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Gustavo Arantes Camargo
Nietzsche: por uma ética trágica
Tese de doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para a obtenção do título de Doutor em
Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Orientadora: Kátia Rodrigues Muricy
Rio de Janeiro,
Abril de 2008
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Gustavo Arantes Camargo
“Nietzsche: por uma ética trágica”
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo programa de
Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Kátia Rodrigues Muricy
Orientadora
Departamento de filosofia da PUC-Rio
Prof. Claudia Maria de Castro
Departamento de filosofia da PUC-Rio
Prof. Rosana Suarez
Departamento de filosofia da PUC-Rio
Prof. Maurício de Albuquerque Rocha
UERJ
Prof. José Nicolao Julião
UFRRJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de
Teologia e ciências Humanas – PUC-Rio
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial
do trabalho sem autorização do autor, da orientadora e da
universidade.
Gustavo Arantes Camargo
Graduou-se em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, PUC-Rio, em 2001. Ingressou no ano seguinte no mestrado
em filosofia pela mesma universidade, graduando-se como mestre em
fevereiro de 2004. Cursou doutorado em filosofia pela mesma
universidade apresentando este trabalho como tese de doutoramento.
Ficha Catalográfica
CDD: 100
Camargo, Gustavo Arantes
Nietzsche: por uma ética trágica / Gustavo Arantes Camargo ;
orientadora: Kátia Rodrigues Muricy. – 2008.
230 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Teses. 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-
1900. 3. Vontade de potência. 4. Ética. 5. Filosofia
contemporânea. I. Muricy , Kátia Rodrigues. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Filosofia. III. Título.
4
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a todos aqueles que estiveram comigo durante este período de
aprendizagem e experimentação, em especial à minha esposa Tatiana.
É preciso enfatizar o agradecimento à minha orientadora Professora Kátia Muricy pelo
acompanhamento e atenção indispensáveis para a realização deste trabalho, permitindo que
o tema fosse desenvolvido com plena liberdade sem que, por isso, faltasse com o rigor.
Em especial também à Professora Cláudia Castro, encontro feliz sem o qual eu não haveria
de ter ingressado em filosofia.
Aos demais professores que participaram da Comissão Examinadora.
À CAPES.
A você que lerá este trabalho.
5
Resumo:
Camargo, Gustavo Arantes; Muricy, Kátia Rodrigues. Nietzsche: por uma ética
trágica. Rio de Janeiro, 2008. 230p. Tese de doutorado – Departamento de
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Fazer a crítica da moral implica em pensar a filosofia que lhe dá o estatuto de
verdade. Implica em saber por que sempre se tentou estabelecer um determinado valor
moral como melhor do que outro. Desvendar o papel que filósofos e sacerdotes tiveram
neste processo é mais do que um trabalho de filosofia. A partir de um método genealógico,
Nietzsche trará para seu campo a psicologia (para pensar os afetos que se escondem por trás
dos valores), a filologia (para pensar a linguagem pela qual se faz acreditar na moral) e a
pesquisa histórica (para apresentar a história da moral e seu desdobramento
contemporâneo). Tamanha crítica se apresenta modernamente como a morte de deus, que
terá conseqüências em relação à falta de credibilidade da moral a partir de então. A hipótese
da vontade de potência, assim como a proposta do super-homem e o pensamento do eterno-
retorno são os pontos-chave daquilo que o filósofo apresenta como alternativa ao niilismo
de uma ausência de valores. A esta proposta chamaremos de ética.
Palavras-chave
Nietzsche; vontade de potência; ética; filosofia contemporânea.
6
Abstract:
Camargo, Gustavo Arantes; Muricy, Kátia Rodrigues (Advisor). Nietzsche: for na
tragic ethic. Rio de Janeiro, 2008. 230p. Tese de doutorado – Departamento de
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
For doing a critic of moral, Nietzsche first has made a critic of the idea of true,
because was that conception the ground of the moral. Nietzsche has looked for the whole
played by philosophers and priests in this history and made his genealogy of moral. This
work has a lot of different field like psychology (to found the affect behind the value),
philology (to know the whole played by the language) and history (to show the way the
moral has won and the problems of the contemporary world). This crisis of the
contemporary world is presented with some concepts like the death of god, nihilism, and
his ethic is understood by the overcoming of this situation with the concepts of will to
power, eternal recurrence and super-man.
Keywords:
Nietzsche; will to power; ethic; contemporary philosophy.
7
SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................. 9
1º. Capítulo: A condição trágica
1)Vontade de verdade ........................................................................................... 17
2)Verdade e moral em Humano, demasiado humano” ......................................... 22
3) Moral, verdade e instintos .................................................................................. 25
4) Perspectivismo e interpretação ........................................................................... 28
5) Essência da verdade? .......................................................................................... 38
6) Experiência e linguagem ..................................................................................... 41
7) O texto da realidade ........................................................................................... 47
8) A vontade de potência como hipótese interpretativa do texto da realidade ........ 52
9) O corpo como fio condutor .................................................................................. 56
10) Vontade de potência ........................................................................................... 66
11) A ética trágica da vontade de potência ............................................................... 75
12) Quem comanda? ................................................................................................. 86
2º. Capítulo: A história da moral
1) O método genealógico ......................................................................................... 96
2) A pré-história da moral ...................................................................................... 104
3) O uso da religião pelos ressentidos ou como o homem forte tornou-se fraco ....115
4) Cristianismo ....................................................................................................... 121
5) O ideal ascético como resposta à dor e à ausência de sentido ........................... 130
6) Morte de Deus e niilismo ................................................................................... 138
7) O espírito livre como experimento ..................................................................... 145
8) Os valores modernos e a nobreza de espírito ..................................................... 150
9) O eterno retorno como pensamento ético e doutrina seletiva ............................ 162
8
Conclusão .............................................................................................................. 170
Ensaio: Assim aprendi com Zaratustra .............................................................. 177
Bibliografia ............................................................................................................ 227
9
Introdução
Friedrich Nietzsche é conhecido como um filósofo que teve na questão da moral seu
principal tema, abordando os valores morais e sua influência na vida humana. Contudo,
Nietzsche não é mais um a buscar estabelecer as atitudes a serem consideradas boas e
corretas que propiciem o bem viver a todos. Sua filosofia tampouco tem por finalidade
conduzir o homem à virtude e ao bem comum. O rigor de seu pensamento filosófico o
levou a um caminho praticamente oposto ao dos tradicionais filósofos moralistas que já
existiram.
Nietzsche percebeu logo cedo, em seus pensamentos sobre religião e filosofia – era
filho e neto de pastores protestantes e pretendia seguir também o seminário – que, caso
quisesse paz de espírito deveria ter fé, mas caso quisesse a verdade, deveria inquirir,
perguntar.
1
A pergunta sobre a origem de nosso bem e nosso mal, pergunta chave de sua
filosofia, já o acompanhava desde que era um garoto de treze anos.
2
As respostas até então
apresentadas pelos filósofos e teólogos de toda história sempre possuíram um caráter moral
que desagradava a este jovem que viria a chamar a si mesmo de imoralista.
Ao invés de fundar valores específicos em patamares metafísicos, sejam estes
filosóficos ou teológicos, Nietzsche buscou a psicologia dos sentimentos daqueles que
postulavam tais valores. O quê quer a Igreja que diz que o bem, revelado por Deus, é isto e
aquilo? Ou, o quê quer Platão (ou Sócrates) quando diz que o filósofo deve comandar a
república, ou aonde quer chegar Kant com seu imperativo categórico?
A pergunta pela moral logo o fez se deparar com a questão sobre a legitimação dos
valores morais. O quê faz com que um determinado valor seja entendido como mais
importante do que outro? Como um determinado valor moral pode ser mais verdadeiro do
que outro?
Mais do que pensar os valores, Nietzsche fez um novo questionamento: buscou o
valor dos valores. Buscou saber por que um valor moral é tido como verdade, por que
precisa ser tido como verdade, valer como verdade. Perguntou ainda por que a verdade vale
mais do que o falso, uma vez que um não pode existir sem o outro e, talvez, a própria
1
Tal afirmação é feita por Nietzsche em carta enviada à irmã, 11 de junho de 1865 quando estudava em
Pforta.
2
Nietzsche, “Genealogia da moral”, Prólogo, 3.
10
verdade fosse, por que não, uma ilusão. Suas respostas vêm confirmar as suspeitas da
adolescência: a verdade e o bem não possuem uma ligação que os legitime de forma
absoluta.
Nietzsche, ao contrário do que se poderia esperar, não criou um sistema filosófico
para proteger suas idéias com este pomposo e poderoso nome: verdade. Ao invés disto,
dobrou a verdade à perspectiva pessoal e histórica de cada filósofo, mostrando que estes
apresentavam sua própria filosofia moral como se fossem verdades. Estaria aí a origem da
filosofia: a construção de edifícios teóricos do conhecimento tinha como objetivo último a
legitimação de determinados valores morais como verdade, tornando-os quase que
inquestionáveis. Seria preciso obedecê-los, sendo os filósofos ou os sacerdotes os únicos
advogados da verdade ou de Deus. É este jogo de poder que se esconde na luta pela
verdade. Contudo, para Nietzsche, tanto os valores como o suposto conhecimento são
criações, não podendo alcançar um estatuto universal. Nietzsche, identificando o filósofo a
um espírito livre, jamais aceitaria tais prisões.
Por sua vez, Nietzsche, com sua psicologia, entende ter desmascarado as intenções
que fazem com que filósofos e teólogos escondam suas argumentações em sistemas
metafísicos da verdade ou em mistérios inescrutáveis de Deus. Ao estabelecer o ponto
criador dos valores como sendo de ordem metafísica, tem-se a depreciação do mundo em
que se vive e do homem que nele vive. Se o valor dos valores morais é dado de antemão
por instâncias independentes do homem, instâncias às quais apenas uns poucos sábios ou
sacerdotes de uma religião específica teriam acesso, então se conclui que este mundo não
possui um valor de fato, uma vez que a verdade é revelada ou descoberta, mas pertence já a
outro plano. Este mundo torna-se uma ilusão quando comparado a um outro mundo onde
residiria a verdade do conhecimento moral e divino.
Por trás desta estrutura de pensamento que tem como finalidade a legitimação da
moral em um patamar supra-terreno, Nietzsche desvenda uma insatisfação com a vida por
parte desses moralistas de até então. Os valores pregados por estas filosofias e religiões
metafísicas sempre tiveram por princípio barrar e diminuir a força do homem. Por trás do
argumento da verdade ou de Deus sempre se escondeu uma filosofia moral que apresentava
valores que negavam a força e o esplendor do animal homem.
11
A genealogia da moral será exatamente esta pesquisa que realiza Nietzsche para
desvendar, a partir da própria história da moral, quais sentimentos moveram aqueles que
criaram morais absolutas. A moral possui uma história, isto quer dizer que os valores
morais vieram a ser, não existiram desde sempre e não são eternos ou absolutos. Dizer que
a moral possui uma história significa dizer que os valores foram criados pelos próprios
homens, isto é, em última instância, foram inventados. A idéia de que os valores morais são
criados traz consigo o fato de que as demais construções intelectuais do homem também
são criações, tornando difícil que sejam aceitas como verdades no mesmo sentido em que
eram anteriormente. A própria idéia de verdade terá que ser repensada, pois agora, temos a
idéia de que o homem é quem cria o conhecimento e este conhecimento, por ser criado, não
pode ser uma verdade. A não ser que se entenda a verdade como criação. Mas, neste caso,
seria ainda verdade?
Neste ponto entra também a questão da linguagem, pois seria a linguagem humana
capaz de apresentar algo que pudesse ser chamado de verdadeiro? Ou esta linguagem seria
apenas uma forma de mediação entre o homem e o mundo? Neste segundo caso, como
ainda falar de conhecimento e verdade se tudo o que se falar a este respeito, pelo simples
fato de já ser fala e de necessitar da linguagem, já seria uma relação antropomórfica? Seria
a verdade uma forma de relação criada pelo homem para tornar sua vida no mundo
possível? Relação esta, necessariamente mediada pela linguagem que, por sua vez, também
é uma criação? Estaria nossa crença na verdade calcada em uma crença na linguagem? E,
em ambos os casos, seria a verdade uma questão de crença? Como querer então que a moral
se apresente como verdade se, além de uma origem e uma história humanas, ela nem mais
possui a verdade e o conhecimento como aliados?
Sendo que o tema da moral é indissociável do tema da verdade, a primeira parte do
primeiro capítulo buscará apresentar a abordagem que Nietzsche faz desta relação. A
segunda metade do primeiro capítulo apresentará a hipótese propositiva de Nietzsche para a
questão do conhecimento a partir destas questões anteriores. Diante da dificuldade de se
estabelecer com clareza a verdade e o conhecimento, mas também diante da necessidade de
que algo possa ser chamado de verdade e conhecimento, Nietzsche apresenta sua hipótese
da vontade de potência.
12
Primeiramente, entendemos a teoria da vontade de potência como uma hipótese,
uma vez que o conhecimento parte sempre de uma perspectiva humana e é uma relação do
homem mediada pela linguagem, a teoria da vontade de potência não poderia se apresentar
de outra forma a não ser também como criação. Nietzsche não pretende que sua criação ou
hipótese seja tida como verdade por todos, ao contrário, vê um sinal de fraqueza neste
desejo. Nietzsche guardará para si o phatos da distância em relação a outras interpretações
sobre estes temas, mas não deixará de apresentar sua visão.
A vontade de potência aparece como interpretação para toda a realidade e também
para os impulsos volitivos. Para Nietzsche, tudo o que existe decorre de uma relação de
forças que expressam sua potência e resultam em tudo aquilo que há. A potência é algo que
se expressa a cada instante, não podendo não se expressar. A falta de expressão é
impotência, no sentido de que não há potencia para ser expressa. Neste sentido, tudo o que
existe é, de alguma forma, expressão de potência das forças em relação. Nietzsche vê um
caráter de crescimento em toda potência. Um caráter de querer tornar-se mais forte. Desta
forma, a vontade de potência é uma espécie de caráter intrínseco da força que consiste em
expressar toda sua potência a cada instante e de buscar sempre um aumento de potência.
Esta interpretação possui a vantagem de apresentar tanto as coisas quanto o homem
como sendo da mesma natureza, possuindo entre si apenas diferenças quanto à organização.
Esta interpretação traz consigo um caráter absolutamente amoral, pois não há um valor que
decorra necessariamente desta teoria. Assim, a determinação dos valores morais se torna
uma questão humana e será preciso levar em conta os desejos e os afetos do homem ao se
pensar a moral, uma vez que são esses desejos e afetos a grande forma de manifestação da
vontade de potência no homem.
Nietzsche parte do corpo humano, de seus impulsos e instintos, para formar sua
teoria da vontade de potência, onde tanto no homem quanto nas demais coisas da natureza
esta força se expressaria em todo seu caráter. A expressão da potência por si mesma é algo
absolutamente amoral, é uma característica inextirpável de tudo aquilo que é. O que a moral
sempre tentou fazer foi apresentar essa expressão como sendo algo moralmente ruim e,
desta forma, tentou sempre limitar o alcance das forças do homem. Mais uma vez Nietzsche
escancara o caráter depreciador que toda moral traz consigo; qualquer valor moral que se
tenha por absoluto ou por melhor que outro visa, por trás desta máscara, fortalecer ou
13
enfraquecer um determinado tipo de vida. Para Nietzsche, a moral sempre buscou enaltecer
valores que negavam a força instintiva do homem, fazendo com que este se sentisse
culpado de seus próprios desejos e de sua própria força. Por isto a moral é entendida como
algo que se dirige contra a vida. A vontade de potência, por sua vez, apresenta uma
hipótese amoral de compreensão da realidade, onde esta não segue um caminho
predeterminado em direção a algo como o bem. Desta forma, a realização da vontade é
entendida como algo não somente natural como também desejável e não se desdobrará em
uma moral.
Contudo, a liberação frente a moral e a abertura para a realização dos próprios
desejos e impulsos não é um caminho simples. O homem está a mais de dois milênios
enredado em uma trama moral e religiosa e há muito já desaprendeu a ouvir a si mesmo.
Mais do que isto, o homem possui um passado animal selvagem e este bicho-homem ainda
se encontra presente no interior de cada um. O homem é um animal extremamente
interessante devido ao fato de que, por um lado se assemelha aos demais animais e possui
instintos tão fortes quanto os destes, por outro, possui também consciência destes instintos
e é capaz de fazer um juízo sobre eles. O fato de refletir sobre suas ações e sobre as
conseqüências das mesmas faz com que o homem produza representações sobre aquilo que
deseja e considera melhor para si. Mas, tais representações não impedem que uma vontade
antagônica apareça em algum momento e ponha tudo a perder. Associado a isto está o fato
de que é perfeitamente possível, ou melhor, é a regra, os instintos se contraporem uns aos
outros. Em um momento um aparece mais forte, mas em outro momento pode ser seu
antagônico. De maneira que, ora queremos uma coisa, ora queremos outra, e depois,
tornamos a querer a primeira e nos arrependemos de ter feito a segunda. O homem é
tomado, ao mesmo tempo ou em momentos diferentes, por instintos antagônicos que o
levam, não raras vezes, ao desespero. O quê fazer? Qual vontade seguir? Para Nietzsche,
esta decisão está longe de ser racional e o fato de se ter consciência, a posteriori, da ação
tomada, não é motivo para torná-la racional. Quem decide é a potência. Qual o instinto
mais forte? É este que manda, foi este quem dominou todos os outros e fez com que a
suposta unidade homem agisse de tal ou qual modo. A vontade mais forte age “justamente
como instinto dominante, que impôs suas exigências a todos os demais instintos – ela o faz
14
ainda; não o fizesse, não dominaria. Não há nenhuma ‘virtude’ nisso, portanto.
3
A questão
aqui, assim como em todas as demais, é sempre: qual é a vontade mais potente. Neste ponto
a teoria da vontade de potência desdobra-se em ética ao criar uma filosofia que fortaleça os
instintos afirmativos até que eles vençam sempre todos os demais.
A liberação frente a moral não é algo simples e seguro, ao contrário, quando não
mais se possui os tradicionais valores morais que são seguidos e respeitados pela grande
maioria, o homem se encontra pela primeira vez diante de si mesmo. Terá que aprender a
lidar com seus desejos e com toda sua força de uma maneira amoral, terá que ser capaz de
criar seus próprios valores a partir de seus próprio íntimo e será o juiz de si mesmo. Este
caminho é mais difícil, pois além de não se ter mais os parâmetros comportamentais
anteriores, não se tem sequer a quem recorrer, uma vez que somente você pode tornar-se si
mesmo. Esta opção não significa também a realização desenfreada de qualquer mínimo
desejo, ao contrário, Nietzsche vê este entregar-se a qualquer impulso como sinal de
incapacidade para o domínio de si.
A busca será então por fortalecer a si mesmo e aprender a criar os próprios valores.
Esta criação dos próprios valores deverá levar em conta os impulsos mais íntimos sem que
esta liberdade venha a se perder em descontrole. Será a este processo amoral de tornar-se si
mesmo a partir dos próprios impulsos e desejos do corpo a que chamaremos de ética. O
adjetivo trágica se deve à ausência de fundamento metafísico para esta proposta. A
condição trágica que Nietzsche nos apresenta é a condição de uma cultura que vê
desmoronar tudo aquilo em que acreditou durante milênios e vive esta ausência inicial de
valor. A ética trágica é a proposta afirmadora da vida que Nietzsche opõe ao niilismo de
uma ausência de valores.
***
O segundo capítulo apresenta em sua primeira parte a história da moral, feita de
forma genealógica, método que será trabalhado logo no início. Nietzsche mostrará como a
moral da negação de si mesmo foi sendo construída e com quais objetivos. Esta parte deste
capítulo tem a importância de fortalecer as compreensões feitas no capítulo anterior sobre a
moral, além de apresentar os desdobramentos modernos desta crítica.
3
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 8
15
Diante de uma genealogia da moral, a metafísica não mais se sustenta, ocasionando
o que Nietzsche chamou de morte de Deus e sua conseqüência, o niilismo. A crítica que
Nietzsche faz à moral e à religião termina por se desdobrar na impossibilidade de se
continuar acreditando nas antigas respostas para a questão dos valores e do sentido. Se não
há sentido metafísico para a existência, isto é o mesmo que dizer que não há justificação
possível que não tenha sido criada pelo próprio homem. Isto nos faz duvidar de qualquer
sentido possível, pois se o sentido é criado, então qualquer um poderia criar um sentido. E
isto seria verdade se não fosse o fato de que muitos são incapazes de conferir um sentido à
própria existência Se a existência tem o sentido que se lhe confere, então ela não possui
sentido algum. Isto somente é certo caso se considere este último sentido enquanto um
sentido metafísico. A crítica de Nietzsche aponta para esta ausência de sentido moral
absoluto para a existência, situação esta que tende a causar um enorme sentimento de vazio,
uma vez que o papel das filosofias e religiões sempre foi o de conferir esta espécie de solo
seguro sobre o qual erguiam-se os fundamentos da existência. A partir do momento em que
a vida não possui mais uma razão absoluta que justifique toda possível dor e dificuldade
que apresente, o homem pode se sentir desamparado. Morte de Deus é o nome dado por
Nietzsche a esta perda de credibilidade dos valores mais respeitados, que eram tidos por
absolutos e que agora são tidos por criação. Nietsche chamará de niilismo ao sentimento de
vazio que pode nascer a partir da morte de Deus e da descrença em fundamentos absolutos
para a moral e para o conhecimento.
Diante desta postura niilista face à morte de Deus, Nietzsche se vê forçado a criar
seus próprios companheiros: são os espíritos livres. Para os espíritos livres, a morte de
Deus está longe de ser um problema, ao contrário, eles encontram aí sua grande felicidade,
encontram aí o seu grande direito à existência e a qualquer experiência. Todas as
existências são permitidas e, portanto, possíveis quando não há mais um valor absoluto a
ser obedecido. Neste sentido, o homem pode fazer o que quiser, basta que isto esteja ao
alcance de sua potência. Com o fim da metafísica, o homem se tornou limitado apenas pela
sua própria potência. Ética será o trabalho de transformação desta liberdade em algo
realmente grandioso.
Contrário ao niilismo causado pela morte de Deus, Nietzsche vê que apenas agora
se torna possível criar um sentido de grandeza para o homem, um sentido que leve em
16
conta as propensões naturais do mesmo e que somente assim poderá fortalecê-lo. Depois de
dois milênios de moral contra a vida, Nietzsche descortina a possibilidade de se criar um
sentido verdadeiramente afirmativo para a existência: o super-homem. O homem não mais
se encontra limitado pela moral, sua limitação é apenas a de sua potência, aquilo que ele
pode. Não sabemos ainda o que pode o homem. É neste sentido que Nietzsche lança a seta
do super-homem para além do homem. O homem pode se desenvolver e crescer até pontos
ainda não vislumbrados. Este crescimento pode ser tão grande que chegue ao ponto até
mesmo de se falar em algo diferente do homem, algo maior, algo além do homem. O super-
homem aparece então como ideal ético que visa a grandeza da vida do homem, grandeza
esta apenas possível a partir da morte de Deus.
O livro “Assim falou Zaratustra” apresenta, em nossa interpretação, exatamente este
ideal de grandeza para o homem através de seu personagem principal, um eremita, que vem
aos homens para trazer-lhes este ensinamento. Todo este livro narra os caminhos deste
andarilho por entre os homens com o único objetivo de desviá-los da moral e direcioná-los
para a ética. Entendemos o livro “Assim falou Zaratustra” como um livro de ética, onde o
protagonista apresenta os principais pontos de toda filosofia de Nietzsche. Quando
Zaratustra se dirige à praça pública e é mal recebido, percebe que tem de se afastar.
Zaratustra buscará companheiros a quem possa falar ao coração. Estes companheiros serão
os primeiros aprendizes deste ensinamento que é o super-homem. Este ensinamento será o
ensinamento da grandeza possível apenas a partir do cultivo de si e do tornar-se si mesmo.
Ponto chave na ética de Nietzsche. Devido a este papel fundamental de “Assim falou
Zaratustra” em nossa compreensão da filosofia de Nietzsche como ética, este trabalho traz,
por fim, em apêndice, um ensaio interpretativo da magnum opus de Nietzsche.
Apresentamos este texto em forma de ensaio, pois entendemos que qualquer tentativa de
abordagem desta obra se mostrará superficial e excessivamente incompleta, dado sua
enorme complexidade e a enorme erudição do autor. Pensamos ser este também um bom
formato uma vez que o próprio texto de Nietzsche é bastante poético e livre. O ensaio
aparece como apêndice uma vez que necessita de todo o trabalho anteriormente feito na
tese como fundamentação e base teórica. Entendemos que este apêndice vem a confirmar a
existência de uma ética como eixo central da filosofia de Nietzsche ao apresentar os
ensinamentos de Zaratustra como ensinamentos éticos.
17
1º. CAPÍTULO:
A CONDIÇÃO TRÁGICA
1) Vontade de verdade
A questão da verdade será sempre um dos focos centrais das investigações de
Nietzsche. Isto se deve à relação indissociável que sempre esteve presente na história da
filosofia entre a busca da verdade e o pensamento moral. Nietzsche inicia sua crítica
questionando aquilo que chama de dogmatismo, entendendo este como a fundamentação
metafísica sobre uma verdade moral. Para o filósofo, “o pior, mais persistente e perigoso
dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem
em si”.
4
Para Nietzsche, os piores erros que a filosofia pôde e pode ainda cometer são:
aceitar a existência de uma natureza humana pré-cultural e postular alguma regra moral
como boa por si mesma e, portanto, como absoluta. Ora, parte importante de seu trabalho
filosófico será, justamente, apresentar uma história da formação do homem para além de
sua pré-história e uma história do aparecimento dos valores morais. Ambas as tarefas
desempenhadas emGenealogia da moral”. Porém, tais histórias passam, antes, pela crítica
da noção dogmática e metafísica de verdade. Assim, em “Além do bem e do mal”, livro
preparatório para a “Genealogia da moral”, Nietzsche dá um passo decisivo em sua crítica
da verdade dogmática.
A primeira pergunta que Nietzsche faz é: por que a verdade? Por que os filósofos de
todos os tempos buscaram esta e não outra questão? Por que o chamado impulso ao
conhecimento se direciona quase que espontaneamente para a verdade? – A este impulso
em direção à verdade, Nietzsche dá o nome de vontade de verdade. Com estas perguntas
coloca-se em questão não apenas a veracidade de uma proposição, o que mais se diferencia
nesta nova abordagem é a pergunta pelo valor da verdade. “O problema do valor da
verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós a nos apresentar diante dele?”
5
Por
que a verdade valeria mais do que a inverdade?
4
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, Prólogo.
5
Ibid., 1.
18
Mantendo uma perspectiva crítica em relação aos “metafísicos de todos os
tempos”
6
, Nietzsche diz que o principal erro daqueles que procuram a verdade é pressupor
que as coisas que mais valorizam não poderiam derivar desde mundo sensível, considerado
enganador e fugaz. Ao contrário, deveriam possuir uma origem própria, isto é, única,
absoluta, inquestionável, diretamente de algum ponto último que lhes servisse de
fundamento, algo como uma coisa em si, um deus oculto ou o seio do ser.
7
Nietzsche
chama de preconceito dos filósofos a este modo de pensar a origem dos valores e diz que
este preconceito não passa de uma crença. “(...) é a partir desta sua ‘crença’ que eles
procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de
‘verdade’”.
8
A crença é que a verdade tão procurada não poderia ser algo da ordem das
experiências fenomenais, devendo pertencer a um outro mundo situado para além do
sensível. A verdade dogmática aparece ligada e dependente da crença em um “mundo
verdadeiro” por trás da “aparência”.
Contrariando esta tradição, Nietzsche entende que a vontade de verdade decorre de
uma vontade de engano. A vontade de engano seria a necessidade de se alçar um
determinado valor à categoria de verdade para fazê-lo mais forte e mais poderoso a fim de
que se possa acreditar nele. Entretanto, como este valor foi criado historicamente, é um
engano tê-lo por verdade. A verdade em que se acredita nada mais é do que a crença na
veracidade de um engano. Aquilo a que se chama de verdade não retiraria sua validade de
seu pertencimento a uma outra ordem metafísica inatacável, ao contrário, a crença em que a
verdade pertence a uma tal ordem é que a torna inatacável, contudo isto não passa de uma
crença.
“‘Verdade’: em minha maneira de pensar, a verdade não significa necessariamente o
contrário de um erro, mas somente, e em todos os casos mais decisivos, a posição
ocupada por diferentes erros uns em relação aos outros: um é, por exemplo, mais
antigo, mais profundo que outro; talvez mesmo inextirpável, se um ser orgânico de
nossa espécie não puder dele prescindir para viver;”
9
6
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 2.
7
Ibid., 2.
8
Ibid., 2.
9
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 38 [4] A tradução dos textos em línguas estrangeiras foi feita por mim
quando a tradução brasileira não aparecer citada.
19
Se a verdade é criada, então ela é uma espécie de erro. Uma verdade é apenas um
erro mais aceito pela moral, talvez por ser um erro necessário. Vemos que, mesmo
criticando a abordagem metafísica, é preciso enganar-se sobre a existência da verdade, é
preciso acreditar na verdade, valorizá-la, pois este engano talvez seja necessário para a
existência de uma espécie como a nossa. É impossível viver sem representações valorativas
e lógicas, neste sentido, a vontade de verdade, isto é, a busca e valorização da verdade
acima da ilusão, seria uma forma de autopreservação, e possuiria uma função reguladora.
Toda moral e também o “conhecimento” produzido pelo homem, na medida em que é,
justamente, produção, é uma criação, não podendo participar da idéia metafísica de
verdade. Contudo, a transformação da invenção (erro) em verdade reside na necessidade de
se acreditar em algo inventado como se fosse uma verdade absoluta, somente assim se
poderia acreditar em um erro. Esta necessidade é uma necessidade vital.
“Uma proposição tal qual ‘duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si’ pressupõe: 1)
as coisas 2) as igualdades: nenhuma nem outra existem. Mas, graças a este mundo fictício e
fingido de nomes e conceitos, o homem adquire um meio de dominar massas enormes de
fatos com ajuda de signos e os inscreve em sua memória. Este aparelho de signos constitui
sua superioridade justamente porque lhe permite se distanciar ao máximo dos fatos
particulares. A redução das experiências aos signos e a massa cada vez maior de coisas que
podem ser apreendidas: eis sua força suprema.”
10
Para Nietzsche, até mesmo a lógica é uma ficção
11
, uma vez que decorre de um
longo processo de desenvolvimento histórico, não sendo, portanto, uma categoria inata do
sujeito. O instrumental lógico racional é necessário, mas não é inerente ao homem e muito
menos sua origem estaria situada fora da experiência. A própria razão veio-a-ser, ela possui
uma história. Esta compreensão dificulta a afirmação de que ela seria capaz de alçar o
homem a um patamar verdadeiro para além da experiência sensível, uma vez que a razão
devém da própria experiência sensível. A razão e a lógica aparecem como instrumentos
necessários no desenvolvimento de uma civilização, mas, filosoficamente, as conclusões
por elas tiradas não podem adquirir valor absoluto sobre os demais juízos.
“A aberração da filosofia se deve ao fato de que ao invés de ver na lógica e nas categorias
da razão os meios de acomodar o mundo a seus fins utilitários (então, ‘por princípio’, de
10
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 38 [131]
11
Id., “Além do bem e do mal”, 4.
20
uma falsificação utilitária), acredita-se ver aí o critério da verdade ou da ‘realidade’. O
‘critérium da verdade’ é apenas a utilidade biológica de um tal sistema de falsificação por
princípio: e como uma espécie animal não conhece nada mais importante que sua
preservação, poder-se-ia de fato falar aqui de ‘verdade’. Mas, a inocência seria de tomar a
idiossincrasia antropocêntrica por medida de todas as coisas, por linha divisória entre o
‘real’ e o ‘irreal’.”
12
Meios para uma falsificação utilitária, este é o alcance da lógica. Mas, com isto, crer
ser possível divisar o que é real e verdadeiro do que é falso e ilusório é uma idiossincrasia
antropocêntrica tão grande que se tornou a aberração da filosofia. Seria impossível qualquer
vida para além da mais primitiva sem que essas ilusões sejam entendidas enquanto
verdades por um grande número de homens. Mas, longe de tais compreensões serem uma
verdade tal qual a metafísica a define, não passam de invenções, ou mitologia. “Somos nós
apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o
número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas
esse mundo de signos, como algo ‘em si’, agimos como sempre fizemos, ou seja,
mitológicamente.”
13
A importância em separar as construções históricas de um patamar
metafísico reside em que somente assim pode-se questionar aquilo que se chama de
verdade. Uma verdade inquestionável torna-se uma regra e a relação entre moral e
conhecimento verdadeiro pode tornar obrigatório o cumprimento de uma regra de conduta.
Tomar todos os edifícios teóricos nos quais se sustenta toda a comunicação e
sociabilidade como construções e não como verdades significa afirmar a maior necessidade
da falsidade para a vida, uma vez que tais construções são interpretações, falsificações. Por
isto, Nietzsche pode dizer “que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida,
negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida,
enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se
atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isto, além do bem e do mal”.
14
Na medida em que se
acredita na ilusão como se fosse uma verdade, e nessa crença reside a condição de
possibilidade do homem, temos que a ilusão e o engano são mais importantes do que a
verdade. Por isto, Nietzsche define como preconceito moral o fato de que a verdade tenha
um maior valor do que a aparência. “Não passa de um preconceito moral que a verdade
12
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [153]
13
Id., “Além do bem e do mal”, 21.
14
Ibid., 4.
21
tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição mais mal demonstrada que já
houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em
avaliações e aparências perspectivas; (...)”
15
A vontade de verdade e a vontade de engano são a mesma vontade, só que
observadas de duas perspectivas diferentes. A vontade de verdade é a busca metafísica por
um fundamento último para o conhecimento, é acreditar que através da razão e das
construções intelectuais se atinge uma espécie de verdade primordial. A vontade de engano
é a maneira como Nietzsche enxerga esta vontade de verdade. O filósofo entende a razão e
as demais construções intelectuais como construções históricas – e, neste sentido, são
chamadas de aparência ou ilusões, usando aqui a mesma linguagem da metafísica – mas
entende que há uma necessidade de se acreditar em tais aparências como se fossem
verdades. Esta é a ilusão necessária que Nietzsche chama de vontade de engano. A vontade
de verdade, a busca da verdade e a crença nesta verdade decorrem da necessidade de se
acreditar nas construções históricas e culturais, ou seja, decorre da vontade de engano.
Partindo desta argumentação, Nietzsche pode dizer que o mais importante na
avaliação de um juízo não é sua consideração enquanto verdadeiro ou falso, mas sim, “em
que medida ele promove ou conserva a vida (...)
16
. Não se trata de uma tentativa de
impossibilitar o processo cultural e social. O que nos parece mais interessante nesta
compreensão são suas conseqüências libertadoras em relação às conseqüências limitadoras
do dogmatismo. Apenas saber que as “verdades morais” são representações, já é algo
suficiente para uma diminuição de toda coerção e efeito de poder que acompanha todo
discurso de verdade. No fundo da filosofia de Nietzsche esconde-se uma grande liberação,
para que outras possibilidades de vida que, a princípio, não se enquadrem em um quadro
moral específica, sejam aceitas. Ao invés de usar o “conhecimento” como argumento em
favor de seus próprios preconceitos, pode-se ter a vontade de saber não como oposta à
vontade de engano, mas como seu refinamento.
17
15
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 34.
16
Ibid., 3.
17
Ibid., 24
22
2) Verdade e moral em Humano, demasiado humano
Humano, demasiado humanoé apenas o segundo livro de Nietzsche. As posturas
mais conhecidas e também mais polêmicas costumam ser relacionadas ao período final de
sua produção. No entanto, entendemos que idéias muito importantes de sua filosofia já
estavam bem delineadas mesmo nesta época, fazendo com que não seja necessário, a não
ser em caráter didático, dividir sua obra em períodos bem demarcados por diferenças
radicais de compreensão. As diferenças entre os livros existem e mostram o caminho de
pensamento percorrido pelo autor, mas não apresentam nenhuma quebra significativa.
Neste livro, tem-se que o tratamento da questão da verdade e da moral já contém o germe
daquilo que será decisivo mais adiante.
Logo no primeiro aforismo deste livro com o qual Nietzsche se considerou liberto
de tudo aquilo que não pertencia à sua natureza
18
, já se pode ver a distinção que o filósofo
quer para si em relação à filosofia de até então. Ao observar como se buscou responder a
questão acerca da origem da verdade e da moral, percebe que a filosofia a qual chama, já
neste momento, de metafísica supõe “para as coisas de mais alto valor uma origem
miraculosa, diretamente do âmago e da essência da ‘coisa em si’”.
19
Como se aquilo que se
entende por verdade e aquilo que se avalia como bom já existisse desde sempre e que fosse
apenas acessado pelo filósofo. Nietzsche opõe a esta filosofia metafísica a filosofia
histórica, que seria uma espécie de um novo método filosófico. Vemos aqui de forma bem
clara o deslocamento que Nietzsche propõe no pensamento sobre a questão da verdade e da
moral. Estas não mais seriam algo a ser encontrado em um outro patamar transcendente,
mas pertenceriam à história. A filosofia histórica de “Humano, demasiado humano” é o
embrião da genealogia. Alguns anos mais tarde, Nietzsche confirmaria este pensamento:
“Assim, a verdade não é uma coisa que estaria lá a encontrar e a descobrir, – mas algo que
está por criar e que dá o nome a um processus
20
.
Uma vez que o estabelecimento do conhecimento moral não mais é pensado a partir
do acesso a uma verdade metafísica que esclareceria o que é o bem, como se poderia então,
pensar as questões morais? Nietzsche buscará, inicialmente, encontrar a resposta na ciência.
18
Nietzsche, “Ecce Homo”, pág 72.
19
Id., “Humano, demasiado humano”, 1.
20
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [ 91]
23
Esta será uma forma de deslocar o foco da metafísica para a vida e para o corpo, deslocar
do plano supra-sensível para o plano sensível. Mas a própria menção à ciência aparece
como metáfora do que será mais bem denominado futuramente como psicologia e
fisiologia.
“Tudo o que necessitamos, e que somente agora nos pode ser dado, graças ao nível atual de
cada ciência, é uma química das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos,
assim como da todas as emoções que experimentamos nas grandes e pequenas relações da
cultura e da sociedade, e mesmo na solidão: e se essa química levasse à conclusão de que
também nesse domínio as cores mais magníficas são obtidas de matérias vis e mesmo
desprezadas?”
21
Nesta época, o deslocamento para a ciência é uma forma de rompimento com a
metafísica. Posteriormente, Nietzsche criticará a ciência, pois esta terá se tornado a nova
fiadora da verdade metafísica que havia perdido seu crédito. Entretanto, o que interessa
aqui, neste deslocamento da metafísica para a química, é que não mais se trata de entender
o homem enquanto uma natureza estática e eterna, onde a posse de razão seria a principal
característica capaz de encaminhar tal homem à verdade e ao bem. Ao contrário, o que
Nietzsche quer é que se busque compreender a moral no âmbito dos sentimentos e das
emoções, como bem atesta a passagem. Apenas a busca pelo que há de humano, demasiado
humano nas questões morais será capaz de fornecer indicativos para que se compreenda tal
questão de uma nova maneira, uma maneira não metafísica, não preconceituosa. A moral
deixa de ser uma regra proveniente do conhecimento do verdadeiro bem e se torna uma
representação decorrente de sentimentos e emoções. Dizer que a moral é uma representação
significa dizer que ela não provém de um conhecimento que se possa chamar de verdade. A
forma de buscar a origem humana da moral será a história. Aqui, o que se torna importante
pensar é como que a verdade poderia advir de um processo histórico? Com esta forma de
abordagem da questão, Nietzsche modificará o próprio conceito de verdade.
Não se trata, necessariamente, de negar o mundo metafísico. Mas, assim como não
se pode negá-lo absolutamente, também não se pode afirmá-lo absolutamente. Sua
existência é apenas uma possibilidade difícil de provar. A crítica à filosofia estaria no fato
de fundamentar toda moral e “felicidade” humana em uma hipótese pouco provável. “Então
21
Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 1
24
resta ainda aquela possibilidade; mas com ela o se pode fazer absolutamente nada, muito
menos permitir que felicidade, salvação e vida dependam dos fios de aranha de tal
possibilidade. Pois do mundo metafísico nada se poderia afirmar além do seu ser-outro, um
para nós inacessível, incompreensível ser-outro; seria uma coisa com propriedades
negativas”.
22
O que Nietzsche já tem claro para si desde este momento é que a fundamentação
metafísica da moral possui uma história, isto é, ela veio a ser. Os homens, em determinado
momento, criaram estas fundamentações e acreditaram que com elas tinham obtido a
verdade sobre o bem e o justo. Um bem e um justo imutáveis, não um bem e um justo
criados. Nietzsche buscará saber como surgiram estas fundamentações e avaliações, quais
os impulsos que guiaram os homens na construção de tão complexos edifícios do
pensamento.
“Logo que a religião, a arte e a moral tiverem sua gênese descrita de maneira tal que possam
ser inteiramente explicadas, sem que se recorra à hipótese de intervenções metafísicas no
início e no curso do trajeto, acabará o mais forte interesse no problema puramente teórico da
‘coisa em si’ e do ‘fenômeno’. Pois, seja como for, com a religião, a arte e a moral não
tocamos a ‘essência do mundo em si’; estamos no domínio da representação, nenhuma
‘intuição’ pode nos levar adiante”
.
23
O estudo histórico sobre a verdade e a moral mostrará que elas surgem a partir de
processos sociais desenvolvidos pelos homens. Tais processos criam as regras cujo
cumprimento se torna exigido por um grupo social, tornando-se uma moral, esta moral, por
sua vez, tenta se legitimar através de um discurso de verdade. A pesquisa histórica de
Nietzsche nega a existência de verdades metafísicas no âmbito da moral. Mais do que isto,
a moral deixa de ser um conhecimento sobre a verdade e se torna uma representação. Dizer
que a verdade e a moral têm uma gênese histórica, significa dizer que foram criadas pela
vida, não sendo, portanto, um conhecimento absoluto e sim criação.
22
Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 9
23
Ibid., 10
25
3) Moral, verdade e instintos
Ao mostrar a necessidade que o homem tem de acreditar em suas próprias
construções intelectuais, Nietzsche inicia o processo de investigação em busca do impulso
que move a filosofia em direção à verdade. Quer encontrar o por quê de uma ligação tão
forte entre verdade e moral. A verdade sempre foi o argumento mais forte em favor dos
valores morais. Uma vez que estes se encontravam justificados por ela, seria difícil
questioná-los. Ter-se-ia, então, uma relação de poder e dominação como motor para a busca
da verdade ao invés de um impulso para o conhecimento?
Longe de aceitar a busca pela verdade como o motor principal da filosofia,
Nietzsche entende que a filosofia nada mais seria do que uma forma de justificar e
fortalecer determinadas intenções morais. Desta forma, o argumento de verdade é usado
como fachada pelos filósofos
“quando no fundo é uma tese adotada de antemão, um idéia inesperada, uma ‘intuição’, em
geral um desejo íntimo tornado abstrato e submetido a um crivo, que eles defendem com razões
que buscam posteriormente – eles são todos advogados que não querem ser chamados assim, e
na maioria defensores manhosos de seus preconceitos, que batizam de ‘verdades’—”
24
Buscar razões para defender seus próprios preconceitos morais e com isto chamá-los
de verdades, eis “os truques sutis dos moralistas e pregadores da moral.”
25
As construções e
sistemas filosóficos seriam artimanhas para fazer com que determinados valores morais
sejam tomados por verdade e conhecimento. Nietzsche nos mostra que toda grande filosofia
foi até o momento “a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias
involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais)
de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira.”
26
Ou seja, toda a construção de enormes edifícios conceituais com o intuito de se apresentar a
verdade das coisas esconde, por trás desta fachada de teoria do conhecimento, uma intenção
de fazer com que os valores morais do filósofo construtor de tal edifício tornem-se
incontestáveis. A “metódica da verdade o foi inventada por motivos de verdade, mas por
24
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 5
25
Ibid., 5
26
Ibid., 6
26
motivos de potência, de querer-ser-superior.”
27
Fica claro o desejo de dominação por trás
da aparente neutralidade e desinteresse filosóficos, pois se trata de legitimar determinadas
condutas e de impedir outras. O argumento chama-se verdade. A valorização da verdade
permite que se force a aceitar determinados valores morais como bons e outros como ruins.
A legitimação da coerção daí decorre.
Sendo assim, Nietzsche recomenda que diante de uma filosofia seja sempre preciso
perguntar “a que moral isto (ele) quer chegar?”
28
Contrariando a idéia de que o impulso ao
conhecimento seja o pai da filosofia, Nietzsche afirma que este pai seria, justamente, a
intenção moral que se esconde ou se revela em cada filosofia. Mais do que isto, por trás
destas intenções morais atuam os instintos básicos da vida de cada filósofo. Nietzsche dá,
assim, um passo a mais nesta forma histórico-psicológica de investigação que será chamada
de genealogia. Ele mostra que as próprias intenções morais entram em cena como sintomas
de instintos que governam a vida daqueles que as defendem. Neste sentido, a filosofia seria
uma forma que os instintos têm de se colocarem como superiores aos demais instintos e
tentar garantir sua preponderância. A disputa filosófica pela verdade que visa legitimar uma
moral é, antes, a expressão e a tentativa de autoconservação da vida humana a partir de seus
instintos mais íntimos. Cada filosofia moral termina, então, por buscar enriquecer os
argumentos que legitimam e fortalecem os instintos que a engendram. A razão como
instrumento dos instintos.
“Mas quem examinar os impulsos básicos do homem, para ver até que ponto eles aqui teriam
atuado como gênios (ou demônios, ou duendes) inspiradores, descobrirá que todos eles já
fizeram filosofia alguma vez – e que cada um deles bem gostaria de se apresentar como
finalidade última da existência e legítimo senhor dos outros impulsos. Pois todo impulso
ambiciona dominar: e portanto procura filosofar.”
29
Ao invés de buscar entender a razão e a consciência como os motores da filosofia,
Nietzsche aparece na contramão com o surpreendente pensamento de que seriam os
instintos e impulsos
30
que fariam filosofia. A “filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a
27
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 15 [58]
28
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 6
29
Ibid., 6
30
O termo em alemão ao qual nos referimos é Trieb, que pode ser traduzido tanto por ‘impulso’ quanto por
‘instinto’. Em uma longa e rica nota, o tradutor brasileiro Paulo César de Sousa justifica a tradução de Trieb
por impulso, guardando Instinkt para instinto. Nota 21 de “Além do bem e do mal”, ed. Companhia das letras.
27
mais espiritual vontade de potência, de ‘criação do mundo’, de causa prima”.
31
O trabalho
de Nietzsche torna-se psicológico na medida em que pretenderá entender qual afeto estará
por trás de cada filosofia. As filosofias morais seriam apenas formas de um instinto se
apresentar como sendo o mais importante e verdadeiro.
32
Engana-se quem aqui objetar que seriam a razão e o pensamento, assim como a
moral os verdadeiros responsáveis por guiar os instintos e afetos em direção ao bem e à
verdade. Ao contrário, por trás de cada pensamento atua um instinto. O pensamento nada
mais é do que uma forma de aquela vida que o produz tentar crescer e se fortalecer ou se
defender de outras forças. Ele é sintoma, não causa.
“(...) a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades
instintivas, até mesmo o pensar filosófico; (...) estar ‘consciente’ não se opõe de algum
modo decisivo ao que é instintivo – em sua maior parte, o pensamento consciente de um
filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos. Por trás de
toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando
mais claramente, exincias fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de
vida
33
.
O importante em cada filosofia é saber se sua moral representa e é o fruto da
ascendência ou da decadência da vida. Tal compreensão será fundamental no pensamento
de Nietzsche, pois será a partir dela que o filósofo buscará pensar toda a moral que está a
estudar. Nietzsche usa a história para criticar aqueles que buscam estabelecer uma moral
enquanto verdade, pois entrevê neste movimento uma espécie de negação da vida que
marca toda a história da filosofia e da moral ocidental. Postular que existe um fundamento
último para um juízo moral significa compreendê-lo como estando fora deste mundo, pois
não teria sido criado. Se a verdade reside em um outro mundo, logo, este mundo em que se
Contudo, o próprio assinala que as traduções latinas o traduzem quase sempre por instinto, o que não constitui
um problema. Desta forma, optamos, no correr do texto, ora pela palavra instinto ora pela palavra impulso,
o fazendo maiores distinções entre elas.
31
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 9.
32
Uma outra questão importante sobre a tradução refere-se ao uso do termo vontade de potência ao invés de
vontade de poder. Muito já se debateu sobre esta questão e argumenta-se que o termo poder remete à
representação metafísica do poder, onde este seria algo separado da força que o cria constituindo-se em uma
espécie de objeto. Em contrapartida, a palavra potência remete também a um significado metafísico no qual
haveria a separação entre ato e potência, onde esta última seria algo que pode se dar, mas ainda não ocorreu.
Separação inexistente no caso do conceito de Nietzsche. Entendemos que ambos os termos possuem suas
vantagens e desvantagens, porém, ao termos que optar por apenas um dos dois, optamos por vontade de
potência, o que fará com que alteremos todas as traduções que usem vontade de poder. Faremos menção a
estas traduções alteradas, e será a única alteração de nossa parte.
33
Nietzsche, op. cit., 3.
28
vive é depreciado e tido por uma ilusão. “In summa; fabular sobre um mundo outro do que
este não faz sentido algum – a menos que se admita que reina em nós um instinto de
degenerescência, de rebaixamento, de suspeita em relação à vida: neste último caso, nós
nos vingaríamos da vida pela fantasmagoria de uma ‘vida melhor’.”
34
Será preciso buscar o
impulso que se encontra por trás da valorização de um outro mundo como mais importante
do que este. Este impulso é, para Nietzsche, um esforço de autopreservação feito por
pessoas que possuem dificuldade de se afirmar neste mundo. Assim, postulam a existência
de outro mundo verdadeiro onde sua moral seria o parâmetro de conduta universal. A forma
que tiveram de fazer isto foi criando filosofias e religiões que estabeleceram a verdade
como a-histórica e transmundana.
A filosofia não é algo impessoal e objetivo. Ao contrário, é um testemunho de seu
autor. A moral é uma forma de hierarquização dos instintos. Hierarquia é saber quais
instintos são valorizados e quais são depreciados em uma moral. Será baseado neste
trabalho de desvendamento da hierarquia dos instintos escondida por trás de uma
determinada moral que Nietzsche poderá dizer se determinada perspectiva fortalece ou
enfraquece a vida. O instinto que está por trás de um juízo pode ser afirmador ou negador
da vida, pode representar uma linha ascendente ou descendente em termos de força e
plenitude. “No filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal; e particularmente
a sua moral dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é – isto é, da hierarquia em
que se dispõem os impulsos mais íntimos de sua natureza.”
35
Tal trabalho será melhor
desenvolvido no segundo capítulo, no momento continuaremos trabalhando com a questão
da verdade.
4) Perspectivismo e interpretação
Se a filosofia é uma argumentação dos instintos que buscam, na proteção da
verdade, o argumento mais forte que os permitam se sobressair uns sobre os outros, mas
sendo que cada verdade de cada discurso moral é apenas uma estratégia de luta, por que
não objetar que, também este olhar de Nietzsche, longe de ser uma verdade sobre o
34
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [168]
35
Id., “Além do bem e do mal”, 6.
29
discurso moral, não é também uma falsidade, uma vez que também é uma invenção datada
historicamente. Logo, visto que não há como definir um discurso verdadeiro, nem mesmo o
de Nietzsche sobre a verdade, fica-se aberto o caminho tanto para um niilismo onde nada
mais pode ser dito e, ao mesmo tempo, tudo pode ser dito, porém sem valor algum, ou
volta-se a respeitar os discursos anteriores como verdade, afinal, neste caso, pode-se negar
o discurso de Nietzsche como falso. Como Nietzsche pode pretender criticar os discursos
de verdade sem que ele mesmo não pretenda que seu discurso seja tido como tal? Seria seu
discurso o único verdadeiro?
Até agora a verdade foi o valor máximo que um discurso podia alcançar. Neste
ponto, tornava-se inquestionável. Até que outro discurso o negasse e em seu lugar
apresentasse outra verdade, esta sim, a verdade, que desbancaria a anterior. E assim
sucessivamente, como se enganos estivessem sendo corrigidos por uma suposta evolução
do pensamento. Neste enredo, Nietzsche seria apenas mais um que apresenta uma nova
verdade a ser superada no futuro. Mas o discurso de Nietzsche critica, justamente, esta
estrutura e estaria sendo inconsistente se apresentasse sua própria perspectiva como a única
possível e verdadeira. Como faz Nietzsche, então, para sustentar sua argumentação contra
os discursos filosóficos sobre a verdade, sem pretender, com isto, apresentar uma nova
verdade? E como acreditar em seu discurso se, de antemão, já sabemos que não é
verdadeiro? – Estas questões, bastante legítimas, não são deixadas sem resposta pelo
filósofo. Elas podem ser pensadas a partir dos seguintes questionamentos: É possível pensar
o valor de um discurso sem referi-lo à verdade? Será que um discurso parcial e perspectivo
daria conta daquilo que a filosofia tem a dizer?
Voltamos de novo à questão do valor. Com certeza Nietzsche quer desfazer o
vínculo entre valor e verdade, pois somente assim é possível separar a filosofia de suas
considerações morais. Afinal, toda teoria do conhecimento que se quer como verdade, que
busca a verdade é um preconceito moral, como já foi visto. Para desfazer esta relação é de
fundamental importância afirmar a parcialidade de todo “conhecimento”. “Existe apenas
uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos
permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar
para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’.”
36
36
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 12
30
Nietzsche é categórico ao afirmar que todo pensamento parte de um olhar
específico, parcial. Nenhum “conhecimento” pode dar conta de toda a experiência. Por isto
mesmo, esta palavra vem muitas vezes entre aspas nos textos do autor. Um conhecimento
que se sabe perspectivo afirma sua incompletude, estando, assim, forçado a aceitar a
existência de outras perspectivas. Devido a esta incompletude, temos que a busca pelo
maior número de perspectivas se torna algo desejável, pois cada visão enriquecerá o
conhecimento. É preciso “saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de
perspectivas e interpretações afetivas”
37
.
O próprio sentido de um texto é dado pela interpretação. Não existe sentido a priori
a ser descoberto. É a interpretação que confere sentido. “Nietzsche pensa a questão do
sentido para mostrar que ela não é redutível à problemática da verdade.”
38
Se é a
interpretação que confere sentido, então o próprio sentido é uma criação. Postular um
sentido prévio à interpretação, sentido este apenas a ser descoberto, é reafirmar que a
verdade de algo se encontra em um ponto a ser descoberto e não a ser inventado, significa
afirmar um sentido em si para as coisas. Com sua linguagem Deleuze diz: “Não existe
sequer um acontecimento, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido
não seja múltiplo. Uma coisa é ora isto, ora aquilo, ora algo de mais complicado segundo as
forças (os deuses) que dela se apoderam.”
39
A interpretação é a força que confere sentido a
algo, todo sentido é uma interpretação, uma criação, não sendo, portanto, uma verdade.
Assim Nietzsche pode dizer: “Não buscar o sentido nas coisas: mas lhes impor!”
40
A pluralidade de perspectivas costuma desagradar aqueles que buscam reduzir a
interpretação ao problema da verdade, sendo este resolvível pela razão. Porém, em uma
abordagem perspectivista, a riqueza de interpretações estará muito mais próxima da
“realidade” do que um discurso de verdade. “Um pensamento de tipo sistemático é, a seus
olhos [de Nietzsche], inapto a dar conta das tensões constitutivas da realidade, isto é, a
apreender sua dimensão trágica.”
41
A dimensão trágica é, exatamente, a ausência de
fundamento último para o conhecimento, a capacidade de se reconhecer todo conhecimento
como criação e, portanto, como uma interpretação possível e não como uma explicação
37
Nietzsche, “Genealogia da moral” , III, 12
38
Wotling, “Nietzsche et le problème de la civilization”, pág. 9
39
Deleuze, “Nietzsche et la philosophie”, pág. 4
40
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 6 [15]
41
Wotling, op. cit. pág. 15
31
final. De maneira que até mesmo “a física é apenas uma interpretação e disposição do
mundo (...) e não uma explicação do mundo (...)”
42
É por isto que quando se tenta encerrar
Nietzsche nos liames de um discurso puramente lógico, termina-se por perder as ricas
nuances que seu texto nos apresenta. Tais nuances, não poucas vezes, terminam
confundidas por contradições. Ao apresentar diversas perspectivas, por vezes divergentes,
Nietzsche não cai em contradição, mas enriquece sua abordagem. É possível que duas
interpretações contraditórias entre si sejam consideradas verdadeiras, cada uma por uma
perspectiva diferente. Se o próprio sentido é criado pela perspectiva interpretativa, a pecha
da contradição é uma crítica que não leva em conta que a verdade só pode ser pensada em
relação à perspectiva que a engendra. Se a própria lógica é uma criação, uma contradição
lógica não pode funcionar como critério de verdade. “E, neste caso, a lógica seria um
imperativo, não para o conhecimento do verdadeiro, mas para dispor e acomodar um
mundo que poderia ser chamado por nós de mundo verdadeiro. (...) Assim, este princípio
[de não contradição] contém não um critério de verdade, mas um imperativo quanto ao que
DEVE valer por verdade.”
43
As regras gramaticais são ilusões necessárias para a existência
e crescimento de uma civilização, é preciso que sejam acreditadas como verdade para que
desempenhem este papel, mas tais regras não permitem o conhecimento da verdade tal qual
a filosofia sempre procurou, elas apenas definem o que deve valer por verdade, o que deve
ser acreditado como tal.
Outro ponto importante é que são os afetos que falam nas perspectivas, reforçando o
que já foi dito anteriormente. Cada pensamento, cada avaliação, cada apreciação é sintoma
de instintos que ali se manifestam. Estar atento para a pluralidade de manifestações dos
instintos torna-se algo importante para a filosofia. No fim, uma interpretação deve buscar
traduzir o trabalho dos instintos. “São nossas necessidades que interpretam o mundo:
nossos instintos, seus prós e seus contra. Cada instinto é uma certa necessidade de
dominação, cada um possui sua perspectiva que ele quer impor como norma a todos os
outros instintos.”
44
Vê-se de novo que, por trás de cada hipótese interpretativa, esconde-se
uma tentativa que faz um instinto para se sobressair sobre outros. Nietzsche entenderá a
42
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 14.
43
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [97]
44
Id., “Fragments Posthumes”, XII, 7 [60]
32
filosofia como esta disputa por dominação e buscará mostrar quais impulsos se escondem
por trás das perspectivas mais aceitas.
Nietzsche quer que no “lugar da ‘teoria do conhecimento’ tenha-se uma doutrina de
perspectivas dos afetos (onde faria parte uma hierarquia dos afetos)”
45
. Não mais crer na
gramática como verdade, mas pensar os afetos por trás dos modos de valoração expressos
nas regras lógicas e nas ciências. Trata-se da tentativa de usar o “conhecimento” a favor do
fortalecimento da vida e não do controle da mesma. Contudo, o filósofo sabe que esta é
uma alternativa perigosa e que atrairá poucos inicialmente, pois é “preciso ter uma força e
uma mobilidade absolutamente diferentes para se manter firmemente em um sistema
inacabado, junto a perspectivas livres e abertas do que para permanecer em um mundo
dogmático.”
46
Encontra-se, aqui, mais um motivo pelo qual se busca a verdade: é a
incapacidade de restar em um mundo sem um fundamento absoluto que cria a necessidade
de acreditar em um conhecimento verdadeiro. “O grau de força de vontade se mede pelo
quanto podemos nos dispensar de ver o sentido nas coisas, pelo quanto se suporta viver em
um mundo desprovido de sentido: porque se é capaz de organizar um pequeno fragmento
deste.
47
O sentido é dado pela interpretação, não é precedente a ela. É a incapacidade de
aceitação da condição trágica que move a moral. Todavia, a necessidade não faz deste
“conhecimento” uma verdade. Que se lembre da ligação entre conhecimento e moral e do
papel da verdade nesta relação, pois a ausência da verdade e a introdução da interpretação
perspectiva rompem com a legitimidade do poder moral na filosofia. O sacerdote e o
filósofo, destituídos de seus deuses e de suas verdades, nada podem contra o desejo.
Já foi colocado que as noções de fim e meio, causa e efeito, por exemplo, são
interpretações
48
que, de uma maneira geral, precisam ser entendidas como verdades, pois
possuem função reguladora. No entanto, resta sempre a pergunta pela constituição própria
das coisas, aquilo que se costuma chamar de realidade. Não seria preciso haver uma
realidade dos fatos por trás das interpretações? Tal pensamento é interessante, porém não
vai longe. Por mais que a realidade exista de forma independente ao homem, não haveria
pensamento, conhecimento, filosofia, nem este debate sem ele. A partir do momento em
45
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [8]
46
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 34 [25]
47
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [60]
48
Id., “Fragments Posthumes”, XII, 2[147]
33
que o homem está no mundo, todo seu olhar será dado a partir de uma perspectiva. Se tudo
já existia antes dele e se continuará a existir depois, mesmo isto, só pode ser pensado a
partir deste homem, isto é, perspectivamente. O pensamento é, assim como tudo o que o
homem pode produzir, parcial e interpretativo, isto é, perspectivo. “Que as coisas tenham
uma constituição nelas mesmas, abstração feita de toda interpretação e da subjetividade, eis
uma hipótese perfeitamente desnecessária: o que suporia que o fato de interpretar e ser
subjetivo não seria essencial, que uma coisa, separada de todas relações, seria ainda
coisa.”
49
Não há como separar o pensamento de suas relações com a realidade. Isto porque
esta própria “realidade” já é uma força em relação, já é desde sempre uma interpretação e
não um fundamento. “Não há nada absolutamente primeiro a interpretar, pois, no fundo,
tudo é já interpretação, cada signo é em si mesmo não uma coisa que sofre a interpretação,
mas a interpretação de outros signos.”
50
O próprio signo supostamente a ser interpretado já
é, de antemão, uma interpretação, pois o signo é uma invenção, uma criação. Assim
também aquilo que se entende por realidade já é uma interpretação desta suposta realidade,
não havendo algo anterior a isto. Neste sentido, a realidade pode ser entendida como texto,
mas seus múltiplos sentidos são sempre apresentados como interpretações parciais, uma vez
que o próprio texto assim como a própria idéia de texto da realidade já são interpretações.
Por isto, “não há nunca, para Nietzsche, um significado original.
51
O que torna a tarefa do
interpretar uma tarefa infinita.
52
Nietzsche entende esta busca pelo fenômeno em si por trás da interpretação como
um positivismo que não percebe que ele também está interpretando subjetivamente os fatos,
só que como algo de objetivo. “Contra o positivismo, que atesta ao fenômeno, ‘só existem
fatos’, eu objetaria: não, justamente não há fatos, somente interpretações. Não podemos
constatar nenhum factum ‘em si’: talvez seja um nonsense querer este tipo de coisa.”
53
A
critica a um certo subjetivismo na teoria perspectivista de Nietzsche não leva em conta que
a suposta objetividade que tanto se busca nada mais é do que mais uma interpretação
subjetiva “ – isto que é objetivo não seria nada mais do que um falso conceito de espécie e
49
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [40]
50
Foucault, “Nietzsche, Freud, Marx” in Cahiers de Royaumont, pág. 189
51
Ibid., pág. 190
52
Ibid., pág. 187
53
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 7 [60]
34
uma falsa antinomia inerentes ao subjetivo?
54
O grifo da palavra inerente é do próprio
Nietzsche e mostra, terminantemente, que não haveria como fugir das interpretações. A
objetividade é uma interpretação subjetiva; “um mesmo texto permite inúmeras
interpretações: não existe a interpretação ‘justa’.”
55
Uma última objeção que ainda possa ser feita argumentará que, dentro desta ótica na
qual estamos nos movendo, todas as coisas seriam de igual valor, uma vez que não se
poderia determinar o que é melhor ou pior, o que é certo e errado, o bem e o mal, já que a
moral não mais possui a verdade consigo e que, agora, todas as perspectivas seriam válidas.
