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Priscila Rettenmaier
DA EXTRAFISCALIDADE AO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: UM ROTEIRO
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL PARA MUNICÍPIOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito Mestrado, Área de
Concentração em Políticas Públicas, Universidade
de Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Prof. Dr. Hugo Thamir Rodrigues
Santa Cruz do Sul, março de 2008
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Priscila Rettenmaier
DA EXTRAFISCALIDADE AO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: UM ROTEIRO
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL PARA MUNICÍPIOS
Esta Dissertação foi submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Direito Mestrado, Área de
Concentração em Políticas Públicas, Universidade
de Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Dr. Hugo Thamir Rodrigues
Professor Orientador
Dr. João Telmo Vieira
Dr. Giovani da Silva Corralo
2
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus familiares e em especial ao meu noivo, Eduardo, pela
compreensão quanto aos muitos períodos de tempo que lhes subtraí,
conscientemente, para que a elaboração desta dissertação fosse possível, bem
como pelo encorajamento ao longo de todo este período.
Agradeço aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em
Direito Mestrado pelo ensinamento e amizade, bem como ao pessoal da
secretaria do PPGD, cuja atenção foi importante no decorrer destes dois anos.
Agradeço, por último, mas com a mesma ênfase, ao meu orientador, Prof. Dr.
Hugo Thamir Rodrigues, a quem, pela sua simplicidade e humildade, sempre pude
me dirigir nos momentos de dúvida e dificuldade, mostrando-se exemplar em sua
conduta como professor e pesquisador, e que, acima de tudo, tornou-se um grande
e inestimável amigo.
3
RESUMO
O estudo tem como meta a análise da adaptabilidade de políticas públicas
tributárias à aplicação do princípio da precaução. A motivação principal está em
descobrir se a utilização da extrafiscalidade nos municípios, através de convênios ou
consórcios, constitui instrumento para a redução dos riscos ambientais sem trazer
como conseqüência direta o engessamento do desenvolvimento. O justo equilíbrio
entre o respeito ao meio ambiente e o desenvolvimento tecnológico e econômico
justifica, por si só, a razão pela qual essa dissertação foi escrita. Empregou-se, na
abordagem, o método hipotético-dedutivo, tendo-se por método de procedimento o
monográfico. Para isso, consultou-se a doutrina, a jurisprudência e a legislação para
a pesquisa em geral, mas especificamente valendo-se dos trabalhos de Olivier
Godard e Hans Jonas para compreender o princípio da precaução e os trabalhos de
José Joaquim Gomes Canotilho para examinar os princípios constitucionais e sua
concretização. Igualmente, teve-se como referência a tese de Hugo Thamir
Rodrigues sobre a harmonização solidária de políticas tributárias, assim como a obra
de Ülrich Beck sobre a sociedade de risco. A dissertação encontra-se dividida em
três capítulos, nos quais se abordou sucessivamente os seguintes temas: os perigos
ambientais, sua identificação e sua quantificação; os princípios constitucionais e,
sobretudo, o princípio da precaução; os municípios e suas circunstâncias; as
políticas públicas tributárias harmonizadas; os convênios e os consórcios. Conclui, o
trabalho, que o princípio da precaução é instrumento hábil de proteção ambiental,
assim como a utilização de isenções fiscais, por convênios ou consórcios
intermunicipais, possibilita a aplicação desse princípio. Ademais, a extrafiscalidade
permite, de maneira coordenada e harmônica, a integração entre poder público e
sociedade civil na busca pelo desenvolvimento sustentável.
4
RÉSUMÉ
Cette étude vise l’analyse de l’adaptabilité de politiques publiques tributaires à
l’application du principe de précaution. On veut surtout déterminer si l’utilisation de
l’extra-inspection des impôts municipaux à travers les pactes ou les consortium
constitue un instrument pour la réduction des risques environnementaux, sans avoir
comme conséquence directe l’empêchement du développement. Le quête de
l’équilibre entre le respect de l’environnement et le développement technologique et
économique justifie, par soi même, la raison pour laquelle cette dissertation a été
écrite. Nous avons employé la méthode hypothétique déductive, en adoptant comme
méthodologie le procédé monographique. Tout en consultant la doctrine, la
jurisprudence et les lois pour la recherche générale, nous avons utilisé les travaux
d’Olivier Godard et d’Hans Jonas pour comprendre le principe de précaution et les
travaux de José Joaquim Gomes Canotilho pour examiner les principes
constitucionnels et leurs mises en pratique. Nos avons également pris comme
référence la thèse d’Hugo Thamir Rodrigues sur l’harmonisation solidaire des
politiques tributaires, ainsi que les travaux d’Ülrich Beck sur la société du risque. La
dissertation est divisée en trois chapitres dans lesquelles nous abordons
successivement les thèmes suivants : les dangers environnementaux, leur
identification et leur quantification; les principes constitutionnels et surtout le principe
de précaution; la municipalité et ses circonstances; les politiques publiques
tributaires harmonisées; les pactes et les consortium. Nous avons compris que le
principe de précaution est un instrument bien adapté pour la protection de
l’environnement, ainsi que l’utilisation des exonérations des impôts à travers les
pactes ou les consortium permet l’application de ce principe. En outre, cette extra-
inspection des impôts municipaux peut comporter de façon coordonnée et
harmonisée l’intégration entre le pouvoir publique et la société civile pour la
recherche du développement durable.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................7
1 PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO................................................................................10
1.1 Risco: uma inquietante realidade na ordem social global....................................12
1.2 Princípios Constitucionais....................................................................................22
1.3 Primeiras referências ao princípio da precaução.................................................36
1.4 Abordagens teóricas do princípio da precaução..................................................41
1.5 O princípio da precaução e a livre concorrência..................................................46
2 OS MUNICÍPIOS E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS......................................................55
2.1 Municípios: entes federados e autônomos?.........................................................56
2.2 Função social dos municípios..............................................................................68
2.3 Competências municipais.....................................................................................72
2.3.1 Competências municipais ambientais...............................................................75
2.3.2 Competências municipais tributárias.................................................................78
2.4 Poder local: uma maneira de efetivar políticas de preservação ambiental..........80
3 POLÍTICAS TRIBUTÁRIAS MUNICIPAIS...............................................................93
3.1 Extrafiscalidade....................................................................................................93
3.2 Convênios e Consórcios municipais..................................................................106
3.3 Harmonização de políticas tributárias................................................................114
3.4 Da extrafiscalidade ao princípio da precaução: um roteiro de proteção ambiental
para municípios........................................................................................................119
CONCLUSÃO...........................................................................................................123
REFERÊNCIAS........................................................................................................127
6
INTRODUÇÃO
A presente dissertação busca sua razão de ser junto a políticas públicas
tributárias que, com o objetivo de aplicar o princípio da precaução sem impedir o
desenvolvimento, almejam o cumprimento da função social municipal, valendo-se
prioritariamente da extrafiscalidade, principalmente através de isenções totais ou
parciais de tributos de sua competência concedidos via convênios ou consórcios
intermunicipais.
Assim, partindo-se da hipótese de que é verdadeiro afirmar que a gestão dos
riscos ambientais é possível pela aplicação do princípio da precaução, guia-se este
trabalho pela busca à resposta ao seguinte questionamento: existem meios no
âmbito municipal que possibilitam a aplicação do princípio da precaução, de maneira
a proteger o meio ambiente sem causar entrave ao desenvolvimento científico e
tecnológico?
Para responder a tal indagação, verifica-se, após a identificação e
quantificação dos riscos ambientais potenciais, três hipóteses básicas, as quais
podem ser sintetizadas como sendo a possibilidade de aplicação do princípio da
precaução na gestão de perigos ambientais, a possibilidade de se atribuir aos
municípios importante participação para a preservação do meio ambiente,
participação essa que pode ocorrer por intermédio da extrafiscalidade em convênios
e consórcios intermunicipais.
Percebe-se a justificação desta dissertação no próprio problema formulado,
uma vez que se busca uma resposta sobre a existência ou inexistência de políticas
públicas municipais que viabilizem a preservação ambiental, garantindo um meio
ambiente sadio e equilibrado, sem prejudicar o desenvolvimento tecnológico.
E, em assim sendo, tem-se, como objetivo geral, verificar, a partir dos
aspectos sócio-econômicos que identificam a realidade brasileira, a possibilidade de
a extrafiscalidade, através de convênios e consórcios municipais, servir como
política pública concretizadora do princípio da precaução de modo a garantir o direito
7
fundamental a um meio ambiente sadio e equilibrado, compreendendo neste uma
política ambiental que não constitua obstáculo ao desenvolvimento. Mas, tal
verificação, necessita de alguns estudos preliminares, os quais ocorrem ao longo de
três capítulos que compõem esta dissertação e que se corporificam, individualmente,
em objetivos específicos.
Dessa forma, no primeiro capítulo, efetua-se um estudo sobre o princípio da
precaução, inicialmente identificando e quantificando os riscos potenciais
responsáveis pela sua aplicação, partindo-se, na seqüência, à análise dos princípios
constitucionais para, finalmente, apresentar as primeiras referências feitas a esse
princípio, determinando a sua melhor interpretação e conceituação.
no segundo capítulo, procura-se esclarecer a autonomia dos municípios e
sua consideração como ente federativo para, a partir disso, determinar qual é a sua
função social e quais são suas competências ambientais e tributárias,
demonstrando, assim, sua importância na consecução das políticas públicas de
preservação ambiental, fim último da presente pesquisa.
Finalmente, no último capítulo, verifica-se a utilização da extrafiscalidade em
convênios e consórcios intermunicipais, buscando a harmonização solidária das
políticas públicas tributárias, para a concretização do princípio da precaução.
E, para que o presente trabalho pudesse ser levado a termo, optou-se,
referentemente à metodologia, para a abordagem, ou seja, para a análise em seu
sentido mais amplo, pelo método hipotético-dedutivo, uma vez que se parte de
hipóteses formuladas, das quais se deduziram conseqüências, e que serão
falseadas para, ao final, deduzir-se, ou não, pela existência de políticas públicas em
âmbito municipal que possibilitam a aplicação do princípio da precaução, protegendo
o meio ao mesmo tempo que garantem o desenvolvimento.
Por seu turno, como método de procedimento, optou-se pelo monográfico, no
sentido de se estudar especificamente uma determinada situação. Entretanto, haja
vista a necessidade de conhecimentos e informações para a estruturação e
8
justificação do tema, algumas vezes será preciso lançar mão de outros métodos,
como o histórico.
Mas, ainda quanto à metodologia, necessário, tendo-se presente que o
objetivo deste trabalho é a verificação da possibilidade de aplicação do princípio da
precaução, de forma a proteger o meio ambiente sem que dessa proteção decorra
embargo ao desenvolvimento, informar que, para tal fim, optou-se pela metódica
jurídica normativo-estruturante de Canotilho, ou seja, por um método de
argumentação que busca solucionar um caso concreto a partir da própria
Constituição, que deve ser interpretada em função das especificidades de cada
caso, em uma determinada realidade espaço-temporal.
Para a construção dos conceitos que embasam o presente trabalho, e
procurando se abster tanto quanto possível de posições unicamente pessoais,
utiliza-se, fundamentalmente, Olivier Godard, Hans Jonas e Hugo Thamir Rodrigues.
A escolha pelos autores mencionados levou em consideração a compilação e
estruturação de teorias a partir da apropriação do pensamento de vários outros
autores consagrados.
Deixa-se claro que tal opção ocorre, também, por não visar, esse trabalho, à
defesa de qualquer posicionamento ideológico. Longe disso, a meta centra-se na
revisão de pontos cruciais atinentes à matéria, com o intuito de, ao final, poder-se
trazer alguma contribuição relativa ao equacionamento da divergência entre os
princípios da preservação ambiental e do desenvolvimento, a partir de políticas
públicas tributárias municipais.
9
1 PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO
O desenvolvimento das sociedades
1
industriais do século XX associado ao
perfil do capitalismo, enquanto vislumbrou condições de evolução tecnológica,
apropriação de bens e livre circulação de capitais, ao mesmo tempo expôs essas
sociedades a uma crescente proliferação de ameaças. Entre outros, são exemplos
os casos relacionados à dependência energética de combustíveis fósseis,
agravando a poluição do ar e contribuindo para o efeito estufa, à utilização
predatória de madeiras tropicais, especialmente pelo impacto do desmatamento
sobre a biodiversidade e ao lançamento de produtos químicos por indústrias
diretamente em rios e córregos, comprometendo a qualidade dos recursos hídricos.
Notoriamente essas auto-ameaças foram sistematicamente produzidas. Com o
aumento das preocupações, essas questões foram gradativamente ganhando
importância perante a opinião pública, sendo inseridos no centro de conflitos e
discussões políticas.
Além disso, falhas dos instrumentos de controle na detecção e prevenção
dessas ameaças agravaram este quadro. A sociedade industrial não produz,
como também passa a tolerar as ameaças que não consegue controlar. E as
instituições sociais e políticas se confrontam, assim, com questões que desafiam
suas próprias estruturas. As conseqüências destas transformações acabam por
colocar em xeque os mecanismos de controle e proteção. A essa crise Beck
denomina “sociedade de risco”
2
. Duas décadas antes do sociólogo, o politólogo
Lagadec previa o surgimento de uma “civilização do risco”, que seria marcada
pela emergência, majoritariamente, de riscos tecnológicos.
3
1
Saliente-se, para efeitos deste trabalho, que qualquer referência à sociedade indicará
prioritariamente a sociedade ocidental.
2
BECK, Ülrich. La société du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion, 2001, p.
35 et seq. Serão feitas alusões seguidas a essa obra em razão de ser ela parte do referencial
teórico utilizado na presente pesquisa. Raffaele De Giorgi também analisa o risco na sociedade
contemporânea em sua obra Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.
3
LAGADEC, Patrick. La civilisation du risque. Catastrophes technologiques et responsabilité sociale.
Paris: Seuil, 1981, p. 58 et seq.
10
Desvela-se, pois, a existência de uma crise ambiental a partir dessa
constatação de que os processos de organização do capitalismo estão em conflito
com a qualidade de vida. Experiências de catástrofes, quer tecnológicas quer
naturais, demonstram que a promessa de domínio dos riscos alcançada pelo
desenvolvimento não seria totalmente confiável. A inovação não deixa de ser uma
aventura arriscada, na qual ninguém está ao abrigo de incidentes. Nesse contexto, o
princípio da precaução cristaliza-se como mecanismo de salvaguarda do meio
ambiente quando não houver certeza científica sobre a existência de riscos. O que
autorizaria a aplicação pelo poder público de medidas protetoras sem que houvesse
provas científicas absolutas da iminência do perigo.
Todavia, a aplicação desse mecanismo de defesa traz algumas questões
recorrentes. Este preceito conduz a uma ruptura da relação entre a ação pública e a
ciência ou razão, em proveito de uma autonomia do político ou da ditadura de uma
opinião sob domínio do medo? Não seria ele instrumento do oportunismo político na
conquista da opinião pública ou num trivial protecionismo econômico? Significa que
autoridades públicas poderão legitimamente empregar medidas de precaução sem
que estas decisões possam ser questionadas pela violação de outras regras, como a
liberdade do comércio ou o desenvolvimento de pesquisas científicas?
Embora tenha ocorrido uma rápida extensão de sua força jurídica, baseada
na busca pelo desenvolvimento sustentável e pela minimização dos riscos, o
princípio da precaução é ainda muito recente. De tal sorte que se evidencia uma
série de inquietações em suas mais diversas facetas, como o entrave ao
desenvolvimento científico, razão suficiente para se ater com atenção sobre o seu
conteúdo e a sua aplicabilidade. Mas isso requer, em um primeiro momento, a
análise dos riscos que serão enfrentados e dos novos contornos que definirão a
sociedade. Isso possibilitará o encaminhamento do estudo do princípio da
precaução, embasando-o na teoria principialista de Canotilho.
11
1.1 Risco: uma inquietante realidade na ordem social global.
As civilizações da Antigüidade e os povos medievais conviviam com riscos,
embora não possuíssem um conceito para eles. Eles eram, freqüentemente,
atrelados a idéias de destino, sorte ou vontade divina, razão pela qual, em geral, não
era diretamente imputado ao homem como se fosse sua responsabilidade. Ao
contrário, relacionava-se a noções de coragem e aventura, ou mais propriamente, a
perigos pessoais.
A idéia de risco parece ter surgido nos séculos XV e XVI, ligada aos
exploradores ibéricos que partiam em viagens pelo mundo. Possuía originalmente
designação espacial. Uma das possíveis origens do termo vem de palavra
espanhola significando “penhasco alto e escarpado”
4
. Mais tarde, passou a englobar
também significação temporal, sendo muito utilizada em transações bancárias e de
investimentos.
