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Rodolfo Petrônio da Costa Araújo
Filosofia da Natureza e Ciência
Nova perspectiva e complementaridade
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Gomes dos Santos
Rio de Janeiro, 26 de maio de 2008
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Rodolfo Petrônio da Costa Araújo
Filosofia da Natureza e Ciência
Nova perspectiva e complementaridade
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Dr. Carlos Alberto Gomes dos Santos
Orientador
PUC-Rio
Prof. Dr. Carlos Alberto Gomes dos Santos
PUC-Rio (Presidente)
Prof. Dr. Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira
PUC-Rio
Profa. Dra. Bárbara Botter
PUC-Rio
Prof. Dr. Paulo Sergio Faitanin
UFF
Prof. Dr. Marco Antonio Caron Ruffino
UFRJ
Prof. Dr. Oswaldo Monteiro Del Cima
UFF
Prof. Dr. Edgard José Jorge Filho
PUC-Rio (Suplente)
Prof. Dr. Luis Antonio Brasil Kowada
UFF (Suplente)
Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador(a) Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 26 de maio de 2008
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
Rodolfo Petrônio da Costa Araújo
Graduou-se em Engenharia Naval pela Escola de
Engenharia da UFRJ.
Desenvolveu e participou de várias iniciativas na área de
engenharia de software, em empresas nacionais, e em uma
multinacional globalmente reconhecida pelo
desenvolvimento de productos de tecnologia digital em
processamento de documentos. Foi professor substituto da
UFF e presentemente leciona filosofia na Faculdade de São
Bento do Rio de Janeiro. Seu interesse investigativo
concentra-se em filosofia da natureza e filosofia da ciência,
especialmente em física.
Ficha Catalográfica
CDD:
100
Araújo, Rodolfo Petrônio da Costa
Filosofia da natureza
e ciência: nova
perspectiva e complementaridade /
Rodolfo Petrônio da
Costa Araújo ; orientador:
Santos. – 2008.
264 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Filosofia)–
Pontifícia
Un
iversidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2008.
Inclui bibliografia
1. Filosofia
Teses. 2. Filosofia da natureza. 3.
Ontologia. 4. Epistemologia.
5. Metafísica. 6. Filosofia da
física. 7. Tomismo. I. Santos, Carlos Albe
rto Gomes dos.
II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Filosofia. III. Título.
À Virgem Maria, Mãe de Deus,
Rainha do Céu,
Auxílio dos cristãos,
Esperança nossa,
Sede da Sabedoria.
Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Alberto Gomes dos Santos, pela paciência e
pela "aposta" na investigação.
À Profa. Dra. Déborah Danowski, pelo auxílio em uma hora difícil.
Ao CNPq, pelo suporte financeiro.
À minha amada, Carmen Angela.
A meus filhos, Leonardo e Alexandre.
A meus pais, Petrônio e Lia.
Ao meu avô, Antônio Ferreira da Costa (in memoriam).
A Marta Madruga, cunhada e amiga,
pelo incentivo e pela ajuda inestimável na
obtenção da tese de Philip Davies na Universidade de Londres.
Ao Mestre a amigo D. Irineu Penna, OSB.
Ao Pe. José Antonio Macedo, pelas "dicas" e pelas orações.
Aos amigos do Centro Cultural Icaraí (Niterói), pela amizade e pelo incentivo.
Aos professores que participaram da banca, especialmente ao Prof. Dr. Oswaldo
Del Cima, físico, por ter aceitado o convite para examinar um texto filosófico, e
ao Prof. Dr. Paulo Sergio Faitanin, cujo auxílio em metafísica foi fundamental
para a realização desta investigação.
A Edna e Diná, do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, pelo empenho
constante.
Resumo
Araújo, Rodolfo Petrônio da Costa; Santos, Carlos Alberto Gomes dos.
Filosofia da Natureza e Ciência. Rio de Janeiro, 2008. 264p. Tese de
Doutorado - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Esta investigação tem por objetivo apresentar um modelo de cooperação
entre filosofia e ciência experimental, por meio de um domínio comum, a
matemática, especialmente a álgebra. Essa coordenação entre dois domínios
situados em níveis distintos de conhecimento da realidade natural chama-se
filosofia da natureza, e havia sido proposta por Aristóteles nos oito livros da
Física. Com o advento da ciência experimental moderna entre os séculos XVI e
XVII, tal tipo de investigação passou a ter um caráter secundário, porquanto se
entendeu que as teorias, especialmente as de base matemática, e o método
experimental em conjunto seriam suficientes para dar conta da estrutura da
realidade. No entanto, faz-se necessário -- e esta é nossa proposta --, em
decorrência das questões de limite suscitadas pela própria ciência experimental,
retomar uma investigação complementar à científica ou epistêmica, e coordenada
com esta, de modo a prover um conhecimento integral, totalizante, da realidade
natural. Portanto, analisa-se o alcance da ciência experimental quanto à
compreensão científica da natureza da matéria, expondo certas limitações deste
tipo de enfoque, tendo por base a epistemologia proposta pelo filósofo Jacques
Maritain. Em seguida, analisa-se o estatuto metafísico ou ontológico da matéria,
com base em vários textos de Tomás de Aquino, e propõe-se um modelo algébrico
para a representação de elementos daquela ontologia. Por fim, apresentam-se
algumas conseqüências que se podem extrair desse modelo, com vistas à
compreensão de aspectos da realidade natural como espaço-tempo e movimento,
não-localidade quântica, e uma proposta de visão totalizante da realidade física,
denominada holomovimento, sugerida pelo físico David Bohm.
Palavras-chave
Filosofia da Natureza; Ontologia; Epistemologia; Metafísica; Filosofia da
Física; Tomismo
Abstract
Araújo, Rodolfo Petrônio da Costa; Santos, Carlos Alberto Gomes dos
(Advisor). Philosophy of Nature and Science. Rio de Janeiro, 2008. 264p.
DSc Thesis - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
The main purpose of this enquiry is to provide a cooperative framework for
philosophy and experimental science. This should be accomplished by means of a
common domain, namely mathematics, specifically through algebra. Such a
coordination between two different levels of knowledge of the natural world is
named philosophy of nature, and had been proposed by Aristotle in his eight book
Physics. As an outcome of the rise of modern science between 16
th
and 17
th
centuries, this kind of enquiry has been left aside as a secondary enterprise. For it
has been a common understanding that modern scientific theories together with
experimental methods would suffice to account for the structure of reality.
However, I shall propose that it is necessary -- as a consequence of edge research
on experimental sciences -- to resume a complementary enquiry to the scientific
(epistemic) research, in such a coordinated way with this latter as to provide a
whole knowledge of the natural world. Thus, I shall analyze the concept of matter
as it is understood by experimental science, and based upon Jacques Maritain´s
proposed epistemology I shall present some of the shortcomings of scientific
approach to matter. Shortly afterwards, I shall analyze the metaphysical
(ontological) status of matter based upon several writings from Thomas Aquinas,
and I shall propose an algebraic model to represent some of the ontological
elements that build up matter from a metaphysical point of view. Lastly, I shall
present some of the consequences that can be obtained from that model in order to
gain a metaphysical understanding of physical aspects such as space-time and
movement, quantum non-locality, and also a whole perspective of physical reality
as proposed by David Bohm which he called holomovement.
Keywords
Philosophy of Nature; Ontology; Epistemology; Metaphysics; Philosophy of
Physics; Thomism.
Sumário
INTRODUÇÃO..................................................................................................................10
1 CIÊNCIA E FILOSOFIA DA NATUREZA...................................................19
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS....................................................................................19
1.2 AS CIÊNCIAS ESPECULATIVAS EM ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO ................30
1.3 AS CIÊNCIAS INTERMEDIÁRIAS ............................................................................37
1.4 NATUREZA DO ALCANCE EMPIRIOLÓGICO DA CIÊNCIA MODERNA........................40
1.5 ANÁLISE ONTOLÓGICA E FILOSOFIA DA NATUREZA .............................................55
2 MATÉRIA .........................................................................................................65
2.1 O ENFOQUE EPISTÊMICO (CIENTÍFICO) DA MATÉRIA.............................................70
2.2 ONTOLOGIA DA MATÉRIA ....................................................................................93
3 REPRESENTAÇÃO ALGÉBRICA DA METAFÍSICA NATURAL ........116
3.1 TEORIA HILEMÓRFICA........................................................................................122
3.2 CONCEITOS ALGÉBRICOS: ÁLGEBRAS DE CLIFFORD E DE WEYL ........................127
3.2.1 Definições gerais.....................................................................................127
3.2.2 Idempotentes............................................................................................129
3.2.3 Ideais.......................................................................................................132
3.2.4 Estrutura das álgebras de Clifford e de Weyl .........................................134
3.3 UM MODELO ALGÉBRICO PARA A TEORIA HILEMÓRFICA....................................151
3.3.1 Considerações iniciais ............................................................................151
3.3.2 Interpretação ontológica da álgebra de Weyl.........................................157
4 CONSEQÜÊNCIAS EMPIRIOLÓGICAS DO MODELO PROPOSTO ..189
4.1 GEOMETRIA E MOVIMENTO................................................................................190
4.1.1 Considerações iniciais ............................................................................190
4.1.2 “Extração” da geometria e do movimento..............................................191
4.2 NÃO-LOCALIDADE .............................................................................................210
4.2.1 Comentários iniciais ...............................................................................210
4.2.2 Situando o problema da não-localidade na mecânica quântica .............211
4.2.3 Desigualdades de Bell.............................................................................219
4.2.4 Potencial quântico, não-localidade e
00
α
..........................................223
4.3 HOLOMOVIMENTO E DINÂMICA DA MATÉRIA PRIMEIRA.....................................232
4.3.1 A ordem implicada e o holomovimento...................................................233
4.3.2 Holomovimento e dinâmica da protomatéria..........................................235
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................243
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................257
Introdução
O objetivo principal da tese é mostrar que o conhecimento científico e o
conhecimento metafísico da realidade natural -- este último proposto pela filosofia
da natureza -- são conhecimentos complementares, e seu intercurso abre uma
perspectiva de cooperação que foi rompida com o advento da ciência moderna
entre os séculos XVI e XVII. A filosofia da natureza se constitui num
conhecimento genuíno da ordem natural, complementar ao das ciências
experimentais. Neste trabalho, será especialmente enfocado como conhecimento
complementar ao da física-matemática. Será exposto um modelo de análise
metafísica da realidade natural, o qual representa um caso concreto de
colaboração entre ciência e filosofia. Trata-se, por conseguinte, de retomar o
projeto aristotélico de uma cosmologia natural, em novas bases, tendo em vista o
importe epistemológico conseguido à custa daquele mesmo rompimento. Isto
deverá ser o resultado do atingimento de dois objetivos intermediários:
1) Mostrar que o alcance empiriológico
*
, proposto pelo filósofo Jacques
Maritain
1
, fornece uma condição epistemológica necessária para o conhecimento
do mundo sensível, obtido a partir das ciências experimentais. Estabelece com
rigor o objetivo central de nossas teorias científicas, a saber, qual o campo
epistemológico das ciências experimentais contemporâneas, especialmente
daquelas que utilizam formalmente a matemática como método de apropriar seu
objeto material. No entanto, não é suficiente para dar conta de um conhecimento
integral da realidade natural, requerendo, por conseguinte, um conhecimento
complementar de natureza ontológica.
2) Propor um novo grau intermediário de conhecimento da realidade
física, de natureza lógico-metafísica, que forneça uma condição ontológica
complementar ao conhecimento de natureza empiriológica. Este conhecimento de
natureza metafísica é igualmente necessário para o conhecimento integral do
mundo, e se insere no esquema usual da classificação tomista dos níveis de
*
Trata-se do tipo de conhecimento oferecido pelas ciências experimentais, a ser analisado no
capítulo primeito.
1
Cf. MARITAIN, 1995.
Introdução
11
visualização abstrativa
*
da realidade, intermediário entre os graus da matemática e
da metafísica. Apresenta-se sob a forma de um “cálculo ontológico”, por assim
dizer, cujo delineamento será apresentado nesta dissertação.
Portanto, duas conseqüências da existência formal deste grau intermediário
são, a nosso ver, de um lado, a presença de uma nova área de pesquisa no que se
refere ao tratamento metafísico do real, e de outro, o renascimento do projeto
maritainiano para uma filosofia da natureza.
Este trabalho é a continuação natural de nossa dissertação de mestrado
2
, na
qual tratamos de alguns aspectos gerais do debate realismo e anti-realismo
científicos, terminando por fazer um balanço das dificuldades de ambos,
confrontando-as, bem como apresentando algumas considerações sobre a busca de
uma solução que combinasse positivamente os pontos fortes e que eliminasse (ou
mitigasse ao máximo) as dificuldades de cada lado, no que se referia
especialmente aos problemas de domínio com os quais se defronta a ciência
contemporânea. O balanço final da dissertação, especialmente as dificuldades
enfrentadas por ambas as vertentes, forneceu os elementos motivacionais que nos
conduziram a apresentar esta tese. Entre tais elementos situa-se a possibilidade de
complementar o saber científico (empiriológico) com um saber metafísico
(ontológico). Esta proposição não apresenta consenso universal, obtendo de
grande parte dos cientistas uma indisfarçável suspeição. Isto porque o paradigma
científico fortemente pôs de lado, a partir da revolução científica que eclodiu nos
séculos XVI e XVII, todo e qualquer gênero de conhecimento que não
apresentasse corroboração oriunda de testes experimentais controlados. De fato,
isto foi excelente para o pleno e autônomo desenvolvimento das ciências
experimentais como a física, a química a biologia, etc.
O ponto suscitado por nossa proposta é que, quando muitos consideram
que o campo científico se demarca como sendo aquele domínio no qual as
hipóteses
válidas são exclusivamente aquelas que possuem conseqüências
*
Terminologia encontrada em MARITAIN, op. cit., que se refere ao processo de apreensão
cognitiva da realidade, o qual, segundo Aristóteles (Cf. ARISTÓTELES, Metaphysics, VI c1
1025b-1026a) subentende os três níveis (ou graus) das ciências especulativas, a saber, física,
matemática e metafísica.
2
Cf. PETRÔNIO, 2004.
Hipótese, neste trabalho, pode significar uma hipótese propriamente dita, uma teoria, um
conjunto de hipóteses, etc.
Introdução
12
observacionais, acaba-se por desconsiderar as demais hipóteses como bagagem
metafísica, ou outro título ainda mais depreciativo. Ou seja, a metafísica (ou
ontologia) pertenceria unicamente aos metafísicos, haja vista que seus enunciados
não são científicos, segundo algum critério demarcatório específico
3
e, por
conseqüência, não contam como válidos para o jogo do conhecimento,
excetuando-se, talvez, aquele que recai sob o gênero filosófico, salvaguardado que
este igualmente não se apresenta com aval científico, na medida em que suas
proposições situam-se para além daquele limite demarcatório entre ciência e não-
ciência, vale dizer, no campo da não-ciência.
Bem, este é um quadro geral, exceções à parte, mas que nos conduz a uma
espécie de barreira epistemológica, pois se desconsiderarmos a estrutura
ontológica do mundo como algo simulado por agentes de “segunda classe”,
através de entes multiplicados a gosto por algum tipo de abordagem metafísica --
ainda que alguns as julguem úteis, ou que tenham um papel a desempenhar no
corpo das teorias--, então o que restaria fazer senão aceitar que o único
conhecimento legítimo do mundo sensível é aquele fornecido pelas melhores
teorias científicas, construídas segundo o método científico vigente? Porém,
quanto às teorias modernas, como a teoria da relatividade e a mecânica quântica,
não seriam elas capazes de nos fornecer adicionalmente um conhecimento
genuinamente metafísico do universo? Poderíamos abandonar de vez os aspectos
metafísicos, e manter a visão da ciência, tradicionalmente interpretada como
excluindo tais aspectos?
*
3
Cf. POPPER, 1993, p. 34-46.
*
Gostaríamos de fazer a seguinte consideração: uma regra de linguagem vigente a respeito da
qual cria-se uma certa confusão de natureza epistêmica acerca do que se supõe ser uma ontologia
subjacente a algum corpo teórico. Toda teoria, ou todo sistema teórico, cuja pretensão é obter
algum tipo de conhecimento sobre o real, postula a existência, em seu corpo de hipóteses, de uma
ontologia, a saber, de entes teóricos que não se restringem a desempenhar pura e simplesmente um
papel funcional no corpo teórico, mas que reivindicam possuir uma existência autônoma,
ontológica, isto é, existir, de fato, na natureza, tal como os postulamos nas teorias. À luz deste
tipo de enfoque, tanto a mecânica quântica como a teoria da relatividade possuem, cremos, para
um largo grupo de filósofos, suas respectivas ontologias subjacentes. No entanto, em nosso
trabalho, ontologia retoma seu significado escolástico original que é o de buscar estudar nos entes
naturais seus modos de ser, ou seja, que princípios de inteligibilidade metafísica, a saber,
princípios que abstraímos no terceiro grau de abstração do real (veremos, no corpo da tese, o que
isto significa do ponto de vista epistemológico tradicional), compõem sua estrutura mais íntima, ou
ontológica. Isto se diferencia, portanto, de uma proposta de enfocar ontologia como sendo aquilo
que remete a entes cuja existência postulamos, a partir do corpo teórico ele mesmo, ou seja,
segundo uma via que Maritain denomina alcance empiriológico, via própria às ciências
experimentais, cujo grau de abstração corresponde não ao da metafísica, mas ao das scientiae
mediae, ou seja, situa-se entre o primeiro e o segundo graus de abstração. Ora, considerando-se
Introdução
13
Cabe neste ponto uma tomada de posição. Observemos, em primeiro lugar,
que o empreendimento científico é possível pela crença na existência objetiva
do mundo que nos cerca, e em nossa capacidade de conhecê-lo. Isso inclui
também a crença na existência de mecanismos causais no mundo, ainda que a
causalidade pareça restringir-se simplesmente ao nível fenomênico. Ao perscrutar
o mundo sensível, nos deparamos com a mudança, com a transformação, isto é, o
que existe muda pelo simples fato de existir, e nossos sentidos e nossos sistemas
de medição observam ou detectam as mudanças e as transformações. Assim, numa
primeira assimilação intelectual do real, buscamos obter-lhe as características
próprias que compõem não um indivíduo, um específico sujeito de ação, este ou
aquele fóton, este ou aquele elétron, mas certas propriedades, certas leis, que a
eles estão associadas quando abstraímo-nos dos indivíduos. Portanto, ao buscar
conhecer o mundo sensível, deparamo-nos com duas apreensões absolutamente
complementares: uma primeira, com foco no mensurável, nos aspectos
quantitativos dos entes; uma segunda, que perscruta aspectos causais internos
desses mesmos entes, buscando sua inteligibilidade própria, sua natureza ou
essência.
A física contemporânea -- e isso nos parece também perfeitamente
aplicável à física clássica -- é tipicamente uma aliança entre um empreendimento
eminentemente
experimental, físico, na medida em que toma como objeto
primeiro de seu campo de atuação os entes materiais, mensuráveis, entes físicos
que estão aí, na natureza, e um empreendimento teórico, de gênese matemática,
na medida em que busca nesses entes o que é mensurável, quantificável, sujeito a
este último enfoque, vemos que o termo “ontologia” deslocou-se do sentido usual escolástico que
o associa ao resultado proveniente do processo de abstração situado no terceiro grau para o de
existência segundo o enfoque epistêmico de um determinado quadro teórico, o que inclui, então,
os entes teóricos da física como, por exemplo, campos e partículas. À luz do enfoque tradicional,
campos e partículas não se constituem em aspectos ontológicos do real, mas trata-se tão somente
de mecanismos perfeitamente lícitos e necessários de reconstrução simbólica do real, segundo seus
aspectos mensuráveis, que se situam num grau intermediário entre o primeiro e o segundo graus de
abstração, a saber, o da física-matemática.
Dizemos eminentemente e não exclusivamente, ou meramente experimental, visto que todo
empreendimento experimental supõe um quadro teórico, à luz do qual se estabelecem que
propriedades, e em que objetos, serão observadas. Aliás, a definição mesma e a arquitetura dos
dispositivos de medição estão sujeitas a tal escrutínio teórico. O que caracterizamos com o termo
experimental é o fato de que, ainda que os recursos teóricos tenham sido consensualmente
validados como coerentes e consistentes pela comunidade científica, a ciência é um
empreendimento eminentemente experimental nisto, a saber, que devem existir conseqüências
observacionais a partir do quadro teórico proposto e que os resultados devem corroborar (no
sentido popperiano) as hipóteses.
Introdução
14
relações estáveis, a leis, tudo isto reconstruído por meio de estruturas
matemáticas. Logo, podemos afirmar que teorias como a relatividade e a
mecânica quântica são materialmente físicas e formalmente matemáticas. Com
este recurso, que caracteriza em linhas gerais o tipo epistemológico destas duas
grandes teorias, a ciência volta-se para os entes da natureza em seus aspectos
quantificáveis, buscando leis que devem viger à medida que representam
condições de estabilidade desses entes, em meio ao fluxo de mudanças e de
transformações que caracterizam o real. É razoável afirmar, portanto, que uma
teoria física será verdadeira quando for possível estabelecer um sistema coerente
e maximal de estruturas matemáticas, incluindo os entes teóricos que postula,
coincidente, em todos os seus resultados numéricos, com as medições conduzidas
sobre o real, real este que se manifesta sob a forma de fenômenos. No entanto, não
é absolutamente necessário que qualquer realidade física, qualquer natureza
específica, ou qualquer lei ontológica do mundo corpóreo corresponda, numa
relação um para um (1-1), a qualquer estrutura matemática formulada, ou
quaisquer entes teóricos postulados. Não um isomorfismo ou espelhamento
entre as formas representacionais do elétron na mecânica quântica e uma
“natureza”, ou ente, a que tentamos chegar através do conceito “elétron”. O
problema de tais construções imaginativas -- construções da razão, com efeito,
mas referenciadas a um dado X (ontológico para o qual aplicamos o conceito de
elétron) do universo físico -- consiste na presença de formulações acríticas que as
tomam pela realidade em si mesma. Ou seja, corre-se o risco de achar que tais
construções teóricas, e as explicações nelas baseadas, possuem um valor e alcance
diretamente ontológico, o que não é verdade. Este é o risco, não do cientista ele
mesmo, mas enquanto atua filosoficamente, buscando reconstruir racionalmente
as teorias, bem como o do filósofo da ciência, ao reduzir as naturezas a seus
aspectos puramente quantitativos, ao submeter o real a um escrutínio que lhes
atinge primariamente aquilo cujo alcance é dado pela conjunção da física e da
matemática, e que reúne as condições de possibilidade de conhecimento dos entes
em seus aspectos mensuráveis e observáveis. Isto pode levar a que um conjunto de
reflexões acerca do alcance de nossas teorias mova-se de um eixo epistemológico
para um eixo ontológico, conduzindo a uma interpretação realista da ciência,
conforme sustentado pelo realismo científico contemporâneo. Não porque não se
deva buscar uma interpretação realista do real. Em absoluto. Apenas se deve ter o
Introdução
15
devido cuidado de não tomar a quantidade pela natureza ou essência dos entes e
afirmar que o que unicamente se pode se conhecer sobre o real é aquilo que é
oferecido por nossas melhores teorias científicas.
Por conseguinte, trabalharemos mediante as seguintes hipóteses:
1) Sustentamos a separação entre ciência e metafísica como graus distintos
de conhecimento da realidade. E isto é fundamental, haja vista que no primeiro
grau, o da Física
4
, processa-se o conhecimento das ciências da natureza,
especialmente a física teórica, ou física-matemática -- que será o tipo de
conhecimento a ser tratado mais amiúde na dissertação --, e no terceiro grau, o da
Metafísica
5
, processa-se o conhecimento dos entes em si mesmos considerados,
destituídos de seus atributos sensíveis e mensuráveis. No caso, temos na física
teórica um tipo de conhecimento que os escolásticos denominam ciência média,
por ter seu objeto material o real sensível, e por ter seu objeto formal a
matemática. Assim, a filosofia da natureza supõe esta distinção, dado que seu
objeto de conhecimento ainda é o real sensível, considerado em seus aspectos
ontológicos, cabendo à sica-matemática suprir a condição epistêmica necessária
para o conhecimento empírico do mundo sensível.
2) Sustentamos a formulação de uma ontologia da matéria, segundo
Aristóteles e Tomás de Aquino, com enfoque e terminologia ajustados em função
tanto de investigações teóricas como de evidências experimentais trazidas pela
física moderna, como a natureza do espaço-tempo e a não-localidade em mecânica
quântica. Definida essa ontologia, a mesma subsidiará nossa proposta de
representação algébrica dos aspectos ontológicos do real sensível.
A ontologia da matéria, cuja aplicação metafísica ao real sensível
consistirá, neste trabalho, em sustentar um tratamento epistêmico da teoria
hilemórfica -- trata-se de uma apropriação matemática dos aspectos metafísicos da
realidade natural, que é fundamentalmente composição de forma e matéria, como
teremos ocasião de expor no corpo deste trabalho --, o que nos possibilita propor
um tipo de conhecimento do real físico, intermediário entre o terceiro grau de
abstração, a Metafísica, e o segundo grau de abstração, a Matemática. Esta
hipótese de trabalho é fundamental, pois ela como que fixa o desenvolvimento
4
Correspondente ao primeiro grau da abstractio formalis dos escolásticos. Cf. MARITAIN, 1995,
p. 37-50.
5
Id.
Introdução
16
deste novo saber intermediário, definindo sua fronteira e sua interação com a
ciência experimental. Trata-se de um tipo de conhecimento ao qual os escolásticos
possivelmente denominariam igualmente de ciência média, por ter por objeto
material o real ontológico, e por objeto formal a matemática.
3) Sustentamos que este novo tipo de investigação, complementar à
ciência experimental, possui conseqüências epistêmicas interessantes,
especialmente com respeito à natureza do espaço-tempo e do movimento; na
compreensão do fenômeno da não-localidade em mecânica quântica; e, por fim,
pela convergência da abordagem proposta com o conceito de holomovimento,
formulado por David Bohm. Assim, a tese está dividida em quatro capítulos.
No primeiro capítulo, intitulado “Ciência e filosofia da natureza”,
exporemos a proposta de Maritain sobre o estatuto epistemológico das ciências
experimentais, e caracterizaremos detalhadamente o tipo epistemológico das
mesmas, especialmente da física-matemática, baseados numa exposição da teoria
tomista dos graus de visualização abstrativa. Procuraremos mostrar que o que
Maritain denomina alcance empiriológico das ciências experimentais constitui-se
na condição (epistemológica) necessária para prover mecanismos explicativos
(causais) do mundo sensível, os quais visam essencialmente aos aspectos
quantitativos da realidade natural, porém nos fornecem um conhecimento indireto
de sua estrutura ontológica. Todavia, o alcance científico não é suficiente, pois
não conta das exigências de inteligibilidade do real sensível, as quais somente
podem ser atendidas por uma abordagem metafísica, que é a condição ontológica
complementar à compreensão integral da realidade natural. Esta condição
complementar pode ser atendida -- não no todo, mas em parte
-- por uma análise
algébrica do estatuto ontológico da matéria, visto que a materialidade é a condição
própria dos entes naturais.
No segundo capítulo, intitulado “Matéria”, exporemos dois aspectos
complementares acerca do conhecimento da matéria, em duas seções: na primeira,
trataremos de sua epistemologia, apresentando, ainda que não de forma extensiva,
um quadro geral da abordagem científica à matéria, e apontando limitações dessa
perspectiva; na segunda seção, apresentaremos a posição que entendemos ser a
Para uma abordagem integral, seria necessário investigar demais aspectos associados os modos
de ser dos entes naturais como, por exemplo, substancialidade, causalidade, finalidade, etc.
Introdução
17
mais adequada com a proposta de Tomás de Aquino, acerca do estatuto ontológico
da matéria, caracterizando sua natureza dinâmica, e propondo uma atualização de
enfoque que o torne consistente com a abordagem e terminologia contemporâneas,
bem como compatível com os resultados provenientes do importe epistemológico
trazido especialmente pela mecânica quântica.
Gostaríamos de enfatizar, no entanto, que não se trata de uma
revisão da doutrina de Tomás, mas tão-somente de uma atualização que propicie a
consistência e a compatibilidade mencionadas. Fundamentalmente, a matéria se
enfocada como ser em potência, mas não absolutamente, posto que a matéria
possui natureza, porquanto tem ser, e mediante as operações próprias a essa
natureza se extraem as formas que informam os entes naturais. Assim, procura-se
mostrar, através de vários textos do Aquinate, que este sustentava que a matéria
possui uma essência, pela qual recebe o ser, e, portanto, tem natureza operativa,
tendo sido informada por diversas formas elementares que a dispuseram para as
formas naturais. Por isso mesmo, pelo fato de a matéria ter ser, pois é ente, deve
ser possível apresentar um modelo matemático que descreva as estruturas e
operações daquelas formas elementares, tendo em vista suas capacidades de gerar
as formas naturais elementares da corporeidade, que são formas materiais, e, por
conseguinte, passíveis de representação quantitativa através de algum tipo de
formulação álgebra.
No terceiro capítulo, intitulado “Representação algébrica da metafísica
natural”, será apresentada, num primeiro momento, a teoria hilemórfica, proposta
por Aristóteles e Tomás de Aquino, fundamento ontológico da composição dos
entes naturais, ou seja, da composição de todos os estados da matéria, incluindo
partículas e campos, detectáveis direta ou indiretamente no espaço-tempo.
Propomos, em seguida, um modelo matemático, baseado numa álgebra finita de
Clifford, chamada álgebra de Weyl, que funciona como um cálculo ontológico, a
saber, provê uma representação algébrica para a teoria hilemórfica, especialmente
no que se refere aos aspectos ontológicos da matéria, exposto no capítulo anterior.
As formas elementares e suas operações são, portanto, representáveis como
elementos da álgebra de Weyl. A álgebra proposta é gerada por dois elementos
primitivos,
1
0
q
e
0
1
q
, que representam atividade e passividade no interior da
matéria, pelas quais se dá a mescla das formas elementares e a conseqüente
Introdução
18
preparação das mesmas para as formas naturais, que possuem existência espaço-
temporal. Ademais, faremos uma breve exposição sobre o estatuto ontológico da
forma, que, entendemos, poderá ser objeto de uma investigação futura. Este é um
capítulo-chave, pois apresenta uma proposta concreta em filosofia da natureza,
que é o intercurso entre filosofia e ciência, mediante uma linguagem comum, a
matemática, além de propiciar uma linha consistente de ataque a problemas de
fronteira suscitados pela física moderna.
Por fim, no quarto, e último capítulo, intitulado “Conseqüências
empiriológicas do modelo proposto”, serão apresentadas três conseqüências
empiriológicas da proposta contida nos capítulos segundo e terceiro, a saber,
sobre a natureza do espaço-tempo e do movimento; sobre a não-localidade na
mecânica quântica, que reputamos ser emblemática para a proposta deste trabalho;
e, por fim, correlacionaremos nossa proposta com a do físico David Bohm, que
propôs uma abordagem não-local às interações microfísicas, na qual estas seriam
mediadas por forças físicas não-clássicas que atuariam através de um tipo de
interligação difusa entre os entes naturais. Veremos como o modelo proposto no
capítulo terceiro pode se conectar ao potencial quântico de Bohm, que dependeria
da presença das formas elementares
00
α
e
00
β
no interior da matéria-primeira.
Ademais, os conceitos de ordem implicada e de holomovimento propostos por
Bohm, como veremos, podem ser associados à teoria hilemórfica e à dinâmica
presente no interior da matéria primeira, representada no modelo.
1
Ciência e filosofia da natureza
1.1
Considerações iniciais
Antes de apresentarmos a posição epistemológica que nos propõe
Maritain
, é necessário dizer que o filósofo francês situa-se na linha da grande
tradição escolástica, cuja defesa de um realismo metafísico é bastante conhecida e
sobre o qual não pretendemos tratar neste trabalho. O fato é que, segundo
Maritain, a ciência não esgota o que de inteligível nas essências ou naturezas
das coisas. Por conseguinte, -- e nisto ele se posiciona como seguidor de um
tomismo de estrita observância, isto é, fiel à epistemologia científica do próprio
Tomás de Aquino e à de um de seus maiores comentadores, João de Poinsot ou
João de São Tomás (séc. XVI) --, nos propõe dois níveis de análise da realidade
natural: um, que ele denomina de análise descendente ou empiriológica
; o outro,
de análise ascendente ou ontológica.
6
Para Maritain, há que se abordar a realidade
segundo determinados níveis, ou graus, de conhecimento, ou seja, a mesma deve
ser compreendida segundo estes graus, ou níveis. Assim, esta divisão do
conhecimento em graus contém três teses principais. A primeira tese é a da
distinção específica entre a filosofia e as ciências (da natureza). São ambos
conhecimentos que têm objetos formais diversos, princípios de explicação e
recursos conceituais diversos. Portanto, são conhecimentos que não podem se
substituir nem entrar em competição. Ademais, Maritain considera que, tendo em
vista a totalidade da realidade que se busca conhecer, a filosofia e as ciências são
complementares. A segunda tese é a da distinção entre a "filosofia da natureza" e
a metafísica. A primeira busca conhecer os aspectos inteligíveis do real sensível,
Jacques Maritain nasceu em Paris em novembro de 1882, e faleceu em Toulouse em abril de
1973.
Empiriológico é um termo cunhado por Maritain e significa a aplicação do ferramental analítico
da ciência aos fatos empíricos.
6
Cf. MARITAIN, 1943, p. 139-187.
Ciência e filosofia
20
isto é, dos entes que se podem medir, presentes nos fenômenos
naturais, ao passo
que a segunda trata dos aspectos mais gerais dos entes, "desencarnados"
(abstraídos) de seus aspectos observáveis e mensuráveis, propondo um
conhecimento puramente ontológico. Esta distinção é de importância capital, dado
que a metafísica que sustenta é a mesma da escolástica, tratando-se de uma
metafísica a posteriori: os aspectos mais gerais dos entes são extraídos (a partir
de, e com base no) do conhecimento do real sensível. A terceira tese é a da
consideração da física-matemática (principal ferramenta dos físicos, mas que se
estende também, cada vez mais, como auxiliar relevante em outros campos do
conhecimento científico) como ciência formalmente matemática e materialmente
física (é o conceito escolástico de "ciência média")
*
. É formalmente matemática,
pois utiliza entes e conceitos matemáticos para conhecer seu objeto, que é
materialmente físico, presente nos fenômenos, em suas relações e propriedades
sensíveis, quantificáveis. Com base nas teses listadas, Maritain separa
radicalmente o conhecimento que chama de empiriológico, objetivo das ciências
da natureza, incluindo a física-matemática, do conhecimento ontológico, objetivo
tanto da filosofia da natureza, na medida em que é ainda conhecimento ligado aos
aspectos sensíveis das coisas, como da metafísica, na medida em que é
conhecimento desligado dos aspectos sensíveis das coisas. Curioso observar que
para um empirista moderno como van Fraassen
7
tal separação é fundamental,
mesmo porque ele advoga uma espécie de agnosticismo com respeito a se atingir
algum tipo de conhecimento ontológico por meio da ciência. Ora, para Maritain,
estes conhecimentos estão separados de fato, e a ciência, por isso mesmo, não
pode ter pretensões ontológicas; no entanto, diferentemente dos anti-realistas,
entende que tal conhecimento, o de natureza ontológica, não somente é possível
como também possui, em grande parte, sua fonte numa "filosofia da natureza".
Metafísica e ciência. Visto que tomamos por hipótese a distinção entre
enunciados científicos e enunciados metafísicos, gostaríamos, antes de expor a
proposta de Maritain, de tecer algumas observações breves sobre demarcação
entre ciência e metafísica, suscitada especialmente pelas posições epistemológicas
Importante frisar que fenômeno aqui é uma realidade objetiva, em nada se confundindo com a
abordagem da fenomenologia.
*
Ou ciência intermediária.
7
Cf. VAN FRAASSEN, 1980.
Ciência e filosofia
21
trazidas pelo Círculo de Viena, bem como sobre o alcance da ciência, que se
estabeleceu principalmente ao longo do século XX. Tomaremos aqui, por
simplicidade, a sugestão de Popper como proposta de demarcação, pois esta nos
parece suficiente para o propósito desta dissertação.
Popper propõe, em linhas gerais
8
, que um sistema deve ser reconhecido
como empírico ou científico se ele for passível de comprovação experimental, a
qual requer não apenas condições controladas de laboratório, mas também
mecanismos que permitem fazer com que a experiência seja repetível, isto é, que
não se trate de um evento de natureza única; em segundo lugar, que tal sistema de
enunciados seja falseável, ou seja, a forma lógica dos enunciados torna possível
comprová-los em sentido negativo, isto é, torna possível refutá-los por meio de
experimentos que devem ser tanto repetíveis como laboratorialmente controlados.
Por outro lado, diferentemente de uma posição puramente empirista ou
positivista, cumpre ressalvar, segundo Popper, que os enunciados metafísicos não
devem ser descartados como destituídos de significado, como propunha o Círculo
de Viena, mas devem ser incorporados ao corpo teórico por meio de regras ou
decisões metodológicas que correspondem proximamente àqueles tipos de
enunciados. Neste caso, tais enunciados (como, por exemplo, “tudo o que ocorre
tem uma causa”) dão ensejo a princípios “metafísicos” que não devem ser
excluídos do quadro total do conhecimento humano, pois nos fornecem
justamente aquelas regras ou decisões que orientam o cientista em seu trabalho
investigativo
9
. Existem igualmente outras propostas de demarcação entre ciência
e metafísica, ou entre ciência e não-ciência, que foram apresentadas, por exemplo,
por Duhem
10
e Quine
11
, as quais não serão discutidas aqui.
Quanto ao exame do alcance das teorias científicas, uma vez que tenhamos
algum critério suficiente para discernir sistemas científicos de propostas
metafísicas, e-se o problema dos entes não-observáveis associados às teorias
científicas, ou entes teóricos. Visto ter sido usual, especialmente no século XX,
uma abordagem ao mesmo tempo empirista e dentro dos cânones do positivismo
lógico à questão da existência desses entes teóricos, não surpreende que sejam
8
Cf. POPPER, 1993.
9
Cf. POPPER, 1993, p. 40-44, 61-64.
10
Cf. DUHEM, 1984, 1996.
11
Cf. QUINE, 1980, p. 1-46.
Ciência e filosofia
22
externadas freqüentemente dúvidas sobre o status ontológico de tais entidades.
Dessa forma, podemos identificar basicamente duas linhas de abordagem: a
primeira, intitulada realismo científico, afirma a existência real desses entes e a
verdade, ainda que aproximada, das teorias que os pressupõem ou engendram. As
teorias, por sua vez, ao inseri-los numa descrição do mundo que elaboram
buscam, mesmo de forma aproximada, não apenas uma representação útil ou
adequada, de como o mundo é, mas, além disso, procuram explicá-lo, explicitando
a natureza de seus componentes mais fundamentais, que são considerados como
entes de fato existentes no mundo, alcançados por meio dos conceitos gerados ou
postulados por essas teorias. Uma outra linha de abordagem, intitulada anti-
realismo, nega quer o status ontológico de tais entes teóricos quer a necessidade
em supor sua existência, assim como a verdade das teorias que os engendram ou
postulam. Com efeito, uma dessas posições com respeito à reflexão científica
as teorias e seus artefatos como sendo recursos de um determinado sistema
lingüístico. Neste caso, perguntas filosóficas sobre a verdade ou falsidade das
teorias, tanto como a existência ou a realidade de seus artefatos, não possuem
significado senão na própria linguagem
12
. Outras abordagens epistemológicas
anti-realistas defendem que o objetivo das teorias, e, por conseguinte, dos entes
teóricos que postulam, é unicamente salvar os fenômenos
13
, ou seja, obter
adequação empírica
*
. É surpreendente, também, haver pouco consenso entre
ambas posições. Outro tipo de tratativa que contribuirá para as diversas formas
modernas do anti-realismo tem início numa abordagem ao conhecimento
científico que foi delineada por empiristas como Locke ou Hume, para os quais as
idéias ou conceitos provêem basicamente das sensações e a elas estão
estreitamente vinculados, quer em átomos que formam complexos, como em
Locke
14
, quer em impressões puras provenientes das sensações, como em Hume.
15
Outras formas de anti-realismo, em oposição a essa última, têm sua origem no
12
Cf. CARNAP, 1956.
13
Cf. DUHEM, 1996, p.131-156.
*
A finalidade da adequação empírica é identificar modelos lógicos no interior das teorias, de tal
forma que todas as subestruturas empíricas (estruturas candidatas a representar os fenômenos)
contidas em cada modelo sejam isomorfas às respectivas estruturas de dados coletados, às quais
ele denomina aparências. Sobre isomorfismo consultar Seção 3.2.1.
14
Cf. AARON, 1937.
15
Cf. HUME, 2000, p.35-39.
Ciência e filosofia
23
racionalismo kantiano
16
, na qual este autor propõe um edifício filosófico
complexo e no qual a universalidade e a necessidade encontradas no
conhecimento estão na constituição mesma de nossos processos de conhecimento.
Kant propõe uma distinção entre fenômenos e nóumenos; os primeiros, sendo as
aparências das coisas, podem ser utilizados para a obtenção de conhecimento
válido, ao passo que os segundos, ou coisas-em-si, são inacessíveis à razão
humana. Clássica também é sua distinção entre juízos analíticos e juízos
sintéticos; os primeiros não permitem obter conhecimento pois se trata da
explicitação, pura e simples, de conceitos pré-existentes no sujeito numa relação
de predicação; os segundos se apresentam sob duas formas: os sintéticos a priori,
construídos a partir das formas a priori da intuição pura e da sensibilidade
*
, e cuja
validade é universal, servindo para ampliar nosso conhecimento sobre o mundo
,
e os juízos sintéticos a posteriori, que são obtidos da ordem empírica, constituem-
se igualmente em fonte de expansão do conhecimento. Assim, nosso atingimento
de uma estrutura ontológica do mundo pela ciência, isto é, se há essências ou
naturezas -- que são, em última análise, a meta de nossas teorias científicas,
segundo a posição realista --, estas ficam de vez descartadas de nosso
entendimento. Segue-se daí que o sistema de Kant nos leva a não ultrapassar o
sensível, ou a ordem fenomênica -- objeto de nossas teorias científicas -- e,
concomitantemente, enseja os argumentos básicos das escolas anti-realistas
modernas.
Ambas as correntes acima, o empirismo inglês e o racionalismo kantiano
moldaram, sob vários aspectos, o pensamento filosófico contemporâneo. Uma
primeira posição relevante do anti-realismo moderno, é expressa por um dos
expoentes do positivismo lógico do século XX, Rudolf Carnap, oriundo do
Círculo de Viena, constituído de pensadores de renome como o próprio Carnap,
Moritz Schlick e outros, cuja fundação remonta à década de 1930, inspirado no
16
Cf. KANT, 2001.
*
Não é nosso propósito desenvolver, neste trabalho, considerações acerca do sistema de Kant,
senão apresentar os conceitos que nos serão úteis no entendimento do quadro geral da filosofia da
ciência moderna e contemporânea.
Kant trabalhou com o quadro que se lhe oferecia como perfeito: a junção dos conceitos da
geometria euclidiana e da mecânica newtoniana, necessários a construir toda a ciência futura.
Tinha convicção, ademais, que seria possível uma metafísica, partindo-se de juízos sintéticos a
priori; aliás, a única possível, no entender de Kant.
Ciência e filosofia
24
ideal Wittgensteiniano
17
da forma lógica como espelho dos fatos do mundo.
Carnap
18
, por exemplo, argumenta que a aceitação e uso de uma linguagem que
contenha termos teóricos não implicam aceitar uma ontologia do tipo platônico
*
,
sendo perfeitamente compatível com o empirismo e o pensamento científico
estrito; nesse contexto, o papel dos termos teóricos na semântica é objeto de
debate. No artigo, Carnap relaciona exemplos de termos teóricos: propriedades,
classes, relações, números, proposições, etc. Reconhece, no entanto, que "Na
física é mais difícil evitar os entes suspeitos [de serem termos teóricos], posto que
a linguagem da física serve para a comunicação de reportes [observacionais] e
predições, e por isso o pode ser tomada como um mero cálculo".
19
dois
conceitos essenciais para Carnap, no que se refere à sua posição dentro do
positivismo lógico: o de sistemas lingüísticos e o de entes teóricos, visto que
estes últimos são definidos e tratados dentro dos primeiros. No que se refere a
sistemas lingüísticos, uma pergunta fundamental que deve orientar a pesquisa
dos entes teóricos seguintes: Existem propriedades, classes, números,
proposições? Para responder a isso devemos considerar que devem ser
introduzidos regras e meios de expressão em nossa linguagem tais que permitam
apresentar estes novos entes -- classes, números, proposições --, e serem capazes,
por sua vez, de expressá-los segundo essas novas regras. Em resumo: introduz-se,
na linguagem em disputa, seja uma linguagem científica ou uma linguagem
corrente (ordinária), um sistema, ou estrutura, lingüística com regras convenientes
para introduzir novos entes. Deve-se, portanto, distinguir dois tipos de questões
sobre existência: o primeiro, refere-se à existência de entes que são referidos na
própria estrutura da linguagem, ou questões internas; o segundo, refere-se à
existência mesma do novo sistema lingüístico que introduz esses entes, ou
questões externas. A realidade dos entes que fazem parte de um sistema de
interpretação do mundo é, com efeito, uma questão interna, ou seja, sua resolução
passa pela introdução de formas de expressão, as quais aportam na linguagem em
17
Cf. WITTGENSTEIN, 1994.
18
Cf. CARNAP, op. cit., p. 205.
*
O que não é problemático, por exemplo, para um realismo ontológico do tipo aristotélico-
tomista, isto é, neste último a estrutura ontológica do mundo é imanente ao mundo; dito de outro
modo, não arquétipos separados das coisas, porquanto nelas mesmas reside e a elas está unida
sua razão de ser.
19
CARNAP, op. cit., p. 205.
Ciência e filosofia
25
disputa os novos entes que nos clarificam os novos conceitos introduzidos, seja
através de métodos puramente lógicos seja por meio de métodos empíricos
*
, por
exemplo, o que irá depender da estrutura lingüística em disputa ter como
mecanismo próprio de análise o formalismo lógico, por um lado, ou dados
observacionais, por outro.
No que se refere à questão dos entes teóricos existirem ou não, o que se
faz é resolvê-la por meio da linguagem, introduzindo-se nesta, primeiramente, um
termo geral
, e este permitirá a afirmação de que um particular ente pertence a um
dado tipo como, por exemplo, "Vermelho é uma propriedade", ou "Cinco é um
número". Em segundo lugar, introduzem-se as variáveis referentes ao novo tipo
de ente. Ora, os novos entes introduzidos são, então, valores atribuídos a estas
variáveis. As constantes da linguagem são substituendos das variáveis e, deste
modo, podem ser construídas sentenças de caráter genérico sobre os novos entes
introduzidos. Tão logo tenhamos aportado as novas formas e construções à
linguagem em disputa (seja ela a linguagem ordinária ou corrente, seja ela uma
linguagem científica), as questões internas (ou questões teóricas, pois se referem
aos entes teóricos recém-introduzidos) são possivelmente respondidas,
lembrando-se, sempre, que podem ser questões lógicas ou questões empíricas,
sendo verdadeiras conforme sejam analíticas ou sintéticas (factuais),
respectivamente. Claro está, portanto, que, a aceitação de um dado sistema
lingüístico não acarreta qualquer abordagem metafísica referente à realidade dos
entes postulados.
Uma abordagem mais abrangente sobre o debate entre realismo
e anti-realismo em ciência encontra-se em nossa dissertação de mestrado.
20
*
Convém, aqui, nos remetermos à distinção kantiana entre proposições analíticas e proposições
sintéticas; tal distinção é ponto de partida para o positivismo de Carnap, assim como outras tantas
linhas de abordagem anti-realista com respeito às proposições científicas.
Trata-se, na terminologia escolástica, de um predicado com extensão, ou de um gênero.
Também fica patente que a posição do anti-realismo positivista de Carnap não só exclui questões
metafísicas como sendo pseudo-questões, como também referenda uma atitude anti-metafísica e
pró-científica (vê-se aqui, com clareza, a distinção kantiana de proposições metafísicas como não
sendo proposições científicas e, portanto, não concernentes ao que a ciência, entendida no sentido
moderno exclusivista, pode alcançar e, por conseguinte, afirmar) que está presente no realismo
científico moderno. Certamente, Carnap tinha em mente as posições do realismo moderno da
ciência, para o qual questões metafísicas são respondidas pela ciência, pois que esta como que
desvela os entes teóricos que não estão somente presentes no interior da linguagem mas também
externamente a ela. Esta posição Carnap atribui ao nominalismo, ao materialismo e ao realismo
científico moderno, mas não à sua proposta.
20
Cf. PETRÔNIO, 2004.
Ciência e filosofia
26
Neste trabalho, como mencionamos, defenderemos a posição realista de
Maritain, que, a despeito de filiar-se à tradição escolástica, a qual sustenta um
realismo metafísico, este autor defende uma espécie de anti-realismo científico,
tendo escolhido como autores fundamentais para elaborar sua visão particular
sobre uma epistemologia tomista contemporânea o próprio Tomás de Aquino e
um de seus mais respeitados comentadores, João de São Tomás (1589-1644).
Conquanto Maritain seja um autor que reconheça estarem as teorias
fundamentadas em entes e processos reais, propõe que seu alcance está limitado
aos fenômenos, não sendo possível às ciências da natureza desvelar tais entes e
processos ontologicamente, ainda que, de forma indireta, nos apontem
propriedades essenciais dos entes, as quais se situam no domínio da quantidade,
sendo, portanto, objeto de observação ou mensuração. Sua posição, ao seguir a
tradição escolástica, como mencionamos, apresenta pontos de intersecção com a
formulação de Duhem no que se refere a uma separação -- mas não uma mútua
exclusão, como teremos oportunidade de expor -- dos alcances de conhecimento
entre a ciência dos fenômenos e a metafísica. Maritain, ademais, postula uma
camada ontológica intermediária entre aspectos ontológicos puros, cuja análise
pertence à metafísica, e aspectos ontológicos ainda ligados à matéria, cuja análise
remete à tentativa de reconstrução de uma filosofia da natureza. Esperamos
clarificar isso ao longo da exposição.
Metafísica e método. Pensamos também ser útil apresentar algumas
considerações gerais sobre a metafísica e seu método, dado que a filosofia da
natureza, ainda que se estatuindo como um domínio legítimo e complementar ao
das ciências da natureza, dela depende quanto aos princípios diretores, como
teremos oportunidade de expor.
duas razões fundamentais para a investigação metafísica, segundo uma
perspectiva tomista: Em primeiro lugar, um dinamismo radical do espírito
humano na direção de conhecimento do ente (e do ser), no sentido de mover-se na
direção de conhecer tudo o que há para ser conhecido
21
, isto é, a totalidade do ente
(e do ser), tratando-se de uma capacitação inerente à natureza humana. De tal
dinamismo radical emerge a investigação metafísica, a saber, a pesquisa da
inteligibilidade última de todas as coisas. Em segundo lugar, uma inteligibilidade
21
Cf. CLARKE, 2001, p. 15.
Ciência e filosofia
27
própria do ente (e do ser), uma abertura ou aptidão a ser conhecido, e que lhe
permite ser conhecido pelo espírito humano. Como Tomás de Aquino sustenta que
as operações naturais o se frustram quanto àquilo que lhes é próprio
22
, então é
possível tal conhecimento. Ademais, a metafísica tem como pressuposto que o
escopo do conhecimento humano não se restringe à observação empírica, direta
ou indireta, mas a ultrapassa, sendo capaz -- porque o ente (o ser) é inteligível --
de explicar o que observamos em termos do que não é imediatamente observável
ou outros fatores condicionantes. Assim, uma primeira conclusão é a de que o
espírito e o ente são correlativos, proporcionados um ao outro, abertos por
natureza um ao outro. Por conseguinte deve ser possível estabelecer, a despeito
das dificuldades inerentes, duas formas, metodologicamente falando, de
investigação: uma descritiva, pela qual os atributos básicos comuns a todos os
entes, seus tipos gerais ou categorias são descritos; e uma explicativa, pela qual se
buscam as relações últimas, os princípios e causas constitutivas dos entes, do que
podemos observar em nossa experiência até ao que se situa além de nossa
experiência direta, mas que são necessários postular de modo a dar conta da
inteligibilidade dos entes
23
. Claro, esta última forma, a explicativa, situando-se
para além do teste ou confirmação empírica, não é objeto da ciência experimental,
estando, por isso, sujeita a forte oposição dentro do pensamento contemporâneo.
Tanto a forma descritiva como a explicativa supõe a presença de uma via
de descoberta própria à metafísica tomista, que se constitui na
Cogitação metafísica de Tomás de Aquino, a qual orienta-se em torno de duas
vias complementares, a saber: a via de resolução (via resolutionis) e a via de
composição (via compositionis). A emergência dessas vias no modus cogitandi
latino permite lançar luz sobre a especificidade da análise (resolutio) e da síntese
(compositio) no pensamento medieval. A reconstituição do significado filosófico
dos termos resolutio e compositio ,correspondentes latinos dos vocábulos gregos
ανάλυσις” e σύνθεσις”é um dos meios privilegiados para a revisão do valor, da
extensão e da finalidade das vias propostas pelos medievais, em particular pelo
Aquinate, para o conhecimento do ser.
24
22
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q75 a4 sol.
23
Cf. CLARKE, op. cit., p. 18-19.
24
SALLES, 2007, p. 87. “Os termos análise e síntese o transcrições dos vocábulos gregos
supracitados foram transcritos pelos latinos como resolutio e compositio , respectivamente. Em
grego, “aná significa em cima, para cima, através de; enquanto “lísis” significa a ação de desatar,
separar, libertar, pôr fim ou solucionar; daí que um dos significados fundamentais de é dissolução,
resolução, a partir da qual surge resolutio, que mesmo não possuindo analogia verbal, mantém
exatamente o sentido do vocábulo grego correspondente” (Id.). Ver nota de rodapé a respeito de
“resolutio” logo ao início da próxima seção (Seção 1.2).
Ciência e filosofia
28
A resolução, especialmente no sentido da via abstrativa e da unificação dos
princípios de inteligibilidade dos entes, compreende o que Maritain denomina de
análise ontológica ou ascendente, própria à filosofia da natureza, dado que este
último conhecimento da realidade natural requer certos princípios metafísicos ou
princípios de inteligibilidade dos entes para desenvolver sua investigação própria,
como teremos oportunidade de tratar ao longo deste capítulo, e por isso se trata de
uma análise formaliter metafísica, no sentido de que se utiliza dos princípios
diretores (formais) da metafísica para a compreensão de um determinado
conteúdo (materialiter), no caso, a realidade natural.
Por outro lado, dois princípios diretores da investigação metafísica, um
de natureza estática e outro, dinâmica, quanto à inteligibilidade do ser. O
princípio “estático” é o conhecido princípio da identidade, que fixa a auto-
estabilidade do ente, ao afirmar que o ser é e o não-ser não é. Podemos também
tomá-lo segundo um outro aspecto, o da não-contradição, que classicamente
estabelece que nenhum ente real pode, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto,
ser e não ser. Por sua vez, o princípio “dinâmico” assegura que, ao passarmos do
inteligível ao inteligível, de um ente a outro ente, buscando um nexo causal de
inteligibilidade, esta última fica assegurada visto que todo ente que existe ou que
começa a existir (seja participado, finito, ou mutável, etc.) possui ou não possui
em si a razão de sua existência, isto é, requer ou não requer uma causa de si na
ordem do ser ou ordem entitativa.
25
Por fim, vale ressaltar que o método delineado acima é eminentemente
analógico. Uma vez atingidos os conceitos, devem-se analisar os nomes, as
palavras que os significam, a partir dos princípios primeiros da razão
,
comparando-os e afirmando o que de verdadeiro, negando o que de falso, e
corrigindo o que seja passível de correção, na medida em que verifica se esses
nomes podem ser predicados adequadamente de muitas realidades, atribuindo-lhes
certas propriedades. Ora, se um mesmo nome se predica de (ou se atribui a)
muitas realidades, então isso significa que alguma semelhança entre elas, às
quais convém aplicar o mesmo nome, segundo certa similitude presente em suas
naturezas. Por exemplo, se o nome “saudável” pode ser predicado da
25
Cf. CLARKE, op. cit., p. 19-23.
“O todo é maior que cada uma de suas partes”, “Cada coisa é idêntica a si mesma”, etc.
Ciência e filosofia
29
alimentação, da água, do clima e do corpo, então é porque alguma semelhança
e conveniência entre as realidades às quais predicamos o nome “saudável”. Ou
seja, todas as realidades em análise participam em comum de uma mesma dada
perfeição, o que justifica serem designadas do mesmo modo. Claro, pressupõe
então a analogia uma certa intuição das realidades (entes) que nos são
apresentadas, nas quais a inteligência “vê infalivelmente certos caracteres que,
de fato, pertencem à natureza (quididade). Porém, tal infalibilidade não deve ser
mal-interpretada:
[Santo Tomás] ensina ... que a inteligência humana capta primeiro os caracteres
mais gerais das coisas e que no termo de uma longa inquirição com vista a
situar cada objeto na classificação dos gêneros e das espécies pelo exame das suas
propriedades e das suas atividades, chega a conhecer a sua natureza específica.
Quando fala da apreensão infalível das quididades, ele quer dizer simplesmente
isto: em o ato simples de conceber um objeto presente à consciência não há lugar
para o erro porque uma união natural e imediata do sujeito cognoscente (a
inteligência) e do objeto conhecido; este, primeiro captado como ser, revela
progressivamente as determinações da sua natureza à atenção da inteligência,
que as conhece necessariamente como tais como elas lhe são dadas. O problema
da verdade e do erro não se põe ainda neste estágio do conhecimento.
26
26
STEENBERGHEN, 1990, p. 30-31.
Ciência e filosofia
30
1.2
As ciências especulativas em Aristóteles e Tomás de Aquino
Primeiramente, faz-se necessário expor de forma sucinta a doutrina dos
três graus de abstração ou, como os denomina Maritain, graus de visualização
abstrativa, que caracterizam os três tipos genéricos de conhecimento teórico. A
exposição que se segue inclui não apenas a doutrina dos três graus de apreensão,
mas também nossos insights próprios sobre este tema, os quais entendemos serem
relevantes para a compreensão da proposta total deste trabalho. Trata-se, portanto,
de uma tomada de posição acerca do alcance do conhecimento especulativo, isto
é, do conhecimento proveniente da reflexão e elaboração de natureza teórica da
realidade, ou, se quisermos, do mundo
. De acordo com Aristóteles e com a
escolástica, o conhecimento supõe três graus de imaterialidade do objeto a ser
conhecido: classicamente, temos o primeiro grau, o da física
*
, no qual a mente
abstrai a matéria individual ou singular, isto é, os aspectos que estão associados ao
indivíduo (esta bola de bilhar, esta célula, “este elétron”
) e, por conseguinte, o
objeto que é dado ao intelecto nem pode existir sem uma matéria sensível (ou
matéria segunda, como teremos oportunidade de expor no capítulo seguinte), isto
é, mensurável e “distendida” no espaço-tempo, nem pode ser concebida sem esta
matéria sensível. Ora, é justamente esta matéria sensível que está sujeita ao
movimento, à mudança. Assim, este grau de conhecimento versa exclusivamente
sobre a realidade natural, sobre aquilo que existe sob certas condições materiais e
espaço-temporais. É seu domínio próprio a natureza. No segundo grau de
visualização abstrativa temos o conhecimento matemático.
vários escritos sobre o tema da organização das ciências especulativas, especialmente se
tomamos como bases de nossa argumentação as formulações que se encontram em MARITAIN,
1951 e MARITAIN, 1995.
Mundo tomado conjuntamente nos sentidos entitativo e epistêmico: tudo o que existe e é possível
ser conhecido.
*
Física no sentido universal dado por Aristóteles, isto é, que abarca um conhecimento científico
(ou experimental) da natureza bem como seus princípios filosóficos.
Entre aspas de modo a destacar que uma questão adicional acerca dos aspectos que
caracterizam identidade e individualidade das partículas elementares, como é o caso do elétron.
Não abordaremos especificamente essa questão nesta dissertação. Para isto, ver FRENCH &
KRAUSE, 2006.
Ciência e filosofia
31
Neste último, o intelecto abstrai (separa) a matéria sensível, isto é, a
matéria constituída de qualidades que se apresentam aos sentidos (cor, textura,
etc.). Ora, retiradas as qualidades sensíveis (pelas quais nós percebemos as
coisas), resta a quantidade e as noções que lhe estão atreladas: o número, a
extensão, o móvel. Assim, este grau de conhecimento versa exclusivamente sobre
a quantidade, que é a dimensão própria e característica da realidade natural.
Trata-se do domínio próprio da matemática. Ainda que consideremos
componentes deste domínio que pareçam estar afastados da materialidade, como
álgebras e espaços abstratos, mesmo assim estes se encontram vinculados à
quantidade, a uma matéria que os antigos denominavam matéria inteligível,
destituída de aspectos sensíveis. Não é, pois, de surpreender que certos elementos
da realidade natural, como as partículas elementares, cuja apreensão é
principalmente via algum tipo de postulação -- dado que não temos acesso a seus
aspectos próprios sensíveis (cor, textura, etc.) por meio de nossos sentidos --,
estejam exclusivamente vinculadas a uma matéria inteligível: possuem energia,
spin, carga, etc. Tais propriedades, em si mesmas inobserváveis, são rastreadas
por nossos dispositivos de medição e estão sempre associadas a um determinado
componente da realidade natural. Isto é característico do que é quantitativo,
muitas vezes apreendido através de componentes abstratos (a energia pode ser
dada em função de um operador hamiltoniano ou lagrangeano num espaço de
Hilbert; o spin é representado por um vetor de estado de polarização; a carga
bariônica pode ser obtida a partir de uma certa álgebra de Weyl, etc.). De qualquer
forma, a quantidade sempre está associada à dimensão material da realidade
natural, dimensão esta que é inteligível através de medições. Por fim, temos o
conhecimento puramente intelectual, abstraído (separado) de qualquer matéria,
mesmo a inteligível, do ser enquanto ser (ens qua ens), domínio próprio da
metafísica, e domínio próprio à formulação dos aspectos estruturais últimos da
realidade, daqueles aspectos que não caem diretamente sob o campo do material
sensível (primeiro grau de abstração) ou do material inteligível (segundo grau de
abstração). Trata-se de uma região de pura inteligibilidade
, pela qual o intelecto
Região de pura inteligibilidade que está em nossa mente, não se constituindo num mundo à parte,
o que nos conduziria a um platonismo. Trata-se de conceitualizações obtidas pelo processo de
abstração às quais correspondem no real extramental princípios constitutivos da realidade. Afinal,
segundo Aristóteles, a inteligibilidade das coisas está nas próprias coisas e não delas separada.
Ver, por exemplo, ARISTÓTELES, The Metaphysics, VII c8 1033a 25 – 1034b 19.
Ciência e filosofia
32
“vê” os princípios constitutivos da realidade em si mesmos, ainda que tal
apreensão seja difícil, custosa, e que não abarque totalmente seu objeto, como
ocorre nos dois primeiros graus de visualização abstrativa. Abarcar totalmente um
determinado objeto não significa esgotá-lo em sua inteligibilidade própria por
meio dos recursos de apreensão próprios ao grau respectivo, mas significa tão-
somente que o objeto pode potencialmente ser abarcado em sua totalidade
segundo os recursos disponíveis num dado espaço e tempo, ao passo que o objeto
metafísico nunca é abarcado total e completamente, não importando que recursos
de análise se encontrem disponíveis num determinado espaço e tempo. Uma
exposição dos graus de abstração encontra-se em Tomás de Aquino
27
, que
Maritain resume muito apropriadamente na citação que segue:
Neste texto [Comentário à Trindade q5 a1] Tomás de Aquino nos diz que alguns
dos objetos das ciências especulativas são dependentes da matéria secundum
esse, quanto à existência, pois esses objetos não podem existir fora do intelecto
senão na matéria. Porém uma subdivisão desses objetos é necessária, posto que
alguns deles dependem da matéria secundum esse et intellectum, com respeito
tanto à existência quanto à noção [conceito], para existir e ser definidos. Estas
coisas incluem a matéria sensível em sua definição; não podem ser
compreendidas sem a matéria sensível. Assim, na definição de homem é
necessário incluir carne e ossos. E com objetos deste tipo ocupa-se a physica ou
filosofia natural. Mas outros objetos que dependem da matéria quanto à
existência, mas não quanto à noção, posto que a matéria sensível não está
incluída em sua definição. Tal é o caso da linha e do número; e estes são os
objetos tratados pela matemática. Finalmente, alguns objetos de especulação
que não dependem da matéria para seu esse, sua existência, posto que podem
existir sem matéria. Ou estes objetos de pensamento, ainda que realmente
existentes, jamais são encontrados realizados na matéria, como Deus e os puros
espíritos, ou às vezes são realizados na matéria e algumas vezes não. Este é o
caso dos objetos de pensamento: substância, qualidade, ato, o uno e o múltiplo,
etc. E com estes dois tipos de objetos ocupam-se a metafísica e a teologia.
28
Uma última observação deve ser feita e diz respeito a diferenciações
internas que ocorrem em cada um dos graus de visualização abstrativa. Um dos
maiores comentadores de Tomás de Aquino, João de São Tomás
*
, assinala que,
27
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, q5 a1.
28
MARITAIN, op. cit., p. 14-15.
