
movimento das ruas. O fragmento é interrompido aqui no instante em que a imobilidade é
alcançada, sobre um assento de mármore. Esta imobilidade já se apresenta em B com a força
da “pedra”, que, citada seis vezes em curto espaço de tempo, ecoa a laje de mármore do
fragmento anterior e reflete a ausência de movimento que caracteriza seus personagens. É
curioso que B, conforme apontado pelo autor, corresponda à etapa da juventude. Assim, o
movimento da meia-idade, em A, procura o seu repouso na velhice, C, e encontra-se
estabelecido na juventude, onde o movimento das palavras gravita em torno da solidão e do
mutismo da pedra, que parece englobar seus acompanhantes humanos, os quais contrastam
com o movimento do tempo na natureza, expresso pelo amadurecimento do trigo.
Ao longo do texto, os três extratos de vozes, em suas recorrentes aparições, lançam
mão de uma série de expressões indicadoras de tempo. É notável que tais expressões se
organizem de modo a contrastar permanência e efemeridade. Deste modo, “aquela vez” e
“quando foi” singularizam a procura do esconderijo e o abrigo do museu como pontos
específicos do passado, enquanto “sempre o inverno então sempre a chuva” e “tudo acabado
há muito tempo” acentuam a solidão e a hostilidade das condições exteriores, que se fazem
presentes, nos momentos indicados por A e C. O “de quando em quando” das juras de amor
em B é o mesmo “de quando em quando” dos chinelos do vigia que se aproximam em C,
apontando para eventos distintos, mas semelhantes quanto ao potencial de quebra de
isolamento.
A segunda aparição do fragmento B -
ao redor tudo imóvel apenas as espigas as folhas e vocês também imóveis na pedra
como entorpecidos nenhum ruído nenhuma palavra de quando em quando juras de
amor apenas um murmúrio única fonte de lágrimas antes de se secarem totalmente
aquele pensamento sempre que surgia dentre outros fazia emergir aquela cena
(BECKETT, 2007a, p. 02)
- já explode a possibilidade de que cada um dos extratos possa corresponder correta e
exclusivamente a um único momento do passado. Após a descrição de uma cena já conhecida,
26
calcada principalmente em seus elementos exteriores (imobilidade, silêncio, murmúrios,
lágrimas); ocorre a referência a um pensamento. Identificado pelo pronome “aquele”, o
pensamento é capaz de fazer “emergir aquela cena” [grifo meu]. Deste modo, o instante
referido, em sua exterioridade, abriga um pensamento, que é a própria razão de ser da
lembrança. As palavras giram em torno de circunstâncias imprecisas, mas o pensamento que
evoca a lembrança não é citado. Qualquer que seja o episódio passado, ele interessa na
medida em que transporta alguma idéia que pode ser revisitada em outros momentos e que
tem atualidade no presente.
A linguagem acompanha a trajetória da lembrança. A propósito do então work in
progress de James Joyce (futuro Finnegans Wake), Beckett afirmava, num ensaio de 1929:
“Aqui, a forma é conteúdo, e conteúdo é forma. (...) Quando o sentido é dormir, as palavras
adormecem. Quando o sentido é dança, as palavras dançam” (BECKETT, 1992, p. 331).
Longe do júbilo e da exaltação promovida por Joyce em seu artesanato com as palavras, a
poética beckettiana, comprometida com a indigência
4
, conduz a linguagem a uma espécie de
tatear às cegas. Ela é capaz de iluminar determinados cenários da lembrança, mas não lhe é
assegurada muita estabilidade. O fato desta linguagem ser arrastada por um fluxo monótono
5
,
bem como repetir-se em reviravoltas que lembram expedientes clownescos desempenhados
por alguns personagens do autor, revelam um elemento que a desequilibra, que a ridiculariza.
Ora, este elemento é o tempo, que aqui se faz medir pela velocidade incomum do discurso e
pelo movimento entre as fontes, fatores que apresentam uma força mais poderosa do que a das
imagens e a das cenas evocadas, capaz de interrompê-las, de sobrepô-las.
Fica evidente, assim, como o tempo, compreendido enquanto fluxo para a morte, é
propositadamente inserido nesta obra. A arte, neste caso, enfrenta sua própria pretensão de
furtar-se ao tempo e passa a se situar nesta tensão entre o desejo de permanência e a
inevitabilidade do fluxo. Nos escritos sobre as artes plásticas, dos anos 40, Beckett cita a
questão de “como representar a mudança” como o dilema central das artes visuais
4
Uma das mais citadas declarações de Beckett diz respeito ao seu ponto de vista sobre o papel das artes no seu
tempo: “A expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar,
nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar” (BECKETT,
2001, p. 175).
5
No que tange à performance teatral do texto, as anotações sobre sua montagem no Schiller-Theater Werkstatt,
de Berlim, em 1976, sob direção de Beckett, revelam que o autor solicitou ao ator Klaus Herm uma pronúncia do
texto mais acelerada que a velocidade natural do discurso, sem fazer qualquer pausa, exceto no final de cada
fragmento. Como não foi possível evitar pausas naturalmente, estas tiveram de ser cortadas pelo engenheiro de
som. In: ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
27
(BECKETT, 1989, p. 38). Diante dele, os pintores realistas ensaiariam a pretensão de fazer
parar o tempo para representar seus objetos; enquanto os modernos teriam se fixado na
impossibilidade de proceder a tal representação. Esta questão já fora explorada no ensaio
sobre Proust, onde arte e vida, como expressões que se dão no tempo, só podem alcançar seus
objetivos através de “anexações parciais”, pois: “Tudo o que é ativo, tudo que está envolvido
pelo tempo e pelo espaço, é dotado do que poderia ser descrito como uma ideal, abstrata e
absoluta impenetrabilidade” (BECKETT, 1986, p. 46).
Esta constatação implica o “impedimento-objeto” e o “impedimento-olho”
(BECKETT, 1989, p.57), revelando a realidade de um objeto que se furta à representação, em
virtude da mobilidade do sujeito. Quando, ao observado, corresponde um objeto inanimado,
este não goza de fixidez, uma vez que deve passar pelas retinas de um observador, e sua
percepção estará sempre implicada na percepção que o observador tem de si mesmo veja-se
o episódio da escada em Watt
6
, romance de 1945, em que a precisão das palavras se presta a
insinuar um universo que as mesmas palavras não são capazes de explicar. No caso de inter-
relações humanas, a questão torna-se ainda mais delicada, pois temos, neste caso, “dois
dinamismos intrínsecos e separados, carentes de um sistema de sincronização” (BECKETT,
1986, p. 13). A criatura amada é, deste modo, no romance de Proust, uma “multiplicidade
plástica e moral”, cuja posse não depende de uma mudança de ângulo do observador, mas
revela-se: “uma multiplicidade profunda, um redemoinho de contradições imanentes, sobre as
quais o sujeito não terá controle algum” (BECKETT, 1986, p.37).
Os pintores Geer e Abraham van Velde, segundo Beckett (1989, p.38) teriam
abandonado uma “situação plástica sem saída” e trocado a impossível ausência do objeto pela
certeza de que há um único objeto a ser representado e de que este objeto não se presta à
representação (BECKETT, 1989, p.56). Quanto a saber de que se trata este objeto, o ensaio
sobre Proust indica que o “único mundo que tem realidade e significado” é “o mundo de
nossa consciência latente”(BECKETT, 1986, p.09), a partir do que é possível concluir que o
único objeto, o qual se furta à representação, equivale ao próprio sujeito, única realidade
conhecida pela consciência, mas em constante fuga, porque sob ação do tempo.
Em Aquela vez, menos do que configurar um evento claro e objetivo transcorrido no
passado, linguagem e lembrança se apresentam como repetição, insistência, insubordinação.
6
“(...) as escadas que nunca pareciam as mesmas escadas, de noite para noite, e ora eram íngremes, ora suaves,
ora compridas, ora curtas, ora largas, ora estreitas, ora perigosas, ora seguras, e que ele subia, por entre as
sombras movediças, todas as noites, pouco depois das dez” (BECKETT, 2005, p. 130).
28
A sobreposição de fragmentos acentua um movimento constante, que materializa o fluir do
tempo em um fluir de palavras, de voz e de imagens.
B: (...) antes ou depois não importa com o rato ou o trigo as espigas amarelando ou
aquela vez nas dunas com o planador que passava aquela vez que você retornou
pouco depois bem depois
A: onze anos na ruína na pedra plana no meio das urtigas noite escura ou à luz da lua
a sussurrar ora uma voz ora outra você era ainda uma criança e ali no degrau sob o
pálido sol... (BECKETT, 2007a, p. 06-7)
O modo como este movimento transporta as imagens, sacudindo-as, repassando-as,
chocando-as umas com as outras, confundindo-as; parece indicar a ação de alguém que busca,
a partir destas imagens, algo que as ultrapassa. É desta maneira que a busca do esconderijo em
A ecoa na busca do abrigo em C e que a constatação de que “tudo” está acabado repete-se nos
dois fragmentos. Além disto, a descrição do esconderijo como “pedra no meio das urtigas”,
que aparece mais adiante no texto, lembra o ambiente ao ar livre que se faz presente em B.
Diferentes extratos da memória, recortes do tempo que se fazem agitar pelo tempo em que o
texto se cumpre: a consciência em movimento, diagnosticada em Proust, aparece aqui como a
coincidência entre sujeito e tempo. O indivíduo que persegue uma verdade naquilo que se
cumpriu ao longo de seus anos materializa a passagem do tempo sendo a expressão de uma
realidade permanentemente voltada para si, contemplando suas próprias questões, à medida
que se alteram as paisagens ao seu redor.
O objeto, aquela vez privilegiada, sugerida pelo título, se apresenta então como uma
multiplicidade de impulsos, que se esfacelam enquanto reconstituição do passado (“ao diabo
os velhos lugares os velhos nomes”), mas que manifestam o ímpeto de seguir o trilho da
próxima lembrança (“nada só os velhos trilhos enferrujados estava sua mãe ah pelo amor de
Deus tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou aquela última vez”) e daí
em diante até uma possível verdade em que seja possível permanecer. Mais do que apontar
para uma possível subtração do objeto, o texto confirma antes a evidência de um novo objeto,
a “vez” presente, onde o sujeito situa a sua eterna busca, convocando etapas do passado e
buscando configurar, a partir delas, uma imagem válida de si, que possa resistir ao tempo que
arrasta. Se em Proust, sujeito e presente se furtam à experiência cotidiana; em Aquela vez, tais
entidades se apresentam como a força que liga os instantes vividos, superando-os, ignorando-
os, revelando o que há de permanente na consciência auto-centrada: “para sempre toda a sua
vida uma sucessão de reviravoltas na verdade uma única reviravolta a primeira e última
aquela vez” (BECKETT, 2007a, p. 03).
29
“Aquela vez”, ao invés de revelar um instante preciso no tempo onde o sujeito se
revelasse em sua inteireza, corresponde a uma multiplicidade de tempos e de lugares, cujos
contornos se dispersam (“aquela vez que você retornou”, “quando você se abrigou da chuva”,
“na pedra”, “na orla do pequeno bosque”, “ou conversando consigo mesmo”, “ou junto à
janela no escuro”). O modo como a peça configura suas imagens está próximo do que Beckett
admirava na pintura de Abraham van Velde: “um desvelamento sem fim, véu atrás de véu,
plano sobre plano de transparências imperfeitas, um desvelamento em direção ao irrevelável,
ao nada, à coisa a seguir” (BECKETT, 1989, p. 58)
7
.
A pintura dos irmãos holandeses teria se concentrado no impedimento de um objeto
que, sendo a única realidade possível, não se deixa representar porque jamais permanece igual
a si mesmo. Diante da presença e do impedimento, Geer teria se concentrado no agente que
promove a mudança, tornando-se um pintor da sucessão, sua obra sendo voltada para o
exterior e chamada de “reticente”, agitada por uma “grande velocidade de fuga”, pela certeza
de que “não há presente nem repouso” (BECKETT, 1989, p.36). Seus objetos são subtraídos à
própria condição de ser objetos, uma vez que, como visto, seus contornos são acometidos de
uma mobilidade permanente, o que os conduz à condição de processo. A aparência exterior
das coisas torna-se, na pintura de Geer van Velde, invisibilidade, a qual insinua mais do que
afirma. A única afirmação residindo na “evidência fugaz e secundária do grande positivo, do
só positivo, do tempo que transporta”
8
(BECKETT, 1989, p. 41).
7
Tradução minha para: “Un dévoilement sans fin, voile derriére voile, plan sur plan de transparences
imparfaites, um dévoilement vers l’indévoilabre, le rien, la chose à nouveau”.
8
Tradução minha para: “(...) l’evidence fugace et acessoire du grand positif, du seul positif, du temps qui
charrie”.
30
Geer van Velde. Composition, 1948, 30.5 cm x 30.5 cm, Paris, Gallery Louis Carré.
Abraham, por sua vez, é visto como um pintor da duração (BECKETT, 1989, p.35),
estando este artista concentrado sobre o agente que sofre a mudança. Isto não o aproxima dos
realistas, numa pretensa parada da imagem. A duração em suas obras é um desvio da duração
natural, o que implica num objeto idealizado, “idealmente morto”, suspenso e fixado pela
necessidade de ver. O “objeto puro”, como ele é reconhecido, afasta-se, portanto, do mundo
visível e dirige-se para a escuridão da caixa craniana, revelando um “campo interior”, espaço
de um sujeito impedido de ver, de conhecer os objetos e de conhecer a si.
31
Abraham van Velde. Zonder Titel, 1936-1941, 100 x 81 cm, Paris, collectie Samuel Beckett.
Nos diálogos com Georges Duthuit, de 1949, a expressão, na pintura de Abraham, é
vista como deslocada para uma zona de sombra (BECKETT, 2001b, p. 181). A referência ao
negro aparece, nos artigos citados, como a substância da consciência, no interior da qual é
possível ver. Este negro, ou esta sombra, asseguraria a estabilidade, uma vez que,
paradoxalmente, iluminaria o espírito. O ser, para sempre fechado em si, vê a si mesmo, a
32
partir das cores de um espectro negro (BECKETT, 1989, p. 58). Nos Diálogos, esta sombra é
tornada mais intensa às custas de um sentimento de invalidez, sentimento do qual a pintura
sempre procurou se esquivar às custas de aperfeiçoar a relação do observador com o
observado. De acordo com Beckett, Abraham desistiu deste automatismo (e foi o primeiro a
fazê-lo), admitindo que o fracasso é o universo do artista. Apesar de Robert Kudielka sugerir
um equívoco de Beckett neste ponto
9
, esta visão implica aqui menos em uma revisão da
história da arte do que na descrição de processos artísticos que se estabelecem a despeito do
mecanismo pernicioso do tempo.
É curioso que esta seja uma visão muito particular de Beckett, capaz de despertar o
choque em seu interlocutor, Duthuit: “Mas este é um ponto de vista extremamente pessoal e
violento” (BECKETT, 2001b, p. 175); “Você se dá conta do tamanho do absurdo que está
propondo?” (BECKETT, 2001b, p. 179). A este estranhamento, soma-se ainda a recusa do
escritor a interpretações filosóficas para suas questões: “Não posso ver vestígio de qualquer
sistema em parte alguma” (apud ANDRADE, 2001, p. 187); “Eu não teria tido nenhuma
razão para escrever meus romances se pudesse ter expressado seu assunto em termos
filosóficos” (apud ANDRADE, 2001, p. 190). Tal particularidade permite entrever uma
compreensão da realidade que não pode ser escamoteada por definições lógicas e a obra de
arte como a ocasião em que a consciência ocupa-se da própria incapacidade para sobrepôr-se
ao tempo e ao espaço. Estas entidades, governadoras do mundo exterior, segundo Rubin
Rabinovitz
10
, tornam-se subservientes ao mundo da imaginação, nas obras de Beckett do pós-
guerra. É o que o autor chama de “reversão da fórmula da verossimilhança”: as leis físicas
tornam-se menos importantes do que as regras de processos mentais e o mundo do tempo e do
espaço torna-se escravo da vontade do mundo imaginário. A referência, situada em Abraham
van Velde, ao crânio como o espaço onde o tempo pode adormecer aponta para a solidão, para
a imersão em si, como uma via possível para a realização de um projeto artístico, uma vez que
a “tendência artística não é uma expansão, mas uma contração”, devendo o artista esquivar-se
da “nulidade de fenômenos extracircunferenciais” e sentir-se “atraído pelo centro do
redemoinho” (BECKETT, 1986, p. 53).
9
De acordo com o crítico alemão, a pintura, já com Manet e Cèzanne, no século XIX, rompera com a busca
romântica de novos universos expressivos e fizera de seu objeto o mutismo dos conteúdos. Estes pintores
buscavam “sur le motif consolar-se da ausência de grande ocasião e da insuficiência da própria capacidade”
(2000, p. 67).
10
RABINOVITZ, Rubin. “Time, space, and verisimilitude in Samuel Beckett’s fiction.” Publicado
originalmente no Journalof Beckett Studies. English Department at Florida State Univ., n. 2, verão 1977.
Disponível em: <http;//www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2RubinRabinovitz.htm> Acesso em: 31 de jan. de
2008.
33
A grande importância dada ao mundo interior, à liberdade de imaginação como
alternativa ao mundo real é vista por Knowlson (1996, p. 319) como um fator essencial para o
desenvolvimento artístico de Beckett. Segundo o biógrafo, este acontecimento deu-se a partir
do reconhecimento, pelo autor, da sua própria “estupidez”, ou seja, numa percepção muito
particular, que o distinguia do seu mestre literário James Joyce, o qual acreditava que a soma
de conhecimentos poderia resultar num domínio mais amplo da realidade. Beckett teria
rejeitado este princípio e feito sua arte lidar, para sempre, com a impotência e com a
ignorância.
O sentimento de impotência parece agravado, no período de composição de Aquela
vez, conforme indicado no início deste item: o artista tendo de lidar com o tempo, que impõe
uma contradição à sua obra, a qual se propõe a lidar com o “sentido de deterioração”. Procurei
demonstrar, com a leitura de alguns de seus ensaios, que esta preocupação permeou desde
sempre o ideário poético do autor, fazendo com que ele situasse em artistas como Proust e os
van Velde, um enfrentamento desta questão. A partir dos anos 40, o autor responderá de
forma consistente ao dilema, com suas obras narrativas e com suas peças. No segundo
capítulo deste estudo, pretende-se demonstrar como, nos romances e peças de Beckett, o fluxo
do tempo constitui uma realidade profundamente enraizada nos processos mentais dos
personagens, devendo ser medido antes em relação ao mecanismo subjetivo de percepção do
que a partir de uma realidade objetiva. A abordagem do tempo nos romances produzidos no
pós-guerra introduzirá o modo como esta instância se apresenta em peças longas e curtas. O
pós-guerra é, reconhecidamente, um dos mais produtivos períodos de Beckett, e também
aquele em que a imaginação criadora passou a desenvolver os seus próprios recursos para
posicionar-se perante o mundo, ao invés de confiar apenas nos dados fornecidos pela
observação do mundo objetivo.
1.3. TEMPO E IMAGINAÇÃO
A partir de Watt, romance escrito em 1945, a escrita beckettiana, segundo Rabinovitz,
teria submetido o mundo físico, de maneira definitiva, aos processos da imaginação. De
acordo com ele, nos romances que se seguem, os objetos e experiências do “mundo do tempo
e do espaço” são introduzidos de modo a indicar aspectos de uma realidade “puramente
mental”. Deste modo, a obra desvia-se completamente da reprodução verossímil da realidade
exterior e a presença de elementos provenientes dela apenas interessam na medida em que
34
iluminem algum aspecto da realidade interior. Diante de tais romances, o leitor conscientiza-
se de que o tempo e o espaço operam no pensamento de maneira particular e que a
imaginação obedece a leis que não têm correspondentes na realidade física.
O discurso que introduz o personagem Watt na casa de Mr. Knott, embora qualificado
como “breve”, prolonga-se por cerca de trinta páginas. Trata-se da declaração de boas-vindas
do criado Erskine, a quem Watt substituirá em suas funções. Esta casa abrigará as deduções
lógicas, com as quais Watt falhará em penetrar numa realidade que parece indiferente aos
homens que a produzem e que nela habitam. Uma passagem, no longo discurso preparatório,
chama a atenção por sugerir uma súbita dissolução das categorias do tempo e do espaço e pela
indicação de uma realidade subjetiva mais complexa: “Uma tarde de terça-feira, no mês de
Outubro, numa bela tarde de Outubro. Eu estava sentado num degrau no pátio a olhar para a
luz na parede” (BECKETT, 2005, p. 48). A menção a esta determinada ocasião ecoa na peça
Aquela vez, composta trinta anos mais tarde: “tombado num degrau sob o pálido sol da manhã
não nunca o sol naqueles degraus outro lugar” (BECKETT, 2007a, p. 04).
Nas duas referências, o recorte de tempo evocado se revelará mais instável do que
qualquer “vez” datada pode suportar. A consciência que revolve os dados daquela voz, em
Aquela vez, forja para si um degrau com sol, visto que o degrau correspondente ao passado
não obtinha o sol, não sendo, portanto, condizente à questão que visa expressar. “ao diabo os
que passam boquiabertos ao vê-lo ali tombado sob o sol agarrado ao saco de dormir”
(BECKETT, 2007a, p. 06) o sol, desta forma, contrasta com o saco de dormir, iluminando
aos olhos dos cidadãos, a presença de alguém que não encontrou repouso e que tem
dificuldade em estabelecer um caminho. A frase de Erskine que se segue ao trecho citado
exacerba tudo o que a sua lembrança apresenta de subjetivo: “Eu era o sol, se é que tenho que
precisar, e a parede, e o degrau, e o pátio, e a época do ano, e a altura do dia, para só referir
isto”. Os dois discursos revelam mais do que um modo subjetivo de perceber o tempo e o
espaço, revelam que o “sistema pessoal” pode contar apenas consigo, devendo desenvolver
suas próprias representações para aquelas instâncias, quando se trata de registrar uma
experiência significativa. Erskine prossegue:
Era o mesmo sol e a mesma parede, ou tão pouco mais velhos, que a diferença
poderia facilmente ser menosprezada, mas estavam tão mudados que senti ter sido
transportado, sem reparar nisso, para um pátio completamente diferente, num país
desconhecido. Ao mesmo tempo, o meu cachimbo, visto eu não estar a comer uma
banana, deixou tão completamente de ser o consolo que me era tão certo, que o tirei
da boca para me assegurar de que não era um termómetro ou uma mordaça de
epliléptico (BECKETT, 2005, p. 50).
35
Watt é, desta forma, introduzido num mundo que, diante da incomunicabilidade que
pratica com os espíritos, conduz o indivíduo para longe da realidade das aparências e em
direção ao reduto da imaginação, onde se estabelece uma percepção de outro gênero. Como
na obra de Marcel Proust, bem conhecida por Beckett, a literatura não se contenta com o
“sumário de linhas e superfícies” que constitui a arte realista, mas torna-se a concretização de
uma outra vida, que cabe ser escavada e revelada. A “verdadeira vida”, como Proust a chama,
é a que permite a comunicação entre o “eu presente”, “o passado, do qual as coisas conservam
a essência e (...) o futuro, onde elas nos incitam a saboreá-lo de novo” (PROUST, 1995, p.
194). Este autor é capaz de admitir inclusive que uma arte verdadeira, comprometida com a
revelação daquela vida, venha a fracassar antecipando, de certa forma, a arte da indigência
de Beckett diante da revelação do que a “essência” do vivido apresenta de subjetivo e de
incomunicável.
A experiência descrita por Erskine dialoga ainda com a célebre passagem da
madeleine, presente no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, obra-prima de
Proust. A passagem constitui uma espécie de experiência mística, em que a “essência” do
passado irrompe os contornos do presente e se instaura no espírito do narrador como uma
sensação estranha, poderosa e prazerosa. A sensação fora deflagrada pelo saborear de um
pedaço do bolinho conhecido como madeleine, embebido em chá. Pressentindo que o sabor
gera algo em seu íntimo, ele é levado a decifrar aquilo que o invade. Percebe que a virtude
que procura não está na bebida, mas nele mesmo.
Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade.
Mas como? Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado
por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro para
explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? não apenas
explorar; criar. Está em face de alguma coisa que ainda não existe e a que só ele
pode dar realidade e fazer entrar na sua luz (PROUST, 1981, p. 45-6).
A inteligência se revela de pouco valor, neste momento, uma vez que a memória não
se mostra capaz de reconhecer na sensação uma experiência passada, e que o indivíduo se
percebe mobilizado como um todo, por algo que é mais forte do que suas faculdades. A
inteligência é análoga à chamada “memória voluntária”, na qual o sujeito busca o passado a
partir de um interesse presente. A revelação proustiana, pelo contrário, será deflagrada pela
“memória involutária”, que tem no acaso seu princípio gerador. O acaso de um encontro
neste caso, encontro com um sabor e um aroma é capaz de fazer ressoar dois instantes
diferentes no tempo. Independente da vontade do indivíduo, mas estimulada por sua
imaginação, a sensação traz de volta o instante vivido. E ela o faz porque, como um
36
ingrediente mais frágil e mais imaterial, concentra em torno de si elementos que a
inteligência, demasiado envolvida com seus interesses, não pôde captar. Assim, a “memória
involuntária” traz o passado em sua “essência”, ou seja, em sua inteireza, porque não filtrado
pelo utilitarismo da razão, de modo que:
Como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia
d’água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se
estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas,
personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso
jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da
aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo
isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá
(PROUST, 1981, p. 47).
A “memória involuntária” resgata o instante vivido, recuperando circunstâncias que
passaram despercebidas no momento em que foram usufruídas. Deste modo, revelam o
passado com maior integridade do que os retrocessos da memória voluntária, sempre movida
por um objetivo prático e, por isso, sempre restrita ao que a inteligência acessou naquele
tempo. A imaginação, mobilizada pela sensação, preenche o passado com sentido,
percebendo, através do encontro entre dois tempos, uma realidade mais profunda, cuja
expressão deve abandonar o desenvolvimento causal e cronológico, para revelar o que
ultrapassa as instâncias do tempo e do espaço.
Desta forma, a busca pelo esconderijo da infância, na voz A de Aquela vez, é, em
grande medida, um expediente estéril porque movido pelo desejo prático de recordar. O fato
de, conforme demonstrado, memória e linguagem repetirem inutilmente as investidas em
direção a este sítio, aliado à percepção do indivíduo de que a tal ruína “não importa”
(BECKETT, 2007a, p. 02); indicam uma tendência proustiana a desacreditar o recorte do
passado perseguido pela consciência. O instante evocado pela inteligência equivale ao degrau
e ao cachimbo de Erskine, em Watt, os quais são irrelevantes em relação à realidade percebida
pelo personagem. Em Aquela vez, os olhos do Ouvinte ainda estão abertos quando a voz A
indica: “aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína onde
criança você se escondia quando foi” (BECKETT, 2007a, p. 02). A partir daí, os olhos se
fecham e Ouvinte e leitor (ou espectador) são conduzidos pelas vozes a uma jornada em que
múltiplos extratos de tempo se enovelam, fundindo e fragmentando imagens, situações e
pensamentos. Assim, é possível afirmar que as revelações mais importantes se darão a partir
do que supera cada período datado, residindo na interação entre o conteúdo das três vozes.
Os olhos fechados do Ouvinte, que estimulam o aparecimento das vozes, como os
possíveis olhos fechados sugeridos pela voz B, revelam o pouco valor atribuído à realidade
37
visível. Ela aparece, entretanto, para constrastar com a realidade vivida num espaço interior,
durante cada etapa da vida, de modo que a voz B indica:
jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela nem dela
para você sempre paralelos como nas duas extremidades de um eixo sem nunca se
aproximar um do outro como duas leves manchas no limiar do campo sem nunca se
tocar ou algo assim sempre um espaço entre vocês por mínimo que fosse nunca
juntos como carne e sangue apenas duas sombras nem mais nem menos
(BECKETT, 2007a, p. 04)
Em B, a presença da companheira, longe de sugerir comunhão ou qualquer espécie
de afeto, estimula as idéias a respeito de incomunicabilidade e solidão. De maneira
semelhante, em uma emissão da voz C, o sujeito se depara com uma pintura a óleo no museu,
um retrato de alguém “famoso em seu tempo”, mas a visão deste objeto e o entretenimento a
que ele convida “alguma celebridade homem ou mulher ou criança célebre jovem príncipe
talvez ou princesa algum jovem príncipe ou princesa” (BECKETT, 2007a, p. 03) são
substituídos pelo reflexo da própria imagem no vidro do quadro. É o indivíduo enquanto
testemunha de si mesmo, de suas ações e do seu pensamento, que se destaca em cada
fragmento.
O preenchimento do campo da escuta por vozes que independem da vontade do
personagem em cena revela que, ao vivido, sobrepõe-se um processo de auto-exame, em que a
consciência analisa o que nela o tempo perpetrou. A velocidade desta voz, sua entonação
indiferenciada, seus volteios e sua fragmentação - elementos que turvam o entendimento -
evidenciam que uma parte considerável do vivido não é capturada pela consciência. Isto torna
a realidade percebida pouco confiável. Ao desvelar este fato, a peça de Beckett não pode mais
ser vista como reprodução de um evento objetivo. A imagem da cabeça do Ouvinte, a que os
espectadores assistem durante a performance do texto e o fato dela se manter de olhos
fechados, durante a maior parte do tempo, apontam para uma dimensão interior, o interior do
crânio, que, como na obra de Abraham van Velde (BECKETT, 1989, p. 36), é o espaço negro
em que as imagens mortas cintilam, fábrica do tempo, onde é possível parar o tempo.
A própria disposição da cena faculta um ângulo de visão usualmente impossível sobre
o palco. Ao solicitar "longos cabelos brancos esparramados, como se, vistos do alto, contra
um travesseiro" (BECKETT, 2007a, p. 02), o autor promove uma rotação na caixa cênica, de
modo que a frontalidade converte-se numa disposição que, normalmente, seria impraticável
para o espectador acomodado em seu assento. A respeito desta particularidade, Enoch Brater
(1987, p. 38) observa que Beckett introduz o espectador em um "novo mundo", onde a
38
matéria é "tão inconstante e variável como a substância de nossos sonhos - ainda que exista
um pesadelo escondido neste sonho".
Stanley Gontarski observa que, nos primeiros manuscritos da peça, o Ouvinte se
apresentava com a cabeça realmente apoiada em um travesseiro, como se estivesse na cama,
tentando dormir
11
. A temática do sono, introduzida pelos olhos fechados e pela sugestão de
travesseiro, não deve, portanto, insinuar uma situação realista, pois, se as imagens construídas
pelas vozes equivalem a sonhos, a cabeça flutuante, visualizada pelo espectador, também está
imbuída deste caráter. De acordo com Proust, que inicia seu romance com uma análise de
certos processos do adormecer:
Um homem que dorme, mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem
dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica num
segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa
ordenação, porém, se pode confundir e romper (PROUST, 1981, p. 12).
Sono e vigília são, para Proust e para Beckett, pretextos para uma situação em que a
percepção convencional do tempo se deixa diluir e insinuar um real que habita o interior do
crânio A contagem do tempo, no sono, se dá em termos de manter em movimento, ao redor de
si, as diferentes etapas da vida, os diferentes sujeitos e seus correspondentes mundos, num
processo bastante afim àquele experimentado em Aquela vez. Embora imiscuindo diferentes
temporalidades, imbricando-as, tornando-as mais flexíveis, o encadeamento diz respeito a
uma ordenação que garante uma certa inviolabilidade à consciência, sua auto-identidade
através dos anos vividos e a garantia de posicionar-se novamente ativo (exteriormente ativo) a
partir do instante em que despertar. Isto explica porque a abertura dos olhos do Ouvinte, em
cada um dos intervalos de silêncio, constitui o momento mais dramático da peça. Nele, seu
personagem é trazido de volta para o presente
12
.
Entre o abrir e fechar de olhos que ocorre três vezes, ao longo da peça -, o Ouvinte
se mantém em completa imobilidade, o que contrasta com a movimentação dos fragmentos de
vozes, das palavras, das lembranças. Estas parecem embalar aquele, a despeito das quebras,
que devem ser suavizadas por uma sugestão de continuidade. Tal continuidade pode ser ainda
percebida por tratar da voz de um mesmo indivíduo, de modo que o recurso da voz gravada,
11
In: Gontarski, S. E. The Intent of Undoing in Samuel Beckett's Dramatic Texts. Bloomington: Indiana
University Press, 1985.Apud APPEL, Aaron. A discussion of That Time. Univ. of Colorado. Disponível em:
<http://www.samuel-beckett.net/thattime.html > Acesso em: 17 de jan. de 2008.
12
ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
39
independente da sua fragmentação, permite ao personagem ouvir “de uma grande distância
(...) a voz que ele tem hoje”
13
. Desta forma, a evocação de circunstâncias, correspondentes a
etapas do passado, se fazem reunir por uma mesma voz, a voz presente, mas que se destaca do
seu portador de modo a parecer exterior a ele. Também as lembranças se encontram
fragmentadas, como se correspondessem a indivíduos diferentes, mas é possível reuni-las, em
certa medida, pela recorrência de determinados motivos, o que faz perceber uma persistência
individual ultrapassando esses fragmentos e que pode ser pensada como referente a um só
sujeito um sujeito no tempo.
O tempo das vozes é, portanto, um tempo subjetivo, que supera a ordenação
seqüencial e cronológica, permitindo que motivos dispersos, ao longo dos anos uma ruína,
uma hospedaria junto ao mar, o museu, o velho casaco verde deixado pelo pai , dialoguem
entre si, fornecendo vestígios de velhas disposições daquele sujeito que a cena apresenta. A
chegada do presente, enquanto tempo de espera, de impotência e de silêncio revela a
insuficiência daquele tempo, sua incapacidade de “ressuscitar os mortos” e de garantir
permanência. O indivíduo é mais do que a soma das suas vivências e mais do que a relação
entre elas. Ele é também o fluxo, que condiciona o presente a se afastar, a cada segundo,
como coisa passada, realidade que não pôde ser plenamente apreendida. Este tempo de
contemplação impotente aparece sem cessar, no conteúdo das vozes e, de forma mais
evidente, no silêncio da respiração. Ainda que instaure um tempo idealizado, tempo da obra
de arte, tempo da apreensão subjetiva, Beckett não se resigna com ele, indicando-o como uma
violação daquele outro tempo, aquele que assegura o contato mais direto com a realidade: o
tempo que sepulta, a todo instante, aquilo que constituiu uma existência e que ameaça a
realização do projeto artístico.