Não dúvidas que, ao longo desse período, o conceito de risco sofreu as
alterações necessárias para se adequar a um novo paradigma de sociedade, e que
o continuará fazendo. No entanto, para que se possa definir o risco nos contornos
dessa pesquisa, é preciso, antes, tecer algumas observações referentes aos
conceitos de risco e de perigo. Perigo, conforme algumas definições clássicas, seria
a tendência de um sistema em produzir acidentes. Sua probabilidade mediria as
chances destes acidentes se materializarem e sua gravidade mediria o impacto
dessa materialização. Risco, por sua vez, seria a medida sintética do perigo. O que
significa que o risco teria uma estrutura de esperança matemática, uma noção
estatística que designa a soma de todos os acidentes em obediência a uma
determinada lei de distribuição.
5
4
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua
portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5
BOURG, Dominique; SCHLEGEL, Jean-Louis. Parer aux risque de demain: le principe de
précaution. Paris: Éditions du Seuil, 2001, cap. 4. Aquilino Morelle possui a mesma definição de
risco. Para ele, o risco é universal por existir em todos os locais onde a técnica for utilizada, e
absoluto por possuir a mesma interpretação em todos os países comparáveis no plano técnico e
científico. MORELLE, Aquilino. La défaite de la santé publique. Paris: Flammarion, 1996, p. 87 et
seq.
12
Esse enfoque global contido na definição de risco considera todos os atores
envolvidos, levando em conta perigos associados tanto a fatores humanos quanto a
eventos naturais. E, por isso, pode trazer algumas dificuldades. Por exemplo, sendo
o risco, antes de tudo, passível de romper ou modificar a vida dos indivíduos, poder-
se-ia questionar sua relação com o conceito de decisão. Nessa abordagem, o
modelo de julgamento relevante é o próximo da conduta média dos indivíduos,
sendo irrisórios os procedimentos patológicos menos prováveis. As seguradoras
costumam estimar os riscos com base no padrão decisório médio. Dessa forma,
mulheres obtêm melhores preços na contratação de seguros para carro por terem
um comportamento médio menos agressivo.
6
Para o sociólogo Giddens, o risco deve ser compreendido como todo evento
perigoso possível, suscetível de romper com o curso normal e esperado de uma
ação, capaz de modificar brutalmente o estado das coisas.
7
A idéia aproxima-se da
noção de catástrofe e muitas vezes pressupõe uma sociedade que tenta romper
com seu passado. Essa será a abordagem utilizada no decorrer do presente
trabalho.
Todavia, impõem-se algumas distinções suplementares. Embora Giddens
tenha estabelecido a diferenciação entre riscos externos e fabricados
8
, preferiu-se
adotar a classificação de Bourg e Schlegel em riscos incontestes e riscos
potenciais
9
. Os riscos incontestes foram objeto de experiência e se encontram
elencados. São riscos conhecidos cuja gravidade está estimada. Os riscos
potenciais, por sua vez, ainda não foram verificados, de tal sorte que a magnitude de
seus efeitos não é estabelecida. Com a noção de risco inconteste sabe-se qual é a
6
Informação obtida através de pesquisa junto a diversas empresas seguradoras da cidade de Santa
Cruz do Sul.
7
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Trad. Raul Fiker. reimpressão. São
Paulo: Unesp, 1991. Definição baseada na etimologia latina da palavra resecum.
8
Idem. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Trad. Maria Luiza X. de A.
Borges. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 31-45, passim. O autor define risco externo como
vindo de fora, das fixidezes da tradição ou da natureza, como enchentes, pragas ou fomes. Risco
fabricado, diferentemente, é criado pelo próprio impacto do crescente conhecimento sobre o
mundo. Diz respeito a situações em cujo confronto pouca experiência histórica, sendo
exemplificado pelo acidente nuclear em Chernobyl, em 1986.
9
BOURG, Dominique; SCHLEGEL, Jean-Louis. Parer aux risque de demain: le principe de
précaution. Paris: Éditions du Seuil, 2001, cap. 5.
13
ameaça; ao contrário, com o risco potencial a incerteza paira sobre a existência
mesma do perigo.
A partir dessa diferenciação, poder-se-ia concluir que grande parte dos riscos
relacionados ao meio ambiente, e que demandariam a aplicação do princípio da
precaução, seria potencial, em virtude da escassez de estudos conclusivos que
atestam a existência e a extensão dos danos.
10
Afinal, novas tecnologias costumam
demandar tempo para que sejam analisadas e seus efeitos sejam comprovados.
Dessa forma, seriam esses os riscos que demandariam a aplicação do princípio da
precaução, pois, conforme Godard,
[...] o princípio da precaução visa então o que se conveio chamar riscos
potenciais, enquanto que as abordagens clássicas de prevenção visam
os riscos incontestes, cuja existência é estabelecida pela experiência
ou pelo conhecimento científico e cuja ocorrência é apreendida de
maneira confiável a partir de um cálculo de probabilidades objetivas.
11
Nesse sentido, Bourg e Schlegel levantam um importante questionamento:
“[...] como as sociedades que podem parecer as mais seguras da história podem ao
mesmo tempo ser definidas como as primeiras sociedades de risco?”
12
Beck, de
certa forma, procura responder a esse questionamento quando afirma que os riscos
estão intimamente ligados ao progresso, ou melhor, são ampliados na busca pelo
desenvolvimento.
13
10
Se, ao contrário, houver informações certas e precisas acerca do risco e de seu grau de
periculosidade, a opção será pelo princípio da prevenção, pois “revela situação de maior
verossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada pelo princípio da precaução”. (LEITE,
J.R.M.; AYALA, P. de A. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004, p. 62-63) O que sofre alteração para a aplicação de um ou outro princípio, na
verdade, são as probabilidades: no caso da precaução, trata-se da probabilidade de que a
hipótese seja exata; no caso da prevenção, o perigo está estabelecido e trata-se da probabilidade
do acidente. (KOURILSKY, Philippe; VINEY, Geneviève. Le principe de précaution. Rapport au
premier ministre, 29 novembre 1999. Paris: Odile Jacob La documentation française, 2000, p.
18.)
11
GODARD, Olivier. Savoirs, risques globaux et développement durable. Cahier, Paris, n. 09, jun.
2004, p. 33. Tradução livre. Texto original: “le principe vise donc ce qu’il est convenu d’appeler des
risques potentiels, tandis que les approches classiques de prévention visent les risques avérés,
dont l’existence est établie par l’expérience ou par la connaissance scientifique et dont l’occurrence
est appréhendée de façon fiable à partir d’un calcul de probabilités objectives.
12
BOURG, Dominique; SCHLEGEL, Jean-Louis. Parer aux risque de demain: le principe de
précaution. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 41. Tradução livre. Texto original: “[...] comment les
sociétés qui peuvent paraître les plus sûres de l’histoire peuvent en même temps être définies
comme les premières sociétés du risque?”
13
BECK, Ülrich. La société du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion, 2001,
cap. 1. No mesmo sentido ver Morato Leite e Patryck Ayala em sua obra Direito ambiental na
14
Em igual sentido, Bourg e Schlegel afirmam que “de mais, é obrigado a
constatar que são doravante as técnicas que, em razão mesmo de seu êxito, geram
os riscos”.
14
A interface técnica/ação não consegue impedir que o erro, a falha ou a
simples negligência possam sobrevir a qualquer instante, tampouco que os efeitos
se limitem ao local de ocorrência. Afinal, existe uma defasagem estrutural entre os
ritmos da inovação tecnológica e os ritmos para obtenção dos conhecimentos
necessários à avaliação do impacto dessas inovações para a sociedade, ou seja, as
novidades tecnológicas são sempre mais avançadas que os conhecimentos críticos
para avaliá-las. Porém, sabendo de suas limitações, a ciência procura gerar
segurança em contextos de imprevisibilidade, minimizando o caráter aleatório do
futuro.
Acredita-se que a mudança da sensibilidade contemporânea ao risco está
fortemente relacionada à mutação profunda de mentalidades que representam o
individualismo moderno. Este individualismo que atinge inexoravelmente todas as
sociedades democráticas
15
avançadas tem uma longa história, mas a sua afirmação,
de acordo com Helfer,
[...] significou a estruturação de espaços sociais nos quais a
preocupação primordial do eu consigo mesmo, com seus interesses,
fosse superior à preocupação com o coletivo, a promoção do bem
comum.
16
Nessa sociedade individualista, resta ao Estado apenas garantir os direitos de
cada cidadão. Sua legitimidade repousa, pois, sobre a representação de interesses
de um grupo, seja político ou profissional. Ao que acrescentam Bourg e Schlegel:
Tudo se passa como se a atenção que cada um traz ao seu próprio
futuro, e que sustenta sua sensibilidade face aos novos riscos que
sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, cap. 1.
14
Ibidem, p. 49. Tradução livre. Texto original: “De plus, force est de constater que ce sont désormais
les techniques qui, en raison même de leur réussite, génèrent les risques.”
15
Utilizando-se do conceito de sociedade democrática de Giddens, em que há competição efetiva dos
partidos políticos pelo poder por meio de eleições regulares, assegurando a participação de todos
os membros da população. Além disso, o direito à participação é acompanhado por liberdades
civis. (GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Trad.
Maria Luiza X. de A. Borges. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 77-91, passim)
16
HELFER, Inácio. As perspectivas atuais da filosofia do direito. In: LEAL, R. G.; ARAÚJO, L. E. B.
Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2001,
p. 251.
15
parecem lhe agredir, impedisse toda forma de resposta coletiva a estes
mesmos riscos.
17
Lembrando que a idéia de risco está próxima da percepção de calamidade,
não é de se estranhar que o individualismo tenha colaborado com a alteração no
perfil dos possíveis perigos, sobretudo incluindo novas ameaças. A utilização em
larga escala de veículos próprios, visando o conforto que tal escolha oferece, em
detrimento de transportes públicos, contribui para o aumento da concentração de
gases que, acredita-se, sejam responsáveis pelo efeito estufa. Este fenômeno, por
sua vez, seria o responsável por mudanças na dinâmica climática mundial. Do que
se apreende que não há relevância se as emissões se dão em locais onde maior
concentração populacional. Os seus efeitos serão globais.
Talvez seja esta a principal característica de uma nova gama de riscos: a sua
não identificação a contextos espaciais. Giddens destaca, ainda, a globalização do
risco no sentido de expansão da quantidade de eventos incertos e de acréscimo de
intensidade, de aumento de magnitude dos infortúnios.
18
Inquieta a opinião pública
que danos potenciais não se restrinjam ao local em que se originam, bem como
ignorem completamente divisões sociais. Pôde-se observar esse fenômeno com a
proliferação da gripe aviária na Ásia, África e Europa. Não havia como impedir a
migração das aves de um país a outro. Assim, o que preocupa a população é que os
danos são transnacionais, a exposição a eles não resulta de escolhas individuais e
suas ramificações se alastram inusitadamente. Nos primeiros meses de 2006, o
temor de certos mercados consumidores coibiu as exportações brasileiras de
frangos. Mesmo sem nenhum caso de gripe aviária registrado no país, o setor de
avicultura não escapou dessa crise.
19
Acrescente-se que esses riscos da modernidade não são perceptíveis aos
sentidos como o eram no início do século passado, por exemplo. Com o
17
BOURG, Dominique; SCHLEGEL, Jean-Louis, Parer aux risque de demain: le principe de
précaution. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 65. Tradução livre. Texto original: “Tout se passe
comme si l’attention que chacun porte à son propre devenir, et qui nourrit sa sensibilité face aux
risques nouveaux qui semblent l’assaillir, entravait toute forme de réponse collective à ces mêmes
risques.”
18
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Trad. Raul Fiker. reimpressão. São
Paulo: Unesp, 1991, p. 126-127.
19
Informações obtidas através de notícias difundidas pelos meios de comunicação, como jornais,
revistas e telejornais.
16
desenvolvimento científico e tecnológico, muitos perigos são somente detectados na
esfera de fórmulas químicas, leis físicas e equações matemáticas. Razão pela qual
sua identificação prévia resta custosa, trabalhosa e delicada. Em alguns casos,
infelizmente, o risco é desvelado após haver dano para a segurança da
população.
Os riscos gerados nesse estágio avançado de desenvolvimento das forças
produtivas, sendo exemplos aqui os decorrentes de substâncias poluentes e tóxicas
presentes no ar, na água e nos alimentos, situam-se, conforme Beck,
exclusivamente no “domínio do conhecimento”
20
. O que reforça essa mudança na
forma de manifestação de novos riscos, os quais escapam da percepção sensorial
humana direta, passando a depender de procedimentos científicos para se tornarem
visíveis.
No entanto, a partir do momento em que as proporções quantitativas e
qualitativas dos acidentes ganharam dimensões de macro-perigos potenciais, os
órgãos responsáveis pela detecção e controle dos riscos têm apresentado
dificuldades em realizar previsões, antecipações. Como explanado, a velocidade
com que o mercado disponibiliza novidades tecnológicas para atender à crescente
demanda das sociedades é muito superior à capacidade de se gerar conhecimento
crítico que possa contestá-los. O plantio de alimentos geneticamente modificados é
um exemplo. A complexidade da questão anima debates acalorados, tanto que até o
momento não concordância entre os peritos acerca da nocividade ao homem e
ao meio ambiente de certas plantas criadas pela bioengenharia.
A tese central das sociedades de risco surge, pois, nesse ambiente social e
político de gestão de riscos, caracterizado pela existência de parcelas importantes
da população inquietas por não se julgarem representadas e defendidas diante dos
perigos coletivos que ameaçam suas vidas, sua saúde, sua intimidade ou seu meio
de vida. Percebe-se, por conseguinte, a insuficiência dos programas institucionais,
nos quais a pesquisa científica de máxima qualidade penosamente atinge o patamar
de fundamento para a tomada de decisões das autoridades. Estas, por sua vez,
20
BECK, Ülrich. La société du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion, 2001,
cap. 1.
17
ainda se deparam com a desconfiança destes mesmos grupos populacionais. Isto
porque, segundo Leite e Ayala,
A confiança nos especialistas era a chave dos sistemas de segurança
das sociedades industriais, mantendo relações de elevado grau de
dependência perante um círculo limitado de sujeitos com a função
institucional de definir o referencial da segurança para o público,
mediante a determinação de suas condições e, principalmente, a
fixação de limites de tolerabilidade, por meio dos quais a ciência
procurava legitimar publicamente a validade da hipótese de que alguns
graus de exposição a riscos seriam suportáveis pelo homem e pelo
ambiente.
21
Quando aumentam os obstáculos à verificação concreta das conseqüências
das decisões, o conceito de risco priva-se da pretensão de controle. A sociedade,
então, toma consciência das limitações da perícia, encontrando as fronteiras da
capacidade técnica de identificação e gerenciamento de certos perigos. Mesmo
cientes que os danos se caracterizam, em geral, pela invisibilidade, incerteza e
irreversibilidade de suas conseqüências, as instituições vêem-se obrigadas a
consentir tacitamente potenciais riscos, simplesmente por terem dificuldade de
reduzir o grau de aleatoriedade envolvido, de modo a estimar extensões e
gravidades.
A presunção de irreversibilidade ou da intensidade dos danos torna
necessária, por parte da população e de alguns responsáveis, uma política de
precaução.
22
Todavia, essa deve se formatar de maneira a não aguardar a avaliação
do risco apenas no momento em que esteja disponível um quadro científico
suficientemente completo e estabilizado, a fim de lhe ajustar a ação de modo
razoável. Os responsáveis devem, assim, se engajar na precaução ou na
preparação da adaptação aos riscos potenciais antes de dispor de certezas
científicas sobre as causas ou mesmo sobre a existência do perigo.
21
LEITE, J. R. M.; AYALA, P. de A. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004, p. 16-17.
22
Esta política de precaução é muito bem analisada por GODARD, Olivier. Le principe de précaution
face au dilemme de la traduction juridique des demandes sociales: leçons de méthode tirées de
l’affaire de la vache folle. Cahier, Paris, n. 09, jul. 2001, p. 1-30, passim.
18
Está-se diante de um novo estágio de desenvolvimento da modernidade, ao
qual Beck denomina “modernidade reflexiva”
23
. Esse momento assinalaria, pois, a
constatação das restrições dos sistemas de securitização e de controle. Em termos
mais apocalípticos, seria a etapa em que o progresso poderia se dirigir em direção à
autodestruição, marcada pela auto-confrontação da sociedade com os efeitos dos
riscos assumidos, os quais fatidicamente não mais seriam assimilados. Isto
representaria uma “era de retorno da incerteza”
24
, que se cogitava superada pelas
políticas de segurança das sociedades industriais. Essa incerteza seria fabricada,
fruto de decisões humanas, distinguindo-se, portanto, das incertezas da era pré-
industrial que se associavam a eventos da natureza e eram referidas como
representações míticas.
Assim, a lógica da segurança sofreria uma inversão, ou, como prefere Beck, a
reprodução de uma “ilógica da investigação”
25
. O que significaria dizer que grande
parte das hipóteses teóricas que buscam alternativas de segurança perante os
riscos principalmente os oriundos do desenvolvimento de novas tecnologias
somente poderiam ser testadas após sua efetiva implementação.