*
Ou João de Poinsot (1589-1644), de origem portuguesa. Lecionou filosofia e teologia na
Espanha e foi autor de tratados primorosos sobre lógica (formal e material), tendo sido precursor
da semiótica. João de São Tomás foi um grande comentador de Tomás de Aquino e, fugindo à
mediocridade da escolástica decadente de sua época, forneceu-nos insights extraordinários nos
cursos que lecionou, especialmente sobre lógica.
Ciência e filosofia
33
dentro de uma mesma ordem, vários graus de abstração determinam muitas
diferentes ciências
29
. É caso, por exemplo, da geometria e da aritmética no
segundo grau de abstração, ou da lógica, metafísica e teologia no terceiro grau de
abstração. João de São Tomás explica que
A abstração que define uma ordem [de visualização abstrativa] é algo inicial e
consiste em desconsiderar tipos de dados materiais: a matéria individual na
física, a matéria inteligível na matemática, e toda matéria na metafísica. Uma
vez efetuada esta abstração inicial, o intelecto adentra uma ordem de
inteligibilidade que não deve ser comparada a um plano bidimensional, mas a um
espaço tridimensional. Pois dentro desta esfera de inteligibilidade o intelecto
ainda usufrui a liberdade de mover-se para o alto e para baixo, de tal modo a
alcançar diversos tipos de abstração final.
30
Segundo Maritain, ao investigarmos a inteligibilidade própria ao primeiro
grau, observamos uma espécie de caráter bipolar que se revela pela tensão de duas
vertentes: num sentido, dirigimo-nos ao objeto de visualização que se expressa
por meio de um fluxo de aparências sensíveis (ou mensuráveis, para o caso
daqueles objetos do mundo microfísico); num outro sentido, tal objeto se expressa
como um centro estável de inteligibilidade (por exemplo, se algo se expressa
como um elétron, ele sempre se manifesta e se comporta como tal). Este aspecto
bipolar do objeto físico (ou seja, do situado no primeiro grau de visualização
abstrativa) e sua representação corroboram a definição tradicional da física como
a ciência do ens mobile seu sensibile, ou seja, o objeto físico é tanto inteligível,
porquanto ente (ens), como observável (ou mensurável), porquanto mutável e
perceptível (mobile seu sensibile)
. Nenhum dos aspectos da bipolaridade pode ser
desconsiderado sem que a natureza específica do ente seja destruída. Se
abandonarmos o caráter perceptível (mobile seu sensibile), não mais estaremos
lidando com algo físico. Se abandonarmos o caráter entitativo (ens), não mais se
29
Cf. MARITAIN, op. cit., p. 161-167.
30
MARITAIN, op. cit., pp. 162-164.
Diz-se perceptível à medida que podemos rastreá-lo. Veja-se o caso dos quarks, por exemplo;
sabemos que estão lá, pois efeitos por meio dos quais rastreamos sua atividade -- todo ser age,
opera, segundo o princípio operatio sequitur esse, isto é, a operação segue-se ao ente, ao ser -- no
núcleo (emissão de píons, por exemplo), ainda que não sejam em si mesmos detectáveis, graças ao
tipo de potencial que os conecta, fenômeno que se chama de confinamento dos quarks.
Ciência e filosofia
34
tratará de algo que pode ser objeto de conhecimento intelectual
*
. Uma conclusão
prévia se delineia aqui: nada impede de pormos ênfase num caráter ou noutro.
Se o fazemos na direção do ente, ens, chegamos a uma forma de conhecimento
que é ao mesmo tempo ontológico e físico, a uma física filosófica ou filosofia da
natureza. Se a ênfase é posta na direção do perceptível (ou mensurável), mobile
seu sensibile, chegamos a uma forma de conhecimento, uma disciplina intelectual
de caráter físico, mas não ontológico, a uma ciência experimental ou
simplesmente ciência, que Maritain denomina empiriológica, e a razão desta
denominação, bem como o que significa, veremos em seguida. Antes, precisamos
chamar a atenção para dois erros, de natureza epistemológica, que estão
associados ao caráter bipolar do primeiro grau de visualização abstrativa, tendo
em mente que, nesta dissertação, buscaremos superar este duplo erro. O primeiro
erro foi cometido pelos antigos filósofos, pelo próprio Aristóteles e pelos
primeiros escolásticos, erro que Maritain chamou de “precipitação”.
31
O erro
consistiu em não ver que os detalhes dos fenômenos requeriam uma ciência
específica distinta de uma filosofia da natureza, e, por uma espécie de “visão
otimista” do poder da razão humana em descortinar a realidade sensível,
apressavam-se em formular hipóteses e explicações acerca das especificidades dos
fenômenos naturais, como se a filosofia e a experimentação fossem uma única e
específica ciência, a que chamavam de “philosophia naturalis”. Um exemplo
deste tipo de erro era supor que uma mesma ciência poderia dar conta de analisar
a natureza entitativa da realidade corpórea e, ao mesmo tempo, explicar o arco-
íris. Assim, para os antigos, a filosofia da natureza -- os princípios filosóficos que
fundamentam ontologicamente a realidade natural ou corpórea, uma análise
ontológica -- absorvia as ciências da natureza, de tal forma que os detalhes, ou as
especificidades quantitativas dos fenômenos naturais não eram objeto de uma
explicação científica autônoma, nem eles distinguiam um nível experimental,
ocupado com a verificação dos fatos, de um nível teórico de tipo dedutivo,
ocupado em prover as razões para os fatos. Por isso, se pode dizer que lhes
faltava tanto um certo equipamento ou técnica conceitual, bem como laboratorial.
E isto se estendeu até a Idade Média e a meados do século XVII. O segundo erro
*
Desnecessário poderia ser referirmo-nos aqui à intuição do genial Parmênides: conhecemos
apenas o que é, o que tem ser, o ente. Se não há ente, não há conhecimento possível.
31
Cf. MARITAIN, op. cit., p. 33-35.
Ciência e filosofia
35
consistiu na tentativa das ciências da natureza de buscar absorver a filosofia da
natureza, o que acabou por determinar, por uma radical oposição ao primeiro erro
e por um mal-entendido -- fazendo nossas as palavras de Maritain --, uma
tragédia epistemológica
32
, posto que, de forma a interpretar o campo total dos
fenômenos naturais, o novo tipo de ciência que surge com Galileu, Descartes e
Newton não se concentrou sobre os aspectos ontológicos, o que foi desejável,
mas sobre os detalhes dos fatos naturais, buscando decifrá-los racionalmente por
meio da matemática, a saber, por meio da quantificação dos fenômenos,
estruturando um método experimental, e desenvolvendo um sofisticado
equipamento conceitual de base matemática, de tal forma que a leitura matemática
(quantitativa) dos fenômenos do real sensível (ou mensurável) passou a ditar a
última palavra sobre o real físico, tornando-se uma filosofia da natureza que se
opunha àquela de Aristóteles e dos escolásticos. Isto foi um mal-entendido, que
acabou resultando numa disputa intelectual sobre uma questão mal formulada, a
saber, acerca da estrutura do real físico, mas que lhes pareceu igualmente posta
sob o aspecto de um dilema: escolher entre a antiga filosofia da natureza e a
nova. No entanto, o dilema não deveria existir, pois havia, de um lado, uma
filosofia da natureza e do outro, uma disciplina que não poderia ser uma filosofia
da natureza. Por onde Maritain acresce,
Agora uma interpretação ou leitura do sensível é, claro, possível apenas com o
auxílio das noções básicas da matemática, com o auxílio de entidades
geométricas e do número (e necessariamente também do movimento; embora o
movimento não seja em si mesmo um ente matemático, é uma intrusão
indispensável da física na matemática). Assim, obviamente, a partir do momento
em que o conhecimento físico-matemático foi confundido com uma filosofia da
natureza e instado a dar uma explicação ontológica do real sensível, a mente
humana sujeitou-se inevitavelmente a aceitar uma filosofia mecanicista e a
empreender explicar tudo – no sentido filosófico da palavra explicar – em termos
da extensão e do movimento. Sujeitou-se inevitavelmente a empreender tornar a
realidade ontológica inteligível em termos da extensão e do movimento.
33
32
Ibid., p. 41.
33
Ibid., p. 42.
Ciência e filosofia
36
Outrossim, desejamos contribuir para desfazer o mal-entendido, o que
somente pode ser realizado através de uma proposta concreta de trabalho
conjunto, complementar, entre ciência e filosofia da natureza, que é um dos
objetivos desta dissertação. Antes, vejamos com mais detalhe o papel
desempenhado por uma ciência matemática de base experimental, situando
adequadamente sua tipologia epistemológica em função dos graus de abstração.
Ciência e filosofia
37
1.3
As ciências intermediárias
Recapitulando, a cosmovisão buscada pela filosofia, desde a Grécia até o
medievo, encontrou-se em meio a grandes dificuldades que levaram à sua
derrocada com o advento da revolução trazida por Galileu, Descartes e Newton
*
.
Ao fim desta, testemunharemos o erro oposto ao dos antigos: enquanto estes
absorveram as ciências na filosofia da natureza, os modernos acabariam por
absorver a filosofia da natureza nas ciências, com especial relevo para a física
clássica, postura que se mantém até hoje, a despeito das revoluções (em sentido
kuhniano) trazidas pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica.
Certamente, uma “nova, inexaustivamente fecunda disciplina terá estabelecido
seus direitos. Porém, esta disciplina, que não é uma sabedoria, suplantará a
sabedoria -- a sabedoria secundum quid da filosofia da natureza e das sabedorias
mais elevadas”.
34
Essa nova disciplina, tão amplamente bem-sucedida nos últimos trezentos
ou mais anos, consiste numa progressiva matematização do real sensível, com
especial relevo, como frisamos, para a física. O tipo de conhecimento ao qual esta
nova ciência pertencia não era desconhecido para os antigos, exceto que estes o
reconheciam como tal nos casos limitados e específicos da astronomia, harmonia
(incluía a música) e ótica geométrica. A cada uma destas ciências denominavam
scientia media, ciência intermediária, pois consistia numa apreensão formalmente
matemática de um elemento pertencente ao real físico. Ou seja, tratava-se de
conhecimentos formalmente matemáticos, dado que sua regra de interpretação,
sua regra de análise e dedução, era matemática. Por outro lado, embora fossem
conhecimentos formalmente matemáticos, eram materialmente físicos, posto que
o que compilavam e interpretavam através da inteligibilidade matemática era a
realidade física, os dados físicos. Portanto, tratava-se de ciências formalmente
matemáticas e materialmente físicas, tal como é hoje a física moderna: seu método
de aproximação, análise e interpretação pertence formalmente ao segundo grau de
*
Sem desmerecer, é claro, Copérnico, Kepler, Bacon e outros, que também contribuíram
fortemente para o mal-entendido mencionado.
34
MARITAIN, op. cit., p. 36.
Ciência e filosofia
38
visualização abstrativa, ao domínio da quantidade, a matemática; por outro lado,
não apenas seus dados de entrada mas sua verificação pertencem materialmente ao
primeiro grau de visualização abstrativa, ao domínio da existência, da realidade
física. Portanto, a física moderna, é um conhecimento eminentemente físico-
matemático, no sentido visto, pois o cientista será, ao mesmo tempo,
Atraído na direção do real físico, com seus mistérios próprios e sua
existencialidade, e na direção da intelecção e explicação matemáticas. Algumas
vezes uma ou outra tendência parecerá predominar; de fato, o cientista está em
ambos os planos simultaneamente; ele está mais no plano físico quanto ao termo
do conhecimento, ao passo que está no plano matemático formalmente quanto à
regra de interpretação e explicação.
35
A esta análise da realidade natural, formalmente matemática e
materialmente física, Maritain denomina análise empiriológica, ao passo, que à
análise formalmente metafísica da realidade natural, denomina análise ontológica.
As ciências e, em especial, a física moderna, procedem ao primeiro tipo de
análise, por isso seu tipo epistemológico de visualização abstrativa situa-se entre o
primeiro e o segundo graus, caracterizando-as, portanto, como ciências
intermediárias. Por serem ciências intermediárias, as ciências da natureza
possuem uma determinada resolução
do real físico, que se apresenta
simultaneamente sob duas posições aparentemente antagônicas: por um lado, não
um limite, digamos, epistemológico, quanto ao conhecimento que este tipo
análise pode nos fornecer acerca da realidade física no que se refere a seus
aspectos quantitativos; por outro lado, esta análise não nos fornece um
conhecimento último, definitivo, sobre a estrutura do real que ultrapassa o
35
Ibid., p. 39.
Resolução, neste trabalho, tem o mesmo significado que a resolutio dos medievais, isto é, se
refere à divisão ou dissolução do ente, que consiste ora na divisão do todo em suas partes e do
composto no simples -- neste caso, a resolutio é descrita como a transição intelectual do que é
conhecido de modo confuso e indistinto ao que é conhecido distintamente --, [que é o que ocorre
na análise empiriológica do real sensível], ora em sentido oposto ao anterior, ou seja, como
processo de distinção por abstração (per abstractionem) do todo da parte, do universal do
particular, da forma da matéria, em sentido inverso à mera divisão material, pois consiste na
passagem da matéria à forma inteligível. Nesta acepção, a resolução nada mais é do que abstração
[...] Enfim, a resolutio é entendida também como modo de raciocínio pelo qual conhecemos a
unidade a partir do múltiplo, o princípio e a causa pelos seus efeitos, oimediato a partir do
imediato, a forma universal e comum a partir das formas particulares [nessas duas últimas
acepções é o que se dá na análise ontológica do real sensível]. (Cf. SALLES, 2007, p. 94).
Ciência e filosofia
39
domínio da quantidade
*
. Daí a necessidade da complementação da análise
empiriológica da realidade natural com a análise ontológica desta, a ser conduzida
por uma filosofia da natureza. Antes de investigarmos melhor a demanda por uma
retomada da análise ontológica do real, devemos explicitar melhor a natureza do
conhecimento que nos é oferecido pelas ciências intermediárias, especialmente a
física-matemática.
*
Pode-se, sempre, é claro, supor que o único domínio existente é o da quantidade, ou seja, o real é
puramente material e seu conhecimento esgota-se na explicitação das relações de natureza
quantitativa existentes (ou apenas dadas pela mente humana) entre seus componentes, sejam eles
partículas, campos ou outra realidade mais abstrusa. No entanto, Descartes já tentou sem êxito este
caminho. Pode-se argumentar que os novos dispositivos teóricos e experimentais erigidos a partir
do século XX são potentes o suficiente para retomar o projeto mecanicista, desta vez com chances
de sucesso. Pouco importa: trata-se da antiga tentação reducionista, tentação à qual não faremos
qualquer concessão nesta dissertação.
Ciência e filosofia
40
1.4
Natureza do alcance empiriológico da ciência moderna
De início, um requisito a que deve atender as ciências da natureza,
considerando em geral o tipo de conhecimento que nos propõe, é que elas devem
ser desontologizadas, isto é, não devemos buscar conhecer se nelas está presente
ou não o ser (ens)
*
. Por isso, Maritain destaca o acerto do Círculo de Viena em
haver assinalado a tomada de consciência que a ciência moderna, em particular a
física, realizou sobre si mesma: a ciência não é uma filosofia e, portanto, deve-se
desontologizar o léxico científico. Por outro lado, Maritain não entende o conceito
de fenômeno como algo que separa radicalmente a apresentação sensível do ente
real de sua reconstrução teórica dada por uma representação subjetiva do mesmo.
Fenômeno não é uma aparição subjetiva, porém algo real, acessível justamente
por seus aspectos observáveis ou mensuráveis. Aqui, entendemos haver, da parte
de Maritain, uma rejeição direta a qualquer forma de fenomenalismo:
Esta expressão [fenômeno] é válida unicamente se entendemos, por um lado, que
os fenômenos em questão (especialmente na física) são fenômenos
matematizáveis e por outro lado, que não são um objeto separado, senão um
aspecto desta realidade em si que é a Natureza. Dizemos que a ciência [em suas
teorias] é um conhecimento verdadeiro, porém oblíquo, da natureza; alcança a
realidade, porém sob seu aspecto fenomênico, quer dizer, sob o aspecto da
realidade que pode definir-se pela observação e medida, e por meio de entes
[teóricos], sobretudo matemáticos. Estes entes podem ser "reais" e estarem
relacionados com o que o realismo aristotélico chamava de "quantidade" na
forma de acidentes da substância material [compromisso ontológico], ou podem
ser entes puramente ideais [entes de razão] e simples símbolos fundados [tendo
como base] nos dados de observação e medida.
36
Os fenômenos físicos se constituem, pois, para Maritain, numa
manifestação do real. Ademais, considerava que a física moderna, graças a sua
estrutura matemática, deixou de lado, desde o século XVII, certas qualidades
sensíveis aristotélicas (o frio, o calor, o úmido, o seco) como princípios de
explicação em favor de propriedades físicas mais profundas, ainda que estas se
*
Ser, aqui, corresponde à definição clássica, ou seja, o que é, não tendo a ver com o conceito de
ser em Hegel, Heidegger e outros.
36
MARITAIN, 1982-2000, v. 12, p. 1183.
Ciência e filosofia
41
mantenham sempre na esfera do sensível.
37
Reconhece também que nem todos os
fenômenos estão no mesmo plano de realidade: todos têm um valor referencial ao
real, porém nem todos eles remetem a algo situado à mesma "profundidade",
que, de fato, alguns são mais relevantes do que outros, e fazem-nos chegar mais
longe na compreensão do mundo físico. Por outro lado, dado que o alcance
empiriológico das ciências da natureza se resolve no sensível (veremos melhor o
significado desta expressão, adiante), este tipo de conhecimento tem como objeto
material tudo aquilo que procede por meio de uma operação dos sentidos (a leitura
de uma escala, como um termômetro, a observação de franjas de interferência, ou
a leitura de um registro espectrográfico num software especializado)
38
. É
importante salientar, com muita ênfase, que, para Maritain, a observabilidade não
está restrita à observabilidade nos termos de van Fraassen
39
, observabilidade para
nós, seres humanos, tomados como dispositivos de observação. Daí que Maritain
sempre associe observável a mensurável. Segundo van Fraassen, medir algo que
não seja diretamente observável por nós, seres humanos, não é assegurar que este
algo seja real, que tenha uma existência de fato no espaço-tempo, nem que a teoria
que o postule estabeleça qualquer compromisso ontológico a esse respeito. É o
caso, por exemplo, do elétron: o fato de a teoria eletromagnética e a teoria
quântica que o postulam lhe atribuírem propriedades mensuráveis tais como carga,
massa e spin, não significa que estas propriedades calculadas sejam observáveis
em si mesmas nem que a partícula que as possua seja, igualmente, observável.
Assim, para van Fraassen, o elétron e seus atributos são tipicamente
inobserváveis, e sua postulação pelo eletromagnetismo e mecânica quântica não
estabelece, da parte de ambas as teorias, qualquer compromisso ontológico com os
mesmos. Por outro lado, Maritain entende que o método que a ciência moderna
utiliza como procedimento para o que se denomina salvar os fenômenos ou salvar
as aparências é similar ao método utilizado pelos antigos para a formulação das
teorias astronômicas
40
. Neste procedimento, se requer unicamente do modelo que
representa o(s) fenômeno(s) que as relações matemáticas que expressam as
conseqüências observáveis (para nós) do modelo coincidam com os valores
37
Cf. MARITAIN, 1943, p. 153-154.
38
Ibid., p. 153.
39
Cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 13-19.
40
Cf. DUHEM, 1984.
Ciência e filosofia
42
medidos, isto é, que sejam verificadas empiricamente (“laboratorialmente”)
*
as
conseqüências deduzidas do modelo. Não se segue desta condição, no entanto,
que os princípios da teoria sejam verdadeiros em si mesmos, nem que os
símbolos, ou entes teóricos, dos quais se faz uso no corpo teórico correspondam
isomorficamente a coisas que tenham existência no mundo físico. Igualmente, o
procedimento que visa salvar os fenômenos não exclui, em absoluto, a
investigação de relações causais; limita, no entanto, que tal investigação busque
uma causalidade propriamente ontológica.
Segue-se, portanto, que Maritain não nega à ciência seu valor de
conhecimento da realidade, porém enfatiza que os enunciados que definem as
teorias não refletem, enquanto tais, a estrutura ontológica do real.
41
Antes de
prosseguir, no entanto, gostaríamos de citar Maritain a propósito de uma aparente
coincidência de sua proposta epistemológica com a do Círculo de Viena, que
advogava o positivismo lógico. Eis o que ele nos diz a respeito:
O estudo da ciência dos fenômenos tal como tem se desenvolvido nos tempos
modernos e que é algo novo com relação ao estado de cultura do mundo antigo e
medieval, tal estudo realizado à luz dos princípios epistemológicos de Tomás de
Aquino conduz a visões que concordam com as da escola de Viena [...] e a
convergência (parcial) das fórmulas empregadas [...] nos parece tanto mais
notável.
42
Segundo Maritain, o que importa, antes de tudo, é realizar essa distinção
entre a análise ontológica e a análise empiriológica do real sensível ou mensurável
(que, em seu entender, é feita pela Escola, ou Círculo, de Viena), distinção que
envolve a elaboração de conceitos e o processo de análise experimental deste real
sensível. Como pode ser conduzida esta última? Um ente material qualquer,
enquanto observável, é o ponto de partida de dois tipos de conhecimento: um,
obtido por meio dos sentidos, o outro, pela elaboração conceitual. Assim, nos
defrontamos com uma espécie de fluxo do sensível que se estabiliza numa idéia,
num conceito; ou seja, ao mesmo tempo em que identificamos propriedades
*
Pusemos entre aspas “laboratório” para significar que o termo se refere a quaisquer condições
metodicamente controladas para a aferição experimental de dados, mesmo em condições externas,
como ocorreu com a medição do ângulo de desvio da luz no campo gravitacional do Sol, durante o
eclipse total de 1919, em Sobral, Ceará.
41
Cf. MARITAIN, 1982-2000, v.4, p. 555.
42
MARITAIN, 1943, p. 147.
Ciência e filosofia
43
pertencentes a um determinado ente material, também se tenciona apreender sua
essência, aquilo que o ente é. Desta forma, uma dada elaboração conceitual se
em confronto com um certo núcleo ontológico, isto é, com um certo algo real "X",
cuja tentativa de compreensão se nos apresenta através de um conjunto de
qualidades, que são objeto de percepção e de observação. Há, pois, dois caminhos
para chegarmos ao conhecimento deste núcleo ontológico (deste X material e
observável): Primeiramente, por meio da resolução deste conjunto de qualidades
apreendidas no ente através de conceitos e definições que a ele se dirigem, e que
Maritain denomina de resolução ascendente ou ontológica, isto é, por meio da
análise de um objeto (ou fenômeno), extraindo-se (pela via da visualização
abstrativa do primeiro grau) conceitos e definições, desde a observação do objeto
(ou fenômeno) em sua realidade material mais concreta e individualizada, com
suas propriedades sensíveis, até a obtenção de um conceito ou definição mais
geral, removido de todo aspecto sensível e quantificável, sem a presença dos
aspectos individuantes. Este processo pertence mais propriamente quer à
metafísica quer à filosofia da natureza, desde que, no caso desta última, os
conceitos obtidos ainda contenham notas características ligadas às propriedades
quantificáveis, ou sensíveis, do objeto (ou fenômeno). Neste processo abstrativo
que pertence propriamente à filosofia da natureza, os aspectos sensíveis ligados
aos entes reais (materiais) continuam presentes na formulação daqueles conceitos,
ainda que de uma maneira indireta, e desempenham uma função indispensável a
serviço dessa elaboração conceitual. que se observar que, para um filósofo
como Maritain, não estão apenas em jogo os conceitos que se referem a entes
materiais sensíveis, mas também aqueles que se referem a entes reais, ainda que
não sensíveis, tais como Deus, os anjos (substâncias inteligentes e separadas), a
alma humana, etc., que são objeto de resolução ontológica, mas não se encontram
em discussão aqui.
Um segundo caminho faz-se por meio da resolução do conjunto de
qualidades apreendidas no ente, resolvendo-as por meio do que é puramente
observável, ou sensível, ou mensurável, ao que Maritain denomina de resolução
descendente ou empiriológica, isto é, analisar um objeto (ou fenômeno) por meio
da observação deste em sua realidade material mais concreta e individualizada,
com suas propriedades sensíveis ou mensuráveis, especialmente capturadas
através de atributos quantitativos. Encontram-se aqui em processo de análise todos
Ciência e filosofia
44
os aspectos sensíveis, ou quantificáveis, que são vinculados a um específico
objeto (ou fenômeno). A física-matemática provê, por excelência, os mecanismos
de análise do real quantificável. Vale frisar o seguinte: ainda que os objetos (ou
fenômenos) da experiência estejam individualizados
*
, isto é, sejam estes ou
aqueles entes específicos, cujas propriedades e interações com outros estão sob
observação, no entanto, a ciência sempre buscará capturar tais propriedades e
relações por meio de leis gerais, aplicáveis a uma classe cada vez maior de objetos
(ou fenômenos). Por exemplo: as órbitas estacionárias do átomo de Bohr não são
aplicáveis apenas a um específico, individualizado, átomo (um específico átomo
de hidrogênio, e.g.), mas a todos os entes do mesmo tipo (alguns filósofos, como
Lange, chamam esses tipos de "naturais"). Daí se segue o caráter universal da
ciência, porquanto não visa um determinado ente, mas todos os entes daquele tipo.
Neste processo de conhecimento, o conteúdo ontológico permanece sempre
presente, ainda que de forma indireta (seria completamente impossível, segundo
Maritain, impedir que a inteligência deixe de se lhe referir), mas o que buscamos,
através da ciência, são unicamente os aspectos sensíveis, observáveis, as
propriedades mensuráveis presentes nos fenômenos. Esse conteúdo ontológico é
uma espécie de X que tem assegurado, em meio ao fluxo dos fenômenos, sua
estabilidade de maneira que certas determinações sensíveis -- tais como cor,
figura, etc. --, e certas medidas -- tais como posição, energia, etc. --, possam ser
atribuídas a um dado objeto cuja referência ontológica seja X. Ora, segundo
Maritain, o aporte especial trazido pela ciência moderna, e, mais especialmente
ainda pela física teórica, é a autonomia, a separação lógica entre a resolução
ontológica (dada pela filosofia da natureza) e a resolução empiriológica (dada pela
ciência experimental); esta última os antigos
43
antecipavam, mas não a haviam
constituído como instrumento especial de conhecimento por várias razões, cuja
discussão não será objeto deste trabalho. Assim, é preciso dizer que, ao se buscar
a elaboração de conceitos, definições, hipóteses, com base no mensurável, isto se
realiza sem que as notas constitutivas essenciais -- obtidas, como vimos, a partir
de um núcleo ontológico X que lhes assegura estabilidade em meio ao fluxo do
*
Novamente, chamamos a atenção para o fato de que a noção de indivíduo não será tratada neste
trabalho. Basta, em nosso caso, considerarmos que, mesmo entes simples como partículas
elementares, podem ser detectados “individualmente”, e que tal individualidade nem implica
necessariamente distingüibilidade nem independência de outros indivíduos do mesmo “tipo”.
43
Cf. TOMÁS DE AQUINO, 1998, p. 126-127.
Ciência e filosofia
45
real sensível -- sejam tomadas em si mesmas como sinal e substituto deste X, ou
seja, buscam-se conceitos e definições pura e simplesmente através das
possibilidades observacionais ou mensuráveis, e das operações que se podem
realizar com base nos aspectos físicos deste ontológico X. Tipicamente, a análise
empiriológica é espaço-temporal e, por isso, orienta-se para o que é observável ou
mensurável como tal; desempenha analogamente a mesma função para o cientista
que a essência desempenha para o filósofo. E isto se dá, pois, da mesma forma
que o núcleo ontológico é um X estável, tal possibilidade permanente de
observação ou de medição fixa as propriedades observáveis ou mensuráveis do
ontológico X. Portanto, no entender de Maritain:
Para o físico consciente das exigências epistemológicas de sua disciplina, a
ciência tende a definições, não por meio de características ontológicas essenciais,
mas sim por um certo número de operações físicas realizáveis sob condições bem
determinadas. E visto que, de outra parte, toda ciência tende de certo modo, ainda
que imperfeitamente, à explicação e à dedução, a ciência empiriológica estará
obrigada necessariamente a buscar suas deduções explicativas, assim como o
princípio último formal das definições, nas construções da razão [entes teóricos]
cujo fundamento está nas coisas às quais substituirão, simbolicamente. É esta
elaboração de entes teóricos com fundamentação real (in re) que encontramos
emblematicamente na física teórica
44
.
Faz-se necessário clarificar e definir termos e expressões do vocabulário
escolástico utilizado por Maritain. Primeiramente, com respeito à expressão "com
fundamento no real (in re)", entendemos ser mais bem clarificada através de um
exemplo. Seja o conceito onda eletromagnética. Em física, uma onda
eletromagnética é a propagação, no espaço, de um campo elétrico e de um campo
magnético que são perpendiculares entre si e oscilam segundo estas direções
ortogonais. Ora, podemos simbolizar este campo por
( , )
r t
ψ
, em que
ψ
é uma
função que representa o acoplamento dos campos elétrico e magnético e indica
sua amplitude no ponto
r
do espaço, num dado instante t do tempo. Seja como
for, ao realizarmos operações matemáticas com
ψ
devemos ter em mente que
esta função é uma construção simbólica que se refere a um ente teórico, o campo
eletromagnético, o qual é, também, por sua vez, a imagem simbólica, ou
44
MARITAIN, 1943, p. 150.
Ciência e filosofia
46
aproximada, ou reconstruída, de um determinado fenômeno que ocorre no mundo
real, que subentende um determinado X ontológico, cuja essência, para o cientista,
não é desvelada pela introdução da função
ψ
ou por outros atributos quantitativos
associados ao ente teórico (ou ente de razão)
*
. Antes de prosseguir, vamos nos
concentrar aqui num aspecto terminológico: O que são "entes de razão“ (entia
rationis)? Em primeiro lugar, devemos definir o que os escolásticos denominam
conceito objetivo. Um conceito, ou idéia, ou noção, ou conceito formal é aquilo
que nos faz conhecer alguma essência ou natureza, apreendida sob um certo
aspecto inteligível ou formal. Este objeto formal do conceito denomina-se
conceito objetivo. Alguns desses conceitos objetivos somente podem existir na
mente: trata-se de privações (ou ausência de ser) como a cegueira, o nada; ou de
entes lógicos como a afirmação; ou de entes matemáticos, como o número
irracional. Assim, certos conceitos que são utilizados com vistas à compreensão
de um dado fenômeno, ou de uma classe de fenômenos, somente podem existir na
mente. Por exemplo: seja o operador hamiltoniano
H
ψ
, que associamos à
partícula livre
representada pela função de onda
ψ
, definido por,
2
2
H
m
ψ
ψ
=
, sendo
a constante de Planck e
m
a massa da partícula, o qual determina a
evolução dinâmica da partícula livre
45
. Ora, não há, no real, uma contrapartida
ontológica pela qual possamos estabelecer uma relação 1-1 entre o operador
hamiltoniano e um certo ontológico Y. Trata-se de um recurso matemático, um ens
rationis, de enorme utilidade na obtenção da energia e do movimento da partícula.
*
Certo, pode-se objetar, com efeito, que não existe nenhuma essência, nenhum X ontológico que
se estabiliza (para o cientista) sob um conceito empiriológico postulado. Tratar-se-ia apenas de
uma construção da razão humana cujo objetivo seria tão-somente representar algo ou ao qual não
temos nenhum tipo de acesso, mesmo ontológico (agnosticismo metafísico), ou ao qual somente
teríamos um acesso empiriológico, posto que não existe nenhum X ontológico, nenhuma essência
que seja o fundamento metafísico do conceito postulado (reducionismo materialista). Nesta
dissertação não sustentamos nenhuma das duas posições. Advogamos que há, sim, um ontológico,
uma essência, um núcleo de inteligibilidade para cada ente natural, mas que esta não é desvelada,
por assim dizer, pela análise empiriológica, mas apenas pela análise ontológica. No entanto, a
análise empiriológica revela-nos, indiretamente, certos atributos essenciais vinculados à
quantidade e é input indispensável para uma análise ontológica do real.
Livre, isto é, não sujeita a um campo de forças que atue sobre ela.
45
Cf. SZEKERES, 2004, p. 379.
Ciência e filosofia
47
No entanto, devemos considerar que foi com base, ou fundamento, num
certo ontológico X, que a ciência elaborou um conceito cujos aspectos
mensuráveis ou observacionais caracterizam o que denominamos de onda
eletromagnética, cuja amplitude simbolizamos por
ψ
, e cujo operador
hamiltoniano
H
ψ
, associado à partícula livre, definimos acima. Foi com o
propósito de realizar as operações físicas que estão associadas a esses conceitos
(conceitos objetivos), que foram estabelecidos e postulados de certa maneira.
Portanto, se ao conceito de onda eletromagnética corresponde algo no mundo que
capturo via esse conceito matemático -- cuja observabilidade é dada nos termos de
van Fraassen
46
(observação direta) ou em termos de dispositivos como
microscópios, câmaras de bolha, etc. (observação indireta) -- é irrelevante para
Maritain. Poderia acontecer que o ente (o ontológico X) a que se refere
ψ
sequer
fosse observável em princípio, quer direta ou indiretamente ou, como no caso de
H
ψ
, ao qual nenhum Y corresponde como observável ou inobservável, mesmo
em princípio. O que importa é que o conceito engendrado no corpo teórico como
hipótese, postulado, princípio, ou sob qualquer outra forma, seja um auxílio
relevante para salvar uma classe de fenômenos cuja referência seja o nosso X
ontológico, cuja essência, ou natureza, não é resolvida (ou analisada)
ontologicamente pela introdução daquele conceito. Maritain aduz, num trecho
particularmente interessante, que "o físico elabora do mundo uma imagem na qual
certos delineamentos conceituais expressam de fato não a natureza, ou essência,
do real, mas como este se encontra articulado sob aspectos mensuráveis, e isto
significa uma determinada adequação da imagem aos fatos empíricos". E
prossegue:
Vê-se, então, que somente uma teoria que considere que os entes teóricos estejam
fundamentados no real nos pode oferecer uma interpretação acabada e satisfatória
deste duplo aspecto paradoxal da ciência: realismo e simbolismo, ambos os
aspectos propostos pelas ciências dos fenômenos e que, à primeira vista, nos
parecem contraditórios, pelas razões seguintes: em primeiro lugar, os cientistas
que sustentam com vigor o caráter simbólico da ciência que produzem
reivindicam, por sua vez, que esta representa bem a realidade. Aqueles que
46
O conceito de observabilidade em van Fraassen consiste em que algo seja estabelecido como
observável para nós, seres humanos, baseando-se no uso de nossos sentidos conaturais. Cf. VAN
FRAASSEN, op. cit, p. 16-19.
Ciência e filosofia
48
sustentam, em oposição, o caráter realista da ciência que produzem reivindicam,
por seu lado, que esta não objetiva descortinar-nos as essências das coisas.
47
O trecho acima é surpreendente! Opõe-se a uma das visões
contemporâneas sobre a ciência, o realismo científico, para o qual, em linhas
gerais, a ciência tem como objetivo produzir uma descrição literal do mundo, o
que subentende descortinar-nos as coisas tal como elas são -- sua natureza ou
essência --, por meio das teorias, as quais são verdadeiras ou falsas, segundo
logram atingir, ou não, aquela descrição, ainda que de forma aproximada. Ou seja,
a resolução empiriológica seria não apenas necessária, mas também suficiente
para nos dar uma descrição última da realidade
*
. Uma outra visão contemporânea
acerca do alcance de nossas teorias científicas é-nos oferecida por van Fraassen,
que defende uma posição de cunho anti-realista, por ele denominada empirismo
construtivo, segundo a qual o objetivo da ciência, em linhas gerais, é tão-somente
salvar os fenômenos
, sem pretender que suas teorias sejam verdadeiras ou falsas,
nem que os entes que postulam ou engendram representem fielmente a realidade
que buscam representar, ou que eles possam ou não subentender ou não naturezas
ou essências, para as quais não é relevante, ou até mesmo possível, predicar-lhes
uma existência real. Há que se fazer aqui um esclarecimento terminológico:
obviamente, a ciência possui um caráter simbólico, conquanto faça uso de
símbolos em suas descrições, operações, etc. (por exemplo,
ψ
para representar a
função de onda, ou
HCl
para representar o ácido clorídrico, ou
k
Ο
para
referenciar um determinado observável K, ou
H
ψ
para o operador hamiltoniano,
etc.). No entanto, não é a este tipo óbvio de uso simbólico ao qual se refere
47
MARITAIN, 1943, p.151.
*
Um exemplo típico de tal postura encontra-se na entrevista concedida ao jornalista Fred Melo
Paiva pelo cosmólogo brasileiro Dr. Mario Novello, publicada no jornal Estado de São Paulo, em
17 de setembro de 2006. Nesta entrevista, o Professor Novello sustenta a tese de que a ciência
experimental explicaria tudo o que existe, isto é, o cosmos, por meio de seus recursos próprios, o
que implica, segundo a proposta sustentada por esta dissertação, no esvaziamento ontológico da
realidade física, restando tão somente seus aspectos quantitativos, capturados por uma ciência de
fenômenos. Com efeito, a proposta explicitada na entrevista significa mais do que desontologizar
o léxico científico, como Maritain entende ser desejável: é dar um passo além e supor que a
realidade é ela mesma desontologizada.
Salvar os fenômenos para van Fraassen consiste num processo que ele denomina adequação
empírica, cuja finalidade é identificar modelos gicos no interior das teorias, de tal forma que
todas as subestruturas empíricas (estruturas candidatas a representar os fenômenos) contidas em
cada modelo sejam isomorfas às respectivas estruturas de dados coletados, às quais ele denomina
aparências. Sobre isomorfismo consultar Seção 3.2.1.
Ciência e filosofia
49
Maritain. Para este autor, o caráter simbólico das ciências da natureza significa
não apenas a formulação de teorias, componentes, conceitos e hipóteses que
remetem ou não a observáveis ou que, muitas vezes, se remetem a inobserváveis
em princípio, mas também à introdução do formalismo matemático -- cada vez
mais intensamente e melhor, possivelmente à medida que melhor "salvem os
fenômenos" --, isso tudo compondo, por conseguinte, todo um complexo
simbólico total cujo único objetivo é "representar adequadamente" as articulações
ontológicas do real, em si mesmas desconhecidas dessas ciências, ou,
No que concerne o registro empiriológico total, a resolução dos conceitos é
conduzida numa direção infrafilosófica. O que as coisas são em si mesmas o
lhes interessa [às ciências da natureza, especialmente a física]. O que é
importante são as possibilidades de observação e medição empíricas que aquelas
coisas representam, como também a possibilidade de conectarmos segundo leis
estáveis os dados fornecidos por essas observações e medições. [...] Assim, para
tal conhecimento, a possibilidade de observação e medição toma o lugar da
essência ou qüididade que a filosofia busca nas coisas.
48
Tendo isso em mente, podemos melhor entender a posição de Maritain -- e
pensamos ser a mesma a posição de Duhem e dos escolásticos em geral -- que,
contrariamente à terminologia que se consolidou contemporaneamente, entendeu
ser necessário defender uma posição epistemológica intermediária, que ele
denomina realismo crítico, a qual consiste no equilíbrio entre realismo e anti-
realismo: tanto reivindica que as teorias científicas visam unicamente representar
bem a realidade através de suas teorias e dos entes teóricos que introduzem ou
postulam, basicamente no que se refere às suas dimensões quantitativas, obtidas
por observação ou medição, no intuito de referenciar certos ontológicos X, bem
como reivindica que, por outro lado, tais dimensões quantitativas nos dão a
conhecer, ainda que de modo indireto
49
, algo da natureza (metafísica) desses
mesmos ontológicos. Por exemplo, o átomo de Rutherford oferecia uma teoria
sobre o funcionamento de um inobservável: o átomo. Com o surgimento da
mecânica quântica e da sucessão de modelos teóricos que abrangiam uma classe
cada vez maior de fenômenos em escala atômica, salvando novos e mais precisos
48
MARITAIN, 1995, p. 159.
49
Ou obliquamente, como gosta de se referir quanto a este tipo implícito e indireto de
conhecimento das naturezas, proveniente da análise empiriológica. Cf. MARITAIN, 1995, p. 148.
Ciência e filosofia
50
registros observacionais, obtidos a partir de dispositivos de medição mais
complexos que ofereciam aos modelos teóricos adições ou correções, quer em
suas hipóteses quer nas propriedades mensuráveis daquele mesmo ontológico X ao
qual se referenciavam por meio do conceito de "átomo", pôde-se obter um
conhecimento cada vez melhor deste ontológico X, um conhecimento "indireto"
deste por meio de propriedades -- consoante sua inobservabilidade -- associadas a
aspectos mensuráveis; tratava-se ainda, no entanto, de um conhecimento ad-hoc,
pois poderia -- como ainda pode -- acontecer que um outro conceito, referente ao
mesmo X, uma nova teoria, ou modelo, postulado viesse a representar melhor esse
mesmo ontológico X, baseando-se nos registros observacionais dos fenômenos
que lhe estão associados, ou seja, "salvando" melhor esses fenômenos.
A nosso ver, a posição de Maritain possui elementos da posição de
Duhem
50
como, por exemplo, a separação dos domínios da física e da metafísica.
Igualmente, contém fortes pontos de contato com a proposta de van Fraassen
51
,
pois os entes teóricos e o simbolismo de que se utilizam as teorias podem, na
abordagem de Maritain, corresponder ou não a certos ontológicos X, ao fazerem
uso de entes de razão. No entender de Maritain, seria necessário retomar dos
antigos a doutrina dos entes de razão (entia rationis), a qual ajudar-nos-ia a
distinguir com precisão aquilo que é proveniente propriamente do espírito humano
nas elaborações e no quadro da ciência, e que compõe o aparato simbólico das
teorias. Desta maneira, seria possível mostrar que esses entes de razão intervêm
sob diversas formas nas ciências dos fenômenos, e mais especialmente ainda na
física teórica, na medida em que se trata de uma construção ideal, de um elemento
ou conotação de idealidade (por exemplo, o quark, com suas propriedades que,
"idealmente", representam a estabilidade dos constituintes do núcleo atômico),
mas que se referencia a um núcleo ontológico irredutível, um certo ontológico X,
ente real (ens reale), com o qual se relaciona de um modo mais ou menos
sofisticadamente elaborado (elaborado, aqui, pela inteligência, pelo espírito
humano), de tal forma que esta elaboração, ou idealidade, se encontra nesta
relação "conceito/ente real X" em graus diferenciados com respeito a este mesmo
50
Cf. DUHEM, 1996.
51
Cf. VAN FRAASSEN, 1980.
Ciência e filosofia
51
X
52
, segundo sua representação simbólica no corpo de nossas melhores teorias
*
,
conforme expusemos acima. Isto é, "enquanto científico, o conhecimento da
realidade se limita a uma compreensão e a uma reconstrução matemática (ou
quase-matemática) dos aspectos observáveis e mensuráveis da natureza, tomados
em seus detalhes inexauríveis".
53
Sem dúvida, Maritain destacou o caráter
convencional e de idealidade da física-matemática, porém não o fez a ponto de
cancelar seu realismo metafísico:
O que digo sobre a função dos símbolos e dos entes de razão na ciência não se
choca de forma alguma contra seu caráter realista, porque se trata de entes de
razão com fundamento nas coisas. A quantidade física, tal como seria estudada
pela filosofia, é precisamente o fundamento primeiro dos entes de razão
matemáticos dos quais se utiliza a física (...) É graças a essas construções da
razão, a esses entes de razão, que o real, as causas reais, são capturadas, ainda
que às cegas.
54
Para Maritain, a ciência expressa de fato um conhecimento da realidade,
situando, sem dúvida, sua perspectiva realista com respeito às postulações das
teorias científicas nas partes da física que estão mais próximas à experiência e à
observação, pois,
Entre os entes que a física constrói, alguns têm um índice de realidade mais forte
porque se relacionam mais diretamente (com menos interposições teóricas) com
os dados experimentais. O desenvolvimento crescente da física teórica na qual se
empregam formulações matemáticas sofisticadas, não deve nos fazer esquecer do
imenso tesouro de resultados puramente físicos, de fatos e de causas observáveis,
em suma, dos entes reais [nossos ontológicos X] acumulados pela física
experimental.
55
52
Cf. MARITAIN, 1995. Veja-se aqui, como, em Maritain, a "idealidade" do simbolismo
introduzido pelas teorias científicas não exclui a conexão, ainda que diferenciada em graus em face
desta mesma idealidade, com um certo ontológico X, no qual se fundamentam as construções ou
elaborações (próprias ao espírito humano), engendradas nas teorias, e que nos apresentam os
aspectos especialmente quantitativos, mensuráveis, deste mesmo irredutível X (irredutível, aqui, no
sentido de ser uma essência, ou natureza, real, cujos aspectos próprios enquanto essência não são
apreendidos pelas teorias).
*
Importante salientar que tal núcleo ontológico deve encontrar sua contrapartida simbólica
consistentemente elaborada segundo as teorias aceitáveis num determinado período evolutivo da
ciência. Ou seja, se uma teoria de grande aceitação no meio científico postula a existência de um
determinado ente teórico para dar conta de certa classe de fenômenos observados, então suas
propriedades, relações, conseqüências observacionais associadas, etc. devem ser consistentes com
o previsto por outras teorias igualmente aceitas na comunidade científica
53
MARITAIN, 1982-2000, v.12, p.1185.
54
MARITAIN, 1943, p.139-187.
55
MARITAIN, 1943, p. 156.
Ciência e filosofia
52
O fundamento nas coisas, ou fundamento real, designa uma nota
característica de um ente teórico pela qual este apresenta uma contrapartida
ontológica dada por um fenômeno, ou classe de fenômenos. Por exemplo, nos
referimos a uma determinada partícula que chamamos de pósitron, cujas notas
constitutivas (propriedades de carga, massa, spin, momentum, energia de repouso,
etc.) podem ser confirmadas quantitativamente através da observação, direta ou
indireta, de certos fenômenos que ocorrem no mundo. Portanto, estou justificado
em crer em sua existência, posto que esta me é confirmada, ainda que
indiretamente, pela análise experimental desses fenômenos, aos quais a partícula
está compaginada como causa. No entanto, o que importa assinalar aqui em
relação ao nosso autor é a sua afirmação de que a física, na esfera em que postula
entes teóricos e propõe modelos com aparato matemático cada vez mais
sofisticado, e conquanto nos apresente uma imagem mais afastada da realidade,
converte-se, paradoxalmente, num instrumento cada vez mais hábil para dissecá-
la. Quando a física postula entes de razão (entes teóricos) assim o faz para
apoderar-se melhor, conforme seu modo específico de conhecer e explicar, da
realidade observável.
56
Com efeito, nos processos de formulação das teorias
entram em jogo elementos convencionais e aspectos de idealidade. No entanto,
visto que tais convenções são engendradas como ferramentas para podermos
conhecer a realidade em seus aspectos mensuráveis e observáveis, como que
um constante ir e vir do ente (nosso X ontológico) observado e medido ao ente
teórico postulado, referenciado por um conjunto de símbolos matemáticos. O
modelo matemático irá sendo corrigido e ajustado para acomodar-se às medições
e observações, de modo que se atinjam conceitualizações melhores e mais
adequadas. Os enunciados da física se referem diretamente ao modelo construído
para esta finalidade, todavia esse modelo possui sempre, além de componentes de
razão (nossos entes teóricos e a simbologia que lhes associamos), que não
encontram correspondência direta com as coisas (nossos X ontológicos), sendo
referentes indiretos, outros componentes que estão diretamente associados a
observáveis como, por exemplo, os eclipses e os planetas, que são referentes
diretos. Para Maritain, como vimos, ocorre na física uma relação com o real,
porém indireta, pois a física não visa alcançar-lhe a essência. Vale a pena
56
Cf. MARITAIN, 1943, p.157.
Ciência e filosofia
53
transcrever um exemplo, ainda que extenso, porque exprime de modo gráfico o
que acabamos de expor:
Suponhamos um cientista fechado em seu laboratório, que trabalha com as
informações experimentais que recebe, e um dia chega a seu conhecimento a
existência de um dispositivo capaz de projetar seu próprio peso a uma altura
trezentas vezes superior à sua. Num primeiro momento não terá dificuldade em
imaginar esse dispositivo (para ele desconhecido) como uma espécie de catapulta
construída segundo os dados fornecidos, e irá precisando e corrigindo essa
imagem à medida que lhe cheguem novas informações. Se concebesse que esse
dispositivo está dotado de memória, quer dizer, que é capaz de modificar, à
medida que trabalha, sua maneira de funcionar, mudaria o projeto da estrutura do
dispositivo que havia desenhado para incorporar novos elementos. Quem está
fora do laboratório sabe que esse dispositivo existe e que se chama "pulga". O
cientista não o sabe, porém o modelo ou construção que recompõe sem cessar
(integralmente, se necessário for, no caso de uma "crise") apresenta a cada
instante a soma de todas as propriedades mensuráveis realizadas na pulga e
presentemente conhecidas por ele. Fica claro que ao criar sua construção fictícia,
porém fundamentada no real e sempre exata e rigorosamente determinada,
penetrará cada vez mais, pela via do mito e do simbólico, ao conhecimento da
natureza da pulga. Seria inexato dizer que ele não conhece essa natureza [ou
essência]. Não a conhece ontologicamente ou em si mesma [senão de forma
indireta]
57
.
Entre os termos utilizados por Maritain para assinalar o caráter construtivo
e simbólico do conhecimento físico-matemático, algumas expressões talvez nos
possam parecer estranhas. Referimo-nos, por exemplo, ao termo mito. Conquanto
Maritain não nos ofereça uma explicação detalhada do significado e do alcance
daquele termo em sua aplicação à física teórica, parece-nos que ele o utiliza,
remetendo-o à sua origem platônica
58
, para referir-se aos grandes sistemas
teóricos da física e aos entes teóricos com fundamento real.
59
Todavia, tal
conhecimento da realidade física por meio de mitos
60
se faz por verificação dos
mesmos, isto é, por meio de mitos que se conformam com as aparências, que
salvam os fenômenos.
Por fim, Maritain alerta que não se trata de um pragmatismo tal posição,
ou seja, a de requerer da ciência êxitos quantitativos em vez da verdade. Pela
definição escolástica da verdade -- adequação de nossas proposições aos fatos --,
57
MARITAIN, 1995, p. 173-174.
58
Cf. MARITAIN, 1995, p. 173.
59
Ibid., p.173.
60
Id.
Ciência e filosofia
54
uma teoria é "verdadeira" quando um sistema coerente e maximal de proposições,
em conjunto com sua organização simbólica -- teorias, modelos representacionais
e entes teóricos -- coincide, em todos os seus resultados numéricos, com as
medições que são tomadas do real. E é isto tão-somente que somos capazes de
conhecer sobre o real, pela ótica das ciências da natureza: seus aspectos e
propriedades mensuráveis. É importante observar que sua posição com respeito ao
alcance da ciência parece conduzi-lo ao encontro do realismo científico. No
entanto, sua recusa em sustentar que a ciência vise a descortinar-nos os
componentes últimos da realidade como ela é em si mesma, parece colocá-lo ao
lado de anti-realistas como Duhem, conquanto ambas as posições divirjam em
alguns pontos. Não é propósito deste trabalho precisar pormenorizadamente as
divergências entre a proposta de Maritain e as de alguns realistas e anti-realistas
científicos eminentes.
61
Portanto, as ciências dos fenômenos, como a física, a
química ou a biologia, visam apenas aos aspectos mensuráveis dos entes
sensíveis, enquanto que a filosofia da natureza visa aos aspectos ontológicos
desses entes.
61
Isto foi feito mais detalhadamente em nossa dissertação de mestrado. Cf. PETRÔNIO, 2004.
Ciência e filosofia
55
1.5
Análise ontológica e filosofia da natureza
Iniciemos por ressaltar que a análise ontológica do real sensível situa-se no
primeiro grau de visualização abstrativa, não se tratando de um conhecimento
puramente metafísico. Lembremos que a abordagem metafísica prescinde de toda
matéria, mesmo a matéria inteligível, isto é, a matéria universalizada bem como
da matéria que está indiretamente associada à abstração matemática por meio da
extensão e do número. No entanto, o objeto da filosofia da natureza permanece
nos limites do mundo sensível e subentende uma referência a este último, ainda
que tal objeto não seja ele mesmo perceptível nem sujeito à observação e
mensuração. Um exemplo que Maritain nos dá é o da qualidade cor:
Como objeto de um conceito, como objeto de uma idéia abstrata (a idéia de cor)
este objeto não corresponde a qualquer operação física a ser realizada; possui
referência a sensações experimentadas, porém à medida que é um objeto
inteligível não é um objeto sensível. Razão porque podemos dizer que, na análise
ontológica conduzida no primeiro grau de visualização abstrativa, consideramos
o ente (ser) com referência a dados sensíveis e observáveis, mas o intelecto
consulta estes dados de modo a neles buscar as razões inteligíveis que
transcendem a sensação. É por isso que o intelecto, ao atuar assim, chega a
noções como a de cor e, com maior razão ainda, a noções tais como substância
corpórea, qualidade, causa material ou formal, potência ativa; noções que,
embora relacionadas com o mundo observável, o designam objetos que por si
mesmos podem ser percebidos ou expressos numa imagem ou num diagrama
espaço-temporal. Não uma imagem possível para cor (a qual não é branca ou
vermelha ou verde, nem alguma cor particular).
62
Assim, podemos afirmar que, enquanto na análise empiriológica caminha-
se do observável ao observável, na análise ontológica caminha-se do visível ao
invisível, do observável ao não-observável. Necessário que se diga que esta
inobservabilidade do ontológico em nada se assemelha a inobservabilidade
empiriológica como a do operador hamiltoniano e a dos quarks, por exemplo. No
primeiro destes dois últimos casos, por se tratar de um puro ente de razão ou de
uma pura construção matemática, no segundo, por se tratar de uma
62
MARITAIN, 1951, p. 80.
Ciência e filosofia
56
inobservabilidade fenomênica positiva, isto é, os quarks estão “confinados” no
núcleo e não podem ser observados de modo algum, mas o poderiam caso
houvesse um mecanismo (por descobrir) que lhes suspendesse o confinamento por
algum intervalo de tempo mínimo. A inobservabilidade ontológica é negativa,
isto é, situa-se num outro plano, por assim dizer, que é o da inteligibilidade pura;
trata-se de um modo de ser da realidade natural que se manifesta material e
espaço-temporalmente, segundo a observabilidade e a mensurabilidade, mas que,
em si mesmo, não é observável ou mensurável. Normalmente, ocorre aqui uma
confusão conceitual que é necessário esclarecer. A inobservabilidade ontológica
pareceria tratar-se do mesmo tipo que encontramos nas ciências experimentais ao
qual se denomina inobservável em princípio
63
, como a geodésica percorrida por
uma partícula no espaço-tempo, por exemplo. No entanto, trata-se de um
equívoco, pois geodésicas, linhas de força de um campo ou outros tipos de
inobserváveis em princípio são objetos de mensuração e, portanto, quantificáveis
*
,
ao passo que a inobservabilidade de uma essência ou natureza não se desdobra
diretamente em algum tipo de conseqüência quantificável. Podemos afirmar, isto
sim, que tais inobserváveis da análise ontológica, como a forma substancial,
implicam conseqüências empiriológicas, a saber, uma certa configuração espaço-
temporal, um certo tipo de movimento, de mutação, uma certa propriedade como
carga, etc., todas quantificáveis. Não obstante em si mesmos tais objetos
ontológicos serem inobserváveis, em sua definição entram dados provenientes da
experiência, “fato que não devemos esquecer”,
64
de tal modo que sempre uma
referência indireta porém necessária aos sentidos nos conceitos próprios ao
primeiro grau de visualização abstrativa. Com efeito, isto caracteriza o gênero de
conhecimento deste grau: a referência sempre presente, ainda que indireta e
remota em certos casos, à experiência e à atividade dos sentidos
65
. Segue-se, por
conseguinte, uma distinção fundamental entre esses dois tipos de análise do real.
A análise ontológica busca acima de tudo uma essência ou natureza, que possui
uma certa constituição inteligível. Não obstante não logremos atingi-la em si
mesma, visamos o conceito, a noção abstrata; é por meio do conceito que obtemos
63
Cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 17.
*
Não em si mesmos considerados, claro, mas com respeito ao que implicam em termos
(conseqüências) observacionais.
64
MARITAIN, 1951, p. 81.
65
Ibid., p. 82.
Ciência e filosofia
57
uma essência inteligível cuja consistência interna não logramos atingir. A análise
empiriológica, por sua vez, não busca designar ou obter uma essência, porém
formulações que nos em possibilidades concretas de observação e medição.
Vimos então que há uma diferença específica entre o conhecimento que faz uso da
análise empiriológica (ciências da natureza) e o que faz uso da análise ontológica
(filosofia da natureza); mas, a despeito de ambos se situarem no primeiro grau de
visualização abstrativa, seus modos de apropriação do real físico são distintos.
Trata-se, portanto, de saberes especificamente diferentes. E como isso ocorre?
Vimos como, a partir do processo de separação da matéria -- que, na
linguagem escolástica, é o termo a partir do qual constitui-se o objeto de
conhecimento científico
*
-- obtemos os três gêneros ou graus de visualização
abstrativa. Ora, se tanto as ciências experimentais como filosofia da natureza
pertencem, ambas, pelo critério da abstração material ou pelo termo a partir do
qual se origina seu objeto, ao primeiro gênero de ciências, cujo objeto é o ente
mutável enquanto sensível (observável e mensurável), então o que as diferencia
especificamente, isto é, o que as situa formalmente como espécies distintas de
conhecimento científico é o termo para o qual o intelecto se dirige para
determinar seu objeto propriamente dito, ou seja, seu modo de definição, seu
modo típico de conceitualizar o objeto de conhecimento e de construir conceitos e
definições, ou, como afirma João de São Tomás, “o objeto formal e específico
das ciências é determinado não apenas por sua ascensão a partir da matéria, mas
também por sua descensão ao grau de determinação imaterial no qual um objeto é
considerado e tornado inteligível de modo determinado”
66
. Por conseguinte,
Se o princípio último de especificação para os diferentes tipos de conhecimento é
o modo de definir ou o modo com o qual as noções são construídas, então é
evidente que, na esfera genérica de inteligibilidade da primeira ordem de
abstração, as noções e definições resultantes tanto da análise empiriológica, na
qual tudo se resolve no observável, como da análise ontológica, na qual tudo se
resolve na inteligibilidade do ente, correspondem a tipos especificamente
distintos de conhecimento
67
.
*
Científico segundo a acepção ampla de Aristóteles, isto é, um conhecimento verdadeiro segundo
suas causas.
66
JOÃO DE SÃO TOMÁS, 1955, p. 561-562.
67
MARITAIN, 1951, p. 92.
Ciência e filosofia
58
Tendo em vista o exposto imediatamente acima, pedimos vênia a Maritain
para, fundamentados em sua exposição e defesa da filosofia da natureza como um
saber autêntico e autônomo em seu próprio campo, com o que concordamos
inteiramente, sugerir que a filosofia da natureza, da mesma forma que as ciências
da natureza, é igualmente uma ciência intermediária, e situa-se entre o primeiro e
o terceiro graus de visualização abstrativa. Ou seja, a filosofia da natureza, no que
concerne à via ascensional a partir da matéria, situa-se no primeiro gênero de
visualização abstrativa (física), porém quanto à sua aproximação do real físico
utiliza recursos e o modo de análise próprios ao terceiro grau de abstração
(metafísica), pois se dirige especificamente ao real físico para, à luz de princípios
próprios à elaboração metafísica, haurir deste real físico sua inteligibilidade
ontológica, estabelecendo conceitos e definições que pertencem propriamente à
elaboração metafísica. Com efeito, as noções de substância, acidente, qüididade,
ente, etc., largamente utilizadas na análise ontológica da natureza, pertencem
propriamente ao léxico metafísico, porém com significados e determinações
distintas, de acordo com os objetos de conhecimento a que se aplicam. Por
exemplo, a noção de substância utilizada em metafísica para o conhecimento dos
atributos e relações aplicáveis aos entes puramente espirituais, e a mesma noção
utilizada em filosofia da natureza para o conhecimento de propriedades e relações
aplicáveis às partículas elementares. Há, igualmente, um outro aspecto de relação
entre ambos os tipos de análise, que decorre do que os escolásticos consideravam
como ciências subordinantes e ciências subordinadas. Um tratamento completo
deste tópico encontra-se magistralmente exposto em João de São Tomás
68
; em
nosso caso, é suficiente dizer que o domínio das ciências empiriológicas, como a
física-matemática, é subordinado à matemática, tendo em vista que em sua esfera
própria de inteligibilidade se sujeita às regras de interpretação e de inteligibilidade
matemáticas. Isto é, a física-matemática (que é o caso principal desta dissertação)
é materialmente física, mas formalmente matemática. Conquanto não seja usual o
recurso a esquematizações em textos filosóficos, razões de esclarecimento levam-
nos a arriscar e traçar dois diagramas: a primeira figura reproduz
*
um esquema
68
Cf. JOÃO DE SÃO TOMÁS, op. cit. q.26 a.2.
*
Reproduz de forma simplificada o esquema proposto, o qual inclui outros pontos que não são
relevantes aqui.
Ciência e filosofia
59
sugerido por Maritain, situando as relações entre os graus de visualização
abstrativa e as ciências em discussão; a segunda figura introduz duas sugestões
nossas: a primeira, de tratar a filosofia da natureza como uma ciência
intermediária, subordinante quanto aos seus princípios de inteligibilidade da
natureza para as demais ciências do primeiro grau; a segunda, de prover um
domínio comum de inteligibilidade entre a física-matemática e a filosofia da
natureza, domínio este determinado pela matemática.
Como podemos observar no esquema anterior, as ciências da natureza, e
em especial a física-matemática, possuem uma atração pelo segundo grau de
abstração, a ele tendem quanto à elaboração nocional e a ele estão subalternadas
quanto às regras de interpretação e de construção simbólicas. Por outro lado, a
filosofia da natureza possui uma atração pelo terceiro grau de abstração, a ele
tende quanto à elaboração nocional e a ele está subalternada quanto aos princípios
de inteligibilidade dos entes. No entanto, por força do natural desenvolvimento
atingido pelas ciências dos fenômenos na compreensão empiriológica da realidade
física, sua riqueza e complexidade nocionais têm suscitado questões filosóficas
que ultrapassam seu domínio próprio de atuação e demandam conceitos e
interpretações de natureza ontológica. Exemplos deste tipo de “empuxo” do léxico
1
o
Grau
Ciências
da
Natureza
3
o
Grau
FÍSICA
METAFÍSICA
MATEMÁTICA
2
o
Grau
Filosofia
da
Natureza
Ciência e filosofia
60
empiriológico na direção de um léxico caracteristicamente ontológico são a
natureza do espaço-tempo e a natureza das conexões não-locais de entes da
realidade microfísica. É certo, ao longo da história da ciência foram
freqüentemente suscitadas questões de cunho filosófico. No entanto, temos, ao fim
do século XX, situações novas dadas pela sofisticação e complexidade dos
experimentos em física fundamental. Segue-se, portanto, que o conhecimento
empiriológico, ainda que necessário, não é mais suficiente
*
para abarcar o
complexo da realidade natural unicamente sob a dimensão quantitativa. Por onde
propomos um novo grau intermediário de conhecimento do real físico, uma
álgebra-ontológica, conforme o esquema a seguir:
Como podemos observar no esquema proposto, a demanda por uma
ontologia
para o universo físico pode ser preenchida, em alguns casos -- como o
desta dissertação --, a partir de um domínio comum nocional e interpretativo a
ambas as análises, empiriológica e ontológica. Este domínio nocional comum
*
Sob uma perspectiva puramente epistemológica.
Ontologia, neste trabalho, não possui o sentido que lhe vem sendo atribuído algum tempo
como sendo um conjunto de objetos básicos e suas relações, a partir do qual propõe-se conhecer
mais profunda e abrangentemente entes e processos naturais, segundo formulado por nossas
melhores teorias científicas. Justificaremos melhor este ponto de vista no capítulo segundo.
Ciências
da
Natureza
Onto
Álgebra
1
o
Grau
3
o
Grau
FÍSICA
METAFÍSICA
MATEMÁTICA
2
o
Grau
Filosofia
da
Natureza
Ciência e filosofia
61
sugere-se seja dado por uma reconstrução simbólica de certos princípios
metafísicos da realidade natural, em especial da teoria hilemórfica, que teremos
oportunidade de tratar detalhadamente no capítulo terceiro. Este novo tipo de
conhecimento intermediário entre o segundo e o terceiro graus de visualização
abstrativa é atraído pelo terceiro grau de abstração, a ele tende quanto à
elaboração nocional e a ele está subalternado quanto aos princípios de
inteligibilidade dos entes. Por outro lado, este grau intermediário possui uma
atração pelo segundo grau de abstração, a ele tende quanto à elaboração nocional
e a ele está subordinado quanto às regras de interpretação e de construção
simbólicas dos princípios de inteligibilidade dos entes, mas lhe é subordinante no
que se refere a esses princípios de inteligibilidade em si mesmos considerados.
Temos, assim, uma resolução ou alcance ao mesmo tempo ascendente
(ontológico) quanto aos princípios e descendente (lógico) quanto às regras de
interpretação simbólicas dos mesmos. Trata-se, portanto, de um léxico nocional e
regras interpretativas próprias de cunho lógico-metafísico.
Para sermos justos, devemos observar que algum tipo de intercurso entre
filosofia da natureza e física-matemática não passou despercebido de Maritain.