As conseqüências e possibilidades de um mundo onde a moral se encontra destituída de seu
alicerce metafísico serão ainda melhor trabalhadas, mas o vislumbre inicial é, exatamente,
este abismo que se abre ante a não-fundamentação absoluta dos valores, é a condição
trágica. O que não quer dizer que todas as interpretações sejam igualmentelidas. O fato
de não existir uma única interpretação verdadeira ou justa não significa que todas as
interpretações tenham o mesmo valor ou que não haja possibilidade de se preferir uma à
outra. Que um texto possua tantas interpretações quantas puderem lhe ser atribuídas, não
faz com que todas estas interpretações tenham o mesmo valor. Contudo, o critério não pode
mais ser o da verdade e a hierarquia estabelecida não pode ser considerada absoluta. Ainda
assim, mesmo não usando a verdade como critério, o que permite a Nietzsche diferenciar
entre interpretação boa ou ruim?
A metáfora filológica vem responder a esta questão. Nietzsche, formado em
filologia clássica, por mais que afirme a plurivocidade do texto, não deixa de criticar a
insuficiência e tartufice de algumas interpretações. Referindo-se, por exemplo, às
interpretações científicas que afirmam leis na natureza, Nietzsche diz: “perdoem este velho
filólogo, que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins”.
56
Mais
adiante, critica a péssima filologia de tais cientistas.
57
A respeito da interpretação cristã, por
exemplo, diz: “A Igreja crê em coisas que não existem, nas ‘almas’: ela crê em efeitos que
não existem, em efeitos divinos; na saúde da alma; sobretudo, ela permanece na superfície,
a respeito dos signos, dos gestos, das palavras, dos símbolos, onde ela dá uma interpretação
54
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [40]
55
Id., “Fragments Posthumes”, XII, 1 [120]
56
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 22
57
Ibid., 22
35
arbitrária: ela possui um método de trapaça psicológica elaborada até suas últimas
conseqüências.”
58
Ou seja, não existe a interpretação verdadeira, mas existem
interpretações abusivas, arbitrárias, trapaceiras, baixas, rasteiras ...
Nietzsche define assim o conceito de filologia: “Entendo, aqui, a palavra ‘filologia’
em um sentido bem geral: saber decifrar os fatos sem lhes falsear pelas interpretações”.
59
Que se atente aqui para o detalhe de que não se está a defender a existência de fatos
desconexos das interpretações. O que se coloca aqui é que nem todas interpretações são
igualmente validas na interpretação do texto da realidade. É possível, pois, que existam
interpretações que falseiam o texto ao serem abusivas e arbitrárias em sua abordagem.
Mesmo assim, se Nietzsche ataca determinadas interpretações do texto da realidade, não as
ataca com uma nova verdade. Aquilo que ele opõe a uma interpretação por ele considerada
má nada mais é do que outra interpretação. É apenas sob a ótica de sua interpretação que
outra pode ser considerada ruim. Ora, as interpretações platônica, cristã e cientificista
sempre estiveram cheias de adeptos. Para estes, trata-se de uma interpretação ou até mesmo
de uma explicação verdadeira, quando não de uma revelação inquestionável. Viu-se,
também, que o discurso de verdade busca legitimar uma interpretação acima de todas
demais. Nietzsche busca criticar sem enredar-se nesta mesma estrutura. Se o faz é porque
entende que tais interpretações forçam o texto que estão pretendendo explicar. Tal abuso da
interpretação visa sempre escamotear a dificuldade de seus adeptos em aceitar a tragicidade
do texto da realidade, isto é, a falta de sentido metafísico para a existência.
“Opor-se-á não a interpretação verdadeira à falsa, mas 1) interpretação plural e interpretação
dogmática (esta que não se reconhece como interpretação sob o fundo de uma pluralidade,
mas se apresenta como verdade única e absoluta do texto); 2) interpretações fortes e fracas,
rápidas e pacientes, pobres e ricas, superficiais e genealógicas, inocentes e profundas. Se não
há a única interpretação verdadeira, há, todavia, interpretações abusivas”.
60
Por fim, se são os instintos que interpretam, não será a verdade que funcionará
como critério, mas a afecção. Uma perspectiva, um pensamento, só pode ser pensado e
enunciado por uma determinada forma de vida. “Existem coisas que só se pode dizer, sentir
ou conceber, valores aos quais só se pode crer com a condição de se avaliar ‘baixamente’,
58
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [151]
59
Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 14[60]
60
Blondel, “Nietzsche: Le corps et la culture”, pág. 207
36
de viver e pensar ‘baixamente’. Sendo isto o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não
são os valores, mas representam o elemento diferencial de onde deriva o valor dos
valores.”
61
É como produto de uma forma baixa de vida que Nietzsche critica determinadas
interpretações, as quais ele chama de ruins. Em última análise, a adoção ou preferência por
uma determinada interpretação revela não a verdade da interpretação, mas o maior ou
menor apreço à vida por parte daquele que interpreta.
Já foi apresentado brevemente que, na perspectiva de Nietzsche, o mais importante
no tocante a uma proposição é sua relação como o fortalecimento ou com o
enfraquecimento da vida. Este será sempre seu critério de valoração. O que faz com que o
perspectivismo se diferencie de um relativismo é, precisamente, a necessidade de
hierarquia, tomando a vida como critério. Sua diferença mais marcante frente ao
dogmatismo é saber que estará sempre apresentando hipóteses parciais. O que deve ficar
claro, no momento, é que a escolha do critério de valoração, uma vez enfraquecido o
discurso de verdade, será, ele também, uma opção, uma interpretação. Desta forma, a
filosofia de Nietzsche nunca correrá o risco de se querer como única verdade. O que não
impede de acreditar que sua teoria da vontade de potência, – da qual falaremos em breve –
seja verdadeira. A diferença é que não será apresentada de forma dogmática. Ao contrário,
é certo que ofenderia “seu orgulho, e também seu gosto, se sua verdade fosse tida como
verdade para todos (...)”
62
. Enfim, o simples fato de se saber que uma perspectiva é uma
perspectiva e, neste sentido, o perspectivismo é uma perspectiva, já é o bastante para que tal
filosofia fuja de toda sorte de dogmatismo. “Acontecendo de também isto ser apenas
interpretação – e vocês se apressarão em objetar isso, não? – bem, tanto melhor!
63
***
Ao nos depararmos com más interpretações não do texto da realidade, mas do texto
de Nietzsche é que somos mais fortemente impelidos a atestar a inadequação da
interpretação ao texto. É grande a tentação de dizer: “Isto não pode ser dito!” ou “Está
errado!”. Existem péssimas interpretações de Nietzsche e é mais comum ainda vermos
61
Deleuze, op. Cit. pág. 2
62
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 43
63
Ibid., 22.
37
pessoas que o citam despudoradamente dizendo: “Nietzsche matou Deus”, “Nietzsche é um
niilista”, “A filosofia de Nietzsche instaura o homem como centro do universo”, etc. –
Diante de tanta falta de sutileza chega a ser difícil saber como agir. Seria possível
aceitarmos tais interpretações como “legítimas”, na medida em que não nos propomos a ter
a interpretação correta e até mesmo desqualificamos esta possibilidade? Como tratar com
tais interpretações sem usarmos o valor da verdade e sem, ao mesmo tempo, não permitir
que qualquer coisa possa ser dita com igual validade?
Eis aqui, para nós, um falso problema. Se tais interpretações superficiais e rasteiras
são amplamente difundidas, caberia a alguém desfazer estes mal-entendidos? – Penso,
primeiramente, que a linguagem de Nietzsche visa, entre outras coisas, suscitar más
interpretações. Com a interpretação, revela-se o tipo do intérprete. Aquele que, já de
antemão, possui uma opinião que, para si, é precisa e verdadeira e que a sustentará a
qualquer preço, pelo puro prazer da retórica ou por vaidade, não deveria permanecer com
sua opinião oblíqua? Será que se deve tentar “persuadir” aquele que se contenta com a
primeira aparência, por mais superficial que seja? – Penso que é melhor deixá-los com sua
“sabedoria”, pois assim se revelam a um bom psicólogo.
“Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser
compreendidos. De forma nenhuma constitui objeção a um livro o fato de uma pessoa achá-lo
incompreensível: talvez isso estivesse justamente na intenção do autor – ele não queria ser
compreendido por ‘uma pessoa’. Todo espírito e gosto mais nobre, quando deseja comunicar-
se, escolhe também os seus ouvintes; ao escolhê-los, traça de igual modo a sua barreira contra
‘os outros’. Todas as mais sutis leis de um estilo têm aí sua procedência: elas afastam, criam
distância, proíbem ‘entrada’, a compreensão, como disse – enquanto abrem os ouvidos
àqueles que nos são aparentados pelo ouvido.
64
Tenho a impressão que um dos papéis mais importantes da linguagem de Nietzsche
é o de afastar leitores tomados pela pressa e pela preguiça moderna. Aos maus filólogos,
Nietzsche deixa-se mal interpretar, pois assim, estes se vão, desqualificando-o, mas
deixando-nos em paz. Não é possível opor a verdade do texto de Nietzsche a uma
interpretação. O máximo que se pode dizer é: Em minha perspectiva, discordo de sua
interpretação por tais e tais razões, etc.” Mas a interpretação do maior erudito em Nietzsche
não possui um maior grau de verdade do que a de um leigo. Ela pode ser mais rica, mais
64
Nietzsche, “Gaia ciência”, 381
38
bem feita, mais profunda, abarcar uma maior quantidade de perspectivas, ser mais
nuançada, enfim, agradar mais a um gosto mais exigente. Porém, na tentativa de afastar a
besteira e a baixeza, deve-se tomar o forte cuidado de não se apelar para o argumento de
autoridade do discurso da verdade. As interpretações ruins, baixas ou vis não são mentiras e
não estão erradas, apenas pertencem a um baixo grau de exigência filológica e representam
em geral, uma linhagem decadente da vida. A crítica genealógica precisa apontar para sua
superficialidade e rudeza, não para sua falsidade. Sendo mesmo a avaliação genealógica
parcial e perspectiva. No fim, é a maior afinidade de uma interpretação com a afecção do
leitor-intérprete que determina a “adesão” deste a uma ou outra interpretação. Enfim, não se
trata da verdade, mas de afecções. Trata-se do estabelecimento da hierarquia dos valores
mais importantes em relação a um julgamento. Trata-se de criar o phatos da distância em
relação às más interpretações. Definitivamente, o genealogista não precisa da verdade,
apenas da saúde de seus afetos.
5) Essência da verdade?
Esta seção tem o objetivo de fazer uma breve reflexão sobre a idéia de uma possível
essência da verdade e relacioná-la com este novo tratamento epistemológico – se assim
podemos chamar – que vem sendo trabalhado. Questionamo-nos se ao aceitar que só se
pode haver um olhar perspectivo e parcial, não se excluiria do conceito de verdade aquilo
que ele tem de mais essencial e que o define? Em outras palavras, seria realmente possível
pensar a verdade de uma forma perspectiva, ou o caráter próprio da verdade não estaria,
precisamente, no fato de ser uma certeza unívoca, algo garantido e seguro acima de
qualquer parcialidade? De forma que se perderia o conceito de verdade ao se afirmar uma
verdade perspectiva.
Quando se compreende a verdade como uma necessidade cultural possibilitadora da
vida em sociedade por tornar a experiência comunicável, atenta-se para a possibilidade da
verdade ser, no fundo, uma crença, isto é, a verdade, para ser verdade, dependeria de que
um grande número cresse nela. “A apreciação de valor ‘eu creio que isto e aquilo são
assim’ enquanto ESSÊNCIA da ‘verdade’”
65
A verdade é apenas uma apreciação de valor
65
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38]
39
e, como tal, não possui caráter absoluto. Sabemos que “nas apreciações de valor se
exprimem as condições de conservação e de crescimento
66
, assim sendo, “a confiança na
razão e em suas categorias, na dialética, as apreciações de valor da lógica provam apenas a
utilidade destas para a vida, demonstrada pela experiência: não sua ‘verdade’.”
67
Se aquilo
que se entendeu por verdade o foi aceito como tal apenas por necessidade e se Nietzsche
não pretende, com sua filosofia, apresentar uma verdade de outra ordem, então a verdade só
pode ser entendida como crença. A única forma de se manter o uso deste conceito seria
entendê-lo desta forma: uma crença muito forte aceita por um grande grupo que a
compartilha como necessidade para a vida. “Onde é necessário que algo seja tido por
verdadeiro; não que este algo seja verdadeiro.”
68
E assim Nietzsche define a crença: “cada crença é um ter por verdadeiro.”
69
Ele
quer chegar ao ponto máximo de sua tese sobre a verdade, a saber, “que cada crença, cada
ter-por-verdadeiro é necessariamente falso: porque um MUNDO VERDADEIROo
existe absolutamente. Onde temos: uma ilusão de perspectiva cuja origem reside em nós
mesmos (na medida em que tivemos necessidade continuamente de um mundo estreito,
resumido, simplificado).”
70
Tivemos necessidade de criar e acreditar na verdade, mas esta
vontade de verdade não passa de uma ilusão de perspectiva, isto é, trata-se de uma vontade
de engano. Nos enganamos a nós mesmos a respeito da verdade, por necessidade.
Vislumbrando o tamanho da vertigem que tal pensamento pode ocasionar:
Nietzsche chega a chamá-lo de extrema forma do niilismo. Entretanto, este niilismo não
seria um niilismo paralisador, neste niilismo, enquanto que NEGAÇÃO de um mundo
verídico, de um ser, poderia ser uma maneira divina de pensar.
71
Voltaremos a falar de
niilismo, mas é interessante perceber que, com o colapso de categorias que foram tão
importantes, as conseqüências não precisam ser necessariamente negativas. O próprio
niilismo pode ter uma face positiva na medida em que não mais permite que a crença seja
alçada à categoria de verdade sem reservas. O que é aqui chamado de niilismo deve servir
como impulso rumo a uma nova cultura, “é, justamente, esta ausência de sentido, o
66
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38]
67
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38]
68
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38]
69
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41]
70
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41]
71
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41]
40
niilismo, que põe em movimento sua empreitada, à procura de um ou mais sentidos novos,
de uma nova cultura, de novos filósofos.
72
Seria preciso que a filosofia e a ciência façam
igual a arte, isto é, sejam uma mentira que se sabem como mentira e não uma mentira que
se quer como verdade. Mas, seria possível permanecer conscientemente na ilusão? Esta é a
prova de força que Nietzsche lança ao futuro: “ – que seja UMA MEDIDA DE FORÇA, do
grau onde podemos ter para nós mesmos a aparência, a necessidade da mentira, sem
perecer.
73
Seria preciso modificar a essência da palavra verdade para ainda podermos usá-la.
Daí seu uso entre parênteses em várias passagens de Nietzsche. Seria preciso, então, até
mesmo repensar a idéia de essência, uma vez que esta também se refere tradicionalmente a
uma categoria imutável que define o objeto. É exatamente o que faz Deleuze quando
relaciona a essência à força. Neste caso, a essência não seria uma espécie de substrato
último e irredutível ao qual poderíamos remeter sempre o objeto e encontrá-la idêntica em
sua origem. Aqui, a essência é uma relação entre o objeto e a força que dele se apodera.
Pois, se algo possui tantos sentidos quantas forem as forças capazes de dele se apoderar,
tampouco este algo seria neutro e, portanto, apenas tomado pela força sem exercer
resistência. O objeto mesmo é força. E, portanto, o que existe, sempre, são relações de
força, de dominação e submissão. Este objeto se acha em maior ou menor afinidade com as
forças em relação. Neste sentido, encontrar a essência seria encontrar a força que possui
maior afinidade com a coisa da qual se busca a essência. “Há forças que só podem se
apoderar de alguma coisa dando-lhe um sentido restritivo e um valor negativo. Ao
contrário, chamar-se-á essência, entre todos os sentidos de uma coisa, aquele que lhe dá a
força que apresenta mais afinidade com ela.”
74
Se o próprio conceito de verdade é uma
força em relação, seria preciso apoderar-se deste conceito conferindo-lhe um novo
significado que se torne ainda mais forte do que aquele conferido pela metafísica. Temos
que a essência da verdade sempre foi tal qual pensada pela filosofia moral dogmática.
Porém, caso ainda se utilize este termo, agora em uma abordagem perspectivista, seria
necessário modificar a compreensão de sua essência para que abarque o caráter parcial de
72
Blondel, op. cit. pág. 48
73
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41]
74
Deleuze, op. cit. pág. 5
41
todo conhecimento humano. A essência da verdade como crença. Este é o novo conceito de
verdade segundo Nietzsche.
6) Experiência e linguagem
Uma das maiores dificuldades que Nietzsche enfrenta em seu filosofar é encontrar a
forma ideal para a expressão de seu pensamento. Diante daquilo que Nietzsche quer da
filosofia, ele não pode se contentar apenas com as formas clássicas de expressão, “o logos
suprime aquilo que faz a singularidade do texto nietzscheano.”
75
Não se trata mais de
apresentar a verdade, mas de apresentar interpretações perspectivas que dêem conta das
experiências. Experiências para as quais usualmente a filosofia não tem palavras. “A
linguagem e os preconceitos em que se baseia a linguagem nos criam diversos obstáculos
no exame dos processos e impulsos interiores”
76
. Mas, como seria possível fazer filosofia
sem que a razão discursiva assuma o primado ainda que das interpretações? Como fazer
falar a filosofia dos afetos? – O problema é que “estamos acostumados a não mais observar
com precisão ali onde nos faltam as palavras, pois é custoso ali pensar com precisão; no
passado concluía-se automaticamente que onde termina o reino das palavras também
termina o reino da existência.”
77
A linguagem termina por se tornar um tema central na
filosofia de Nietzsche, será preciso fazê-la falar sobre uma ordem de experiências quase
que incomuniveis.
Para tanto, será preciso que o próprio estilo de escrita seja capaz de comunicar de
uma outra forma que não a forma tradicionalmente válida. Para dar conta de tal tarefa o
pensamento de Nietzsche terá que ser, ele mesmo, uma experiência de pensamento,
versuch, que visa dar conta de comunicar algo que a preocupação moral da filosofia sempre
escondeu.Este modo de trabalho do texto de Nietzsche é designado por ele mesmo pelo
nome de versuch (tentativa, ensaio) ou de experimento (experimentação)”
78
O sentido da
palavra versuch pode ser associado ao sentido científico de uma experiência tal qual a
química realiza para testar suas hipóteses. O sentido pode ser também o de tentativa, na
75
Blondel, op. cit. 12
76
Nietzsche, “Aurora”, 115
77
Ibid, 115
78
Blondel, op. cit. 123
42
medida em que se tenta algo novo ou diferente. Em um aforismo clássico onde fala dos
filósofos do futuro, filósofos ainda por vir, capazes de aceitar os perigos de uma filosofia
para além do bem e do mal, Nietzsche os chama de verscuchers, isto é, experimentadores,
tentadores, entendendo até mesmo esta denominação como uma experiência, uma
tentativa.
79
Mais adiante, no mesmo livro, refere-se a este novo tipo de filósofo dizendo que
“sem dúvida serão experimentadores.”
80
A filosofia trágica é inseparável da experiência de
vivê-la, incorporá-la. Fazer um experimento de pensamento significa também viver de
acordo com ele. “Experimentar envolve testar uma resposta tentando viver de acordo com
ela”.
81
Experimentar o problema é vivê-lo. Viver de acordo com a resposta. Neste sentido, o
experimentalismo de Nietzsche possui não apenas um caráter epistemológico, mas também
ético. “Apenas problemas que se apresentam tão fortemente a ponto de ameaçar o modo de
vida presente do pensador importam para a filosofia.”
82
Ao solapar todos os fundamentos
da moral tradicional, perdem-se, inicialmente, os parâmetros para a conduta, uma vez que
os parâmetros antigos nos quais a moral se sustentava não mais resistem. Esta dificuldade
não pode significar a negação da teoria, mas obriga a filosofia que faz tamanhas críticas ao
pensamento filosófico tradicional que se apresente como uma experiência, ainda que de
superação desta dificuldade.
É preciso criar senão uma nova linguagem, ao menos um novo estilo capaz de dar
conta de uma experiência filosófica de pensamento que não se fundamente na verdade de
suas proposições e que não busque o encerramento dos argumentos em um sistema fechado.
“A recusa à ordem das razões, a recusa do sistema, e o recurso à forma do aforismo são, em
realidade, o indício de um problema mais fundamental: o problema que se põe a Nietzsche
é o da tradução e da comunicação de uma experiência de pensamento radicalmente nova,
isto é, finalmente, o problema da linguagem.”
83
É preciso criar um estilo que dê conta de
comunicar os estados dos instintos e não da lógica. É preciso comunicar um pensamento
calcado no phatos da distância em relação à cultura da modernidade, fugindo às redes
conceituais sistemáticas e puramente lógicas e atingindo alturas ainda não vislumbradas.
“Cada aforismo ou seqüência de aforismos (...) devem ser considerados como uma
79
Nietzsche, “Além do bem e do mal”,42
80
Ibid., 210
81
Kaufmann, “Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist”, pág. 89
82
Kaufmann, op. cit. pág. 89
83
Wotling, op. cit. pág. 17
43
experiência de pensamento.”
84
É preciso fazer a linguagem comunicar a vida fora dos
liames das regras representacionais. É preciso comunicar os afetos, as paixões, a grande
paixão. Sobre seu estilo Nietzsche diz: “Comunicar um estado, uma tensão interna de
pathos por meio de signos, incluindo o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo; e
considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em
mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do estilo de que um homem já
dispôs.”
85
O estilo, mais do que apenas a forma da escrita, é a própria interpretação, o estilo
é a declaração dos instintos, sua manifestação, sua expressão. O instinto se revela no estilo.
O estilo é “o corpo falando.”
86
Nietzsche deixa bem claro que uma das maiores dificuldades que encontram aqueles
que o tentam ler é o fato de que suas experiências interiores, suas avaliações e suas
necessidades são diferentes, de uma outra ordem do que na maioria dos homens.
87
“Não se
tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência.”
88
Ora, nada mais
natural, uma vez que as interpretações e o próprio sentido são criado pelos instintos.
“Nietzsche, pensador da vida como extralógica, com seu estilo, com seu texto, procura
exceder os limites do discurso lógico para fazer com que o texto, cujo sentido é sempre
constituído em um dito, possa ser o dizer da vida, da história, do corpo, para que ele possa,
no sentido retórico e no sentido filosófico, viver.”
89
Mas, sendo assim, não se correria o
risco de se perder toda capacidade de comunicação, uma vez que toda sociabilidade
humana, ainda que forjada, se sustenta sobre a linguagem?
Ora, tal medo só pode afastar aquele que acredita ter a linguagem um significado
próprio, capaz por si mesmo de comunicar algo de absoluto. No entanto, para Nietzsche a
palavra não nos dá o entendimento do que uma coisa efetivamente é. A palavra é apenas
uma representação sonora de uma excitação nervosa, ela não possui um significado próprio.
Em um texto de juventude, Nietzsche desdobra alguns argumentos que esclarecem sua
compreensão sobre a linguagem e que o vão permitir usá-la de outra forma no futuro.
Segundo este texto a linguagem não fornece um verdadeiro conhecimento sobre aquilo que
84
Kaufman, op. cit. pág. 85
85
Nietzsche, “Ecce homo”, Porque escrevo tão bons livros, 4.
86
Blondel, op, cit. pág. 160
87
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 34[86]
88
Id., “Ecce homo”, Porque escrevo tão bons livros, 1
89
Blondel, op. Cit. pág. 35
44
representa. Dizer: “A pedra é dura”
90
não nos dá conhecimento sobre a pedra. Dizer que “a
pedra é dura” é considerado verdade, uma vez que dizer que “a pedra é mole” seria
considerado mentira. Mesmo assim, tudo não passa de uma convenção gramatical e não é
conhecimento. É apenas um uso adequado das convenções aceitas. Com o tempo, as
convenções da linguagem ganham uma forma rígida de serem usadas e, a partir daí,
expressam algo que passa a ser aceito como verdade. Usando-as de outra forma, serão
consideradas como mentira. Entretanto, a excitação causada por algo duro é subjetiva,
humana e a palavra não é capaz de transmitir um real conhecimento sobre a sensação a qual
se refere. A idéia só é transmitida devido a uma experiência comum. Há uma figuração da
realidade pela linguagem. Criam-se imagens da realidade, mas não a captamos. O homem
se engana ao acreditar que as palavras oferecem algo mais do que uma representação das
coisas. Assim, as palavras designam a relação do homem com as coisas e não as “coisas em
si”. Essa “coisa em si” seria a “verdade pura e sem desdobramentos”
91
. Ao invés disso, as
palavras são apenas metáforas das coisas. Com o termo metáforas, Nietzsche não quer
indicar uma figura de linguagem específica, quer chamar a atenção para que todas as
palavras são, na verdade, figuras de linguagem. Assim, não existe palavra própria, todas são
impróprias, uma vez que são apenas arbitragens humanas sobre as coisas. Com as palavras,
achamos saber algo sobre as coisas, mas têm-se apenas metáforas. “O privilégio da
metáfora se deve ao fato que ela introduz, a uma só vez, uma lógica da multiplicidade e
uma lógica do deslocamento: uma lógica que faz do desvio, da referência, a condição
mesma da significação.”
92
Existe um movimento duplo na criação das palavras. Primeira metáfora, uma
excitação nervosa cria uma imagem na consciência, segunda metáfora, sobre esta imagem
cria-se uma palavra, um som. Assim, a linguagem não revela nada além de uma relação
entre o homem e o mundo, sendo, pois, totalmente arbitrária e antropomórfica. A metáfora
é uma criação do homem e, portanto, não é uma verdade da natureza. A metáfora é uma
ilusão sobre aquilo que ela designa. Sendo assim, a verdade que se baseia na linguagem é,
antes, uma mentira, uma invenção humana. A esse processo de criação de metáforas
90
Nietzsche. “Ensaio teorético sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”.
91
Ibid.
92
Wotling, op. cit. pág. 41
45
Nietzsche chama de artístico. Pois, assim como a arte, as metáforas criam uma ilusão sobre
a realidade. A arte ilude imitando a vida e as metáforas iludem imitando as coisas.
Em Genealogia da moral”, Nietzsche fala da origem da linguagem como um
direito que os homens senhores de sua própria vontade tinham de criar nomes. A linguagem
aparece como “expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isto é isto’, marcam cada
coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas”
93
. Tal
situação demonstra o caráter arbitrário da linguagem, ao contrário de um caráter apropriado
das palavras às coisas. A palavra é inventada. Outro sintoma do caráter arbitrário da
linguagem é a supressão da diferença para a formação de um conceito. O conceito suprime
o que é particular em nome de uma generalidade. Uma folha nunca é igual à outra, ainda
que sejam da mesma espécie. Entretanto, são todas designadas como folhas. O princípio de
identidade unifica todos os singulares em um só. Trabalho ilógico da metáfora: identifica o
não idêntico. Ao mesmo tempo, tal abstração é necessária, pois o homem não seria capaz de
guardar, ou talvez, de criar nomes para cada coisa. Esta generalização aparece como
necessária à linguagem. Isto quer dizer, então, que por mais que se entenda o que alguém
quer dizer quando fala de uma folha, continua-se sem ter o verdadeiro conhecimento sobre
o que é uma folha. A simples palavra ou o estudo da folha por intermédio de conceitos
continua nos dando apenas uma noção superficial sobre a folha, uma interpretação da folha.
Dentro desta compreensão, a mentira é constitutiva do conhecimento e não um erro.
Se as palavras não podem comunicar um sentido último às coisas, a experiência de
pensamento de Nietzsche apresenta-se não só como legítima, mas também como
necessária. É preciso usar a linguagem para fazer passar algo outro que não as noções
puramente lógicas da filosofia. Somente assim seria possível tornar a filosofia um
pensamento capaz de dar conta das tensões constitutivas da vida. A compreensão da
linguagem como metáfora garante que a linguagem é algo naturalmente desviante daquilo
que pretende, podendo ter seu significado reorganizado, não mais pela lógica, mas pela
vida, pelos instintos. A própria lógica foi criada pela vida, mas ao se pôr como verdade,
inicia-se um processo de subjugação e apequenamento das próprias possibilidades da vida,
reduzindo esta última à primeira e desqualificando as demais perspectivas. “O texto de
Nietzsche tem a tarefa, não de designar os significados (onde o discurso, enquanto tal, teria
93
Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 2.
46
a meta de reduzir ao máximo a exterioridade), mas de ser o significado do corpo e da vida
como movimento e trabalho de interpretação.
94
Contudo, sem a lógica seria impossível comunicar qualquer ordem de experiências
por via de palavras. O texto de Nietzsche é, também ele, racional e lógico, por mais que
tente, e consiga, porque não, expressar outra ordem de pensamentos. Como fazer a lógica
de uma linguagem metafísica dar conta de comunicar experiências de uma ordem
extralógica? Esta é a tarefa impossível a qual Nietzsche se lança. E com sucesso. “Se
Nietzsche pode representar uma tentativa verdadeiramente nova de ‘negar’ a metafísica, é
na medida em que a faz e desfaz no mesmo movimento.”
95
É impossível fugir do caráter
limitante da linguagem, mas nem por isto é impossível ampliar as possibilidades da mesma,
experimentá-la para além de seus tradicionais limites. A necessidade da experiência da
linguagem reside no fato de que Nietzsche pretende expressar outra ordem de coisas do que
a que a filosofia tradicionalmente procura.
“A linguagem de Nietzsche ultrapassa a linguagem metafísica na medida em que traduz não
apenas idéias, mas uma experiência, respeitando seu movimento próprio. E, para traduzir
adequadamente esta experiência atípica, o texto deve ser genealógico e pôr em evidência o
trabalho pulsional a partir do qual se constitui o questionamento, visto que, como o mostra a
crítica da ordem das razões e do sistema, é sempre a atividade subterrânea dos instintos que é
produtora de sentido”
96
A dificuldade reside em usar a linguagem metafísica para desbancar a própria
metafísica. Mas isto não seria metafísica?
“É o texto mesmo de Nietzsche que assegura esta construção-desconstrução da metafísica,
sendo esta um discurso sistemático de proposições encadeadas em uma univocidade
culminando com a negação da vida, do corpo, do devir, e é nesta prática do texto que é
preciso demarcar as regras de funcionamento. Seria, então, inocência acreditar ter pegado
Nietzsche em flagrante delito por fazer metafísica: ele possui seu álibi, pois está, ao mesmo
tempo, além;”
97
A experiência de pensamento de Nietzsche consegue superar os entraves
lingüísticos devido a seu estilo, fazendo com que seu texto escape à pura logicidade do
94
Blondel, op. cit. pág. 43
95
Blondel, op. Cit. pág. 116
96
Wotling, op. Cit. pág. 23
97
Blondel, op. Cit. pág. 116
47
discurso. “Este discurso impossível é a genealogia, chave do problema da cultura.
98
Reenviando a linguagem à sua origem, assim como fez com a verdade e fará com a moral,
Nietzsche corrói as bases que sustentam todo o sistema que ele visa problematizar. Este
processo de busca da origem histórica constitui o cerne de toda genealogia e é capaz de
desvendar toda a trama que se esconde por trás da tradicional valoração daquilo que mais se
venera. Abordar-se-á com detalhes este tema ao falarmos de genealogia. Por ora tem-se que
“opor à metafísica a genea-logia é, para Nietzsche, referir o discurso a sua origem
extradiscursiva, mas é, ao mesmo tempo, tentar dizer, no texto, pela linguagem, isto que
toda linguagem, como metafísica, mutila.”
99
A genealogia é a experiência de pensamento
que Nietzsche faz para diagnosticar e superar os problemas de sua cultura sem cair na
mesma trama que está a criticar.
7) O texto da realidade
Ao criticar as hipóteses interpretativas tradicionais da filosofia por serem
dogmáticas e ilusórias, Nietzsche tem, então, o trabalho de apresentar uma outra hipótese
que seja mais aceitável do que as proposições que critica. Porém, sabemos, o texto da
realidade não é um fato. Não há texto sem interpretação. A realidade, como letra de um
texto, só ganha sentido ao ser ela mesma interpretada. Um texto comporta inúmeras
interpretações, mas nem todas as interpretações são igualmente válidas. Existem
interpretações que fogem radicalmente à letra do texto. Contudo, afirmar a existência de um
texto da realidade não significa afirmar um sentido primordialmente verdadeiro sobre o
qual se faz a interpretação. Será necessário precisar o sentido da palavra realidade em
Nietzsche, mas sem confundi-la com uma essência por trás das coisas.
O termo realidade, classicamente, se encontra em oposição ao termo aparência,
onde, segundo o pensamento metafísico, aquilo a que se tem acesso pela experiência
sensível seria uma sorte de aparências, estando a verdade, isto é, a realidade, como que
escondida por trás desta fenomenalidade aparente, sendo acessível pela razão ou pela fé,
papel este da filosofia ou da religião. Nietzsche não se cansou de criticar tal dualidade e se
98
Blondel, op. Cit. pág. 117
99
Blondel, op. Cit. pág. 117
48
o fez, não foi para estabelecer a inversão dos papéis; algo como entender os fenômenos
como realidade e a hipótese metafísica como aparência. É preciso sair do sistema dualista
de pensamento, pois, em ambos os casos, se permanece preso a uma estrutura metafísica,
posto que a “crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores.”
100
Em
uma bela passagem de “Crepúsculo dos ídolos”, Nietzsche deixa claro que quando critica
aquilo que a metafísica chama de realidade (qual seja, um mundo verdadeiro por trás da
aparência fenomenal) não se tem, em contrapartida, a chamada aparência fenomenal alçada
à categoria de realidade e tampouco um rebaixamento do mundo verdadeiro da metafísica à
categoria de aparência. Uma certa confusão pode surgir na medida em que aquilo que é
chamado de aparência por um sistema é chamado de realidade no outro. Mas o que
Nietzsche mostra é que é impossível abolir um dos mundos sem abolir esta dualidade. E é
justamente esta dualidade que precisa, primeiramente, ser criticada. “Abolimos o mundo
verdadeiro: que mundo restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro
abolimos também o aparente!
101
Ao criticar a existência de uma verdade metafísica para
além da experiência mundana não se toma partido da aparência, decretando que só a
aparência é verdade. Nietzsche mostra que sem a oposição metafísica que entende o mundo
fenomenal como aparência e o mundo das idéias ou de Deus como a verdadeira realidade,
não mais se pode sustentar sequer a idéia de dualidade de mundos. Sempre que Nietzsche
fala da realidade da aparência é em tom fortemente crítico à interpretação metafísica. Com
a passagem célebre acima, define-se a crítica radical à dualidade dos mundos. Não se pode
falar em realidade sem se falar em aparência e re-estabelecer a dualidade. Neste sentido,
Nietzsche identifica as duas categorias como forma de abolir a dualidade e escapar à
metafísica. “Não oponho a ‘aparência’ à ‘realidade’, ao contrário, considero que a
aparência é a realidade, o que resiste a toda transformação em um imaginário ‘mundo-
verdadeiro’.”
102
Os parênteses atestam para o cuidado no uso de tais termos. Mais uma vez
a insuficiência da linguagem se mostra com força. É preciso usar os termos clássicos da
metafísica para criticar a própria metafísica, daí a necessidade da versuch. O termo texto da
realidade, tomado de Éric Blondel, nos parece bastante adequado para se diferenciar do
simples realidade e, ao mesmo tempo, expressar o que se quer. Em Nietzsche, o texto da
100
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 2
101
Id., “Crepúsculo dos ídolos” I, Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula, 6
102
Id., “Fragments Posthumes”, XI 40 [53]
49
realidade aparece apresentado ora com o nome de aparência ora com o de realidade, mas
sempre como forma de combater a dualidade. De fato, a questão da idealidade ou realidade
dos fenômenos nunca atormentou Nietzsche de forma séria.
103
Passemos, então, para a interpretação de Nietzsche do texto da realidade. “A
aparência é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega
ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência (...)”
104
Nietzsche usa o conceito de
aparência para descrever a própria realidade e apontar para o fim da dualidade. Ao invés de
se concentrar nesta querela já superada, torna-se mais interessante a tentativa de perceber
como Nietzsche define, com esta passagem, o próprio texto da realidade. Nietzsche diz que
a aparência (ou realidade) é tudo aquilo que atua e vive. Sendo ainda mais impreciso, diz
que tudo aqui é aparência. Sendo assim, temos que o texto da realidade é isto tudo aqui que
vive e atua.
105
A definição nos soa insuficiente. Parece não ser possível definir o texto da realidade
de uma maneira mais precisa. Porém, é justamente neste movimento de tentativa de
definição que se explicita de forma mais clara o fato de que é impossível definir sem
interpretar. Buscar uma definição de realidade, definição sobre a qual Nietzsche sustentaria
sua hipótese interpretativa, é afirmar a existência de um sentido pré-interpretativo. Aquilo
que Nietzsche entende como realidade já é sua interpretação da realidade, não podendo se
falar em realidade anterior. É a mesma querela entre a interpretação e os fatos,
anteriormente colocada. Se não existem fatos, não existe realidade. Ambos só existem
como interpretação. Ao olhar para o mesmo texto, cada filósofo clássico o interpretou de
uma forma e buscou suas razões para defender a interpretação. Contudo, o próprio texto da
realidade só pode ser apresentado como interpretação. O critério para a validade de uma
hipótese não pode ser a verdade assim como não pode ser o sentido original do texto. Ao
contrário, Nietzsche atesta o caráter insondável da aparência, fazendo com que todo
pensamento sobre o texto da realidade seja, desde sempre, uma interpretação do texto da
103
Philonenko, “Nietzsche: Le rire et le tragique” pág. 60
104
Nietzsche, “Gaia ciência”, 54
105
É importante assinalar que o termo em alemão usualmente traduzido por realidade é wirklichkeit, que pode
ser traduzido também por efetividade. Tal palavra em alemão possui uma relação semântica com wirken
fazer efeito, aqui traduzido por atuação. Assim, se a vontade faz efeito (atua), ela pode ser uma boa
interpretação para a efetividade (realidade). Ver nota 73 de “Além do bem e do mal” op. Cit.
50
realidade. O papel da filologia é “fazer o ensaio de uma interpretação do texto da
realidade.”
106
Nietzsche buscará, mais uma vez, fugir aos falsos problemas da metafísica e, ao
abordar o texto da realidade, não se prenderá em sua definição ou em sua veracidade.
Buscará algo que expresse o caráter intrínseco a este texto e não uma definição estática
sobre aquilo que esta em perpétuo devir. “Um nome preciso para esta realidade seria
‘vontade de potência’, assim designada a partir de sua estrutura interna e não a partir de sua
natureza proteiforme, inapreensível e fluida.”
107
***
A versuch de Nietzsche termina por solapar aquilo que Klossowski chama de
princípio de realidade e princípio de identidade, beirando, assim, o delírio. Escapar a estes
princípios de fachada seria a própria definição de delírio. Mas é por ser extremamente
lúcido, isto é, é por aplicar as regras gramaticais com extremo rigor, que ela atinge tal
delírio. “Não é porque esse pensamento implica o delírio que ele seria ‘patológico’ – mas é
por ser altamente lúcido que ele toma as proporções da interpretação delirante – como
assim exige toda iniciativa experimental no mundo moderno.”
108
Assim, dissolve-se a
definição de identidade e realidade. A linguagem, sobre a qual sustenta-se a identidade,
desmascara a si mesma dentro do uso de suas próprias regras, tornando impossível qualquer
identificação para além de uma simplificação e facilitação da relação do homem com o
mundo. Para Klossowski, tais princípios servem ao controle por parte daqueles que se
julgam medidores do real. As “autoridade competentes (historiadores da filosofia) mas
também, e principalmente, os psiquiatras, medidores do inconsciente, (...) controlam a
extensão mais ou menos variável do princípio de realidade comprovado pelo homem que
pensa e age;”
109
e, por fim, a “ciência e seus experimentos que, ora fazem recuar, ora
aproximam, logo deslocam os limites e ‘retificam’ as demarcações entre o dentro e o
fora.”
110
Contudo, estas autoridades competentes perdem seu cetro de poder a partir do
desmascaramento da verdade como crença. O princípio de realidade torna-se uma crença no
106
Wotling, op. cit. 58
107
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 40 [53]
108
Klossowski, “Nietzsche e o círculo vicioso”, Introdução
109
Ibid., Introdução
110
Ibid., Introdução
51
princípio de realidade, justamente por se mostrar que este está fundado em uma linguagem
incapaz de dar conta da própria realidade, seja esta linguagem científica, jurídica ou
médica. A realidade, tornada interpretação, abre-se para as mais diversas perspectivas,
escapando ao controle das autoridades competentes, isto é, dos filósofos, teólogos,
psicólogos, psiquiatras, médicos e cientistas.
Para Klossowski, este movimento se dá quando Nietzsche desloca o pensamento das
regras exigidas pela linguagem institucional para ensinar a realidade e se transforma em um
movimento de humor ou de tonalidade da alma (Stimmung). A “tonalidade da alma,
convertida em pensamento”
111
rompe com os princípios de realidade e identidade
instaurando um mutismo. Afinal, como falar algo depois disto? – É o obstáculo onde
tropeça, logo de início, a vontade de ensinar.
“Ao se identificar com esse obstáculo mudo do humor para poder pensá-lo, o ‘professor
Nietzsche destrói, não apenas sua própria identidade, mas também a das instâncias falantes:
conseqüentemente, ele suprime a presença delas no seu próprio discurso e, juntamente com
essa presença, suprime o próprio princípio de realidade: sua declaração diz respeito a um
exterior que ele reduziu ao silêncio do seu próprio humor.”
112
O uso lúcido da linguagem metafísica usada pelas autoridades competentes para
justificar o real, quando usada para comunicar o estado de humor ou a tonalidade da alma,
isto é, os afetos, impõe a todos um silencio que nada mais é do que a constatação da
ausência de fundamento de todos edifícios teóricos de uma civilização, isto é, da condição
trágica da existência. “Ninguém vê que a ciência é ela mesma afásica. Bastaria que ela
pronunciasse sua ausência de fundamentos e nenhuma realidade subsistiria – daí lhe vem
um poder que a leva a calcular: é essa sua decisão que inventa a realidade. Ela calcula para
não falar, sob pena de cair no vazio.”
113
111
Klossowski, “Nietzsche et le cercle vicieux”, Introduction. Pág. 15. Tradução brasileira de Hortência S.
Lencastre, ed. Pazulin, pág. 19
112
Klossowski, op. Cit. pág. 15 . Trad. Bras. Pág. 19 e 20
113
Klossowski, op. Cit. pág. 16 . Trad. Bras. Pág. 20
52
8) A vontade de potência como hipótese interpretativa do texto da realidade
Toda argumentação sobre a verdade visa explicitar o problema moral da filosofia.
Mas, se Nietzsche dedica toda sua tarefa filosófica a esta última questão, é porque esta se
encontra no cerne de algo ainda maior a ser pensado, a saber, a vida. É somente enquanto
diminuidora e enfraquecedora da vida que a moral se torna um problema. São as
interpretações metafísicas do texto da realidade que têm por conseqüência o
desenvolvimento ou a legitimação de uma moral negadora dos impulsos mais básicos da
vida. Nietzsche quer da vida seu mais alto grau de potência. Potência esta, constantemente
enfraquecida pelos argumentos metafísicos, filosóficos ou religiosos, que insistem em
travestir a fraqueza em moral de virtude, a partir da idéia de verdade. É preciso uma nova
interpretação do texto da realidade que autorize a vida a expressar e buscar sua máxima
potência.
É apenas a partir deAssim falou Zaratustra” que Nietzsche passa a empregar o
termo vontade de potência. Na ocasião, fica claro que a crítica da moral necessita uma
complementação que aponte outro caminho. “Mas, para que compreendais minhas palavras
do bem e do mal, quero acrescentar, ainda, minha palavra sobre a vida e o modo de ser de
todo o vivente”.
114
No mesmo discurso, Zaratustra ainda fala: “Onde encontrei vida,
encontrei vontade de potência”.
115
A compreensão da vida como vontade de potência força
uma crítica radical à moral e aos valores estabelecidos. Vida, para Nietzsche, é
crescimento, é expressão imediata de potência. “Uma criatura viva quer, antes de tudo, dar
vazão a sua força – a própria vida é vontade de potência –”
116
A moral nunca aceitou que
seus valores são criações da própria vontade de potência, ao contrário, sempre negou esta
via e pregou a negação da vontade como uma espécie de ascese a um outro mundo
verdadeiro por trás desta vida; é preciso revalorizar esta última.
É no aforismo número 36 de “Além do bem e do mal” que Nietzsche expõe com
maior clareza sua nova hipótese interpretativa. Diante do texto da realidade, qual seria a
melhor forma de abordá-lo? Por onde deve o filósofo, crítico das categorias sistemáticas e
racionais, começar sua interpretação? Nietzsche assim responde:
114
Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”, Do superar a si mesmo.
115
Ibid., Do superar a si mesmo
116
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 13
53
“Supondo que nada seja ‘dado’ como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que
não possamos descer ou subir a nenhuma outra ‘realidade’, exceto à realidade de nossos
impulsos – pois pensar é apenas a relação destes inpulsos entre si –: não é lícito fazer a
tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir
do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou ‘material’)?”
117
Logo de início, Nietzsche constata que, para pensar todo o texto da realidade como
vontade de potência, seria preciso que esta hipótese desse conta de interpretar não só o
chamado mundo orgânico (o mundo das paixões, dos instintos e também das funções vitais
como nutrição, reprodução, etc.), mas também que sua estrutura bem interpretasse o que
chamamos de mundo inorgânico (ou mecânico). Será possível pensar estas duas categorias
a partir de uma mesma lógica, a partir de uma mesma hipótese? Será que aquilo que é
sentido como instinto também não poderia servir de direcionamento para esclarecer a parte
do texto da realidade a qual chamamos de inorgânica, ou até mesmo, por vezes, de
inanimada? – Nietzsche tentará pensar o mundo inorgânico como tendo a “mesma ordem
de realidade que têm nossos afetos – como uma forma mais primitiva do mundo dos
afetos”.
118
Tal alargamento da teoria dos instintos não só é desejada como, caso esta seja
aceita para pensar a vida orgânica, deve se tentar estendê-la para o restante do texto da
realidade.
“Afinal, não é apenas lícito fazer esta tentativa: é algo imposto pela consciência do método.
o admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (– até o
absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar com uma só: eis uma moral do método, à
qual ninguém pode se subtrair hoje; – ela se dá ‘por definição’, como diria um
matemático.”
119
Para Nietzsche, a abordagem do texto da realidade a partir dos desejos e das paixões
pode fornecer a chave não só para a vida humana, mas também para todo o texto da
realidade, ou ao menos para toda forma de vida. O que é decisivo é se aceitamos que o
texto da realidade pode ser descrito, definido, isto é, interpretado a partir do conceito de
vontade. “A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se
acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo – e no fundo a crença nisto é
117
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 36
118
Ibid., 36
119
Ibid., 36
54
justamente nossa crença na causalidade mesma –, temos então que fazer a tentativa de
hipoteticamente ver a causalidade da vontade como única.”
120
A palavra vontade implica na
aceitação de toda uma causalidade presente neste conceito. Aceitá-la significa dizer que se
vê no texto da realidade o movimento causal característico da vontade. Vimos que
Nietzsche relacionou o texto da realidade com isto tudo aqui que vive e atua. Assim, torna-
se importante saber se a vontade pode bem interpretar isto tudo aqui que vive a atua.
121
Uma vez que vida é vontade de potência, resta saber se a vontade atua efetivamente e, em
caso afirmativo, estender a lógica de sua causalidade a todo o texto da realidade.
No último trecho citado, fica claro não só o caráter hipotético da teoria da vontade
de potência, mas, principalmente, seu caráter de crença. Para que tal hipótese seja
verdadeira, é preciso que acreditemos na causalidade da vontade, no fundo, esta crença é a
crença na causalidade mesma. Precisamos acreditar na causalidade como conceito
regulador necessário à vida, mas sabemos que é mais um conceito de fachada, criado
mitologicamente pala necessidade, não sendo, portanto, uma verdade. A hipótese
interpretativa da vontade de potência não pode ser apresentada como pertencente a uma
outra ordem de experiência da verdade, uma vez que se funda na crença na atuação e
causalidade.
A causalidade da vontade, com a qual Nietzsche quer interpretar o texto da realidade
é bem descrita em um aforismo anterior do mesmo livro. Criticando a interpretação
científica que vê leis na natureza, Nietzsche diz que
“bem poderia vir alguém que, com intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na
mesma natureza, tendo em vistas os mesmos fenômenos, precisamente a imposição
tiranicamente impiedosa e inexorável de reivindicações de potência – um intérprete que lhes
colocasse diante dos olhos o caráter não excepcional e peremptório de toda ‘vontade de
potência’, em tal medida que quase toda palavra, inclusive a palavra ‘tirania’, por fim
parecesse imprópria, ou uma metáfora debilitante e moderadora – demasiado humana; e que,
no entanto, terminasse por afirmar sobre este mundo o mesmo que vocês [físicos] afirmam,
isto é, que ele tem um curso ‘necessário’ e ‘calculável’, mas não porque nele vigoram leis, e
120
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 36
121
Já aludimos ao parentesco semântico que há em alemão entre o termo “atuar” (wirken – fazer efeito) e
“realidade” (wirklichkeit). De forma que, quando Nietzsche busca falar da vontade como atuação – logo
acima: “A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante” ou mais adiante:
“‘Vontade’, é claro, só pode atuar sobre ‘vontade’” – está pensando em algo que seja efetivo (atue) e, assim,
bem interprete a efetividade (realidade).
55
sim porque faltam absolutamente as leis, e cada potência tira, a cada instante, suas últimas
conseqüências.”
122
A causalidade da vontade de que fala Nietzsche é ver na natureza, nos fenômenos,
no texto da realidade reivindicações de potência, definindo todo o texto a partir de uma
característica única, a saber, que cada letra do texto da realidade é, imediatamente e a cada
instante, expressão máxima da potência em suas últimas conseqüências. A potência é algo
que se expressa a cada instante em toda sua plenitude. Não é algo que está em vias de se
expressar e que pode ou não ser expresso. Potência é expressão imediata de força. Não há o
trabalho do negativo em Nietzsche. Todo o texto da realidade é expressão imediata de
potência, por isto, tira suas últimas conseqüências a cada instante. Aquilo que não existe
não possui potência para existir, pois toda potência está imediatamente expressa a cada
instante. Este é o caráter inexorável da vontade de potência. A outra característica é que
toda vontade se direciona para uma elevação de sua potência, não para a conservação. O
“‘querer-se-tornar-mais-forte’ emanando de todo centro de força é a única realidade – não
a autoconservação, mas a apropriação, querer-se-tornar-mestre, querer-se-tornar-mais,
querer-se-tornar-mais-forte.”
123
Se estas duas características podem ser reconhecidas em
todo o texto da realidade, então tal hipótese pode ser considerada como filologicamente
consistente.
Se aceita-se a vontade como atuante, tem-se que avançar ainda mais um passo.
“‘Vontade’, é claro, só pode atuar sobre ‘vontade’ – e não sobre ‘matéria’ (sobre ‘nervos’,
por exemplo –): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se
reconhecem ‘efeitos’, vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na
medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade.”
124
Se
todo efeito da vontade só pode se dar sobre outra vontade tem-se que:
Ou consideramos todo efeito como uma ilusão (pois nos forjamos a representação de causa e
efeito segundo somente o modelo de nossa vontade considerada como causa!) e, neste caso,
não se pode compreender absolutamente nada: ou nos resta tentar representar todo efeito
como sendo da mesma natureza que os atos da vontade; somos, então, necessariamente
122
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 22 (tradução modificada)
123
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [81]
124
Id., “Além do bem e do mal”, 36 (tradução modificada)
56
conduzidos a tentar a hipótese que todo evento de ordem mecânica, na medida em que uma
força aí se encontra em obra, será precisamente força da vontade. –
125
Desta forma, Nietzsche termina por “definir toda força atuante, inequivocamente,
como vontade de potência.”
126
Isto é, tanto o mundo orgânico quanto o inorgânico, na
medida em que se reconhece a vontade como efetiva e este efetivar-se como se dando sobre
outra vontade, são abarcados pela hipótese interpretativa da vontade de potência. “O mundo
visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’ – seria
justamente ‘vontade de potência’, e nada mais –”
127
9) O corpo como fio condutor
No aforismo 36 de Além do bem e do mal”, amplamente abordado na seção
anterior, Nietzsche inicia sua hipótese tomando os desejos e as paixões como ponto de
partida. Tais afetos são antes sentidos pelo corpo do que pensados pela consciência.
Nietzsche criticou arduamente as categorias representacionais conscientes em nome de uma
espécie de subsolo dos instintos e impulsos que constituiria até mesmo o próprio
pensamento. Assim, não é de se estranhar que inicie sua teoria a partir dos desejos e das
paixões, isto é, em última instância, do corpo. Se o próprio pensamento é a relação desses
instintos, porque não começar por aí a busca pela interpretação do texto da realidade, ao
invés de se começar pelo pensamento e pela consciência?
“Tomar por ponto de partida o corpo e fazê-lo um fio condutor, eis o essencial. O
corpo é um fenômeno muito mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no
corpo é mais bem estabelecida que a crença no espírito.”
128
O corpo é o ponto de partida de
onde o homem se relaciona com o resto do mundo, o ponto a partir do qual o homem sente
e pensa todo o resto, sendo a própria consciência e o pensamento uma decorrência de
atividades pulsionais provenientes do corpo. Se o corpo é mais importante que o
pensamento consciente é porque o “pensamento é, com efeito, apenas uma instância
125
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 40 [37]
126
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 36
127
Ibid., 36 (tradução modificada)
128
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 40 [15]
57
derivada, descritível a partir do jogo dos instintos, das paixões e das necessidades que
constituem o corpo.”
129
Uma vez que não há fundamentação última para o conhecimento, uma vez que as
categorias da razão nos apresentam apenas uma interpretação na qual se crê como verdade,
ainda que por necessidade, há que se estabelecer uma hierarquia das crenças.
130
A fé no
corpo é mais fundamental do que a fé na alma: esta última provém das aporias da
concepção não científica do corpo.”
131
O corpo, como único “dado”, está no topo desta
hierarquia, pois ele é nossa afecção da vontade de potência. As paixões e os desejos são
expressões da vontade de potência no tocante ao caso particular da vida humana. O corpo
oferece uma perspectiva mais confiável do que a perspectiva do espírito e do intelecto. “Se
o corpo considera tanto nossas forças mais imediatas como as mais distantes, por sua
origem, tudo aquilo que o corpo diz seu bem estar e seu mal estar – nos dá as melhores
informações sobre nosso destino.”
132
Mesmo que se pudesse objetar os enganos aos quais o
corpo nos submeteria, através dos sentidos, o próprio espírito só pode ser pensado a partir
da existência deste corpo.
“E finalmente, se a crença no corpo não é mais do que a conclusão de um raciocínio: a supor
que esta conclusão seja falsa, como afirmam os idealistas, não seria isto um ponto de
interrogação para a própria credibilidade do espírito, que seria assim, a causa de conclusões
falsas? A supor que o número, o espaço, o tempo e o movimento (e todas as condições
anteriormente necessárias à crença na corporeidade, quaisquer sejam elas) sejam erros – a
qual desconfiança isto não nos levaria a respeito do espírito que nos teria colocado tais
hipóteses? É suficiente: a crença no corpo é provisoriamente ainda uma crença mais forte que
a crença no espírito: e quem quiser destruí-la, destruirá também, precisamente com isto, e
mais radicalmente – a crença na autoridade do espírito!
133
A crença no espírito pressupõe a crença no corpo, ora, é deste que partem as
percepções necessárias para a formulação do primado daquele. O trabalho da moral executa
uma inversão onde o pensamento tenta ensaiar um controle dos impulsos a partir da
linguagem, selecionando os impulsos permitidos e normais e os proibidos e anormais. A
linguagem inicial do corpo, isto é, a linguagem de seus impulsos, é falsificada pelo trabalho
129
Wotling, op. cit. pág. 65
130
Wotling, op. cit. pág. 64
131
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 2 [102]
132
Klossowski, op. cit. pág. 50. Trad. Bras. Pág. 44
133
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 36 [36]
58
da consciência. “O corpo quer se fazer compreender por intermédio de uma linguagem de
signos, falaciosamente decifrados pela consciência: esta constitui este código de signos que
inverte, falsifica, filtra aquilo que se exprime através do corpo. A própria consciência não é
outra coisa senão o código cifrado das mensagens transmitidas pelos impulsos: a decifração
é em si a inversão da mensagem que o indivíduo se atribui (...)”
134
Inversão da hierarquia
onde o corpo perde o primado para a consciência. Fica claro a necessidade de se estabelecer
uma hierarquia das crenças e o corpo deve assumir o primado desta hierarquia, pois além de
mais imediato não se constitui em uma unidade e em um fundamento último. “Tendo o
corpo como fio condutor, uma prodigiosa diversidade se revela; é metodologicamente
permitido utilizar um fenômeno mais rico e mais fácil a estudar como fio condutor para
compreender um fenômeno mais pobre.”
135
Uma vez que vida orgânica e inorgânica estão
relacionados a uma mesma constituição, o corpo apresenta uma possibilidade amplamente
mais favorável ao estudo. Se não se acredita nas paixões e nos desejos do corpo, como
admitir uma maior realidade para os demais fenômenos? Ainda que se pense o caráter dos
fenômenos como ilusório e aparente, direcionando o “conhecimento” para um plano
transcendental, tal pensamento, por ser pensamento, já é a expressão do jogo dos impulsos
entre si. Desqualificar-se-ia assim, o ponto de partida que permite a própria crença no
espírito, pois esta se dá a partir do corpo, ainda que tente, posteriormente, desqualificá-lo.
Para Nietzsche, os instintos não mentem. “O que fazemos do seu testemunho é que introduz
a mentira; por exemplo, a mentira da unidade, da substância, da duração... A ‘razão’ é a
causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos.”
136
Neste sentido, Nietzsche “não
defende uma ‘higiene’ do corpo, estabelecida pela razão. Defende os estados corporais
como dados autênticos que a consciência não pode deixar de escamotear, por ser um
deles.”
137
A partir da inversão operada pela moral, inicia-se a busca por uma suposta
estabilidade do corpo entendida como repetição dos mesmos impulsos. Tal sentimento de
unidade somente no sentido gramatical pode ser chamada de “eu”. “Esse corpo mesmo,
porém, não é senão um encontro fortuito de impulsos contraditórios, temporariamente
134
Klossowski, op. cit. pág. 52 Trad. Bras. Pág. 46
135
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 2 [91]
136
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, A ‘razão’ na filosofia, 2
137
Klossowski, op. cit. pág. 52. Trad. Bras. Pág. 46
59
reconciliados.”
138
O corpo é um encontro fortuito de impulsos, onde ora um domina ora
outro, sendo o corpo o resultado deste embate a cada instante. A estabilidade do “eu” é
garantida pela linguagem. Porém, só pode ser uma estabilidade fictícia e temporária, que
não leva em conta o incessante movimento de metamorfose que define a vida como vontade
de potência.
“Se há uma forma de unidade no eu, ela não repousa certamente sobre o eu consciente e sobre
o sentimento, a vontade, o pensamento: mas na inteligente capacidade de todo meu organismo
de conservar, de se apropriar, de reparar, de superar, capacidade onde meu eu consciente não
é mais do que um instrumento. Sentir, querer, pensar não testemunham nada mais do que
fenômenos terminais onde as causas me são totalmente desconhecidas.”
139
É interessante notar que até mesmo as categorias de sentir e querer são colocadas
como pontos terminais de uma série pulsional da qual nada se sabe ao certo. Nietzsche
chega a afirmar uma espécie de duplicidade na capacidade de querer, sentir e pensar onde a
consciência que temos destes seriam um resíduo do querer, sentir e pensar inconsciente
140
.
Ao se pensar aquilo que se sente, já se está consciente, já se está a pagar o tributo às
limitações da linguagem. Ao atribuir prioridade à consciência, busca-se a fixação daquilo
que está em constante metamorfose. Fundamentar uma suposta unidade do “eu” nas
categorias da linguagem significa desconhecer que o verdadeiro trabalho que mantém a
vida se encontra fora do alcance do entendimento humano. Somente este trabalho
subterrâneo impossível de teorizar poderia ser entendido como uma suposta unidade devido
a sua regularidade. Todavia, esta unidade se diferencia completamente de um “eu”
consciente, se definindo justamente pela capacidade que o corpo tem de inconscientemente
se conservar, crescer, etc. O corpo é a expressão de uma disputa dos impulsos por primazia.
Por mais que haja supremacia de um impulso, os demais permanecem atuando e o resultado
se altera a cada instante. “Somos apenas uma sucessão de estados descontínuos em relação
ao código dos signos cotidianos, sobre a qual a rigidez da linguagem nos engana: enquanto
dependemos desse código, podemos conceber nossa continuidade, embora vivamos de
modo descontínuo: mas esses estados descontínuos dizem respeito apenas ao nosso modo
138
Klossowski, op. cit. pág. 54. Trad. Bras. Pág. 48
139
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 34 [46}
140
Id., “Fragments Posthumes”, XI 34 [87]
60
de nos servimos ou não da rigidez da linguagem: ser consciente é se servir dela.”
141
A
crença no primado da consciência ignora que esta disputa se dá em um terreno do qual nada
sabemos e chega ao ponto de tomar as manifestações conscientes como únicas verdades.
Nietzsche apresenta sua hierarquia: “Trata-se de definir corretamente a unidade que
engloba o pensamento, a vontade, a sensação e todas as paixões: é manifesto que o intelecto
não é mais do que um instrumento; mas entre as mãos de quem? Das paixões é claro: e elas
formam uma pluralidade no último plano do qual não é necessário supor uma unidade: é
suficiente considerar esta pluralidade como um tipo de regência.”
142
Regência ao invés de
unidade. A pluralidade e a disputa dos impulsos criam uma condição que pode ser mais
bem descrita pela idéia de regência, pois esta respeita a disputa por primazia e a
possibilidade de mudança. A idéia de unidade do “eu” aponta para uma estabilidade que
não existe.
Para que um pensamento chegue à consciência, é preciso que já se tenha
desenvolvido todo o trabalho pulsional que tem curso subterraneamente. “Por mais longe
que alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais incompleto do que sua imagem
da totalidade dos impulsos que constituem seu ser.”
143
Tomar a consciência e a razão, ou
até mesmo o pensamento, como princípios capazes de nos oferecer alguma realidade em si
é tomar a representação das manifestações dos impulsos por ponto de partida e fazer da
percepção mais tardia o ponto inicial, é tomar o sintoma como causa. “Tudo que chega
enquanto unidade à consciência é já monstruosamente complicado: não temos nada além de
uma aparência de unidade. O fenômeno do corpo é um fenômeno mais rico, mais claro,
mais apreensível: para ser posto em primeiro lugar, do ponto de vista do método, sem nada
buscar esclarecer de sua significação última.”
144
Não temos acesso a esta atividade
subterrânea dos instintos, tudo o que chega a ser pensado já é um estado infinitamente
posterior e elaborado do trabalho corporal. Não há como a consciência esclarecer por
completo o trabalho pulsional.
“Por dentro, ninguém sabe, nem poderíamos saber o que é que se designa em nós: pois,
mesmo quando estamos sozinhos – silenciosos – falando a nós mesmos, no nosso interior, é
141
Klossovski, op. cit. pág. 69 Trad. Bras. Pág. 61
142
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 40 [38]
143
Id., “Aurora”, 119
144
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 5 [56]
61
sempre o exterior que nos fala – graças a esses signos do exterior que nos ocupam e cujo
rumor cobre totalmente nossa vida pulsional: até mesmo a intimidade, até mesmo a pretensa
vida interior, tudo isso ainda é o resíduo dos signos instituídos no exterior, sob pretexto de
nos dar um significado, de modo ‘objetivo’, ‘imparcial’: resíduo que, provavelmente, toma a
configuração do movimento pulsivo próprio de cada um, logo, assume os contornos dos
nossos modos de reagir a essa invasão de signos que não inventamos. Isso é a nossa
consciência”
145
Ao chegar à consciência um impulso torna-se inteligível a nossas categorias. Com a
ajuda destas categorias o homem tenta dominar massas enormes de acontecimentos
exteriores e interiores. Mas um estado interior, que é o estado da relação entre os impulsos
naquele instante, ao se apresentar à consciência e ao ser pensado é, imediatamente,
traduzido pelos signos da linguagem. Esta, por melhor instrumento que seja, é ainda um
instrumento e, portanto, uma criação, uma simplificação, uma abreviação dos impulsos em
signos. “A falta fundamental consiste sempre nisto, que no lugar de compreender o estado
consciente como instrumento e singularidade da vida em seu conjunto, nós lhe colocamos
como critério, como sendo o estado de valor supremo da vida: perspectiva equivocada da
parte ad totum.