Tende-se, então, a enquadrar o dilema moderno de risco como um problema
acerca de sua compreensão e consciência. Do que resulta a instabilidade dos
padrões científicos de segurança que poderão ser ampliados, reduzidos,
dramatizados ou minimizados
26
. Se de um lado a tomada de consciência de um dano
potencial implicar a sua ampla divulgação, poder-se-ia acusar os envolvidos de
alarmistas caso o risco se revelar mínimo. De outro, as autoridades poderiam atuar
como no episódio da encefalopatia espongiforme bovina (mal da vaca louca) no
Reino Unido, em que se declarou à população a irrelevância de riscos, porém, dada
a proporção que a doença atingiu, não se escapou de maciças acusações de
acobertamento.
23
BECK, Ü; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem
social moderna. Trad. Magda Lopes. 2º reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 11-68, passim.
24
Ibidem, p. 19-24, passim.
25
BECK, Ülrich. La société du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion, 2001.
26
Ibidem, p. 41.
19
Ao gerar um estado de ignorância social - através da negação do risco ou da
sonegação de informações sobre os mesmos - ou impor o aumento da tolerabilidade
com o aval de cientistas, não se estaria permitindo a criação de novos riscos? Ou,
em outras palavras, quanto maior o número de riscos ocultados, maior não seria a
sua produção? Paradoxalmente, o alarmismo pode contribuir para a redução dos
riscos, como aconteceu com a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA).
Justamente devido à ampla divulgação, impediu-se que a doença atingisse os
patamares esperados. Verifica-se, deste modo, uma nova importância política
devolvida ao conhecimento, demonstrada por Beck no seguinte fragmento: “[...] nas
situações de classes ou de camadas sociais, é o ser que determina a consciência,
enquanto que nas situações de ameaça, é a consciência que determina o ser.”
27
Uma plena aceitação do risco seria a própria fonte geradora de riqueza em
uma economia moderna. Rostow chega a afirmar que o capitalismo passou por um
processo de transformação, e que em seu novo estado verifica-se a emergência do
conhecimento científico como primeira força produtiva.
28
A difusão e a
comercialização de riscos não romperia, portanto, com a lógica do desenvolvimento
capitalista. Beck
29
os considera, ao contrário, um grande negócio. Seguindo sua
lógica, poder-se-ia satisfazer as crescentes necessidades tecnológicas, mas os
riscos permaneceriam como um reservatório de demandas insaciáveis, que se auto-
produziriam. Dir-se-ia, com Luhmann, que a sociedade torna-se “auto-referencial”. O
que significa que, explorando economicamente os riscos por ela desencadeados, a
própria coletividade criaria situações de ameaça cada vez maiores. O que nos
remeteria a outro paradoxo: justamente aqueles expostos de maneira mais intensa
aos riscos são os mais propensos a ignorá-los.
As sociedades de risco caracterizam-se, então, por novos contornos. De
acordo com Leite e Ayala, as sociedades contemporâneas estão diante de uma
“revolução na dinâmica social e política”, imersa em um complexo processo de
27
BECK, Ülrich. La société du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion, 2001, p.
42. Tradução livre. Texto original: “[…] dans les situations de classes ou de couches socials, c’est
l’être qui détermine la conscience, tandis que dans les situations de menace, c’est la conscience
qui détermine l’être.”
28
ROSTOW, Walt-Whitman. Les étapes de la croissance économique un manifeste non
communiste. Paris : Seuil, 1997.
29
BECK, op. cit., p. 35-90, passim.
20
globalização. Esse processo marcaria, por conseguinte, o aparecimento de uma
sociedade mundial do risco, com uma “nova perspectiva de administração dos
conflitos”.
30
Esse novo gerenciamento de embates estaria se consolidando como
principal função de governo de todas as democracias. Isso porque, conforme
destacado por Giddens,
Seja qual for nossa perspectiva, vemo-nos envolvidos num problema de
administração de risco. Com a difusão do risco fabricado, os governos
não podem fingir que esse tipo de administração não lhes compete. E
eles precisam colaborar uns com os outros, uma vez que muito poucos
dos riscos de novo estilo têm algo a ver com as fronteiras nacionais.
31
Trata-se, pois, de resolver prioritariamente os problemas induzidos pelo
desenvolvimento técnico-econômico. Pensando a natureza como vítima da técnica,
abstraem-se realidades locais e uniformizam-se riscos ligados à modernização.
Abre-se, assim, espaço para a imposição de desigualdades internacionais, como
ocorre, por exemplo, com o Tratado de Kioto, em que são cobradas metas aos
países em desenvolvimento para a redução na emissão de gases, enquanto países
desenvolvidos (sobretudo os Estados Unidos) não se comprometem com tal
contrato. A problemática se resume, portanto, nas formas como os riscos devem ser
gerenciados na sociedade global, pois como defende Beck,
Quanto mais os riscos aumentam, tanto mais se deve prometer
segurança, e é preciso constantemente responder aos ataques de uma
opinião pública vigilante e crítica por intervenções cosméticas ou reais
sobre o desenvolvimento técnico-econômico.
32
Viver na era da globalização corresponde a enfrentar diversas situações de
risco, marcadas pela ausência de fronteiras. Freqüentemente será preciso ousar,
pondo de lado a cautela e apoiando a inovação científica. A busca pelo equilíbrio no
movimento de aquisição dos conhecimentos e competências necessários a uma
séria avaliação dos impactos das inovações propostas faz-se, então, de suma
30
LEITE, J. R. M.; AYALA, P. de A. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004, p. 26-27, passim.
31
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Trad.
Maria Luiza X. de A. Borges. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 43.
32
BECK, Ülrich. La société du risque: sur la voie d’une autre modernité. Paris: Flammarion, 2001, p.
37. Tradução livre. Texto original: “Plus les risques augmentent, plus on doit promettre de sécurité,
et il faut constamment répondre aux assauts d’une opinion publique vigilante et critique par des
interventions cosmétiques ou réelles sur le développement technico-économique.”
21
importância. Para tanto, medidas assecuratórias, como o princípio da precaução,
serão o cerne desse processo.
1.2 Princípios Constitucionais
Para compreender o princípio da precaução, é necessário entender a
estrutura na qual ele está inserido, ou seja, sendo ele um princípio constitucional, a
análise e interpretação destes se fazem imprescindíveis. No entanto, antes de se
ater com profundidade sobre os princípios constitucionais, deve-se situar a própria
Constituição, enquanto Lei Maior dos Estados Nacionais, nesse novo paradigma de
sociedade globalizada
33
.
A interdependência entre os Estados nacionais impõe a problemática de
como estruturar deveres e direitos para além de seus territórios, em uma figura que
Canotilho denomina “Estado Constitucional Informal”
34
. De acordo com o
constitucionalista português, esse Estado implicaria na incorporação de regras não
cristalizadas na Constituição escrita ou, ainda, em outros textos jurídicos.
A globalização, além disso, permitiu a comunicação entre os mais diversos
sistemas, o que impossibilita o estudo da Constituição de forma isolada. Ao
contrário, ela deve estar conectada ou estar em consonância com outras categorias
políticas e conjuntos sociais. Afinal, as Constituições dos Estados Nacionais, nessa
nova ordem mundial, podem e devem ser programas que estabeleçam linhas de
direção para o futuro. Em outras palavras, quer-se, pois, desvelar a necessidade de
as Constituições estarem conformes aos anseios da sociedade. Canotilho corrobora
essa importância quando afirma que “a estrutura dinâmica de uma lei fundamental
33
Saliente-se que, para efeitos desse trabalho, utiliza-se o termo sociedade globalizada para definir
as sociedades ocidentais contemporâneas, cujas políticas internas encontram-se submetidas às
oscilações do mercado e das regras internacionais, com o conseqüente enfraquecimento dos
poderes soberanos dos Estados.
34
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 21-
22. Serão feitas várias menções consecutivas dessa obra, pois ela se constitui em um dos marcos
teóricos principais sobre o qual se desenvolveu o presente trabalho. Além disso, o pensamento do
autor está inspirado, como ele próprio assevera em sua obra, em Dworkin (Taking Rights
Seriously) e Alexy (Theorie der Grundrechte), sugerindo ainda W. Krawietz (Recht als
Regelsystem) e Zagrebelsky (Il Sistema Constituzionale delle fonte dell diritto).
22
aponta para a necessidade de aberturas, pois, caso contrário, a excessiva rigidez do
texto constitucional conduz à distanciação das normas perante o metabolismo
social
35
.
Sob essa ótica, tratar-se-ia de uma ordem constitucional aberta que não
renunciaria à positividade constitucional, mas iria se conceber como fórum
democrático de confrontações. No entanto, o próprio autor rechaça essa posição
argumentando que, nessas condições, a constituição se reconduziria “a um
consenso estático e formal, rebelde à tirania de valores, a um mero espaço de luta
que, tal como está aberto a evoluções socialmente conservadoras”
36
. Não haveria,
assim, garantia dos princípios básicos de justiça que deveriam informar todos os
textos constitucionais.
De outra parte, um modelo de sistema constituído exclusivamente por regras
iria conduzir a um sistema jurídico seguro, sim, mas ao mesmo tempo fechado, de
tal sorte que impossibilitaria o balanceamento de valores e interesses de uma
sociedade pluralista e aberta. Através desse sistema, seria preciso uma exaustiva e
completa disciplina legislativa, pois não seria permitido complementar, ou mesmo
atualizar, o sistema jurídico. Afinal, a indeterminação e a inexistência de regras
precisas levariam a um falho sistema de segurança jurídica.
Porém, é certo que as relações sociais sofrem alterações com o passar do
tempo, e que a responsável pela sua regulamentação, a Constituição, precisa se
manter temporalmente adequada, ou seja, seu conteúdo deve estar “apto a
permanecer dentro do tempo”.
37
O que significa que o conceito de constituição deve
se relacionar com uma idéia de Estado que possa com ela ser compatível.
Considerando-se a realidade brasileira, o conceito de Constituição aqui
desenvolvido pressupõe o modelo de Estado Democrático de Direito
38
. Essa
35
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 79.
36
Ibidem, p. 83.
37
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 84.
38
Conforme definição de Giddens, explanada em momento anterior. (GIDDENS, Anthony. Mundo
em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 4.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 77-91, passim.)
23
pressuposição, por sua vez, impõe a necessidade de a Constituição traçar os
princípios que irão garantir a existência desse modelo de Estado. Isso ocorre, pois
os princípios devem ser vistos como estruturantes da ordem jurídica, dentro,
obviamente, de uma concepção principialista estruturante
39
.
A partir dessa concepção, os princípios são compreendidos como “concretos,
consagrados numa ordem jurídico-constitucional em determinada situação
histórica”
40
. Dessa forma, nega-se a existência de um direito metafísico, originado de
uma ordem jurídica abstrata, que poderia conduzir a uma ordem de valores
suprapositiva. Além disso, como mencionado, sempre que for preciso concretizar
ou atualizar a Constituição, será necessário adequá-la à realidade na qual está
inserida para que não se frustrem os direitos e as garantias dos cidadãos, tampouco
se deturpem os deveres do Estado.
Afinal, como bem salienta o professor Canotilho “[...] as normas e princípios
constitucionais não se devem esgotar na sua positividade antes devem aspirar a ser
direito justo”.
41
Em outras palavras, para que uma constituição seja válida, é
imprescindível que esteja em conformidade com as aspirações, interesses e valores
da comunidade que regerá naquele determinado momento. Assim, a legitimidade do
poder constituinte não se dará por mera posse de poder, mas pela concordância ou
pela conformidade de seus atos com os ideais de justiça traçados pela própria
comunidade.
Na tentativa de alcançar esse ideal, Canotilho apresenta como solução um
sistema aberto de regras e princípios com estrutura dialógica
42
, que permitiria às
normas constitucionais estarem receptivas às novas concepções e a captarem as
39
CANOTILHO, op. cit., p. 345. Conforme Canotilho, esses princípios identificam-se com os
princípios fundamentais, em geral, possuindo duas dimensões: “uma constitutiva, dado que os
princípios, eles mesmos, na sua fundamentalidade principial exprimem, indiciam, denotam ou
constituem uma compreensão global da ordem constitucional; uma dimensão declarativa, pois
esses princípios assumem, muitas vezes, a natureza de superconceitos, de vocábulos
designantes, utilizados para exprimir a soma de outros subprincípios e de concretizações
normativas constitucionalmente plasmadas.”
40
Ibidem, p. 346.
41
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 109.
42
Ibidem, p. 171. A estrutura dialógica, na concepção de Canotilho, se traduz na disponibilidade e
capacidade de aprendizagem das normas constitucionais para captarem as mudanças da
realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da verdade e da justiça.
24
mudanças da realidade. A abertura das normas constitucionais permitiria que, por
meio de mediação concretizadora
43
, o caráter geral e indeterminado das normas
constitucionais fosse complementado, ou melhor, que os sujeitos concretizantes
pudessem conformar as normas constitucionais à realidade social daquele
determinado momento, sem, contudo, afrontar os ideais de justiça. E esse sistema,
proposto por Canotilho, se estruturaria através de normas em tudo que se referisse a
valores, programas e funções.
Para Canotilho, “na cultura jurídica moderna o conjunto de normas jurídicas
(regras + princípios) constitutivas de uma sociedade organizada é concebido como
um sistema de normas juridicamente vinculantes (sistema jurídico)”
44
. Aqui se faz
importante a contribuição de Bonavides:
[...] desde que a Constituição, sendo, como é, na mais prestigiosa
doutrina constitucional, uma expressão do “consenso social sobre os
valores básicos”, se torna [...], o alfa e o ômega da ordem jurídica,
fazendo, a nosso ver, de seus princípios, estampados naqueles valores,
o critério mediante o qual se mensuram todos os conteúdos normativos
do sistema.
45
A partir dessa concepção de sistema jurídico, pode-se concluir, com
Canotilho, que o direito é um sistema dinâmico de normas, que se assenta em
uma norma fundamental – a Constituição. Essa, por sua vez, delega a outros órgãos
o poder para criar outras categorias de normas, sempre, é claro, respeitando os
princípios que norteiam a Lei Maior. O autor pretende, com isso, demonstrar que a
Constituição deve ser compreendida como um sistema interno baseado em
princípios estruturantes fundamentais, que serão o embasamento de subprincípios e
regras constitucionais capazes de concretizar aqueles princípios estruturantes. Com
isso, quer dizer que “a Constituição é formada por regras e princípios de diferentes
graus de concretização (=diferente densidade semântica)”.
46
43
Canotilho associa a concretização das normas à sua densificação, ou seja, a norma é preenchida
pelo processo de densificação, o que permite a sua concretização e conseqüente aplicação ao
caso concreto. Conforme Guedes, “de maneira global poder-se-ia dizer que a concretização
corresponde ao processo de busca de uma norma de decisão que sendo inferida de um sistema
aberto seja aplicável ao caso concreto”. (GUEDES, Néviton de Oliveira Batista. Para uma crítica à
concretização das normas constitucionais a partir de José Joaquim Gomes Canotilho. Dissertação
para obtenção do grau de Mestre em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, 1995.)
44
CANOTILHO, op. cit., p. 48.
45
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 261.
46
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 180.
25
Para Bonavides, os valores estruturantes das normas aos quais Canotilho faz
referência serão realizados quando se reconhecer teoricamente a positividade dos
princípios. Através desse reconhecimento, um “Estado principialista” seria
instaurado, com fundamento na positividade dos valores da justiça, da razão, da
liberdade, da igualdade e da democracia. Para o autor, essa seria a versão
aperfeiçoada de Estado de Direito.
47
Em resumo, em consonância com o pensamento de Canotilho, Bonavides
reconhece a tese de que os princípios são normas jurídicas e que as normas
compreendem as regras e os princípios. E mais, destaca que a distinção entre elas
aparecerá com maior nitidez no conflito entre regras e na colisão de princípios,
conforme se verá adiante.
48
Tendo em vista que as normas se manifestam na forma de regras e
princípios, seria, então, um sistema de regras e princípios.
49
Em outras palavras,
regras e princípios podem ser consideradas espécies do gênero norma. No entanto,
esse é um posicionamento que nem sempre foi pacífico na doutrina. Ainda encontra-
se, na doutrina brasileira, autores como Bastos e Borges, que fazem a tradicional e,
pode-se dizer, ultrapassada distinção entre princípios e normas
50
.
Conforme Bonavides, foi através dos acréscimos teórico-analíticos de
Dworkin e Alexy que a distinção entre regras e princípios como espécies do gênero
norma de direito se pacificou.
51
A partir desse momento deve-se, por conseguinte,
abandonar a distinção inicial entre normas e princípios que não pode existir, haja
vista que estes são espécie daquelas.
Na concepção de Grau, a primeira distinção reconhecida pela doutrina entre
regra e princípio foi a proposta por Boulanger, que atentou para a generalidade dos
47
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 18.
48
Ibidem, p. 243-252, passim.
49
CANOTILHO, op. cit., p. 165.
50
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 137;
BORGES, José Souto Maior. Pró-dogmática: por uma hierarquização dos princípios
constitucionais. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, n. 1, 1993, p. 143.