Para ele, se a reconstrução simbólica da realidade física oferecida pela matemática
conduzia à formulação de mitos
69
, então a postulação de mitos por parte da
filosofia da natureza com o intuito de harmonizar-se com os mitos bem-
estabelecidos da física-matemática poderia ser algo adequado, bem como a
própria teoria hilemórfica poderia ser objeto desses mitos. No entanto, julgava tal
empreendimento secundário, porquanto,
A filosofia da natureza ao incorporar em sua própria ordem os bem-
fundamentados mitos da física-matemática tornar-se-ia por sua vez uma fábrica
de mitos [...] Assim, embora não possa haver continuidade quanto à explicação
racional e compreensão das coisas entre as teorias físico-matemáticas e a filosofia
da natureza, uma continuidade secundária poderia ser estabelecida por meio de
um campo comum de imagens intelectuais
70
.
69
Porém, “mitos bem-fundamentados da física-matemática”, como dizia. Cf. MARITAIN, 1995,
p. 194.
70
Ibid., p. 194-195.
Ciência e filosofia
62
Duas observações a respeito do trecho acima: Em primeiro lugar, Maritain
não se deteve para analisar minuciosamente de que se constituiria um tal tipo de
intercurso; de fato, apenas um breve comentário em meio a livros, capítulos,
artigos, etc. que escreveu sobre filosofia da natureza. Em segundo lugar, poder-
se-ia ficar tentado a pensar, a partir dos comentários acima, que um domínio
comum de análise empiriológica e ontológica se reduziria ao intercurso de
símbolos e imagens aplicáveis a certos objetos de conhecimento -- como a
constituição última das partículas elementares, por exemplo --, em vez da
instituição de um genuíno grau conhecimento intermediário, como propomos,
empreendimento que não é, de modo algum, como teremos ocasião de mostrar
com o desenvolvimento desta dissertação, de natureza secundária.
Em que consiste, então, em linhas gerais, uma filosofia da natureza? De
um ponto de vista axiológico, seria a análise ontológica do real sensível,
resolvendo seus conceitos no que é inteligível em si mesmo, buscando atingir a
constituição "última" das coisas e as essências que estão presentes nos fenômenos;
é um conhecimento que assinala necessidades de inteligibilidade nas coisas que
nos são dadas pelo real sensível: a natureza do contínuo, do número, da
quantidade, espaço, movimento, tempo, substância corpórea, ação transitiva, vida
vegetativa e sensitiva, causalidade, etc. Como se pode observar, a ciência
moderna, iniciada com Galileu, Newton e outros grandes nomes, se separou,
felizmente, da filosofia da natureza e liberou-se da tarefa de buscar explicar o que
não lhe cabia: os aspectos ontológicos presentes nos fenômenos. Por isso,
aduzimos o seguinte comentário de Maritain:
Deve ficar claro que a essência das coisas sensíveis permanece, em sua maior
parte, oculta de nós. Quer dizer, em suas últimas determinações específicas;
abaixo do homem e das coisas humanas as realidades sensíveis o se revelam
para nós em sua especificidade. Podemos ter um conhecimento essencial de
certos objetos muito gerais tais como mencionamos: a vida vegetativa se opõe à
vida sensitiva, a vida se opõe à matéria inanimada, etc., mas essas são realidades
extremamente genéricas. Quando tencionamos atingir as distinções específicas e
as diversidades das coisas, não sabemos lhes descobrir a essência. Nossa
compreensão neste ponto é cega e temos que trabalhar simbolicamente. Por isso,
não outra ciência, nenhum outro conhecimento dos fenômenos naturais senão
aquele da ciência empiriológica [da física, por exemplo,] (o qual se efetua por
meio de símbolos) que se satisfaz em explicá-los em termos do observável [direta
ou indiretamente] sem buscar descobrir alguma essência. Esse conhecimento está
ancorado nas essências [das coisas], mas às cegas, sem as desvelar; ancora-se nas
últimas determinações específicas, mas sem descobri-las em si mesmas. Este
conhecimento o é filosófico, obviamente, porém, dele necessita a filosofia da
Ciência e filosofia
63
natureza, de forma a que o objeto ao qual se refere seja atingido com suficiente
completeza. Pois o objeto a que visa é a realidade sensível, e esta não é feita
apenas de objetos genéricos que mencionamos: espaço, tempo, vida, substância
corpórea, etc.; engloba a diversidade das coisas. Assim, como ciência, como
conhecimento, a filosofia da natureza solicita a complementaridade das ciências
experimentais, do conhecimento empiriológico que lhe é, contudo,
especificamente diferente. E isto claramente indica que a filosofia da natureza e
as ciências experimentais pertencem a uma mesma esfera genérica de
conhecimento [a que está conectada ao observável e mensurável]; também é
fundamentalmente distinta da metafísica. A metafísica não necessita ser
complementada pelas ciências dos fenômenos.
71
Gostaríamos de complementar o exposto acima com a seguinte
consideração: na verdade, continuam existindo, concretamente, os três gêneros
distintos do conhecimento: a física, a matemática e a metafísica. A física teórica
ou física-matemática, ou análise empiriológica, é a resolução ou análise do objeto
físico (sensível) em suas propriedades e atributos quantitativos, os quais podem
ser observados, quer direta ou indiretamente, e mensurados. Neste sentido, estatui-
se como uma “ciência média”, isto é, como uma ponte entre o domínio físico
(sensível) e o domínio matemático, sendo formalmente distinta de uma
perspectiva puramente empírica ou observacional do real sensível. Por sua vez, a
filosofia da natureza, ou análise ontológica, é a resolução ou análise do objeto
físico (sensível) em suas notas constitutivas essenciais ou puramente inteligíveis,
as quais não podem ser observadas, quer direta ou indiretamente, senão abstraídas
ou conhecidas em sua unidade e em seus princípios mais universais. Neste
sentido, estatui-se como uma “ciência média”, isto é, como uma ponte entre o
domínio metafísico e o domínio físico (sensível), sendo formalmente distinta de
uma perspectiva puramente metafísica do ente.
Assim, a filosofia da natureza e as ciências experimentais devem
complementar-se mutuamente, e um domínio interessante de cooperação prática é
aquele que se situa como grau intermediário entre matemática e a metafísica: o
domínio lógico-metafísico. Deve-se deixar claro, no entanto, que os princípios
diretores deste domínio são de ordem metafísica e, por isso, este grau
intermediário se constitui numa elaboração de filosofia da natureza; apenas dá-se
que a forma de apropriação daqueles princípios é matemática (algébrica).
71
MARITAIN, 1951, p. 96-97.
Ciência e filosofia
64
Ademais, tal conhecimento deve voltar-se para certos princípios metafísicos
perfeitamente unidos ao real físico, e um caso emblemático é a teoria hilemórfica.
Esta requer, no entanto, que consideremos a natureza ou essência material dos
entes. É do que trataremos a seguir.
2
Matéria
O propósito deste capítulo não é prover uma exposição sistemática e
exaustiva sobre a matéria, quer a partir de um ponto de vista epistêmico quer sob
sua estrutura metafísica. Serão expostos primeiramente alguns enfoques
contemporâneos que julgamos oportuno abordar segundo a perspectiva
epistêmica, bem como apresentar, em segundo lugar, uma síntese do pensamento
de Tomás de Aquino a respeito da estrutura ontológica da matéria, segundo uma
perspectiva que difere da usualmente aceita como interpretação do pensamento do
Aquinate acerca do conceito de materia prima, mas que, em nosso entender,
recupera o sentido original que lhe quis imprimir Tomás, a qual servirá de
sustentação para o modelo algébrico com o qual proporemos abordar sua natureza
potencial. No que se refere à perspectiva científica ou epistêmica
, na primeira
seção do capítulo, exporemos argumentos de Hermann Weyl, Werner Heisenberg,
Erwin Schödinger, Wolfgang Smith e Marc Lange. Em seguida, na segunda
seção, sustentaremos fundamentalmente, baseados em inúmeros textos de Tomás,
especialmente no De Potentia q.4, que a matéria primeira, ser em potência,
possui uma essência entitativa mínima, pela qual se afirma e fundamenta sua
potência, e que, por meio da constituição sui generis dessa essência são extraídas
as formas específicas da natureza, entre as quais aquelas que são as mais
elementares da estruturação espaço-temporal dos entes.
Alguns textos, tanto do De Potentia quanto da Suma Teológica, nos
quais o Tomás de Aquino sustenta que a materia prima não foi um ser criado
absolutamente potencial, mas possuiu em seu interior formas elementares, que
são essenciais para a consecução dos objetivos desta dissertação, seguem:
Estamos cientes de que epistêmico usualmente apresenta o sentido de “reflexão filosófica acerca
de”, ou seja, se trata comumente de estabelecer uma perspectiva acerca do alcance ou papel
desempenhado por uma teoria em conjunto com a justificação de sua aceitação pela comunidade
de especialistas. No entanto, em contraposição à elaboração propriamente ontológica ou
metafísica do real, as construções propriamente científicas (hipóteses, modelos, teorias, métodos,
entes teóricos, etc.) são construções que possuem caráter epistêmico, isto é, nos asseguram um
conhecimento de natureza quantitativa acerca do real, mas não de natureza ontológica. Vimos que,
segundo a proposta de Maritain acerca do alcance das teorias científicas, o que chamamos de
epistêmico (no sentido de científico), foi convenientemente denominado por ele empiriológico.
Matéria: ciência e ontologia
66
Se Deus produzisse um ser meramente potencial ele faria menos do que a
natureza, que produz entes atuais. A perfeição de toda ação antes depende do
termo para o qual ela tende do que do qual se origina. Ademais, o argumento ele
próprio [Deus pode fazer mais do que a natureza; bem, a natureza faz um ser
potencial ser atual; portanto, Deus pode fazer com que aquilo que é um ser seja
simplesmente potencial e, portanto, ele poderia produzir uma matéria sem forma
(argumento 3 contra Agostinho)] envolve uma contradição, a saber que algo seja
produzido que seja pura potência, visto que o que é produzido precisa ser na
medida em que é (Física VI), e o que é puramente potencial simplesmente não
é
72
.
As palavras de Agostinho não significam que a matéria estava em tal potência
para as formas elementares que não tivesse nenhuma delas, mas que em sua
essência não continha formas atuais [substanciais] senão que está em potência a
todas elas
73
.
Portanto, deve-se dizer que a materia prima nem foi criada completamente sem
forma, nem com forma comum, mas com formas distintas [as formas
elementares]
74
.
As diversas formas elementares estavam nas diversas partes da matéria que,
todavia, foi dita ser informe porque ainda não havia recebido as formas dos
corpos mistos, para os quais as formas dos elementos estavam em potência e
porque os elementos ainda não estavam adequadamente situados para a produção
de tais corpos, como já foi dito.
75
E em vários outros trechos tanto da Suma como do De Potentia Dei,
bem como de outros, que serão perfilados convenientemente ao longo deste
trabalho à medida que expusermos uma perspectiva nova acerca da ontologia da
matéria em Tomás de Aquino e perfeitamente coadunada com as descobertas da
física contemporânea, o Aquinate sustenta, ao nosso ver, que a matéria primeira
não era absolutamente informe, ou seja, desprovida absoluta e completamente de
toda forma, mas apenas de toda forma substancial ou específica, e que continha
em seu interior (em sua essência) as formas dos elementos
, mediante as quais
foram eduzidas, por meio de operações de composição e transmutação dessas
formas elementares em seu interior, e segundo a ordem do mais imperfeito para o
72
TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad(3 contra Agostinho).
73
Ibid., ad. (8 contra Agostinho).
74
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a1 sol.
75
TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad13.
Ou formas elementares.
Matéria: ciência e ontologia
67
mais perfeito
76
, todas as formas substanciais (em ato) naturais que estão imersas
na matéria, menos a forma humana, criada ex-nihilo diretamente por Deus.
Ademais, formas elementares não significam as formas dos quatro
elementos (terra, água, fogo e ar), na medida em que estes são elementares para a
formação dos compostos, haja vista serem entes existentes no espaço-tempo e,
por isso, dotados de formas específicas ou substanciais próprias a cada um.
Forma elementar é um certo ente mínimo que informou a materia prima desde sua
criação e, portanto, trata-se de uma razão seminal da matéria. Quantas foram?
Tomás de Aquino não se pronuncia a respeito, apenas que eram em número finito
como veremos adiante. Trata-se esta tese da existência de formas elementares no
interior da matéria primeira de uma questão dificílima, no entanto temos de
sustentá-la por duas razões: a primeira, porque Tomás a sustenta, a despeito de
notoriamente não ser esta a interpretação usual; em segundo lugar, porque, como
dissemos, é perfeitamente ajustada à realidade factual de descobertas realizadas
pela física contemporânea; aliás, o realismo aristotélico-tomista assim demanda, a
saber, que os conceitos que temos do mundo provêm do processo de visualização
abstrativa (do qual tratamos no primeiro capítulo), o que implica dizer que, ao
revolvermos uma estrutura (digamos) sutil da realidade com uso de recursos
disponíveis à experimentação e observação suficientemente refinados, devemos
ser capazes de coadunar nossas descobertas com os princípios metafísicos dessa
estrutura.
Segundo Roberto Torretti
77
, o conceito de uma matéria criada por
Deus, a partir do nada, consistindo de um único conteúdo universal, foi defendida
por Galileu, Descartes e Newton, com exceção de pequenas diferenças, dado que
este conceito possibilitava o tratamento matemático dos fenômenos físicos. Ora,
de acordo com Robert Boyle, “há uma única matéria universal comum a todos os
corpos, que é uma substância extensa, divisível, e impenetrável”.
78
Mais ainda:
Boyle sustentava que esta mesma matéria universal responde pela diversidade dos
corpos
*
através dos diversos movimentos que diferentes partes da matéria
76
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a1 ad(contra 1).
77
TORRETTI, 1999.
78
BOYLE apud TORRETTI, op. cit., p. 14.
*
Diferentemente de Aristóteles e Tomás de Aquino, que entendiam a diversidade dos corpos pela
diversidade das formas. Bem explicado aqui: diversidade dos corpos significa espécies
diferenciadas de seres materiais. A multiplicidade de indivíduos pode existir numa mesma dada
Matéria: ciência e ontologia
68
possuem entre si. Assim, a divisão da matéria em partes de diferentes tamanhos e
formas “é o efeito genuíno do movimento determinado de várias formas, pois a
experiência nos mostra [...] que esta divisão da matéria é freqüentemente realizada
em corpúsculos ou partículas [...] diminutas e insensíveis”
79
.
Por isso, argumenta Torretti, Galileu pôde afirmar que o universo é como
um livro aberto em linguagem matemática, lido por meio de triângulos, círculos, e
outras figuras geométricas, sem as quais não seria possível compreendê-lo; daí
também se situar a conhecida distinção entre qualidades “primárias” (número,
figura, movimento), como objetivas e reais, e qualidades secundárias (cor, aroma,
textura, etc.), como subjetivas e ideais. No entender de Torretti, o conceito
moderno de matéria que surge com Boyle, Galileu, Descartes et alii, de certa
forma possibilitou o emprego de conceitos e métodos matemáticos na descrição e
no entendimento dos fenômenos, pois esta matéria torna-se similar ao éter dos
corpos celestes, o qual, por sua estabilidade, oriunda das “formas”, poderia ser
descrita com o aparato matemático existente então. Ao nosso ver, isso faz sentido,
pois os escolásticos, como Tomás de Aquino, classificavam a astronomia como
“ciência média”
80
, a saber, ciência cujo objeto material eram os corpos celestes,
feitos do quinto elemento, portanto imutáveis e passíveis de descrição estável, e
cujo objeto formal
*
era a matemática, mais especialmente a geometria, cujos
conceitos universais e eternos poderiam ser perfeitamente aplicáveis às formas
imutáveis dos corpos celeste. Ora, continua Torretti, se a matéria “cá-embaixo”,
no mundo sublunar, também se constitui de um substrato universal, que se
conserva no movimento, e sendo este aquilo que define os corpos, por meio da
disposição de partes e corpúsculos, nada mais razoável do que aplicar os conceitos
matemáticos, também oriundos especialmente da geometria, a esta matéria
universal e a seus movimentos intra e intercorpusculares.
forma, mas, neste caso, sua pluralidade decorre da matéria assinalada pelas dimensões (veremos
mais adiante este conceito).
79
TORRETTI, op. cit., p. 19 et p. 145.
80
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, p. 115-127.
*
Em linhas gerais, o objeto material é aquilo mesmo que se deseja estudar, o input, por assim
dizer, o dado, o fato; objeto formal é o mecanismo de apropriação, a perspectiva e o método à luz
do qual o objeto material é visto, revolvido e compreendido.
Matéria: ciência e ontologia
69
Por conseguinte, nada mais natural esperar como, de fato, ocorreu que
conceitos e métodos matemáticos fossem formalmente aplicados a esta matéria
universal, objeto material da nova física (ou da nova ciência dos fenômenos).
Por sua vez, Descartes, segundo Torretti, foi aquele que possivelmente
mais contribuiu para o estabelecimento e a fixação do conceito contemporâneo de
matéria: matéria como uma pura extensão inerte; extensão em comprimento,
largura e profundidade
81
, cuja divisão em partes, bem como os conceitos
associados (número, figura, etc.) são as únicas idéias que podemos conceber, de
forma clara e distinta, a respeito das mesmas.
81
Cf. TORRETTI, op. cit., p.17.
Matéria: ciência e ontologia
70
2.1
O enfoque epistêmico (científico) da matéria
*
Iniciamos nossa exposição do enfoque epistêmico com a proposta de
Hermann Weyl.
82
Para este autor, matéria denota a substância do mundo, a qual
está submetida à “lei da conservação da matéria”, a saber, qualquer quantidade de
matéria permanece constante em qualquer mudança. Ou seja, a matéria, tomada
como algo substancial quantificável, é um invariante nas interações físicas. Por
outro lado, físicos como Faraday e Maxwell propuseram uma nova categoria da
realidade
83
. Esta nova categoria a que se refere Weyl é o conceito de campo.
No
entanto, para o autor, tal substancialidade é redutível apenas ao que é
empiricamente verificável
84
, visto que nosso conhecimento acerca da realidade
apresenta-se sob um duplo aspecto: em primeiro lugar, não qualidades reais
nos objetos da experiência, ou seja, as chamadas “qualidades secundárias” são
subjetivas, restando apenas tratar aquilo que é matematizável
; em segundo lugar,
espaço e tempo, e tudo que neles está contido, apresenta-se como um fenômeno
85
.
Portanto, o acesso ontológico a qualquer conteúdo constitutivo da matéria fica
bloqueado, restando tão-somente o acesso epistemológico sob as condições
estritas da física-matemática. Segue-se daí que a definição de matéria assume um
aspecto eminentemente matemático, a saber, que sua medida, a massa, é reposta
pela energia associada ao corpo: “inércia é uma propriedade da energia”.
86
Neste
caso, segundo Weyl, a inércia de um corpo é causada por sua energia potencial.
*
Epistemologia, neste trabalho, é o empreendimento intelectual que busca o conhecimento do que
os escolásticos denominavam “causas segundas”, usualmente compreendidas como as causas de
natureza material e eficiente, necessárias para dar conta da realidade física em seus detalhes. Neste
sentido, epistêmico retoma a acepção aristotélica original de “conhecimento certo segundo as
causas”, ao mesmo tempo em que caracteriza a natureza do empreendimento científico moderno.
82
Cf. WEYL, 1952.
83
Cf. WEYL, op. cit., p. 1-2.
Weyl não esclarece se o termo categoria procede de Aristóteles, da mesma forma com que se
refere a substância sem precisar claramente o sentido; possivelmente Weyl tinha em mente o
esquematismo kantiano, haja vista que a exposição inicial que faz acerca de espaço e tempo é
claramente fundamentada em Kant, ou seja, espaço e tempo como formas puras a priori do sujeito
cognoscente.
84
Cf. WEYL, op. cit., p.5.
Esta formulação que separa o acesso à realidade material dos corpos em dois aspectos, um
objetivo, as qualidades primárias, a figura, a extensionalidade, o movimento, etc., e outro,
subjetivo, as qualidades secundárias, a cor, a textura, a fragrância, etc. remonta a Descartes e foi
sustentada pelos empiristas ingleses.
85
Cf. WEYL, op. cit., p.4.
86
Cf. WEYL, op. cit., p.202.
Matéria: ciência e ontologia
71
Sendo m o valor da massa, medida da quantidade de matéria ou inércia do corpo,
E a energia potencial, então,
m = E/c
2
, em que c é a velocidade da luz. (2.1)
Assim, continua o autor, “obtém-se uma visão nova e puramente dinâmica
da matéria”.
87
Ora, Weyl preocupa-se a esta altura em especificar as condições
epistêmicas de acesso à matéria, através de uma definição dinâmica que nos
permita esclarecer algo sobre a substancialidade das partículas atômicas
*
,
concluindo que:
[Tais partículas, como por exemplo, o elétron] não mais se nos aparece como uma
pequeníssima região [do espaço-tempo] distintamente separada do campo [...
sendo] um “nó de energia” que se propaga no espaço vazio de uma forma não
diferente do que uma onda o faz na água avançando sobre a superfície do mar;
não qualquer “única e mesma substância” de que [as partículas] sejam
compostas em todos os momentos. Há apenas um potencial
88
.
O problema torna-se então saber porque o campo apresenta tal estrutura
“granular”, ou seja, porque é constituído de “nós de energia” -- a saber, as
partículas -- que “preservam sua energia e seu momentum ao passar daqui para
acolá (embora não permaneçam totalmente inalteráveis, retêm sua identidade num
grau extraordinário de precisão) [...] aqui repousa o problema da matéria [grifo do
autor]”.
89
Vemos, portanto, que Weyl propõe uma concepção de matéria que está
associada intimamente à existência de um potencial de energia de um campo e,
por conseguinte, a matéria é algo cuja natureza é atômica. Prossegue,
contundentemente, “não é o campo que requer a matéria como sua portadora de
modo a ser capaz de existir por si mesmo, antes é a matéria que, ao contrário, é
um produto do campo [grifos do autor]”
90
, ou seja, o campo é aquilo que sustém a
matéria, à qual temos acesso por meio de nossos órgãos sensoriais.
87
Id.
*
Ou subatômicas; não perda de generalidade, pois a abordagem aplica-se, sem mais, a
neutrinos, quarks, assim como aos diversos mensageiros de campo, como bósons, glúons, etc.
88
Ibid., p. 202-203.
89
Ibid., p.203.
90
Id.
Matéria: ciência e ontologia
72
Assim, Weyl nos propõe, por conseguinte, uma lei operativa: a matéria
deve ser compreendida por meio de uma lei de conservação do campo, lei esta que
se escreve sob a forma de um tensor de distribuição de tensões (tensões do campo,
a bem dizer), ou tensor energia-momentum,
0
i
k k
Γ =
*
. (2.2)
Este tensor, no espaço-tempo, pode ser apresentado sob a forma matricial,
00 01 02 03
10 11 12 13
20 21 22 23
30 31 32 33
Γ Γ Γ Γ
Γ Γ Γ Γ
Γ Γ Γ Γ
Γ Γ Γ Γ
, em que a componente
00
Γ
é um escalar que representa a densidade de energia;
[
]
[
]
01 02 03 10 20 30
e
Γ Γ Γ Γ Γ Γ
são vetores de fluxo de energia que,
junto com a matriz de pressão de energia,
11 12 13
21 22 23
31 32 33
Γ Γ Γ
Γ Γ Γ
Γ Γ Γ
, representam a distribuição de energia (ou tensões) no campo. Para ilustrar o que
estamos apresentando, vamos supor que estamos tratando com tensões num fluido
qualquer adiabático
, então o tensor de energia (tensões) se apresenta sob a
seguinte forma,
*
Para compactar a notação utilizamos
k
em substituição à notação usual
k
x
, tendo como
suposto que a derivada dá-se com respeito ao k-ésimo grau de liberdade, expresso pela coordenada
k
x
.
Ou seja, um fluido que esteja isolado com respeito ao meio circundante, o que implica que não
ocorrem trocas de calor entre o fluido e o meio.
Matéria: ciência e ontologia
73
0
0 0 0
0 0 0
0 0 0
0 0 0
p
p
p
µ
haja vista que o fluxo de energia é nulo (o fluido é adiabático) e que a pressão p se
distribui uniformemente na direção normal a cada elemento infinitesimal de
fluido. Sendo
0
e
p
µ
constantes, é fácil ver que
0
i
k k
Γ =
e que, portanto,
representam a lei de conservação de energia ou matéria, tratando-se de nosso
acesso epistemológico a esta última. Ora, este acesso, descrito pelas equações de
conservação apresenta-se sob uma forma quantitativa, expressa por equações da
física-matemática, e nada nos informa acerca da natureza do campo ou de seus
“nós de energia”. A rigor, sequer Weyl aborda essa questão, daí poder asseverar
que “a idéia de uma existência substancial foi, finalmente, posta de lado”.
91
Ademais, para que nosso acesso seja tão-somente epistemológico, o cenário no
qual os fenômenos relativos a campos ocorrem é um mundo quadridimensional,
ou seja, espaço e tempo estão indissoluvelmente unidos, a saber, trata-se “de um
continuum quadridimensional, no qual não [como entidades distintas] espaço e
tempo
92
. Mais ainda: a organização geométrica do espaço-tempo é determinada,
e igualmente determina, a distribuição de matéria no mundo, representada pelo
tensor energia-momentum descrito acima. Podemos asseverar que, não apenas
para Weyl no transcurso da primeira metade do século XX, mas também para um
certo contingente de físicos e filósofos da atualidade
*
, o conhecimento acerca dos
fenômenos materiais envolve tão-somente uma abordagem epistêmica da matéria,
91
Ibid., p. 204. Esta afirmação merece uma complementação: Weyl havia anteriormente
apresentado a matéria como substância do mundo; no entanto, nesta citação parece que ele rejeita
tal substancialidade. Todavia, não contradição aqui: a matéria, para Weyl, é uma manifestação
do campo, que passa a ser a substância do mundo, com o que fica rejeitado o antigo conceito de
corpo como substância, haja vista que o campo passa a ser o verdadeiro substrato da realidade. E a
matéria, que é campo, continua a ser a substância, agora sob uma outra perspectiva, a do campo.
92
Ibid., p. 217.
*
Por exemplo, entre os físicos, Stephen Hawking, de Cambridge, e Mário Novello, ex-diretor da
Escola Brasileira de Gravitação e Cosmologia do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, CBPF, de
reconhecimento internacional; e, entre os filósofos, Bas van Fraassen, de Princeton, e Silvio
Chibeni, do Centro de Lógica e Epistemologia da Ciência da Unicamp, com inúmeras publicações
internacionais a respeito de uma epistemologia realista para a física.
Matéria: ciência e ontologia
74
expressa por leis e equações de conservação relativas a campos ou partículas. Isto
poderá será averiguado no decorrer da exposição acerca do estatuto da matéria.
Da mesma forma que Weyl, Werner Heisenberg
93
preocupa-se com os
aspectos filosóficos referentes à natureza da matéria por entender que ressurgem
antigos problemas, suscitados pela nova física, que pareciam estar inelutavelmente
solucionados pela ciência clássica; ou, segundo afirma,
[Problemas] referentes à essência da matéria ou, mais exatamente, à velha
questão dos filósofos gregos de como é possível reduzir a princípios simples a
variedade e a multiplicidade dos fenômenos que envolvem a matéria, e assim
torná-los inteligíveis
94
.
Especificamente, a natureza última da matéria, para os gregos atomistas,
residia em sua constituição “particular”: partículas indivisíveis, imutáveis, eternas,
dotadas apenas de uma extensão mínima, sem cor, sabor, textura, etc. Baseados
nessas partículas diminutas constituíam-se os corpos macroscópicos, bem como se
originavam os fenômenos associados ao caráter material (e extensional) dos
corpos. Em última instância, “o que existe” são os átomos dotados de mínima
extensão corpuscular. Não obstante esta proposta parecer ser razoável como
explicação da natureza da matéria, Heisenberg nos chama a atenção para o fato de
que, para Platão, tais corpúsculos não são senão Idéias cujas figuras e dimensões
estão associadas às formas geométricas dos quatro elementos de Empédocles: Ar,
Terra, Água e Fogo. Assim, ao elemento Terra está associado o Cubo, como sua
constituição geométrica ideal; ao Fogo, o Tetraedro; ao Ar, o Octaedro; e, à Água,
o Icosaedro.
*
No entender de Heisenberg, isto redunda num idealismo que
reivindica a simetria matemática como constituinte último da realidade material, o
qual se opõe ao materialismo corpuscular dos átomos
95
.
93
Cf. HEISENBERG, 2000, p. 9-27.
94
HEISENBERG, op. cit., p. 10.
*
Neste ponto, Heisenberg introduz, ainda que en passant, o problema dos entes matemáticos como
mediadores entre o mundo sensível e o inteligível. ARISTÓTELES, The Metaphysics, III c2 20-
30, se refere a este problema como o dos “intermediários”. Uma discussão bastante esclarecedora
sobre este papel reservado aos entes matemáticos, neste caso, os geométricos, como mediadores
entre o mundo sensível e o inteligível, encontra-se em CATTANEI, E., Entes Matemáticos e
Metafísica, São Paulo: Loyola, 2005, p. 279-281. Os quatro sólidos intermediários propostos por
Platão, como “formas” dos elementos primordiais, encontram-se no Timeu, 53C-56C; e é essa
proposta platônica que Heisenberg retoma no texto em análise.
95
Ibid., p. 10-12.
Matéria: ciência e ontologia
75
Por outro lado, vimos, com Weyl, que o campo é proposto como a
realidade basilar do mundo, e não os corpúsculos. Aqui, Heisenberg propõe-nos
um passo além, haja vista que o campo, a partir dos trabalhos desenvolvidos pelos
físicos Max Born, Kramers e Slater, também define a densidade de probabilidade
da ocorrência de eventos espaço-temporais associados a corpúsculos -- no caso, os
corpúsculos são associados a nós de energia do campo, como vimos acima. Dessa
forma, a natureza corpuscular da matéria pode ser interpretada, segundo
Heisenberg, como sendo uma,
Formulação quantitativa do conceito de dynamis, possibilidade, ou na versão
latina posterior, potentia, [que] na filosofia de Aristóteles [... significa] meio
caminho entre a realidade maciça da matéria e a realidade intelectual da idéia ou
imagem.
96
Neste trecho surpreendente, Heisenberg tenciona recuperar o conceito
aristotélico de potentia, indicando-nos que há, nos fenômenos da natureza, uma
capacidade de emergência de fatos não previamente determinados, isto é, é posta
em questão a “inequívoca determinação dos eventos”
97
. Reconhece, assim, que
nossas teorias são representações da realidade no sentido de que provêem uma
espécie de interface entre nós e os fenômenos naturais. Destarte, atenta para o fato
de que matéria, interpretada no sentido da física clássica como algo constituído de
partículas elementares, supõe uma abstração do concreto -- tal como fazemos na
física clássica com respeito aos objetos comuns da realidade -- e, portanto, “se faz
impossível atribuir às partículas elementares [...] existência no sentido genuíno
[nem] considerar [a matéria] como ‘verdadeiramente real’”;
98
a seguir, acrescenta
às suas observações acerca da realidade da matéria que:
96
Loc. cit. A propósito, GUÉNON, 1972, p. 25-32, alerta para o fato de que o que os escolásticos
designam por materia não deve, sob nenhuma hipótese, ser identificado com a “matéria”
(“matter”) dos modernos (particularmente o significado que o termo passou a ter a partir de
Descartes e, mais precisamente, com a edição dos Principia de Newton). Guénon argumenta que
mesmo que “admitamos possa materia tornar-se ‘matéria’ (‘matter’) em certos casos especiais,
ou ainda, para ser mais preciso, que a mais recente concepção possa ser ajustada para o significado
mais antigo, materia no entanto inclui muitas outras coisas ao mesmo tempo, e são essas outras
coisas que devem ser claramente distinguidas de ‘matéria’ (‘matter’)”.
97
HEISENBERG, 2000, p.17.
98
Ibid., p. 20.
Matéria: ciência e ontologia
76
Não podemos, portanto, evitar a conclusão de que a nossa velha representação da
realidade já não é aplicável ao campo do átomo e que nos enredaremos em
abstrações assaz intrincadas se tentarmos descrever os átomos como aquilo que é
verdadeiramente real. Basicamente falando, podemos dizer que o próprio
conceito de “verdadeiramente real” já foi desacreditado pela física moderna”
99
.
Neste ponto, gostaríamos de tecer algumas considerações a respeito do
que Heisenberg denomina potentia, reivindicando sua proximidade com o mesmo
conceito encontrado em Aristóteles. Vejamos, então, como Aristóteles define a
acepção de potência (potentia) que convém ao nosso uso em física,
Potência significa a fonte em geral de mudança ou movimento em uma outra
coisa, ou na mesma coisa enquanto outra; ou a fonte de algo ser movido ou
mudado por uma outra coisa, ou por si mesma enquanto outra (posto que
denominamos algo como capaz de ser afetado em virtude daquele princípio pelo
qual algo passivo é afetado de algum modo; algumas vezes se não é de nenhum
modo afetado, outras vezes não o é com relação a qualquer afecção, mas apenas
se é mudado para melhor [...]. Logo, significa aquilo que contém uma fonte de
movimento ou mudança (pois mesmo o que é estático possui potência em certo
sentido) que ocorre em uma outra coisa, ou em si mesma enquanto outra.
100
Como, então, a acepção aristotélica acima se vincula à que Heisenberg
postula para os entes micro-físicos? Antes de responder a esta pergunta, que
deixaremos a encargo do físico, matemático e filósofo Wolfgang Smith,
gostaríamos de ponderar o seguinte: podemos dizer que Heisenberg talvez tenha
sido o primeiro físico contemporâneo a chamar a atenção para o conceito de
potência no sentido aristotélico. Mas, sem sombra de dúvida, a mecânica quântica,
desde seu início, continha o germe desta assimilação heisenberguiana, na
medida em que trabalhava com o conceito de potencialidades, expresso pela
associação, realizada por Max Born em 1928, entre a amplitude de onda
( )
x
ψ
e a
densidade de probabilidade de encontrarmos a partícula entre as coordenadas
e
x x dx
+
, bem como a proposição de que o estado expresso por
( )
x
ψ
na
verdade é uma superposição de estados
1 2
( ), ( ),..., ( )
n
x x x
ψ ψ ψ
, do qual
somente conhecemos um determinado resultado (um auto-estado) quando
99
Ibid., p. 21.
100
ARISTÓTELES, The Metaphysics, V c12 1-5.
Matéria: ciência e ontologia
77
interagimos com o objeto a ser medido (a partícula). Parece-nos “natural”
Heisenberg ter associado uma superposição indefinida de estados ao conceito de
potência, posto que podemos interpretar a atualização do estado indefinido ψ(x)
em um dos auto-estados finais como algo que resulta da interação do instrumento
de medição com a partícula medida. Voltemo-nos agora para a formulação, a
nosso ver bastante clara e sucinta, que Wolfgang Smith oferece do conceito de
potência em Heisenberg, a saber, sob uma ótica puramente epistêmica:
Considere a representação de um vetor de estado como uma soma ponderada de
autovetores associados a um determinado observável
*
. Cada autovetor
corresponde a um auto-estado, e assim a um resultado possível de um
experimento real. Representa assim uma certa possibilidade realizável
empiricamente, cuja probabilidade é de fato determinada pelo peso com o qual
aquele autovetor ocorre na soma dada
. O vetor de estado ele próprio, como soma
ponderada de autovetores, pode ser visto, conseqüentemente, como um conjunto
ou síntese das possibilidades em vista. E caso se suponha que (como fizemos)
que o vetor de estado pode ser expresso como uma soma ponderada de
autovetores para cada um e todos os observáveis, então ele se constitui, como
prova do que afirmo, numa síntese de todos os possíveis resultados para cada
medição concebível que pode ser conduzida no sistema físico dado.
101
Ora, segundo foi visto, o próprio conceito de realidade, no caso de entes
submicroscópicos, torna-se problemático para Heisenberg, o que é claramente um
impacto conceitual relevante suscitado pela mecânica quântica, mas, por outro
lado, algo perfeitamente admissível do ponto de vista epistemológico, se tivermos
em conta que, em apoio à posição de Heisenberg,
A mecânica quântica não nos fornece uma descrição da “realidade” (o que quer
que este termo possa significar), mas parece responder à questão que é
operacionalmente significativa: quais são as correlações entre observações
subseqüentes ou percepções. Se uma teoria restrita desta forma satisfizer a
alguém e se se acredita que seja aplicável a todos os fenômenos, então se pode
considerá-la satisfatória
102
.
*
Para definir grandeza obervável, podemos dizer que se trata de “uma grandeza que pode ser
medida, como a polarização linear de um fóton numa dada direção, é observável, mas o resultado
de uma medida não precisa ser ‘sim’ ou ‘não’, como numa observação binária. A energia de um
fóton, por exemplo, é uma grandeza observável, e o resultado pode ser um número real 0. Por
outro lado, é condição necessária de observabilidade que o resultado da observação seja um
número real”, tal como se encontra em NUSSENZVEIG, 1998, p. 298.
Vale relembrar que a soma dos quadrados dos valores absolutos dos pesos é igual a 1 (100% de
probabilidade), condição que sempre pode ser obtida nos casos analisados, multiplicando-se cada
peso por um fator numérico adequado diferente de zero.
101
SMITH, 1995, p. 54-55.
102
WIGNER, 1973, p. 377. Os grifos são nossos.
Matéria: ciência e ontologia
78
Mais ainda: seja o que for esta realidade material subjacente aos
fenômenos físicos (possivelmente sua causa), a formulação de seus constituintes
últimos por meio de partículas, para o que nos chama a atenção Heisenberg, ou
por meio de campos, como sugere Weyl, se apresenta sob certos aspectos de
arbitrariedade
*
. A propósito da abordagem da matéria por meio de campos, ao
expor a situação com a contemporânea teoria quântica de campos (QFT), Steven
Weinberg sustenta que a perspectiva epistêmica correta a ser adotada supõe uma
escolha a ser feita entre partículas e campos:
Não se deve dizer que partículas sejam mais fundamentais do que campos.
Durante muito tempo [após 1950] supôs-se em linhas gerais que as leis da
natureza tomavam a forma de uma teoria quântica de campos. Principio este livro
com partículas, não porque sejam mais fundamentais, mas porque o que
conhecemos sobre partículas é mais certo, mais diretamente derivável dos
princípios da mecânica quântica e da relatividade [...] A teoria subjacente [no
entanto] poderia não ser uma teoria de campos ou de partículas, mas talvez algo
bastante diferente, como cordas
103
.
Ou seja, temos ainda alternativas, como uma teoria de cordas, que supõe
ser a matéria constituída, em última instância, por minúsculas cordas extensas e
vibrantes. Como quer que seja, Heisenberg sustenta sua posição de descrença
quanto à existência de estruturas elementares reais que possam ser univocamente
descritas pela ciência, isto é, que os objetos materiais da realidade nada mais
seriam do que formas e simetrias matemáticas
104
. Sem dúvida, Heisenberg
postula uma platonização da física, ao menos com respeito aos seus constituintes
mais elementares, ou como se denomina, os building blocks. Mas, então, se os
objetos elementares da realidade nada mais são do que “formas e simetrias
matemáticas”, então tais formas e simetrias encontram-se hipostasiadas no real;
neste caso, o “real” seria geométrico. Eis aqui, de volta, ainda que sutilmente
insinuada, a res extensa de Descartes! Não há alternativa para a proposta de
*
Arbitrário no sentido de escolha, isto é, a matéria se nos apresenta sob certas perspectivas que
dependem, em última instância, do que o observador “escolhe” medir, o que acarreta todo um
processo de interação entre dispositivos de medição e as propriedades a serem “determinadas” no
objeto selecionado. Ora, isto não ocorre deterministicamente, como é praxe nas medições
clássicas. Nestas últimas, o que eu escolho medir não determina o resultado do processo de
medição, mas é exatamente o oposto: é a propriedade a ser medida que o “fixa” segundo certas
coordenadas espaço-temporais.
103
WEINBERG, 1995, p. 1.
104
Cf. HEISENBERG, 2000, p. 26-27.
Matéria: ciência e ontologia
79
Heisenberg: ou bem a realidade são formas e simetrias e, portanto, é geométrica,
ou bem as formas e simetrias são intermediárias, como vimos acima, entre as
Formas platônicas e o mundo sensível, o que nos reconduz ao problema inicial: o
que é a matéria? Para Platão, esta última é um indeterminado, pronta a receber
todas as Formas por participação, uma matriz de geração da realidade, noção de
que Aristóteles se valerá para formular seu conceito de materia prima, ou proto
hylé. Veremos em detalhe este conceito, quando da exposição sobre os aspectos
ontológicos da matéria. Uma solução interessante para este problema encontra-se
em Wofgang Smith
105
, porquanto este autor faz uma distinção entre dois “tipos”
de realidade: a corpórea e a física. A primeira é a realidade propriamente dita, isto
é, é aquilo que é causa (causa no sentido de “fonte”) da percepção e da interação
com o mundo, quer de forma direta por meio dos sentidos, quer de forma indireta,
por meio de dispositivos de medição, os quais são também realidades corpóreas.
Esta realidade é objetiva, não no sentido kantiano deste termo, a saber, não se trata
de algo que é uma “coisa em si”, jamais cognoscível diretamente, mas objetiva no
sentido mais realista que este termo possua, ou seja, que a realidade corpórea é
aquilo que vemos, descontado o fato de sempre haver uma interação entre sujeito
e objeto, é claro, e esta interação obviamente depender do aparato perceptivo do
primeiro. Mas o ponto, para Smith, é que nosso acesso à realidade é sempre ao
que é corpóreo, e esta corporeidade possui propriedades quantitativas e
propriedades qualitativas, ambos os grupos de propriedades “reais”, pois se trata
de conteúdos existentes nos corpos. Quer no nível macroscópico quer no nível
microscópico, ocorre essa distinção entre o corpóreo e o físico, porquanto no nível
microscópico tal distinção torna-se saliente. O que seria então a realidade física?
Trata-se de nossa apreensão do corpóreo, apreensão esta que se faz por meio de
teorias, especialmente as físico-matemáticas. Neste caso, podemos dizer que o
concurso do sujeito é definitivo com relação ao objeto, não para fixá-lo
aprioristicamente, mas para estabelecer suas propriedades a partir da interação. Ou
seja, propriedades reais no objeto, mas as mesmas somente se definem com
seus valores numéricos (sempre números pertencentes ao conjunto dos números
reais) a partir da interação, isto é, como se estivessem em potência para
atualização, o que é característica não da corporeidade, mas da objetivação física.
105
Cf. SMITH, 1995.
Matéria: ciência e ontologia
80
Portanto, a realidade física, e não a corpórea, está em potência. Isto se
coaduna perfeitamente com a interpretação do vetor de estado como sendo a
superposição de vários estados. Neste caso, o vetor de estado define, por assim
dizer, a realidade física, que está em potência, da mesma forma que está em
potência a realidade corpórea na medida em que é apreendida fisicamente, isto é,
por meio de modelos matemáticos. Por exemplo, um corpo como uma bola de
bilhar é apreendida como realidade corpórea e realidade física no nível
macroscópico; afinal, a bola de bilhar que está potência é a esfera que possui um
determinado raio
r
, coordenadas do centro de massa
(
)
0 0
,
x y
, etc. No entanto,
com respeito ao elétron, somente subsiste sua realidade física, ao passo que sua
realidade corpórea não nos é acessível. Sem dúvida, ainda permanece o mistério
de sua corporeidade. Não vale dizer que certas propriedades, expressadas por
números reais, não são reais. Poder-se-ia considerar um milagre que propriedades
não-reais fossem expressas por medidas tão exatas. Exemplo: medições recentes
do módulo do momento angular do elétron, em unidades apropriadas, dão-nos um
resultado igual a 1.001159 652 188, com um erro de ± 4 na última casa; acurácia
tão espantosa que sobre ela se expressou Richard Feynman, “É como medirmos a
distância de Los Angeles a Nova York com a precisão da espessura de um fio de
cabelo humano”.
106
Para uma propriedade subjetiva aplicada a um ente inexistente
isto não passaria de um milagre extraordinário de confirmação experimental de
uma teoria!
Em consonância com as dificuldades filosóficas apontadas por Heisenberg
quanto ao estatuto epistêmico da matéria, Erwin Schrödinger
107
retoma, por assim
dizer, a posição de Weyl quanto às semelhanças entre campo e partícula,
entendendo que não seria mais possível “efetuar uma distinção significativa entre
matéria e qualquer outra coisa em seu campo de pesquisa”.
108
A rigor, significa
identificar os conceitos de força e de campos de força com o de matéria
109
. Por
conseguinte, as entidades naturais, sejam de que estruturas estiverem constituídas,
106
FEYNMAN, 1985, p. 7.
107
SCHRÖDINGER, E. A nossa imagem da matéria. In: HEISENBERG, 2000, p. 45-66.
108
Op. cit., p. 45.
109
Ibid., p.51.
Matéria: ciência e ontologia
81
a saber, estruturas vivas ou não-vivas
*
, são, para Schrödinger, realidades cujos
componentes mais elementares recebem igualmente os predicados “partícula” ou
“campo”. Daí ele reconhecer a extraordinária dificuldade em obtermos uma
configuração mental ou imagem da matéria
111
na qual, simultaneamente, ambos os
aspectos estejam envolvidos diretamente. Mais ainda: não apenas o que
denominamos partículas (prótons, nêutrons, elétrons, etc.) são constituídas por
quanta de energia como também os campos portadores das interações entre as
partículas são eles próprios constituídos por quanta de energia. Introduzimos de
propósito o conceito energia sem tê-lo previamente definido; vejamo-lo a seguir.
Marc Lange
112
apresenta uma abordagem extremamente interessante sobre
massa, energia e a famosa equação
2
E mc
= , realizando importantes distinções
entre massa e matéria (“matter”) e massa e energia. Na verdade sua exposição é
uma espécie de intróito ao que Lange julga ser fundamental para a correta
compreensão dos fenômenos físicos: o papel desempenhado pelos campos
(gravitacional, eletromagnético, etc.). A esta altura de nosso trabalho, fixaremos a
atenção em algumas considerações acerca de matéria, massa e energia, deixando
para mais adiante o papel desempenhado pelos campos na compreensão do mundo
material. Lange propõe uma revisão de entendimentos comuns acerca da relação
entre massa e energia. Um dos entendimentos comuns sobre o conceito de massa
é aquele proveniente de Newton, “A quantidade de matéria [“matter”] é a medida
da mesma, dada a partir de sua densidade e volume”
113
. Assim, a massa mediria o
quanto de matéria há em um determinado espaço continente. Para Lange, contudo,
a massa de um corpo,
Não é a quantidade total de algum tipo de conteúdo substantivo [“stuff”] do qual
ele é feito [... mas é] a propriedade que possui pela qual fica determinada sua
“inércia” dito de outra forma: pela qual fica determinada sua resistência a ser
impelido por uma força. Quanto mais massivo for o corpo, tanto mais é
necessária força adicional para lhe dar uma determinada aceleração
[...] Este
*
Não trataremos, neste trabalho, sobre distinções entre vida e não-vida. Importa, sobretudo
caracterizar que, independente dos aspectos fenomenológicos e metafísicos envolvidos nesta
distinção, trata-se de entidades constituídas de matéria.
111
Id.
112
Cf. LANGE, 2002, p. 224-240.
113
NEWTON, 1995, p. 31. Com efeito, [massa] = [densidade].[volume].
A aceleração de um corpo mede a taxa de variação temporal de sua velocidade, ou seja, trata-se
da derivada da velocidade com relação ao tempo,
a dv dt
=
, em que
a
e
v
representam os
vetores aceleração e velocidade, respectivamente.
Matéria: ciência e ontologia
82
conceito de massa foi sustentado mesmo por alguns físicos clássicos. Maxwell,
por exemplo, dizia que a massa é ‘o aspecto quantitativo da matéria’ mas não
deveria ser entendida como a quantidade de matéria existente num corpo”
114
.
Uma outra confusão que, segundo Lange, é comum em textos de física,
especialmente nos que tratam da teoria da relatividade, é a que se faz sobre a
interconversibilidade de massa e energia, fruto da mencionada relação entre
ambas,
2
E mc
= . Segundo o autor, uma equivocada idéia de que massa é
energia “concentrada”
115
, ou de que tanto massa quanto energia são a mesma
“coisa”, ou de que ambas são aspectos distintos de uma terceira entidade
. Lange
chama a atenção para três aspectos que nos apontam que a dificuldade surge
apenas por se tratar de duas perspectivas bastante diferentes, à luz das quais
analisamos um sistema físico, e por isso o são coisas “conversíveis”. Em
primeiro lugar, deve se distinguir a massa chamada de “repouso” de um corpo
*
de
sua massa “relativística”. A massa relativística é
m
γ
, em que,
2 2
1 1
v c
γ
=
E é esta massa que aparece na equação
2
E m c
γ
= , válida em todos os
referenciais, incluindo aqueles para os quais o corpo está em repouso, isto é, para
aqueles em que
0
v
=
e, por conseguinte,
1
γ
=
, o que nos reconduz à equação
inicial. Ora, a massa relativística
m
γ
não é aditiva como a massa em termos
clássicos o é, ou seja, em termos clássicos, se tenho dois corpos, A e B, por
114
LANGE, 2002, p. 232. Ver também NEWTON, loc. cit.
115
Cf. WEYL, loc. cit.
Quem sabe se o “campo” não seria essa terceira entidade? Mas, então, de que campo estamos
falando? Alguns, como Mário Novello nos expõe em NOVELLO, 1988, p. 81, pretendem que a
matéria poderia estar associada “a um efeito do campo cósmico [ou de ‘larga escala’] gravitacional
[...] trata-se então de pensar sobre a questão da possibilidade do espaço-tempo vazio [ou
Minkowskiano] poder gerar toda matéria do mundo [...] um dos atrativos dessa colocação é que,
graças ao caráter não-linear das equações que descrevem a evolução do campo gravitacional, não
estaríamos nos envolvendo em um círculo-vicioso, pois à questão óbvia: - e quem cria o campo
gravitacional?’, poder-se-ia tranqüilamente responder: - ele se auto-alimenta’; isto é, o campo
gravitacional teria origem em si próprio, se auto-sustentaria”.
*
A massa de repouso é a que aparece na equação E=mc
2
. Esta “massa de repouso” de um corpo
seja macroscópico ou sub-microscópico, ou como Lange a prefere chamar simplesmente, “massa”,
obtém-se a partir dos sistemas em que a quantidade de movimento, ou momentum p é igual a zero,
isto é, o corpo está em repouso com relação ao referencial em análise.
Matéria: ciência e ontologia
83
exemplo, com massas (“clássicas”), e
A B
m m
respectivamente, então a massa
total do sistema é
( )
A B
m m
+
. Isto não vale para a massa relativística, pois a
esta está associada a energia cinética dos corpos. Isto é fácil de mostrar se
fizermos a seguinte expansão,
(
)
( )
(
)
( )
(
)
2 4 6
1.3 1.3.5
1
2 2.4 2.4.6
=1+ ...
v v v
c c c
γ
+ + +
Mas, desprezando-se os termos com maior expoente, visto que, para a
maioria dos casos,
1
v
c
, temos então que,
(
)
2
1
2
1+
v
c
γ
Ora, sendo o fator
γ
dado pela equação imediatamente acima, então
obtemos que,
2 2
2
E mc mv + (2.3)
E a energia de um corpo não apenas depende de sua massa
m
mas também
do fator de energia cinética
2
2
mv
. Ambas as parcelas apresentam-se como
perspectivas distintas acerca do que podemos considerar como equivalência entre
massa e energia. Por exemplo, ao aumentarmos a velocidade do corpo ou
fornecemos calor às moléculas de um gás, elevamos a parcela de energia cinética,
que “absorve” o input de energia dado ao corpo (ou ao gás), deixando inalterável a
parcela relativa à massa,
2
mc
. Neste caso, a interconversibilidade de energia dá-
se unicamente entre a energia de input e a energia cinética de absorção. Ao fim e
ao cabo, é a energia total do sistema (energia de input + energia do corpo) que é
conservada. Com efeito, sustenta Lange, não uma conversão real (física) de
massa em energia ou vice-versa.
Matéria: ciência e ontologia
84
O segundo aspecto a ser considerado é que massa não é uma propriedade
aditiva dos corpos. Para que isto fosse verdadeiro, deveríamos interpretar, como
vimos, a massa de um corpo como a quantidade de algum material (“stuff”) do
qual o corpo é feito e que nos permitisse naturalmente somar as quantidades do
material de que o corpo se compõe, para produzir uma massa total final. No
entanto, de acordo com a teoria da relatividade, tal interpretação não está correta.
Suponhamos um referencial (sempre se pode escolher um entre os candidatos) no
qual p = 0
*
. Neste referencial,
2
E mc
= ou, mais convenientemente para nosso
propósito,
2
m E c
= . Supondo que um corpo é constituído de muitas partes,
como um sistema, pela lei de conservação da energia, a energia total do sistema é
a soma da energia de suas partes, a saber,
1 2
, ,...
E E ; então isto implica que,
(
)
( )
1 2
2
1
...
m E E
c
= + +
(2.4)
Ora, vimos que a energia total (relativística) de cada constituinte é dada
por
2
i i
m c
γ
, o que nos fornece, segundo a equação (2.3),
2 2
2
i i i i
E m c m v +
Mas, substituindo o resultado acima na equação (2.4) obtemos que,
(
)
(
)
2 2 2 2
1 1 1 2 2 2
2
1
...
m m c m v m c m v
c
+ + + +
Reagrupando convenientemente,
( )
(
)
(
)
2 2
1 2 1 1 2 2
2
1
... 2 2 ...
m m m m v m v
c
+ + + + +
*
Ver nota anterior.
Matéria: ciência e ontologia
85
A massa total do corpo (ou sistema) é maior do que a soma das massas de
seus componentes por uma parcela que dispõe sobre as energias cinéticas de cada
componente constituinte do sistema (corpo), no sistema de referência no qual o
momentum total é nulo
*
. Portanto, conclui Lange, se estamos fazendo uso da
teoria da relatividade, não podemos interpretar a massa de um corpo (sistema)
como a quantidade de material (“stuff”) do qual o corpo se compõe, material este
que não pode ser “criado ou destruído”, como requer a lei de conservação da
massa.
Por fim, a energia de um corpo não é um invariante segundo as
transformações de Lorentz
, enquanto que a massa de repouso (massa obtida no
referencial em que p = 0), sim. Ora, as transformações de Lorentz nos apontam as
quantidades que, de fato, são, segundo a perspectiva relativística, os entes que
devemos considerar como “reais”, a saber, como entes objetivos presentes no
mundo. Dito de outra maneira: o enfoque relativista supõe que espaço e tempo
são agora um ente único, o espaço-tempo, e que devemos, neste novo continuum
espaço-temporal, definir que quantidades são objetivas, isto é, que quantidades
*
Vimos acima que é justamente esta parcela de energia cinética aquela que nos assegura o balanço
total de energia (não de massa!) do sistema total sob análise, ou seja, o corpo (sistema) e ambiente
externo. Exemplo: moléculas de um gás para o qual transferimos energia térmica. O efeito é
curioso: relativisticamente, o gás, ao absorver calor, teria sua massa total aumentada(!) por uma
parcela que mede a energia cinética das moléculas do gás. Isto nos mostra, segundo Lange, que
massa não é uma propriedade aditiva. Cf. LANGE, op.cit., p. 229-232.
Sempre enfatizando que massa não é a mesma coisa que matéria (“matter”), esta última de
acordo com a interpretação comum, a saber, como o material (“stuff”) do qual o corpo é feito.
As transformações de Lorentz permitem-nos salvaguardar as leis da física (conservação de
energia e momentum, força como variação temporal do momentum, etc.) quando as descrevemos
segundo diferentes referenciais que se movem com velocidade uniforme e constante ou estão em
repouso, uns com relação aos outros (este é o primeiro princípio da relatividade; o segundo afirma
a constância da velocidade da luz em todos esses tipos de sistema). O grupo das transformações de
Lorentz um grupo no sentido matemático, pois podemos representá-lo por uma operação
multiplicação entre matrizes), para dois sistemas S e S’, em que S’se move com velocidade
uniforme e constante u na direção do eixo dos xx com respeito a S, é dado por:
x’ = (x – ut) .
γ
y’ = y
z’ = z
t’ = (t – u.x/c
2
) .
γ
O grupo de transformações acima permite-nos descrever as leis da física
equivalentemente nos sistemas S e S’. A invariância por transformações de Lorentz significa
afirmar que uma determinada propriedade P, cuja medida é dada pela função real
µ
P
(x, y, z, t) no
sistema S é tal que, ao estabelecermos sua medida
µ
P
(x’, y’, z’, t’) no sistema S’, obtém-se
µ
P
=
µ
P
. Com respeito à obtenção da invariância de m (massa) e a não invariância de E (energia) nos
sistemas S e S’, ver RESNICK, 1977, p. 122-139.
Matéria: ciência e ontologia
86
são independentes do sistema de coordenadas com o que trabalhamos. Neste novo
continuum, são as transformações de Lorentz que indicam as quantidades
independentes do sistema de coordenadas. Assim, se nos concentrarmos sobre
relação existente entre massa, energia e momentum, neste novo continuum regido
por Lorenz, temos,
(
)
2
2 2 2
E
p m c
c
= (2.5)
o que nos leva a tão-somente concluir que, para os referenciais nos quais
0
p
=
,
obtemos a famosa relação
2
E mc
=
,
o que não implica uma equivalência “real”
entre massa e energia, senão que estão intimamente conectadas entre si e ao
momentum por meio da relação acima. Decorrente da perspectiva que venhamos
a adotar para análise do fato físico, a saber, se um determinado corpo (sistema) é
tratado como um único ente, ou se é tratado como sendo composto de vários
constituintes, obtemos a interconversibilidade -- mas não a equivalência ou
igualdade! -- entre massa e energia, porquanto a relação acima, para os casos em
que o momentum é nulo, relaciona massa e energia, mas não matéria (“matter”) e
energia
116
.
Qual a proposta então de Lange quanto à correta abordagem que devemos
adotar para o conceito de massa? Sem estender-se sobre atacar o conceito de
matéria (“matter”), porém o de massa, propriedade “real” dos corpos por ser
invariante nas transformações de Lorentz e passível de medição
*
, sustenta que esta
última é a propriedade que os corpos possuem pela qual fica determinada sua
inércia, ou “em outras palavras, sua resistência a ser impelido por uma força”
117
,
conforme vimos antes. Assim, quanto mais massivo o corpo tanto mais força
requer-se para dar-lhe uma certa aceleração, ou, “a massa de um corpo é aquele
fator pelo qual devemos multiplicar a velocidade de forma a obter o momentum
116
Cf. LANGE, op. cit., p. 232.
*
Com efeito, a abordagem epistêmica que Lange nos propõe sobre a matéria, isto é, enfocando-a à
luz de uma propriedade física pertencente aos corpos materiais, ou seja, sua massa, que pode ser
medida e associada a outras propriedades, invariantes ou não, como energia e momentum, isenta o
tratamento dado à questão de enfrentar-se com os aspectos ontológicos suscitados pelo conceito de
matéria.
117
LANGE, op. cit., p. 232.
Matéria: ciência e ontologia
87
do corpo, e pelo qual devemos multiplicar o quadrado da velocidade dividido por
dois para obter sua energia”.
118
Voltemos agora à equação (2.1), nossa conhecida relação relativística
entre massa e energia. Vimos, pela argumentação de Lange, que esta relação não
deve ser entendida como definição da “quantidade de matéria”. Lange chamou-
nos a atenção para as dificuldades que surgem se não tomarmos o devido cuidado
em excluir da equação acima qualquer pretensão de fazer equivaler matéria e
energia. Com efeito, podemos aduzir algumas razões adicionais. Se, na equação
(2.1), interpretarmos que do lado esquerdo temos quantidade ou conteúdo (ou
“stuff”, segundo Lange) de matéria, então esta quantidade de matéria (ou massa) é
definida em termos de seu conteúdo (ou “stuff”, segundo Lange) de energia, da
mesma forma que podemos definir conteúdo de energia em termos de conteúdo de
matéria, isto é,
2
E mc
= (2.6)
Ora, de (2.1) e de (2.6) podemos extrair as seguintes proposições:
(a) O conteúdo de matéria (massa) de um corpúsculo
*
material
é proporcional ao seu conteúdo de energia.
(b) O conteúdo de energia de um corpúsculo material é
proporcional ao seu conteúdo de matéria.
O que estamos afirmando como conseqüência de (a) e (b) é a absoluta
identidade (ou indistinção) de matéria e energia, sendo ambas constituídas por
outros corpúsculos de energia (ou quanta), os quais, por sua vez, são eles
mesmos, segundo Weyl e Schrödinger, matéria que emerge a partir da forma de
um campo. Isto nos conduz a um entrelaçamento de diversas perspectivas em
relação ao trinômio “massa-energia-campo”.
118
HARMAN apud LANGE, loc. cit.
*
Em nosso trabalho, estaremos nos concentrando nos aspectos subatômicos da matéria. Mutatis
mutandi, aplica-se o raciocínio para o mundo macroscópico.
Matéria: ciência e ontologia
88
O resultado deste entrelaçamento é que a matéria emerge como sendo uma
imagem ou conceituação que abarca o trinômio. Podemos, por conseguinte,
propor as seguintes definições:
Matéria é (o mesmo que) massa.
Matéria é (o mesmo que) energia.
Matéria é (o mesmo que) campo.
Contudo, nada obsta a que, com base no que expusemos até então,
invertamos a predicação e afirmemos que,
Massa é (conteúdo de) matéria.
Energia é (uma forma da) matéria.
Campo é (uma forma da) matéria.
Explicitando as definições anteriores segundo as categorias de ser
propostas por Aristóteles
119
, de forma a evitar uma absoluta indistinção conceitual
que poderia conduzir a equívocos, obtemos:
Massa é (quantidade de) matéria.
Energia é (um aspecto qualitativo da) matéria.
Campo é (um tipo de relação da) matéria.
Ou seja, necessitamos explicitar certos aspectos ontológicos dos entes
materiais (as categorias de quantidade, qualidade e relação) que nos permitem
predicar algo como sendo algum aspecto (“manifestação”) da matéria (no caso, as
definições de massa, energia e campo). Vemos, portanto, que não equivalência
entre a matéria tomada como sujeito no primeiro grupo de definições e a matéria
tomada como predicado no segundo grupo. Cada enunciado, tomado
isoladamente, no primeiro grupo, não esgota a compreensão do sujeito “matéria”,
senão que esta é predicada (estende-se a) de diversas manifestações ou aspectos
do real (que é material), os quais apreendemos sob diversos modos (ou gêneros), a
119
Cf. ARISTÓTELES, Categorias.
Matéria: ciência e ontologia
89
saber, quantidade (massa), qualidade (energia) e relação (campo). Se não
fizermos essas distinções, num primeiro momento, nos deparamos com as
confusões conceituais apontadas por Lange. E essas distinções nos apontam duas
coisas: em primeiro lugar, que a formulação proposta explicita apenas aspectos
epistêmicos do real; em segundo lugar, que este tipo de formulação não deve
prescindir de uma compreensão ontológica da matéria, o que é sugerido, em
primeira instância, pela introdução das categorias.
Gostaríamos, neste ponto, de nos remeter a algumas considerações de
Einstein
120
acerca da relação (lógica) entre matéria e campo. Einstein nos propõe a
seguinte questão:
Dado que não podemos, presentemente, imaginar toda a sica construída sobre o
conceito de matéria [...] aceitamos ambos os conceitos [matéria e campo].
Poderemos pensar em matéria e campo como duas realidades distintas e
diferentes?
121
Einstein (e Weyl, como vimos) propõe então que a distinção entre campo
e matéria poderia ser apenas de caráter quantitativo, esta última sendo uma
diferença de concentração de energia
*
como, por exemplo, nos mostra a figura a
seguir:
Fig. (1.1)
O corpúsculo material (representado por um disco preto) possui uma
superfície (representada pela linha pontilhada) que estabelece sua separação, ou
limite, do campo (representado pelas linhas mais finas em torno do círculo). A
120
Cf. EINSTEIN, 1988, p. 197-200.
121
EINSTEIN, op. cit., p. 197.
*
Na matéria a concentração de energia seria imensa e no campo que a circunda a concentração de
energia seria baixa.
Matéria: ciência e ontologia
90
superfície separa a tremenda concentração de energia (o corpúsculo) da
vizinhança com baixa densidade energética (o campo). Surge, então, o problema
de como definir esta superfície, a saber, quais as condições de contorno do campo
que possibilitam traçar com precisão o que é matéria e o que é campo. Uma
possibilidade seria imaginar que a superfície é o-somente um limite artificial e,
por conseguinte, perfeitamente dispensável. Neste caso, restaria apenas o campo
como a única realidade subjacente. No entanto, o fato é que as equações do campo
divergem ao infinito onde há “conteúdo de matéria”, isto é, expressam uma
singularidade
, o que supõe algum tipo de modificação das equações de tal forma
que não dêem margem a infinitos indesejáveis.
Vemos, com clareza, em decorrência do exposto até aqui, que isso
certamente envolve dificuldades conceituais sérias, pois se tomarmos as distinções
sugeridas até então, a distinção (de razão) entre campo e matéria é segundo a
relação e não segundo a quantidade, isto é, o campo é um acidente (relação) dos
compostos materiais. Presentemente, propostas, sugeridas pela teoria quântica
de campos, de tomar o campo como sendo a realidade última, ou substância
primeira em linguagem aristotélica. Como o campo não parece ser algo que possa
ser individuado, então o campo não individuado seria a fonte das substâncias
individuadas. Isso parece sugerir uma categoria adicional: o campo seria a
substância primeira não-individuada, e os compostos materiais associados ao
campo (em nosso caso, as partículas) as substâncias primeiras individuadas. Como
a matéria (segundo se nos apresenta com suas dimensões espaço-temporais) é,
segundo Tomás de Aquino, princípio de individuação
122
, então os únicos entes, no
nível submicroscópico, dos quais podemos predicar algum tipo de individualidade
(e identidade no sentido clássico), são as partículas.