146
A linguagem fornece uma forma instrumental de se relacionar com o
mundo, talvez a única forma ao alcance do homem. Mas acreditar que tal capacidade é a
própria vida significa esquecer-se do caráter representacional dos conceitos. “A linguagem
pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um
âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica
da linguagem, isto é, da razão.”
147
Existe um certo antagonismo entre as forças pulsionais e as forças conscientes, elas
lutam entre si por preponderância naquilo que chamamos indivíduo. Os impulsos tentam se
fazer ouvir, mas, para que o sejam, é preciso passar pela consciência e, neste ponto, esta o
interpreta de forma falsificadora, podendo buscar controlá-lo, caso o interprete como sendo
nocivo àquilo que ela (consciência) pressupõe ser o estado desejável. Assim, a consciência
pode tentar desviar o corpo de sua relação com seus instintos e forçar, nem sempre com
sucesso, uma interpretação moral destes.
145
Klossowski, op. cit. pág. 67. Trad. Bras. Pág. 59
146
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 10 [137]
147
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, A ‘razão’ na filosofia, 5
62
“O corpo, na medida em que é apreendido pela consciência, deixa de ser solidário dos
impulsos que o atravessam, os quais, porque o formaram apenas fortuitamente, continuam a
mantê-lo de modo não menos fortuito. Acontece que o órgão que eles assim desenvolveram,
na extremidade ‘superior’, toma essa manutenção fortuita, aparente, como sendo necessária à
sua conservação. Sua atividade ‘cerebral’ seleciona, de agora em diante, somente as forças
que o conservam, ou melhor, o assimilam a essa atividade. O corpo adota reflexos que só o
mantém para essa atividade cerebral, da mesma forma que esta adota o corpo como sendo,
de agora em diante, seu produto.”
148
Desta forma, o trabalho da consciência sobre os impulsos, sua interpretação
falsificadora termina por negar o corpo e criar aquilo que entendemos como pessoa. Nega-
se que o corpo seja o encontro fortuito dos impulsos para atribuir-lhe uma constância que
termina por obstruir sua atividade pulsional anterior, cristalizando-o em uma forma que
será exigida como estatuto de normalidade. O “corpo como corpo não é mais sinônimo de
si mesmo: instrumento da consciência, ele se torna, mais exatamente, o homônimo da
‘pessoa’.”
149
O corpo apenas consciente não é mais corpo, é um instrumento moral. A
submissão da vida à sua porção consciente termina por negar a si mesma na medida em que
nega manifestações mais naturais em detrimento das mais tardias e superficiais.
Klossowski associa os grandes sofrimentos físicos de Nietzsche a esta tentativa de
fazer o pensamento escapar à linguagem convencional para dar conta da vida. “Se o corpo
sente dores a este ponto, se o cérebro não envia mais nada, a não ser sinais de angústia, é
que se trata aqui de uma linguagem que procura se fazer às custas da razão.”
150
Em busca
de uma filosofia dos afetos, a “pessoa Nietzsche” ou o sujeito terminam por se dissolver, na
medida em que são construções sócio-culturais em todos os sentidos. Todas as ações,
comportamentos e até sentimentos de uma pessoa qualquer” são desenvolvidos a partir de
uma sociabilidade que torna suas ações previsíveis e confiáveis dentro de um padrão
específico. Vencer o sujeito ou a pessoa social e tornar-se o reflexo de seus próprios
impulsos implica em pensar, sentir e agir de uma forma diferente. Trata-se de uma nova
inteligência que estará submetida a critérios fisiológicos. Diante da inviabilidade de um
pensamento e um conhecimento que não sejam fachadas forjadas pelo contexto social, isto
é, diante da impossibilidade de fuga da moral, Nietzsche chega a um impasse: “ou ele
148
Klossowski, op. cit. pág. 53. Trad. Bras. Pág. 47
149
Id., op. cit. pág. 53. Trad. Bras. Pág. 47
150
Id., op. cit. pág. 51. Trad. Bras. Pág. 45
63
apaga todo pensamento possível, ou então atinge o delírio do pensamento.”
151
Tentar fugir
à instrumentalidade e superficialidade do pensamento demonstra ser uma tarefa quase
impossível, pois ou não se pode pensar por falta de categorias e devido à superficialidade
destas, ou o pensamento delira para fora de todas as regras representacionais implodindo a
si mesmo. O sofrimento físico aparece como conseqüência inevitável de um pensamento
que atinge o limite da possibilidade de pensar, isto é, atinge o liame ente a consciência e os
impulsos. O pensamento de Nietzsche vai até onde não pode mais ir sem deixar de ser
pensamento, obrigando sua consciência a se dobrar ao pensamento impulsivo que
ultrapassa os limites da razão. Daí a idéia de delírio.
Segundo Klossowski, tem-se a tendência a negligenciar tais tipos de pensamento
justamente porque eles podem implicar na dissolução de toda capacidade relacional do
indivíduo; “o preposto físico do meu próprio eu parece rejeitar meus pensamentos, que não
lhe garantem mais sua coesão: pensamentos originários de um estado estranho ou contrário
a aquele que o preposto físico exige mas que é idêntico ao meu próprio eu.”
152
É
interessante notar que Klossowski usa o termo preposto físico (suppôt physique) e não
corpo, isto porque a idéia de corpo vem sendo usada como necessariamente respeitadora
dos impulsos, o corpo apenas consciente não é mais corpo, é apenas um preposto físico.
Mas, a filosofia de Nietzsche não implica em loucura. O filósofo busca de todas as
maneiras manter uma certa forma de coesão. Contudo, não uma coesão entendida pela
repetição das mesmas ações comandadas pela razão, mas uma coesão entre corpo e
pensamento que saiba dar conta do campo impulsivo. Trata-se de uma nova forma de
pensar e sentir, uma forma que ponha a vida em primeiro lugar, ao invés da metafísica, da
moral, dos valores estabelecidos ou do status quo. Nietzsche “luta, ao mesmo tempo, com
os impulsos que vão e vem e por uma coesão do pensamento com o corpo, pensamento
corporalizante: isto, seguindo o que ele chama diversas vezes de fio condutor do corpo: ele
procura então segurar esse fio de Ariadne no labirinto que os impulsos descrevem, segundo
as alternâncias dos seus estados valetudinários.
153
Já foi visto que a crença na linguagem é necessária para a sobrevivência de seres
como nós, mas não se pode tomar uma representação instrumental como critério de
151
Klossowski, op. cit. pág. 51. Trad. Bras. Pág. 45
152
Id., op. cit. pág. 54 . Trad. Bras. Pág. 49
153
Id., Op. cit. pág. 56. Trad. Bras. Pág. 50
64
verdade. A impossibilidade deste critério reside na incapacidade de se acessar o movimento
do corpo ao se usar as categorias representacionais. “Trata-se aqui de um ataque direto
contra a necessidade da linguagem: pois, ainda que seja ela a usurpadora, ela não nos
permite nunca falar de outra forma do nosso fundo ininteligível, a não ser colocando
naquilo que não é pensado, nem dito, nem desejado, um sentido, um objetivo que pensamos
de acordo com a linguagem.
154
A filosofia paira, assim, nesta necessidade de dizer o
indizível, instaurando o mutismo de que fala Klossowski. O próprio pensamento silencioso
de nós com nós mesmos já está enredado neste amalgama de signos que tentam traduzir os
sentimentos. E sempre falham, ao menos no essencial. Este movimento se diferencia do
trabalho visto no mundo inorgânico, onde cada força se expressa imediatamente,
configurando um estado específico. Por mais que este movimento se dê também na vida
humana, ao ser pensado ele dá inicio ao processo de erro e mal entendimento inerente à
linguagem.
“No mundo inorgânico, não há mal entendido, a comunicação é sempre perfeita. No mundo
orgânico começa o erro. ‘Coisas’, ‘substâncias’, propriedades, atividades – não se deve
transferir tudo isto para o mundo inorgânico! Estes são os erros específicos graças aos quais
os organismos vivem.”
155
O pensamento está fundado sobre a rigidez dos signos da linguagem que tentam
traduzir o jogo pulsional, sendo apenas abreviações desses impulsos. Mas tal tradução
resulta sempre em insucesso, pois está sempre aquém daquilo que se quer comunicar. A
consciência, na medida em que só pode trabalhar com o regime dos signos, está fadada à
prisão nesta rigidez, da qual Nietzsche tenta fugir. A própria idéia de inconsciente, ao ser
uma idéia, já se encontra aprisionada em tal rigidez e, portanto, a divisão entre consciente e
inconsciente se torna difícil de ser mantida, na medida em que a consciência não pode
traduzir o jogo do inconsciente sem perdê-lo quase que por completo e, da mesma forma,
porque o inconsciente não pode ser pensado sem que se torne consciente. Usar a linguagem
para fazer o inconsciente falar é, ainda, consciência. “Portanto, os termos de consciência e
de inconsciência não respondem a nada de real: se Nietzsche os utiliza, é apenas por
convenção ‘psicológica’, mas ele deixa subentendido aquilo que não diz: ou seja, que o ato
154
Klossovski, op. cit. pág. 71 e 72 . Trad. Bras. Pág. 63
155
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 1[28]
65
de pensar corresponde a uma passividade. Que esta passividade está fundada sobre a rigidez
dos signos da linguagem cujas combinações simulam os gestos, os movimentos que
reduzem a linguagem ao silêncio.”
156
A consciência aparece como um sintoma dos
impulsos, porém, por usar a linguagem, afasta-se cada vez mais dos próprios impulsos.
O que está no fundo das paixões não pode ser trocado nem expresso por nenhum
regime de signos. Sequer pode ser pensado, pois este pensamento já depende, de início, de
um regime de signos representacionais. É esta impossibilidade de designação e troca que
caracteriza a dificuldade da filosofia. Se “a crença no corpo não é mais do que a conclusão
de um raciocínio”
157
, como o próprio Nietzsche diz, torna-se interessante notar que a
própria proposta do corpo como fio condutor também aparece como fruto de um
pensamento e, portanto, ao se pensar o corpo já se perderia seu caráter pulsional, uma vez
que o próprio pensamento se dá pela linguagem, não havendo como se atingir aquilo a que
Nietzsche quer chegar. “É, portanto, apenas a partir dessa impossibilidade de troca que nos
protegemos com essa proteção a que chamamos de conhecimento, cultura, moral, todos
fundamentados no código dos signos cotidianos. Por baixo dessa proteção haveria esse
nada, ou esse fundo, que Nietzsche não ousa pronunciar.”
158
A dificuldade consiste em
expressar em palavras a autenticidade da vida.
Aparentemente, então, não haveria sentido no filosofar, pois é impossível dar conta
da vida. Mesmo assim, se Nietzsche não abandona seu projeto é por perceber que, a partir
de um extremo domínio sobre a linguagem é possível dobrá-la e fazê-la dizer algo que
possa ao menos direcionar-nos para outro caminho diferente daquele até então seguido pela
filosofia; em poucas palavras, é possível direcionar a filosofia para longe da moral, apesar
da linguagem. A linguagem como abreviação dos movimentos impulsivos não serve apenas
à tentativa de controle dos desejos, é possível usar a mesma linguagem para liberá-los,
permiti-los. Contudo, a tarefa de Nietzsche é mais difícil do que a do pensamento
metafísico, porque o controle moral exercido por este defende a identidade do conceito com
a coisa e atesta a veracidade e adequação da linguagem, científica ou filosófica, no trabalho
de “explicação” da realidade, sendo, portanto, mais facilmente crível. Para fazer a crítica
156
Klossovski, op. cit. pág. 72 . Trad. Bras. Pág. 63. Sobre a passividade do pensamento, ver “Além do bem e
do mal”, 17. “a saber, que um pensamento vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero; de modo que é
um falseamento dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’.”
157
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 36 [36]
158
Klossowski,op. cit. pág. 68. Trad. Bras. Pág. 60
66
desta estrutura, Nietzsche ainda se vê forçado a usar as mesmas categorias da linguagem
metafísica, mas não só precisa fazê-las falar algo diferente, como, mais radicalmente, não
pode postular a veracidade última de suas proposições. Nietzsche, ao mesmo tempo em que
usa a linguagem para fazer o corpo falar, precisa desqualificar esta mesma linguagem por
ser apenas uma simplificação ilusória de todos os movimentos que está a descrever. Caso
não tomasse esta providência, todo seu trabalho se arruinaria em dogmatismo. Se Nietzsche
segue em seu filosofar é porque sabe que nos dar “o conhecimento dessa perspectiva
ilusória, a ‘consciência’ dessa ‘inconsciência’, significa criar, de uma só vez, condições
para uma nova liberdade, uma liberdade criadora.”
159
Tomar o corpo não como fundamento, mas como ponto de partida de nossa relação
com o mundo, como ponto de vista interpretativo sobre o texto da realidade, pois o corpo é
nossa expressão da vontade de potência, isto é, da vida em nós – eis o essencial que
justifica a hipótese e o método. “O corpo é um conceito que somente possui sentido em
Nietzsche quando relacionado à teoria dos afetos. Não se trata de uma entidade material,
um substrato físico autônomo, uma res extensa, mas um termo que serve a designar, em sua
multiplicidade irredutível, o jogo conflituoso dos instintos que é o jogo da vontade de
potência. Nietzsche está, então, como antípoda de toda posição inocentemente
cientificista.”
160
É a partir da experiência do corpo que Nietzsche formulará seu
pensamento sobre a vida, chegando à hipótese da vontade de potência. “É, então, a partir da
representação da vida, fornecida por uma reflexão sobre a forma de vida tal qual o homem
a experimenta, a saber, o corpo, que Nietzsche constrói sua hipótese da vontade de
potência”
161
10) Vontade de potência
A adoção do termo vontade não aparece sem ressalvas na filosofia de Nietzsche.
Seria inclusive uma incongruência se entendesse que, com este termo, todos os problemas
estariam resolvidos. Muito pelo contrário, Nietzsche não só usa de grande cautela ao falar
da vontade de potência como chega em certos momentos até mesmo a negar a existência de
159
Klossovski, op. cit. pág. 81 . Trad. Bras. Pág. 70
160
Wotling, op. cit. 90
161
Wotling, op. cit. 67
67
vontade, devido à maneira pela qual este termo havia sido pensado até então.
162
As
reticências do filósofo se devem, em grande parte, às próprias limitações da linguagem às
quais já aludimos inúmeras vezes. O que não impede o filosofar, mas impõe a modéstia e a
cautela. O que descontenta Nietzsche é o fato de que os “filósofos costumam falar da
vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do mundo”.
163
A palavra vontade é uma
palavra amplamente usada no vocabulário coloquial, mas isto não a torna de definição fácil.
“Querer me parece, antes de tudo, algo complicado, algo que somente como palavra
constitui uma unidade (...)”
164
. Nietzsche fez várias tentativas, registradas principalmente
nos fragmentos póstumos, de definir vontade. A primeira coisa que ressalta é a pluralidade
de elementos constituintes daquilo que usualmente se chama pelo único nome de vontade.
“Há reunido em todo ato de vontade uma pluralidade de sensações
165
; “digamos que em
todo querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações (...)”
166
. Aquilo que se sente
como vontade já traz consigo inúmeras sensações como o estado que se tinha antes de
senti-la, o estado para o qual se passa ao senti-la, toda mudança que ocorre no corpo com a
passagem, etc. Todo o organismo se modifica a cada nova vontade.
“Portanto, assim como o sentir, aliás muitos tipos de sentir, deve ser tido como ingrediente do
querer, do mesmo modo, e em segundo lugar, também o pensar: em todo ato da vontade há
um pensamento que comanda; — e não se creia que é possível separar tal pensamento do
‘querer’, como se então ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade não é apenas um
complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto: aquele afeto do comando.”
167
Mais do que uma simples sensação, a vontade é um complexo amalgama de estados
onde o pensar também se faz presente, sendo indissociáveis a vontade e o pensamento que a
acompanha. Já vimos que o próprio pensamento se encontra mais próximo do domínio das
paixões do que se supõe tradicionalmente. Nada estranho, pois, se junto ao querer e ao
sentir, tenha-se o pensar. A estes, Nietzsche acrescenta ainda o afeto, o afeto de comando.
Sendo a vontade este afeto de comando por excelência. Isto é, a vontade participa de um
162
Por exemplo: Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 9 [98]
163
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19
164
Ibid., 19.
165
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 38 [8]
166
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19
167
Ibid., 19.
68
jogo de mando e obediência, de afetar e ser afetado, que envolve inúmeras sensações e
pensamentos.
Em outros pontos Nietzsche mantém sua busca tateante: “Trata-se de definir
corretamente a unidade que engloba o pensamento, a vontade, a sensação e todas as
paixões”
168
. Ou ainda, criticando a compreensão racionalista do conhecimento que vê o
mundo como atuação de uma Razão superior, diz: “nós tentamos compreender o mundo
graças à concepção inversa – como se nada agisse nem fosse real, senão pensar, sentir,
querer...
169
Por fim, “a vontade de potência, não um ser, não um devir, mas um pathos é o
fato mais elementar
170
O mundo como resultado do trabalho de um pathos. Este pathos
sendo algo próximo, no homem, do querer, sentir, pensar, isto é, dos impulsos, dos instintos
e dos afetos. Este caráter pulsional inerente à vida é a vontade de potência, é o impulso
volitivo da potência para se expressar a cada instante, tirando suas últimas conseqüências e,
assim, crescendo em força. “Não há lei: cada espécie, a cada instante, tira sua última
conseqüência. É precisamente sobre o fato de que não há mezzo termine que repousa a
racionalidade.”
171
É justamente a ausência de leis no exercício da força que torna a
racionalidade um instrumento, pois ela identifica e cataloga experiências que vão se
tornando conhecidas com a repetição. Esta repetição se dá, justamente, porque não há
regras no trabalho da força a não ser o exercício imediato de toda sua potência a cada
instante. Desta forma, o mundo é visto como jogo de forças, porém, cada força atua sempre
em busca de crescimento, daí a inexorabilidade da luta. É a esta característica de luta
incessante por crescimento inerente a toda força que Nietzsche chama de vontade de
potencia, é isto que precisa ficar evidenciado ao se pensá-la.
“Este vitorioso conceito de ‘força’, necessita ainda de um complemento: é preciso atribuir-lhe
uma dimensão interior que chamarei ‘vontade de potência’, quer dizer, apetite insaciável de
demonstração de potência; ou do uso e do exercício de potência, sob forma de instinto
criador, etc.”
172
168
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 40 [38]
169
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [153]
170
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79]
171
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79]
172
Id., “Fragments Posthumes”, XI 36 [31]
69
Só existe vontade atuando sobre vontade, desta forma, um “quantum de potência se
define pelo efeito que produz ou ao qual resiste. (...) É essencialmente uma vontade de
exercer a violência e de se defender da violência.”
173
A vontade de potência é aqui definida
em seu efetivar-se. A vontade de potência é esta violência relacional a outra vontade. É um
jogo no qual cada vontade expressa toda sua potência a cada instante, violentando e sendo
violentada, dominando e obedecendo, afetando e sendo afetada. Assim, Nietzsche vê o
mundo como correlação de forças em combate umas com as outras, não havendo nada que
escape a esta característica. “Não restam ainda as ‘coisas’, mas quanta dinâmicos: cuja
essência reside em sua relação com todos os outros quanta, em suas ‘ações’ sobre estes – a
vontade de potência, não um ser, não um devir, mas um pathos é o fato mais elementar, de
onde só poderá resultar em um devir, um ‘agir sobre’
174
A idéia de pathos vem do afeto de
comando inerente à vontade, o que existe é a expressão das forças em relação umas com as
outras, afetando e sendo afetadas, em direção ao aumento de potência. Não se deve
diferenciar conceitualmente, de forma estrita, os conceitos de força e de vontade. Toda
força atuante é definida como vontade, a vontade de potência sendo a característica de toda
força, a qualidade que a define. “Que toda força motora é vontade de potência, que não
existe fora dela alguma força física, dinâmica ou psíquica...”
175
Se vontade atua sobre vontade, então não pode haver uma só vontade. A vontade de
potência não existe como unidade, somente em sua multiplicidade. Se a vontade de
potência é a qualidade inerente às forças em relação, ela só pode ser pensada como unidade
a partir da idéia de organização. “Toda unidade só é unidade enquanto organização e
conjunto: tal como uma comunidade humana é uma unidade, e não de outra forma: sendo
então, o contrário de um anarquismo atomista; e então, uma formação de dominação, que
significa o Um, mas não é um.”
176
Em seu jogo de dominação, a vontade que subjuga outra
torna-se mais forte com ela, redireciona a vontade subjugada e forma com esta uma união
não estável e sempre conflituosa, uma espécie de organização unitária. O aumento de
potência vem do agrupamento de diferentes forças numa mesma direção.Se ponderamos,
de início, que essas aglomerações de quanta de poder ininterruptamente aumentam e
173
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79]
174
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79]
175
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [121]
176
Id., “Fragments Posthumes”, XII 2 [87]
70
diminuem, então só se pode falar de unidades continuamente mutáveis, não, porém, da
unidade.”
177
Estas organizações de quanta de poder estão em perpétuo movimento de
conflito onde a própria força subjugada permanece exercendo pressão e resistência de
maneira que a configuração muda com freqüência.
Se a vontade de potência aparece como “o desejo fundamental”
178
, ou como
conjunto de todos os desejos, na medida em que estes se especializam cada vez mais
179
, é
porque Nietzsche vê os desejos e paixões como formas de expressão da vontade de
potência. Daí a psicologia, ao estudar os desejos e paixões, ser definida “como morfologia e
teoria genética da vontade de potência”.
180
Já foi visto que Nietzsche parte dos desejos
para formular a hipótese interpretativa da vontade de potência, esta, por sua vez, desdobra-
se como caráter intrínseco de todo o texto da realidade. Se o filósofo assim procede é
porque “a vontade de potência é a forma primitiva do afeto, que todos os outros afetos são
apenas seu desenvolvimento”
181
. Isto significa que a dinâmica dos afetos possui a mesma
característica anteriormente descrita para caracterizar a vontade de potência, ou seja,
caracteriza-se pela atuação conflitante de forças em busca de supremacia e fortalecimento.
É a partir do corpo como jogo de impulsos, paixões, instintos, afetos e desejos, enfim,
como pathos que Nietzsche desdobra sua teoria da vontade de potência, pois vê em todo o
texto da realidade a mesma dinâmica de luta por crescimento.
182
“A vida não é um meio
para qualquer coisa: ela é expressão de forma de crescimento da potência.”
183
Jogo e luta de
forças, é assim que Nietzsche interpreta a vida como expressão da vontade de potência. “A
vida estaria por definir como uma forma durável de um processo de equilibração de forças
ou de diferentes combatentes se desenvolvendo cada um por sua vez de forma desigual.
184
A luta é incessante e perpétua, contudo, mesmo quando uma força é vencida e submetida a
177
Muller-Lauter, “A doutrina da vontade de potência”, pág. 75.
178
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 1 [59]
179
Id., “Fragments Posthumes”, XII 1 [30]
180
Id., “Além do bem e do mal”, 23 (tradução modificada)
181
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [121]
182
Em uma boa nota, P. Wotling em seu livro “Nietzsche et le problème de la civilization” aponta para o fato
de que tanto Instinkt, Trieb e Affekt são termos usados para se referir à vontade de potência. Em cada caso, o
uso de um termo específico visa acentuar uma determinada característica desta última. ‘Instinto’ como algo
construído socialmente e herdado por gerações, ‘impulso como uma espécie de imperativo mais imediato e
‘afeto’ caracterizando a capacidade relacional de afetar e ser afetado no jogo do comando e da obediência, daí
o afeto de comando. Ver Wotling op. Cit. pág. 91, nota 2.
183
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 9 [13]
184
Id., “Fragments Posthumes”, XI 36 [22]
71
outra, sua resistência ainda se faz sentir, uma força que obedece não é aniquilada, é
dominada por uma força tirânica maior, sua potência é dobrada em outra direção. “Na
medida em que uma certa resistência existe ela mesma na obediência; a potência
propriamente não é nunca abandonada. Da mesma forma o comando implica a concessão
que a potência absoluta do adversário não seja vencida, assimilada, dissolvida. ‘Obedecer’
e ‘mandar’ são as formas do torneio.”
185
O corpo é o resultado destas lutas e não a causa, este resultado se expressa em forma
de hierarquia. Em um fragmento póstumo intitulado “Da hierarquia”
186
, Nietzsche faz
apontamentos para uma psicologia da potência”, sendo o primeiro, “A aristocracia no
corpo, a multiplicidade de elementos dominantes (combate dos tecidos?” e o segundo, “A
escravidão e a divisão do trabalho: o tipo superior, unicamente possível graças a redução
constrangedora de um tipo inferior a uma só função”. Este trecho é capaz de esclarecer
vários pontos a uma só vez. O estudo sobre as manifestações da potência é a psicologia, que
deve, justamente, atentar para o caráter conflituoso inerente ao âmbito pulsional. Este
âmbito pulsional, caracterizado pelo conflito incessante de forças por maior potência e
supremacia umas sobre as outras adquire seu grau mais alto pela organização, muitas vezes
tirânica, das forças em uma direção apenas. Contudo, esta canalização de todas as forças
para uma mesma direção se dá como resultado temporário de um combate. A força tirânica
impõe às demais sua direção, escraviza-as, formando uma aristocracia. O tipo superior
decorre da escravização dos tipos inferiores à direção de sua força.
Os termos psicológicos de afeto e instinto são designações para processos
fisiológicos subterrâneos dos quais percebemos apenas uma manifestação posterior. Tais
categorias apresentam a luta e o combate entre forças antagônicas em busca de supremacia.
O local, no caso do homem, para este jogo de impulsos é o corpo. A partir desta
multiplicidade dos impulsos, Nietzsche pode pensar o homem como uma “prodigiosa
síntese de seres vivos e de intelectos”.
187
A luta de Nietzsche contra o primado da razão e
da consciência em prol do corpo e dos afetos se deve ao fato de que os primeiros não são
capazes de dar contas dos movimentos subterrâneos que tornam a vida possível. Tais
movimentos, no caso do homem, se desenvolvem no próprio corpo. É à luta das forças por
185
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 36 [22]
186
Id., “Fragments Posthumes”, XII 2 [76]
187
Id., “Fragments Posthumes”, XI 37[4]
72
potência que Nietzsche chama de vida, sendo a consciência um desenvolvimento ulterior
desta no homem. Não é possível captar todos os movimentos e todos os por quês que se
desenvolvem no corpo a cada instante. Mas, são justamente esses movimentos os mais
importantes, aí se travam as lutas das quais temos apenas a sensação dos resultados, ainda
que a cada instante. Desta forma, o corpo é entendido como cooperação de seres
microscópicos em direção à potência.
“E mesmo esses seres vivos microscópicos que constituem nosso corpo (ou melhor, cuja
cooperação não pode ser mais bem simbolizada do que por aquilo que chamamos de
‘corpo’—) não são átomos espirituais, mas seres que crescem, lutam, aumentam ou perecem:
de forma que seu número muda perpetuamente e que nossa vida, como toda vida, é, ao
mesmo tempo, uma morte perpétua. Há, pois, no homem, tantas ‘consciências’ quantos seres
(a cada instante de sua existência) que constituem seu corpo.
188
Este conjunto a que chamamos corpo seria uma espécie de consciência superior,
justamente por constituir-se em uma hierarquia de funções, em uma aristocracia, não
apenas de células, tecidos, órgãos, mas de seres vivos microscópicos que atuam em diversas
direções. “Guiados pelo fio condutor do corpo, como já disse, apreendemos que nossa vida
só é possível graças ao jogo combinado de numerosas intelincias de valor desigual, ou
seja, graças a uma perpétua mudança na obediência e no comando sob formas
inumeráveis”.
189
O sujeito, ou aquilo que entendemos como tal, não constitui uma unidade,
é antes uma multiplicidade constituída de numerosos seres vivos microscópicos em luta
entre si. A vontade de potência se encontra como característica principal de toda força em
cada um destes organismos, por isto lutam entre si. “A luta tem caráter geral: ocorre em
todos os domínios da vida e, sobretudo envolve os vários elementos que constituem cada
um deles. Deflagrando-se entre células, tecidos ou órgãos, entre pensamentos, sentimentos
ou impulsos, implica sempre múltiplos adversários, uma pluralidade de beligerantes.”
190
A
vitória temporária de alguns força os outros à submissão, o que nos dá um caráter aparente
de unidade. Essa luta incessante faz com que a cada momento uma força diferente se
188
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 37[4]
189
Id., “Fragments Posthumes”, XI 37[4]
190
Marton. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 61.
73
sobressaia. “Desse ponto de vista, a luta garante a permanência da mudança: nada é senão
vir-a-ser, ela faz também com que se estabeleçam hierarquias – ”
191
.
O essencial é que em “todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer,
sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas ‘almas’”.
192
A palavra alma não
deve indicar uma estrutura fundante ou transcendente do organismo. Nietzsche define
anteriormente “‘alma como estrutura social dos impulsos e dos afetos’”.
193
Ou seja, na
questão do querer trata-se do mando e da obediência entre muitos conjuntos de muitos
impulsos e afetos cada. Uma multiplicidade inalcançável à consciência, mas que costuma
causar erros. “Um homem que quer – comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele
acredita que obedece.”
194
Mas, tanto o mando como a obediência se dão no mesmo terreno,
no caso, o corpo. Por isto, acredita-se que o ato de vontade seja um ato consciente e livre,
sendo chamado de livre-arbítrio. Chama-se livre-arbítrio ao resultado do combate entre os
impulsos e chama-se sujeito ao suposto executor consciente da ação. Mas, a vontade não é
uma faculdade cujo sujeito, portador desta faculdade, decidiria sobre sua realização ou não.
Cada vontade tira suas últimas conseqüências a cada instante, quando a vontade é mais
forte que as resistências a ação é natural, faz parte da vontade o seu exercício em ato. “Ao
contrário do que supõe a ‘teoria psicológica’, o sujeito não é o executor da ação e sim o seu
‘efeito’”.
195
Erramos quando culpamos a vontade que manifesta toda sua força agindo,
como se lhe fosse possível ter agido diferente ou não ter agido. Erramos também ao
interpretar a vontade fraca como virtuosa por se abster daquilo que ela não pode. Estes
erros ocorrem a partir da pressuposição da existência de um “sujeito livre” que “decide
conscientemente” o que fazer. “Através do sintético conceito de ‘eu’, toda uma cadeia de
conclusões erradas e, em conseqüência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se
agregar ao querer – de tal modo que o querente acredita, de boa fé, que o querer basta para
agir.”
196
Porém, como a vontade de potência atua em cada microorganismo, os seres mais
complexos, como o homem, aparecem tomados por diversas vontades diferentes que se
encaminham em diversos sentidos diferentes.O homem enquanto multiplicidade de
191
Marton. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 44.
192
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19
193
Ibid., 12
194
Ibid., 19
195
Marton.Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 46.
196
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 22
74
‘vontade de potência’: cada uma com uma multiplicidade de meios de expressão e de
formas.
197
A ação é apenas o resultado da luta entre as vontades de um corpo. O que
vemos por fim é o resultado do combate e que por isto nos aparenta uma unidade. Ao nos
vermos identificados com a ação acreditamos ser também os responsáveis por tais ações. É
muito comum o recurso retórico aos motivos que impulsionariam ações, declarando-se que
uma ação foi tomada devido a um determinado motivo. Mas esta própria luta dos motivos
traduz apenas o jogo pulsional subterrâneo do qual quase não se tem acesso e, caso ela
exista, seria algo para nós completamente invisível e inconsciente.”
198
O que se tem
sempre é o conhecimento do resultado da luta dos motivos, mas “a luta mesma se acha
oculta de mim, e igualmente a vitória, como vitória; pois venho a saber o que faço – mas
não o motivo que propriamente venceu.”
199
O fato é que “continua existindo a antiqüíssima
ilusão de saber, saber com precisão em cada caso, como se produz a ação humana”.
200
E,
por mais que o próprio Nietzsche se debruce com afinco sobre esta questão, concluirá que
“o que se pode saber sobre uma ação não basta jamais para fazê-la, que a ponte do
conhecimento ao ato não foi lançada nem uma vez até hoje? Os atos não são jamais aquilo
que parecem ser.”
201
Por fim, tem-se que “todos os atos são essencialmente
desconhecidos.”
202
Dentro desta ótica, não há sujeito por trás da ação, a cada momento o “sujeito”
muda, o sujeito é na verdade vir-a-ser, pois a cada momento altera-se a correlação de
forças. “O conceito de ‘individuo’ é falso. Estes seres [microscópicos atuantes] não existem
isoladamente: o centro de gravidade se desloca; a continua produção de células, etc., causa
uma mudança perpétua do número desses seres.”
203
Uma vez definido o homem “como
uma pluralidade de forças que se situam em uma hierarquia”
204
de forma que há o comando
e a obediência, mas não a aniquilação das forças em relação, passar-se-á para a questão da
força ou fraqueza da vontade, ou melhor, para a organização das vontades de forma que se
tornem cada vez mais fortes. As diretrizes básicas daquilo que chamaremos de ética em
197
Nietzsche, “Fragments Posthumes, XII 1[58]
198
Nietzsche, “Aurora”, 129
199
Ibid., 129
200
Ibid., 116
201
Ibid., 116
202
Ibid., 116
203
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 34 [123]
204
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 34 [123]
75
Nietzsche podem ser inicialmente apresentadas por um belo e esclarecedor fragmento
póstumo:
“Fraqueza da vontade: esta é uma imagem que pode induzir a erro. Pois não existe vontade, e,
por conseqüência, nem forte nem fraca. A multiplicidade e a desagregação dos impulsos, a
falta de um sistema de coordenadas resulta em uma ‘vontade fraca’; sua coordenação sob a
predominância de um só impulso resulta na ‘vontade forte’; –em um primeiro caso, é a
oscilação contínua e a falta de centro de gravidade; no segundo, a precisão e a claridade da
direção.
205
11) A ética trágica da vontade de potência
Segundo Nietzsche, o desejo é aquilo que há de mais forte e precioso no homem;
que este não deva ser controlado e subjugado por valores que lhe são exteriores, mas que o
homem aprenda a trabalhar e a dominar suas próprias paixões sem necessidade de
falsificações idealistas, eis o objetivo de sua filosofia. Será a este esforço de trabalho sobre
si em busca do aperfeiçoamento de um desejo forte que chamaremos de ética. O fato de que
o desejo não mais deva se curvar perante valores morais absolutos e que, portanto, o
homem possa criar seus próprios valores explica porque se trata, em nossa visão, de uma
ética trágica. Não é a busca por uma fórmula da felicidade; a ética se diferencia da moral
justamente por não propor nenhum valor em específico como sendo bom em si mesmo.
Trágico foi o termo usado por Nietzsche para descrever sua visão amoral do mundo e as
conseqüências de sua forte crítica ao primado absoluto da verdade e da religião na
determinação dos valores morais. A tragicidade se deve à dificuldade encontrada pelo
homem para ser capaz de criar e viver sob o signo de suas próprias decisões, após viver por
mais de dois milênios sob a égide de valores absolutos. A filosofia de Nietzsche,
direcionando-se para a libertação do desejo em relação à moral e aos valores absolutos, tem
como um de seus objetivos a indicação de caminhos que levem este animal outrora
selvagem, hoje doméstico, a encontrar um ponto onde não seja nem mais bárbaro, nem
mais escravo ou cordeiro de algum pastor, mas que saiba se auto-determinar e encontrar o
caminho de sua vida na grandeza de seu desejo.
205
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14 [219]
76
A moral sempre enfraqueceu o desejo para controlá-lo. Ao se controlar os desejos,
controla-se principalmente o homem possuidor de tais desejos. O homem sem desejos é
apenas uma caricatura de homem. Em contraposição a estes, Nietzsche aponta seu tipo
forte: Mas para os espíritos mais fortes, a exigência que comanda é que sejam certamente
homens de paixão, mas também o mestre de suas paixões, mesmo quando se trate de sua
paixão pelo conhecimento.”
206
É preciso autorizar o desejo a se manifestar, pois este é
expressão de vida, de vontade de potência. Se, como já foi visto, os desejos e as paixões são
a única coisa a qual se tem acesso, sendo ponto de partida e fio condutor para toda uma
teoria do “conhecimento”, este entendimento do homem forte como homem de paixões
fortes não soa tão estranho. “O instinto fala fortemente: lá onde este instinto relaxa (...),
pode-se concluir com certeza sobre o esgotamento e a degenerescência.”
207
Contra as
morais da fraqueza, Nietzsche brada: “Que se devolva aos homens a coragem para seus
impulsos naturais.
208
Um dos grandes problemas em relação à moral é que esta, ao invés de ensinar o
domínio e maestria do homem em relação aos seus desejos, busca não só enfraquecê-los
como extirpá-los de uma vez por todas ao proibi-los como moralmente indesejáveis.
Contudo, “aniquilar as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupidez e as
desagradáveis conseqüências de sua estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma
aguda de estupidez.”
209
Se os desejos podem trazer consigo conseqüências funestas, isto
não significa que devam ser negados e enfraquecidos até que sumam. Este parece a
Nietzsche um caminho de fraqueza e decadência. Ao contrário, o homem forte ou nobre
aprenderá a dominar suas paixões e a usá-las a seu favor. Assim, Nietzsche fala de um
“delírio dos moralistas que consiste em exigir, ao invés de se dominar as paixões, sua
extirpação. Sua conclusão é sempre: somente o homem emasculado é um homem
‘bom’.”
210
A moral, ao negar o desejo, nega a própria vida, tudo isto devido ao fato de que
as paixões acarretam, por vezes, conseqüências desagradáveis, logo, conclui o moralista,
são más. Contrariamente às filosofias e religiões morais, Nietzsche conclui:
206
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 38[20]
207
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9 [30]
208
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9[121]
209
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 1
210
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[163]
77
“Aprecio o homem segundo o quantum de potência e abundância de sua vontade: não
segundo a falência e extinção destas: considero uma filosofia que ensina a negação da
vontade enquanto uma doutrina da degradação e da calúnia...”
211
No caminho inverso da moral que buscou sempre negar os desejos e as paixões do
homem, Nietzsche almeja um homem forte o suficiente para poder usar até mesmo suas
paixões mais temíveis a seu próprio favor. Sua ética se dirige a um crescimento da força
para poder se servir das mais violentas potências naturais, os afetos...”
212
“Meu critério de medida: até onde um homem, um povo pode desacorrentar em si seus
instintos mais reprováveis e os dobrar para sua saúde, sem que eles o levem a se perder: mas,
ao contrário, que o leve à sua fecundidade, em atos e em obras.”
213
Os afetos são as forças mais potentes da natureza, não estranha que tenham sido
mantidas sob controle; mais do que isto, eles possuem mesmo uma força destrutiva para seu
próprio portador ou para os demais, o perigo de lidar com eles é iminente. A moral
controla-os por medo, mas, com isto, elimina-se a principal força do homem. Para
Nietzsche, os grandes homens sempre foram homens de desejo forte. É a força do desejo
que impulsiona o homem a criar e produzir coisas belas e interessantes. A negação do
desejo resulta em um homem dócil e domesticável. Certamente que será inofensivo, mas
será também desinteressante. É este medo de lidar com o homem de paixão, é a busca por
segurança que conduz as filosofias morais da negação do desejo. Vimos anteriormente que
sempre se deve perguntar, diante de uma filosofia do “conhecimento” que busca “apenas” a
“verdade” de um ponto de vista “desinteressado” a que moral ela quer chegar. Sim, é o
medo diante da força do desejo e da paixão, enfim, é o medo diante das mais violentas
potencias naturais o que guiara a moral até aqui. É assim que Nietzsche diz, então, que os
“moralistas são, como cada vez que é criado um mundo de consciência, os indícios de uma
deterioração, de um empobrecimento, de uma desorganização (...) O moralista é um reflexo
da dissolução dos instintos, ainda que se creia como seu restaurador. (...) O que guia de fato
o moralista não são os instintos morais, mas os instintos de decadência”.
214
A moral é
associada à decadência, pois a negação do desejo é o sinal de que não se consegue dominá-
211
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 10[118]
212
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 10[203]
213
Id., “Fragments Posthumes”, XII 1[5]
214
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[142]
78
lo, não se consegue tornar-se mestre de si e de seus próprios impulsos. Neste quadro, a
negação moral dos desejos entendidos como erro ou pecado, calcada em um patamar
absoluto, serve ao controle e à manutenção da ordem, mas não produzem um homem forte.
Em um aforismo chamado moral como decadência, tem-se: “O medo dos sentidos, dos
desejos, das paixões, se vai tão longe a ponto de dissuadir, é já um sintoma de fraqueza: os
estados extremos caracterizam sempre estados anormais. O que falta aqui, ou ao menos es
seriamente comprometida, é a força de frear uma impulsão”.
215
Nietzsche entende a moral
como antinatureza e diz que “atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz”.
216
Sua proposta é inequívoca:
Em resumo: dominar as paixões, o enfraquecê-las, nem extirpá-las!
Maior será a soberania do querer, mais ela saberá conceder liberdade às paixões.
A grandeza do ‘grande homem’ reside na margem de liberdade de suas ambições e mais ainda
na potência ainda maior com a qual saberá tomar a seu serviço estes monstros
esplendidos.”
217
Não se trata de uma tarefa fácil, pois se trata da potência mais violenta da natureza;
Nietzsche chama-as acima de monstros esplendidos. A moral aparece como resultado da
fraqueza em dominar esses monstros esplendidos. Mas, a tarefa ética consiste, justamente,
em conceder liberdade às paixões, inclusive às mais violentas e destrutivas e, aí inserido
neste jogo de morte, dominá-las e usá-las para seu próprio benefício. A força de um desejo
deve ser usada para enriquecimento e embelezamento da vida. A decadência é a
incapacidade de lidar com seus monstros esplendidos e a conseqüente invenção de regras
morais com o intuito de contê-los. Todavia, já foi visto acima, (nos aforismos póstumos
1[5] e 9[139]) que na ética de Nietzsche trata-se de aprender a usar esses monstros para o
próprio benefício. Em um determinado momento Nietzsche diz: “um espírito mestre de si
sabe agir mesmo a respeito de seus cães selvagens”.
218
Esta imagem dos cães selvagens
para caracterizar a violência dos impulsos está também presente em “Assim falou
Zaratustra” e aponta não só para a força que pode ter o desejo, mas também para a comum
crença na necessidade de ter que aprisioná-los. A ética de Nietzsche será a tentativa de lidar
215
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14[157]
216
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 1
217
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9[139]
218
Id., “Fragments Posthumes”, XI 38[20]
79
com os cães selvagens do desejo, esses monstros esplendidos, dominá-los e usá-los em seu
próprio proveito, sem enfraquecê-los ou extirpá-los. Uma vez que “quase todas as paixões
possuem má reputação por causa daqueles que não são fortes o suficiente para usá-las a seu
favor
219
, caberá aprender a dominá-las, a espiritualizá-las.
A dificuldade em dominar as paixões decorre não só de sua força inerente, mas
também de seus antagonismos. Lembremos que vontade atua sobre vontade, há um conflito
constante entre elas, a vitória de uma vontade específica é sempre temporária e instável, ou
seja, o domínio de si é antes um domínio de uma vontade sobre outra. A ética de Nietzsche
propõe o fortalecimento e o aprimoramento das paixões para que estas sejam capazes de
lidar com as demais paixões. Não é um controle da razão consciente sobre o desejo
impulsivo, mas uma luta entre paixões antagônicas onde a paixão mais forte dominará.
Portanto, será preciso saber a qual paixão fortalecer, para que esta seja capaz de tornar-se
mestra das demais. O antagonismo pulsional no interior de um mesmo corpo não é um
motivo contra este, ao contrário, será destas grandes lutas antagônicas que sairá uma grande
paixão e um grande homem.
“O essencial é que os homens verdadeiramente grandes tenham talvez também grandes
virtudes, mas, justamente, ainda mais as antíteses destas. Acredito que é na presença destas
contradições, e do sentimento destas contradições que nasce precisamente o grande homem, o
arco dotado da mais alta tensão.”
220
É neste sentido que Nietzsche diz ser preciso usar até mesmo seus próprios cães
selvagens. O controle moral destes pode servir como abrandamento das volições, mas não
serve ao engrandecimento de si, aqui proposto como ética. O engrandecimento de si
decorre da maestria exercida por uma grande paixão sobre as demais, chegando ao cúmulo
de poder conceder liberdade às vontades funestas sem que estas ponham tudo a perder. Ao
contrário, como já foi dito, é preciso saber usar até mesmo estas vontades funestas a seu
próprio favor. Por isto, um dos ingredientes principais neste caminho é a coragem. “Ter
espírito não é suficiente: é preciso ainda o assumir e isto exige muita coragem.”
221
Se a
condição para um grande homem liberto de toda moral é, não só a riqueza e força das
219
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14[157]
220
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 35[18]
221
Id., “Fragments Posthumes”, XI 31[52]
80
paixões, mas também a riqueza e forças das paixões antagônicas, entende-se o papel da
coragem neste processo. É mais fácil, com certeza, adequar-se aos valores estabelecidos e,
desta forma, ser aceito socialmente do que se tornar si mesmo, senhor de seus desejos e de
suas paixões. É comum negar até a si mesmo as paixões mais inconfessáveis, o medo de
não ser aceito ou a elas sucumbir não é despropositado. O caminho ético, ao contrário do
moral, não foge diante aos riscos, mas aceita-os como necessários. “Ter espírito não é
suficiente hoje em dia: é preciso ainda conquistá-lo, arrogar-se do espírito, e isto exige
muita coragem.”
222
Um dos grandes problemas neste caso é que aquele que busca seguir
seu próprio caminho não encontra ninguém que possa ajudá-lo nos momentos de
dificuldade, trata-se sempre de um caminho solitário.
223
Com efeito, a decisão ética de
estabelecer por si mesmo seus próprios valores e a busca pelo domínio de suas paixões, não
para proibi-las, mas para delas dispor, tem como conseqüência o destacamento em relação à
moral estabelecida e amplamente seguida por aqueles a quem Nietzsche chamará de
rebanho e a conseqüente autonomia e solidão daqueles a quem Nietzsche chamará de
senhores. Ter vontades fortes, antagônicas, selvagens, monstruosas e usá-las a seu favor
parece uma tarefa impossível. Mas é neste sentido que Nietzsche diz que “apenas o excesso
de força é prova de força”.
224
Esta é a nobreza de espírito.
Em toda a ética a queso é a educação das vontades. É preciso saber se se é capaz
de querer algo e de, para tanto, superar as demais volições que se interponham à realização
de tal vontade superior. “O homem, tornado mestre de suas forças naturais, mestre de sua
selvageria e de sua fúria própria: as ambições aprendem a obedecer, a ser úteis.”
225
A
grande paixão, quando maestrada e usada a favor de seu possuidor ganha em estilo, torna-se
espiritualizada. (Espiritualizada em um sentido amoral, isto é, trabalhada, aprimorada,
aperfeiçoada e tornada bela, de forma alguma transposta a um patamar espiritual separado
de um outro patamar qualquer). É possível se cultivar os impulsos como um jardineiro.
226
O
grande estilo surge do sucesso do trabalho sobre uma paixão forte.
222
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 32[9]
223
Id., “Fragments Posthumes”, XII 2[186]
224
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Prólogo
225
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 11[111]
226
Id., “Aurora”, 560
81
“Maestrar o caos que se é: constranger seu caos a tomar forma; a tornar-se necessidade na
forma: a tornar-se lógico, simples, inequívoco, matemático, a tornar-se lei –: esta é a grande
ambição.
227
Caos de vontade, assim Nietzsche define o homem capaz de vontades fortes, o
homem não-moral. Este caos de vontade, é claro, é perigoso e não implica por si só em
nada de grandioso. Mas é deste solo caótico de impulsos, de volições, de desejos
arrebatadores, somente deste solo selvagem e brutal ainda presente neste bicho hoje
chamado homem, é somente daí que algo pode ser produzido com a grandeza e a beleza
necessárias para fazer jus àquilo que se chama vida. Vida como vontade de potência,
vontade de potência como característica da vida de buscar sempre por mais potência, a vida
se enaltece diante da grande paixão, do grande desejo tornado senhor de si e dos demais
desejos. A tirania do desejo em relação aos demais desejos, em direção ao grande estilo.
Talvez aqui a ética encontre a estética. O belo como produto de uma vida plena, vida plena
como desejo pleno, beleza do desejo como beleza da vida.
Uma das grandes dificuldades deste processo é o risco de sucumbir às paixões, é o
risco da anarquia interior, do desregramento e da falta de direção. Conceder liberdade aos
instintos não significa realizar quaisquer desejos a qualquer momento, não significa ceder a
qualquer mínima volição simplesmente porque a moral não mais os rege. Ao contrário, é
importante “não confundir a libertinagem, o princípio do deixar acontecer’” com a
vontade de potência (que é o princípio contrário)”.
228
Nada mais antagônico à ética da
vontade de potência do que o descontrole sobre os impulsos. Nietzsche chama de
metamorfose do niilismo à libertinagem do espírito e à vagabundagem.
229
A liberdade
concedida aos impulsos pode acarretar a perda de si mesmo e a incapacidade de
fortalecimento de uma grande vontade, uma vez que os cães selvagens podem vencer a luta
e se interpor ao domínio de si, mas isto não implica na necessidade de um retorno à moral.
“Os meios radicais são indispensáveis somente para os degenerados; a fraqueza da vontade
ou, mais exatamente, a incapacidade de não reagir a um estímulo, é ela mesma apenas outra
forma de degenerescência.”
230
. A anarquia dos instintos, a dissociação e falta de
organização entre as vontades, a carência de uma força mestra e comandante, isto tudo é
227
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14[61]
228
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 15[67]
229
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 13[1]
230
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 2
82
sintoma de decadência, ou degenerescência, como Nietzsche gosta de falar, apontando para
o caráter fisiológico de sua psicologia. A necessidade da moral é um sintoma da
incapacidade de domínio de si, sendo assim, “não podemos mais, hoje em dia, conceber a
degenerescência moral independentemente da degenerescência fisiológica”
231
. Mais adiante
Nietzsche define degenerescência fisiológica como algumas incapacidades, como, por
exemplo: “a fraqueza da vontade, a insegurança e mesmo a pluralidade de ‘personalidades’,
a impotência a suspender uma reação à primeira solicitação que se apresenta e a se
‘dominar’, a falta de liberdade diante da menor sugestão de uma vontade estrangeira.
232
O
que Nietzsche chama de degenerescência e doença é a incapacidade de não reagir a um
estímulo volitivo. “Toda não-espiritualidade, toda vulgaridade se baseia na incapacidade de
resistir a um estímulo – tem-se que reagir, segue-se todo impulso. Em muitos casos, esse
‘ter que’ já é enfermidade, declínio, sintoma de esgotamento – quase tudo o que a crueza
não filosófica designa como ‘vício’ é apenas essa incapacidade fisiológica de não
reagir.”
233
Entre saúde e doença não há uma diferença de natureza, apenas de grau. A
incapacidade de não reagir, a facilidade com que se cede a qualquer estímulo e se desvia,
assim, de seu caminho anterior, esta anarquia dos instintos é atribuída ao esgotamento da
força. “Em realidade, o há entre estes dois modos de existência [saúde e doença] mais do
que diferenças de grau: o exagero, a desproporção, a falta de harmonia dos fenômenos
normais constitui o estado de doença.”
234
Em contrapartida, a organização hierárquica das
vontades em direção a uma grande meta é considerado sinal de saúde. O aforismo 14[219]
usado para encerrar a última seção resume muito bem esta distinção. É a esta capacidade de
trabalhar as próprias paixões, sem negar nenhuma delas, mas, ao contrário, usando-se delas
para uma meta própria, trabalho este a ser desempenhado pelo próprio jogo das paixões
entre si, é esta capacidade de educar suas paixões, fortalecer aquelas que se quer ver vencer
as que atrapalham seus objetivos, caminho este desenvolvido pelo próprio querer das
paixões, isto é, pelo jogo de mando e obediência, fazer com que a paixão que se quer ver
forte seja realmente fortalecida a ponto de vencer as demais, é a este processo que
chamamos ética.
231
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14[113]
232
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[113]
233
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, O que falta aos alemães, 6
234
Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[65]
83
Em uma passagem de “Ecce Homo” Nietzsche aponta com clareza a relação entre a
ética e a vontade entendendo-a como o caminho para se tornar quem se é. Não se trata de
criar uma meta consciente ou de seguir preceitos morais diferentes de sua própria vontade.
“‘Querer’ algo, ‘empenhar-se’ por algo, ter em vista um ‘fim’, um ‘desejo’ – nada disto
conheço por experiência própria.”
235
É o saber ouvir a vontade, que é subterrânea e
espontânea, que fornecerá as trilhas deste caminho ético. A tentativa de comandar as
vontades é, em geral, uma negação racional das vontades. O caminho para a ética de
Nietzsche não é consciente, “é preciso manter toda a superfície da consciência –
consciência é superfície – limpa de qualquer dos grandes imperativos.”
236
O caminho para
si próprio é traçado pelas vontades fortes e benéficas que tomam a preponderância em casos
de vida ascendente. “Entretanto, segue crescendo na profundeza a ‘idéia’ organizadora, a
destinada a dominar – ela começa a dar ordens, lentamente conduz de volta dos desvios e
vias secundárias, prepara qualidades e capacidades isoladas que um dia se mostrarão
indispensáveis ao todo.”
237
Esta “idéia” é a vontade, não a razão, caso contrário, a
consciência faria parte do processo e a palavra não estaria entre aspas. “Que alguém se
torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é.”
238
É no livre jogo
das vontades entre si que surgem as vontades mestras. Contudo, é preciso ser alguém de
vontades fortes para que a mais forte seja capaz de fazer um grande trabalho. A vontade
organiza a multiplicidade sem exterminá-la e usa, como vimos, até mesmo seus cães
selvagens a seu favor, mas sem sucumbir, apenas dominando o caos. É preciso ter uma
multiplicidade caótica de vontades fortes, mas este é apenas o solo inicial da ética. Seu
desenvolvimento culmina com o estabelecimento de uma forte hierarquia a partir da
vontade mais forte. “Hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar sem
incompatibilizar; nada misturar, nada ‘conciliar’; uma imensa multiplicidade que, no
entanto é o contrário do caos.”
239
O tornar-se quem se é o trabalho de uma vontade pelo
domínio em busca de sua máxima espiritualização. Mas, é um trabalho da vontade.
A liberdade frente à moral abre espaço para a vontade, para a vontade própria. A
vontade já foi apresentada como uma proposta interpretativa mais qualificada do que a
235
Nietzsche, “Ecce homo”, Porque sou tão inteligente, 9
236
Ibid., 9
237
Ibid., 9
238
Ibid., 9
239
Ibid., 9
84
verdade moral para o texto da realidade, isto porque a natureza é amoral, a vontade de
potência é amoral, a vida é amoral. Assim, Nietzsche chama a moral de antinatureza e diz
que “faremos bem em estudar nosso organismo em sua imoralidade.”
240
Este estudo, que
nos aparece como o estudo da vontade de potência, mostra não só que “as funções animais
são com efeito dez milhões de vezes mais importantes do que todos os bons estados e
cumes da consciência”
241
, pois são mais importantes no processo de “intensificação da
vida”, mas mostra também que este mesmo processo de intensificação da vida, este
direcionamento sempre por mais potência não só é uma característica natural da vida, como
é plenamente amoral. A moral é uma invenção humana que, a partir de juízos criados
historicamente, se propõe a julgar a vida. Contudo, não há como culpabilizar a vida por ela
ser o que é. “É preciso estender então completamente os dedos e tentar alcançar a apreensão
dessa finesse admirável, que consiste no fato de o valor da vida não poder ser avaliado.”
242
Não é possível a uma vontade não se expressar em toda sua potência a cada instante, o que
a moral tenta fazer é, justamente, esta separação entre a vontade e aquilo que ela pode, a
vontade passa a negar a si mesma a partir de estados morais da consciência. “O indivíduo,
visto pela frente ou por detrás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma necessidade a
mais para tudo o que advém e será.”
243
Se vida é vontade de potência, se o valor da vida
não pode ser apreendido pelo vivente e se o desejo é uma forma de expressão da vontade de
potência, então, não há como moralizar a vida sem destituí-la de sua potência própria. Ao
contrário, é preciso “ousar ser tão imoral quanto a natureza”
244
***
1. Estudar Nietzsche traz consigo o reconhecimento de seus próprios limites. Quando nos
deparamos com os limites de nossa dureza, de nossa coragem, de nossa força, enfim: a
dificuldade de aceitar a impotência própria, o ponto a partir de onde não mais se consegue
avançar, por falta de força, coragem ou dureza, como já disse. Não ser tão duro quanto
possível nas coisas que se leva a sério. Não ser tão corajoso diante de um desafio, não ser
240
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 11[83]
241
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 11[83]
242
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 2
243
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 6
244
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 10[53]
85
tão guerreiro. A hesitação, o sobressalto, a impotência, o ponto onde cedemos; somos
constantemente colocados diante de nosso limite. Será possível encarar este momento... e
recuar?
2. É possível que não se chegue a estes momentos. Basta não seguir a si, basta buscar a paz
nos valores estabelecidos, a paz do rebanho. Dar espaço à vontade, ao caos, às paixões
implica o aprender a lidar com tais forças. Quem não segue o instinto não encontra seus
limites. Quem não vive o instinto, não conhece suas afecções, suas preferências, não
conhece aquilo que alimenta seu próprio espírito. Este, não sofre a impotência. Ama-a.
Deseja-a como o ideal mais nobre da sociedade, pois assim, sente-se seguro e confortável.
3. Quem segue a fome de seu desejo corre o risco de ser devorado por ele. Mas, isto não é
um motivo para não seguí-lo, e sim para espiritualizá-lo. O ponto onde negamos nosso
desejo é o ponto da fraqueza e da falta de coragem. Se o homem é um caos de vontade,
negar a vontade é negar a si. Afirmar a vontade é elevá-la à sua máxima potência,
espiritualizá-la. É neste caminho que também encontramos nosso outro limite, o de nossa
grandeza.
4. Quando se solta um cão selvagem interior ele nos ataca. Somos, no primeiro momento,
tomados pela vontade de seguir este desejo, pois, há muito, vinha pedindo satisfação.
Porém, os porões da moral, até então, o mantinham enjaulado. A moral pode ser uma forma
segura de se prender um cão selvagem, mas a segurança não é o objetivo de uma ética
trágica.
5. No momento em que um cão selvagem é solto, ele se depara com as demais vontades
atuantes e dominantes. Em geral, esta vontade selvagem é antagônica às vontades atuais.
Caso contrário, não haveria necessidade de tê-la mantida aprisionada. A luta, então, ocorre.
Por vezes o cão vence, por vezes, as vontades anteriores retomam-lhe o comando. A
questão é saber qual a força de cada uma dessas vontades.
86
6. Se um cão selvagem dominar por completo a vida, é porque se tratava de um desejo
realmente forte e porque a vontade comandante anterior não era tão forte assim. De
qualquer forma, há um caminho de grandeza mesmo para aqueles que possuem um cão
selvagem como motor.
7. A purificação de que fala Zaratustra é a vitória da grande paixão sem a necessidade de se
prender o cão selvagem nas jaulas de uma moral.
8. Quando se alimentam vontades dentro de si e se busca que estas se tornem grandes
paixões e virtudes, a liberdade aos cães selvagens não deve impedir tais vontades em seu
caminho, pois estas deverão ser fortes o suficiente para vencer qualquer outro desejo. O
caminho da vontade em direção à grande paixão passa pelo enfrentamento de todos os cães
interiores. Somente assim ela devém mestre.
12) Quem comanda?
Tradicionalmente, os códigos morais têm como principal característica a reflexão
crítica do homem sobre suas próprias intenções e ações.
245
Esta reflexão busca a adequação
de suas atitudes a determinados valores específicos. Neste sentido, há uma tentativa de
fazer com que as ações obedeçam a regras morais e não sejam guiadas por impulso. Assim,
a disciplina e o autocontrole se encontram invariavelmente presentes nos códigos morais
desde os mais primitivos.
246
A partir desta reflexão, Kaufmann conclui que a “auto-
superação pode ser considerada a essência comum de todos os códigos morais, de ‘Totem e
tabu’ à ética de Buda
247
, esclarecendo ainda que esta definição da moralidade não
determina o que é particularmente considerado como bom ou mal em cada código, apenas
apresenta uma característica genérica da moralidade. “Moralidade consiste em não ceder
aos impulsos: códigos morais são sistemas de injunções contra a submissão a vários
245
Kaufmann, “Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist” pág. 214
246
Ibid., pág. 213
247
Ibid., pág. 213
87
impulsos, e mandamentos morais positivos sempre impõem a vitória sobre os instintos
animais.”
248
Fica explícita a luta entre moral e impulsos, onde o código moral visa sempre o
controle destes. Classicamente, a razão teria este papel de controle dos impulsos
249
, de
forma que, por via da reflexão racional, o homem chegaria ao conhecimento dos valores
bons e os seguiria, auto-superando sua condição exclusivamente animal e se aproximando
da verdade. Contudo, estas visões apresentam um dualismo entre razão e impulsos. Ora,
vimos que, em Nietzsche, este dualismo não existe, o que há são expressões da vontade de
potência, sendo os impulsos uma manifestação desta, assim como a razão, tendo sido esta
última algo que o homem desenvolveu ao longo de sua história como instrumento de
fortalecimento e apropriação do existente. Sendo a razão também uma expressão da
vontade de potência (assim como os impulsos) e sendo que vontade somente atua sobre
vontade, então é possível que a razão participe do jogo de dominação na luta de forças por
predominância. Contudo, cabe perguntar, e esta será nossa discordância com Kaufmannn,
qual o papel da razão no processo de maestria de si e autodomínio.
Temos que, na ética de Nietzsche, não se trata de ceder a qualquer impulso sem
maiores reflexões, ao contrário, esta prática se apresenta como antagônica de sua proposta.
Da mesma forma, não se trata de um controle dos impulsos em nome de valores
estabelecidos. Ao contrário, é o saber ouvir e respeitar os impulsos que fornece indicações
sobre as vontades comandantes em cada caso particular a despeito da moral vigente. O
processo de fortalecimento ou enfraquecimento de uma vontade qualquer é resultante da
correlação de forças entre as próprias formas de expressão da vontade de potência, onde,
em cada vontade atuam o querer, o sentir e o pensar, assim como os afetos de comando. A
dualidade razão versus impulso deixa de existir, pois ambas aparecem como manifestação
da vontade de potência.
Para Nietzsche, o que é importante no trabalho sobre os impulsos selvagens é a
busca pela espiritualização dos mesmos, pelo seu esmeramento. Processo que Kaufmann
chama de sublimação, porém, sublimação com o significado derivado do latim sublimare,
que quer dizer elevar. Portanto, com uma conotação diferente daquela empregada
248
Kaufmann, op. cit. pág. 214
249
Ibid. pág. 214
88
posteriormente pela psicanálise.
250
Embora não seja o termo mais usado por Nietzsche,
sublimação é um bom sinônimo para espiritualização. “Todas as paixões têm um período
em que são meramente funestas, em que levam para baixo suas vítimas com o peso da
estupidez – e um período posterior, bem posterior, em que se casam com o espírito, se
‘espiritualizam’.”
251
Trata-se da transformação de uma manifestação bruta e tosca em uma
manifestação trabalhada e com estilo. Em todos os casos, não se trata de uma negação do
impulso, mas seu aperfeiçoamento. “Este contraste entre abnegação, repudio e extirpação
das paixões por um lado, e seu controle e sublimação por outro, é um dos pontos mais
importantes em toda a filosofia de Nietzsche.”
252
Ou seja, Kaufmann entende que não é
preciso negar os impulsos para dominá-los, ele aceita a necessidade de se abrir espaço para
as paixões e impulsos como forma de fortalecimento da vida. Contudo, Kaufmann atribuirá
um papel excessivo à razão neste processo.
Diante da vontade, Kaufmann diz que Nietzsche atribui um status único à razão.
253
“Racionalidade (...) dá ao homem a maestria sobre si mesmo; e, na medida em que a
vontade de potência é essencialmente o ‘instinto de liberdade’ (GM, II, 18), este só poderá
encontrar satisfação através da racionalidade.”