51
BONAVIDES, op. cit., p. 243.
26
tipos de normas em questão. De acordo com a distinção estabelecida, a regra seria
editada para ser aplicada a uma situação jurídica determinada, enquanto que o
princípio comportaria indefinidas aplicações.
52
De qualquer forma, essa primazia de
Boulanger não retira o mérito de Dworkin e Alexy, responsáveis pela difusão e
conseqüente pacificação da distinção entre regras e princípios na doutrina.
Deve-se atentar para o fato, salienta-se, de que os princípios são dotados de
normatividade, porém são distintos das regras. A demonstração da supremacia ou
hegemonia dos princípios na pirâmide normativa torna-se, então, plausível, na
medida em que os princípios sejam equiparados, quiçá confundidos, com os valores
que lhes dão fundamento e organizam o poder.
53
No mesmo sentido, a
constitucionalista Rocha pondera:
Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do
sistema jurídico-normativo fundamental de um Estado. Dotados de
originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que
formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela
sociedade são transformados pelo Direito em princípios. Adotados pelo
constituinte, sedimentam-se nas normas, tornando-se, então, pilares
que informam e conformam o Direito que rege as relações jurídicas no
Estado. São eles, assim, as colunas mestras da grande construção do
Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional [...].
54
Entretanto, com base em Miranda, Grau observa, de certa forma contrapondo
a posição de Bonavides, que os princípios não estão além ou acima do Direito. Ao
contrário, seriam eles parte integrante do complexo ordenamental.
55
Retomando a distinção entre regras e princípios, para torná-la clara é mister
elencar algumas de suas particularidades. O primeiro critério considerado por
Canotilho para diferenciar regras e princípios é o grau de abstração de cada qual.
Enquanto as regras seriam normas de abstração reduzida, os princípios seriam
normas de abstração elevada. Quanto ao grau de determinabilidade, as regras
52
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e crítica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 112.
53
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 259.
54
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 25.
55
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e crítica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p 129.
27
teriam aplicabilidade direta; os princípios, por sua vez, seriam normalmente vagos e
indeterminados, carecendo, assim, de mediação para que possam ser
concretizados. Além disso, os princípios costumam ser fundamentos das regras.
56
Outra grande diferenciação é que as regras antinômicas excluem-se,
enquanto os princípios coexistem
57
. Isso ocorre porque os princípios possibilitam o
balanceamento de valores e interesses conforme seu peso e a ponderação com
outros princípios. as regras, sempre que houver antinomia entre duas, uma delas
será inválida e, conseqüentemente, excluída do sistema. Não pode haver, em um
mesmo sistema jurídico, regras que se contradigam. Justamente essa existência de
regras e princípios é que possibilita a compreensão da constituição como um
sistema aberto de regras e princípios
58
.
Assim, conforme a teoria dos princípios, por expressarem os valores éticos e
sociais que fundamentam o Estado e a Sociedade, não se pode negar aos princípios
constitucionais a sua natureza de norma jurídica, ainda que suas características
estruturais e funcionais, como acima elucidado, sejam diversas de outras normas,
como as regras de direito. Portanto,
[...] se o direito constitucional é direito positivo, se a constituição vale
como lei, então as regras e princípios constitucionais devem obter
normatividade, regulando jurídica e efectivamente as relações da vida
dirigindo as condutas e dando segurança a expectativas de
comportamentos.
59
De acordo com o pensamento do professor Canotilho, a normatividade dos
princípios é um efeito global da norma quando de sua concretização. Assim,
pressupõe-se a realização da norma pela sua concretização em um dado caso
concreto que careça de decisão. Em síntese, a normatividade nada mais é que o
efeito da concretização da norma.
60
56
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 166.
57
Essa é uma importante observação que será retomada em momento posterior, na análise
específica do princípio da precaução e seu conflito com o princípio de desenvolvimento
tecnológico.
58
CANOTILHO, op. cit., p. 168.
59
Ibidem, p. 183.
60
Ibidem, p. 210.
28
A contribuição da constitucionalista Rocha para denotar a natureza singular
dos princípios é visível ao trazer à tona algumas características que seriam próprias
desse tipo de norma constitucional. A primeira, e, quiçá, mais importante, é a sua
normatividade jurídica, largamente discutida em momento anterior, razão pela
qual será feita uma pequena abordagem, com o intuito apenas de mostrar sua
concordância com o pensamento de Canotilho sobre o tema. Pela normatividade, os
princípios devem ser considerados como lei, todavia diversos das regras, mas que,
igualmente a elas, são normas jurídicas, dotadas de imperatividade, vinculabilidade
e aplicabilidade, porém, com níveis de concretização diversos das regras jurídicas
61
.
Além da normatividade que lhes é inerente, seriam os princípios
constitucionais normas gerais, para que assim pudessem dar origem a outros
princípios e regras.
62
Através da generalidade, possibilitar-se-ia à Constituição o
cumprimento de sua função enquanto lei maior fundamental do Estado, sem,
todavia, prender a sociedade a modelos inflexíveis ou incompatíveis com as
mudanças que ela mesma gera no decorrer de sua história. Dessa forma, é viável
manter o sistema de Direito sempre atualizado com os interesses da sociedade que
regula.
Embora a autora tenha feito menção em separado quanto às características
da atualidade e da poliformia, acredita-se que essas possam ser enquadradas na
generalidade dos princípios, tendo em vista que a conseqüência de ambas é
justamente a manutenção da coerência entre os princípios firmados e as aspirações
e ideais projetados pela sociedade. Salienta-se, apenas, que a atualização se daria
pela interpretação do texto constitucional.
63
Essa interpretação referida pela autora
pode ser entendida, através da definição de Canotilho, como a atribuição de “um
significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos na constituição com o fim de
se obter uma decisão de problemas práticos, normativo-constitucionalmente
fundada”
64
. Por sua vez, a poliformia permitiria a multiplicidade de sentidos que se
61
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 42.
62
Ibidem, p. 29.
63
ROCHA, op. cit., p. 38.
64
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p.
202.
29
acrescentariam e se sucederiam a fim de manter a permanência e eficácia do
sistema
65
.
Igualmente, acreditando-se ligada à característica da generalidade, está a
primariedade dos princípios. No interior do sistema constitucional, os princípios
constitucionais são primários, ou seja, deles decorrem outros princípios, os quais a
autora define como “subprincípios”
66
. A vinculabilidade, outra característica apontada
por Rocha, se expressa no sentido de que as regras e os princípios, sejam
constitucionais ou infraconstitucionais, devam ser vinculados aos princípios
primários definidos na Constituição, que denotam o ideário político, social e jurídico
da sociedade organizada em forma de Estado
67
. Mais uma vez, pondera-se que esta
particularidade pode ser inserida em um contexto mais amplo, que seria o da
generalidade dos princípios.
A informatividade dos princípios constitucionais é responsável por originar
todo o sistema jurídico do Estado, ou seja, ser base do sistema constitucional e ser
fonte de todo o ordenamento
68
. Ligada a ela, encontra-se a transcendência, em que
a superação da elaboração normativa constitucional para se tornar na mais
importante, ou como quer a autora, na mais vigorosa diretriz política, econômica e
social do Estado
69
. Como é possível perceber, essas singularidades da
informatividade e da transcendência, apontadas de forma individual pela autora,
também podem ser inclusas em uma dimensão maior, sendo englobadas pela
generalidade dos princípios constitucionais.
De extrema importância para a presente pesquisa, a objetividade dos
princípios constitucionais também não deixou de ser contemplada por Rocha.
Conforme a sua própria definição, “a objetividade é a qualidade que assegura a
eficácia do Direito como veículo possibilitador do justo legitimado socialmente”
70
. A
65
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 39.
66
Ibidem, p. 30.
67
Ibidem, p. 39-40, passim.
68
Ibidem, p. 41.
69
Ibidem, p. 38.
70
Ibidem, p. 37.
30
significação de suas palavras é no sentido de conferir à objetividade dos princípios a
capacidade de impedir que o aplicador das normas diga o Direito conforme as suas
próprias convicções, em desacordo, por vezes, ao texto constitucional.
Na seqüência, a constitucionalista refere-se à particularidade da aderência,
segundo a qual comportamentos estatais ou particulares não podem se distanciar do
constitucionalmente positivado
71
. De forma simplificada, tanto a produção normativa
estatal quanto os contratos e convenções elaborados pela sociedade devem
obediência à principiologia constitucional. Canotilho se manifesta, a esse respeito,
quando alude à aplicação direta das normas constitucionais. Segundo ele,
[...] aplicação directa não significa apenas que os direitos liberdades e
garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa.
Significa também que eles valem directamente contra a lei, quando esta
estabelece restrições em desconformidade com a Constituição.
72
Por fim, pela complementariedade dos princípios constitucionais, advoga que
eles são condicionantes uns dos outros, ou seja, o melhor entendimento será aquele
extraído do entrosamento de todos eles
73
. Como será observado em momento
posterior, essa singularidade está intimamente relacionada à harmonização dos
princípios constitucionais defendida por Canotilho.
Diante de todas essas características, é possível concluir, sempre com base
na obra de Canotilho, que os princípios são multifuncionais. O que desvela que os
princípios constitucionais podem desempenhar funções argumentativas ou mesmo
trazer à tona normas não expressas. Através de suas multifunções, possibilitam o
desenvolvimento, integração e complementação do direito.
74
Essa observação de Canotilho nos remete a outra peculiaridade dos
princípios constitucionais de extrema relevância: o reconhecimento da existência de
princípios expressos e de princípios implícitos com raízes constitucionais, ou seja,
71
Ibidem, p. 40.
72
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 186.
73
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 41.
74
CANOTILHO, op. cit., p. 167.
31
de princípios implícitos no próprio texto constitucional. Para a perspectiva
principialista de Canotilho, princípios constitucionais não escritos ou implícitos
podem ser considerados “como elementos integrantes do bloco da
constitucionalidade quando forem relativos a princípios reconduzíveis a uma
densificação ou revelação específica de princípios constitucionais positivamente
plasmados”
75
. Para uma melhor compreensão, segue a explicação do próprio
Canotilho sobre o que seja densificação.
Densificar uma norma significa preencher, complementar e precisar o
espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente
carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse
preceito, dos problemas concretos. As tarefas de concretização e de
densificação de normas andam, pois, associadas: densifica-se um
espaço normativo (=preenche-se uma norma) para tornar possível sua
concretização e a conseqüente aplicação a um caso concreto.
76
Em suma, para Canotilho o processo de concretização se nas
densificações de princípios e regras pelo legislativo e pelo judiciário. E, assim, aceita
a idéia de Direito Constitucional não escrito. No entanto, vislumbra-o como função
de complementação, integração e desenvolvimento das normas constitucionais
escritas. Grau coaduna com esse posicionamento, defendendo que os princípios
implícitos são deduzidos da ordem jurídica através de processos de interpretação e
concretização do Direito
77
.
Vários outros autores, como Mello, Bonavides e Rocha, afirmam a existência
de princípios constitucionais implícitos, atribuindo a eles caráter e força como se
expressos fossem.
78
Canotilho, porém, adverte sobre os riscos de autoridade que
poderiam surgir de uma ordem de valores supraconstitucional a fornecer princípios
constitucionais não escritos.
75
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 980-
981.
76
Ibidem, p. 209.
77
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e crítica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 92.
78
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
1994, p. 43-46.; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
1994, p. 18.; ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública.
Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 28.
32
Além do reconhecimento da existência de princípios expressos e implícitos na
Constituição, Canotilho adverte, ainda, para a ocorrência de múltiplos princípios,
importante para se poder situar a presente pesquisa. Na categoria de princípios
jurídicos fundamentais encontram-se “os princípios historicamente objectivados e
progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma
recepção expressa ou implícita no texto constitucional”. Além destes, os
princípios que condensam o cerne das opções políticas, refletindo a ideologia
política que inspira a constituição, conhecidos como princípios políticos
constitucionalmente conformadores.
79
Aos princípios que impõem aos órgãos estatais a realização de fins e a
execução de tarefas, o autor denomina princípios constitucionais impositivos.
80
Nessa categoria, pode-se enquadrar o princípio previsto no artigo 218 da
Constituição Federal Brasileira de 1988, que assegura o desenvolvimento
tecnológico.
Por fim, os princípios-garantia são definidos como aqueles que objetivam,
de forma direta e imediata, oferecer garantia aos cidadãos. Como lhes é atribuída
densidade de autêntica norma jurídica e força determinante, vincula-se a sua
aplicação pelo legislador. Nesta categoria, pode-se inserir o princípio da precaução.
Considerando-se a constituição como um sistema aberto de regras e
princípios, poderão surgir fenômenos de tensão entre esses princípios estruturantes,
como se pode observar o conflito entre o princípio da precaução e o princípio do
desenvolvimento tecnológico. Por isso, apresenta Canotilho a “[...] necessidade,
atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a
uma lógica do tudo ou nada, antes podem ser objecto de ponderação e
concordância prática, consoante o seu “peso” e as circunstâncias do caso”
81
. Ao que
se deve acrescentar que a uma norma constitucional é preciso atribuir o sentido que
lhe dê maior eficácia.
79
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 171-
172.
80
Ibidem, p. 173.
81
Ibidem, p. 190.
33
O que se propõe, com base em Canotilho, é o princípio da concordância
prática ou da harmonização dos princípios constitucionais. Segundo esse, impõe-se
a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício
total de qualquer deles. Subjacente a esse, está a idéia de igual valor dos bens
constitucionais, que impediria hierarquia
82
entre os diversos princípios. Se não
hierarquia, não é possível exigir-se o sacrifício de um em detrimento de outro.
Assim, estabelece-se limites e condicionamentos recíprocos, buscando sempre a
harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionais em conflito.
83
Afinal, para o constitucionalista português,
[...] a especificidade, conteúdo, extensão e alcance próprios de cada
princípio não exigem nem admitem o sacrifício unilateral de um
princípio em relação aos outros, antes reclamam a harmonização dos
mesmos, de modo a obter-se a máxima efectividade de todos eles.
84
Encontra-se, na doutrina brasileira, juristas que advogam no mesmo sentido
de Canotilho, talvez até por sofrerem influência do mestre português. No entanto,
dentre eles, optou-se por salientar a afirmação feita por Grau
[...] que os princípios possuem uma dimensão que não é própria das
regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se
entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar
em conta o peso relativo de cada um deles [...]. As regras não possuem
tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do
sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no
caso do conflito entre ambas, deva prevalecer uma em virtude do seu
peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é
válida.
85
Entretanto, Marques Neto defende que não existem lacunas ou antinomias
entre os princípios. As lacunas não poderiam existir que, pela característica da
generalidade dos princípios, eles não poderiam ser aplicados aprioristicamente a
este ou aquele caso concreto, podendo a sua aplicação ser feita a uma série
82
Conforme Espíndola, pode-se perceber uma certa tendência de Ivo Dantas e Souto Maior em
hierarquizar os princípios constitucionais no interior da Constituição. Essa concepção, que busca
normas constitucionais inconstitucionais, na análise de Espíndola, contraria o princípio da unidade
da Constituição. Para detalhamento do assunto, ver ESPĺNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de
princípios constitucionais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
83
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 228.
84
Ibidem, p. 54.
85
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e crítica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 110-111.
34
indeterminada de hipóteses. Quanto às antinomias, refuta-as com base no
argumento que entre princípios existiriam apenas colisões ou oposições, e que isso
não implica na exclusão do princípio antinômico. Aqui, em consonância com o
pensamento de Canotilho, defende a ponderação ou harmonização entre os
princípios. Isso porque, para ele, a convivência entre princípios é sempre conflitante,
haja vista que conforme a situação conjuntural, a aplicação dos princípios se faça de
maneira diversa.
86
Resumindo, então, em poucas palavras o pensamento de Canotilho, embora
haja a necessidade de adequação permanente das normas constitucionais frente às
evoluções da realidade social, essa poderá se dar de maneira a não contrariar os
princípios estruturais da constituição. Dessa forma, ter-se-á uma constituição flexível
e firme ao mesmo tempo. A adequação às normas, nesse contexto, far-se-á por
meio da interpretação, conforme definição de Canotilho apresentada em momento
anterior. Mas, acima de tudo, é preciso não apenas interpretar a constituição, mas
também realizá-la, ou seja, tornar as suas normas constitucionais juridicamente
eficazes.
87
E é com esse intuito, de possibilitar a aplicação eficaz do princípio da
precaução, enquanto princípio constitucional, que passar-se-á a sua análise
detalhada.
1.3 Primeiras referências ao princípio da precaução
As primeiras formulações explícitas do princípio da precaução como conceito
de política pública surgiram na Alemanha, no fim da década de 60, com o intuito de
conduzir ações para o controle da poluição atmosférica. Sua importância o levou,
mais tarde, a tornar-se um dos cinco princípios basilares de apoio às políticas de
proteção do meio ambiente neste país.