Einstein propõe-nos então uma abordagem pragmática: “No momento
,
devemos admitir ainda duas realidades em todas as nossas construções teóricas
reais: campo e matéria”.
123
Portanto, considerando que a massa pode ser expressa
a partir do campo, podemos reescrever o segundo grupo de proposições acima da
seguinte forma:
Um denominador que indesejavelmente se anula nas equações.
122
Cf. FAITANIN, 2001.
Quando da primeira edição original do livro A Evolução da Física, em 1938, mas perfeitamente
válido até hoje. Cf. WEINBERG, loc. cit.
123
EINSTEIN, op. cit., p. 199.
Matéria: ciência e ontologia
91
Massa é (quantidade de) matéria (gerada no campo)
Energia é (um aspecto qualitativo da) matéria (gerada no campo)
Ou seja,
Massa é campo
Energia é campo.
Portanto, as propriedades materiais do real são dadas por meio da massa e
da energia associadas a um campo, o qual passa a ser o suporte físico dos
fenômenos da matéria. Nosso objetivo aqui é o seguinte: até agora, as formulações
de Weyl, Heisenberg e Schrödinger, mais as considerações acerca da relação entre
energia e massa expostas por Lange e as do campo por Einstein nos conduziram a
dois resultados importantes: em primeiro lugar, uma ontologia da matéria ou seu
estatuto metafísico
não é dado por uma abordagem da ciência experimental; em
segundo lugar, construtos como “massa” e “energia” capturam aspectos que
podemos conhecer acerca dos fenômenos materiais e são suficientes para dar
conta de uma legítima abordagem epistêmica da matéria, a qual deve aspirar a nos
fornecer subsídios cada vez mais ricos na direção dos aspectos quantitativos da
realidade material. No entanto, como vimos acima, as propriedades quantitativas
da matéria entrelaçam-se com aspectos relacionais e qualitativos; ou seja,
ontologia e ciência entrelaçam-se nos fenômenos materiais, de tal forma que se
tornam perspectivas absolutamente complementares. Sendo assim, então se torna
relevante prover uma linguagem comum entre ciência e filosofia, que, em nosso
caso, sugerimos seja realizada por uma estrutura matemática que possa descrever
simultaneamente os aspectos fenomênicos e os ontológicos da matéria, de forma a
permitir que a filosofia interaja com a ciência experimental por meio de uma
estrutura lingüística comum, neste trabalho, uma álgebra. Com efeito, esse
intercâmbio torna-se tão mais relevante quando os fenômenos associados à
matéria (sejam partículas, átomos ou moléculas), com a perspectiva epistêmica
Cabe ressaltar que metafísico e ontológico possuem, em nosso trabalho, o mesmo significado:
referem-se aos aspectos últimos constitutivos da realidade e não aos objetos fundacionais de uma
teoria; dito de outra forma, como objetos fundacionais de uma teoria podem não existir como tais
na realidade. Neste caso, não nos interessa que signifiquem a “ontologia” associada à teoria.
Ontologia, portanto, é o que existe.
Matéria: ciência e ontologia
92
fornecida pela ciência, revelam-se tão intricados e complexos que Schrödinger
argumenta a respeito deles,
[Podem] ser pensados como criação mais ou menos temporária dentro de um
campo ondulatório, [que, reaparecendo sempre do mesmo modo,] devem ocorrer
como se tratasse de uma realidade material permanente. Devemos considerar a
carga e massa exatamente especificável de partículas como elementos de forma
(Gestalt) determinados pelas leis de onda.
124
Não obstante os esforços da ciência experimental, especialmente em nosso
caso, da física, no sentido de definir com precisão o que seja matéria, somos
conduzidos, necessariamente, a buscar, em igual medida, uma compreensão
metafísica dessa realidade, de forma a compor, com uma epistemologia adequada,
um conhecimento totalizante, ainda que não definitivo. Sendo assim, nosso
próximo passo consistirá em apresentar uma ontologia da matéria, em bases
aristotélico-tomistas, que nos ofereça a contrapartida metafísica do conhecimento
teórico-experimental proveniente das ciências da natureza.
124
SCHRÖDINGER, op.cit., p. 66.
Matéria: ciência e ontologia
93
2.2
Ontologia da matéria
Em linha com o objetivo principal de prover um modelo onto-algébrico
para a matéria, nos concentraremos nesta seção na análise conceitual provida por
Aristóteles e Tomás de Aquino acerca de seu estatuto ontológico,
convenientemente adequando a terminologia, bem como introduzindo alguma
nova perspectiva consoante o importe epistemológico trazido especialmente pela
mecânica quântica. Chamamos a atenção, de início, para dois aspectos de nossa
abordagem: em primeiro lugar, segundo implicado por uma análise ontológica
propriamente dita, ou seja, metafísica, a matéria sobre a qual nos debruçaremos é
aquele componente radical último, metafísico, que está na composição de todos os
entes da natureza e na terminologia de Tomás de Aquino, a materia prima. A
matéria sobre a qual tratamos na seção anterior é, com respeito a materia prima,
uma matéria assinalada por dimensões, fenomênica, mensurável espaço-
temporalmente. A matéria prima, também denominada protomatéria
*
a partir
deste ponto, é seu constitutivo ontológico último, ou seja, é o fundamento radical
ou metafísico das manifestações quantitativas dos entes da natureza; em segundo
lugar, dada a amplitude com o que Tomás tratou do tema em sua obra,
desenvolvendo-o e burilando conforme as exigências do contexto assim o
exigiam, bem como as elucidações provenientes do próprio Tomás de Aquino,
muitas vezes razão de equívocos conceituais justamente por terem sido
menoscabadas em diversas ocasiões, nos valeremos de uma excelente
compilação
125
que serviu como roteiro básico para nossa exposição, com as
devidas adequações já referidas, tendo em vista nosso propósito principal.
Inicialmente, devemos afirmar que a matéria possui estatuto ontológico,
pois “se é correto que a matéria não possui estatuto ontológico senão por causa da
forma
, isso não justificaria atribuir-lhe carência absoluta de ser [...] porquanto a
matéria é”.
126
Este estatuto ontológico implica buscarmos estabelecer a origem e
*
Doravante simplesmente matéria; onde houver algum conflito com a noção comum, fenomênica,
de matéria, será convenientemente explicitada como matéria prima ou protomatéria.
125
FAITANIN, 2001a; ver também FAITANIN, 2001b.
A saber, não há matéria sem forma na natureza.
126
FAITANIN, 2001b, p. 7.
Matéria: ciência e ontologia
94
a natureza da matéria, a qual deve ser compreendida como “ser em potência”,
significando que a matéria possui o ser, ainda que sob um aspecto minimamente
entitativo e com máxima potencialidade; esta última acarreta ser a matéria o
“primeiro sujeito subjacente” de toda mudança, quer essencial quer acidental, que
tenha dependência da matéria
127
. Assim, Tomás de Aquino apresenta duas
possíveis assimilações para a matéria
*
: (a) refere-se àquela matéria que é
concebida sem qualquer forma e privação, mas como sujeito da forma e da
privação, denominada matéria primeira, já que antes da mesma não há outra
matéria, e que também se denomina ‘hylé’; (b) refere-se a algum gênero como,
por exemplo, a água é a matéria primeira dos quidos. Mas, neste caso, não é
absolutamente primeira, porque a água é composta de matéria e forma, donde
possui previamente matéria
128
, ou “a matéria primeira não existe por si mesma na
natureza das coisas [...] ademais sua potência não se estende senão às formas
naturais”.
129
Para Tomás, o primeiro sujeito da geração (e corrupção) substancial
é a matéria, na qual se fundamenta toda a produção dos corpos. Igualmente, a
produção (origem) da matéria não pode se dar a partir da matéria, pois “da matéria
não se extrai a matéria”.
130
Isto significa dizer que não há uma causalidade
específica da matéria, senão que ela é o primeiro sujeito desde o qual os corpos
foram extraídos. Ademais, a matéria, à medida que está em potência para receber
qualquer forma específica, “não pode desaparecer enquanto tal, porém
necessariamente deve ser isenta tanto de corrupção quanto de geração”.
131
Isto
significa dizer que a matéria é algo criado, no sentido de que ela mesma não pode
ter seu “início” senão a partir do não-ser (nada) e seu “término” senão no não-ser
(nada). A matéria, ademais, é um ser em potência e é difusa por (penetra em)
todos os entes naturais, porquanto,
127
Cf. FAITANIN, op. cit., p. 8-9.
*
Tomada aqui no sentido comum do termo.
128
TOMÁS DE AQUINO, Os Princípios da Realidade Natural, p.26.
129
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q7 a2 ad3, p. 54.
130
TOMÁS DE AQUINO, Sobre la Naturaleza de la Matéria y las Dimensiones Indeterminadas,
p. 49 et 57.
Causalidade aqui se refere a alguma das quatro causas que entram na composição dos corpos, a
saber, as causas material e formal (intrínsecas aos entes naturais), e as causas eficiente e final
(extrínsecas aos entes naturais). Conclusão: a matéria (protomatéria, relembrando) não é gerada
(causada) por qualquer uma das quatro causas.
131
ARISTÓTELES, The Physics, I c9 192a 26-35.
Matéria: ciência e ontologia
95
O que chamo matéria é precisamente o sujeito último subjacente comum a todas
as coisas da Natureza, pressuposto como seu constituinte substantivo, não
acidental. E mais, a destruição de uma coisa significa o desaparecimento de tudo
o que a constitui à exceção exatamente deste mesmo sujeito subjacente, cuja
existência é pressuposta, e caso este fosse destruído, então a coisa que o
pressupõe teria sido com ele destruído antecipadamente, antes mesmo que viesse
a existir
132
.
Tomás de Aquino sustentou que a matéria (protomatéria) foi criada
*
pela
onipotência de Deus a partir do não-ser (nada), não se tratando de um princípio
potencial criador junto com Deus; que por haver sido criada, Deus dela possuía
um conceito, ou seja, a matéria teve na mente divina um modelo e, portanto, uma
essência; que, ademais, o tempo foi criado junto (simultaneamente)
com a
matéria. Diversamente da interpretação comum da matéria como “pura potência”,
ou “pura indeterminação”, ou ainda “ser absolutamente potencial”, encontramos
nos escritos de Tomás que a matéria é um ser em potência.
133
Ou seja, a
protomatéria é um ser em potência, mas não absolutamente, com o sentido de
pura potência (absolutamente potencial), pois então não se distinguiria do não-ser,
mas o é relativamente ao recebimento de formas específicas ou determinantes, e
132
ARISTÓTELES, loc. cit.
*
Logo não existe ab-eterno; isto é, a matéria não existe na eternidade; vale observar que o
problema de um mundo criado desde sempre, isto é, tendo existido desde o infinito passado na
linha do tempo não era problema para Tomás de Aquino: entendia que, de qualquer forma, o ser do
mundo teria recebido desde o infinito passado seu influxo enquanto ser, ou seja, foi criado;
acrescentava Tomás que uma refutação quer filosófica quer em bases experimentais acerca de um
mundo que existisse desde o infinito passado não era possível (Cf. TOMÁS DE AQUINO,
Compêndio de Teologia, c. 98-99), e tinha razão! Ainda que o início do universo tenha ocorrido
segundo o modelo do big-bang, isto é, não se prolonga na direção de um infinito passado, mas que
tenha começado a existir uns quatorze bilhões de anos, a singularidade inicial pode ter
permanecido “estável” indefinidamente, ou, como supõem alguns, trata-se de ciclos intermináveis
(segundo uma direção que se realizaria num tipo de ‘meta-tempo’) de expansão e contração, o que
nos remete ao argumento de Tomás: de qualquer forma, o universo teve um ser e este ser foi dado
desde fora, ou criado.
Para a simultaneidade a que nos referimos aqui: trata-se de um conceito filosófico
(especificamente metafísico) e não um conceito atrelado e medições espaço-temporais, como
advogado pela teoria da relatividade. Em princípio, dois eventos afastados entre si bilhões de anos-
luz, por exemplo, podem ser simultâneos, ainda que jamais o sejam segundo medições efetuadas
em diferentes sistemas de referência afastados entre si por intervalos do tipo do tipo espaço
(
2
0
ds
<
, em que
2
ds
é o intervalo medido entre dois eventos no espaço-tempo; trata-se de um
invariante de Lorentz).
133
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q46 ad3: “O acidente, sendo forma, é um certo
ato; porém a matéria [matéria prima], em si mesma, é ser em potência’. Também em TOMÁS DE
AQUINO, Suma contra os Gentios, II c16 n11, p. 187: “A matéria prima de algum modo é, porque
é ente em potência”.
Matéria: ciência e ontologia
96
isso não significa ser desprovida de toda forma, pois tem ser
134
e foi concriada
com o tempo, como afirma Tomás
135
, o que implica que a protomatéria tem ser,
essência, ainda que desprovida de formas especificadoras ou substanciais, pois
opera segundo sua natureza de ente em potência, pelo que tem aptidão
indeterminada por formas especificadoras. Dado que a operação segue o ser, a
protomatéria tem aptidão para o bem, isto é, para aquilo que lhe convém por
natureza, e isto somente é possível se ela tem aquele caráter entitativo mínimo
com o qual aspira a realizar o que lhe é próprio
136
. Ademais,
E porque o ser segue a forma das coisas, elas existem quando possuem forma e
deixam de existir quando privadas da forma. Deve, portanto, existir nelas algo
que em um tempo possa receber a forma e, em outro tempo, possa ser privado
dela: a esse algo denominamos matéria [protomatéria]. Por conseguinte, as coisas
ínfimas entre as outras necessariamente se compõem de matéria e forma.”
137
E tal potencialidade é indeterminada, no sentido de que deve ser entendida
como uma capacidade (potencial) ou indiferença para receber quaisquer formas
especificadoras.
138
Ou seja, a protomatéria
*
possuiu então em sua origem
(criação) o mínimo de caráter entitativo (ser em ato), informada por diversos α-
134
Cf. TOMÁS DE AQUINO, O Ente e a Essência, c.5, n.48, p.79: “Nas coisas que se relacionam
entre si, sendo uma a causa do ser da outra, aquela que exerce a função de causa pode ter ser sem a
outra, mas o contrário não vale. Ora, essa é a relação existente entre a matéria e a forma, pois a
forma o ser à matéria. Por isso, é impossível à matéria ser sem alguma forma [grifo nosso]”.
Ademais, afirma TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I q.74 a2 sol.): “A matéria, na
produção primeira das coisas, existia sob as formas substanciais dos elementos”.
135
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I q66 a4 sol.
136
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q5 a3 ad3: “A matéria prima, sendo ser
potencial, também é bem potencial [pois] participa algo do bem, a saber, sua ordenação ou
aptitude para o mesmo. E, por isso, não lhe convém o ser desejado, mas o desejar”. Ora, a
operação segue o ser, e este tem forma, donde a protomatéria tem ser e forma.
137
TOMÁS DE AQUINO, Compêndio de Teologia, c.74. Ora, este trecho de Tomás nos aponta
com muita precisão que, ao nos debruçarmos sobre os entes mais elementares, (tais como as
entidades subatômicas), aumenta o nível de indeterminação do ser, posto que nos aproximamos da
indeterminação proveniente da matéria associada a formas cada vez mais elementares. Dito de
outro modo: considerando a composição de matéria e forma (composição hilemórfica) desses entes
elementares, a balança pende a favor da matéria; diversamente, quanto mais complexo o ser, é
porque em sua composição hilemórfica um grau imensamente maior de determinação do ente
(número maior de propriedades espaço-temporais determinadas, complexidade, auto-organização,
etc.).
138
Ibid., c. 19.
*
Visto que, a partir deste ponto, precisamos adequar com mais ênfase a terminologia atual,
passaremos a usar com maior freqüência protomatéria em vez de matéria (que já estava
substituindo a matéria primeira), e quando houver risco de confusão conceitual ou terminológica
(que estamos a evitar a todo custo), o sentido correto será explicitado.
Matéria: ciência e ontologia
97
objetos
em diversas partes de sua essência; os α-objetos emprestam à
protomatéria seu caráter entitativo e compõem sua essência, pois é por esta que a
um ente qualquer lhe é dado o ser, bem como é pela essência ou forma que algo se
assemelha a Deus.
139
Isto não é difícil de ver se tomarmos em consideração a
seguinte razão de proporção, que define a analogicidade do ser:
Ser (ente) de X assim como Ser (ente) de Y
Essência de X Essência de Y
Portanto, podemos realizar a seguinte analogia de proporcionalidade:
Ser ‘em potência’ da Protomatéria como Ser ‘em ato puro’ de Deus
Essência da Protomatéria Essência de Deus
A razão de proporcionalidade acima nos mostra a necessidade de
imputarmos uma essência à protomatéria, sendo tal essência definida pelas formas
elementares, imperfeitíssimas
140
, posto se situarem mais próximas à potência da
matéria, em seu interior. Por tais formas se torna o ser em potência da matéria
minimamente inteligível, bem como apto (apetecível) à edução das formas
específicas dos entes corpóreos. Ainda mais: Tomás as denomina também de
“formas dos elementos”
141
, porquanto,
Em substituição a “formas elementares”, visto que esta denominação pode induzir à confusão
com formas dos elementos químicos, ou com as formas entitativas das partículas elementares. Os
α-objetos dão à protomatéria seu caráter entitativo. Veremos mais adiante como representá-los,
que possuem uma inteligibilidade mínima.
139
Cf. FABRO, 1961, p. 344-360.
140
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Tomás de Aquino, De Mixtione Elementorum, n.9: “As formas dos
elementos são imperfeitíssimas, justamente por estarem, por natureza, mais próximas da matéria
primeira”; também in Suma contra os gentios II c68 n5: “Com efeito, encontramos algumas
formas ínfimas que não m capacidade para operação alguma, senão para a qual se estendem as
qualidades dispositivas da matéria, [...] como as formas elementares. Por isso, essas formas são
absolutamente materiais e totalmente imersas na matéria”. Ver também, a propósito da
imperfeição das formas elementares, TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q.76 a.4 ad.3.
141
Ibid., n.13: “Disso decorre a impossibilidade de que as formas substanciais dos elementos
sejam susceptíveis de mais e de menos”; id.: “Portanto, se as formas dos elementos fossem
susceptíveis de mais e de menos, tanto a geração quanto corrupção seriam movimentos contínuos,
o que é impossível...”; ibid., n.16: “[Portanto] Devemos considerar que as qualidades ativas e
passivas dos elementos sejam contrárias entre si e susceptíveis de mais e de menos”; ibid., n.18:
“[Portanto] As formas dos elementos estão presentes nos corpos mistos, mas não em ato, senão
virtualmente [grifo nosso]”.
Matéria: ciência e ontologia
98
Deve-se dizer, segundo Agostinho, se denominam razões seminais todas as
forças ativas e passivas estabelecidas em todas as criaturas por Deus, mediante as
quais Ele coloca no ser os efeitos naturais; por isso, ele mesmo [Agostinho]
afirma no De Trinitate III c9 que “assim como as mães estão grávidas de seus
fetos, assim também o mundo está grávido das causas de tudo que nasce”,
expondo o que antes havia dito com relação às razões seminais, as quais havia
também denominado “forças e faculdades distribuídas às coisas”; e se chamavam
razões seminais na medida em que nas causas ativas estão originalmente todos os
efeitos como se fossem certas sementes. Não obstante se se entendem as razões
seminais como incoações das formas, que estão na matéria primeira enquanto
está em potência para todas as formas como pretendem alguns, se bem não
concorda muito com as afirmações de Agostinho, pode sustentar-se que a sua
simplicidade é devida à sua imperfeição, como também a matéria primeira é
simples
142
.
Por conseguinte, os α-objetos são essas formas elementares ou elementos
da corporeidade: trata-se de estruturas que permitem a extensão espacial e a
duração temporal, pois são as “razões seminais” das coisas.
143
Por outro lado, a
protomatéria teve seu início com o tempo isto é, para Tomás, o tempo foi
concriado com a protomatéria, ou dito de outro modo, sua criação foi simultânea à
da protomatéria, assim como esta foi informada pelos diversos α-objetos. Assim,
uma tese central de Tomás de Aquino é que a protomatéria era desprovida de toda
e qualquer forma especificadora, mas não absolutamente informe como sustentava
Agostinho
144
, porém informada por diversos α-objetos em sua essência
145
. Não
obstante a precedência da protomatéria à diversidade das formas, isto não ocorre
segundo uma sucessão temporal, pois o tempo, como duração, “é expresso pelas
formas das coisas”
146
, tendo, portanto, início com a formação dos entes, visto ser
medida destes últimos; medida segundo a sucessão, ou “segundo um antes e um
depois no movimento”
147
. Sendo assim, não se dá uma confusão denominada
“paradoxo do duplo tempo”, isto é, a afirmação de que haveria dois tempos: um,
com o qual a matéria foi criada (prévio e simultâneo), e o outro, no qual ela foi
142
TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 5, a9 ad8.
143
Id.
144
Cf. AGOSTINHO, Confissões, p. 363-366 et p. 391-393.
145
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a1 sol: “A matéria não foi criada sob uma
forma, mas sob diversas formas [elementares]”.
146
Cf. AGOSTINHO, op. cit., p. 393.
147
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a4 ad3: “É necessário concluir-se que, desde o
princípio, imediatamente, houve algum movimento [...e] não se pode compreender o movimento
sem o tempo, pois este não é senão a enumeração do anterior e do posterior no movimento”.
Matéria: ciência e ontologia
99
informada (posterior e sucessivo)
148
; evidentemente, este não é o caso. Há um
único tempo, ou duração, que mede o movimento e que é um atributo dos entes
materiais, com o qual se deu a criação da protomatéria e sua informação e
diversificação com as formas específicas mais básicas da corporeidade
*
. Ademais,
relembremos que a protomatéria não foi criada absolutamente informe, porém
informada (simultaneamente) por α-objetos:
As diversas formas elementares estavam nas diversas partes da matéria que,
todavia, foi dita ser informe porque ainda não havia recebido as formas dos
corpos mistos, para as quais as formas dos elementos estavam em potência e
porque os elementos ainda não estavam adequadamente situados para a produção
de tais corpos, como já foi dito.
149
[...] Se Deus produzisse um ser meramente
potencial ele faria menos que a natureza a qual produz entes atuais. Ademais,
envolve contradição seja produzido algo que é pura potencialidade, posto que o
que foi produzido precisa ser dado que é, e aquilo que é puramente potencial não
é simplesmente.
150
Em Tomás de Aquino, a distinção numérica das formas ou dos indivíduos
é dada pela matéria individuada
e sua diversidade específica pela diversidade das
formas
151
; ou seja, a matéria individualiza as espécies, cada uma delas num
sujeito. É justamente pela ausência de formas específicas que se caracteriza a
protomatéria, e por isso pode encontrar-se difusa nos indivíduos, constituindo-se
no sujeito
comum de todas as mudanças, quer essenciais quer acidentais.
148
FAITANIN, 2001b, p. 25.
*
A estrutura geométrica do espaço-tempo (micro e macroestrutura) e os componentes elementares
da matéria: subpartículas, campos ou outras.
149
TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad 13.
150
Ibid., ad. Agostinho n3. (Grifo nosso). Ou seja, o que é puramente potencial é não ser, o que
parece contradizer expressamente o argumento de que a protomatéria seja algo puramente
indeterminado entre o não-ser e o ser: a protomatéria tem ser, ainda que minimamente ser, este
dado pelas formas elementares.
Neste caso, retomamos a nomenclatura “matéria”, pois esta é a matéria sobre a qual se debruça a
ciência com vistas a elaborar conceitos como massa, energia, etc., como vimos na primeira parte.
Esta matéria que compõe cada ente individual, o qual se expande em configurações espaciais e se
move em ritmos temporais, também se denomina “matéria segunda” por encontrar-se individuada
em cada ente (em oposição a protomatéria, ou “matéria primeira” que se encontra difusa por todos
os entes), segundo aquelas dimensões espaciais e obedecendo àqueles ritmos temporais.
151
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Compêndio de Teologia, c71 n1: “A causa da diversidade existente
nas coisas produzidas por Deus não é a matéria”.
Trata-se aqui do que os escolásticos compreendem por sujeito de sustentação ou de edução, a
saber, da causa material de algum de seu complemento substancial ou acidental (Cf. TOMÁS DE
AQUINO, Suma Teológica, Suplemento, ‘Léxico’, p. *111).
Matéria: ciência e ontologia
100
Com base em Tomás, podemos sustentar que os α-objetos que informaram a
protomatéria no instante da criação não eram as formas específicas possivelmente
existentes, conquanto nestas se encontravam as razões seminais de toda a
diversidade e multiplicidade possível de formas
152
, e que, portanto, foi necessário
existirem simultaneamente na protomatéria algumas formas, mas não
absolutamente todas, e que estas não poderiam ser formas específicas”.
153
Tal
diversidade de formas elementares no interior da protomatéria convinha à
consecução das diversas formas específicas, pois,
As coisas, enquanto m ser, têm também pluralidade e unidade, pois cada coisa
enquanto é ser é também una, mas o têm o ser da forma devido à matéria. Ao
contrário, têm mais o ser da matéria devido às formas, pois o ato é melhor que a
potência, porque aquilo pelo que uma coisa existe convém que seja melhor do
que ela. Por isso, as formas não são diversas para que convenham a diversas
matérias, mas as matérias são diversas para que convenham às diversas formas.
154
Ademais, isso convinha à formação do mundo antes da sucessão temporal
ela mesma, segundo Tomás, porquanto “foram impressas na matéria informe as
formas elementares”.
155
Daí que os α-objetos que informaram a protomatéria ao
início eram formas elementares e não específicas; além do mais, situavam-se mais
proximamente à causa material do que propriamente à formal
156
. Assim, há razões
para que Tomás supusesse que os α-objetos que primeiramente informaram a
protomatéria pertenciam ao grau mínimo de perfeição das formas, na medida em
que estariam mais próximos ao ser em potência da protomatéria.
157
Daí poder-se
152
Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad12. Ver também TOMÁS DE AQUINO,
A mescla dos elementos, n.16: “As qualidades ativas e passivas dos elementos são contrárias entre
si e susceptíveis de mais e de menos [e por tais qualidades] se pode constituir uma qualidade
intermediária [...] que é a qualidade própria do corpo misto [que possui uma forma substancial
específica], conforme as diversas proporções da mescla; e esta qualidade [intermediária] é, na
verdade, a própria disposição com relação à forma [específica] do corpo do misto”. A mescla, ou
misto, ou composto, em um sentido lato: pode tratar-se de átomos, como o N
a
(sódio) e o C
l
(cloro), por exemplo, sendo então um misto (composto) de partículas; ou moléculas, como o N
a
C
l
(cloreto de sódio), tratando-se então de uma mescla (composto) de átomos.
153
Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad13: “A matéria [primeira] não careceu de
toda forma, mas teve em suas diversas partes diversas formas elementares”.
154
TOMÁS DE AQUINO, Compêndio de Teologia, c71 n2.
155
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q69 a1 sol.
156
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Comentário al Libro VII de la Metafísica de Aristoteles, Lectio 17
n 1679: “Os elementos pertencem à causa material”.
157
Cf. TOMÁS DE AQUINO, A mescla dos elementos, n.9: “As formas dos elementos são
imperfeitíssimas, justamente por estarem, por natureza, mais próximas da matéria primeira”.
Matéria: ciência e ontologia
101
propor, a partir dessa formulação, que os α-objetos no interior da protomatéria
deram origem às formas específicas mais elementares da estrutura do mundo: o
estado fundamental da geometria do mundo e os componentes estruturais que
possibilitam nossa compreensão acerca da matéria (“matter”): subpartículas,
campos ou outras formas fundamentais. Do exposto até então, um aspecto
conspícuo para nosso trabalho: a protomatéria, enquanto “ser em potência”, é
fonte de edução
158
de novas formas (específicas) a partir de interações que
ocorrem entre os α-objetos no interior da protomatéria. Examinemos, pois,
pormenorizadamente, esses conceitos à luz do que encontramos na natureza no
nível subatômico. Para isso, iniciaremos esta análise com base em algumas
considerações realizadas por Wallace
159
acerca de um modelo metafísico para a
filosofia da natureza
*
. Este autor, em perfeita sintonia com as demandas de
inteligibilidade suscitadas pela exposição acima, propõe-nos a seguinte questão:
“Se as substâncias químicas são compostas por átomos e moléculas, e estas, por
sua vez, são compostas por elétrons, prótons e nêutrons, o que mais se pode dizer
sobre o material a partir do qual estes últimos são feitos?”
160
Ainda que suponhamos que elétrons, prótons e nêutrons sejam compostos
por partículas ainda menores, mais elementares, tal divisão teria um limite? A
saber, algum ponto que atenda à demanda pelo substrato último do qual todo e
qualquer ente material é composto? A física nuclear (e de partículas) levou à
158
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Suplemento, ‘Léxico’, p. *77: “Edução, ou uma
coisa ser eduzida de outra, significa que alguma coisa começa a existir, de tal modo que seja
necessário um sujeito [a protomatéria, em nosso caso], no qual a referida coisa seja produzida e
conservada; ou então, o que é a mesma coisa, edução é a ação que produz algo proveniente de um
sujeito predisposto [a protomatéria]. [...] Ser eduzido da potência é tornar-se ato aquilo que antes
estava em potência, o que depende da matéria, e se faz por um agente natural”.
159
Cf. WALLACE, 1996, p. 53-63.
*
A filosofia da natureza, em nosso trabalho, propõe-se ser uma investigação complementar às
ciências experimentais, segundo a proposta de Maritain, como tivemos oportunidade de enfocar no
capítulo anterior. A rigor, trata-se de recuperar o valor epistemológico de uma análise ontológica
da natureza, conforme havia sido proposto por Aristóteles em sua Física. Visto que, na Física,
Aristóteles propôs uma ciência experimental (empiriologia) e uma filosofia natural (ontologia),
entrelaçadas de tal forma que não se procedeu à substituição da antiga ciência dos fenômenos
(repleta de erros, bem como ineficiente e incapaz de desenvolver-se autonomamente) pela nova
ciência experimental de base matemática, que surgiu nos séculos XVI e XVII, mantendo-se a
análise ontológica (correta, embora não definitiva, capaz de desenvolver-se com os novos aportes
epistêmicos que surgem das ciências experimentais), o antigo projeto aristotélico-platônico parecia
estar destinado a manter separadas e incomunicáveis a análise epistêmica (ou empiriológica, pela
terminologia sugerida por Maritain) e a análise ontológica da natureza. Certamente, este não é o
caso; trata-se de mostrar como ambos os domínios podem comunicar-se e interagir, o que é um dos
objetivos deste trabalho.
160
WALLACE, op. cit., p. 53.
Matéria: ciência e ontologia
102
descoberta de centenas de novas partículas e antipartículas, classificadas como
bárions, hádrons, mésons, léptons, férmions, bósons, etc., entre as quais prótons,
nêutrons e elétrons. A partir dos trabalhos de Murray Gell-Mann, em 1961 e em
1964
161
, introduziu-se o quark como componente subatômico responsável pela
força de ligação entre os prótons e outras partículas que interagem por meio do
campo forte
*
. Associados às diversas fontes das interações fundamentais, campos
ou partículas, encontram-se os princípios de conservação (energia, momentum,
paridade, spin, etc.). Ora, tais princípios encontram na protomatéria sua
inteligibilidade, à medida que a protomatéria é o substrato ou suporte material
comum, difuso em todos os entes, incluindo os próprios quarks e outros building
blocks da matéria (“matter”), pois, como ser em potência, constituída pelos α-
objetos
, está em potência para as formas específicas, entitativas, ainda que estas
formas entitativas possuam um conjunto mínimo de especificidades, assinaladas
quantitativamente
-- carga, spin, momentum, massa, etc. --, de tal modo que tais
especificidades são, elas mesmas, indicativas do caráter entitativo de que se
revestem as formas naturais
, NF
. Se tais formas naturais não se encontram em
estado “livre” na natureza, isto é, se apenas as encontramos compondo outros
entes naturais “estáveis”, então se trata de formas naturais transientes, NF
t
, as
quais, diferentemente das primeiras, não são dotadas de alguma propriedade que
excite nossa experiência sensória. Os elementos químicos da tabela periódica e
seus compostos apresentam formas naturais estabilizadoras, e suas atividades e
reatividades podem ser compreendidas à luz dos campos gravitacional e
eletromagnético, ao passo que a necessidade de introduzirmos campos, como os
161
Cf. WALLACE, op. cit., p. 55.
*
Apenas relembrando, são quatro as “forças” ou “campos” (a força forte, responsável pela
ligação de prótons e nêutrons no interior do núcleo atômico; a força fraca, responsável pelo
decaimento de partículas e pela radioatividade; a força forte, responsável pelo eletromagnetismo e
pela ligação dos elétrons ao núcleo atômico; e, por fim, a força gravitacional, responsável pela
estrutura e topologia do espaço-tempo em escala cósmica, incluindo a formação das galáxias, a
estabilidades de sistemas planetários e a existência de atmosfera e de vida nos planetas) que
interatuam na natureza, produzindo a estrutura da matéria (‘matter”), tanto em escala
microscópica, quanto macroscópica. Ver HAWKING & PENROSE, 1996. Ver também SALAM
et al., 1993.
Que não são, como vimos, dotados de caráter entitativo específico ou individual.
Trata-se do acidente (categoria ontológica) quantidade, na medida em que está, segundo Tomás,
vinculada a uma matéria designada espaço-temporalmente, ou ‘matéria assinalada pela quantidade’
(materia signata quantitate).
“Forma natural” é a mesma coisa que forma substancial, mas restrita ao mundo natural; ou seja,
Wallace tenta evitar alguma remissão a entes metafísicos que não façam parte da natureza.
NF é a notação sugerida por WALLACE, op. cit., p. 56.
Matéria: ciência e ontologia
103
campos forte e fraco, indica certa ausência de estabilização e, por isso, os entes
subatômicos são caracterizados mais por sua transiência do que por sua
estabilidade
. Ora, podemos concluir, auxiliados pela exposição de Wallace, que o
grau de transiência de um ente natural
é um indicador de sua proximidade à
protomatéria. Ora, a proximidade à causa material também explicaria
162
adequadamente a própria diversidade específica bem como o porque de haver
certas disposições naturais em certos corpos, mas não em outros; justamente por
serem formas elementares e não específicas, como NF e NF
t
, os α-objetos
possibilitam as conexões que dão origem a alterações e movimentos na essência
da protomatéria, bem como permanecem virtualmente nos compostos
163
.
Também os α-objetos não poderiam ser em número infinito no interior da
protomatéria, nem tampouco ser apenas um único, porquanto,
Teríamos que admitir que esta única forma [forma elementar ou α-objeto]
informou de modo comum toda a matéria prima [protomatéria], enquanto que
desta comunicabilidade sairia toda a diversidade e incomunicabilidade
específicas [... desse modo] não foi apenas uma senão diversas formas
elementares que informaram a matéria em diversas partes
164,
Como, por exemplo, o sódio (Na) ou o cloro (Cl).
Que poderia ser medido, por exemplo, por um número associado em proporção direta com seu
tempo de vida média em estado “livre”, ou na razão inversa da força por unidade de distância
associada ao potencial do campo.
162
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Comentário al Libro VII de la Metafísica de Aristóteles, Lectio 17
n.1679: “Os elementos pertencem à causa material”.
163
Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Mixtione Elementorum, n.18: “As formas dos elementos estão
presentes nos corpos mistos, mas não em ato, senão virtualmente”.
164
FAITANIN, 2001b, p. 47. Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad13: “A
matéria [primeira] tinha em diferentes partes diferentes formas elementares. [...] Todavia chamava-
se matéria sem forma porque não tinha ainda advindo à matéria [prima] as formas dos corpos
mistos [compostos], para as quais as formas elementares estão em potência, e a situação dos
elementos não era ainda apta [não haviam ainda sido alterados em suas qualidades ativas e
passivas] àquela geração”.
A incomunicabilidade é aquilo pelo qual um determinado ente, por exemplo, uma partícula, se
constitui em um indivíduo (sujeito), possui unidade, é distinto de todos os demais entes, bem como
pode existir segundo uma multiplicidade de sujeitos ou indivíduos. Neste sentido, a protomatéria
“nem é princípio de individuação nem de incomunicabilidade da essência corpórea”; ou seja, “por
ser pura potência, é potencialmente comunicável e sujeito de diversas formas”. Cf. FAITANIN,
2001a, p. 227. Por outro lado, a comunicabilidade de uma essência significa que uma tal essência
pode estar virtualmente numa outra como, por exemplo, a essência do elemento está virtualmente
no ser do composto. Foi necessário Tomás propor que a protomatéria em sua origem foi dotada de
diversas partes com vistas a receber diversas formas específicas segundo essas diversas partes. Em
Matéria: ciência e ontologia
104
Ademais, segundo Aquino, as formas elementares (α-objetos) não
estavam de modo comum em todas as partes da matéria (protomatéria), pois a
diversidade de formas específicas supõe a diversidade das partes da matéria
*
; cada
uma destas é informada pelas formas elementares por meio de suas qualidades
ativas
, estando localizada cada uma das formas elementares onde potencialmente
tem que estar no interior da matéria. Obviamente, que se entender aqui
localização lato sensu, de modo distinto do que usualmente fazemos stricto sensu
com a atribuição de coordenadas geométricas.
Isto não significa que existam em ato na matéria, senão que na potência da
matéria estão em diversas partes por causa da distinção de suas respectivas
qualidades ativas. Neste sentido, a qualidade ativa de uma forma elementar não
está na mesma parte da matéria em que se encontra sua oposta. Contudo, [no
composto,] as formas elementares contrárias estão unitiva e virtualmente
presentes, ainda que potencialmente diversas. Por isso, [naquele,] tais qualidades
são passivas, e mesmo que opostas, encontram-se agregadas no todo substancial
do composto
165
.
Em nossa proposta, essa localização é potencial no sentido de que os α-
objetos (as formas elementares) se encontram ligados entre si, constituindo-se esta
ligação num estado de
α
-objetos no interior da protomatéria, ou
α
-estado. Cada
estado é dinâmico, a saber, modifica-se segundo uma seqüência finita de estados.
Justamente o caráter potencial da protomatéria consiste nessa dinâmica de estados
seqüenciados. O estado final ou
ω
-objeto projeta-se espaço-temporalmente --
torna explícito o que estava implícito no interior da protomatéria
--, sendo essa
projeção aquilo que os escolásticos denominavam edução. Cada composto natural
nosso caso, como teremos oportunidade de expor, as diversas formas específicas são eduzidas a
partir de movimentos e alterações dos α-estados em diversos domínios da protomatéria.
*
A preocupação de Tomás de Aquino é clara: apresentar a condição pela qual se a diversidade
das formas específicas a partir das formas elementares; como mencionamos em nota anterior,
mostraremos que esta condição pode ser obtida por um outro enfoque que torna desnecessário
afirmar tal diversidade das partes da protomatéria.
Trata-se do acidente (categoria ontológica) qualidade, tomado em sentido amplo, significando
qualquer atributo que se enuncia acerca de algo quando se procura qual é a causa em si mesma
(intrínseca). Qualidade ativa é aquela pela qual se age, atua; qualidade passiva é aquela pela qual
se recebe alguma coisa (Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Suplemento, ‘Léxico’, p.
*103).
165
Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Mixtione Elementorum, n. 6-13. Ver também TOMÁS DE
AQUINO, Sobre las Operaciones Ocultas de la Naturaleza, n.448-451.
O significado de explícito e implícito será visto no último capítulo; não obstante, julgamos
oportuno desde já introduzir os termos, associando-os à protomatéria.
Matéria: ciência e ontologia
105
(trata-se de um composto de matéria e forma, como propõe Aristóteles) é, por
conseguinte, uma projeção espaço-temporal do estado final de uma seqüência
finita de estados de α-objetos no interior da protomatéria. Mais adiante,
proporemos um modelo para esse seqüenciamento de estados. A cada estado
podemos associar uma localização no interior da protomatéria, de tal forma que,
preciso esclarecer que] o estar potencial num lugar [localização] não significa
que [os α-objetos] possuíram suas qualidades e propriedades em ato, porque este
lugar [...] é potencial e se refere ao lugar onde se daria a geração dos
compostos
166
.
Além disso,
[As formas que informam a matéria prima não são iguais por natureza às dos
compostos], pois se distinguem efetivamente segundo os graus de perfeição: as
formas da materia prima não são específicas porque as formas específicas são
extraídas da essência da matéria prima e se diversificam especificamente umas
das outras
167
.
Ora, é necessário supor que os α-objetos mantêm suas qualidades ativas e
passivas no interior da matéria primeira, e que as combinações que resultam de
sua mescla
*
entre si (α-estados ou α-objetos) são potencialidades ativas para a
edução das formas específicas dos compostos. No entanto, cada estado final da
seqüência (ω-objeto) prepara a edução, que nada mais é do que uma operação de
projeção de um ω-objeto no espaço-tempo. Por conseguinte, é fundamental a
presença destes últimos nos compostos por possuírem a memória dos nculos
ontológicos (sendo o último estado das seqüências de α-estados) no interior da
protomatéria, vínculos que se encontram virtualmente presentes nos compostos, e
em potência, de tal maneira que estes possam recombinar-se a partir de suas
166
FAITANIN, 2001b, p. 51. Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Potentia Dei, q4 a1 ad4.
167
Id.
*
“Mescla de elementos”, como a denominará Tomás de Aquino (Cf. TOMÁS DE AQUINO, De
Potentia Dei, q4 a1 ad13: Várias formas elementares estão em potência para a consecução da
mescla”). Essa mescla de elementos (α-objetos) no interior da protomatéria assemelha-se à mescla
de formas elementares (por exemplo, partículas) que se combinam para formar os compostos (por
exemplo, átomos). Obviamente, a mescla ou combinação no interior da protomatéria não envolve
elementos que estejam em ato, mas em potência (Id.).
Matéria: ciência e ontologia
106
formas específicas
, pois seus ω-objetos podem combinar-se num outro ω-objeto
projetável espaço-temporalmente, dando origem ao composto
*
.
Na seqüência de α-estados localizados num domínio
R
da protomatéria,
[
]
1 2
( ), ( ),..., ( ) ( )
n
R R R R
α α α ω
=
, o n-ésimo α-estado (que é o ω-objeto) está “pronto”
para ser projetado no
espaço-tempo, pois corresponde ao ω-estado para edução. Os α-objetos (ou α-
estados)
( )
j
R
α
no domínio
R
são estágios de preparação da seqüência naquele
domínio para a edução de uma forma. Vale dizer que nada impede que o domínio
R
seja ele mesmo um conjunto finito de subdomínios quaisquer
j
R
no interior da
protomatéria, isto é, , j
j j
R R
= Λ
, sendo
Λ
um conjunto arbitrário de
índices. Portanto, a existência de α-estados prescinde de algum tipo de
diversidade com a qual os α-objetos informem os diversos domínios da
protomatéria, podendo inclusive informar de modo comum às diversas partes da
mesma dado que o processo de edução de uma forma específica ocorre pela
existência do seqüenciamento propriamente dito. Além disso, podemos, baseando-
nos em Tomás, sustentar que o agente físico da edução não é senão o
seqüenciamento mesmo de α-estados no interior da protomatéria
168
. Do mesmo
modo, um número indeterminado, porém finito, de α-objetos a partir dos quais
se eduzem as formas da realidade corpórea, porquanto,
Não obstante os α-objetos não possuírem caráter entitativo, como vimos, são dotados de
atividade por meio de suas qualidades ativas, que lhes asseguram estar em potência ativa no
interior da protomatéria. Potência ativa é a capacidade de produzir efeito (Cf. TOMÁS DE
AQUINO, Suma Teológica, Suplemento, ‘Léxico’, p. *97). Um exemplo pode ser aduzido: cada
subpartícula presente no átomo de sódio está associada a um ω-objeto no interior da protomatéria;
do mesmo modo, isto se aplica a cada subpartícula no átomo de cloro. Por sua vez, a
recombinação das subpartículas, em ambos os átomos, a partir de seus ω-objetos de origem em um
ω-objeto resultante permite a edução do composto cloreto de sódio.
*
Veremos no capítulo terceiro como são as álgebras referentes aos α e ω-objetos,
respectivamente.
Procuraremos, no capítulo seguinte, esboçar as condições que definem que um α-estado se
encontra ‘pronto’ para ser projetado espaço-temporalmente, e o que envolve esta operação de
projeção.
168
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, III
a
q32 a4, e também TOMÁS DE AQUINO,
Octo Libros Physicorum Aristóteles Expositio, VIII Physica Lectio 8 n.1029.
Matéria: ciência e ontologia
107
O fato de que foram muitas as formas que informaram a matéria em sua origem
não significa que foi um número infinito, senão um número de formas
elementares em que se definisse potencialmente o número total das possíveis
formas corpóreas que pudessem ser extraídas a partir de seus princípios
elementares [...]. Tampouco poderia ser apenas uma única forma [que informou a
protomatéria... nem] determinado o número de formas, que dela se pudessem
eduzir. Neste sentido sua potência [da protomatéria] não poderia ser estritamente
falando absolutamente finita, porque dela se eduz, efetivamente, uma diversidade
ignorada de formas [...] E nossa ignorância do número de formas, que dela se
podem extrair, tem a ver com a potencialidade da matéria [protomatéria] e não
simplesmente com nosso conhecimento imperfeito. Se desconhecemos quão
potencial é a matéria primeira em sua natureza
*
, então não podemos determinar
com exatidão o número de formas que dela se podem eduzir ou extrair
169
.
Por outro lado, a estrutura geométrica do espaço-tempo, seus aspectos
topológico e métrico, quer em macro-escala quer em micro-escala
, é ela mesma
uma edução da protomatéria, edução fundamental podemos afirmar, dado que a
edução das formas corpóreas específicas, mesmo as mais simples, subentende a
presença de uma topologia do espaço-tempo
que lhes está estreitamente unida.
Assim, podemos afirmar que a toda edução de uma forma específica desde o
interior da protomatéria está subentendida uma estrutura métrica espaço-
temporal. Esta formulação é conseqüência da tese tomista da concriação do
tempo
com a protomatéria e provê a condição do seqüenciamento temporal dos
α-estados, bem como a existência destes como conseqüência do movimento e das
várias mudanças e alterações dos α-objetos no interior da protomatéria
170
. Por sua
vez, esta tese permite que sustentemos que os ω-objetos, que se encontram
prontos para serem projetados no espaço-tempo, foram gerados a partir das
sucessivas alterações temporais dos α-objetos no interior da protomatéria. Há,
portanto, duas teses que são fundamentais para a compreensão de nossa proposta:
*
Daí nossa proposta de uma formulação estocástica para a edução de formas, a ser investigada
futuramente, como veremos nas considerações finais deste traballho. Propomos tão-somente, para
fins desta dissertação, uma formulação algébrica que poderá vir a ser estendida numa investigação
posterior, de modo a permitir um tratamento de natureza estocástica para certos processos
dinâmicos do interior da matéria.
169
FAITANIN, 2001a, p. 281-282.
Refere-se à sua conformação topológica e métrica em comprimentos inferiores ao comprimento
de Planck, a saber, a distâncias inferiores a 10
-35
m.
Pela qual é materia signata quantitate (matéria assinalada espaço-temporalmente, ou segundo
dimensões).
Ontologicamente considerado, isto é, como medida da sucessão segundo o antes e depois, como
vimos acima.
170
Cf. TOMÁS DE AQUINO apud FAITANIN, op. cit., p. 279-280.
Matéria: ciência e ontologia
108
A criação da protomatéria coincidiu com o início do tempo e em sua
essência ela foi informada pelos α-objetos;
Os entes naturais mais simples acerca dos quais podemos pensar
(subpartículas, campos, etc.) puderam desde o início (do tempo) ser
formados a partir das alterações dos α-objetos concriados com a
protomatéria.
Uma conseqüência relevante deste estudo consiste em prover o suporte
ontológico a propostas da física moderna com respeito à multiplicidade de entes
fundamentais, como é o caso da teoria das cordas, visto esta lidar com um número
infinito de partículas
171
, bem como é o caso da multiplicidade de aspectos
potenciais dos campos, especialmente campos de caráter não-linear, como o
gravitacional, cuja riqueza estrutural remete-nos à característica fundamental da
protomatéria, ou sua potência, que,
Estritamente falando, não pode ser finita porque dela se extrai, efetivamente, uma
diversidade desconhecida de formas. E nosso desconhecimento acerca do número
das formas que se eduzem relaciona-se com a potencialidade da matéria e não
simplesmente com o nosso conhecimento imperfeito. Se não sabemos quão
potencial é a matéria primeira em sua natureza
*
, não podemos determinar com
exatidão o número diversificado das formas que dela podem ser extraídas
172
.
Esse desconhecimento está radicado no aspecto metafísico da
potencialidade da protomatéria, o que não deve, contudo, levar-nos a concluir que
a protomatéria seja infinita pura e simplesmente. Concluímos da exposição até
este ponto que, acerca da análise ontológica da protomatéria, podemos perfilar os
seguintes pontos:
171
Cf. WEINBERG, 1995, p.xxi.
*
Com efeito, em nosso trabalho a potencialidade da protomatéria é abordada por um modelo
algébrico, como teremos oportunidade de ver no capítulo posterior; isto é, trata-se de, com
fundamento na ontologia que ora descremos, prover um modelo intermediário entre a ontologia e a
quantidade (veremos melhor o que significa esse grau intermediário no capítulo seguinte), de tal
forma que uma álgebra ontológica possa dar conta, do ponto de vista epistêmico, não da totalidade
das relações -- potencialmente desconhecidas -- que podem realmente ocorrer no interior da
protomatéria, mas da estrutura inteligível de tais relações para nós.
172
FAITANIN, 2001b, p 58.
Matéria: ciência e ontologia
109
A protomatéria não foi criada absolutamente informe, porém é ser em
potência;
Simultâneo à criação da protomatéria com os com α-objetos foi
concriado o tempo;
A protomatéria foi criada apta a receber uma quantidade
indeterminada, mas não infinita, de formas específicas e diversas, de
modo posterior e sucessivo;
Todas as formas naturais simples que detectamos como estruturas
fundamentais da matéria qua fenômeno (“matter”) foram eduzidas da
potência da protomatéria;
A edução de formas específicas da potência da protomatéria consiste
numa seqüência de estados de α-objetos na essência da protomatéria,
estados que se estabelecem por meio das sucessivas alterações das
qualidades desses α-objetos no interior da essência da protomatéria;
A protomatéria é o ser mais comunicável entre todos os entes naturais
por sua essência encontrar-se, como ser em potência, na essência de
cada um deles; portanto, os α-objetos que dão o mínimo de ser à
protomatéria são comunicáveis a todos os entes naturais. A razão da
comunicabilidade da protomatéria e dos α-objetos reside em que seu
ser mínimo é ser em potência; caso possuíssem alguma perfeição em
ato seriam em si mesmos incomunicáveis
*
.
Os pontos anteriormente perfilados fundamentam-se em quatro razões
pelas quais se justifica que a matéria primeira (protomatéria) foi informada em sua
essência por diversas (em número finito) formas elementares (α-objetos), segundo
Tomás de Aquino
173
:
*
A incomunicabilidade de algo decorre do fato de este algo possuir alguma perfeição atual, p. ex.,
ao momento magnético dos férmions está associado seu spin, que é um número fracionário; ora,
sendo algo já quantificado espaço-temporalmente, designa uma perfeição específica dos indivíduos
fermiônicos. Na medida em que expressa, sub rationis quantitate, uma perfeição destes indivíduos,
não está designada pelo mesmo valor a outro grupo de indivíduos, os bósons; estes últimos
possuem momentos magnéticos associados a spins inteiros.
173
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Comentário ao Libro V de la Metafísica de Aristóteles, n.795-798.
A única diferença na exposição dessas razões entre nosso texto e os de Tomás no comentário à
Matéria: ciência e ontologia
110
1. Os α-objetos são, em razão de sua natureza elementar, causa ex quo,
ou seja, são a causa material de todos os corpos.
2. Além de causa material, os α-objetos são o princípio constitutivo
primeiro de todos os corpos materiais.
3. Os α-objetos são intrínsecos às essências das coisas corpóreas, visto
que devem permanecer presentes intrinsecamente nas essências das
coisas das quais são elementos constitutivos.
4. Cada α-objeto possui uma determinação, isto é, possui um caráter
elementar, com perfeição própria, pelo qual difere de outro α-objeto
no interior da essência da protomatéria.
Devemos, por fim, aduzir algumas considerações acerca da natureza
*
da
protomatéria. Em primeiro lugar, a protomatéria não é um ente de razão, pois
vimos que ela possui um caráter entitativo, é um ente real, ainda que ser em
potência, dado pelos α-objetos em seu interior. Poderíamos pensar então que dado
o caráter entitativo da protomatéria, o conceito que dela temos é tão-somente um
universal, abstraído de sua essência real. No entanto, a protomatéria não é um
indivíduo e, portanto, não se trata de um conceito predicado de muitos, ou de um
só, neste caso. A protomatéria é sujeito comum, como vimos, de todos os entes
naturais, pois está em potência para receber as diversas formas específicas das
coisas, e os α-objetos que informam a protomatéria não lhe atribuem um caráter
entitativo específico, não lhe determinam como um ente particular, pois de outra
forma não poderia ser sujeito de todas as formas específicas corpóreas, e mesmo
da forma do espaço-tempo, na medida em que este seja definido como o ente
fundamental no qual são projetadas as formas específicas dos entes naturais. Os
escolásticos propuseram uma terminologia adequada para designar a diferença
essencial entre a protomatéria, ser real, concreto, mas não específico, e a matéria
comum, ou inteligível, universal, ente teórico
que nos permite reconstruir
racionalmente a estrutura física do real, rastreado pela ciência experimental: a
Metafísica de Aristóteles de Tomás reside na terminologia:
α
-estado por elementum, e
protomatéria por materia prima.
*
Conquanto se tome usualmente essência e natureza por sinônimos, cabe fazer uma distinção
relevante aqui: natureza é aquilo pelo qual um certo ente natural é ativo, opera, interage; essência
é aquilo pelo qual um certo ente é estável, possui consistência, é o que é e não outra natureza.
Como o são as supercordas, ou o campo gravitacional, ou os wormholes da gravitação quântica.
Matéria: ciência e ontologia
111
protomatéria é materia ex-qua, a saber, sujeito comum de todas as formas
específicas presentes na natureza, ou dito de outra maneira, substrato real a partir
do qual são projetadas no espaço-tempo as formas específicas; por outro lado, a
matéria inteligida pela ciência nos entes naturais é materia in-qua, a saber, um
universal que especifica aquilo que é projetado no espaço-tempo
174
.
Ora, para Tomás, o primeiro sujeito da geração e da corrupção substancial
é a protomatéria, na qual se fundamenta toda a produção dos corpos
. Além do
mais, a produção da protomatéria não pode ser feita a partir da protomatéria, pois
“da matéria não se extrai a matéria”.
175
Isto significa dizer que não há uma
causalidade
*
específica da protomatéria senão que ela é o primeiro sujeito a partir
do qual (ex-qua) os corpos foram extraídos. Ademais, a protomatéria, na medida
em que está em potência para receber qualquer forma específica, “não pode
desaparecer enquanto tal, porém deve necessariamente estar isenta tanto de
corrupção quanto de geração”.
176
Isto quer dizer que a protomatéria é algo
“criado”, pois nela mesma não pode ter seu início, senão a partir do não-ser
(nada), nem em si mesma seu término, senão no não-ser,
Pois o que chamo matéria [protomatéria] é precisamente o sujeito último,
subjacente, comum a todas as coisas da Natureza, pressuposto como seu
constituinte substantivo, não acidental. E mais, a destruição de uma coisa
significa o desaparecimento de tudo o que a constitui à exceção exatamente deste
mesmo último sujeito subjacente cuja existência é pressuposta, e caso este fosse
destruído, então a coisa que o pressupõe teria sido com ele destruída
antecipadamente, antes mesmo que viesse a existir.
177
Por outro lado, deve-se ter em conta que a protomatéria, sujeito comum da
geração e corrupção, nunca se apresenta sem estar associada a alguma forma
178
.
174
Cf. FAITANIN, 2001b, p. 82-85.
Por edução, conforme vimos.
175
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Sobre la Naturaleza de la Materia y las Dimensiones
Indeterminadas, p. 49.
*
Sob a perspectiva ontológica das quatro causalidades constitutivas dos entes naturais:
causalidades eficiente e final (extrínsecas aos entes) e causalidades formal e material (intrínsecas
aos entes); ou seja, a protomatéria não é gerada por quaisquer das quatro causas.
176
Cf. ARISTÓTELES, The Physics, I c9 192 a 26-35.
177
Id.
178
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Sobre la Naturaleza de la Materia y las Dimensiones
Indeterminadas, p.52: “E sendo a geração o término da ação física, quer dizer, da alteração, a qual
requer sempre um sujeito que exista em ato, a causa da natureza do movimento, requer também
que a matéria, que é sujeito da geração, nunca exista sem forma”.
Matéria: ciência e ontologia
112
Portanto a protomatéria, por estar despojada de formas específicas, não é, em si
mesma, cognoscível
, a não ser por meio de uma forma especificante; daí que
Tomás afirma ser “necessário conhecer primeiro a forma e por meio dela
investigar a natureza da matéria”.
179
Por isso, em nossa proposta de uma álgebra
ontológica haverá o recurso freqüente à inteligibilidade das formas que são co-
princípio, junto com a protomatéria, da natureza dos entes reais. Ademais, a
formulação de um modelo algébrico para a teoria hilemórfica baseia-se no fato
concreto dos entes sub-microscópicos
*
se constituírem em uma composição de
protomatéria e de forma substancial específica que lhes permitem possuir
dimensões espaço-temporais e “existir aqui e agora, na medida em que são
demonstráveis aos sentidos [ou a nossos dispositivos de medição]”
180
, porque,
segundo Tomás, “é impossível que a forma seja recebida na matéria sem que se
constitua o corpo [...] cuja marca são as dimensões elas mesmas”
181
. Como
entende então Aquino que os entes naturais possam ser gerados fisicamente,
segundo uma linha de causalidade material, a partir da protomatéria? Uma
primeira observação que nos faz o autor é a de que qualquer transformação que
ocorre na natureza não altera a essência da protomatéria, pois quando se considera
que esta última é o sujeito comum de todas as mudanças substanciais, este sujeito
comum, isto é, a protomatéria, permanece em si mesmo (em sua essência)
inalterado, e por isso é possível às mudanças ocorrerem na natureza e serem
epistemicamente abordadas por meio de mecanismos explicativos que são
formulados através de padrões e de leis naturais. A presença desses padrões e leis
naturais permite a abordagem epistêmica dos fenômenos naturais e o
estabelecimento de relações de causa e efeito porque um sujeito que não se
altera nas interações que ocorrem na natureza, e que funciona como um princípio
de conservação metafísico, subjacente às interações.
Ou seja, não é cognoscível absolutamente, mas o é relativamente, pois um dos intentos principais
de nosso trabalho é justamente apresentar um modelo mínimo, se podemos dizer assim, de
inteligibilidade da matéria (protomatéria, relembrando), i.e., um modelo minimal de
cognoscibilidade para a essência da matéria.
179
Ibid., p. 54.
*
Não obstante este raciocínio aplicar-se mutatis mutandi aos demais entes presentes na natureza,
não importa o quão complexos sejam do ponto de vista de sua composição, enfocaremos, em nosso
estudo, os entes “mínimos”, a saber, aqueles que se constituem sob o ponto de vista da ciência na
estrutura fundamental da matéria.
180
Ibid., p. 57.
181
Ibid., p. 58.
Matéria: ciência e ontologia
113
Em segundo lugar, Tomás entende que o ente natural (ou composto) é “o
resultado da mutação da matéria para a forma que ela possuía em potência”
182
, e
que tal ocorre segundo uma direcionalidade presente na natureza, isto é, que
aspectos teleológicos, segundo uma perspectiva de causalidade final
, mediante
os quais todos os entes criados, incluindo a protomatéria, atuam na direção de seu
auto-aperfeiçoamento, a saber, na direção de buscar realizar uma perfeição que
ainda não possuem atualmente. A protomatéria possui igualmente uma potência,
e uma potência extraordinária, máxima, justamente por ser ente em potência, que
“se refere à sua perfeição própria [atingida] por meio da forma [substancial] e da
diversidade das partes que constituem o composto [o ente natural]”
183
. Por
conseguinte, a protomatéria está dotada de uma amplitude potencial máxima,
abarcando simultaneamente todas as formas, quer as elementares (α-objetos), que
as especificadoras, que são as formas substanciais dos entes naturais a serem
eduzidas por algum agente suficiente
*
. Ademais, a protomatéria não é dotada de
qualquer tipo de diversidade que se estabeleça por meio de dimensões como, por
exemplo, alguma “distância” mensurável entre quaisquer dos α-objetos em seu
interior, ou algum tipo de disposição e configuração espacial dos mesmos, etc.
Isso decorre de nossa proposta de a estrutura espaço-temporal do mundo ser, ela
mesma, um estado fundamental eduzido da protomatéria, pela qual os ω-objetos já
estão dotados de propriedades mensuráveis quando projetados no estado
fundamental. Entendemos que isto é corroborado pelo seguinte texto do Aquinate:
O fato de que diversas formas podem ser recebidas, simultaneamente na matéria,
como são as quatro formas elementares
e as diversas formas dos compostos,
182
Ibid., p. 66.
Que não será abordada especificamente neste trabalho, por não contribuir de forma relevante para
os objetivos que temos em vista.
183
Ibid., p. 67.
*
Novamente: para fins dos objetivos deste trabalho, não cabe investigar a natureza deste agente
suficiente que eduz as formas específicas, mas o-somente propor um mecanismo suficiente para
sua edução desde o interior da protomatéria.
Tomás segue Aristóteles no que se refere à existência de quatro elementos que compõem a
causalidade material dos entes naturais: ar, terra, fogo e água; no entanto, o Aquinate nos chama a
atenção para o fato de que não é enquanto entes específicos, substâncias, como pensavam os
antigos físicos pré-socráticos, que estes elementos estão na essência da protomatéria, mas
enquanto “formas elementares”, não específicas, pois “[Os antigos físicos] ensinavam ser a
matéria prima algum corpo em ato, como o fogo, o ar, a água ou um corpo médio. Donde resultaria
que o vir-a-ser não seria senão o alterar-se. Porque essa forma precedente, dando o ser atual, no
gênero da substância, e tornando o ser tal e não tal outro resultaria que a forma superveniente
[específica] não causaria simplesmente o ser atual, mas um ser atual, o que é próprio à forma
acidental; e portanto as formas seguintes seriam acidentes, em relação aos quais não geração,
Matéria: ciência e ontologia
114
ocorre a partir da amplitude proporcional da própria matéria com respeito a suas
formas e o por causa de alguma diversidade que pré-existisse na matéria em
razão de alguma quantidade. Donde se pode concluir que para a recepção das
diversas formas não é necessário que pré-exista na matéria alguma diversidade de
partes, porém é necessário que lhe suceda recepção das formas], e isso porque
a introdução de diversas formas é a geração de diversos compostos, possuidores
de diversas partes, tal como já dito.
184
A saber, após a edução já há a composição simultânea
de matéria e forma
específica que resulta nos diversos entes naturais. A partir de então, com a forma
natural projetada no espaço-tempo, temos partes quantificadas, ou seja, os entes
elementares que constituem a estrutura epistêmica fundamental da matéria
assinalada
*
já possuem existência quantificada espaço-temporalmente, situando-se
em algum “lugar” segundo a topologia local do espaço-tempo, além de lhes
estarem associadas propriedades mensuráveis tais como massa, momento
magnético, carga, energia cinética etc. Por outro lado, as formas naturais (NF ou
NF
t
) não são inseridas desde o exterior, ou seja, desde fora da protomatéria mas
são eduzidas de sua potencialidade, como vimos, pois,
As formas não são dadas a partir de fora, senão extraídas da potência da matéria,
por meio de uma transmutação própria [...] e é impossível pôr na matéria
qualquer divisão prévia à forma substancial, pois a introdução da forma
substancial é a geração do próprio composto [ω-objetos], o único que
essencialmente possui partes”
185
.
mas alteração. Portanto, deve-se dizer que a matéria prima nem foi criada completamente sem
forma, nem com forma comum, senão com formas distintas [as formas elementares ou α-objetos]”
(TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a1 sol).
184
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a1 sol.
Essa simultaneidade de que falamos não está sujeita à relatividade de referenciais; trata-se de
uma simultaneidade “metafísica” e não “física”; esta última, sim, está sujeita aos postulados
relativistas e sujeita à localidade espaço-temporal (abordamos esta última no quarto capítulo). Uma
abordagem excelente acerca do conceito de simultaneidade, na teoria da relatividade e em
filosofia, encontra-se em MARITAIN, 1924, Appendice III, p. 346 -371.
*
Não estamos particularmente preocupados se a tratativa presente, e futura, penderá numa direção
(partículas) ou noutra (campos), ou noutras ainda em desenvolvimento (cordas, membranas, etc.),
ou ainda como uma composição delas. Em quaisquer dos casos, a análise empírica da realidade,
desde alguma teoria bem-sucedida experimentalmente e aceita pela comunidade científica, implica
algum tipo de composição da qual emirja a corporeidade, e esta corporeidade se nos apresenta
como um fenômeno espaço-temporal, ao fim e ao cabo.
185
TOMÁS DE QUINO, Sobre a Naturaleza de la Matéria y las Dimensiones Indeterminadas, p.
68-69.