Em Watt, a experiência revelada por Erskine demanda uma reflexão, executada pelo
próprio, onde ele se pergunta o que de fato mudou a partir da sensação de desintegração do
tempo e do espaço. A resposta obtida indica uma divisão entre o indivíduo que percebe e o
fenômeno percebido: “O que mudou, se minhas informações estão correctas, foi o sentimento
de que houvera uma mudança, diferente de uma mudança de grau” (BECKETT, 2005, p. 50).
Deste modo, o episódio parece distinto da revelação proustiana, ao menos no que diz respeito
a suas conseqüências. No fim, importa menos o retorno iluminado do passado na
complexidade de suas cores do que o reencontro do indivíduo com seu espaço, a saber, o
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
13
ASMUS, Walter D.. Idem.
40
eterno confinamento em seu “sistema pessoal”. A revelação, ou a mudança, coincide com o
nada, uma vez que depende de uma realidade que se revela inalterável, de modo que Erskine
pode afirmar: “A coisa antiga que está onde sempre esteve, outra vez” (BECKETT, 2005, p.
50).
Quando abre os olhos, portanto, o personagem de Aquela vez, do mesmo modo que
Erskine, percebe-se isolado de toda expectativa de mudança, devolvido ao mesmo corpo, no
qual viveu cada instante da vida, mas no qual o sistema de percepção esteve desde sempre
encerrado consigo próprio. Como no romance Malone morre, escrito por Beckett em 1948, os
olhos que se abrem são os mesmos olhos com que “quando pequeno, bem pequeno, eu
interrogava as novidades, e depois as antigüidades, o céu noturno” (BECKETT, 2004, p. 33).
Os diversos períodos do tempo, bem como a fluidez entre eles, não são capazes de desviar a
consciência, definitivamente, de seu estado primitivo, silencioso, apartado dos objetos da
realidade exterior. Na peça Fim de Jogo, de 1957, o personagem Clov responde a uma
pergunta sobre o presente da seguinte forma: “Alguma coisa segue seu curso” (BECKETT,
1990, p. 98). Estes personagens ensaiam exilar-se do processo de alteração que acomete os
seres, mas apenas o fazem, ao pressentir algo de permanentemente não-cumprido, que se trata,
pois, da representação.
Após agitarem as linhas e superfícies de determinadas etapas do passado, as vozes de
Aquela vez manifestam uma consciência semelhante à dos personagens de outras obras. A
quarta aparição da voz C
jamais o mesmo depois daquilo jamais exatamente o mesmo mas isso não era
nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais pode ser o
mesmo arrastando-se ao longo dos anos atolado em seu eterno lamaçal murmurando a
si mesmo quem mais você jamais será o mesmo depois disto você jamais foi o mesmo
depois daquilo (BECKETT, 2007a, p. 03)
- indica o acometimento de uma mudança, após o episódio do reflexo no quadro do museu:
“jamais o mesmo depois daquilo”. Anterior à mudança (que aparece como mera sugestão,
referida sem ser descrita) e posterior a ela, permanece aquele que percebe a mudança (ou
apenas a possibilidade dela): “atolado em seu eterno lamaçal (...) quem mais”. O fragmento
atualiza a realidade do tempo e da alteração, mas mesmo a alteração de si é vista como um
fenômeno de superfície, já esperado e sem afastar o sujeito de sua posição: “mas isso não era
nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais pode ser o mesmo”.
Independente da natureza dos objetos (“se não fosse isso era aquilo”), o sujeito se
percebe arrastado pelo tempo. Como visto em Proust, a percepção de si ocorre por meio do
41
que se torna passado. Isolando-se do material depositado pelo tempo, o sujeito se percebe
destituído de realidade, como demonstra a emissão seguinte de C: “jamais o mesmo mas o
mesmo o quê quem pelo amor de Deus alguma vez você se disse eu em sua vida ora vamos”
(BECKETT, 2007a, p. 03). O que torna tão dramático o retorno do Ouvinte ao presente é,
precisamente, o silenciar das vozes. Neste instante, ele pode contar apenas com seus velhos
olhos e com sua velha respiração, que, apesar de serem velhos, são os mesmos da infância,
ante uma realidade, que independente dos seus contornos, é a mesma realidade impenetrável,
que tempo nenhum foi capaz de conhecer melhor.
O privilégio concedido à imaginação possibilita uma maior fluidez entre diferentes
etapas da vida de um sujeito, permitindo, por exemplo, que a juventude contraste com a
velhice. Esta disposição assegura a percepção de certos temas que se repetem como o
isolamento, como a insegurança diante do olhar dos outros -, sugerindo tendências subjetivas
que se aprofundaram, ao longo dos anos. Além disto, certas relações depõem contra a idéia de
evolução seqüencial, sugerindo um indivíduo que nunca pôde se desviar de velhos hábitos e
de questões para as quais nunca pôde achar respostas. Esta nova feição do tempo, tornada
possível pela hipertrofia do mundo interior, não expressa ainda a originalidade do sujeito
percebedor. Este tempo idealizado supõe a instauração de um sujeito a partir de uma
representação que não coincide com sua existência concreta. Esta representação aproxima-se
da matéria que constitui o sujeito quando se aproxima do tempo eternamente perdido aquele
que nega a possibilidade de toda imitação, e que pode ser percebido como fluxo para a morte.
O tempo gerado pela imaginação, nas obras de Samuel Beckett, é um tempo cuja marcação
supõe novas fronteiras, mas estas são estabelecidas sobre um terreno instável: o tempo que
apaga (ou mesmo que impede que se constituam) os contornos do sujeito e da obra de arte.
Examinaremos a seguir, como a compreensão do tempo está ancorada em um modo
específico de representar o sujeito e como a complexidade das criaturas se altera, à medida em
que as obras inscrevem nelas mesmas o tempo que a representação não pode alcançar.
SEGUNDO CAPÍTULO:
SUJEITO E TEMPO, ROMANCE E TEATRO
43
2.1. Molloy: o declínio da memória, o avanço da invenção
Entrei em casa e escrevi, É meia-noite. A
chuva fustiga os vidros. Não era meia-noite.
Não chovia.
(BECKETT, 1988, p. 172)
A chamada trilogia do pós-guerra, constituída pelos romances Molloy, Malone morre e
O inominável inicia-se no presente de Molloy, seu primeiro narrador, o qual afirma estar no
quarto de sua mãe e não se lembrar da maneira como chegou até ali. A narração que
desenvolve é menos fruto do seu desejo do que incumbência de outro alguém que o visita e
o obriga a escrever a respeito das coisas que o ocuparam no passado. Este passado torna-se
então o objeto da narrativa, implicando na configuração de um tempo e de um sujeito obra
da memória e da fantasia, que conduz a outros espaços além dos limites daquele aposento.
Como em Aquela vez, há um sujeito (Ouvinte) ocupando o presente, e um apelo ao passado
(ou à imaginação) para recuperação de significados que configurem a imagem de sua
existência. Também carente de conteúdos no presente (apenas a cabeça do Ouvinte e sua
respiração), a peça teatral ensaiará romper os limites do palco italiano para recuperar velhas
paisagens, que possam contribuir com informações acerca do sujeito que as percorreu. No
caso do romance, o presente se re-atualiza no encontro com um leitor; no teatro, cumpre-se
como “tempo da encenação”
14
.
O presente se deixa invadir, no primeiro parágrafo do romance, por novas formas
temporais como hipóteses destinadas a cobrir as falhas na memória. É deste modo que o
narrador se aventa a possibilidade de ter tido um filho, que lança a idéia de ter vivido um
amor verdadeiro e informa ter esquecido a ortografia e metade das palavras. “Aqui está o meu
começo”, afirma (BECKETT, 1988, p. 06). Começo da narrativa identificado, portanto, com o
princípio de um percurso, ou de uma existência. O passado não é algo ultrapassado, já o
revelava o ensaio sobre Proust, mas sempre passível de reencontro. A cada vez que ele é
retomado, ele faz entrever um novo indivíduo. Aqui este tempo e este homem se fazem
produzir pela narrativa, revelando o valor de que esta atividade está instituída nas obras de
Samuel Beckett.
Logo a seguir, Molloy vem contradizer-se, entretanto: “Era o começo, compreenda
bem. Ao passo que está quase no fim, neste momento”. Início e fim, agora, co-habitam este
14
De acordo com Lehmann (2007, p. 291): “tempo vivenciado em comum por vários sujeitos, no qual se
entrelaçam inseparavelmente uma realidade corporal e sensorial e uma realidade mental.”
44
primeiro parágrafo, lembrando o princípio dos contrários coincidentes, que Beckett
emprestara de Giordano Bruno, em seu ensaio sobre James Joyce, para tratar da vida na terra
como processo purgatorial: “O máximo e o mínimo de contrários particulares são os mesmos
e indiferentes. Calor máximo iguala-se a frio mínimo. Conseqüentemente, as transmutações
são circulares” (BECKETT, 1992, p. 325).
O quarto da mãe de Molloy, como espaço onde a narrativa se inicia e no qual ela deve
se encerrar, é o espaço habitado pela consciência, a qual enredará seu próprio passado,
constituído de fantasias e de hipóteses. Ausente o passado, podendo ele confundir-se com
uma ilusão ou uma mentira, as feições do sujeito se constituem, na narrativa, apenas desta
necessidade imposta e do ímpeto com que ele elabora a sua própria história. Neste sentido, o
palco de Aquela vez é também um espaço restrito, é uma cabeça humana contornada e
recortada pela escuridão. Tudo se concentrará ali. Os diferentes lugares e os diferentes
momentos evocados nascerão e morrerão no escuro. Cada uma das vozes apontará, em
determinado momento, a atividade fabuladora, que define sua própria existência. Deste modo,
“A: inventando sem cessar a história (...) inventando a si mesmo reinventando a si mesmo
pela milionésima vez” (BECKETT, 2007a, p. 06), “B: ou sozinho nas mesmas cenas
inventando-a” (BECKETT, 2007a, p.05), “C: (...) procurando assim inventá-la inventar a si
mesmo” (BECKETT, 2007a, p. 04).
No Purgatório de Joyce, ocorre a ausência de valores absolutos, como Vício e Virtude;
qualquer erupção em um destes pólos devendo ser purgada pela qualidade oposta
(BECKETT, 1992, p. 338). A consumação de qualquer valor é, neste caso, mera aparência.
De modo análogo, o máximo de verdade atribuído a um fato do passado de Molloy será
demolido pelo grau mínimo de falsidade que supõe. Este processo implica em movimento,
mas tal movimento é certamente circular, revelando o instante em que Molloy busca constituir
uma voz e um passado como, simultaneamente, um começo e um fim.
A atividade narrativa tende, no romance como na peça de teatro, para a auto-
consciência. Molloy confunde os planos da memória e da imaginação e, desta forma, faz ver o
que há de fictício em toda rememoração. As vozes A, B e C buscam uma localização no
passado, mas percebem o elemento fantasioso que reside em toda recuperação (representação)
de experiência. O reconhecimento, entretanto, também está enredado na narrativa, fazendo
com que o pensamento, como a lembrança, também seja percebido como uma fabulação,
como “mais uma daquelas velhas fábulas para que o vazio não viesse cobri-lo com seu
sudário” (BECKETT, 2007a, p. 03). Ao se perguntar: “Haverá mais panos de fundo, panos de
fundo mais fundos? A que panos de fundo dá acesso este pano de fundo?”; a voz narrativa do
45
último romance da trilogia responde para si mesma: “Estúpida obsessão da profundidade”
(BECKETT, 2002, p. 10). Revela-se, desta forma, que o sujeito encontra como única opção
seguir adiante, convencido de que os elementos que emprega para “aumentar” o
conhecimento de si têm atributos que implicam na ignorância da sua condição.
Ao se deslocar para um outro cenário, num tempo passado, Molloy vê duas figuras
que, como as vozes referentes à meia-idade e à juventude, em Aquela vez, chamam-se A e B.
Como duas criaturas distintas, uma pequena e outra grande, elas se deslocam, sem se ver, uma
em direção à outra, encontrando-se, finalmente, em uma depressão do terreno. O olhar do
narrador observa estes dois homens um deles segue em direção à cidade, o outro em direção
a regiões desconhecidas. Molloy indica a possibilidade de ter seguido um destes homens, não
sabe qual. Há um princípio de identificação, o que permite concluir que estes homens
correspondem a possíveis alteridades do próprio Molloy. Tal como se encontram e se
distanciam, marcando a descontinuidade inevitável entre as etapas de um indivíduo, este
reflexo desaparecerá, assim como surgiu: “Dos objetos prestes a desaparecer afasto o olhar
antes. Não, não posso olhá-los até o derradeiro instante. É nesse sentido que ele desapareceu”
(BECKETT, 1988, p. 10).
Também em Aquela vez não há uma evolução gradativa do jovem para o adulto ou
para o velho. As fases de transição foram subtraídas e as três etapas da vida tornam-se
fragmentos, revelando símbolos e imagens recrutados de diferentes etapas do passado, a partir
da ação da memória ou da atividade fabuladora. Neste sentido, o passado surge, como em
Molloy, da insinuação de figuras paradas ou em movimento, reunidas pelo timbre vocal e pela
alusão ao Ouvinte como “você”.
Molloy antecipa, deste modo, a idéia de um sujeito que assiste aos deslocamentos
isolados dos seus antigos “eus”, sob a forma de vagas recordações, sem poder precisar a
natureza do encontro entre tais criaturas, ou seja, o modo como elas evoluíram de um estado
para outro. Molloy assume que possa ter seguido um dos sujeitos, no que se assemelha à voz
A do texto teatral, em busca de uma sombra de sua infância. É difícil precisar o instante em
que a descrição do passado é abandonada e quando ela deságua nas contradições da memória
do narrador do romance. De modo semelhante, a busca em A se deixa entremear por reflexões
que podem muito bem ser referentes ao sujeito do presente: “ou conversando consigo mesmo
quem mais conversas imaginárias você era ainda uma criança” (BECKETT, 2007a, p. 03).
No trecho acima, a voz A refere-se a um jogo que parece corresponder à própria idéia
da peça: a de ouvinte para a própria voz. A dupla perspectiva temporal reforça a presença do
Ouvinte em cena. O passado e a voz, referências fundamentais da identidade, que nesta peça
46
tendem a se dispersar do sujeito, são afuniladas pelo pronome “você”, que instala o presente,
referenciando-o a partir da atualidade de uma brincadeira infantil. Deste modo, o sujeito que
um dia conversou consigo mesmo, só pode ser o presente Ouvinte, testemunhando sua própria
voz. As figuras visualizadas por Molloy e as imagens construídas pelas vozes de Aquela vez,
adquirem consistência, à medida em que refletem uma consciência presente, lançando mão
destes recursos para preencher o instante vivido com uma idéia de continuidade e de
companhia, como naquele romance de 1980:
Uma voz que fala do passado, a alguém deitado no escuro. Com uma alusão
ocasional ao presente e, o que é mais raro, ao futuro, como por exemplo, Vais acabar
como estás agora. E, em outra escuridão, ou na mesma, um outro, criando tudo para
ter companhia (BECKETT, 1982, p. 42).
Como a voz A de Aquela vez, a voz narrativa de Companhia ilumina o subterfúgio que
protege do vazio e da solidão. A voz construída pelo personagem do romance “deixa-o
depressa”. Na peça, a revelação do diálogo consigo antecede um dos intervalos, em que o
silêncio substitui as vozes e a escuta da respiração, assim como o aumento da luz, devolvem o
narrador à solidão de seu presente. Molloy, por sua vez, tentará preencher este instante
inevitável com palavras: “E estou de novo não diria sozinho, não, não é meu gênero, mas
como dizer, não sei, restituído a mim próprio, não, jamais me soltei” (BECKETT, 1988, p.
11). Tais palavras se anularão enquanto tentativa de apreensão do sujeito, em seu presente, e
ameaçarão a própria subsistência da narrativa: “seria melhor, ou tão bom, apagar os textos ao
invés de enegrecer as margens, raspar até que tudo fique branco e liso e que a besteira assuma
seu verdadeiro rosto” (BECKETT, 1988, p. 11).
Entre as primeiras páginas de Molloy e a conclusão de O inominável, romance de 1949
que encerra a trilogia, inúmeras criaturas passarão diante dos olhos do sujeito Molloy, A e
B, Moran, Malone, Sapo, Macmann, Basil, Mahood -, tal como as figuras tão fortemente
insinuadas em Aquela vez, constituídas de palavras e reveladoras do mecanismo que as
produz. Diante destes seres, ao mesmo tempo fascinantes, pelo mistério que suportam, e
evanescentes, pela facilidade com que se desintegram, Molloy admite: “Tenho é necessidade
de histórias” (BECKETT, 1988, p. 11). Ao final de O inominável, o percurso, através de todos
estes seres conduzindo a um possível abandono dos mesmos, indica a esperança de um
encontro com o objeto do desejo, o qual coincidiria com a ausência do objeto, com o puro
sujeito, cujo aparecimento implicaria na extinção da obra de arte: “talvez me tenham
transportado ao limiar da minha história, muito me admiraria, se ela se abrisse, vou ser eu, vai
haver silêncio, aqui onde estou” (BECKETT, 2002, p. 189).
47
Para o estudioso Aldo Tagliaferri (1992, p. 171), mais do que identificar este processo
com a auto-anulação dos contrários, conforme o Purgatório de Joyce, a negação deve
sobressair como a “tendência fundamental”. Deste modo, o trecho citado, como esperança
iluminada de nascimento do sujeito e de extinção da narrativa, recebe o seu julgamento: “não
sei, nunca saberei, no silêncio não se sabe, tenho que continuar, não posso continuar, vou
continuar”.
Diante do silêncio, o sujeito jamais poderá saber do que se trata ele mesmo, visto que
tal certeza só se dá a partir daquilo que é recusado, daí a necessidade de “continuar”. Apenas
desenvolvendo projeções - cuja própria natureza objetiva já as fragiliza -, o sujeito pode se
tornar presente pelo “ato de recusa” - “continuação direcionada (...) da negação de todos os
valores hipostáticos, de todas as reificações acumuladas por uma milenar tradição ocidental
para encobrir a insustentabilidade da nua subjetividade humana” (TAGLIAFERRI, 1992, p.
170).
A negação, como processo levado ao extremo pela obra de Beckett, indica a
resistência em contentar-se com qualquer das figuras com as quais se insinua a menor
identificação. Daí o fato delas se proliferarem ao longo desta obra, atualizando uma dialética
de quebra e de continuidade, que a estrutura de Aquela vez materializa por meio da escuta da
fragmentação de uma voz individual. As figuras construídas por essa voz também habitam
espaços e tempos particulares, mas todas se revelam modeladas a partir de uma mesma
substância, seja ela a voz, as palavras ou a ação de uma consciência presente.
O encontro entre estas criaturas é sempre um momento em que a atmosfera se adensa.
A agonia da morte contrasta com a expectativa de uma chegada ou de um nascimento, o que
torna a aniquilação uma experiência jubilosa, como a visão de uma mula morta, em Malone
morre, segundo romance da trilogia: “O fim de uma vida é sempre estimulante” (BECKETT,
2004, p. 50). Este animal reaparece na versão original inglesa de Aquela vez, numa emissão
da voz B: “on the towpath with the ghosts of the mules”
15
(BECKETT, 1990, p. 393). A
aparição comprova a peculiaridade de teimosia imputada a este animal, bem como a
observação feita em Malone sobre “a tendência dos enterrados de voltar à superfície, contra
toda a expectativa, em direção ao dia” (BECKETT, 2004, p. 51). Pensamento da morte que
assombra o vivente com a possibilidade de estar vivendo uma vida que não seja a sua e que o
ilumina ante a possibilidade de um repouso, onde não seja mais necessário fabular sobre si.
No final da primeira parte, ou seja, no final de sua retrospectiva, próximo ao seu
presente e ao seu fim, Molloy perdeu o movimento das duas pernas e move-se, floresta
48
adentro, como um réptil. Acabada a floresta, Molloy se descobre em um fosso - que, não por
acaso lembra a depressão onde as figuras A e B se encontraram antes -, de onde vislumbra os
contornos de uma cidade. Ele percebe torres que não consegue identificar ao certo. Inevitável
lembrar o sujeito referido pela voz A, de Aquela vez, este também em busca do passado, sem
se lembrar do nome da “torre ainda em pé entre cascalhos e urtigas onde você dormia”
(BECKETT, 2007a, p. 02-3). Há no romance o pressentimento de “que alguém viria em seu
socorro” e também uma “vontade de retornar à floresta”, a qual se revela uma falsa vontade.
Com a idéia de permanecer onde está, no limiar entre os dois espaços, à espera de socorro,
próximo do seu presente, mas apartado dele, a narrativa é interrompida, Molloy desaparece.
A segunda parte do romance sugere um segundo narrador, Moran, cuja primeira
distinção apresentada com relação a Molloy é uma memória coerente e afirmativa: “Era um
domingo de verão. Estava sentado no meu jardinzinho, numa poltrona de vime, um livro preto
fechado sobre os joelhos. Deviam ser cerca de onze horas” (BECKETT, 1988, p. 89). Este
narrador, como o primeiro, também parte do presente: “É meia-noite. A chuva fustiga os
vidros. Estou calmo. Tudo dorme” (BECKETT, 1988, p. 89). Deste modo, a segunda parte
constitui a redação de um relatório relativo a uma missão que fora confiada a Moran: a busca
de Molloy. O narrador é possivelmente aquele outro que Molloy esperava confiante em seu
fosso. O que poderia servir para ampliar os pontos de vista sobre o passado deste personagem,
preenchendo as lacunas deixadas pela primeira parte, revela-se, entretanto, uma esperança vã.
Moran é uma espécie de agente secreto e descreve da seguinte forma seu ofício de ir
em busca de homens:
O homem também está lá, em alguma parte, vasto bloco modelado por todos os
reinos, simples e sozinho entre os outros e tão despido de imprevisto como um
rochedo. E neste bloco, em alguma parte, acreditando-se um ser à parte, está
sepultado o cliente. Qualquer um pode fazer o trabalho. Mas me pagam para
encontrá-lo”(BECKETT, 1988, p. 107).
A descrição faz ver que a busca de Molloy, efetuada por Moran, é menos uma missão
secreta do que um novo jogo com que se ocupa a narrativa. É possível encontrar no trecho
citado uma alusão ao ofício literário, atividade embuída do propósito de encontrar o homem.
Este expediente, entretanto, pode ser desempenhado por “qualquer um”, revelando-o também
como a busca, empreendida por todo homem, de valores que configurem a sua identidade.
Ora, esta empresa apreensão de si -, como os narradores de Beckett (e o ensaio sobre
Proust) o revelam, tem de se dirigir ao passado. Dando indícios de como a narrativa se
15
“na trilha junto do rio com os fantasmas das mulas” - tradução livre.
49
constrói e de como nela está implicada a construção de um sujeito auto-referente, a obra já
revela o que será mais diretamente expresso em O inominável: que o “progress beckettiano”,
conforme Tagliaferri (1992, p. 169), “não está direcionado para um produto, o maquinismo da
arte, mas parte de um maquinismo para tornar seu retorno impossível”.
A missão de Moran perde sua sustentação, sua narrativa revela-se um delírio,
impossível de ser completada. A instabilidade toma conta deste espaço e indica a
transmutação de Moran em Molloy: perna que deixa de se dobrar, incertezas que passam a
povoar seu discurso, encontros que se parecem com os de Molloy, objetos que se repetem,
memória que dá sinais de falhar. Mais do que duas progressões diferentes, a obra revela um
“espelhamento”. Apesar de circundados por diferentes circunstâncias, as duas partes do
romance fazem ressoar questões semelhantes, revelando uma matéria permanente sob os
traços dos dois personagens:
Mas bastava que começasse a lançar um pouco de clareza, quero dizer nesta
obscura agitação que tomava conta de mim, com a ajuda de uma imagem ou um
julgamento, para me lançar em outras preocupações. E um pouco depois tudo devia
recomeçar. E até nesta maneira de agir eu custava a me reconhecer (BECKETT,
1988, p. 145).
A obra apresenta seus personagens que, como o Ouvinte de Aquela vez, partem em
direção a um tempo passado, o qual, ao preencher a lacuna a respeito de suas identidades,
poderá preencher a narrativa com sentido. A presença de Molloy assegura uma certa
estabilidade a este processo, “uma personagem identificável, um nome seguro que nos protege
de uma ameaça mais turva” (BLANCHOT, 2005, p. 310). Com o início do percurso de
Moran, o leitor é encorajado a acreditar que aquele passado (e, com ele, um sentido mais
evidente para esta narrativa) será alcançado. Mas o que se pronuncia com relevo crescente é o
presente do narrador tempo que o aproxima de Molloy, sem identificá-los, nos entanto -,
povoado por preocupações e hesitações. Trata-se de uma obra reveladora de personagens que
questionam sua própria subsistência no tempo da narrativa. Talvez por isso eles permaneçam
como figuras instáveis, imprecisas, mas irremediavelmente presentes, atuais, sobreviventes à
decepção das expectativas quanto ao sucesso de suas narrativas.
50
2.2. Malone: o tempo como brinquedo
As criaturas elaboradas por Malone, o narrador que vive seus últimos dias deitado em
uma cama a fabular, também servem para revelar com mais força a condição de seu criador:
Me pergunto se não é sobre mim que estou falando. Será que, até o fim, vou
ser incapaz de mentir sobre algum outro assunto? Sinto a escuridão se
concentrando, a solidão se preparando, onde me reconheço, e sinto que me
chama essa ignorância, que poderia ser linda mas é apenas covardia
(BECKETT, 2004, p. 21).
Suas histórias povoam o instante que antecede sua morte, que ele supõe próxima: a
vida como um ínterim de fabulações, as quais, conforme revelado pelas vozes de Aquela vez,
procuram se desviar de um estado de vazio insuportavelmente real. Em Malone, a narrativa
avança falsamente às custas da afirmação de que se tratam de histórias de outrém. O passo
adiante, nesta direção, retira seu movimento da própria negação da narrativa. Ir para longe do
vazio corresponde a fabular, mas apenas na medida em que o narrador não se reconheça no
seu produto.
A coisa avança. Nada parece menos comigo do que esse garoto razoável e
paciente, se esforçando sozinho durante anos para lançar um pouco de luz
sobre si mesmo, ávido pelo menor clarão, fechado aos atrativos da
escuridão. Aqui sim está o ar que eu preciso, longe da neblina substanciosa
que está acabando comigo. Só vou voltar para essa carcaça para saber qual é
a sua hora (BECKETT, 2004, p. 27)
Conforme as circunstâncias que diferenciam Molloy e Moran apenas falsamente
desviam a atenção do leitor da questão fundamental que é o fracasso na representação do
sujeito; em Malone, os exercícios narrativos não entretêm o leitor da falta de sentido que o
narrador experimenta com relação a si e à sua existência. O leitor é então esse terceiro
personagem que, conforme Andrade (2001, p. 63), sobrepõe-se àqueles da obra. A narrativa
de Malone, como brinquedo, pode iludi-lo temporariamente, mas aquele que lê perceberá a
tensão entre estas formas e a urgência de um personagem em cumprir seu tempo de vida,
esquivando-se das lacunas em seu entendimento. Isto se dá como se a vida, para ser
suportavelmente cumprida, tivesse de se afastar de si mesma (“Só vou voltar para essa
carcaça para saber qual é a sua hora.”) Ele não seria capaz de apenas ver passar o seu tempo
a vida como uma espera solitária pois desta forma não perceberia o tempo não havendo
51
sucessão de formas, tudo pareceria um mesmo instante e a morte como a única meta estaria
infinitamente longe.
Andrade (2001, p. 117) observa como a morte para Malone corresponde a um “des-
nascer”, “um apagar de si qualquer sinal de vida”. Desta forma, o autor afirma que a
oscilação entre a posição fabuladora e a posição observadora e não-participante de Malone
implica numa “alternância” própria, uma temporalidade que não obedece aos ciclos naturais.
Uma imagem, em Aquela vez, que expressa bem essa divisão é a apontada pela voz B, de um
ser humano que não age, paralelo a uma plantação de trigo que amadurece. Ao elaborar suas
figuras, Malone elabora sua própria percepção do tempo, baseada na idéia de que o tempo
passa e de que a vida se cumpre em experiências. A superficialidade deste estado é enfatizada
pela evidência de uma realidade subjacente e que corresponde ao tempo do fim, o qual não
cessa de fluir, mas que não se permite conhecer, como a totalidade do “eu”. As histórias
tornam-se um anteparo inseguro, uma vez que não asseguram a aderência e não protegem do
abismo de profundidade indefinível.
Sem ir tão longe, quem esperou bastante vai ficar sempre esperando, e
passando um certo lapso de tempo, vem a hora em que nada mais pode
acontecer e ninguém mais virá e tudo está terminado exceto a espera que se
sabe em vão (BECKETT, 2004, p. 85-6).
Malone torna-se o que Andrade (2001, p. 111) chama de “narradores-narrados”, uma
vez que convida o leitor não apenas a ler suas fábulas, mas a compactuar com ele o tempo de
uma espera: aquela da morte, aquela do fim da leitura, que são coincidentes. Deste modo, o
final do romance faz coincidir, no tempo da leitura, o assassínio dos personagens por um
enfermeiro sugestivamente chamado Lemuel (que evoca o nome do autor) com a morte do
narrador agonizante, que abandona seu lápis (e com ele os personagens) no momento em que
o bastão do assassino faz mais uma vítima (e ele também encontra a morte):
nem com seu lápis nem com seu bastão nem
nem luzes luzes quero dizer
nunca coisa alguma
mais nada
nunca mais (BECKETT, 2004, p. 145)
Por mais desacreditadas que sejam as fábulas que um sujeito se conta durante a vida, a
ficção se alimenta destas vozes que depõem contra ela mesma. Assim, o ressurgimento das
vozes, após o intervalo de silêncio, iniciando a segunda parte de Aquela vez, faz com que o
Ouvinte feche os olhos, logo após as primeiras palavras. Apesar da tensão entre pensamentos
52
no presente e lembranças do passado, elas oferecem um alívio ao sujeito que parece recuperar
com as vozes um estado de repouso, alimentando sua espera com o produto de sua própria
“voz narrativa”.
O fato de Beckett solicitar que a segunda parte se iniciasse mais suave do que a
primeira enfatiza a textura musical que o texto tende a adquirir. Esta textura envolve Ouvinte
e também espectadores numa experiência quase encantatória, apresentando, através dos
elementos do teatro, a experiência de que a narrativa sobrepõe-se ao tempo real não por seu
conteúdo, mas por seu próprio processo. “Viver e inventar. Eu tentei. Acho que tentei.
Inventar. Não é bem essa a palavra. Viver também não é” (BECKETT, 2004, p. 28). O
inventar, como se fosse um processo fisológico, acompanha o indivíduo, interferindo em seu
ritmo, ninando sua espera pela morte.
Como são três as vozes de Aquela vez, são também três as histórias que Malone se
propõe a contar: “vou começar (...) com o homem e a mulher. Essa vai ser a primeira história,
não há enredo para duas. Só vai haver assim, no fim, três histórias, essa, a sobre um animal, e
a sobre uma coisa, uma pedra provavelmente” (BECKETT, 2004, p. 12). Não se percebe,
entretanto, ao longo do romance, o cumprimento desta proposta, mas o avanço da fabulação,
no sentido de representar três fases da vida do homem, como a juventude, a maturidade e a
meia-idade, em Aquela vez.
As semelhanças entre estas duas obras transparecem ainda na elaboração da história de
juventude, a primeira produzida por Malone, que situa o personagem Sapo, como o
personagem da voz B de Aquela vez, junto da natureza. Ambas as histórias apontam para a
possibilidade das criaturas se imiscuírem na tranqüilidade da vida silvestre, sendo Sapo,
caminhando, “uma grande penugem que o vento arranca do lugar onde está” (BECKETT,
2004, p. 30) e o jovem de Aquela vez, com sua companheira, “duas leves manchas no limiar
do campo” (BECKETT, 2007a, p. 04). Esta possibilidade é aniquilada porque, como constata
Malone: “Há uma escolha de imagem”. Deste modo, a pura exterioridade encontra-se
inacessível posto que ela só pode se constituir de imagens produzidas pela consciência,
apontando a “neblina substanciosa” que se adensará, em períodos posteriores, ao redor do
sujeito.
Os dois extratos de juventude já manifestam um confronto entre luz e escuridão que
opõe o mundo visível à atividade da consciência, à impossibilidade de exorcizar o vazio que a
ameaça por meio de lembranças e da narrativa. Assim, o personagem de Malone é visto
“errando pela terra, passando da sombra para a claridade, da claridade para a sombra”
(BECKETT, 2004, p. 43) e o de Aquela vez fixa-se, muitas vezes, à oposição entre exterior e
53
interior “fixando o azul ou os olhos fechados azul escuro azul escuro” (BECKETT, 2007a, p.
04). Estas criaturas são a expressão de um indivíduo que se afasta do contato com a realidade
exterior e caminha para o estado de isolamento de seu narrador ou de seu eu presente. A
situação passada, no romance, serve para contrastar com o presente do narrador, como na
descrição das paradas reflexivas daquele tempo: “essas paradas eram de curta duração, pois
ele ainda era jovem” (BECKETT, 2004, p. 43). E servem, em Aquela vez, para abrigar
pensamentos que dizem respeito ao presente do Ouvinte: “até concluir que essa é mais uma
das histórias que você costumava inventar para deter o vazio” (BECKETT, 2007, p. 03).
É bastante sugestiva a posição junto à janela que aparece em ambos os textos como o
instante que antecede uma observação totalmente desviada da realidade visível. Em Malone:
“De pé, diante da alta janela, eu me entregava a essas coisas, esperando que terminassem, que
minha alegria terminasse, tenso em direção à alegria de minha alegria finda” (BECKETT,
2004, p. 44). Em Aquela vez: “ou junto à janela no escuro a ouvir a coruja a cabeça vazia e aos
poucos difícil acreditar cada vez mais difícil acreditar que você tenha alguma vez amado a
alguém ou alguém a você” (BECKETT, 2007a, p. 03). Os eventos externos dão lugar à
percepção da realidade invisível, a atenção ao ritmo que subjaz a toda fabulação, evidente no
definhamento do narrador Malone - habitante das mesmas trevas que o jovem Sapo
atravessava com agilidade - e na respiração do Ouvinte - “audível, lenta e regular”, a qual
povoa o vazio deixado pelas vozes. As histórias são temporariamente abandonadas, tal como o
mundo visível, mas o vazio e o escuro que elas insinuam apresentam um outro universo, a
realidade da mente e o modo com ela percebe o mundo circundante. A narrativa do romance e
a narrativa da voz B alcançam esta realidade e a incluem como aquilo que ameaça a confecção
da fábula, mas que, ao mesmo tempo, justifica sua existência.