254
Para Kaufmann, a racionalidade se torna o
elemento capaz de dominar os impulsos e tornar o homem mestre de si mesmo. Para ele, é a
razão que organiza o caos, concedendo ao homem o máximo de potência em sua vida.
Contudo, o fato de o homem que bem usa a razão possuir um forte instrumento à sua
disposição não implica na afirmação que a “razão é a ‘maior’ manifestação da vontade de
potência, no sentido preciso de que através da racionalidade ela pode realizar seu objetivo
de forma plena.”
255
Por mais que Nietzsche não seja um agressor da razão, como poderia
parecer a alguns, nenhuma passagem de seus textos pode justificar uma afirmativa tão
categórica sobre um tema tão difícil de elucidar. O fato é que Kaufmann confunde espírito
(Geist) com racionalidade identificando espiritualização como um processo onde a razão
seria a principal força, concluindo que “intelecto, razão e espírito aparentam ser, para ele
[Nietzsche], manifestações do mesmo impulso básico ao qual nossas paixões seriam
250
Kaufmann, op. cit. 218 - 219. Ver também, nota 101 de além do bem e do mal
251
Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 1
252
Kaufmann, op. cit. pág. 223
253
Ibid., pág. 229
254
Ibid., pág. 230
255
Ibid., pág. 230
89
redutíveis”.
256
Contudo, o “conceito de espírito não se refere à razão tal qual a pensa o
dualismo metafísico”
257
, e o fato de Nietzsche valorizar o pensamento frio e meticuloso
como talvez a maior aquisição do homem (“Gaia ciência”, 2 ou Além do bem e do mal”,
31) ainda não significa que o controle dos impulsos se dê pela ação da razão.
Para Kaufmann, a razão deve estar tão entranhada no homem superior a ponto de se
tornar sua segunda natureza, chegando ao limite de agir instintivamente pela razão. “O
verdadeiro homem racional submete todas opines ao escrutínio da razão; ela se torna sua
segunda natureza.”
258
Com efeito, Nietzsche demonstra que é preciso pensar muito sobre os
valores que se segue e sobre a própria idéia de juízo. Sua análise sobre a moral e a verdade
é fortemente racional e nos convence devido à força de seus argumentos à luz da razão.
Mas, o fato de Nietzsche pensar de forma racional não significa que seja a razão aquela
responsável pelo controle dos impulsos. Se “a maior parte do pensamento deve ser incluída
entre as atividades instintivas, até mesmo o pensamento filosófico”
259
, então, temos que o
próprio pensamento não traz consigo o tanto de razão que Kaufmann acredita. O
pensamento participa do jogo de mando e obediência e neste pensamento há também razão,
mas há também muito de instinto e não vemos nenhuma indicação que nos faça pensar a
razão como o instinto mais importante. Ao contrário, entendemos que “a maestria da
potência consiste, então, em uma combinatória de instintos.”
260
“mas querer combater a veemência de um impulso não está em nosso poder, nem a escolha
do método, e tampouco o sucesso ou fracasso desse método. Em todo esse processo,
claramente, nosso intelecto é antes o instrumento cego de um outro impulso, rival daquele que
nos atormenta com sua impetuosidade (...) Enquanto ‘nós’ acreditamos nos queixar da
impetuosidade de um impulso, é, no fundo, um impulso que se queixa de outro; isto é: a
percepção do sofrimento com tal impetuosidade pressupõe que haja um outro impulso tão ou
mais impetuosos, e que seja iminente uma luta, na qual nosso intelecto precisa tomar
partido.
261
O intelecto aparece sempre como um instrumento a serviço dos instintos, não como
o instinto fundamental. O que esta passagem mostra é que, mesmo que a razão tivesse este
256
Kaufmann, op. cit. pág. 229
257
Wotling, op. cit. pág 207
258
Kaufmann, op. cit. pág. 234
259
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 3
260
Wotling, op. cit. pág. 207
261
Nietzsche, “Aurora”, 109
90
poder todo atribuído por Kaufmann, ela ainda assim estaria agindo em função de instintos e
impulsos subterrâneos. A atuação da razão, qualquer que seja sua dimensão, já é uma
atuação posta em movimento por instintos. O intelecto toma partido, mas a própria direção
de sua ação é dada a partir do instinto do qual ela é função. “Não há causas mentais
absolutamente!”
262
A interpretação de Kaufmann mantém a dualidade razão versus impulso, por mais
que os aceite como manifestações da vontade de potência. “Ambos, impulso (paixão) e
razão (espírito) são manifestações da vontade de potência; e quando a razão supera os
impulsos não podemos falar do casamento de dois princípios diversos, mas da auto-
superação da vontade de potência.”
263
Por fim, por mais que bem interprete a filosofia de
Nietzsche em muitos pontos, Kaufmann não consegue sair do dualismo metafísico clássico.
Isto porque ainda precisa de uma espécie de porto seguro em relação ao impulso. Atribuir
prioridade aos impulsos implica em perder este fiador último da boa sociabilidade e
Kaufmann prefere não correr o risco. Lembremos que uma das coisas em relação às quais
Nietzsche se opôs com mais veemência foi a equação socrática em que: razão = virtude =
felicidade.
264
Avaliando o processo da má consciência, Kaufmann conclui que: “Para se tornar
poderoso, para ganhar liberdade, para dominar seus impulsos e aperfeiçoar a si, o homem
deve antes desenvolver o sentimento de que os impulsos são maus.”
265
Neste ponto haveria
uma cio no homem que, por um lado quer realizar seus impulsos, mas, por outro, não
pode em nome da sociedade. Contudo, Kaufmann se esquece de que o processo da
consciência (do qual falaremos no próximo capítulo) inicia-se pela imposição tirana de
valores por parte de um grupo guerreiro e bárbaro sobre outro menos forte e que, neste
processo, não há a preocupação em fazer prevalecer os valores pacíficos de uma sociedade
qualquer, ao contrário, daí conclui-se que qualquer lei e qualquer valor são arbitrários e
impostos pela violência. Se a má consciência é necessária nos primórdios da sociedade, isto
se deve pela imposição de regras contratuais e sociais em um período pré-histórico e não
por uma decisão deliberada dos cidadãos.
262
Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Os quarto grandes erros, 3
263
Kaufmann, op. cit. pág. 235
264
Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 4.
265
Kaufmann, op. cit. pág. 253
91
Para Kaufmann, é preciso negar os instintos e depois se tornar racional por instinto.
Nada mais contrário à ética de Nietzsche. “Auto-superação não estará completa com o
homem dizendo: quero sublimar meus impulsos. Primeiro ele precisa marcar a fogo um
Não em sua própria alma; ele precisa marcar seus próprios impulsos com desprezo e se
tornar consciente das contradições do bem e do mal.”
266
Está claro que Kaufmann nega, por
medo, a prioridade dos impulsos na filosofia de Nietzsche. Por mais que o processo de
nascimento da má consciência tenha sido necessário nos primórdios da sociabilidade, a
espiritualização da qual fala Nietzsche não se assemelha ao recalcamento dos instintos
animalescos daquele período. Tampouco a razão foi o fio condutor deste processo. Ao
contrário, a própria razão começa a nascer a partir do processo de violentação pré-histórica
do bicho-homem sobre si mesmo em busca da criação de uma memória.
267
Processo do
qual a má consciência é uma conseqüência. O surgimento da má consciência não pode,
então, ser relacionado a um controle racional dos impulsos, pois está se falando de um
animal ainda pré-histórico, o bicho-homem, não do homem. A razão é um dos elementos
construídos pela mudança, mas esta mudança se sustenta sobre o uso excessivo da
violência,o sobre a razão. Justamente aí se encontra o erro de Kaufmann neste ponto. O
uso da violência criador da má consciência se deu, com efeito, pela impossibilidade do uso
de outras formas de controle, somente assim começa a existir a memória, a consciência e a
própria razão. Além disto, mesmo em nossos dias a espiritualização dos instintos ainda é
entendida por Nietzsche como algo antinatural e precisa ser trabalhada. “É em sua natureza
selvagem que o indivíduo se refaz melhor de sua desnatureza, de sua espiritualidade...”
268
Diante do primado das paixões, Kaufmann é incapaz de aceitar que é no próprio
jogo pulsional que se desenvolve o processo de controle dos impulsos. Melhor dizendo, é
na luta dos próprios impulsos entre si que ocorre o jogo de dominação, onde, quando um
impulso não se realiza é por fraqueza ou porque outro impulso a ele se sobrepôs e lhe
dominou. Este ponto é muito interessante, pois a tradição filosófica sempre entendeu que a
razão controlava os impulsos e esta razão seria ainda capaz de apresentar o conhecimento
dos valores bons, chegando assim à moral. Nietzsche não nega a razão, nem seu papel no
jogo dos impulsos por preponderância. Se o pensar participa daquilo que Nietzsche entende
266
Kaufmann, op. cit. pág. 253
267
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 3.
268
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Máximas e flechas, 6
92
por vontade e este pensar, por mais que seja em sua maioria instintivo, traz também a razão,
então a razão participa da vontade. De forma que nesta disputa por dominação a razão
também desempenha seu papel. Porém, não como Kaufmann gostaria.
Sabemos que “em todo ato de vontade há um pensamento que comanda”
269
,
contudo, “a vontade não é apenas um complexo entre sentir e pensar, mas sobretudo um
afeto: aquele afeto do comando.”
270
Nos parece claro que na luta por mando, tanto o
pensamento quanto o afeto desempenham seus papéis. A razão no pensamento pode ajudar
a refletir sobre os caminhos a se seguir e sobre os impulsos a se fortalecer, mas os próprios
impulsos se fazem ouvir e a razão não é nem de longe uma espécie de juiz e bom
ponderador. O que ocorre é que Kaufmann não consegue aceitar a teoria da vontade de
potência em toda sua tragicidade, ele precisa torná-la palatável, sociável, passível de ser
aceita como uma teoria respeitável socialmente. Diante do primado dos desejos e paixões
ele recua, não é capaz de aceitar uma teoria que não só conceda liberdade aos cães
selvagens, mas que aponte esses monstros esplendidos como a força mais importante.
Kaufmann quer segurança. Somente o medo de sucumbir às paixões pode levar a uma
supervalorização da racionalidade. “Quando há necessidade de fazer da razão um tirano,
como fez Sócrates, não deve ser pequeno o perigo de que uma outra coisa se faça de tirano.
A racionalidade foi então percebida como salvadora, nem Sócrates nem seus
‘doentes’estavam livres para serem ou não racionais – isso era de riguer, era seu último
recurso.
271
A maneira como Kaufmann interpreta Nietzsche faz de sua ética algo
semelhante a este último recurso de doentes. Porém, trata-se aqui de conseguir criar um
homem capaz de lidar livremente com seus impulsos sem aprisioná-los pela racionalidade e
sem sucumbir a eles. É aí que reside precisamente a tragicidade e toda dificuldade da
questão. A liberdade não é racional.
Quando analisamos a crítica que Nietzsche faz às tentativas de apreensão da verdade
por parte das teorias metafísicas do conhecimento o papel da razão torna-se mais claro a
nós. Pois o cerne da crítica de Nietzsche é que não é possível se atingir a verdade pela
razão, ao contrário, é apenas como instrumento que a razão se reporta a algo que o próprio
homem criou e depois chamou de conhecimento ou verdade. A razão, portanto, não nos dá
269
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19
270
Ibid., 19
271
Nietzsche, “ Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 10
93
acesso a nada mais grandioso do que as demais manifestações do corpo, ao contrário,
somente nos é dado nosso mundo de desejos e paixões e é a partir destas que Nietzsche
formula suas hipóteses. “A superestimação da razão sobre os instintos é a expressão mais
clássica do desequilíbrio do corpo, desta perda de centro de gravidade.”
272
Lembremos o
que Nietzsche reprovara em Sócrates:
“uma profunda representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de
Sócrates aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até
os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo,
mas inclusive de corrigi-lo.”
273
A grande mudança operada por Sócrates na Grécia consistiu, justamente, em que as
pessoas passaram a agir apenas racionalmente e não mais por instinto. Sob a influência de
Sócrates os sentimentos tradicionais responveis pela serenojovialidade grega iniciavam
sua desvalorização. Sócrates observou que os grandes homens com quem conversava,
estadistas, oradores, poetas e artistas seguiam suas profissões e agiam basicamente por
instinto e os criticou.
“ ‘Apenas por instinto’: por esta expressão tocamos no coração e no ponto central da
tendência socrática. Com ela, o socratismo condenou tanto a arte como a ética vigentes; para
onde quer que ele dirija seu olhar perscrutador, avista ele a falta de compreensão e o poder da
ilusão; dessa falta, infere a íntima insensatez e a desestabilidade do existente. A partir desse
único ponto julgou Sócrates que devia corrigir a existência: ele, só ele, entra com ar de
menosprezo e de superioridade, como precursor de uma cultura, arte e moral totalmente
distintas, em um mundo tal que seria por nós considerado a maior felicidade agarrar-lhe a
fímbria com todo o respeito.”
274
A proposta de controle racional para as paixões enfatiza o caráter intelectual do jogo
pulsional. Ora, nossa tese critica fortemente esta visão e busca apresentar uma outra que se
sustente principalmente sobre o aspecto impulsivo e corpóreo. Entendemos, inclusive, que
um dos principais objetivos de toda a filosofia de Nietzsche foi tentar fazer com que os
homens voltassem a considerar seus impulsos e seu corpo com um olhar sadio, sem que
fossem arrebatados por estes de forma a perecer simplesmente. Com isto, Nietzsche
entendia estar não só devolvendo ao homem a boa consciência para a vida, – boa
272
Wotling, op. cit. pág. 133
273
Nietzsche. “O nascimento da tragédia”, 15.
274
Ibid., 13.
94
consciência que Kaufmann parece achar impossível de ver restaurada sem um colapso
civilizacional – mas também entendia estar redirecionando todo o caminho cultural de
nossa época. As considerações negativas sobre o desejo pela moral racional sempre
diminuíram o homem. Um homem de vontade forte e livre, encontrado consigo mesmo, não
só terá benefícios próprios, mas, principalmente, será peça chave na transformação cultural
de todo um povo. A cultura, por mais que se desenvolva em trabalhos intelectuais de alto
nível começa sempre pela atenção aos instintos básicos do homem, isto é, pela ética, e esta
ética é uma ética a ser aprendida primeiramente no corpo, a partir dos impulsos. “É
decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a cultura do lugar certo
não na ‘alma’ (como pensava a funesta superstição dos sacerdotes e semi-sacerdotes): o
lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é conseqüência disto...”
275
A consideração moral sobre a vida, em quase todos os casos, teve um
direcionamento para o controle negativo das forças inatas do homem. A filosofia e as
religiões aparecem munidas de argumento racionais ou místicos e, na medida em que foram
morais, tiveram a forte tendência a promover o enfraquecimento dos desejos e,
conseqüentemente, da vida. Contudo, a vida é algo cuja valoração por parte do homem é
impossível. É impossível a este ser vivente proferir um juízo correto sobre sua própria
condição existencial. “Seria preciso estar em uma posição fora da vida e, por outro lado,
conhecê-la como alguém, como muitos, como todos os que a viveram, para poder sequer
tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para compreender que este é, para nós,
um problema inacessível.”
276
Mesmo assim, a história da filosofia mostra uma forte
tendência para a culpabilização da vida a partir de interpretações no mínimo duvidosas.
Nietzsche percebe a fortíssima influência das religiões e filosofias em nossa cultura e vê
com uma agudez psicológica fora do comum os males que elas causam na própria
capacidade de desenvolvimento do homem. Sua crítica à verdade, não só desmascara esta
farsa, como mostra a quê serviu a moral por todo este tempo. Ao apresentar a verdade como
antropomórfica, termina-se por retirar o solo que servia de justificação para a moral e esta
aparece agora desprovida de seu alicerce fundamental. Nietzsche pretendeu livrar o homem
da moral para que este pudesse iniciar o caminho para uma ética e uma cultura nova. Isto
275
Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Incursões de um extemporâneo, 47
276
Ibid., Moral como antinatureza, 5
95
porque percebeu que este movimento de negação do desejo e culpabilização moral da vida
era produto de um determinado tipo de indivíduo. Justamente aquele que não tem força
para se expressar nega o desejo como algo mal em si. Se é impossível viver sem criar
valores, sem ter algo como bom ou ruim para si, a valorização negativa das características
mais básicas e naturais do homem só pode ser fruto de uma vida para a qual tais atributos
são um problema. “Uma condenação da vida por parte do vivente é, afinal, apenas sintoma
de uma determinada espécie de vida”.
277
Em continuidade a seu trabalho, Nietzsche traçou os caminhos percorridos por
aqueles que criaram a moral e as religiões negadoras da vida, para mostrar que estas não
somente não são eternas como, ao contrário, possuem uma história crua e bastante imoral
segundo seus próprios critérios. A esta busca histórica pelo surgimento da moral e da
valorização negativa da vida Nietzsche chamará de genealogia. O trabalho histórico-
psicológico de Nietzsche mostrará que a moral ou a religião que condena a vida são
sintomas de determinadas formas de vida. “Moral é apenas linguagem de signos,
sintomatologia: é preciso saber antes de que se trata, para dela tirar proveito.”
278
O próximo
capítulo trará o estudo mais detalhado desta sintomatologia da moral, isto é, a busca por
desvendar quais impulsos estão por trás das considerações morais mais aceitas. Nosso
trabalho buscará apontar para a história da origem dos valores morais depreciadores da vida
e também para um momento mais recente, onde tais valores superiores começam a perder
seu crédito e desencadeiam um sentimento niilista de vazio existencial e perda de valor.
“Minha tarefa de preparar para a humanidade um instante de suprema tomada de consciência,
um grande meio-dia em que ela olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio
do acaso e do sacerdote, e coloque a questão do por quê?, do para quê? Pela primeira vez
como um todo –, essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que a humanidade
não segue por si o caminho reto, que não é regida divinamente, que na verdade, sob as suas
mais sagradas noções de valor, foi o instinto de negação, de degeneração, o instinto de
décadence que governou sedutoramente. A questão da origem dos valores morais é para mim,
portanto, uma questão de primeira ordem, porque condiciona o futuro da humanidade.”
279
277
Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 5
278
Ibid., Os ‘melhorementos’ da humanidade, 1
279
Nietzsche, “Ecce homo”, Aurora, 2
96
CAPÍTULO 2:
HISTÓRIA DA MORAL
Viu-se no primeiro capítulo que a força dos valores morais se sustenta sobre o poder
decorrente do discurso de verdade. O questionamento sobre o estatuto da verdade tem, por
conseqüência, a crítica dos próprios valores morais resultando em um enorme ganho de
liberdade no campo ao qual chamamos ético. Este segundo capítulo buscará trazer a história
do aparecimento dos valores morais, origem esta que se tornou questão de primeira ordem
na filosofia de Nietzsche. Se houve a busca por uma legitimação absoluta, de ordem
filosófica ou religiosa, dos valores morais, isto se deveu, segundo Nietzsche, à falta de
capacidade do homem para a afirmação da vida em sua condição trágica. Daí, conclui que
as principais noções morais segundo as quais a humanidade viveu nos últimos dois
milênios decorrem de um instinto de negação, de degenerescência, de decadência, condição
esta atingida a partir da ação do sacerdote e do filósofo asceta.
Para criticar o caráter absoluto dos valores, Nietzsche direcionará seu estudo para a
história. Será apresentando a história da moral que Nietzsche tentará mostrar que os valores
não podem ser absolutos, uma vez que, assim como a verdade que os sustenta, são criações
humanas. Mais do que isto, a pesquisa histórica se torna genealógica na medida em que
Nietzsche buscará interpretar os instintos e impulsos daqueles que criaram tais
argumentações metafísicas para a moral. O que quer aquele que quer ver seu valor moral
alçado à categoria de verdade? O que esconde cada valor? De onde provêem? – Desta
forma, a história torna-se genealogia e a psicologia assume papel preponderante.
Começaremos o capítulo com uma seção sobre o método genealógico, em seguida
trabalharemos com a própria genealogia da moral de Nietzsche desdobrando os argumentos
para as implicações éticas e culturais deste pensamento.
1) O método geneagico
Quando, no primeiro capítulo, foi enfatizada a crítica ao pensamento dogmático,
isto se mostrou necessário na medida em que os valores morais que depreciam a vida
retiram sua força deste tipo de pensamento. Quando as regras de comportamento residem
97
em um patamar absoluto, pode-se determinar com precisão a atitude justa, boa, bela,
correta, que traz, necessariamente, a felicidade e o bem comum – pois como não os traria se
obedecem aos desígnios absolutos da existência. A existência mesma passa a ter um
sentido, o sentido de se obedecer e buscar esta ordem correta e boa em si mesma. Quando a
existência não possui um sentido que possa ser apreendido com segurança e estipulado
como verdade, facilmente pode-se tomar uma atitude de desvalorização da vida. A
metafísica aparece, então, como uma resposta segura à falta de sentido prévio da existência.
Se a vida não nos confere, inicialmente, formas de estarmos seguros de fazer o que é bom,
o pensamento metafísico fixa este bom em um plano a-histórico, garantindo a segurança
desejada, ao estipular os comportamentos corretos que devem ser seguidos. Mais do que
isto, a absolutização dos valores morais legitima também a coerção em relação à sua
obediência; a lei se torna divina e a violência a principal companheira da verdade. Diante
da pergunta pelo sentido da existência, o homem a respondeu de forma metafísica,
buscando a segurança da verdade.
Segundo a forma metafísica de pensamento filosófico, “os fenômenos morais não
poderiam, portanto, comportar uma ‘origem’ e muito menos uma ‘história’”.
280
Nietzsche
rompe com esta tradição filosófica e irá mostrar que os valores morais, as concepções sobre
o bem e o mal, o certo e o errado, são criações humanas e, por isto, possuem
necessariamente uma história. Ao colocar os valores sob a perspectiva de um olhar
histórico, Nietzsche abre a possibilidade para que sejam criticados. Ao contar esta história,
Nietzsche abre o caminho para uma nova forma de pensar a moral, uma forma que coloca o
homem como centro das decisões e criações e, por isto mesmo, lhe atribui um papel ainda
não imaginado. Ao separar a moral da metafísica e da teologia, Nietzsche retira a segurança
sobre uma das principais questões humanas, tudo devido a um deslocamento de
perspectiva, da metafísica para a história, do sobre-humano para o humano. Se esta questão
ainda não havia sido colocada desta forma é porque até então os valores eram pensados
como eternos, como existindo desde sempre. A partir deste ponto, o homem pode recriar
seus valores e levar em conta suas inclinações mais fundamentais entendendo-as como
naturais e não como boas ou más em si mesmas. A filosofia de Nietzsche afirma que não
existe princípio transcendente para a conduta.
280
MARTON, Scarlett. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 75.
98
Com a genealogia, Nietzsche inaugura um novo método de pesquisa capaz de
pensar os conceitos e as coisas de um ponto de vista histórico e ao mesmo tempo
intempestivo. Isto é, ao mesmo tempo em que mostra que um conceito, ou algo que é tido
como verdade, não é eterno e tem uma história, já tendo possuído, portanto, outros sentidos
diferentes do atual, faz também uma avaliação de tal objeto desprovida das considerações
morais de sua época, uma crítica amoral, que parece estar fora do tempo, apesar de
histórica. Nietzsche mostra a história de um conceito, suas mudanças de sentido, seus
diferentes papéis até então desempenhados, provando sua perspectividade e aproveitando-
se disto para propor transformações na nossa maneira de avaliar, de forma que nossa
percepção não fique presa a peculiaridades de uma época específica. Ao mostrar mudanças
de sentido de um conceito ou de um valor a genealogia mostra que este não possui um
único significado na história, nem seu sentido atual é semelhante ao de seu surgimento.
Nietzsche mostra que, ao longo da história, distintas forças se apoderam de um mesmo
conceito dando-lhe significados e sentidos diferentes uns dos outros. “Mas todos os fins,
todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de potência se assenhoreou de
algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função (...)”
281
. A genealogia precisa
ser capaz de desvendar qual força está por trás de seu objeto a cada momento.
As palavras não guardam seu sentido, os conceitos não participam de uma história
sem interrupções, vivem um processo cheio de “acidentes, submissões, transformações”
282
.
A genealogia deve desenterrar essas interrupções a fim de melhor compreender o sentido de
um conceito. Assim, não se deve tomar o sentido presente de algo como semelhante ao de
seu surgimento. O sentido atual é apenas mais um aparecimento, é apenas reflexo da última
força que dele se apoderou. Com a genealogia, mostra-se que o sentido que um conceito
tinha quando surgiu pode se modificar e que nada se sabe sobre a origem de um conceito
estudando-se apenas sua última manifestação. A genealogia se opõe à metafísica que
postula uma essência original imutável e não histórica para as coisas. A pesquisa metafísica
sobre a origem “se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura
possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e
anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo.”
283
Como se a origem fosse capaz de
281
Nietzsche. “Genealogia da moral”, II, 12. (tradução modificada)
282
Foucault. “Nietzsche, genealogia e história” em “Microfísica do poder”, pág 18.
283
Ibid., pág 17
99
apresentar uma espécie de verdade intacta de algo do qual se busca o sentido no presente.
Contudo, a pesquisa genealógica mostra que na origem não se encontra o verdadeiro
sentido de algo, mas apenas mais um sentido deste algo. Certamente o primeiro, contudo
não o último e muito menos o único possível. “O que se encontra no começo histórico das
coisas não é a identidade ainda preservada na origem – é a discórdia entre as coisas, é o
disparate”
284
. A genealogia deve buscar saber de onde provem seu objeto de estudo, traçar a
história de suas mudanças de sentido e apontar para cada emergência de um novo uso do
mesmo termo. Ela marca a singularidade dos acontecimentos, contra uma tradição histórica
que busca sempre uma espécie de gênese e desenvolvimento linear para as coisas.
Contra esta gênese, Foucault fala da pesquisa da proveniência. A proveniência não
busca um estado original e puro, ela aponta para os estados anteriores pelos quais passou o
que está sendo estudado. Mas se faz isto, é para justamente mostrar a variedade de sentidos
que tal objeto de estudo já teve.
“Nada que se assemelhe à evolução de uma espécie ou ao destino de um povo. Seguir o filão
complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é
própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou, ao contrário, as inversões
completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que
existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que
nós somos – não existe a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente.
285
Outra característica segundo Foucault, é a emergência, o surgimento de novas
interpretações e sentidos. Cada nova força que se apodera de algo faz emergir novo sentido,
a genealogia deve marcar este ponto de inflexão do sentido. “A emergência é, portanto, a
entrada em cena das forças”
286
. Contra a interpretação teleológica da história que lhe
confere um sentido e uma racionalidade, Nietzsche mostra que a história é a história da
atuação da vontade de potência, que ela não tem objetivo racional e que não há constância e
continuidade. O que há é o acontecimento singular, visão que vai contra a história da
continuidade ideal. “É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado,
um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado,
um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se
284
Foucault. “Nietzsche, genealogia e história” em “Microfísica do poder”, pág. 18.
285
Ibid., pág. 21.
286
Ibid., pág. 24.
100
enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada.”
287
Assim, a genealogia é um saber sempre perspectivo, que sabe que está a olhar de um
determinado ponto e sob uma ótica específica. Ela foge da generalização da história
universal. Mostra apenas a singularidade de cada fato através de uma interpretação sempre
parcial. Ao invés de mostrar uma unidade do objeto estudado, a genealogia busca
justamente afirmar a descontinuidade de seu objeto de estudo.
Estendendo este pensamento para as questões morais, pode-se fazer a crítica da
moral que se quer universal e absoluta entendida como revelação ou sabedoria. Traçar a
história da moral significa retirá-la do reino do absoluto e demarcar, a partir de sua história,
quais os sentidos que um valor já teve. Até então, os valores apareciam como princípios a
partir dos quais se fazia uma avaliação. Contudo, Nietzsche mostra que estes próprios
valores decorrem de avaliações anteriores que os instauraram como valores dignos de se
tornarem princípios das demais avaliações. Ao se perguntar pela avaliação que cria um
valor tem-se pela primeira vez a pergunta pelo valor dos valores.
A crítica de Nietzsche opera uma “inversão crítica”
288
, qual seja: se, inicialmente, a
avaliação pressupõem os valores a partir dos quais avalia, estando estes valores já
estabelecidos, por outro lado, Nietzsche nos mostra que os próprios valores a partir dos
quais se faz uma avaliação nascem de determinados pontos de vista de apreciação. Isto é,
busca-se, agora, o ponto de vista de onde parte a apreciação que instaura determinados
valores como princípios de avaliação. Trata-se de buscar pela criação dos valores. Se esta
questão ainda não havia sido colocada, é porque até então os valores eram pensados como
eternos, como existindo desde sempre. “O problema crítico é: o valor dos valores, a
avaliação de onde provem seu valor, daí o problema de sua criação.”
289
O objetivo da
pergunta pelo valor dos valores será o de saber se um determinado valor parte de uma
perspectiva afirmativa ou negadora em relação à vida.
O trabalho torna-se psicológico na medida em que não é mais importante saber qual
valor está mais próximo da verdade, mas sim o quê está por trás de cada avaliação, o quê
quer cada avaliação, qual o afeto de comando em cada caso. Começa um trabalho por
decifrar o afeto que se esconde por trás de cada filosofia para, a partir daí, pesar sua
287
Foucault. “Nietzsche, genealogia e história” em “Microfísica do poder”, pág. 28.
288
Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, pág. 1
289
Ibid., pág. 1
101
nobreza ou baixeza. Trata-se de saber quais forças criaram cada critério, quais instintos se
escondem por trás de cada valor moral. Será preciso saber agora se um valor fortalece ou
diminui a vida, se provém de um julgamento abundante em forças ou decadente.
Mais uma vez Nietzsche é único em seu filosofar, pois as avaliações agora são
remetidas ao phatos que as gerou. Trata-se de saber se um valor nasce de um ponto de vista
ascendente ou degenerescente em relação à vida. Esta diferença, que é diferença na origem,
e, por isto, este trabalho é genealógico, é o que Deleuze chama de elemento diferencial dos
valores
290
. O que é mais interessante aqui é que, ao menos para Deleuze, a quem
acompanhamos neste ponto, “as avaliações, em relação ao seu elemento [diferencial], não
são os valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e avaliam
(...)”
291
Ao buscar encontrar o ponto de vista de onde decorrem as avaliações sobre os
fenômenos, tem-se que tal ponto de vista não será nunca um valor objetivo e preciso, ainda
que não absoluto. Se o que interessa na busca pelo ponto de vista de onde decorre a
avaliação é o afeto que impulsiona tal avaliação, então cada avaliação moral é sintoma de
um modo de existência e não um fato objetivo. Sendo esses modos de existência os
produtores das avaliações, o trabalho do genealogista será perceber a hierarquia dos afetos
(modos de vida) que movem as avaliações que, por sua vez, criam os valores morais de
nossa cultura. Por isto, Deleuze pode dizer que o elemento diferencial é o sentimento de
distância
292
(o phatos da distância).
“Genealogia quer dizer ao mesmo tempo valor da origem e origem dos valores. Genealogia se
opõe ao caráter absoluto dos valores tanto quanto ao seu caráter relativo ou utilitário.
Genealogia significa o elemento diferencial dos valores do qual decorre o valor destes.
Genealogia quer dizer, portanto, origem ou nascimento, mas também diferença ou distância
na origem. Genealogia quer dizer nobreza e baixeza, nobreza e vilania, nobreza e decadência
na origem.
293
Assim, o filósofo deve manejar o elemento diferencial como crítico e criador.
Crítico da baixeza e da mesquinharia, sinais de uma vida que definha, e criador da nobreza
e da superabundância. “Mas um valor tem sempre uma genealogia da qual dependem a
290
Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, p. 1
291
Ibid., p. 2
292
Ibid., p. 2
293
Ibid., p. 2
102
nobreza e a baixeza daquilo que ela nos convida a acreditar, a sentir e a pensar.”
294
Nobreza
e baixeza se referem à diferença de perspectiva na criação de um valor. Aqueles que
avaliam a vida por baixo criam valores que a denigrem, em oposição à abundância de força,
que terá a inclinação a criar valores ascendentes. Mas, esta diferença de onde decorrem os
valores são, justamente, os tipos de vida que Nietzsche quer pensar. “Quais os grupos de
sensações que dentro de uma alma despertam mais rapidamente, tomam a palavra, dão as
ordens: isso decide a hierarquia inteira de seus valores, determina por fim a sua tábua de
bens.”
295
Compreende-se então, porque Nietzsche dedicará um livro inteiro, a saber, a
Genealogia da moral”, ao estudo dos sentimentos de ressentimento e culpa, que culminam
em uma negação ascética da vida. Será preciso saber de onde partem estes valores, o que
querem aqueles que os pregam. Se já vimos que os valores absolutos negam a vida em
nome de um outro mundo onde residiria a verdade, começa agora a se descortinar também
os afetos que movem tais interpretações da existência. O trabalho da genealogia da moral
será o de descobrir quem necessita criar falsas avaliações sobre a vida e contra quem estas
falsas avaliações se dirigem, pois “existem coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber,
valores aos quais só se pode crer com a condição de se avaliar ‘baixamente’, de viver e
pensar ‘baixamente’. Sendo isto o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são os
valores, mas representam o elemento diferencial de onde deriva o valor dos valores.”
296
O caráter psicológico da genealogia torna-se uma sintomatologia, na medida em que
tomará os fenômenos por sintomas, descobrindo o afeto que está por trás de cada um. Do
ponto de vista fisiológico, a genealogia é também uma tipologia, pois tem como função
interpretar o afeto que move a criação do valor caracterizando o tipo de existência que o
produz.
O ponto principal é saber “o que quer” aquele que diz alguma coisa. Se os valores
morais são sintomas de vontades que os movem, trata-se de se saber o que quer esta
vontade que cria um valor específico. Interpretar o valor a partir de sua vontade motora.
Esta pergunta tem por resposta um tipo. Ao decifrar o que quer aquele que diz algo,
percebe-se se este que diz afirma ou nega a vida, descobre se trata-se de um sintoma de
ascendência ou decadência. A determinação do tipo é a determinação da predominância de
294
Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, p. 62
295
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 268
296
Deleuze. Op. cit., p. 2
103
forças naquele caso. O que diferencia um tipo do outro é a hierarquia em que as forças
estão dispostas. É importante saber se a vontade se afirma em cada caso ou se antes nega
outra vontade. “Só se define um tipo determinando o que quer a vontade nos exemplares
deste tipo.”
297
A genealogia efetua uma crítica interna, pois não busca princípios transcendentais
para afirmar ou negar um valor, apenas o qualifica baseado no afeto que comanda, isto é, na
hierarquia dos valores que o engendram. Por isto o filósofo é legislador, é ele quem faz a
crítica aos valores estabelecidos, é ele quem detecta a negação da vida por trás do que se
aceita como bom. Mas não o é por ser o mais sábio ou apto para tanto. O filósofo espírito
livre é aquele que pára de obedecer ao que já está estabelecido por perceber a negação da
vida e a fraqueza por trás destes valores. É ele que, ao afirmar a vontade de potência, afirma
sua diferença em relação ao bom e ao belo estabelecidos. Ele cria novos valores e novas
belezas apontando para uma transvaloração de todos os valores. É legislador neste sentido.
“Só a vontade de potência como princípio genético e genealógico, como princípio
legislador, é capaz de realizar a crítica interna. Só ela torna possível uma transmutação.”
298
Ao mesmo tempo, esta crítica é feita em nome da vida, da afirmação da vontade. A crítica é
feita para liberar o potencial afirmador da vontade caluniado pela moral. A crítica
genealógica tem como efeito um fortalecimento da vida pela distinção entre nobre e baixo.
Mesmo quando se fala de valores, tudo se dá no plano da afetividade. Qual afeto que
comanda? O que quer quem quer isto ou aquilo? Afirma-se ou nega-se a vida? Por isto, a
filosofia de Nietzsche abre espaço para novas formas de sentir. “Na crítica não se trata de
justificar, mas sim de sentir de outro modo: uma outra sensibilidade.”
299
Para Nietzsche, a história da cultura ocidental é a história do triunfo das forças
reativas, isto é, das forças que negam a potência da vontade ao invés de afirmar a sua
própria. Aliás, esta negação decorre, justamente, da impotência de auto-afirmação. O papel
da genealogia da moral será o de mostrar como as forças reativas triunfam.
297
Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, p. 89
298
Ibid., p. 104
299
Ibid., p. 107
104
2) A pré-história da moral
Será interessante começar a exposição sobre a genealogia da moral a partir de uma
genealogia do homem. Pensar o homem em seu surgimento é fundamental para
compreender o momento de surgimento da moral, compreender como e por quê ela
aparece.
Se for verdade que o homem provem do animal e que, portanto, não tenha aparecido
na Terra já totalmente desenvolvido na forma como o conhecemos, então é realmente
possível que tenha ocorrido um período que se acostumou a chamar de estado de natureza
ou guerra de todos contra todos. Um período em que o homem era ainda um bicho-homem.
Nietzsche chama este período de pré-história.
Uma característica básica reconhecível em qualquer animal é sua obediência pura e
simples a seus impulsos. O animal não possui consciência desenvolvida, seu pensamento é
incapaz de encadear um grande número de causas e formar um raciocínio, de maneira que
aquilo que o animal faz, o faz a partir de um impulso não refletido, ou pouco refletido se
comparado ao que se chama hoje homem.
Nietzsche apresenta a idéia de que o homem não foi sempre o mesmo tal qual o
conhecemos, ele veio a ser. Quando os filósofos tomam o homem contemporâneo como
sendo o exemplar do homem sempre existente e, com isto, buscam explicar suas
peculiaridades, estão deixando de lado todo o período de “formação” deste homem.
Formação principalmente de seus sentimentos e costumes. Saber que o homem foi um
animal do tipo selvagem não é suficiente para explicar como que hoje não o seja. Atribuir à
razão esta transformação significa negligenciar o fato de que a própria razão veio a ser
neste processo. Tais transformações ocorreram em tempos primitivos. O que se tem hoje é
um resultado de mudanças que ocorreram há milênios. Criticando os filósofos metafísicos
Nietzsche diz:
“Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a
ser; enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado dessa
faculdade de cognição – Mas tudo o que é essencial na evolução humana se realizou em
tempos primitivos, antes desses quatro mil anos que conhecemos aproximadamente; nestes
o homem já não deve ter se alterado muito. O filósofo, porém, vê ‘instintos’ no homem atual
105
e supõe que estejam entre os fatos inalteráveis do homem, e que possam então fornecer uma
chave para a compreensão do mundo em geral;(...)”
300
Não só o homem e sua faculdade de cognição vieram a ser, como os próprios
instintos do homem se modificam ao longo da história. É muito interessante perceber que
até mesmo aquilo que se sente diante de uma situação faz parte da construção cultural em
que se está enredado. Esta forma de entender os sentimentos e o próprio homem é uma
forma que rompe com a busca por uma moral universal, pois não existe uma “natureza
humana” anterior mesmo à vida e que pudesse ser invocada para garantir o cumprimento de
determinadas regras morais. Não existe vontade boa ou ruim a não ser a partir de um
conjunto de valores específicos. A imposição, pela força, de determinadas regras, além de
criar a moral, irá condicionar o comportamento do homem selvagem até que este se torne o
homem que se conhece. É isto que a genealogia irá mostrar.
Se o homem possui essa herança em comum com os demais animais, isto é, se o
homem, que também é animal, já o foi com muito mais intensidade, a ponto de aceitarmos
uma pré-história onde sua diferença para com o animal selvagem era mínima ou
inexistente, então se torna importante saber como se deu o caminho do bicho-homem até o
homem, isto é, da pré-história à história?
Segundo Nietzsche, tal passagem se deu devido a um longo e árduo trabalho deste
animal sobre si mesmo, um trabalho que ele denominou moralidade dos costumes.
301
Período onde as primeiras regras básicas de convivência em comunidade foram impostas ao
bicho-homem, até transformá-lo, gradualmente, em homem. Este período é o período de
formação da cultura em busca de dominar o mundo selvagem. É comum diferenciar entre
estado de natureza e estado de cultura, contudo, na medida em que esta última nasce
diretamente da anterior, tal divisão possui apenas caráter didático. O que a cultura busca é
dominar o acaso selvagem e imprimir uma constância nas experiências da espécie. “Ora,
toda história da cultura representa uma diminuição do temor diante do acaso, da incerteza,
da subtaneidade. Cultura significa, com efeito, aprender a calcular, a pensar causalmente, a
prevenir, a crer na necessidade.”
302
300
Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 2
301
Id., “Genealogia da moral”, II, 2.
302
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10[21]
106
Segundo o filósofo, a grande diferença entre o homem e o bicho-homem é a
existência de uma memória no primeiro. “(...) uma memória, com cujo auxílio o
esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve
prometer(...)”
303
. Toda a importância da existência de uma memória reside no fato de que o
desenvolvimento do bicho-homem para além de seu estado pré-histórico só foi possível
depois que ele aprendeu a se comprometer. A criação de regras foi um passo inicial para
que algum tipo de estabilidade social pudesse ser alcançado. Mas, para que tais regras
pudessem sequer ser fixadas e exigidas como comportamento, era preciso, antes, que o
bicho-homem fosse capaz de lembrar-se delas. Qualquer tipo de organização social só
poderia ser alcançado a partir do momento em que o bicho-homem fosse capaz de se
comprometer com tal organização. Isto é, era preciso que o bicho-homem fosse capaz ao
menos de se lembrar daquilo que havia sido estipulado como regra. Contudo, esta memória
decorre de um longo e penoso processo de adestramento até que o bicho-homem se torne
um animal confiável, previsível em suas ações e comportamentos.
“Mas quanta coisa isto não pressupõe! Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto
não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar
de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com
segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar ¾ para isso, quanto não
precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua
própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como
porvir!
304
Lembrar para prometer significa responder por seu futuro. O que hoje parece
simples foi, talvez, a mais árdua tarefa na história do homem. Talvez seja exatamente isto
que tenha lhe permitido diferenciar-se dos demais animais. Sabemos como é difícil adestrar
um animal e o quanto de violência é empregada para fazer com que ele se lembre de
executar determinada ação ao receber um estímulo. Aqui, também, a memória é o que faz o
animal se desviar de seus instintos iniciais. Mas, como a memória teria este poder? Que
memória é esta?
É a memória da dor. Para se combater um instinto, é necessário outro instinto. A
única maneira de fazer com que um animal não responda imediatamente a um impulso
303
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 1.
304
Ibid., II, 1.
107
inicial de sua natureza é fazê-lo se lembrar que, caso ceda ao impulso, sofrerá mais do que
o prazer conseguido com sua realização. Quando a realização de um ato específico é
sempre seguida de dor, tal ato específico torna-se indissociável do sentimento de dor,
criando o temor com relação a tal ato. As sanções que recaem sobre aqueles que se desviam
de normas sociais ou morais também visam causar a dor que deve manter acesa a
obediência a tais normas.
“‘Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência
voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?’...
Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e
respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem
do que a sua mnemotécnica. ‘Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que
não cessa de causar dor fica na memória’ ¾ eis um axioma da mais antiga (e infelizmente
mais duradoura) psicologia da terra.”
305
“Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu necessidade de
criar em si uma memória”
306
.
Fazer a passagem do bicho-homem para o homem significa tornar o homem
confiável, significa tornar o homem capaz de se lembrar de algo necessário para a vida de
uma comunidade, significa “manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da
cobiça, algumas elementares exigências do convívio social”.
307
O desenvolvimento do
bicho-homem em direção ao homem traz a necessidade da criação de uma memória,
memória esta criada a partir da violência física. “Com a ajuda de tais imagens e
procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não quero’, com relação aos
quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade — e realmente! Com
a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente ‘à razão’!”
308
Este período pré-histórico é marcado pelo trabalho do bicho-homem sobre si mesmo
a caminho de se desenvolver em uma outra espécie animal. Se o homem foi antes um
bicho-homem, muito mais próximo do animal selvagem do que do civilizado, então a
própria razão é, também, uma construção deste processo. Efetivamente, sem a razão não
teria sido possível a continuidade do desenvolvimento do bicho-homem até o que
305
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 3.
306
Ibid., II, 3.
307
Ibid., II, 3.
308
Ibid., II, 3.
108
chamamos hoje homem, mas a razão, por sua vez, a partir deste papel principal que
desempenha na possibilitação de uma experiência comum foi elevada pela filosofia à
categoria de natureza humana mesma, como se fosse uma qualidade inata do homem.
Contudo, a própria razão veio a ser neste processo de desenvolvimento. A razão aparece
como um instrumento desenvolvido por um animal, talvez por ser o mais frágil em relação
aos demais no tocante a presas, garras e dentes. O que significa dizer que a razão não é algo
necessário, pois seria possível que não a tivéssemos desenvolvido. O pensamento que a
coloca como inata nega-lhe sua história, seu vir-a-ser. A própria razão é passível de uma
genealogia.
O momento em que as promessas se tornam compromissos com uma comunidade é
um momento tardio da passagem da pré-história para a história. Muito antes de se criarem
leis e governos, a memória começou a ser exigida em relações pessoais mais simples,
básicas e imediatas que estavam presentes no cotidiano daqueles seres ainda rudimentares.
As primeiras circunstâncias onde se começa a exigir que o bicho-homem se torne confiável
são as relações pessoais de troca como compra, venda, comércio, e tráfico, quando se criou,
pela primeira vez, a relação entre credor e devedor.
309
“Precisamente nelas [em tais
relações] fazem-se promessas; justamente nelas é que é preciso construir uma memória
naquele que promete; nelas, podemos desconfiar, encontraremos um filão de coisas duras,
cruéis, penosas”.
310
É aí que, pela primeira vez, a violência é usada como auxiliar para
fazer do homem um animal confiável.
Quando uma promessa era descumprida ou um acordo desonrado, a dor daquele que
deve e que causara um dano servia como equivalente pelo desprazer causado pela promessa
não cumprida. Assim, cria-se a memória de que deve-se cumprir suas promessas. Através
da ‘punição’ ao devedor, o credor participa de um direito de senhores; experimenta enfim
ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como ‘inferior’”.
311
É a primeira manifestação de um sentimento de distância de um homem em relação a outro,
baseado na diferença da força de suas vontades. Enquanto um caminha para se tornar
homem, outro precisa ser forçado a abandonar seu estado de bicho-homem. Começa aqui a
história do homem como animal avaliador. O homem que tem consciência de sua
309
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 4.
310
Ibid., II, 5.
311
Ibid., II, 5.
109
capacidade de prometer e cumprir entende este poder como algo que deve ser valorizado e
desenvolvido, de forma que despreza aquele que é incapaz de tal atitude.
A legitimidade do castigo não levava em conta nenhuma consideração sobre a
liberdade ou não-liberdade da vontade do castigado. O castigo não se justificava devido a
compreensão de que aquele que não cumpriu sua promessa poderia ter agido de outro
modo, como ocorre hoje. “(...) de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam
não revelaram consciência de estar lidando com um ‘culpado’. Mas sim com um causador
de danos, com um irresponsável fragmento do destino”.
312
O castigo era uma reparação por
um dano sofrido e a sensação de prazer ao causar sofrimentos àquele que lhe deve era o
equivalente por tal dívida. Devido a esta equivalência entre dano e dor, Nietzsche deduz
que a dor só poderia ser algo compensatório na reparação de um mal na medida em que o
homem sentia prazer em ver e fazer outro homem sofrer, principalmente aquele que lhe
havia causado algum dano. Assim, descarregar a raiva pelo dano sofrido tornava-se uma
forma de expiação do dano. “Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre homens
de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de ‘entender-se’ mediante um
compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre
si”.
313
A justiça começa, então, como um ajuste de forças entre os homens fortes que criam
a existência de certos compromissos que entendem como necessários e forçam seu
cumprimento aos demais. A justiça nasce da vontade de potência.
Ao poucos estas relações de direito pessoal, a partir das noções de promessa,
obrigação, contrato, troca, débito e direito começam a ser utilizadas nas questões sociais.
314
Assim, a comunidade também mantém uma relação de credor com seus membros
devedores. Estes desfrutam da segurança e da proteção que a comunidade oferece às
possíveis manifestações violentas de pessoas de fora desta comunidade. O indivíduo, por
sua vez, está comprometido com essa comunidade, fez a ela uma promessa, a de cumprir
suas regras e não pode descumpri-la. Caso isso ocorra, o infrator é excluído desta
comunidade e devolvido à vida selvagem da qual buscou se proteger em comunidade.
“Sempre utilizando a medida da pré-história (pré-história, aliás, que está sempre presente,
ou pode retornar): também a comunidade mantém com seus membros essa importante
312
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 14.
313
Ibid., II, 8.
314
Ibid., II, 8.
110
relação básica, a do credor com seus devedores”.
315
Quando o homem quebra sua
promessa, descumprindo uma de suas regras, sofre punições físicas, assim como ocorria
nas relações pessoais (esta é a medida pré-histórica).
O chamado “Estado”, ainda em uma forma rudimentar, começa a aparecer aqui a
partir do uso da força de determinados homens que impõem a outros suas normas e suas
regras de acordo com sua própria vontade. Aquele mesmo tipo de homem que impunha
castigos aos devedores nas relações pessoais, começa a impor regras também para o
convívio coletivo em vistas de criar uma estabilidade que torne o homem cada vez mais
previsível e confiável. Um grupo de fortes guerreiros e conquistadores que se apoderam
dos demais e lhes impõe sua vontade – eis a origem do “Estado”.
“(...) que o mais antigo ‘Estado’, em conseqüência, apareceu como uma terrível tirania, uma
maquinaria esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria
prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma
forma. Utilizei a palavra ‘Estado’: está claro a que me refiro – algum bando de bestas louras,
uma raça de conquistadores e senhores que, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre
uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste
modo começa a existir o ‘Estado’ na terra: penso haver-se acabado aquele sentimento que o
fazia começar com um ‘contrato’”.
316
O que Nietzsche está chamando de “Estado” aparece, justamente, no limiar onde é
preciso impor uma constância e uma estabilidade ao bicho-homem. Criam-se as primeiras
leis e o “Estado” é aquele que irá exigir seu cumprimento. “(...) o que [a autoridade
suprema] faz sempre, tão logo se sente forte o bastante –, é a instituição da lei, a declaração
imperativa sobre o que a seus olhos é permitido, justo e proibido, injusto (...)”
317
O “Estado
nasce, portanto, diretamente do estado de natureza, onde um grupo guerreiro impõe suas
regras à força e se torna a autoridade suprema. Não há contratos, há vontade de potência.
É interessante notar aqui que, ao mesmo tempo em que o “Estado” se impõe pela
força dos homens fortes, ele se torna o único a quem é permitido o uso da força a partir de
então. Agora, o homem não mais pode simplesmente descarregar sua raiva contra o
devedor, este papel torna-se exclusivo do “Estado”. Mas, se o homem forte aceita esta
aparente perda de poder é apenas porque sabe que está mais forte dentro desses novos
315
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 9.
316
Ibid., II, 17
317
Ibid., II, 11.
111
moldes que ele mesmo configurou para as relações sociais do que no antigo estado pré-
histórico. Desta forma, “os estados de direito não podem senão ser estados de exceção,
enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, a cujos fins gerais se
subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios para criar maiores unidades
de poder”.
318
A violência que era exercida em nível pessoal passa a ser exercida em nível
“Estatal”. Entretanto, o uso da força não é algo desejável e louvável, é algo pré-histórico e
rudimentar. Ao mostrar o processo de desenvolvimento da memória e toda violência
necessária para tal, ao dizer que o uso da violência como compensação por um dano sofrido
só poderia ser conseqüência do prazer que o homem sente com a crueldade ou ao apontar
para o surgimento da lei e do “Estado” a partir da força, Nietzsche destaca o caráter
primitivo do uso da violência. A violência para o cumprimento de regras é uma medida pré-
histórica “(pré-história, aliás, que está sempre presente, ou sempre pode retornar)”
319
. O
filósofo não descarta a possibilidade de que, em se aumentando o poder da comunidade,
esta não mais se preocupe tanto com as infrações cometidas contra ela e se dê até mesmo o
luxo de não mais punir seus poucos infratores.
320
Se a violência aparece como medida pré-
histórica para forçar o bicho-homem a manter compromissos e se tornar homem, com o
posterior desenvolvimento deste homem, formas mais sutis do direito podem aparecer. A
justiça, que nasce a partir do uso da força e que cria uma série de procedimentos violentos,
pode terminar por suprimir a si mesma, uma vez que tenha cumprido seu papel na
formação do homem. “A justiça, que começou com ‘tudo tem que ser pago’, termina por
fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a
terra, suprimindo a si mesma”.
321
Isto consistiria, com certeza, não mais em um passo do
bicho-homem em direção ao homem, mas do homem ao super-homem.
De qualquer forma, a origem do Estado não estaria em contratos e sim na vontade
de potência. O homem não delega poder ao Estado, este que o toma à força. Dentro deste
contexto é que pôde surgir o sentimento de má consciência ou consciência culpada.
Nietzsche diz que a má consciência é uma “profunda doença que o homem teve que
318
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 11.
319
Ibid., II, 9.
320
Ibid., II, 10.
321
Ibid., II, 10.
112
contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu — a mudança que sobreveio
quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.”
322
O que
ocorreu é que neste caminho da pré-história à história uma enorme quantum de liberdade
foi eliminado do mundo. A maneira como o bicho-homem costumava agir, ou seja, guiado
apenas por seus instintos, foi sendo cada vez menos aceita. Entretanto, “os velhos instintos
não cessaram repentinamente de fazer suas exigências! Mas era difícil, raramente possível,
lhes dar satisfação: no essencial tiveram que buscar gratificações novas e, digamos,
subterrâneas”.
323
A má consciência é a consciência de um homem que vê tudo aquilo que
sente e quer como sendo algo ruim e proibido, é a consciência daquele homem que entende
que todas suas propensões naturais provêm de estados maus em si mesmos. A partir da
criação da ordem e da norma, aquilo que anteriormente se fazia de forma natural perdeu,
subitamente, sua liberdade de existência. Agora, não mais se poderia fazer mal a outra
pessoa. Foi preciso, então, criar uma outra forma de realização dos impulsos violentos. Ao
invés de se fazer mal a outra pessoa, o homem inicia um processo para fazer mal a si
mesmo como forma de satisfazer seus instintos.
“Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos
instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram
com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem
para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na
perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os
possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência”.
324
É interessante notar que é aquela mesma vontade de potência que cria e realiza seus
impulsos que, aqui, ao não poder exteriorizar-se, volta-se contra o próprio homem e dá
origem a má consciência. A conseqüência necessária da separação do homem de seu
passado animal é um enorme sofrimento para consigo mesmo, uma vez que seus próprios
instintos, até então naturalmente realizados, não possuíam mais o direito de se
exteriorizarem. A vontade de potência, ao perder sua possibilidade de extravasamento,
volta-se para o interior do próprio homem. Este agora, por não poder mais violentar outro
homem, começa, portanto a violentar a si mesmo. Uma vez que a válvula de escape para os
322
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 16.
323
Ibid., II, 16.
324
Ibid., II, 16.
113
impulsos estava fechada, o homem buscará outras formas de satisfazer sua necessidade de
violência.
Para Nietzsche, a má consciência atingiu seu ponto culminante devido ao trabalho
das religiões. Estas seriam a forma que o homem teve de elevar ao máximo seu auto-
martírio. Uma vez que a forma tradicional de se exercer a violência estava proibida, mas o
instinto de crueldade ainda se fazia muito presente, o homem passou a se martirizar para
satisfazer este desejo. Se, antes, a justificativa para a violência era uma dívida de outra
pessoa, ou o instinto e o prazer em fazer sofrer como um simples atributo do homem,
posteriormente a justificativa para este sofrimento vem na forma de deuses. Todo o
sofrimento da vida passa a ser explicado, então, enquanto algum tipo de relação com os
deuses. Sejam os deuses que exigem sacrifícios em seu nome, seja o deus que faz o homem
sofrer nesta vida em nome de um outro mundo supraterreno que o espera após a morte, etc.
“A relação de direito privado entre o devedor e seu credor, (...) foi (...) introduzida
(...) na relação entre os vivos e seus antepassados”.
325
A relação, nas antigas sociedades
tribais, entre os vivos e seus ancestrais aponta para uma dívida daqueles com estes. A
geração atual só subsistiria devido aos esforços das gerações mais antigas. É preciso pagar-
lhes esta dívida que aumenta proporcionalmente ao sucesso e ao poder das gerações atuais.
A dívida é tanto maior quanto o poder da tribo e chega a ponto de transformar os
antepassados em verdadeiros deuses. “(...) os ancestrais das estirpes mais poderosas
deverão afinal, por força da fantasia de temor crescente, assumir proporções gigantescas e
desaparecer na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível — o ancestral
termina necessariamente transfigurado em deus.”
326
Tem-se então, uma dívida com estes
deuses. A humanidade, segundo Nietzsche, herdou o sentimento de culpa para com suas
divindades. “O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante
milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às
alturas o conhecimento e o sentimento de Deus”.
327
Neste sentido, o cristianismo seria aquele que eleva o sentimento de culpa ao seu
máximo grau, na medida em que a culpa está associada à idéia de dívida com o deus
responsável pela existência. “O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora
325
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 19.
326
Ibid., II, 19.
327
Ibid., II, 20.
114
alcançado, trouxe também ao mundo o ximo de sentimento de culpa”.
328
Segundo esta
compreensão devemos nossa existência a um deus, pois o homem foi por ele criado. O
sentido da vida na Terra é, então, o de pagar esta dívida. No entanto, é uma dívida
impagável e deve-se passar a vida inteira tentando pagá-la, para desfrutar de uma outra vida
após a morte. A vida torna-se apenas sofrimento. Nega-se esta vida em nome de outra vida
supra-sensível. O que a religião faz aqui é dar um sentido para a dor transformando este
sofrimento em meio de salvação. O ser humano passa a ser o culpado pelo seu sofrimento e
já não pode mais se livrar dele. Deve sofrer a vida inteira. Nietzsche não descarta a
possibilidade do homem só se livrar dessa culpa livrando-se também do deus causador
desta culpa.
Para Nietzsche, o problema não está no sofrimento do homem com sua vida, isto é
normal, é a regra, pode ser até mesmo desejável, o problema sobre o qual se instala a moral
é o do sentido deste sofrimento. O cristianismo oferece um sentido para o sofrimento, por
isso se tornou tão presente: o sofrimento como culpa de viver, como dívida com um deus.
Quanto mais sofrimento, mais se paga a dívida, maior é a chance de salvação. Este é um
sentido que nega a vida, mas ao menos é um sentido. Os instintos que, primeiramente,
foram proibidos pelo “Estado”, são, depois, proibidos por Deus. “Ele [o homem] apreende
em ‘Deus’ as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis
instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus”.
329
O
cristianismo é aquela religião que nega todos os impulsos naturais da vida interpretando-os
como pecado. Desta forma, conseguiu muitas vezes seduzir e convencer o homem forte de
que seus instintos eram sujos e impuros. Veremos mais adiante, como que o homem nobre,
que afirma como bom aquilo que quer, pôde se deixar levar pela moral cristã e se tornar,
assim, semelhante àquele que anteriormente desprezava.
Por fim, Nietzsche deixa claro que a idéia de deus não está necessariamente ligada a
idéia de culpa ou de automartírio. Os deuses gregos, não eram morais e, ao invés de culpar
o homem por querer, dignificavam-no ao mostrar suas virtudes e defeitos sendo realizados
pelos deuses. “Dessa maneira os deuses serviam para, até certo ponto, justificar o homem
também na ruindade; (...)”.
330
A proposta de Nietzsche é clara, quer libertar os instintos do
328
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 20.
329
Ibid., II, 22.
330
Ibid., II, 23.
115
homem, que por muito tempo permanecem aprisionados em Estados e religiões, e dar-lhe a
liberdade de se tornar o que se é, de ser senhor de sua própria vontade. “Já por tempo
demais o homem considerou suas propensões naturais com ‘olhar ruim’, de tal modo que
elas nele se irmanaram com a ‘má consciência’. Uma tentativa inversa é em si possível —
mas quem é forte o bastante para isso?”.
331
3) O uso da religião pelos ressentidos ou como o homem forte tornou-se
fraco
Viu-se que em determinado ponto de sua trajetória o homem não mais pôde
simplesmente descarregar sua força sobre outro devido a exigências do convívio social. A
vontade de potência proibida de realização volta-se contra seu próprio possuidor, fazendo
com que este se sinta culpado por seus impulsos. Este sentimento de culpa para consigo
mesmo termina se transfigurando em religião, o sentimento de culpa em relação a si se
torna culpa em relação a um deus criador a quem se deve a vida. Esta dívida impagável é
entendida como justificação para todo sofrimento. Contudo, ao invés de curar o sentimento
de culpa, a religião o aumenta, pois o deus, além de credor é juiz e castiga seus devedores.
A compreensão moral religiosa cristã foi aquela que mais contribuiu para o
enfraquecimento do homem e para o triunfo da fraqueza de vontade. Ao se interpretar o
sofrimento da vida enquanto pecado em relação a deus, devido ao fato de se sentir impulsos
que são absolutamente naturais, ainda que possam ser nocivos ou intensos, nega-se a vida
em seu caráter mais básico e fundamental. A vida enquanto vontade de potência se torna
culpada por sentir. É um paradoxo insolúvel que prende o fiel até sua morte. Somente
depois dela, poderá o fiel viver. Assim, nega-se a vida a partir da criação de valores
superiores e metafísicos. A Igreja considera como bom todo enfraquecimento do
sentimento de vida e, ao contrário, considera como mal tudo aquilo que na vida é natural,
isto é, tudo aquilo que provém do sentimento de potência. A mais forte arma contra o
sentimento de potência foi a idéia moral de que fazer o bem seria algo bom em si. Pois a
vida, devido ao caráter natural da vontade de potência se dá através do conflito e do jogo de
forças, através da luta entre as potências por soberania. Negar esta luta significa negar a
331
Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 24.
116
forma do movimento da vida, pois “a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa,
sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias,
incorporação e, no mínimo, exploração”.
332
O que a genealogia da moral mostra, contrariando as formulações usualmente
aceitas, é que:
“(...) o juízo de ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’
mesmo, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e
estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo
o que era baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o
direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!
333
A partir desta diferença fundamental no tocante à força que a vontade tem de se
afirmar, cria-se o phatos da distância, que é justamente o sentimento de superioridade que
os homens de vontade forte sentiam por serem senhores de si mesmos e capazes de fazer
aquilo que queriam. O fato de se saber senhor de si mesmo lhes dava um sentimento de
plenitude que os diferenciava dos demais.
Nietzsche continua sua pesquisa mostrando a partir do ponto de vista etimológico,
as designações para a palavra “bom” cunhadas por diversas línguas:
“Descobri então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual — que, em
toda parte, ‘nobre’, ‘aristocrático’, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual
necessariamente se desenvolveu ‘bom’, no sentido de ‘espiritualmente nobre’,
‘aristocrático’, de ‘espiritualmente bem-nascido’, ‘espiritualmente privilegiado’: um
desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz ‘plebeu’, ‘comum’,
‘baixo’ transmudar-se finalmente em ‘ruim’.”
334
Os nobres, devido a posição social que ocupavam, eram capazes de dar ordens, de
mandar, de controlar os menos poderosos. Esta situação fazia das pessoas desta classe as
únicas realmente livres. Por isso, eram capazes de criar. Não havia coerção para eles, ao
contrário, eram os que coagiam, submetiam os mais fracos à sua força. Dentro deste
contexto suas vontades poderiam expressar-se livremente. Diante desta liberdade não se
estranha que tenham se autodesignado como bons. Nietzsche diz que, geralmente, os nobres
332
Nietzsche, Além do bem e do mal, 259
333
Id, “Genealogia da moral”, I, 2.
334
Id, “Genealogia da moral”, I, 4
117
designavam a si mesmos simplesmente segundo sua superioridade no poder ou em posses
materiais de riquezas
335
. Mas não é a isso que Nietzsche se refere quando chama alguém de
forte ou fraco, nobre ou plebeu, senhor ou escravo. É justamente o “traço típico do
caráter”
336
que interessa diretamente a ele. O caráter auto-afirmativo das antigas
aristocracias guerreiras é que deve ficar marcado como característica fundamental da
nobreza de espírito.