Matéria: ciência e ontologia
115
Ademais, as alterações que se sucedem no interior da protomatéria se dão
sem concurso do movimento local, isto é, são modificações instantâneas,
porquanto “o ente em potência [a protomatéria] somente pode alterar-se
subitamente, que sua ação não é movimento nem término de movimento, visto
que este último requer sempre um sujeito que existe em ato, e esta atualidade não
se encontra em nenhum lugar da matéria prima”.
186
Este ponto que sustenta
Tomás é relevantíssimo, pois nos libera de buscar no modelo algébrico algum tipo
de dependência temporal nas interações dos α-objetos no interior da protomatéria.
186
Ibid., p. 52.
3
Representação algébrica da metafísica natural
Vimos no capítulo primeiro que a física-matemática é um grau
intermediário entre a física e a matemática, no qual o mecanismo formal
(formaliter) de apropriação do objeto material, o real sensível ou móvel, são os
objetos, relações e método matemáticos, constituindo-se numa ciência que os
escolásticos chamavam de scientia media. A despeito do extraordinário êxito
dessa ciência média, não obstante o fato irretorquível de que a mesma
continuamente empurrou o limite de nosso conhecimento quantitativo do real às
portas da fronteira metafísica
*
, encontramo-nos ainda ante uma perspectiva
antimetafísica disseminada no meio científico, caracterizando-se no que Wolfgang
Smith chamou de bifurcacionismo:
A idéia de bifurcação começou a tomar forma durante os séculos dezesseis e
dezessete, associando-se desde o início com a nova física [...] Novamente as
idéias de número e harmonia começaram a exercer sua força perene de atração.
Nicolau Copérnico (1473-1543) sofreu influência direta dessa escola
[platonismo] ainda enquanto era um estudante em Bolonha, e certamente o
subseqüente triunfo de sua teoria astronômica poderia por sua vez fortalecer o
crescente entusiasmo pelas ciências matemáticas. Dotados de zelo
surpreendente, os homens voltaram-se para a matemática como o protótipo e pré-
requisito do conhecimento verdadeiro, e muito possivelmente, como a única
fonte de certeza. Kepler parece falar pela época quando declarava que “tanto
como o olho foi feito para ver as cores e o ouvido para escutar os sons, a mente
humana foi feita para compreender, não o que quer lhe convém, mas a
quantidade”.
187
[...] Foi, no entanto, René Descartes (1596-1650) que deu à nova
visão sua forma plenamente articulada. O matemático, físico e filósofo francês,
incendiado pelas mesmas influências e sonhos de seu par italiano [Galileu], traz à
cena uma poderosa direção metafísica [sic] da mente. Também percebe a
matemática como o instrumento essencial do conhecimento científico,
devotando-se com ardor à causa da mecânica universal. Empenha-se por
estabelecer os fundamentos teóricos de uma rigorosa ciência mecânica, baseada
em princípios matemáticos que seriam capazes de explicar as obras da Natureza,
*
O que, a rigor, sempre fez. Contudo, referimo-nos mais propriamente ao desenvolvimento
alcançado pela especulação científica do século XX, levado a cabo pela aplicação extensiva dos
métodos próprios da matemática abstrata: análise, álgebra, topologia, conjuntos etc.
187
KEPLER, J. Opera Omnia. Frankfurt and Erlagen, 1858, I, p. 31 apud SMITH, 1984, p. 26.
Matéria: representação algébrica
117
desde o movimento dos planetas até os movimentos finos associados com os
corpos dos animais. Porém ele entende suficientemente bem que apenas um
universo mecânico poderia ser compreendido em termos mecânicos.
188
Para enfatizar este ponto crucial, Smith cita Descartes:
Podemos facilmente conceber como o movimento de um corpo pode ser causado
pelo de um outro, e diversificado segundo o tamanho, a figura e a situação de
suas partes, porém somos completamente incapazes de conceber como essas
mesmas coisas (tamanho, figura e movimento) podem produzir algo mais de uma
natureza inteiramente distinta de si mesmas, como, por exemplo, aquelas formas
substanciais e qualidades reais que muitos filósofos supõem estar nos corpos...
189
Descartes expõe, então, com grande precisão a bifurcação: a possibilidade
de uma mecânica universal depende da separação entre a res extensa ou matéria, a
“matter” newtoniana cujo aporte epistemológico procuramos resumir no primeiro
capítulo do trabalho, submetida a uma descrição em termos puramente mecânicos,
e a res cogitans, ou substância pensante, fonte subjetiva das “qualidades” que
reivindicamos, erroneamente segundo Descartes, estarem presentes nos entes
reais. Este modelo tem orientado por mais de três séculos a ciência ocidental, e
expulsado para o reino fantasmagórico das sombras qualquer abordagem
metafísica da natureza. Vimos, no capítulo dois, as dificuldades e limitação que tal
abordagem encerra. Por isso, neste capítulo, propomos a retomada da abordagem
metafísica da natureza, ou filosofia da natureza, sob condições que permitam uma
investigação e um diálogo frutífero entre ciência e metafísica. O ponto-chave
consiste em apresentar, ainda que de forma incompleta, e um pouco limitada, uma
interface algébrica que contemple tanto o método matemático presente nas
ciências dos fenômenos -- em nosso caso mais especificamente a física --, como
certos aspectos metafísicos da realidade natural que permitem um tratamento em
linguagem matemática. A rigor, trata-se de expor uma linha intermediária
investigativa entre metafísica e matemática, na qual o objeto material é dado por
uma visualização abstrativa do terceiro grau (metafísica) sobre o primeiro (física),
e o objeto formal são objetos e relações do segundo grau (matemática).
188
SMITH, op. cit., p. 28.
189
DESCARTES apud SMITH, op. cit., p. 28.
Matéria: representação algébrica
118
Cabe aqui definir escopo: Em primeiro lugar, tal linha intermediária de
investigação consiste numa epistemologia da metafísica do primeiro grau, a saber,
não se trata de reduzir aspectos metafísicos do real a uma abordagem puramente
quantitativa, pois, neste caso, estaríamos incorrendo numa investigação própria às
ciências médias, isto é, àquelas que se apropriam formalmente dos aspectos
quantitativos do ser móvel da realidade por meio da matemática. Trata-se, ao
contrário, de aplicar a aspectos metafísicos presentes na natureza certos
algorítimos presentes na matemática; ou seja, tal investigação pressupõe
explicitamente a metafísica do real que lhe serve de objeto material. Isto não é
necessário explicitamente na física-matemática, ainda que toda abordagem de
aspectos quantitativos do real suponha uma metafísica implícita. Por isso, não é
casual que, desde o nascimento da ciência moderna entre os séculos XVI e XVII,
com o abandono da antiga cosmovisão, que incluía os aspectos metafísicos
entrelaçados com uma explicação quantitativa de fato equivocada, todo grande
contribuidor da ciência de base matemática e experimental acabe por utilizar-se de
aspectos metafísicos ad-hoc. Dito de outro modo, uma epistemologia supõe uma
ontologia, ainda que esta última possa tornar-se tão abstrusamente complicada e
artificial que afaste a primeira. Não é igualmente casual que, em muitos casos, o
cientista decida por si mesmo supor o que ele chama de ontologia, mas que ainda
não é propriamente metafísica, mas certas hipóteses destinadas a ancorar ou
fundamentar os aspectos epistêmicos presentes nas teorias propostas
*
. Não é este
o nosso caso, pois não se trata de formular hipóteses que busquem sustentar
ontologicamente o edifício epistêmico, mas, ao contrário, de formular hipóteses
que se sustentam numa sólida metafísica, nos moldes propostos pela tradição
filosófica de quinze séculos de elaborações sucessivas que têm seu início em
Aristóteles e atingem seu cume em Tomás de Aquino. Obviamente é uma
metafísica que precisa passar por certos ajustes e adequações de natureza
terminológica, de modo a compatibilizar-se com o importe epistêmico trazido
pelas ciências experimentais; isto, no entanto, não significa uma revisão, posto
que, no essencial, tal metafísica encontra-se plenamente sintonizada com a
*
É o caso de Newton, por exemplo, ao supor espaço e tempo como entes independentes e
absolutos, e ao postular a hipótese I do livro III dos Principia que “o centro do sistema do mundo é
imóvel” (NEWTON, 1995, p. 13-14 et p. 337), e de David Bohm, ao supor que existe uma “ordem
implicada” que desde fora do espaço-tempo preside os entes e processos espaço-temporais (ver
BOHM, 1980a, p. 277-217).
Matéria: representação algébrica
119
demanda científica por ser uma metafísica espontânea da razão humana e por
buscar conformar-se às exigências do real.
Em segundo lugar, porque precisamente se trata de uma formulação
epistêmica, nós a consideramos a título de hipótese, isto é, trata-se de um modelo
que busca, por meio da linguagem matemática, fazer certas aproximações
investigativas acerca dos aspectos ontológicos da matéria, apresentados no
capítulo segundo. Vem-nos, portanto, em auxílio, aquelas palavras inseridas à
titulo de prefácio por Andreas Osiander (1498-1552) no tratado de Copérnico,
Sobre as revoluções dos orbes celestes
190
:
De fato, o objeto próprio do astrônomo consiste em coordenar a história dos
movimentos celestes com a ajuda de observações diligente e habilidosamente
conduzidas. Depois, como nenhum raciocínio lhe permite atingir as causas ou
hipóteses verdadeiras [ou ontológicas] desses movimentos, ele concebe e imagina
hipóteses [empiriológicas] quaisquer, de tal modo que, uma vez supostas tais
hipóteses, esses mesmos movimentos possam ser calculados exatamente [ou
preditos com a precisão requerida, mesmo que envolvam algorítimos de natureza
estocástica], por meio dos princípios da Geometria [ou da Matemática], tanto
para o passado quanto para o futuro... Não é necessário que essas hipóteses sejam
verdadeiras [ontologicamente] [...] Que ninguém espere da Astronomia [da
Ciência Experimental] qualquer ensinamento seguro sobre essas hipóteses; ela
não poderia fornecê-lo.
191
Em absoluto reivindicamos que nossa posição é a mesma de Osiander. O
prefácio desse autor apenas sugere que sejamos prudentes na elaboração de
hipóteses de natureza empiriológica. Como vimos em Maritain, no primeiro
capítulo, o alcance empiriológico não nos desdobra a natureza ou os princípios
metafísicos do real. Aponta-nos, no entanto, diretamente para suas dimensões
quantitativas e indiretamente para seus aspectos qualitativos, compondo um
quadro autêntico, ainda que não último ou completo do mesmo. Assim, com o
devido cuidado, salientamos que a proposta que se segue busca fornecer um
quadro autêntico, ainda que investigativo, e por isso incompleto, dos princípios
algébricos da natureza (metafísica) da protomatéria. Contudo, entendemos que a
investigação matemática de certos aspectos metafísicos do real vem em
190
Cf. DUHEM, 1984, p. 63-105.
191
DUHEM, op. cit., p. 63.
Matéria: representação algébrica
120
complemento à análise empiriológica das ciências experimentais, por meio de
uma linguagem comum, a matemática, a ambos os domínios de conhecimento.
Nossa proposta não pretende, portanto, ser exaustiva nem ser extensível a
todos os aspectos metafísicos do ser móvel ou sensível com respeito a sua
estrutura metafísica integral, mas tão-somente apresentar certas diretivas
algébricas relacionadas aos aspectos mais próximos à matéria. Da mesma forma,
não reivindicamos que a analogia entre a protomatéria e o holomovimento, este
último proposto por David Bohm
*
, signifique que ambos sejam equivalentes: a
protomatéria é um princípio metafísico real presente na essência dos entes
naturais, como vimos, e o holomovimento é um conceito em si mesmo
empiriológico, ou seja, é uma tentativa de reconstrução matemática ou simbólica
de uma dinâmica presente na realidade que, ao nosso ver, está radicada na
dinâmica da protomatéria; por conseguinte, certas aproximações sugeridas pela
descrição do holomovimento devem ser plenamente justificáveis, segundo
teremos oportunidade de apresentar.
Por fim, gostaríamos de expor nossa posição acerca do modelo algébrico a
ser apresentado, salientando dois pontos relevantes. Em primeiro lugar, a álgebra
proposta por Weyl surge no contexto da discussão de Dirac num artigo clássico
acerca do spin do elétron
192
, e foi pensada com vistas a resolver aspectos da
representação de propriedades quânticas por meio de teoria dos grupos, tratando-
se, pois, de uma álgebra de caráter bastante específico. Em segundo lugar, por
hipótese, consideramos que os princípios metafísicos estão hardwired (embutidos)
na álgebra
193
. Isto ocorre pela forma comum que pressupomos ser compartilhada
entre os componentes e operações dessa específica álgebra e os princípios causais
materiais que inerem à protomatéria. Claro, isto é uma hipótese de trabalho que
esperamos resultados interessantes quanto a uma compreensão metafísica do
real sensível, entre os quais expomos alguns no último capítulo. Nada impede
também que a associação proposta nos conduza eventualmente a algum tipo de
“lei ontológica”, no sentido da física. Assim, supondo que se estabelece entre a
específica álgebra de Weyl apresentada neste trabalho e as formas elementares e
*
As semelhanças entre protomatéria e holomovimento serão tratadas no capítulo seguinte.
192
Cf. WEYL, 1950, p 270-274.
193
Na verdade, essa estratégia também foi considerada por Hiley para a descrição do
holomovimento. Cf. HILEY apud SAUNDERS & BROWN, 1991, p. 234-246.
Matéria: representação algébrica
121
suas operações uma forma comum, buscamos compreender melhor, por meio
dessa álgebra, a natureza mesma da matéria primeira, bem como tirar proveito da
natural conexão que a álgebra oferece com certas propriedades e simetrias
presentes na realidade natural.
194
194
Para um exercício mais específico dessa conexão natural, ver DAVIES, 1981.
Matéria: representação algébrica
122
3.1
Teoria hilemórfica
Nos oito livros da Física Aristóteles expõe sua cosmologia: uma
intrincada construção de ciência experimental e de princípios metafísicos da
realidade natural, que foi praticamente abandonada a partir dos séculos XVI e
XVII, com o nascimento da ciência moderna. Entre os princípios metafísicos da
realidade natural, expostos na Física, constitui-se de enorme importância a
composição dos entes naturais de dois co-princípios absolutamente
complementares e interdependentes, que são forma e matéria, estruturação que é
conhecida por composição hilemórfica, do grego hylé, “aquilo de que algo é feito”
ou, em latim, materia, e do grego morphé, “aquilo que algo é” ou, em latim,
forma
195
. O princípio material a que se refere Aristóteles é a matéria primeira ou,
como estamos denominando, protomatéria, cuja ontologia foi exposta no segundo
capítulo deste trabalho. Por sua vez, a forma a que se refere Aristóteles é a forma
substancial. Dado que existem exposições corretas e em conformidade com o
espírito aristotélico, escolhemos basear-nos em três dessas exposições para
apresentar muito sucintamente os aspectos principais da teoria hilemórfica,
prescindindo, no entanto, de algum tipo de exegese histórica
196
. Trata-se, pois, de
compreender que estrutura inteligível aos entes naturais sua capacidade de
mover-se, de se transmutarem uns nos outros, como quando uma semente
desabrocha num arbusto ou numa árvore, ou quando uma crisálida se transforma
numa borboleta; que aspectos da realidade natural são responsáveis pela atividade
física, pelas interações recíprocas dos entes, pela conformação espaço-temporal e,
acima de tudo, pelo devir. Ora, se os seres naturais devêm, então há que se buscar
entender quais os metafísicos princípios que sustentam esse devir. Por outro lado,
forma e matéria estão entre si correlacionados como “aquilo que determina” ou “o
determinante” ou, na linguagem da metafísica aristotélica, o ato e “aquilo que é
por si mesmo indeterminado”
197
ou “o determinável” ou, em linguagem
metafísica, a potência. Igualmente se constituem numa autêntica unidade, pois
195
Cf. ARISTÓTELES, The Physics, II c2 194a 10-25.
196
Cf. ARTIGAS, 2005, p. 204-206. Cf. SELVAGGI, 1988, p. 398-411, p. 419-424; STEIN,
2002, p. 152-219, p.469-486.
197
Cf. ARISTÓTELES, The Physics, IVc2 209b 5-10.
Matéria: representação algébrica
123
expressam dois aspectos correlatos da realidade natural: a interioridade e a
exterioridade. Não estão unidos como se fossem componentes físicos, apenas se
referem ao modo de ser da essência dos entes naturais, a qual se compõe de certas
determinações formais, dadas pela forma substancial, e certas condições materiais,
dadas pela protomatéria; portanto, matéria e forma coexistem, não se unem, não
são realidades diferentes que se encontram relacionadas, não exigem um elo de
união
198
, não são componentes ao modo de partes fisicamente separadas.
199
Assim como tudo o que existe em potência pode ser chamado matéria, também
tudo o que tem existência, qualquer que seja a existência, substancial ou
acidental, pode chamar-se forma. [...] E porque a forma torna o ser em ato, eis a
razão de se afirmar que a forma é ato. A forma substancial, porém, é aquela que
faz existir em ato um ser substancial; a forma acidental é aquela que faz existir
em ato um ser acidental. [...] E porque a geração envolve uma certa mudança do
não ente para o ente, ao contrário a corrupção envolve a passagem do ser para o
não ser, mas de o ente que é em potência, tal como a estátua feita de cobre
existe em potência e não em ato. [...] Portanto, para haver geração requerem-se
três coisas: o ser em potência, que é a matéria; o não ser em ato, que é a
privação; e aquilo mediante o qual se torna em ato, que é a forma.
200
É importante frisar que matéria e forma são conceitos correlativos, a
saber, algo é matéria com respeito a uma forma e algo é forma com respeito a uma
matéria
201
. Assim, na realidade natural, no mundo físico, não matéria sem
forma, pois teríamos que apontar certas condições materiais, como extensão,
duração e movimento que não estariam atreladas a nenhum ente natural, isto é,
existiriam separadamente, enquanto tais, o que é impossível; em contrapartida,
não forma sem matéria no mundo natural, pois um ente puramente imaterial
não pertenceria ao universo físico.
São três as dimensões relativas à materialidade: extensão, duração e
mutabilidade. À extensão, isto é, à distensão tridimensional, podemos associar
várias magnitudes (volume, massa, tensões e pressões
*
, etc.); portanto, a matéria
198
Cf. TOMÁS DE AQUINO, O Ente e a Essência, c2 n.16: “O ser da substância composta [ente]
não é só da forma, nem é só da matéria, mas é o próprio ser do composto”.
199
Cf. ARISTÓTELES, The Physics, IVc2 209b 20-25. Ver também ARTIGAS, 2005, p.207.
200
TOMÁS DE AQUINO, De Principiis Naturae, n.3-6.
201
Cf. ARISTÓTELES, The Physics, II c2 194b 5-9: “Material é relativo, pois a diferentes
materiais é dado receber distintas formas”. Portanto, matéria não pode estar separada de uma
forma apropriada.
*
Ver capítulo segundo, seção 2.1 (o enfoque epistêmico da matéria), sobre o tensor energia-
momentum.
Matéria: representação algébrica
124
extensa seria potencialmente divisível, indefinidamente, dado que as dimensões
métricas associadas à espaço-temporalidade são usualmente tratadas como
contínuas. Não obstante sua divisibilidade potencial ao infinito (continuum), a
física teórica tem proposto que há, em termos reais (sob a ótica experimental,
diga-se de passagem, e não como algum aporte ontológico) -- naquelas extensões
mínimas, cujas distâncias são inferiores ao chamado “comprimento de Planck”, ou
10
-33
cm -- descontinuidades na malha espaço-temporal do mundo
*
. À duração,
isto é, à distensão temporal, podemos associar especialmente uma magnitude, o
seqüenciamento temporal, também de natureza divisível e usualmente considerada
como uma grandeza contínua, ainda que, em intervalos de tempo mínimos, ou
seja, naqueles inferiores para percorrer o comprimento de Planck à velocidade da
luz, ou 10
-43
s, seja também possível haver as mencionadas descontinuidades. Por
fim, matéria implica mutabilidade, isto é, qualquer ente da natureza pode mudar,
sob aspectos acidentais, ou seja, sob aspectos que modificam a exterioridade
(mudanças acidentais), mas não a interioridade como quando, por exemplo, um
camaleão troca de cor, expondo seu mimetismo natural, ele continua a ser o
mesmo camaleão, mesmo tendo sofrido alterações; no entanto, mudanças que
modificam a interioridade (mudanças substanciais) como quando, por exemplo,
uma semente de abacate torna-se um abacateiro. À mutabilidade dos entes
naturais chamamos de devir ou vir-a-ser, que associamos usualmente aos
processos naturais. A mutabilidade sempre acarreta algum tipo de movimento
local.
São três as dimensões relativas à forma: configuração, consistência e
sinergia. À configuração corresponde a estruturação espacial, a disposição das
partes componentes e a figura espacial. Os entes naturais não estão dispostos ao
acaso, mas segundo configurações que lhes são próprias, características. Um
exemplo usual de configuração é a estrutura cristalina de várias substâncias. A
configuração é uma dimensão formal que se entrelaça com a extensão
quantitativa, complementando-a e produzindo padrões espaciais, cujo
reconhecimento é fundamental para a ciência experimental
.
À consistência
corresponde a estabilidade temporal dos sistemas naturais, a sua coesão interna ou
*
Em nossa dissertação este é um aspecto relevante, haja vista que o modelo algébrico a ser
proposto adiante propõe uma álgebra finita, discreta, e se isso não pudesse ter algum fundamento
real, a hipótese de um espaço discreto para o modelo pareceria profundamente arbitrário.
Matéria: representação algébrica
125
a mútua conexão
estável de seus componentes. Sendo a coesão interna ou sua
conexão instável ou tênue, a estabilidade do ente fica comprometida, sua
persistência espaço-temporal torna-se efêmera
*
. Cabe ressaltar que não se pode
atribuir aos entes naturais uma estabilidade absoluta, afinal tudo na realidade
natural está sujeito a mudanças, ao desgaste, às interações recíprocas que causam
transformações, ao aumento e à diminuição, à corrupção. A consistência é uma
dimensão formal que se entrelaça com a duração quantitativa, provendo a
estabilidade necessária à permanência espaço-temporal de um ente, quer por um
intervalo próprio de séculos ou de apenas uns poucos microssegundos
. À sinergia
corresponde a organização espaço-temporal do ente, a interação espaço-temporal
dos componentes, sua mútua integração e cooperação, responsável por sua
unidade funcional. Tanto mais elevada a cooperação quanto maior a cooperação
das partes componentes e seus processos associados. A sinergia é uma dimensão
formal que corresponde à mutabilidade quantitativa. Com efeito, cooperação
supõe o desdobramento de atividades, o que implica movimento. Trata-se de uma
dimensão que se nos apresenta de maneira mais óbvia, patente, nos seres vivos,
ainda que modestamente, ou imperceptivelmente, nas unidades mais elementares
da realidade natural.
Considerações prévias ao modelo algébrico. Neste ponto, antes de
apresentarmos o modelo algébrico, devemos fazer algumas considerações
adicionais sobre a teoria hilemórfica que auxiliarão na compreensão metafísica
desse modelo. Em primeiro lugar, do previamente exposto até aqui, segue-se que
as formas elementares não são puras formas, mas são elas mesmas hilemórficas,
ou seja, à medida que expressam um caráter entitativo mínimo, pois “são
imperfeitíssimas justamente por estarem, por natureza, mais próximas da natureza
*
Algumas partículas elementares possuem vida média de poucos nanossegundos, como é o caso,
por exemplo, do pósitron de baixa energia no chumbo, cujo intervalo de “vida” é de um décimo de
nanossegundo (10
-10
s).
O intervalo próprio relativístico é dado por uma linha espaço-temporal e é a razão entre dois
“absolutos”, o intervalo espaço-temporal associado a um dado ente, isto é, à medida relativística
ds, tomada entre dois eventos intrínsecos do indivíduo -- por exemplo, seu nascimento e morte ou
seu aparecimento e seu desaparecimento no espaço-tempo, ou entre dois eventos quaisquer em sua
linha do universo -- e a velocidade da luz, c. Isto é, o intervalo próprio é dado pela integração da
trajetória (ou linha do universo) espaço-temporal entre dois eventos a e b associados ao indivíduo,
c/ds
b
a
Trata-se da razão, como já dissemos, entre dois absolutos relativísticos, ds e c.
Matéria: representação algébrica
126
da matéria primeira”
202
; logo, são formas na matéria e, portanto têm ser e
essência, esta última dada pelas estruturas quantitativas mais simples que acionam
a potência da matéria. Aliás, Tomás de Aquino afirma que corresponde a este
peculiar modo de ser das formas elementares “sua atividade como elementos
corpóreos”.
203
Às estruturas quantitativas simplíssimas que acionam a matéria
chamaremos de holoquarks, isto é, trata-se das estruturas mais básicas, imersas na
potência da matéria, acionando-a por meio das qualidades ativas e passivas de sua
essência (α-estado). Tais qualidades ativas e passivas são representadas, em nosso
modelo, por um par dual,
1
0
q
e
0
1
q
, de holoquarks primitivos
. Cabe também a
analogia de proporcionalidade do ser aplicada às formas dos elementos, isto é,
Ser da Forma Elementar (ou α-estado) como Ser ‘em potência’ da Protomatéria
Essência da Forma Elementar Essência da Protomatéria
Portanto, podemos propor que a forma substancial ou específica de
qualquer ente natural possui entrelaçadas em sua unidade entitativa três estruturas
formais pelas quais o ser é comunicado à essência: primeiramente, uma estrutura
quantitativa que é o princípio essencial básico, imerso (in-qua) na matéria; em
segundo lugar, uma estrutura qualitativa, que é o princípio essencial stricto sensu,
pelo qual algo recebe sua determinabilidade específica, como vimos acima; por
fim, uma meta-estrutura quantitativa, que é o princípio essencial que permite o
acesso da estrutura qualitativa à estrutura quantitativa imersa na matéria, isto é,
trata-se de uma camada intermédia entre o qualitativo e o quantitativo, pela qual
estes encontram-se entrelaçados nos entes naturais, mesmo nos mais elementares
como prótons, elétrons etc., que são particularmente o tipo de ente em que
estamos interessados neste trabalho.
202
TOMÁS DE AQUINO, De Mixtione Elementorum, n. 9.
203
TOMÁS DE AQUINO,
De Potentia Dei, q3 a11 respondeo.
Chamamos de primitivos esses holoquarks com vistas à compatibilidade, não apenas, mas
também terminológica, com o modelo algébrico, como teremos oportunidade de mostrar.
Matéria: representação algébrica
127
3.2
Conceitos algébricos: álgebras de Clifford e de Weyl
3.2.1
Definições gerais
*
Neste item, suporemos conhecidas as noções e operações elementares de
conjuntos, relações e aplicações (funções). Seja uma aplicação
ϕ
: S
×
S
S. A
partir de um par de elementos a,b
S formamos um novo elemento
ϕ
(a,b)=a.b=ab
S chamado de produto de a e b, ou estabelecemos uma ou mais
leis de composição, inclusive aquelas entre membros de diferentes conjuntos, isto
é,
ϕ
: S
×
T
S. Uma composição é comutativa se ab = ba. A composição é
associativa se, dados a,b,c
S, a(bc) = (ab)c.
Um grupo é um conjunto S de elementos, dotado de uma operação que
funciona como uma lei de composição que associa a cada par de elementos
1
s
,
2
s
de S um elemento
1 2
s s
de S chamado de produto de
1
s
e
2
s
, e satisfaz às
seguintes condições:
(i) Vale a lei associativa,
1 2 3 1 2 3
( ) ( )
s s s s s s
=
(ii) Existe um elemento do conjunto, e
S
, tal que ,
es se s s S
= =
(iii) Todo elemento
s S
possui um inverso
1
s S
tal que
1 1
s s ss e
= =
Também denominamos de fechamento à propriedade que afirma que o
produto de dois elementos quaisquer de um grupo é outro elemento do grupo. Um
grupo S é chamado de abeliano, ou comutativo, se a lei de composição é
comutativa, isto é, para todo par de elementos
1
s
,
2
s
de S,
1 2 2 1
s s s s
= . Um
subgrupo H de um grupo S é um subconjunto que também é um grupo; ou seja,
um subconjunto
H S
é, portanto, um subgrupo se contém o elemento
*
Esta seção tem por objetivo apresentar, de modo um tanto informal, conceitos gerais úteis para a
compreensão da proposta desta dissertação como um todo. o pretende ser uma exposição
rigorosa nem extensiva.
Matéria: representação algébrica
128
identidade de S e é fechado sob as operações do produto e do inverso.
Trivialmente temos que
{
}
e
e S são igualmente subgrupos de S. O número de
elementos de um grupo S é chamado de a ordem de S, e o designamos por
S
 
.
L é um espaço vetorial (ou linear), isto é, um conjunto de objetos que
chamamos de vetores, associado a um outro conjunto de elementos K que
chamamos de escalares, se em L pudermos definir duas operações, chamadas
respectivamente de soma de vetores e de multiplicação por escalar, de tal forma
que,
(i)
, ,
u v v u u v L
+ = +
(ii)
( ) ( ) , , ,
u v w u v w u v w L
+ + = + +
(iii)
( ) ( ) , , , ,
au v b ab u bv u v L a b K
+ = +
, então dizemos que L é um espaço vetorial (ou linear).
Se
V
e
W
são dois espaços vetoriais sobre um mesmo corpo K de
escalares, uma aplicação
L
é linear ou é um homomorfismo de
V
em
W
, se
( ) ´ ´, ,
L au bv aLu bLv au bv a b K
+ = + = +
,
,
u v V
´, ´
u v W
Se a aplicação
A
é 1-1 e sobrejetora, então se diz que
A
é um
isomorfismo de
V
em
W
, e se o isomorfismo for uma aplicação do espaço sobre
si próprio, então temos um automorfismo.
Uma álgebra associativa A é um espaço vetorial linear sobre um corpo K
de escalares, que apresenta uma lei de composição de seus elementos ou produto,
de tal forma que, para um certo conjunto de índices Λ, e
, ,
i j k
Λ
,
(i) , ,
i j i j
A A
α α α α
(fechamento do produto)
(ii) ( ) ( ) ( ), , ,
i j k i j i k i j k
a b a b A
α α α α α α α α α α
+ = +
,
a b K
Matéria: representação algébrica
129
(iii)
( ) ( ) ( ); , , ; ,
i j k i k j k i j k
a b a b A a b K
α α α α α α α α α α
+ = +
(iv) ( ) ( ) , ,
i j k i j k i j k
A
α α α α α α α α α
=
(associatividade do
produto)
Um isomorfismo da álgebra A sobre si mesma é um automorfismo de A.
3.2.2
Idempotentes
Álgebras que se apresentam com relativa complexidade contêm um
conjunto completo (capazes de gerar todos os elementos da álgebra) de elementos
denominados idempotentes primitivos
i
α
, tais que,
2
i i i i
α α α α
= =
0
i j j i
α α α α
= =
Há vários modos de entendermos o significado de tais elementos:
(1) Refletem a tradicional dualidade do verdadeiro e do falso, pois se
associarmos certos
i
α
ao valor V e certos
j
α
com o valor F, então o valor da
operação de conjunção nos conduz à tradicional tabela de valores-verdade, para
cuja contrapartida aritmética 1 representa o valor V (verdadeiro) e 0 o valor F
(falso), então temos que, para qualquer
i
α
, designado por A, que pode ser
verdadeiro ou falso, isto é, 1 ou 0, e nenhum outro valor intermediário, ou seja,
vale a lei do terceiro excluído, então significa dizer que esta lei pode ser
representada pela solução da equação
( 1) 0
A A
=
, em que A somente pode assumir valores 1 e 0. Ora,
( 1) 0
A A
=
pode ser
representada por
Matéria: representação algébrica
130
2
0
A A
=
, ou
2
A A
=
sendo esta última forma a relação que define essencialmente um idempotente da
álgebra.
(2) Significam algum tipo de filtro que serve para separar naturalmente
conjuntos específicos de elementos. Weyl
204
exemplifica isso da seguinte maneira:
Seja o conjunto dos animais num zoológico. Por meio de um determinado
operador M, separamos (ou filtramos) os mamíferos dos outros animais, e por um
outro operador P separamos os peixes. Claro, a repetição do operador M será
equivalente a M, do mesmo modo que a repetição de P será equivalente a P,
donde,
.
M M M
=
.
P P P
=
Dado que (exceto para as baleias, mas estas não cabem num zoológico) as
classes são mutuamente excludentes,
. . 0
M P P M
= =
Ou seja, um conjunto total de operadores deste tipo pode ser utilizado para
distinguir um número maximal de conjuntos de elementos mutuamente
excludentes, de tal modo que não possa haver elementos comuns a dois conjuntos
distintos.
(3) ainda um outro modo de considerarmos tais
quantidades: funcionam como operadores de projeção sobre um espaço vetorial
linear n-dimensional. Isto é, tomando-se o operador
1
α
como sendo um operador
de projeção do espaço vetorial base, qualquer elemento (vetor) x neste espaço
vetorial pode ser projetado no espaço euclidiano tridimensional
3
, da seguinte
forma: Seja a projeção de algum elemento x qualquer do espaço vetorial tal que
204
WEYL apud DAVIES, 1981, p. 58.
Matéria: representação algébrica
131
1
α
o projeta no plano
2
e
2
α
no espaço ortogonal ao plano, isto é, no eixo
ortogonal
. Então,
1 1 1
α α α
=
2 2 2
α α α
=
1 2 2 1
0
α α α α
= =
E o espaço euclidiano
3
é a soma direta (soma de espaços que não
possuem elementos comuns, exceto o subespaço nulo
{
}
0
) dos subespaços
2
e
, representada por
3 2
=
Em geral, os idempotentes têm o papel de separar um “espaço” original n-
dimensional em subespaços euclidianos mutuamente ortogonais. Um elemento
qualquer x do espaço original pode ser projetado da maneira mais reduzida (em
termos dos graus das dimensões de projeção) possível em subespaços euclidianos
unidimensionais, mutuamente ortogonais, da seguinte maneira:
1 2
...
n
x x x
α α α
+ + +
Mas, designando a operação acima por
, tem-se que
1 2
...
n
x x x x x
α α α
= + + + =
, em que
x
é a projeção de
x
no espaço euclidiano
n
. Também temos que
1 2
... 1
n
α α α
+ + + =
Matéria: representação algébrica
132
o que equivale à projeção da totalidade (do espaço original) sobre o espaço
vetorial.
Enfim, os idempotentes da álgebra desempenham um papel de máxima
importância na análise de qualquer espaço vetorial linear associado.
Particularmente, em mecânica quântica, espaços vetoriais lineares desempenham
esse papel essencial na medida em que seus componentes básicos são utilizados
para representar os diversos estados dinâmicos de um determinado sistema físico.
3.2.3
Ideais
Vimos acima que aos idempotentes podemos associar projeções num
espaço vetorial linear. Bem, todas as álgebras possuem estruturas associadas de
espaços vetoriais. Os espaços particularmente interessantes para a mecânica
quântica são aqueles que são subespaços invariantes. Um subespaço
U V
é
invariante sob um operador
:
S V V
se
{
}
;
SU S U U
α α
=
. Os
idempotentes da álgebra geram subespaços invariantes a que denominamos ideais.
Os ideais gerados pelos idempotentes primitivos da álgebra, ou ideais minimais,
são os que possuem relevância para a proposta algébrica, em função de sua
conexão com o formalismo da mecânica quântica, como teremos oportunidade de
verificar no capítulo quarto. Costuma-se separar os ideais minimais em dois
grupos, respectivamente, o dos ideais minimais à esquerda e o dos ideais
minimais à direita, ou L e R. Estes ideais o gerados pela multiplicação à
esquerda e à direita, respectivamente, de todos os elementos de uma álgebra A
pelos idempotentes primitivos. Tais multiplicações geram, cada uma,
respectivamente, uma base à esquerda e uma base à direita para os ideais
minimais. Ou seja,
i i
L A
α
=
i i
R A
α
=
Matéria: representação algébrica
133
Como n idempotentes primitivos, isto implica que n componentes nas
bases dos ideais minimais. A interpretação geométrica usual dada à estrutura
algébrica do ideal é de que se trata de um espaço vetorial linear em que cada
componente da base,
i
L
ou
i
R
, significa uma direção espacial independente
*
.
Dessa forma, o ideal, em sua interpretação geométrica, fornece um modelo
matemático para os n eixos cartesianos ortogonais de
n
, definindo um espaço
multidimensional.
Uma outra interpretação possível que nos é oferecida por Davies
205
é a de
que um ideal de uma álgebra é uma representação matemática de um espaço
discreto de dimensão um, no qual cada um dos n componentes da base do ideal
representa um holon
distinto do espaço. Ora, esta é uma interpretação
radicalmente diferente daquelas usualmente adotadas para as estruturas de espaços
vetoriais. Neste caso, os idempotentes não mais são interpretados como
operadores de projeção, mas como certos operadores-filtros ou operadores-
seletores, em que cada idempotente separa um holon distinto que compõe o
espaço discreto. Davies argumenta que, em termos práticos, a obtenção de um
espaço de aspecto contínuo implica em dividir o espaço discreto em um número n
suficientemente grande de holons, de tal forma que, no limite,
n
, o espaço
discreto (ou descontínuo) com holons de dimensão 1, torna-se contínuo; neste
caso, trata-se de um contínuo unidimensional, ou
. Também se poderia
associar a cada holon
i
α
uma intensidade escalar p, por exemplo, descrevendo
um campo escalar discreto, segundo uma assimilação material. O que é
interessante observar é que, independentemente da interpretação em jogo, cada
uma delas está contida na álgebra e pode ser vinculada quer a estruturas
metafísicas da realidade natural, quer a conseqüências relevantes para a descrição
epistêmica da realidade física.
*
Uma conexão ao nosso ver interessante seria investigar os ideais como espaços de multivetores,
nos quais a cada direção estaria associado um r-vetor, em que r é a dimensão associada ao
componente da base do ideal. Na verdade, a idéia aqui é vincular naturalmente a álgebra de
Clifford à álgebra geométrica.
205
Cf. DAVIES, 1981, p. 63.
Terminologia sugerida por DAVIES, loc. cit.
Matéria: representação algébrica
134
3.2.4
Estrutura das álgebras de Clifford e de Weyl
Uma álgebra de Clifford generalizada pode ser obtida ao considerarmos o
problema clássico da linearização de uma equação de grau n, isto é,
1 1
n
m m
n
i i i
i i
x x q
= =
=
em que buscamos os elementos
i
q
que resolvem a equação acima. É certo que os
elementos devem satisfazer às relações abaixo:
0,1, 2,...,
1,
n
i m
i
q ==
, , 0,1, 2,...,
,
i j i j m
i j j i
q q q q
φ
< =
=
em que
φ
é a n-ésima raiz primitiva da unidade, isto é,
1
n
φ
=
. Ora, para o
caso em que n=2,
2
2
0 0
m m
i i i
i i
x x q
= =
=
temos a sugestão de pensar nas álgebras de Clifford (não-generalizadas) como
sendo associadas ao processo de linearização da equação homogênea de segundo
grau a m variáveis; assim,
2
1,
i
i
q
=
0, , , 0,1,2,...,
i j j i
q q q q i j i j m
+ = =
Matéria: representação algébrica
135
e os elementos
i
q
são os elementos geradores da álgebra de Clifford de ordem
m, denotada por
2
m
C
. A ordem m permite-nos classificar as álgebras de Clifford
segundo modelos algébricos tradicionalmente utilizados em mecânica quântica:
Se m = 4, então
2
4
C
é a álgebra de Dirac
Se m = 2, então
2
2
C
é a álgebra dos quatérnions de Hamilton
Se m = 3, então
2
3
C
é a álgebra de Pauli
Se m = 6, então
2
6
C
é a álgebra conforme de Clifford
Voltando ao nosso caso generalizado (de grau n qualquer), se fizermos m
= 2, ou seja,
2
n
C
, obtemos uma álgebra de Clifford com dois geradores
independentes
206
e que pode ser tratada como sendo isomorfa ao grupo abeliano
(comutativo) de rotações a n dimensões
*
. Esta álgebra é definida como uma
álgebra de Weyl de dimensão n
207
. Assim, a álgebra de Weyl pode ser pensada
como sendo a estrutura algébrica que surge a partir da linearização da equação
1 2
n n
x x
+
, isto é, trata-se da álgebra associada à solução da expressão de grau n,
( )
1 2 1 1 2 2
n
n n
x x x q x q
+ = +
Portanto, os geradores
1
q
e
2
q
devem satisfazer às seguintes relações:
1 2
1
n n
q q
= =
1 2 2 1
q q q q
φ
=
206
Que, mais adiante, na seção 3.3.2, serão denominados reatores, dado que representarão o
caráter dual de
atividade e passividade no interior da protomatéria.
*
n dimensões por estar associada a um espaço com n variáveis ou posições.
207
Cf. DAVIES, op. cit., p. 74-75.
Matéria: representação algébrica
136
em que
φ
é a n-ésima raiz primitiva da unidade, isto é,
1
n
φ
=
. Fica clara,
então, a conexão entre a álgebra finita (e não-generalizada) de Clifford, com dois
geradores, com a álgebra de Weyl. A saber, a álgebra de Clifford supõe a
linearização de uma equação de grau dois (2), com m geradores, e a álgebra de
Weyl supõe a linearização de uma equação de grau n, com dois (2) geradores;
isto é,
2
m
C
é uma álgebra de Clifford bidimensional com m geradores
2
n
C
é uma álgebra de Clifford n-dimensional com 2 geradores (álgebra
de Weyl).
Na álgebra de Clifford
2
m
C
uma interpretação geométrica para os
geradores
1 2
, ,...,
m
q q q
: formam uma base do espaço vetorial linear m-
dimensional no qual cada vetor x pode ser obtido de modo único a partir da base
1 2
{ , ,..., }
m
q q q
como:
1 1 2 2
...
m m
x q x q x q x
= + + +
Podemos, então, definir dois produtos de larga utilização em álgebra
geométrica (e geometria algébrica, também!): o produto escalar,
i
, e o produto
exterior (“cunha”),
, entre dois vetores quaisquer x e y do espaço vetorial
associado à álgebra de Clifford:
1 1 2 2
...
n n
x y x y x y x y
= + + +
i
tal que
x y
i
é um escalar, e
( )
0 0
m m
i j i j
i j
x y x y q q
= =
=
Matéria: representação algébrica
137
de tal forma que
0
i j
q q
=
para i = j, e
i j j i
q q q q
=
para i
j.
Podemos, então, definir um produto chamado produto geométrico entre
dois vetores quaisquer x e y num espaço
de multivetores como sendo,
xy x y x y
= +
i
e, visto que, por definição,
x y y x
=
i i
e
x y y x
=
, então se segue que,
( )
1
2
x y xy yx
= +i
( )
1
2
x y xy yx
=
Podemos, então, a partir das expressões acima e de mais algumas
definições operacionais, definir entidades como multivetores, multiformas etc., e
todo um cálculo que compõe a álgebra geométrica de Clifford, ou seja, a
aplicação da álgebra de Clifford à geometria. A riqueza de aplicações e uma
proposta de compreensão unificada da física-matemática, isto é, do conhecimento
empiriológico do real sensível, por meio de uma linguagem algébrica unificada,
são apresentadas por David Hestenes
208
. Em nossa dissertação não trataremos
diretamente das conseqüências relativas a essa proposta de unificação. Basta
dizer que uma conexão natural entre os elementos da álgebra que representam,
em nosso caso, a estrutura quantitativa do interior da matéria primeira e as
manifestações elementares de tais estruturas segundo dimensões e operações
específicas no espaço-tempo, isto é, segundo uma geometria do mundo. Tal
conexão deve ser objeto de uma investigação futura, em complemento à estrutura
algébrica apresentada neste trabalho.
Notação. Seguiremos a notação proposta por Davies
209
, a qual supõe
automaticamente uma ordem para os dois idempotentes geradores da álgebra
2
n
C
.
208
Cf. HESTENES & SOBCZYK, 1987.
209
DAVIES, op. cit.
Matéria: representação algébrica
138
Ambos, como vimos, por formarem uma base para a álgebra, são independentes e,
assim, podemos utilizar um índice superior para um, e um índice inferior para o
outro, da seguinte forma:
( )
1
a
a
q q
=
0
0
1
q q
= =
.
Desse modo, as potências dos geradores podem ser escritas de modo não-
ambíguo,
(
)
1
0 0
a
a a
q q q
= =
(
)
0 0
1
b
b b
q q q
= =
; ora, temos que
0 0 0
a b a b
q q q
+
= e
0 0 0
c d c d
q q q
+
= e que, em geral,
0 0
0 0
a a ab a
b b b
q q q q q
φ
= = (3.1)
Portanto, visto haver um número finito de geradores, então suas
propriedades cíclicas dão-nos imediatamente que,
(
)
1
0 0
1
n
n
q q
= =
(
)
0 0
1
1
n
n
q q
= =
.
Todos os somatórios o realizados com índices latinos, de 0 a n, de tal
modo que podemos simplificar a notação da seguinte maneira:
em vez de
0
n
i=
, escreveremos
i
Matéria: representação algébrica
139
e, em vez de
0 0
n n
i j= =
, escreveremos
,
i j
, etc.
Por fim, faremos uso do delta de Kronecker:
0
ij
δ
=
se i
j;
1
ij
δ
=
se
i = j.
Definições. A álgebra de Weyl
n
W
é a álgebra polinomial gerada
sobre o corpo
dos números complexos a partir do conjunto gerador
{
}
1 0
0 1
,
q q
,
cujos elementos estão sujeitos às seguintes relações:
(
)
1
0 0
1
n
n
q q
= =
(3.2)
(
)
0 0
1
1
n
n
q q
= =
(3.3)
1 0 0 1
0 1 1 0
q q q q
ω
= ,
(
)
2
exp
i
n
π
ω
= (3.4)
A regra geral de multiplicação da expressão (3.1) acima é obtida em duas
etapas:
1
a
Tomemos a relação (3.4) acima e mulipliquemo-la à esquerda por
1
0
q
,
1 1 0 1 0 1
0 0 1 0 1 0
q q q q q q
ω
=
2 0 1 0 1
0 1 0 1 0
q q q q q
ω
=
2 0 0 1 1
0 1 1 0 0
q q q q q
ωω
=
2 0 2 0 2
0 1 1 0
q q q q
ω
=
2
a
Tomemos a relação (3.4) acima e mulipliquemo-la à direita por
0
1
q
,
1 0 0 0 1 0
0 1 1 1 0 1
q q q q q q
ω
=
1 0 0 0 1
0 2 1 1 0
q q q q q
ω ω
=
1 0 2 0 0 1
0 2 1 1 0
q q q q q
ω
=
1 0 2 0 1
0 2 2 0
q q q q
ω
=
Matéria: representação algébrica
140
Reaplicando a etapa 1 (a-1) vezes e a etapa 2 (b-1) vezes, obtemos a
regra geral de multiplicação, indicada pela expressão (3.1), com
ω
em lugar de
φ
210
, o que nos dá a seguinte regra fundamental para multiplicação da álgebra:
0 0
0 0
a ab a
b b
q q q q
ω
= (ou
0 0
0 0
a ab a
b b
q q q q
ω
= ) (3.5)
Por outro lado,
0 0
0 0
a c a c
b d b d
q q q q q q
=
0 0
0 0
( )
a c a bc c
b d b d
q q q q q q
ω
= [aplicando a equação (3.5)]
0 0
0 0
a c bc a c
b d b d
q q q q q q
ω
=
0
0
a c bc a c
b d b d
q q q q
ω
+
+
= [aplicando a equação (3.1)]
a c bc a c
b d b d
q q q
ω
+
+
= [idem]
, e esta última expressão é uma regra de grande valor para os cálculos algébricos
e, por isso, será replicada abaixo, com uma numeração de referência, para
posterior utilização:
a c bc a c
b d b d
q q q
ω
+
+
= (3.6)
Outrossim, há um teorema da álgebra (que não será demonstrado neste
trabalho)
211
que afirma que os componentes
a
b
q
, os quais podem ser representados
como elementos de uma matriz
ab
M
, formam uma base da álgebra
n
W
(ou
2
n
C
)
com n
2
componentes ordenados. Apenas observamos que estes componentes são
obtidos como produtos seqüenciados,
1 1 1 0 0 0
0 0 0 1 1 1
... ...
a
b
b
a
q q q q q q q
=
, em que
210
O fato de usarmos
φ
em lugar de
ω
, como em DAVIES, op. cit., é para sugerir uma
interpretação intuitiva adicional para o símbolo, que não apenas a raiz primitiva de grau
n da
unidade, o que é proposto adiante.
211
A demonstração completa encontra-se em DAVIES, op. cit., p.81-83.
Matéria: representação algébrica
141
{
}
, 0,1,2,...( 1)
a b n
=
. Visto que afirmamos que a cada componente da base
podemos associar um elemento de uma matriz com índices a e b, então há a.b (n.n
= n
2
) componente na base de
n
W
.
3.2.4.1 Produto de dois números de Weyl
Qualquer elemento ou combinação linear de elementos da álgebra
n
W
é
denominado número de Weyl. Ora, visto que
n
W
possui uma base, então um
número de Weyl pode ser expandido em termos dessa base. Assim, um número M
qualquer pode ser dado pela combinação linear dos componentes da base, ou seja,
,
i
ij j
i j
M a q
=
Da mesma forma, podemos ter um outro número N qualquer, que pode ser
dado pela combinação linear dos componentes da base, ou seja,
,
k
kl l
k l
N b q
=
donde se pode mostrar que
, , , , ,
i k i k
ij j kl l ij kl j l
i j k l i j k l
MN a q b q a b q q
= =
Porém, da expressão (3.6) vem que
i k jk i k
j l j l
q q q
ω
+
+
= , e, portanto,
obtém-se que
, , ,
jk i k
ij kl j l
i j k l
MN a b q
ω
+
+
=
(3.7)
Matéria: representação algébrica
142
A expressão acima pode ser utilizada a partir dos coeficientes complexos
,
ij kl
a b
para obter o produto ordenado de dois elementos quaisquer da álgebra.
3.2.4.2 Idempotentes
Não obstante havermos obtido uma expressão para o produto de dois
elementos (“números”) quaisquer da álgebra, interessa-nos sobretudo aqueles
elementos que podem ser utilizados para a análise lógico-metafísica da teoria
hilemórfica, a saber, os candidatos a representar aspectos reais, metafísicos, dos
entes naturais. Seguindo a sugestão de Davies
212
, concentrar-nos-emos naquelas
quantidades algébricas que podem ser associadas às estruturas que denominamos
ideais. No entanto, os ideais são gerados a partir dos componentes que
anteriormente havíamos chamado de idempotentes. Portanto, vejamos como
abordar estes últimos segundo o formalismo de
n
W
.
Vimos, pela expressão (3.7), que as quantidades que nos interessam
particularmente obter a partir dos componentes da base estão associadas a um par
de índices, o que significa que se trata de idempotentes combinados dois a dois.
Temos, por conseguinte, o seguinte teorema:
Teorema: Um conjunto completo de pares de idempotentes primitivos
ortogonais da álgebra
n
W
é dado por:
0
1
ik
ii k
n
k
q
α ω
=
(3.8)
Demonstração: Sabemos que
0
1
ik
i k
n
k
q
α ω
=
; portanto,
212
DAVIES, op. cit., p. 87.
Matéria: representação algébrica
143
0 0
1 1
ik jl
i j k l
n n
k l
q q
α α ω ω
=
2
0
1
,
ik jl
i j k l
n
k l
q
α α ω
+
=
mas, substituindo-se o índice k por k-l,
2
1
( ) 0
1
n l
i k l jl
i j k
n
k l l
q
α α ω
=
=
no entanto, dado o caráter cíclico de
0
1
q
e de
ω
ambos de grau n, podemos retomar a soma original
em k, e ainda cobrirmos o ciclo completo, donde,
2
( ) 0
1
,
i k l jl
i j k
n
k l
q
α α ω
=
.
Ora,
( )
; .
, 0,
l i j
se i j se i j
l
n
ω
±
=
= =
Logo,
2
0
1
.
ik
i j ij k
n
k
q
α α δ ω
=
Comparando essa última expressão com aquela que aparece no enunciado
do teorema,
i j ij ii
α α δ α
=
em que fazemos
ij i j ij ii
α α α δ α
= =
. Explicitando, temos também que,
( )( )
ij jm ij ii jm jj i j j m
α α δ α δ α α α α α
= =
Ao tomarmos o idempotente
0
1
ik
ii k
n
k
q
α ω
=
, e somarmos em i,
obtemos
Matéria: representação algébrica
144
0
,
1.
ik
ii k
i i k
q
α ω
= =
Também é possível mostrar que para qualquer elemento
ε
da álgebra, a
expressão acima é, de fato, o elemento unitário da mesma, isto é,
1 1
ε ε ε
= =
.
Da mesma forma, ao demonstrar-se a existência do elemento unitário dado acima,
pode-se também mostrar que os idempotentes
{
}
00 11 1 1
, ,...,
n n
α α α
formam
um conjunto completo de n pares ortogonais que geram a álgebra
n
W
,
associando-lhe n subespaços vetoriais ortogonais gerados pelos idempotentes e
pelos ideais que lhes estão vinculados.
3.2.4.3 Ideais
O objetivo deste tópico é obter expressões que nos forneçam os ideais à
esquerda e à direita de
n
W
. Igualmente, mostraremos a íntima conexão destes
ideais com os colchetes de Dirac; a propósito destes últimos, faremos uma breve
exposição, dado o seu uso extensivo na mecânica quântica.
O ideal à esquerda L de uma álgebra A é uma subálgebra de A tal que
AL L
.
Da mesma forma, define-se o ideal à direita R de uma álgebra A é uma
subálgebra de A tal que
RA R
.
um teorema de álgebra (especificamente de álgebras lineares
associativas, como é o nosso caso) que nos assegura que dado que
kk
α
representa um par de idempotentes ortogonais de A, tal que
1
kk
k
α
=
, então
Matéria: representação algébrica
145
A pode ser obtida a partir dos ideais à esquerda
k
L
e à direita
k
R
do seguinte
modo:
(
)
k kk
k k
A L A
α
= =
ou
(
)
k kk
k k
A R A
α
= =
.
Ou seja, os n idempotentes
kk
α
geram, cada um, um ideal à esquerda
k
L
(ou à direita
k
R
) da álgebra A. Em nosso caso,
n
A W
=
; portanto,
k n kk
L W
α
=
em que
kk
α
, como vimos, pela expressão (3.8), é dado por
0
1
lk
kk l
n
l
q
α ω
=
.
Ora, vimos também que os elementos da base de
n
W
são dados por
, 0,1, 2,..., ( 1)
,
i
i j n
j
q
=
; portanto, para o i-ésimo gerador (com j componentes) do
ideal à esquerda
k
L
da álgebra
n
W
, obtemos que
0
1
,
( ) ,
i kl
i j
k j kk l
n
l
L i q q
α ω
= =
,
1
,
( ) ,
kl i
i j
k l j
n
l
L i q
ω
+
=
.
Reescrevendo a expressão acima com l-j em vez de l (podemos fazer isso
dado o caráter cíclico da soma), tem-se que,
( )
1
,
( ) ,
k l j i
i j
k l
n
l
L i q
ω
=
e os ideais
k
L
à esquerda de
n
W
podem ser obtidos a partir dos geradores de
n
W
. Um raciocínio análogo aplica-se aos ideais
k
R
à direita de
n
W
, para
k kk n
R W
α
=
, ou seja,
Matéria: representação algébrica
146
( )( )
1
,
( ) ,
k i l j i
i j
k l
n
l
R i q
ω
+
=
.
Desse modo, visto que cada
i
l
q
é gerado pela base primitiva
{
}
1 0
0 1
,
q q
,
fazendo
1 1 1 0 0 0
0 0 0 1 1 1
... ...
i
l
l
i
q q q q q q q
=
, então os ideais à esquerda e à direita são
obtidos desde os geradores primitivos da álgebra. Cada ideal (há, portanto, 2n
ideais, n à esquerda e n à direita) forma uma subálgebra de
n
W
, todos
mutuamente independentes. Também é possível demonstrar que os n
componentes
k
L
do ideal à esquerda, bem como os n componentes
k
R
do
ideal à direita, formam uma base para seus respectivos subespaços vetoriais
associados
213
. Aos ideais à esquerda e à direita correspondem os colchetes ket e
bra de Dirac, largamente utilizados no formalismo quântico. Por outro lado, em
mecânica quântica, desempenha um papel fundamental o conceito de vetor de
estado. Exporemos, brevemente, este conceito
*
, em função de sua íntima conexão
formal com a álgebra apresentada.
Segundo a álgebra linear, uma matriz coluna pode ser considerada como
um vetor num espaço vetorial linear. Um estado qualquer de polarização linear de
uma partícula, por exemplo, um fóton de luz, é dado por um vetor-coluna. O
estado quântico de polarização do fóton mede o ângulo que o plano de propagação
faz com uma direção ortogonal à direção de propagação. Seja
θ
θθ
θ
o ângulo de
polarização. O vetor-coluna que representa este estado de polarização (linear) é
dado por
cos
i
e
sen
β
θ
θ
213
Cf. DAVIES, op. cit
., p. 96-97.
*
Detalhes encontram-se em vários textos básicos sobre mecânica quântica, entre eles
NUSSENZVEIG, 1998, p. 293-296.
Matéria: representação algébrica
147
em que
i
e
β
é um fator de fase, que não tem relevância maior para o resultado
final que objetivamos. Pois bem, graças a uma notação devida a Paul Dirac, o
vetor-coluna que representa o estado de polarização linear
θ
θθ
θ
do fóton é
representado pelo ket
θ
,
cos
sen
θ
θ
θ
expressão na qual o ket de Dirac é o vetor-coluna associado à polarização linear
de ângulo
θ
θθ
θ
. Por sua vez, o vetor linha associado à esta polarização é representado
pelo bra
θ
,
[
]
cos
sen
θ θ θ
=
expressão na qual o bra de Dirac é o vetor-linha associado à polarização linear de
ângulo
θ
θθ
θ
.
É fácil observar que
[ ]
cos
cos 1.
sen
sen
θ
θ θ θ θ
θ
= =
Ou seja, dado
um estado qualquer E associado a um observável (como o ângulo de polarização,
por exemplo), o ket e o bra de E são dados por, respectivamente,
1
2
E
E
E
=
e
* *
1 2
E E E
=
tal que
2
2 2
* *
1 1 2 2 1 2
1
E E E E E E E E E
= + = = + =
(vetor E
normalizado), e as componentes
*
1
E
e
*
2
E
são os conjugados complexos de
1
E
e
2
E
, respectivamente.
Matéria: representação algébrica
148
O produto bra-ket de Dirac pode ser tomado, sem restrições, para dois
estados distintos
E
e
F
, o que resultaria na expressão seguinte
1
* * * *
1 2 1 1 2 2
2
F
E F E E E F E F
F
= = +
Voltando à análise dos ideais à esquerda e à direita de
n
W
, podemos
associá-los
214
, respectivamente, aos colchetes ket e bra, de tal forma que,
1
( )
kl i
k l
n
k
l
L i i q
ω
= =
1
( )
il i k
k l
n
k
l
R i i q
ω
= =
.
Os índices i determinam as n bases distintas de cada ideal
individualmente; no entanto, é suficiente tomar apenas um específico índice k, por
exemplo, k = 0, para a representação metafísica (e física) que estamos buscando.
Assim, tomando k = 0 nas expressões acima, obtemos como expressões
suficientes para os ideais procurados,
1
0
0
( )
i
l
n
l
L i i i q
= = =
1
0
0
( )
il i
l
n
l
R i i i q
ω
= = =
.
Visto que os ideais à esquerda e à direita podem ser tratados como espaços
vetoriais, que denominamos duais um do outro, seus componentes são, em
princípio, ortogonais. Com efeito, isto é verdadeiro, pois, pelo menos para a
classe dos ideais que tomamos fazendo k = 0, temos que
214
A demonstração detalhada encontra-se em DAVIES, loc. cit.
Matéria: representação algébrica
149
2
1 1 1
,
il i j il i j
l m l m
n n
n
l m l m
i j q q q q
ω ω
= =
Contudo, sabemos que
i j jl i j
l m
m l
q q q
ω
= ; logo, aplicando esta regra à
expressão acima,
2
( )
1
,
l i j i j
m l
n
l m
i j q
ω
=
Re-indexando com m+l em vez de m, obtém-se que,
2
( )
1
,
l i j i j
m
n
l m
i j q
ω
=
e, somando em l, tem-se que,
2
1
0, para
i j
ij m
n
m
i j n q i j
δ
= =
; e, para
i j
=
,
2
0 0
1 1
00
m m
n
n
m m
i i nq q
α
= = =
sendo
00
α
é o idempotente fundamental. Desse modo, podemos escrever
que,
00
ij
i j
δ α
= .
Ou seja, as componentes dos ideais à esquerda e à direita da álgebra são,
de fato, mutuamente ortogonais. Novamente, surge o papel fundamental a ser
desempenhado pelo idempotente
00
α
, que se mostra como um fator “difuso”
no corpo algébrico e elemento comum aos subespaços vetoriais compreendidos
Matéria: representação algébrica
150
pela álgebra. Por sua vez, a multiplicação invertida de ket e bra nos fornece a
seguinte expressão:
2
2
2
1 1
1
,
0
1
,
0 0
1
,
0 0
1 1
2
i is i
r s
n n
r s
is i i
r s
n
r s
is ir
r s
n
r s
ir is
r s
n
r s
ir is
r s
n n
r s
ii ii ii ii
i i q q
q q
q
q q
q q
ω
ω
ω ω
ω ω
ω ω
α α α α
+
=
=
=
=
=
= = =
Ou seja,
ii
i i
α
=
, e o operador
i i
nos fornece o conjunto
completo dos idempotentes geradores da álgebra de Weyl, bem como temos que o
idempotente “difuso”
00
α
também é dado pelo operador
0 0
; por isso,
00
α
poderia talvez desempenhar um papel fundamental no acoplamento entre a
álgebra, que nos propicia a dinâmica do interior da protomatéria, e a representação
do vácuo, que nos oferece a dinâmica da energia do “vazio”
*
. Ademais,
1
ii
i
α
=
, donde
1
i
i i
=
, o que é exato, pois os geradores devem cobrir
todo o espaço.
*
Trata-se, obviamente, de uma conjectura. No entanto, como veremos no capítulo seguinte, esse
modo de interpretar o operador
0 0
conduz a resultados empiriológicos interessantes que
podem ser associados à não-localidade em microfísica.
Matéria: representação algébrica
151
3.3
Um modelo algébrico para a teoria hilemórfica
3.3.1
Considerações iniciais
De acordo com a perspectiva cartesiana, as teorias físicas são formuladas
supondo-se um continuum espaço-tempo no qual todos os processos são
representados por objetos ou campos locais em interação. Porém,
A relação entre o indivíduo [a partícula] e a função de onda [o campo] é
essencialmente ambígua, e a associação de um campo local com o estado de um
objeto localizado conduz a dificuldades de interpretação [...] Um dos problemas
relaciona-se com o fato de duas partículas espacialmente separadas [e, portanto,
incapazes de interferirem uma sobre a outra] não se comportarem como sistemas
independentes, autônomos [como seria de se esperar, segundo a mentalidade
clássica]. Esta não-separabilidade foi notada por Einstein, Podolski e Rosen.
215
Ora, tal capacidade de interconexão, presente nas interações quânticas, é
uma característica nova essencial dos fenômenos quânticos, e confirmada por
experimentos recentes.
216
Nesta dissertação a protomatéria é o locus das conexões
não-locais; daí parece não haver qualquer dificuldade em aceitarmos
simultaneamente a não-localidade, como um fato de natureza metafísica que
ocorre no interior da matéria, e o limite c para o transporte de informação entre
dois eventos espacialmente separados (
2
0
ds
) , como um fato de natureza
científica que ocorre no espaço-tempo. Finkelstein
217
apresentou o argumento, à
época, que a teoria quântica de campo mesclava o conceito clássico de espaço-
tempo com a matéria quântica (matéria signata quantitate, a bem dizer). Por isso,
este autor sugere que uma pura teoria quântica da matéria deveria ser pesquisada,
sem explícita referência a um espaço-tempo prévio. Neste caso, o espaço e o
tempo deveriam emergir como elementos constitutivos de uma teoria mais
215
HILEY & FRESCURA, 1980, p. 8.
216
Cf. ASPECT et al., 1982.
217
FINKELSTEIN apud HILEY, 1981, p.2.
Matéria: representação algébrica
152
fundamental, segundo o parecer de Bohm e Hiley.
218
Deve-se acrescentar, no
entanto, que é preferível referir-se a uma “realidade mais fundamental” em vez de
uma “teoria mais fundamental”.
*
E o câmbio aqui é estratégico: Ao atacar o
problema da matéria, devemos valer-nos não apenas de argumentos epistêmicos,
mas também de fundamentos metafísicos. A estratégia de recorrência unicamente
a uma epistemologia da matéria, que é conduzida pela ciência experimental,
parece conduzir-nos, como vimos na seção sobre epistemologia da matéria do
capítulo segundo, ou bem a uma regressão indefinida na qual novos componentes
são invocados para dar conta das classes de fenômenos conhecidos, ou bem a uma
aparente petição de princípio, dado que certos elementos demandam a si mesmos
como componentes últimos, o que não é garantido pelo processo científico em
vigor. Assim, optamos por apelar a uma estratégia mais segura: recorremos aos
princípios metafísicos da realidade natural, formulados por uma tradição filosófica
de mais de vinte séculos e, a partir deles, empreendemos uma abordagem que
agora mescla componentes epistêmicos e metafísicos, os primeiros ancorados
nestes últimos. Isto será realizado tomando-se formalmente a álgebra abstrata e
aplicando-a materialmente aos componentes hilemórficos. Assim, em vez de
dizermos, como Hiley
219
, que espaço e tempo emergem de uma teoria mais
fundamental, podemos reivindicar que espaço e tempo estão fundamentalmente
integrados à extensão e à duração na essência da protomatéria, sendo esta última o
substrato comum da realidade natural.