Como os olhos do narrador se deixam fechar muitas vezes, como a consciência tende a
se afastar da realidade externa, a transição entre as diferentes fases do mesmo indivíduo
ocorre segundo quebras. Estas indicam antes um tempo pessoal, de percepção e de memória,
do que um tempo empírico, de desenvolvimento e transformação. Em Malone morre, como
em Aquela vez, a passagem à idade adulta é acompanhada de uma mudança de cenário do
campo para a cidade. No primeiro, a alteração implica inclusive na mudança do nome, de
Sapo para Macmann, e seu aparecimento se dá sob a forma de um re-apoderar-se:
Levei um tempão para encontrá-lo, mas o encontrei. Como o reconheci, não faço a
mais vaga idéia. (...) Agora, ele é meu. É um ser ainda vivo e, inúltil dizer, do sexo
masculino, vivendo essa vida crepuscular que é como uma convalescença, se minhas
lembranças são minhas, e que você saboreia perambulando depois do sol, ou sob a
superfície , nos corredores do metrô (BECKETT, 2004, p. 67-8).
54
O narrador, mergulhado em suas próprias sombras, deixou escapar um período da vida
do seu personagem. Reencontrado, ele agora goza menos da claridade do que o jovem Sapo,
que era visto muitas vezes sob o sol. O homem de meia-idade vive uma “vida crepuscular”,
rodeado de sombras e de profundidade. De mesmo modo, a voz B, a da juventude, em Aquela
vez, é a única a vislumbrar um céu azul, sendo o tempo em A “dia cinzento” e em C, “sempre
o inverno”. O reconhecimento se dá por meio da correspondência entre pensamentos, pois,
como assinala Andrade (2001, p. 131), “o menino que assistia o mundo à sua volta, curioso
mas sem grande envolvimento, encarna uma visão de mundo, um desengajamento voluntário
que cabem muitíssimo bem na descrição de seu sucessor urbano”.
A troca de ambientes é que induz à percepção da passagem do tempo. Em Aquela vez,
a voz C é a correspondente urbana de B, entrando em museus, correios e bibliotecas - “uma
coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto” (BECKETT, 2007, p. 05). Num
novo sítio, entretanto, esta voz encontra-se com a de seu passado, na medida em que, como
ela, percebe a vida como um acúmulo de histórias que não puderam desviar a consciência do
encontro com a sua condição primeira: “toda a sua vida uma sucessão de reviravoltas na
verdade uma única reviravolta a primeira e última” (BECKETT, 2007, p. 03).
Antes que Malone deposite o seu personagem em um terceiro e último cenário, o de
um asilo, esse personagem encontra a chuva, que se parece com aquela que acompanha a
existência do velho, na voz C de Aquela vez. A chuva é o incidente, nas duas obras, que
surpreende o personagem e que faz ressaltar a falta de um abrigo. Em Aquela vez, o
personagem refugia-se em lugares públicos. Em Malone, ele se deita no chão, na esperança
de manter seca uma parte de si. Tudo indica que este acontecimento diz respeito a fenômenos
de outra natureza:
Era uma chuva pesada, fria e vertical, o que fazia Macmann supôr que seria
breve, como se existisse alguma relação entre a violência e a duração, e que
ia poder se levantar em dez, quinze minutos, a frente do corpo toda
empoeirada. Esse era o tipo de história que ele vinha se contando a vida
toda, sempre se dizendo, isso não deve durar muito tempo (BECKETT,
2004, p. 83).
O tempo é sempre ruim para a voz C (“sempre o inverno então sempre a chuva”), de
modo que ela implica em um estado constante de espera, ligado à relação recorrente com
ambientes estranhos. A chuva adia a partida, acentua o desconforto de estar “gelado e
molhado”, tendo de se esquivar dos olhares alheios e sua duração intensa revela que este
55
estado é predominante nesta fase da vida. Malone reflete sobre as primeiras manifestações
desse estado, bem como cogita a possibilidade de ter reagido diferentemente a ele:
Em lugar de se espantar que a chuva fosse tão violenta e tão longa, ele
preferia se espantar por não ter compreendido, desde as primeiras gotas, que
ia chover longa e violentamente, e que não era para parar e se estender no
chão, mas, ao contrário, continuar reto, às cegas, apressando o passo o mais
possível, já que ele era apenas humano, neto e filho de seres humanos
(BECKETT, 2004, p. 85).
O movimento, tal como aparece no fragmento acima, como um atributo do “humano”,
é especialmente levado em conta na obra de Beckett. Junto do repouso exterior, forma mais
um dos pares contrários que permeiam seus romances e peças de teatro, tal como o par luz-
escuridão. Basta lembrar do conteúdo das vozes A e C, de Aquela vez a primeira retomando
insistentemente o caminho em direção ao refúgio da infância; a segunda, fugindo do mau
tempo e do olhar alheio, adentrando espaços públicos. Na voz A, como em Molloy, o
cumprimento de um percurso confunde-se mesmo com a idéia de rememoração, uma vez que
a busca de dados referentes ao passado se dá por meio de um deslocamento tortuoso,
descontínuo, revelando antes a eminência dos obstáculos do que a obtenção do objeto
desejado. O narrador daquele romance revela ainda a dificuldade em conciliar movimento e
reflexão, esta última coincidindo com repouso: “Esqueci para onde ia. Parei para refletir. Para
mim é difícil refletir em movimento” (BECKETT, 1988, p. 24).
Apesar de Malone que passou “a vida caminhando, exceto nos primeiros meses e
desde que estou aqui” (BECKETT, 2004, p.13) lembrar sua qualidade de humano, seus
atributos não devem permitir supor uma alegoria da “condição” da espécie. O ensaio sobre
Proust já condenava o recurso da alegoria como manifestação de conhecimento “puramente
convencional e extrínseco”, preferindo o objeto como “um símbolo vivo, mas um símbolo de
si mesmo” (BECKETT, 1986, p. 64).
Segundo Adorno (1985, p. 55-6), autor de um ensaio sobre a peça Fim de Jogo, o
conceito de “condição humana”, proveniente dos existencialistas, consiste numa “abstração
não consciente de si”, pois seu projeto de unir uma noção a priori à concretude disfarça o que
ele implica de transcendente. Este conceito, portanto, obscurece as particularidades temporais
de uma existência em um conceito permanente. Para o filósofo, a obra de Beckett não omite o
que toda existência apresenta de temporal, extraindo desta experiência tudo que a impede de
universalizar-se, exaurindo-a em “puro auto-posicionamento”. Daí o personagem de Malone
não se reconhecer na atitude manifesta com relação à chuva nem tampouco ter sido capaz de
56
agir conforme o esperado de um humano o sujeito não se reconhece na própria fábula e não
se reconhece perante os seus semelhantes. A ontologia subsiste, assim, segundo Adorno, em
abstrações não cumpridas concretamente e a existência se torna absurda porque passa a se
consumir enquanto “nua auto-identidade”.
A voz A alcança a quietude exterior ao descobrir-se em um sítio semelhante ao sítio da
voz B, uma voz que faz contrastar um estado de repouso e isolamento com um pensamento
em perpétuo movimento: “imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir sem
nunca terem se movido como as duas esferas de um haltere exceto as pálpebras e de quando
em quando os lábios para jurar amor e tudo ao redor também imóvel onde quer que fosse nada
se move” (BECKETT, 2007a, p. 05). A voz A, em sua referência ao abrigo da infância,
contamina-se ainda pelo movimento da voz C, que corresponde a entrar nos lugares sem ser
visto a lembrança infantil do homem maduro encontra assim uma atitude da velhice. C
apresenta a ação de alguém que adentra um espaço público (museu, biblioteca, correio) e se
senta. Na primeira parte, esse assento é de pedra, como o de B e o recordado por A, o que
fortalece o caráter de imobilidade que envolve esses personagens, como se eles se investissem
das qualidades do minério. O repouso físico é, entretanto, o início do deslocamento mental:
“quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde você mofava de quem as
misérias que o deixaram assim” (BECKETT, 2007a, p. 04).
Estas evidências apontam para o fato de que o sujeito de Aquela vez tende para a
posição dos narradores da trilogia. Prisioneiros de um campo interior, toda iniciativa de
projeção parece fadada ao fracasso. Isto se dá porque este campo, o único possível, de onde
partem tais projeções, não é “confiável” nem “auto-sustentável”, como assinala Andrade
(2001, p. 49). O campo interior é inseguro porque, ao contrário das representações efetuadas
pela memória e pela narrativa, não possibilita frear o tempo. Ali, cada instante é
experimentado sob a ação do desconhecido, do incognoscível, que não pode ser medido e,
portanto, não pode ser retrocedido, recuperado ou ultrapassado.
57
3.3. O inominável: no lugar de personagens, voz
O narrador da terceira obra da trilogia, se é que pode ser chamado assim, não gozará
do sítio privilegiado, onde Molloy e Malone podiam se fixar, no presente, para empreender
suas narrativas. “Agora, onde? Agora, quando? Agora, quem?” (BECKETT, 2002b, p. 07) são
as perguntas que abrem O inominável, revelando a instabilidade radical que contrasta com as
afirmativas iniciais dos dois romances anteriores. Não há lugar ou personagem, nenhum
quarto ou narrador decrépito. Não há referência ao tempo presente, mas o presente instaurado
na forma de questões, de instabilidade, de subtração. A própria ação da escrita, que se apoiava
nas referências de Molloy e Malone a papel e lápis, encontra-se aqui problematizada, como
enfatiza Dorrit Cohn (1978, p. 177). Isto se dá porque a posição em que o sujeito se descreve
inviabiliza a ação de escrever: “estive sempre sentado no mesmo sítio, mãos no joelho, a olhar
em frente” (BECKETT, 2002b, p. 10). Pouco mais à frente, não é sem ironia que a voz
narrativa anulará a possibilidade de uma instância causal, um ato que justifique a escritura da
obra realisticamente: “Eu é que escrevo, eu que não posso levantar a mão do joelho. Eu é que
penso, só o bastante para escrever, é minha cabeça que está longe” (BECKETT, 2002b, p.
22).
A ruptura do produto narrativo com a figura de seu autor antecipa a separação entre o
indivíduo e sua própria voz, em Aquela vez o “tensionamento estratégico” entre imobilidade
física e dispersão vocal apontado por Süssekind (2002, p. 114) como a forma com que
“Beckett singulariza e afirma a instabilidade estrutural do próprio método da escrita”. Ao
anular todo vestígio de motivação realista, O inominável passa a habitar o impasse que
antecipa e impede o projeto narrativo: a impossibilidade de repouso e de posicionamento no
processo de experimentação da própria identidade. Este impasse ocupa grande parte do
tempo, nas emissões da voz C: “ quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde
você mofava de quem as misérias que o deixaram assim ou isso foi uma outra vez”
(BECKETT, 2007a, p. 04).
Não há ponto de referência para o começo. Enquanto Malone sabia-se deitado em seu
leito, O inominável aventa hipóteses para o que poderia “ter começado assim”. A busca de um
início para a narrativa coincide com a busca de um ponto onde situar o sujeito. Como a obra
se constrói a partir deste instante jamais encontrado e como o seu desejo de silenciar essa
procura não se deixa calar - “O mais simples seria não começar. Mas sou obrigado a
continuar” (BECKETT, 2002b, p. 07) -, os limites da obra se estendem para os limites de uma
existência. Deste modo, a produção da narrativa não se deixa ver como um evento cumprido
58
no tempo nem como estabelecedora de um intervalo fictício de tempo; mas como um processo
que acompanhou toda a existência do sujeito.
O pior é o fim, não, o pior é o começo, depois o meio, depois o fim, no fim o pior é
o fim, esta voz que, o pior é cada instante, tudo isto se passa no tempo, os segundos
passam, uns a seguir aos outros, aos solavancos, não fluem, os segundos não
passam, chegam, zás, trás, pás, entram em nós, fazem ricochete, deixam de mexer,
quando não se sabe o que se há-de dizer fala-se do tempo, dos segundos, há quem os
junte uns aos outros e faça deles uma vida, eu não posso, cada segundo é o primeiro,
não, o segundo, ou o terceiro, tenho três segundos, e mesmo assim, não é todos os
dias (BECKETT, 2002b, p. 161).
Este sujeito se pergunta: “Por que me terei feito representar no meio dos homens, à luz
do dia?” (BECKETT, 2002b, p. 16), revelando a impossibilidade de cumprir a proposta
iluminada de dizer eu “sem pensar nisto”. Os personagens de obras anteriores são convocados
e desacreditados: “Esses Murphy, Molloy e outros Malone não me enganam. Fizeram-me
perder o meu tempo, desperdiçar as minhas forças, ao permitirem-me falar deles, quando só
devia falar de mim para me poder calar” (BECKETT, 2002b, p. 25). A obra é movida pela
expectativa de pronunciar a palavra definitiva a respeito de quem fala, mas tal não parece
possível a não ser afastando-se do ponto em que a consciência se consome.
Porque ir mais longe é sair daqui, encontrar-me, perder-me, desaparecer e
recomeçar, primeiro desconhecido, depois a pouco e pouco como sempre fui, noutro
lugar, onde direi a mim mesmo que sempre estive, um lugar de que nada saberei, de
que nada poderei saber, por me ser impossível ver, mexer, pensar, falar, mas de que
pouco e pouco, apesar desses impedimentos, saberei qualquer coisa, só o suficiente
para ele se revelar o mesmo de sempre, aquele que parece ter sido feito para mim e
não me quer, aquele que pareço querer e não quero, à escolha, aquele que talvez eu
nunca venha a saber se me engole ou me vomita e que talvez não seja mais que o
interior do meu crânio longínquo, por onde antigamente vagueava, agora estou
imóvel, perdido de pequenez, ou a empurrar as paredes, com a cabeça, as mãos, os
pés, as costas, o peito, murmurando sempre as minhas velhas histórias, a minha
velha história, como se fosse a primeira vez (BECKETT, 2002b, p. 24).
A voz narrativa reconhece em suas “velhas histórias” o mesmo desejo de auto-
posicionamento que novamente não se quer calar. Compreende as armadilhas implicadas no
processo de construção da narrativa, que são as armadilhas do caminho de busca da própria
identidade. Percebe que a própria existência é constituída de um revolver-se na linguagem,
divisando num período perdido no tempo o momento em que assumiu para si a primeira
pessoa narrativa. Comprova, a seu modo, a tese de Benveniste (1976, p. 225) de que não pode
ser situado no homem um período de auto-suficiência em que este pudesse se encontrar
privado da linguagem. Tal estado inicial que talvez permitiria o estabelecimento do tão
59
desejado silêncio é uma ilusão. A linguagem é quem “ensina a própria definição do
homem”, o que leva a crer que as questões suscitadas pela narrativa nascem com a linguagem
e, embora permaneçam sem resposta, são a partir delas, e somente assim, que a voz narrativa
e a identidade do homem podem se constituir.
É deste modo que evidencia-se que não há outro caminho senão “continuar”,
aventando-se hipóteses para o início, menos pela crença que aquelas possam se confirmar do
que pela certeza de que nenhuma delas poderá restituir o sujeito a si, trazê-lo de volta à sua
casa. Impossível reconduzir aquele que só se constitui fora de seu abrigo e que, no silêncio de
seu repouso, jamais se deixou abandonar pelas vozes ouvidas no caminho. “Falaram-me dos
homens, da luz” (BECKETT, 2002b, p. 16).
Assim como se extinguem as diferenças entre interior e exterior _ “sou feito de
palavras, das palavras dos outros, que outros, e o lugar também, o ar também, as paredes, o
chão” (BECKETT, 2002b, p. 148) -, a voz narrativa é ora referida como falada; ora, como
ouvida. O relatório que outrora fora cumprido pelo narrador Moran, aqui é apresentado ao
inominável por um de seus “emissários”, Basile. Não é necessário, entretanto, que este abra a
sua boca. Apenas com seu olhar, ele é capaz de transformar o inominável naquilo que deseja,
lembrando uma fala de Malone: “Muitas são as formas em que o imutável busca alívio para
sua falta de forma” (BECKETT, 2004, p. 32).
Quando mais tarde o inominável vem a se transformar em Mahood, revela-se mais
uma criatura forjada pela narrativa, mas com a diferença de que agora o processo se inverte e
é a criatura que conta ao narrador a sua história: “Era ele quem me contava histórias sobre
mim, vivia para mim, saía de mim, voltava para mim, entrava em mim, cobria-me de
histórias” (BECKETT, 2002b, p. 34). Da mesma forma, o teatro de Beckett reúne
personagens envolvidos com a narração de sua própria história, como Hamm, de Fim de
Jogo, e personagens ouvintes desta mesma história, como Krapp e o Ouvinte. Em obras como
Passos (Footfalls) e Improviso de Ohio (Ohio Improptu), ocorre ainda a referência a
leitores
16
, com indicação de pontos exatos da leitura, em que se situam determinados
episódios da vida do sujeito.
Falar e ouvir tornam-se indiferentes, uma vez que é o exercício da língua, conforme
apontado por Benveniste (1976, p. 288), que constitui o fundamento da subjetividade. Será,
portanto, o emprego das palavras mais do que a revelação de sua fonte que apontará um
caminho em direção ao sujeito. A identificação de quem fala pouco acrescenta, uma vez que
todo o fundamento sobre o sujeito tem de ser situado na atuação mesma desta fala. Esta cisão
60
entre quem fala e o que é dito se faz percorrer, entretanto, por uma outra tendência, que pode
ser chamada de “apagamento” (CAVALCANTI, 2002, p. 10), de “negação”
(TAGLIAFERRI, 1992, 171), “subtração” (ADORNO, 1985, p. 56), “contrasenso” (ISER,
1989, p. 169), e que consiste na recusa de qualquer das histórias contadas como
correspondentes ao sujeito referido esta tendência, tematizada na peça Eu não, de 1972,
consiste na única via pela qual a linguagem aproxima-se da real posição do sujeito, quando
nega tudo aquilo que acaba de ser afirmado.
quem poderá designar esse nome se, de qualquer maneira, aquele que escreve já não
é Beckett, mas a exigência que o arrastou para fora de si, o desapossou e o
desalojou, entregou-o ao fora, fazendo dele um ser sem nome, o Inominável, um ser
sem ser que não pode nem viver, nem morrer, nem cessar, nem começar, o lugar
vazio em que fala a ociosidade de uma fala vazia e que é recoberta, bem ou mal, por
um Eu poroso e agonizante (BLANCHOT, 2005, p. 312)
A narrativa manifesta, em seu espaço, uma disjunção coincidente com aquela que será
manifesta teatralmente em Aquela vez. O conteúdo narrado que se separa do seu emissor, seja
pela substituição de fala pela escuta, seja pela negação dos enunciados; prepara o terreno para
um personagem que se chamará Ouvinte e que testemunhará a própria vida como espetáculo
da linguagem. A emergência do impasse de todo aquele que busca empreender uma voz é
mais veemente no romance que encerra a trilogia. Os personagens se tornam mais
insubstanciais que nunca e a linguagem autonomiza-se, revelando-se o substrato do indivíduo.
Na peça teatral, a cabeça do Ouvinte e seus mínimos movimentos ocupam o presente sob o
signo do silêncio, resistindo ao impulso da linguagem de configurar novos tempos e espaços,
mas reforçando sua outra ação, aquela que constitui sua tendência fundamental nestes textos,
a recusa de cristalizar o tempo em uma fábula ideal.
O inominável esboça a condição de quem “não pode falar, não pode pensar, e que tem
de falar” (BECKETT, 2002b, p. 22). Não pode falar ou pensar, na medida em que não pode
se reconhecer como o emissor do discurso. É obrigado a falar porque necessita se reconhecer
e só pode fazê-lo como o caráter ausente, que se apresenta por meio da recusa incessante
daquilo que lhe é imputado pela linguagem. Esta percepção de si, somente possível no campo
da linguagem, permite que o sujeito se dirija a outros tempos e espaços, passados ou futuros,
mas apenas na medida em que reconheça: “Mas eu nunca estive noutro lugar qualquer, por
mais incerto que o futuro seja”.
16
Respectivamente: BECKETT, 1990, p. 402 e BECKETT, 1990, p. 446.
61
A busca da identidade insiste inutilmente em situar um instante anterior à formulação
do discurso, o que poderia coincidir com a verdade definitiva sobre o sujeito. O sujeito habita
este sítio impossível e a percepção de sua inconsistência permite afirmar que nunca houve
uma vida, portanto, que o tempo nunca passou e nunca houve outro espaço. “o que digo, o
que direi, se puder, se refere ao lugar onde estou, a mim, que estou neste lugar, apesar de me
ser impossível pensar nisso, falar disso, por causa da necessidade que sinto de falar disso”
(BECKETT, 2002b, p. 22-3). Existindo em uma linguagem que se fundamenta em
representação e, portanto, em ausência, o sujeito dá vazão ao seu sonho de um lugar e de um
tempo em que a percepção de si não precise mais ser intermediada por aquela estrutura. Este
desejo sobrevive, paradoxalmente, às custas desta mesma linguagem, que ora é falada, ora é
ouvida, construindo histórias e veiculando pensamentos que se voltam, perpetuamente, contra
ela mesma.
As vozes, em Aquela vez, descolam-se da solitária cabeça e indicam tempos e espaços
exteriores ao palco, buscando ampliar o contexto da cena, apontando para o cumprimento de
uma vida em ambientes campestres e urbanos, ambientes de troca e de agitação, ambientes da
cultura institucionalizada, os quais se encadeiam segundo o ritmo do desenvolvimento do
homem. O isolamento constitui uma experiência subjetiva referida nas diferentes fases,
através das vozes A, B e C. Esta é uma característica que aproxima as figuras do passado ao
Ouvinte em cena, encerrado com sua escuta e com o eco de sua voz. Assim, a voz B evoca
“olhos fechados (...) no meio de pensamentos que lhe viam [sic] à mente cenas sejam quais
forem” (BECKETT, 2007a, p. 03); a voz A percebe o sujeito “entregue às suas invenções ora
uma voz ora uma outra” (BECKETT, 2007a, p. 03); e C revela-se “sem saber quem estava
dizendo o que você dizia de quem o crânio em que você mofava” (BECKETT, 2007a, p. 04).
O estado do Ouvinte é o silêncio, pelo menos é o que se nota quando se calam as
vozes e suas ações se limitam ao abrir de olhos ou a um sorriso. Estas ações levam a perceber
a busca por um equilíbrio, no momento em que a linguagem deixa de oferecer um anteparo
para a consciência. O Ouvinte se mantém durante todo o tempo em silêncio, apenas em
alguns segundos, entretanto, a consciência é esvaziada de linguagem. Em todas as
circunstâncias apresentadas como o seu passado, este homem aparece sem fazer uso da
palavra: “nem pensar em perguntar falar com alguém nunca mais em sua vida” (BECKETT,
2007a, p. 04). Isto não impediu que ele conservasse fragmentos daqueles tempos cristalizados
como palavras. O silêncio é, portanto, uma referência para aquele que, independente de falar
ou calar, busca se situar inutilmente na linguagem, só podendo contar com ela. Talvez por
isso, em O inominável, ele assuma as vezes de um lugar: “ falar do silêncio, antes de voltar a
62
entrar no silêncio, já terei estado dentro dele, não sei, estou sempre dentro dele, estou sempre
a sair dele (...) saio dele para falar, estou nele quando falo” (BECKETT, 2002b, p. 179). O
trecho faz transparecer a linguagem que almeja o silêncio e, de certa forma, já se deixa
penetrar por ele, na medida em que jamais pronunciará a verdade desejada. Além disto,
manifesta uma dialética do fora e do dentro que parece estar fadada à irresolução, uma vez
que o sujeito não consegue se situar em nenhum destes sítios. O inominável ensaia uma
hipótese que poderia cobrir esta questão:
eles dir-me -ão quem sou, eu não compreenderei, mas será dito, eles terão dito quem
sou, e eu tê-lo-ei ouvido, sem ouvido tê-lo-ei ouvido, e tê-lo-ei dito, sem boca tê-lo-
ei dito, tê-lo-ei ouvido fora de mim, e logo a seguir dentro de mim, talvez seja o que
sinto, que há um fora e um dentro e eu no meio, talvez eu seja a coisa que divide o
mundo em dois, de um lado o fora, do outro o dentro, pode ser tão fino como uma
lâmina, não estou num lado nem no outro, estou no meio, sou a divisória, tenho duas
faces e não tenho espessura, talvez seja isso que sinto, sinto-me vibrar, sou o
tímpano, de um lado está o crânio, do outro o mundo, eu não sou um nem outro, não
é a mim que falam, não é em mim que se pensa (BECKETT, 2002b, p. 142-3)
Eis uma imagem resultante do desenvolvimento da narrativa na trilogia do pós-guerra.
É uma das últimas imagens oferecidas no sentido de configurar um personagem. Apóia-se na
certeza de que estar no mundo é fazer uso da linguagem, uma instância que não permite
discernir com certeza onde fica o fora e onde fica o dentro, mas que permite ao sujeito indicar
um plano indiferente a estas noções, um tímpano, um quase-nada, que se faz vibrar pelos
impulsos de ambos os lados, mas que não se deixa penetrar e que tende ao repouso. Nada
resta de interioridade e o passado nada significa. Esta imagem, como todas as outras, será
destruída a seguir. Apagados os personagens, resta a linguagem, que povoa impiedosa as
páginas destes romances, bem como a certeza de que é preciso continuar. Esta linguagem
também exercerá sua ação no teatro e a impossibilidade de fixá-la ou talvez de silenciá-la
implicará em personagens esmagados, fragmentados, cuja voz, nem de longe, se parecerá com
a voz de um personagem dramático, dotado de claros contornos e de interioridade, como
também não acontecia com os personagens da trilogia. As vozes, neste teatro “parecem soar a
esmo, sem rumo, sem porquê e sem destinatário definidos (...), sugerem antes uma massa
sonora, uma partitura do que uma trama” (CAVALCANTI, 2002, p. 75).
O evento teatral que Aquela vez propõe se dá em termos de manipulação da
linguagem. Um detalhe de grande importância apontado por um diretor que encenou esta peça
no Brasil revela, a meu ver, o modo como a linguagem se faz articular como um elemento do
tempo, além de revelar uma certa revisão de hierarquias nas funções teatrais. Trata-se de
63
Rubens Rusche, que num e-mail enviado no dia 03 de julho de 2007, descreve um aspecto da
montagem de Aquela vez:
Muito se exige aqui do operador de som!! Na verdade, é ele quem executa toda a
performance! Precisa ser alguém que entenda o que está fazendo, e ele não pode
errar! E há também o operador de luz: há vários movimentos indicados no texto, nos
quais a luz cresce ou decresce de intensidade. E esses movimentos devem ser
suaves, nunca bruscos. PORTANTO, ESTAMOS, SEM DÚVIDA, DIANTE DE
UMA VERDADEIRA PARTITURA!
Os primeiros narradores da trilogia figuraram seus personagens para contrastar com o
vazio e, deste modo, preencher e medir o tempo de espera pela morte. No último romance, a
apropriação de uma voz contrasta com a impossibilidade do sujeito se reconhecer nela e, a
partir deste movimento permanente, elabora o seu tempo de narrativa, que permite avançar
por centenas de páginas sem que algo tenha ocorrido como fenômeno visível. Com as peças
de teatro, a experiência do tempo adquire novo sentido, torna-se coletiva. Como nos
romances, a linguagem dilacera os contornos dos personagens e reflete o tempo que é
destinado a escutá-la, tempo de silêncio, de expectativa. No teatro, arte do corpo, a presença
dos personagens constitui uma materialidade que não se desintegra com a facilidade da fala. É
por isso que a linguagem se organiza para além do discurso verbal e gestual do personagem,
converte-se em partitura, determinando a duração de cada signo, articulando presença e
ausência por meio dos recursos de luz e som, mas, fundamentalmente, dialogando com os
múltiplos tempos trazidos pelos espectadores, devolvendo sempre o reflexo de um tempo, o
irrevogável, tempo que se perde através da representação mal cumprida, mas que não pode ser
medido, ou pelo menos, reconhecido, sem que se faça uso de tal representação, fracassada
desde o início.
64
2.4. Peças que duram muito
HAMM: Você não acha que isto já foi longe o bastante?
CLOV: Sim! [Pausa.] O quê?
HAMM: Esta... esta... coisa.
17
(BECKETT, 1990, p. 114)
“Velho fim de jogo perdido de velhos”
18
(BECKETT, 1990, p. 132), é deste modo que
Hamm, o protagonista, cego e paralítico, inicia seu último solilóquio, repetindo o título da
peça escrita em francês em 1957. Seu nome coincide com a expressão inglesa para “ator
canastrão” e, de acordo com tal atributo, ele aguardara, com ansiedade, pelo momento de
efetuar seu número final. A representação não é nem um pouco dissimulada. O servo Clov,
que ameaçara abandonar Hamm, veste-se para sair, mas permanece parado junto à porta,
observando o patrão. Como este é cego, acredita estar só. Quem assiste não pode dizer se a
peça realmente vai acabar ou se ela vai recomeçar, tendo chegado a um ponto em que seus
personagens revelaram a futilidade da partida que jogam, representação de uma vida que não
pode se cumprir, em um interior cinzento, “onde a luz não varia”.
O cenário, além de propor a idéia deste refúgio, iluminado por uma “luz cinza”,
apresenta duas janelas ao fundo, de onde Clov observa a realidade exterior. Somos
informados, através deste personagem, que o mundo ao redor está despovoado e paralisado,
de que nada se move, no mar ou na terra. O presente é definido pelas palavras “zero” e
“cinza” e a pergunta sobre as horas é respondida com: “A mesma de costume” (BECKETT,
1990, p. 94).
Fábio de Sousa Andrade (2001, p. 84) menciona, em um capítulo destinado à análise
das origens deste texto, o fato de mais de um comentador ter notado, nesta disposição do
cenário, uma representação alegórica do interior de um crânio. Deste modo, as espiadas de
Clov para o mundo exterior corresponderiam às tentativas malfadadas do inválido Hamm de
se comunicar com o exterior. A estes dois personagens, somam-se os progenitores de Hamm,
Nagg e Nell, que tendo as pernas amputadas, após um acidente de bicicletas, vivem
encerrados em latões de lixo. Estes anciões seriam, no sentido alegórico, corporificações das
memórias distantes do protagonista.
Conscientes da aversão manifesta por Beckett, no ensaio sobre Proust, à técnica da
alegoria, bem como da observação de Adorno (1985, p. 56) de que esta obra manifesta o
17
Tradução minha para: “HAMM: Do you not think this hás gone on long enough?
CLOV: Yes. [Pause.] What?
HAMM: This... this... thing.”
65
propósito de não se elevar em suposições abstratas que busquem suplantar a temporalidade e
as particularidades de uma existência concreta; é de se julgar mais prudente uma análise
centrada em suas nuances, percebendo antes significados que ela desdobra em si mesma.
É possível, entretanto, reportar-se aos escritos do autor sobre a pintura moderna, onde
ele fala do fim da ilusão de que existe “mais do que um objeto de representação”. A idéia do
crânio como morada da mente e, portanto, locus de toda a representação (de toda a vida como
representação), ilumina a obra do autor como centrada neste único refúgio, o que poderia
fortalecer a interpretação alegórica da peça. Mas, naquele ensaio, Beckett vai além e decreta,
a partir da obra de determinados pintores, o fim da ilusão de que “este único objeto se deixa
representar” (BECKETT, 1989, p. 56). A mente é onde a realidade se constitui como
representação, mas ao convertê-la numa imagem, subordinamo-na a uma representação, a
algo que não coincide com ela mesma e, deste modo, fracassamos. Fim de Jogo, como toda a
obra de Beckett, ocupa-se, portanto, não da representação deste objeto - a “consciência
latente”, abarcando luz e sombra, em sua totalidade -, que se sabe inacessível, mas das
condições com que esta representação pode ser desmantelada.
A presença dos personagens em cena, antes de elevar-se para possíveis conotações
socio-políticas ou metafísicas, é confinada nos termos da função dramática que aqueles
desempenham. Deste modo, a existência de Clov é cruamente exposta por Hamm como a de
alguém que apenas serve para lhe dar a réplica
19
. E aquele, de fato, cumpre este papel. A
explicitação destas divisões dramáticas, na própria peça, já institui a aleatoriedade do diálogo,
como se a troca de falas correspondesse mesmo a um jogo para fazer passar o tempo. Nas
primeiras réplicas, Clov já evidencia que o diálogo não resultará em nenhuma revelação e
que, portanto, o falar não será suficiente para alterar a situação em que estão mergulhados:
“Toda a vida, as mesmas questões, as mesmas respostas”. Esta certeza não impede os
personagens, entretanto, de continuar falando, como revela Hamm, num momento mais
adiante: “Eu adoro as velhas questões (...) Ah, as velhas questões, as velhas respostas, não há
nada como elas!”
20
(BECKETT, 1990, p. 110).
18
Tradução minha para: “Old endgame lost of old”.
19
“CLOV: O que me mantém aqui?
HAMM: O diálogo. (...) Eu prossigo com minha história. (...) Eu prossigo bem com ela. [Pausa.
Irritado.] Pergunte-me para onde eu prossigo. ”
Tradução minha para:
CLOV: What is there to keep me here?
HAMM: The dialogue. (…) I’ve got on with my story. (…) I’ve got on with it well. [Pause. Irritably.]
Ask me where I’ve got to.” (BECKETT, 1990, p. 120-1)
20
“I love the old questions. (…) Ah the old questions, the old answers, there’s nothing like them!”
66
De acordo com Adorno (1985, p. 67), esta peça retém determinados pilares da forma
dramática, como as três unidades aristotélicas, mas apenas conservando-as sob a condição de
serem parodiadas. As categorias apresentam-se obsoletas, uma vez que o próprio drama
revela-se em estado de perecimento - uma forma que representou, segundo Peter Szondi
(2001, p. 29), o “lugar” onde o homem alcançava realização enquanto membro de uma
comunidade e que teve no diálogo um meio para a manifestação de sua “liberdade e
formação, vontade e decisão”.