88
Combinando as idéias de detecção precoce
86
NETO, Floriano Marques. O conflito entre princípios constitucionais: breves pautas para uma
solução. Revista dos Tribunais. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo:
Revista dos Tribunais, ano 3, n. 10, jan./mar. 1995, p. 42.
87
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 201.
88
GODARD, Olivier. Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et
démocracie. Revue Philosophie Politique, mai 2000, p. 3. Serão feitas alusões seguidas a esse
artigo em razão de ser ele parte do referencial teórico utilizado na presente pesquisa.
35
das ameaças, de ação preventiva e de adoção de medidas de proteção sem esperar
a obtenção de certezas científicas sobre a natureza, a extensão ou as causas da
degradação, o princípio da precaução se firmou de forma predominante na doutrina
sem, contudo, ter status de norma jurídica.
Ainda no plano internacional, em 1987, a declaração ministerial da segunda
Conferência Internacional sobre a proteção do mar do Norte, referiu-se a uma
“abordagem de precaução”. O requerimento foi pela adoção de formas de controle
de substâncias tóxicas antes mesmo que uma relação de causalidade fosse
estabelecida com a degradação do meio-ambiente. Nos anos seguintes, diversas
outras convenções fazem referência tanto a uma abordagem de precaução quanto a
um princípio da precaução: Convenção de Londres (1990) sobre a preparação, a
luta e a cooperação quanto à poluição por hidrocarburetos; Convenção de Paris
(1992) sobre a proteção do ambiente marinho do Atlântico; Convenção de Helsinque
(1992) sobre a proteção e a utilização de cursos de água transfronteiriços e de lagos
internacionais; Convenção de Helsinque (1992) sobre a proteção do meio marinho
na zona do mar Báltico; Convenção de Charleville-Mezière (1994) sobre a proteção
do rio Escaut e do rio Meuse; Convenção de Sofia (1994) sobre a cooperação para a
proteção sustentável do rio Danúbio; Protocolo de Barcelona (1995) sobre as zonas
especialmente protegidas e a diversidade biológica no Mediterrâneo; entre tantas
outras.
89
No direito comunitário europeu, despontou com o Tratado de Maastricht,
confirmado após pelo Tratado de Amsterdam. De fato, o princípio da precaução na
Europa não se limitou somente ao domínio do meio-ambiente. Estendeu-se também
aos domínios da segurança alimentar e da saúde pública, tendo como marco a
decisão da Corte de Justiça Européia provocada pela contestação britânica contra a
interdição da exportação do gado inglês. Esta Corte estimou que, em caso de
incertezas científicas quanto à existência de riscos à saúde das pessoas, poderiam
as instituições tomar medidas sem que a gravidade dos danos estivesse plenamente
demonstrada.
90
Embora o termo não tenha sido empregado, resta evidente aqui a
substância de tal preceito.
89
SADELEER, Nicolas de. O Estatuto do princípio da precaução no direito internacional. In:
VARELLA, M. D.; PLATIAU, A. F. B. (Org.) Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004,
p. 52-53.
36
O princípio da precaução foi também objeto de apreciação, em 1972, na
Conferência de Estocolmo, além de encontrar-se presente no princípio 15 da
Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992).
Princípio 15: De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da
precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo
com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou
irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser
utilizada como razão para postergar medidas eficazes e
economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.
Na França, a lei Barnier demanda medidas efetivas e proporcionadas visando
prevenir, a um custo economicamente aceitável, riscos de danos graves e
irreversíveis ao meio ambiente. A discussão acerca da inclusão do princípio da
precaução na Constituição Francesa rendeu calorosos debates entre poder público,
cientistas e sociedade, até a sua adoção, pelo Congresso, na Carta do Meio
Ambiente, em março de 2005. O artigo 5° da Carta indica:
Quando da realização de um perigo, mesmo que incerto diante do
estado dos conhecimentos científicos, que poderia afetar de maneira
grave e irreversível o meio ambiente, as autoridades públicas velam,
pela aplicação do princípio da precaução e em seus domínios de
atribuições, a aplicar procedimentos de avaliação de riscos e à adoção
de medidas provisórias e proporcionais a fim de parar a realização do
perigo.
91
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 adotou expressamente o princípio
da precaução ao estabelecer, no caput do artigo 225, o dever do Poder Público e da
coletividade de “proteger e preservar” o meio ambiente para presentes e futuras
gerações. Importante, aqui, levantar-se a discussão acerca do conceito de futuras
gerações. Primeiramente, deve-se atentar para a advertência feita por Kiss de que
seria mais correto falar-se em fluxo constante, e não em gerações. O termo geração
oferece a idéia de superação, de sobreposição e, na verdade, o que se verifica na
90
GODARD, Olivier. Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et
démocracie. Revue Philosophie Politique, mai 2000, p. 3-5, passim.
91
GODARD, Olivier. Le principe de précaution n’est pas un catastrophisme. Cahier, Paris, n. 04, mar.
2006, p. 1. Tradução livre. Texto original: “Lorsque la réalisation d’un dommage, bien qu’incertaine
en l’état des connaissances scientifiques, pourrait affecter de manière grave et irréversible
l’environnement, les autorités publiques veillent, par application du principe de précaution et dans
leurs domaines d’attributions, à la mise en œvre de procédures d’évaluations des risques et à
l’adoption de mesures provisoires et proportionées afin de parer à la réalisation du dommage.
37
sociedade atual, com o aumento da expectativa de vida, é a coexistência de várias
gerações, sem que uma delas supere a anterior. Portanto,
A compreensão de que a futura humanidade começa novamente a
cada segundo conduziria, assim, ao reconhecimento da totalidade da
humanidade, incluindo os membros atuais e futuros, como pessoa
legal, sujeito de direito e portadora potencial de direitos e deveres.
92
A história da humanidade demonstra os esforços do homem para garantir a
sua sobrevivência, bem como denota a sua preocupação em proporcionar o bem-
estar e melhorar as oportunidades para seus descendentes. É instintivo dos seres
vivos assegurar a sua reprodução e o desenvolvimento de sua prole. Como disse
Saint-Exupéry, “nós não somos os herdeiros de nossos pais, mas os devedores de
nossas crianças”
93
. Por conseguinte, deve o homem se esforçar para repassar
adiante a riqueza herdada, na medida do possível, nas mesmas condições em que
recebida. Esse conceito foi definido por Weiss como “equidade intergeracional”
94
.
Com base nessas elucidações, é possível aceitar como direitos das futuras
gerações aqueles que cada geração tem em se beneficiar, bem como em
desenvolver o patrimônio natural e cultural herdado, de maneira a repassá-los
adiante em circunstâncias não piores do que as recebidas. Essa preocupação com o
direito das gerações futuras é, pois, inerente ao conceito de desenvolvimento
sustentável. Afinal, como questiona o pesquisador Kiss, “como pode a mesma
quantidade de espaço, de regiões naturais, de água limpa, de animais selvagens ser
garantida para infinitas gerações com número cada vez maior de indivíduos?”
95
Não outro caminho senão estabelecer um projeto de desenvolvimento
durável, ou seja, como referido no relatório Brundtland, “satisfazer as necessidades
do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras em satisfazer as
suas”.
96
Além disso, a Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento
(WCED) concordou que
92
KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In:
VARELLA, M.D.; PLATIAU, A.F.B.(Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.
4.
93
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Vol de nuit. Paris: Gallimard, 1948, p. 29.
94
WEISS, E. Brown. In fairness to future generations: international law, common patrimony and
intergenerational equity. New York: Transnational, 1989, p. 17.
95
KISS, op. cit., p. 7.
38
[...] o conceito de desenvolvimento sustentável implica limites, não
absolutos, mas limites impostos pelo atual estado da tecnologia e da
organização social, em recursos ambientais, e pela capacidade da
biosfera de absorver os efeitos das atividades humanas.
97
Pode-se afirmar que os limites à utilização da natureza não decorrem
somente da própria natureza, mas também da tecnologia humana e das implicações
econômicas e sociais de certos produtos. Na maioria das vezes, limites tecnológicos,
conflitos de uso ou mesmo preços elevados em face de uma grande raridade
econômica entrarão em jogo antes mesmo que os limites físicos dos recursos
naturais sejam utilizados. Ademais, riscos acidentais poderão condenar certas
técnicas antes que sua capacidade de exploração tenha sido utilizada.
O desenvolvimento durável afirma um projeto coletivo, de interações entre o
conhecimento científico, o desenvolvimento tecnológico e a ação coletiva para
prevenir os danos naturais e culturais. Portanto, engajar, atualmente, uma política de
desenvolvimento sustentável significa, sobretudo, adotar uma atitude de precaução
diante dos riscos cujas conseqüências seriam suportadas pelas gerações seguintes.
Exatamente com esse intuito, a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24 de
março de 2005), com a expressa referência ao princípio em seu artigo 1º, ratificou a
incorporação deste na legislação brasileira, colocando-o como referencial a ser
observado para a proteção do meio ambiente. Dispõe o referido artigo:
Art. - Esta lei estabelece normas de segurança e mecanismos de
fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o
transporte, a transferência, a importação, a exportação, o
armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a
liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente
modificados OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo
ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a
proteção à vida e a saúde humana, animal e vegetal, e a observância
do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.
96
GODARD, Olivier. Savoirs, risques globaux et développement durable. Cahier, Paris, n. 09, jun.
2004, p. 7. Tradução livre. Texto original: “satisfaire les besoins du présent sans compromettre la
capacité des générations futures à satisfaire les leurs”.
97
KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In:
VARELLA, M.D.; PLATIAU, A.F.B. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004,
p. 6-7.
39
Afinal, a presunção de irreversibilidade ou da gravidade dos danos ambientais
faz com que, aos olhos de parte da população e de alguns gestores públicos, seja
necessária uma prevenção precoce, capaz de gerir esses riscos coletivos. Os
responsáveis deveriam, assim, se engajar na prevenção ou na preparação da
adaptação aos riscos potenciais antes de dispor de certezas científicas sobre as
causas ou mesmo sobre a existência do dano.
1.4 Abordagens teóricas do princípio da precaução
Deve-se inscrever a reflexão sobre este novo preceito neste duplo contexto,
marcado pela incapacidade da ciência de garantir em tempo útil um fundamento
razoável à ação pública, bem como pela existência de um fundo de desconfiança em
relação às instituições públicas e aos responsáveis no domínio da gestão dos riscos.
Há duas correntes que definem o princípio da precaução. Para a primeira, não
passaria de uma tentativa clássica adotada na saúde pública a partir de fatores de
risco. A epidemiologia versaria sobre fenômenos incontestes com causas ainda não
elucidadas. De maneira análoga, o princípio da precaução acometer-se-ia dos
perigos cuja existência mesma não é confirmada de um ponto de vista científico.
Assim, a precaução implicaria uma abordagem prospectiva de perigos, em que indo
além de dados empíricos disponíveis, não se situaria no estrito prolongamento de
práticas anteriores.
98
Para a outra corrente, este preceito romperia com certos valores e normas
centrais de comportamento que prescindiram ao desenvolvimento tecnológico,
industrial e econômico. Seria a fonte de uma nova obrigação moral de proteção de
direitos da natureza e de preservação de condições suficientes para o
desenvolvimento de diferentes formas de vida. Nessa corrente, pode-se enquadrar
claramente o princípio da responsabilidade de Jonas
99
. Esse autor, considerado o
98
GODARD, Olivier. Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et
démocracie. Revue Philosophie Politique, mai 2000, p. 6.
99
JONAS, Hans. Le principe résponsabilité. Une éthique pour la civilisation technologique. Paris :
Ed. du Cerf, 1990.
40
pai da filosofia catastrófica
100
moderna, propõe uma norma de responsabilidade
moral, um imperativo moral absoluto segundo o qual a humanidade se absteria de
toda ação que apresentasse risco, por mínimo que fosse, capaz de conduzir ao fim
da humanidade. Essa regra, proposta por Jonas, depende inteiramente da
capacidade dos homens em discernir quais ações teriam potencial apocalíptico.
Além disso, este princípio da abstenção exige a prova científica da ausência de
riscos ou da sua inocuidade como condição de autorização de determinada
atividade, produto ou tecnologia. A ausência de certeza quanto à inocuidade deve
conduzir à renúncia das ações ou projetos, ou seja, a sua não autorização ou
interdição.
Nessa linha de pensamento de um princípio de abstenção, estimam ainda
que ele efetuaria uma inversão do ônus da prova, que doravante incumbiria aos
participantes do desenvolvimento tecnológico e econômico. Outrossim, fundaria uma
nova fonte de responsabilidade civil para todos que não se mostrarem prudentes.
101
Nota-se o apelo moral com que embasam a adoção do preceito, não firmando a
decisão em provas científicas, razão pela qual impingem a inversão do ônus
probatório.
Segundo essa tendência, caberia ao empresário ou ao pesquisador provar a
ausência de riscos antes de ser autorizado a conduzir seus projetos com êxito. Esse
regime assemelha-se àquele em vigor para os produtos farmacêuticos e alguns
produtos químicos, submetidos a um regime de autorização para colocação no
mercado. Trata-se, contudo, apenas de semelhança, pois para este último, não é
demandada a prova da inocuidade, mas um relatório risco-benefício suficiente. Mas
o que é preciso provar? A ausência de perigo ou o fato que se respeitou um conjunto
de procedimentos ou que se tomou um conjunto de medidas para que o risco fosse
100
Jean-Pierre Dupuy recentemente propôs, em uma reinterpretação de sua obra, o neo-
catastrofismo. Segundo este autor, o problema não está concentrado na incerteza científica
referente à existência ou inexistência dos perigos, mas no fato de que os seres humanos não
crêem no que sabem, ou seja, a humanidade está certa, em seu íntimo, que a catástrofe e seu
fim estão próximos, mas se recusa a aceitar ou acreditar nessa hipótese. A vigilância, por sua
vez, suporia a subsistência da dúvida quanto à eficácia das medidas de proteção ou prevenção
que fossem adotadas. Dada essa certeza do ser humano quanto ao futuro catastrófico, a
sociedade, por não crer na eficácia da prevenção, não se engajaria em suas ações. (DUPUY,
Jean-Pierre. Pour um catastrophisme éclairé. Quand l’impossible est certain. Paris: Seuil, 2002.)
101
GODARD, Olivier. Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et
démocracie. Revue Philosophie Politique, mai 2000, p. 7.
41
aceitável? E quem determina qual é o grau de aceitabilidade de um dado risco pela
sociedade?
Em uma concepção positivista da ciência, supondo que a incerteza reduza-se
à proporção do avanço dos conhecimentos, até sua inexistência, a demanda pela
prova da inocuidade se traduziria na imposição de negações suplementares na
instituição de inovações. Nesta perspectiva, o princípio da precaução regula o tempo
de espera dos conhecimentos. Oferece, igualmente, referências para calibrar a
prevenção e organizar a tomada de riscos neste intervalo em que os conhecimentos
científicos não oferecem a prova nem da existência nem da inexistência de perigo.
Nas palavras de Godard, “é possível provar a existência de um perigo, mas
demandar a prova definitiva da ausência de perigo é uma exigência que foge à
lógica”
102
. A noção da ausência de risco conteria a idéia implícita que o “perigo zero”
poderia representar uma norma possível e desejável. Entretanto, o entendimento
que se pretende do princípio da precaução não se coaduna com as idéias até então
expostas.
O conceito de precaução capaz de permitir o desenvolvimento econômico e
tecnológico de forma sustentável não exige a prova da ausência total de danos
(perigo zero), bem como não institui uma obrigação de resultado. Afinal, o fato de
alguns perigos se realizarem não implica que as medidas adotadas estavam mal
calibradas ou foram mal empregadas. Muitas vezes, o objetivo das medidas será
apenas reduzir os impactos negativos, tornando-os aceitáveis.
Igualmente, o princípio da precaução não demanda a inversão do ônus da
prova, mas busca verificar se perigo e em que intensidade ele se manifestaria,
para que as autoridades possam fundamentar suas decisões com o conhecimento
científico existente à época.
102
GODARD, Olivier. Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et
démocracie. Revue Philosophie Politique, mai 2000, p. 14. Texto original: “Il é possible de prouver
l’existence d’un danger, mais demander la preuve définitive de l’absence de danger est une
exigence qui échappe à la logique.”
42
Encontramo-nos em um mundo de questionamento ao desperdício, à
utilização de recursos naturais, onde o conjunto de demandas concorrentes não
pode ser satisfeito e no qual se impõem arbitragens no emprego de recursos
econômicos. Diante desse quadro, ou seja, da busca da coexistência pacífica entre
sustentabilidade e inovação, não seria possível vislumbrar no ultra-exigente “perigo
zero” uma norma universal.
Quanto mais os responsáveis públicos agissem de forma precoce, menos
tempo a comunidade acadêmica teria para encontrar a precisão de resultados. Não
havendo exatidão, a ação de prevenção deveria ser mais ampla, podendo impor
custos elevados. Razões que a tornariam menos aceitável aos que sofrem, não do
próprio perigo, mas de ações engajadas para o prevenir.