Porque procederemos a uma análise que, em consonância com a proposta
de Maritain, poder-se-ia chamar de lógico-metafísica, complementar à resolução
empiriológica das ciências naturais, faremos uso da abordagem proposta por
Philip Davies
220
, tendo em consideração as distinções apresentadas acima, e
também que a protomatéria fornece-nos o conteúdo primário de uma pré-
geometria ou de um pré-espaço
. A estrutura pré-geométrica que associamos à
protomatéria contém um número finito de elementos componentes a que
218
Cf. HILEY, 1981, p.2.
*
Esta segunda opção parece que teria tido, sem dúvida, a posição de Einstein.
219
Cf. HILEY, 1981, loc. cit.
220
Cf. DAVIES, 1981.
Vale ressaltar que a componente epistêmica “tempo” encontra-se subentendida nas abordagens a
um pré-espaço, ainda que posteriormente se faça algum tipo de distinção de natureza epistêmica
entre tempo e espaço.
Matéria: representação algébrica
153
denominamos holoquarks e
α
-estados
, aos quais nos referimos no capítulo
segundo. Ambos serão apresentados algebricamente neste capítulo.
A chave da abordagem lógico-metafísica consistirá em apresentar uma
álgebra conveniente para a modelagem da protomatéria. Como toda proposta
investigativa de caráter inicial, esta não pleiteia ser única nem exaustiva. Assim,
preferimos basear-nos numa proposta iniciada por David Bohm e posteriormente
desenvolvida, ainda que de forma incompleta até a presente data, pelo colaborador
direto de Bohm, Basil Hiley, e na tese de doutoramento de Philip Davies, ambos
os trabalhos já referenciados nesta dissertação. A escolha deveu-se, em primeiro
lugar, a que, ao nosso ver, a álgebra revela-se bastante promissora como
instrumento de ataque aos princípios metafísicos que expusemos, como teremos
oportunidade de verificar; em segundo lugar, porque provê uma estrutura
algébrica para os conceitos de ordem implicada e holomovimento, ambos
propostos por Bohm, os quais entendemos possuírem suficiente aproximação
conceitual com a estrutura dinâmica da protomatéria. Por outro lado, o modelo
prevê que a geometria do espaço-tempo emirja da estrutura dinâmica carreada
pela álgebra pré-geométrica. Isto não deveria espantar: se a estrutura algébrica
pré-geométrica realiza uma apropriação formal (de natureza epistêmica) da
dinâmica da protomatéria, e considerando que o espaço-tempo pode ser associado
a uma espécie de “estado fundamental” da protomatéria, então ambos, extensão e
duração
*
, encontram-se no interior da matéria como componentes ontológicos,
pré-geométricos, da espacialidade e da temporalidade, associadas à ordem natural.
Na abordagem clássica, o espaço-tempo é tratado como um continuum.
Para alguns autores, especialmente os que sustentam a prioridade epistêmica do
campo sobre o aspecto particular da realidade física
, a existência da matéria
(física) dependeria da estrutura geométrica do espaço-tempo, gerada por algum
processo espontâneo indicado pela não-linearidade das equações gravitacionais da
teoria geral da relatividade, isto é, a matéria do mundo resultaria de um efeito do
campo gravitacional global. Sakharov, por exemplo, sugeriu a possibilidade do
Ou α-objetos; neste capítulo, segundo o contexto, nos apropriaremos de um termo ou de outro.
*
Vimos, no capítulo segundo, que a origem da matéria primeira (protomatéria) foi simultânea à
origem do tempo. Bem, ainda que a intuição fundamental seja a mesma, substituímos, deste ponto
em diante, tempo por duração, como constituinte simultâneo à matéria, e acrescentamos a
extensão, como constituinte complementar à duração, igualmente simultâneo à origem da matéria.
É o caso de Weyl, por exemplo, como vimos na seção 2.1 do capítulo segundo.
Matéria: representação algébrica
154
continuum espaço-tempo possuir algum tipo de meio elástico
221
a partir do qual
formar-se-ia a matéria ponderável. Ainda que considerássemos pouco provável
que partículas fossem provenientes de algum tipo de elasticidade, mesmo assim
poderíamos pensar em algum tipo de flutuação do cuo, ou em defeitos
topológicos do espaço-tempo em micro-escala. É razoável, portanto, propor algum
tipo de estrutura, possivelmente algébrica, que não dependa de relações fixas ou
bem definidas entre pontos (ou objetos) vizinhos. Tal flexibilidade disposicional
possivelmente favoreceria uma melhor representação de uma realidade que se nos
apresenta com elevado teor de dinamismo e de flexibilidade (mas não de
desordem) estrutural. Assim, parece adequado introduzir um conjunto de
elementos, ou objetos sicos, que funcionam como “pontos generalizados”, bem
como certas relações entre eles, sem algum tipo de relação fixa de vizinhança nem
dimensões determinadas
*
. Parece razoável, portanto, que a álgebra da potência da
matéria (ontológica) careça inicialmente de algum tipo de tratamento métrico, o
que excluiria, por exemplo, em princípio, o uso de espaços vetoriais com
definição de métrica, senão que esta pudesse ser obtida a partir da álgebra através
de algum tipo de operador de natureza estocástica, que nos desse uma média
macroscópica daquela distribuição de objetos vizinhos.
Gostaríamos agora de suplementar nossa discussão com alguns pontos que
julgamos relevantes para a compreensão do modelo, não com respeito já aos
aspectos algébricos que serão apresentados, mas com relação aos nculos
conceituais entre esses entes algébricos e suas contrapartidas metafísicas. Tanto
da exposição do capítulo segundo no que se refere às apropriações
epistemológicas da matéria quanto à sua ontologia, bem como do alcance
empiriológico proposto por Maritain, endossado por esta dissertação e abordado
no capítulo primeiro, torna-se claro que as ciências experimentais detêm-se
unicamente sobre a materia signata quantitate, ou seja, sobre a matéria
individuada -- ainda que em sujeitos cuja identidade seja difícil, ou até impossível,
221
SAKHAROV apud HILEY, 1981, p. 7.
*
O que é perfeitamente compatível com a existência, no interior da protomatéria, do que Tomás de
Aquino chamava de dimensões indeterminadas. Isto é apresentado por Tomás no capítulo 6, Quid
sunt dimensiones interminatae secundum veritatem (Que são em verdade as dimensões
indeterminadas), do opúsculo Sobre la Naturaleza de la Materia y las Dimensiones
Indeterminadas (op. cit, p. 33-35): “Nunc igitur restat ostendere quomodo conveniens sit
dimensiones ponere et quomodo possunt dici interminatae
(Portanto, resta agora demonstrar de
Matéria: representação algébrica
155
precisar --, que é, portanto incomunicável, à qual estão assinaladas certas
dimensões e, por conseguinte, quantificações. É a matéria que constitui por
excelência os fenômenos na medida em que estes são espaço-temporalmente
localizados, passíveis de análise segundo as regras estabelecidas pelas teorias
científicas e por seus métodos experimentais. Por outro lado, a ontologia,
especialmente enfocada por uma filosofia da natureza, detém-se particularmente
na composição de matéria (primeira), não-individuada, comunicável a todos os
sujeitos naturais, e forma (substancial). Mais especialmente, neste trabalho, temos
em vista essa matéria primeira. A teoria hilemórfica aborda mais detidamente as
condições de materialidade dos entes naturais, como vimos, e, por isso, por ser a
matéria o fundamento quantitativo dos mesmos, deve ser passível de análise
segundo modelos epistêmicos em parte coincidentes com aqueles das ciências da
natureza.
Desde Newton – ou desde Leucipo e Demócrito – presumiu-se que a auto-
identidade das existências físicas (a saber, sua individualidade) deriva-se da
constituição atômica da matéria. Presumia-se, obviamente, que sendo os átomos
ínfimos e indivisíveis seriam igualmente constantes e indestrutíveis, constituindo-
se em blocos construtores irredutíveis e permanentes da realidade física. Em
suma, como nos expõe Smith, pensava-se que,
O que “realmente existe”, e que por si mesmo retém uma auto-identidade, são os
átomos. No entanto, tal concepção provou-se ser errada. Resulta que nem o
átomo antigo nem as partículas fundamentais nas quais pode ser decomposto, têm
uma auto-identidade verdadeira.
222
Smith aduz, então, que a realidade corpuscular, ou física, é transiente,
mutável e, por isso, não se pode erigí-la em fundamento último da materialidade,
porquanto,
Tais entidades estão sempre em mutação, sempre num estado de fluxo, de tal
forma que sua própria existência é de certa maneira um processo de devir
223
, no
qual nada é produzido realmente. Isto foi dito repetidamente, começando com
que modo é adequado pôr dimensões na matéria [primeira] e de que modo se pode chamar de
indeterminadas).
222
SMITH, 1984, p. 50.
223
Cf. WALLACE, 1996, p. 56.
Matéria: representação algébrica
156
Heráclito e com os filósofos budistas. E não pode haver qualquer dúvida de que
seja verdade: mesmo a física moderna [...] aponta exatamente para a mesma
conclusão.
224
E continua sua exposição com uma analogia entre a matéria primeira e o
plano euclidiano, a partir do qual as figuras geométricas (formas substanciais) são
extraídas (eduzidas). Conclui, portanto, que o cosmos existe num devir, num
fluxo, como sustentava Heráclito. Devemos, assim, buscar na matéria primeira e
não na materia signata quantitate o substrato comum da realidade natural;
substrato metafísico, sem dúvida, que não confere, como às vezes se insiste
equivocadamente, nenhum caráter abstruso ao conhecimento, mas, antes,
fundamenta-o genuinamente. Sendo a realidade natural uma emergência do
interior da matéria primeira,
As formas específicas não são dadas a partir de fora, senão extraídas da potência
da matéria, por meio de uma transmutação própria
225
[...], e é impossível pôr na
matéria [materia prima] qualquer divisão prévia à forma substancial, pois a
introdução da forma substancial é a geração do próprio composto, o único que
essencialmente possui partes.
226
As alterações que se sucedem no interior da matéria se o sem concurso de
movimento local, isto é, são modificações instantâneas, pois o ente em potência
[a materia prima] somente pode alterar-se subitamente, que sua ação não é
movimento nem término de movimento, visto que este requer sempre um sujeito
que existe em ato, e esta atualidade não se encontra em algum lugar da matéria
[primeira].
227
O modelo tem de prover o tipo de transformação algébrica que aproprie
epistêmica e adequadamente o processo de transmutação dos estados no interior
da matéria, bem como apresentar os componentes envolvidos na mescla produzida
224
SMITH, 1984, p. 51.
225
TOMÁS DE AQUINO, Sobre la Naturaleza de la Matéria y las Dimensiones Interminatis,
p.68-69. (Grifos nossos). Como seria possível uma transmutação própria da matéria primeira,
como defende Tomás de Aquino, sem as razões inteligíveis desta transmutação? Como seriam
possíveis transmutações sem supor que a matéria dispõe em seu interior de estruturas quantitativas
próprias mediante as quais (como exemplificaremos no capítulo quarto) são extraídas as formas
especificantes que determinam a quantidade mensurável?
226
Id. Uma transmutação instantânea supõe a existência de conexões instantâneas entre os α-
estados no interior da matéria, cujo efeito mais conspícuo, a nosso ver, é o fenômeno da
não-
localidade, que teremos oportunidade de abordar no capítulo quarto.
227
Ibid., p. 51-52. (grifos nossos).
Matéria: representação algébrica
157
pelas alterações das qualidades passivas e ativas presentes naqueles estados.
228
Trata-se também de frisar que esses estados não são meios termos situados entre a
forma substancial e a acidental, pois, segundo Tomás, “é impossível existir um
outro ser entre o ser da substância e o ser do acidente”.
229
Ademais, tais mutações
devem seguir a ordem do mais “imperfeito ao mais perfeito”.
230
Por fim, deve ser
possível mostrar algebricamente que os princípios gerais da corporeidade,
especialmente algumas propriedades básicas das formas simples da corporeidade
podem ser obtidas a partir dos α-estados da protomatéria.
231
3.3.2
Interpretação ontológica da álgebra de Weyl
Do que expusemos até agora, não apenas com relação à proposta de
Tomás de Aquino com respeito à matéria, mas também da álgebra de Weyl,
podemos buscar investigar certas propriedades ontológicas da matéria desde o
ponto de vista de sua representação algébrica, e para isso proporemos a seguir
como as formas elementares e suas operações podem ser representadas
adequadamente por meio da álgebra proposta.
1) Vimos que dois princípios fundamentais e duais para a gênese da
realidade natural, atividade e passividade, pois permitem a dinâmica inerente à
matéria primeira. Por serem fundamentais, estes dois princípios devem servir
como base fundamental para a dinâmica e, por isso, os associamos à base
fundamental da álgebra, dada por
{
}
1 0
0 1
,
q q
.
2) Por outro lado, como vimos anteriormente, Tomás de Aquino nos
afirma que se uma mescla dos elementos por meio de suas propriedades ativas
e passivas, que são aquilo que fundamentalmente caracteriza cada elemento; ou
seja, cada forma elementar constitui-se de um conjunto de qualidades ativas e
228
Cf. FAITANIN, 2001a, p.262-273.
229
TOMÁS DE AQUINO, De Mixtione Elementorum, n. 11.
230
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q66 a1 ad1.
231
Cf. DAVIES, op.cit, p.299-306. Com efeito, Davies obtém, por exemplo, propriedades métricas
referentes ao campo de sabores dos quarks. Visto esta dedução estar fora do escopo da tese,
porquanto se trata de uma conseqüência puramente epistêmica (quantitativa), e não empiriológica,
do modelo algébrico, ela não será apresentada aqui. É relevante mencioná-la como evidência da
fecundidade do modelo.
Matéria: representação algébrica
158
passivas, mediante as quais é possível a mescla dos elementos. Com efeito, a
atividade e passividade presente nas qualidades permitem a dinâmica de estados
na essência da matéria e sua mútua combinação. Ora, sendo assim, as qualidades
associadas a cada elemento se combinam para gerar as formas elementares e se
constituem, portanto, uma base para a álgebra
n
W
. Assim, cada componente
a
b
q
, que denominamos holoquark, representa, na álgebra, uma qualidade
composta de uma específica a-atividade (índice superior a) e de uma específica b-
passividade (índice inferior b), de tal modo que uma combinação de a-atividade e
de b-passividade constituam um elemento da álgebra, e, portanto,
2
n
qualidades ou elementos geradores.
3) Afirma também Tomás que um específico elemento ou forma elementar
é dado por uma soma de qualidades ativas e passivas segundo o mais e o menos.
Tal soma é expressa por uma ponderação adequada das qualidades ativas e
passivas, isto é, um certo elemento
jk
α
(o duplo índice refere-se justamente à
composição de atividade e de passividade, e está relacionado ao caráter matricial
dos elementos da álgebra), denominado idempotente, que é obtido por
1
( , , )
k j
jk r
r
r j k q
n
α φ
=
, em que
( , , )
r j k
φ
é o fator de ponderação.
A razão de a soma ser tomada sobre o índice mudo
r
significa que, como
há dois elementos geradores fundamentais, ora tomamos um deles ora o outro para
a soma, fato que insere a dualidade fundamental na dinâmica da matéria, além de
estabelecer certas relações duais, de cuja interpretação e aplicação cuidaremos
adiante.
Na medida em que no interior da matéria primeira se composição e
transmutação dos elementos, como vimos nos vários textos perfilados do
Aquinate, podemos realizar o produto algébrico entre elementos quaisquer da
álgebra. Alguns desses produtos são dotados de significação especial por
representarem especificamente as operações de composição e transmutação das
formas.
Matéria: representação algébrica
159
4) No De Mixtione, refere-se também Tomás de Aquino, como vimos, a
uma certa miscibilidade ou não das formas, em função de sua composição a partir
das qualidades ativas e passivas. Ora, a álgebra fornece-nos um mecanismo
apropriado, que vimos na seção 3.2.2 (idempotentes), para expressar a
miscibilidade como possível ou impossível, a saber, uma determinada forma
jj
α
é ou não miscível com outra forma
kk
α
se
0
jj kk
α α
=
ou
0
jj kk
α α
,
respectivamente. O caráter de idempotentibilidade permite representar
convenientemente que a mescla de um elemento consigo próprio resulta no
próprio elemento, a saber,
2
jj jj jj jj
α α α α
= = .
Outra operação fundamental a que se refere o Aquinate é a
transmutação
232
das formas na essência da matéria primeira, operação
fundamental para a edução das formas dos compostos. A transmutação, por ser
uma metamorfose própria da matéria, é representada por uma transformação de
similaridade, seguindo sugestão de Bohm e de Hiley para expressar
reconfigurações de elementos no interior da álgebra
233
. Assim, uma transmutação
é representada por
1
jk
εα ε
, em que
ε
é um componente qualquer da álgebra.
As transmutações interessantes, como veremos, dão-se em torno dos reatores
primitivos,
0
a
q
e
0
b
q
, fato que naturalmente decorre da formulação proposta para a
matéria, dado que justamente estes elementos representam, na álgebra, graus
arbitrários de atividade e passividade das qualidades. Assim, é razoável que a ação
das qualidades por meio de sua atividade, ativa e passiva, causem uma
transmutação própria cujo resultado é a edução de uma forma específica.
Vejamos, portanto, como podemos, por meio da álgebra, dadas as
considerações anteriores, obter um modelo para representar a matéria primeira.
Definamos, em primeiro lugar, certos idempotentes primitivos
j
α
que
satisfazem às relações abaixo:
232
Cf. TOMÁS DE QUINO,
Sobre a Naturaleza de la Matéria y las Dimensiones Indeterminadas,
p. 68-69.
233
Cf. BOHM, 1980a, p. 202; Cf. HILEY apud SAUNDERS&BROWN, 1991, p. 243.
Matéria: representação algébrica
160
2
j j
α α
=
0
j k k j
α α α α
= =
1
j
j
α
=
, j
{0,1,2 ...n}
mencionamos que esses idempotentes podem ser tomados como
operadores de projeção sobre algum espaço vetorial. No entanto, precisaremos
antes tratar suas relações do que tomá-los individualmente, isto é, o significado de
uma relação entre dois idempotentes é o de contexto”, a saber, torna-se mais
relevante na álgebra não cada elemento tomado isoladamente mas sua interação,
o que nos conduz a um conjunto de elementos
*
jk
α
que nos permitem tanto a
representação como a relação entre estados no interior da matéria primeira. Assim,
são dadas as seguintes relações:
ij kl jk il
α α δ α
=
(3.9)
jj jj jj
α α α
=
(3.10)
0
jj kk
α α
=
se jj
kk (3.11)
jk
δ
é o símbolo de Kronecker: 1, se j
=
k; 0, se j
k.
Os
jk
α
são os α-estados. Todavia, não são únicos, a saber, poderíamos
obter um outro conjunto de α-estados utilizando algum tipo de automorfismo da
álgebra como, por exemplo,
1
jk jk
β εα ε
= , sendo
ε
um elemento da álgebra (3.12)
Uma interpretação adequada para o papel ontológico desempenhado pelo
símbolo de Kronecker é a seguinte: se o símbolo é nulo, os α-estados (formas
*
Os
jk
α
correspondem aos
α
-estados (ou objetos) que representam as formas elementares no
interior da matéria primeira.
Matéria: representação algébrica
161
elementares) são imiscíveis; caso contrário, são miscíveis
234
. A análise que se
segue considera um tipo de estrutura algébrica que não apenas contempla os α-
estados lógico-metafísicos, mas nos permitem obter, por meio de operadores
convenientemente definidos, a estrutura métrica do espaço-tempo, bem como
inúmeros outros componentes empiriológicos tais como a função de onda
associada ao elétron, por exemplo, e os sabores dos quarks. No capítulo quarto,
serão abordados a estrutura métrica do espaço-tempo e o efeito de não-localidade.
Seja a álgebra finita de Weyl
2
n
C
de ordem
2
n
como sendo a álgebra
polinomial sobre o corpo complexo
, gerada pelos reatores
{
}
1 0
0 1
,
q q
:
*
(
)
1
0 0
1
n
n
q q
= =
(3.13)
(
)
0 0
1
1
n
n
q q
= =
(3.14)
1 0 0 1
0 1 1 0
( )
q q p q q
φ
= (3.15)
em que
( )
p
φ
é uma função complexa da variável real
p
, de tal forma que
2
*
( ) ( ) ( ) 1
p p p
φ φ φ
= =
, sendo
*
( )
p
φ
o conjugado complexo de
( )
p
φ
, e
( ) 1
n
p
φ
=
.
A intuição metafísica associada aos reatores primitivos
1
0
q
e
0
1
q
é a
seguinte: próximas à potência da matéria
, as formas elementares, por meio de
suas qualidades ativas e passivas (dualidade necessária à consecução da mescla),
acionam esta potência, excitando-a à uma mescla. A mescla final se for possível
,
redunda numa edução, conforme expusemos no capítulo segundo. Assim, os
holoquarks
j
k
q
, cuja definição veremos a seguir, funcionam como reatores
genéricos da potência da protomatéria, definindo os α-estados.
234
Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Mixtione Elementorum, n. 15-16.
*
Ver seção 3.2.4: Estrutura das Álgebras de Clifford e de Weyl.
Como vimos nos diversos textos referenciados de Tomás de Aquino anteriormente.
Segundo as leis de possibilidade inscritas quando da criação da matéria (leis que devemos buscar
compreender a partir da estrutura ontológica da matéria).
Matéria: representação algébrica
162
Os α-estados, por sua vez, definirão o estágio final (ω-objeto) que será
eduzido (projetado no espaço-tempo). Igualmente, o próprio espaço-tempo
consistirá numa edução fundamental da protomatéria. Ao par de reatores (ou
holoquarks) primitivos
1
0
q
e
0
1
q
podemos associar aquilo que Tomás de Aquino
designa por potência ativa e potência passiva, respectivamente, e funcionam
também como par excitador dos estados fundamentais (α-estados) na essência da
protomatéria, associados às formas elementares. Também, sugerimos uma
alteração na proposição inicial de Bohm, Hiley e Davies, fazendo
1 0 0 1
0 1 1 0
( )
q q p q q
φ
= (3.16)
em que qual definimos a função complexa
φ
, em vez do fator de fase
ω
da
proposta original, de modo a tornar mais genérica a comutação do produto dos
holoquarks primitivos. O parâmetro real
p
(isto é,
p
e é tal que
(
)
2
( ) exp
i
n
p p
π
φ
= ) indica algum gênero de ativação ou de intensidade da
potência. Assim, temos que o holoquark
j
k
q
da álgebra é definido por:
0 0
0 0
j j jk j
k k
k
q q q q q
φ
= = (3.17)
Portanto, quaisquer pares de holoquarks podem se combinar de acordo
com a seguinte regra geral:
i k jk i k
j l j l
q q q
φ
+
+
= (3.18)
Com a regra (3.18) tem-se o que é necessário para as demais operações
algébricas. Também é possível demonstrar, embora não o faremos nesta
dissertação
*
, como citado, que os
2
n
holoquarks formam uma base para a
álgebra
2
n
C
, a qual nos fornece a aproximação lógica do dinamismo presente na
*
Como mencionamos anteriormente na seção 3.2.4.
Matéria: representação algébrica
163
essência da protomatéria. Visto que os elementos (holoquarks) da álgebra formam
uma base para a expressão da dinâmica presente no interior da matéria, então
qualquer elemento A da dinâmica pode ser expresso por meio da base,
1
, 0
n
j
jk
k
j k
A A q
=
=
(3.19)
Todavia, os elementos A que nos interessam são os α-estados
jk
α
, aos
quais associamos as formas elementares, os quais podem ser obtidos a partir dos
holoquarks por meio da expressão
1
0
1
n
kr k j
jk r
r
q
n
α φ
=
=
(3.20)
a qual expressa que um dado α-estado é obtido, como expusemos no capítulo
segundo, por uma combinação de holoquarks
*
no interior da matéria primeira. Se
fizermos j=k, teremos,
1
0
0
1
n
jr
jj r
r
q
n
α φ
=
=
(3.21).
Cabe aqui uma observação que julgamos relevante para o desenvolvimento
da investigação proposta neste trabalho. Poderíamos ter escolhido a álgebra de
Clifford generalizada
n
m
C
em vez de
2
n
C
; neste caso, teríamos m reatores em vez
de 2, o que sugerimos seja compreendido do seguinte modo: em vez de supor,
como o estamos fazendo, que as qualidades estejam definidas implicitamente nos
elementos
jk
α
, e que sua atividade e a passividade sejam representadas pelos
reatores (ou base) da álgebra, os holoquarks
1
0
q
e
0
1
q
,
Ver a seção anterior (3.3.1).
*
Ou α-objetos.
Matéria: representação algébrica
164
teríamos m qualidades representadas por m holoquarks primitivos, e a atividade e
passividade destas qualidades estariam implicitamente consideradas na definição
das formas elementares observando-se, por exemplo, o sinal de composição dos
holoquarks (ou das qualidades). Teríamos, neste caso, dois aspectos a serem
pesados:
(1) uma vantagem muito grande em considerarmos a álgebra
n
m
C
em
vez daquela que tratamos aqui: possivelmente um vínculo mais explícito entre a
álgebra e a estrutura geométrica do espaço-tempo, pois poderíamos definir um
operador, por exemplo, que levasse cada qualidade no subespaço vetorial
associado ao ideal (esquerda ou direita), o que implicaria na imediata associação
das qualidades com vetores, e o tratamento geométrico mais imediato das
conseqüências da álgebra em termos de uma abordagem como nos propõe
Hestenes
235
, por exemplo.
(2) A aparente desvantagem concerne ao tratamento algébrico em si
mesmo, dado que as expressões tornar-se-iam bem mais complexas, assim como
talvez se perdesse um pouco da intuição metafísica associada às operações
entre os elementos no interior da álgebra e sua contrapartida metafísica no interior
da matéria. De qualquer modo, consideraremos, neste trabalho, que a álgebra
inicial seja a de Weyl, tendo em conta sua maior simplicidade e as intuições
metafísicas mais imediatas, associadas aos componentes e expressões algébricos.
Vimos na seção 3.3.1.2 o relevante papel desempenhado pelos ideais.
Estes ideais, à esquerda e à direita, em nossa álgebra, podem ser dados pelas
seguintes expressões:
0
1
( )
ks k
s
s
R k q
n
φ
=
(3.22)
0
1
( )
j
r
r
L j q
n
=
(3.23)
Segue-se, portanto que,
235
Cf. HESTENES & SOBCZYK, op. cit.
Matéria: representação algébrica
165
0 0
( ) ( )
jk
L j R k
α
=
(3.24)
porquanto,
0 0
2
,
2
,
( )
2
,
1
( ) ( )
1
1
ks j k
r s
r s
ks rk k j
r s
r s
k r s k j
r s
r s
L j R k q q
n
q
n
q
n
φ
φ φ
φ
=
=
=
Porém, fazendo t=r-s, e substituindo no último termo da igualdade dessa
expressão, temos que,
0 0
1
( ) ( )
kt k j
t
t
L j R k q
n
φ
=
, que, comparada à expressão
(3.20), nos dá
jk
α
, c.q.d.
Seja um operador
Α
sobre a álgebra, capaz de associar a cada α-estado
um label, do seguinte modo:
0
,
1
jk
k jj
j k j
j q j
n
φ α
Α = =
(3.25)
Podemos mostrar o resultado acima a partir da definição de
jj
α
dada pela
expressão (3.21); logo,
jj
j
j
α
Α =
(3.26)
Matéria: representação algébrica
166
Se multiplicarmos ambos os lados por
jj
α
, temos que
jj jj jj jj
j j
α α α α
Α = = (3.27).
Do mesmo modo, se multiplicarmos ambos os lados da expressão (3.26)
por
jm
α
,
jm jj jm jj jm jm
j j j
α α α δ α α
Α = = = (3.28).
Ora, as expressões (3.27) e (3.28) provêem uma natural ordem para os α-
estados, bem como sugerem que o operador
Α
possa ser utilizado para atribuir
uma localização a um α-estado, o que implica que este último se autodetermina,
pelo operador, num lugar, dado que lugar significa estar segundo uma relação de
ordem
236
. Vemos, por conseguinte, que a categoria aristotélica de predicação
acidental lugar, pela qual um certo corpo é dito estar num determinado sítio,
supõe que os α-estados no interior da protomatéria se autodeterminem pelo
operador
Α
, segundo uma certa ordenação mútua, ordenação à que chamamos de
localização, ou lugar, dos α-estados no interior da matéria. Tal localização
predispõe a edução a efetivar-se espaço-temporalmente segundo determinadas
coordenadas num sistema de referência, para cuja escolha concorrem unicamente
critérios de conveniência. Ao lugar atribuímos um holon no espaço de posições. O
termo “holon” deve-se a Davies, e seu significado será mais bem examinado à
frente.
Seja o seguinte automorfismo,
1
jk jk
β α
= Η Η
(3.29)
236
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q.42 a.3.
Matéria: representação algébrica
167
em que
Η
é um operador da álgebra, e é um elemento qualquer da mesma. Este
tipo de transformação é chamado de transformação de similaridade, que pode ser
compreendida do seguinte modo: se tivermos um conjunto de elementos sobre os
quais atuam operadores quaisquer
Α
, estes definem uma transformação do grupo
de transformações (operadores) sobre o conjunto dos elementos da álgebra, o que
permite estabelecer uma correspondência biunívoca,
:
jk jk
α β
Η , que leva os
elementos
jk
α
nos novos elementos
jk
β
. Por meio do automorfismo
Η
entre os
antigos e os novos elementos, a transformação
Α
que atua sobre os antigos
elementos
jk
α
torna-se uma transformação
Β
que atua sobre os novos elementos
jk
β
. Assim, obtemos uma transformação de similaridade entre os operadores,
1
Β = ΗΑΗ
(3.30)
237
para o que são naturais candidatos a operadores que perfazem transformações de
similaridade (responsáveis pelo caráter simplético da álgebra) os holoquarks
primitivos
1
0
q
e
0
1
q
, dado que, por se tratar de um automorfismo da álgebra, é
razoável se utilizarem componentes da própria álgebra como operadores. É o que
ocorre ao se usar, na expressão (3.12), em lugar do elemento genérico
ε
, o
reator
1
0
q
ou o reator
0
1
q
. Veremos, todavia, que ambos os usos implicam
aspectos distintos da matéria.
Vamos mostrar que
00
0 0
j j
jj
q q
α α
= . Ora, por definição, usando a
expressão (3.21) com j=0, temos que
(
)
0 0 0
00 0 1 1
1
...
n
q q q
n
α
= + + +
237
Cf. WEYL, 1950, p.110-116.
Matéria: representação algébrica
168
multiplicando-se à esquerda ambos os lados da expressão anterior por
0
j
q
, tem-
se
(
)
0 0 0
00 0 1 1
0 0 0 0
1
...
j j j j
n
q q q q q q q
n
α
= + + +
mas, multiplicando-se à direita ambos os lados da expressão anterior por
0
j
q
,
tem-se,
(
)
0 0 0
00 0 1 1
0 0 0 0 0 0 0 0
1
...
j j j j j j j j
n
q q q q q q q q q q q
n
α
= + + +
ou
0
00
0 0 0 0
1
j j j j
r
r
q q q q q
n
α
=
(3.31).
Porém, de acordo com a definição (3.17),
0 0
0 0
j j jk j
k k
k
q q q q q
φ
= = ; no
entanto, substituindo-se j por j, e k por r, tem-se
0 0
0 0
j jr j
r r
q q q q
φ
= .
Substituindo este último resultado no somatório (3.31), temos que
0
00
0 0 0 0
1
j j jr j j
r
r
q q q q q
n
α φ
=
porém, de acordo com (3.18),
0 0
0
0 0 0 0
1
j j j j
q q q q
φ
+
+
= = =
. Logo, vem que,
0
00
0 0
1
j j jr
r
r
q q q
n
α φ
=
;
porém, segundo (3.21), o lado direito desta última expressão é igual a
jj
α
;
portanto,
Matéria: representação algébrica
169
00
0 0
j j
jj
q q
α α
= (3.32)
Por um raciocínio análogo, podemos mostrar que,
00 0
0
j k
jk
q q
α α
= (3.33)
isto é, todo e qualquer α-estado
*
no interior da matéria pode ser obtido por
transformações de similaridade a partir do α-estado
00
α
por meio da atuação de
reatores ativos a passivos apropriados. Mais adiante, especialmente no capítulo
seguinte, veremos que papel desempenha o α-estado
00
α
e como poderíamos
associá-lo ao caráter não-local das interações no nível quântico.
Comparando a expressão (3.32) com a expressão (3.29) e, por
conveniência, usando
Α
em vez de
Η
, e fazendo
1
1
0
q
Α =
, então tem-se que
1
0
q
Α = e, portanto,
1 1 ( 1)
00 00
j j j j
jj
α α α
= Α Α = Α Α Α Α
mas, fazendo
1
11 00
α α
= Α Α
, tem-se que
1 ( 1)
11
j j
jj
α α
= Α Α ; e,
sucessivamente, obtém-se que
1
1 1 00
j j
jj j j
α α α
= Α Α = Α Α
(3.34).
Por um raciocínio análogo, agora aplicado a um α-estado qualquer
jk
α
,
obtém-se
1
1 1 00
j k
jk j k
α α α
= Α Α = Α Α
(3.35)
Matéria: representação algébrica
170
Visto ser a álgebra simétrica com respeito aos holoquarks
1
0
q
e
0
1
q
, nada
impede que definamos um novo α-estado
jj
β
tendo por base
1
0
q
em vez de
0
1
q
,
ou seja,
0
1
js s
jj
s
q
n
β φ
=
(3.36)
em que
jj
β
é uma espécie de dual de
jj
α
, podendo ambos ser relacionados
igualmente por uma transformação de similaridade
Μ
, isto é, em geral,
1
jk jk
β α
= Μ Μ
(3.37)
de tal modo que o operador
Μ
pode ser obtido pela expressão abaixo:
( )
3
, ,
1
k j l k j
l
j k l
q
n
φ
Μ =
(3.38)
cuja dedução não será apresentada, pois o que nos interessa mostrar com a
expressão acima é tão-somente a existência da relação dual entre os α-estados
jj
β
e
jj
α
, e que se trata de uma relação complexa entre ambos. E, do mesmo
modo que as expressões (3.27) e (3.28), um operador,
Β
, para os novos α-
estados,
jj
β
e
jk
β
, que provê, do mesmo modo que
Α
para os anteriores
jj
α
e
jk
α
, uma natural ordem para os novos α-estados, que se efetua sob a forma de
uma atribuição de movimento
,
*
Não devemos esquecer que, em nossa álgebra, um α-estado qualquer representa uma forma
elementar no interior da essência da matéria.
Ao
lugar (ou ordem) correlacionado com o novo α-estado, pela dualidade dos holoquarks
fundamentais, atribuímos um holon no espaço de fases. Essa interpretação, esperamos, ficará mais
clara a seguir.
Matéria: representação algébrica
171
jj jj
j
β β
Β = (3.39)
jk jk
j
β β
Β = (3.40)
em que o novo operador, obtido com base no holoquark dual
1
0
q
, é dado por
0
,
1
jr r
j r
j q
n
φ
Β =
(3.41)
Igualmente, pela simetria dual com
00
α
, temos que
0 0
00
jj j j
q q
β β
= (3.42)
0 0
00
jk j k
q q
β β
= (3.43)
Podemos observar, desse modo, que, em ambos os conjuntos de α-
estados, os reatores
1
0
q
e
0
1
q
desempenham um papel essencial nas
transformações de similaridade para a obtenção de estados no interior da matéria.
Podemos interpretar os operadores
Α
e
Β
como os operadores relativos à
extensão e à mutabilidade (duração), respectivamente. Esta interpretação é
plausível por duas razões: em primeiro lugar, porque a matéria primeira é o
fundamento metafísico tanto da extensão quanto da mutabilidade (ou da
duração)
238
.
238
Cf. ARTIGAS, 2005, p. 179-182. Não estamos identificando a mutabilidade com a duração, de
forma alguma. O ponto em questão é: a mutabilidade supõe simultaneamente a duração, haja
vista não ser possível algum tipo de transformação na realidade natural que não pressuponha
algum tipo de sucessão antes-depois. O tempo, como afirma Aristótles, nada mais é do que o
“número do movimento, segundo o antes e o depois”. (ARISTÓTELES,
The Physics, IV c11 219b
1-2). Logo, duração e mutabilidade (movimento) estão simultaneamente correlacionadas.
Matéria: representação algébrica
172
Em segundo lugar, porque
Α
e
Β
se referem a aspectos complementares
da protomatéria, correspondentes aos reatores primitivos
1
0
q
e
0
1
q
,
respectivamente, de atividade e de passividade na essência da matéria
*
.
Uma análise do automorfismo expresso pelas transformações de
similaridade, em que novos elementos da álgebra (novas composições de estados
ou transmutações no interior da matéria), genericamente representadas pelas
expressões (3.9), (3.10), (3.11) e (3.37), em que o operador
Μ
pode ser um
elemento qualquer da álgebra (por exemplo, algum holoquark
j
k
q
), sugere ser
este automorfismo uma espécie de “explosão” que “espalha os elementos
originais”
239
, distribuindo-os no “espaço” original, o que implica que operações
que carreiam algum significado físico deixam de ser locais
240
. Semelhantemente,
se pode pensar nas transformações tanto como expansões (ou explosões”) da
forma original como contrações (ou “implosões”, para usar um termo correlativo
àquele que Bohm, Hiley e Davies utilizam), num dado domínio R da matéria,
caracterizadas por uma certa sucessão conveniente de mutações no interior desta.
Em nosso caso, isso sugere, por sua vez, que o automorfismo seja
interpretado como uma mutação da forma elementar original dada por
jk
α
, pela
qual esta última adquire novas estruturas quantitativas em seu interior (novas
aptidões representadas pelos holoquarks no interior da forma elementar), as quais
responderão por outras propriedades qualitativas a serem eduzidas com as formas
substanciais específicas, oriundas daquela sucessão de mutações. Vale lembrar
que as estruturas quantitativas na essência das substâncias naturais estão unidas
aos aspectos qualitativos, de tal modo que o qualitativo e o quantitativo se
encontram entrelaçados na realidade natural; ou seja, as qualidades se expressam
quantitativamente na estruturação espaço-temporal dos entes
241
.
*
Vale ressaltar uma vez mais que essência refere-se àquilo pelo qual algo possui o ser; na
protomatéria o ser é recebido nas formas elementares e estas são dotadas das qualidades passivas e
ativas dadas pelos holoquarks.
239
Cf. HILEY et al., 1981, p. 15.
240
Ibid
., p. 9.
241
Cf. ARTIGAS, 2005, p. 215-219.
Matéria: representação algébrica
173
Na forma substancial e nas qualidades
*
presentes na forma substancial
reside a interioridade dos entes. Por meio da materialidade e das determinações
quantitativas a esta associadas, isto é, através de sua exterioridade, manifesta-se a
interioridade dos entes naturais. Ademais, podemos reivindicar que os novos
estados
jk
β
definem uma nova configuração naquele domínio R da
protomatéria. Ora, segundo a teoria hilemórfica, é à forma que associamos a
configuração, isto é, é à forma que associamos uma específica disposição das
partes constitutivas e estruturais dos entes. Logo, a uma nova configuração
242
está
associada uma nova forma. Ademais, à configuração está associada a coesão
interna do ente, a sua unidade em torno de uma disposição “espacial” que lhe é
inerente (colocamos espacial entre aspas pois ainda não estamos no domínio das
dimensões mensuráveis, isto é, no reino da materia signata quantitate; trata-se tão
somente de um uso por antonomásia). Portanto, tendo em vista que a
transformação de similaridade pode ser aplicada, sucessivamente, a cada novo α-
estado, então podemos obter a seguinte seqüência:
(1)
1
jk jk
β α
= Μ Μ
(2)
1
jk jk
γ β
= Μ Μ
... ...
(r)
1
jk jk
ω ψ
= Μ Μ
A seqüência de transmutações ...
jk jk jk
α β ω
num dado
domínio R da protomatéria, no qual são aplicadas as transformações de
similaridade, sugere que o α-estado final, ou ω-objeto,
jk
ω
, possua, após
sucessivas combinações e transmutações no interior da matéria, configuração,
*
Que a ficção cartesiana da res extensa expulsou da realidade, sendo mais tarde denominadas por
Locke, do mesmo modo que havia feito Galileu, qualidades secundárias, de caráter puramente
subjetivo. Ora, podemos ver, desde a exposição acima, que tais propriedades formais pertencem,
de fato, à ordem objetiva da geração da realidade natural. Nossa apropriação epistemológica de
conceitos metafísicos, por meio do modelo algébrico, não reduz as qualidades à quantidade mas,
em contrário, apresenta o inequívoco ponto de que, na realidade natural, qualidades e quantidade
estão entrelaçadas e que há, de fato, um fundamento metafísico deste entrelaçamento, como nos
expõe a teoria hilemórfica.
242
Ibid
., p. 193.
Matéria: representação algébrica
174
consistência e capacidade sinérgica (as três dimensões formais que apresentamos
na seção 3.1), relativas a uma dada forma substancial específica, que definirá
certas dimensões específicas no espaço-tempo, a saber, associadas a um certo
individuo hic et nunc, dotado de propriedades corpóreas, segundo tais e quais
dimensões espaço-temporais (materia signata quantitate). Individuo este que se
distende segundo uma certa configuração associada a uma extensionalidade
espacial, que é dotado de certa estabilidade e coesão interna associadas à
dimensão temporal, e que se auto-organiza segundo certa cooperação sinérgica de
suas partes constituintes (mesmo de modo muito simples como no caso de uma
partícula elementar, com relação à qual poderíamos interpretar que sua
autoorganização supõe, por exemplo, serem seu spin e massa compatíveis, isto é,
“cooperam”, ainda que num sentido ínfimo) associadas a um movimento e a uma
capacidade de mutação intrínseca. Talvez se pudesse daí inferir que a forma
substancial específica já é uma forma complexa, como a forma de uma semente de
abóbora, de uma samambaia ou de uma tainha. No entanto, tais formas
complexas supõem formas anteriores mais simples, mesmo que tal simplicidade
não possa prescindir dos três aspectos formais referidos (configuração,
consistência e sinergia); e são justamente essas formas mais simples da
corporeidade que abordamos em nosso trabalho, isto é, aqueles componentes mais
elementares da estruturação espaço-temporal da realidade material. Por sua vez,
das transformações de similaridade podemos reivindicar que se trata de fato de
autênticas metamorfoses
243
que ocorrem no interior da matéria, por meio das
sucessivas alterações disposicionais de estados em sua essência. O termo
metamorfose supõe que as mudanças ocorridas num α-estado, ou entre α-estados,
no interior da matéria, são muito mais radicais do que simples mudanças na
posição ou orientação de um corpo no espaço, visto que se assemelham mais
propriamente àquelas mudanças naturais que denominamos substanciais.
Outrossim, as metamorfoses respondem adequadamente, em nosso entender, ao
que Tomás de Aquino expõe em algumas passagens do opúsculo “A mescla dos
elementos” (De Mixtione Elementorum):
243
Cf. BOHM, 1980a, p. 202.
Matéria: representação algébrica
175
Toda forma substancial requer uma própria disposição da matéria, sem a
qual ela não poderá existir (n. 6).
[No entanto,] a substância não é suscetível de mais e de menos (n. 9).
A susceptibilidade de mais e de menos é mediante a alteração das
qualidades (n. 13).
Devemos considerar que as qualidades ativas e passivas dos elementos
sejam contrárias entre si e susceptíveis de mais e de menos. [...] Mediante a
diminuição da excelência das qualidades elementares constitui-se, com as
mesmas, certa qualidade intermediária, que é a qualidade própria do corpo
misto, que se difere nos diversos corpos mistos, conforme as diversas
proporções da mescla (n. 16).
As qualidades dos corpos simples se encontram na própria qualidade do
corpo misto (n. 16).
Portanto, as formas dos elementos estão presentes nos corpos mistos, mas
não em ato, senão virtualmente (n. 18).
Vemos, portanto, a partir dos excertos acima, que é possível formular um
modelo algébrico para as formas dos elementos (α-estados), tendo-se como base
certas disposições ativas e passivas no interior da matéria, em nosso caso dadas
pelos holoquarks primitivos, e certas operações de mais e de menos, em nosso
caso dadas pelas regras definidas para a composição dos elementos da álgebra,
entre as qualidades (holoquarks) presentes nos elementos (α-estados), além das
metamorfoses entre estes últimos. Em resumo, podemos fazer a seguinte
associação:
Disposições ativas e passivas (dualidade do real)
Holoquarks
1
0
q
,
0
1
q
Qualidades presentes nos elementos
Holoquarks
j
k
q
Formas elementares
α-Estados
Alterações e disposições da Matéria
Expressões da Álgebra
Matéria: representação algébrica
176
Ademais, a dualidade do real, representada pela presença dos holoquarks
primitivos
1
0
q
e
0
1
q
, reatores da potência da matéria, e geradores primitivos da
álgebra, pode ser reafirmada a partir de algumas considerações que nos apresenta
a Tradição Cosmológica:
1) Aristóteles
244
observa que “todas as coisas que vêm a existir no curso da
natureza ou bem são opostas entre si ou são compostas de opostos”;
245
que todos
os pensadores até então postulavam elementos ou “princípios” nos quais havia
pares contrastantes, como se todos eles [os filósofos], a despeito de si próprios,
tivessem sido conduzidos a esta verdade
*
, a saber, da existência de pares opostos,
“sobre a mesma concepção fundamental de antítese, ainda que uns a expressem
numa fórmula mais ampla e outros numa mais estreita”
246
; que ainda que os
extremos fossem propostos segundo o que é mais acessível à inteligência ou
segundo o que é mais acessível aos sentidos, porque “a inteligência aproxima-se
do geral e os sentidos do particular como ‘grande e pequeno’ são conceitos
mentais e ‘grosso e fino’ são impressões sensíveis [...] fica claro que tais
princípios devem formar um par contrastante”
247
.
2) Tomás de Aquino, em vários lugares, conforme tivemos ocasião de
expor, apresenta essa dualidade ou polaridade do mundo material, que está
fundamentada na teoria hilemórfica, dado que a existência da substância depende
das “qualidades ativas e passivas dos elementos, contrárias entre si e susceptíveis
de mais e de menos”
, para que seja “eduzido um ato [forma substancial] da
potência da matéria, [ou seja] posto em ato o que antes existia em potência”
248
.
Ademais, as coisas materiais, que têm formas inerentes à matéria, são geradas
por agentes materiais com formas inerentes à matéria”
249
.
3) O mundo material, segundo a tradição vedântica contida nos
Upanishads, na parte final do Rig-Veda, que trata do conhecimento, é distinto do
Absoluto, da Luz Pura, Infinita, Onipotente, Beatíssima de Âtmâ-Brahma. Por
244
Cf. ARISTÓTELES, The Physics, I c5 188b 20 - 189a 10.
245
Ibid., 188b 20-25.
*
Grifo nosso. Ainda que a citação de Aristóteles seja aqui indireta, o termo verdade é de fato
utilizado por ele no trecho da Física em análise.
246
Ibid., 188b 26 – 189a 3.
247
Ibid., 189a 3-10.
Ver acima os trechos citados de
De Mixtione Elementorum.
248
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q90 a2 ad2.
249
TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II c16 n5.
Matéria: representação algébrica
177
um processo cuja ontologia é bastante complexa e também contraditória, temos,
ao cabo, um indivíduo, um algo a que nós atribuímos como sendo real e a quem
nossos sentidos e dispositivos de medição têm acesso. Tal individuação, como
contrapartida ao Absoluto, se constitui numa polarização. É o indivíduo mesmo
que é polarizado, ou seja, todas as suas partes, todos os seus componentes e todas
as suas atividades estão concentradas no mesmo bem comum, e que constitui seu
fim determinante imediato; é um sistema diferenciado do restante, um centro de
atividade cujo fim imediato difere daqueles de todos os demais. Assim, para a
ontologia vedântica, não apenas o real que não é real (Maya) é distinto do
Absoluto (Brahma), como cada indivíduo é um centro polarizado com respeito aos
demais indivíduos
250
.
4) A antiga tradição taoísta apresenta o ícone bastante conhecido do yin
yang, que pode ser visto, também, como um ícone da dualidade hilemórfica (yin, o
indeterminado, o substrato material, e yang, a essência, a forma), ou da dualidade
presente no mundo natural, e são indicativos de certa polarização metafísica,
geradora da realidade natural
251
.
Por fim, mesmo considerando a abordagem epistêmica da ciência
experimental, descrições que postulam a existência de um campo escalar, isto
é, de um campo que depende de uma variável escalar, digamos x, e que apresenta
dois estados fundamentais, correspondentes a duas soluções mínimas que têm a
capacidade de gerar “massa” (matéria ponderável, ou o que designamos no
capítulo segundo como matter) em campos que com ele interagem. Em resumo, a
massa, efeito mensurável da materialidade do mundo, “deixaria de ser um
número misterioso que cada corpo, cada partícula traria escondida entre suas
propriedades básicas, para ser parte de algum processo dinâmico, associado a uma
polaridade de estados fundamentais”
252
.
Entendemos, pois, que o modelo proposto apresenta um caminho
*
algébrico para a compreensão dos aspectos ontológicos referentes à teoria
hilemórfica, especialmente no que se refere aos aspectos de configuração
(associada à extensão) e de sinergia (associada à mutabilidade), os quais
250
Cf. DANDOY, 1932, p. 144-146.
251
Cf. SMITH, 1995, p. 144-146.
252
NOVELLO, 1988, p. 117-118. (Grifo nosso).
*
Não, sem dúvida, o único possível, para o que já chamamos a atenção previamente.
Matéria: representação algébrica
178
esperamos terem sido convenientemente explorados com respeito a seus aspectos
constitutivos básicos, por meio das diversas operações definidas no modelo.
Longe de a proposta estar completa, ao contrário, ela tão-somente aponta para
uma nova demanda investigativa sobre a estrutura metafísica da realidade natural.
Com efeito, em primeiro lugar, os veis iniciais ou as estruturas que, no interior
da forma, são responsáveis por diretivas (este termo corresponde à interação, mais
ativa por parte da forma, e mais passiva da parte da matéria, entre estruturas
formais na unidade da forma e elementos materiais nos diversos domínios R da
matéria) às estruturas quantitativas mais próximas à potência da matéria, requerem
ainda extensa investigação
, talvez por meio de modelos que envolvam teoria das
categorias, topos etc; em segundo lugar, os aspectos de consistência sugerem
algum tipo de investigação de natureza lógica acerca dessas estruturas formais
mais próximas à matéria. Em resumo, resta ainda, ao nosso ver, uma série de
investigações a serem realizadas, especialmente as que supõem um trabalho
cooperativo entre metafísica e ciências da natureza, tendo por base uma
linguagem comum aos dois domínios, de caráter formalmente matemático. Certas
conseqüências empiriológicas do modelo proposto que podem servir, ainda que de
forma muito incipiente, como tal exercício de cooperação, serão vistas no capítulo
seguinte.
Analogia computacional. Gostaríamos de apresentar agora uma analogia
do modelo proposto com um artefato produzido pelo homem, o computador.
Claro, a analogia visa tão-somente mostrar que é razoável uma hierarquia de
níveis algébricos como mencionamos acima. No entanto, ela nos expõe,
pensamos, uma interessante ótica humana acerca da realidade natural, a saber,
que, tendo como pressuposto o processo de visualização abstrativa visto no
capítulo primeiro, processo natural nos seres humanos, isso sugere que a
construção de certos artefatos complexos, como o computador, reproduz o modo
próprio de operação da natureza
253
. Dito de outra maneira, a arquitetura
computacional pode nos ajudar, por causa de nosso processo abstrativo, a
visualizar melhor a estrutura hilemórfica, e sua apropriação algébrica. Para
sustentar a analogia, descreveremos, muito sucintamente, e em linhas gerais, a
Bloqueada pelo surgimento das ciências experimentais nos séculos XVI e XVII, posto que
relegada ou bem ao plano da subjetividade ou bem ao reino das “abstrusidades metafísicas”.
253
Cf. ARISTÓTELES,
The Physics, II c2 194a 20: “A arte (techné) imita a natureza”.
Matéria: representação algébrica
179
arquitetura computacional. Alertamos que o que será descrito não pretende ser
completo quanto ao total dos componentes envolvidos, mas destacar a estrutura
geral de um sistema computacional e compará-la à estrutura hilemórfica presente
num componente básico da estrutura da realidade natural como, por exemplo, no
elétron.
Seja a arquitetura geral de um sistema computacional, mostrada
graficamente a seguir
254
:
Fig. (3.1)
A analogia com a estrutura hilemórfica proposta redunda clara: a
protomatéria é assimilada ao hardware, isto é, ao componente material por meio
do qual expressar-se-ão as estruturas mais determinantes, o software aplicativo,
aquele que, em última instância, é raison d’être do hardware, que desempenha as
funções mais nobres do software, porque as mais próximas do homem e porque
dirigem a atividade toda do computador para a consecução de uma meta, que é a
fonte propriamente dita, essencial, do computador, sua “natureza”. Se esta última
encerra a definição de um computador pessoal, então o software aplicativo tem
por fim realizar as atividades próprias de uso pessoal: edição de texto,
planilhamento, apresentação de slides e fotografias, edição de imagem,
comunicação entre usuários em rede, correio eletrônico, acesso digital a bancos,
254
Cf. PRESSMAN, p. 240-242.
1
2
3
4
4.
Software aplicativo
(pacotes,
internet, computação gráfica etc.)
3. Software básico (diretivas do
sistema operacional, estruturas de
dados, device drivers)
2. Transição (bios, nvram, rom
etc.)
1. Hardware (eletrônica e
eletromecânica)
Matéria: representação algébrica
180
instituições, bibliotecas etc.; caso seja um computador corporativo, então o
software aplicativo realiza atividades próprias das empresas e instituições:
transações financeiras, comerciais e bancárias, processamento científico, controle
da manufatura etc. Como quer que seja, o software aplicativo determina o
hardware a ser utilizado. Podemos associar a diversidade de funções e aplicativos
à diversidade das formas naturais, de modo que estas são o princípio
determinante. Claramente, então, a analogia nos leva a afirmar que à diversidade
de formas naturais correspondem igualmente distintos níveis hierarquizados de
complexidade natural e formal, que supõe distintas configurações na relação real
entre forma e matéria, tal como diferentes arquiteturas integradas de software e
hardware. Adiamos até este ponto a indicação de um esquema mais geral, ainda
que incipiente, da integração da estrutura hilemórfica com a álgebra proposta, o
qual segue graficamente, e que representamos algebricamente por
( )
DCBA
,
Fig. (3.2)
No ícone anterior, a figura trapezoidal de traço descontínuo representa a
forma substancial, e a elíptica de traço contínuo a protomatéria. A forma
trapeizodal é útil para sugerir que uma forma natural projeta-se para fora da
matéria (protração ou projeção, ou edução ex-qua, desde a potência), bem como
imerge na matéria (contração ou imersão in-qua, na potência). A parte mais
A
B
C
D
D.
Estrutura qualitativa
(essência
stricto sensu; unidade formal das
qualidades)
C. Meta-estrutura quantitativa
(essência intermédia; locus da meta-
álgebra ontológica)
B. Estrutura quantitativa (essência
básica ou lato sensu ou in-qua; locus
da álgebra ontológica)
A. Protomatéria (potência; locus
dos
α-estados e dos holoquarks)
Matéria: representação algébrica
181
aberta da figura trapeizodal, para fora da matéria, representa uma expansão e
significa iconograficamente que a forma “abre-se” segundo estruturas formais
próprias, mais abrangentes e mais complexas. A parte mais fechada, para dentro
da matéria, significa iconograficamente que a forma “fecha-se”, segundo
estruturas materiais próprias mais restritas, e mais simples, cada vez mais
compartilhadas com a essência e com a potência da matéria. Ora, as formas
elementares também são hilemórficas e, estando mais próximas à potência da
matéria
255
, apresentam a estrutura hilemórfica mais simples, cujo ícone
apresentamos abaixo, o qual representamos algebricamente por
* * *
( )
C B A
,
Fig. (3.3)
Ou seja, os holoquarks são os componentes mais básicos, puramente
quantitativos, das formas elementares e se encontram completamente imersos na
potência da matéria. Por conseguinte, são capazes de atuar como reatores,
revolver a potencialidade da matéria e ao mesmo tempo interagir intimamente
com as estruturas qualitativas associadas aos α-estados. É fundamental
compreender que a estrutura icônica total acima, que representamos por
* * *
( )
C B A
, está virtualmente contida numa subestrutura icônica anterior dada
por
( )
BA
, ou, como vimos no capítulo segundo, que as formas dos elementos
estão virtualmente nos compostos, como sustenta Tomás de Aquino
256
.
255
Cf. TOMÁS DE AQUINO,
De Mixtione Elementorum, n. 9.
256
Ibid., n. 18.
A
*
B
*
C
*
C
*
. Estrutura qualitativa
(essência stricto sensu ou
α-estado; unidade formal das
qualidades ativas e passivas)
B
*
. Estrutura quantitativa
(essência in-qua; locus dos
holoquarks)
A
*
. Potência da matéria
Matéria: representação algébrica
182
Voltando ao nosso sistema computacional, o hardware é potência, e no
interior deste há componentes simples, elementares, que acionam eletrônica e
eletromecanicamente as diversas partes do mesmo. Semelhantemente dá-se com a
matéria, como vimos acima, no interior da qual as formas elementares (α-
estados), próximas à potência da matéria, e que, por meio dos reatores
(holoquarks), acionam ou potenciam a matéria em seus diversos domínios R
j
. O
modelo, como expusemos, por meio das expressões de composição
(miscibilidade) (3.9), (3.10) e (3.11), e dos automorfismos de similaridade
(transmutação) (3.37) dos α-estados
jk
α
, perfaz as funções de recombinação e
de geração das estruturas quantitativas no interior das formas naturais, sendo tais
estruturas, por sua vez, postas em movimento sob diretivas de estruturas mais
abstratas e complexas no interior das formas, do mesmo modo com o que as
estruturas mais complexas e abstratas do software aplicativo acionam as mais
simples e singulares do software básico e do hardware, num sistema
computacional. Claro, a analogia nos fornece tão-somente uma visualização
estática da estrutura hilemórfica. Deve-se, contudo, observar que a natureza é
inesgotavelmente mais sutil e complexa. Por exemplo, na realidade natural ocorre
uma diversificação da matéria em função da diversidade das formas substanciais,
com o que a cada composição de matéria e forma, ainda que esta seja da mesma
espécie, e por causa da potência da matéria, temos como resultado um indivíduo
que numericamente se diferencia dos outros pela matéria segunda. Ou seja, o
indivíduo é aquilo que se obtém pela matéria projetada espaço-temporalmente,
segundo determinadas dimensões, hic et nunc, mesmo que se trate de indivíduos
com formas naturais muito simples e transientes, como um méson, por exemplo,
cuja identidade e individualidade são de difícil compreensão e, em si mesmas,
envolvem problemas filosóficos relevantes
257
. Esperamos que o modelo proposto
seja útil a uma melhor compreensão dessas questões. Os indivíduos naturais, por
sua vez, se auto-organizam espaço-temporalmente e se auto-regulam, adaptam-se,
mudam, e não encontramos, por enquanto, no mundo computacional, nada que se
lhes assemelhe em complexidade e sutileza, ainda que haja experiências
combinadas de inteligência artificial e cibernética que objetivam a mútua
257
Cf. FRENCH & KRAUSE, 2006.
Matéria: representação algébrica
183
cooperação de componentes robóticos, relativamente autônomos, na execução de
tarefas comuns, como reconhecimento de padrões em cenários adversos em num
campo de batalhas na Terra, ou na superfície do planeta Marte
258
.
Não obstante a semelhança computacional, a protomatéria -- por causa da
potência e das leis inscritas em sua essência nas formas elementares, às quais
somente temos acesso indireto, quer à sua organização espaço-temporal por meio
dos modelos físico-matemáticos das ciências experimentais, quer à sua
estruturação metafísica por meio da teoria hilemórfica da filosofia natural --, se
apresenta com uma riqueza ontológica e um dinamismo intrínseco de indefinida
inesgotabilidade, apenas superficialmente emuláveis por meio de artefatos como
os sistemas computacionais. Por outro lado, deve a natureza mesma servir-nos de
modelo à sua inteligibilidade, ainda que de maneira parcial e incompleta, buscada
pela modelagem gico-metafísica da teoria hilemórfica. Assim, certas analogias
com sistemas e processos naturais são mais desejáveis do que aquelas com
artefatos, dado que estes imitam os primeiros.
Esta dissertação não tem por objetivo, como afirmamos na introdução,
apresentar um quadro extensivo e detalhado do enfoque ontológico da realidade
natural, o que seria objeto de uma exposição ampla de um tratado de filosofia da
natureza
259
. Daí termos apresentado a analogia computacional da estrutura
hilemórfica, imensamente mais simples do que os modelos encontrados na
natureza. Por isso, numa exposição abrangente dos aspectos ontológicos que
fundamentam a realidade natural, devem ser considerados os aspectos
informacionais que presidem os processos naturais
260
, sua complexidade e
sutileza
261
, auto-organização e caráter cooperativo e sinergético. Uma apropriada
perspectiva ontológica, especialmente considerando os seres vivos e sua
organização segundo os níveis físico-químico e biológico, e o entrelaçamento e
cooperação inteligente destes últimos
262
, é capaz de nos munir na direção de uma
melhor compreensão do modelo lógico-metafísico proposto, em lugar do sistema
computacional.
258
Cf. site da AAAI – ASSOCIATION FOR ADVANCEMENT OF ARTIFICIAL
INTELLIGENCE.
259
Cf. exposição de WALLACE, 1996 e ARTIGAS, 2005.
260
Cf. DEMBSKI, 2005 e ARTIGAS, op. cit.
261
Id.
262
Cf. BEHE, 1997.
Matéria: representação algébrica
184
Por fim, nosso objetivo é imensamente mais modesto do que uma
exposição de filosofia da natureza, pois se trata tão-somente de propor uma
linguagem comum entre física e metafísica: uma álgebra aplicada à teoria
hilemórfica, com respeito aos componentes físicos mais elementares da realidade
natural.
Edith Stein, Teoria Hilemórfica e a Forma.
*
Gostaríamos de incluir,
neste ponto, algumas considerações que julgamos oportunas com respeito à
estrutura hilemórfica da realidade natural, baseadas no parecer da filósofa Edith
Stein
. Decorre do exposto anteriormente, tanto neste capítulo como no capítulo
anterior, que o ente individual é uma relação real de ser e essência, e esta última
uma composição de forma e matéria (hilemórfica). Concentrando-nos sobre esta
composição de matéria e forma, apresentamos algumas considerações acerca da
mesma, tendo por base a exposição de Stein
263
. Segundo a autora, o indivíduo é o
“não dividido em si mesmo, mas posto à parte (separado) de tudo o mais”
264
, isto
é, à não-divisibilidade interior do indivíduo equivale sua unidade ou unicidade
265
.
Existe, porém, um tipo de unidade que não pertence unicamente ao indivíduo (este
específico ente espaço-temporalmente localizado e tangível, a que chamamos
Sócrates, por exemplo), mas pertence simultaneamente ao universal (ser humano,
por exemplo), que é uma essência, indivisa em si mesma, dotada de uma
significação que a distingue de outras estruturas significativas, porém
comunicável (compartilhada) por muitos de sua espécie (ser humano, em nosso
exemplo). Tal unidade, em contraste com a unidade individual, é uma unidade
transcendental. No entanto, a autora chama a atenção para o fato de que, segundo
*
Nosso objetivo, ao expor rapidamente essas passagens de Edith Stein acerca de teoria hilemórfica
é meramente sugerir alguns delineamentos bastante iniciais de tal modo que, numa investigação
futura, com base no que está sendo proposto nesta dissertação para esta teoria, a elas se possa
voltar e buscar uma melhor compreensão do exposto pela autora, por meio de modelos algébricos,
ou de algum outro tipo.
Edith Stein nasceu na Alemanha, em Breslau (hoje Polônia), em 1891. Doutorou-se com
orientação de Edmund Husserl, tendo sido sua aluna e assistente, e vindo a se tornar uma
importante contribuidora aos estágios iniciais da fenomenologia. Posteriormente, encontra a
filosofia de Tomás de Aquino, com a qual busca conciliar a fenomenologia, ou em suas próprias
palavras, “vir da escolástica à fenomenologia, e vice-versa”. Morreu no campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau em agosto de 1942. Nossa abordagem não é fenomenológica e nem é com
este intento de conciliar ambas as correntes, no que se refere à teoria hilemórfica, que expomos
alguns pontos do pensamento de Edith Stein, mas, sim, em função dos insights relevantes para o
desenvolvimento futuro de uma possível abordagem matemática também a estruturas presentes na
forma, como teremos oportunidade de mencionar adiante.
263
Cf. STEIN, 2002.
264
TOMÁS DE AQUINO,
Suma Teológica, I
a
q29 a3 ad4 apud STEIN, op. cit., p. 470.