Diante de tamanha superioridade em poder, estes homens passaram também a se
considerar com espiritualmente superiores, membros de uma categoria de homens
melhores. Em geral, esta classe (ou casta, para usar o termo do autor em “Genealogia da
Moral”) politicamente preeminente, também é a casta sacerdotal, ou seja, possui também a
preeminência religiosa e espiritual. Constituindo, a partir daí, dois tipos de aristocracia: a
guerreira, cujas atividades envolvem o uso da força e do movimento como a guerra, a caça
e a dança dentre outros e a aristocracia sacerdotal cuja natureza menos ativa de suas
práticas os tornarão antagonistas do outro grupo aristocrático. “Já de início existe algo
malsão nessas aristocracias [sacerdotais] e nos hábitos que nelas vigoram, hábitos hostis à
ação, em parte meditabundos, em parte explosivos sentimentalmente (...)”
337
As práticas
dos sacerdotes sempre foram não só quietas e pouco ativas, como, em geral, eles se
opunham às práticas diferentes das suas, isto é, às práticas ativas e viris. Nietzsche aponta
que este grupo aristocrático sacerdotal se desenvolverá justamente em oposição ao
aristocrata guerreiro, constituindo seu pior inimigo. Mas não por ser mais forte que o
guerreiro e sim “porque são os mais impotentes”.
338
Todo o ódio do sacerdote nasce devido
a esta impotência de sua vontade em se afirmar. Aqui, Nietzsche começa a desvendar o
processo pelo qual a valoração aristocrática e afirmativa da vida foi sendo substituída por
uma valoração religiosa e decadente. “Já se percebe com que facilidade o modo de
valoração sacerdotal pode derivar daquele cavalheiresco-aristocrático e depois desenvolver-
se em seu oposto; em especial, isso ocorre quando a casta dos sacerdotes e a dos guerreiros
se confrontam ciumentamente, e não entram em acordo quanto às suas estimativas.”
339
335
Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 5.
336
Ibid., I, 5.
337
Ibid., I, 6.
338
Ibid., I, 7
339
Ibid., I, 7.
118
O guerreiro baseia seu juízo de valor na força física. O sacerdote, por não dispor de
tal força, desenvolve mais seu intelecto. Diante de um desentendimento entre as partes,
sabemos, a solução se impunha pela força. O sacerdote passa a odiar o guerreiro por este
ser mais forte e irá mover uma guerra de vingança contra ele. “Na sua impotência, o ódio
toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na
história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de
espírito – comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante
empalidece”.
340
Os sacerdotes sempre consideraram as propensões naturais do homem como coisas
ruins. Por que? – Porque não eram capazes afirmá-las. O fraco olha para o forte com
ressentimento, quer que os fortes paguem um dia pela sua força, desejam que, em algum
dia, ainda que em outra vida, possam castigar os fortes pelos seus atos de força. Buscam
fazer com que eles se envergonhem de sua felicidade. O sacerdote se vinga da força do
guerreiro promovendo uma transvaloração dos valores nobres. O sacerdote, como
representante de deus, usará este poder para promover os valores morais negadores da força
à categoria de superiores. A vontade que se exterioriza passará a ser considerada pecado e a
salvação só decorre da negação de si mesmo. O amor a si do nobre guerreiro transforma-se
em amor ao próximo. A potência, anteriormente glorificada em suas ações, é reinterpretada
como pecado e proibida de existir. O amor ao próximo, como negação de sua própria
vontade, pregado enquanto moral de virtude aparece, na verdade, a partir do ressentimento
que a aristocracia sacerdotal tinha da aristocracia guerreira, por esta ser mais forte do que
aquela e capaz de afirmação da própria vontade. Por isto Nietzsche diz que o amor nasceu
do ódio.
341
O amor pregado pelos sacerdotes nasce de seu ódio contra aqueles mais fortes.
Esse amor sacerdotal é, antes, uma negação de si mesmo. Assim, o guerreiro passa a negar
sua própria força e a avaliar a fraqueza como virtude. Com essa inversão os sacerdotes
conseguiram fazer do homem forte um homem culpado, um homem que se envergonha de
seus instintos e de sua força. Esta força se desliga daquilo que ela pode e já não é mais
força, é fraqueza. Seus valores foram invertidos: a força e a vontade que se afirmavam boas
340
Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 7.
341
Ibid., I, 8.
119
e naturais se transformaram em uma moral baixa que deprecia tudo aquilo que o homem
tem de natural em seus sentidos. Este é o início da revolta dos escravos na moral.
Neste ponto Nietzsche irá distinguir entre dois tipos de moral: a moral escrava,
plebéia ou de rebanho, que nasce de um não a um outro, a algo de fora. Sua afirmação se
dá a partir da negação do outro, esta afirmação é um ato secundário na moral de rebanho.
Enquanto que a moral nobre é uma afirmação de si, um sim à sua própria vontade.
“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral
escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ — e este Não é seu ato criador.”
342
O
nobre afirma aquilo que quer como sendo bom, o fraco precisa, antes, negar aquilo que o
nobre valoriza, somente depois disto é capaz de formular o valor oposto como sendo o bem.
A ação do homem fraco é, no fundo, reação. Atente-se para o fato de que os conceitos
usados pelos dois tipos são diferentes. O nobre afirma seus atos chamando-lhes de bom. O
que desconsidera, chama de ruim. Já o escravo, acusa os atos nobres de serem maus, e,
posteriormente, diz então que seus atos são bons. “(...) como são diferentes as palavras
‘mau’ e ‘ruim’, ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de ‘bom (...)’”
343
Os fortes se tornam fracos devido a uma mudança de valores morais operada pelo
tipo sacerdotal. Neste processo há um falseamento no modo de entender a vontade. A
vontade que se manifesta em ato passa a ser considerada culpada, como se pudesse não ter
agido e a fraqueza que não se afirma é tida como virtude, como se escolhesse não agir.
“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um
querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão
absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força.”
344
Viu-se no primeiro
capítulo que a força está imediatamente expressa em toda sua potência a cada instante, não
sendo possível sua não expressão. A falsificação sacerdotal decorre de uma falsificação
anterior que consiste em entender a vontade como tendo sido determinada por um sujeito.
“(...) como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para
expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer,
do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação — a ação é tudo”.
345
Tal
342
Nietzsche. “Genealogia da moral”, I, 10.
343
Ibid., I, 11.
344
Ibid., I, 13.
345
Ibid., I, 13
120
ilusão só é possível graças à sedução da linguagem, sendo apenas um jogo de palavras, uma
maneira como se constroem as frases. Na verdade, não há distinção possível entre a força e
suas expressões, a força já é a ação. A moral escrava, entretanto, precisa postular a
existência do livre arbítrio, pois sem ele, a vontade que se afirma não pode ser tachada de
culpada. Para Nietzsche, o livre-arbítrio é “o mais famigerado artifício de teólogos que
há”
346
. Seu objetivo é unicamente tornar o homem culpabilizável e legitimar seu
julgamento. “Os homens foram considerados ‘livres’ para poderem ser julgados, ser
punidos – ser culpados: em conseqüência, toda ão teve de ser considerada como querida,
e a origem de toda ação localizada na consciência”.
347
É a impotência do escravo que cria
essa ilusão passando a imputar culpa a cada ação. Tem-se, desta forma, a argumentação que
legitima e exige a impotência enquanto virtude e taxa a ação de pecado.
“Por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira costuma
purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no ‘sujeito’ indiferente e livre para
escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais
sólido artigo de fé sobre a Terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais,
aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de
interpretar a fraqueza como liberdade, e seu ser-assim como mérito.
348
Com o cristianismo a recompensa e o castigo são inseridos no devir. Tudo o que
acontece passa a ser interpretado como vontade divina e apenas os sacerdotes detêm o
poder de interpretar esta vontade, fazendo de sua própria vontade um mandamento de deus.
Este poder sacerdotal pode ser tão grande que os mandamentos divinos justificaram, nos
tempos de maior poder do catolicismo, a queima de pessoas vivas em praça pública e outras
atrocidades, como as cometidas aos Cátaros durante as cruzadas. É latente e indisfarçável o
caráter vingativo e violento de alguns documentos eclesiásticos antigos. Eles chegam a
defender que seus inimigos morram, ou melhor, chegam a defender que seus fiéis matem
seus inimigos, pois a vontade divina é que morram os pecadores. Em outros momentos
mais recentes da história, pregam que seus fiéis se abstenham destas violências, mas
somente porque no paraíso poderão contemplar com muito mais prazer o sofrimento dos
346
Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, VI, 7.
347
Ibid., VI, 7.
348
Id., “Genealogia da moral”, I, 13.
121
infiéis no inferno.
349
Nietzsche viu no cristianismo a grande revolta escrava na moral, viu
nele o mecanismo pelo qual o espírito nobre foi enfraquecido. A proposta de Nietzsche é
que os valores de abstenção de si enquanto negação dos impulsos, tão caros a um certo tipo
de cristianismo, os mais difundidos e triunfantes até hoje, devem ser superados. Por isto, o
primeiro livro da transvaloração de todos os valores se chama “O anticristo”, ou “O
anticristão”, como já foi sugerido.
4) Cristianismo
A crítica que se dirige contra o cristianismo é a de promover o enfraquecimento e
mediocrização do homem. A desvalorização de tudo o que é forte e ascendente apenas
aumentou com o cristianismo, a vida continuou a ser caluniada em nome de um outro
mundo além deste que se conhece. No cristianismo, tudo o que degrada e diminui a vida é
entendido como bom e deve ser praticado pelos fiéis. A fraqueza de espírito e o medo de
seguir suas próprias inclinações, o medo de realização dos instintos é o bicho de
consciência plantado pelos sacerdotes cristãos através da culpabilização moral dos instintos
e propensões naturais e pela postulação de valores metafísicos que devam guiar o homem
em seus atos. Uma moral que prega a abstenção de si como caminho para a salvação; um
deus que vê com maus olhos os instintos humanos e que exige que o homem não mais os
sinta, pois até mesmo senti-los é pecado; uma religião que prega a piedade como afeto
principal e ensina a não mais se defender e a não mais atacar; a busca por uma paz de
espírito que é o resultado da abstenção de si. Para o cristianismo, bom é aquilo que não faz
mal a ninguém. Vemos aí a característica defensiva da moral de rebanho. Até mesmo
alguns afetos que não fazem mal a ninguém, mas que fortalecem o homem são
considerados pecado. Enquanto, anteriormente, a virtude era sinônima de virilidade e
capacidade de autodomínio, a moral cristã pregou a virtude enquanto submissão à sua
moral. “O cristianismo como adestramento do animal gregário: as pequenas virtudes do
animal gregário como sendo a virtude
350
. Aquele que a tudo obedece, este é o bom. Assim
profere esta moral. O cristianismo é a religião que exalta as características do homem fraco
349
Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 15.
350
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10[75]
122
esclarecidas anteriormente, é religião que prega a fraqueza enquanto virtude de alguém que,
teoricamente, não agiu porque não quis, ao invés de assumir que lhes era impossível agir,
porque são impotentes. O cristianismo aparece como a religião que protege os impotentes e
a maneira que tem de fazer isto é enfraquecendo a todos. Agora, só os impotentes serão
salvos. Com este temor, até os mais fortes se renderam ao ascetismo. A moral cristã fez
com que os homens desaprendessem a querer. Só é permitido seguir a um pastor, isto é, ao
sacerdote cristão. O cristianismo tem o homem gregário como seu ideal, pois assim pode
formar um rebanho. Porém, este ideal é o que há de mais contrário ao que Nietzsche
entende ser o objetivo de um povo ou de uma cultura. Com este ideal de homem dócil luta-
se contra o surgimento de um tipo mais forte, luta-se contra a exceção que ultrapassa a
mediocridade. “Esta eleição de um ideal foi até agora a tentação mais inquietante a qual o
homem já foi exposto; pois ela ameaça fazer desaparecer as exceções mais vigorosamente
bem sucedidas, os casos de sorte do homem, nos quais a vontade de potência e de
crescimento do tipo humano integral dão um passo adiante”.
351
A questão de uma cultura é saber que tipo de homem é desejado e deve, portanto,
ser incentivado, elevado, produzido. Para Nietzsche, este homem é o tipo nobre que já
vimos. Não mais à maneira antiga de guerreiros medievais, mas enquanto pessoas capazes
de viver plenamente tudo aquilo que a vida pode oferecer-lhes. Pessoas que não mais fujam
de seus sentimentos e que sejam capazes de olhar para dentro do abismo de sua própria
existência e de lá retornar fortalecido. Ou não retornar. Que importa! Este homem já existiu
como exceção. No renascimento, por exemplo. Mas nunca foi quisto, desejado enquanto
meta. Ao contrário, sempre foi temido e posto de lado quando apareceu. “E é o medo que
ele inspira que leva a querer, a buscar, a obter enfim o tipo oposto: o homem-animal
doméstico, animal gregário, animal doente, o cristão...”
352
O cristianismo travou uma luta de morte contra o tipo nobre e seus valores
afirmativos tornando-se uma espécie de véu que esconde a decadência. Nietzsche afirma
que “todos os valores nos quais a humanidade deposita atualmente suas mais altas
aspirações, são valeurs de la décadence”
353
. Para o filósofo, decadente é “todo animal, toda
espécie, todo individuo que perde seus instintos, que escolhe, que prefere aquilo que lhe faz
351
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 11[55]
352
Id., “L’anthéchrist”, 3.
353
Id., “L’anthéchrist”, 6.
123
mal”
354
. Pois, já vimos, vida é “instinto de crescimento, de dureza, de acúmulo de forças, de
potência: lá onde falta a vontade de potência, há o declínio”
355
. A modernidade, como
herança do cristianismo, aspira por aquilo que a enfraquece, que a torna escrava e
homogênea.
O cristianismo pode ser definido, segundo Nietzsche, como a religião da
compaixão. Para o filósofo, a compaixão é justamente o oposto dos sentimentos fortes e
viris que quer revalorizar. A compaixão é um sentimento que deprime e entristece, ao invés
de fortificar. A compaixão aumenta o sofrimento que a vida possa trazer por si mesma. A
compaixão visa preservar os condenados e malogrados da vida, dando-lhes consolo e
acolhida, não para que se fortaleçam, mas para que permaneçam no sofrimento. O
cristianismo fez da compaixão a virtude por excelência valorizando o que é fraco e doente.
A compaixão só pode ser a grande virtude em uma religião ou filosofia niilista. Nietzsche
não cansa de criticar a compaixão, para ele, ela é a negação da vida, é a práxis do niilismo,
é um instinto depressivo contagioso, é um multiplicador da miséria e da fraqueza, é o
instrumento principal de agravamento da decadência, hostilidade à vida, é o que há de mais
doente em nossa modernidade doente...
356
O deus cristão, deus da compaixão, deus dos
doentes é, para Nietzsche, a concepção mais corrompida de deus que já existiu. Isto porque,
possivelmente pela primeira vez, tem-se uma concepção de deus que vai contra todos os
instintos ascendentes e afirmativos da vida.
Para ser capaz de valorizar de tal forma aquilo que denigre a vida, os teólogos e
sacerdotes precisaram mover uma longa batalha contra o pensamento. Em todo lugar onde
houve inteligência, pensamento autônomo, ciência, eles fizeram uso de uma moral que a
isto desqualificasse. O nome desta moral é a fé. Através da fé, fecharam-se os olhos para
todas as outras possíveis manifestações da vida que contrariassem os planos cristãos.
Assim, falsearam, mais uma vez, a vida, atribuindo-lhe um sentido oculto, disponível
apenas aos sacerdotes e negando qualquer possibilidade de conhecimento fora de sua
religião. Para o sacerdote, verdadeiro é apenas aquilo que diz seu deus e que, portanto,
somente ele (sacerdote) tem acesso. Isto é, moralmente verdadeiros são todos os instintos
negadores da vida, todos os mandamentos de recusa de si e negação dos próprios instintos.
354
Nietzsche, “L’anthéchrist”, 6.
355
Ibid., 6.
356
Ibid., 7.
124
Já aquilo que engrandece a vida e a fortifica, isto torna-se falso quase que por definição. A
fé na religião é o instrumento do qual o sacerdote lança mão para forçar seus fiéis a uma
crença cega nos princípios cristãos a despeito de quaisquer outras manifestações em
contrário. “O padre, o que ele fez da ciência? Ele está bem acima dela! — E, até o presente,
o padre reinou! Foi ele quem decretara o verdadeiro e o falso!”
357
Durante muito tempo,
não só o homem de ciências, mas também qualquer pessoa que se arvorasse o direito de
pensar livremente, isto é, por sua própria cabeça, ou por suas próprias víscera, foi
perseguido pela Igreja católica. “No cristianismo, nem a moral, nem a religião possuem
algum ponto de contato com a realidade. Só existem causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’,
‘eu’, ‘livre arbítrio’, — ou mesmo ‘servo arbítrio’); só existem efeitos imaginários
(‘pecado’, ‘redenção’, ‘graça’, ‘expiação’, ‘remissão dos pecados’); (...)”
358
O cristianismo
faz o uso das interpretações mais abusivas sobre o texto da realidade. Essas explicações
metafísicas e fantásticas foram acreditadas por inúmeras pessoas, produzindo um processo
de enfraquecimento da humanidade, pois só assim os sacerdotes poderiam dominar. A
religião criou o ódio contra o real.
Mas, então, Nietzsche se pergunta: “Quem teria o interesse em se evadir da
realidade em nome de uma mentira?” E responde, “Aqueles que sofrem da realidade.”
359
Aquelas pessoas nas quais os sentimentos desagradáveis e infelizes são os sentimentos mais
fortes criam, então, uma moral de negação da vida, pois a vida lhes é difícil de suportar.
Cria-se a esperança em uma vida depois da morte, contra toda e qualquer vida terrena. Tal
esperança não pode ser nem comprovada, nem desmentida. Por isto, necessita de que se
tenha fé no mundo do além para que ele realmente exista. Quando se coloca a solução e a
motivação das questões da vida em uma recompensa de um mundo perfeito após a morte,
tem-se a conclusão de que esta vida não vale a pena e que o melhor é seguir os
mandamentos cristãos em nome de uma vida eterna após a morte.
“O que combatemos no cristianismo? O fato de que ele quer quebrar os fortes, desencorajar
sua coragem, explorar seus maus momentos e suas lassitudes, perverter sua firme segurança
em inquietude e em angústia de consciência, o fato que eles se colocam a envenenar e tornar
doentes os instintos nobres até que sua força, sua vontade de potência venha a retroceder, se
voltar contra si mesma – até conduzir os fortes a se arruinar nas extravagâncias do desprezo
357
Nietzsche, “L’anthéchrist”, 12
358
Ibid., 15
359
Ibid., 15
125
de si e do descuidado de si: esta horripilante forma de se arruinar da qual Pascal oferece o
mais célebre exemplo.”
360
Fazendo uma genealogia dos deuses Nietzsche mostra que os deuses sempre foram
sinal de força. Um povo mantinha um deus enquanto este significava a superação de
dificuldades. Aquele deus era sinal da força do povo que o venerava. Era uma forma de
agradecimento e gratidão pelo fato do povo permanecer forte. Não cabia a estes deuses
fazer o bem e o mal. Ele era admirado pelo bem ou pelo mal que pudesse ter feito. Para
Nietzsche, determinar que um deus deva apenas fazer o bem significa uma castração contra
deus. Dentro deste contexto faz a pergunta: de que povo poderia vir um deus que não
conhece as glórias da vitória? De onde poderia vir um deus que não representa a força
adquirida em momentos difíceis, mas superados? – Quando um povo começa a perder sua
força, sua crença em seu futuro, começa a ver a submissão como única forma de se manter,
então, seu deus termina por refletir esta mudança. É impossível a um povo em declínio, que
viva em um contexto de decadência da vida, acreditar e manter um deus forte e guerreiro.
Ele não refletiria mais o que é aquele povo. “Ele se torna covarde, pusilânime, modesto, ele
aconselha agora a paz da alma, o fim do ódio, a indulgência, o amor frente a amigos e
inimigos.”
361
Onde falta a vontade de potência, começa a decadência. Assim, um povo que
teve seu deus forte e vigoroso pode passar a ter um deus doente e impotente.
Para Nietzsche, o tipo de moral pregada pelo cristianismo reflete a história de um
povo. Para o filósofo, o cristianismo é uma conseqüência do judaísmo. Segundo Nietzsche,
para que o povo judeu continuasse existindo foi preciso que falseassem toda a realidade.
Desta forma, criaram um outro mundo a partir do qual a força da vida fosse mostrada
enquanto vilã para conseguirem dizer não a tudo o que era ascendente, potente, pleno de
vida. “(...) o povo judeu (...) colocado diante de situações dificílimas, voluntariamente e
com uma profunda habilidade para a sobrevivência, tomaram partido dos instintos de
décadence – não porque eram dominados por tal instinto, mas porque adivinharam neles
uma potência graças a qual puderam se impor contra o mundo.”
362
Os judeus, em um
momento de decadência histórica, fizeram da decadência mesma, um valor, uma virtude.
Pregar a impotência como virtude foi o caminho que conseguiram para se tornarem
360
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 10[55]
361
Nietzsche, “L’anthéchrist”, 16
362
Ibid., 25
126
poderosos. Nietzsche desvenda aqui a questão de como conseguir fazer da impotência a
arma com a qual torna-se a si mesmo potente. Ora, a única maneira de os fracos se
tornarem poderosos é enfraquecendo os fortes.
Inicialmente, Israel tinha uma relação tradicional com seu deus. Esperava-se vitória
e saúde. Ele daria o necessário. Mas, segundo Nietzsche, a anarquia interior do povo e os
conflitos com os assírios tornou a situação dos judeus um tanto crítica. Não mais era
possível manter aquele deus glorioso, ele não correspondia mais à realidade. Mas, preferiu-
se manter este deus a todo custo, mesmo que, para tanto, ele tivesse que permanecer
completamente desfigurado e modificado. O deus virou um instrumento nas mãos dos
sacerdotes. Agora, a bondade se torna recompensa e o mal, um castigo. Cria-se uma
causalidade antinatural em detrimento das causalidades naturais. Inventa-se uma ordem
moral universal. “O que é então a moral judia? O que é então a moral cristã? O acaso
despojado de sua inocência; a infelicidade sujada com o nome de pecado; o bem estar
conhecido como um perigo, como uma tentação, o mal estar psicológico envenenado pelo
verme roedor da consciência.”
363
Para tanto, foi preciso, inclusive, falsear a própria história
de Israel. Reinterpretaram-na sob a ótica do castigo e punição.
É preciso entender a relação que a religião mantém com o sofrimento. O judaísmo
passou a entender o sofrimento enquanto culpa por uma falta cometida em vida. Introduziu
as noções de castigo e recompensa no devir, destituindo-o de sua inocência. Interpretou os
fatos da vida enquanto pecado, atribuindo culpa às ações das pessoas. Desta forma,
culpabiliza-se a vida em nome de uma moral e prega-se que se abstenha dela como meio
para a salvação. Com isto, já dissemos, o sacerdote cristão torna-se mestre do homem de
moral nobre, pois este passa a entender suas atitudes, anteriormente tidas como boas, como
sendo contrárias a deus.
Como conciliar então esta contradição? Pelo arrependimento e pela guerra contra si
mesmo. O homem nobre se torna o pior inimigo de si mesmo, pois acredita que aquilo que
sente é pecado e que, se não mudar sua conduta, não será salvo após a morte. O valor de um
indivíduo ou de um povo passou a ser medido não mais por seu poder, mas pelo grau de
obediência a deus que ele era capaz. O padre torna-se necessário. As coisas mais
elementares da vida perdem seu valor e necessitam que o padre diga que valem ou não
363
Nietzsche, “L’anthéchrist”, 25
127
alguma coisa. Agora, só é bom aquilo que o padre diz estar de acordo com a ordem divina.
Quando se comete um pecado, é preciso se submeter ao sacerdote para que este lhe conceda
o perdão. Só o padre pode perdoar. “A desobediência a deus, isto é, ao padre, à ‘lei’, se
chama agora ‘pecado’; os meios de se ‘reconciliar com deus’, são, como era de se esperar,
os meios que asseguram uma submissão ainda mais profunda ao padre: só o padre
‘salva.’”
364
Assim, o sacerdote se tornou mais poderoso que os demais.
Existe uma diferença entre a vida e o exemplo de Cristo e a interpretação que se fez
deste exemplo. A doutrina de Cristo foi ensinada por ele através de sua conduta, através
daquilo que ele fazia na vida. A palavra e o discurso sempre foram algo posterior e de
segunda importância. O que Cristo criticava nos judeus era esta estrutura hierárquica e
distante entre os sacerdotes e os fiéis. A boa nova de Cristo é, justamente, o fato de que a
realidade já é o fim da distância entre homem e Deus. “O ‘pecado’, assim como todo
sentimento de distância nas relações entre o homem e deus é abolido, –, e, a ‘boa nova’ é
precisamente esta”.
365
A religião cristã que surgia contra o judaísmo se propunha a mostrar
que é a conduta humana que leva à beatitude e a Deus, não a fé no sacerdote. “Não é a ‘fé ’
que distingue o cristão: o cristão age, ele se distingue por uma outra maneira de agir”.
366
O
cristão transforma os preceitos de não agressão e de não violência em ato. Ele não se
preocupa com ofensas, não revida a agressão, não devolve nenhuma maldade. Ele já é todo
amor e paz. Não precisa de sacerdotes lhe dizendo como chegar a deus. Essa atitude só é
alcançada por aqueles que chegaram a Deus e, simultaneamente, só se chega a Deus por
esta conduta. “A vida do Redentor não foi outra coisa senão esta prática, assim como sua
morte...”
367
As ofensas e todas as demais coisas exteriores, boas ou ruins, isto é, toda a
realidade,o trocadas por um estado de contentamento interior. Este estado deve ser a
fortaleza que permite se colocar diante do mundo sem reagir a ele. Este estado é a presença
divina. Se Cristo morreu, não foi para salvar os homens, mas para demonstrar uma conduta
reta na vida. Uma forma de viver em Deus. Desta forma, nada pode ser menos cristão do
que a apropriação que Paulo e seus discípulos posteriormente chamaram de cristianismo. É
por isto que Nietzsche diz que até hoje só existiu um cristão: Cristo. “O ‘evangelho’ morreu
364
Nietzsche, “L’anthéchrist”, 26.
365
Ibid., 33.
366
Ibid., 33.
367
Ibid., 33.
128
na cruz. Depois deste momento, aquilo que se chamou ‘evangelho’ é já o contrário daquilo
que Cristo mesmo viveu: uma ‘má nova’, um ‘desangielium’.”
368
Com a morte de Cristo, pergunta-se pelos culpados. A resposta: os judeus e a classe
dominante. Inicia-se assim, uma revolta contra o poder estabelecido. A morte de Cristo é
uma morte sem ressentimentos. É alguém que ignora os poderosos, e suas leis, a ponto de
se deixar morrer por elas sem se abater; não há ressentimento em Cristo, pois ele é superior
a este sentimento. Cristo morreu para mostrar a fraqueza dos homens e das estruturas às
quais dedicavam suas vidas e incitar as pessoas a que vivessem sem se deixar seduzir por
coisas mesquinhas. Mas, sua morte foi transformada em motivo de revolta, não foram
capazes de perdoar. Os seguidores de Cristo não foram capazes de serem cristãos, não
foram capazes de seguir os ensinamentos de seu mestre, revoltaram-se contra seu
assassinato, enquanto a atitude cristã correta seria lamentar, com uma certa tranqüilidade da
alma, a ignorância dos assassinos. Cristo foi mal interpretado! A partir daqui, a realidade do
evangelho foi posta de cabeça para baixo.
O que aconteceu, segundo Nietzsche foi que, com a difusão do cristianismo, uma
série de fracos e doentes do espírito começaram a buscá-lo. A Igreja teve necessidade de se
rebaixar aos seus seguidores para continuar crescendo. A fatalidade do cristianismo reside
na necessidade que teve de tornar sua fé tão doente, tão baixa e tão vulgar quanto eram
doentes, baixas e vulgares as necessidades que tinha que satisfazer.”
369
A igreja católica
volta-se assim, da mesma forma que sua antecessora, para o poder que uma religião é capaz
de exercer sobre o povo. A realidade não mais é levada em conta. Importa, apenas, o poder
que dela decorra para o sacerdote.
Interpretou-se a morte de Cristo não como a conseqüência natural de alguém que
conseguiu ignorar o poder e demonstrar publicamente que isto era possível, mas como o
sacrifício do filho de Deus, que o próprio Deus havia enviado a Terra para salvar os
humanos. Acrescentou-se, ainda, a esta história, uma ressurreição, para marcar a diferença
de Cristo para com todos os demais e destacar seu comportamento como impossível e
inacessível a qualquer outro mortal. Assim pôde surgir a doutrina da culpa, do castigo, da
recompensa, do juízo final, da penitência e do arrependimento, etc. Esta doutrina retira da
368
Nietzsche, “L’anthéchrist”, 39.
369
Ibid., 37.
129
vida seu centro de gravidade, colocando-o no nada, no além, em outro mundo. Agora, a
doutrina cristã não mais era praticada em vida, mas só depois da morte. Cabia ao fiel
apenas ser infeliz em sua medíocre existência e seguir as orientações sacerdotais para que
fosse salvo quando morresse. Este pensamento destrói tudo aquilo que os instintos
naturalmente afirmam e aponta para a idéia de que somente a impotência é boa. Não se
trata de dosar a força dos instintos e usá-los a seu favor, trata-se negar todo e qualquer
instinto como sendo contrário ao mandamento divino. A partir dos valores de negação da
vida, o cristianismo julga a todo o resto. A noção de pecado nega a vida naquilo que ela tem
de mais potente. Com a moral cristã, tem-se a humanidade dominada pelo cabresto. Tornar
uma pessoa doente, esta é a verdadeira intenção do cristianismo. Na verdade, para que
alguém se torne cristão, já é necessário que esteja doente. Ao estabelecer metafisicamente
os mandamentos de deus, define-se o valor dos valores como estando acima da
humanidade. Não é mais o homem quem cria seus valores, eles já estão dados por deus e
apenas o sacerdote é capaz de interpretá-los. Retira-se do homem a capacidade de
autodeterminar sua própria vida. Por este caminho, a santidade e a beatitude se dão a partir
do agravamento da doença.
Contra todo este mundo doentio, Nietzsche recomenda uma boa dose de ceticismo.
Uma convicção, por mais forte que seja, não é um sinal da veracidade desta convicção.
Muito pelo contrário, a força com que se defende uma convicção, geralmente, é a tentativa
de se fazer acreditar em algo muito pouco provável. Algo deste gênero, ou será logo
desacreditado, ou precisa ser muito valorizado. Mas, para valorizar muito algo improvável
e imperscrutável é necessário muita fé. Eis porque a fé é tão necessária ao cristianismo. As
grandes convicções são, na verdade, grandes prisões, pois impedem que o espírito se torne
livre para buscar compreender aquilo que realmente se passa. Para o convicto, não existe
mais discussão, ele já possui a verdade. Caso esteja errado, não aceitará esta possibilidade e
dirá que aquilo que se opõe à sua convicção é um erro. O que impressiona Nietzsche é que,
se na época em que surge o cristianismo, acreditava-se verdadeiramente em sua doutrina e
em seus ditames, hoje, tais ditames não mais podem ser defendidos de forma sincera. O
padre que prega a punição aos pecadores, amedronta os fiéis com o juízo final, ele mente e
sabe que sua mentira visa a manutenção de um poderio milenar que a Igreja exerceu sobre
130
as pessoas. Este poderio teve como conseqüência a pregação do ascetismo como valor
superior durante dois milênios.
5) O ideal ascético como resposta à dor e à ausência de sentido
O papel das religiões cristãs foi o de conferir à existência um sentido que trouxesse
consigo a exigência de obediência a seus preceitos morais. Ao apresentar o sofrimento
enquanto dívida para com deus e ao propor a negação de si como conduta que levaria à
salvação, o cristianismo responde a uma pergunta fundamental em qualquer cultura, a
saber, a pergunta pelo sentido do sofrimento e da dor. Contudo, ao pregar o ascetismo,
oferece o nada enquanto sentido para a vida. Nietzsche buscará entender por que a conduta
ascética foi a conduta defendida como moral pelo cristianismo até o ponto de se tornar um
ideal. Para tentar entender as razões do histórico desprezo em relação aos sentidos,
Nietzsche se pergunta “o que significam ideais ascéticos?”
370
Isto é, o que significa o fato
de a negação de si ter se tornado o sentido da vida? – O enfraquecimento dos fortes só foi
possível na medida em que a negação de si e o ascetismo se tornaram as virtudes por si
mesmas. A negação dos instintos teve que se tornar um ideal de existência para que pudesse
ser seguido com tanta força. “Porém, no fato de o ideal ascético haver significado tanto
para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui
[horror ao vácuo]: ele precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada
querer.
371
A conduta ascética foi tida como a conduta capaz de permitir o acesso à verdade
metafísica da existência. Esta foi a forma de transformar a negação de si em ideal de
salvação, fazendo de uma moral baixa e fraca um ideal divino. Contudo, o ascetismo, por si
mesmo, não implica em negação da vida. Nietzsche mostra a diferença entre a conduta
ascética do filósofo e este comportamento erigido em ideal por uma religião. A filosofia e o
ascetismo sempre caminharam próximos. O filosofar requer um certo comportamento
calmo e contido, nenhuma perturbação, barulho, deveres, obrigações, etc., eis o que lhes é
indispensável.
372
Daí que uma certa dose de ascetismo sempre foi necessária ao filósofo. O
370
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 1
371
Ibid., III, 1
372
Ibid., III, 8
131
ascetismo, para ele, é a busca por uma espécie de condição ótima para seu trabalho, um
estado de espírito que lhe possibilite dar o melhor de si, uma forma de alcançar seu máximo
de poder. “Todo animal, portanto também a bête philosophe [besta filósofo], busca
instintivamente um optimum de condições favoráveis em que possa expandir inteiramente
sua força e alcançar o seu máximo de sentimento de poder”.
373
O ascetismo propicia esta
condição. “Que significa então o ideal ascético para um filósofo? Minha resposta é – já se
terá percebido: o filósofo sorri ao seu encontro, como a um optimum das condições da mais
alta espiritualidade – ele não nega com isso ‘a existência’, antes afirma a sua existência”
374
Desta forma, é natural que exista uma forte afeição por parte dos filósofos para com este
ideal. Porém, não se trata de valorizá-lo enquanto uma moral que negue a vida. Se o
comportamento filosófico se aproxima do ascetismo, isto se dá enquanto instinto dominante
que impõe suas exigências aos demais instintos. Não se trata de uma moral ou virtude que
vê neste comportamento o bem em si ou algo do gênero. O filósofo produz melhor sua
filosofia dentro de um certo ascetismo, ele é mais potente neste estado, não há moral aqui,
há vontade de potência.
375
O comportamento calmo e meditativo era mal visto em épocas guerreiras e viris,
quando a potência violenta do homem se encontrava no centro das valorações. Isto valia
para todos os tipos que faziam uso do comportamento ascético, entre eles: o sacerdote, o
adivinho, o homem religioso, etc. Tais tipos tiveram que despertar um certo medo a seu
respeito para poderem existir. “O que havia de inativo, cismador, não-guerreiro nos
instintos dos homens contemplativos, despertou por muito tempo uma profunda
desconfiança à sua volta: contra isso não havia outro recurso senão inspirar decidido temor
a si.”
376
Os filósofos tinham todo o costume da época voltado contra eles e era preciso que
imitassem e acreditassem no ideal ascético, praticado principalmente pelos religiosos, para
que pudessem continuar desempenhando sua vontade de pensar. O ideal ascético era tão
antagônico aos instintos guerreiros que chegava a despertar desconfiança e medo sobre
aquele que o praticava. Tal comportamento foi tão importante que se tornou quase que a
própria filosofia.
373
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 7
374
Ibid., III, 7
375
Ibid., III, 8
376
Ibid., III, 10
132
“A atitude à parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à
vida, descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente,
passando a valer quase como a atitude filosófica em siela é, sobretudo, uma
conseqüência da precariedade de condições em que a filosofia surgiu e subsistiu: na
medida em que, durante muitíssimo tempo, o teria sido possível filosofia sobre a
terra sem o invólucro e disfarce ascético, sem uma auto-incompreensão ascética.
377
O ideal ascético foi a única forma sob a qual o filósofo pôde existir durante a maior
parte do tempo, precisando negar o mundo sensível para tanto. Porém, Nietzsche diz que a
associação entre negação da vida e filosofia é uma auto-incompreensão. Ao falar de uma
auto-incompreensão ascética, Nietzsche deixa claro que o ascetismo, entendido como
negação dos sentidos e hostilidade à vida, não é uma condição para a filosofia, embora
tenha sido outrora. Sua aspiração é que hoje as condições para a existência do filósofo
sejam diferentes, de tal modo que ele já possa existir sem que seja necessário o disfarce
ascético. O filósofo não mais precisa ser asceta.
Vemos então, duas formas diferentes de se encarar o ascetismo. Em uma, ele nada
mais é do que um comportamento exigido por uma vontade filosófica que o impõe como
meio para o aumento de potência; na segunda forma, temos o ascetismo pregado enquanto
moral e virtude que desqualifica o mundo e é hostil à vida naquilo que ela tem de mais
básico, isto é, na própria vontade de potência. O ideal ascético do filósofo não precisa ser,
necessariamente, uma negação da vida. A diferença é que o filósofo o entende não como
uma moral e sim como uma vontade. O ascetismo enquanto moral aparece como a prática
desenvolvida pelos sacerdotes de religiões que pregam este comportamento como a forma
de se chegar a um outro mundo metafísico e dessensualizado. Ao pregador desta moral,
Nietzsche chama de sacerdote ascético. Temos aqui o mesmo comportamento (ascetismo)
atuando contra e a favor da vida.
“O pensamento em torno do qual aqui se peleja, é a valoração de nossa vida por parte dos
sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, ‘natureza’, ‘mundo’, toda a
esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência
inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que
negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para
essa outra existência.”
378
377
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 10
378
Ibid., III, 11
133
Diferentemente do significado do ideal ascético para o filósofo, que não o coloca
contra a existência, ao contrário, usa-o a seu favor, para o sacerdote ascético este ideal
termina por negar toda sensibilidade neste mundo em nome de uma outra existência para
além da vida. O ideal ascético, na medida em que nega a vida, serviria como o caminho de
acesso ao mundo perfeito metafísico. A partir daqui, o ideal ascético se associa com a
negação da vida, pois é tido pelos sacerdotes como o comportamento capaz de levá-los ao
sentido metafísico da existência. “Supondo que essa vontade encarnada de contradição e
antinatureza seja levada a filosofar: onde descarregará seu arbítrio mais íntimo? Naquilo
que é experimentado do modo mais seguro como verdadeiro, como real: buscará o erro
precisamente ali onde o autêntico instinto de vida situa incondicionalmente a verdade.”
379
A única coisa que é experimentada como “dado” são os instintos, os sentidos, o corpo, o
“mundo”, a “natureza”, o vir a ser ... O ideal ascético os interpreta como erro, como engano
e prega a negação dos mesmos em nome de uma outra coisa para além deles, que seria o
lugar onde reside a verdade. Assim, o ideal ascético nega a vida em nome da verdade e do
bem metafísicos e faz com que a vida atue contra a vida.
“Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de
um insaciado instinto e vontade de potência que deseja senhorear-se, não de algo da vida,
mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz
a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e
pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a
beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura,
no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e
autosacrifício.”
380
O tipo fraco, em outros tempos, se encontrava submetido à vontade dos bem
logrados. Nesta época, travaram, à sua maneira, uma luta contra os fortes e foram capazes
de inverter os valores afirmativos. Diante da impossibilidade de lutarem pela afirmação da
potência, passaram então, a desvalorizar o comportamento guerreiro e a construir
justificações metafísicas para a impotência. O ascetismo é o valor pregado pela impotência
em vistas de inverter a valoração nobre da vida. No fundo, ainda se trata da vontade de
potência, de uma ânsia por domínio. Se, pelas vias comuns de afirmação da força lhes foi
379
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 12
380
Ibid., III, 11
134
impossível sobressair aos fortes, trataram de criar uma forma de se tornarem senhores por
outros meios. Em todo lugar onde há vida, há vontade de ser senhor. A forma como os
impotentes tiveram de sê-lo foi questionar a afirmação da vida feita pelos fortes e, assim, os
tornaram fracos. A forma que os fracos têm para lutar é tornando seu adversário igual a
eles. Isto foi sua vingança.
“Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos,
todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções
contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para a vingança:
quando alcançariam realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo de vingança?
Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria,
toda a miséria, de modo que um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e
dissessem talvez uns aos outros: ‘é uma vergonha ser feliz! Existe muita miséria!
381
Nietzsche propõe aos afirmativos que ainda existem que não se juntem aos fracos
nem tentem salvá-los, pois correm o grave risco de se contaminarem. É preciso manter a
distância entre os fortes e os fracos, “é preciso sempre armar os forte contra os fracos”
382
,
manter o pathos da distância. Mas, neste caso, quem oferecerá ajuda aos sofredores? Este
alguém é o sacerdote ascético.
A religião foi a forma clássica de aglutinar os sofredores e dar-lhes algum tipo de
calmante e consolo. A religião aparece como uma explicação psicológico-moral para um
problema fisiológico.
383
Cria uma moral que interpreta a fraqueza como uma opção pelo
bem. Foi isto que o cristianismo fez. Em todos os casos, o que tenta aqui a religião é uma
diminuição do desprazer que se sente com a vida. A receita é, primeiramente, a conduta
ascética, pois esta proporciona uma espécie de adormecimento dos sentidos. “Esse
desprazer dominante é combatido, primeiro, através de meios que reduzem ao nível mais
baixo o sentimento vital”.
384
Se a vida é o que causa sofrimento, então se faz a tentativa de
estancar o sofrimento diminuindo a atividade vital ao mínimo possível. “Se possível
nenhum querer, nenhum desejo mais; evitar tudo o que produz afeto, que produz ‘sangue’
(...); não amar; não odiar; equanimidade; não se vingar; não enriquecer; não trabalhar;
381
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 14
382
Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 14[123]
383
Id., “Genealogia da moral”, III, 17.
384
Id., “Genealogia da moral”, III, 17.
135
mendigar; se possível nenhuma mulher, ou mulher o menos possível”.
385
É verdade que tal
receita costuma funcionar naquilo que pretende, isto é, diminuir o sentimento de desprazer.
Porém, não se trata de um remédio que resolve as causas do problema. O que se tem aqui é
uma diminuição do sentimento de desprazer causado pela vida através de uma diminuição
do sentimento de vida. Se a vida é um fardo, quanto menos vida, menor o fardo. Todavia,
as causas de se sentir a vida como um fardo permanecem. A pergunta aqui seria: por que
algumas pessoas sentem a existência como um fardo e outras como uma dádiva? A
explicação de Nietzsche é que isto é apenas uma questão de interpretação. Como se
interpreta a existência, como algo mau e causador de sofrimentos ou como algo que se
justifica por si mesmo? Aquele que interpreta tudo contra si e entende que tudo é feito para
o sofrimento demonstra, desde o início, uma má disposição em relação à vida. Ao contrário,
um “homem forte e bem logrado digere suas vivências (feitos e malfeitos incluídos) como
suas refeições, mesmo quando tem que engolir duros bocados”.
386
O caráter fisiológico de
que fala Nietzsche é a capacidade de afirmar ou negar a vida. Que a existência traga
consigo, necessariamente, alguma dose de sofrimento, é inegável. Mas entender este
sofrimento como um motivo para se negar a vida já é uma atitude daquele que está cansado
da mesma.
É comum a todo aquele que sofre buscar compreender o motivo ou a causa de seu
sofrimento. É comum que diga que alguém ou algo é culpado por seu sofrer. Desta forma,
acumula um ressentimento em relação ao culpado. Seu objetivo seria o de se vingar deste
culpado e lhe devolver o sofrimento que sente. A descarga de afeto ocasionada por esta
vingança serviria como um entorpecimento da dor que sente. Aqui, o trabalho do sacerdote
ascético consiste em dizer ao doente que seu sofrimento não se deve a um motivo exterior,
mas que ele mesmo é o culpado por seu sofrer. O sacerdote ascético inverte a direção do
ressentimento. Se, antes, o sofredor culpava alguém ou algo por seu sofrimento, agora
começa a pensar que ele mesmo é o culpado. O caminho adotado pelo sacerdote para aliviar
a depressão foi o aproveitamento do sentimento de culpa. O sentimento de culpa
transformado em pecado fez da vida do sofredor um eterno caminho para livrar-se dela.
Porém, era-lhe impossível. A salvação só poderia vir após a morte. O animal que, uma vez
385
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 17.
386
Ibid., III, 16
136
impedido de exteriorizar seus instintos por questões de sociabilidade, se voltou contra si
mesmo para satisfazer o desejo de fazer sofrer tem no sentimento de culpa o maior de suas
dores. Quem sofre busca a causa de seu sofrer. Sem saber ao certo o por quê de tanta dor, o
homem busca o sacerdote que lhe diz que seu sofrer se deve ao seu passado de pecador.
Todos vêm ao mundo por um pecado inicial, ninguém está a salvo. Todos são culpados por
existir. O sofrimento é a forma de expiação terrena do pecado. Apenas após a morte a paz
pode ser alcançada. Mesmo assim, apenas para aqueles que sofreram muito em vida. Desta
forma, a dor se tornava quase que um meio de salvação. Com isto, a depressão era vencida,
afetos e sentimentos eram novamente sentidos. Se a vida era um fardo, deus assim o quis e
então isto era bom. “Esse velho grande mago em luta contra o desprazer, o sacerdote
ascético – ele havia claramente vencido, o seu reino havia chegado: já não havia queixa
contra a dor, ansiava-se por ela; ‘mais dor! Mais dor!’”.
387
Sequer é necessário dizer que,
mesmo que o sentimento de desprazer com a vida e a depressão tenham sido vencidos, não
se curou, de forma alguma, o doente. O que se tem é um homem “‘domesticado’,
‘enfraquecido’, ‘desencorajado’, ‘refinado’, ‘embrandecido’, ‘emasculado’ (ou seja, quase
o mesmo que lesado...). Mas tratando-se sobretudo de doentes, desgraçados, deprimidos,
um tal sistema torna o doente invariavelmente mais doentes”.
388
Esta postura culpada diante
da vida fez do homem um animal ainda mais fraco, incapaz de afirmar sua própria vontade
por considerá-la como culpada. O sofrimento que sentia e o auto-martírio a que se entregou,
decorrente de uma vontade voltada contra si mesmo foram esquecidos em nome de um
sentimento maior de religiosidade que, ao mesmo tempo em que garantia um sentido para a
existência, davam vazão à vontade de auto-martírio, ao interpretar a vida como pecado. O
ideal ascético é este ideal de fraqueza e abstinência de si que, por trás de uma máscara de
virtude, encobre uma impotência em afirmar a vida.
O ideal ascético é uma espécie de corolário do pensamento metafísico; quando este
último postula que a vida possui um sentido para além dela mesma e que esse sentido
estaria pré-determinado, cria-se uma justificativa para todo o sofrimento, cria-se um sentido
para a existência. Porém, este sentido metafísico é, necessariamente, ascético, na media em
que se encontra fora da vida mesma, fora dos sentidos, fora do plano terreno e sensível. “A
387
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 20.
388
Ibid., III, 21.
137
falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a
humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!
389
Esta interpretação colocou a
vida sob a perspectiva da culpa ao retirar do devir sua inocência e conferir-lhe uma
explicação que se encontrava para além de toda vida. A justificação para o sofrimento se
tornou um sentimento de culpa pelo viver. Mesmo assim, ao menos, a existência estava
justificada. Ela agora possuía um sentido, não era mais em vão. É certo que este ideal
enfraqueceu o homem, tornando-o dócil, pacato e escravo. Porém, justamente aqui reside
uma espécie de mal menor do ideal ascético: com ele, a vontade era preservada. A
explicação metafísica faz com que a vida ainda deva ser vivida, pois deus assim o quis. O
que se tem com o ideal ascético é que, por mais que a existência traga sofrimento, ela está
justificada por uma ordem divina que lhe confere sentido.
“Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal
ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais
ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da
beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio –
tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma
revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma
vontade!...”
390
Mesmo pregando uma espécie de vida contra a vida, o ideal ascético não é um
caminho rumo a morte, como pode aparentar. “O ideal ascético nasce do instinto de cura e
proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por
sua existência;”
391
Por mais que se odeie a vida, o ideal ascético decorre dos instintos de
vida mais profundos que ainda impelem o homem a existir. A negação da força é a arma
dos fracos para continuar a viver. O fato de este ideal ter se propagado com tanto sucesso
mostra, para Nietzsche, que o homem é uma espécie de animal doente. A força do ideal
ascético denuncia a condição doentia do homem social.
392
Porém, se “é normal a condição
doentia do homem – e não há como contestar essa normalidade –, tanto mais deveriam ser
reverenciados os casos raros de pujança da alma e do corpo, os acasos felizes”.
393
Os acasos
felizes, as bestas louras, as aves de rapina, não são o problema, como geralmente se atesta.
389
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 28
390
Ibid., III, 28.
391
Ibid., III, 13.
392
Ibid., III, 13.
393
Ibid., III, 14.
138
O problema é o homem que sente a vida como um fardo e que busca dela se evadir. São
estes que denigrem a vida e buscam fazer com que os demais homens também percam seu
prazer de viver. As conseqüências desta moral são verdadeiramente nefastas para o homem.
Este não mais vive suas paixões e, por fim, termina por questionar sua própria confiança na
vida. O excesso de homens cansados e impotentes produz uma espécie de nojo em relação
ao próprio homem. Ao olhar este tipo sente-se nojo e compaixão. Nojo ao ver uma
existência que nega a si mesma e que busca aquilo que lhe é antagônico, compaixão pela
tristeza que uma tal visão pode causar. “Supondo que esses dois um dia se casassem,
inevitavelmente algo monstruoso viria ao mundo, a ‘última vontade’ do homem, sua
vontade de nada, o niilismo.”
394
A vontade de nada decorre desta combinação e estagna a
potência diminuindo o homem. Querer o nada ainda é uma forma de viver. Uma forma
decadente, mas é uma forma.
6) Morte de Deus e niilismo
O ocidente viveu por mais de dois milênios guiado pelos valores forjados pelos
sacerdotes. Estes valores defendiam a negação do corpo e dos impulsos e usaram a força do
argumento da verdade divina como suporte de legitimação. A fundamentação da moral em
alicerces metafísicos tornava-os inquestionáveis, fortalecendo-os. Porém, o próprio ideal de
verdade pregado pela moral metafísica, religiosa ou filosófica, termina por voltar-se contra
si mesma. A moral da verdade termina por fazer a crítica da própria verdade e,
principalmente, de deus. Se a verdade moral residia na crença da perfeição absoluta de
deus, este impulso para a verdade termina por negar a própria existência divina. A morte de
Deus é a
“conseqüência de uma educação para a verdade que dura dois mil anos, que finalmente se
proíbe a mentira de crer em Deus... Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a
própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso,
a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica,
em asseio intelectual a qualquer preço.”
395
394
Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 14.
395
Id., “Gaia ciência”, 357
139
Os valores mais caros à cultura ocidental, todos os pilares sobre os quais se
construiu toda tentativa de justificação da existência, todos os parâmetros morais de
sociabilização tiveram suas bases questionadas pelo mesmo impulso que construiu todos
estes valores.
396
A vontade de verdade termina por entender-se como vontade de engano. A
condição contemporânea é a condição trágica que, de alguma forma, aceitou a crítica à
verdade metafísica que dava sustentação a toda moralidade religiosa ou filosófica. Com
isto, a moral perdeu sua força, sua legitimação, sua razão de ser. Com a crítica à verdade e a
deus, a moral não possui mais força para prevalecer. Esta perda de forças da moral é a
morte de Deus, sua conseqüência inicial é o niilismo.
O que Nietzsche chama de morte de Deus é o fato de que a crença na moral cristã
não é mais tão forte como foi em outros momentos da história. “O maior acontecimento
recente – o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito
– já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.
397
o se trata propriamente
de não mais se acreditar em deus ou em religiões, mas trata-se do fato de que a religião se
tornou um assunto necessariamente privado, e que, em verdade, a Igreja perdeu grande
parte de sua influência no estabelecimento de normas morais. Se, antes, o que era
considerado bom estava diretamente ligado à religião e à metafísica, isto não mais se
verifica com tanta clareza. Mesmo quando se opta por uma religião, em geral, sabe-se que
isto é uma opção, não um determinismo.
Para Nietzsche, o homem viverá nos próximos dois séculos as conseqüências desta
desvalorização dos valores supremos. “Isto que apresento é a história dos dois próximos
séculos. Descrevo o que virá, o que não pode acontecer de outra maneira: o advento do
niilismo.”
398
O niilismo é a conseqüência natural e necessária da perda de valor dos valores
superiores nos quais a humanidade acreditou durante tanto tempo. Tudo aquilo até então
venerado perde seu valor a partir da descrença em deus e da desmistificação da verdade;
um vazio de valor se instaura.
“Por que o advento do niilismo é, de agora em diante, necessário? Porque são nossos valores
eles mesmos que, de si, tiram suas últimas conseqüências; porque o niilismo é a lógica de
nossos valores e ideais levada a seu termo – porque será necessário viver o niilismo para
396
Esta crítica foi desenvolvida no primeiro capítulo.
397
Nietzsche, “Gaia ciência”, 343.
398
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [411]
140
desvendar qual era o valor propriamente dito destes ‘valores’... Nos faltará, a qualquer
momento, os novos valores...”
399
Ainda que de uma maneira decadente, o cristianismo foi capaz de conferir um
sentido à existência. Era um sentido que negava a vida naquilo que ela tem de mais básico e
necessário, conduto, ao menos conferia um sentido para a vida e para o sofrimento e dor
que esta pudesse oferecer. A moral trazia uma resposta segura à falta de sentido prévio da
existência, sabia-se ao certo o que era bom e deveria ser feito. Moral e verdade andavam
juntas. A partir da descrença nos valores superiores, o homem perde seu centro de
gravidade e não possui mais parâmetros para lidar com a dor ou a falta de sentido. Todavia,
como viveu por mais de dois milênios sob a proteção destas explicações, ele não consegue
criar seus próprios valores. “Niilista é o homem que julga que o mundo tal como é não
deveria ser assim e que o mundo como deveria ser não existe.”
400
O conceito de niilismo
aponta para a impotência da vontade a partir do momento em que a metafísica cai por terra,
ele atesta a incapacidade para a criação dos próprios valores.
Para Nietzsche, efetivamente, não há sentido prévio nem escondido na existência,
mas o homem, diante de tal fato, preferiu mascarar esta realidade e construir um mundo que
foi tido por verdadeiro sobre mentiras que o confortassem e dessem segurança. Uma vez
que se faz a crítica a este mundo supostamente verdadeiro e às categorias que o sustentam
retira-se o suporte que permitia a crença em valores absolutos. O fim desta crença causa a
perda do valor das coisas. “Brevemente: as categorias de ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, pelas quais
conferiu-se valor ao mundo, eis que as retiramos – e, desde então, o mundo parece sem
valor...”
401
Se o homem atribuiu valor e sentido às coisas a partir da sua capacidade
intelectual de forjar a verdade, uma vez que duvida desta capacidade, o mundo perde seu
sentido e valor. “Resultado: a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo – nós
medimos o valor do mundo por essas categorias, que ergueram um mundo puramente
fictício.”
402
O niilismo aparece como o sentimento resultante da desmistificação dos valores até
então tidos por superiores. A conseqüência é a incapacidade do homem de atribuir por si
399
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [411]
400
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[60]
401
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [99]
402
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [99]
141
mesmo um sentido à dor e à existência e de acreditar que a vida vale a pena ser vivida. “O
perigo dos perigos: nada possui sentido”
403
; esta situação é perigosa, pois na ausência de
uma meta e de uma boa interpretação para a vida, esta voltará a ser negada. Contudo, desta
vez a vida não será negada em nome de valores superiores, o fim destes valores superiores
significa que a humanidade não mais crê em um motivo para viver. “Niilismo: falta a meta;
falta a resposta ao ‘por quê’?; o que significa niilismo?que os valores supremos se
desvalorizaram.
404
A falta de uma meta, de uma crença, de um objetivo, o vazio
existencial traz o perigo de que a vida seja negada por si mesma, perigo de que a vida possa
ser considerada como indigna de ser vivida.
Com a morte de Deus vive-se um momento de crise na moral, não se sabe o que é
bom e o que é ruim. Um código moral deve resumir séculos de sabedoria, séculos de
conhecimento moral empírico. São precisos meios demorados e trabalhados para dar
autoridade a uma verdade. Sente-se a falta de um código. Com o fim da crença no código
moral cristão, ao mesmo tempo em que tudo passou a ser possível, nada mais é confiável de
ser bom e, portanto, para muitos, nada mais importa, tudo tanto faz. Se, por um lado, pode-
se fazer de tudo, tudo é permitido, pois não há mais um valor superior e metafísico que
condene alguma atitude, ou não mais se acredita no Juízo Final, por outro lado tem-se que,
com isto, não se sabe o que é bom e o que é ruim, não se tem uma definição unívoca sobre
o bem e o mal, daí que, para muitos, diante da impossibilidade de garantir o bem ou o bom
com alguma dose de certeza, passam a sentir que tudo tanto faz, uma vez que nada pode
estar certo, assim como nada pode estar errado.
“‘Nada é verdadeiro, tudo é permitido’... Pois bem, isto é a liberdade de espírito, com isto a
fé na própria verdade é abandonada...”
405
O niilismo é o sintoma da falta de preparo da humanidade para a liberdade de
espírito. Realmente, não existe mais uma definição unívoca sobre bem e mal, mas,
justamente por isto, somente agora se tornou possível pensar o que é bom e ruim levando-se
em contas as diferenças entre os homens. As definições anteriores eram absolutas. Agora o
homem sabe que é ele quem cria seus próprios valores, mesmo quando o faz por filosofias e
403
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 2 [100]
404
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9[35]
405
Id., “Genealogia da moral”, III, 24
142
religiões. O fim da crença em valores absolutos aumentou em muito o peso do homem no
mundo e hoje se vive a dificuldade para lidar com isto. O niilismo é apontado por Nietzsche
como o sentimento daqueles que não conseguem viver sem um sentido metafísico para a
existência. “Niilismo como sintoma de que os fracassados não possuem mais consolação:
de que destruíram para serem destruídos, de que, sem a moral, não mais possuem razão de
‘se sacrificar’”
406
O niilismo é o fruto da ausência de sentido para a dor e para o sofrimento
uma vez que as justificativas anteriormente aceitas perderam o crédito. “O niilismo aparece
hoje não porque o desgosto com a existência seja maior que outrora, mas porque o homem
tornou-se desconfiado em geral a respeito de um ‘sentido’ para o mal, ou mesmo para a
existência.”
407
Porém, esta não é a única alternativa possível diante do descrédito aos valores
superiores. Para que se lamente e se sinta a falta da força destas valorações seria preciso
que se tenha necessidade delas. Este homem que necessita de explicações fantasiosas para
seu próprio consolo sempre foi alvo de duras críticas por parte do filósofo. Negar a vida a
partir da criação de valores metafísicos é uma atitude decadente, assim como negá-la pela
perda destes. O niilismo é o sintoma de fraqueza daqueles que são incapazes de criar um
sentido por si mesmos. “Mas assim fala uma espécie de homens que não ousa mais possuir
uma vontade, uma intenção, um sentido: para toda espécie de homens sãos, o valor da vida
não se aprecia pura e simplesmente segundo o grau destas coisas marginais. Uma
preponderância do sofrimento seria possível e, não obstante a esta, uma vontade potente,
uma adesão à vida; um ter-necessidade desta preponderância.”
408
Chegar à conclusão que a
verdade não mais pode ser tratada de uma forma metafísica e absoluta e não ter mais em
Deus uma justificativa para o sofrimento e para a existência são considerados pontos
positivos para Nietzsche. É preciso que comece uma era trágica, onde o homem não mais
buscará o sentido do mundo por trás do mundo e aprenderá atribuir seu próprio valor às
coisas. Neste sentido, o niilismo não só é necessário, como é preciso que se viva este
período, para que se chegue a um outro ponto de desenvolvimento da cultura.
A argumentação desenvolvida no primeiro capítulo tem, justamente, o objetivo de
apresentar a critica aos valores absolutos e busca devolver ao homem sua capacidade de
406
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 5[71]
407
Id., “Fragments Posthumes”, XII, 5[71]
408
Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9 [107]
143
criar valores, apontando para o fato de que suas propensões naturais, até então desprezadas,
devem ser preponderantes. A crítica à verdade metafísica, a apresentação da verdade como
interpretação perspectiva e crença, o deslocamento da moral para a vontade de potência são
pontos que não têm por pressupostos nada de fixo e seguro. Ao contrário, fazem parte da
tentativa de Nietzsche de escapar às prisões criadas pela impotência e que direcionaram
toda nossa cultura para uma situação de decadência. A filosofia de Nietzsche tem o intuito
de contribuir para a desvalorização dos valores supremos, apontando sua história e seus
interesses e objetivos. Diante da morte de Deus existem duas possibilidades. “Deus está
morto, eis a causa do maior de todos os perigos: o quê? Ela pode ser também a causa da
maior de todas as coragens!”
409
Se a morte de Deus traz consigo um sentimento de vazio que representa um perigo
capaz de destruir a vontade humana, por outro lado, somente agora se tem também a total
abertura para a verdadeira liberdade de espírito necessária para o fortalecimento do homem.
Depreciar a vida por esta não mais oferecer segurança é apenas uma face do niilismo, o
niilismo passivo, que foi descrito até agora. Contudo, Nietzsche é um dos grandes críticos
dos valores superiores metafísicos e fez uma fortíssima crítica da verdade e de deus como
legitimadores de regras morais. Se desta crítica decorre necessariamente o niilismo, este
niilismo pode ser de dois tipos: o passivo, acima citado, mas também existe um niilismo
ativo, afirmativo, que é exatamente o niilismo que afirma a ausência de sentido e segurança
nas experiências do homem e que tem nisto o único solo possível a partir do qual entende
ser possível a recriação do homem. “Niilismo enquanto signo da potência engrandecida do
espírito: enquanto NIILISMO ATIVO. Ele pode ser um sinal de força: a força do espírito
pode aumentar de tal forma que as metas fixadas até agora (‘convicções’, artigos de fé) não
estão mais à sua altura.”
410
Nietzsche chama sua compreensão crítica de niilismo ativo. Toda crítica
desenvolvida no primeiro capítulo sobre a verdade e as regras morais e no segundo sobre a
forma como o homem divinizou valores decadentes também pode ser entendida como
niilismo, porém, um niilismo da força, um niilismo entendido como capacidade de
afirmação da existência mesmo em seu caráter trágico.
409
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 2[129]
410
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[35]
144
“Que não há verdade de forma alguma; que não há alguma conformação absoluta das coisas,
alguma ‘coisa em si’ – isto mesmo é um niilismo, e na verdade o mais extremo. Ele encontra o
valor das coisas precisamente no fato de que nenhuma realidade corresponde a este valor,
mas somente um sintoma de força naqueles que instituíram os valores, uma simplificação
para os fins da vida
411
.
O niilismo aparece entendido como um período necessário após a descrença nos
valores superiores. Mas esta descrença pode acarretar a negação da vida ou pode abrir para
a sua mais pura afirmação, sua afirmação trágica e dionisíaca. “O niilismo radical é a
convicção do caráter absolutamente insuportável da existência, em se tratando dos
supremos valores que se conhece, ele abarca a compreensão de que não temos o menor
direito de instituir um além ou um em si da coisas que seria ‘divino’, a imagem viva da
moral.
412
Esta é a verdadeira demonstração de força a qual o homem está submetido. “O
grau de força de vontade se mede pelo grau até onde se pode dispensar do sentido nas
coisas, até onde suporta-se viver em um mundo desprovido de sentido: porque se é capaz
de organizar por si mesmo um pequeno fragmento deste.”
413
Não mais buscar o sentido das
coisas por detrás das coisas, é preciso criar o sentido do mundo. O sentido sempre foi
criado, mas estas criações sempre foram tidas por verdade. “‘Vontade de verdade’ –
enquanto impotência da vontade de criar.”
414
A desvalorização da verdade enquanto
fiadora de um mundo bom e justo obriga o homem a criar uma nova meta e um novo
sentido.