Algumas entidades públicas e privadas, por inconseqüência, interesse ou
negligência, criam riscos que podem atingir a humanidade por inteiro. Afinal, não
fronteiras para danos ambientais. Muitas vezes, os atingidos sequer serão
beneficiários das atividades geradoras do risco. Isso é ainda menos aceito quando o
perigo é considerado à revelia da população ou quando é acompanhado de
propósitos levianos, os quais intencionalmente ignorariam não potenciais danos,
como também o seu controle pelos poderes públicos. A negação do risco, a falta de
informação e uma maneira paternalista de determinar de modo unilateral o destino
do próximo não poderiam ser toleradas.
Em decorrência disto, enquanto alguns pleiteiam em favor de um largo poder
discricionário de apreciação reconhecido às autoridades públicas, outros esperam
ver estas obrigações enumeradas. Segundo estes, o controle deveria se estender ao
exame preciso dos motivos das decisões, devido à necessidade de uma maior
transparência diante da opinião e da participação crescente de cidadãos na
definição de seus destinos.
Para tanto, será preciso que se crie uma cultura de socialização do
conhecimento, em que o financiamento das pesquisas não fique apenas sob
responsabilidade do setor privado. Essa prática tem mostrado contrapartidas sobre
as condições de difusão dos saberes, que ficam à mercê do mercado econômico.
43
Em vista disso, parcerias público-privadas poderiam contribuir sobremaneira para o
avanço e socialização dos conhecimentos técnicos e científicos. Como salienta
Godard, “[...] os conhecimentos novos devem ser apropriados por numerosos
usuários”
103
.
Desse ponto de vista, as inovações técnicas que abaixam os custos de
acesso aos conhecimentos para um grande número de usuários seriam fatores
preciosos ao projeto de desenvolvimento sustentável, merecendo estímulo e
acompanhamento dos poderes públicos. Com isso, pretende-se que o acesso às
informações e às inovações não permaneça reservado àqueles que aceitam e
podem pagar o preço por tal, mas que seja difundido para toda a comunidade
científica e colocado à disposição da sociedade.
Portanto, longe de exigir a omissão, essa formulação do princípio remete aos
procedimentos que concorrem na formação de um julgamento instruído sobre três
pontos: o caráter grave e irreversível dos perigos potenciais, a justa proporção de
medidas de prevenção e sua acessibilidade econômica.
104
Assim, para que o
princípio não se torne um entrave ao progresso da ciência e da medicina, à inovação
técnica e ao crescimento econômico, é importante que os gestores públicos
caracterizem suas ações de precaução pela provisoriedade e proporcionalidade. A
provisoriedade permitiria a regular revisão da medida adotada em face dos avanços
do conhecimento, com o intuito de verificar a necessidade de sua manutenção. A
proporcionalidade, por outro lado, permite que sejam encontradas outras soluções,
ou seja, dentro de uma vasta gama de opções, a interrupção total da atividade não
seria a única possível, nem mesmo a principal.
Mas não seria ingênuo esperar que o princípio da precaução impedisse a
realização de toda evolução prejudicial? Ele não tem por objeto garantir o entrave de
todo perigo, mas de concorrer ao estabelecimento ex ante de um alto nível de
proteção. Deve, em particular, abster-se de ser instrumento de ilusão retrospectiva.
103
GODARD, Olivier. Savoirs, risques globaux et développement durable. Cahier, Paris, n. 09,
jun./2004, p. 39. Tradução livre. Texto original: “[...] les connaissances nouvelles doivent être
appropriées par de nombreux utilisateurs.”
104
Idem. Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et démocracie.
Revue Philosophie Politique, mai 2000, p. 8.
44
Não é porque eventos danosos são constatados posteriormente que as decisões
tomadas anteriormente na incerteza podem ser declaradas falhas, mesmo em uma
tentativa de precaução.
A mais grosseira das ilusões consiste evidentemente em julgar decisões
passadas em função de conhecimentos que foram adquiridos ulteriormente. Esta
tentativa não é somente injusta, mas também perigosa, pois faz depender a
qualificação das ações passadas da evolução de conhecimentos posteriores, que
podem reservar inúmeras surpresas. Não se pode assegurar que as técnicas de
amanhã serão capazes de resolver os problemas criados pelas técnicas de ontem e
de hoje.
Em resumo, um princípio da precaução proporcional, como se pretende, não
ambiciona a erradicação de todos os riscos, tampouco visa dar garantia de ausência
de perigos futuros. Ao contrário, procura equilibrar as ações em função das
hipóteses de risco, de maneira que a severidade das medidas precaucionistas seja
equivalente aos níveis de perigo naquele determinado estado dos conhecimentos
científicos. Assim como um perigo de dano potencial ao meio ambiente não deve ser
ignorado, as ações para coibi-los também não podem impor à sociedade ônus maior
que a própria concretização do risco.
1.5 O princípio da precaução e a livre concorrência
Parece haver uma disseminada crença que os problemas advindos com a
evolução tecnológica serão muitos. No Brasil, por exemplo, há grande discussão nos
cenários jurídico e científico a respeito da utilização de organismos geneticamente
modificados na agricultura. Mesmo com a entrada em vigor da nova Lei de
Biossegurança, que permite o plantio de alimentos transgênicos
105
, restam muitas
inquietações. Qual dos preceitos constitucionais deveria ser priorizado: a defesa ao
meio ambiente ou o desenvolvimento tecnológico? O texto constitucional assegura,
no seu art. 218, o desenvolvimento tecnológico. Por vias transversas, admitiu que é
105
Conforme art. 1º, da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005.
45
possível a atividade biotecnológica, desde que a manipulação seja usada para os
fins de efetivar o direito estabelecido no art. 225, caput, qual seja, a busca da sadia
qualidade de vida.
Mas o que vem a ser sadia qualidade de vida? Produção de carne mais
nutritiva e com menor percentual de gordura, plantas mais resistentes com maior
produtividade, barateando o custo e diminuindo o preço ao consumidor, terapia
gênica e descoberta de vacinas não seriam meios de se obter uma vida melhor? Se
for possível a utopia de se estender a toda população um nível de vida digno, em
contrapartida haverá aumento no consumo. O que implicaria um grande impacto ao
meio ambiente, com a provável pauperização de recursos naturais. A solução, dessa
maneira, não estaria na promoção do consumo sustentável”
106
, aliado à utilização
de processos tecnológicos que busquem maximizar a produção minimizando os
impactos? A demanda sobre os ecossistemas não deveria se conter dentro de sua
capacidade de se regenerar e auto-regular?
Entretanto, uma parcela contrária da população defende que tais técnicas
implicarão danos irreversíveis ao meio ambiente, renunciando, assim, ao seu
desenvolvimento. Com relação à manipulação genética, acreditam que poderá
ocorrer, por exemplo, desenvolvimento de resistência bacteriana, potencialização
dos efeitos de substâncias tóxicas, aumento dos casos de alergia na população
mundial, criação de superpragas, alteração do equilíbrio dos ecossistemas, etc.
Preocupação válida, pois não se conseguiria trazer todas as interações existentes
no meio ambiente para dentro do laboratório, de forma a se avaliar com algum grau
de precisão as resistências aos fatores do meio ambiente.
Como não é cogitável demonstrar cientificamente a inexistência de riscos
(qualquer estudo científico pode atestá-la dentro de limitações experimentais), a
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) opera com probabilidades,
utilizando a mesma metodologia empregada na avaliação de medicamentos e
alimentos.
106
Terminologia utilizada por Edis Milaré, em sua obra Direito do Ambiente, que consiste em
conscientizar o consumidor de que não é mais tolerável a utilização inadequada ou abusiva dos
recursos naturais.
46
As restrições às atividades de pesquisa regem-se, essencialmente, pela ética
e pela moral, com o intuito de manter a dignidade da pessoa humana. Ao longo da
história, a distância entre os avanços científicos e a sociedade tem gerado
resistências às novas descobertas, porque certo temor do novo e do incompreendido
é uma característica da personalidade humana.
Aliado a todos esses fatores expostos, internacionalmente, produziram-se
duas evoluções paralelas: o surgimento de uma preocupação com problemas
ambientais globais (alteração da camada de ozônio, degradação da biodiversidade e
risco de uma mudança climática em grande escala) e a liberalização progressiva do
comércio mundial com o conseqüente entrelaçamento econômico de diferentes
regiões do mundo. Esses desenvolvimentos paralelos almejariam construir um
sistema de regras internacionais para orientar as relações econômicas e comerciais.
Essa realização do livre comércio implicaria, no entendimento de Hermitte e David,
de forma idealizada, “que todos os Estados tivessem a mesma visão de segurança
dos produtos, do que é a saúde dos homens e do meio ambiente, do nível de
proteção que convém assegurar-lhes”
107
. Isso poderia se traduzir em um esforço de
harmonização das regulamentações e seus níveis de proteção.
No direito comunitário europeu, por exemplo, deliberou-se pela possibilidade,
em caso de conflito real, de um país adotar medidas protetoras mesmo quando elas
resultarem em restrições ao princípio da livre circulação de bens e da igualdade de
concorrência.
108
circunstâncias, no entanto, em que os objetivos de desenvolvimento do
comércio mundial, de segurança sanitária e de proteção ao meio ambiente não
convergem facilmente. No Brasil, percebe-se o mesmo problema entre os entes
federados, sejam Estados ou Municípios. É preciso, pois, que haja novas formas de
enquadramento.
107
HERMITTE, Marie-Angèle; DAVID, Virginie. Avaliação de riscos e princípio da precaução. In:
VARELLA, M.D.; PLATIAU, A.F.B. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004,
p. 104.
108
GODARD, Olivier. Politiques d’environnement et règles du commerce internacional – le principe de
précaution sur la ligne de fracture. Cahier, 2000, p. 1-11, passim.
47
Atualmente, os Estados Nacionais podem aplicar aos produtos importados
políticas empregadas aos fabricados localmente (taxações, normas, restrições ou
interdições), quando tais limites puderem ser justificados no plano científico. Neste
sentido, assevera Godard que,
[...] um país tem o direito de estabelecer seu próprio nível de proteção,
mas ele deve justificar seu desvio eventual às normas internacionais
sobre elementos científicos e deve fazer prova da coerência quanto às
medidas tomadas face aos diferentes riscos comparáveis.
109
Esse é o mesmo entendimento aplicado pela Organização Mundial do
Comércio (OMC), no Acordo sobre as Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS).
110
Em suas disposições, convida os Estados a assentarem suas políticas sobre o rigor
científico e não sobre o empirismo, em uma relação lógica entre os resultados da
avaliação e a medida adotada. Se um Estado for incapaz de fornecer justificação
científica para manter proibições de importação, esta deverá ser cancelada. Trata-se
de garantir que as medidas tomadas, na realidade, não sirvam a objetivos
protecionistas e que não sejam aplicadas de maneira discriminatória.
Isto ocorre em função da possibilidade do governo de um país favorecer sua
indústria às expensas da população, tornando-a mais competitiva sobre os
mercados externos. Tal atitude se transformaria em ameaça para outros países, que
poderiam proceder da mesma forma, distorcendo sua política ambiental para não
terem sua competitividade deteriorada. Utilizar-se-ia o argumento de proteção ao
patrimônio ambiental como meio de dissimular o jogo de interesses econômicos, que
culminaria com a desigualdade entre concorrentes comerciais. Este receio é bem
formulado por Malet, quando diz que “há um risco que o princípio da precaução
venha servir de tapa-sexo às operações comerciais restringindo o maior número a
uma uniformização alimentar. Isto significaria fatalmente uma regressão cultural”.
111
109
GODARD, Olivier. Politiques d’environnement et règles du commerce internacional – le principe de
précaution sur la ligne de fracture. Cahier, 2000, p.7. Tradução livre. Texto original: “[...] un pays a
le droit d’établir son propre niveau de protection, mais il doit fonder son écart éventuel aux normes
internationales sur des éléments scientifiques et doit faire preuve de cohérence quant aux mesures
qu’il prend face à différents risques comparables.”
110
RUIZ-FABRI, Hélène. A adoção do princípio da precaução pela OMC. In: VARELLA, M.D.;
PLATIAU, A.F.B.(Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 297-315,
passim.
111
MALET, Émile. Le danger du risque zéro: philosophie politique. Paris: PUF, 2000, p. 126. Tradução
livre. Texto original: Il y a un risque que le principe de précaution vienne servir de cache-sexe à
48
Na França, por exemplo, as autoridades desencadearam uma crise com a
comunidade britânica ao decidirem, em 1999, manter o embargo de 1996 sobre
produtos bovinos britânicos.
112
Mas porque mantiveram o embargo, se o risco ligado
ao mal da vaca louca também não era dominado na França? Tanto que, mesmo
fechando suas fronteiras, um ano mais tarde foi identificado um animal portador da
doença em seu território. Assim, a decisão de interdição sem prova científica
conclusiva, até então apresentada como necessidade da saúde pública, teria de fato
como justificativa o desejo de tranqüilizar os consumidores? A atitude do governo
francês fez aumentar a desconfiança da população para com os órgãos públicos,
ao se verem diante de medidas caras e que não ofereciam segurança.
Igualmente pôde-se contestar a decisão australiana que embargou as
importações de salmão canadense, sob a alegação de evitar o risco de
patogenicidade para os salmonídeos australianos. Tendo esse caso sido submetido
à apreciação e decisão pela Organização Mundial do Comércio
113
, a sentença final
foi de condenação à Austrália, obrigando-a a retornar às atividades comerciais com
o Canadá. O fundamento de tal decisão repousa, basicamente, na postura
australiana em relação à prova de sua alegação: a medida havia sido adotada sem
avaliação científica séria, ou seja, sem documentar o risco sobre base de dados
científicos. Embora a OMC reconheça que o conteúdo do princípio da precaução
esteja presente no acordo SPS e deveria ser observado, mesmo sendo insuficiente
para justificar medidas definitivas, nesse caso em específico entendeu pela sua não
aplicação.
des opérations commerciales en contraignant le plus grand nombre à une uniformisation
alimentaire. Ce qui signifierait fatalement une regresión culturelle.
112
GODARD, Olivier. Le principe de précaution face au dilemme de la traduction juridique des
demandes sociales: leçons de méthode tirées de l’affaire de la vache folle. Cahier, Paris, n. 09, jul.
2001, p. 1-30, passim.
113
Além desse, mais outros dois casos foram submetidos à OMC para decisão: Comunidade
Européia X EUA, versando sobre medidas precaucionistas européias concernentes à carne e aos
produtos da carne (hormônio) norte-americana; Japão X Países Americanos, versando sobre
medidas que afetam os produtos agrícolas, ou seja, as frutas americanas foram rejeitadas pelo
Japão em virtude da suposta existência de pragas. A decisão nos dois casos foi no mesmo
sentido da sentença da Austrália, condenando os países que impuseram restrições comerciais
sem fundamentação científica. Isso demonstra a consolidação de jurisprudência pela OMC.
(VARELLA, Marcelo Dias. Variações sobre um mesmo tema: o exemplo da implementação do
princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA. In: VARELLA, M.D.; PLATIAU, A.F.B. (Org.).
Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 277.)
49
Com base no artigo 5:5 do acordo SPS, os Estados devem evitar “criar
distinções arbitrárias ou injustificáveis em níveis que considera apropriados em
situações diferentes, se tais distinções levam a uma discriminação ou uma restrição
disfarçada para o comércio internacional”
114
. Trata-se, pois, de identificar medidas
protecionistas comparando o comportamento do Estado na situação em causa com
o adotado em outros casos, mas em que se verifica o mesmo tipo de risco. No
exemplo da Austrália, ela aplicava medidas SPS para o salmão, mas não para o
peixe dourado, mesmo sendo essa situação semelhante.
No Brasil, debate-se vigorosamente sobre o plantio da soja. Se o Brasil
utilizasse apenas 25% da área agriculturável para o plantio da soja, projeta-se que
se tornaria o maior produtor mundial, superando os EUA. Aliado ao aumento de
produção, entretanto, seriam necessárias melhorias no escoamento dos produtos,
pretendidas com a hidrovia Araguaia-Tocantins. No entanto, algumas ONGs têm
procurado convencer a sociedade brasileira a renunciar ao uso dos cerrados, com
base nas possíveis perdas da biodiversidade. Argumento este que pode ser falho,
que 77 milhões de hectares de reservas biológicas. Um dos fatores que
beneficiou os EUA por longo tempo foi os transportes mais baratos, que permitiam
um preço mais competitivo no mercado mundial. Se o Brasil, com sua capacidade
territorial, investisse na melhoria do transporte, aumentariam os lucros dos
produtores, permitindo a expansão da produção. Com isto, os produtores
estadunidenses perderiam sua vantagem, e o mercado exportador tornar-se-ia muito
mais competitivo.
Ademais, os esforços esperados de países em desenvolvimento e de países
em transição são significativamente inferiores aos de países industriais. Esta
situação demonstra uma assimetria nos custos impostos às empresas por motivos
ambientais. Pode haver vantagem, dessa forma, para determinada empresa sediada
em países industriais se esta se deslocar para países em desenvolvimento. E isto
não corresponderia em melhoria ao bem-estar coletivo. Ao contrário, interesses
econômicos poderiam induzir a escolhas técnicas regressivas para os países de
114
RUIZ-FABRI, Hélène. A adoção do princípio da precaução pela OMC. In: VARELLA, M.D.;
PLATIAU, A.F.B.(Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 311.