Matéria: representação algébrica
185
a doutrina de Tomás de Aquino, a individuação é aquilo pelo que, na ordem
corpórea dos entes da mesma espécie, faz com que eles se distingam uns dos
outros de modo puramente numérico. Ora, para Stein, ser um indivíduo é
subjacente a qualquer determinabilidade numérica e, portanto, ambas não
coincidem
266
; ademais, não somos capazes de perscrutar a diferença essencial
entre dois indivíduos da mesma espécie enquanto tais e quais indivíduos. O que
parece sugerir que ela reivindica uma diferença entre entes individuais com
respeito a conteúdo (grifo da autora) e, ao mesmo tempo, uma determinabilidade
dos conteúdos individuais que transcende a determinabilidade da essência
individual, não com respeito a seu conteúdo essencial, mas apenas com respeito a
um formalismo vazio intrínseco, como aquilo que subentende à unidade numérica
e computacional. Contudo, “as coisas devem fazer-se conhecidas a s como
sendo diferenciadas se estamos aptos a reconhecer-lhes suas diferenças e sua
multiplicidade numérica
267
”. Trata-se, por conseguinte, de estabelecer que
princípio torna simultaneamente os entes naturais cognoscíveis para s como
indivíduos diferenciados entre si, ao mesmo tempo em que retêm algo pelo qual
sua essência é incomunicável, ainda que a espécie seja tanto indiferenciada como
comunicável aos indivíduos subordinados. Ora, “visto que a forma determina a
espécie, a natureza essencial do ente [natural] individual -- o princípio inerente
pelo qual as coisas individuais existem (principium individuationis formale) --
deve ser buscado do lado da matéria
268
. Assim, o princípio de individuação (o
princípio radical: principium individuationis radicale) é a matéria
quantitativamente determinada (materia signata quantitate), a saber, a matéria
diferenciada ou separada pela extensão quantitativa”
269
. Portanto, “distinguimos
coisas corpóreas individuais entre si segundo características perceptíveis sensórias
acidentais e externas, especialmente por sua forma externa [figura] e sua posição
espaço-temporal”
270
. Ademais,
265
Cf. STEIN, op. cit., p. 470.
266
Ibid., p. 471.
267
Id.
268
Ibid., p. 472.
269
GREDT apud STEIN, p. 473.
270
Id.
Matéria: representação algébrica
186
O que é significado por designação [materia signata quantitate] não é a
determinabilidade quantitativa atual [real] da matéria finalizada [grifo da autora]
porquanto neste caso, a individuação estaria reduzida a uma propriedade
acidental, o que é impossível: primeiramente, porque as propriedades devem sua
individualidade [acidental] àquilo a que pertencem e, em segundo lugar, porque
tais propriedades incluindo determinabilidade, estrutura ou extensão
quantitativa mudam, ao passo que a coisa permanece a mesma. Assim, trata-se
[a individuação] da relação da matéria a uma quantidade por enquanto não
determinada [...] ou a certas predisposições preparatórias da matéria, pelas quais
esta é ordenada a uma extensão quantitativa particular.
271
Importante novamente frisar que a individualidade está associada à
incomunicabilidade, bem como, segundo Stein, à essência como
determinabilidade última do indivíduo ou sua qüididade; a forma, como princípio
da essência, está associada à natureza ou essência universal ou qüididade
essencial, isto é, à sua determinabilidade específica. É pela forma que uma
essência é algo (ser cavalo, por exemplo). Por conseguinte, o que apresentamos
no capítulo segundo como um ω-objeto, ou ω-estado, atende aos requisitos de
individuação segundo esta autora, finalizados nos moldes de uma matéria
assinalada por específicas dimensões espaço-temporais, um algo configurado
segundo estas tais e quais dimensões extensionais e, portanto, ponderável, a
saber, detentor de uma massa-energia específica, e de outras propriedades
quantificáveis. Igualmente, afirma Stein que a protomatéria é um princípio da
estrutura hilemórfica, porquanto indica a
Possibilidade (ou potencialidade) do devir de todas as coisas, isto é, da auto-
estruturação da multiplicidade de todo o universo corpóreo. Embora tal mistura
[matéria prima] ainda não fosse atualidade completa, ela não era nada, mas em
contrário, era uma fase preliminar do mundo atual. E se pode dizer que em toda
coisa atual há parte dessa mistura como fundamento das ulteriores formas.
272
Ademais, a autora acresce que “tal mistura primordial não podia ser
chamada de totalmente indeterminada
*
, pois continha os elementos materiais com
271
Ibid
., p. 473.
272
Ibid., p. 484. (Grifos nossos).
*
Ou seja, não poderia ser chamada de pura potência, absolutamente falando.
Matéria: representação algébrica
187
sua determinação específica, porém refreados por influências mutuamente
exercidas de tal forma que seu livre desdobramento estava impedido”.
273
Gostaríamos de encerrar este capítulo propondo algumas reflexões de
caráter geral sobre a forma, elemento unificador da teoria hilemórfica. Resta, ao
nosso ver, uma extensa investigação acerca das “partes” da forma, a saber, sobre a
metaestrutura quantitativa e a estrutura qualitativa, haja vista tal investigação
ontológica deva ser conduzida tão longe quanto possível, incorporando-se novos
elementos explicativos (ou determinantes), que uma investigação matemática
específica resulte sugerir. Deixemos, no entanto, qualquer perspectiva neste
sentido para uma dissertação futura. Não obstante tal limitação estratégica é
possível sugerir alguns pontos que julgamos oportunos, baseados em Stein
274
.
Segundo esta autora,
Forma denomina-se à “armação” da coisa como um todo (como também
às partes da armação), considerada com relação àquilo que lhe confere conteúdo e
a determina como esta tal coisa individual. À forma da “coisa” corresponde a
forma do objeto (tomado em sentido estrito)
275
.
Isto é, como uma forma de existência que é superior e distinta de estados-
de-coisas (certos fatos estabelecidos com respeito ao objeto apreendido, e de suas
interconexões). Não obstante a definição acima, Stein supõe que, além da forma,
há, com respeito à situação desta com relação à classificação do ente natural em
gênero e espécie, duas outras determinações do objeto, às quais ela denomina
Fundamento e Portadora. A determinação Fundamento corresponde à coisa
individual, com relação às condições qualitativas que ela pode assumir ou perder,
bem como a todos os aspectos contingentes que lhe podem ser compartilhados,
entre eles a combinação e separação de elementos e a transformação de elementos
materiais em estruturas superiores. Estes elementos materiais fazem parte do
Fundamento estrutural de algo e nos dão o padrão de medida das qualidades
permanentes. Por outro lado, a determinação Portadora corresponde ao todo
273
Id. (Grifos nossos). Identificamos os elementos materiais com determinação específica como
sendo as formas elementares ou α-estados da matéria.
274
Cf. STEIN, op. cit.
275
STEIN, op. cit., p. 206-207 et 213. (Grifos da autora).
Matéria: representação algébrica
188
auto-sustentado, com relação às suas partes estruturais. Assim se expressa a autora
acerca da determinação Portadora:
Estritamente falando, a Portadora é ainda a coisa individual; no entanto, pode ser
aplicada também à forma pura [vazia], sem conteúdo, do todo auto-sustentado
enquanto tal, em sua relação com formas parciais, [embora] o conteúdo [material
e imaterial] pertença às partes estruturais (sem o que o todo não poderia ser) e,
por isso, o todo que possui conteúdo é a portadora do conteúdo. A forma do
todo é a portadora da “forma do conteúdo”, e não importando o quão estranho
possa parecer, cabe à estrutura formal de uma coisa o ter um conteúdo. A coisa
individual é, portanto, simultaneamente, Fundamento e Portadora, se bem que
com respeito a diferentes aspectos da mesma
276
.
A determinação Fundamento poderíamos associar, numa primeira
abordagem, à subestrutura
( , , )
D B A
vista acima, e a determinação
Portadora à subestrutura
( )
C
, também vista acima, de tal modo que o
indivíduo, isto é, a estrutura integral, seja a união de duas subestruturas distintas.
A saber,
( , , )
D B A
, que contém os aspectos qualitativos e contingentes do todo
individual, dado que o contingente é intrinsecamente ligado ao material e reúne
tudo o que é necessário à composição do indivíduo. Por outro lado, aquilo que
permite prover uma armação, na linguagem de Stein, ao todo individual são
justamente os caracteres puramente formais carreados pela subestrutura
( )
C
. O
todo individual, portanto, é a união do Fundamento e da Portadora, ou seja,
( , , ) ( )
D B A C
, embora não seja possível, realmente, separar uma
determinação da outra sem que a coisa individual deixe de ser o que é. Ambas,
ainda que distintas, não são separáveis sem que o todo individual colapse, ou
deixe de ter algum significado. Uma análise semântica, em aditamento a uma
análise puramente formal, sintática, é absolutamente necessária para a
compreensão (que é semântica!) do todo.
276
Id.
4
Conseqüências empiriológicas do modelo proposto
Passamos agora, neste capítulo, a expor algumas conseqüências do
modelo álgebrico proposto para a teoria hilemórfica. Claro, devemos trabalhar
tão-somente as áreas comuns à metafísica e à ciência por meio de modelos da
filosofia da natureza, especialmente os que possuem formalismo matemático, que,
naturalmente, supõem vincular os conceitos tratados no capítulo segundo com
elementos, entidades causais e efeitos de teorias científicas. A área comum de
trabalho entre metafísica e ciência consiste, portanto, na investigação daqueles
componentes de inteligibilidade do real que participam igualmente da análise
empiriológica das teorias científicas e da análise lógico-metafísica da filosofia da
natureza. muitos candidatos, sem dúvida, mas dois deles nos interessam
especialmente nesta dissertação: a geometria do espaço-tempo e o fenômeno da
não-localidade quântica, que serão investigados cada qual segundo uma ótica
comum de cooperação físico-metafísica -- ainda que a perspectiva prevalente em
nosso caso seja a perspectiva filosófica --, nas duas primeiras seções deste
capítulo. Na terceira seção, investigaremos os elementos de aproximação entre a
proposta de David Bohm para uma nova abordagem da realidade física, chamada
por ele de a ordem implicada e o holomovimento
277
, e a estrutura hilemórfica e a
dinâmica da protomatéria, abordados no capítulo terceiro. Visto que, ao nosso ver,
a proposta de Bohm para uma nova perspectiva da realidade seja uma tentativa de
análise metafísica do real sensível, ainda que a ótica de Bohm continue sendo, ela
mesma, de natureza empiriológica, contudo entendemos que o esforço de
ultrapassar os modelos analíticos presentes na abordagem tradicional da ciência
(que é essencialmente cartesiana) faz com que sua abordagem se aproxime de uma
abordagem metafísica do real sensível, nos moldes com os quais Aristóteles
compôs sua Física, ou seja, tem em vista propor uma cosmovisão unificada da
natureza, estando profundamente entrelaçados certos princípios filosóficos que
regem a ordem natural com uma ciência experimental da composição final
(detalhada) desses elementos.
Conseqüências do modelo
190
4.1
Geometria e movimento
4.1.1
Considerações iniciais
Gostaríamos uma vez mais de frisar que a estrutura algébrica proposta e
suas transformações internas foram apresentadas em diversas publicações (que
assinalamos) de David Bohm, Philip Davies, Basil Hiley e Fabio Frescura.
Basicamente, o que estamos sustentando na dissertação é que a álgebra proposta e
suas transformações modelam corretamente certos aspectos da estrutura
hilemórfica da realidade natural -- estrutura proposta por Aristóteles, ratificada e
desenvolvida por Tomás de Aquino --, além de apresentar uma perspectiva de
investigação conjunta de metafísica e ciência, o que corresponde plenamente a um
projeto de filosofia da natureza.
Mencionamos no segundo capítulo
278
que, de acordo com a abordagem
clássica, o espaço-tempo é tratado como um continuum e que também, segundo
alguns autores (Weyl, por exemplo), o campo é uma realidade anterior à matéria
(quantitativa), intrincadamente relacionado à estrutura do espaço-tempo, de tal
forma que a matéria do mundo resultaria de um efeito do campo gravitacional
global. Em termos claros: o campo gera a estrutura material do mundo. Contudo,
podemos perguntar: de onde provém a estrutura física do campo em sua relação
com o espaço-tempo? Haveria aqui aparentemente uma questão circular: o campo
(gravitacional) gera a matéria ponderável presente no mundo e, ao mesmo tempo,
a distribuição de matéria no mundo “cria” o campo gravitacional e a conformação
do espaço-tempo. O movimento decorreria da dinâmica da interação do campo
com a matéria ponderável. Visto estarmos propondo nesta dissertação que a
realidade material e espaço-temporal do mundo emerge como resultado da
dinâmica do interior da matéria primeira (protomatéria), cuja proposta inicial de
formulação algébrica foi apresentada acima, temos de ser capazes de prover um
mecanismo satisfatório de apresentar a emergência da geometria do mundo com
base na álgebra apresentada.
277
Essencialmente contida em BOHM, 1980a.
278
Cf. seção 2.1
Conseqüências do modelo
191
4.1.2
“Extração” da geometria e do movimento
uma discussão bastante detalhada da relevância da geometria para a
física, incluindo um perfilamento de várias propostas de pré-geometrias
279
. Uma
pré-geometria é uma tentativa de estabelecer a geometria do espaço-tempo por
meio de entidades ontologicamente anteriores àquele, possuidoras de um caráter
essencialmente distinto e novo
280
. No entanto, gostaríamos de marcar uma
evidente diferença entre o que, em nosso caso, poderia parecer mais uma proposta
de pré-geometria e as demais propostas existentes. Trata-se da distinção entre o
metafísico e o empiriológico. Novamente, entendemos haver um certo
embaralhamento conceitual, ao qual já tivemos ocasião de referir no capítulo
primeiro; a saber, que o significado que se tem emprestado ao termo “ontologia
não é o mesmo que sustentamos neste trabalho, pois, em nossa exposição,
“ontológico” possui o mesmo significado que “metafísico”, ou seja, descreve a
estrutura do real em si mesmo, sem nenhum intermediário pelo qual tal realidade
possa ser enfocada. Não é o caso de propor objetos que representem a realidade,
ou objetos que a ela se refiram, o que é uma perspectiva empiriológica. Ao
contrário, a estrutura hilemórfica, que é uma perspectiva metafísica, contém os
princípios últimos da realidade natural e, por conseguinte, qualquer estrutura
algébrica que a represente (este é o uso adequado deste termo, segundo o que
temos exposto) está, desde o início, mais capacitada e investida de alcance
(lógico-)ontológico do que propostas baseadas numa análise puramente
empiriológica, como é o caso de várias outras abordagens existentes. Devemos
acrescentar que tal distinção aplica-se igualmente ao conceito de espaço-tempo.
Ou seja, espaço-tempo é um conceito de natureza empiriológica, não possuindo
alcance ontológico, a não ser de forma indireta, ou oblíqua, como nos chamava a
atenção Maritain, na medida em que se refere a dimensões quantitativas (extensão
e mutabilidade) da materialidade, esta consubstanciada na estrutura hilemórfica,
particularmente na natureza da protomatéria, cuja criação foi simultânea à
extensão e à duração. Vimos, no capítulo segundo, ainda nos valendo do termo
279
Cf. MESCHINI et al., 2006.
280
Id.
Conseqüências do modelo
192
“tempo” para referir à dimensão duração, que Tomás de Aquino sustentou a
simultânea criação da matéria primeira e do tempo, para evitar o assim chamado
“paradoxo do duplo tempo”, que tivemos a oportunidade de mencionar.
Acrescemos, nesta dissertação, como proposta, que, não apenas a duração, mas
igualmente a extensão foi inserida simultaneamente na matéria primeira, em seus
diversos domínios, pelo que ambas as dimensões da realidade natural constituem-
se, portanto, em dimensões metafísicas da quantidade e fundamento ontológico da
apreensão empiriológica dada pelo conceito de espaço-tempo. Graças às
dimensões metafísicas da extensão e da mutação (duração) pode haver uma
dinâmica no interior da protomatéria e a conseqüente extração (edução) das
formas substanciais presentes nos entes naturais.
Portanto, o espaço-tempo não é algo, segundo uma perspectiva ontológica,
mas, sim, algo objetualizado em um sentido empiriológico, e este objeto é
fundamental para a descrição das leis da física, especialmente da teoria da
relatividade, tanto da teoria restrita como da teoria geral (gravitação). Em certo
sentido, o espaço-tempo é absoluto, isto é, é um invariante empiriológico que
subjaz e permite a descrição das leis da física, e desempenha um papel dinâmico
em nosso universo em evolução. Diz-se dinâmico porque, embora na antiga
perspectiva newtoniana e na vigente perspectiva da teoria restrita da relatividade o
espaço, num caso, e o espaço-tempo, no outro, sejam imutáveis, servindo como
referencial absoluto para o movimento, tanto uniforme quanto acelerado, na teoria
geral da relatividade o espaço-tempo não é imutável, pois responde à presença da
massa e de energia, dobrando e curvando-se num campo gravitacional. Como
quer que seja, tomando-se uma perspectiva ou outra, conforme o caso, a geometria
do espaço-tempo é o pano de fundo da abordagem empiriológica oferecida pela
física. Assim, cabe-nos prover, a partir da álgebra, um mecanismo
*
de extração
dos elementos geométricos contidos naquela abordagem.
*
O termo “mecanismo” não se apresenta com bons antecedentes, em função de sua associação,
em filosofia, à posição mecanicista. No entanto, em nosso caso, o termo expressa tão-somente
um procedimento sistemático e consistente aplicável numa determinada instância. Ou seja, trata-
se de um procedimento recorrente que aplicamos no interior da álgebra, por meio de operadores,
que permitem “extrair” consistentemente os componentes usuais de uma descrição geométrica
dos fenômenos.
Conseqüências do modelo
193
Pois bem, vimos que o operador
Α
, dado pela expressão (3.25) não
somente rotula os α-estados mas funciona como um operador de localização
para os α-estados no interior da matéria, e que tal localização predispõe a edução
a efetivar-se espaço-temporalmente segundo determinadas coordenadas num
sistema de referência, para cuja escolha concorrem unicamente critérios de
conveniência. Assim, os α-estados organizados segundo o arranjo
(
)
00
,..., ,...,
jj nn
α α α
formam um “espaço” de posições, no qual cada “ponto”
é conectado a seu vizinho pelo reator
1
0
q
. Hiley
281
observa que este conjunto de
idempotentes (α-estados) não é único, existindo vários conjuntos equivalentes de
idempotentes, cada qual com sua própria relação de posição e de vizinhança. Isto
pode ser visualizado imediatamente se pensamos, por exemplo, que em vez do
reator
0
1
q
poderíamos usar o reator
1
0
q
, ou algum outro
a
b
q
etc. No entanto,
adverte-nos Hiley, todas as diversas representações são equivalentes para a
descrição de uma determinada ação física (em nosso caso, para a representação de
uma particular edução substancial). Este fato indica que a álgebra
n
W
apresenta
diversas realizações equivalentes para um dado espaço de configurações. Uma
estrutura mais rica que a álgebra de Weyl poderia fornecer-nos espaços não
equivalentes, o que significa que algum critério físico (ou metafísico, em nosso
caso) deveria existir com o objetivo de distinguí-los, o que implica que diferentes
espaços (ou diferentes configurações de α-estados) assumiriam diferentes
conteúdos. Vejamos então o que implica a dualidade entre os holoquarks
0
1
q
e
1
0
q
. Dado que se obtém um espaço de configurações
jj
α
com base em
0
1
q
,
podemos, como mencionamos antes, obter um novo espaço de configurações
jj
β
,
tendo por base
1
0
q
em vez de
0
1
q
, como também já vimos. A partir das
considerações que se seguem, vejamos o que significam esses espaços. Antes,
contudo, gostaríamos de fazer uma rápida observação. Em mecânica quântica,
existem objetos que definimos como operadores, aos quais correspondem certas
grandezas físicas, e que atuam sobre funções dependentes das coordenadas
j
x
,
281
HILEY apud SAUNDERS & BROWN, 1991, p.217-249.
Conseqüências do modelo
194
sem uma dependência explícita da coordenada “tempo”. A saber, os operadores
desempenham uma função essencial na álgebra de Heisenberg
*
; por exemplo o
operador
iHt
S e
=
, sendo
H
o operador hamiltoniano do sistema, deve
satisfazer às funções de onda que representam os estados estacionários
(independentes do tempo, ou nos quais tomamos t = 0), de tal forma que, sendo
( , )
j
x t
ψ
a função de onda num tempo qualquer t,
( , ) ( ,0) ( ,0)
iHt
j j j
x t S x e x
ψ ψ ψ
= =
, em que
é a constante de
Planck
282
.
4.1.2.1 Extração de um espaço de configurações discreto
Para se estabelecer a conexão da álgebra proposta com uma geometria e
com certos operadores básicos da mecânica quântica, consideremos o significado
geométrico da atuação do reator (holoquark)
1
0
q
sobre o espaço unidimensional
x
. Ora, vimos que o ideal à esquerda estabelecia naturalmente uma
seqüência ordenada de pontos,
0
( )
L j j
=
. Seja a seguinte aplicação injetora,
{
}
: 0,1,2,..., 1n
λ
j
j x
Temos então que
(
)
0 0 0
( ) ( ( )) ( )
j
L j L j L x
λ λ
= =
Donde se seque que
*
Uma formulação equivalente, e amplamente utilizada em mecânica quântica, foi desenvolvida
por E. Schrödinger, baseada na evolução da função de onda
( , )
x t
ψ
.
282
Cf. LANDAU & LIFCHITZ, p.51.
Trata-se do espaço associado às coordenadas de posição ou de localização. Apreensão
empiriológica (física) da extensão material (metafísica).
Conseqüências do modelo
195
0
( )
j j
L x x
= (4.1)
ou seja, o dual à esquerda introduz uma natural coordenatização do espaço
associado ao caráter extensional do reator
1
0
q
, em que
1
j
j
k
k
x q
n
=
. (4.2)
Ora, considerando o holoquark
1
0
q
atuando sobre o dual, temos que
1 1 1
0 0
1 1
j j
j
k k
k k
q x q q q
n n
= =
Porém, segundo a expressão (4.2) acima, temos que
1
0 1
j j
q x x
=
Em que, aplicando o reator
1
0
q
um número a de vezes, obtemos a
expressão geral,
0
a
j j a
q x x
= (4.3)
que, comparada à expressão do dual (4.2), nos mostra que
0 0 0
( )
a a
j j j a
q L x q x x
= =
Conseqüências do modelo
196
Assim, a partir da expressão (4.3) acima, podemos concluir que, do ponto
de vista empiriológico, o reator
1
0
q
atua como um operador de translação no
sentido negativo de x, considerando-o como um espaço discreto unidimensional,
no qual cada
j
x
representa um holon
283
desse espaço.
Dito de outra forma, a multiplicação à esquerda do ideal pelo operador
1
0
q
tem o efeito de mover-nos de um holon, o atual holon ou holon local
j
x
, a
seu vizinho mais próximo no sentido negativo de
x
, ao passo que a multiplicação
do ideal à esquerda pelo operador
0
a
q
faz mover-nos a holons distantes do holon
local no sentido negativo de
x
. Visto que nossas operações apresentam uma
natureza cíclica, pois
(
)
1
0 0
1
n
n
q q
= =
, então
0 0 0
( )
n n
j j j
q L x q x x
= =
que equivale a uma translação completa pelo espaço, isto é, por n holons.
Definamos o conjugado hermitiano de
1
0
q
por
1 1
0 0 0
1
n
A q q q A
= = =
Mas, multiplicando-se à direita o primeiro e o terceiro membros da
expressão acima por
1
0
q
,
1 1 1
0 0 0 0
n
A q q q q
=
de onde se segue que o conjugado hermitiano de
1
0
q
é dado por
(
)
1 1
0 0
n
A q q
= =
283
Cf. terminologia em DAVIES, 1981, p. 131, como já vimos.
Conseqüências do modelo
197
Aplicando o conjugado hermitiano do holoquark
1
0
q
pelo ideal à esquerda,
temos que
(
)
(
)
1 1
0 0 0
1
0
1
0
( 1)
( )
1
1
1
j j
n j
k
k
n j
k
k
n j
k
k
q L x q x
q q
n
q q
n
q
n
+
=
=
=
=
dado que
1
0
q
é cíclico módulo n, então
( 1) ( 1)
0 0
n j j
q q
+ +
= . Logo, se segue que
(
)
(
)
1 1
0 0 0 1
( )
j j j
q L x q x x
+
= =
pelo que a multiplicação à esquerda do ideal pelo operador hermitiano de
1
0
q
tem
o efeito de mover-nos de um holon, o atual holon ou holon local
j
x
, a seu
vizinho mais próximo no sentido positivo de
x
. Analogamente, o efeito da
multiplicação pelo operador
(
)
0
a
q
nos mostra que
(
)
(
)
0 0 0
( )
a a
j j j a
q L x q x x
+
= = (4.4)
de onde podemos concluir que, do ponto de vista empiriológico, o reator
(
)
1
0
q
atua como um operador de translação no sentido positivo de
x
, bem como a
multiplicação do ideal à esquerda pelo operador
(
)
0
a
q
faz mover-nos a holons
distantes do holon local no sentido positivo de
x
.
Conseqüências do modelo
198
De acordo com a interpretação anterior, o ideal à esquerda
j
x
nos
fornece um conjunto ordenado de holons, a partir dos quais pode ser construído
um espaço discreto. Ora, trata-se, portanto, de uma interpretação geométrica do
ideal e da atuação do holoquark
1
0
q
e de seu conjugado hermitiano, gerando
uma ordem geométrica para o espaço de configurações dos α-estados. Portanto,
trata-se agora de obter um operador
A
, a cuja operação sobre o ideal possamos
associar autovalores que representem a ordem do holon e, por conseguinte, uma
distância ao longo do eixo dos x. Assim, trata-se de apresentar um operador que
forneça uma solução à equação de autovalor
j j
A x j x
= . (4.5)
Vimos que o operador
A
foi dado pela expressão (3.25); verifiquemos,
portanto, se ele atende à expressão de autovalor acima. Usando a expressão dada
para o operador e substituindo-a diretamente em (4.5), temos
2
2
0
1 1
,
0
1
, ,
1
, ,
rk j
j k
l
n n
r k l
rk j
k
l
n
r k l
rk jk j
l k
n
r k l
A x r q q
r q q
r q
φ
φ
φ φ
+
=
=
=
e fazendo o índice de soma l ser l-k (tendo em mente que nossa soma é cíclica),
tem-se
2
( )
1
, ,
k j r j
j
l
n
r k l
A x r q
φ
=
Somando-se em k, temos que
Conseqüências do modelo
199
2
1
,
j
j jr
l
n
r l
A x rn q
δ
=
pois
se r = j
( )
( )
se r j, dado que 1
,
( 1)
0,
( 1)
k r j
n r j
rj
n
k
n
n
φ
φ δ
φ
φ
=
=
= =
=
e, somando-se em r, temos, finalmente, que,
1 1 1
j j j
j jr
l l l
n n n
l l l
A x r q jq j q
δ
= = =
Porém, o último termo da igualdade é precisamente a multiplicação de j
por
j
x
; logo,
j j
A x j x
=
e o operador nos fornece a estrutura extensional da matéria, cuja conseqüência é
a geração de holons do espaço de configuração, aos quais podemos associar
coordenadas discretas
j
x
e distâncias quaisquer a, no sentido negativo e no
sentido positivo, através dos operadores conjugados
0
a
q
e
(
)
0
a
q
,
respectivamente. As coordenadas discretas
j
x
serão doravante tratadas como
vetores.
Conseqüências do modelo
200
4.1.2.2 Extração de um espaço de fases discreto
*
Por um raciocínio inteiramente análogo ao da extração do espaço de
configurações visto acima, podemos agora considerar, por razões de simetria, a
existência de um espaço dual ao espaço das configurações, que chamaremos de
espaço de fases. Vimos que os vetores
j
x
nada mais eram do que os
autovetores correspondentes ao holoquark
1
0
q
. Somos instados pela simetria
algébrica a estabelecer o espaço da álgebra definido por algum conjunto de
autovetores, que designaremos por
j
p
, correspondentes ao holoquark
0
1
q
.
Também estabeleceremos o significado dinâmico da atuação do reator (holoquark)
0
1
q
sobre o espaço
p
. Podemos mostrar que, com base na expressão (3.38)
(não será feita essa conta neste trabalho), os vetores
j
p
do espaço dual são
dados por
3
,
1
jk k
j l
k l
p q
n
φ
=
(4.6).
Assim, do mesmo modo que fizemos para os vetores
j
x
, podemos
investigar a ação do holoquark
0
1
q
sobre os elementos desse espaço:
0 0 0
1 1 1
, ,
1
,
1 1
1
jk k jk k
j l l
k l k l
jk k k
l
k l
q p q q q q
n n n n
q
n n
φ φ
φ φ
+
= =
=
Mas, rearrumando, e trocando o índice l por l-1 (pelo caráter cíclico da
soma), tem-se que
*
Trata-se do espaço associado às coordenadas de velocidade ou de movimento. Apreensão
empiriológica (física) da mutabilidade material (metafísica).
Conseqüências do modelo
201
0 ( 1)
1
,
1
j k k
j l
k l
q p q
n n
φ
+
=
Porém o lado direito da igualdade acima é, segundo a expressão (4.6),
1
j
p
+
; logo,
0
1 1
j j
q p p
+
=
e, aplicando o reator
0
1
q
um número b de vezes, obtemos a expressão geral,
0
b j j b
q p p
+
= (4.7)
Assim, a partir da expressão (4.7) acima, podemos concluir que, do ponto
de vista empiriológico, o reator
0
1
q
atua como um operador de translação no
sentido positivo de
p
*
. A multiplicação pelo operador
0
b
q
faz mover-nos b
holons de fase distantes do holon local no sentido positivo de p. Visto que
nossas operações apresentam uma natureza cíclica, pois
(
)
0 0
1
1
n
n
q q
= =
, então,
0
n j j
q p p
=
que equivale a uma translação completa pelo espaço de fases, isto é, por n holons
de fase.
Definamos o conjugado hermitiano de
0
1
q
por
0 0 0
1 1
1
n
B q q q B
= = =
*
Vale observar que, para o espaço de fases, dá-se o sentido inverso do deslocamento holonômico
que obtivemos para o espaço de configurações.
Conseqüências do modelo
202
Mas, multiplicando-se à direita o primeiro e o terceiro membros da
expressão acima por
0
1
q
,
0 0 0 0
1 1 1
n
B q q q q
=
de onde se segue que o conjugado hermitiano de
0
1
q
é dado por
(
)
0 0 0
1 1 1n
B q q q
= = = .
Aplicando o conjugado hermitiano
0
1
q
do holoquark
0
1
q
, temos que
(
)
0 0
1 1
,
0
1
,
1
,
1
1
1
jk k
j l
k l
jk k
l
k l
jk k k
l
k l
q p q q
n n
q q
n n
q
n n
φ
φ
φ φ
=
=
=
Porém, mudando o índice cíclico l-1 para l, tem-se que,
(
)
0 ( 1)
1 1
,
1
j k k
j l j
k l
q p q p
n n
φ
= =
donde a multiplicação pelo operador hermitiano de
0
1
q
tem o efeito de mover de
um holon de fase o atual holon local de fase
j
p
ao seu vizinho mais próximo no
sentido negativo de
p
.
Analogamente, o efeito da multiplicação pelo operador
(
)
0
b
q
nos mostra
que
Conseqüências do modelo
203
(
)
0
b j j b
q p p
=
de onde podemos concluir que, do ponto de vista empiriológico, o reator
(
)
0
1
q
atua como um operador de translação no sentido negativo de
p
, bem como a
multiplicação pelo operador
(
)
0
b
q
faz mover b holons de fase distantes do holon
local no sentido negativo de
p
.
De acordo com a interpretação anterior, o vetor
j
p
, que é um ideal à
esquerda para o espaço de fases, nos fornece um conjunto ordenado de holons, a
partir dos quais pode ser construído um espaço de fases discreto. Ora, trata-se,
portanto, de uma interpretação dinâmica do ideal e da atuação do holoquark
0
1
q
e de seu conjugado hermitiano, gerando uma ordem dinâmica para o espaço de
fases dos α-estados. Portanto, trata-se agora de obter um operador
B
a cuja
operação sobre o vetor
j
p
possamos associar autovalores que representem a
ordem do holon de fases e, por conseguinte, uma distância (na verdade, um
movimento) ao longo do eixo dos
p
. Assim, trata-se de apresentar um operador
que forneça uma solução à equação de autovalor,
j j
B p j p
= . (4.8)
O operador
B
é dado pela seguinte expressão
( )
, , ,
1
l i r rk r i
k
i r k l
B l q
n n
φ
=
(4.9)
cuja substituição na expressão (4.8) verifica tanto a forma algébrica desse
operador como também a forma da equação de autovalor (4.8). Não faremos
esta verificação explicitamente neste trabalho. Detalhes do cálculo podem ser
Conseqüências do modelo
204
obtidos em Davies
284
. Cabe observar, no entanto, que o operador fornece-nos o
aspecto de movimento local da matéria, cuja conseqüência é a geração de holons
do espaço de fases, aos quais podemos associar coordenadas discretas
j
p
e
movimentos quaisquer de valor b, no sentido positivo e no sentido negativo,
através dos operadores conjugados
0
b
q
e
(
)
0
b
q
, respectivamente.
Portanto, torna-se patente que, desde a álgebra, extraímos o espaço
(geometria), estabelecendo coordenadas de posição ou de localização no espaço
de configurações, dadas pelo operador
A
, bem como extraímos o movimento,
estabelecendo coordenadas de posição ou de localização no espaço de fases, dadas
pelo operador
B
. A relação entre os operadores
A
e
B
nos fornecerá um
conhecido resultado em mecânica quântica, a saber, que não podemos atribuir no
espaço-tempo, simultaneamente, as coordenadas de posição e de quantidade de
movimento associadas a uma dada partícula. Este resultado é conhecido como
princípio de incerteza de Heisenberg. Mostraremos a seguir como a geometria e
o movimento extraídos da álgebra de Weyl pelo processo acima fornecem-nos
naturalmente o princípio de incerteza.
Seguindo a sugestão de Landau
285
quanto à forma dos operadores,
definamos nossos operadores
A
e
B
do seguinte modo,
( )
iaB
A a e
=
( )
ib A
B b e
=
porém fazendo
1
0
iB
q e
= e
0
1
i A
q e
= , segue-se que
(
)
1
0 0
( )
a
a
A a q q
= = (4.10)
(
)
0 0
1
( )
b
b
B b q q
= = (4.11)
284
Cf. DAVIES, op. cit
., p. 150.
285
Cf. LANDAU & LIFCHITZ, loc. cit.
Conseqüências do modelo
205
Assim, as expressões (4.10) e (4.11) indicam que os operadores
A
e
B
são recíprocos pois estão associados a espaços duais. Definamos o
comutador de
A
e
B
como
286
,
A B AB B A
=
Tomemos, para simplificar, sem perda de generalidade, a = 1 e b =1 nas
expressões (4.10) e (4.11), substituindo-os no comutador:
(
)
1 0 0 1 1 1 1 1
0 1 1 0 1 1 1
1
, 1A B q q q q q q q
φ
φ
= = =
Porém, definindo,
( )
1
1
1
1
i
q
φ
=
o que é perfeitamente legítimo, pois é possível mostrar que ao considerarmos a
natureza da tranformação que relaciona o espaço de configurações com o espaço
de fases, os reatores independentes
1
0
q
e
0
1
q
são internamente indistinguíveis
na álgebra e que, por conseguinte,
A transformação algébrica que converteria um dos geradores no outro
representaria uma simetria fundamental da estrutura algébrica e, portanto, uma
simetria fundamental das relações entre sistemas físicos associados com a
estrutura algébrica
287
.
286
Cf. NUSSENZVEIG,1998, p.318-319.
287
DAVIES, op. cit., p. 158.
Conseqüências do modelo
206
Assim, a principal transformação canônica
288
, que designamos por M, tem
os seguintes efeitos,
0
0
0
0
:
:
:
a
a
b
b
a ab b
b a
M q q
M q q
M q q
φ
e também podemos verificar que,
2
4
:
:
a a
b b
a a
b b
M q q
M q q
e que, portanto,
4
1
M
=
. Ora, da transformação canônica, obtemos que,
1 1 2 1 1 2 1 0
1 1 1 1 0
( ) ( )M q M q q q q
φ φ φ φ
= = =
;
e, da mesma forma,
1 1 1 1
1 1 1 1
q q q q
φ
= = . Logo, tendo em conta que definimos
( )
1
1
1
1
i
q
φ
=
segue-se, pela simetria das relações, que
1
1
(1 )
q i
φ
=
,
e as expressões acima ficam confirmadas para os holoquarks
1
1
q
e
1
1
q
,
respectivamente, porquanto,
288
O termo “transformação canônica” provém do fato de que a transformação citada se entre os
elementos da base geradora dos espaços em análise. Cf. DAVIES, op. cit., p. 155-157 para a
dedução da forma de
M
.
Conseqüências do modelo
207
( )
1 1
1 1
(1 ) (1 )
( 1)
1
1
i i
q q i i
φ
φ φ φ
φ
φ
= = =
Por conseguinte, do exposto até aqui, chegamos à conhecida expressão
para a não-comutatividade dos operadores
A
e
B
,
(
)
( )
(
)
1
1
1 1
, 1 1
1
1
i
A B q i
φ φ
φ
= = =
Ou seja,
,
A B i
=
(4.12)
pela qual encontram-se associados, respectivamente, posição e quantidade de
movimento (momentum). Essa formulação nos cunduz naturalmente ao princípio
de incerteza de Heisenberg, desde que consideremos, obviamente, espaços
contínuos para configuração e fase. Mencionamos que o princípio de incerteza
deve ser obtido não a partir espaços discretos, como o que foi conseguido com
base na álgebra de Weyl, mas a partir de espaços contínuos. Com efeito, a
continuidade é derivada do fato de fazermos
n
, isto é, passar a considerar a
álgebra
2
C
(ou
W
) com um número infinito, em vez de um número finito, de
idempotentes geradores.
Por exemplo, na passagem a um número infinito de pontos, temos, dentre
outras, as seguintes alterações essenciais:
Conseqüências do modelo
208
1
2
2
1
etc.
( )
( )
( )
j
j
n
k
jk ixp
jk ixp
j
n
k
j x
k p
x f x
p g p
dx
e
x e f x
π
π
φ
φ
De tal forma que boa parte dos somatórios apresentados se transformam
em séries de Fourier ou funções de Green, amplamente utilizadas em física para
lidarmos com infinitos e contínuos. Nesta dissertação, não é nosso objetivo
estender conjuntos finitos de reatores e de componentes algébricos, além de
operações sobre espaços discretos, para conjuntos infinitos e operações sobre
espaços contínuos, mas tão-somente indicar tal possibilidade. Com tal extensão,
podemos mostrar que a expressão (4.12) é o resultado esperado para a não-
comutação (e a conseqüente dedução do princípio de incerteza) entre posição e
momentum. Ademais, gostaríamos de mencionar que o que vimos até agora
aplica-se coerentemente a um espaço discreto unidimensional, tanto para a
geometria, oriunda do espaço de configurações, e expressa pelos holons de
posição
j
x
, como para o movimento, oriundo do espaço de fases, e expresso
pelos holons de fase
j
p
. Obviamente, se estivermos visando a uma utilização
conjunta do modelo entre físicos e metafísicos, especialmente para estes últimos,
torna-se necessário estendê-lo de modo a representar a multidimensionalidade do
espaço-tempo, especialmente com respeito à unidimensão que representa o tempo.
O caminho mais direto, como nos alerta Davies, parece ser o de associar cada
dimensão independente que compõe o espaço a uma álgebra distinta
n
W
. Para o
espaço-tempo, por conseguinte, seriam requeridas três unidimensões discretas
independentes para o espaço, cada uma delas sendo gerada por uma álgebra de
Weyl independente, da mesma forma que uma quarta dimensão discreta, a
Conseqüências do modelo
209
representar o eixo temporal, também seria gerada por uma álgebra de Weyl.
Trata-se de um trabalho interessante o de investigar o acoplamento das quatro
álgebras em torno do espaço-tempo pseudo-riemanniano.
Por fim, gostaríamos de apresentar uma conjectura sobre o conceito de
vácuo. Para Einstein, conforme expusemos no capítulo segundo, o campo deveria
ser tomado como a estrutura básica da realidade, sem que houvesse necessidade
de buscar algum tipo de meio material subjacente, como partículas, por exemplo.
Ou seja, o campo é a explicação: é ele que caracteriza a estrutura do espaço-
tempo. Para Einstein, portanto, “termos como campo gravitacional’, ‘estrutura
do espaço-tempo’ e ‘éter’ eram todos sinônimos”.
289
Mencionamos, ademais, que
os idempotentes
jj
α
poderiam desempenhar um papel relevante na definição de
uma estrutura básica de campo; isto se aplica também àquela estrutura a que
associamos o “vácuo”, isto é, à ausência de algum tipo de substrato material.
Neste caso, trata-se de encontrar operadores de “aniquilamento”,
V
, e de
“criação”,
V
, associados a estados do vácuo, este último representado pelo ideal
à esquerda
0
(0) 0
L
=
, tal que
0 0
V
=
e
0 0
V
=
, e os operadores são
definidos na álgebra de Weyl como sendo
290
:
1
0
V q A
= e
1
0
V q A
=
tal que o operador
A
é aquele que ordena os α-estados, e que foi definido pela
expressão (3.25). Novamente vemos a atuação dos holoquarks como fundamental
na geração dos operadores da álgebra, de tal modo que a potência da matéria é
acionada sempre, mesmo naqueles casos em que aparentemente não temos
nenhum substrato material físico (matéria segunda), ainda assim desenvolve-se a
dinâmica da protomatéria (matéria primeira), representada pelo operadores
conjugados
V
e
V
, associados a estados de um campo com partículas
*
.
289
EINSTEIN apud SAUNDERS & BROWN, p.221.
290
Cf. DAVIES, op. cit., p. 241.
*
No caso em questão, com
zero partículas, o que significa existir apenas a estrutura do campo, ou
do espaço-tempo, como entendia Einstein.
Conseqüências do modelo
210
4.2
Não-localidade
Uma conseqüência adicional do modelo algébrico está correlacionada a
um fenômeno em mecânica quântica chamado de não-localidade. Descreveremos
sucintamente de que se trata esta última. Primeiramente, no entanto, gostaríamos
de tecer algumas considerações de caráter geral.
4.2.1
Comentários iniciais
Uma crítica severa que se pode fazer a certa postura bastante disseminada
não apenas entre cientistas, mas igualmente entre filósofos da ciência, e que
poderíamos chamar de cientificista”, é aquela que pretende reduzir o mundo que
conhecemos ao universo físico, isto é, a representações abstratas e matemáticas do
mundo em que vivemos. Isto decorre do bifucarcionismo cartesiano, sobre o qual
já tecemos algumas considerações no capítulo anterior, e que nos diz que o mundo
está cingido em duas categorias, cuja intercomunicação e influência são altamente
problemáticas: a res extensa, perfeitamente cognoscível para uma ciência de base
matemática, e a res cogitans, não acessível à ciência e, portanto, sem realidade
objetiva. Bem, este panorama e mais os aspectos fundacionais da ciência
moderna, levados a cabo por Galileu e Newton, moldaram todo o pensamento
ocidental estabelecendo o que pode ou não ser objetivamente conhecido. No
entanto, aspectos intrigantes da mecânica quântica, como a não-localidade,
parecem não apenas violar teorias bem comprovadas, como a teoria relatividade
restrita, ao indicar comunicação superluminar no espaço-tempo, mas também
reinvidicam uma formulação ontológica da realidade em complemento à
formulação científica, pondo em xeque o bifurcacionismo que permeia a ciência
contemporânea e sua reflexão filosófica. Assim, a não-localidade surge como um
desafio à visão cartesiana da ciência contemporânea e indica-nos que uma solução
Conseqüências do modelo
211
para essa anomalia
*
pode estar justamente numa perspectiva metafísica,
complementar à formulação quântica. Apresentaremos, pois, uma sucinta
descrição do fenômeno.
4.2.2
Situando o problema da não-localidade na mecânica quântica
Iniciemos com alguns conceitos básicos de física, especificando melhor o
fenômeno da polarização da luz e de sua medição. A luz apresenta uma direção
de propagação que é perpendicular às suas componentes elétrica (E) e magnética
(B):
(oscilações de B)
direção de
propagação da luz
(oscilações de E)
O plano das oscilações de E, que está acima hachurado, chama-se plano de
polarização da luz. Para fazermos com que toda a luz incidente oscile segundo
um mesmo plano de polarização, faz-se uso de um material chamado polaróide,
que é um filme bastante fino, empacotado em pequenos cristais que obrigam a luz
incidente a emergir do material num determinado plano, segundo apresentamos na
figura a seguir:
*
Para usar uma terminologia kuhniana, que julgamos ser apropriada para o fenômeno da não-
localidade, tendo em vista uma característica que Kuhn atribui a este tipo de evento: a consciência
“de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a
ciência normal [...] que consiste em solucionar quebra-cabeças, num empreendimento altamente
cumulativo, extremamente bem-sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do
alcance e da precisão do conhecimento científico”. Cf. KUHN, 2001, p. 77-78.
Conseqüências do modelo
212
Outros materiais, como o cristal de calcita, por exemplo, permite dois
planos de polarização para a saída da luz, vertical-horizontal (V-F), ou formando
ângulos ± θ com a direção de incidência, como mostrado a seguir:
Um mesmo gráfico como o da Fig. (4.2) pode ser gerado para o caso dos
ângulos serem +θ e −θ, respectivamente, com a direção de incidência. Fixemo-nos
particularmente em incidências ortogonais, para simplificar a exposição.
O conceito de polarização parece-nos apontar para um comportamento
exclusivamente ondulatório da luz. No entanto, vamos mostrar que a polarização
ocorre igualmente quando tratamos a luz como sendo algo de natureza
corpuscular, isto é, constituída por partículas sem massa e com quantidade de
Filme
Polaróide
Plano de Polarização
Cristal de Calcita
Plano V de Polarização
Plano H de Polarização
Fig. (4.1)
Luz
Luz
Fig. (4.2)
Conseqüências do modelo
213
movimento
h c
ν
, sendo h a constante de Planck,
ν
a freqüência de oscilação do
fóton e c a velocidade de propagação da luz no vácuo.
Ao incidir, conforme a Fig. (4.3) abaixo, um feixe de luz de baixa potência
(ou de baixa energia h
ν
), podemos escutar clicks, provocados pelos fótons
incidentes polarizados, sendo que a propriedade “estar polarizado segundo uma
direção X” permanece um atributo específico da partícula.
As propriedades “estar V-polarizado” ou “estar H-polarizado” são
atribuídas ao fóton, e excluem-se mutuamente quando a luz incidente é polarizada
pelo cristal de calcita do tipo V-H. Contudo, uma primeira pergunta-chave é:
“Qual era a polarização anterior do fóton, antes de passar pelos cristais de calcita,
considerando que temos cristais do tipo V-H e cristais do tipo ±θ ?”. Isto é, como
responder à configuração descrita na Fig. (4.4) a seguir?
Cristal de Calcita
V-H
Plano V
Plano H
Fig. (4.3)
Luz
“OU”
“OU”
Conseqüências do modelo
214
Contudo, a realização de uma medição (para obter a informação de
polarização) num cristal de polarização ± θ destrói ou “apaga” a informação
original! Uma segunda pergunta-chave é: “Em qual canal o fóton emerge após
passar pelo cristal?”. Há duas possibilidades:
(i) Pela formulação ondulatória, o pacote de fótons estaria assim
distribuído:
50% dos fótons emergem no canal H
50% dos fótons emergem no canal V
(ii) Pela formulação corpuscular, nada podemos afirmar. Caso haja um
número muito grande de fótons, podemos estimar que,
50% dos fótons emergem no canal H
50% dos fótons emergem no canal V
Fig. (4.4)
Cristal de Calcita
V-H
Plano V
Plano H
Polarização ???
“OU”
Cristal deCalcita
±
±±
±
θ
θθ
θ
Cristal de Calcita
±
±±
± θ
θθ
θ
Polarização ???
Polarização ???
Polarização ???
Polarização ???
Conseqüências do modelo
215
E se se trata de um único fóton, o que podemos afirmar? Segundo a
mecânica quântica, confirmada por experimentos, não sabemos em que canal cada
fóton, tomado “individualmente”, irá emergir. No entanto, num famoso artigo de
1935, publicado no Physical Review, Einstein e dois colaboradores, Podolski e
Rosen
291
, sugeriram um experimento mental
*
pelo qual, ainda que não
pudéssemos afirmar algo previamente sobre uma certa propriedade (por exemplo,
o spin, como proposto por Bohm) de uma partícula dada, por exemplo, o elétron
(cujo spin possui os valores
4
h
π
±
), poderíamos, com base na medição de uma
dada propriedade de uma partícula que interage com este, e considerando que
estão suficientemente afastadas entre si para evitar qualquer interferência “local”
entre si, então é possível determinar a propriedade da partícula, porquanto ambas
estão correlacionadas; e, se é assim, então a propriedade em questão é real e
estamos não apenas medindo, mas atribuindo propriedades reais às partículas. O
esquema abaixo ilustra o que ocorre:
Suponhamos que haja uma propriedade qualquer P a ser medida para a
nossa partícula, no caso um fóton com momentum
h c
ν
, e que ambos estão
correlacionados, pois foram emitidos pela mesma fonte com propriedades
291
Cf. EINSTEIN et al., 1935.
*
Gedanken experiment.
V
H
Dispositivo de Detecção
L
H
V
Dispositivo de Detecção
R
Filtro de Polarização
V-H
Filtro de Polarização
V-H
Fonte Emissora de
Fótons
h
ν
νν
ν
/c
h
ν
νν
ν
/c
Fig. (4.5)
Conseqüências do modelo
216
correlacionadas. Para exemplificar melhor, se se tratasse de uma fonte emissora de
elétrons, seus spins seriam, respectivamente,
4
h
π
+
e
4
h
π
. Como
pretendemos tomar uma propriedade qualquer P, então se segue-que:
se P(L) = +1, então P(R) =
1
se P(L) =
1, então P(R) = +1
em que P(L) e P(R) representam certa propredade possuída pelos fótons, medida à
esquerda, e à direita, respectivamente. Isto pode ser verificado
experimentalmente, segundo o arranjo acima, desde que a fonte de luz seja
ajustada para emissões de baixa intensidade (poucos fótons emitidos), e os
detectores operem com circuitos rápidos o suficiente para detectar cada fóton,
individualmente.
Tomemos, agora, o mesmo arranjo acima, sem que, no entanto, haja o
detector R, à direita. Pela proposta EPR, não necessitaríamos deste detector tendo
em vista que correlação na emissão das partículas, à esquerda e à direita, pela
fonte comum, e esta correlação mostra uma propriedade real da partícula; por isso,
basta termos a medição tomada à esquerda para obter a mesma propriedade
correlata à direita. Podemos supor também que o detector R foi deslocado a uma
distância tão grande quanto se deseje do detector L tal que a medição da
propriedade P(L) não interfira com o resultado de P(R), de tal forma que podemos
reivindicar que ambas as propriedades existem simultaneamente para as partículas
R e L, independentemente de qual delas optemos por tomar a medida da
propriedade P. Por conseguinte, as partículas, de fato, possuem simultaneamente
todas as propriedades que lhes atribuímos pela teoria: bastando que se escolha
medir uma delas obtém-se, automaticamente, sua correlata. Este é o ponto
nevrálgico do argumento EPR: as partículas, de fato, possuem as propriedades em
questão, e se a mecânica quântica precisa efetuar medições para “descobrir” uma
propriedade que a teoria não pode afirmar que a partícula de fato possui,
simultaneamente a outras, então a teoria (a mecânica quântica) não pode ser
considerada como uma teoria completa. No entanto, vimos, com base na Fig.
(4.4), que o ato de medir de fato interfere nas propriedades a serem medidas,
apagando informações prévias sobre as propriedades elas mesmas. Para tentar
Conseqüências do modelo
217
contornar essa situação, poderíamos usar o detector R em vez de L, ou talvez,
dado que ambos estejam suficientemente afastados, medir simultaneamente a
propriedade em R e L, e estas medidas não poderiam estar correlacionadas de
forma assegurada, isto é, verificadas estarem de fato correlacionadas, sem
medição. Mas, se a medição interfere com as propriedades a serem medidas, então
EPR nos apresenta um paradoxo: embora a medição seja local, a obtenção de
correlações antes de alguma medição, seja L ou R (ou ambas!), não pode ser
estabelecida senão no processo mesmo de medida, e este implica que não
podemos assegurar esta correlação antes da medição; ora, se correlações, ou
interferências, então estas violam a localidade, isto é, ou as influências se
propagariam a velocidades superluminares ou existiria algum tipo de correlação
fora do espaço-tempo entre as partículas que se apresentam como correlacionadas.
Também poderíamos postular a existência de alguma propriedade oculta,
intrínseca a cada partícula, que não foi medida, mas que seria, com efeito,
responsável pela correlação. Exploremos esta última possibilidade.
Ora, se não medirmos ambas as polarizações (a propriedade P que
estávamos observando para o caso do fóton), L e R, como realmente saber se os
fótons de fato apresentam as medidas correlacionadas P(L) = +1 e P(R) =
1? Se
for assim, então cabe ponderar que parece haver suficiente evidência de que os
fótons possuem alguma propriedade ou propriedades ocultas, distintas de P, que,
por sua vez, possui uma propriedade adicional especial, a saber, permite (ou
permitem) antecipadamente determinar quais outras propriedades podem ser
medidas e que resultados podemos esperar do processo de medição. Tais
propriedades implicam a possibilidade de formulação de uma Teoria Local de
Variáveis Ocultas (TVO). Enfim, somos instados a formular duas hipóteses :
A. O resultado da medição L propaga-se e influencia a medição R (ou
vice-versa) de uma forma desconhecida, violando o limite de
propagação da informação entre as partículas L e R, que é a
velocidade da luz, c, como sabemos pela teoria da relatividade
restrita, ou
Conseqüências do modelo
218
B. Há uma TVO determinista, local
*
, correlacionando L e R.
Como nos decidir por uma ou outra das duas possibilidades apresentadas
acima? É possível mostrar, após um pouco de álgebra e de geometria
elementares, e mais o fato de que a mecânica quântica prevê uma certa
distribuição da quantidade de fótons que chegam aos detectores (após terem sido
polarizados pelos filtros), que obedece à seguinte distribuição de correlação das
medidas L e R, obtida como função do ângulo de polarização θ:
Os resultados experimentais, todavia, concordam com a previsão da
mecânica quântica, que é a hipótese A, indicada na figura acima, e não com o
previsto por uma específica TVO, que nos forneceria como resultado um tipo de
*
Isto é, não viola o limite de propagação da informação de correlação, que é a velocidade da luz,
c. Dito de outra forma, cuja descrição de eventos no espaço-tempo faz-se por meio de intervalos
do tipo tempo, isto, para os quais
2
0
ds
>
, supondo que sua separação no espaço tempo,
ds
, é
dada por
2 2 2 2 2 2
ds c dt dx dy dz
= .
θ
θθ
θ
= 45
o
θ
θθ
θ
= 90
o
Previsão da
Mecânica Quântica
(Hipótese A)
Previsão de uma
TVO
(Hipótese B)
Fig. 4.4
Conseqüências do modelo
219
correlação linear, que é a segunda possibilidade, também indicada na figura
acima
292
. Bem, poderíamos, então, buscar uma TVO não-linear; neste caso seria
possível compatibilizar os resultados da mecânica quântica com uma TVO.
Veremos, no entanto, que isto é impossível, em função de um resultado definitivo
para a nossa dissertação: a violação das desigualdades de Bell.
4.2.3
Desigualdades de Bell
Suponhamos os arranjos experimentais em seguida:
Fig. (4.7)
Com o intuito de estabelecer uma correlação entre os fótons a serem
observados segundo os arranjos experimentais dispostos acima, apresentamos o
292
Cf. RAE, 1986, p. 34.
V
H
ϕ
ϕϕ
ϕ
+
++
+
ϕ
ϕϕ
ϕ
V
H
+
++
+
θ
θθ
θ
θ
θθ
θ
1
o
arranjo: H-V /
±
±±
±
ϕ
ϕϕ
ϕ
2
o
arranjo: H
-
V /
±
±±
±
θ
θθ
θ
3
o
arranjo:
±
±±
±
ϕ
ϕϕ
ϕ
/
±
±±
±
θ
θθ
θ
+
++
+
ϕ
ϕϕ
ϕ
+
++
+
θ
θθ
θ
ϕ
ϕϕ
ϕ
θ
θθ
θ
Conseqüências do modelo
220
resultado conhecido como desigualdades de Bell
293
, as quais estão baseadas em
três premissas relativamente simples, que apresentamos a seguir:
1. Tanto os filtros nos quais os ângulos de polarização são fixados
em relação à horizontal,
2
π
± ,
ϕ
±
e
θ
±
, como os detectores à
esquerda (L), encontram-se situados a uma distância tão grande quanto
possivel dos semelhantes filtros e detectores à direita (R), de tal modo que
as medições efetuadas em L não afetam R, e vice-versa, ou seja, que os
detectores L e R estejam separados por uma intervalo do tipo espaço,
2 2 2
l c t
, c é a velocidade da luz, e l a distância de separação entre os
detectores L e R;
2. Os fótons a serem detectados estão correlacionados através de
uma TVO local determinista;
3. São válidas as leis da lógica e da aritmética.
Então, por simples computação lógico-aritmética, obtém-se a seguinte
relação entre os números de fótons contados (trata-se de uma das desigualdades
conhecidas como teorema de Bell), segundo a disposição apresentada nos arranjos
da (Fig. 6):
( , ) ( , ) ( , )
n V n n V
ϕ ϕ θ θ
+ + + + +
sendo
n
, na desigualdade acima, o número de fótons correlacionados pelos
arranjos 1, 2 e 3, respectivamente. O ponto essencial aqui é que, aplicando as
previsões da mecânica quântica, com respeito aos diversos arranjos e planos de
polarização ilustrados na (Fig. 6), a desigualdade é violada!
Ora, a desigualdade de Bell foi obtida com base nas três premissas
perfiladas acima, uma delas, a terceira, faz uso de um raciocíonio lógico e
aritmético simples com respeito à distribuição do número de fótons, e uma outra, a
primeira, simplesmente dispõe sobre o intervalo físico de separação entre os
detectores.
293
Cf. BELL, 1987, p. 139-158 et 52-62.
Conseqüências do modelo
221
Resta, por conseguinte, ou rejeitar uma TVO local de cunho determinista
(hipótese B acima) ou rejeitar as previsões da mecânica quântica com respeito à
incidência de fótons polarizados. Ora, visto não haver qualquer razão para
rejeitarmos as previsões da mecânca quântica, que se tem mostrado uma teoria
extremamente bem-sucedida do ponto de vista experimental, parece o restar
alternativa senão rejeitar alguma teoria de variáveis ocultas de cunho determinista.
Portanto, as desigualdades de Bell apontam para um aspecto que precisa ser mais
bem compreendido: a não-localidade. A compreensão de um fenômeno não-local,
sem violar as restrições espaço-temporais previstas pela teoria da relatividade,
parece apontar para uma explicação de uma outra natureza que não a puramente
empiriológica. Antes, no entanto, de apresentarmos um caminho de investigação
conjunta física-metafísica da não-localidade, com base no modelo algébrico
apresentado nesta dissertação, julgamos oportuno avançar um pouco mais nas
conseqüências do teorema de Bell.
Na natureza, como havíamos mencionado anteriormente, nada permanece
constante: transformações, movimentos, e mudanças. No entanto, nada
simplesmente surge, ou emerge, sem que possua antecedentes. Ao estudarmos os
processos que ocorrem sob uma grande variedade de condições, em meio à
complexidade dos fenômenos, às transformações e às mudanças, existem relações
que efetivamente permanecem constantes. Ora, isto é interpretado como
significando que tais relações são necessárias, que não poderiam acontecer de
outro modo, porque se trata de aspectos inerentes ou essenciais às coisas. Tais
relações necessárias entre objetos, eventos, condições ou outros entes, num dado
tempo, e aquelas que se dão em tempos posteriores, chamam-se leis causais. Mas
isto não é algo absoluto. Em meio à necessidade a contingência e, portanto, o
acaso. Todavia, é importante observar que, conquanto na microfísica haja bastante
espaço para o acaso, ou para eventos prováveis, isto não significa que aspectos
causais, ou a noção de causalidade propriamente dita, estejam excluídos de
quaisquer de suas formulações. Por isso, vale enfatizar que não é óbvio que
algum tipo de ontologia possa emergir diretamente da mecânica quântica ela
própria, por duas razões: em primeiro lugar, por uma aparente ausência de
correspondência, isto é, que a estrutura da teoria corresponda até certo ponto à
estrutura de seus referentes na natureza; em segundo lugar, por uma aparente
ausência de convergência, isto é, que a seqüência das estruturas teóricas
Conseqüências do modelo
222
formuladas estejam em crescente correspondência, em nível de precisão, com as
estruturas referentes na natureza. Portanto, é fundamental falar sobre o importante
papel que a proposta de John S. Bell desempenhou para a mecânica quântica,
quando demonstrou que o teorema de von Neumann sobre a impossibilidade de
uma TVO continha uma premissa errada
*
.
Vimos acima que os resultados da mecânica quântica contradizem uma
TVO local e determinista; e este é precisamente o tipo de TVO rejeitada pelas
desigualdades de Bell. No entanto, é possível pensar em algum tipo de TVO que
viole as condições de restrição à propagação de interações fixadas pela teoria da
relatividade como, por exemplo, interações superluminares (ou seja, tipos de
interação cuja velocidade v de propagação é superior à da luz, isto é, v > c). As
teorias que defendem algum tipo de realismo local de cunho determinista, isto é,
que sustentam que variáveis ocultas responsáveis pelo caráter aparentemente
incompleto (como defendia Einstein) da mecânica quântica, baseiam-se em três
premissas:
1
a
As regularidades nos fenômenos observados são causadas por
algum tipo de realidade física, que independe de observadores humanos.
2
a
A inferência indutiva é um método válido de raciocínio,
podendo ser livremente aplicada, de tal forma que conclusões legítimas
podem ser extraídas a partir de observações consistentes.
3
a
Princípio de separabilidade de Einstein: Nenhuma influência de
qualquer tipo pode propagar-se mais rapidamente do que a luz.
Bem, com relação às premissas um e dois acima, visto que a mecânica
quântica concorda com os experimentos num domínio vastíssimo, é evidente que
as características indeterministas da teoria são, de certa forma, um reflexo do real
comportamento da matéria em escala subatômica. Resta verificar a premissa três,
sobre a separabilidade de Einstein, e de como interpretar o indeterminismo que
emerge na teoria quântica. Primeiramente, quanto ao indeterminismo, podemos
afirmar, como Bohm, que, em linhas gerais, a ausência de leis deterministas
associadas ao comportamento individual das partículas (de nossos fótons, por
*
Este é um resultado que usamos para sustentar nosso ponto, mas que não será exposto neste
trabalho.
Conseqüências do modelo
223
exemplo), considerado o contexto no qual se formula uma lei estatística (por
exemplo, o caminho médio percorrido pelas moléculas de um gás qualquer), é
consistente com a noção de que existam leis individuais mais detalhadas que são
aplicáveis num contexto mais amplo, por exemplo, no choque das moléculas de
um determinado gás, seu caminho médio é calculado estatisticamente, e é
perfeitamente consistente com a presença de leis ocultas que são determinadas
por fatores essencialmente independentes entre si e, no entanto, aquele caminho
médio é perfeitamente compatível com a formulação de uma TVO para este caso,
bem como para outros similares. Ora, em termos da mecânica quântica, isso
redundaria na descrição de estados associados a novos tipos de entes que
existiriam numa camada mais profunda da realidade, num nível subquântico, por
assim dizer, obedecendo a novos tipos de leis individuais, possivelmente
encontráveis num outro plano de causalidade
294
. Nada impede que este plano de
causalidade completamente novo aponte para leis de caráter ontológico que
modelam não apenas este novo nível subquântico, mas os entes naturais eles
mesmos, seja por sistemas físicos em nível subatômico, ou ao nível corpóreo de
nossos sistemas clássicos. Voltando-nos para os entes subquânticos, estes e suas
leis de causalidade e inteligibilidade implicariam um novo ângulo de abordar a
natureza, que se encontraria, presentemente, “oculto”. Com efeito, este ângulo
não está, de fato, oculto, mas é complementar à abordagem empiriológica: trata-se
da análise gico-metafísica, grau de conhecimento formalmente matemático, e
materialmente metafísico, em cujo domínio situamos o modelo algébrico proposto
nesta dissertação. Vejamos, por conseguinte, o que estava aparentemente oculto,
mas que pode ser compreendido, em parte, à luz do modelo no capítulo anterior.
4.2.4
Potencial quântico, não-localidade e
00
α
Vimos, pela expressão (3.24) que um α-estado
jk
α
pode ser obtido a
partir dos ideais à esquerda e à direita do seguinte modo:
294
Cf. BOHM, 1989, p. 583-628.
Conseqüências do modelo
224
0 0
( ) ( )
jk
L j R k
α
=
Ora, também vimos, pela expressão (3.33) que o estado
jk
α
também é
dado por
00 0
0
j k
jk
q q
α α
=
Temos, portanto, igualando as duas expressões, que,
00 0 0 0
0
( ) ( )
j k
q q L j R k
α
= .
Porém, fixando o índice k = 0, segue-se que , por definição,
0
(0) 1
R
=
e, portanto,
00 0
0
( )
j
q L j j
α
= =
.