Ao expôr o diálogo como um ritual repetitivo, exclui-se a possibilidade de uma
síntese, que poderia representar a disposição do sujeito após o cumprimento de um ato de sua
vontade. Fim de Jogo apresenta seqüências longas de diálogo, constituídas por frases curtas,
que confirmam a extinção de outras vidas na Terra, que se dirigem a um passado situado
infinitamente longe, que descartam qualquer alternativa futura que não seja o fim e, que,
portanto, não fazem mais do que enfatizar a situação presente. Estas sentenças são
entremeadas por movimentação repetitiva, como as idas de Clov à janela e à cozinha e a
condução da cadeira de Hamm pelo cômodo; além disso, há a incidência de falas mais longas,
a maioria de Hamm, mas umas poucas também de Clov e de Nagg. È interessante notar que,
ao contrário de Esperando Godot, peça de 1952, não há nas rubricas indicação de silêncio;
mas apenas a de pausas. Isto revela um ritmo acelerado entre as réplicas, revelando uma
mecanização que parodia o ritmo das trocas intersubjetivas, que como visto, davam
significância à forma dramática. Esta nova disposição manifesta pela peça de Beckett esvazia
estas trocas do conteúdo reflexivo. O silêncio, ao se insinuar nas pausas para respirar, aparece
como algo a ser suplantado e, porque o frenesi do diálogo tenta encobri-lo e porque este
mesmo diálogo não revela mais do que o processo de acabar, o silêncio aparece como o ponto
para onde convergem todas estas falas. Neste sentido, a ação do diálogo é como toda a
movimentação espacial de Clov, que se revela obcecado pela idéia de organização: “Eu adoro
a ordem. É o meu sonho. Um mundo onde tudo fosse silencioso e imóvel e cada coisa no seu
último lugar, sob a última poeira”
21
(BECKETT, 1990, p. 120). Assim como não pode deixar
cada coisa no seu último lugar, inclusive a si mesmo “Eu não posso me sentar” (BECKETT,
1990, p. 110) -, não pode se calar, pois, até o momento, nenhuma palavra foi capaz de se deter
como sendo a última palavra. Tal processo alcança a última palavra da peça - quando Hamm
refere-se ao lenço como sua única e última companhia, ele está enganado, pois Clov ainda
está ali.
21
Tradução minha para: “I love order. It’s my dream. A world where all would be silent and still and each thing
in its last place, under the last dust.”
67
O tempo no drama, segundo Szondi (2001, p. 32), é sempre o presente, o que não quer
dizer que ele seja estático: “o presente passa e se torna passado, mas enquanto tal já não está
mais presente em cena. Ele passa produzindo uma mudança, nascendo um novo presente de
sua antítese”. Aparentemente, o tempo de Fim de Jogo se constitui da instauração de um
tempo próprio da literatura dramática o cenário e o diálogo enfatizam o presente como um
instante recortado de um tempo natural. Este emprego da convenção será certamente
parodiado, uma vez que, segundo Adorno (1985, p. 67), o teatro de Beckett manifesta um
“uso de formas na época de sua impossibilidade”.
Se a caixa craniana, conforme o artigo sobre os van Velde, é o espaço onde o tempo
pode adormecer, como o medidor do relógio de energia, após apagada a última lâmpada
(BECKETT, 1989, p. 30-1); o espaço e o tempo desta peça estabelecem um intervalo de
confinamento onde as criaturas que o habitam destacam-se da “fuga das horas”. Eis uma das
réplicas que pontuam este instante suspenso:
HAMM: (Angustiado.) O que acontece? O que acontece?
CLOV: Alguma coisa está seguindo seu curso. (BECKETT, 1990, p. 98)
22
.
Deste modo, a fixação ao tempo presente tempo do drama - será exacerbado a ponto
de impedir que o tempo corra para os personagens em cena. Todos manifestam no corpo, sob
a forma de deformidades físicas, a presença do tempo. Este, entretanto, parece se situar
demasiado longe, quando a vida ainda se fazia possível fora do último refúgio. No presente da
representação, estas criaturas são testemunhas da extinção da natureza e da conseqüente
extinção do tempo. Este se pode cumprir apenas como expectativa pelo fim, daí as primeiras
palavras pronunciadas na peça serem as seguintes: “Acabou, está acabado, quase acabado,
deve estar quase acabado”
23
(BECKETT, 1990, p. 93). A única ação possível é finalizar este
processo de destruição, que se cumpre no “agora” da cena. A coisa que, portanto, “segue o
seu curso” é o próprio tempo da representação teatral, que aqui se fará medir pelo ritmo do
diálogo, pelo tempo de entradas e saídas, pelos solilóquios de Hamm, pelo instante do humor
(como a piada contada por Nagg), pelo instante da tragédia (a revelação de que não há mais
analgésicos). Os personagens cumprem um ritual esvaziado de conotações espirituais e
ensaiam, inutilmente, a possibilidade de atingir a expressão de si, como Hamm, que retoma a
22
“HAMM[Anguished.] What’s happening, what’s happening?
CLOV: Something is taking its course.”
23
“Finished, it’s finished, nearly finished, it must be nearly finished.”
68
frase citada acima, tranformando-a: “Eu estou tomando o meu curso”
24
(BECKETT, 1990, p.
112).
O ensaio de Adorno (1985, p. 56) define muito bem o modo como a existência se faz
presente neste palco: subtraindo tudo o que é abstrato, que busca transcender a temporalidade,
torna presente a liqüidação do sujeito, que assume o aspecto de um “aqui-agora” absurdo. O
instante da representação teatral é ressaltado e esvaziado como ritual despropositado e, neste
ponto, é semelhante à vida, que aparece com uma crueza absurda na referência ao estado de
Nagg:
HAMM: O que ele está fazendo?
CLOV: Ele está chorando.
HAMM: Então ele está vivendo(BECKETT, 1990, p. 122-3).
25
E mais adiante:
HAMM: Ele ainda está chorando?
CLOV: Não.
HAMM: Os mortos vão rápido. [Pausa.] O que ele está fazendo?
CLOV: Chupando seu biscoito.
HAMM: A vida continua (BECKETT, 1990, p. 125).
26
A vida como choro e ração, o tempo passado no teatro revelado como o tempo de
cumprimento de “técnicas dramáticas” eis a situação que esta peça classifica como
“acabada” ou “quase acabada”. A vida e a representação se revelam, entretanto, o “impossível
monte” referido por Clov no início, uma vez que a última palavra a respeito da primeira não
pode ser dita, como prova da insuficiência da segunda. A história que Hamm vinha contando
ao longo da peça termina em seu último solilóquio, confirmando se tratar da história dele
mesmo. “Você GRITOU pela noite, ela cai; agora grite na escuridão”
27
(BECKETT, 1990, p.
133). O verso de Baudelaire é ilustrado pela ação do próprio Hamm, que chama em vão pelo
pai, nos seus últimos minutos sobre a cena. Finalizada a narração, o protagonista percebe que
24
“I’m taking my course”.
25
“HAMM(…): What’s he doing? […]
CLOV: He’s crying. […]
HAMM: Then he’s living.”
26
“HAMM: Is he still crying?
CLOV: No.
HAMM: The dead go fast. [Pause.] What’s he doing?
CLOV: Sucking his biscuit.
HAMM: Life goes on.”
27
“You CRIED for night; it comes: now cry in darkness.”
69
ainda resta tempo “momentos para nada”, que ele é levado a preencher com a continuação
da história. A representação é sempre atrasada com relação à vida.
Beckett nos faz defrontar com uma situação semelhante em Dias Felizes, de 1961.
Trata-se de mais uma de suas peças longas, composta em dois atos, com a diferença de que
agora a protagonista é uma mulher, Winnie. Esta personagem é submetida a uma das mais
atrozes representações do tempo. Aparece enterrada em um monte de terra até a cintura, no
primeiro ato. Deste modo, não pode se locomover pelo palco, podendo apenas gesticular com
seus braços, manipulando os objetos ao seu alcance e proceder a um longo monólogo, cara-a-
cara com a platéia. No segundo ato, Winnie está enterrada até o pescoço, de modo que pode
apenas falar e mover os seus olhos. Quando é vista, no início do primeiro ato, ela está
dormindo. Após uma longa pausa, soa uma campainha estridente que, mesmo durando 10
segundos, não é capaz de despertar a personagem. Quando volta a tocar, por 5 segundos,
ainda mais estridente, Winnie acorda. Durante os ensaios da montagem londrina de 1962,
dirigida por John Dexter, Beckett confidenciou à atriz Brenda Bruce a idéia que o levou a
escrever esta peça:
(...) eu acho que a coisa mais horrível que poderia acontecer a alguém seria não lhe
ser permitido dormir, de modo que, quando você estivesse pendendo, houvesse um
“Dong” e você tivesse de se manter acordado; você está atolado no chão vivo e ele
está cheio de formigas; e o sol está brilhando infinitamente dia e noite e não há uma
árvore... Não há nenhuma sombra, nada, e a campainha acorda você todo o tempo e
tudo o que você tem é uma pequena parcela de coisas para vê-lo durante a vida (...)
E eu pensei quem pode enfrentar isto e definhar cantando, só uma mulher
(KNOWLSON, 1996, p. 447)
28
.
28
Tradução minha para: “I thought that the most dreadful thing that could happen to anybody, would be not to be
allowed to sleep so that just as you’re dropping off there’d be a ‘Dong” and you’d have to keep awake; you’re
sinking into the groud alive and it’s full of ants; and the sun is shining endlessly day and night and there is not a
tree… There’d be no shade, nothing, and that bell wakes you up all the time and all you’ve got is a little parcel of
things to see you through life. (…) And I thought who would cope with that and go down singing, only a
woman.”
70
Elisa Galvez. Happy Days. Madri, 1996. (Foto de Raquel Pastor)
A primeira frase dita pela personagem, em Dias Felizes, já contradiz o que é mostrado
sobre o palco: “Outro dia divino” (BECKETT, 2002a, p. 02). Deste modo, revela-se, desde o
início, a tensão entre os diferentes níveis de representação. Ao longo do primeiro ato, apesar
do otimismo que a personagem é capaz de preservar e que a aproxima do Vladimir, de
Esperando Godot, que, a despeito do naufrágio de todas as expectativas, ainda se atém ao
propósito de esperar pelo cumprimento do encontro marcado; Winnie revelará que espera pela
noite, por um toque de recolher, também emitido pela campainha, o qual lhe permitiria
descansar.
Ah, pois é, tão pouco para dizer, tão pouco para fazer, e um medo tão grande, certos
dias, de nos encontrarmos ainda... com horas ainda para passar, antes da campainha
de dormir, e nada mais para dizer, nada mais para fazer, e os dias passam, para
sempre, a campainha soa para dormir, e pouco ou nada é dito, pouco ou nada feito
(BECKETT, 2002a, p. 13).
Como outros personagens beckettianos que se aventam a possibilidade de estarem
mortos, em vida; Winnie já tem metade de seu corpo devorado pela terra. Mais do que uma
representação de uma condição, o dispositivo desenvolvido por esta peça revela um
impedimento, o qual não é meramente o impedimento desta personagem se locomover, mas o
impedimento mesmo de proceder a uma representação completa do sujeito. Ao iniciar a peça,
71
o espectador já perdeu alguma coisa. Algo se passou em sua ausência, anos e anos vividos que
atolaram a personagem em seu solo.
Falo de quando eu ainda não tinha sido agarrada desse jeito e tinha minhas
pernas e o uso das minhas pernas, e podia procurar um lugar de sombra, como você,
quando ficava cansada do sol, ou um lugar ensolarado quando ficava cansada da
sombra, como você (BECKETT, 2002a, p. 15).
A campainha, que é o sinal para o início de uma performance, aqui também é um
chamado à vida. Mas que vida pode subsistir quando já não se tem mais a possibilidade de ir a
lugar algum? Winnie tem o marido, Willie, atrás de si, mas este se revela impotente para
alterar sua situação e funciona apenas como um estímulo para o monólogo acontecer, para que
ela acredite estar sendo ouvida. O trecho citado acima revela a personagem habituada ao dia
como uma imposição exterior. E, neste sentido, o intervalo entre as duas campainhas, como o
ato único de Fim de Jogo, como os dois atos de Godot, é um tempo tão duramente cumprido
que todas as ações desenvolvidas ao longo dele, revelam-se inúteis e mesmo ilusórias.
Estragon, após mais um longo diálogo com Vladimir que resultou em nada, se pergunta: “Nós
sempre encontramos alguma coisa, não é, Didi, para nos dar a impressão de que existimos?”
(BECKETT, 1990, p. 64) Ao imobilizar Winnie, Beckett a privou de mais uma ação com a
qual ela poderia se evadir do tempo. Sem cadeira de rodas e sem servo para conduzi-la a um
passeio, será com as palavras e com os acessórios de sua bolsa que ela suportará as horas que
demoram a passar; no segundo ato, não havendo mãos, apenas a voz acompanhará uma
jornada ainda mais difícil. Deste modo, toda a ação desta peça não faz mais do que invalidar-
se, auto-anular-se ante a evidência de algo mais eminente o tempo, duramente cumprido por
aquele que reconhece a superficialidade de todos os seus esforços.
Em Fim de Jogo, Hamm espera, desde o início, por um analgésico. A hora da
medicação é sempre adiada por Clov que adverte que, se o remédio for tomado antes do
tempo, não atuará no ápice da crise. Quando anuncia a chegada deste instante esperado, Clov
declara, sadicamente, que não existem mais analgésicos. Com isto, solapa a representação do
dia, apresentada por Hamm, um pouco mais cedo: “De manhã eles o estimulam e à noite o
acalmam”
29
(BECKETT, 1990, p. 104). Diferente do que ocorre no Ato sem Palavras II,
“peça curta de mímica para dois ‘jogadores’”, escrita em 1956, onde os personagens A e B
adormecem no interior de sacos, são acordados por um agulhão vindo dos bastidores, e podem
se recolher de volta para o refúgio, após o cumprimento de um ritual cotidiano; a Hamm não é
permitido descansar imediatamente, após ter representado o que ele acredita ser o seu papel.
72
A narrativa de Hamm, como representação de sua vida, fracassa por não conseguir cobrir o
tempo da representação teatral. Terminada, ainda resta tempo “momentos para nada”. Sobre
a representação efetuada, sobrepõe-se uma outra, mais dura, que consiste em cobrir o tempo
que resta, torná-lo significativo, torná-lo suportável.
Como Hamm, Winnie aguarda o fim do período de sol possível paródia da unidade
de tempo aristotélica -, assistindo ao cumprimento de mais um dia, insistindo inquebrantável
na idéia de que este será mais um dia feliz. “(...) que alegria saber pelo menos que você está aí
firme no seu posto, e talvez acordado, e talvez alerta, em alguns momentos, que dia feliz para
mim... esse também terá sido. (PAUSA) Até agora” (BECKETT, 2002a, p. 13). Como em
Fim de Jogo, não há indicação de silêncio nas rubricas, mas apenas pausas. Assim como a
atrocidade da situação de Winnie se acentua diante da tensão entre o seu enterramento e o seu
otimismo, a nulidade de suas palavras - incapazes de explicar o horror de que ela é vítima - é
experimentada na sua compulsão por falar. Mais de uma atriz manifestou, como Brenda
Bruce, a dificuldade para memorizar este texto (KNOWLSON, 1996, p. 447), o qual tem uma
exigência tão grande de precisão no que tange à conciliação entre o grande monólogo falado e
as ações, que sua estrutura o torna semelhante a um mosaico de falas e indicações cênicas.
Ao longo dos dois atos de Dias Felizes, Winnie procura manter-se preservada até o
momento em que lhe seja permitido descansar. Em alguns momentos, seus artifícios revelam-
na como a atriz que calcula e projeta suas ações no intervalo de tempo da representação. “Mas
no entanto sem dúvida ainda é um pouco cedo para a minha canção. (PAUSA) Cantar cedo
demais é um erro grave, eu acho” (BECKETT, 2002a, p. 12). Hamm também já revelava a
determinação de cumprir a contento o seu papel. Os solilóquios eram os momentos em que o
propósito de adquirir significância se mostrava mais intenso. Neles, é revelada a pretensão de
sobreviver ao tempo, fazendo-se representar pelo discurso: “Pode haver miséria maior do que
a minha?” (BECKETT, 1990, p. 93)
30
. No caso de Winnie, o seu monólogo assume a quase
totalidade da cena e o tempo se encontra materializado no monte, do qual a personagem não
pode escapar, e na campainha. Hamm seguia inspirado pelo fim de sua representação, de
modo a convencer-se de uma existência cumprida; Winnie representa, a despeito do tempo
que segue, sepultando-a e, portanto, apagando-a. O otimismo dela é semelhante à exaltação
dele pela sensação de que vai alcançar a representação de si, em seu último solilóquio. Este
solilóquio aborda o abandono e a chegada da noite, o momento em que o grito por socorro
não é respondido. Como o espectador poderá perceber, trata-se de uma realidade ilusória,
29
“In the morning they brace you up and in the evening they calm you down.”
30
Tradução minha para: “Can there be misery loftier than mine?”
73
percebida por um personagem cego o pai não foi abandonado pelo filho, posto que Clov
ainda está ali. A impossibilidade de apreensão do instante vivido em sua totalidade, bem
como a impossibilidade de fazer parar o tempo, resultam na impossibilidade de reunir “os
grãos” em uma representação válida e definitiva. A peça de Beckett, ao minar a crença no
valor da representação, permite experimentar a existência em sua irredutibilidade, função esta
que pode ser atribuída ao tempo.
Avançada a ação, quando recolhe os objetos que a acompanharam na representação de
seu drama, Winnie permite ao espectador ouvir um reflexo da inutilidade de suas ações, bem
como uma possível indicação do futuro: “Às vezes tudo está acabado, naquele dia, tudo feito,
tudo dito, tudo pronto para a noite, e o dia não acabou, nem de longe, longe de ter acabado, a
noite ainda não está pronta, nem de longe pronta” (BECKETT, 2002a, p. 17). E de fato, como
Godot, que não vem; como a narrativa de Hamm, que não chega ao final; a campainha final
não soa. O primeiro ato se encerra com a personagem atônita, receosa de cantar sua canção e
descobrir-se a seguir desprovida de recursos. Este duelo contra o tempo, revelado aqui em sua
inteireza, tem perdurado todos os dias de Winnie, e ao abrir das cortinas, no segundo ato,
percebe-se que o tempo tem sido o vencedor. Como os “grãos” que se juntam em direção ao
“impossível monte”, em Fim de Jogo; os dias se acumulam sobre o sujeito, em Dias Felizes,
invalidando-o, mas sem destruir sua capacidade de enfrentamento.
Neste último ato, a cabeça solitária que desponta no meio do monte está mais cansada,
mas ainda assim saúda os espectadores com mais uma expressão de otimismo: “Salve, luz
divina” (BECKETT, 2002a, p. 20). Este ato é mais curto do que o primeiro, talvez porque
consista num enfrentamento ainda mais solitário do dia, uma vez que Willie deixou de intervir
e Winnie não pode mais olhar para ele, chegando a suspeitar inclusive de sua morte: “Talvez
ele tenha gritado por socorro esse tempo todo sem eu ouvir” (BECKETT, 2002a, p. 22). O
cansaço a levará a fechar os olhos algumas vezes, como para tirar um cochilo, mas, nestes
instantes, a campainha soa. Deste modo, não se trata mais de sobreviver até o sinal para
dormir, mas da dificuldade mesma de iniciar o dia. No fim, testemunhamos um último
fracasso: ela canta sua canção antes da hora e, não mais podendo, cochila. Soa a campainha,
seus olhos se abrem e seu sorriso aparece para desaparecer uma última vez. A peça se encerra
como começou se antes, a violência da imagem suplantava um passado que antecedia o
sepultamento; o final, na verdade, não sugere um término, mas a continuação da vida, sem
alternativa de descanso, aqui mostrada no silêncio de uma longa pausa, em que o velho casal
se olha.
74
Também Fim de Jogo se encerra com uma imagem silenciosa: Hamm cobre o rosto
com um lenço e permanece imóvel, repetindo a imagem inicial, quando se fazia cobrir por um
lençol. Adorno (1985, p. 63) percebe aí, além da produção de uma imagem que caracteriza a
perda da identidade, a sugestão de que o tecido esconde o rosto de um homem morto. De
acordo com ele, o recolhimento destes personagens ao seu “ser biológico”, o corpo físico, que
pode ser medido por uma unidade, contrasta com o estilhaçamento da identidade,
experimentado em uma sucessão de situações que arrastaram o sujeito, sem que ele oferecesse
resistência. Ainda que o corpo seja um sítio mais confiável do que a mente, ele é também
manifestação do tempo, o que o torna uma entidade instável, sobre a qual não é possível
garantir a posse. Ao contrário da mente, entretanto, que necessita do evento passado para
reconhecer-se, o corpo é um espaço onde o presente se faz sentir em toda a sua intensidade,
como o revela Winnie, em uma de suas falas mais lúcidas. Emitidas no primeiro ato, elas são
capazes de decifrar a sua condição no ato seguinte:
Hoje não está mais quente do que ontem, amanhã não estará mais quente do que
hoje, impossível, e assim retornando ao mais longínquo passado, e entrando pelo
mais longínquo futuro. (PAUSA) E se um dia a terra tiver de cobrir meus seios,
então eu nunca terei visto os meus seios, ninguém jamais terá visto os meus seios
(BECKETT, 2002a, p. 15).
O corpo, enquanto reduto inalienável do sujeito, apenas pode sê-lo enquanto objeto
condicionado pelo tempo. Neste sentido, ele apenas pode abrigar uma consciência profunda
do que constitui a existência, ao se revelar uma sede de aniquilamento. A deterioração física,
somada ao apagamento da memória, oferecem uma imagem mais real do sujeito do que
aquela promovida por um suposto resgate do passado. Quando voltado para os seus próprios
restos, o personagem em cena adquire uma consciência absurda de sua condição presente.
Trata-se da percepção de si enquanto criatura temporal, num estado que antecede toda
representação. O Ouvinte de Aquela vez experimenta claramente este presente absurdo, nos
intervalos silenciosos, quando a luz é aumentada, e ouve-se apenas a sua respiração. O
Vladimir, no final de Esperando Godot, já se perguntava o que poderia existir além do
esquecimento e das alterações, que cegam e emudecem os passantes, que faz brotar folhas na
árvore que ontem era seca:
(...) Amanhã quando eu acordar, ou pensar fazê-lo, o que eu direi de hoje? Que com
Estragon, meu amigo, neste lugar até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que
75
Pozzo passou, com seu condutor, e que eu falei com ele? Provavelmente. Mas que
verdade haverá nisto tudo?
31
(BECKETT, 1990, p. 84)
Estes seres, habitantes da plataforma cênica, parecem então solicitar da platéia, de
forma mais direta em alguns instantes, que proceda a um ato de visão, que os auxilie no
desvelamento deles mesmos.
VLADIMIR: (...) [Ele olha de novo para ESTRAGON.] Para mim também alguém
está olhando, sobre mim também alguém está dizendo, ele está dormindo, ele não
sabe de nada, deixe-o dormir
32
(BECKETT, 1990, p. 84-5).
Winnie também parece brincar com a presença da platéia:
Sensação estranha de que alguém me olha. Eu fico nítida, depois flu, depois
desapareço, depois novamente flu, depois novamente nítida, e assim por diante, indo
e vindo, passando e voltando, no olho de alguém (BECKETT, 2002a, p. 15).
Esta sensação é uma certeza que permite a Winnie persistir com otimismo, ao longo
do segundo ato:
Alguém continua a olhar para mim. (PAUSA) Alguém ainda vela por mim
(PAUSA) É isso o que eu acho maravilhoso. (PAUSA) Olhos nos meus olhos
(BECKETT, 2002a, p. 20).
Estes instantes revelam a subjetividade em um estado de emergência, consumida em
um presente que não se permite representar. Ao solicitar a visão e a interpretação do outro,
entretanto, ardilosamente, contaminam-no com este vazio, diluindo os conceitos que até então
se haviam organizado para apreender a totalidade da cena ou a totalidade do personagem.
Winnie demonstra este processo em toda a sua força. Em determinado momento, fabula sobre
um personagem que teria passado por ali, junto de sua mulher, e perguntado a esta sobre o
significado de Winnie, enterrada no chão. Tal pergunta certamente espelha a pergunta que
muitos espectadores se fazem, durante a representação desta peça, ante a visão de uma atriz,
soterrada em um monte de terra, ao longo de um ato inteiro. Este personagem é
sugestivamente chamado de “Shower” (aquele que mostra) e recebe da mulher a seguinte
resposta: “E você (...) que idéia é essa sua, o que é que você está querendo significar?”
31
Tradução minha para: “Tomorrow, when I wake, or think I do, what shall I say of today? That with Estragon
my friend, at this place until the fall of the night, I waited for Godot? That Pozzo passed, with his carrier, and
that he spoke to us? But in all that what truth will there be?
32
Tradução minha para: [He looks again at ESTRAGON.] At me too someone is looking, of me too someone is
saying, he is sleeping, he knows nothing, let him sleep on.
76
(BECKETT, 2002a, p. 16). Mas Winnie é quem diz este texto e ela está sempre de frente para
o público, de modo que esta questão ressoa na direção do auditório.
É possível ver um reflexo deste jogo, quando as vozes órfãs de Aquela vez dirigem-se
ao Ouvinte, chamando-o de “você”. É praticamente inevitável, em alguns momentos (talvez
em muitos), que este discurso envolva o espectador a ponto de ele se sentir “intimado”: “sem
saber mais onde você estava aos poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem
por quê sozinho no mundo sem conhecer ninguém”. Neste ponto, as peças jogam com as
expectativas do público.
Em sua primeira peça, Eleutheria, escrita em 1947, mas só publicada postumamente,
Beckett introduzira um Espectador como personagem, no terceiro ato. De acordo com
Knowlson (1996, p. 330), ao botar seu pé sobre o palco, aquele experimenta a “carência de
forma, fraqueza e indefinição” que, propositadamente, se fazem notar nos atos anteriores. As
peças que se seguiram, como as acima examinadas, procederam de maneira indireta, não
representativa, mas instalaram aquele personagem definitivamente no processo de
constituição do objeto estético.
De acordo com Wolfgang Iser (1989a, p. 186-7), que analisou o efeito destas peças
sobre o público; em Fim de Jogo, a linguagem encontra-se desprovida de seu duplo sentido,
uma vez que os diálogos aqui, ao invés de serem identificados por meio de um estoque de
conhecimentos e de experiências, da parte do espectador, frustram tal expectativa,
evidenciando um processo de recusa que Iser denomina “contrasenso”. Deste modo, os temas
existenciais presentes no diálogo perdem o seu caráter referencial. Como Adorno (1985, p.
68), que viu nesta peça a retirada da subjetividade, Iser verificou que o “eu”, que procura se
representar em termos de identidade e de história, aqui dá lugar à consciência de que “toda
tradução do eu em palavras é uma tradução de alguma coisa que não é o eu”.
Em determinado momento, Hamm pergunta a Clov: “Nós não estamos começando a...
a... significar alguma coisa?” E ouve do criado a seguinte resposta: “Significar alguma coisa!
Você e eu, significar alguma coisa! [Breve riso.] Ah, essa é boa!”
33
(BECKETT, 1990, p.
108). Este trecho ludibria as expectativas do espectador que, até o momento, estivera
desenvolvendo possíveis significados para a situação apresentada no palco. A despeito de
configurar uma representação que rechaça seu objeto, a função referencial da linguagem não
desaparece, permanecendo, segundo Iser (1989a, p. 187) sob a forma de espaços em branco.
Ao procurar constantemente preencher tais espaços, o espectador torna-se um “ator da peça”,
33
“HAMM: We’re not beginning to… to… mean something?
CLOV: Mean something? You and I, mean something! [Brief laugh.] Ah that’s a good one!”
77
desenvolvendo projeções que restauram a qualidade representativa da linguagem e facultam o
entendimento do que os personagens estão fazendo. Mas esta peça, que tem o seu foco
dramático transferido do enredo para o espectador, restaura continuamente sua característica
de requerer representações. Ao verificar a falha nos seus próprios procedimentos
interpretativos, o espectador se percebe como a própria figura cômica.
Peter Brook (1970, p. 58) constata, a respeito de Dias Felizes, que a longa duração do
monólogo da mulher enterrada incomoda a platéia que “se agita, se torce, e boceja, sai no
meio ou então inventa e imprime toda forma imaginável de reclamação como uma defesa
mecância contra a desagradável verdade”. O encenador constata, a partir daí, que aquele que
recusa a verdade revelada pelos personagens beckettianos, taxando-os de pessimistas,
encontra-se ele mesmo preso em uma cena beckettiana, torna-se uma Winnie que insiste em
classificar o seu dia como um dia feliz.
Geneviéve Serreau (1967, p. 89), que presenciou a estréia de Esperando Godot, na
Paris dos anos de 1950, revela que, a despeito do enorme sucesso de público, havia, todas as
noites, um pequeno grupo de espectadores que deixava o teatro, freqüentemente no início do
segundo ato, exasperados e inconformados com a repetição, com a constatação de que nada
havia mudado. Outras vezes, ainda piores, teriam ocorrido cenas de hostilidade e mesmo de
agressão física entre os espectadores que apresentavam visões divergentes.
Isto se dá porque tais peças atuam diretamente sobre o tempo dos espectadores.
Quando se admite que, no drama, o presente se desenvolve e se atualiza num novo presente,
que ele abriga uma ação significativa a ponto de revelar a interioridade do sujeito em ação, é
de se esperar que o tempo representado seja muito maior do que a hora passada no teatro. Isto
não acontece com as peças de Beckett. Schechner (2003, p. 21-2), em sua Performance
Theory, observa que Esperando Godot substitui a temporalidade aristotélica, no sentido de
uma representação de uma ação completa, por ritmos da vida como “comer, respirar, dormir-
acordar, noite-dia, estações, fases da lua, etc.”. Se, como observa Brater (1987, p. 50), uma
peça como Aquela vez (que dura em média 15 ou 20 minuto) dilata o tempo passado no teatro,
de modo a dar a impressão de um tempo muito maior transcorrido, as peças longas enfatizam
ainda mais a percepção do tempo destinado a assisti-las, oferecendo ao espectador o contato
com o tempo presente e, portanto, com sua própria transitoriedade.
78
2.5. Peças que passam rápido:
A pequena peça gestual Ato sem Palavras I foi composta em 1956, momento em que
Beckett via-se diante de mais um dos seus impasses criativos, agravado principalmente pelos
longos esforços empreendidos para colocar Esperando Godot em cartaz, na capital francesa.
Sua companheira, Suzanne, teria percebido, deste modo, na solicitação de um texto por parte
do ator Derik Mendel um possível estímulo para um novo trabalho.
Mendel apresentava números de clown em um cabaré parisiense chamado Fontaine
des Quatre Saisons e Suzanne teria ficado impressionada com sua excelente técnica, quando
se encarregara de conhecer o seu trabalho pessoalmente. De acordo com Knowlson (1996, p.
378), o texto produzido não se adequou, entretanto, ao formato do cabaré porque muitas de
suas ações dependiam de recursos do edifício teatral, como coxias e urdimento, os quais
permitiriam, respectivamente, o lançamento do personagem para a cena e as entradas e saídas
de objetos flutuantes. É possível supor também que o tema deste texto - que, embora seja
construído a partir de paradigmas cômicos como o das ações fracassadas
34
, lida com “a
inevitável frustração e o desapontamento da vida” -o parecesse apropriado a um ambiente
de entretenimento. Deste modo, Mendel viu-se obrigado a esperar até que obtivesse um
contexto teatral adequado.
Ora, este contexto apresentou-se quando Fim de Jogo estreou em Paris tendo sido o
pequeno texto gestual, incorporado à apresentação da peça longa em um ato. E apesar de
Stanley Gontarski
35
constatar que o “dramatículo” não foi bem recebido pela crítica que,
comparando-o principalmente com Esperando Godot, considerou-o demasiado “explícito”,
“óbvio”, até mesmo “banal”; o Ato inaugura as peças curtas de Beckett, conforme a edição de
suas obras completas, antecipando, pelo menos em termos de duração, as criações das décadas
seguintes. Esta qualidade de concisão dialoga, portanto, com o trabalho destes artistas
autônomos que apresentam números de caráter ligeiro, em espaços pouco reconhecidos pela
tradição teatral. Mas a precisão que os textos de Beckett demandam, no que tange ao emprego
dos recursos de som, luz e sua interação com a fala e os gestos, torna-os impróprios para estes
34
A respeito deste conceito, ver: ISER, Wolfgang. “The art of failure: the stifled laugh in Beckett´s theater.” In:
Prospecting: from reader response to literary anthropology. Baltimore/London: The John Hopkins University
Press, 1989.
35
GONTARSKI, Stanley E.. “Birth astride a grave: Samuel Beckett’s ‘Act without words I’”. In: Jornal of
Beckett Studies. Edited by James Knowlson. English Department at Florida State Univ., nº 01, winter 1976.
Edited by James Knowlson. Disponível em: http://www.english.fsu.edu/jobs/num01/Num1Gontarski.htm >
Acesso em: 12 mar. 2008.
79
espaços alternativos. Por outro lado, para serem apresentadas como programas de teatro, as
peças curtas esbarram numa convenção temporal que se baseou na duração de peças de dois
ou de três atos, o que as classifica como demasiado breves para justificar uma montagem
exclusiva. Deste modo, as montagens destes textos geralmente acompanham a de outro texto,
como ocorreu com Fim de Jogo, ou reúnem três ou mais peças curtas para preencher um
intervalo maior de tempo.
A partir da duração, as peças curtas e isto é mais notável nas peças dos anos 70 e 80
distanciam-se das definições convencionais de peça teatral. Enoch Brater, em seu livro
sobre o estilo das peças mais recentes de Beckett, sugere a denominação de “performance
poema” para aquilo que ele considera inapropriado chamar de “texto” trata-se, segundo ele,
de “uma ordem específica para uma encenação específica”, cuja duração estará limitada a
“quinze ou vinte minutos” (BRATER, 1987, p. 03-4). Gontarski, em sua palestra Re-dirigindo
Beckett, apresentada no centro cultural Oi Futuro, no Rio de Janeiro, no dia 11 de março de
2008, citou um diálogo de Beckett com a atriz Billie Whitelaw, durante os ensaios de Passos
(Footfalls), peça de 1975, em que ele teria afirmado que suas peças estariam se encaminhando
para algo cada vez mais “além do teatro”. Whitelaw teria respondido: “Perhaps I should be
pacing up and down in the Tate Gallery”
36
, referindo-se ao modo muito específico como sua
personagem se desloca nesta peça.
Mas como o Ato sem Palavras, elas foram pensadas para o palco italiano e suas
principais montagens aconteceram aí. Na palestra citada, em que destacou a ligação profunda
de Beckett com as artes visuais, Stanley Gontarski sugeriu, a partir da reduzida mobilidade
que caracteriza o Improviso de Ohio, de 1980, que o palco italiano, com sua moldura,
contribuiria fortemente para destacar a dimensão pictórica destas peças, revelando muitas
cenas como verdadeiros quadros.