50
recepção, com empresas recorrendo a técnicas por vezes mais poluentes e menos
avançadas. Nesse caso, seria contrário à razão econômica que os países de origem
tomem medidas para travar as transferências não justificadas da atividade?
Essa mesma ponderação pode ser deslocada para uma análise dos Estados
e Municípios brasileiros. É notória a existência de grandes diferenças regionais no
território brasileiro, possuindo áreas altamente desenvolvidas e industrializadas, em
contrapartida a locais de extrema miséria e privação. Essas disparidades, como será
visto em momento oportuno, ocorrem, por vezes, em função da guerra fiscal
existente. Esse hábito, criado por municípios e estados na tentativa de atrair
investimentos e proporcionar o desenvolvimento econômico da região podem
acarretar prejuízos quando contrabalanceados aos problemas ambientais que
possam surgir. A prática tem demonstrado muitas concessões dos poderes públicos
às empresas, e, por sua vez, muito pouco retorno destas à sociedade.
Sem romper com a exigência de uniformização e de vistoria científica, o
princípio da precaução afasta-se de uma abordagem positivista da prova científica.
Sua consideração progressiva pelo direito internacional, e também nacional, não
permitiria a modificação das bases técnicas e políticas do comércio. Afinal, é
provável e legítimo que diferentes regiões não alcançariam o mesmo julgamento
sobre o nível de riscos considerados como aceitáveis
115
. Os conhecimentos
científicos e técnicos disponíveis não permitem, nas situações onde se quer
legitimamente aplicar o princípio, trazer diretamente as garantias. Para tanto, a
União das Indústrias Químicas demanda
[...] que este princípio, que deve guiar os poderes públicos, seja
instituído de maneira razoável, não arbitrária, equilibrada,
proporcionada, e coerente com as regulamentações em vigor. Além
disso, as medidas tomadas sobre seu fundamento deveriam ser
limitadas no tempo. Uma aplicação excessiva e não pertinente deve dar
lugar a medidas de reparação apropriadas. O princípio da precaução
não deve levar à paralisia, desencorajando toda iniciativa necessária à
inovação e à pesquisa e, portanto, ao progresso. Sua utilização deveria
se inscrever na lógica do desenvolvimento durável. Ele não deveria
gerar legislações sufocantes e excessivas nem levar a uma
115
Essa diferença existe entre os Estados brasileiros. Por exemplo, o Paraná não permite o plantio de
organismos geneticamente modificados em seu território, enquanto no Rio Grande do Sul tal
prática já se encontra difundida no meio rural.
51
recolocação da livre circulação de produtos ligados ao mercado
único
116
.
Com efeito, o acordo SPS impõe que toda regulamentação sanitária seja
aplicada com o intuito de proteção à saúde e à vida do homem, sem, todavia,
configurar-se como restrição ao comércio além do necessário à obtenção do nível de
proteção apropriado. Em outras palavras, a orientação do SPS é pela adoção de
medidas cuja aplicabilidade seja razoável em vista às condições técnicas e
econômicas, com a menor restrição possível ao comércio, e que permitem, ao
mesmo tempo, obter um nível de proteção adequado. Todo o exposto pode ser
qualificado como a “proporcionalidade das medidas precaucionistas”
117
.
A partir dessa leitura da aplicação do princípio da precaução, ele se
apresentaria como um instrumento para a conciliação e harmonização entre o direito
ambiental e o direito econômico, ou melhor, entre os princípios constitucionais da
precaução e do desenvolvimento tecnológico.
Contudo, para Lima
118
, a Constituição Federal de 1988 teria elevado o meio
ambiente à condição de “interesse público preponderante” no confronto com outros
interesses concorrentes, devendo, assim, ser priorizado. Sabendo que, além das
opiniões científicas, a decisão pela aplicação do princípio da precaução é,
sobretudo, política, e que os gestores devem justificar suas decisões com base na
proteção à saúde e à vida, bem como pela preferência de seus consumidores e em
defesa da cultura de sua região, esse entendimento não pode ganhar grandes
contornos.
Mantendo-se fiel ao sistema constitucional aberto de regras e princípios
proposto por Canotilho, a Constituição brasileira deve ser interpretada de forma a
contemplar, em um mesmo plano, os princípios da livre concorrência e da defesa ao
meio ambiente, não admitindo, é lógico, a sobreposição de qualquer deles. Como
mencionado, será preciso analisar cada caso em que haja colisão entre o princípio
116
União de Indústrias Químicas, 2000.
117
Nos casos julgados até o momento pela OMC, as medidas precaucionistas mostraram-se um tanto
draconianas.
118
LIMA, Luiz Henrique. Controle do patrimônio ambiental brasileiro: a contabilidade como condição
para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 74.
52
da precaução e o princípio do desenvolvimento tecnológico, para, dessa maneira,
contrabalanceando os valores envolvidos, chegar-se a um fator de harmonização
que possa conduzir (ou ao menos tentar) ao desenvolvimento sustentável. Para
tanto, o próximo capítulo abordará o papel dos municípios brasileiros nessa
empreitada para a proteção à vida e ao ambiente.
53
2 OS MUNICĺPIOS E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS
A preocupação com o estabelecimento de políticas públicas de preservação
ambiental é recente na realidade brasileira. Até a década de 1960, estrategicamente
adotou-se uma abordagem de administração dos recursos naturais, tendo em vista
as necessidades da industrialização nascente.
Nesse período, as instituições governamentais tinham suas competências
voltadas sobre todo o território nacional. As estratégias eram definidas
setorialmente, o que conduzia a ações isoladas e algumas vezes conflitantes.
Igualmente, a multiplicação e a superposição de competências, bem como a disputa
por recursos geralmente escassos, propiciaram conflitos de poder entre as
instituições dos três níveis de governo, com conseqüências na implantação de
políticas ambientais em âmbito local.
A partir de 1970 surgem os Planos Nacionais de Desenvolvimento. Com
esses, reconhece-se a necessidade de um acelerado desenvolvimento industrial,
mas também se dedica especial atenção aos problemas gerados pela poluição
ambiental em grandes centros urbanos. Entretanto, é possível perceber ainda a
centralização e a setorialização em um modelo de desenvolvimento com alto custo
ambiental.
Essa centralização dos poderes, que resulta no esvaziamento da autonomia
municipal, teria gerado um enorme descompasso para os municípios entre suas
reais condições financeiras e o crescimento dos compromissos com a infra-estrutura
urbana. Nesse contexto, merece atenção a questão municipal, analisando-a a partir
da Constituição Federal de 1988 quanto a sua competência legislativa, sua
autonomia e sua função social, e como estes instrumentos podem contribuir para a
implementação de políticas públicas ambientais localizadas ou descentralizadas.
Para tanto, esse capítulo foi dividido em quatro momentos distintos.
Primeiramente, procurou-se tecer algumas considerações acerca da existência, para
os municípios, de status de ente federado, bem como sobre o alcance da autonomia
54
municipal segundo a Constituição Federal de 1988. Em um segundo momento,
questionou-se a existência de função social para os municípios, além de delimitar o
seu alcance para o presente trabalho. Na seqüência, foram feitas algumas
considerações sobre as competências municipais, tanto em matéria ambiental
quanto em tributária. Isso, ao final, permitiu a análise, embora não derradeira, da
possibilidade dos municípios serem atores importantes na construção e efetivação
de políticas de preservação ambiental.
2.1 Municípios: entes federados e autônomos?
A primeira questão a ser colocada é se os municípios podem ser
considerados entes federados. Esse tema muito vem sendo discutido por
doutrinadores, sem, no entanto, chegar-se a um consenso sobre o assunto.
Enquanto alguns se manifestam contra a consideração de ter o Município status de
ente federativo, outros a defendem fortemente. Os argumentos, conforme foi visto,
existem nos dois sentidos, podendo qualquer dos posicionamentos ser defendido.
Negando aos municípios brasileiros o status de ente federado, encontra-se
Carrazza, Silva e Castro. Carrazza, de forma bastante enfática, aponta duas razões
para a sua negativa. A sua primeira referência, à qual Castro adere, diz respeito à
inexistência de representantes municipais junto ao legislativo federal, ou seja,
acredita que por não possuírem representação na Câmara e no Senado, não podem
os municípios ter influência sobre decisões de alçada nacional. Além disso, e esse
será o segundo motivo de sua recusa, ressalta que a autonomia municipal não seria
cláusula pétrea, o que permitiria sua redução ou exclusão da Constituição a
qualquer momento. Obviamente, municípios sem autonomia não poderiam ser
considerados como entes federados.
119
Embora com o mesmo posicionamento, as razões apresentadas por Silva são
de outra ordem. Para o autor, o Município não pode ser visto como essencial ao
119
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 143-144.
55
conceito de federação. Esse caráter foi conferido apenas aos Estados Membros.
Considerar, assim, os municípios como unidades federativas, sob o ponto de vista
do autor, em nada alteraria a federação brasileira.
120
Ademais, acrescenta em seus motivos a referência à inexistência de território
próprio por parte dos municípios, sob a alegação de que, em esses o possuindo, aos
Estados Membros não restaria qualquer território. Tendo em vista, pois, a
impossibilidade de compartilhamento de território entre Estados Membros, não se
poderia conferir aos municípios a prerrogativa que foi concedida aos Estados
Membros.
Por fim, seus derradeiros argumentos assentam-se na impossibilidade de
secessão de municípios e na falta de autonomia desses para a sua criação,
incorporação, fusão e desmembramento. Tendo em vista ser o remédio à secessão
a intervenção federal, a mesma não poderia ocorrer em âmbito municipal, mas
apenas estadual. De maneira semelhante, a competência para a criação,
incorporação, fusão e desmembramento de municípios será estadual, e não
municipal, haja vista a previsão expressa da Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 18, parágrafo 4°
121
, da necessidade de lei estadual para tanto.
122
Outro posicionamento contra a concessão de status de unidade federada aos
municípios é de Castro. Alega, além do argumento que coaduna com o pensamento
de Carrazza, que os municípios, à exceção de São Paulo e Rio de Janeiro, não
possuem Tribunais de Contas próprios, da mesma forma que as leis ou atos
normativos municipais não estariam sujeitos ao controle concentrado do Supremo
Tribunal Federal.
123
120
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros,
2007, p. 477.
121
Dispõe o § do artigo 18: A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de
Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar
Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios
envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na
forma da lei.
122
SILVA, op.cit., p. 477.
123
CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 53.
56
Faz referência, ainda, ao parágrafo
124
do artigo 39 da Constituição Federal
de 1988, que não incluiria os municípios entre os entes federados elencados. Dessa
forma, a Constituição teria excluído, de forma expressa, a possibilidade de serem os
municípios considerados unidades federadas. Além dessas razões, adverte para
tantas outras, quais sejam: a inexistência de imunidade formal a vereadores; as
limitações constitucionais (federal e estadual) à criação de normas, restringindo o
espaço de atuação dos municípios; e, por fim, a falta de previsão constitucional para
a igualdade entre municípios, o que não ocorre com os Estados Membros, pois
previsão expressa no artigo 4°, inciso V, da Carta Constitucional.
125
A gama de autores a favor de se conferir aos municípios status de ente
federado é, certamente, maior, podendo-se encontrar dentre eles, por exemplo,
Coêlho, Bonavides, Bastos, Meirelles e Moreira Neto. Coêlho
126
e Moreira Neto
possuem posicionamentos semelhantes, concordando que a Constituição Federal de
1988 inovou ao incluir os municípios no pacto federativo, concedendo autonomias a
eles, rompendo com o clássico federalismo dual (União e Estados Membros).
Moreira Neto vai além, acrescentando que se define “[...] na federação brasileira,
três ordens jurídicas federativas autônomas em suas respectivas esferas de
competência, delimitadas pela Constituição Federal (art. 18, caput): a federal, as
estaduais e as municipais”.
127
(Grifo nosso)
Meirelles chega mesmo a afirmar que a Constituição Federal de 1988, ao
incluir o Município como ente federativo de terceiro grau, corrigiu a falha existente
nas Constituições anteriores.
128
Bonavides, igualmente, defende ser o Município um
ente federativo, tendo em vista que a Constituição de 1988 teria elevado-o
qualitativamente, emprestando a ele “natureza federativa incontrastável”.
129
124
Dispõe o § 2° do artigo 39: A União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo
para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos
cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de
convênios ou contratos entre os entes federados.
125
CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 55 et. seq.
126
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 62.
127
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte
geral e parte especial. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 37.
128
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 42.
129
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 318.
57
Na concepção de Bastos, foi um acerto do constituinte a inclusão dos
municípios como parte integrante da Federação. Para ele, o argumento principal
está assentado na autonomia conferida aos municípios. Afinal,
[...] sendo a autonomia municipal um dos centros de polarização de
competência constitucional a ser exercida de forma autônoma, não se
vê por que não hão de, os municípios, figurar naquele próprio artigo que
fornece o perfil jurídico-político da República Federativa do Brasil.
130
Os autores que defendem a inclusão dos municípios como unidades
federativas o fazem, normalmente, com base nos artigos e 18 da Constituição
brasileira. O caput do artigo 1° expressa: “A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito [...].” Ao que o caput do artigo 18 complementa:
“A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos
autônomos, nos termos desta Constituição.”
Portanto, a defesa dos autores está embasada em preceitos constitucionais.
No entanto, para refutar, de forma precisa, cada um dos argumentos de Carrazza,
Silva e Castro, e, assim, assumir o posicionamento de que os municípios são entes
federados, adotar-se-á as considerações de Rodrigues
131
.
Quanto à alegação de inexistência de representação junto ao legislativo
federal, pode-se observar, no que concerne à Câmara dos Deputados, que estes
representam o povo, e não os Estados Membros, e que as pessoas habitam,
primariamente, em municípios. O fato de o número de deputados ser proporcional
aos habitantes do Estado Membro é, conforme Rodrigues, apenas um critério que foi
escolhido, em detrimento de outros tantos. Todavia, não se pode esquecer que, não
raras vezes, os interesses de alguns municípios ou regiões são defendidos por
Deputados Estaduais, que acabam por influenciar as posições de Deputados
Federais e Senadores.
130
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 302.
131
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 136-146, passim.
58
Com relação a estes, os Senadores, a razão da representatividade ser por
Estados Membros é bastante simples. Considerando-se a realidade brasileira, em
que existem mais de 5.500 municípios em todo o território nacional, não seria viável
a criação de uma Casa Legislativa em que cada Município tivesse o direito de ter
seu representante. Dessa forma, a função do Senado é representar os interesses
dos Estados Membros, lembrando que estes, por sua vez, são compostos pela união
de municípios. Na concepção de Rodrigues, então, será possível buscar a
concretização do Bem Comum dentro de uma idéia de cooperação e solidariedade.
“Vê-se que é possível olhar a função dos Senadores a partir do indivíduo como fim,
sendo o Estado apenas instrumento.”
132
Como se não bastassem os argumentos até
então expostos, Rodrigues estabelece uma importante comparação:
Não se deve esquecer de que as eleições, no Brasil, são diretas em
todos os níveis, por outro lado a Democracia é representativa. O fato
de, portanto, os brasileiros não elaborarem diretamente suas leis, não
descaracteriza o fato de o país ser democrata. Por que, a partir desse
raciocínio, descaracterizar o Município como entidade federativa
apenas porque sua representação no Senado se dá de forma
indireta?
133
O argumento da inexistência de território para os municípios também pode ser
contestado, pois, caso contrário, também se negaria território à União. Em outras
palavras, a alegação de que a presença de território para os municípios implicaria na
ausência de territórios para os Estados Membros, também pode ser aplicada na
relação dos Estados Membros com a União, ou seja, a posse de território por
aqueles conduziria à negação de território a essa.
Assim como os Estados Membros fazem parte do território nacional sem
deixar de ser Estados Federados, em um sistema de compartilhamento com a
União, em que claramente são definidas regras sobre competências legislativas,
administrativas e judiciárias, o mesmo tratamento deve ser dispendido aos
municípios. Isso significaria perceber o território de cada Estado Membro como a
132
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 139.
133
Ibidem, p. 139.
59
soma dos territórios de seus municípios, obedecendo, por certo, às divisões de
competências estabelecidas pela Carta Constitucional.
Concernente à impossibilidade de secessão auferida por Silva para negar aos
municípios o caráter de ente federativo, Moraes
134
adverte que ela se estenderia,
para além dos municípios, também aos Estados Membros e ao Distrito Federal.
Embasa sua afirmação de inexistência do direito de secessão no ordenamento
brasileiro no Princípio da Indissolubilidade do Vínculo Federativo, previsto no caput
do artigo 1° da Constituição Federal de 1988.