A questão clássica de nossa história foi a de ter necessitado atribuir um valor à
existência. O homem só foi capaz de viver caso atribuísse um valor para a vida que a
justificasse. Ele não foi capaz de afirmá-la incondicionalmente, ela deveria se inserir em
algum tipo de lógica divina ou racional que a fizesse caminhar espontaneamente para o bem
e o bom, para o justo. Sem esta crença, o homem não viveria. Por isto Nietzsche vê a
história do homem como história da vitória dos fracos e decadentes, pois a vida só foi
possível a partir da justificação fantástica do acaso. E isto para Nietzsche é sinal de
fraqueza. Para Nietzsche, “o devir é de igual valor a todo instante: a soma de seu valor resta
411
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[35]
412
Id., “Fragments Posthumes”, XII, 10[192]
413
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[60]
414
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[60]
145
igual a si mesma: em outros termos: não há algum valor, pois falta qualquer coisa segundo
a qual o mundo seria avaliável e relativamente ao qual a palavra ‘valor’ faria sentido.
415
Não apenas se critica a valoração metafísica da vida, como a própria valoração da vida. É
ao homem impossível avaliar positiva ou negativamente a vida, o valor desta é algo que se
encontra fora do alcance do homem. Por isto, a descrença nas valorações metafísicas do
mundo não precisa levar o homem ao desespero, mas a prova de força para a humanidade
hoje significa, justamente, dar conta de viver com a idéia de ausência não só de sentido,
mas de valor para o mundo e para a vida. “Juízos, juízos de valor acerca da vida, contra ou
a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles têm valor apenas como sintomas, são
considerados apenas enquanto sintomas – em si, tais juízos são bobagens. É preciso
estender ao máximo as mãos e fazer a tentativa de apreender essa espantosa finesse, a de
que o valor da vida não pode ser estimado.”
416
Se Nietzsche é niilista, é apenas na medida em que é capaz de afirmar a ausência de
sentido para a vida. Nietzsche se vê como “o primeiro niilista perfeito da Europa, mas que
já venceu o niilismo nele mesmo, pois o levou a seu termo – que o tem atrás de si, abaixo
de si, fora de si...”
417
Superar o niilismo significa retomar a potência criativa do homem e
imprimir na existência mesma o sentido que direcione a humanidade para seu mais alto
grau. Superar a decadência implica não só em fazer a critica de seus valores, mas opor-lhes
a afirmação da vida, uma vida em direção ao aumento de potência. Este é o sentido da
filosofia de Nietzsche, buscar a forma de elevar o homem ao seu mais alto grau de força.
7) O espírito livre como experimento
Com a morte de Deus se encerra o período de vigência de um código moral
específico, o cristão. Este fato é sentido por muitos com desespero e pessimismo, mas, para
Nietzsche, trata-se de uma liberação para o espírito. Liberação de uma tradição que por
muito tempo cercou e prendeu o homem em uma moral que lhe negava as prerrogativas
mais elementares de seu instinto. Durante mais de dois milênios, os impulsos mais naturais
do homem foram considerados maléficos, hoje, não há mais uma moral metafísica que o
415
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, 11[73]
416
Id., “Crepúsculo dos ídolos”, II, 2
417
Id., “Fragments Posthumes”, 11[411]
146
impeça de afirmá-los. Este período de inicial liberdade de espírito é, necessariamente, um
período de experimentação, uma vez que será preciso fazer a tentativa de um novo homem.
“De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o velho Deus morreu’ nos
sentimos como que iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão,
espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos parece novamente livre, embora
não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo
perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso
mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto.’
418
Uma questão muito interessante que aparece neste fragmento é a idéia de que
aqueles que buscam o conhecimento correm perigo. Durante milênios a idéia de
conhecimento e sabedoria esteve ligadas à observância de valores morais específicos. Estes,
por sua vez, se encontravam legitimados por fundamentos metafísicos. A busca por
conhecimento era a busca por alicerces cada vez mais primordiais, era a busca por
fundamentos que chegassem o mais próximo da verdade moral. Mas a verdade moral já
existia, era preciso conhecê-la, não criá-la. Ser sábio era ser obediente aos preceitos já
existentes, ser sábio era, no máximo, buscar cada vez mais os fundamentos metafísicos de
tais preceitos, isto era saber viver. O mais longe possível, portanto, da ousadia.
Como vimos, tais estruturas e sistemas não mais subsistem com tanta força. A busca
por conhecimento perdeu seu caráter de busca por uma moral absoluta, já existente e
verdadeira. O fim da crença em fórmulas morais lança a todos no labirinto existencial no
qual é preciso tecer seu próprio fio de Ariadne. O conhecimento, agora, só pode ser
conhecimento da vida. Não há mais receitas. Dentro deste contexto, a busca por
conhecimento terá que ser feita a partir de experiências, experimentações. Criticando os
religiosos pregadores da moral Nietzsche diz: “Mas nós, os sequiosos de razão, queremos
examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a
hora e dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias.”
419
Vivenciar os
próprios impulsos e sentimentos se tornou um caminho aberto, o filósofo terá neste solo sua
fonte inesgotável de possibilidades e rumos. A sabedoria se torna a capacidade de escolher
as experiências que lhe são necessárias e conseguir crescer com elas. Caminho perigoso e
desconhecido, onde se corre sempre o risco de se viver algo de insuportável e morrer.
418
Nietzsche, “Gaia ciência”, 343
419
Ibid., 319
147
“Independência é algo para bem poucos: – é prerrogativa dos fortes. (...) Ele penetra num
labirinto, multiplica mil vezes os perigos que o viver já traz consigo; dos quais um dos
maiores é que ninguém pode ver como e onde se extravia, se isola e é despedaçado por
algum Minotauro da consciência.”
420
A morte de Deus traz a independência frente a moral
e a abertura para a experiência de si.
A partir da perda de parâmetros, abre-se um período de experiências e de riscos
quanto ao futuro do homem. O caminho para a liberdade do espírito e para o conhecimento
é um caminho de experiências, pois quando se decide viver por sua própria vontade, a partir
de um impulso de autodeterminação contra a moral, não se pode saber de antemão o
caminho a ser tomado. O próprio caminho se torna uma construção a qual se chama vida. A
vida liberta da moral é a única que permite o verdadeiro engrandecimento do espírito, pois
este engrandecimento é, necessariamente, uma conseqüência do aprimoramento e
esmeramento de uma grande paixão e de uma grande vontade. Este é o movimento ético. A
vida se torna uma experiência do conhecimento, conhecimento perigoso e tgico, mas com
certeza gratificante. “Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais
verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia em que veio a mim o grande
liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer
– e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça!”
421
Encerrar a vida no dever significa determinar um grau fixo e baixo para a potência.
Ao contrário disto, “ninguém, é certo, até agora, determinou o que pode o corpo”
422
, é
preciso explorar suas potências, elevá-las ao maior grau que se consiga, isto é sinal de
força. Fazer de si uma experiência do conhecimento é perigoso, pois não sabemos o que
somos nem do que somos capazes. “Toda ação da qual um homem é incapaz é dele
desconhecida.”
423
Ética é a coragem para fazer da vida a tentativa de descobrir aquilo de
que se é capaz. Ética é elevar sua vontade à máxima potência. A moral sempre direcionou o
homem para um sentido enfraquecedor, pois ela é a arma dos impotentes contra os fortes,
ética é o oposto da moral.
420
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 29
421
Id., “Gaia ciência”, 324
422
Espinosa, “Ética”, III, 2, escólio. Citado em Deleuze, “Espinosa, filosofia prática”, pág, 24.
423
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 1[14]
148
“Aquele que refletir sobre os meios de levar o tipo homem a seu esplendor e a sua maior
potência compreende que ele deve se manter fora da moral: pois a moral tem essencialmente
por meta o contrário, tentar bloquear ou negar esta esplendida evolução no momento em que
ela está em marcha. (...) Uma tendência hostil à vida é então própria da moral, na medida em
que ela quer subjugar os tipos de vida mais fortes.”
424
Ao contrário do niilismo passivo e da prostração, o desejo que domina o homem
forte a partir da morte de Deus é um ímpeto de autodeterminação, um sentimento de
liberdade frente a tudo, uma necessidade de seguir a si e somente a si mesmo. Eis a tarefa
fundamental do espírito livre: “O que diz a sua consciência? – ‘Torne-se aquilo que você
é.”
425
Contudo, justamente por seguir a si mesmo e por não se saber o que se é, este talvez
seja o mais perigoso dos caminhos. “Para um homem que pensa o gênero de coisas que
devo pensar, o perigo de se destruir é sempre iminente.”
426
Uma vez que toda moral e dever
das virtudes anteriormente aceitas não correspondem a uma sabedoria de espíritos livres,
este terá que criar seus valores a partir de suas experiências. A insegurança e a solidão
serão seus companheiros, mas assim se engrandece a vida. “Pois, creiam-me! – o segredo
para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é: viver perigosamente!
427
Se a
vida é vontade de potência, o enobrecimento se dá pelo aumento de potência, contudo,
trata-se de um caos de potência a ser maestrado; é preciso viver a potência da vontade para
tornar-se aquilo que se é, e esta experiência além de não ser segura é imprevisível.
“Acreditamos que um homem deve ter vivido de maneira absolutamente ‘não filosófica’,
segundo os critérios tradicionais, e sobretudo não em tímida virtude – para poder julgar os
grandes problemas a partir de suas experiências.”
428
Se a maneira filosófica por excelência
era o ascetismo, as experiências constituem uma espécie de ideal contrário, não-filosófico.
A filosofia não mais aparece ligada a um dever e uma virtude tradicional, ao
contrário, esta vida de experimentos é perigosa e se assemelha à doença. Sua manifestação
pode ser nefasta, principalmente no princípio, quando o homem a inicia, ainda sem saber ao
certo o por quê de seu rumo nesta direção. “Ela é simultaneamente uma doença que pode
destruir o homem, essa primeira erupção de vontade e força de autodeterminação, de
determinação própria dos valores, essa vontade de livre vontade: e quanta doença não se
424
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 5[98]
425
Id., “Gaia ciência”, 270
426
Id., “Fragments Posthumes”, XII, 1[1]
427
Id., “Gaia ciência”, 283
428
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 35[24]
149
exprime nos selvagens experimentos e excentricidades com que o liberado, o desprendido,
procura demonstrar seu domínio sobre as coisas!”
429
Este estado doentio é o despertar dos
monstros esplendidos, é a mordida dos cães selvagens, é o ponto onde, acima da moral,
começa o caminho em direção a si mesmo. Caminho perigoso, pois não fomos ensinados a
nos conhecer e a nos dominar, não se tem coragem para os próprios apetites, eles foram por
milênios caluniados, envergonhamo-nos de nossos impulsos, não o realizamos ou quando o
realizamos o fazemos de forma bruta e autodestrutiva. Dominar esta situação é a sabedoria
ética.
Mesmo chamando esta intensidade do espírito de doença, Nietzsche não a está
desqualificando. Em verdade, a própria diferença entre saúde e doença não só é tênue como
mal estabelecida. “Pois não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa
fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de
seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o quê
deve significar saúde também para seu corpo.”
430
Mesmo que se pudesse definir a saúde
com precisão, “permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da
doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento
e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a
exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de
refinado barbarismo e retrocesso.
431
As idéias de doença e saúde se associam com a de
experiência, pois o conhecimento da vida após a moral somente pode ser tentado a partir da
experimentação. Contudo, a experimentação do afeto, a mais forte potência da natureza, é
uma experiência perigosa da qual nada se sabe até que se a tenha. O caráter violento e, não
poucas vezes, autodestrutivo destas experiências tornam-nas semelhantes a doenças que
machucam e podem até matar. O espírito livre transita entre estes estados e deles retorna
sempre com algo a mais. Este estado fisiológico, esta tonalidade da alma, esta intensidade
do afeto é o que Nietzsche chama de “grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas
constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é
preciso abandonar...”
432
A grande saúde é a coragem para a ética trágica, é a coragem de
429
Nietzsche, Humano, demasiado humano, prólogo, 3
430
Nietzsche, “Gaia ciência”, 120
431
Ibid., 120
432
Ibid., 382
150
deixar a moral e partir rumo a si mesmo, rumo aos seus próprios afetos e dominá-los,
conhecê-los e, depois, perder-se de novo. A “grande saúde, o excesso que dá ao espírito
livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura”
433
.
Somente resta ao homem arrogar-se de seu próprio espírito e criar seu próprio
caminho, tornar-se si mesmo. O caminho do espírito livre é, necessariamente, um caminho
de solidão, pois é preciso que encontre sua própria vontade, sua grande paixão, o impulso
primordial que dá sentido a sua própria vida, o que não se assemelha em nada a seguir uma
moral qualquer. A liberdade frente a moral é a conseqüência imediata da morte de Deus,
esta liberdade pode ocasionar uma desilusão com a vida (como é o caso do niilismo), mas
também pode ser recebida como um pré-requisito para a liberdade de espírito. “A
preocupação moral situa um indivíduo no mais baixo degrau da hierarquia”.
434
Falta-lhe o
sentimento de liberdade para ser à parte, para ser si mesmo. É o rebanho que busca se
igualar aos demais e assim dissimular sua mediocridade. O homem de rebanho “não possui
seu valor à parte: ele pode ser comparado, possui seu igual, não possui o direito de ser
singular...
435
Já o espírito livre é único, pois torna-se aquilo que é. Este é o objetivo de
Nietzsche, superar a moral em direção a um novo homem, um super-homem. O caminho
em direção a um homem e a uma cultura superior se dará pela experimentação de novos
pensamentos e novos valores. “Uma cultura de exceção, de experimentação, do risco, da
nuance enquanto conseqüência de uma grande riqueza de forças: toda cultura aristocrática
obedece a esta tendência.”
436
8) Os valores modernos e a nobreza de espírito
Nietzsche é extremamente crítico ao pensar os valores modernos aos quais a
humanidade se prendeu após a morte de Deus. Mesmo com a derrocada das justificações
absolutas para a conduta, o homem moderno ainda não foi capaz de forjar para si novos
valores que o fortaleçam. Longe de ver em valores modernos como a industrialização e a
democracia algo de transformador, o filósofo vê esses movimentos como a continuação da
433
Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, prólogo, 4
434
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[152]
435
Id.,“Fragments Posthumes”, XIII, 10 [85]
436
Id.,“Fragments Posthumes”, XIII, 9[139]
151
cultura de uma moral de rebanho que nivela e homogeneíza os homens perseguindo sempre
as exceções. A moral de rebanho que sempre perseguiu o homem forte por este ser
diferente permanece ativa no mundo contemporâneo. Esta moral se fortalece com o avanço
desgovernado de uma sociedade industrial que tem, no argumento político da democracia,
um valor quase incontestável a partir do qual garante a homogeneização naquela época da
Europa e hoje em escala mundial. “Chame-se ‘civilização’, ‘humanização’ ou ‘progresso’
àquilo em que se vê a distinção dos europeus; chame-se-lhe simplesmente, sem louvar ou
censurar, e utilizando uma fórmula política, o movimento democrático da Europa: por trás
de todas as fachadas morais e políticas a que remetem essas fórmulas, efetua-se um
tremendo processo fisiológico, que não pára de avançar – o processo de homogeneização
dos europeus (...)”
437
Nietzsche teme que a homogeneização do homem termine por impossibilitar o
aparecimento de novos homens de exceção, uma vez que o homem de rebanho se sentirá
fortalecido por ver seus anseios mesquinhos compartilhados por uma enorme massa de
pessoas. Neste sentido, o pensamento sobre a grandeza do homem deve passar pelos
valores contrários aos valores gregários da modernidade. “Hoje, inversamente, quando na
Europa somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a ‘igualdade de
direitos’ pode facilmente se transformar em igualdade na injustiça: quero dizer, em uma
guerra comum a tudo que é raro, estranho, privilegiado, ao homem superior, ao dever
superior, à responsabilidade superior, à plenitude de poder criador e dom de dominar – hoje
o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o poder-ser-distinto, o estar-só e o ter-que-viver-por-si são
partes da noção de grandeza;”
438
O objetivo de toda filosofia de Nietzsche é criar uma
grande cultura, uma cultura que ele chama de superior onde os homens sejam fortes o
suficiente para agüentar todo o peso de uma existência sem fundamentação metafísica e
capazes de criar grandes obras a partir de sua grande paixão. O gênio deve ser o objetivo de
uma cultura. “Um povo é o rodeio que faz a natureza para chegar a seis ou sete grandes
homens. – Sim: para em seguida evitá-los.”
439
Nietzsche teme que, com a propagação do ideal democrático, perca-se o respeito à
idéia de hierarquia de espírito, tão fundamental para a elevação do homem e construção de
437
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 243
438
Ibid., 212
439
Ibid., 126
152
uma cultura nobre. Com o advento da democracia, Nietzsche diz que será perdida uma das
atitudes mais importante no tocante a cultura e ao cultivo do espírito: a subordinação. “(...)
e quando esta subordinação não for mais possível, já não haverá como obter muitos dos
efeitos mais assombrosos, e o mundo se tornará mais pobre.”
440
Se todos são iguais, por
que se subordinar?
O que Nietzsche quer dizer é que nada de grande pode ser realizado sem
subordinação, obediência e disciplina – valores pouco apreciados dentre as idéias
modernas. Neste sentido, Nietzsche afirma que a nobreza se distingue pela “arte de saber
comandar e a arte da obediência orgulhosa”.
441
Ser nobre é também saber obedecer àquele
que é maior e que, portanto, merece reverência. Em contrapartida, “a vulgaridade de certas
naturezas esguicha de repente como água suja, quando por ela passa algum vaso
sagrado,”
442
É a reverência diante do que é grande e a capacidade de obedecer e se
disciplinar para se tornar grande que Nietzsche teme que se perca com o ideal democrático.
Ao contrário da reverência e da subordinação em busca de algo maior para si e para
a cultura, os valores modernos entronizam o utilitarismo como sua marca principal. “A
moral dos escravos é essencialmente uma moral da utilidade”.
443
A falta de respeito e
reverência da modernidade por tudo aquilo que não se enquadra imediatamente em sua
moral utilitária do lucro termina por desvalorizar qualquer coisa que não consiga subsistir
financeiramente. A capacidade de subsistir financeiramente termina por se tornar o próprio
critério de valoração, pois, se algo não subsiste financeiramente é porque não é bom.
Contudo, o crescimento, desenvolvimento e fortalecimento das questões espirituais de uma
cultura nobre não se enquadram neste ideal de comerciantes. O resultado é a perda da
nobreza de espírito e o direcionamento da cultura cada vez mais para um ideal mercantil.
Mais uma vez, o caminho para o desenvolvimento de uma nobreza de espírito é fechado
pela moral de rebanho que é incapaz de aceitar a diferença. O resultado é a
homogeneização dos desejos e a incapacidade de sequer se reconhecer outras necessidades
que não econômicas. Os verdadeiros problemas de uma cultura são deixados de lado. Em
440
Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 441
441
Ibid., 440
442
Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 263
443
Ibid., 260
153
uma sociedade onde o dinheiro é o valor que proporciona o maior sentimento de poder, a
hierarquização dos afetos (isto é, a ética) é entendida como algo supérfluo.
Nietzsche caracteriza a sociedade industrial e a moral burguesa como uma forma de
escravidão generalizada. Sendo que tais escravos podem ser ricos ou pobres. O senhor, ao
contrário, é aquele para quem a renda não é motivo suficiente para justificar o trabalho. A
distinção entre senhores e escravos em Nietzsche não passa pela ordem da riqueza material
ou pelo acúmulo de poder estatal, ou coisa do gênero. Em um mundo onde a busca por
poder se tornou busca por dinheiro, os escravos são todos aqueles que se entregam sem
reflexão a esta nova moral de rebanho. “Os meios da ânsia de poder mudaram, mas o
mesmo vulcão ainda arde, a impaciência e o amor desmedido reclamam suas vítimas: e o
que antigamente se fazia ‘em nome de Deus’ hoje se faz pelo dinheiro, isto é, por aquilo
que agora proporciona o máximo de sensação de poder e boa consciência”.
444
Hoje, pelo
fato de que o dinheiro é aquilo que traz mais poder, acredita-se que este seria o objetivo da
vida. Mas a riqueza, longe de libertar da escravidão, pode criar uma nova escravidão ao
incentivar uma busca incessante e irracional pelo mesmo.
“A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional.
Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de
sua atividade incessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra, conforme a
estupidez da mecânica – Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje,
em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não
importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito”.
445
Mesmo quando Nietzsche fala da necessidade de escravos no trabalho, isto não deve
nos assombrar de imediato. Segundo a definição de escravo acima, a grande maioria das
pessoas do mundo hoje são escravas, inclusive aquelas a quem se costuma chamar de
dominantes. Nos parece inclusive que está cada dia mais difícil não ser um escravo no
mundo moderno, mesmo que se seja rico. Possivelmente, aquele que é escravo de espírito
terá uma ocupação que o torna escravo também no trabalho. Por outro lado, aquele que é
nobre não se deixará ocupar com este tipo de trabalho.
444
Nietzsche, “Aurora”, 204
445
Id., “Humano, demasiado humano”, 283
154
“Buscar trabalho pelo salário – nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais;
para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha
do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem
morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos
quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas”.
446
Assim como os homens abrem mão de si mesmos em nome do dinheiro, também as
nações que abrem mão de sua cultura em nome da riqueza perdem todo o manancial de
onde poderia florescer um novo homem.
“Serão vocês cúmplices da atual loucura das nações, que querem, sobretudo, produzir o
máximo possível e tornar-se o mais rica possível? Deveriam, isto sim, apresentar-lhes a
contrapartida: as enormes somas de valor interior que são lançadas fora por um objetivo
assim exterior! Mas onde está seu valor interior, se nem sabem mais o que significa respirar
livremente? Se mal têm a posse de si mesmos? Se com freqüência estão enjoados de si, como
que de uma bebida esquecida e estragada?”
447
Sobre a cultura em sua configuração industrial atual, Nietzsche diz que “é a mais
vulgar forma de existência que jamais houve.”
448
Esta cultura torna a todos escravos de um
sistema puramente mercantil que não é capaz de produzir nada de grande, pois a grandeza
espiritual e artística não obedece às regras de desenvolvimento do mercado; “é uma teoria
como a do livre-comércio, pressupondo que a harmonia universal tem que produzir-se por
si mesma, conforme leis inatas de aperfeiçoamento.”
449
Ao contrário, justamente por ser
uma cultura de exceção, a cultura da nobreza de espírito não é compreendida pelo escravo,
seja este escravo patrão ou empregado. “As pessoas já se envergonham do descanso; a
reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão, enquanto
almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa – vivem como alguém que a
todo instante pode ‘perder algo’. ‘Melhor fazer qualquer coisa do que nada’ – este princípio
é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior.
450
Não se tem mais
tempo para o cultivo dos afetos e para o longo e árduo trabalho de esmeramento e
aperfeiçoamento de si em questões pouco ou nada lucrativas. “Essa agitação se torna tão
grande que a cultura superior já não pode amadurecer seus frutos; (...) Por falta de
446
Nietzsche, “Gaia Ciência”, 42
447
Id., “Aurora”, 206;
448
Id., “Gaia ciência”, 40
449
Id., “Humano, demasiado humano”, 25
450
Id., “Gaia ciência”, 329
155
tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa nova barbárie. (...) Logo, entre as
correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está fortalecer em grande
medida o elemento contemplativo.”
451
Por isto Nietzsche pode dizer:
“Procuramos situações nas quais a moral burguesa não tenha mais nada a dizer, menos ainda
a clerical (...) A ‘boa sociedade’ é esta onde nada no fundo interessa a não ser aquilo que é
interdito e suscita má reputação na sociedade burguesa: isto vale também pra os livros,
música, política (...)”
452
É preciso se distanciar da moral mercantil burguesa caso se queira redirecionar a
cultura para um nível mais elevado. Nietzsche não era contra a difusão dos meios materiais
de subsistência, muito pelo contrário, chega até mesmo a elogiar a democracia na medida
em que esta promoverá tal igualdade, uma vez que, a partir daí, o homem poderá se dedicar
às verdadeiras questões da cultura. Em anotações para seu livro, Nietzsche escreve:
“Zaratustra feliz por que a luta por condições sociais foi terminada, e que agora, enfim, se
abre a época de uma hierarquia dos indivíduos.”
453
O fim desta luta pelas migalhas da
sobrevivência seria o mínimo retorno esperado a partir do avanço tecnológico, científico e
industrial do mundo moderno, o que permitiria a cultura a se voltar para suas verdadeiras
questões. O fato de tal situação ainda não ter sido alcançada, apesar de já existirem todos os
meios para tanto, nos faz questionar os valores defendidos pela política contemporânea.
Isto significa que este estado de coisas está longe de se resolver pelos caminhos
tradicionais da política. Esta, ao contrário, se encontra cada vez mais comprometida em
promover a homogeneização e a indiferença através do mercado. Os valores que a política
contemporânea defende são os mesmos valores mesquinhos da sociedade industrial. Diante
da mediocridade da cultura moderna, Nietzsche se pergunta “com o que deve ocupar-se
doravante a nobreza, se cada dia mais parece indecente envolver-se com a política?”
454
Em
um mundo cada vez mais industrial, a política perdeu sua função e se tornou uma busca por
poder. A filosofia de Nietzsche, na medida em que é uma filosofia da cultura, precisará
declarar guerra aos valores modernos. “Declaro guerra. Não entre povos: não encontro
palavras para exprimir o desprezo que me inspira a abominável política de interesses das
451
Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 285
452
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10[119]
453
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 39[3]
454
Id., “Aurora”, 202
156
dinastias européias (...) o entre classes. Pois não temos classes superiores, e, por
conseqüência, nem inferiores: isto que, na sociedade de hoje, está em cima, são
fisiologicamente condenados (...)”
455
, com este entendimento, Nietzsche lança sua idéia de
política como guerra de espíritos. “A idéia de política será inteiramente reformulada em
uma guerra de espíritos, todas as formas de poder serão relativizadas – haverá guerras como
nunca houve sobre a terra.”
456
Nietzsche se pergunta pela contrapartida ao ideal da riqueza material. Onde estariam
aqueles que buscam algum tipo de enriquecimento interior para que, assim, possam dar à
luz a estrelas dançarinas, uma vez que as nações, os governos, as pessoas, encontram-se
todos envolvidos em um processo de homogeneização generalizada.
“Procurar-se-á em vão em nossos dias, e sem dúvida por muito tempo, os homens capazes
destas criações grandiosas, os verdadeiros grandes homens, tais como os entendo; eles fazem
falta. Depois virá o tempo onde, depois de muitas decepções, se começará a compreender
porque fazem falta e como nada é mais hostil a seu nascimento e a seu crescimento do que o
que se chama na Europa ‘a moral’, como se não houvesse e não pudesse haver mais que uma,
esta moral gregária caracterizada tão fortemente, que trabalha com todas suas forças para
realizar a felicidade do grande número, uma felicidade de rebanho no pasto, quero dizer a
segurança, a ausência de perigo, o bem-estar, a facilidade da vida e, ‘se tudo correr bem’, a
esperança de poder se dispensar finalmente de toda espécie de pastor ou de condutor.”
457
Esta enorme falta de grandeza no homem termina por causar um niilismo entendido
como tédio e cansaço do homem consigo mesmo. O domínio total da moral de rebanho
força Nietzsche a fabular um ideal contrário. “A mediocridade crescente do ser humano é
precisamente a força que nos faz sonhar com o adestramento de uma raça mais forte: que
encontraria seu excedente em tudo que a espécie medíocre se enfraqueceria (vontade,
responsabilidade, segurança de si, capacidade de estabelecer metas).”
458
Contra dos valores
modernos de massificação dos anseios, Nietzsche vai lançar sua proposta de adestramento e
seleção do homem em vistas a formar um tipo superior. É preciso formar um grupo que se
direcione para as altas questões da cultura e não para o dinheiro e o poder. A estratégia de
Nietzsche para se contrapor ao movimento moderno de homogeneização e mediocrização
será a de incentivar ainda mais rapidamente o seu desenvolvimento. “A homogeneização do
455
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 25[1]
456
Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 25[6]
457
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 37[8]
458
id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153]
157
homem europeu é hoje um grande processo irreversível: deve-se ainda acelerá-lo.
459
Os
valores modernos produzem um homem dócil, frágil e obediente que busca apenas a
segurança de sua pequena felicidade aburguesada. Na medida em que este ideal se torna o
ideal gregário em escala planetária, é cada vez mais difícil a ele se contrapor. Mas esta
dificuldade fará também com que os espíritos fortes e nobres tenham que ser cada vez mais
fortes e nobres se quiserem ser senhores, fazendo deste período de homogeneização um
possível período de preparação para uma grande cultura.
“As mesmas novas condições em que se produzirá, em termos gerais, um nivelamento e
mediocrização do homem – um homem animal de rebanho, útil, laborioso, variamente versátil
e apto –, são sumamente adequadas a originar homens de exceção, da mais perigos e atraente
qualidade. Pois, (...) enquanto a impressão geral causada por esses futuros europeus será,
provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos de
vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia; enquanto a
democratização da Europa resulta, portanto, na criação de um tipo preparado para a
escravidão no sentido mais sutil: o homem forte, caso singular e de exceção, terá de ser mais
forte e mais rico do que possivelmente jamais foi – graças à ausência de preconceitos em sua
educação, graças à enorme diversidade de sua excitação, dissimulação e arte. Quero dizer que
a democratização da Europa é, simultaneamente, uma instituição involuntária para o cultivo
de tiranos – tomando a palavra em todo sentido, também no mais espiritual.
460
O tipo escravo como ideal de uma sociedade produz uma enorme massa de pessoas
aptas a trabalhar para qualquer coisa, ávida por seguir um senhor que lhes diga o que é
certo. A história do século XX está repleta de exemplos de tiranos (no sentido menos
espiritual do termo) que promoveram genocídios com o apoio e a boa consciência das
massas, inclusive das massas letradas e “cultas”. Contrário a este ideal de baixa política,
Nietzsche aponta o filósofo como sendo o responsável por tomar estes escravos em seu
poder e fazer com que seu trabalho seja direcionado para os fins de uma cultura de exceção.
“Os verdadeiros filósofos são aqueles que comandam e são legisladores; eles dizem: isto
deve ser assim! Eles começam por fixar o sentido e a meta da ação, sua utilidade; eles
definem o que é útil aos homens, eles dispõem do trabalho preparatório dos outros
filósofos, eles são os subjugadores do passado.”
461
Adestrar uma raça mais forte de seres
humanos é o que Nietzsche contrapõe ao gregário anseio por segurança. Para o filósofo este
será o sentido de tamanha massa de escravos, eles servirão de sustentáculo, nas mãos dos
459
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153]
460
Id., “Além do bem e do mal”, 242
461
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 38[13] e “Além do bem e do mal”, 211
158
homens superiores, para erigir uma grande cultura. “Esta espécie igualada, desde que esteja
realizada, exige uma justificação; ela reside no fato de servir a uma espécie soberana, a
qual repousa sobre a precedente e somente baseada sobre ela é que poderá se elevar à sua
própria meta.”
462
Em oposição a uma modernidade niveladora, Nietzsche crê que é preciso adestrar
uma casta de homens que seriam responsáveis por conduzir a humanidade para fora do
acaso que até então sua história apresenta, direcionando-a para uma cultura superior. Esta
casta se constituiria em uma aristocracia de espírito responsável por elevar a cultura e o
patamar do ser humano, não se assemelhando em nada a uma hierarquia de poder ou
econômica. “Os meios seriam os ensinados pela história: o isolamento para fins de
conservação, ao inverso disto que hoje forma a média: o exercício dos valores inversos; a
distância enquanto phatos; a livre consciência em tudo o que é hoje o menos estimado e o
mais repreensível.”
463
Nietzsche diz que toda “elevação do tipo ‘homem’ foi, até o
momento, obra de uma sociedade aristocrática – e assim será sempre: de uma sociedade
que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre um e outro
homem, e que necessita da escravidão em algum sentido.”
464
Esta casta dominante seria
capaz de utilizar-se das condições modernas a seu favor, para que, enfim, possa conferir um
ideal de força para a cultura.
Mesmo com a derrocada dos valores superiores, a humanidade ainda não foi capaz
de tornar-se senhora de seu próprio destino. A força dos milênios vividos sob uma moral
paralisadora culmina em uma modernidade que segue um caminho cego rumo a nada.
Nietzsche vê em nossa época a abertura ideal para que o homem possa tomar o sentido da
existência em suas próprias mãos e criar por si mesmo seu ideal e seu objetivo. Permanecer
em uma cultura homogeneizante seria o desperdício de uma enorme oportunidade somente
aberta após a morte de Deus. “Eis aqui chegando, inelutável, hesitante, temível como o
destino, esta grande questão, este grande problema: como governaremos a Terra? E para
quais fins a ‘humanidade’ em seu conjunto, e não mais enquanto povos ou raças, deverá ser
elevada e selecionada?”
465
462
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153]
463
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153]
464
Id., “Além do bem e do mal”, 257
465
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 37[8]
159
É chegado o momento do homem traçar sua própria meta para sua existência. A
moral da impotência foi superada, o que significa que hoje é possível traçar um ideal
robusto baseado na força dos afetos e do espírito. “Em suma, o fato que tenhamos uma
meta por amor a qual não se hesita nada em sacrificar vidas humanas, em correr todos os
riscos, a tomar para si tudo o que há de mal e pior: a grande paixão.”
466
Sacrificar vidas
humanas significa utilizar-se dos escravos para seu ideal. Significa não se ater a “salvar” os
seguidores da moral de rebanho do mercado, mas utilizar seu trabalho e o avanço que
produzam em determinadas áreas para a meta de um novo homem e de uma nova cultura.
Mas, qual a meta? Qual é o rumo que a humanidade seguirá de agora em diante? Pela
primeira vez o homem pode formular esta questão nesses termos e tem-se a grande
oportunidade de conscientemente se desenvolver rumo à meta que decidir traçar. Será o
homem capaz de se colocar esta questão enquanto humanidade?
“Para novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para
estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar ‘valores eternos’, para precursores e
arautos, para homens do futuro que atem no presente o nó, a coação que impõe caminhos
novos à vontade de milênios. Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade,
dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas e tentativas globais de
disciplinação e cultivo, para desse modo pôr um fim a este pavoroso domínio do acaso e do
absurdo que até o momento se chamou ‘história’ – o absurdo do maior número é apenas sua
última forma – : para isto será necessária, algum dia, uma nova espécie de filósofos e
comandantes, em vista dos quais tudo o que já houve de espíritos ocultos, terríveis,
benévolos, parecerá pálido e mirrado.”
467
Pela primeira vez em sua história, o homem pode escolher o que quer de si mesmo.
As decisões quanto ao futuro estão em suas mãos. Os caminhos que a cultura e a sociedade
seguirão podem ser pensados e trabalhados para uma meta específica. Nietzsche sonha que
os homens consigam tomar o destino da espécie em suas próprias mãos e o direcione para
um ideal de grandeza. Ensinar ao homem que seu futuro depende de sua vontade significa
inverter as valorações metafísicas que apresentavam o futuro do homem como bem-
aventurança apenas após a morte, mas que, durante a vida, este deveria seguir aos
mandamentos da Igreja. O futuro do homem não mais depende do cumprimento de regras
morais enfraquecedoras e este futuro não se realizará apenas após a sua morte. É preciso
466
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[107]
467
Id., “Além do bem e do mal”, 203
160
substituir o niilismo por um ideal de vida para o homem, um ideal ascendente que o
fortaleça, que o faça desenvolver e espiritualizar cada vez mais sua própria vontade,
somente isto pode ser um ideal de grandeza.
“(...) o que é necessário à exaltação do tipo humano é o perigo, a dureza, a violência, o perigo
no interior do coração e o perigo na rua, a desigualdade de direitos, a humilhação, o
estoicismo, a arte de dissimular e toda espécie de diabrura, breve o contrário de tudo o que
deseja o rebanho. Uma moral que tenha estes alvos paradoxais, que queira elevar o homem e
não rebaixá-lo a um nível cômodo e medíocre, uma moral que vise selecionar uma casta
dominante – esta dos futuros mestres da Terra – deve, para que se possa ensiná-la, se separar
da lei moral estabelecida e lhe imprimir sua linguagem e suas aparências.”
468
O homem tornado senhor de si poderá se desenvolver rumo a algo diferente do
gregarismo moderno. Contra os ideais modernos que promovem a homogeneização e a
massificação de desejos gregários como segurança, Nietzsche incentiva os filósofos do
futuro a serem os arquitetos e engenheiros de um novo tipo. É possível, a partir do trabalho
sobre si, a partir do trabalho ético sobre a própria vontade, elevar a humanidade a um outro
patamar, um patamar tão alto que talvez se trate não mais do homem, mas de um além do
homem, de um super-homem. “O quantum de potência decide seu lugar: o resto é
fraqueza.
469
É possível engendrar uma cultura que produza o homem de exceção como
meta, uma cultura que não mais enfraqueça as propensões naturais do homem qualificando-
as como pecado, mas que o ensine a fortalecê-las e usá-las a seu favor. Neste sentido, a
ética é o sentido de uma cultura nobre. É para os que anseiam por uma cultura superior à
mesquinharia moderna que Nietzsche escreve seu livro mais importante.Seus
ensinamentos [de Zaratustra] foram destinados até agora apenas às futuras castas de
dominadores. Estes mestres da Terra deverão daqui para frente substituir Deus, e obter a
confiança profunda e incondicional dos dominados.”
470
Após a morte de Deus, o niilismo
passivo aparece como grande perigo. Os ideais modernos, antes de se desviarem deste
caminho, o fortalecem promovendo a homogeneização dos anseios medíocres do rebanho
como meta e ideal social. Ao contrário desta busca por segurança, é preciso se destacar
desta massa e buscar um novo tipo de homem, fortalecer uma nova casta que seja capaz de
468
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 37[8]
469
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11[36]
470
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 39[3]
161
comandar a Terra e elevar o homem a uma cultura de alto nível, se sobrepondo ao
calculismo utilitário de uma sociedade industrial.
“(...) os futuros ‘mestres da Terra’; – uma nova e prodigiosa aristocracia, fundada sobre a
mais dura autolegislação, onde a vontade dos violentos dotados de sentido filosófico e dos
artistas-tiranos desenvolverá uma dureza que se estenderá sobre os milênios : – um tipo de
homens superiores que graças à preponderância de sua vontade, de seu saber, de sua riqueza e
de sua influência se servirão da Europa democrática como de seu instrumento mais dócil e
flexível para tomar nas mãos o destino da Terra, para trabalhar como artistas para formar o
‘homem’ ele mesmo.
Em suma, chega o tempo onde se aprenderá de novo sobre política.”
471
Nietzsche não se dirige à massa, não pretende criar regras ou leis sociais que se
dirijam a todos. Sua idéia é que os espíritos livres do futuro serão capazes de enxergar na
modernidade a mesma pobreza de espírito que ele já antevia há mais de um século. Se o
ideal de uma sociedade industrial é o desejo de uma maioria, não é a esta maioria a quem
Nietzsche se dirige. Nietzsche acredita que a maneira de se opor ao atual estado da cultura é
o de se organizar em pequenos grupos para o cultivo de valores opostos aos valores
socialmente aceitos hoje. O trabalho de auto-desenvolvimento é um trabalho solitário e o
pathos da distância em relação ao rebanho é um de seus pré-requisitos mais importantes,
contudo, não se trata de um individualismo na filosofia de Nietzsche, é preciso que os
homens de espírito se juntem e unam forças para transformar o atual estado de coisas.
Apenas em grau coletivo é possível uma transvaloração dos valores. “É preciso que existam
numerosos super-homens: toda bondade desenvolve-se apenas ao seio de um elemento que
seja seu idêntico. Um só deus não seria nunca algo mais do que um diabo! Uma raça
dominante. Para ‘os mestres da Terra’.”
472
Estes grupos, de homens de estudo e de
pensamento ou de artistas tiranos, aos poucos, se fortalecerão como espíritos realmente
opostos ao espírito gregário moderno. Então, serão capazes de forjar um outro ideal para
humanidade. Humanidade esta que estará solicitando por este ideal, uma vez que a
democracia liberal e a industrialização não suprem sequer as necessidades mais toscas.
O mundo hoje caminha a passos largos para seu colapso, a política faz apenas
legitimar a exploração industrial da Terra e dos homens. Uma nova definição de política,
entendida como guerra dos espíritos, se apresenta. É preciso disputar não o poder, mas os
471
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 2 [57]
472
Id., “Fragments Posthumes”, XI, 35[72]
162
afetos. A grande política de Nietzsche não trata de uma nova forma de governo ou coisa
assim, trata de uma outra sensibilidade para o homem, uma outra valorização das coisas,
uma atenção maior para si e para suas necessidades imateriais, trata-se de colocar a ética
como centro do debate pela vida e pelo desenvolvimento, é preciso redefinir a idéia de
desenvolvimento. Ética e política se unem aqui e não poderiam possuir um significado mais
diferenciado em relação ao significado moderno que possuem essas palavras. Com a ética
não se quer dizer seguir os valores morais do bem e da compaixão de uma falsa democracia
forjada para garantir a exploração e dominação de ideais utilitários e medíocres, com a
política, não se trata de entrar no jogo imundo destes que enchem a boca para falar de ética
e democracia e que, no fundo, aspiram a poder e dinheiro. O homem nobre não se envolve
com este “mundo dos homens”
473
. Seu mundo é outro, seu ideal é outro, ele lançará a seta
de seu anseio para a ética entendida como engrandecimento do espírito e, portanto, em nada
relacionado a seguir algum valor moral qualquer, e entenderá a política como este trabalho
de transvaloração dos valores modernos a partir de uma guerra dos espíritos.
Transvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema auto-
gnose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne.”
474
O que se deve opor ao dinheiro
e ao poder é a força de um espírito bem logrado e sua grandeza materializada em beleza. O
sentido do filósofo hoje é o de ser a má consciência de seu tempo e a ponte para um super-
homem.
9) O eterno retorno como pensamento ético e doutrina seletiva
Tendo em vista o niilismo decorrente da morte de Deus e os dois milênios de
moralidade cristã que precederam este atual estado das coisas, Nietzsche lança sua proposta
afirmativa para o homem. Se este sempre viveu a partir de ideais que o enfraqueciam,
fazendo-o negar a potência de sua vida em nome de um além inapreensível, é preciso
procurar por um ideal contrário. No caminho da transvaloração dos valores gregários e de
decadência, Nietzsche formulará uma ética da afirmação da vida, uma ética que terá por
objetivo formar um homem o mais forte possível, uma ética capaz de formar um homem
473
Escobar. “Nietzsche, dos companheiros...”
474
Nietzsche, Ecce homo, Porque sou um destino, 1.
163
bem logrado em relação a si e a seus impulsos e forte o bastante para adentrar o “mundo
dos homens” e transformá-lo em algo afirmador. Contra o pessimismo e o niilismo,
Nietzsche apresenta o pensamento do eterno retorno. “Procuro o ideal inverso – uma forma
de pensamento que seja dentre todos os pensamentos posveis o mais pleno de coragem, o
mais vivo e o mais afirmativo a respeito do mundo; eu o encontrei ao levar a seu termo a
concepção mecanicista do mundo: na verdade, é preciso ter o melhor humor do mundo para
suportar um mundo do eterno retorno tal qual este que ensinei por intermédio de meu filho
Z<aratustra> – quer dizer, para nos suportarmos a nós mesmos como parte do eterno da
capo.”
475
O pensamento do eterno retorno será o pensamento chave da ética trágica de
Nietzsche, será a verdadeira prova de fogo para os espíritos livres e arautos do super-
homem. É preciso um pensamento que aceite a ausência de fundamento metafísico para a
existência, que postule a inocência do devir enquanto atuação da vontade de potência e, ao
mesmo tempo, dê ao homem um sentimento de força e plenitude que o torne capaz de
suportar e querer estas novas conclusões trágicas.
“No lugar da metafísica e da religião, a doutrina do eterno retorno (este enquanto
meio de adestramento e seleção).”
476
Nietzsche formula o pensamento do eterno retorno enquanto uma doutrina capaz de
selecionar os espíritos livres capazes da transvaloração de todos os valores. Este
pensamento é o pensamento ético que se sobrepõe aos mandamentos morais sacerdotais ou
do rebanho moderno, pois não postula nenhuma regra moral como absoluta e não possui
um fundamento para além do próprio pensamento e da própria vontade de potência. Este
pensamento é capaz de selecionar apenas aqueles capazes da afirmação trágica da vida, isto
é, capazes de uma afirmação incondicional da existência em tudo o que ela possa ter de dor,
sofrimento, tragédia e também de alegria. Contra o niilismo e o ideal ascético, o eterno
retorno apresenta-se como uma doutrina da afirmação incondicional da vida, o que não a
torna algo fácil e agradável, ao contrário, o pensamento do eterno retorno é seletivo na
medida em que apenas os mais fortes são capazes de a ele se vincular. Eis como Nietzsche
o apresenta:
475
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 34 [204]
476
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [6]
164
O maior dos pesosE se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em
sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você
terá que viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada
dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e
pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e
assim também essa aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A
perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de
poeira!’. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim
falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: ‘Você é um
deus e jamais ouvi coisa tão divina!’. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal qual
você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa ‘Você
quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?’, pesaria sobre os seus atos como o maior
dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não
desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?”
477
Esta apresentação é muito interessante, pois apresenta toda dificuldade inerente à
afirmação da vida. Se não houvesse necessidade de justificação para o sofrimento e se
todos afirmasse sua vida, seria fácil dizer sim ao demônio e chamá-lo de anjo ou deus. Por
trás desta fábula, Nietzsche propõe um pensamento que, em sendo afirmado, traz consigo a
afirmação incondicional de toda a existência para além da moral. Se a vida retornasse
infinitas vezes sempre e de novo de forma idêntica, isto nos obrigaria a tentar torná-la o
mais agradável possível ainda aqui na Terra. Mais do que isto, este pensamento nos
obrigaria a fazer da vida algo que deveria ser afirmado a todo custo, pois se repetirá
infinitas vezes. O pensamento do eterno retorno traz a questão de saber se seríamos capazes
de querer de novo infinitas vezes aquilo que fazemos uma vez. Contra as doutrinas morais
que apresentam um valor específico como necessário a uma salvação após a morte ou como
bem em si, o eterno retorno traz o valor infinito de cada ação a cada instante, pois ela
retornará infinitamente. Longe da moral, o eterno retorno afirma que somente aquilo que se
é capaz de querer infinitamente de novo é digno de ser querido. Se este princípio guiasse a
vida do homem, este estaria praticamente forçado a fazer desta vida algo digno e
afirmativo, jamais a poderia negar como algo desprezível, pois agora, após a morte, não há
outra vida de bem-aventurança apenas para os homens morais, mas há, sim, esta vida de
novo e de novo infinitas vezes. Com o eterno retorno, a vida adquire um peso infinito e
precisará ser afirmada em todas as suas possibilidades. Seríamos capazes de tamanha
477
Nietzsche, “Gaia ciência”, 341
165
afirmação e adesão em relação à existência? – Para tanto, seria preciso afirmar cada
instante como desejável um número infinito de vezes. Trata-se de uma proposição ética que
não mais permite a negação da vida e nem de um momento sequer, pois cada instante é
absolutamente necessário para que o instante seguinte se suceda tal como ocorreu e
retornará e que, portanto, precisa ser infinitamente afirmado.
“A supor que digamos Sim a um só instante, no mesmo ato teremos dito Sim não somente a
nós mesmos, mas a toda existência. Pois nada se resume apenas a si mesmo, nem em nós,
nem nas coisas: e se nossa alma vibrou e ressoou de felicidade ainda que só uma vez, como
uma corda tencionada, foi preciso toda uma eternidade para suscitar este Único evento – e
toda eternidade, neste único instante de nosso Sim, foi aceita, salva, justificada e
aprovada.”
478
Mais do que apenas propor uma doutrina ética afirmativa, o eterno retorno é capaz
de se opor a toda forma de teleologia temporal que negue a inocência absoluta do devir e a
falta de finalidade última no tempo e na existência. Para que algo aconteça, é fundamental
que tudo o que aconteceu antes tenha acontecido de maneira exatamente igual a como
aconteceu. O desejo, por menor que seja, de que algo tivesse acontecido de maneira
diferente da forma como ocorreu implica, necessariamente, na negação de toda a série de
acontecimentos que levaram ao momento presente. Neste sentido, negar qualquer ponto dos
acontecimentos significa negar toda a existência e, em contrapartida, afirmar um instante
significa afirmar a tudo o que já passou. A afirmação incondicional da existência se torna
afirmação incondicional de todos os instantes, daí o seu enorme peso, pois afirmar aquele
que se é significa afirmar tudo o que foi como absolutamente necessário para o instante que
se afirma. Desejar o retorno de um instante significa desejar o retorno da eternidade.
Pode-se, ao contrário da necessária afirmação incondicional do instante, entender
que a afirmação é o que menos importa no instante, uma vez que um determinado instante é
decorrência necessária de todos os instantes anteriores, este instante jamais poderia ter sido
diferente do que foi e que, portanto, a afirmação ou não do mesmo não faz a menor
diferença. Na medida em que todo o encadeamento dos acontecimentos da eternidade
obedece a uma série necessária, cada instante já estaria sempre pré-determinado pelo
encadeamento natural das séries precedentes. Porém, o eterno retorno não nega a existência
478
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 7[38]
166
do acaso do instante ao postular a necessidade de todo acontecimento. Rememorando
Heráclito e o lance de dados de sua criança, temos o pensamento sobre o devir em sua
relação com o acaso e a necessidade, muito bem explicado por Deleuze. O acaso não nega a
necessidade e vice-versa. O lance de dados, entendido como instante, é o acaso, pois todas
as combinações são possíveis no ato do lançamento e nada é previsível, mas a combinação
que caiu é necessária, pois não poderia ter sido outra, uma vez que assim já o foi. A
afirmação do devir enquanto lance de dados é, pois, ao mesmo tempo, a afirmação do acaso
e da necessidade inerentes a cada instante. “A necessidade é afirmada com o acaso
conquanto o próprio acaso seja afirmado.”
479
A afirmação do instante não é obtida pela repetição do instante ou pela negação dos
instantes anteriores, é preciso que o acaso de cada instante seja afirmado como necessário
para que então o próximo instante possa se dar. Não se trata de obter o número vitorioso
pelo excesso de tentativas, ao contrário, uma única tentativa é suficiente na medida em que
se afirma o resultado do acaso enquanto uma necessidade. Somente esta afirmação
incondicional comporta o eterno retorno. Uma vez que todo lance será sempre afirmado, o
lance seguinte pode advir e repetir a operação. O encadeamento dos lances forma uma
cadeia necessária, de tal forma que o n-ésimo lance só poderá existir caso tenham existido
todos os lances anteriores na seqüência em que ocorreram. Ou seja, o acaso do instante está
sempre em relação com a afirmação de todos os instantes anteriores, que são necessários
para o acaso presente, antes que este mesmo se torne necessário para o próximo
lançamento. A afirmação desta cadeia é a afirmação da inocência do devir e do eterno
retorno.E, sem dúvida, afirmamos todo o acaso de uma vez no pensamento do eterno
retorno.
480
Apenas a afirmação do acaso como necessidade pode trazer de volta o lance de
dados. A negação da combinação que cai significa a impossibilidade de continuar o jogo,
significa a negação do devir e da vida, significa impor ao devir um sentido pré-existente e
teleológico. Afirmar e querer a combinação é o amor fati
481
, é a prova ética de afirmação
incondicional daquilo que já foi como tendo sido querido. Assim, Nietzsche pode falar: “o
pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto
479
Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, pág. 30
480
Ibid., pág. 50
481
Ibid., pág.. 31
167
alcançar(...)”
482
Contra a moral da negação da vontade que seleciona o medíocre enquanto
objetivo da cultura, é preciso um pensamento capaz de selecionar apenas os mais fortes. Os
mais fortes são apenas aqueles capazes de afirmar a existência de maneira incondicional.
“A necessidade absoluta do mesmo evento em um processo universal como em todos os
outros de toda eternidade não é um determinismo, mas somente a expressão de que o
impossível não é possível... que uma força determinada não poderia ser outra coisa que não
esta força determinada; que ela não pode se desviar ao encontro de uma resistência de
quantum de energia conforme sua própria força – evento e evento necessário, pura
tautologia.”
483
A necessidade de cada evento está relacionada à teoria da vontade de potência, na
medida em que cada força expressa toda sua potência a cada instante e a não expressão da
potência não é sinal de virtude, mas de impotência. Desta forma, o pensamento do eterno
retorno decorre em parte da teoria da vontade de potência, uma vez que esta última instaura
o instante enquanto resultado do combate entre forças cujo resultado, mesmo sendo
imprevisível, não poderia ter sido diferente. A teoria cosmológica de Nietzsche não se
encontra expressa somente pelo pensamento do eterno retorno, mas por esta em conjunto
com a teoria da vontade de potência, pois o mundo e todas as coisas são e sempre foram
manifestações imediatas de potência e nunca puderam não tê-lo sido nem poderão deixar de
sê-lo. Neste sentido, o movimento do devir nunca se iniciou e nunca cessará enquanto
houver potência, isto é, enquanto algo existir. A simples idéia da existência como vontade
de potência nos obriga ao movimento infinito como expressão imediata e eterna de
potência. A potência não tem começo nem fim, ela devém a cada instante, sua expressão
imediata se dá a cada instante como necessidade. É este jogo que é afirmado como
existência no pensamento do eterno retorno. “O mundo subsiste; ele não é qualquer coisa
que devém, nem qualquer coisa que passa. Ou, mais ainda: ele devém e passa, mas jamais
começa a devir e nunca pára de passar – ele se mantém nesses dois processos... Ele vive de
si mesmo: seus excrementos são sua nutrição...”
484
Desta forma, Nietzsche pode postular
que não existe princípio e nem fim para o devir ou para o tempo, uma vez que tudo o que é,
só pode ser na medida em que é expressão de potência em luta com demais potências a
482
Nietzsche, “Ecce homo”, Assim falou Zaratustra, 1
483
Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10 [138]
484
Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 14[188]
168
cada instante, não havendo a possibilidade do não-ser ou do negativo. Procurar o início do
movimento significa negar todo o vir-a-ser, pois seria preciso um ponto inicial extático
somente concebível pela religião. A religião, inclusive, propõe este ponto inicial apenas
para fazer de seu deus o criador e credor da existência e dos homens os devedores.
Se o mundo nunca iniciou seu devir e nunca pára de devir, então podemos formular
a hipótese de que se existisse a possibilidade de algum estado de equilíbrio no universo,
este já teria sido alcançado, na medida em que o quantum total de potência não pode ser
sempre crescente. Se o devir não possui começo e sempre existiu, o tempo passado
constitui-se em uma eternidade; não há a possibilidade de um estado de finalidade último
para o devir, pois se houvesse algum ponto aonde chegar, por que já não haveria de tê-lo
chegado? E se houvesse um ponto de partida estático, por que haveria de ter iniciado seu
movimento? “Se o movimento universal tivesse um estado final já o teria alcançado. Ora, o
único fato fundamental é que não há nenhum estado como meta (...) Procuro uma
concepção do mundo que faça justiça a este fato: o devir deve ser explicado sem recorrer a
este gênero de intenções finalistas: é preciso que o devir apareça justificado a cada instante
(ou inavaliável: o que dá no mesmo)”
485
O eterno retorno responde não só a uma questão de
comportamento amoral a partir de uma doutrina de afirmação incondicional da vida capaz
de selecionar os mais fortes, como também é capaz de se opor às compreensões religiosas
sobre o começo e a finalidade da existência, restituindo inocência ao devir. A existência
não mais possui uma finalidade teleológica ou metafísica que legitime um comportamento
moral qualquer que seria capaz de tornar um mundo metafísico acessível após a morte. O
pensamento do eterno retorno apresenta a existência como fluxo eterno de um devir de
forças que sempre retorna e não visa a um estado durável, justificando a afirmação da
vontade.
“Se o mundo pode ser pensado como uma grandeza determinada de força e como um número
determinado de fontes de força – e qualquer outra representação resta imprecisa e, por
conseqüência, inutilizável, – daí resulta que ele deve passar por um número calculável de
combinações no grande jogo de sua existência. Em um tempo infinito, toda combinação
possível será obtida em um momento ou outro; melhor ainda: ela será obtida um número
infinito de vezes. E como, entre cada ‘combinação’ e seu ‘retorno’ seguinte, todas as outras
combinações possíveis deverão ter se apresentado, e cada uma destas combinações determina
toda a seqüência das combinações na mesma série, assim se teria provado um ciclo de séries
485
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [72]
169
exatamente idênticas: o mundo enquanto ciclo que se repete um número infinito de vezes e
que joga seu jogo in infinitum.”
486
Apenas a afirmação do eterno retorno cumpre a tarefa de valorização da existência
tal qual Nietzsche entende ser necessária para se opor à moral da decadência e à cultura da
mediocridade. A ética enquanto capacidade de afirmar a ausência de fundamento metafísico
para a existência, a inocência do devir e a afirmação da vontade em toda sua potência
expressiva é resumidas por este pensamento apresentado também enquanto doutrina de
adestramento e seleção do homem, para que este seja capaz de afirmar a vida em toda sua
tragicidade. O eterno retorno entendido como doutrina ética decorrente da teoria da vontade
de potência, com o intuito de elevar o homem a um patamar onde este homem atual não
seja sequer compreendido como sendo da mesma espécie: o super-homem.
486
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [188]
170
Conclusão
Fazer a crítica da moral significa muito mais do que simplesmente pensar os valores
morais aos quais o ocidente esteve ligado nos dois últimos milênios e opor a eles valores
novos. Nietzsche percebeu que a força da moral residia nos efeitos de poder produzidos por
todo discurso que se quer como verdade. Se um valor moral se encontrasse sustentado por
uma espécie de pensamento aceito como verdadeiro, então ele estaria legitimado. A
psicologia de Nietzsche foi capaz de enxergar outros interesses por trás do pensamento
filosófico que buscava o conhecimento puro e desinteressado. A fachada de conhecimento
deu ao pensamento a ilusão de que uma criação humana pudesse ser mais do que apenas
uma perspectiva sobre as coisas. Acreditou-se que o pensamento, através da linguagem,
fosse capaz de alcançar as coisas mesmas e não fosse apenas uma forma de relação do
homem com as coisas. Desta forma, o bem e o mal foram definidos como absolutos, pois o
conhecimento que os legitimava era entendido como verdade. Fazer a crítica da moral
implicava em fazer a crítica daquilo que servia como base de sustentação para esta moral.
Nietzsche percebeu que os valores morais tiravam sua força coercitiva deste
discurso de verdade e foi além. Desvendou que as próprias teorias filosóficas do
conhecimento, que diziam buscar a verdade de um ponto de vista desinteressado, possuíam,
no fundo, o enorme interesse em propor os seus próprios valores como verdades do
conhecimento. Ao apontar para este interesse por trás do “desinteresse”, Nietzsche mostra
que não é possível um conhecimento desinteressado, pois não é possível um conhecimento
que não seja perspectivo. Todo pensamento, toda teoria, parte de um ser humano, de um
pensador, de um cientista, suas conclusões são, portanto, conclusões que se relacionam com
a perspectiva que o engendrou, isto é, a do próprio ser humano. Não há como um
pensamento não ser perspectivo, pois ao nascer, ele nasce de algum lugar e vê as coisas
deste ponto. Não há como o conhecimento abarcar o todo, nem todas as perspectivas. Neste
sentido, o conhecimento só pode aparecer como uma interpretação possível dentre outras,
sendo sempre parcial.
É importante enfatizar o caráter interpretativo de toda perspectiva. O homem através
de sua ciência, de seu conhecimento e também de sua arte interpreta o mundo com o qual se
relaciona. Estas criações, por mais belas e eficientes que sejam, são formas que o homem
171
tem de se relacionar com as coisas e o faz a partir de seus meios como a linguagem. Todo
conhecimento, na medida em que é expresso em uma linguagem que o homem inventou, se
mostra como uma forma de relação entre o homem e as coisas. O que significa que não
pode mais se sustentar como verdade, no sentido metafísico até então defendido pela
filosofia. O conhecimento filosófico que era capaz de apresentar a verdade sobre o bem e o
mal se torna uma interpretação perspectiva tornada possível através do uso de meios
inventados pelo próprio homem para tentar traduzir o que pensa e sente. Se o próprio
pensamento se der pelo uso da linguagem, então talvez seja completamente impossível ao
homem fugir do antropomorfismo.
Matemática Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências,
até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para
assim constatar nossa relação humana com as coisas. A matemática é apenas o meio para o
conhecimento geral e derradeiro do homem.
487
Vê-se que a crítica à moral implica em uma longa crítica da idéia de verdade e da
maneira como se pensou até hoje o conhecimento. Contudo, seria então imposvel, ou ao
menos inútil, todo trabalho filosófico ou científico? – Nietzsche não deixa que sua crítica se
acabe em um pessimismo vazio, onde nada mais valeria a pena. Ao contrário, esta sensação
de vazio decorre do fato de que por muito tempo o homem viveu acreditando que era
preciso a segurança da verdade em suas criações. Contudo, em todos os casos foi este
mesmo homem quem concedeu os valores às coisas. Se o conhecimento é uma relação do
homem com as coisas, não chegando a algum tipo de realidade em si, é porque foi o próprio
homem quem criou a idéia de verdade e acreditou que ela existia da forma como queria. Se
ele hoje percebe que a criou e não mais crê, então, ao contrário de se ver em um vazio
desprovido de valor e sentido, pode perceber que pela primeira vez tem a oportunidade de
criar seus valores e seus sentidos sabendo que isto é uma criação. A humanidade está diante
da liberdade. Tudo aquilo que o homem entendeu como moral, conhecimento e verdade
são criações humanas, mas isto não quer dizer que ele não possa mais criar, ao contrario,
isto quer dizer que somente agora ele pode criar a si mesmo como quiser. O homem enfim é
possível. Até então, sua potência estava limitada pela lógica, pela moral, pela idéia de
verdade e conhecimento. Tais limitações visavam manter o homem em um patamar baixo
487
Nietzsche. “Gaia ciência”, 246
172
de potência, tais pensamentos objetivavam o enfraquecimento do homem. Por isto, para
Nietzsche, toda moral e todo discurso de verdade é um sintoma de fraqueza, na medida em
que visa controlar toda a potência dos afetos humanos, sem lhes desenvolver e aperfeiçoar,
mas lhe extirpando. O sentido de sua crítica foi o de liberar esta potência até então proibida
e ele consegue na medida em que tira o sustentáculo do conhecimento científico e abre
então para os demais tipos de conhecimento, até então recalcados pela tradição.
É neste ponto que Nietzsche apresenta também a sua criação, a sua proposta, a sua
interpretação parcial e perspectiva da vida. O fato de que o conhecimento seja uma criação
não impede que Nietzsche crie. Ao contrário, para Nietzsche somente agora a filosofia é
possível, pois somente agora ela poderá criar de acordo com seus objetivos. O objetivo de
Nietzsche é criar uma filosofia que seja capaz de levar o homem ao seu mais alto grau de
potência e desenvolvimento. É neste sentido que formulará as idéias de vontade de
potência, eterno retorno e super-homem.
A vontade de potência é sua interpretação amoral da constituição das coisas. Tudo o
que existe é manifestação imediata de potência. Esta potência não poderia não se realizar,
pois, neste caso, não seria potência, seria impotência. A potência está expressa a cada
instante. Com isto, termina-se com a idéia de que existe um bem e um mal por detrás do
mundo e que regeria todos os acontecimentos. Ao contrário, os acontecimentos são
entendidos como resultantes da correlação entre as forças expressas a cada instante. Esta
interpretação restaura a inocência do devir e ainda aponta para a boa consciência que se
deve ter para com suas próprias vontades.
Por mais que Nietzsche apresente a vontade de potência como hipótese
interpretativa, ele não deixa de ver e interpretar o mundo a partir desta perspectiva. O
filósofo realmente crê que o que há são correlações de forças expressas em potência a cada
instante. Mas sabe também que esta é a sua forma de interpretar o mundo, sabe que é uma
forma de enxergar as coisas e pensá-las. Nietzsche sabe também que a vontade de potência
é uma idéia expressa em conceitos que tenta tornar inteligível para o homem o modo como
as coisas são. E que, por mais que se concorde com a adequação da idéia ao objeto, isto não
faz com que a vontade de potência seja uma verdade.