Uma diferença aparece ressaltada entre o Ato sem palavras, visto a partir dos
comentadores referidos por Gontarski
37
, e os textos curtos produzidos nas décadas
subseqüentes, a partir de dois de seus comentadores. Se o primeiro é visto como algo explícito
e banal; os últimos são freqüentemente citados como produções enigmáticas, pouco comuns
ao formato teatral, capazes de induzir no espectador novos modos de percepção. A respeito de
dois destes textos - Aquela vez, tema deste estudo e Eu não, de 1975 -, Enoch Brater (1987, p.
37) comenta o seguinte: “Composições visuais refinadas com uma impressão de vida
espontânea, as duas obras exibem um máximo de intensidade emocional com um mínimo de
36
“Talvez eu devesse estar andando ritmadamente na Tate Gallery.” [Tradução minha]
37
Gontarski cita os seguintes comentadores, em seu artigo: Ruby Cohn, Ihab Hassan e John Spurling.
80
definição [grifos meus]”. Sobre uma montagem comemorativa dos setenta anos do autor, cujo
programa exibia Peça (Play), Aquela vez e Passos, Katharine Worth observa que: “O estreito
foco visual e a pressão do escuro geravam um efeito desorientador”
38
.
Gontarski
39
admite que o Ato sem palavras contraria determinados aspectos da obra,
ao excluir as palavras, ao não exibir deformidades físicas, ao fazer seu personagem ativo e
saudável durante a maior parte do tempo, ao instituir uma seqüência linear de ações, ao
apresentar um formato “mais tradicional e didático que o de outras obras”. Entretanto, ele
contraria o argumento de John Spurling de que esta peça tenderia para o banal, demonstrando
como o seu principal elemento estruturador (a relação do personagem com uma força exterior)
dialoga com a mitologia clássica, com a Bíblia e com a arte contemporânea e como o seu final
revela-se uma resposta original e ambígua para questões que o autor explorou na totalidade de
suas obras.
Ao longo do ato, o personagem, chamado homem, comportar-se-á como cobaia “de
uma experiência behaviorista”, respondendo aos estímulos de um apito, o qual anuncia a
presença de elementos para o seu conforto, como sombra e água, bem como de instrumentos
para atingir estes objetos, como cubos, corda e tesoura. As dificuldades para alcançar os
objetivos se revelam uma constante - as folhas da árvore, que fornecem a sombra, fecham-se
como uma sombrinha; a água, que desce em um pote, recua, logo que o homem consegue se
aproximar.
O tempo curto deste ato revela, por meio da repetição, a impossibilidade de realização,
em um ambiente profundamente hostil, o que leva o protagonista a se rebelar, a permanecer
impassível diante dos novos convites para a experiência. Na visão de Gontarski, este final
indica um novo nascimento do homem, que residiria na renúncia aos mandamentos da força
exterior, na renúncia à existência como mero cumprimento de necessidades vitais. Nesta
mortificação, aqui expressa sob a forma de inatividade, ocorre o nascimento de um novo
homem, paradoxalmente mais ativo, pois não mais enganado por uma realidade ilusória.
Paradoxalmente, este nascimento ocorre no fim, e o olhar final deste homem para as próprias
mãos pontua uma expressão da impossibilidade do artista como “onipotente e onisciente”,
38
WORTH, Katharine J.. “Review article: Beckett’s fine shades: Paly, That Time e Footfalls.” In: In: Jornal of
Beckett Studies. Edited by James Knowlson. English Department at Florida State Univ., nº 01, winter 1976.
Edited by James Knowlson. Disponível em: <http://WWW.english.fsu.edu/Jobs/num01/Num1Worth.htm>
Acesso em: 12 mar.2008.
39
GONTARSKI, Stanley E.. “Birth astride a grave: Samuel Beckett’s ‘Act without words I’”. In: Jornal of
Beckett Studies. Edited by James Knowlson. English Department at Florida State Univ., nº 01, winter 1976.
Edited by James Knowlson. Disponível em: http://www.english.fsu.edu/jobs/num01/Num1Gontarski.htm >
Acesso em: 12 mar. 2008.
81
tendências que Beckett identificou em James Joyce e que se afirmava completamente incapaz
de realizar.
O título do artigo de Gontarski é retirado de um enunciado emitido pelo personagem
Pozzo, em Esperando Godot: “They give birth astride of a grave, the light gleams an instant,
then it’s night once more”
40
(BECKETT, 1990, p. 83). A reunião entre o tempo de nascer e o
de morrer é exposta em uma frase curta e direta, como aquela pequena mímica, composta para
um ator. A frase de Pozzo representa para Brater (1987, p. 05) uma metáfora que suporta toda
a ação de Esperando Godot, oferecendo um clímax pelo qual o espectador ansiava, um
momento em que a visão poética sobrepõe-se à vitalidade das situações cômicas. Ainda de
acordo com este autor, as peças curtas das décadas de 70 e 80 consistem na extensão de tais
momentos de modo a abranger toda a extensão do drama. Se Pozzo encerra, em suas breves
palavras, o sentido das ações cumpridas por Vladimir e Estragon, ao longo dos dois atos; as
peças curtas, devido à sua própria duração, transmitem a impressão de visões poéticas, as
quais intensificam, no instante da representação, a luz sobre aspectos fundamentais da vida
dos personagens.
Apesar de curto, entretanto, o Ato sem palavras desenvolve o seu sentido a partir de
uma seqüência lógica de ações. Neste ponto, diferencia-se de peças mais recentes, como Eu
não e Aquela vez que, na visão de Brater (1987, p. 04), transformaram drama e performance
em uma coisa só, ocasião em que o autor comunica ao público uma imagem carregada de
mistério. É bem mais simples, neste sentido, proceder a uma síntese a respeito da primeira
peça, no sentido de comunicar o modo como a sucessão de ações desenvolve uma idéia, do
que fazer o mesmo com estas últimas. Há mais do que uma Boca desgarrada sendo ouvida por
um personagem indistinto e mais do que um homem ouvindo seus próprios pensamentos e
lembranças. Os recursos teatrais se prestam a adensar a situação vivida pelos personagens de
tais peças, de modo que a solidão da Boca no escuro, bem como a velocidade desenfreada de
sua fala, materializam a dificuldade que ela revela para reconhecer esta voz como sua, para
apreender o sentido das palavras e para deter este discurso estranho. Toda a disposição da
cena, em Aquela vez, confirma a percepção do Ouvinte de que toda sua vida fora
acompanhada por vozes, que nada mais eram do que a sua própria voz falando dele mesmo e
buscando preservá-lo do vazio.
Peça, escrita em 1963, cujo título brinca com o própria gênero da obra, é mais uma
destas peças que duram pouco e impossibilitam uma definição que não leve em conta a
ocasião teatral que ela demanda. Ao contrário do Ato sem palavras, é uma peça que exercita a
82
expressão verbal. É através das palavras que o espectador conhecerá o caso de adultério que
constitui o enredo ouvindo as versões de cada uma das três partes envolvidas: o marido, a
esposa e a amante.
A fala destes personagens é acionada pelo refletor de luz, um “quarto personagem”,
um “único inquisidor”, que ora incide sobre uma das faces, ora sobre as três. Nos momentos
em que a luz ilumina os três, eles falam ao mesmo tempo, configurando o que Beckett
chamou de refrão. Deste modo, suas falas surgem com a luz e são cortadas pela mesma, o que
implica no aparecimento e no desaparecimento de enunciados breves e fragmentados, que se
reúnem para configurar o enredo. A peça não se resume neste enredo apenas. É necessário
dizer, por exemplo, que os personagens que contam aquela história encontram-se confinados
em três urnas funerárias, dispostas lado a lado, e que o espectador visualiza apenas suas
cabeças. Eles olham o tempo todo para a frente e parecem não estar conscientes da presença
uns dos outros, de modo que entre eles não se encontra estabelecida nenhuma relação que
dependa de suas próprias vontades.
Se o sujeito, segundo Szondi (2001, p. 29), apresenta-se como presença dramática
através dos seus conteúdos interiores, os quais se revelam por meio da liberdade e da decisão
manifestas em suas ações; há, nesta peça, certamente, uma presença de outra natureza.
40
“Eles dão à luz montados em um túmulo, a luz brilha um instante, e aí é noite outra vez.” [Tradução minha.]
83
Play. Maryland Stage Company, 2000.
A rubrica sugere que as faces dos atores devem “perder a idade e o aspecto a ponto de
parecerem parte das urnas” (BECKETT, 1990, p. 307). Trata-se de mais uma maneira de
eximir as personagens de traços individuais, o que já se insinua na eliminação de nomes
próprios. As criaturas aqui são chamadas W1, W2 e M (Mulher 1, Mulher 2 e Homem). Nas
primeiras peças curtas, os nomes próprios já desapareciam, dando lugar a letras. No Ato sem
palavras II, as letras denominam os dois personagens (A e B), bem como uma pilha de roupas
que eles manipulam (C), o que intensifica a percepção de seres humanos como entidades
reduzidas ao desempenho de atividades puramente mecânicas. No Rascunho para teatro II,
texto do final da década de 1950, além do emprego de letras, há um dado curioso envolvendo
o personagem C: sua face permanece um mistério para o público, durante todo o espetáculo,
uma vez que ele se situa junto a uma janela no fundo da cena, de costas. Curiosamente, este
personagem imóvel torna-se a figura mais expressiva da cena, uma vez que é o seu passado e
o significado de sua existência que emergem da discussão entre os dois outros personagens, A
e B.
84
Estas peças desenvolvem assim um recurso que será essencial para peças futuras,
como Aquela vez, permitindo, por exemplo, o desmembramento de uma individualidade por
meio da tripartição de uma única voz em A, B e C, e da designação do personagem em cena a
partir da função que ele desempenha, Ouvinte. Este último recurso se faz presente também em
Solo (A piece of monologue), de 1979, em que o personagem é meramente chamado Falante
(Speaker); e no Improviso de Ohio, onde dois personagens, “tão semelhantes quanto
possível”, são chamados Leitor e Ouvinte. Este procedimento instaura, sobre a cena, uma
complexidade que dependerá da capacidade integradora e sintética de cada espectador.
Esta forma de apresentação dos personagens, baseada na extirpação de características
como rosto e nome, manifesta uma diluição da identidade que se desenvolve desde
Eleutheria, onde o personagem Victor, de acordo com Knowlson (1996, p. 330), é “um
personagem sem face”, que não manifesta seus desejos, necessidades ou idéias, revelando-se,
portanto, apenas a partir de características que se furta a assumir. Isto o torna um “peso morto
dramaticamente”, contagiando a peça com sua falta de definição, sem que este drama
fracassado seja, segundo o autor, algo “uniforme” ou “sem interesse”.
Há evidências deste processo na ausência de Godot, realidade que ameaça a existência
de Vladimir e Estragon, revelando-a uma mera repetição de ações abortadas. Em Fim de Jogo,
são exemplares o início e o fim, em que o protagonista Hamm tem o rosto coberto,
respectivamente, por um lençol e por um lenço, repetição que Adorno (1965, p. 63-5) percebe
sobrepôr-se às “intenções” e aos “estados de expressão”, evidenciando que nenhuma
individualidade é possível, que ela consiste numa mera representação fadada a se repetir (“não
há outra vida senão a falsa”).
A limitação dos movimentos de Winnie, em Dias Felizes, certamente antecipa o
estado dos personagens em Peça, mas se aquela ainda oferecia um cenário trompe-l’oeil, em
que um céu (...) encontra um horizonte na distância (BECKETT, 2002a, p. 02); nesta
última, o público nada divisará no escuro que circunda as três urnas. Neste sentido, a
escrivaninha de Krapp já se mostrava envolvida pelas trevas e um certo número de ações
ocorria em uma arena inacessível aos olhos do espectador, tornando-se meros estímulos
sonoros que poderiam ser incorporados na constituição da imagem do “velho homem
fatigado”.
A grande novidade em Peça, entretanto, é o fato de a luz ser a responsável por acionar
o discurso e a representação. Aqui, o desejo de Clov de um “mundo onde tudo estivesse
quieto e imóvel” (BECKETT, 1990, p. 120) insinua-se nos momentos em que o refletor
abandona os personagens, alívio manifesto na fala de um deles: “Silêncio e escuridão foram
85
tudo por que eu implorei. Bem, eu tive um pouco dos dois. Eles sendo um”
41
(BECKETT,
1990, p. 316). A estrutura da peça revelará, entretanto, a impossibilidade de descanso. Como
Winnie não podia jamais descansar, dada a insistência da campainha; as criaturas de Peça
estão condenadas a aparecer, a se tornar presentes por meio da luz e a desenvolver (ou
repetir), diante do espectador, uma versão de sua história.
Knowlson (1996, p. 383) revela que Peça, assim como Dias Felizes, possui vestígios
de “claustrofobia raciniana”, uma vez que Beckett teria procedido, no período, a uma releitura
das peças de Racine e teria vislumbrado nelas “possibilidades para o teatro de hoje”.
Interessava-o particularmente o fato dos personagens destas peças habitarem um mundo
fechado, onde pouco ou nada mudava. Talvez porque o contexto destas personagens se
assemelhe ao próprio contexto envolvendo atores e espectadores em uma representação
teatral, o dramaturgo percebeu que tais peças favoreciam a concentração em “verdadeiras
essências do teatro”, a saber: tempo, espaço e discurso.
Deste modo, os personagens de Peça - como Winnie, no segundo ato de Dias Felizes -
podem olhar apenas para a frente e falar diretamente aos espectadores. Em determinado
momento, o Homem torna evidente que a situação significativa não é mais aquela do enredo,
a do adultério, mas as condições mesmas em que se dá a representação daquela história: “(...)
quando tudo isto terá sido... apenas peça?”
42
A organização dos elementos contrasta com a
banalidade do enredo, de modo que alguém que fosse compelido a descrever aquilo que
assistiu no teatro, provavelmente permaneceria mais fortemente atado à disposição dos
corpos, à imobilidade dos mesmos, à velocidade das falas, à ação da luz e à repetição do que à
descrição da história.
Outros fatores realçam a dimensão teatral da peça e desviam a percepção do
espectador do enredo para a organização da cena. Um deles é a velocidade pouco comum
solicitada para a dicção dos atores, a qual fora precisada durante a montagem londrina do
texto, dirigida por George Devine e acompanhada por Beckett. De acordo com Knowlson
(1996, p. 459), a dicção foi tão acelerada que contrariou o desejo dos atores de contarem uma
história, de ouvirem e serem compreendidos por seus espectadores. A solicitação de uma voz
sem tom, “exceto onde uma expressão é indicada”, descaracteriza o discurso de nuances
psicológicas, de modo que não há espaço para que conteúdos interiores se insinuem. Um
outro fator, bastante extraordinário, aparece no final do texto, após a última fala do Homem.
41
Tradução minha para: “Silence and darkness were all I craved. Well, I get a certain amount of both. They
being one.”
42
Tradução minha para: “(...) when will all this have been... just play?” (BECKETT, 1990, p. 313).
86
Trata-se de uma indicação aparentemente simples - “repetir a peça” -, mas que solapa
qualquer tentativa de compreender a ação como tendendo para um fim, onde estes
personagens se apresentarão sob uma luz estável ou definitivamente encobertos pelas trevas.
Estas criaturas estão condenadas a repetir uma mesma história, que elas identificam como
“peça”, representação que reconhecem não coincidir com a verdade: “Será que eu não digo a
verdade, será isto, e será que algum dia, de alguma forma, eu direi a verdade enfim, e então
não mais luz enfim, pela verdade?”
43
. (BECKETT, 1990, p. 313).
O drama aqui se aproxima da música, permitindo aos espectadores a percepção de uma
tendência abstrata procurando envolver as palavras, convertê-las em puro som. A linguagem
revelará, entretanto, a impossibilidade de efetuação de tal tendência, uma vez que, conforme
destacado por Paul Lawley, a repetição da peça diminui a sensação de linguagem abstraída,
acentuando, pelo contrário o caráter fixo das palavras, blocos opacos de “artilharia aural”,
veiculando um enredo absolutamente cíclico. “O que testemunhamos não é uma busca pela
verdade, mas um esforço frenético para sobreviver ao confronto com a luz”
44
.
Lawley percebe, deste modo, que há, nesta peça, um contraponto entre o texto
pronunciado pelos personagens e a imagem cênica em que eles se encontram inseridos. O
primeiro aponta para um passado onde o incidente amoroso ocorreu, a segunda enfatiza o
tempo presente como o tempo da encenação. Este presente ganha maior relevo, dada a forma
incomum como os personagens se instauram em cena: dentro de urnas, reagindo ao impulso
da luz, repetindo a mesma história. Uma percepção que se detivesse sobre este aspecto seria
chamada, de acordo com aquele autor, “uma percepção sincrônica”.
Este conceito apresentado por Lawley me parece fundamental para identificar
determinados processos desenvolvidos pelas peças de Beckett. À percepção sincrônica opõe-
se a percepção diacrônica, que é a percepção linear, narrativa. As peças de Beckett não
excluem esta última. A percepção da história estará sempre atuante, ainda que para compor
uma fábula incompleta, decepcionante, desacreditada. Mas o modo muito preciso com que a
sincronia entre os elementos artísticos é trabalhada, por vezes, aprofunda a percepção em um
determinado segundo, isolando-o da totalidade da obra. Baseio esta conclusão em um
exemplo que me soa bastante claro, retirado de Trio do Fantasma (Ghost Trio), peça
televisiva de 1975, que Beckett dirigiu pessoalmente para a tevê alemã. Tive oportunidade de
43
Tradução minha para: “Is it that I do not tell the truth, is that it, that some day somehow I may tell the truth, at
last and then no more light at last, for the truth?”
44
Lawley, Paul. “Beckett’s dramatic counterpoint: a reading of Play.” In: Journal of Beckett Studies. Edited by
John Pilling. English Department at Florida State Univ., nº 9, spring 1983. Disponível em:
<http://www.english.fsu.edu/jobs/num09/Num9Lawley.htm> Acesso em: 15 de mar. 2008.
87
assistir a este trabalho, durante o evento que comemorou os 100 anos do autor, no Centro
Cultural Telemar, no Rio de Janeiro, em 2006
45
.
Trata-se de uma filmagem em preto e branco, de um único cenário: um aposento. O
roteiro estabelece três posições para a câmera (A,B e C). Em A, temos uma visão geral do
cenário. Em B, uma aproximação média do conteúdo deste espaço. C consiste, finalmente,
numa posição bastante próxima da figura masculina, que encontra-se sentada em um banco,
debruçada sobre um objeto. Em A, podemos ouvir uma música suave (um trio para piano de
Beethoven, que dá nome à peça). Quando a posição da câmera muda de A para B, a música
continua baixa. Ela aumenta quando a posição se transfere para C. A partir deste ângulo, é
possível identificar o objeto sobre o qual o personagem se debruça como um gravador, de
onde brota a música ouvida. Quando a câmera em C executa um close em direção às mãos e à
cabeça do personagem, que apóiam o gravador, este movimento é acompanhado de um
aumento suave, mas progressivo, do volume da música.
Inúmeros significados podem se desdobrar a partir deste gesto, os quais podem servir
para integrar uma história. Mas o fato é que, neste momento, instaura-se um modo
diferenciado de perceber, onde a interação entre os meios disponíveis gera no espectador uma
sensação muito forte de proximidade, que no seu ápice não revela mais do que isolamento e
mutismo.
Na televisão ou no teatro, a ênfase na percepção sincrônica acentua as qualidades do
momento destinado à apreciação da obra, estimulando as faculdades da escuta e da visão e
revelando ao espectador como a configuração de um sentido depende do modo como aquelas
faculdades operam. Em Peça, a forma des-humanizada com que são apresentados os
personagens detém a atenção do espectador de forma mais efetiva do que o enredo disperso
que sai de suas bocas. Estes personagens suspeitam estar, como os espectadores, “procurando
por sentido onde possivelmente não há nenhum”. Algumas falas destes personagens
expressam a atenção a este tempo presente, que é um tempo de encenação. Em suas últimas
falas, o Homem diz:
45
No dia 18 de jul. de 2006, o professor Luiz Fernando Ramos, da USP, proferiu a palestra Peças para TV, em
que exibiu as versões de Ghost Trio, Quad, ...but the clouds... e Nacht und Traume, todas dirigidas pelo próprio
Beckett para a tevê alemã.
88
E agora, o que você é... mero olho. Apenas olhando. Para minha face. Fechando e
abrindo. (...) Procurando por alguma coisa. Em minha face. Alguma verdade. Nos
meus olhos. Não mesmo. (...) Meros olhos. Nenhuma mente. Abrindo e fechando
sobre mim. Eu sou tanto quanto...(...) Eu sou tanto quanto... sendo visto?
(BECKETT, 1990, p. 317)
46
Ghost Trio. Karl Herm, dirigido por Beckett. (Foto: H. Jehle)
A investida contra a significação da linguagem torna-se uma investida contra a
interioridade. Uma vez que a verdade, conforme diagnosticado antes, não pode estar nas
palavras; o pensamento e a própria história, enquanto constituídos de palavras, invalidam-se.
“Mas eu disse tudo que eu podia. Tudo que você me deixou”
47
(BECKETT, 1990, p. 313)
Lawley percebe nesta fala da Mulher 1 a idéia de que estes seres já esgotaram tudo o que
tinham para dizer, e que a única alternativa que lhes restou foi a repetição. Ganha sentido
especial as palavras citadas acima e que identificam silêncio e escuridão com verdade, uma
vez que a luz e a linguagem são geradoras do oposto da verdade re-presentação. A peça se
encontra neste oposto, justamente porque a verdade reside em algo que a linguagem não pode
capturar.
46
Tradução minha para: “And now, that you are… mere eye. Just looking. At my face. On and off. (…)_
Looking for something. In my face. Some truth. In my eyes. Not even. (…) Mere eye. No mind. Openning and
shutting on me. Am I as much- (…) Am I as much as… being seen?”
89
Iser (1989b, p. 145), em seu ensaio sobre o padrão da negatividade em Beckett, cita
Merleau-Ponty para afirmar que “a identidade só pode existir como experiência e nunca como
conhecimento”. Estar vivo, segundo ele, significa não saber o que isto significa, uma vez que,
atendo-se a determinados conceitos e conhecimentos, o indivíduo se distancia da
“experiência” e da “auto-evidência”, exilando-se, portanto, em uma outra coisa. Isto revelaria
porque muitos dos personagens de Beckett já sabem desde o início que não podem conhecer
realmente alguma coisa; mas tal certeza não os satisfaz. Como Malone, estes personagens
seguem desenvolvendo ficções e anulando-as imediatamente, pois ao fazê-lo, têm a certeza de
que não estão inventando a si mesmos, “pois qualquer concepção de si mesmo só pode ser
uma ficção”. Como contraponto a uma presença que se revela apenas “peça”, estes
personagens sonham com a escuridão e o silêncio, inatingíveis, onde podem descansar da
falsidade de sua própria representação.
Estas criaturas revelam-se, portanto, uma espécie muito particular de personagens,
cuja própria realidade é posta em dúvida. Sua presença sobre o palco é uma resultante da luz,
bem como do olhar que os espectadores lhes destinam. Neste sentido, o dispositivo de Peça,
baseado no papel ativo da luz, materializa de maneira mais impactante o temor do
personagem Hamm de que a sua presença viesse a significar alguma coisa. A presença revela-
se agora um processo, incessantemente produzido sob a forma de representação. Lawley
define este processo como “paródia de presença”.
O Dicionário de teatro define paródia como a “peça ou fragmento que transforma
ironicamente um texto preexistente”, e acrescenta, a partir dos formalistas russos que “o
elemento parodiante se opõe aos procedimentos automatizados e estereotipados” (PAVIS,
2005, p. 278). Deste modo, o emprego de elementos da tradição teatral, como o
emparedamento raciniano e o clichê do triângulo amoroso, se prestam ao desenvolvimento de
um novo modo de percepção. Se os principais elementos da literatura dramática “exposição,
complicação, enredo, peripécia e catástrofe” - apareciam em Fim de Jogo, sob a condição de
serem parodiados (ADORNO, 1985, p. 68); Peça se deterá em um elemento fundamental da
realização teatral, a presença do ator.
Os três atores estão ali, mas se encontram des-humanizados tanto na disposição física
quanto no modo mecânico como contam e re-contam suas histórias, elementos que ironizam a
representação de um drama que já é conhecido há muitos séculos. Mas o teatro é uma partida
jogada com o espectador e Beckett incorpora aquele na execução de sua paródia, tornando-o
cúmplice da luz. Porque toda a representação é desencadeada pela luz e também para ele, para
47
Tradução minha para: “But I have said all I can. All you let me.”
90
o seu olho percebedor. Ao enfatizar este processo, Beckett instabiliza um dado fundamental e,
portanto, inquestionável do teatro, a presença
48
. Ele faz deste pressuposto uma questão e
torna-o mais importante do que todo o drama ou toda a comédia que podem estar contidos nos
desdobramentos do triângulo amoroso que constitui o enredo.
A paródia da presença é atribuída, deste modo, a uma ênfase na “percepção
sincrônica”, em detrimento da “percepção diacrônica”, percepção da narrativa e de seus
desdobramentos, a qual não é inteiramente anulada, mas adquire uma importância secundária.
Este processo pode ser bastante explicitado, através das peças mais recentes, como Passos, de
1975. Trata-se de uma peça para uma personagem, May, e uma voz gravada, V, a voz de sua
mãe, que emerge do escuro. A peça é dividida por blecautes em quatro partes. Na primeira
delas, May dialoga com a voz; na segunda, May permanece em silêncio e apenas a voz
aparece; na terceira, a voz se cala e May fala sozinha; finalmente, na última parte, não há
ninguém em cena. Nas três primeiras partes, May se locomove, ritmadamente, de um lado a
outro, sobre uma faixa de luz, paralela ao proscênio - fortemente iluminada “no nível do chão,
menos no corpo, menos ainda na cabeça” (BECKETT, 1990, p. 399). O resto do palco
permanece nas trevas.
Na segunda parte, a voz revela que a faixa de chão foi outrora coberta por carpete e
que um dia May teria dito que “o movimento apenas não é suficiente, eu preciso ouvir os pés,
por mais fraco que eles pisem”
49
(BECKETT, 1990, p. 401). O emprego da narrativa em cena,
através da voz da mãe, frustra a expectativa quanto à instauração de uma “percepção
diacrônica”, ou seja, tal narrativa não instaura um desenvolvimento temporal linear que
envolva seus personagens, mas torna-se apenas uma descrição da cena, servindo para
enfatizar o gesto que acontece aí. Os passos de May devem ser “claramente audíveis”, de
48
É possível fazer este processo dialogar com algumas passagens da prosa e da obra dramática, como a descrição
pela personagem Mrs. Rooney, na peça radiofônica Todos os que caem (All That Fall), de uma conferência
proferida por um psicanalista. Este cientista teria se referido a uma paciente jovem, muito estranha e infeliz, que
ele não pôde curar. Durante esta conferência, o homem teria tido uma luz e revelado a seguinte descoberta: “O
seu problema era que ela nunca havia realmente nascido!” [The trouble with her was she had never really been
born!] (BECKETT, 1990, p. 196)
Em Fim de Jogo, Hamm pede a Clov que observe a Terra, para em seguida confessar: “Eu nunca estive
lá” [I was never there] (BECKETT, 1990, p. 128).
E um dos pequenos textos em prosa dos anos 60, chamados foirades, se inicia assim: “Eu desisti antes
de nascer, não dá pra ser de outro jeito, é preciso que se nasça, entretanto, eu estou dentro, é por aí que eu vejo a
coisa, foi ele que gritou, foi ele que viu o dia, eu não gritei, eu não vi o dia, é impossível que eu tenha uma voz, é
impossível que eu tenha pensamentos, e eu falo e penso, eu faço o impossível” [J’ai renoncé avant de naître, ce
n’est pás possible autrement, il fallait cependant que ça naisse, ce fut lui, j’étais dedans, c’est comme ça que je
vois la chose, c’est lui qui a crie, c’est lui qui a vu lê jour, moi je n’ai pás crie, je n’ai pás vu lê jour, il est
impossible que j’aie des pensées, et je parle et pense, je fais l’impossible] (BECKETT, 1991, p. 27)
Todos os trechos citados sugerem uma ruptura profunda entre a vida e as formas como ela se manifesta
(representações). A “paródia da presença” foi o procedimento desenvolvido para que os meios teatrais
expressassem esta tensão.
91
modo que narrativa, luz e som se prestam a sublinhá-los. O ritmo daqueles apodera-se
inclusive da fala das personagens, quando esta se torna a mera repetição do ritmo dos passos
“Um dois três quatro cinco seis sete oito nove vira um dois três quatro cinco seis sete oito
nove vira” (BECKETT, 1990, p. 399).
É significativo que os passos sejam tão ressaltados em uma personagem que admite,
ainda que disfarçada sob o anagrama Amy, através do qual refere-se a si mesma: “Eu não vi
nada, nada foi ouvido, de nenhum tipo. Eu não estava aí”
50
(BECKETT, 1990, p. 403). Este
enunciado, de certa forma, materializa-se na última parte, quando o fade up, atingindo seu
nível mais fraco de luz sobre a faixa, revela, durante 10 segundos, que não há “nenhum traço
de May”. Como a presença dos personagens de Peça, a presença de May é instabilizada e
todo o desenvolvimento da peça concentra-se sobre este dado paradoxal, a possibilidade da
ausência no ponto para onde verteram todos os recursos expressivos a fim de denotar
presença.
O diretor americano, Alan Schneider, responsável por inúmeras encenações das peças
de Beckett, declarou o seguinte: “Todas as peças de Mr. Beckett são completas; algumas
duram mais do que outras, isto é tudo, mas elas são todas completas”
51
(apud BRATER, 1987,
p. 51). Sua declaração esclarece que os processos engendrados pelas peças longas são de uma
mesma natureza do que aqueles engendrados por peças que duram menos.
Muitas das idéias reveladas pelas peças mais recentes já se encontravam desenvolvidas
em textos anteriores. Um exemplo pode ser extraído da comparação entre uma fala de Hamm,
em Fim de Jogo, e todo o dispositivo de Aquela vez, escrita quase vinte anos depois. Na
primeira, ouve-se um personagem falando sobre a futilidade de seu próprio discurso: “Então
balbuciar, balbuciar, palavras, como a criança solitária que se desdobra em crianças, duas,
três, de modo a estar acompanhada, e suspirar acompanhada, no escuro” (BECKETT, 1990, p.
126). Na segunda, o espectador ouve fragmentos de uma mesma voz, espacializados no
escuro, direcionados para uma solitária cabeça. Em dado momento, uma destas vozes repete o
pensamento de Hamm, o que apenas descreve e reforça a originalidade de uma cena onde as
vozes separam-se de seu dono e tornam-se protagonistas.
49
Tradução minha para: “The motion alone is not enough, I must hear the feet, however faint they fall.”
50
Tradução minha para: “I saw nothing, heard nothing, of any kind. I was not there.”
51
Tradução minha para: “All of Mr. Beckett’s plays are full-length; some of them are longer than others, that’s
all, but they’re all full-length.”
92
A maior consciência das potencialidades do palco (atribuída, com freqüência, às
incursões de Beckett na área da direção teatral
52
) implicou na busca por um controle mais
preciso das dimensões da cena, no sentido de produzir uma experiência breve, mas intensa, de
uma natureza pouco comum às diversas manifestações da linguagem cênica. A duração que
já era profundamente expressiva nas duas longas horas de representação da espera por Godot
torna-se prioritariamente um elemento de sentido. Assim, Robert Kudielka (2000, p. 70)
afirma ter assistido, durante os 16 minutos que duravam a montagem de Eu não, dirigida por
Anthony Page e por Beckett, no Royal Court Theatre de Londres, em 1973, a “um dos
acontecimentos teatrais mais ‘puros’ que os palcos já viram”:
Depois de o espectador ser logo de cara fixado pelo feixe de luz e hipnotizado um
bom tempo pelo palavrório que se desmente a si mesmo da boca sem corpo no canto
superior direito do palco, o olho começava a vagar. O escuro iluminava-se aos
poucos num cinza opaco, e tão logo no canto esquerdo do palco tornava-se
reconhecível uma estrutura esquisita, monstruosa talvez um confessionário, mas
com suaves adejos -, o monólogo chegava ao fim.
A este instante impactante e polifônico passado no teatro, Kudielka contrapõe a
montagem alemã daquele mesmo ano, que estendeu a peça em 45 minutos, para “preencher a
sessão”.
O tempo constitui mais um dos elementos do teatro sobre o qual Beckett operou de
maneira original (“pura”). Sua peça mais curta chama-se Respiração (Breath), escrita em
1969, e dura cerca de 35 segundos. Não há personagens em cena, mas apenas uma miscelânea
de lixo, disposta sobre o palco de modo horizontal. Os cinco primeiros segundos apenas
revelam este material iluminado por uma luz fraca. Nos dez segundos seguintes, a luz
aumenta sem atingir o brilho e este movimento é acompanhado por um som de inspiração,
que se segue a um breve choro, um vagido, gravado. A luz se mantém por cinco segundos. A
partir daí, decresce, no que é acompanhada pela expiração e seguida pelo mesmo vagido de
antes. A fraca luz perdura mais cinco segundos. Trata-se apenas de 35 segundos, a duração de
uma respiração estendida.
Há uma tematização do tempo perceptivo do espectador, uma vez que cada segundo
tem precisamente calculada a densidade do material sonoro e visual oferecido. A luz é tênue,
o grito é fraco, os objetos, dispostos horizontalmente. Nada favorece a clara percepção. À
expectativa do observador, sobrepõe-se um ritmo que converge para um clímax onde não há
uma presença unificadora. “Eu nunca estive lá”. O palco desabitado demonstra que a presença
52
Veja-se: RAMOS. Luiz Fernando. O parto de Godot e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética
93
humana é aí parodiada, não na cena, mas no próprio modo do espectador perceber uma
presença. Este sujeito vê o fim do espetáculo antes que o seu entendimento tenha sido capaz
de reunir os dados em uma representação segura. Dificilmente, ele poderá contar uma história
a partir do que viu sobre o palco, mas ele terá assistido às suas próprias faculdades em ação,
tendo contato com aquilo que atesta, simultaneamente, a proximidade e o isolamento dos
objetos. Ao aproximar o espectador do som de uma respiração ou de corpos des-humanizados,
através da interação da luz, a percepção sincrônica aproxima-os da pluralidade de cada
instante vivido. Os sentidos que possibilitaram, um dia, a percepção de uma fábula são os
mesmos que, solicitados de modo diverso, percebem todos aqueles fatores que a história deixa
de abarcar um dos principais sendo a presença humana, que sentido nenhum é capaz de
suplantar.
da cena. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999.
TERCEIRO CAPÍTULO:
ESCUTA
NAGG: (...) Nossa audição não piorou.