De onde se segue que, usando a expressão (4.1),
00
0
j
j
q x
α
=
Mas, por (4.3) e (4.4) obtemos,
0 00
0
a j
j a
q q x
α
=
(
)
0 00
0
b j
j b
q q x
α
+
=
que são as coordenadas dos holons de posição, por translação quer no sentido
negativo quer no positivo, a partir dos holoquarks e do α-estado
00
α
. No limite,
Conseqüências do modelo
225
n
, todo o espaço geométrico (incluindo a coordenada temporal) depende de
00
α
, por meio da álgebra, o que indica uma presença difusa do elemento
00
α
no
espaço-tempo. Num esforço que vinha sendo desenvolvido muitos anos por
David Bohm e seus colaboradores, se buscava uma nova “ontologia”
*
para a
descrição de processos quânticos individuais, o que incluiu a presença de um novo
tipo de potencial ou campo, chamado de potencial quântico, que, em contraste
com os campos da física clássica, que transferem energia e momento
mecanicamente do campo para o sistema físico em análise, o potencial quântico
não dependeria da intensidade do campo, mas de sua forma ou da informação
ativa transportada pelo potencial
295
. Assim, Bohm
296
propôs uma forma
matemática para este potencial quântico, após considerar os seguintes quatro
ascpectos essenciais:
(1) Supõe-se que a função de onda
ψ
representa um campo
objetivamente real e não se trata apenas de um símbolo matemático;
(2) Supõe-se que existe, além do campo, uma partícula que é
matematicamente representada por um conjunto de coordenadas, que são
sempre bem definidas e que variam segundo um modo definido
;
(3) A velocidade da partícula depende de uma função de fase S,
dada pela função de onda
ψ
, escrevendo-se esta última como
Re
iS
ψ
= ,
S e
R
reais, sendo
R
a amplitude do potencial quântico, o qual determina
a forma da função de onda;
(4) O campo
ψ
encontra-se de fato num estado de flutuação muito
rápida e caótica, de tal modo que os valores que são utilizados para
ψ
são
um tipo de média tomada num certo intervalo de tempo longo o suficiente
se comparado aos intervalos médios das flutuações dadas pelo potencial
quântico, porém curto se comparado aos processos quânticos usuais.
*
Novamente, reiteramos que “ontologia” (por isso entre aspas) não significa “metafísica”, mas
tão-somente os objetos e elementos mais fundamentais para a descrição empiriológica dos
fenômenos naturais, nesse caso, os quânticos.
295
Cf. HILEY apud SAUNDERS & BROWN, 1991, p. 226-229.
296
Cf. BOHM, 1980a, p. 98.
Uma analogia com moléculas de um gás torna-se evidente: de fato, num s, as moléculas são
espaço-temporalmente localizáveis, e a elas podemos, simultaneamente, atribuir posição, energia e
momentum como propriedades reais, intrinsecamente possuídas por cada uma delas, no sistema
físico, ainda que, de um ponto de vista prático, seja melhor tratar sua dinâmica como um todo,
através do uso de técnicas estatísticas aplicáveis a conjuntos (
ensembles) de moléculas.
Conseqüências do modelo
226
Por isso, Bohm sugeriu que este potencial quântico, Q, pudesse ser
expresso matematicamente por,
2 2
2
R
Q
m R
=
em que
m
é a massa da partícula,
2
h
π
=
,
h
é a constante de Planck, e
R
é a amplitude do campo. Claramente, a expressão do potencial introduz uma ação
que depende apenas da forma total do campo; ou seja, se trata de uma influência
não-local, pois se multiplicarmos
R
por uma constante, de modo a aumentar a
intensidade do campo (em 10 ou 20 vezes, por exemplo), tal intensidade não é
propagada no potencial final. Logo,
Isso implica que campos de intensidades muito fracas podem produzir
efeitos consideráveis. Tais efeitos não provêem da transferência de energia e
momentum do campo quântico para a partícula; ao contrário, um
redirecionamento da energia dentro da própria partícula. Uma conseqüência
direta disso é que sistemas separados por grandes distâncias podem interagir
fortemente [...] À primeira vista tal não-localidade parece contradizer a teoria da
relatividade, que requer que nenhum sinal seja transmitido mais rapidamente do
que a luz. [...] Surpreendentemente, no entanto, tal não-localidade persiste [não
apenas, como seria de esperar, numa teoria clássica, na qual não limite
superior para a propagação de transmissões] mesmo na teoria relativística de
campo, na qual pontos distintos do campo podem ser acoplados não-localmente
pelo potencial quântico [descrito acima].
297
Dado que o potencial quântico
Q
sugerido por Bohm e colaboradores é
empiriologicamente um mecanismo rico em conseqüências, podemos associá-lo à
álgebra proposta, de tal forma que a amplitude
R
seja obtida da álgebra,
especialmente considerando o α-estado
00
α
como um player essencial. Assim,
considerando as seguintes premissas
297
HILEY apud SAUNDERS & BROWN, p. 229. (Grifos nossos).
Conseqüências do modelo
227
(i) O operador
R
, candidato a representar o potencial quântico no
modelo algébrico, não possui uma forma algébrica similar a operadores
candidatos a representar energia mecânica do campo;
(ii) O operador
R
candidato a representar o potencial quântico no
modelo algébrico deve ser tal que dê relevância primária à forma do
campo num determinado local do espaço de configurações;
(iii) Que atenda à expressão algébrica da função de onda
representada no espaço de configurações, dada por
,
1
j
j u
j u
q
n
ψ ψ
=
298
em que
2
2
ij t m
j j
a e
ψ
= , sendo
j
a
uma constante, e
t
e
m
parâmetros (naturalmente,
t
é tempo e
m
é a massa)
299
.
Substituindo a última expressão na equação anterior, e fazendo
2
t m
λ
=
, temos
2
,
1
i j j
j u
j u
a e q
n
λ
ψ
=
que, comparada à expressão para a função de onda sugerida por Bohm nos
conduz à seguinte igualdade,
2
,
1
i j j iS
j u
j u
a e q Re
n
λ
=
298
Cf. DAVIES, op. cit., p. 161.
299
Ibid
., p. 205.
Conseqüências do modelo
228
de onde se segue que, após multiplicarmos ambos os lados por
iS
e
, e
rearrajando,
2
( ) 0
0
1
i j S j
j u
j u
R a e q q
n
λ
+
=
Porém fazendo
2
( )
( , )
i j S
j j
S a e
λ
η λ
+
= , tendo-se em conta que
0
00
1
u
u
q
n
α
=
, obtemos
00
( , )
j
j o
j
R S q
η λ α
=
e esta última expressão atende não apenas às premissas que perfilamos
anteriormente, como também ao caráter simultaneamente global, dado pelo α-
estado
00
α
e pelos reatores
0
j
q
, e local, dado pelo parâmetro
λ
e pela fase S,
cuja obtenção é estocástica, ou seja, ao mesmo tempo determinista em S e
estatística em
λ
.
Se multiplicarmos o lado direiro da expressão acima por
0 0
( 1)
j j
q q
=
,
obtemos uma forma compacta para a expressão do operador, pois trazemos todos
os termos para dentro do sinal de soma,
00
0 0 0
( , )
jj
j j j
j
j
R S q q q
α
η λ α
=
e obtemos, finalmente, a expressão compacta para o operador de Bohm,
0
( , )
j
j jj
j
R S q
η λ α
=
que, segundo a convenção de Einstein para o índice de soma j,
Conseqüências do modelo
229
0
( , )
j
j jj
R S q
η λ α
=
A expressão acima que é extraordinariamente simples, representa o caráter
global e local a que deve satisfazer o potencial quântico, haja vista ela conter
simultaneamente os estados de configuração de α-objetos no interior da
protomatéria e a ação dos holoquarks
0
j
q
sobre esses estados. É interessante
chamar a atenção para o caráter transformacional exercido pelos holoquarks: sua
ação sobre os estados no interior da matéria primeira produzem operadores que
simultaneamente representam os aspectos metafísicos da matéria, caracterizados
por tais estados, bem como as conseqüências empiriológicas dos mesmos, como é
o caso do operador
R
.
Uma outra abordagem ao aspecto não-local das transformações da álgebra
de Weyl é dada por meio da definição de operadores de vizinhança associados à
representação da função de onda
ψ
e aos pontos
j
x
. Mostra-se que tais
operadores apresentam-se como não-locais pelo fato de os automorfismos a eles
associados não possuírem bases invariantes. Uma descrição geral desse tipo de
análise da não-localidade associada aos automorfismos de
n
W
foi realizada por
Hiley
300
. No entanto, a análise não apresentou a vinculação da não-localidade ao
potencial quântico, como estamos fazendo nesta dissertação.
Em resumo, a não-localidade é uma característica inerente à estrutura
hilemórfica da realidade, especialmente aparente nos fenômenos cuja descrição é
realizada pela mecânica quântica. Vimos como, a partir da dinâmica da
protomatéria, obtida por meio da álgebra de Weyl, evidenciam-se conexões entre
elementos sem restrições de algum tipo. No entanto, isto não implica violação da
localidade espaço-temporal prevista pela teoria da relatividade, por duas razões:
Em primeiro lugar, porque o provisionamento de tais conexões é dado pela
matéria primeira, sendo esta última um componente metafísico (real), presente na
natureza, na composição hilemórfica dos entes, mas que somente se torna aparente
na investigação da realidade microfísica; portanto, se trata de vínculos de ordem
ontológica, que não estão submetidos necessariamente -- e nem implicam
300
HILEY apud SAUNDERS & BROWN, p. 243-246.
Conseqüências do modelo
230
violações -- a restrições específicas, de ordem empiriológica, como a localidade.
Em segundo lugar, porque, com base naqueles vínculos de natureza ontológica, a
formulação empiriológica do potencial quântico, sugerida por Bohm, mostra
301
que este potencial é muito “tênue” e instável para transportar sinais entre efeitos
distantes e, por conseguinte, não se pode utilizá-lo com o intuito de estabelecer
conexões de natureza local, sem que se perca sua forma original e, por
conseguinte, seu significado. Trata-se, portanto, de uma formulação empiriológica
que não acarreta violação a uma restrição específica desta mesma ordem, como a
localidade.
O que, por conseguinte, a proposta de Bohm nos indica é um outro nível
da realidade (em nossa proposta, a ordem hilemórfica), com o qual se conecta o
potencial quântico e que, como tal, é responsável, sob uma perspectiva metafísica,
pelo comportamento encontrado em campos e, especialmente, em partículas,
segundo a perspectiva empiriológica da mecânica quântica. Por conseguinte -- é o
que procuraremos mostrar na seção seguinte --, a estrutura hilemórfica pode ser
aproximada pela proposta de Bohm, na medida em que este propõe um outro nível
da realidade natural, pensado como uma “ordem supra-espaço-temporal” que se
encontra inteiramente num estado dinâmico de fluxo, subjacente (e, por isso,
“escondido”) às características quânticas que encontramos no mundo fenomênico.
Bohm denominou este nível ordem implicada. Enquanto tal, a ordem implicada
contém a ordem explicada, a qual engloba nossos objetos e processos do dia a dia,
e também as trajetórias aparentes que são descritas pelas partículas elementares.
No interior da ordem implicada tudo está conectado, bem como podemos dizer
também que tudo na ordem explicada está, de certa forma, conectado por meio da
ordem implicada. Isso se estrutura, sob tal perspectiva, segundo uma atividade
constante de dobramento e desdobramento. Ou seja, subtotalidades relativamente
autônomas
*
(da ordem total implicada) desdobram-se desta para a ordem
explicada, isto é, para o espaço-tempo, e novamente dobram-se da ordem
explicada para a ordem implicada. Tal postulação sugere que, em face da
natureza não-local da ordem implicada -- não-local porquanto não sujeita à
301
Detalhes podem ser encontrados em BOHM, 1980b.
*
Autônomas no sentido de serem componentes diferenciados (objetos) da álgebra da ordem
implicada.
Conseqüências do modelo
231
restrição de localidade imposta pela teoria da relatividade -- e de sua inter-relação
dinâmica com a ordem explicada, nosso universo é uma totalidade indivisa.
Vejamos, pois, na seção seguinte, um pouco mais detalhadamente, o
conceito de ordem implicada e de holomovimento, e de como este último pode ser
compreendido como uma abordagem de natureza lógico-metafísica à dinâmica da
protomatéria e, sob rios aspectos, coincidente com a abordagem mesma
proposta neste trabalho.
Conseqüências do modelo
232
4.3
Holomovimento e dinâmica da matéria primeira
A maior parte do que será apresentado nesta seção quanto à proposta de
David Bohm se encontra em seu livro Wholeness and the Implicate Order
302
;
portanto, o que faremos é um sumário daqueles pontos que julgamos serem
relevantes para expor várias convergências da proposta de Bohm com a teoria
hilemórfica, especialmente no que se refere a um modelo e dinâmica da
protomatéria.
Bohm está perfeitamente ciente da bifurcação cartesiana, ainda que faça
uso de outra abordagem e terminologia para expressar o fato. Argumenta, desde o
início, que a visão de mundo trazida pelas ciências (entre as quais ele inclui
também as ciências sociais) privilegiam um entendimento fragmentário de uma
realidade que é, em si mesma, uma totalidade indivisa. Mais: os filósofos gregos,
sobretudo Aristóteles, compreenderam a relevância de uma visão unitária,
orgânica, do mundo, segundo a qual cada coisa (que é uma parte do todo) “cresce
e se desenvolve em sua relação com o todo e no qual possui seu lugar e função
própria”.
303
Assim, sustenta que os conceitos de causa formal e de causa final
eram relevantes para uma perspectiva indivisa do movimento (ou fluxo da
natureza), trazidos à luz implicitamente pelo desenvolvimento da física,
notadamente da teoria da relatividade e da mecânica quântica. Não obstante a
antiga cosmovisão, que privilegiava o todo e os aspectos formais e finais,
A maior parte do trabalho que é realizado presentemente na física não considera
que as noções de causa formativa [formal] e final tenham algum significado
primário. Ao contrário, uma lei [da natureza] é ainda geralmente concebida como
um sistema autodeterminado de causas eficientes, operando em algum conjunto
último [definitivo] de constituintes materiais do universo (por exemplo, partículas
elementares sujeitas a forças de interação entre elas). Não se considera que tais
constituintes sejam formados num processo global e, portanto, não se considera
que sejam algo como órgãos adaptados a seu lugar e função no todo (isto é, aos
fins a que serviriam neste todo). Ao contrário, tendem a ser concebidos como
elementos mecânicos com uma natureza fixa e existindo separadamente”
304
.
302
BOHM,1980a.
303
BOHM, op. cit
., p. 16.
304
Ibid., p. 18.
Conseqüências do modelo
233
O quadro a que Bohm se refere na passagem acima não mudou
essencialmente nas últimas décadas. Sendo assim, passemos a descrever, em
linhas gerais, a proposta de Bohm para uma nova visão acerca da realidade
natural.
4.3.1
A ordem implicada e o holomovimento
Justamente, a proposta é um modo de investigação da realidade,
considerando-a como uma totalidade indivisa, em oposição à visão tradicional
fragmentária da realidade, cujos elementos componentes são analisados. E
analisar, segundo Descartes, é exatamente dividir em partes, de modo a prover um
mecanismo de compreensão do todo a partir de seus componentes, de seus
fragmentos. No entanto, esta fragmentação de caráter meramente metodológico
incorporou-se essencialmente à perspectiva científica, de tal modo que,
Na linguagem informal e no modo de pensar em física, que impregnam a
imaginação e provocam o sentido do que é real e substancial, a maioria dos
físicos ainda falam e pensam, com uma absoluta convicção da verdade, em
termos da noção tradicional atomista do universo como constituído de partículas
elementares que são os “blocos construtores básicos” a partir dos quais tudo é
produzido
305
.
Portanto, sugere Bohm, devemos considerar uma “nova ordem dos fatos
sobre os modos como a compreensão teórica, a observação e a instrumentação
estão relacionadas umas às outras”.
306
Totalidade e holograma. Bohm argumenta, então, por meio de uma
analogia entre a lente e o holograma, que deve haver uma mudança no modo
como se à relação entre teoria e instrumentação. A visão cartesiana da ciência
é regida pela visão de uma imagem formada por uma lente, imagem esta que faz
corresponder um ponto Q na mesma a um objeto P, com elevado grau de
305
Id.
306
BOHM, op. cit., p. 182. Isso mostra que a proposta de Bohm é ainda de natureza empiriológica,
pois ela ainda pertence ao modo de entendimento e ao modo de operação da ciência,
independentemente de não mais sustentar a fragmentação da realidade em prol de uma visão
holística da mesma.
Conseqüências do modelo
234
aproximação. Eleva a percepção sobre as várias partes do objeto e das relações
entre essas partes. Por isso, favoreceu a tendência a se pensar em termos de
análise e de síntese. Além disso, tornou possível estender o alcance da ordem
clássica cartesiana a objetos quer muito distantes de nós, ou muito pequenos, ou
muito rápidos, etc. Como resultado, conclui Bohm, os cientistas sentiram-se
encorajados a extrapolar suas idéias e a pensar que tal abordagem seria relevante e
válida, não importando quais os contextos, as condições ou os graus de
aproximação da “lente”.
307
Não obstante o êxito conseguido, tanto a teoria da
relatividade quanto a mecânica quântica indicam que a abordagem deve favorecer
uma outra perspectiva, na qual a análise da realidade natural em partes bem
definidas e distintas, auxiliada pelo “olhar” da lente, não é mais relevante. Essa
perspectiva é a da totalidade indivisa, cujo insight perceptivo baseia-se no
holograma e não na lente. Um holograma pode ser obtido com o auxílio de um
laser que é parcialmente refletido e parcialmente transmitido por um espelho. A
parte transmitida incide diretamente sobre uma chapa fotográfica, e a parte
refletida dirige-se a um objeto. Por sua vez, a luz refletida pelo objeto retorna à
chapa, interferindo com aquela que incidiu diretamente. O resultado é um padrão
de interferência bastante complexo, invisível a olho nu. Quando, posteriormente
ao registro da interferência, iluminamos a chapa fotográfica com uma luz de laser,
se pode observar o objeto original como um todo, em três dimensões, a partir de
diferentes vistas. E o extraordinário do holograma é que, mesmo se apenas
iluminarmos com luz de laser uma pequena região da chapa fotográfica, ainda
somos capazes de ver o objeto como um todo, desta vez, claro, com menos
definição (com menos detalhes) e com deterioração das possibilidades das
distintas vistas que tínhamos no registro integral. Portanto, distintamente da lente,
na qual uma correspondência 1-1 entre as partes do objeto e as partes de sua
imagem, no holograma o padrão de interferência que está presente em cada região
do mesmo é relevante para o objeto como um todo, e cada parte do objeto é
relevante para o padrão total de interferência na chapa. Claro, nem mesmo uma
lente é capaz de produzir exatamente uma correspondência 1-1, podendo ser
considerada como um caso limite de um holograma. Sem entrar em detalhes
técnicos que, em nosso caso, não possuem maior relevância, é suficiente dizer que
307
Cf. BOHM, op. cit., p. 183.
Conseqüências do modelo
235
os experimentos existentes hoje, especialmente no contexto quântico, mais se
assemelham ao caso geral de um holograma do que ao caso especial de uma lente.
O que nos propõe Bohm com a distinção entre a lente e o holograma? É que a
analogia do holograma indica-nos que os componentes que “extraímos” da
realidade espaço-temporal, que ele denomina a ordem explicada, de fato
pertencem a um todo complexo e dinâmico, ou seja, a uma nova ordem com que
deve ser enxergada a realidade, a ordem implicada. Obviamente, as vizinhanças
próximas àquela sobre a qual dos debruçamos para olhar -- que são um
desdobramento da ordem implicada -- apresentam maior resolução, mais detalhes,
por assim dizer, e aquelas que estão mais distantes da vizinhança, menor
resolução. Assim, o todo se encontra no holograma, que representa a ordem
implicada. Portanto, sugere Bohm, devemos nos voltar para a ordem implicada,
que é uma espécie de totalidade fora do espaço-tempo que se encontra num estado
de movimento totalizante -- isto é, que abarca a totalidade do universo natural --,
denominado por ele holomovimento, cuja atividade consiste em desdobrar-se
*
no
espaço-tempo sob a forma de fragmentos, que nossa visão parcial e fragmentária
extrai e descreve por meio de análise e de ntese, e em dobrar-se
no todo
indiviso e dinâmico do holomovimento.
4.3.2
Holomovimento e dinâmica da protomatéria
Bohm sugeriu, então, que fosse considerada relevante a atividade que
“transporta” a ordem implicada, de modo que o conceito de uma totalidade
indivisa fosse atribuído a essa atividade. Essa totalidade não-fragmentada ou
holomovimento é tal que,
Em certos casos, podemos abstrair aspectos particulares do holomovimento (por
exemplo, luz, elétrons, etc.), porém mais geralmente, todas as formas do
holomovimento se fundem e são inseparáveis. Assim, em sua totalidade, o
holomovimento não é especificável sob nenhuma forma. Não se requer que deva
conformar-se a alguma ordem particular, ou ser delimitado por alguma medida
particular. Portanto, o holomovimento é indefinível e imensurável.
308
*
U
nfolding.
Folding.
308
BOHM, op. cit., p. 191.
Conseqüências do modelo
236
Retomando a analogia com o holograma, verificamos que em cada região
do espaço a organização (ordem) de uma estrutura totalmente iluminada é
“dobrada” e “transportada” no movimento da luz, do mesmo modo que um sinal
que modula uma onda de rádio permite que a estrutura de uma informação (uma
certa comunicação verbal, uma dada imagem, etc.) seja transportada. Claro, num
holograma, estruturas muito mais sutis podem estar envolvidas. Bem, se o
holomovimento transporta uma ordem implicada, então como poderíamos
explicar a ordem que identificamos no espaço-tempo, cuja determinação é, via de
regra, obtida segundo o método cartesiano? Ou seja, como se explicita o que
estava implícito? Novamente, temos uma analogia: o modelo da “tinta-na-
glicerina”. Suponhamos dois cilindros de vidro, um de menor raio, interno e
concêntrico ao de maior raio, o menor dentro do maior. Suponhamos, ademais,
que entre os dois cilindros o espaço seja preenchido por um fluido viscoso como a
glicerina. Então, deixamos pingar sobre um ponto qualquer da superfície da
glicerina uma gota de uma tinta insolúvel (por exemplo, de um tipo composto com
partículas de carbono), de cor preta. Assim, o que vemos sobre a glicerina é uma
gota preta mais ou menos circular flutuando sobre um meio incolor. Pois bem,
façamos o cilindro externo girar lentamente no sentido anti-horário. As partes do
fluido próximas ao cilindro externo mover-se-ão mais rapidamente do que as
regiões do fluido mais próximas ao cilindro interno, de tal modo que a glicerina
como um todo se move em sentido anti-horário, em algumas regiões mais
rapidamente do que em outras. Com isso, a gota de tinta também será arrastada,
mais rapidamente ou mais lentamente, segundo sua posição no meio fluido. Após
um giro prolongado, a gota de tinta assemelhar-se-á a um filete alongado; ao
continuarmos girando o cilindro, após algum tempo, o filete de tinta se tornará tão
fino que, a olho nu, ficará invisível. Por fim, a tinta estará totalmente misturada à
glicerina. Agora, nossa gota de tinta, que representa uma partícula na ordem
explicada (um elétron, por exemplo), está inteiramente dobrada na ordem
implicada, mesmo que, de fato, devido à analogia ser mecânica, o filete esteja
ainda presente como tal (isto é, como um filete, ainda que muito fino) no fluido,
ou seja, como um objeto isolado, “separado”, da ordem implicada. Consideremos,
contudo, que o filete tornou-se indefinidamente fino, mas não irreversivelmente
difuso pelo fluido, a saber, a informação com respeito à sua origem, como uma
gota de tinta, não foi perdida. Com efeito, se agora revertermos o sentido de
Conseqüências do modelo
237
rotação do cilindro externo para o horário, as partículas de carbono que foram
“esticadas” no filete, estando distanciadas, começarão a se aproximar uma da
outra cada vez mais, o que fará com o que o filete fique cada vez mais espesso até
reaparecer novamente sob a forma da gota de tinta preta que deixamos cair sobre
o fluido. A gota (o elétron) se encontra então desdobrada na ordem explicada.
Claro, podemos simular vários fenômenos da ordem explicada, ao variar o número
de gotas de tinta, sua posição relativa no fluido, as cores utilizadas, etc. Desta
forma, podemos supor igualmente que todas as imagens que possamos obter a
partir de diversas gotas de tinta explicadas consistem num ensemble
*
total de
filetes implicados, todos eles pertencentes ao mesmo objeto explicado. Isto
significa que qualquer objeto quântico na ordem explicada (espaço-tempo) está,
simultaneamente, difuso na ordem implicada, e representa não apenas um algo
isolado, mas o holomovimento ele mesmo.
Vimos que, em geral, o movimento pode ser descrito em termos do
“dobramento e transporte” de uma estrutura de ordem, ou de ordens implicadas,
que são relevantes a uma estrutura total que representam, cuja análise em partes
separadas e autônomas na ordem explicada não é aplicável, a não ser de forma
limitada a certos contextos de análise e de experimentação. Bohm sugere, por
conseguinte, a introdução de um “parâmetro de implicação”, T, a ser utilizado
como medida. Por exemplo, no caso da gota de tinta na glicerina, T poderia ser o
número de voltas necessárias a explicitar uma determinada gota de tinta. Assim,
um certo objeto num determinado contexto da ordem explicada consistiria de
propriedades que podem ser explicadas conjuntamente, relativas a um certo valor
do parâmetro de implicação. Novamente, surge aqui a oportunidade de nos
remetermos a algum tipo de formalismo de natureza algébrica. Os aspectos a
serem observados fazem parte da definição do parâmetro de implicação, o qual
deve dar relevo à conexão entre “objetos” da ordem implicada, tomada como
básica, e não aos objetos da ordem explicada. Por isso, Hiley
309
nos chama a
atenção para essa mudança na forma de tratamento do que estabelecemos como
“observáveis” (na ordem explicada), usualmente associados ao formalismo de
operadores que nos indicam simplesmente os resultados de algum tipo de
*
Mantivemos o termo
ensemble sem tradução por ser largamente utilizado assim em mecânica
quântica.
309
HILEY apud SAUNDERS & BROWN, p.234-235.
Conseqüências do modelo
238
medição. Visto que a conexão passa a ser relevante sobre os objetos de conexão,
tal conexão é ativa, haja vista que a atividade é agora tomada como básica. Assim,
objetos como partículas (a cujas propriedades associamos operadores, segundo a
visão tradicional) são meramente “ondulações no mar de atividade subjacente” e,
Segundo tal perspectiva, não partículas últimas a partir das quais todas
as outras são formadas. Ao contrário, existem formas quase-invariantes que
podem transformar-se umas nas outras e podem se auto-organizar segundo
hierarquias de sistemas maiores quase-estáveis [...] À totalidade da qual tais
características emergem chamamos de holomovimento [... que] descreve a
totalidade de processos que contém não apenas as características quase-estáveis
que percebemos direta ou indiretamente com a ajuda de nossos instrumentos de
detecção, mas também os processos ultra-rápidos e transientes aos quais nossos
instrumentos não são sensíveis. Estes últimos correspondem ao que a mecânica
quântica denomina estado de vácuo [...] Ao nosso ver, portanto, o vácuo ele
próprio possui uma estrutura ativa bastante rica à qual nossos instrumentos não
respondem diretamente [...] É esta atividade responsável pela energia do ponto-
zero, e pode também ser considerada a fonte do potencial quântico [...] Portanto
faz-se necessário encontrar uma forma matemática apropriada com a qual
descrevamos essa estrutura mais profunda [o holomovimento]
310
.
Após algumas considerações adicionais, a álgebra que Hiley propõe para o
holomovimento é precisamente aquela que utilizamos para o modelo da dinâmica
da protomatéria, de onde se segue claramente a profunda conexão entre ambos, ou
seja, o modelo algébrico buscado para a descrição empiriológica da atividade total
da ordem implicada, isto é, do holomovimento, é convergente com o modelo
algébrico proposto para a descrição lógico-metafísica da dinâmica da matéria
primeira. Podemos reivindicar, portanto, uma equivalência do tipo empiriológico
entre o holomovimento e a dinâmica da matéria primeira. De modo a corroborar
esta proposição, exporemos algumas considerações de David Bohm acerca da
natureza da álgebra a ser utilizada em um modelo da ordem implicada
311
.
Sugere, de início, que a ordem implicada deveria ser descrita em termos
de transformações geométricas simples, como translações, rotações e dilatações.
No entanto, argumenta, o termo “transformação” sugere mudanças geométricas
associadas à ordem explicada, e do que se trata na ordem implicada é de
alterações de uma natureza mais profunda, radical, como aquela que ocorre
310
Id. (Grifos nossos).
311
Cf. BOHM, op. cit., p. 202-217.
Conseqüências do modelo
239
quando uma lagarta se transforma numa borboleta
312
. Por isso, chama de
metamorfoses a tais transformações que ocorrem na ordem implicada, ou entre a
ordem implicada e a ordem explicada. Os exemplos que vimos, o do holograma e
o da tinta-na-glicerina, servem para indicar tais metamorfoses: as mudanças entre
um objeto iluminado e seu holograma, ou entre a gota de tinta e o filete obtido
pelo movimento do fluido de glicerina. Sendo M uma metamorfose, sugere
Bohm que possamos descrever um conjunto completo de transformações
relevantes numa dada ordem explicada (deslocamentos,
j
D
, rotações,
j
R
, e
dilatação
0
R
) por
1
'
E MEM
=
que é uma transformação de similaridade, ou metamorfose. Tal tipo de
transformação foi amplamente utilizado no capítulo anterior, como tivemos
ocasião de expor, em que M foi tratada como um operador da álgebra. No caso
do holograma, os pontos do objeto e da chapa fotográfica são relacionados por
uma função de Green que, para ondas com uma freqüência definida
ω
, pode ser
dada aproximadamente por
1
( )
i
c x y
G x y e
x y
ω
Ora, sendo
x
a coordenada de um ponto da estrutura iluminada e
y
a
coordenada do ponto da chapa fotográfica, se indicarmos por
( )
A x
a amplitude
da onda na estrutura iluminada e por
( )
B y
a amplitude respectiva na chapa
fotográfica, então ambas se relacionam por
312
Ibid., p. 202. O exemplo é do próprio Bohm e é emblemático para nossa proposta. Ora, é
exatamente este tipo de transformação radical que se no interior da matéria primeira, sujeito
comum das transformações substanciais, como vimos. Transformações similares projetam a
ordem implicada na ordem explicada, isto é, fazem eduzir as formas substanciais a partir das
alterações sucessivas (metamorfoses) das formas elementares, ou α-estados, no interior da matéria
primeira. Ou, para usar as palavras de Bohm, transformações nais quais “tudo se altera de uma
maneira completa ao mesmo tempo em que algumas características sutis e altamente implícitas
Conseqüências do modelo
240
( ) ( ) ( )
B y G x y A x dx
A expressão acima nos mostra que não há uma correspondência 1-1 entre
pontos do objeto e pontos da chapa, como numa lente, mas que toda a estrutura
iluminada é “transportada” ou “dobrada” em cada região da chapa fotográfica, o
que faz com que
( )
G x y
possa ser considerada como uma metamorfose da
estrutura iluminada no holograma que a contém implicitamente
313
. Com efeito,
seguindo a sugestão de Bohm para a expressão acima, poderíamos tentar
reescrevê-la para um número finito n de pontos, que é o caso da álgebra
apresentada, isto é, no contexto de um espaço discreto; e sendo b uma constante
dada por
2
c
ω π
, obtemos como sugestão para a formulação discreta do integral,
( )
1
( )
1
b i j
j j
i j
i
y x
n
φ
=
e com base nessa última expressão, poderíamos derivar a forma do operador da
metamorfose M
*
.
Outra sugestão de Bohm
314
quanto às álgebras envolvidas na
matematização do holomovimento é que este último, porquanto seja uma
totalidade indefinível e incomensurável, comporta igualmente uma “álgebra total
indefinível”. O que se faz, por conseguinte, é considerar certos aspectos
relativamente autônomos do holomovimento, tratados por subálgebras também
relativamente autônomas, mas que possam refletir o movimento do todo. Isto é,
deve-se, então, ser apresentadas subálgebras holonômicas, de tal maneira que cada
uma delas seja, em última instância, limitada pelo fato de que uma lei do todo
ou holonomia. Portanto, conclui Bohm, um dado contexto físico deve ser descrito
em termos de uma subálgebra apropriada.
permanecem invariantes”. Ora se isto não descreve com precisão o que Aristóteles chamava de
mudança substancial, o que mais poderia ser?
313
Ibid., p. 202-203.
*
Não faremos esta conta aqui. O intuito de expor as considerações de Bohm acerca da função de
Green é tão-somente mostrar a íntima conexão entre a forma desta função e operadores da álgebra
proposta.
314
Ibid., p. 208-209.
Conseqüências do modelo
241
Ao nos aproximarmos dos limites de tal contexto, dá-se algum tipo de
inadequação, o que nos conduz de volta a uma álgebra mais abrangente, até que se
encontre uma descrição adequada ao novo contexto em questão:
No contexto da física clássica, por exemplo, é possível abstrair uma álgebra
correspondente a um conjunto de operações euclidianas. Contudo, em um
contexto “quântico”, a “lei do todo” envolve metamorfoses M que nos afastam
dessa subálgebra e nos aproximam de subálgebras diferentes (mas similares)
dadas por
1
'
E MEM
=
.
Como foi assinalado, existem agora indicações de que mesmo a álgebra
“quântica” é inadequada em contextos ainda mais amplos. Assim, é natural
prosseguir à consideração de álgebras mais abrangentes ainda
315
.
Seguem-se, portanto, as seguintes considerações, com base no que
expusemos até aqui:
(1) O holomovimento pode ser assimilado à dinâmica da essência da
matéria primeira.
(2) O todo indefinível e incomensurável pode ser assimilado à potência
indefinida da matéria primeira às formas naturais.
(3) Existe uma holonomia para a dinâmica da matéria primeira,
representada pelas leis inscritas em seu interior quando de sua criação -- trata-se
dos princípios últimos metafísicos a que devem obedecer as composições e
transmutações no interior da protomatéria.
(4) A álgebra proposta para representar certas composições e
transmutações no interior da protomatéria para e edução das formas naturais
simples -- constituintes elementares identificados no espaço-tempo, sejam
partículas ou campo -- é uma subálgebra de uma álgebra total, indefinível.
(5) Deve ser possível identificar outras subálgebras holonômicas que
possam dar conta de outros aspectos físicos e metafísicos possíveis do
holomovimento.
315
Id.
Conseqüências do modelo
242
(6) Deve ser possível apresentar modelos -- não necessariamente
algébricos -- que estendam o conceito de holomovimento às subestruturas
( )
C
da função portadora da forma, como mencionamos ao final da seção 3.3.2,
o que parece requerer a utilização de aspectos semânticos com respeito à
holonomia, em adição ao tratamento puramente sintático oferecido pelas
subálgebras.
Considerações finais
Em resumo, o conteúdo total desta tese pode ser compreendido em três
etapas fundamentais profundamente interligadas, das quais faremos um breve
apanhado, cada uma ensejando algum resultado essencial que passaremos a expor
em seguida.
(1) Exposição sobre a necessidade de uma complementação ontológica do
conhecimento da realidade natural, dado que as ciências experimentais atingem
basicamente
*
seus aspectos quantitativos, e o mundo natural, segundo a
perspectiva aristotélico-tomista, não se reduz ao plano do puramente quantitativo.
Portanto, é necessária uma perspectiva ontológica que, num intercurso produtivo
com as ciências experimentais (em nosso caso específico visamos à física),
obtenham conjuntamente um conhecimento integral, ainda que em planos
distintos, da realidade física. A essa perspectiva ontológica do real físico,
complementar às ciências experimentais, denominamos filosofia da natureza.
(2) Apresentação de uma proposta concreta de interação entre ciência e
filosofia no âmbito da filosofia da natureza, que consiste numa formulação
algébrica dos aspectos ontológicos da matéria, presentes na teoria hilemórfica de
Aristóteles e Tomás de Aquino. Para isso, foi fundamental resgatar a intuição de
Tomás sobre a matéria como ente em potência, porém dotada de uma natureza
operativa que a dispõe para todas as formas naturais. Ademais, tal capacidade
operativa segue o ser (operatio sequitur esse) e, por conseguinte, a matéria está
dotada de um aspecto entitativo nimo pelo qual lhe apetecem as formas
substanciais ou especificadoras. Os constituintes ontológicos básicos dessa
natureza operativa, por serem quantitativos, bem como suas operações intrínsecas
de composição e de transmutação no interior da matéria, são abordados por meio
de uma álgebra finita de Clifford com dois idempotentes geradores primitivos,
1
0
q
e
0
1
q
.
*
Mas não exclusivamente, como vimos no capítulo primeiro.
Conclusão
244
(3) Investigação das conseqüências epistemológicas do modelo,
especialmente no que se refere à natureza do espaço-tempo e do movimento, aos
aspectos de não-localidade apresentados pela abordagem quântica da matéria, e à
proposta de David Bohm, denominada holomovimento, que adequadamente
aponta para a dinâmica presente na essência da matéria, representada pelo modelo
algébrico proposto.
(1) Realidade natural e filosofia da natureza.
Sem a crença na harmonia interna de nosso mundo, o poderia haver ciência.
Essa crença é e permanecerá sempre o motivo fundamental de toda criação
científica.
316
Se a natureza não fosse inteligível, não haveria ciência [...] A inteligibilidade da
natureza é o fundamento das leis e dos sistemas explicativos mais elevados, com
todos os seus símbolos, entes ideais e as linguagens cifradas que empregam.
317
A crença na existência da misteriosa realidade do universo precede a investigação
científica e é o estímulo e a aspiração permanente do cientista. No entanto,
enquanto cientista, esse conhecimento limita-se a uma compreensão e a uma
reconstrução matemática (ou quase-matemática) dos aspectos observáveis e
mensuráveis da natureza, tomados em seus detalhes inesgotáveis.
318
Os pontos perfilados acima nos mostram dois aspectos fundamentais da
interação de ciência e filosofia, a partir da perspectiva de um e de outro: Em
primeiro lugar, uma proposição de natureza epistemológica
*
acerca do alcance das
teorias científicas, que poderíamos classificar como realismo científico. Ou seja, a
natureza, de fato, apresenta uma ordem em si mesma, sob a forma de leis ou de
relações reais entre entes reais, cuja estrutura interna as teorias buscam
compreender e, com efeito, logram alcançar, cabendo ao cientista um trabalho
investigativo, cuja característica fundamental, ainda que não única, é a descoberta,
para a qual não contribuem apenas os fatos científicos -- que são, eles próprios, de
316
EINSTEIN, 1988, p. 237.
317
MARITAIN, 1995, p. 126.
318
MARITAIN, 1982-2000, p. 1198-1199.
*
Neste ponto, tomamos epistemologia como significando a perspectiva ou reflexão filosófica
acerca do alcance das teorias científicas, e do papel desempenhado pelas crenças dos cientistas
com respeito a este alcance em seu trabalho investigativo.
Conclusão
245
certo modo, influenciados pelas teorias
--, mas também a criatividade própria do
cientista. Em segundo lugar, uma proposição também de natureza epistemológica
acerca do alcance das teorias científicas que poderíamos classificar como realismo
metafísico.
319
Isto é, a natureza, de fato, apresenta uma ordem em si mesma, sob a
forma de leis ou de relações reais entre entes reais, cuja estrutura interna as teorias
buscam compreender no que se refere a seus aspectos quantitativos, isto é,
observáveis e mensuráveis. Mais ainda: a natureza, de fato, se constitui de
aspectos quantitativos, reais, mas que se encontram entrelaçados a aspectos
qualitativos, também reais, aos quais as teorias científicas têm acesso apenas sob
forma indireta. Isto significa dizer que o real é mais do que as nossas melhores
teorias científicas postulam e justificam empiricamente. Este último aspecto situa
o realismo proposto por Maritain numa perspectiva distinta do realismo científico,
porquanto, segundo este autor, as ciências experimentais nos apresentam, de fato,
proposições verdadeiras acerca do real, no que se refere especialmente a suas
dimensões quantitativas, ao mesmo tempo em que subentendem certa realidade
ontológica, à qual tem acesso apenas indireto ou oblíquo, para usar uma expressão
por ele utilizada. Com efeito, vimos que a dimensão quantitativa e os aspectos
formais estão entrelaçados na realidade natural, de modo que o conhecimento de
um implica conhecimento, ainda que limitado, do outro. Entretanto, a proposta
advogada pelo realismo científico supõe, ainda que de forma tácita, que as teorias
científicas “objetivam nos dar uma história literalmente verdadeira do que o
mundo é”,
320
o que parece ser algo mais do que simplesmente buscar um quadro
verdadeiro acerca das relações quantitativas: parece-nos indicar que o
conhecimento do real em sua totalidade -- empiriológico e ontológico -- pode ser
abarcado apenas por uma das abordagens, a empiriológica. No entanto, como
tivemos ocasião de expor, o conhecimento da realidade natural é mais do que a
Trata-se de uma discussão interessante, que não cabe desenvolver aqui, acerca da natureza dos
fatos compilados pela investigação experimental, a saber, que a experiência ou os experimentos
determinam, por assim dizer, que relações são obteníveis a partir da realidade. Neste caso, haveria,
com efeito, uma espécie de “contaminação” dos dados experimentais pelo arcabouço teórico que
engendrou a investigação empírica propriamente dita (
theory-laden facts).
319
Cf. MARITAIN, 1995, p. 145-214.
320
VAN FRAASSEN, 1980, p. 8.
Conclusão
246
história literalmente verdadeira que o realismo científico sustenta, dada a estrutura
metafísica
*
que o fundamenta. O real, como dirá Wolfgang Smith,
Pode ser representado sob a forma de um círculo simbólico, no qual o centro (ou,
caso se deseje, um disco central) representa o mundo espiritual, a circunferência
representa o universo corpóreo ou “visível”, e a região anular intermediária
representa a metáxis ou domínio intermediário. Gostaria de acrescentar que este
círculo simbólico era conhecido de toda grande civilizão. A exceção é a nossa
[...], intelectualmente dominada pela ciência, que reduziu o cosmos à sua camada
mais baixa.
321
Resulta então, e este é o nosso primeiro resultado, que o real não é dado
apenas por régua e relógio, para usar uma imagem conhecida da teoria da
relatividade, mas por aspectos essenciais, metafísicos, que ultrapassam o
quantitativo e que dão a esta dimensão sua raison d´être. Claro, isto corresponde à
visão cosmológica tradicional, cujas bases racionais nos foram apresentadas por
Platão e Aristóteles, e consubstanciadas em Tomás de Aquino. Portanto, o
arcabouço metafísico do cosmos, do qual a teoria hilemórfica -- cujas linhas
essenciais expusemos nesta dissertação -- constitui sua linha-mestra de
compreensão e de intercurso com o conhecimento de natureza empiriológica, cujo
alcance tratamos no primeiro capítulo. O alcance empiriológico corresponde
assim, na imagem aludida por Smith
322
, à camada mais básica da realidade. Por
conseguinte, a camada intermédia ou metáxis corresponde à teoria hilemórfica
*
,
cuja estruturação é objeto de um conhecimento de natureza ontológica,
complementar ao conhecimento científico, domínio próprio da filosofia da
natureza. Procuramos expor, tão objetivamente quanto possível, a necessidade
deste tipo de conhecimento, que é eminentemente filosófico, não obstante o
tratamento algébrico da composição hilemórfica, haja vista os princípios
*
Estrutura metafísica, como tivemos oportunidade de expor, que não é a mesma coisa que o
conjunto de inobserváveis postulados por nossas melhores teorias científicas: trata-se dos
princípios constitutivos últimos da realidade natural, igualmente inobserváveis, porém situados
num plano de inteligibilidade ou de visualização abstrativa, o metafísico (no terceiro grau), distinto
do plano em que se situam os inobserváveis científicos, o matemático (no segundo grau).
321
SMITH, 2003, p. 76.
322
Id.
*
Mas não exclusivamente. Outras perspectivas complementares à teoria hilemórfica são dadas
pelos princípios de
substância e acidente, ato e potência, causalidade final e formal, etc., que não
são objeto específico deste trabalho, não obstante serem necessários a um tratado completo em
filosofia da natureza.
Conclusão
247
subordinantes, como vimos, serem de natureza ontológica. Por isso, nos valemos
da posição de Maritain, a qual entendemos prover o norte epistemológico
indispensável à filosofia da natureza.
Resulta então, e este é o nosso segundo resultado, que a filosofia da
natureza se constitui num domínio de investigação próprio, separado (mas não
isolado) da ciência experimental e da metafísica, devendo, portanto, munir-se de
um objeto próprio (a realidade natural) e de um método próprio (a abordagem
metafísica), de tal forma que os princípios metafísicos que são sua regra de
resolução ascendente estabeleçam o movimento próprio de abordagem do real
sensível, em sua inteligibilidade própria, ao mesmo tempo em que utiliza os
recursos próprios à investigação empiriológica, os quais lhe dão sua regra de
resolução descendente. Em nosso caso, essa resolução descendente faz uso de
recursos algébricos, conformando-se a um tratamento ao mesmo tempo metafísico
e matemático da realidade natural.
Visto o ente natural, do ponto de vista metafísico, possuir uma estrutura
hilemórfica, e sendo a matéria raiz das dimensões quantitativas presentes no ente,
resulta então, e este é o nosso terceiro resultado, a proposição de um modelo
algébrico da composição hilemórfica, centrando-se numa apropriação
epistemológica da natureza da matéria, pois é por meio desta natureza que a
matéria tem ser (ser em potência).
Resta, a nosso ver, uma linha de investigação que se poderia derivar deste
trabalho, com respeito às relações entre filosofia e ciência, que é buscar a
convergência, bem como os aspectos dissonantes, entre a proposta de Maritain e a
de van Fraassen, com relação à verdade científica, pois Maritain entende, como
vimos, que esta não somente não esgota o real em sua inteligibilidade própria,
como também dele se aproxima en bloc, isto é, por meio de um sistema maximal
de proposições cuja “verificação é realizada por uma correspondência estabelecida
entre o sistema de sinais que emprega e eventos mensuráveis experimentalmente
conhecidos”.
323
Por sua vez, van Fraassen propõe que este tipo de correspondência
seja levado a cabo por meio de modelos lógicos, dos quais podemos destacar
subestruturas empíricas que são isomorfas às estruturas de dados
experimentalmente obtidos. A relevância filosófica de se buscar essa aproximação
323
MARITAIN, 1995, p. 148.
Conclusão
248
consiste em mostrar a convergência entre a posição realista que podemos, sem
sombra de dúvida, imputar a Maritain -- à medida que este filósofo sustenta haver
dois tipos de conhecimentos genuínos da realidade, um de natureza empiriológica,
e outro de natureza ontológica; o primeiro, domínio específico da ciência, não é
capaz de esgotar a inteligibilidade metafísica da realidade natural, porquanto tal
esfera de inteligibilidade não lhe é própria, nem dela possui os instrumentos de
acesso apropriados --, e a posição empirista de van Fraasen, para quem a ciência
busca apenas este domínio quantitativo, ainda que nada se possa afirmar acerca do
real ele próprio, a não ser aquilo que é diretamente observável para nós
324
.
(2) Teoria hilemórfica e álgebra.
A consecução de um modelo algébrico para a estrutura metafísica dos
entes naturais passa por uma abordagem ao estatuto ontológico (ou metafísico) da
matéria, que não se identifica com a abordagem empiriológica (ou epistêmica) que
nos é oferecida pela ciência experimental. Com efeito, a matéria primeira,
fundamento radical da materialidade, não é um ente de razão ou construto
postulado pela mente humana visando compreender a realidade última das
mudanças essenciais que ocorrem na natureza, mas se trata de um ente real, ainda
que não se apresente espaço-temporalmente a modo de indivíduo, que permeia
todo o universo físico e é a razão mesma das dimensões quantitativas que se
manifestam a nós espaço-temporalmente como massa, energia e momentum. Por
isso, buscamos em Tomás de Aquino, segundo os diversos textos apresentados, as
razões que nos permitem estabelecer o estatuto metafísico da matéria, como ente
real, mas não individual, cuja essência é ser em potência, mas não absolutamente
falando, pois possui uma natureza operativa que a dispõe (ou apetece, na
linguagem do Aquinate) para as formas naturais, mediante as quais se nos
manifestam espaço-temporalmente os entes, quer sob a modalidade de indivíduos,
localizáveis ou dotados de movimento, ou ambas as coisas, quer sob a modalidade
de interações de campo, cuja individualidade e identidade ou é difícil ou
impossível precisar.
324
Cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 18-19.
Conclusão
249
Resulta então, e este é o nosso quarto resultado, que a matéria é ente em
potência e está dotada das razões seminais da corporeidade, que são as formas
elementares -- que não se deve confundir com os quatro elementos dos antigos
físicos ou filósofos da natureza, ar, terra, fogo e água --, as quais dão à matéria sua
natureza, e cuja composição e transmutação em seu interior permitem a edução
das formas naturais especificadoras. As formas elementares são, como nos afirma
Tomás, imperfeitíssimas
325
, porquanto se trata de formas seminais que
determinam o caráter entitativo da matéria primeira, sem que isto signifique uma
atribuição específica de ser, pois, neste caso, a matéria primeira não seria um
receptáculo de todas as formas naturais específicas, mas teria ela mesma uma
forma natural específica, não mais se constituindo num sujeito de todas as formas
e privações. Ou seja, em sua criação possuiu o mínimo de ser, dado haver sido
informada por aquelas diversas formas elementares nos diversos domínios de sua
essência. Ademais, tal informação significou a inserção simultânea das dimensões
quantitativas da extensão e da duração (mutabilidade e movimento) nas formas
elementares. Segue-se, portanto, não ser possível que a matéria tenha sido, desde
o início, desprovida de qualquer forma, senão que essas formas elementares que
lhe dão o ser não são as causas da diversidade específica dos entes, mas as razões
seminais tanto desta diversidade quanto da distinção numérica das formas
específicas, que é dada por meio da matéria segunda, ou matéria signata
quantitate, princípio da realidade natural espaço-temporalmente localizada
*
.
Um ponto fundamental é afirmar a realidade da matéria primeira, isto é,
que não se trata de uma abstração ou de um “ente de razão”, como expusemos,
mas de um constitutivo absolutamente radical dos entes naturais. Se for assim,
como fazer então para analisar seu conceito? Ora, o conceito de algo é um
universal que é extraído pelo processo de abstração, o que significa que a matéria
primeira deveria ter um caráter de inteligibilidade de tal ordem que nossa
inteligência seria capaz de abstrair do ente real matéria primeira suas notas
constitutivas, suas propriedades e atributos, por meio de um conceito universal.
Os universais são reais, eis uma fórmula reconhecidamente válida para Tomás de
Aquino. Destarte, teríamos de ser capazes de situar a matéria em algum gênero
325
Cf. TOMÁS DE AQUINO,
De Mixtione Elementorum, n. 9.
*
Como tivemos ocasião de expor, a propósito, nos diversos textos referenciados de Tomás de
Aquino.
Conclusão
250
lógico ou predicável, bem como lhe extrair uma matéria inteligível ou comum,
que é a matéria tratada pelas ciências experimentais, notadamente a física. Neste
caso, a matéria possuiria alguma individualidade, pois os predicáveis são
atribuídos aos indivíduos. Sabemos, porém, que a matéria primeira não é um
indivíduo, mas contém as razões seminais de todos os entes naturais, sendo sujeito
comum de todos os indivíduos materiais. Uma terminologia interessante para
caracterizar este estatuto sui generis da matéria prima foi dada pelos escolásticos,
materia ex-qua, a saber, substrato real e comum de todas as formas específicas
presentes na natureza e que são projetadas no espaço-tempo, em oposição a
materia in-qua, a saber, conceito que expressa aquilo que é projetado no espaço-
tempo. As formas elementares estabelecem de fato qual a natureza da matéria: é a
partir do ser mínimo do qual dotam a matéria primeira que são extraídas as formas
dos entes compostos
*
, bem como as formas substanciais mais simples da realidade
natural, que são aquelas que dão o ser aos compostos mais básicos da estrutura
dos corpos físicos. Essa tendência à formação dos corpos se manifesta em razão
das relações entre as formas elementares no interior da matéria, e é o fundamento
da potencialidade de tudo o que é eduzido
desta, desde os entes mais simples até
os compostos. Importantíssimo salientar que edução significa a obtenção de
formas substanciais
e que, portanto, todo o atual que se encontra na forma dos
compostos existia de modo virtual nas diversas formas elementares no interior
da matéria. A virtualidade implica estar presente a tulo de potência. Vale dizer,
no entanto, que, no interior da matéria primeira, as formas elementares não se
encontram presentes a título virtual, como estão na essência nos compostos
*
, mas
estão presentes atual e realmente, não significando essa atualidade algum ato
determinado ou específico.
Ora, a edução provê a existência de um ente no espaço-tempo que possui
uma composição de forma (substancial ou específica) e matéria (primeira), que se
*
Isto é, dos entes compostos por outros entes.
Eduzido é um termo técnico, como vimos, e significa que o que é extraído não é da mesma
natureza daquilo a partir do qual é extraído, nem tampouco se trata de uma criação, pois esta supõe
uma extração ex nihilo, que é exclusiva de Deus.
Cabe observar o seguinte: são eduzidas da potência da matéria primeira as formas dos entes mais
elementares da natureza, a saber, partículas e campos e, a partir destes, as formas dos compostos,
desde os mais simples, como os átomos, até os mais complexos, como as das formas corpóreas.
Para uma análise extensa e interessante desta distinção entre o nível corpóreo (macroscópico) e o
subcorpóreo (micro-físico), ver SMITH, 1995, p.1-42.
*
A essência dos entes naturais é uma composição real de matéria (prima) e forma (substancial).
Conclusão
251
denomina composição ou estrutura hilemórfica. Visto ser esta composição aquilo
que metafisicamente constitui a realidade sensível, e visto ser a matéria primeira
um dos princípios dessa composição, e estando a matéria dotada das estruturas
elementares da corporeidade, então este trabalho propõe uma álgebra que seja
consistente com a composição hilemórfica, ao mesmo tempo em que seja útil na
extração de conseqüências empiriológicas, auxiliares na investigação da realidade
natural.
Resulta então, e este é o nosso quinto resultado, que uma representação
consistente com a composição hilemórfica é dada por uma álgebra finita de
Clifford, chamada álgebra de Weyl, de dimensão
n
(ou com
n
holons), com dois
geradores (ou idempotentes) primitivos,
1
0
q
e
0
1
q
, que associamos à atividade e
passividade no interior da matéria, aos quais chamamos de reatores da potência ou
holoquarks. Os holoquarks relacionam-se com os elementos
jk
α
da álgebra, que
associamos às formas elementares, e aos quais chamamos de α-objetos ou α-
estados, segundo o contexto, caso designem um componente ou o resultado de
uma ação operativa. As formas dependem igualmente da relação entre os
holoquarks e a potência da matéria, à qual vinculamos um parâmetro real,
p
. Por
meio de duas operações básicas, composição e transmutação (ou metamorfose), a
álgebra propõe uma representação do que Tomás de Aquino indicava como
mescla das qualidades ativas e passivas presentes nas formas elementares,
responsáveis por uma transmutação própria da natureza (potencial) da matéria e
que possibilita a extração das formas naturais materiais. A álgebra também provê
dois ideais, à esquerda e à direita, capazes de gerar os elementos componentes da
álgebra e aos quais podemos associar espaços vetoriais discretos, bem como a
emergência de propriedades métricas nas formas eduzidas. Por meio da definição
conveniente de operadores a partir dos componentes da álgebra, podemos atribuir
localização e mutabilidade, segundo uma relação de ordem, entre os componentes
da álgebra, independentemente do uso de sistemas de coordenadas. Aliás, este é
um dos grandes trunfos, por assim dizer, da utilização de um modelo como o que
foi proposto, pois é independente de considerações de natureza geométrica. Visto
que a matéria primeira provê um suporte supra-espaço-temporal à realidade física,
que é ela mesma imersa no espaço-tempo, é desejável uma liberdade de vínculos
Conclusão
252
geométricos num primeiro momento. Por sua vez, o objeto
00
α
da álgebra indica
uma espécie de capacidade de conexão entre todos os α-estados da matéria, de tal
modo que podemos associá-lo a algum tipo de ligação difusa entre as formas
elementares.
Resulta então, e este é o nosso sexto resultado, que os ideais da álgebra
provêm certa dualidade natural de transmutação, que se reveste de um caráter
significativo, pois podemos associá-los a aspectos complementares, como
extensão e mutabilidade, ou, posteriormente e de modo mais específico, espaço e
momentum, tal que os aspectos complementares e duais da estrutura da matéria
sejam enfocados. As transmutações ou metamorfoses são obtidas por meio de
transformações de similaridade, as quais desempenham um papel fundamental na
álgebra, pois podemos associá-las à aquisição sucessiva de atributos quantitativos
e qualitativos por parte das formas elementares, a partir da potência da matéria,
conduzindo a um objeto ou estado final, que pode ser projetado no espaço-tempo.
Ainda que não tenhamos, por limitação de escopo, tratado da projeção e de
sua associação aos espaços duais, entendemos ser este um aspecto a ser enfocado
numa investigação mais detalhada e, portanto, que uma investigação futura pode
contemplar os componentes e espaços de projeção, aos quais talvez seja possível
associar a estrutura formal da álgebra geométrica proposta por Hestenes
326
. Além
do mais, um modelo algébrico que utilize outra álgebra finita de Clifford --
pensamos, por exemplo, no uso de
n
m
C
em vez de
2
n
C
, e, neste caso, teríamos de
prover uma interpretação distinta para os elementos da álgebra, dado que
passaríamos a ter
m
idempotentes primitivos em vez de 2 -- poderia ser rico em
conseqüências empiriológicas, devido à base estendida de geradores.
Cabe lembrar que o modelo proposto não pretende ser único, mas servir de
exercício a uma investigação conjunta entre metafísica e matemática em filosofia
da natureza. Assim, outro aspecto para investigação futura se refere a uma
formulação estocástica da natureza da matéria. Dizemos isto porque, embora a
álgebra seja um caminho concreto para a obtenção de resultados empiriológicos
interessantes numa primeira etapa, um segundo passo poderia ser o de dotar a
álgebra de algum tipo de modelagem probabilística, talvez representável por
326
Cf. HESTENES & SOBCZYK, 1987.
Conclusão
253
cadeias de Markov, nas quais cada α-estado seria, simultaneamente, dado por
elementos oriundos de composições e metamorfoses e associado ao α-estado
imediatamente anterior, do qual dependeria estocasticamente. Uma possibilidade,
então, seria a de que tivéssemos uma matriz de estados em vez de uma seqüência
de estados, à qual estariam associadas certas probabilidades.
Por fim, vale lembrar que a ênfase deste trabalho foi posta na matéria,
mas, se tomarmos como base os insights fornecidos por Edith Stein acerca da
forma, entendemos que uma natural continuidade da investigação da estrutura
algébrica da matéria, tendo em vista o a composição hilemórfica da realidade
natural, é a busca de modelos que dêem conta dos aspectos sintáticos e semânticos
presentes na forma.
(3) Conseqüências empiriológicas.
O modelo proposto de álgebra ontológica, isto é, da álgebra que possa
representar convenientemente a estrutura hilemórfica dos entes naturais, deve nos
conduzir não a conseqüências experimentais, pois este é o domínio das ciências da
natureza, mas a conseqüências de natureza empiriológica, isto é, de conexão
formal entre o modelo e as teorias, por meio da linguagem comum, que são os
modelos matemáticos, isto é, o domínio pertencente ao segundo grau de
visualização abstrativa, domínio da quantidade e próprio da matemática. Por isso,
apresentamos três conseqüências ou resultados da álgebra proposta:
(i) A primeira, como havíamos antecipado anteriormente, mostra que a
natureza do espaço-tempo se encontra profundamente associada aos ideais da
álgebra, posto que extensão e mutabilidade (duração) são aspectos metafísicos
presentes na matéria primeira desde sua criação. Ou seja, o espaço-tempo é a face
empiriológica de uma realidade metafísica, a matéria primeira. Portanto, ainda que
o espaço-tempo, estrutura formal dos fenômenos do mundo, seja um construto
matemático que provê a organização dos entes e a arena das interações entre eles,
está fundamentado metafisicamente nas formas elementares presentes na matéria
primeira, responsáveis não apenas pela edução dos componentes básicos da
realidade natural, mas pela edução mesma destes componentes sob as dimensões
da extensão e da duração, o que se nos afigura como espaço e movimento ou
espaço e tempo. Por conseguinte, é fundamental mostrar que podemos derivar a
Conclusão
254
ordem geométrica do espaço-tempo da ordem não-geométrica da matéria
primeira. Visto a álgebra proposta ser finita, a estrutura geométrica derivada não é
contínua, como requer a formulação relativística tradicional, que é a que utiliza
mais diretamente a conformação do espaço-tempo como um continuum, de modo
a prover uma dinâmica de interação para a realidade corpórea. No entanto, se
pode, pelo recurso de fazer com que
n
, obter as expressões usuais de
Fourier e Green para estruturas contínuas. Neste caso, infelizmente, parece perder-
se a intuição metafísica que orienta o modelo: o número finito de formas
elementares com as quais foi informada a matéria primeira, bem como as
composições e transmutações em seu interior. Também não é claro se devamos
passar ao continuum pelo recurso ao limite, pois Davies
327
nos apresenta
conseqüências empíricas relevantes do mesmo modelo algébrico finito, porém
aplicado à mecânica e cromodinâmica
*
quânticas. Essas questões podem ser
investigadas ulteriormente. Em nosso caso, julgamos suficiente apresentar o
modelo segundo ele possa atender antes à intuição metafísica que o orienta do que
atender à continuidade espaço-temporal, de natureza empiriológica. Vimos, na
exposição do capítulo segundo que, para comprimentos inferiores ao de Planck,
não está assegurada a continuidade do espaço-tempo. Poderíamos estimar o valor
do número de holons da álgebra, para efeito de obtenção de uma representação
contínua, por
,
26
61
35
10
10
10
n
= =
Ora, trata-se de um valor extraordinariamente elevado, mas a continuidade
pretendida, em termos práticos, ficaria assegurada; no entanto, como dissemos,
isso se faz em detrimento da intuição metafísica associada aos elementos da
álgebra. Uma característica importante do modelo é a presença de configurações
duais, como vimos, associadas aos holoquarks primitivos,
1
0
q
e
0
1
q
, e, por
conseguinte, a correlação entre posição e movimento, representada pelos
327
Cf. DAVIES, op. cit.
*
A cromodinâmica quântica se ocupa das interações presentes no núcleo atômico.
26
10
m
é a ordem de grandeza do “raio” do universo, e
35
10
m
é o comprimento de Planck.
Conclusão
255
operadores e espaços duais respectivos. A correlação permite obter
algebricamente um resultado relevante, a partir desses operadores não
comutativos, quando passamos ao limite,
n
: o princípio de incerteza de
Heisenberg. Pensamos que a investigação dos espaços duais com a utilização da
álgebra geométrica de Hestenes
328
pode ajudar a esclarecer melhor esse resultado.
(ii) A segunda conseqüência refere-se ao aspecto não local da álgebra,
dado que não se apresenta sob qualquer restrição espaço-temporal, o que é, de
fato, uma característica da matéria primeira. Vimos que o elemento
00
α
oferece
uma representação adequada de um aspecto da não-localidade em mecânica
quântica, o qual pode ser associado à forma de um potencial quântico sugerido por
David Bohm. Aliás, a associação de
00
α
com a forma de um potencial cuja
expressão matemática depende do laplaciano,
2
x
, com derivadas relativas a
posição, é uma decorrência da interpretação dada a um dos espaços duais, ao qual
associamos “posição”. No entanto, deve-se conduzir uma investigação que
busque esclarecer o papel desempenhado pelo elemento dual
00
β
. Estaria este α-
objeto associado a um operador de um tipo laplaciano,
2
p
, com derivadas
relativas a quantidade de movimento? De que forma? E que aspecto o-local
seria carreado por
00
β
? Certamente o par dual
(
)
00 00
α β
implica aspectos não
locais, como vimos; mas, o fenômeno da não-localidade tem sido abordado
basicamente segundo o aspecto posicional, a saber, partículas que interagem
permanecem correlacionadas à distância. No entanto, a existência do par dual
sugere que, além de uma correlação à distância, parece existir outro tipo de
correlação, cujo fundamento é o próprio movimento das partículas; isto é, o fato
de a mutabilidade estar presente na essência das formas elementares estabelece
uma correlação adicional, cuja natureza deve ser investigada.
(iii) Por fim, a terceira conseqüência empiriológica do modelo sugere a
convergência de abordagem entre o conceito de holomovimento proposto por
Bohm e a dinâmica da protomatéria. Todavia, o conceito de holomovimento não é
absolutamente equivalente à dinâmica da matéria primeira por uma razão
essencial, de natureza metafísica, pois o conceito de holomovimento é ele mesmo
328
Cf. HESTENES & SOBCZYK, 1987.
Conclusão
256
empiriológico, ou seja, se trata de um conceito que não visa à ontologia do real,
senão apropriar, numa outra ordem (a ordem implicada) que não é cartesiana, os
fenômenos naturais, especialmente os de natureza física. Porém, à medida que
busca uma outra ordem, e à medida que propõe que esta ordem seja ela mesma
supratemporal, então se aproxima, epistemicamente (ou empiriologicamente), da
natureza operativa da protomatéria. No entanto, o esforço de Bohm, drasticamente
afetado por sua morte em 1993, ainda não evoluiu o suficiente para retirar do
conceito as conseqüências empíricas que são demandadas de todo modelo de
natureza empiriológica. Contudo, alguns progressos conceituais descritos por
Hiley
329
com a utilização do modelo algébrico, especialmente no que se refere à
dinâmica do vácuo, vinculando-a ao holomovimento, sugerem que uma
investigação da associação protomatéria-holomovimento-vácuo pode levar à
extração de resultados interessantes, tanto de natureza metafísica como
empiriológica.
329
Cf. HILEYapud SAUNDERS & BROWN, op.cit.
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