Com a crítica feita à verdade e a partir da teoria da vontade de potência, tem-se um
deslocamento da questão moral. Ela não pode mais subsistir com tanta força, pois seus
173
meios de coerção não possuem mais a mesma persuasão. O homem, quando liberado da
moral e do dever, é obrigado a encontrar-se consigo mesmo. A sensação de vazio e de
impotência é uma das formas como o homem passou a sentir a vida a partir da ausência da
verdade moral. Contudo, se não há moral e se a verdade é uma criação, então existe uma
contra-partida a este sentimento de impotência que é o seu extremo oposto. Para Nietzsche
somente agora o homem pode olhar para si mesmo com boa consciência, pois seus desejos
não são mais caluniados por uma moral que negue as propensões naturais do homem em
nome da algo inventado como verdade. Agora o homem pode dar vazão à sua força e
tornar-se cada vez mais forte e maior. Tem-se enfim, que pensar a ética. Ética em Nietzsche
significa este trabalho do homem liberto da moral sobre si mesmo em busca de grandeza, a
partir das suas próprias paixões e desejos. Por isto foi preciso derrubar a moral. Esta, como
estratégia dos fracos, impedia o homem de realizar sua paixão e seu desejo, isto é, impedia
o homem de tornar-se si mesmo. A ética será este trabalho de criar a si mesmo em direção à
grandeza e à beleza do mais alto grau de potência.
O ponto culminante desta ética seria o super-homem, um homem tão forte e pleno
que poderia ser considerado como algo além do homem. Diante do estado de torpor niilista
em que vive o homem após a perda de suas crenças, Nietzsche cria um novo objetivo para a
vida. Se, antes, o sentido da vida era o de obedecer a regras morais filosóficas ou religiosas,
e o sentimento de estar ao lado da verdade ou de estar salvo junto a deus era a recompensa
que trazia o bem-estar, hoje essas justificativas não mais proporcionam este mesmo
sentimento. E se não proporcionam é pelo simples fato de que nelas não mais se crê como
antigamente. A crença na existência de deus e em que a obediência a seus mandamentos
traria a salvação proporcionava um sentimento de resignação frente à dor que a vida
poderia causar. Hoje em dia não mais se aceita esse tipo de explicação para se conferir
sentido à existência. Sofre-se de um vazio de sentido existencial. É preciso, pois, conferir
um sentido à existência. Um sentido que a engrandeça e a fortaleça. Um sentido que torne a
vida digna de ser vivida. Para Nietzsche este sentido é o super-homem. O homem pode se
direcionar para o desenvolvimento de si mesmo e de sua própria grandeza. Esta é a ética de
Nietzsche: viver, a partir de suas próprias paixões e desejos, aquilo que lhe dá o maior
sentimento de força e amor e, a partir daí, desenvolver-se ao máximo neste caminho,
174
produzindo uma grandeza passível de ser apreciada por inúmeras gerações e, quem sabe,
pela eternidade.
Contudo, Nietzsche sabe que está a criar um objetivo e um sentido. Nietzsche
inventa o super-homem e o apresenta como ideal de grandeza para a humanidade. Mas
Nietzsche sabe que inventou um ideal. Nada pode parecer mais contraditório do que a
invenção de um ideal por parte de Nietzsche. Mas o filósofo sabe que está a inventar, a
criar, e sabe que este é o único caminho afirmativo possível para a humanidade hoje. Pode-
se voltar às crenças metafísicas e aos messianismos, pode-se prostrar-se em um niilismo
passivo e querer o nada, até mesmo nada querer, mas, para que a vida humana seja
afirmada, é preciso que se crie uma proposta e que se saiba que esta proposta é uma
criação. O saber-se criação por parte do ideal do super-homem o diferencia de todos os
demais ideais anteriores. O super-homem é uma proposta, precisa ser querido para
acontecer, ele não é uma imposição que precisa ser obedecida. Ele não é uma verdade, é
uma vontade. O super-homem aparece como a proposta afirmativa de Nietzsche para a
vida. Um ideal de grandeza em oposição a toda negação e fraqueza diante da vida. O
sentido do super-homem é levar a humanidade ao seu mais alto grau de potência. Mas é só
uma proposta, podemos escolher o último homem: o homem mesquinho, inseguro, medroso
diante da vida, que busca apenas proteger sua pobre existência de qualquer risco e qualquer
tentativa, em suma, o homem burguês.
O eterno retorno aparece, aqui, como uma espécie de prova de afirmação da vida.
Nietzsche cria um pensamento que, caso seja afirmado, implica na afirmação incondicional
da vida. O eterno retorno seria uma forma de adestrar os homens em direção ao super-
homem e de selecionar os realmente aptos para a tarefa. Se descobríssemos que viveremos
nossas vidas ummero infinito de vezes, seríamos capazes de gostar desta profecia? Se
isto não fosse uma escolha, seríamos obrigados a fazer de nossas vidas algo de bom, pois
ela retornaria: “a questão em tudo e em cada coisa, ‘Você quer isso mais uma vez e por
incontáveis vezes?’, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos.”
488
O eterno retorno
pode ser pensado como um questionamento ético, na medida em que afirmá-lo implica em
aderir de forma incondicional à vida com tudo o que ela tenha de dor ou de alegria. Quem
for capaz querer o eterno retorno de tudo aquilo que já passou é porque sente-se justificado
488
Nietzsche, Gaia ciência, 341
175
no instante presente. O eterno retorno implica em não somente aceitar, mas também querer
tudo o que foi. Somente assim afirma-se a toda a existência de uma só vez.
Em oposição a uma história que sempre buscou diminuir a vida, Nietzsche
apresentou a genealogia da moral. Diante dos escombros da decadência, ele ergue suas
interpretações e propostas afirmativas para toda humanidade. Não há como entender
Nietzsche como um pessimista ou niilista. Ao contrário, Nietzsche nos mostrou como
estivemos atados a valores que nos diminuíam e como se pode agora criar para si mesmo
um ideal de grandeza. Nada poderia ser mais afirmativo e pleno de vitalidade. A alegria de
viver.
Neste ponto é de suma importância reafirmar e enfatizar o caráter hipotético e
especulativo não só da filosofia, mas de todo e qualquer pensamento. Pode até mesmo
parecer contraditório que a total ausência de fundamentos e bases possa formar algum tipo
de alicerce sobre o qual se possa erguer uma teoria ou um pensamento qualquer. Mas é para
isto que Nietzsche chama atenção quando diz que enfrentou e superou o niilismo.
“Só tarde demais temos coragem para aquilo que sabemos ser pertinente. há muito pouco
tempo confessei a mim mesmo que, até então, fui profundamente niilista; a energia e a apatia
com as quais segui em frente enquanto niilista, me enganaram sobre este fato fundamental.
Quando caminhamos em direção a uma meta, parece inconcebível que ‘a ausência de
meta em si’ possa ser nosso princípio de crença.
489
Até mesmo para o próprio Nietzsche foi difícil aceitar que a direção e a meta
possam nascer diretamente da ausência de metas. Este aforismo mostra que é justamente a
partir da ausência de fundamento e sentido prévio para a existência e para o conhecimento,
que é justamente a partir do entendimento da verdade moral enquanto crença, que se pode
formular novas propostas para a humanidade. Somente ao se aceitar esta condição trágica
inicial é que a meta, o objetivo e o sentido poderão ser entendidos como humanos,
demasiado humanos. Somente assim poderão respeitar a vida em seu caráter criador e
ilusório. Caráter este que Nietzsche não se cansou de enfatizar como mais importante do
que a verdade. O pensamento e a solução de questões humanas somente podem ser
apresentados de um ponto de vista humano. Toda filosofia, na medida em que se outorgar o
caráter de solução definitiva estará repetindo o movimento de acreditar no próprio mito. É
489
Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[123] (grifo nosso)
176
desta forma que a ausência de sentido e meta deve forçar o homem a ser capaz de criar um
sentido e uma meta. A real força do pensamento ético de Nietzsche consiste em devolver ao
ser humano o poder de criar para si o sentido de sua própria existência a partir de suas
paixões e com boa consciência.
177
ENSAIO:
ASSIM APRENDI COM ZARATUSTRA
Neste apêndice trata-se de um ensaio interpretativo sobre aquele que Nietzsche
considerava ser seu trabalho mais importante. Não temos, de forma alguma, a intenção de
apresentar uma grande interpretação que fosse capaz de exaurir todas as questões do livro
ou algo do gênero. Em muitos pontos, inclusive, abre-se mão de qualquer interpretação
mais detalhada e deixa-se correr o texto. O próprio formato escolhido foi o do ensaio por
termos sentido que era preciso criar um texto em que o “ambiente” poético e romanceado
do livro estivesse presente. Se esta parte de nosso trabalho vem por último e em forma de
anexo é porque sentimos que apenas após um tratamento teórico mais detalhado da filosofia
de Nietzsche se poderia tentar algo assim. Repetimos não ter pretensão nenhuma ao fazer
esta tentativa a não ser a de apresentar uma leitura pessoal sobre a obra prima do autor que
estudamos, leitura esta que entendemos reforçar a nossa tese sobra a existência de uma
ética na filosofia de Nietzsche. Salvo pouquíssimas exceções, não foram usadas passagens
de outros livros e os bons comentários escritos sobre esta obra de Nietzsche, por mais que
possam ter sido lidos, não serão explicitamente mencionados. Este ensaio pressupõe que o
leitor já possua alguma familiaridade com o livro de Nietzsche, uma vez que as menções ao
texto serão feitas de forma velada na grande maioria dos casos, além de não nos
preocuparmos muito com algum tipo de caráter narrativo.
Este ensaio buscará apresentar Assim falou Zaratustra” como um livro de ética,
onde o protagonista se apresenta como alguém que traz novos pensamentos para os homens
a fim de lhes incentivar à grandeza e lhes desviar da mediocridade, passando por várias
questões anteriormente abordadas na tese. “Assim falou Zaratustra” apresenta a história de
um sábio que, após permanecer longo tempo como eremita, retorna aos homens trazendo-
lhes seus ensinamentos. Nestes ensinamentos podemos ver de forma velada, ou nem tanto,
as mais importantes idéias da filosofia de Nietzsche. Acreditamos que o estudo deAssim
falou Zaratustra, quando articulado com os temas da filosofia de Nietzsche abordados em
seus demais trabalhos, pode ajudar a esclarecer pontos difíceis de sua filosofia justamente
ao abordá-los com uma outra linguagem, uma linguagem não acadêmica e bastante lírica e
178
poética. Nele encontraremos sua crítica à cultura moderna, delineando como o filósofo vê
os caminhos da cultura no presente; temos sua contra-proposta a este ideal moderno: o
super-homem – aqui, inclusive, a idéia do super-homem aparece com muita freqüência
fazendo-nos entender melhor o que Nietzsche apresentou como proposta ao niilismo;
Zaratustra se apresentará como mestre do eterno retorno e as passagens em que este
ensinamento é apresentado podem também nos esclarecer uma vez que Nietzsche pouco
falou dele em outros textos.
Neste livro, Nietzsche, através de uma fábula poética, sem fazer o uso clássico dos
conceitos tradicionais da filosofia, condensa todo seu pensamento. Cremos que um dos
principais motivos para este formato inusitado é o de ser capaz de se desviar da linguagem
tradicionalmente usada na filosofia e fortemente marcada negativamente, além de ser
excessivamente provocativo quanto à forma do pensamento tradicionalmente aceito. O
livro de Nietzsche foi uma espécie de resposta a tudo o que ele criticou. É uma resposta que
não poderia ser mais afirmativa, pois é fortemente artística e, ao mesmo tempo, mantém a
profundidade filosófica do pensamento no mais alto grau. Cabe a nós, no máximo, apenas a
liberdade de uma tentativa, de uma tentação, de uma experiência, um breve ensaio.
Prólogo:
1 – Zaratustra, aos trinta anos de idade adulto, porém ainda jovem se retira de sua
cidade natal e se torna um eremita, morando em uma caverna, no alto de uma montanha, na
floresta. Zaratustra precisava de solidão e nela viveu por dez anos, gozando seu próprio
espírito. A solidão é uma característica muito enfatizada por Nietzsche para aqueles que
buscam a si mesmo. A independência frente a moral impõe a busca por seus próprios
valores a partir de seus próprios impulsos. A solidão é esta condição necessária para o
engrandecimento do próprio espírito.
Zaratustra se ausenta do convívio com os homens em busca de seus mais altos
pensamentos e não se cansa com isto. Contudo, passado algum tempo, sentiu Zaratustra a
necessidade de voltar a se relacionar com os homens para doar aquilo que havia aprendido
e acumulado por este tempo todo. Referindo-se ao Sol, astro rei e estrela sem a qual a
existência de vida na Terra seria impossível, Zaratustra diz que até para este Sol existe uma
179
necessidade de doação. A vida do Sol seria enfadonha se não existissem aqueles a quem
ilumina. A luz e o calor do Sol são emanações supérfluas deste astro, entretanto, para nós,
delas dependentes, são uma benção. Necessidade de doar: é isto que Zaratustra sente e, por
isto, precisa retornar aos homens. É de suma importância enfatizar o caráter deste
movimento de Zaratustra: ele precisa trocar com os homens, precisa se relacionar com eles,
pois muito aprendeu em sua solidão sobre coisas do espírito e entende que seus
ensinamentos ajudarão as pessoas a crescer.
Fica claro que a filosofia de Nietzsche trata de questões humanas e o faz de um
ponto de vista ético-cultural. Este é o centro da filosofia de Nietzsche. Por isto, Zaratustra
deve descer às profundezas do homem e doar-lhes seus ensinamentos. Porém, para
Zaratustra, esta descida se assemelha a um ocaso, pois ele se encontra em um estado de
plenitude de forças e a doação será como o transbordamento de um copo. A doação é uma
característica apenas dos fortes, como o Sol, e, assim, Zaratustra se entrega à sua senda,
mas não sem antes pedir a benção ao mais forte dos astros.
2 - Ao iniciar a descida de sua caverna, Zaratustra encontra um santo que morava na
floresta. Este diz que Zaratustra saiu da cidade levando suas cinzas e, hoje, retorna a ela
com o fogo. Se Zaratustra está abundante e precisa doar, quando se retirou da cidade estava
fraco e precisando de solidão. Zaratustra se fortalece consigo mesmo em sua solidão.
Mesmo assim, ama os homens e quer com eles trocar mais uma vez. Contudo, o santo sabe
que os ensinamentos de Zaratustra, por serem amorais e ímpios, são como fogo para o
homem de rebanho. Há uma menção clara aos riscos da autodeterminação dos próprios
valores quando se vive em sociedade. O santo diz que, assim como Zaratustra, também já
amou os homens, mas estes são pobres demais para seu amor. Por isto, também se refugiou
na floresta, só que vive a louvar a deus. Neste ponto Zaratustra se pergunta por que foi falar
de amor. Está claro que o amor de Zaratustra é diferente do amor do santo. O santo não
amava os homens, em verdade, ele era apenas mais um niilista fugindo da vida. Amando a
deus, agora, ama o além, o fim, o nada, ao contrário de Zaratustra, que ama os homens, isto
é, a vida. Amar a vida significa amar os homens. Com certeza, amar a vida significa mais
do que amar apenas os homens, mas sem este amor aos homens, o amor à vida torna-se
questionável. Nietzsche sempre criticou a noção abstrata de humanidade e sempre duvidou
180
de um amor pela humanidade, mas, vemos aqui, mais uma vez, que sua filosofia trata,
explicitamente, de questões humanas. O niilismo não é algo metafísico, embora a
metafísica seja uma característica do niilismo. Se o niilismo é algo de humano, trata-se de
pensá-lo aí, e de aí propor outra vida e outros valores. É o que Zaratustra pretende ao descer
de sua caverna na montanha. Ao final deste ponto aparece a primeira menção, ainda pouco
esclarecedora, sobre a morte de deus. O santo fala de deus, mas deus não estaria morto?
3 – Zaratustra se dirige à praça pública, onde estava programado um espetáculo de
entretenimento para a massa. Lá, profere a todos um discurso. Zaratustra faz uma crítica ao
homem tal qual o conhecemos hoje. Um homem que, por mais que tenha “progredido” de
seu antigo estado animalesco, ainda tem muito de macaco em sua forma de ser. Neste ponto
apresenta-se o grande ensinamento de todo o livro: o super-homem. Tal ensinamento não se
dissocia dos demais ensinamentos como morte de deus e vontade de potência, mas
Zaratustra desceu aos homens para falar-lhes do super-homem, o super-homem é o sentido
de todos os ensinamentos, a meta da cultura, a opção ao niilismo. Diante de um homem
fraco e impotente, a proposta é por uma elevação, um fortalecimento de tal ordem que se
possa falar em outra espécie. “O homem é algo que deve ser superado”.
A primeira dica que Zaratustra nos dá é que permaneçamos fiéis a Terra, ao nosso
planeta. A crença em determinadas religiões e deuses fez com que o homem desprezasse a
própria vida, desprezando, assim, a Terra. Mas trata-se, justamente, de valorizar a Terra e a
vida. Depois de dois mil anos de cristianismo, é preciso reacender a chama do amor pela
vida. É este deus, de certos cristianismos, que morreu. Agora, a valorização da vida é o
principal ponto na luta contra o niilismo e contra a cultura da mediocridade, na luta por si
mesmo, na luta por um super-homem. Se, antes, o sentido da Terra era tido como algo
obscuro, pertencente à vontade divina, revelada pelo pastor, agora fica claro que o futuro da
Terra e da vida na Terra depende apenas do homem e de sua capacidade de se enxergar
assim responsável. O super-homem, como proposta de auto-elevação do homem, é uma
proposta que depende da vontade do homem, é preciso querer o super-homem, é preciso
querer e criar o sentido da vida e da cultura na Terra. Esta é a grande mudança do mundo
contemporâneo em relação ao passado: agora se pode decidir conscientemente a que
caminhos seguir, individual e coletivamente.
181
É interessante que este super-homem, longe de ser algo agradável e que seria de
bom grado a todos buscá-lo, decorre, na verdade, de um ocaso, de um perecimento. É
preciso que o homem atual, com todos os seus valores, suas crenças e suas felicidades,
pereça. Este homem é um rio imundo. Somos todos rios imundos. (Imundos em um sentido
amoral, isto é, somos imundos não por sermos pecadores, mas por sermos medíocres)
Seremos capazes de nos enxergar assim? – Caso não sejamos, certamente é por falta de
rigor na crítica! Aliás, uma superficial satisfação consigo mesmo, um grande apreço por sua
pequena felicidade é característica do animal de rebanho. O super-homem, ao contrário, é a
hora do grande desprezo. Há um momento em que até a felicidade se converte em náusea.
Há um momento em que os frutos de uma cultura mesquinha se mostram tão medíocres que
se percebe o quão ridículo é o espetáculo de nossa busca por esta pequena felicidade. No
momento em que a felicidade, a razão, a virtude, a justiça e a compaixão se apresentarem
como valores incapazes de dar sustentação à existência o niilismo se tornará aparente.
Neste ponto, será preciso desprezar estes valores, que foram os mais caros ao homem até
aqui. Desprezá-los, pois ficará claro que tais valores levam o homem não ao seu apogeu,
como ainda acreditam alguns, mas ao seu mais baixo grau.
4 – Nietzsche começa este ponto falando justamente do perigo da vida, isto é, do perigo que
viver representa. Sendo o homem uma ponte entre o animal e o super-homem, a vida é a
travessia da ponte. Travessia perigosa de transpor, perigoso olhar para trás, parar, tremer.
Mas o que há de grande no homem, diz Zaratustra, é que ele é esta ponte, ou seja, uma
transição. A partir deste ponto, Zaratustra enumera uma série de característica do homem
que seria esta ponte. Ele é sempre aquele que quer seu próprio ocaso, pois quer o super-
homem. “Amo os que não vivem senão no ocaso, porque estão a caminho do outro lado”.
Como já foi falado, trata-se de se arriscar na experiência da busca de um outro patamar para
a existência. Assumir os riscos de uma outra vida, assumir os riscos da criação de outros
valores, nem que isto signifique a própria morte. Este é um passo em direção ao super-
homem.
Em uma das últimas frases, Zaratustra diz que quem tem o espírito e o coração
livres tem a cabeça como uma víscera do coração. Nietzsche sempre priorizou os afetos
emotivos ao invés da razão. Saber ouvir ao seu próprio coração e ter coragem para seguí-lo
182
são, talvez, os pontos mais importantes de toda a filosofia de Nietzsche. Aí, não há espaço
para a moral. A grandeza de espírito e em obras decorre da grandeza de um coração pleno
de amor e coragem para este amor.
5 – Um dos discursos mais importantes do prólogo. Aqui se apresenta e se descreve os
caminhos atuais da humanidade, aquilo que ela está se tornando quase que como um ideal:
o último homem. O texto fala por si próprio, sem muita necessidade de interpretação. “Já é
tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da
sua mais alta esperança. Seu solo é ainda bastante rico para isso. Mas, algum dia, esse solo
estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele. Ai de nós! Aproxima-
se o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio para além do
homem e em que a corda de seu arco terá desaprendido a vibrar! Eu vos digo: é preciso ter
ainda um caos dentro de si, para dar à luz a uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda
caos dentro de vós. Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz
nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que
nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo. Vede! Eu vos mostro o último homem.
A multidão, após criticar a idéia de super-homem, clama pelo último homem. Este é
o ideal da modernidade, este é o atual sentido da Terra. É contra este estado de coisas que
se dirige a crítica de Nietzsche. Este último homem é um homem pequeno, mesquinho,
conformado, sem anseios de crescimento, sem desejos nem força. A humanidade possui,
ainda, uma bagagem cultural que a permite viver, se desenvolver e crescer. Mas o atual
estado da cultura tende a empobrecer cada vez mais este solo. Não é à toa que o último
homem diz que inventou a felicidade. Para ele a felicidade é a homogeneização de todos,
sem o diferente, sem a exceção, ele pode se sentir feliz em sua mediocridade. É a felicidade
do rebanho, que se torna náusea, pois não é capaz de produzir nada de grande ou de belo.
Ao final, Zaratustra chama a atenção para o caráter gregário da modernidade. “Nenhum
pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro
modo vai, voluntário, para o manicômio.” A força de homogeneização deste processo é tão
grande que aquele que pensa de forma diferente sofre tanto que poderia se direcionar ao
manicômio. É possível que ele próprio se sinta realmente louco, tamanha a força do
processo homogeneizador. Por isto, há a necessidade não somente da solidão, mas da
183
capacidade de nela se fortalecer e manter-se sereno, com claridade de pensamento, para se
poder enfrentar tudo isto.
6 – Enfim, começa a apresentação do funâmbulo na praça em que Zaratustra proferia os
discursos. Sobre uma corda estendida entre duas torres tenta passar este homem que foi
adestrado para tal serviço. Alguns entendem ser fácil ver aqui a menção ao super-homem,
sendo o funâmbulo o homem que tenta fazer a travessia. Aqui ocorre a primeira aparição do
chamado espírito de gravidade. Aparece sob a forma de um palhaço que insulta e depois
derruba o funâmbulo, saltando por cima deste, que morre. Quem seria este espírito de
gravidade que derruba o homem de seu caminho e o mata? E por que estaria na forma de
um palhaço? – Parece-nos que seria algo interessado em que o homem não siga seu
percurso, algo responsável por manter o homem a meio caminho entre o animal e o super-
homem. Pode ser a moral, a Igreja, a má consciência, a boa consciência de um animal de
rebanho, o medo... Não sabemos...
O funâmbulo conversa com Zaratustra antes de morrer e diz que se sente apenas
como um animal adestrado em quem o diabo deu uma rasteira. Mas Zaratustra diz-lhe que é
um homem digno, pois fez do perigo seu ofício. Diz-lhe também que não há diabos ou
coisas assim. Mais uma vez apresenta-se com clareza a questão de que é preciso pensar o
sentido da vida e da Terra de um ponto de vista humano, como criação e não como
determinismo religioso ou metafísico. Todos na praça aguardavam o entretenimento a ser
proporcionado pelo espetáculo, mas ninguém se pôs a ajudar o funâmbulo quando caiu,
apenas Zaratustra.
7 – Zaratustra se percebe longe dos homens. Sua fala em praça pública não atingiu
ninguém, a não ser um cadáver e, mesmo assim, acidentalmente. Como ensinar o super-
homem?
8 – Ao sair da cidade pela noite, Zaratustra é abordado pelo mesmo palhaço que saltara
sobre o funâmbulo à tarde. Este lhe diz que os bons e os justos assim como os homens de fé
daquela cidade odeiam Zaratustra. Somente não o mataram, pois entenderam-no como um
palhaço. Os ensinamentos de Zaratustra não são aceitos neste contexto e serão fortemente
184
criticados e proibidos. Forte é a pena para aquele que segue um caminho amoral. A
incompreensão em relação a aquele que pensa de forma diferente do homem de rebanho
desenvolve-se em ódio e ostracismo. Zaratustra segue seu caminho e encontra-se, ainda,
com algumas pessoas que caçoam e riem dele, desprezando-o. É assim que aqueles que
criam seus próprios valores são tratados pela cultura moderna do animal de rebanho.
Zaratustra segue sozinho e com fome pela floresta carregando o morto e encontra uma casa,
onde um eremita lhe oferece pão e vinho e quer que o morto também coma. Parece não se
importar com o fato de que esteja morto.
9 – Outro parágrafo importantíssimo na compreensão de toda a filosofia de Nietzsche e de
toda a proposta de Zaratustra. Repentinamente, como muitas vezes nos surgem grandes
pensamentos, Zaratustra chega à conclusão de que precisa, em verdade, de companheiros.
Zaratustra percebe que agira como um pastor ao falar a todos em praça pública. Parecia
estar buscando fiéis para uma seita. Mas, é sempre uma minoria de pessoas que se coloca
de forma verdadeiramente crítica diante do mundo que têm à frente. Ao falar a todos,
atinge-se a maioria, o rebanho, a massa, atinge-se pessoas que se mostram satisfeitas com o
atual estado de coisas. Como a homogeneização na mediocridade torna a todos iguais, não
há necessidade de grandeza, há a segurança na mediocridade. Quando todos são iguais,
pode-se excluir a exceção, o diferente. Zaratustra entende que precisa se ligar àqueles a
quem possa chamar de companheiros, àqueles que o sigam porque querem seguir a si
mesmos e o abandonarão se necessário. Zaratustra percebe que não deve agir como pastor e
formar um rebanho, ao contrário, deve atrair para fora do rebanho aqueles capazes de auto-
afirmação frente à moral. Referindo-se ao seu encontro anterior com o palhaço, Zaratustra
diz quem são aqueles que se intitulam os bons e justos: são os pastores do rebanho, são os
que defendem as regras diminuidoras do homem e odeiam aqueles que não seguem sua
moral, são aqueles que praticam os valores estabelecidos e exigem que estes sejam
praticados pelos demais. Contra estes, Zaratustra clama por companheiros. Quem são estes
companheiros? – Aqueles que quebram as tábuas de valores, os destruidores, que são
também os criadores de novos valores.
Zaratustra procura participantes na criação e aqueles capazes de colher o fruto desta
criação. Através da criação de novos valores pode se dar alguma transformação. É a vida,
185
comprometida consigo mesma, que, ao viver a si mesma na plenitude de sua paixão
transforma o mundo. Isto quer dizer que é o homem, comprometido com seu coração e com
sua vontade, que, a partir do pensamento crítico sobre o niilismo e sobre a modernidade,
através da prática de seus próprios sentimentos e valores, transforma o mundo. O
fortalecimento do homem nobre, que quer transformar a cultura e transvalorar os valores, se
dá pela sua união com pessoas de sentimento próximo, pessoas que também tenham
vontade e coragem para seguirem a si mesmos. A filosofia de Nietzsche não é
individualista. O respeito à individualidade é fundamental, mas, mesmo Zaratustra precisa
de companheiros.
10 – Aparecem os animais de Zaratustra. O mais altivo (águia) e o mais prudente (cobra)
entre os animais sob o Sol. Zaratustra fala mais uma vez como é perigoso o caminho
daqueles que se propõe a ser a ponte para o super-homem. Por isto, necessita da prudência.
Mas não uma prudência medrosa e sim uma prudência altiva, exuberante, forte e corajosa
para enfrentar os perigos que hão de vir. Outro ponto a se notar é o fato de que a águia é
predadora natural da cobra. Porém, aqui, são companheiras. Talvez porque queiram
também crescer e se fortalecer, vendo nesta união uma força maior do que a relação que
possuíam anteriormente.
1ª Parte
Das três metamorfoses – Neste árduo caminho para tornar-se si mesmo, em busca de,
assim, ser também uma ponte para o super-homem, o espírito passa por três metamorfoses.
Primeiramente, o espírito crítico e forte, ao se deparar e pensar seriamente sobre a moral de
rebanho, sobre o mundo niilista, inicia uma jornada que mais se parece com a de um
camelo. Por sofrer diante de um mundo em decadência, termina por se responsabilizar e,
até mesmo, se culpar diante de tanta podridão. Incumbe-se de carregar, assim, pesados
fardos e, de certa forma, machuca a si mesmo, como que testando sua própria força. Este é
um momento difícil, em que se busca seu próprio deserto, quer-se conhecer melhor a si
mesmo e a seus sentimentos. Em meio a estas reflexões, caso continue seu caminho em
direção a si mesmo, percebe que terá que enfrentar grandes lutas no decorrer deste. É
186
preciso, pois, que seu espírito se torne leão. É preciso saber por que sofre, por que não pode
ser livre, a quem estaria ele preso por algum dever que não se lembra de ter prometido.
O leão é aquele que quer conquistar sua própria liberdade e tornar-se senhor de si e
de seu deserto. Para isto, é preciso que seja independente em relação aos valores já
estabelecidos. O leão precisa ser forte o suficiente para dizer “não” a todo dever moral que
lhe é imposto. Contra a moral, o leão é capaz de opor a sua própria vontade, “eu quero”, diz
o leão, contra toda e qualquer imposição moral que se lhe oponha. O que se opõe à moral é
a vontade, o querer, quando se quer algo proibido moralmente, é a vontade que deve
prevalecer sobre a regra. Não é tarefa fácil. Sem perceber, muitas vezes nos deixamos levar
por valores milenares e que, quando rigorosamente escrutados, não nos falam ao espírito,
ao contrário, muitas vezes seguimos coisas que nos destroem e enfraquecem, ao invés de
nos fortalecer. Muitas vezes o pensamento crítico acerca dos valores que se pratica nos leva
a conclusões que nos colocam diante de grandes decisões. A resposta nestes momentos só
pode ser dada por si mesmo, nunca pode vir de fora, senão se constituiria em outra moral. A
força necessária para seguir seu próprio coração nestes momentos, a despeito de toda
moral, é a força do leão. Somente o espírito de leão é capaz de conquistar o direito de criar
seus próprios valores e de seguir seu próprio caminho rumo a si mesmo.
Mas ainda falta a última transformação: a do leão em criança. Uma vez conquistada
a liberdade frente a moral, trata-se então de criar seus próprios valores. Para que seja
possível este novo começo, livre dos pesados fardos de antes e vencido o dragão da moral,
é preciso o esquecimento dos valores antigos e a criação de novos a partir da total inocência
de uma criança. A criança é sempre a mais sincera, pois é também a mais inocente. É esta
inocência nos atos e nos sentimentos que é preciso resgatar.
Das cátedras da virtude – É muito comum dizer que, quem realiza algo de errado não
dorme bem, pois terá problemas de consciência e ficará pensando neles. A proposta deste
sábio é apenas a de que não se deve fazer nada que seja considerado errado e que, vivendo
assim, buscando pequenas felicidades e rindo das coisas simples se terá uma boa vida.
Trata-se ainda de seguir valores estabelecidos e se sentir bem por ser obediente. Contudo,
esta sabedoria não inclui um sentido e uma direção para os sonhos, “era a sabedoria do
sono sem sonhos”. Zaratustra diz que, caso sua vida não tivesse sentido algum,
187
possivelmente agiria assim. Mas sabemos que Zaratustra é um passo em direção ao super-
homem e, desta forma, seu espírito não está em busca de adormecer.
Dos transmundanos – Neste discurso diz-se que até mesmo os deuses aos quais se deveria
dedicar a vida em nome da salvação eterna são criações humanas. Uma criação humana que
se apresenta como vinda de um além e que nos exige a vida. Este deus é, na verdade, um
fantasma. E Zaratustra, ao pensar sobre isto, faz com que o fantasma desapareça. Este deus
é um valor e Zaratustra cria então outro valor, um valor que seja afirmativo da vida. Este
deus transmundano, que nega a vida e o corpo, que nega a Terra e o homem, é uma criação
de pessoas decadentes, pessoas que sofriam e não tinham explicação para seu sofrer. O
sofrer sem sentido fez com que tais sofredores criassem um deus que fizesse sofrer a todos.
Mas quem criou este deus ainda foram os homens, isto é, seus corpos doentes. Zaratustra
diz que o homem deve valorizar seu próprio corpo como a voz mais honesta e pura, criando
assim o sentido da terra. “Não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas, sim,
trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da Terra!” Os
transmundanos criaram um sentido para a Terra: o além. Trata-se de criar um novo sentido
para esta mesma Terra: o super-homem.
Dos desprezadores do corpo – Logo após criticar os que denigrem este mundo em nome de
outro mundo além, chamando a atenção para o fato de que foram os próprios homens e a
fraqueza de seus corpos que criaram esta ilusão metafísica, Zaratustra faz a critica também
daqueles que desprezam o corpo. O desprezo ao corpo em nome de uma alma está a serviço
das mesmas forças que o desprezo do mundo por um além. Este desprezo ao corpo decorre
justamente da fraqueza deste próprio corpo. Aquilo que se chama alma e sentidos nada
mais são do que instrumentos do corpo. O corpo é uma espécie de grande razão, “uma
multiplicidade com um único sentido”. Todo o resto existe em função desta grande razão
que é o próprio corpo. O corpo possui sua própria razão e seus próprios caminhos que vão
muito além do entendimento humano. O pensamento também é uma função do corpo, serve
a ele e, por vezes, contra ele se volta. Neste caso, a busca por fatores além do corpo
esconde um corpo que “quer morrer e volta às costas à vida”. Os desprezadores do corpo
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são aqueles que não conseguem criar para além de si mesmos. A meta contrária é o super-
homem.
Das alegrias e das paixões – Quando falamos em seguir as paixões e espiritualizá-las, trata-
se de torná-las virtudes. Virtudes não em um sentido moral, pois esta palavra foi usada com
freqüência na história da filosofia para se definir os valores morais aceitos e estabelecidos
como bons, mas em um sentido ético. A virtude é a paixão espiritualizada, é o impulso que
move todo o ser em direção à grandeza. Virtude aqui entendida como aquilo que lhe é
primordial, aquilo que se ama e que se quer acima de tudo. Algo como o motor de sua
própria existência. “Um tempo, tivestes paixões e as dizias más. Agora, porém, restam-te
somente as tuas virtudes: brotaram das tuas paixões. No centro dessas paixões puseste o teu
alvo mais alto: tornaram-se elas, então, as tuas virtudes e alegrias. E, ainda que fosses da
raça dos coléricos ou dos voluptuosos, dos fanáticos ou dos vingativos, todas as tuas
paixões, por fim, tornaram-se virtudes e todos os teus demônios, anjos. Noutro tempo, tinha
cães ferozes no porão da tua casa; no fim, porém, transformaram-se em maviosas aves
cantoras.
O tempo em que se negavam as paixões foi um tempo moral, agora, sabe-se que é
da espiritualização das mesmas que nasce a grandeza. As paixões podem ser destrutivas e
nocivas, são como cães e monstros, como demônios. Mas a prisão em jaulas morais não
eleva o homem, apenas o controla. O caminho da grandeza de um super-homem passa por
esta transformação do animalesco em sublime, da paixão em virtude. Cada um tem a sua
própria virtude e é única. Não se pode compartilhar o que há de específico em si mesmo e é
justamente este impulso único que move um ser específico que é a sua paixão e a sua
virtude única. “Inexprimível e sem nome é o que faz o tormento e a delícia da minha alma,
e que é, também, a fome das minhas entranhas”. Esta é a virtude: tormento e delícia. A
virtude aqui não é algo apenas bom e louvável. É, antes, o impulso vital que nos move a
fazer aquilo que queremos. Algo que pode ser agradável, mas também perturbador. Algo
como, por exemplo, a filosofia foi para Nietzsche. Mesmo quando pensava que morreria,
ou quando as dores lhe eram insuportáveis e o suicídio passava-lhe pela cabeça, a vontade
de pensar o que pensou e escrever o que escreveu, a vontade de quebrar a história da
humanidade ao meio, deu-lhe força para seguir adiante. É verdade que nem todas as
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virtudes são tão fortes assim, mas um bom caminho para fortalecê-las é tê-las em menor
número possível. Uma só, como era o caso de Nietzsche, é o que recomenda Zaratustra
como sendo o melhor, pois as virtudes disputaram entre si o corpo ao qual pertencem e sua
força sempre ficará comprometida, se comparada com o caso onde fossem apenas uma.
Do ler e do escrever – Discurso maravilhoso, porém difícil de escrever sobre ele. “De tudo
o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve
com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito”. Opondo-se a todo tipo de erudição inútil
ou charlatanismo acadêmico, a escrita somente deve ser a máxima expressão do espírito.
Não o escrever por escrever, não o escrever por profissão, mas o escrever por não haver
outra opção. O espírito em letras, isto é sangue. Nietzsche escreveu com sangue não só
porque seus pensamentos o faziam sofrer e temer os lugares aonde chegava, mas
principalmente porque escreveu com o coração. Tais escritos tentam traduzir pensamentos
sublimes e pensar não é tarefa fácil. Nietzsche tenta formular o pensamento que ultrapasse
o niilismo e, assim, quem sabe, consiga atingir aqueles que, como ele, também querem
ultrapassar este momento difícil da história. Mas sabemos que é difícil encontrar aqueles
que entendam ser preciso fazer esta travessia, ainda mais aqueles que estejam dispostos a
fazê-la, ou, pelo menos, tentá-la. “Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos
assim nos quer a sabedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.” O caminho para
as alturas, longe de ser um caminho ascético, é um caminho de guerreiros. É preciso
experimentar a aventura rumo a si mesmo, que é o primeiro passo em direção ao super-
homem. Ao final desse texto, Nietzsche nos dá um exemplo de escrita com sangue, o texto
vai se tornando cada vez mais belo e leve. Escrever com sangue não precisa ser algo
pesado, ao contrário, a altura do espírito se assemelha ao vôo de um pássaro, a sabedoria de
um deus se assemelha a uma dança.
Da árvore no monte – Eis que Zaratustra encontra um jovem. A juventude é a idade onde
começa o desejo por crescimento e liberdade. Entretanto, Zaratustra diz que quanto mais se
almeja e se alcança o alto, mais se desce, ao mesmo tempo, às profundezas e à maldade.
Por que? – Porque se elevar significa, também, se desprender de toda a moral e se guiar
pelos próprios instintos. Porém, com isto, até os maus impulsos querem vir à tona. “Sair
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para a liberdade querem os teus cães ferozes”. A moral não é mais a segurança aceita para
contê-los, mas isto não quer dizer que se está a salvo. Por isto o caminho ético de
autodeterminação é muito perigoso, é preciso conceder a liberdade a todos os instintos e ser
forte o suficiente para a eles não sucumbir. Deflagrar a guerra dos impulsos e crer que o
mais forte e vencedor será um impulso engrandecedor e não algo menor. Aqueles que
sucumbem aos impulsos selvagens tornam-se zombadores, libertinos, apenas destruidores,
“vivem em prazeres de breve duração e já não lançavam meta alguma para além do mesmo
dia”. Há o perigo da vitória dos cães selvagens, mas não se pode mantê-los presos à moral.
Esta é a purificação de que fala Zaratustra, não mais buscar a liberdade tendo que combater
os impulsos contraditórios, mas ter a certeza da força de seu amor e de sua esperança. A
meta, o amor, a virtude, a grande paixão dominante são a esperança. Não uma esperança de
que algo se realizará por si, mas a esperança na grandeza do próprio espírito, a esperança na
força dos impulsos primordiais que se tornarão virtudes, purificando o espírito e tornando-o
verdadeiramente nobre. Outra dificuldade não pequena é que nos momentos mais difíceis
deste caminho, não há a quem recorrer. Quando se decide pela autodeterminação, não há
aquele que possa ajudar com precisão, pois poucos são os que seguem o próprio caminho, e
menos ainda os que não desistem no meio e se tornam inimigos dos novos tentadores. Daí a
necessidade de um mestre. Não só Zaratustra precisava doar, mas sabia da necessidade que
aqueles sedentos de si tinham de alguém em quem pudessem confiar e ganhar mais
segurança.
Dos pregadores da morte – Mais um discurso contra os que negam a vida, seja em nome do
além seja por falta de justificativa metafísica para o sofrimento. Com relação a estes,
Zaratustra diz: “Gostariam de estar mortos; e nós deveríamos, realmente, aprovar-lhes a
vontade!” Os que pregam a morte são também aqueles que pregam a vida eterna.
Da guerra e dos guerreiros – Zaratustra profere este discurso a seus irmãos de guerra. Isto
quer dizer que ele, mesmo que não seja um guerreiro, participa da mesma guerra que seus
companheiros. Neste percurso que estamos aqui descrevendo, chama-se a atenção neste
discurso para a importância da guerra. Da guerra contra a moral e o niilismo, em nome de
um pensamento maior: o super-homem. Nossa dúvida é quando Zaratustra diz que, para o
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guerreiro, o ‘tu deves’ é mais agradável que o ‘eu quero’. Seria o guerreiro um tipo
diferente daquele que passa pelas três transformações do espírito e de quem estamos
falando todo o tempo? É verdade que Zaratustra diz que a ordem a que devem seguir os
guerreiros é o pensamento que está posto deste o prólogo, a saber, que “o homem é algo
que deve ser superado”. Isto certamente faz com que os guerreiros estejam do mesmo lado
que Zaratustra e seus companheiros. Mas seria este tipo guerreiro um companheiro de
Zaratustra tal qual o entendemos até agora? Acredito que não. Mas, então, quem seria? Um
tipo que não seja forte o suficiente para se elevar ao tipo nobre, mas que participa da luta
pela transvaloração? Talvez, para aqueles que não chegam a mandar em si mesmo, ou que
são repletos de ódio e inveja, a melhor opção seja se tornar um guerreiro, isto é, uma peça
fundamental no processo transvalorador, mas que obedece, pois não sabe mandar em si
mesmo.
Do novo ídolo – O Estado é o novo ídolo, pode até mesmo substituir deus como fiador da
segurança do rebanho. Zaratustra critica duramente o Estado, pois o governo, em sua forma
contemporânea, se tornou um entrave a mais para a verdadeira cultura. O Estado é o
contrário de povos. Um povo é uma identificação mútua entre as pessoas diante de
costumes, valores e metas em comum. Por mais que se reconheça algo próximo a isto nos
países de hoje, também pode se reconhecer facilmente que o Estado mente em todos os
países. Nenhum Estado no mundo faz o que diz fazer, todos são demagógicos, todos
almejam apenas o poder, todo usam o povo como um instrumento de seus próprios
interesses pessoais. Tudo no Estado é falso. Aqueles que lutam pelo Estado são supérfluos.
O Estado não é capaz de promover a cultura, apenas de usá-la a seu favor e, com isto, dizer
que está promovendo a cultura. Zaratustra diz com todas as letras, a alavanca do poder é o
dinheiro, e quanto mais ricos se tornam os homens supérfluos do Estado, mais pobres
ficam. Este ponto é importante, pois a riqueza e nobreza a que almejam Nietzsche e
Zaratustra é a de espírito e, muitas vezes, a riqueza material tem por conseqüência uma
perda do espírito. “Na verdade, quem pouco possui, tanto menos pode tornar-se possuído:
louvada seja a pequena pobreza!” O homem nobre não precisa de muito, seu espírito já lhe
dá o que precisa. Em contrapartida, a forte crença no dinheiro é uma crença pobre de
espírito. Chamando, mais uma vez, a atenção para a urgência do tempo como quando
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disse que o solo do homem era ainda rico o suficiente para que possa lançar uma semente
com um anseio (prólogo #5) Zaratustra diz que ainda há espaços na Terra que estão
livres para a solidão das grandes almas. Embora estejam acabando. E termina: “Onde o
Estado cessa olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do super-
homem?”
Das moscas e da feira – Zaratustra compara o mundo hoje com uma feira, uma enorme
algazarra, onde se fala muito e se pensa pouco. Os famosos estão na feira, Zaratustra
aconselha a distância da feira. Quando Zaratustra falou a todos, não foi compreendido,
passou então a procurar por companheiros. Zaratustra tem uma proposta para a
humanidade, superar-se. Mas a massa de rebanho não quer esta proposta, a pequena
felicidade e a mesquinharia são alimentos suficientes para a maioria. A feira é onde se
encontra essa maioria. Para aquele que quer crescer e transvalorar todos os valores, a
solidão é indispensável. É no momento em que se está a só consigo mesmo que se dá a
caminhada. O homem baixo ataca o forte como faz uma mosca venenosa. Pequenas
provocações em nome dos valores estabelecidos, que não são seguidos pelo forte, mas que
são insistentemente cobrados com escárnio, terminam por machucar. Não cabe a aquele que
busca a nobreza de espírito convencer o animal de rebanho da diferença de grau nessas
questões, apenas se sofre mais com isto. Por isto Zaratustra aconselha a solidão para longe
da feira. “Foge, meu amigo, foge para tua solidão e para lá onde sopra um vento rude e
vigoroso. Não nasceste para enxota moscas.”
Da castidade – O impulso sexual é um dos mais fortes que existem. Todos somos ou já
fomos, de uma maneira ou de outra, arrebatados por tal impulso. Para grande maioria das
pessoas “nada de melhor conhecem, na terra, do que dormir com uma mulher”. São desta
natureza também, muitos dos impulsos que tentamos enjaular. Um forte e controverso
impulso é um prato cheio para a moral. O sexo é um dos pontos onde ela se instala de
maneira mais impregnante. O impulso sexual é um impulso controverso e difícil de lidar, é
fácil dele se tornar escravo ou dele querer-se livrar para sempre. A castidade é o impulso
controlador da concupiscência, no sentido de medida. Zaratustra não aconselha que se
reprima o impulso sexual, quer apenas a inocência do mesmo. Quando falávamos dos
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impulsos selvagens e que, a busca por liberdade exigia, não só que fossem conhecidos, mas
também que fossem libertados, mas que a liberdade mesma seria o bem conviver com tudo
isto, falávamos da inocência dos sentimentos. A inocência é uma chave para se viver os
impulsos.
De mil e um fitos – O que define um povo é sua história comum. As pessoas se identificam
umas com as outras e têm orgulho daquilo por que passaram. Assim, criam suas leis. Um
povo é aquele que cria seus valores e suas leis. Os valores são a expressão da superação de
um povo, daquilo que lhe foi mais caro e difícil e, por isto, também é o mais valorizado. Ou
seja, é a vontade de potência que cria os valores. Mas é importante perceber que os valores
de um povo são, necessariamente, diferentes dos de outros povos. É isso que os diferencia,
e os povos têm orgulho desta diferença. Zaratustra deixa claro que “foram os homens a dar
a si mesmos o seu bem e o seu mal.” Todos esses valores dos quais os povos se orgulham,
não são de ordem metafísica. É o homem quem confere sentido às coisas. O homem é
aquele que avalia e avaliar é criar. O povo é uma criação de homens fortes. A existência
terá o sentido que formos capazes de atribuir-lhe. Não existe sentido prévio. É o homem
que avalia e, assim, cria; é ele que cria e, assim, dá sentido, o seu sentido, o sentido de sua
vontade de potência. “Mudança dos valores é mudança dos criadores. Sempre destrói,
aquele que deverá ser um criador.” A transvaloração passa pela destruição dos valores da
decadência e pela afirmação da vida como valor. Zaratustra fala sobre um sentido para toda
a humanidade. A humanidade caminha ainda sem rumo. Zaratustra quer-lhes ensinar o
super-homem. Com isto, Nietzsche pretende criar um valor afirmativo da vida para toda a
humanidade. Mas a humanidade ainda segue seu caminho às cegas. Talvez porque ainda
não exista o que se costuma chamar por humanidade. A idéia de humanidade carece de algo
que a defina para além do conjunto amorfo de seres humanos, é preciso uma meta de
crescimento conjunto, uma grande política em direção ao super-homem.
Do amor ao próximo – Durante muito tempo, a moral do amor ao próximo foi pregada
como mais importante do que o amor a si mesmo. É uma forma de esconder o
descontentamento consigo e com a vida. É preciso saber ficar a sos consigo mesmo e a
gostar de si. Ao invés deste amor ao próximo, onde se escondem inúmeras filosofias da
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negação da vida, Zaratustra aconselha o amor ao distante, ao futuro, ao super-homem. Ser
capaz de se atribuir uma tarefa longa e difícil, isto é a grandeza. Com isto, a “humanidade”
cresce muito mais do que com a compaixão.
Do caminho do criador – Mais um discurso em que ficam claras as intenções dos
ensinamentos de Zaratustra. O caminho para o crescimento que Zaratustra está a falar, o
caminho para uma ultrapassagem do homem, o caminho para super-homem, este é o
caminho para si mesmo. Tornar-se si mesmo: esta máxima pode parecer fácil e nos dar a
entender que nada mudaria caso a assumíssemos como vontade. Mas assim parece apenas a
um olhar superficial e a quem jamais a levou a sério. Tornar-se si mesmo, descobrir qual a
vontade que quer vir à tona e fazer da vida a realização desta vontade. Qual é esta vontade?
Isto também quer dizer, para quê tornar-se livre? É uma vontade em direção ao super-
homem?
Neste caminho, trata-se de fazer da própria vontade uma lei a qual se estará
submetido e a qual se fará todos os esforços para que se realize. Neste caso, somente a
própria pessoa pode ser o juiz desta lei. No começo da caminhada, ainda se tem coragem e
esperanças, mas o caminho para si mesmo nos afasta de todos e de toda moral. O solitário é
desprezado pelo rebanho, mas é preciso que este solitário despreze a si mesmo antes, pois
ele quer que a vontade se realize e, para isto, ele mesmo terá que perecer, em nome de sua
vontade. Mesmo assim, caso consiga brilhar, deve fazê-lo para todos, não só para seus
companheiros. “Mas o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo (...)
Solitário, percorres o caminho no rumo de ti mesmo! E teu caminho passa por ti mesmo e
pelos teus sete demônios!” O caminho em direção a si mesmo é recusado e sequer pensado
porque se separar da moral é algo difícil, uma vez que será preciso determinar a si mesmo
os próprios valores. Isto implica em conhecer os próprios demônios e a grande maioria foge
de seus próprios demônios. É preciso transformá-los em algo criador e grandioso, para
tanto, trata-se de novo de se fortalecer e se aproximar do seu próprio amor, de sua própria e
mais forte vontade. Fazer com que esta vontade se torne virtude e amor e vença todos os
demônios. A atividade criadora é a arma do amor. Esta é uma batalha que se trava sozinho.
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Da virtude dadivosa 1 – Zaratustra despede-se de seu discípulos, dizendo querer caminhar
sozinho. Mais uma vez apresenta-se a necessidade da solidão. O caminho de si é um
caminho solitário. Dedicar a vida a si mesmo é um egoísmo. Mas um egoísmo que tem por
fim a produção de uma virtude dadivosa. Todo este engrandecimento seria de pouco
proveito se não transbordasse para os demais. Zaratustra sente necessidade de descer até os
homens novamente e dar-lhes aquilo que considera de mais valioso. Aquilo que se
consegue tornando-se si mesmo é sua mais alta virtude, é aquilo que se tem de maior valor
e é aquilo que deve ser doado, sem que se fique mais pobre por isto. Neste ponto, a dádiva
é, na verdade, o fim do egoísmo. Não porque a dádiva seja moralmente melhor do que o
egoísmo, mas porque faz parte dos frutos do egoísmo serem desfrutados. Toda fruta
saborosa quer ser saboreada. Caso contrário, seria um desperdício. O caminho do
crescimento é um caminho solitário, mas é preciso doar aquilo que se alcança com esta
solidão. Somente assim se enriquece o mundo. A ética de Zaratustra visa homens que
enriqueçam o mundo. A virtude dadivosa é antagônica a outro pensamento: àquele
pensamento que diz: “Tudo para mim”. Estes, quanto mais conseguem, mais pobres ficam.
Esta moral da ganância e do egoísmo excessivo causa horror a Zaratustra. É um sinal de
degeneração. A virtude é aquela que se apodera de todas as demais e confere um sentido
para a vida de seu possuidor, da qual já falamos outras vezes. “Quando vos anima uma só
vontade, quando essa transformação de todas as necessidades chama-se, para vós, o
indispensável: ali está a origem da vossa virtude”.
Da virtude dadivosa 2 – Zaratustra fala de novo do sentido da Terra, da importância de
conferir um sentido humano para a Terra, um sentido que engrandeça a vida, o corpo, os
instintos. A história da humanidade é, ainda, acaso, mas temos já a capacidade de conferir
um sentido a toda a vida na Terra, e um sentido de grandeza. Trata-se de um caminho
duplo: primeiro, engrandecer a si mesmo, tornar-se grande e de bem com tudo o que se é.
Depois, doar essas virtudes em direção a uma vida mais plena. Os possuidores de uma
virtude dadivosa ainda são os solitários, mas serão um povo. Aqueles homens fortes e
capazes de afirmar sua própria vontade contra toda a moral, os transvaloradores de todos os
valores se tornarão numerosos o suficiente para constituírem algo que possa ser chamado
de povo. Aqui, configura-se uma política. Uma política por uma humanidade, uma política
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para que se possa tirar a Terra deste acaso que ainda a governa. Uma política para formar
homens grandes e, depois, o super-homem. O caminho de Zaratustra e de seus
companheiros em direção a si mesmos é um caminho ético-político. Trata-se de mudar o
rumo do mundo, trata-se de criar algo que possa ser chamado de humanidade, trata-se de
crescer e, com isto, fazer crescer também o mundo à sua volta. “Vós, os solitários de hoje,
os segregados, sereis, algum dia, um povo; de vós elegestes a vós mesmos, deverá nascer
um povo eleito; e, dele – o super-homem”.
Da virtude dadivosa 3 – Neste ponto Zaratustra se despede de seus companheiros e diz-lhes
que sigam sós. Ele, Zaratustra, também quer voltar à solidão. Zaratustra diz que seus
companheiros o acharam, pois não haviam procurado a si mesmos. É preciso pois, que cada
discípulo procure a si mesmo e se descubra nesta busca. Para tanto, Zaratustra não pode
fazer mais do que já fez. Agora é uma parte solitária do caminho. Cabe a cada um pensar no
que aprendeu de Zaratustra e descobrir a si mesmo, caso contrário, os ensinamentos de
Zaratustra podem se tornar uma verdade absoluta, e não é esta a proposta. Ao contrário, ao
seguir a si mesmo é possível que se distancie do próprio mestre. Só após esta busca de si
Zaratustra voltará a encontrar seus discípulos. Mas será em um outro momento, em um
momento onde o número de setas para o super-homem já terá crescido. Será então, a hora
do grande meio dia. Para tanto, é preciso primeiro que cada discípulo de Zaratustra torne-se
si mesmo, assim como fez seu mestre. “Retribui-se mal a um mestre quando se permanece
sempre e somente um discípulo”. Um dia se encontrarão de novo e serão um povo.
Esta primeira parte do livro aponta para ensinamentos iniciais. É uma espécie de
pré-requisito para a doutrina ética que Zaratustra propõe. Zaratustra trouxe alguns para fora
do rebanho, mas estes, sedentos de algo maior do que ser apenas rebanho, precisam ainda
procurar a si mesmos. Nesta primeira parte Zaratustra fala contra os transmundanos, fala da
morte de deus, diz que se deve criar um sentido para a humanidade e que este sentido passa
pela valorização da Terra e do corpo, este é um sentido humano, este é um sentido de
grandeza de espírito, conseguido pela caminhada em direção a si mesmo, é o super-homem.
197
. Parte
O menino com o espelho – Depois de ter se separado de seus amigos, Zaratustra permanece
um tempo só. Mas a segunda parte começa tendo já passado este período. Zaratustra quer
voltar e reencontrar seus amigos. Principalmente porque teve um sonho onde sente que sua
doutrina está sendo desfigurada por seus inimigos. A sua ausência fortaleceu seus inimigos
que certamente criticaram seus ensinamentos. Aqui, é interessante chamar a atenção para o
fato de o próprio Zaratustra chamar seus ensinamentos de doutrina. A palavra aparece em
itálico no texto, é uma palavra forte, mas não é equivocada. Trata-se de uma proposta e
uma tarefa para a vida inteira, em nome de algo a que se quer um dia chamar humanidade,
em busca de um super-homem. Zaratustra decide voltar a seus amigos.
Zaratustra alerta para o perigo que representa sua própria sabedoria e liberdade, elas
são selvagens. Por isto, assustam tanto aos amigos quanto aos inimigos. Já foi dito antes,
que o caminho proposto por Zaratustra não é um caminho fácil. O caminho em direção a si
mesmo é o caminho em direção ao humano, demasiado humano que se tem em si. Há que
ter muita coragem para seguí-lo. Apenas neste caminho é possível se entender porque a
sabedoria é selvagem.
Nas ilhas bem aventuradas – Zaratustra critica mais uma vez a idéia de deus. Mas esta
crítica será um pouco diferente das anteriores. Aqui, deus é colocado como uma suposição,
um pensamento, uma hipótese. É preciso testar o limite desta hipótese. Critica-se o fato de
precisar-se de um deus para se sentir seguro ou feliz. Zaratustra critica o antropomorfismo
que existe na crença em deus e na verdade. Esta atitude significa buscar alento no
inconcebível e obscuro. “Podeis criar um Deus?”, “Podeis pensar um Deus?”. Assim
Zaratustra testa a hipótese. Neste ponto aparece o grande ensinamento: a criação. Ao invés
de deus ser a meta, que a meta seja o super-homem. É preciso que se tornem criadores
todos aqueles que desejam o super-homem. O criador é, antes de tudo, criador de si mesmo.
“Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve.” Se deuses
foram criados para oferecer um sentido para o sofrimento, pode-se criar novos sentidos,
sentidos que engrandeçam a vida.
198
Quem deve guiar o andarilho é a sua própria vontade, pois a vontade é criadora. Se
existe alguma dica para aqueles que percorrem o caminho ético, a dica é que sigam sua
própria vontade, somente ela lhes dará o caminho a si mesmo. A liberdade só é alcançada
depois que se conhece até mesmo seus instintos mais baixos. É, justamente, ao se deparar
com as vontades mais profundas que se percebe porque a sabedoria de Zaratustra é
selvagem.
A criação exige também destruição. Ao criar a si mesmo, o anterior perecerá. É algo
doloroso ser o assassino e a parturiente de si mesmo ao mesmo tempo. A vontade é a
libertadora. É preciso libertar os sentimentos, os afetos, os instintos. A verdadeira vontade
deve ser capaz de quebrar os grilhões da moral, transvalorar os valores e libertar o querer.
Este ensinamento é tão importante que Zaratustra diz: “O querer liberta: é esta a verdadeira
doutrina da vontade e liberdade — e, assim, a vós a ensina Zaratustra”. O deus moral é um
atavismo para a vontade, se há deus não há mais o que criar. Deus, sendo aquele que
determina o que é certo e errado, cria assim uma moral inquestionável e acaba com o
espaço do homem. Caberia a este, apenas se resignar e viver uma vida calcada em valores
exteriores à sua vontade. Mas Zaratustra tornará sempre a dirigir sua vontade criadora aos
homens, chamando a atenção para a necessidade de pensarmos o homem. Somente assim,
poder-se-á superar o niilismo. O homem se assemelha a uma escultura feita em pedra, a
estátua é o que a vontade do escultor quiser. Ora, cada um é o escultor de si mesmo, cada
um é o que a sua própria vontade quiser, só resta tentar ser um bom artesão. O super-
homem também está para ser esculpido em uma pedra, na mais dura e feia de todas elas,
naquilo que chamamos hoje de homem. Ao esculpir a si mesmo, dão-se as primeiras
marteladas na direção do super-homem.
Dos compassivos – A compaixão é um valor cristão que esconde uma insatisfação consigo
mesmo, uma incapacidade de alegrar-se com a vida e uma multiplicação da dor. Ao invés
de se compadecer do sofrimento, o melhor é alegrar-se e minimizar a dor. Se o homem
sempre buscou razões para o sofrimento e, para tanto, criou religiões e justificativas
fantásticas, seu erro foi sempre ter pouco se alegrado com a vida. “E, se aprendermos a
alegrar-nos melhor, será este o melhor modo de desaprendermos a fazer sofrer os outros e a
inventar novos sofrimentos”.
199
Contudo, a história do homem aponta para uma vitória dos fracos e ressentidos,
estes criaram uma cultura decadente cuja forma moderna é o niilismo. Temem o mal e
assim o negam, contudo, pensam mesquinhamente e este é o pior tipo de pensamento. O
mal se apresenta tal como é, mas o pensamento mesquinho esconde-se e tem vergonha de
si, pois se sabe medíocre. O amor deve ser mais do que compaixão, o amor precisa ser
criador e direcionar para o alto. Aquele que ama e é forte também possui uma inclinação
para a compaixão, mas é uma inclinação produzida pelo excesso de força, o que não torna
este afeto menos perigoso.
Outras idéias interessantes são expressas: “Àquele, contudo, que é possuído pelo
demônio, cochicho estas palavras ao ouvido: ‘O melhor é, ainda, fazeres o teu demônio
crescer! Também para ti há um caminho de grandeza!” O demônio ao qual Zaratustra se
refere é a vontade violenta, o demônio é o instinto que, de tão baixo e de tão nocivo, pode
ser chamado por este nome. Mesmo assim, há um caminho de grandeza para ele, é preciso
vivê-lo. É interessante este ponto, pois Zaratustra fala da liberdade aos instintos, da
grandeza e da purificação, mas pode haver casos em que o demônio é a mais forte das
vontades, neste caso, resta apenas deixá-lo crescer, pois até mesmo aí há uma grandeza. A
ética se mostra oposta à moral, pois não há vontades permitidas e vontades proibidas, todas
são permitidas, a ética consiste na grandeza das mesmas sejam elas anjos ou demônios.
Ao falar da ajuda a um amigo, algum amigo desiludido, Zaratustra propõe que os
ajudemos, mas não os deixemos acomodar-se. É preciso que ele levante o mais rápido
possível, para tanto, o ideal é que a ajuda seja como uma cama de campanha.
Outra idéia interessante é que, quando se faz mal a quem se gosta, faz-se mal a si
mesmo. O amigo pode até nos perdoar, mas sempre nos perguntaremos: por que fizemos
aquilo? O grande amor supera a compaixão e o perdão.
Dos sacerdotes – Mais um discurso em que Zaratustra critica a religião, em especial as
religes cristãs. Este trecho é dedicado a pensar os sacerdotes como pastores para o
sofrimento. Uma grande frase deste discurso: “E não souberam amar o seu Deus de outro
modo, senão crucificando o homem!” Uma religião para fazer sofrer, uma religião para dar
um sentido a todo o sofrimento na Terra, mas um sentido supraterreno, para domesticar o
200
homem fazendo com que não pense em seu próprio crescimento. Estas religiões sempre
foram realmente muito cruéis.
Dos virtuosos – Zaratustra já falou de virtude e já se sabe que virtude é o nome da vontade
que domina e vence todas as resistências sendo capaz de conferir um sentido para aquela
existência. Mas este nome, virtude, é um nome controverso, muitos sentidos já teve esta
palavra. Uma boa parte deste discurso tem por objetivo explicitar alguns sentidos negativos
que a palavra virtude já possuiu. Sentidos que diferem diametralmente do sentido que
Zaratustra lhe confere. Muitos ainda por cima pretendem obter recompensas por sua
virtude. Zaratustra deixa claro que castigos e recompensas para as atitudes são ilusões. E
querer ser recompensado por sua virtude é o mesmo que uma mãe querer ser recompensada
por seu filho. Estas são mais algumas ilusões clássicas da religião cristã. A virtude é a
vontade principal, a que comanda, é a própria pessoa, não um envoltório superficial. A
virtude é aquela que cria coisas grandes, não um valor moral a ser seguido.