NELL: Nossa o quê?
NAGG: Nossa audição
(BECKETT, 1990, p. 99).
53
53
NAGG: (...) Our hearing hasn’t failed.
NELL: Our what?
NAGG: Our hearing.”
95
3.1. As três escutas
Roland Barthes (1990, p. 217), em artigo destinado à análise da faculdade da escuta,
diferencia-a da faculdade da audição. A primeira seria uma evolução da segunda, consistindo
tal evolução na passagem de um ato fisiológico para um ato psicológico. A escuta só pode ser
definida por meio do seu objeto, ou seja, de sua intenção. Ao longo da história, este objeto
teria passado por inúmeras variações. Concentrando-se em algumas destas variações, Barthes
se permite “simplificar” o processo, de modo a definir três tipos de escuta.
A primeira escuta pode ser definida como um alerta. O autor afirma que, neste nível,
“nada distingue o animal do homem”. Trata-se de um direcionamento da faculdade da audição
para a detecção de índices: “o lobo escuta um ruído (eventual) de caça, a lebre um ruído
(possível) de agressor, a criança, o namorado escutam passos que se aproximam e que
poderão ser os passos da mãe ou do ser amado”. A citação permite entrever que esta escuta
diz respeito a um estado de atenção, um estado de espera, o qual pode vir a ser deflagrado
pelo surgimento de um objeto estranho. Um exemplo retirado de Esperando Godot pode
ilustrar bem esta escuta. Vladimir e Estragon aguardam o misterioso Godot, junto a uma
árvore despida de folhas, o que os impede de saber se trata-se da árvore correta que poderia
certificá-los do lugar exato para o encontro marcado. Como não têm meios para comprovar a
própria localização, eles passam a preencher o tempo com suposições a respeito das
expectativas que os levam a Godot e das possíveis respostas que ele trará. Em determinado
momento, Vladimir interrompe Estragon:
VLADIMIR: Escute!
[Eles escutam, grotescamente rígidos.]
ESTRAGON: Eu não escuto nada.
VLADIMIR: Hssst! [Eles escutam. ESTRAGON desequilibra-se, quase cai. Ele se
agarra ao braço de VLADIMIR, que cambaleia.eles escutam, agrupados.] Nem eu.
[Suspiros de alívio. Eles relaxam e se separam.]
ESTRAGON: Você me assustou.
VLADIMIR: Eu pensei que fosse ele.
ESTRAGON: Quem?
VLADIMIR: Godot.
ESTRAGON: Pah! O vento nos caniços (BECKETT, 1990, p. 20-1)
54
.
54
“VLADIMIR: Listen!
[They listen, grotesquely rigid.]
ESTRAGON: I hear nothing.
VLADIMIR: Hssst! [They listen. ESTRAGON loses his balance, almost falls. He clutches the arm of
VLADIMIR, who totters. They listen, huddled together.] Nor I. [Sighs of relief. They relax and separate.]
ESTRAGON: You gave me a fright.
VLADIMIR: I thought it was he.
ESTRAGON: Who?
VLADIMIR: Godot.
96
O instinto permite que o homem, como o animal, perceba a intervenção de um ruído
em um “espaço de ruídos familiares, reconhecidos”. Neste sentido, a escuta, ainda neste
primeiro nível, constitui a demarcação de um território. Vladimir e Estragon têm dificuldade
em reconhecer o lugar onde combinaram de se encontrar com Godot, mas, à medida em que
nenhuma mudança se precipita neste ambiente, eles se apropriam dele, envolvendo-o com um
diálogo que tem o caráter de passatempo. Este diálogo esvaziado de significados serve para
cobrir o silêncio e neste sentido, as indicações de silêncio proliferam-se nas rubricas deste
texto, ao contrário do que ocorre em peças como Fim de Jogo e Dias Felizes. Este silêncio
tem o caráter de uma ameaça - a de que o encontro não vá se cumprir - e, ao ser povoado por
vozes, acaba por configurar o que Barthes (1990, p. 218) chama de “fundo auditivo”, um
espaço familiar e reconhecível. Mas a partir deste fundo, destaca-se a função da escuta,
constantemente alerta, a espera do ruído que possa constituir a definitiva ameaça ou a
satisfação da necessidade.
Isto permite afirmar que a audição é um sentido de avaliação espaço-temporal e que a
escuta desenvolve-se a partir dela, captando os “graus de distanciamento e de aproximação
regulares da estimulação sonora”. Estas informações já são suficientes para discorrer um
pouco melhor sobre os processos experimentados durante uma encenação de Aquela vez. A
dispersão do fluxo através de auto-falantes distanciados no espaço deve estimular, pelo menos
nas primeiras mudanças entre estas fontes, o sentimento de proximidade com relação ao
sujeito emissor daquela voz. Como esta é uma expectativa constantemente frustrada, a
mudança torna-se um ritmo (o próximo item deste capítulo investiga as variações deste ritmo)
e passa a solicitar a determinação de um significado. A escuta cumpre-se, deste modo, como
uma “função de inteligência” que, por meio da atividade de “seleção”, torna “distinto e
pertinente” o que se encontrava “difuso e indiferente”.
Na segunda escuta, já se encontram estabelecidos signos, o que a caracteriza como
uma atividade de decifração. Esta escuta implica no surgimento do ritmo, o que tornou
possível o desenvolvimento da linguagem, através de “um ir e vir do marcado e do não-
marcado, que chamamos paradigma” (BARTHES, 1990, p. 220). Neste ponto, Barthes cita
uma fábula apresentada por Freud para o nascimento da linguagem: uma criança marca a
ausência e a presença de sua mãe através de um jogo que consiste em lançar e retomar um
carretel amarrado em um barbante. Enquanto esta criança apenas espera por sua mãe, ela
ESTRAGON: Pah! The wind in the reeds.”
97
efetua a primeira escuta, baseada em índices. A partir do momento que passa a “vigiar
diretamente o aparecimento do índice e põe-se a mimar a volta de maneira regular, transforma
o índice em signo”. Deste modo, o indivíduo passa de um estado de “pura vigilância” para um
estado de criação, uma vez que produziu um código que serve para cifrar e, ao mesmo tempo,
para decifrar a realidade.
A escuta torna-se, neste sentido, uma faculdade que coloca o indivíduo diante do
“mistério”, algo que, “escondido na realidade, só pode vir à consciência humana através de
um código”. Este fato torna a segunda escuta, além de uma decifração, uma escuta de caráter
religioso. Barthes (1990, p. 221) torna exemplar a escuta dos antigos gregos, para os quais,
conforme dedução de Hegel, a natureza fremia de sentido e permitia que se traduzissem
profecias a partir do rumor das folhagens dos carvalhos de Dodona. Desta forma, a escuta se
volta para a decifração do que é obscuro, - “o ‘lado secreto’ do sentido (aquilo que é vivido,
postulado, intencionalizado como oculto)”.
A escuta foi uma faculdade profundamente dominada pelas instituições religiosas, ao
longo de sua história no Ocidente “escuta da palavra divina que sintetiza a fé, (...) escuta
que liga o homem a Deus”. Este processo tem profundas implicações na compreensão
moderna de indivíduo, uma vez que “a religião interioriza-se” e, com ela, a escuta, que passa
a ser uma escuta da intimidade, ou do Erro, fundamento da civilização judaico-cristã. A
instituição da confissão privada, “de boca a orelha”, no século VII, consistiu, neste sentido,
um passo fundamental para o desenvolvimento da interioridade, uma vez que favoreceu que o
objeto da escuta, aos poucos, se convertesse em consciência (BARTHES, 1990, p. 221).
Ora, tal escuta implica sempre na relação de dois sujeitos, onde um deles se cala “para
receber a mensagem de um só, que quer transmitir a singularidade da mensagem”. O aparelho
telefônico consiste assim num instrumento que potencializa a maneira como duas
individualidades se relacionam por meio da escuta, uma vez que “reúne dois parceiros em
uma subjetividade ideal, porque esse instrumento anula todos os sentidos, salvo a audição”
(BARTHES, 1990, p. 222). Beckett (1986, p. 20) cita uma passagem exemplar desta escuta,
retirada da obra de Proust. Trata-se de uma conversa telefônica entre Marcel e a avó, ocasião
em que aquele personagem consegue perceber, na voz desta última, algo que não fora possível
nas vezes em que estivera diante dela pessoalmente: “É uma voz sofrida, agora que sua
fragilidade não está mitigada e disfarçada pela máscara cuidadosamente preparada de suas
feições, e esta voz estranha e real é a medida do sofrimento de sua dona”.
Trata-se não apenas da decifração dos sentidos implícitos naquilo que é dito, mas na
própria ação de escutar, onde o silêncio do ouvinte torna-se ele também expressivo. Haja
98
vista, neste sentido, a disposição da peça Improviso de Ohio, de 1981, onde aparecem como
personagens um Leitor e um Ouvinte. De acordo com seu nome, este último personagem
permanecerá em silêncio, durante todo o tempo da peça, atento à leitura que o outro
personagem efetua em um livro. Determinados trechos desta leitura são interrompidos,
entretanto, por um gesto do Ouvinte - uma batida do seu punho sobre a mesa (BECKETT,
1990, p. 445). Tal gesto é uma ordem para que a leitura retroceda, de modo que a peça
desenvolve, através deste dispositivo, uma manifestação da escuta expressiva, que acompanha
a leitura cuidadosamente e, neste sentido, é também leitura, enquanto decifração progressiva,
através de um código, do “lado secreto” do sentido.
Esta peça, como Eu não, de 1972, e como Dias Felizes, de 1961, torna a escuta ativa e
instaura, através dela, um intenso confronto dramático, numa cena onde apenas uma
personagem é portadora da palavra. Em Dias Felizes, o personagem Willie ainda se
encontrava munido de algumas falas e ações, mas durante a maior parte da peça, sua presença
constitui um estímulo para que Winnie proceda a seu longo solilóquio, de modo que ela revela
o temor de um dia encontrar-se sem este amparo de alteridade: “se você morresse (...) ou fosse
embora e me abandonasse, então o que é que eu iria fazer, o dia inteiro, quero dizer, entre a
campainha de acordar e a campainha de dormir?”(BECKETT, 2002a, p. 08). Em Eu não,
temos, à direita da Boca desgarrada, a figura do Auditor, de sexo indeterminado, que
permanece completamente silencioso e irreconhecível, durante toda a peça, manifestando
apenas quatro atitudes de compassiva impotência. Estes gestos ocorrem nos quatro intervalos
do discurso da Boca, em que esta se renuncia a abandonar a impessoalidade da terceira
pessoa. A história contada por Boca aponta para uma mulher que passara grande parte de sua
vida calada e, um dia, sem nenhuma explicação, teria sido compelida a falar, como se sua
boca se emancipasse de seu cérebro e ela não pudesse mais controlá-la. O uso da terceira
pessoa implica em não sabermos se a história diz respeito à personagem Boca (e o Auditor,
neste caso, representaria uma testemunha de seu drama, tal como Willie); ou se o Auditor é a
própria vítima impotente, revelando em seu silêncio o estado em que “ela” se encontrava
antes de perder o controle sobre o jorro que se faz escorrer por sua boca. Ao apresentar estas
duas interpretações, ambas impossíveis de serem fechadas, Enoch Brater (1987, p. 32) revela
como a escuta torna-se expressiva, nas peças de Beckett, instaurando, com o silêncio que a
caracteriza, a expectativa de um sujeito unificador, para o qual se direcione a complexidade
de sentidos presente em cena.
Esta disposição já expressa o que Barthes chamou de terceira escuta, que seria uma
escuta de abordagem moderna (BARTHES, 1990, p. 217). Trata-se de uma escuta que se
99
aproxima da escuta dos espectadores de Eu não. Como a figura do Auditor, estes se
encontram impotentes, no que tange a assimilar o sentido do que é dito. Isto se dá,
principalmente, porque o ritmo exigido para a dicção da Boca não permite pausas, de modo
que Billie Whitelaw, atriz dirigida pelo próprio Beckett em performance deste texto, afirma
que se tratava de um ritmo tão veloz que, ao tentar empreender pequenas pausas para respirar,
ficava zonza
55
. A mesma atriz atuara em Peça, anos atrás, o que a preparou, segundo a
própria, com um noção da velocidade requerida para esta peça mais recente. Naquela peça,
conforme já citado, o ritmo das falas, paralelamente ao ritmo do movimento do refletor,
estabelecia uma realidade percebida de forma mais acentuada do que o próprio sentido das
palavras. Esta realidade encontra um reflexo na presença de um cortador de gramas que tanto
a Mulher 2 quanto o Homem mencionam ter percebido num dos momentos mais decisivos do
desenrolar de seu romance.
M2: Ele continuou sem parar. Eu podia ouvir um cortador de grama. Um velho
cortador de grama manual. Eu o parei e disse que o que quer eu pudesse sentir, eu
não teria ameaças tolas para oferecer (...)
(...)
H: Algum idiota estava cortando a grama. Uma pequena investida, depois outra. (...)
Então eu a tomei em meus braços e disse que eu não poderia continuar vivendo sem
ela
56
(BECKETT, 1990, p. 311).
O ruído mecânico justapõe-se a uma linguagem que nada mais é do que a repetição de
clichês. No presente da cena, esta linguagem contamina-se com o ritmo do cortador de grama,
demandando dos espectadores uma escuta que não pode descansar sobre a comodidade das
frases feitas, nem pode se limitar à reconstituição de um frívolo caso de amor. Se o drama,
durante algum tempo, teve a pretensão de fazer com que o público escutasse a interioridade de
seus personagens, através da realização de ações; esta expectativa será frustrada no teatro de
Beckett, na medida em que a fala de seus personagens aproxima-se de um ruído
indiferenciado, que não obedece a um intervalo reconhecível entre o “marcado e o não-
marcado”. Como visto, este movimento de “ir e vir” constitui o terreno familiar do signo. Ao
poluir este terreno, introduzindo um elemento ameaçador, Beckett impede uma escuta
tradicional, que assegurava o espaço da individualidade e permitia, portanto, a revelação da
interioridade.
55
KNOWLSON, James. “Extracts from an unscripted interview with Billie Whitelaw.” In: Journal of Beckett
Studies. Num. 03, summer 1978. English Department at Florida State University. Disponível em: <
http://www.english.fsu.edu/jobs/num03/Num3Practicalaspectsoftheatre.htm> Acesso em: 21 mar. 2008.
56
Tradução minha para: “ W2: He went on and on. I could hear a mower. An old hand mower. I stopped him and
said that whatever I might feel I had no silly threats to offer (…) / M: Some fool was cutting grass. A little rush,
then another. (…) So I took her in my arms and said I could not go on living without her.”
100
Neste sentido, Beckett se situa num espaço que não é mais aquele da escuta religiosa
cristã, bem como não é o de uma escuta psicanalítica antiquada, que se basearia em detectar
um trauma original. Não há mais a crença na possibilidade de uma mensagem unívoca. Esta
esfacela-se, arrastando consigo a condição de intimidade, baseada na confidência e na
detecção do Erro. Ao invés de instaurar sobre a cena um confessionário de culpa e de
reparação, Beckett inviabiliza a escuta de um significado, seja o fato que desencadeou o
discurso incontrolável em Eu não, sejam as conseqüências do caso de adultério em Peça. O
que se comunica é antes a velocidade alucinatória da fala, bem como sua aproximação a um
maquinismo estúpido. Os signos, entretanto, não desaparecem. O que ocorre, no âmbito da
escuta, é, conforme definição de Barthes (1990, p. 228), uma produção incessante de
significantes.
A acumulação de confidência sentimental e som de cortador de grama lembra o piano
preparado do compositor americano John Cage, o qual introduzia entre as cordas daquele
instrumento objetos como pinos, parafusos, borrachas e outros. Sua técnica permitia que o
piano, “instrumento produtor de alturas, se transformasse num multiplicador de timbres e
ruídos”, de modo a permitir a escuta de “formas alteradas de pandeiros, atabaques, marimbas,
caixas de música, guizos”. De acordo com Wisnik (2006, p. 52), nas peças para piano
preparado, ouvem-se “quase-sons” igualados a “quase-ruídos”, uma vez que um instrumento
produtor de notas definidas é envolvido por elementos cujos sons por eles produzidos, não
podem ser precisados quanto à altura e a duração. Tal disposição afeta o ritmo e o “ir e vir” da
música torna-se um “tempo em que despontam pulsações e não-pulsações, como se a música
buscasse devolvê-las a um estado de indistinção entre ambas”.
Desta forma, Barthes (1990, p. 228) percebe que as composições de Cage induzem à
escuta de “cada som, um após o outro, não em sua extensão sintagmática, mas em sua
significância bruta e como que vertical”. Do mesmo modo, as peças de Beckett demandam
uma escuta que não pode se ater à identificação de um significado. E isto se torna evidente
nas peças que acrescentam ao texto falado um dado a mais uma velocidade determinada, a
ausência de acentuações, como em Peça, Eu não e Aquela vez. Isto não faz com que o sentido
das palavras desapareça, afinal “na floresta de símbolos, que não são nenhum, os pequenos
pássaros da interpretação, que não é nenhuma, nunca silenciam” (BECKETT, 2001a, p. 169).
Este processo, entretanto, desnaturaliza a escuta, impedindo-a de se fechar na recepção da
mensagem. Para Wisnik (2006, p. 52-3), as peças para piano preparado “promovem
silenciosamente uma desativação do tempo do ego, do prazer como descarga de energia
acumulada, e uma dessacralização radical do som, que (...) se desgarra como verdadeiro
101
objeto não identificado, em sua obviedade”. Para Barthes (1990, p. 228), a escuta aqui se
desconstrói, exterioriza-se e “obriga o indivíduo a renunciar à sua ‘intimidade’”. Esta é a
terceira modalidade da escuta.
Moran, o narrador da segunda parte de Molloy, manifestava um anseio pela escuta em
que pudesse repousar da sede de perguntas e respostas e permanecer aliviado, ainda que
nenhuma resposta tivesse sido encontrada. É deste modo que revela, no final de seu percurso,
o desejo de retornar para sua casa e voltar a contemplar a dança de suas abelhas “porque
minhas abelhas dançavam, oh! não como dançam os homens, para se divertir, mas de outra
maneira”. No movimento destes insetos, Moran teria identificado um determinado sistema de
comunicação que se revelava impossível de ser traduzido, dado a introdução de novos
elementos, que implicavam numa infinidade de variações, impossível de ser captada “não se
tratava apenas de figura e zumbido, mas também da altura com a qual a figura se executava”.
Isto resulta na insuficiência de todos os atos interpretativos de Moran:
E apesar de todo o trabalho que consagrei ao problema, estava mais do que nunca
fascinado pela complexidade daquela dança variadíssima, onde intervinham outras
determinantes de que não tinha a menor idéia. E eu dizia comigo mesmo, encantado,
Aí está uma coisa que podia estudar toda a vida, sem jamais compreender
(BECKETT, 1988, p. 165).
A impossibilidade de instituir, a partir do movimento das abelhas, uma linguagem, não
impede que o narrador encontre aí uma profunda alegria, talvez a única a reanimá-lo no
retorno para casa, após uma missão fracassada:
para mim, sentado perto das minhas colméias banhadas de sol, seria sempre uma
bela coisa para olhar e de um alcance que meus pensamentos humanos jamais
poderiam conspurcar. E eu não poderia cometer contra minhas abelhas o erro que
cometera contra meu Deus, a quem me ensinaram a emprestar minhas cóleras,
temores e desejos, e até o meu corpo (BECKETT, 1988, p. 165-6).
Como cidadão burguês, produto da cultura judaico-cristã, Moran fora iniciado na
escuta unívoca que ritmou o mistério, e instaurou, a partir deste ritmo, a linguagem, a
divindade e a consciência. A atenção àquilo que foge ao estabelecimento de um ritmo
(“intervinham outras determinantes de que não tinha a menor idéia”) representa um alívio,
que se dá sob a forma de um alívio de si daquilo que a cultura instaurou como sendo o
sujeito e que Moran configurou na imagem do seu Deus.
É para uma tal escuta que se voltam as peças de Samuel Beckett. Ao frustrar a
expectativa dos ouvintes, no caso, dos espectadores; Beckett obriga-os a abandonarem as
intenções previamente manifestas nesta escuta. Aproxima-se da escuta formulada por Freud e
102
denominada “atenção flutuante”, que estipula que o analista, ante o discurso do seu paciente,
deve evitar a atenção sobre um ponto escolhido em suas expectativas e tendências, pois,
agindo desta forma, corre o risco de encontrar apenas aquilo que já sabe. O analista confia em
sua “memória inconsciente”, não se preocupando com o que deve reter. Deste modo, um
inconsciente fala a outro inconsciente (BARTHES, 1990, p. 223), permitindo que este
restabeleça associações originais. A escuta, livre das pressões do condicionamento, tem de
lidar com a singularidade de seu objeto e oferece ao analista a chance de contaminar-se com
uma significação mais ampla, antes de aplicar o seu saber específico.
Isto explica a desorientação, comumente experimentada pelo espectador ante as peças
de Beckett. Trata-se de uma obra que, nas palavras de Lehmann (2002, p. 140), promove uma
“redução radical” quanto ao material empregado que oferece a impressão de que este objeto
se apresenta “pela primeira vez”. Esta originalidade também é ressaltada por Kudielka (2000,
p. 70), quando este percebe numa performance de Eu não um evento teatral “puro”. Diante
destas peças, o espectador dificilmente poderá contar com um conhecimento da linguagem, de
modo que a sua escuta será desconstruída, em nome da emergência de uma outra escuta.
Como em Cage, trata-se da busca por uma “escuta possível”, sempre a se constituir, de modo
que José Miguel Wisnik (2006, p. 52), parafraseando Daniel Charles, fala de “‘abandono ao
tempo, ao puro movimento do tempo’, tempo que jamais se repete”.
3.2.Forma-sonata e Aquela vez:
A disposição de Aquela vez - sua divisão em três partes, divididas por silêncio, bem
como a divisão de uma voz em três extratos denominados A, B e C , permitindo a “permuta
de diferentes textos e temas”, levou James Knowlson (1996, p. 531-2) a compará-la à forma
musical da sonata.
De acordo com o Dicionário Oxford de Música, a sonata é uma composição para
piano, ou outros instrumentos acompanhados de piano, em vários andamentos. A maioria
delas é escrita em uma forma sonata, ou em uma versão desta. O mesmo dicionário informa
que tal forma implica três secções: 1. exposição contendo o primeiro tema, expresso em
uma nota tônica, e o segundo tema, na nota dominante, e, algumas vezes, outros temas; 2.
desenvolvimento onde o material da exposição é elaborado em uma fantasia livre; e 3.
recapitulação na qual é repetida a exposição, muitas vezes modificada, e com o segundo
103
tema, agora, na tônica. “A base da forma sonata é o jogo de inter-relacionamento das
tonalidades” (KENNEDY, 1994, p. 263).
Deste modo, um primeiro aspecto que aproxima a peça em questão da forma sonata
reside no que Knowlson chamou uma disposição “tríptica”. Como esboçado no início deste
estudo, Aquela vez constitui-se de três movimentos em que as vozes A, B e C encadeiam-se
em seqüências variadas. Na primeira parte, a seqüência A-C-B repete-se por três vezes,
quando se converte em C-A-B. Na segunda parte, C-B-A prevalece por mais três vezes até
que se altere para B-C-A. E, finalmente, na terceira e última parte, a seqüência B-A-C se
mantém até o fim.
Curiosamente, Wisnik (2006, p. 114-5) observa que a sonata constituiu uma das
principais formas do sistema tonal, que vigorou na música erudita ocidental desde fins da
Idade Média até meados do século XIX. Eis a descrição feita pelo autor do universo tonal:
O tonal é o mundo onde se prepara, se constitui, se magnífica, se problematiza e se
dissolve a grande diacronia: o tempo concebido em seu caráter antes de mais nada
evolutivo. É o mundo da dialética, da história, do romance. Olhando internamente, o
discurso tonal é também o discurso progressivo, “narrativo”, subordinante, baseado
na expansão do movimento cadencial, no desdobramento seqüencial, no princípio do
desenvolvimento.
Não deixa de espantar que esta forma, assim concebida, se faça presente em Aquela
vez, peça que, como grande parte da obra de Beckett, enfatiza a percepção “sincrônica”, a
escuta “vertical”, em detrimento da percepção diacrônica, causal, evolutiva. Deve-se levar
em conta, portanto, uma vez que Wisnik aproxima a sonata à forma do romance, a relação que
a narrativa beckettiana explorada no segundo capítulo deste estudo estabelece com aquele
gênero narrativo, consolidado no século XIX. Se a sonata representa “a constituição de uma
linguagem capaz de representar o mundo através da profundidade e do movimento, da
perspectiva e da trama dialética” (WISNIK, 2006, p. 115); Andrade (2001, p. 20) demonstra
como esta tendência se encontra descartada e inviabilizada no universo beckettiano:
A problematização da consciência, do porto seguro a partir do qual se espraia a
razão humana, assume o caráter de dissecção crítica dos fundamentos que sustentam
a voz em primeira pessoa na ficção ocidental. Perceber e ser percebido, atributos
com os quais o eu se define, são postos em xeque. Conhecer o mundo, circunscrevê-
lo por imagens e palavras, é uma aventura cujo imperialismo, por mais modesto que
se queira, passa a ser classificado de risco no universo beckettiano, não pagando o
esforço.
A narrativa, enquanto movimento diacrônico, encontra-se problematizada, em
romances como Molloy e O inominável, porque os seus próprios fundamentos já não mais se
104
sustentam: consciência, linguagem, conhecimento. Também o tempo, compreendido como
progressão, constitui uma noção que tais obras põem em xeque, como procurou-se demonstrar
no segundo capítulo deste estudo. Lehmann (2007, p. 298), em sua análise do que chama um
teatro pós-dramático, utilizou Aquela vez como uma peça exemplar da “crise do tempo”
entendida como “cisão específica e radical” entre o tempo da vivência subjetiva e o tempo
social. Para ele, há, nesta peça, uma “desagregação da vivência do tempo”, como se o “fio da
continuidade interna” fosse rompido. Se autores como Adorno (1985, p. 67) e Lehmann
(2007, p. 298) percebem que, em peças como Fim de Jogo e Aquela vez, as unidades de
tempo, ação e espaço mantêm-se sob a condição de serem parodiadas; e um autor como
Lawley
57
percebe em Play a própria “paródia da presença”; é possível suspeitar que o
movimento dialético, que se faz presente na forma sonata, seja também parodiado.
A primeira parte de Aquela vez se inicia com a voz A, que se refere a um momento
específico do tempo, em que o sujeito partia em direção ao próprio passado. A ausência de
pontuação no texto, bem como a solicitação de uma dicção sem acentuações, implicam numa
leitura fluída, embalada por um ritmo constante que, independente de suplantar a demarcação
de frases e períodos, estabelece conforme requerido pelo autor uma impressão de
continuidade. O fragmento, entretanto, já apresenta elementos que problematizam este fluxo.
Um destes elementos é a expressão “quando foi”, que insere um grau de indeterminação no
evento evocado. Além disto, a repetição já se faz presente, como uma espécie de força que
contraria a continuidade do fluxo. Uma vez que esta voz não é puro som, mas também
linguagem e significado, estes elementos instauram uma espécie de textura neste fluxo, de
modo que a escuta deste único fragmento já permite perceber que a progressão do tempo,
materializada como fluxo sonoro, está povoada de sinais que depõem contra esta mesma
progressão.
Logo em seguida, ocorre um deslocamento, provocado pela mudança de auto-falantes.
Beckett solicita que esta mudança seja percebida “claramente”, mas de modo suave. Desta
forma, o fluxo é atravessado, de maneira concreta, espacial, por uma nova textura, uma
ranhura breve, instantânea, que parece interromper a continuidade, mas que logo a re-
estabelece mas o faz, em um ponto diferente do espaço. Apesar da ranhura, a percepção
volta a se concentrar sobre o fluxo, novamente contínuo. Trata-se agora da voz C, que
também se refere a uma ocasião do passado, mas que denota agora uma outra atividade, a
57
Lawley, Paul. “Beckett’s dramatic counterpoint: a reading of Play.” In: Journal of Beckett Studies. Edited by
John Pilling. English Department at Florida State Univ., nº 9, spring 1983. Disponível em:
<http://www.english.fsu.edu/jobs/num09/Num9Lawley.htm> Acesso em: 15 de mar. 2008.
105
procura por um abrigo que não é mais um abrigo da infância, mas um abrigo em um dia de
chuva.
A peça fundamenta, portanto, uma analogia com a referida forma musical, que serviu
de modelo para Hegel diferenciar a música das artes visuais. De acordo com este filósofo, na
música, “um tema, à medida que se desenvolve, faz nascer um outro, e assim ambos se
sucedem, se encadeiam, se possuem mutuamente, se transformam, desaparecendo e
aparecendo alternativamente vencidos e vitoriosos” (apud WISNIK, 2006, p. 152). A e C são,
num primeiro momento, fragmentos comprometidos com o resgate de um passado, e ambos o
evocam a partir do movimento A busca um veículo de transporte, C busca escapar das ruas.
Uma característica logo apreensível nesta última é a quantidade de verbos que ela abriga
(“sentar descansar secar”, “se aquecer se secar e cair fora dali”), ressaltando uma busca não
satisfeita, comum às duas vozes. Esta disposição da linguagem fortalece a impressão de
resgate do instante vivido, uma vez que focaliza o cumprimento de uma seqüência de ações.
Lembrar é, neste sentido, descrever e esta descrição se organiza de tal modo que aquele que
ouve é levado a repetir, mentalmente, o percurso efetuado no passado. Isto não ocorre com a
voz B, tal como ela aparece neste início. Ao contrário de A e C, B expressa imobilidade e o
que ela revela aparece sob a forma de contemplação. Se A e C se referem a determinados
momentos como “aquela vez”, B evoca “aquela cena”, a qual parece ser vista à distância. É
notável ainda que A insinua um obstáculo - “nenhum bonde nada só os velhos trilhos” -, que o
sujeito trata de transpor “e dali a pé”. Ao passo que a estaticidade que caracteriza B é
reforçada por ações que têm um caráter definitivo “sem jamais se tocar”, “sem nunca se
olhar”, “nada”. Libera
58
percebe como esta última voz se diferencia das duas outras, na
medida em que ela não se refere ao tempo em que a dada situação ocorreu. A voz B se situa
num outro tempo, que é o tempo de onde o protagonista observa: “aquele pensamento sempre
que surgia dentre os outros fazia emergir aquela cena”.
A predominância de verbos que expressam ação, tanto em A quanto em C, ocupa o
espaço do elemento reflexivo, tal como aparece em B. Naquelas duas vozes, algumas
expressões já sugerem relação com outros tempos como “tudo acabado há muito tempo”,
em A; e “sempre o inverno então sempre a chuva”, em C -, o que antecipa o caráter
contemplativo de B. Mas estes dados - mais significativos porque expressam uma realidade
mais abrangente - são obscurecidos pela fixação ao presente da ação. Isto acontece, por
58
LIBERA, Antoni. “Structure and pattern in ‘That Time’”. Journal of Beckett Studies. English Department at
Florida State Univ., n. 6. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num06/Num6Libera.htm> Acesso
em: 12. jun. 2007
106
exemplo, quando a lembrança da mãe é contida pela voz A, que é obrigada a reforçar: “ah
pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo”. Logo em seguida, o mesmo ocorre com C:
“estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo tudo poeira todos eles só
restou você”.
A imagem evocada por B é a de um casal junto de um pequeno bosque. As juras
trocadas entre os dois não significam nada, assim como a superfície desta cena, sua disposição
externa, pois os olhos podem estar fechados, sem nada fixar. As únicas realidades são o que
Lehmann (2007, p. 300) chamou de “tempo da natureza”, manifesto nos trigos que
amadurecem e este tempo não é acompanhado pelos indivíduos, visto que o amor não se
cumpre e a realidade do pensamento, isolada do mundo visível. Trata-se de um quadro
instaurado por um pensamento que surge dentre outros. Tais pensamentos são citados, na
terceira aparição da voz B: “infância distante ou do ventre materno a pior de todas ou daquele
velho chinês muito antes de Jesus Cristo que já nasceu com longos cabelos brancos”. A partir
do pensamento, o sujeito que recorda observa o tempo vivido como do alto, a uma grande
distância, capaz de turvar seus próprios traços individuais: “como duas leves manchas no
limiar do campo”. B apresenta, nesta primeira parte, a consciência de que tais instantes se
perderam, a uma distância remota, e que subsistem apenas como realidade mental. Esta
característica permite, entretanto, que este instante dialogue com muitos outros, situando algo
de permanente nesta realidade mental, algum processo que possibilite reunir os múltiplos
sujeitos, personagens das cenas fragmentadas. Um aspecto da consciência é iluminado, na
aparição de B que finaliza a primeira parte junto de uma janela, no escuro, o sujeito conclui
que suas divagações sobre a impossibilidade do amor, que constituem a matéria desta voz, na
primeira parte, são meras histórias para afugentar o vazio.
A sonata, ao desenvolver seu primeiro tema, a partir de uma nota chamada tônica,
instaura uma tensão ao apresentar o segundo tema, em uma tonalidade diferente, a dominante,
que contrasta com a primeira e institui um “movimento progressivo, de um caminhar que vai
evoluindo para novas regiões, onde cada tensão (continuamente reposta) se constrói buscando
o horizonte de sua resolução” (WISNIK, 2006, p. 113-4). Beckett expressou, durante
encenação desta peça, que a mudança entre as fontes A, C e B é semelhante a uma mudança
entre tons (“de um A menor para um C maior”
59
). Deste modo, uma tensão se instaura entre A
59
ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
107
e C, como a revelação de diferentes etapas de um sujeito em busca de um objetivo. As
referidas características que aproximam estes dois tempos fazem com que os dois corram
paralelos, como tempo recordado, como tempo novamente percorrido (ao menos, no campo
da linguagem); de modo que a tensão encontra uma resolução provisória. Mas o aparecimento
de B institui um conflito mais urgente, que pode caracterizar mais fortemente o duelo entre
tonalidades distintas que corre em busca de uma solução. Este conflito se expressa através do
choque entre ação e repouso, que se revela o conflito entre tempo de ação e tempo de
contemplação. Esta constitui a polarização central, nesta primeira parte, que determinará o seu
desenvolvimento na direção do silêncio.
Se o aparecimento do segundo tema faz com que a sonata encerre a sua exposição
sobre uma nova tonalidade, os temas das vozes A e C, elaborados a partir da descrição de
movimentos a qual sublinha o movimento do fluxo sonoro, que progride e se transfere de
uma fonte a outra -, são contaminados pelo “tom” de imobilidade denotado pela voz B.
Em sua penúltima aparição, a voz A revela finalmente em que consistia o referido
refúgio da infância: “à espera do momento de entrar sem ser visto corria e ali se escondia o
dia todo numa pedra no meio das urtigas com seu livro de gravuras”. A voz revelou o sujeito
em uma posição muito semelhante àquela descrita pela voz B, sentado sobre uma pedra. Em
C, o desejo de continuar em movimento, manifesto no final da primeira aparição - “depois
cair fora dali” -, é contido pelo curioso incidente de ter vislumbrado o próprio rosto sobre o
vidro de uma pintura. A “tonalidade” de B, aqui identificada como estaticidade, prevaleceu
sobre a tendência manifesta pelas outras vozes - perpetuar um caminho, abrigar-se. Também o
caráter contemplativo torna-se mais flagrante, uma vez que A vai revelar, através da descrição
de um passatempo daquela época - “conversando consigo mesmo quem mais conversas
imaginárias (...) ora uma voz ora outra” um atributo fundamental do presente da encenação
“até ficar rouco e todas elas soarem iguais noite adentro”. Estas vozes que o menino
constrói sobre a pedra são como as vozes que falam ao Ouvinte sobre o palco. Elas se
desgarram umas das outras, dando uma impressão de pluralidade, enriquecendo o perfil do
sujeito, revelando-o como alguém que sobreviveu a diferentes experiências e que se constituiu
através delas. Constituem na verdade uma única voz, que acompanha o sujeito, desde a
infância, protegendo-o do contato com a solidão e o vazio, que também estiveram presentes,
desde sempre, como ameaças potenciais.
A voz C, mais fortemente que a voz A, se deixa envolver pelo elemento reflexivo, no
final desta primeira parte. Após o incidente, em que observou o próprio reflexo sobre o vidro
de uma pintura, o sujeito é levado a admitir que nunca mais foi o mesmo. Esta afirmação
108
será, entretanto, esmiuçada a ponto de desconstruir-se ante a evidência de que este sujeito
nunca pôde ter sofrido uma mudança real, posto que toda a movimentação de sua vida
constituiu-se de um eterno arrastar-se na lama, estando a voz sempre presente, sob a forma de
murmúrios: “quem mais você jamais será o mesmo depois disto você jamais foi o mesmo
depois daquilo”. Eis uma ótima explicitação de como a percepção diacrônica e a sincrônica se
relacionam, no sentido de reforçar a percepção daquilo que é vivenciado como uma
performance teatral. Ouvindo o desenvolvimento das vozes, somos levados a atentar para
estas vozes, para o modo como preenchem o espaço sonoro e para o tempo que destinamos a
escutá-las. A partir daí, podemos deduzir qual o papel destas vozes no presente da cena e ao
longo da vida de um indivíduo.
Isto se dá, a partir do momento em que a “tonalidade” de B prevalece sobre a
tonalidade” de A e C. Esta dominância estabelece-se no instante em que o percurso do fluxo
altera-se de A-C-B para C-A-B. A vitória de B é declarada pelo fato de ela ser a única a não
ter a ordem de sua aparição alterada, permanecendo, ao longo de toda a primeira parte, como
a última voz de cada seqüência. O repouso que ela descreve é o repouso de alguém que
observa sua própria situação, a partir de pensamentos e cenas que lhe surgem à mente. A e C,
neste momento, abandonam a descrição dos percursos do sujeito e revelam atividades ou
pensamentos que evidenciam, respectivamente, a solidão e a impossibilidade de mudança. O
passado serve apenas para refletir uma situação presente, de modo que o presente se instaura,
com a interrupção das vozes, o aumento da luz, a abertura dos olhos.
A segunda parte constitui um novo mergulho no passado: os olhos voltam a se fechar e
a iluminação decresce, assim que as vozes voltam a atuar. Se o desenvolvimento é a parte
intermediária da forma sonata, onde a relação entre as tonalidades é amplamente explorada; o
desenvolvimento de Aquela vez inicia-se com as vozes já transformadas, a partir das relações
estabelecidas na seqüência anterior. Deste modo, a voz C inicia esta parte, continuando seu
raciocínio sobre a possibilidade de uma mudança ter ocorrido na vida de alguém que, em
certo momento, se viu impedido de dizer “eu” para se referir a si mesmo. O discurso desta
voz tende a afirmar que toda a existência daquele indivíduo se resume a “uma única
reviravolta a primeira e última”, depois da qual ele “nunca mais olhou para trás”. A referência
é ao instante no museu, em que a impressão produzida pela visão do próprio reflexo no vidro
da pintura obriga o sujeito a se virar para ver se há alguém ao seu lado. Este evento
aparentemente banal constitui um evento irreversível, na medida em que ele serve de pretexto
para que o sujeito seja invadido por questões acerca da substância de sua própria identidade.
109
Lehmann (2007, p. 300) identificou nesta voz a busca por continuidade em um
“suprapessoal tempo da cultura”. O museu é deste modo um sítio apropriado para que este
personagem se faça perguntas acerca da identidade e da existência (“sozinho com os retratos
dos mortos enegrecidos pelo tempo empoeirados as datas nas molduras para que você não se
enganasse de século”). Este ambiente que deveria facultar imortalidade a determinadas
criaturas ilustres em seu tempo, é também um espaço de desintegração e esquecimento, uma
vez que os vestígios das tais existências são aos poucos consumidos pelo tempo e pela poeira.
Tal como eles, o sujeito, ainda vivo, não pode gozar de uma residência segura, ao abrigo do
tempo, nem pode confiar na voz que fala dele mesmo, tampouco nas lembranças que o
invadem: “quem estava dizendo o que você dizia de quem o crânio onde você mofava de
quem as misérias que o deixaram assim”. Este sujeito só volta a ter certeza de que ele é ele
mesmo quando o expulsam do museu, dada a hora de fechar. Se em B, a idéia de passagem do
tempo se manifesta pelas condições da natureza; em C, ela se faz presente pelos horários
regulares das instituições públicas. A sensação de irrealidade para a própria existência
prevalece no ambiente externo. Acompanhado pelo inverno, pela chuva e pela “eterna
andança”, ele admite que a existência e a consciência não passam de invenção, hipóteses a
respeito das quais ele se pergunta aonde podem levar.
Todos estes atributos corroboram a afirmação de Beckett de que C constitui a voz mais
cínica, no que contrasta com B, que seria a mais emocional
60
. Curiosamente, a voz B, nesta
segunda parte, denota maior mobilidade, no que tange à busca de diferentes contextos
(“aquela vez juntos na pedra ao sol ou aquela vez juntos à beira do rio ou aquela vez juntos
nas dunas”), sempre situados juntos de uma natureza em transformação (“sempre juntos em
algum lugar ao sol à beira do rio diante da foz o sol se pondo os detritos que desciam o rio
levados pela correnteza”), mas sempre revelados como sítios de um amor que não aconteceu
(“jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela nem dela para
você”). A fixação às circunstâncias em que se deram os encontros entre os dois sujeitos revela
a intensidade afetiva destes momentos, ainda que eles abriguem um projeto fracassado. A voz
B, ainda que revele estes instantes como miragens condenadas a aparecer e a desaparecer,
dota-os de beleza, de força e de nostalgia. Estas cenas já despertam, meramente a partir de sua
descrição, idéias a respeito da frustração e do isolamento, ao passo que em C, as cenas
60
ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
110
evocadas, nesta segunda parte, tendem a se desintegrar pela natureza das questões que elas
abrigam. De um lado, uma tendência figurativa, ameaçada pelo fluxo incessante do
pensamento; de outro, uma perspectiva analítica, solapada pela instabilidade dos principais
fundamentos de uma tal perspectiva, tais como consciência, experiência e conhecimento.
Estas vozes se aproximam no que tange à auto-consciência ambas se destacam da
descrição de ações e se instalam na experiência mental que circunscreve e que traz à tona o
evento ocorrido no passado, como revelam as seguintes passagens: “a chuva e a eterna
andança procurando assim inventá-la inventar assim a si mesmo enquanto avançava tentar ver
a que isso levaria não ter existido poderia muito bem levar a isso não ter nunca sido” e
“imóveis feito mármore lado a lado a cena emergia e lá estavam vocês de novo onde quer que
fosse”. Na primeira passagem, C revela que as ações práticas, a relação com seu meio, ou
mesmo a lembrança destes perscursos, têm um caráter de invenção, como construto destinado
a substituir o vazio instaurado na consciência. Na segunda, a voz B descobre a autonomia
destas imagens, que surgem a partir de pensamentos, e servem para aprofundar um
determinado tema o da imobilidade e do isolamento. Ambas manifestam a consciência de
que estas vozes gravitam em torno de um possível objeto, a identidade do sujeito, o
significado de sua existência.
A voz A, pelo contrário, é a voz menos auto-consciente, na medida em que, desde o
início, é a mais comprometida com a descrição minuciosa do instante vivido, repetindo todos
os incidentes de um determinado percurso: “aquela vez que você retornou ver se estava ainda
ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez subiu em frente do cais até a rua
principal pegar o onze nem à direita nem à esquerda”. Esta persistência se mantém na segunda
parte, ainda que as dificuldades se mostrem mais e mais eminentes (“que fazer então nem
pensar em perguntar falar com alguém nunca mais em sua vida”, “ali tudo fechado e trancado
o terminal neodórico da ferrovia a colunata em ruínas que fazer então”). Por seu caráter, a voz
A torna-se a voz mais discordante no conjunto das três vozes, nesta segunda parte. Ao
contrário do que ocorreu na primeira parte, quando a voz discordante projetou a sua influência
sobre as outras; agora a voz A, como expressão prolongada da “tonalidade” inicial da peça, é
contaminada pelo tom de impasse e de incerteza com o qual a voz C encabeça esta seqüência.
Em sua penúltima emissão, dá vazão ao seu esgotamento, “senão desistir daquilo (...) sair
daquele inferno”. A nova perspectiva apresentada por esta voz induz a uma nova alteração da
seqüência, de C-B-A para B-C-A.
No seu último movimento, B contrasta a mobilidade das imagens, como se fossem
dotadas de vida própria, com a imobilidade que caracteriza todos os instantes revelados por
111
tais imagens: “imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir (...) tudo ao redor
imóvel onde quer que fosse nada se move”. A realidade do pensamento solitário é mais vívida
do que as tentativas de contato entre o indivíduo e o mundo ao seu redor. Esta certeza, neste
momento, abandona a voz C, que finaliza a segunda parte, repetindo o seu movimento de
“entrar sem ser visto”, manifestando uma satisfação com “os lugares gratuitos a biblioteca
municipal uma coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto”. A voz A, que
permanece até o fim em sua posição de última voz da seqüência, é a sede da transformação
mais intensa, de modo que a sua determinação é substituída pelas seguintes palavras: “sem
saber mais onde você estava aos poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem
por quê sozinho no mundo sem conhecer ninguém como aquela vez na pedra a criança na
pedra onde ninguém nunca vinha”.
Esta voz finaliza a segunda parte, o chamado “desenvolvimento” da forma sonata,
representando uma alteração. A voz A era, desde o início, a representante máxima da
disposição para resgatar o passado, ainda que as vias de acesso se revelassem obstruídas. Se o
fundamento da forma sonata é “o inter-relacionamento das tonalidades”, pode-se dizer que o
diálogo entre movimento e repouso, entre ação e contemplação, interferiu em cada uma das
vozes, de modo a comprometer o seu caráter inicial. Ainda que estas vozes, de acordo com o
autor, correspondam a fases determinadas de uma vida; a relação entre elas, no presente da
encenação, implica na alteração das imagens evocadas e interfere no significado da
recordação.
A voz C, correspondente à maturidade, desenvolve as questões que a acompanham,
durante grande parte da peça, influenciada pela imobilidade de B, voz proveniente da
juventude. A visão dos dois jovens estagnados, à medida que o tempo flui, solicita questões
divisadas numa idade posterior, as quais depõem contra toda ação (“toda a sua vida uma
sucessão de reviravoltas na verdade uma única reviravolta a primeira e última”). Por outro
lado, em determinados momentos (“alguma vez você conseguiu se dizer eu nessa reviravolta
que foi a sua vida essa era uma palavra que você sempre carregava na boca antes que ela se
calasse para sempre”), estas questões iluminam o momento em que a voz B não pôde mais
formular histórias para preencher o vazio de sua identidade (“quando você tentou tentou e não
conseguiu mais nenhuma palavra para conter o vazio e nada lhe restou a não ser desistir”).
De acordo com Wisnik (2006, p. 152), a estrutura da sonata permitiu à música
instrumental oferecer “pela primeira vez a impressão de estar ‘falando’, mesmo sem palavras,
e de estar ‘contando uma história’ cujos personagens não seriam senão células sonoras em
transformação”. A interpretação de Schopenhauer para a música agradava particularmente a
112
Beckett e uma das coisas que tal interpretação revela é que esta linguagem é “insensível à
hipótese teleológica” (BECKETT, 1986, p. 74).
Aquela vez gira exclusivamente em torno da vida de um indivíduo as outras criaturas
citadas aparecem apenas na medida em que reforçam algum estado mental daquele sujeito ou
estimulam nele alguma percepção. O que ouvimos, durante quase todo o tempo, é a sua voz,
mas uma voz que não provém mais de seu corpo. Em determinado momento, somos
informados de que este sujeito um dia não pôde mais dizer “eu” para se referir a ele mesmo e
não pôde, portanto, contar mais nenhuma história como sendo a sua história. Por isso, ao
analisar este texto, ao descreve-lo, somos levados a tratar as três vozes como personagens, o
que as aproximam das “células sonoras” da sonata. Estas vozes não se constituem puramente
de som, elas veiculam expressões de significado fixo, mas o fazem a partir de um ritmo
constante e de uma voz sem acentuações, o que destitui o discurso de ênfases e intenções,
despersonalizando-o, portanto. Além disto, o surgimento destas vozes do escuro, o modo
como elas se encadeiam e se influenciam fornecem a impressão de que elas são auto-geradas.
Ao usar a sonata como uma forma que ‘fala’, Beckett, possivelmente, atém-se mais
fortemente ao fato de que esta fala é posta em movimento de modo diverso daquele que se dá
quando um indivíduo toma a palavra. Trata-se de empregar aqui a “natureza íntima e inefável
de uma arte que é perfeitamente inteligível e perfeitamente inexplicável” (BECKETT, 1986,
p. 75).
Wisnik (2006, p. 170) afirma que a sonata é uma expressão fortemente ligada ao
pensamento ocidental e que ela pode ser comparada à “luta amorosa”, podendo os dois temas
serem apresentados como antagonistas ou complementares. Ora, Aquela vez dá vazão, num
breve momento, a uma referência oriental “velho chinês muito antes de Jesus Cristo que já
nasceu com longos cabelos brancos”. Brater (1987, p. 47) informa-nos que se trata de Lao-
Tze, figura emblemática da filosofia oriental, fundador da religião Taoísta, que teria vivido no
século VI antes de Cristo e em torno do qual gira a lenda de que teria nascido com os cabelos
brancos de um velho. Ainda que suas idéias possam acrescentar muitos contrastes à
disposição ocidental e dialética que subjaz à forma sonata; a simples menção desta lenda, no
interior da peça, já sugere um tempo entrincheirado, que não é aquele do desenvolvimento
progressivo.
Além disto, Wisnik (2006, p. 169) acrescenta que “essa luta, ou esse amor”, que
caracterizam o movimento da sonata, permitem pensá-la “em suas afirmações e negações,
como um processo interno ao espírito, sua biografia sinfonizada, paralela ao romance mas
também à filosofia”. Esta metáfora não se aplica a Aquela vez, uma vez que conforme visto, a
113
forma musical é empregada na medida em que alivia a perspectiva causal e se apresenta como
a resultante da incapacidade do sujeito para propor-se como sujeito da própria história. Na
terceira parte, ou na re-exposição, quando, de acordo com os pressupostos desta forma, os
temas devem repousar sobre a tonalidade inicial, afirmando-a; as três vozes se harmonizam
sobre a idéia da desaparição do sujeito.
B, como voz que instaurara o segundo tema, o da imobilidade e da contemplação, na
primeira parte, inicia a seqüência final com uma variante: ela agora situa o sujeito sozinho,
nas mesmas cenas, nos instantes, portanto, que antecedem e que sucedem a chegada e a
partida da criatura amada. A solidão implica na ausência de “juras para quebrar a paz”, mas
também na certeza de que este é um estado permanente “na mesma cena onde quer que
fosse a mesma velha cena antes ou depois não importa”. O fluxo do tempo, que faz com que
estas imagens de estagnação surjam e desapareçam, atravessa as cenas e leva com ele os
elementos que compõem a identidade do sujeito: “o que quer que aquilo fosse na correnteza
se afastando no fogo do crepúsculo lentamente até se perder de vista nada se move apenas a
água o sol morrendo até morrer desaparecer e você com ele e tudo o mais”.
Se a perspectiva dialética se faz presente na inter-relação das tonalidades, a imagem do
sol se pondo representação conhecida do hemisfério ocidental -, conduz a um apagamento
dos traços do sujeito, único sítio possível do pensamento. Muitos aspectos desta peça podem
sugerir um movimento interno ao espírito. O diálogo entre as vozes pode mesmo ser
considerado uma representação do pensamento, como em Brater (1987, p. 37): “Beckett cria
nestas obras peças de câmara intimistas onde o cenário revela o interior da consciência”
61
.
Mas o modo como Aquela vez estrutura-se conduz à percepção de uma consciência que não
pode mais suportar a si mesma enquanto imagem, representação. O sujeito ainda está vivo,
como atesta sua respiração amplificada, em cada um dos intervalos, mas ele contempla a sua
biografia como uma sonata à distância. A verdade revelada pela música nasce da
desintegração da fábula que caracteriza toda construção lingüística, como lembranças,
pensamentos e consciência. O último movimento das vozes expressa muito bem este
momento final, quando o sujeito se deu conta de que o pensamento, como linguagem, não
contém a verdade a respeito de si. Esta verdade pode ser experimentada na música, mas
apenas na medida em que esta arte permite veicular palavras, destacando-as de um sujeito
61
Tradução minha para: “Beckett creates in these works intimate chamber plays in which stage décor unveils
interior consciousness”.
114
enunciador. Isto pode ser um indício da misteriosa inscrição que o autor efetuou em um dos
primeiros manuscritos desta peça: “something out of Beckett”
62
(BRATER, 1987, p. 38).
O rio do tempo corre, na voz B, em direção a uma “última vez”, junto de uma janela,
quando o escuro já se instaurou, havendo apenas a possibilidade da luz da lua. Esta é
exatamente a mesma iluminação, apresentada pela voz A, para a criança solitária que cria
vozes para ter companhia, “noite escura ou à luz da lua”. É impossível saber o momento exato
de cada experiência, mas torna-se significativo que as condições para uma experiência
fundamental, caracterizada como “última vez”, possa, de algum modo se relacionar com um
período da infância. Como tempo de resgate da infância, a voz A também se descreve como
“última vez”. Estas circunstâncias se referem, respectivamente, à capitulação ao vazio e à
frustração definitiva do impulso para recuperar o passado. Quando B repete o bordão de A
(“aquela vez que você retornou”), situa-o “pouco depois bem depois” das evocadas cenas de
solidão. Estas temporalidades, portanto, se intercalam, se aproximam e se repelem, na medida
em que se localizam a partir de outras experiências, situadas em outros tempos, que revelaram
verdades fundamentais. Um destes momentos é, sem dúvidas, a chegada do escuro, que apaga
os traços do sujeito e instaura o vazio, momento que B encena junto de uma janela, mas que já
se encontrava inserido em todas as cenas descritas, ritmando-as “azul escuro azul escuro”. O
jovem sozinho sobre a pedra repete o objetivo do seu sucessor, junto à janela, inventando
cenas e situações para conter o vazio. Mas o que ocorre é que, no final, as palavras, como a
luz, estão em vias de se acabar, e não há outro recurso senão permitir que o vazio entre.
Como B, a voz A emparelha experiências distantes no tempo: “ninguém nunca vinha
só a criança na pedra no meio das urtigas gigantes a luz coando por uma fresta do muro” e “ali
no degrau sob o pálido sol lá está você de novo ao diabo os que passam boquiabertos ao vê-lo
ali tombado sob o sol”. A expressão “lá está você de novo” permite considerar que há uma
repetição da experiência como a criança, o homem senta-se solitário e fala consigo mesmo,
“aos brados com suas tolices”. A solidão, bem como a atividade destinada a suplantá-la,
indicam uma realidade extratemporal que aproxima aquelas criaturas apartadas pelos anos.
Em seu ensaio sobre Proust, Beckett (1986, p. 60) parafraseia o autor:
A identificação entre as experiências imediata e passada, a reaparição de uma ação
passada, ou sua reação no presente consiste numa colaboração entre o ideal e o real,
entre a imaginação e a apreensão direta, entre símbolo e substância. Tal colaboração
libera a realidade essencial, negada tanto à vida ativa como à contemplativa. O que é
comum ao passado e ao presente é mais essencial do que cada um deles visto
separadamente.
62
“alguma coisa fora de Beckett” (tradução minha).
115
Esta constitui a revelação central da obra proustiana e ela possibilita uma apreensão
daquilo que o autor denominou “a realidade essencial” trata-se de algo que não foi
percebido, no momento em que o instante foi vivido, e que, portanto, não pôde ser resgatado
pela ação da inteligência, mas dependeu de um acidente, que fizesse ressoar dois instantes
separados pelo tempo.
Na peça de Beckett, esta experiência encontra-se inviabilizada porque o sujeito que
poderia se reconhecer como sede deste processo, ausentou-se, temporariamente, da voz A.
Uma vez que a construção da identidade é revelada em sua superficialidade -inventando sem
cessar a história (...) inventando a si mesmo reinventando a si mesmo pela milionésima vez” -,
uma conseqüência direta vem a ser o esquecimento “esquecendo-se de tudo e por que”. Ora,
esta era uma condição central, já postulada, a partir de Proust, para que o passado fosse
resgatado em sua totalidade: “O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque
nunca se esquece de nada” (BECKETT, 1986, p. 23). No passado buscado pelo sujeito, a
criança era absorvida pelo próprio passatempo de modo a esquecer a vida lá fora, com as
pessoas se movimentando e procurando por ela. Este sujeito, no tempo referido pela voz A, já
tem cabelos brancos, mas parece ter se esquecido do cumprimento de uma vida prática, de
modo a se sentar sob o sol, agarrado a um saco de dormir, deixando “boquiabertos” os
passantes.
Diferente da criança, que era capaz de entreter-se noite adentro com suas conversas
imaginárias (apesar de o vazio se insinuar na rouquidão que explicita sua voz solitária e o
propósito de sua atividade), o adulto preocupa-se com o tempo: “à espera da noite e da hora
de partir à espera da hora de partir”, “à espera da hora de descer”. Tal preocupação dialoga
com a constante referência ao tempo da natureza, em B, e aos horários das instituições
públicas, em C. Apesar de ter experimentado novamente a solidão, o esquecimento e o vazio,
ocorre a recusa em reconhecer que a experiência passada volta a se repetir. As últimas
palavras da voz A “nunca houve uma outra vez apenas aquela vez sair daquele inferno e
nunca mais retornar” afirmam a eminência do tempo e a impossibilidade de reconstituir o
vivido.
A “realidade essencial” entre estes momentos é de tal natureza que impede a
afirmação de uma personalidade, distendida no tempo. O que as duas experiências revelam é
que a identidade se constitui e se desintegra enquanto resposta à solidão e ao vazio. Se a
solução proustiana era capaz de “catalisar” a permanência da personalidade; o diálogo entre as
criaturas que compõem a biografia do sujeito, em Beckett, dispersa a identidade e permite que
116
o vazio se precipite. Diante desta realidade, um só fator é capaz de se impor. Este fator é o
tempo e ele se torna perceptível, assim como o vazio, através da música.
O volume que encerra a obra de Proust é denominado O tempo redescoberto. Beckett
julgava este título inapropriado: “a solução proustiana consiste, até onde já analisamos, na
negação da Morte e do Tempo, na negação da Morte porque negação do Tempo. (...) O
Tempo não é redescoberto, é obliterado” (BECKETT, 1986, p. 60-1). A revelação que este
romance abriga diz respeito à interpretação do já citado acidente com a madeleine, em que o
narrador sente repetir-se uma impressão passada:
Essa causa, contudo, eu a adivinhava ao comparar essas várias impressões que me
proporcionaram bem-estar e que, entre elas, tinham em comum a faculdade de serem
sentidas, ao mesmo tempo, no momento atual e num momento passado (...), até
fazerem o passado permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em
qual dos dois me encontrava; na verdade, a criatura que então saboreava em mim
essa impressão, saboreava-a naquilo que ela possuía em comum entre um dia antigo
e um atual, no que possuía de extratemporal, era uma criatura que só aparecia
quando, por uma dessas identidades, entre o presente e o passado, podia achar-se no
único ambiente em que conseguiria viver, desfrutar da essência das coisas, isto é,
fora do tempo (PROUST, 1995, p. 180).
Esta revelação final, como um êxtase, permite conceber uma subjetividade mais plena,
uma vez que libera o narrador das contingências do presente e lhe permite a visão de algo que
não fora percebido, durante uma experiência passada. Este insight ocorre ao narrador de
Proust, quando ele se encontra solitário, na biblioteca dos Guermantes. Não por acaso,
Beckett situou a voz C, voz que encerra a última parte de Aquela vez também em uma
biblioteca. Assim como no museu e no correio, ele entrara neste ambiente “sem ser visto para
se abrigar da rua do frio da chuva”. Como as vozes A e B, que revelam, nesta última parte,
experiências de caráter definitivo, que já eram insinuadas em outros momentos, C menciona
algo depois do que, como na visita ao museu, o sujeito jamais pôde ser o mesmo. Trata-se de
alguma coisa que a poeira lhe disse, quando ele se sentou à mesa, junto de velhos curvados
sobre livros. Em determinado momento, quando se ouvia “apenas as velhas respirações o
virar das páginas”, os olhos se abrem e percebem que todo o ambiente, do chão ao teto, está
repleto de poeira. Foi neste momento que a poeira lhe revelou: “veio partiu foi isso algo assim
veio partiu veio partiu ninguém veio ninguém partiu apenas veio partiu apenas veio partiu”.
A versão inglesa torna evidente a negação do tempo, que dialoga abertamente com
Proust: “come and gone come and gone no one come and gone no one come and gone in no
time gone in no time” [grifos meus] (BECKETT, 1990, p. 395). A negação do sujeito,
entretanto, expressa por “ninguém”, contradiz frontalmente a revelação proustiana. Desde o
117
início, C fora a voz comprometida com o que Lehmann (2007, p. 300) chamou de “busca pela
continuidade em um suprapessoal tempo da cultura”. O sujeito referido adentra os ambientes
da cultura institucionalizada, sempre em busca de conforto e proteção. No interior de tais
lugares, as velhas questões se insinuam - questões que versam sobre a existência e a
identidade e que acompanham o sujeito como o inverno e a chuva. Ao buscar alívio nas
pinturas de gente famosa em seu tempo, ou nas páginas de livros, este indivíduo percebe o
que foi a existência de seus antepassados, registradas em tais obras, mas o percebe através da
poeira. Esta se acumula sobre a pintura e dentro dos livros e é a resultante direta do passado.
A poeira é o único vestígio real daquelas existências, de modo que ela diz apenas duas
palavras ao sujeito “veio partiu”.
A ocultação do sujeito na sentença revelada pela poeira indica o que é a vida, depois
de cumprida: semelhante ao que ela foi, nos momentos em que, tomado pelo vazio, o sujeito
foi incapaz de dizer “eu” com relação a si mesmo. A maldição lançada por Hamm sobre Clov,
em Fim de Jogo, dizia o seguinte: “Um vazio infinito te circundará, todos os mortos de todos
os tempos ressuscitados não o preencheriam” (BECKETT, 1990, p. 109)
63
. O tempo é negado,
na medida em que a poeira do passado equivale ao vazio do presente. A real existência, para
Proust, podia ser apreendida pelo indivíduo que se emancipava do tempo e imortalizava tal
consciência sob a forma de literatura: “A vida verdadeira, a vida afinal descoberta e tornada
clara, por conseguinte a única vida plenamente vivida, é a literatura” (PROUST, 1995, p.
204). A literatura, como o sujeito, estão convertidos em poeira, ao fim de Aquela vez.
A voz da poeira revela um movimento que sempre acompanhou este sujeito, seja no
vaivém, sob o inverno e a chuva, pelos locais da cultura; seja na persistência em resgatar o
passado, que se percebe impossível; seja na oscilação entre azul e escuro, entre história e
vazio. A peça cumpre, deste modo, o pressuposto da forma sonata de que o segundo tema tem
de finalizar repousando sobre a tonalidade inicial. A suposição, entretanto, de que esta forma
permite entrever uma “biografia sinfonizada” cai por terra. Como não se sabe quem entrou e
quem foi expulso do museu, não se sabe quem habitou aquele intervalo de tempo inscrito na
moldura dos quadros. Não há sujeito capaz de dizer a própria história, dada a certeza de que o
vazio e o pó são mais reais do que a voz e do que a fábula. Além disto, todo indivíduo que se
sentisse inclinado a interpretar esta história, perceberia outra coisa aí, como o sujeito, referido
por C, que distingue apenas um reflexo de si, na pintura “enegrecida pelo tempo”. Esta voz
indica ainda, em outro momento, que houve “uma única reviravolta a primeira e última aquela
vez pequeno verme enrolado na lama de onde eles o arrancaram limparam desenroscaram”. C
118
expressa, neste trecho, a chegada; A encerra suas aparições, abordando a partida (“sair
daquele inferno e nunca mais retornar”); B enfatiza o vazio, com suas ramificações, entre os
anos vividos. “ninguém veio ninguém partiu” uma vez que nada é capaz de denotar
permanência e nenhum vestígio subsiste do que seja ou do que tenha sido uma identidade, a
história do sujeito é destituída de realidade. O indivíduo no presente é silêncio, como o atesta
o presente do Ouvinte.
Inúmeras lendas circundam a escrita do Tao-te Ching, escrito mais antigo da religião
taoísta, atribuído ao citado Lao-tze, mas que, de acordo com a Enciclopédia Britânica (1993,
p. 154), foi escrito por diferentes pessoas, em diversos períodos. Uma dessas lendas afirma
que Lao-tze viajava para o ocidente, por ter constatado o declínio da dinastia Chou, que
governava sua província. Na travessia da passagem para outra província, o guardião desta
passagem teria solicitado a Lao-tze a escritura de um livro. Ele teria então escrito o Tao-te
Ching (onde tao significa caminho e te virtude), composto de duas secções de 5.000
caracteres. As virtudes do tao indiciam os motivos para que as informações sobre a vida de
Lao-tze sejam tão obscuras: “ele era um homem recluso cuja doutrina consistia em não-ação,
cultivação do estado de calma interior, e pureza da mente”
64
. Os princípios desta doutrina
obrigam a pensar um autor que não estivesse preocupado em deixar traços da própria
existência.
A voz C finaliza uma seqüência que difere das outras por obedecer a um mesmo
encadeamento até o fim, B-A-C. Ao se recusar a promover mais uma “reviravolta”, a última
seqüência deixa de ser “mais uma daquelas velhas fábulas para que o vazio não viesse cobri-
lo com seu sudário” e encerra-se, para sempre, deixando o Ouvinte entregue ao silêncio e ao
vazio. O sorriso final desta criatura expressa sua resignação a este fim. Esta resignação revela
sua afinação com a percepção musical.
A música, conforme lembrado por Beckett, a partir de Schopenhauer, implica em
supressão do elemento teleológico. O Ouvinte compreende, enfim, que a vida não pode ter
com meta reconhecer-se, representar-se os produtos destas atividades estarão sempre
condenados ao vazio. A música é, neste sentido, uma forma de organização mais adequada,
uma vez que articula o próprio elemento que a ameaça. Por isso, esta arte aparece, nos escritos
de Beckett, como a indicação de um caminho a ser trilhado na formulação de uma obra que
não venha a se limitar à “natureza viciosa da palavra”:
63
“Infinite emptiness will be around you, all the resurrected dead of all the ages wouldn’t fill it”.
119
Há alguma razão pela qual a terrível e arbitrária materialidade da superfície da
palavra não seria capaz de ser dissolvida, como pode, por exemplo, a superfície do
som, rasgada pelas enormes pausas, da Sétima Sinfonia de Beethoven, de forma que,
por páginas a fio, nós não podemos perceber nada a não ser um caminho de sons
suspensos nas alturas vertiginosas, ligando insondáveis abismos de silêncio?
(BECKETT, 2001a, p. 169)
O silêncio que ameaça a música não deve ser entendido como ausência de som, mas o
silêncio como indiferenciação caótica. John Cage (1961, p. 08) descreve uma experiência
fundamental neste sentido, quando revela ter entrado em uma câmara, desenvolvida por
engenheiros da Universidade de Harvard, na qual nenhum eco se faz possível, e na qual,
teoricamente, seria possível ouvir o silêncio. Ali, entretanto, o compositor afirma ter ouvido
dois diferentes sons, um grave e um agudo. De acordo com os engenheiros, o ruído agudo
corresponde ao som do sistema nervoso, enquanto o som grave diz respeito ao sistema
circulatório. Conclui-se deste modo que um ouvinte, ainda que em um espaço ideal, se fará
acompanhar por sons, de modo que o silêncio absoluto não existe. As notações de “silêncio”
que aparecem nas partituras musicais significam, deste modo, “abrir as portas da música aos
sons que ocorrem no ambiente”.
Beckett se mostra consciente deste fato observado por Cage à medida que justapõe à
indicação de “silêncio”, nos intervalos da emissão das vozes em Aquela vez, a indicação de
que a respiração do Ouvinte deve ser audível. De acordo com o compositor Pierre Schaeffer
(1966, p. 105), o rumor contínuo que acompanha nossa existência, como um fundo sonoro,
confunde-se com o sentimento de nossa própria duração. O silêncio é, portanto, nesta peça, o
momento em que o sujeito se mostra vivo, a despeito de estar coberto pelo vazio, separado de
seu passado, soterrado pelo pó. O silêncio final dá vazão a um sorriso desdentado, revelando
despojamento físico progressivo, paralelo à degradação de sua própria figura. Mas trata-se de
um sorriso também que infantiliza o velho, acentuando a proximidade entre a chegada e a
partida, sugeridas neste e em outros textos, como as únicas realidades.
64
Tradução minha para: “he was a gentleman recluse whose doctrine consisted in nonaction, the cultivation of a
state of inner calm, and purity of mind”.