Da canalha – Existe um tipo de gente que é o mais repugnante possível, capaz de
contaminar até mesmo a água mais pura e sagrada, é a canalha. Muitos se cansam da vida
devido ao excessivo contado com este tipo. Zaratustra chama a atenção para o fato de que o
dominar hoje está contaminado pela canalha. O governar se tornou um regatear e traficar
pelo poder com a canalha. O poder não visa o governar, visa mais e mais poder. Para tanto,
a canalha está sempre presente. Nosso governo de hoje é um governo da canalha. Para
vencê-la, ou melhor, para não lhe ter contato, é preciso subir muito e se tornar tão puro que
a canalha não seja capaz de lhe alcançar, pois é baixa e mesquinha. A única coisa a se fazer
com relação a este tipo é se tornar uma pessoa tão rica, tão abundante e tão grande, que as
artimanhas da canalha já não o atinjam. A política se torna uma guerra de espíritos, pois em
outro caso, se tornará um jogo de barganha com a canalha.
Das tarântulas – Vingança é o que quer dizer esta imagem da tarântula. Zaratustra quer que
o homem seja redimido de toda a vingança, quer que o homem não mais se deixe levar por
este afeto nocivo. A questão da vingança voltará ainda a este livro em um ponto decisivo.
Neste ponto, a vontade de vingança está associada aos pregadores da igualdade. Zaratustra
201
critica radicalmente aqueles que pregam a igualdade como sendo vingativos e rancorosos
em relação àqueles que são fortes. De fato, não há igualdade entre os homens, todos são
diferentes. Uma moral que pregue que todos ajam de forma igual visa conter a força do
forte para que ele não aja, fazendo da impotência uma virtude. A tarântula é a imagem
usada, pois a doutrina da igualdade vem revestida de um pomposo ar de benevolência e
caridade em nome dos sofredores e pobres, mas Zaratustra vê o espírito de vingança contra
os fortes por trás deste valor, este seria o veneno da tarântula.
Dos famosos sábios – Quem é o povo para Zaratustra? Não o povo que um dia poderá ser
criado pelos que desejam o super-homem, mas o povo que Zaratustra critica? – Povo é
aquele que ignora o que é o espírito, são os sem espírito, isto é, a maioria em uma
sociedade decadente, por isto são povo. Como são a grande maioria, é comum acreditar que
seus valores refletem os valores bons por si mesmos. Contudo, em geral, tais valores são
mesquinhos e pequenos, pois refletem a moral do animal de rebanho, que exclui o
diferente. O espírito livre é odiado pelo povo. Os sábios, adorados pelo povo, são apenas
também animais de rebanho em busca de fama, mas não apresentam nada de real valia.
O canto noturno – Zaratustra é um sábio que doa seus ensinamentos e suas virtudes. Porém,
de quem ele conseguiria beber e se saciar? Para estes grandes mestres, não há grandes
mestres que os supram de alguma necessidade. Por isto, quanto mais alto se chega, mais
solitário se permanece. Zaratustra dá amor, mas quem teria tanto amor quanto Zaratustra
para dar-lhe também? Zaratustra vive e sofre de sua própria luz e força.
Do canto de dança – A vida nos parece imperscrutável. Ela pode nos enganar, mas mesmo
assim a amamos. A sabedoria se assemelha em muito à vida. Ambas são selvagens. Por
isto, é preciso sabedoria para viver. É esta proximidade que fica ressaltada neste canto. A
sabedoria deve ser uma sabedoria de vida, caso contrário, de nada vale. Ao fim deste canto,
Zaratustra sente-se triste. Como se perdesse o sentido de sua caminhada.
O canto do túmulo – Um canto sobre a juventude. Zaratustra chama seus momentos de
juventude de olhares e momentos divinos. Na juventude é quando a alma fala com maior
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inocência, depois da criança. Mas a criança, tirando o fato de ser radicalmente criativa,
ainda não possui a autonomia da juventude. Na juventude é quando se decide querer ser
livre ou não. Mas, os momentos de juventude de Zaratustra passaram rápidos, foram
assassinados. Ele permanece rico e invejável, pois, por mais curta que tenha sido sua
juventude, ele permanece como sua conseqüência. E foi uma juventude a que ele chama de
olhares e momentos divinos, ou seja, valeu a pena. Os olhares e momentos divinos, que
eram a esperança juvenil de Zaratustra, era o que ele tinha de melhor, e lhe foi tirado. Por
isto, Zaratustra não cessa de amaldiçoar os assassinos. O que são estes olhares e momentos
divinos de que fala Zaratustra? – Em nossa interpretação, são seus companheiros, os
espíritos bem-aventurados. “Assassinastes as visões e as mais queridas maravilhas da
minha juventude! Tirastes-me os meus companheiros, os espíritos bem-aventurados!” Ora,
o que foi tirado de Zaratustra em sua juventude foram os jovens. A juventude em um
mundo decadente é assassinada, pois é um perigo. A juventude é a idade do risco, da
experiência, da sinceridade consigo mesmo, é um período único e decisivo da vida. Caso os
jovens tivessem coragem e capacidade de arcar com todos os riscos de uma juventude digna
deste nome, a moral estaria sempre em xeque. Para vencer o niilismo é preciso a coragem
de afirmar a si mesmo. Alguém que não afirma a si mesmo quando jovem, dificilmente o
fará quando velho. Por isto, a juventude é o principal alvo dos inimigos de Zaratustra. Na
juventude é que se lança o anelo para além de si mesmo, tarefa para toda a vida. Mas antes
mesmo de se começar o caminho, o jovem é alvejado por todos os lados e impelido a se
tornar, o quanto antes, um adulto a mais no mundo. Tudo aquilo que ele quer, gosta e
acredita é, constante e incessantemente, criticado e desqualificado pela “voz da
experiência”, que o aconselha a desistir de sua juventude, isto é, a desistir de lançar um
anelo para além de si mesmo e do homem. É na juventude que são questionados os valores
vigentes e as morais caquéticas, somente a juventude pode derrubar tamanha hipocrisia. O
jovem possui a inocência que sonha e a força de realização deste sonho, por isto é visto
como perigoso, por isto é sempre mais cedo chamado a se integrar. É neste ponto que o
jovem, se não for forte, é assassinado e impedido de viver sua própria vida. Ao desviar-se
de si mesmo, daquilo que quer, o jovem morre prematuramente. No futuro, o preço desta
covardia ou fraqueza será pago com o cansaço da vida. Aquele que não é si mesmo, ou
cansa-se de viver – uma vez que a vida que vive não é a sua, e sim, a que a moral lhe
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ordenou – ou se torna um rancoroso e vingativo assassino de jovens, por inveja de uma
juventude bem lograda.
Zaratustra, assim como qualquer jovem, só conseguiu permanecer firme em sua
proposta pois possui um ponto invulnerável a ataques de qualquer ordem, já sabemos: a
vontade. Aquele possuidor de uma forte e inquebrantável vontade, aquela vontade a qual
pode-se chamar virtude, que a tudo domina e confere um sentido, apenas o possuidor deste
tipo de vontade é forte o bastante para vencer os inimigos da juventude. Lembremos que
esta vontade não é uma espécie de dom místico ou graça divina, é um trabalho longo e
árduo não só do pensamento quanto do corpo e de todo o resto daquilo que se chama
homem. É preciso criar e cultivar a vontade. Descobrir, pelos afetos, a vontade ou as
vontades predominantes e, a partir daí, trabalhá-las para que se fortaleçam. Este é, também,
o caminho em direção a si mesmo de que tanto falamos, isto é, a capacidade de sentir,
identificar e trabalhar para fortalecer a vontade que se considera como soberana. Este
trabalho começa com toda força na juventude e, por isto mesmo, esta é o alvo preferido
para a cobrança em relação aos valores estabelecidos.
Do superar a si mesmo – Este discurso que se segue ao “Canto do túmulo” vem elucidar a
questão da vontade de potência. Vida é vontade de potência, tudo aquilo que vive, quer
crescer e se tornar mais forte, este é o caminho da vontade, um caminho para a potência.
“Mas, onde quer que eu encontrasse vida, ouvi, também, falar em obediência. Todo vivente
é um obediente. E, em segundo lugar: manda-se naquele que não sabe obedecer a si
mesmo.” A vontade não é uma graça divina, é uma relação de mando e obediência.
Somente a vontade forte é capaz de mandar, pois, para isto, é preciso que domine as demais
vontades, isto é, force-as a obedecer. Há uma relação de luta entre as vontades dentro de
um mesmo organismo. Todas querem tornar-se mais potentes. Aquilo a que se chama
homem é antes a conseqüência do que a causa da vontade. A vontade forte manda e as
vontades fracas obedecem. Virtude é quando uma vontade é forte o bastante para mandar
sempre. Aquele que não consegue trabalhar suas vontades para que se tornem virtudes,
termina por obedecer àqueles que conseguem, pois estes últimos criam os valores.
Zaratustra ainda deixa claro que é mais fácil obedecer do que mandar. Exercer o comando
traz consigo um alto grau de responsabilidade difícil de lidar.
204
Se a vida é vontade de potência, então a vida também quer se tornar cada vez mais
potente. Por isto a vida diz a Zaratustra em segredo que ela é aquilo que deve sempre
superar a si mesmo. A busca por si mesmo é, também, uma busca por superar a si mesmo,
uma busca por se tornar cada vez maior e se superar. Os valores são conseqüências de
vontades fortes. Quando se é forte o suficiente para se afirmar a própria vontade, cria-se os
valores. Mas, se os valores são criados, eles podem também ser destruídos. “Um bem e um
mal que fossem imperecíveis — isso não existe!” Muitas vezes, para se criar um valor, é
preciso destruir outro. O trabalho transvalorador soa como pérfido e imoral devido ao fato
de que contraria todos os valores vigentes. Mas os ensinamentos de Zaratustra se
direcionam justamente para a derrubada dos valores da decadência e para a criação do
super-homem. Caminho que se dá, em ambos os casos, pela afirmação da vontade acima da
moral.
Dos seres sublimes – Zaratustra fala daqueles que buscam o conhecimento. Muitas vezes,
tornam-se sublimes, mas a seriedade com que acreditam em tal conhecimento não os deixa
tornarem-se belos. São rijos. Muitas vezes entendem a vida ainda como uma penitencia e,
nem sempre, amam o que é terrestre. É preciso fazer deste conhecimento algo alegre, como
uma gaia ciência. Aqui, Zaratustra fala da bondade. Daqueles grandes e fortes, que buscam
superar a si mesmos, Zaratustra espera a bondade, justamente porque sabe que são capazes
das piores maldades. Espera que ponham toda esta força em favor de algo bom e alegre,
assim como ele mesmo o fez. Zaratustra saiu em busca de doar aquilo que tinha, saiu em
busca de passar ao homem seus ensinamentos principais. Assim, propõe aos demais
homens grandes que sejam dadivosos, que não se fechem em seus castelos.
Do país da cultura – Este discurso critica radicalmente os homens do presente. Estes não
crêem em nada, mas desta forma não crêem também em uma meta e um sentido para a
cultura. Não possuem anseio e são estéreis. São vaidosos e acreditam ser grandes homens,
mas não passam de repetidores escravos. Mas Zaratustra tem fé em sua caminhada e em seu
anseio. Não é uma fé extramundana onde Zaratustra crê que tudo terá um final feliz porque
deus quer. É uma fé em si mesmo e em seus ensinamentos. Mesmo diante de toda pobreza
de espírito, Zaratustra segue seu caminho carregando seu anseio pela superação do homem.
205
Seu anseio é dirigido claramente para o futuro, para os filhos dos homens do presente. Mas
o há teleologia nesta proposta. Não existe caminho fixo, o super-homem, mesmo que seja
uma meta é, também, uma direção, um sentido a se dirigir, não é um lugar fixo e estático.
Mesmo que o super-homem seja uma meta futura que confira sentido ao presente, esta meta
não é teleológica, pois não é natural ou absoluta, ela depende da vontade. É preciso querer
o super-homem para que ele exista. E, em todo o caso, pode-se escolher o último homem,
como, aliás, parecem fazer os homens do presente. O homem pode se superar, mas tal
superação será uma ação da vontade e não de algo natural no desenvolvimento teleológico
da história.
Do imaculado conhecimento – Zaratustra deixa claro que não existe conhecimento puro
nem apenas contemplativo. Todo o conhecimento está ligado a Terra e aos homens que o
produziram. O que é chamado de conhecimento é uma construção humana que, muitas
vezes, se traveste de conhecimento puro e desinteressado. Isto é uma ilusão. Aqueles que
pregam este tipo de conhecimento são, em verdade, desprezadores da terra e do corpo.
Quando amam a terra, amam com vergonha, pois gostariam de poder creditar todo o
conhecimento a um deus ou a algum outro fundamento metafísico que lhes desse segurança
naquilo que crêem. Mas o fato de que todo conhecimento foi construído pelo homem e não
passa de uma interpretação possível do que se vê os atormenta, pois impede que seu desejo
por um conhecimento puro seja possível. Estes são os estéreis eruditos do país da cultura,
incapazes de lançar uma seta do anseio, pois não têm anseio.
Dos doutos – É o quarto discurso seguido sobre a forma do saber moderno. Dirige-se contra
a idéia de que a sabedoria é igual à erudição e que a erudição é uma espécie de
conhecimento neutro e desinteressado. A doutrina ética de Zaratustra não poderia ser mais
diferente do conhecimento de doutores estéreis. Zaratustra fala da vida, e vive a vida, sua
sabedoria é uma sabedoria da vida e a favor da vida. Ele quer criar para a vida e para que
esta cresça e se supere, pois a vida é aquilo que quer superar a si mesmo, pois é vontade de
potência. Assim, Zaratustra há muito se distanciou dos doutos, pois querem coisas
diferentes e estes últimos não são capazes de compreendê-lo, por isto desdenham. Mas este
desdém é aquela velha característica do rebanho de negar a nobreza.
206
De grandes acontecimentos – Os grandes acontecimentos começam devagar e de forma
imperceptível, são a criação de novos valores. É isto que transforma o mundo.
Do adivinho – Niilismo, é o que anuncia o adivinho. Como já foi visto no prólogo, chegará
o momento em que o homem se cansará de si mesmo e desta pequena felicidade que tem.
Perceberá o quão vazia e mesquinha ela é. Até aqueles que chamamos fortes estarão
fadados a se sentirem cansados. Repetindo o verso do prólogo: “Aproxima-se o tempo em
que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do
mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.” Este é
o último homem. Lembremos que há, ainda, uma disputa de possibilidades. Contra este
último homem, Zaratustra propõe o super-homem. Ainda há tempo, mas o adivinho parece
prever que Zaratustra perderá esta guerra. Depois de ouvir ao adivinho, Zaratustra se
entristece profundamente e permanece por um bom tempo assim. Parece realmente
acreditar nas palavras do adivinho. Depois disto, Zaratustra mergulhou em sono profundo.
Ao acordar, contou um sonho muito estranho e tenebroso. Um de seus discípulos tentou,
imediatamente, decifrar o sonho. Mas Zaratustra pareceu não concordar com a
interpretação. Entendemos que a interpretação do discípulo foi excessivamente otimista, e
pareceu não levar muito a sério a gravidade da situação. Segundo esta interpretação,
Zaratustra seria o grande salvador de todos e já teria conseguido vencer sua batalha contra o
niilismo. Apresentamos outra interpretação, que nos pareceu simplista, mas que, mesmo
assim, faremos, ainda que Zaratustra também a reprove. No sonho, Zaratustra nos pareceu
realmente derrotado, habitante de um castelo fúnebre e sombrio. A vida lhe olhava vencida.
Perdeu-se a guerra, o niilismo venceu a vida, tem-se o último homem. Em meio a toda esta
tristeza, uma espécie de demônio invade o castelo e comemora sua vitória sobre Zaratustra.
O grito de horror que deu o acordou. Este sonho não tem um final feliz. O tempo urge e
estamos cada vez pior.
Da redenção – Zaratustra vê os homens não como homens inteiros e íntegros, mas como
fragmentos de homens e pedaços descontínuos, membros avulsos de homens. Ora faltam-
lhe pedaços importantes, ora possuem apenas uma coisa em demasia. Esta crítica nada mais
207
é do que a crítica à fraqueza da vontade; o homem não é capaz de querer algo com toda sua
força até que a vontade torne-se soberana, não consegue fazer para si um objetivo de
grandeza. Mesmo quando Zaratustra olha para o passado, vê que a história mostra ainda
esses fragmentos de homens apenas. “O presente e o passado na terraah, meus amigos, é
isso, para mim, o mais insuportável; e não saberia viver, se eu não fosse, também, um
vidente daquilo que deve vir”. Mais uma vez fica claro o sentido dos ensinamentos de
Zaratustra, eles apontam para o futuro do homem. O homem fraco e impotente pode ser
redimido em um homem inteiro. Assim, Zaratustra se coloca como aquele que aponta o
sentido da Terra para além dos homens fragmentados e seus membros avulsos, contra o
acaso puro e simples no qual sempre caminhou a humanidade. O homem agora pode se
direcionar rumo a uma meta de crescimento próprio em busca de superar este horrendo
acaso que é ele próprio hoje. Zaratustra vê nestes mesmos fragmentos horrendos do
presente, os fragmentos de um futuro possível. “Eu caminho entre homens como entre
fragmentos do futuro: daquele futuro que eu descortino”. Zaratustra já ensinou que o
caminho para este futuro é a própria vontade do homem, que ele transforme sua vontade em
algo extremamente forte e engrandecedor. A vontade liberta da moral e cria o grande
homem.
Contudo, Zaratustra entende que a própria vontade libertadora se encontra ainda em
cativeiro, impossibilitando o homem de buscar seu crescimento. Tudo o que passou não
pode ser modificado, não pode ser transformado, “foi assim”. A insatisfação da vontade é
que, por mais forte que seja, não é capaz de transformar o que já aconteceu e “foi assim”. A
vontade insatisfeita com o passado termina por odiar este passado e se tornar um espírito de
vingança não somente contra o passado, mas contra toda a vida. A vontade, para se vingar
da vida por esta comportar um passado contra o qual esta vontade é impotente, cria a idéia
de castigo para justificar todo passado ruim. Ao invés de aceitar todo “foi assim”, a vontade
insere no devir a idéia de castigo como justificação para o sofrimento. Onde há sofrimento,
onde a vontade não pode atuar para trás mudando o “foi assim”, é porque a existência
mesma decidiu castigar os viventes e puni-los por viverem. Assim o espírito de vingança
interpreta o tempo. Zaratustra busca a redenção desta loucura da vontade, que nada mais é
do que sua prisão nas cadeias morais criadas pelos fracos por vingança aos fortes. “ ‘Pelo
ângulo moral, acham-se as coisas ordenadas segundo o direito e o castigo. Oh, onde está a
208
nossa redenção do caudal das coisas e do castigo da ‘existência’?’ Assim pregou a loucura.
/ ‘Pode haver redenção, se há um direito eterno? Ah, impossível de rolar-se é a pedra ‘Foi
assim’: eternos devem, também, ser todos os castigos!’ Assim pregou a loucura. / ‘Nenhum
ato pode ser destruído: como poderia ser desfeito pelo castigo! É isto que há de eterno no
castigo da existência: que a existência deve de novo e sempre tornar-se ato de culpa! A não
ser que a vontade, finalmente, se redimisse a si mesma e o querer se tornasse em não
querer’ – mas vós conheceis, meus irmãos, essa cantiga da loucura.”
Fica clara a crítica que é feita contra a moral, principalmente sacerdotal.
Transformar a vida em culpa e a existência em castigo eterno, sempre em nome de uma
vida para além desta própria, até que a vontade, por fim, negue a si mesma, uma vez que é
impotente contra tudo o que passou. A moral sempre ensinou a negação da vontade, pois
sempre foi a arma dos impotentes, sua vingança é tornar a vontade do forte culpada e
impotente. “Definição da moral: Moral – a idiossincrasia dos décadents, com o oculto
desígnio de vingar-se da vida – e com êxito. Dou valor a esta definição.”
490
Mas Zaratustra
busca a redenção e libertação em relação a esta doutrina da vingança. Seu ensinamento da
vontade como libertadora e criadora se opõe radicalmente a este espírito de vingança.
Contudo, permanece a questão da impossibilidade de querer para trás, a vontade não pode
mudar o que passou. Aqui entra mais um passo importantíssimo da ética, é preciso afirmar
todo o passado e tudo aquilo que já foi, é preciso transformar o “foi assim” em um “mas
assim eu quis”. Somente com esta afirmação do passado pode-se afirmar
incondicionalmente toda a existência e redimi-la de toda doutrina moral. A afirmação
incondicional da existência é o sim dionisíaco à vida, mesmo em tudo o que ela possa trazer
de trágico, esta afirmação é uma afirmação da vontade criadora. Apenas a afirmação do
passado como tendo sido querido é capaz de libertar uma vontade que queira se vingar
daquilo que já aconteceu. Esta capacidade de afirmação trágica da vida diante do acaso
passado é um dos pontos fundamentais da doutrina do eterno retorno, que ainda será
apresentada.
A hora mais silenciosa – Este discurso é impressionante. Estamos aqui a falar de vontade,
força, afirmação, potência, acreditar em si mesmo e eis que Zaratustra hesita. Aquilo a que
490
Nietzsche, “Ecce Homo”, Porque sou um destino, 7
209
Zaratustra chama sua hora mais silenciosa é quando ele chega a um ponto onde não sabe
mais obedecer e tem que mandar. Ele teme a responsabilidade. Zaratustra precisa ficar
sozinho, pois agora é chegada a hora de ele se tornar verdadeiramente mestre. Isto foi tudo
aquilo para o que ele direcionou sua própria vida, mas o tamanho e o peso da
responsabilidade o faz hesitar. Zaratustra parece não acreditar mais em si mesmo, parece ter
perdido toda aquela força de que estamos falando sempre que é preciso ter. Chegou a hora
em que os ensinamentos de Zaratustra começam a ser seguidos e que ele terá que arcar com
as conseqüências destes ensinamentos. É o silêncio que diz isto a ele. Zaratustra,
inicialmente, foge à responsabilidade. Por isto, se retira para um momento de decisão
radical. Este discurso mostra que, mesmo que sigamos nosso próprio caminho, daí a se
tornar um mestre existe uma diferença enorme, pois enorme é a responsabilidade daquele
que quer ser uma ponte para o super-homem. Este discurso se segue à primeira aparição
ainda velada do eterno retorno, tendo apenas um discurso entre eles. Zaratustra hesita
diante da responsabilidade e do peso que o pensamento do eterno retorno traz consigo. Ele
ainda não é capaz de afirmar este pensamento, apesar de já o saber. Assim termina a
segunda parte.
. Parte
O viandante – Decidido a partir mais uma vez para a solidão, em direção a seu mais alto
cume, Zaratustra segue seu caminho em direção a outras terras. São esses caminhos que
constituem a experiência de Zaratustra, pois “só se vive a experiência de si mesmo.”
Zaratustra amadurece e se, antes, o caminho para o alto levava também para baixo, em um
momento adiante ambas as coisas se unem purificadas. “Cume e abismo — resolveram-se
numa única coisa!” Zaratustra percorre o caminho de sua própria grandeza que é o caminho
de suas próprias experiências, é impossível que outro caminho seja igual ao dele, é
impossível também seguí-lo. Experiência que dizer que cada um faz apenas o caminho de si
mesmo. Que este caminho seja um caminho da grandeza é a proposta de Zaratustra. Neste
ponto de máxima solidão, Zaratustra precisa aprender a crescer a partir de si mesmo, a
superar a si mesmo, pois como seguiste o caminho de sua própria experiência até o máximo
210
da força de sua vontade, Zaratustra se encontra na maior solidão possível. É aí que terá que
chegar ao seu mais alto cume e vencer seu maior desafio.
Da visão e do enigma 1 – Certamente um dos maiores perigos, senão o maior, que
Zaratustra enfrentou foi o encontro com um anão, que representa o espírito de gravidade.
Um diabo que a tudo degrada, a tudo denigre e puxa para baixo, um ser que nada valoriza e
que desqualifica qualquer esforço humano por elevação, um espírito pesado que busca
sempre diminuir o homem. Enquanto Zaratustra subia um monte, possivelmente este mais
alto cume para o qual buscou novamente sua solidão, um anão, montado em suas costas,
desqualificava sua jornada. Lembremos aqui que a alegoria das montanhas é uma imagem
que tenta demonstrar a elevação do espírito na busca por si mesmo. Uma busca árdua.
Durante um desses caminhos, Zaratustra se depara com este espírito de gravidade que
desqualifica seu esforço dizendo-lhe que, por mais que se eleve, Zaratustra cairá, será
esquecido ou duramente criticado, apedrejado, humilhado. O anão repete as advertências
que se faz a todos que fogem à moral de rebanho. Os ensinamentos de Zaratustra, ao propor
que cada um busque a si mesmo, levam seus discípulos a caminhos tortuosos e difíceis de
se ultrapassar. É muito comum o medo diante da autodeterminação. De fato, é sempre
muito mais fácil permanecer sempre fazendo aquilo que todos fazem e seguir sempre a
moral vigente. Ao seguir o caminho do rebanho, nunca se está a sós e sempre se tem a
sensação de segurança causada pelo gregarismo. — ‘Ora, se todos fazem algo, tal coisa não
pode ser ruim’. Assim pensa o rebanho, e segue seu caminho entendendo a vida como
mimese de outras vidas também miméticas. No fundo, renuncia-se a viver, por comodidade,
por gregarismo, por instinto de rebanho, por medo. O medo de seguir a si mesmo é o medo
de se ver fazendo coisas diferentes da grande maioria. É o medo de possuir valores que não
são compartilhados pelo rebanho. É o medo de sofrer as sanções que o rebanho impõe ao
desviante. O rebanho não costuma perdoar o diferente, pois este levanta suspeita sobre
aquilo que o rebanho faz, pelo simples fato de mostrar que outra forma de vida é possível.
O rebanho quer que sua forma de vida seja entendida não só como a melhor, mas como a
única possível. Somente assim, consegue se sentir um pouco mais seguro. Este é o
comportamento que instaura a moral. A moral são os valores do rebanho e este fará de tudo
para que todos sejam rebanho. O desviante, o diferente é excluído.
211
É preciso muita coragem para vencer a moral do rebanho e tornar-se si mesmo, pois
no rebanho tem-se a sensação de segurança. Por isto, acreditamos que o anão representa
aqui, o medo. É o medo que o anão tenta incutir a Zaratustra. O caminho de Zaratustra é
único e o anão tenta desencorajá-lo. Zaratustra resolve enfrentar o anão, enfrentar o medo.
Manda-lhe que desça de suas costas e diz: “Anão! Ou tu ou eu! — É que a coragem é o
melhor matador”. É preciso coragem para enfrentar o medo. Enfrentar o medo significa
tentar encontrar em si mesmo seu próprio caminho e questionar-se sobre a diferença entre a
moral do rebanho e seus próprios valores. Quando Zaratustra diz ao anão que ou um ou
outro deve prevalecer, ele quer dizer que, ou ele, Zaratustra, segue seu caminho vencendo o
medo, ou abrirá mão de si mesmo por medo de criar seus próprios valores, neste caso, o
espírito de gravidade vencerá. Uma das grandes causas do niilismo é o fato de que grande
parte daqueles que se colocam a questão sobre si mesmo descobrem aquilo de que gostam e
querem fazer, mas não têm a coragem de seguir em frente e afirmar a própria vontade,
preferindo a suposta garantia de um lugar seguro dentro da moral estabelecida. A vida não
perdoa tal covardia e o sofrimento encontrado pela negação de si mesmo é, muitas vezes,
maior do que o sofrimento que se encontre pelo caminho. A coragem deve ser capaz de
enfrentar até mesmo a morte, pois sendo a morte parte da vida, ela deve ser também
afirmada.
Da visão e do enigma 2 – Sendo o anão uma imagem para o medo e para o espírito de
gravidade, Zaratustra apresenta-lhe um pensamento que o mata, o eterno retorno. Existe um
pensamento capaz de superar todo o medo de viver. Se o tempo nunca começou nem nunca
terminará, se o tempo sempre existiu e sempre continuará existindo, não seria possível
afirmar que tudo aquilo que já aconteceu e que ainda vai acontecer, em verdade, já
aconteceu infinitas vezes? Se entendermos o tempo como eternidade nestes termos, então
pode-se dizer que tudo que poderia acontecer já aconteceu e acontecerá de novo. Em um
tempo infinito é possível que todas as coisas possíveis de acontecer aconteçam. Porém,
tanto o passado quanto o futuro constituem-se em eternidades. Olhando para trás, tem-se
uma eternidade onde tudo o que poderia ter acontecido certamente aconteceu. Contudo,
olhando-se para frente, tem-se um futuro também infinito, onde tudo o que pode acontecer
acontecerá novamente.
212
Este pensamento traz consigo a afirmação incondicional da vida. Imagine que sua
vida se repetirá, tal qual foi até agora, tal como está sendo e tal como ainda será, por um
número infinito de vezes. Seremos capazes de querer nossas vidas um número infinito de
vezes? Seremos capazes de afirmar nossa própria vida? Ora, se amamos a vida, por que não
a querer de novo? Este pensamento, que Zaratustra lança contra o anão, é a grande doutrina
de afirmação da vida, pois só uma vida afirmada pode ser desejada ainda infinitas vezes.
Mas, quem é forte o bastante para tanto? Mais do que isto, se a vida retornará por um
número infinito de vezes, então é preciso que se viva de uma tal maneira que se queira
viver infinitas vezes. É preciso viver, a cada momento, a cada instante, de forma tal que se
queira seu eterno retorno. Assim, este pensamento faz com que se afirme a própria vontade
sempre e a cada instante, pois a vida retornará e, com ela, tudo aquilo que já foi e será. Esta
parte da doutrina do eterno retorno se combina com a parte descrita no discurso “Da
redenção”, pois para se afirmar de forma incondicional a vida, querendo seu eterno retorno,
é preciso vencer o espírito de vingança. A afirmação de tudo aquilo que já foi, transforma
todo o “foi assim” em um “assim eu o quis”. Com este pensamento se vence o medo, pois
afirmar a vida significa afirmar a si mesmo e a própria vontade. Afirmar o eterno retorno
significa afirmar a vida com tudo o que ela tem. Depois de ouvir este pensamento, o anão
desaparece. Aquele que afirma querer viver infinitas vezes a mesma vida é porque não a
teme. Querer o eterno retorno é uma prova de coragem e adesão à vida, contra todo o medo
de ser quem se é.
Depois disto, Zaratustra encontra um pastor com uma enorme cobra agarrada dentro
de sua garganta. Zaratustra tenta tirá-la com as mãos, mas não consegue. Então,
repentinamente, ele grita para que o pastor morda-a. O pastor a morde e se salva. Então
começa a rir como nenhum homem jamais riu. Zaratustra se pergunta pelo significado de
tal visão, pergunta-se por quem seria aquele pastor. O próprio Zaratustra responderá a esta
questão mais adiante, mas interpretamos que a cobra é uma imagem que significa o
niilismo, que está entalado na garganta do homem, sufocando-o. A única forma de vencê-lo
é mordendo-lhe a cabeça. É preciso que cada um morda a cabeça da cobra de seu próprio
niilismo. Ninguém pode ajudá-lo, assim como Zaratustra não conseguiu ajudar ao pastor. O
eterno retorno pode ser entendido como a doutrina que nos ensina a morder e a arrancar a
cobra de nossas gargantas.
213
Da bem-aventurança a contra gosto – Zaratustra ainda não tem coragem para seu
pensamento mais abissal. É um pensamento muito forte e pesado, para o qual ele ainda não
está preparado. O eterno retorno é uma experiência de si mesmo. Zaratustra ainda não quer
alegrar-se, pois não está à altura de sua doutrina, precisa sofrê-la com toda intensidade. Mas
este momento ainda não chega. A alegria que sente é como que uma bem-aventurança a
contra gosto.
Antes que o sol desponte – Zaratustra e o céu dizem sim e amém a tudo, ilimitadamente.
Da virtude amesquinhadora 2 – Um ótimo discurso onde Zaratustra torna a falar da pequena
felicidade, uma felicidade mesquinha, medíocre. Zaratustra diz que, por mais que o povo
fale dele e de sua doutrina, não pensa sobre o que Zaratustra diz. Falta coragem para pensar
sobre Zaratustra, pois este seduz a ovelha para longe do rebanho. Aos olhos do animal de
rebanho, Zaratustra representa perigo, pois segue a si mesmo.
Para Zaratustra, o que torna o homem tão pequeno é a sua própria doutrina da
felicidade e da virtude. Trata-se de uma crítica aos valores modernos, onde a pequena
felicidade é aquela que quer o bem estar acima de tudo, é aquela que busca neste bem estar,
a segurança, e faz isto por medo, medo da vida. “Ingenuamente, querem acima de tudo, no
fundo apenas uma coisa: que ninguém lhes faça mal. (...) Isto, porém, é covardia – muito
embora se chame ‘virtude’”. Esta moral da pequena felicidade direciona o homem para que
não busque fazer algo grande de si mesmo, pois no fundo o que ela esconde é a
incapacidade para a grandeza. Esta forma de pensar transforma o homem em um animal
doméstico. O ensina a se resignar diante do fracasso de sua vida, pois pensa que isto é a
vida. Mas, na verdade, não teve coragem de vivê-la. “Isto, porém, é mediocridademuito
embora se chame de moderação”.
Da virtude amesquinhadora 3 – A moral da mediocridade e do bem estar é, também, a
moral da pequena felicidade, dos pequenos prazeres e vícios e da resignação. Diante do
medo em relação a si mesmo, o que há é uma resignação covarde de aceitação de si na
pequenez do rebanho, pois todos são iguais, não há porque objetar algo contra si. Contra a
214
resignação, tem-se a vontade. “E são meus pares todos aqueles que se dão a si mesmos a
sua vontade e repelem de si toda resignação.” A vontade é forte e afirmadora, afirma a si
mesma e cria; a resignação aceita um estado medíocre de não afirmação da vontade em
troca de segurança e bem estar, esta é sua pequena felicidade. A vontade é capaz de afirmar
até mesmo o acaso. O acaso afirmado torna-se vontade e afirmação da vida.
Do passar além – Zaratustra passa à porta de uma grande cidade e encontra com um louco
espumando de raiva. Este louco é alguém que sabe um pouco dos ensinamentos de
Zaratustra e lhe diz uma série de coisas horríveis sobre aquela grande cidade, antes que este
entre nela. Dentre outras coisas, o louco fala como que aquela grande cidade mais parece
um lodaçal, pois não há mais espírito, tudo se tornou jogo de palavras e opinião pública.
Fala também que é uma cidade de merceeiros e mercadores, onde o maior valor é o
dinheiro e o ouro. Mas o louco fala com muita raiva e ódio de tudo. Por isto Zaratustra o
interrompe e o questiona sobre o por quê de ele, louco, ainda estar vivendo naquela grande
cidade. “Por que moraste tanto tempo no pântano, a ponto de tornar-te, tu mesmo, rã e
sapo?” O louco pode até ter razão em suas críticas, mas o fato de permanecer muito tempo
tão próximo daquilo que tanto odeia fez com que odiasse a vida e se tornasse aparentado de
tudo o que maldissesse. Ele mesmo se transformou em algo tão odioso quanto aquela
cidade, e não porque fosse louco, mas sim porque agia com ódio. Zaratustra ensina que
“Somente do amor deve alçar vôo o meu desprezo e o meu passaro acautelador; não de um
pântano!” O louco se transformou em um pântano tal qual a cidade e a ela maldizia com
raiva e ódio. Por pior que seja a situação, não só na cidade, mas no mundo, o amor deve
prevalecer. Este é o cerne da questão, o amor. Se existe uma proposta de transformação e
transvaloração, esta proposta tem que ser seguida por amor. Primeiramente, amor a si
mesmo, devido à própria afirmação da vontade. E, para aqueles que forem verdadeiramente
capazes, pois Nietzsche duvida deste discurso muitas vezes retórico, amor pelo homem e
pela grandeza que poderia atingir. Mesmo criticando o louco, Zaratustra passa além da
grande cidade e não entra. Nesta, por sua vez, nada pode melhorar nem piorar, mas chegará
o dia em que arderá em chamas. Entendemos este arder em chamas como significando que
chegará o dia em que a vida em nossa “grande civilização desenvolvida” terá se tornado
impraticável. Será o grande meio dia.
215
Dos renegados 1 – Fala-se mais um pouco sobre a covardia. Neste caso, da covardia dos
jovens. Aqueles que, em um momento quiseram seguir a si mesmos, mas rapidamente se
cansaram e se acomodaram. Estes são a maioria, diz Zaratustra. “– Ah, são sempre apenas
poucos, aqueles cujo coração guarda longamente a coragem e o entusiasmo; nesses,
também o espírito se conserva paciente. O resto, porém, é covarde! –” retoma-se a temática
da coragem. É preciso coragem para tornar-se si mesmo. Engana-se aquele que pensa que a
afirmação da própria vontade é apenas realizar seus pequenos desejos. Talvez seja isto para
os pequenos, mas para os possuidores de uma virtude tal qual a definimos anteriormente, a
afirmação da vontade consiste em um árduo trabalho de criação de si mesmo. A maioria
teme as conseqüências de se tornar si mesmo, por isto prefere a cômoda situação de seguir
o rebanho da moral vigente e, sempre que puder, desmerecerá filosofias como esta.
Nota – Em toda a terceira parte até aqui, em diversos discursos, Zaratustra se mostra um
pouco triste, ou um pouco brando, ou menos eloqüente e fervoroso do que em outros
momentos. Isto aconteceu desde que hesitou diante da sua responsabilidade, no último
discurso da segunda parte. Esta terceira parte mostra Zaratustra em busca de sua grande
solidão, onde possa ainda aprender sobre este momento que vive. Zaratustra está triste, mas
não foge de sua tristeza, ao contrário, a deseja como mais uma etapa necessária até que se
torne mestre. Estes últimos discursos depois “Da visão e do enigma” apontam fortemente
para a crítica dos valores mesquinhos modernos e para a crítica da covardia diante de si
mesmo.
O regresso – Eis então que Zaratustra chega de volta a sua caverna. Este discurso é um
longo elogio da solidão. A solidão é diferente do abandono. Zaratustra, por diversas vezes
se sentiu abandonado, mesmo que estivesse cercado de seguidores. Em verdade, Zaratustra
diz neste discurso o quanto que os homens lhe parecem superficiais. Falam muito, mas não
escutam. Não pretendem aprender algo realmente valioso da vida, seguem-na buscando ser
poupados. Zaratustra sofreu muito durante sua estadia perto dos homens. O seu maior
perigo sempre foi sentir pena desta pequenez humana e sempre tentou ajudá-los, mesmo
quando isto o enfraquecia. Mas, chegou um momento em que não pôde mais agüentar, e
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voltou para sua caverna. Os homens ainda não têm ouvidos para seus ensinamentos: ou o
tomam por superficial ou por um ídolo. Mas, mesmo neste segundo caso, são incapazes de
entender o que Zaratustra lhes diz. Isto porque não conhecem a solidão. É na solidão onde o
processo de tornar-se si mesmo ocorre. Este processo, por mais que necessite da vida
cotidiana para se desenvolver, só pode ser minimamente posto em prática se a solidão for a
marca mais radical daquele que o tenta. É na solidão, quando se estás a só consigo mesmo,
que é mais difícil mentir. Os pensamentos arrebatam e vão a fundo nas questões que nos
são mais sérias. As conclusões do pensamento são sempre imprevisíveis. Não são poucas as
vezes que nos contradizemos ante aquilo que queremos de fato e aquilo que dizemos
querer, isto é, aquilo que gostaríamos de querer. O pensamento é, também, vontade. Ao
pensar a fundo, encontra-se a vontade oculta no coração. É, na verdade, a própria vontade
que atrai o pensamento para si mesma, mostrando o que ela quer. Cabe ao pensante, ter
coragem de afirmá-la e tornar-se si mesmo desta forma. Caso contrário, segue-se outros
pensamentos que, no fundo, apenas encobrem nossa impotência em seguir a si mesmo
disfarçada de virtude. Nestes casos, não é a força que rege o pensamento e a vontade
dominantes, é a fraqueza. A vontade fraca separa, por medo e covardia, a vontade forte
daquilo que ela pode. A vontade não mais se afirma na pessoa covarde que, também agora,
não é mais um pensante, pois seu pensamento se desligou daquilo que ele pode, por medo
das conseqüências. A solidão atua contra a covardia. É muito difícil ser hipócrita consigo
mesmo (hipócrita significa: quando se criam subterfúgios racionais para se negar a
verdadeira vontade que pulsa); mas mais difícil ainda é ser hipócrita consigo mesmo e
permanecer pensando tais questões que o incomodam. Não sabemos se isto é possível.
Sabemos apenas que a grande maioria do tipo covarde e fraco pára de pensar na mesma
hora em que sua vontade lhe mostra o quão assustadora ela é. A partir dai, cria-se uma
desculpa e não se volta mais a tocar no assunto. Foge-se, então, de toda a solidão, pois ela
sempre irá lembrá-lo de sua covardia.
Do espírito de gravidade – Contra o espírito que tudo puxa para baixo, Zaratustra apresenta
sua sabedoria das alturas. A sabedoria de Zaratustra ensina, por fim, a voar. A maior altura
da vontade atinge cumes e alpes, atinge até mesmo o céu. Torna-se leve. O caminho
significa descobrir a si mesmo. “O homem é difícil de descobrir e, mais difícil que tudo,
217
descobrir-se ele a si mesmo; muitas vezes mente o espírito a respeito da alma. Assim obra o
espírito de gravidade. / Descobriu-se a si mesmo, porém, o homem que diz: ‘Este é o meu
bem e mal.’ Destarte, fez calar a toupeira e anão que diz: ‘Bem e mal para todos.’” Está
mais do que claro o que significa seguir a si mesmo e a sua própria vontade, significa, com
isto, criar seus próprios valores e, conseqüentemente, sua própria grandeza. “Experimentar
e interrogar, consistiu nisso todo o meu caminhar”
Das velhas e novas tábuas – Zaratustra quebra as tábuas de valores antigos e propõe novos.
Segue aqui apenas um breve resumo de alguns deles:
2) A moral sempre estipulou o que era o bem e o mal, mas a moral sempre precisou
falsificar para fazer valer seus valores. Por isto, Zaratustra diz que “o que é bem e mal, isso
ninguém ainda sabe – a não ser o criador! / – Mas é tal quem cria um fito para o homem e
dá a Terra o seu sentido e o seu futuro: somente ele faz com que algo seja bem e mal.” É
preciso criar o seu bem e o seu mal, isto é, seus próprios valores.
4) “O homem é algo que deve ser superado. / Muitos caminhos há e modos de superá-lo: a
escolha cabe a ti!”
9) A favor do acaso, contra a necessidade. “Outrora, acreditava-se em adivinhos e
astrólogos; e, por iss, acreditava-se: ‘Tudo é destino: deves, porque é inevitável! / Depois,
voltou a descrer-se de todos os adivinhos e astrólogos; e, por isso, acreditou-se: ‘Tudo é
liberdade: podes, porque queres!”
12) “Ó meus irmãos, eu vos consagro e indico uma nobreza: devereis tornar-vos criadores,
os cultivadores e os semeadores do futuro – / – não, na verdade, uma nobreza que poderíeis
comprar como fazem os merceeiros e com o ouro dos merceeiros: pois tem pouco valor
tudo o que tem preço.
16) “O querer liberta, pois querer é criar: assim ensino eu. E somente a criar deveis
aprender!”
23) “E reputemos perdido o dia em que não se dançou nem uma vez! E digamos falsa toda
a verdade que não teve, a acompanhá-la, nem uma risada”
25) Ao destruir valores antigos, abre-se o caminho para a criação de novos, são como novas
fontes, pois abarcam vontades antes proibidas. Em torno destas novas fontes e valores
reúne-se um povo. São experimentadores. “O terremoto revela novas fontes. Ao ruir de
218
velhos povos, irrompem novas fontes. / E aquele que ali gritar: ‘Eis uma fonte para muitas
sedes, um coração para muitos anseios, uma vontade para muitas ferramentas’ – em torno
dele reunir-se-á um povo – ou seja, muitos experimentadores. / Quem pode comandar e
quem pode obedecer – é isso o que ali se experimenta! E com que longas buscas e acertos e
malogros e estudos e novas tentativas! / A sociedade humana: é uma tentativa, assim eu
ensino – uma longa procura; mas ela procura aquele que comanda! – / – uma tentativa,
meus irmãos! E não um ‘contrato’! Parti, parti tal palavra dos corações sem fibra e dos
homens tíbios!”
26) “Os bons têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude! Esta é a verdade!”
“O criador é quem eles mais odeiam: aquele que parte tábuas e velhos valores, o
destroçador – e chamam-lhe criminoso.”
O convalescente 1 – Um dia Zaratustra acorda aos berros em sua caverna como se tivesse
tido um pesadelo. Então, profere um discurso onde clama por seu pensamento mais
abismal, que acreditamos ser o eterno retorno. Mas, quando este pensamento chega,
Zaratustra tem um ataque de nojo e cai desmaiado. Lembremos que Zaratustra já havia
recusado chamar a este pensamento, ele o trazia consigo, mas ainda não o afirmara, pela
primeira vez ele chama o eterno retorno, pede por ele, sente-se preparado para tornar-se
mestre do grande círculo, mas sofre de algo que, talvez, fosse o que lhe impedisse de tê-lo
afirmado antes.
O convalescente 2 – Os animais de Zaratustra tentam reanimá-lo com algumas palavras e
ele se alegra com a tagarelice que lhe dizem. Mas, aqui, Zaratustra retoma aquela visão da
cobra que morde o pastor. Deixa claro que a cobra que vira mordendo o pastor mordera a
ele Zaratustra na garganta e que ele a cuspiu longe. Aqui Zaratustra diz com todas as letras
que a cobra significa o cansaço que Zaratustra sente diante da pequenez humana. “O grande
fastio que sinto do homem – isto penetrara em minha goela e me sufocava; e aquilo que
proclamava o adivinho: ‘Tudo é igual, nada vale a pena, o saber nos sufoca’”. Em “Da
visão e do enigma” esta cobra aparece logo depois que Zaratustra afirma o eterno retorno,
quando faz sumir o anão. Aqui Zaratustra elucida esta visão depois que se sente forte para
chamar pelo eterno retorno. Ao afirmar o eterno retorno de todas as coisas, Zaratustra é
219
forçado a afirmar também o eterno retorno do homem pequeno e mesquinho. É isto que lhe
causa tanto nojo, a ponto de quase morrer. “‘Eternamente retorna o homem de que estás
cansado, o pequeno homem’ – assim bocejava a minha tristeza, arrastando da perna e sem
poder adormecer”. “—‘Ah, eternamente retorna o homem! Eternamente retorna o pequeno
homem!” “Demasiado pequeno o maior! – era este o fastio que eu sentia do homem. E
eterno retorno também do menor! – era este o fastio que eu sentia de toda a existência!”
Somente depois de afirmar também o eterno retorno do pequeno homem, Zaratustra se
torna mestre do eterno retorno. Para agüentar tal afirmação trágica, os animais de Zaratustra
o aconselham a aprender a cantar. É interessante a transfiguração da dor em canto, pois a
tendência inicial da alma de Zaratustra é a de chorar. Sua vontade quer elevar o homem à
sua máxima potência, mas diante do eterno retorno do homem medíocre e mesquinho ele
prefere cantar a chorar, isto é, transfigurar a dor em beleza.
Nota 1: Existe um debate que uma contradição entre o pensamento do eterno retorno e o
do super-homem. Pois o super-homem precisa dizer não e desprezar aquilo que ama, a
saber, os homens, para buscar sua elevação máxima. O super-homem despreza a
mediocridade e seleciona a grandeza. Em contrapartida, o eterno retorno significaria a
afirmação incondicional de toda a existência, incluindo aí, o homem medíocre. Como o
super-homem poderia afirmar o eterno retorno se nega a mediocridade? – A este falso
problema, o próprio Nietzsche nos responde com seu conceito de dionisíaco. EmEcce
homo”, após citar um trecho de “Das velhas e novas tábuas, III”, Nietzsche escreve:
Mas esta é a idéia mesma do Dionísio – Outra consideração conduz igualmente a
ela. O problema psicológico no tipo Zaratustra consiste em como aquele que em grau
inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode no entanto ser o
oposto de um espírito de negação; como o espírito portador do mais pesado destino,
de uma fatalidade de tarefa, pode no entanto ser o mais além e mais leve – Zaratustra
é um dançarino –: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade,
que pensou o ‘mais abismal pensamento’, não encontra nisso entretanto objeção
alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais para ser ele
mesmo o eterno Sim a todas as coisas, ‘o imenso ilimitado Sim e Amém’ ... ‘ A todos
220
os abismos levo a benção do meu Sim’... Mas esta é a idéia do Dionísio mais um
vez.
491
Nota 2: A terceira parte termina então com três cantos em louvor à vida. Assim deve-se
superar o nojo, amando a vida e a sabedoria que ensina a viver. Esta sabedoria é a do canto
e da dança, da leveza e da beleza. Assim, Zaratustra supera sua tristeza e seu nojo, estando
pronto para a última parte, o seu maior perigo.
. e última parte
O sacrifício do mel – Zaratustra ainda aguarda o dia em que o homem se elevará à sua
altura. Mas não está descontente ou impaciente. Ele tem certeza que chegará o dia em que
um outro mundo será vivido. O mundo e o homem são muito ricos de coisas singulares. Em
breve, todas estas singularidades e outras tantas terão livre curso para florescer. Disto,
Zaratustra tem certeza.
Zaratustra se apresenta como um pescador de homens, jogando o mel de sua
sabedoria e fisgando homens para trazê-los à sua altura. A filosofia se torna política quando
a ética se torna uma espécie de alegria, o prazer do crescimento que é capaz de fisgar
alguns para fora do rebanho... O que se deve opor ao mundo de uma cultura decadente é a
alegria de uma vida plena, a força e a grandeza de uma vontade bem lograda. Isto seduz e
muda o curso das coisas. Zaratustra joga a isca de sua ética, para fisgar homens como
peixes, certo de que outro tempo virá. “ – a minha própria felicidade arrojo a todas as
distâncias e direções, entre a aurora, o meio-dia e o pôr-do-sol, para ver se muitos peixes
humanos não aprendem finalmente a dar puxões e sacudidas, presos na minha felicidade–”
O grito de socorro – Em sua caverna, Zaratustra volta a encontrar o adivinho. Aquele
mesmo que proferiu a previsão de um niilismo onde nada mais valia a pena. O adivinho do
cansaço da vida. Este diz a Zaratustra que veio lhe induzir ao seu último pecado. O último
pecado de Zaratustra é a compaixão pelos homens superiores. A miséria e a angústia
crescem com a mediocridade da cultura. Zaratustra ama os homens e quer lhes ensinar algo
491
Nietzsche, Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, 6.
221
maior, mas ao vê-los tão pequenos e descrentes de si mesmos com o fim dos velhos valores
e com a fraqueza dos valores modernos, Zaratustra corre o risco de ver seu amor
transformado em compaixão. Esta seria sua miséria, por isto, é seu último grande desafio:
não sentir pena diante da infelicidade que o homem sente com a mesquinharia de seus
valores. Zaratustra ouve gritos de socorro nos arredores de sua caverna e parte para ajudar
aqueles que pedem ajuda.
Nota: Zaratustra sai à procura dos grandes homens que gritam por socorro, mas encontra
apenas caricaturas destes. Encontra homens que já buscaram a grandeza, porém, são
decadentes, estão à beira do niilismo, não acreditam mais em suas próprias capacidades,
parecem tomados pelos dizeres do adivinho ao proferir que tudo é igual. Estes homens que
Zaratustra encontra são: reis (mas hoje, os reis são apenas uma fachada), o homem
consciencioso do espírito (que deixa que sanguessugas se apropriem do que sabe), um
feiticeiro penitente do espírito (que sabe que fracassou na busca por grandeza), o último
papa, o mais feio dos homens (que era, também, o assassino de deus), um mendigo
voluntário e sua própria sombra. Todos eles já tinham ouvido falar de Zaratustra e
conheciam parte do que havia dito. Porém, não tinham apreendido o sentido de seus
ensinamentos, pois continuavam acreditando em valores decadentes. Zaratustra a todos
convida para que o esperem em sua caverna, onde, à noite, haveriam de fazer uma festa.
O feiticeiro, 2 – “O dia de hoje é da plebe: quem ainda sabe o que é grande, o que é
pequeno! Quem buscaria, com bom êxito, a grandeza? Somente um louco: nisso os loucos
são bem-sucedidos”.
Ao meio dia – Ainda caminhando pela floresta, Zaratustra resolve dar uma cochilada à
sombra de uma árvore, ao meio dia. Diante de um prazer tão simples como um cochilo em
um lugar agradável, Zaratustra diz: “Não acabou o mundo de atingir a perfeição?”
Zaratustra já havia dito que é preciso muito pouco para alcançar a felicidade. Mas, agora,
ele diz que, em verdade, o mínimo, o imperceptível, faz a melhor felicidade. Este
ensinamento não provém de uma humildade cristã e inusitada, e sim, do fato de que o
mundo é belíssimo e a vida está aí para ser vivida e desfrutada. Para tanto, não se precisa de
222
muito, pois o mundo está aí para todos que vivem. Basta saber viver. E, tal felicidade, em
nada se assemelha àquela pequena felicidade do último homem. Esta pequena felicidade é
baseada na busca por segurança devido ao medo de que alguém o moleste. Muitas vezes
acredita-se que, para atingi-la, é necessário muito dinheiro e glórias. Esta felicidade de
Zaratustra é uma felicidade da plenitude diante de coisas simples e únicas. Diante de
prazeres que, por mais que estejam acessíveis a todos, são poucos os que conseguem
apreciá-los.
O grande meio dia é o momento de grande tomada de consciência por parte da
humanidade a respeito de toda sua mediocridade atual, é uma espécie de ponto de inflexão
que Nietzsche espera produzir no mundo a partir de seus pensamentos como o do eterno
retorno. A partir daqui, até mesmo os homens cansados dos valores estabelecidos e
sofredores da morte de deus chegam a esta conclusão. O meio dia é este momento onde a
humanidade terá que repensar a si mesma e estabelecer o seu futuro.
A saudação – Zaratustra retorna à sua caverna e descobre que o grito por socorro que havia
ouvido vinha daqueles próprios homens que já havia encontrado. Eles são os supostos
homens superiores. Na caverna, esses homens dizem a Zaratustra que estavam cansados da
vida, estavam tomados pelo niilismo e que apenas Zaratustra poder-lhes-ia restituir a força
para viver. Zaratustra oferece-lhes segurança e ajuda, mas lamenta que seus ensinamentos
tenham atraído os homens fracos e cansados da vida. O próprio adivinho já o tinha alertado
para o fato de que os desesperados buscariam Zaratustra e o levariam consigo. As palavras
de Zaratustra atingiram, justamente, aqueles que criticara. Os desesperados querem
aprender a viver. Mas, Zaratustra se lamenta, pois não é este tipo de companhia de que
precisa. Ele sabe que é impossível curar certos tipos de doentes. Zaratustra anseia por outro
tipo de homem, homens capazes de querer verdadeiramente aquilo que ele ensina, isto é,
perecer em prol do super-homem. Os hóspedes dizem que precisam aprender de novo a ter
esperanças, a ter um fito para que possam querer de novo a vida. Mas Zaratustra não
acredita na capacidade destes homens cansados ditos superiores. Zaratustra sabe que os
homens dos quais precisa ainda estão por vir. Esta parábola mostra bem o estado daqueles
que seguem e acreditam nos valores até hoje praticados. Estão cansados, pois esses valores
não levam ninguém à grandeza, não respeitam as diferenças entre os homens e não mais se
223
é capaz de conferir a deus questões como segurança e bem estar, estes chamados grandes
homens são a decorrência da morte de deus, quando os valores antigos não mais dão
sustentação e os novos ainda estão por serem criados. Zaratustra sabe que esses homens não
serão capazes de criar valor algum e estão cansados da vida, são niilistas.
Do homem superior – 1) Ao dirigir a vontade de grandeza para a plebe, esta lhe responde
dizendo que todos são iguais, pois não é capaz de reconhecer a grandeza. 2) Com a morte
de deus o homem superior pode criar os valores de grandeza necessários para uma
elevação. Aquele que cria valores se torna senhor. 3) O anseio de Zaratustra dirige-se não
ao homem, mas ao super-homem. Resignação como virtude dos fracos. O homem superior
não sabe viver na sociedade moderna, pois tudo é plebe, tudo é igual, homogêneo na
mediocridade. 4) CORAGEM!!! 6)O homem deve perecer para que o super-homem viva.
Caminho de sofrimento, pois a vida se torna cada vez mais dura. Mas somente assim cresce
a força necessária para engendrar o super-homem. Sofremos de nós mesmos, de nossas
angústias pessoais, mas não sofremos do homem. Zaratustra sofre do homem, pois quer sua
elevação, quer que ele seja superado, quer um caminho de grandeza para este homem, este
caminho consiste em ser a ponte para o super-homem. 7) A sabedoria de Zaratustra não
deve esclarecer os homens de hoje, deve cegá-los. Tamanha é a diferença do desejo. 8) Não
querer acima da própria capacidade. “Porque nada é mais raro e precioso, aos meus olhos,
do que a honestidade.” 9) A plebe não usa razões, segue cegamente. Os doutos são estéreis.
11) A vontade não possui motivos racionais, não faz algo “por” ou “para” ou “porque”, ela
simplesmente se realiza, expressa a própria potência. O egoísmo criador se expressa em sua
própria obra. 13) “Cresce, na solidão, aquilo que cada qual traz dentro de si, inclusive seu
animal interior”. Por isto é preciso a solidão. Somente ela é capaz de apontar o caminho de
si mesmo.
O canto da melancolia – Quando Zaratustra se cala, sente necessidade de sair de sua
caverna para respirar um pouco de ar puro. Neste momento, o feiticeiro se levanta e inicia
um canto melancólico, pregador de palavras novamente causadoras de náusea. Os demais
hóspedes começam a se deixar levar por tal canto e voltam a se tornar medíocres. São
homens cansados após a morte de deus.
224
Da ciência – Zaratustra volta para a caverna e os homens superiores pedem que permaneça
lá, pois sua simples presença afastou de novo o espírito de gravidade. O homem
consciencioso diz: “Porque o medo – é o sentimento hereditário e fundamental do homem;
pelo medo tudo se explica, o pecado original e a virtude original. Do medo nasceu também
a minha virtude, que se chama: ciência.” Este homem tem medo de seguir os caminhos
perigosos da sabedoria de Zaratustra, prefere a segurança da verdade, para tanto, precisa
acreditar na ciência. “O medo, precisamente, dos animais bravios – é esse que há mais
tempo se incutiu no homem e inclui o medo do animal que ele esconde em si mesmo e teme
– o animal interior, chama-lhe Zaratustra.” Evita-se seguir a si mesmo por medo de seus
próprios animais interiores. Mas Zaratustra aparece e diz exatamente o contrário do que
estavam dizendo: diz que o homem foi até hoje coragem. “O medo, com efeito – é a nossa
exceção. Mas coragem, gosto pela aventura, pelo incerto, pelo que ainda não foi ousado –
coragem parece-me toda a pré-história do homem. / Ela invejou e arrebatou todas as
virtudes dos animais mais bravios e mais corajosos; somente então tornou-se – homem. /
Essa coragem, finalmente afinada, espiritualizada, essa coragem humana com asas de águia
e prudência de serpente, essa coragem, ao que me parece, chama-se hoje... Zaratustra
Ética é a coragem diante da vida.
O despertar 1 – Depois disto, a sombra faz um canto e todos se põem a rir. Zaratustra
alegra-se, pois isto é sinal que estão vencendo a náusea e adquirindo uma forma de vida
melhor, embora dificilmente consigam se curar por inteiros. Zaratustra entende que lhes
despertou novos desejos e, com isto, um pouco do prazer de viver.
O despertar 2 – Mas, tão logo Zaratustra retorna à sua caverna, eis que encontra todos seus
hóspedes de joelhos louvando o burro. O burro profere, logicamente, a sabedoria do asno,
que sempre diz sim a tudo. O burro é aquele que nunca diz não, diz apenas sim. Os
hóspedes vangloriam isto como se fosse sinal de aceitação a tudo e a todos. Mas, sabemos
que, dentro da proposta de Zaratustra, é preciso dizer não e destruir muitas coisas, para que
se possa dizer sim e edificar tantas outras. Pode-se apontar aqui o fato de que a afirmação
incondicional de todo o devir, proposta pelo eterno retorno, não significa uma dizer sim a
225
tudo, mas a seleção daqueles capazes de dizer sim à vida. Dizer sim a tudo é uma sabedoria
de asnos.
A festa do burro 1 – Zaratustra critica alguns de seus convidados, mas estes, parecem não
mais querer o que Zaratustra lhes diz, pois todos acreditam na ressurreição de deus. Se a
morte de deus traz um niilismo passivo, estes niilistas não hesitariam em louvar novamente
a um deus, bastando que lhes oferecessem um no qual pudessem acreditar. O deus no caso é
um burro.
A festa do burro 3 – Mas, após um breve momento de raiva causado pela decepção,
Zaratustra se alegra com o rito inventado por aqueles homens e diz que isto é um bom sinal,
pois voltaram a estar alegres, mas, principalmente, tornaram-se capazes de criar novamente.
O canto ébrio – Todos que estavam reunidos na caverna de Zaratustra saíram para
contemplar a noite. Então, o mais feio dos homens diz que, pela primeira vez na vida, está
feliz de ter vivido. Ao afirmar o momento, afirma toda a existência e diz querê-la de novo.
Os demais hóspedes tomaram consciência desta mudança e pareceram curados também. Ao
afirmarem o eterno retorno, os hóspedes se alegraram com a vida.
Era próximo de meia noite e Zaratustra queria ouvi-la. Enfim, Zaratustra sente-se
forte para chamar pelo eterno retorno. Então entoa cantos em louvor a seu pensamento. Nos
demais cantos ébrios, Zaratustra fala sobre prazer e dor, de uma forma que se refere ao
eterno retorno. O prazer quer a eternidade, quer que ele mesmo sempre retorne. Mas, para
que um simples momento retorne, é preciso que todos os demais momentos retornem
encadeados da mesma forma como tudo ocorrera antes. Zaratustra canta, mais uma vez, o
eterno retorno. Ali, meia noite é, também, o meio dia. Zaratustra comemora com cantos a
proximidade de um novo dia, o dia em que o homem será superado. Zaratustra chama por
seu pensamento mais abissal, já é capaz de querê-lo e chamar por ele. 10) “um sábio é
também um louco”. “Dissestes sim, algum dia, a um prazer? Ó meus amigos, então o
dissestes, também, a todo o sofrimento. Todas as coisas acham-se encadeadas, entrelaçadas,
enlaçadas pelo amor – / – e se quisestes, algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se
dissestes, algum dia: ‘Gosto de ti, felicidade! Volve depressa, momento!’, então quisestes a
226
volta de tudo! – tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado
pelo amor, então, amastes o mundo – / – ó vós, seres eternos, o mais eternamente e para
todo o sempre; e também vós dizeis ao sofrimento: ‘Passa, momento, mas volta!’ Pois quer
todo o prazer – eternidade!”
O sinal – Mesmo diante de uma aparente cura de seus hóspedes, Zaratustra diz que não é
por eles que espera. Ao acordar, Zaratustra é cercado por inúmeras pombas que o saúdam.
No meio destas pombas, Zaratustra encontra um leão e diz que este é o sinal. Estão
aproximando-se os homens de que precisa. Ao acordarem, os hóspedes de Zaratustra vão à
porta da caverna para saudá-los. Mas o leão ruge e os espanta. Zaratustra pensa sobre o
grito que eles acabaram de dar e percebe que era igual ao grito de socorro que ouvira na
manhã anterior, quando o adivinho o induziu a seu último grande pecado. Este é o último
grande perigo que pode ocorrer a alguém que busca algum tipo de grandeza na vida: se
acercar, por compaixão, de pessoas fracas e sem cura, fazendo malograr sua própria tarefa
também. Todo o percurso aqui proposto é feito por amor à vida, a si mesmo e ao homem
como um todo. Mas, o amor ao homem, que nos faz amar a todos, até mesmo aos piores,
não pode permitir que se desvie de sua proposta inicial, qual seja, tornar-se si mesmo e,
com isto, uma ponte para o super-homem. Homens que não querem ou não podem tornar-se
si mesmos muitas vezes desviam aqueles que podem de seu caminho. Estes últimos, se
deixam desviar, quase sempre, por pena.
227
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