120
3.3. Escutar o tempo em Aquela vez
Quem vê pouco, vê sempre menos; quem ouve mal, ouve
sempre algo mais
(NIETZSCHE, 2000, p. 276).
A forma sonata, por se basear num diálogo entre tonalidades, que instaura uma tensão
e busca um repouso, permitiu, em Aquela vez, que temas relativos ao passado se
relacionassem entre si, sem que fosse necessária a intermediação prática de um sujeito. Mas o
silêncio do Ouvinte, como já foi visto, constitui um ato de resistência, próximo à atitude do
homem, ao fim do Ato sem Palavra I, que se recusa a atender ao chamado da vida,
convidando para a possibilidade ilusória de satisfação das necessidades imediatas. O discurso
das vozes revela que este sujeito, em determinado momento, recusou-se a acreditar nas
fábulas que se contava para encobrir o vazio; de modo que é possível ver, no seu silêncio e no
seu sorriso, a força de sua decisão.
Seria ingênuo ainda atribuir um caráter ativo a estas vozes, que não podem existir
independentes do sujeito que as proferiu. Se elas são, conforme expresso pelo autor
65
,
provenientes do passado, elas apenas podem ser percebidas, ao encontrar ressonância no
presente. Deste modo, o passado apenas pode ecoar porque há um sujeito atual, respirando,
esperando, ouvindo. O uso do pronome você torna inquestionável este processo. De acordo
com Benveniste (1976, p. 278-9), a primeira e a segunda pessoas são realidades mutuamente
implicadas, de modo que: eu [e, conseqüentemente, tu] só pode ser identificado pela
instância de discurso que o contém e somente aí. (...) a forma eu [ como tu] só tem existência
lingüística no ato de palavras que a profere.”
Ao “purificar” estas vozes da ação fisiológica e mecânica que as produz,
estabelecendo o uso de gravação e a anulação dos auto-falantes no escuro, Beckett apresenta a
linguagem como processo transcendente ao ato de falar, processo que organiza o vivido,
sobrepondo-se a ele, mediando a relação da consciência com o tempo
66
. No romance
65
ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
66
Mais uma vez, a obra de Proust oferece-nos uma situação exemplar. Em seu ensaio sobre o autor, Beckett
(1986, p. 12) verifica que o futuro permanece algo indistinto e sem realidade para o sujeito, até que algum evento
específico seja fixado, hipótese dependente da ação da linguagem: “O evento futuro não pode ser focalizado,
nem apreendidas suas implicações, até que se encontre definitivamente situado e designado por uma data. (...)
121
Companhia, fica bastante evidente o modo como a linguagem organiza a percepção do tempo:
“Uma voz que fala do passado, a alguém deitado no escuro. Com uma alusão ocasional ao
presente, e, o que é mais raro, ao futuro, como, por exemplo, Vais acabar como estás agora”
(BECKETT, 1982, p. 42). Apesar de situar como “ocasional” a menção do presente, os outros
tempos jamais poderiam ser refletidos, se não houvesse o que Benveniste (1976, p. 289)
chama de uma “linha de participação”, a qual corresponde a uma “referência ao presente”. De
acordo com o autor, esta demarcação “só pode ser interior ao discurso” porque “não há outro
critério nem outra expressão para indicar ‘o tempo em que se está senão tomá-lo como
‘o tempo em que se fala’”. Neste sentido, o tempo apresenta-se em Aquela vez não porque os
verbos apareçam flexionados no pretérito, tampouco pela presença de advérbios. Ele aparece
porque o emprego do pronome você demarca uma entidade presente que recebe aquele
discurso.
Além do pronome, outras expressões se deslocam pelos fragmentos de voz, indicando
a ação do sujeito que estabelece o tempo presente: “nada só os velhos trilhos quando foi”, “a
ruína de não importa”, “estava sua mãe ah pelo amor de Deus”, “ou conversando consigo
mesmo quem mais” [grifos meus]. Estas expressões parecem destinadas a corrigir ou a
enfatizar um fato lembrado. Depõem contra esta tendência, o fato de que o Ouvinte não está
emitindo tais expressões e o fato de que elas não se distinguem de outras expressões, uma vez
que estão inseridas num fluxo sonoro sem acentuações. Este fluxo é assegurado por uma
unidade de timbre, visto que se trata sempre da mesma voz. O fato de a voz se desmembrar
em fragmentos é aliviado pelo estabelecimento de um movimento seqüencial, que abarca o
espaço, através da disposição dos auto-falantes. O pronome você, como as referidas
expressões, destacam-se a partir da recorrência com que aparecem. Se na forma sonata, “a
sucessão não está a serviço da simultaneidade (polifônica), mas a simultaneidade (harmônica)
é que está a serviço da sucessão” (WISNIK, 2006, p. 169); as repetições, fundamentais na
estrutura de Aquela vez, afinam-se na definição do tempo presente tempo da consciência,
tempo de escuta -, impedindo a dispersão definitiva do sentido. Os temas, como visto,
também correm para aí, para o tempo do silêncio e da escuta e, deste modo, instalam a idéia
de sucessão.
A descrição do processo de ensaios desta peça, quando dirigida por Beckett, em
Berlim, informa que a voz requerida, apesar de desprovida de acentos, não é uma voz
puramente maquinal. Em cada uma das partes, os fragmentos se encerram com maior
Seja qual for a opinião que nos ocorra entreter a respeito do assunto morte, podemos ter certeza de que não terá
qualquer sentido ou valor. A morte não nos pede um dia livre.”
122
suavidade e o décimo segundo, que constitui o último fragmento de cada parte, deve ser o
mais suave de todos
67
. A atenção ao timbre da voz e a suas nuances é uma das características
que aproxima, à peça em questão, A última gravação de Krapp, de 1958, na qual um homem
de sessenta e nove anos ouve uma gravação da sua própria voz, efetuada trinta anos antes.
De acordo com James Knowlson
68
, que tem um artigo sobre a evolução desta peça,
através das encenações em que Beckett participou, o seu surgimento foi estimulado por um
motivo explicitamente musical. Segundo ele, a peça foi composta para o ator Patrick Magee,
cuja voz “rachada” havia sido ouvida por Beckett, numa leitura de fragmentos de Molloy,
transmitida pela rádio BBC em 1957. Beckett impressionara-se pelo fato desta voz “capturar
um sentido de profundo cansaço com o mundo, tristeza, ruína e pesar”. Esta percepção
concentrada na qualidade do som determinou inúmeros procedimentos “musicais”, quando
Beckett dirigiu o texto. Estes se evidenciam principalmente na abordagem da voz do Krapp
mais jovem - uma voz, como a de Aquela vez, sem corpo, fortemente desmaterializada.
Knowlson revela que Beckett exigiu desta voz um tom maior de “auto-confiança” que a
distinguisse da voz do Krapp presente em cena. A aparição dos principais temas solidão, luz
e trevas, e mulher no discurso desta voz é destacada com uma mudança de tonalidade, como
em música, quando se passa de “um tom maior para um tom menor”.
De maneira semelhante, ao dirigir Aquela vez
69
, Beckett sugere a Klaus Herm que
inicie a leitura da segunda parte do texto com uma voz maquinal, como o motor de um carro
afogando. Mas, ao ensaiar a leitura da terceira parte, percebe que o ator se encontra muito
preocupado com a técnica, com evitar a respiração. Solicita deste modo, um pouco mais de
sentimento naquilo que é dito. A referência informa sobre o grau de sutileza que requerem tais
peças, principalmente no que tange àquilo que Schaeffer (1966, p. 107) chamou de “natureza
sonora”. Segundo este autor, quando se ouve um ruído estranho no motor do carro, a escuta
trata de obter algum dado sobre seu funcionamento. Uma vez que as causas para este ruído
são, a princípio, desconhecidas, o ouvinte é levado a perceber, progressivamente, seus efeitos
o modo como esta sonoridade afeta a própria percepção. Esta escuta antecede, portanto, o
“entender”, que é como Schaeffer denomina a fase da escuta em que o som é identificado com
67
ASMUS, Walter D.. “Practical aspects of theatre, radio and television rehearsal notes for the German
premiere of Beckett’s ‘That Time’ and ‘Footfalls’ at the Schiller-Theater Werkstatt, Berlin (directed by
Beckett)”. Translated by Helen Watanabe. Journal of Beckett Studies. English Department at Florida State Univ.,
n. 2, verão 1977. Disponível em: <http://www.english.fsu.edu/jobs/num02/Num2WalterAsmus.htm> Acesso em:
12 de jun. de 2007.
68
KNOWLSON, James. “Krapp’s last tape: the evolution of a play, 1958-75.” Journal of Beckett Studies.
English Department at Florida State Univ., n. 1, inverno 1976. Disponível em:
http://www.english.fsu.edu/jobs/num01/Num1Knowlson2.htm Acesso em: 12 de ago. 2006.
69
ASMUS, Walter D.. Idem.
123
um signo. Nas peças de Beckett, as palavras não estão destituídas de sentido, mas o modo
como elas são veiculadas, a partir de sua “natureza sonora”, obriga os ouvintes a lidarem com
um dado que antecede a constituição do significado.
O presente da escuta torna-se, por tudo isso, tempo priorizado em Aquela vez. Ao
empregar a forma sonata, Beckett fez uso de uma arte que é “a Idéia em si, inconsciente do
mundo dos fenômenos, existindo idealmente fora do universo, apreendida não no Espaço, mas
no Tempo” (BECKETT, 1986, p. 74). Esta virtude peculiar da música é, entretanto,
corrompida pelo segundo termo da comunicação artística: o “ouvinte que, como sujeito
impuro, insiste em atribuir uma imagem ao que é ideal e invisível, insiste em encarnar a Idéia
no que lhe parece um paradigma adequado” (BECKETT, 1986, p. 74).
O estabelecimento de uma escuta musical para um fluxo de palavras inverte esse
mecanismo e revela-se uma operação direta sobre o tempo do ouvinte. A música é, em Aquela
vez, menos a busca por um grau de pureza e de abstração, do que um deslocamento do uso
habitual dos signos lingüísticos. Partindo de elementos que não podem se separar da sua carga
referencial, como são as palavras, o autor submete-as a um tempo próprio da música,
inserindo-as num outro nível de significância
70
. De modo semelhante, Pierre Schaeffer (1966,
p. 390), fundador da chamada “música concreta”, precursora da “música eletroacústica”, nos
anos de 1950, observa como a sua arte emergente nasceu de uma percepção diferenciada da
arte já existente. Ele se refere à audição da trilha fechada, ou seja, da execução repetitiva, pela
agulha do gramofone, de uma única fissura em uma determinada gravação. De acordo com o
músico, este fragmento, “que devia sua existência apenas ao instante fortuito em que a agulha
era baixada”, carregava-se de sentidos e apontava para a identificação de possíveis temas, os
quais não mais se relacionavam com o tema da obra original. “Arrancados do contexto, a um
só tempo desprovidos e ainda mais plenos de sentido, eles nos prendiam em seu universo
fechado, atraente e absurdo. É provável que toda quebra de condicionamento passe por aí:
violação, destruição, sem-sentido.”
A tradição imputou à sonata um tempo de progresso e de transformação. Mas como o
sentido da música depende, principalmente, das faculdades do seu ouvinte, a escuta de um
compositor como Beethoven, ligado à geração romântica (e, portanto, a um período que fez
largo uso da forma sonata), é descrita por Beckett
71
, privilegiando menos a percepção
diacrônica, sucessiva, do que se espera naquela forma. A evolução dos sons é percebida como
70
A expressão “significância” é empregada por Barthes (1990, p. 228), em sentido diferente de “significação”.
Esta última supõe a referência a um código e demanda um ato de reconhecimento ou de decifração; ao passo que
a primeira diz respeito ao “espelhamento” de significantes e estabelece um movimento de dispersão.
71
Vide o final do último sub-capítulo.
124
progresso, mas apenas na medida em que este progresso deixa ver o silêncio, como elemento
do qual os sons se destacam e como indiferenciação que os ameaça. Assim, as imagens
verbais que se constroem, em Aquela vez, aparecem como figuras do passado, acessíveis,
próximas ou devidamente distanciadas. Ao se repetirem, se confundirem, se dissolverem,
estas imagens presentificam a consciência que elas integram. Esta última não corresponde a
um sítio seguro ou a uma totalidade, mas se faz atravessar pelo fluxo do tempo, de modo que
todo recorte que ela promova, apresente, ou encontre, deve ser contrastado com o que ela não
foi capaz de reter desta determinada vez.
nenhum ruído apenas as folhas suavemente no pequeno bosque atrás as espigas ou
os bambus ou os caniços conforme o caso de homem nenhum sinal de homem ou
animal nenhum sinal nenhum som
De modo semelhante, a escuta do espectador, nesta peça, deve lidar, o tempo todo,
com elementos que lhe escapam. Este fato impossibilita que a maior parte daquilo que é
ouvido, e compreendido como signo, seja articulada em uma estrutura de sentido mais ampla.
O fluxo musical das palavras converte-as numa matéria que solicita um novo estado de
atenção. Na verdade, trata-se menos de atenção do que de desatenção, conforme a escuta
psicanalítica, referida anteriormente. Isto torna tal escuta muito próxima da escuta vertical,
percebida por Barthes, na obra de John Cage, onde o que ocorre é a percepção bruta de cada
som, singularizado a ponto de comprometer a cadência, a identificação de uma narrativa
sonora, a idéia de progresso.
Esta escuta proposta é uma escuta mais livre, mas ao mesmo tempo mais arriscada,
uma vez que, conforme Barthes (1990, p. 228), “obriga o indivíduo a renunciar à sua
‘intimidade’”. Os resultados são imprevisíveis. A escuta como decifração das palavras não
sendo aqui suficiente, o indivíduo é levado a escutar-se.O espectador pode sair do teatro
irritado por ter perdido o seu tempo, prestando-se a ouvir um texto que compreendeu mal.
Assim como ter atenuadas, temporariamente, algumas de suas inclinações particulares, ao se
deixar conduzir pelo fluxo monótono, pelo ritmo lento da respiração ampliada. Isto explica
porque a duração da peça costuma parecer maior do que de fato é. Aquele que se aborrece,
contempla, a cada minuto, a própria insuficiência dos seus atos interpretativos. Este processo
será tanto mais intenso quanto maiores as expectativas de compreensão ou de entretenimento
este espectador trouxer para o teatro. Ao passo que aquele cuja escuta se harmonizar com o
fluxo surpreender-se-á, como o Ouvinte, com o silêncio, em cada um dos intervalos, e com o
silêncio final. Infinitas podem ser as posturas, as escutas, as reações, todas baseadas numa
125
forma subjetiva de perceber o tempo. E é justamente isto que impede de saber quando, onde,
o que foi Aquela vez.
126
CONCLUSÃO
Finalizando este estudo, é possível perceber a dificuldade em retomar a primeira
impressão obtida a partir da obra enquanto resgate da experiência sensível que estimulou a
pesquisa. Procurei orientar todo este trabalho para aquele instante privilegiado, em que a peça
surpreende o espectador ou o leitor, alterando o ritmo de sua respiração. A obra de Beckett é
auto-explicativa, na medida em que cada peça, ensaio ou romance retoma e enfatiza os temas
e motivos já apresentados em outras obras. Aquela vez pode ser vista, neste sentido, como um
aprofundamento na matéria que gerou Fim de Jogo ou A última gravação de Krapp. É por
isto que a interpretação alegórica constitui um risco. Imputar um sentido à obra significa
aniquilá-la. As circunstâncias de cada uma destas peças individualizam-nas, principalmente,
porque supõem um modo específico de comunicação, um modo específico de dialogar com o
tempo trazido pelo espectador.
Acreditava poder chegar a algum resultado expressivo quanto à relação entre o teatro e
a produção da subjetividade, no contexto das peças curtas de Beckett. O próprio autor oferece
as informações mais significativas a respeito do que constitui a subjetividade veja-se a idéia
de personalidade como algo apreendido no passado, em seu ensaio Proust; e a Boca que não
consegue dizer “eu”, no palco de Eu não, para citar apenas dois exemplos. Mas há outras
coisas além destes conteúdos nestas peças enigmáticas que se adeqüam mal às definições
convencionais de dramaturgia. Acredito ter me aproximado de umas destas coisas ao me
aproximar do tempo em que estas peças se desenvolvem (e que é desenvolvido por estas
peças): o tempo seqüencial que, em Aquela vez parodia a estrutura da sonata; e o tempo
sincrônico, que justapõe, em cada instante da peça, intensidades determinadas de material
significante de natureza diversa. O organizador desta obra (que é certamente uma partitura)
não detém seu sentido mais profundo, mas depende do tempo de participação do espectador
para que a obra se cumpra como dispersão dos possíveis sentidos. É deste modo que ela faz
perceber o sujeito como uma função do tempo, sendo tanto mais complexo quanto mais
entregue ao fluxo, quanto menos reificado num caráter que se sabe vazio. A peça indica a
desconstrução do sujeito representado, mas isto só é possível porque a escuta do espectador
foi desconstruída.
As vozes de Aquela vez são a expressão de um sujeito que se constituiu na linguagem,
mas que, em determinado momento, percebeu que aquela não representa mais do que um
movimento condicionado para suplantar o vazio que ameaça a consciência. Ao abrir mão da
fala, este indivíduo não pôde deixar, entretanto, de ritmar o indiferenciado, o mistério, de
127
configurar o tempo em presente, passado e futuro, de delimitar o espaço, reconhecê-lo no
escuro que o circunscreve. Este é o modo como a escuta procura re-estabelecer um espaço
seguro para o sujeito. A escuta do espectador tratará de desenvolver suas próprias reações
para suplantar a novidade, mas esta peça está estruturada de modo a impedir a fixação do
sentido. Ao libertar a escuta da decifração da mensagem, ao contagiar esta faculdade com o
vazio, a peça afrouxa a marcação do tempo. Ao instituir um ritmo, estabelecer deslocamentos,
seqüências, busca restaurar esta noção, mas institui um movimento que se dirige para o
silêncio, e que repousa na insinuação do desaparecimento do sujeito, bem como da cultura
que ensejou a sua aparição. A obra pode ser constantemente reencontrada aí, no espaço em
que faz co-existir a sua necessidade e a sua insuficiência. Em Aquela vez, este é um espaço de
escuta, que, sendo o sentido organizador da noção de tempo, permite relativizar esta noção,
exceto em seu único aspecto essencial: o tempo vivido que se perde em direção à morte.
128
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134
ANEXO A
135
AQUELA VEZ
De Samuel Beckett
Tradução Rubens Rusche
(a partir dos originais em
inglês. That time, e
francês, Cette fois)
Cortina. Palco na escuridão. Ir subindo com a luz até iluminar o rosto do
Ouvinte, a uns três metros acima do nível do palco e um pouco descentrado.
Velho rosto branco, ligeiramente inclinado para trás, longos cabelos brancos
esparramados, como se, vistos do alto, contra um travesseiro.
As vozes A, B e C são uma única e mesma voz, a dele, que lhe chegam vindas das
duas laterais e de cima. Elas se encadeiam sem nenhuma interrupção, exceto nos
lugares indicados. Ver nota.
Silêncio. 7 segundos. Os olhos do Ouvinte estão abertos. Respiração audível,
lenta e regular.
A aquela vez que você retornou aquela última vez ver se estava ainda ali a ruína
onde criança você se escondia quando foi (os olhos se fecham, ligeira queda da
luz) dia cinzento com o onze até o fim da linha e dali a pé não não havia mais
bondes tudo acabado há muito tempo aquela vez que você retornou ver se estava
ainda ali a ruína onde criança você se escondia aquela última vez nenhum bonde
nada só os velhos trilhos quando foi
C quando você se abrigou da chuva sempre o inverno então sempre a chuva
aquela vez no museu ao abrigo do frio da chuva da rua à espera do momento de
entrar sem ser visto e através das salas gelado e molhado até avistar o primeiro
banco laje de mármore sentar descansar secar depois cair fora dali quando foi
B na pedra juntos ao sol na pedra na orla do pequeno bosque nada só o trigo
amarelando de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio sem
jamais se tocar ou algo assim você numa ponta da pedra ela na outra pedra longa
e baixa como pedra de moinho sem nunca se olhar apenas ali na pedra ao sol
atrás o pequeno bosque olhando o trigo ou os olhos fechados ao redor tudo
imóvel nenhum sinal de vida ninguém por perto nenhum ruído
136
A subiu em frente do cais até a rua principal o saco de dormir na mão direita em
frente nem à direita nem à esquerda ao diabo os velhos lugares os velhos nomes
subiu em frente do cais até a rua principal e ali nenhum fio nada só os velhos
trilhos enferrujados quando foi estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo
acabado há muito tempo aquela vez que você retornou aquela última vez ver se
estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia a ruína de uma antiga
como era mesmo o nome
C estava sua mãe ah pelo amor de Deus tudo acabado há muito tempo tudo
poeira todos eles só restou você tombado sobre a laje com seu velho casaco verde
a se abraçar quem mais se aquecer se secar e cair fora dali tombar em outro lugar
ninguém por perto você sozinho e de quando em quando um vigia sonolento
arrastando os chinelos de feltro nenhum ruído somente de quando em quando o
arrastar do feltro aproximando-se depois se afastando
B ao redor tudo imóvel apenas as espigas as folhas e vocês também imóveis na
pedra como entorpecidos nenhum ruído nenhuma palavra de quando em quando
juras de amor apenas um murmúrio única fonte de lágrimas antes de se secarem
totalmente aquele pensamento sempre que surgia dentre os outros fazia emergir
aquela cena
A a ruína de não importa pedaço de torre ainda em pé entre cascalhos e urtigas
onde você dormia nenhum amigo nenhum teto talvez aquela hospedaria junto ao
mar onde você não ela estava ainda ao seu lado ao seu lado aquela única noite
seja como for desembarcou de manhã tornou a embarcar na manhã seguinte ver
se estava ainda ali a ruína onde ninguém nunca vinha onde criança você se
escondia à espera do momento de entrar sem ser visto corria e ali se escondia o
dia todo numa pedra no meio das urtigas com seu livro de gravuras
C e ali de repente tendo erguido a cabeça aberto os olhos uma enorme pintura a
óleo enegrecida pelo tempo empoeirada alguma celebridade homem ou mulher
ou criança célebre jovem príncipe talvez ou princesa algum jovem príncipe ou
princesa enegrecida pelo tempo atrás do vidro onde aos poucos diante de seus
olhos míopes procurando ver mais claro aos poucos emergiu um rosto que lhe fez
se voltar sobre a laje ver quem estava ali ao seu lado
B na pedra ao sol olhando o trigo ou o céu ou os olhos fechados nada só o trigo
amarelando o céu azul de quando em quando juras de amor apenas um murmúrio
e então as lágrimas antes de secarem totalmente ali de repente no meio dos
pensamentos que lhe viam à mente cenas sejam quais forem talvez da infância
distante ou do ventre materno a pior de todas ou daquele velho chinês muito
antes de Jesus Cristo que já nasceu com longos cabelos brancos
137
C jamais o mesmo depois daquilo jamais exatamente o mesmo mas isso não era
nenhuma novidade se não fosse isso era aquilo depois do que você jamais pode
ser o mesmo arrastando-se ao longo dos anos atolado em seu eterno lamaçal
murmurando a si mesmo quem mais você jamais será o mesmo depois disto você
jamais foi o mesmo depois daquilo
A ou conversando consigo mesmo quem mais conversas imaginárias você era
ainda uma criança dez onze anos numa pedra no meio das urtigas gigantes
entregue às suas invenções ora uma voz ora uma outra até ficar rouco e elas todas
soarem iguais noite adentro quando você se esquecia noite escura ou à luz da lua
e todos lá fora à sua procura
B ou junto à janela no escuro a ouvir a coruja a cabeça vazia e aos poucos difícil
acreditar cada vez mais difícil acreditar que você tenha alguma vez amado
alguém ou alguém a você até concluir que essa é mais uma daquelas histórias que
você costumava inventar para deter o vazio mais uma daquelas velhas fábulas
para que o vazio não viesse cobri-lo com seu sudário
Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração
audível. 7 segundos.
C jamais o mesmo mas o mesmo o quê quem pelo amor de Deus alguma vez
você se disse eu em sua vida ora vamos (os olhos se fecham, ligeira queda da
luz) alguma vez você conseguiu se dizer eu nessa reviravolta que foi a sua vida
essa era uma palavra que você sempre carregava na boca antes que ela se calasse
para sempre toda a sua vida uma sucessão de reviravoltas na verdade uma única
reviravolta a primeira e última aquela vez pequeno verme enrolado na lama de
onde eles o arrancaram limparam desenroscaram nenhuma outra reviravolta
depois dessa você nunca mais olhou para trás depois disso ou isso foi uma outra
vez tudo isso uma outra vez
B recontando suas fábulas a si mesmo aquela vez juntos na pedra ao sol ou
aquela vez juntos à beira do rio ou aquela vez juntos nas dunas aquela vez aquela
vez e cada vez melhor sempre juntos em algum lugar ao sol à beira do rio diante
da foz o sol se pondo os detritos que desciam o rio levados pela correnteza ou
detidos pelos caniços o rato morto ou algo assim boiando ao seu encontro levado
pela correnteza lentamente até se perder de vista
A aquela vez que você retornou ver se estava ainda ali a ruína onde criança você
se escondia aquela última vez subiu em frente do cais até a rua principal pegar o
onze nem à direita nem à esquerda uma única idéia em sua cabeça ao diabo os
velhos lugares os velhos nomes cabeça baixa em frente até o alto para se plantar
ali o saco de dormir na mão até se dar conta enfim
138
C quando você começou a não mais saber quem você era só para ver a que isso
levaria não mais saber quem você era sem saber quem estava dizendo o que você
dizia de quem o crânio onde você mofava de quem as misérias que o deixaram
assim ou isso foi uma outra vez aquela vez sozinho com os retratos dos mortos
enegrecidos pelo tempo empoeirados as datas nas molduras para que você não se
enganasse de século não podendo acreditar que era você até que o expulsaram
dali para debaixo da chuva hora de fechar
B jamais um olhar para o seu rosto ou outra parte jamais um gesto para ela nem
dela para você sempre paralelos como nas duas extremidades de um eixo sem
nunca se aproximar um do outro como duas leves manchas no limiar do campo
sem nunca se tocar ou algo assim sempre um espaço entre vocês por mínimo que
fosse nunca juntos como carne e sangue apenas duas sombras nem mais nem
menos não fossem as juras
A não havia mais bondes que fazer então nem pensar em perguntar falar com
alguém nunca mais em sua vida a pé então curvado até a estação enfim pegar o
trem mas ali tudo fechado e trancado o terminal neodórico da ferrovia a colunata
em ruínas que fazer então
C a chuva e a eterna andança procurando assim inventá-la inventar assim a si
mesmo enquanto avançava tentar ver a que isso levaria não ter existido poderia
muito bem levar a isso não ter nunca sido a eterna andança todos os truques
possíveis cambaleando murmurando por toda a parte até que a boca se exaurisse
a cabeça se exaurisse as pernas se exaurissem de quem quer que elas fossem ou
que aquilo desistisse o que quer que aquilo fosse
B imóveis feito mármore sempre imóveis como aquela vez na pedra ou aquela
vez nas dunas estendidos paralelos na areia fixando o azul ou os olhos fechados
azul escuro azul escuro imóveis feito mármore lado a lado a cena emergia e
estavam vocês de novo onde quer que fosse
A senão desistir daquilo desistir tombado num degrau sob o pálido sol da manhã
não nunca o sol naqueles degraus outro lugar então ir tombar em outro lugar sob
o pálido sol um degrau de uma porta o degrau da porta de alguém à espera da
noite e da hora de embarcar sair daquele inferno sem precisar dormir em algum
lugar ao diabo os velhos lugares os velhos nomes as pessoas boquiabertas ao vê-
lo ali até retomarem seu caminho do outro lado da rua
B imóveis feito mármore lado a lado antes de imergir e sumir sem nunca terem
se movido como as duas esferas de um haltere exceto as pálpebras e de quando
em quando os lábios para jurar amor e tudo ao redor também imóvel onde quer
que fosse nada se move nenhum ruído apenas as folhas suavemente no pequeno
139
bosque atrás ou as espigas ou os bambus ou os caniços conforme o caso de
homem nenhum sinal de homem ou animal nenhum sinal nenhum som
C sempre o inverno então sempre a chuva sempre à espera do momento de entrar
sem ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva com seu velho casaco verde
herança de seu pai nada como os lugares gratuitos a biblioteca municipal uma
coisa formidável a cultura gratuita providência dos sem-teto ou o correio esse era
um outro um outro lugar uma outra vez
A tombado no degrau da porta com seu velho casaco verde sob o pálido sol o
inútil saco de dormir sobre os joelhos sem saber mais onde você estava aos
poucos sem saber mais onde você estava nem quando nem por quê sozinho no
mundo sem conhecer ninguém como aquela vez na pedra a criança na pedra onde
ninguém nunca vinha
Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração
audível. 7 segundos.
B ou sozinho nas mesmas cenas inventando-a assim deter conter o vazio na
pedra (os olhos se fecham, ligeira queda da luz) sozinho na ponta da pedra com o
trigo o azul ou à beira do rio sozinho à beira do rio com os seus fantasmas o rato
afogado ou o pássaro ou o que quer que aquilo fosse na correnteza se afastando
no fogo do crepúsculo lentamente até se perder de vista nada se move apenas a
água o sol morrendo até morrer desaparecer e você com ele e tudo o mais
A ninguém nunca vinha só a criança na pedra no meio das urtigas gigantes a luz
coando por uma fresta do muro curvada sobre seu livro noite adentro absorta
noite escura ou à luz da lua e todos lá fora à sua procura ou conversando sozinha
dividindo-se em muitas para ter uma companhia ali onde ninguém nunca vinha
C sempre o inverno então inverno sem fim o ano todo como se não pudesse
acabar o ano agonizante como se o tempo não pudesse avançar aquela vez no
correio aquele alvoroço fim de ano tendo esperado o momento de entrar sem ser
visto para se abrigar da rua do frio da chuva abriu a porta como outro qualquer
seguiu em frente nem à direita nem à esquerda até a mesa com seus formulários e
canetas sentar-se no primeiro banco vazio e como sempre uma olhada ao redor
antes de tirar um cochilo
B ou aquela vez sozinho deitado nas dunas sem juras para quebrar a paz quando
foi antes ou depois antes de ela chegar depois de sua partida ou os dois antes de
ela chegar depois de ela ter partido e você de novo na mesma cena onde quer que
fosse a mesma velha cena antes ou depois não importa com o rato ou o trigo as
espigas amarelando ou aquela vez nas dunas com o planador que passava aquela
vez que você retornou pouco depois bem depois
140
A onze doze anos na ruína na pedra plana no meio das urtigas noite escura ou à
luz da lua a sussurrar ora uma voz ora outra você era ainda uma criança e ali no
degrau sob o pálido sol lá está você de novo ao diabo os que passam
boquiabertos ao vê-lo ali tombado sob o sol agarrado ao saco de dormir aos
brados com suas tolices olhos fechados cabelos brancos que o chapéu não
escondia e assim permaneceu sob o pálido sol esquecendo-se de tudo
C medo de ser expulso por não ter motivo para ficar ali sem falar de seu aspecto
repugnante olhou por isso de novo ao redor para seus asquerosos semelhantes
agradecendo de novo a Deus que apesar de seu péssimo estado você não era
como eles até se dar conta aos poucos que por causar repugnância você não
deveria ter entrado ali e se exposto àqueles olhares àquelas pessoas que
passavam por você como se você não existisse ou isso foi uma outra vez um
outro lugar uma outra vez
B o planador que passava nenhuma mudança os mesmos céus sempre nunca
nada mudava a não ser ela ali ou não com você à sua mão direita sempre mão
direita no limiar do campo e de quando em quando na grande paz bem baixo
apenas um murmúrio como ela o amava difícil acreditar que você mesmo você
tenha alguma vez conseguido divagar a esse ponto até aquela última vez enfim
A inventando sem cessar a história tombado no degrau da porta inventando a si
mesmo reinventando a si mesmo pela milionésima vez esquecendo-se de tudo
onde você estava e por que a ruína a ruína de sua infância que lhe fez retornar ver
se ela estava ainda ali e de novo nela se esconder à espera da noite e da hora de
partir à espera da hora de partir
C a biblioteca essa era uma outra um outro lugar uma outra vez aquela vez à
espera do momento de entrar sem ser visto para se abrigar da rua do frio da chuva
alguma coisa ali você jamais pode ser o mesmo depois daquilo jamais o mesmo
algo a ver com a poeira algo que a poeira lhe disse sentado à grande mesa
redonda ao lado de alguns velhos curvados sobre a página e nenhum ruído
B aquela última vez quando você tentou e não conseguiu à janela no escuro a
coruja levantou vôo foi piar para algum outro ou voltou à sua árvore oca com
alguma cobra no bico e nenhum ruído hora após hora hora após hora nem um
único ruído quando você tentou tentou e não conseguiu mais nenhuma palavra
para conter o vazio e nada lhe restou a não ser desistir desistir ali à janela no
escuro noite escura ou à luz da lua desistir de tudo e deixá-lo vir não foi tão ruim
assim o vasto sudário a cobri-lo não foi tão ruim assim não foi o pior de tudo ou
quase
A descer de novo até o cais o saco de dormir na mão o velho casaco verde
herança de seu pai a arrastar-se pelo chão os cabelos brancos que o chapéu não
141
escondia à espera da hora de descer em frente nem à direita nem à esquerda ao
diabo os velhos lugares os velhos nomes uma única idéia na cabeça subir a bordo
sair daquele inferno e nunca mais retornar ou isso foi uma outra vez tudo isso
uma outra vez nunca houve uma outra vez apenas aquela vez sair daquele inferno
e nunca mais retornar
C nenhum ruído apenas as velhas respirações o virar das páginas quando de
repente aquela poeira o lugar todo repleto de poeira ao abrir os olhos do chão ao
teto havia só poeira e nenhum ruído somente o que foi que ela lhe disse veio
partiu foi isso algo assim veio partiu veio partiu ninguém veio ninguém partiu
apenas veio partiu apenas veio partiu
Silêncio. 3 segundos. Os olhos se abrem. Ligeira elevação da luz. Respiração
audível. Sorriso, de preferência desdentado. 7 segundos. A luz se extingue
lentamente. Cortina.
NOTA
ABC se sucedem sem nenhuma interrupção, exceto durante 10 segundos nos
dois locais indicados. Contudo, a passagem de uma voz à outra deve ser
claramente perceptível, ainda que de uma forma suave. Caso as três fontes de
origem e o contexto não se mostrarem suficientes para se obter esse efeito, o
mesmo deverá ser realizado mecanicamente, amplificando-se, por exemplo, três
vezes o som.
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