Também não é possível considerar a dependência de lei estadual para a
criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios como fator
impeditivo à qualificação destes como unidades federativas. Os entes federados,
conforme Rodrigues, devem ser considerados como autônomos, e não soberanos, o
que leva, necessariamente, à limitação de seus atos pelo ente que lhe ascende.
Essa mesma observação é valida para os Estados Membros, haja vista a própria
Constituição Federal, em seu artigo 18, parágrafo 3°, prever a necessidade de
aprovação do Congresso Nacional, por meio de Lei Complementar, para a criação,
incorporação, subdivisão ou desmembramento.
135
Assim, seguindo o raciocínio da
dependência, dever-se-ia negar também aos Estados Membros a sua condição de
unidade federativa.
A inexistência de Poder Judiciário municipal não pode se configurar em
motivo para descaracterizar o federalismo municipal. As competências dos órgãos
judiciários são distribuídas, além do critério da territorialidade, em razão da matéria.
Em virtude disso, muitos conflitos que ocorrem em territórios dos Estados Membros
não serão julgados por estes, mas por algum dos órgãos da Justiça Federal. E nem
por isso os Estados Membros deixam de ser unidades federativas. Mais uma vez, a
negativa aos municípios acarretaria em negativa também aos Estados Membros.
134
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2004, p. 126.
135
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 139-140, passim.
60
A ausência de Tribunais de Contas municipais, bem como a impossibilidade
de controle concentrado de leis e atos normativos municipais pelo Supremo Tribunal
Federal trata-se, sempre com base em Rodrigues, apenas de característica
federativa, em que as competências dos entes são determinadas. Afinal, são as
unidades federativas tão somente autônomas, e não soberanas como explanado em
momento anterior. Em virtude disso, não se poderia negar aos municípios que sejam
entes federados apenas pelo fato de possuírem competências menos amplas que os
Estados Membros ou a União. Até porque, parece óbvio que as competências
devam ser distribuídas de acordo com a capacidade de cada unidade federativa
para gerenciá-las.
A afirmação feita por Castro de que a não inclusão dos municípios no
parágrafo 2° do artigo 39 da Constituição Federal de 1988 conduziria à conclusão de
que os municípios não são entes da Federação igualmente poderá ser contestada.
Em momento algum do referido artigo é mencionado que apenas a União, os
Estados Membros e o Distrito Federal seriam entes federados, mas somente se
estabelece atribuições específicas a eles. Ademais, tampouco fora negada a
possibilidade de que fossem feitos convênios ou contratos com os municípios, o que,
no entender de Rodrigues, dependeria apenas de uma interpretação mais extensiva
ou restritiva. Não bastando os argumentos apresentados, tem-se, ainda, a redação
do artigo 241 da Constituição Federal, a qual dispõe:
Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios
de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão
associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou
parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade
dos serviços transferidos. (Grifo nosso)
Contrapõe-se, ainda, Castro, em seu argumento da falta de previsão de
imunidade formal para Vereadores. Tem-se, como indispensável ao exercício da
vereança, a imunidade material, que não deixou de contemplar os Vereadores. E
como pondera Rodrigues, “talvez nem se deva pensar em um dia dar aos edis
municipais a imunidade formal, mas sim retirá-la dos corpos legislativos que a
possuem”
136
.
136
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
61
Não se poderia esquecer da última tentativa de Castro em privar os
municípios do status de ente federativo. A alusão à falta de previsão de igualdade
entre municípios, fundamentada no artigo 4°, inciso V, da CF/88, é totalmente
descabida. A redação do referido artigo é bastante clara, e determina a igualdade
entre Estados Nacionais nas relações internacionais da República Federativa do
Brasil, e não entre Estados Membros. Acrescente-se a isso a previsão, no parágrafo
único do artigo 23 da CF/88, da necessidade de cooperação entre a União, os
Estados Membros, o Distrito Federal e os Municípios com o intuito de buscar o
equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar. Pode-se interpretar esse equilíbrio de
desenvolvimento como a igualdade de condições para os entes federados na
persecução de seus objetivos. Por conseguinte, mesmo que indiretamente, a
igualdade estaria prevista no diploma constitucional.
Para que não restem dúvidas acerca da intenção do legislador em incluir os
municípios entre os entes federados, o artigo 2°, inciso I, da Lei de
Responsabilidade Fiscal
137
, expressa: “Para efeitos desta Lei Complementar,
entende-se como: I entes da Federação: a União, cada Estado, o Distrito Federal
e cada Município; [...]”. (Grifo nosso)
Sendo o Município, portanto, uma unidade federativa, suas autonomias são
inegáveis. Na sua autonomia política, pode-se enquadrar sua capacidade de auto-
organização e de autogoverno. A primeira está prevista no caput do artigo 29
138
da
Constituição, que prescreve a regência municipal por meio de Lei Orgânica. Essa,
na definição de Silva,
[...] é uma espécie de constituição municipal. Cuidará de discriminar a
matéria de competência exclusiva do Município, observadas as
peculiaridades locais, bem como a competência comum que a
Constituição lhe reserva juntamente com a União, os Estados e o
Distrito Federal (art. 23). Indicará, dentre a matéria de sua competência,
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 141.
137
Lei Complementar n° 101, de 04 de maio de 2000.
138
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo
de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará,
atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e
os seguintes preceitos: [...]
62
aquela que cabe legislar com exclusividade e a que lhe seja reservado
legislar supletivamente.
139
A capacidade de autogoverno, por sua vez, é estabelecida no inciso I do
artigo 29 do mesmo diploma legal. Esse dispositivo constitucional prevê eleições
diretas para Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores, a cada quatro anos, período que
duram os mandatos. Percebe-se, pois, que, em detrimento da nomeação para a
ocupação desses cargos, preocupou-se o constituinte em conferir aos municípios a
capacidade para se autogovernarem.
Aliada à autonomia política, verifica-se a autonomia normativa, desvelada
pela capacidade de autolegislação. Em outras palavras, a Constituição Federal, em
seu artigo 30
140
, incisos I e II, concedeu aos municípios a capacidade de legislar
sobre assuntos de interesse local, ou mesmo suplementar à legislação estadual e
federal no que for possível.
Como autonomia administrativa, tem-se, obviamente, a capacidade de
administração própria e organização dos serviços locais. Essa pode ser depreendida
dos incisos IV a IX do artigo 30 da Carta Constitucional.
Por fim, o artigo 30, em seu inciso III, faz referência à autonomia financeira.
Essa pode ser caracterizada pela capacidade dos Municípios em criar tributos
próprios e aplicar suas rendas. Afinal, sendo uma unidade federativa autônoma,
precisa o Município de receitas para poder gerenciar suas atribuições fixadas
constitucionalmente.
139
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros,
2007, p. 625.
140
Art. 30. Compete aos Municípios: I legislar sobre assuntos de interesse local; II suplementar a
legislação federal e a estadual no que couber; III instituir e arrecadar os tributos de sua
competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e
publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a
legislação estadual; V organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou
permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem
caráter essencial; VI manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,
programas de educação infantil e ensino fundamental; VII prestar, com a cooperação técnica e
financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII promover,
no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX promover a proteção do patrimônio histórico-
cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
63
Dessa forma, uma importante característica da Constituição Federal de 1988
refere-se ao fortalecimento, ao menos teoricamente, de uma autonomia municipal
nos aspectos político, normativo, administrativo e financeiro. Teoricamente porque a
autonomia financeira, como é notório, ainda não foi alcançada, o que limita a
capacidade de autogestão municipal, tornando-a, por vezes, ineficiente. A
descentralização das verbas, nessa ótica, seria essencial para o desenvolvimento de
políticas públicas locais. De maneira clara e pontual, Deser analisa essa mudança
estrutural que culminou com a concessão aos municípios de suas autonomias.
Os princípios básicos que orientam as administrações municipais ainda
hoje são fortemente influenciadas por uma lógica clientelista e
altamente subordinada aos interesses das oligarquias locais. O papel
dos governos municipais era extremamente limitado, restringindo-se
suas responsabilidades às pequenas obras de infra-estrutura,
conservação de ruas e estradas, praças etc., ou de políticas
assistencialistas. Pouco se discutia sobre o papel dos governos
municipais na implementação de políticas de desenvolvimento
econômico e social, que se restringiam a incentivos à instalação de
indústrias. [...] Porém, fortes mudanças se anunciam nas políticas de
desenvolvimento municipal e no papel a ser desempenhado pelos
governos municipais. Grande parte dessas mudanças são o resultado
de um longo processo de descentralização com a incorporação de
importantes políticas por parte dos governos locais, que se viabilizam
graças a uma redefinição na distribuição dos recursos públicos.
141
Contrapondo-se, em parte, a esse posicionamento, Claudete Vitte alerta para
o fato de a Constituição de 1988 ter aumentado as responsabilidades municipais em
proporção maior à incumbência de recursos. Essa ocorrência seria a causa do
acirramento da competição entre os entes federados por mais recursos, “sendo a
faceta mais conhecida dessa competição a chamada guerra fiscal”
142
. No entanto,
não deixa de reconhecer as importantes mudanças advindas com a Carta
Constitucional, como se percebe no fragmento de seu texto que segue:
[...] a Constituição de 1988 assegurou maior autonomia de decisões
aos estados e municípios, tendo presente o ideário da
descentralização, da democracia e da participação da população, vistos
141
DESER, 1997, p. 14, apud BROSE, Markus. Fortalecendo a democracia e o desenvolvimento
local: 103 experiências inovadoras no meio rural gaúcho. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p.
61-62.
142
VITTE, Claudete de Castro Silva. Gestão do desenvolvimento econômico local: algumas
considerações. Revista Internacional de Desenvolvimento Local, São Paulo, vol. 8, n. 13, p. 77-
87, set. 2006, p. 82.
64
como condições de cidadania, como uma reação ao autoritarismo e a
possibilidade de institucionalização de novas práticas políticas.
143
Nesse contexto, deve-se inscrever uma nova postura dos Estados Membros,
de maneira a, gradualmente, aceitarem essa maior importância dos governos locais,
como agentes democráticos imprescindíveis em conjunto com a sociedade civil.
Como afirma Dowbor, “os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade
para a sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento”
144
.
Essa força dos municípios constitui, então, um meio de aproximação com os
cidadãos. Eles tem ido em busca de parcerias e novas articulações sociais, em uma
tentativa, inclusive, de recuperar seu espaço econômico e a dimensão de cidadania
local.
O reforço da autonomia municipal tornar-se-ia, nessa conjuntura, relevante a
uma gestão coerente, com o fortalecimento da democracia. À democracia
representativa, na qual a cidadania se configura pelo voto, alia-se a democracia
participativa, onde recaem aos próprios cidadãos as decisões atinentes à
organização do seu cotidiano. Assim, tem-se que comunidades bem estruturadas
podem dar margem à constituição de uma sociedade organizada capaz de
transformar o seu meio. Nesse sentido,
[...] ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a empresa, o
público e o privado, surge assim com força o espaço público
comunitário, e as nossas opções se enriquecem. Além disso, o
surgimento dos sistemas modernos de comunicação muda
radicalmente o conceito de isolamento da pequena cidade, da própria
articulação dos diversos espaços.
145
Nenhuma outra instância de poder ofereceria tão alto potencial de
organização democrática participativa. A administração local deveria assumir o papel
de catalisadora das forças locais em torno de objetivos da comunidade. Afinal,
quanto mais atuantes os municípios, menos problemas teriam os Estados Membros
e a União. Uma comunidade participativa e organizada em torno de seus interesses
143
Ibidem, p. 80.
144
DOWBOR, Ladislau. A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 41.
145
Ibidem, p. 42.
65
contribuiria para a estabilização do próprio governo central. Isso porque, como
decorrência desse resgate do local, poder-se-ia observar a restituição ao cidadão do
direito de decidir. Explicando em parte esse fenômeno, Matos defende:
O mais importante é que uma norma municipal tem condições de atender
às necessidades locais, muitas vezes diferentes das necessidades
nacionais ou regionais; sendo burilada no local onde produzirá seus efeitos,
terá uma maior oportunidade de ouvir os anseios sociais e, por isso, a
norma alcançará o interesse público em questão.
146
Sendo o Município a menor unidade federativa, está mais próximo dos
problemas e dos instrumentos legais de atuação. Em um país de tão grandes
dimensões como o Brasil, direcionar a atuação aos Estados Membros e à União
inviabilizaria, por vezes, a concretização do bem-estar coletivo. Assim, como gestor
do interesse comunitário, o Município poderá implementar políticas públicas
ambientais que promovam o desenvolvimento sustentável, atendendo a sua função
social prevista constitucionalmente.
2.2 Função social dos municípios
Poder-se-ia afirmar, sem medo de incorrer em erro, que o objetivo primordial
do federalismo é garantir o bem-estar do ser humano. Essa constatação surge da
própria Carta Constitucional, que em vários artigos reitera sua preocupação com o
Bem Comum. Em seu artigo 182
147
, por exemplo, busca o bem-estar das pessoas
através do desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Considerando-se, contudo, que se quer verificar a função social dos
municípios, torna-se imperioso distinguir, conceitualmente, os termos cidade e
Município. O Município, a partir de tudo que foi exposto, pode ser considerado como
uma entidade federativa, ou seja, pessoa jurídica de direito público interno, com
autonomia política, normativa, administrativa e financeira.
146
MATOS, Eduardo Lima de. Autonomia municipal e meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2001,
p. 126-127.
147
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
66
Uma importante observação a ser feita, e que influenciará na definição de
cidade, diz respeito às sedes administrativas dos municípios. Como não possuem
unidades federativas menores, autônomas e capazes de serem designadas como
sede administrativa, esta acaba sendo a zona urbana. Em outras palavras, o pólo
administrativo que concentrará os fóruns decisórios será, automaticamente, uma das
zonas urbanas do Município.
De outra parte, a definição de cidade, que se entende precisa e que atende
aos objetivos desse trabalho, foi estabelecida por Silva. Segundo ele,
Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de
sistemas político-administrativo, econômico não-agrícola, familiar e
simbólico como sede do governo municipal, qualquer que seja a sua
população. A característica marcante da cidade, no Brasil, consiste no
fato de ser um núcleo urbano, sede do governo municipal.
148
Portanto, a cidade é a sede administrativa do Município, estando, por óbvio,
integrada a este. O que significa que a sede de administração estará sempre
estabelecida em zona urbana do Município. Nessa linha de pensamento, poder-se-ia
concluir que as funções sociais da cidade, referidas pelo artigo 182, seriam parte
integrante das funções sociais dos municípios, ou seja, estas últimas seriam ainda
mais abrangentes.
E não poderia ser diferente, que a função social do Município deve
abranger toda a população, urbana e rural, e não apenas a população urbana como
ocorre com a função social das cidades. Como adverte Meirelles, “a administração
municipal contemporânea não se restringe apenas à ordenação da cidade, mas se
estende a todo o território do Município cidade-campo em tudo que concerne ao
bem-estar da comunidade”
149
.
Retomando a questão das funções sociais das cidades, apenas para deixar
clara a sua extensão, essas podem ser resumidas em um objetivo único, qual seja, o
bem-estar dos habitantes das cidades. Não se deve confundir, porém, com a função
148
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 20.
149
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 33.
67
administrativa exercida na cidade, enquanto sede administrativa dos municípios, e
que por isso deve ser destinada a todos os munícipes (urbanos e rurais).
Ao se falar em função social das cidades, não se pode excluir da análise o
Estatuto da Cidade
150
, cuja finalidade repousa na regulamentação dos artigos 182 e
183 da Constituição Federal de 1988
151
. Com o intuito de disciplinar o meio urbano,
encontra amparo constitucional não apenas nos artigos mencionados, mas também
no artigo 225 da Carta Magna
152
, que trata do meio ambiente.
O Estatuto da Cidade, reconhecido como lei do meio ambiente artificial,
contribui para a caracterização e a efetivação da função social e ambiental da cidade
e da propriedade urbana. Através desse diploma legal, possibilitou-se o
estabelecimento de interfaces entre a política urbana e a ambiental, com a regulação
do uso da propriedade urbana em prol da sustentabilidade das cidades.
Por conseguinte, quando se falar em função social das cidades,
necessariamente estar-se-á falando na sua função ambiental. A justificativa a essa
afirmativa assenta-se, sobretudo, no fato de serem as cidades partes integrantes do
meio ambiente artificial, sendo este considerado o ambiente construído e modificado
por meio da intervenção humana.
Assim, pode-se entender como meio ambiente artificial o conjunto de
edificações particulares ou públicas, formado por construções realizadas
exclusivamente pelo homem, tendo em vista que sua principal característica é o
meio ambiente urbano.
153
No mesmo sentido, Silva conceitua meio ambiente artificial
como o meio “constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciado no
conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos
(ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto)”.
154
150
Lei nº 10.257, de 11 de julho de 2001.
151
Referidos artigos constitucionais dispõem sobre a Política Urbana Municipal.
152
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e as futuras gerações.
153
CAPOLA, Gina. O meio ambiente artificial. Prática Jurídica, Ano III, n. 28, p. 46-50, jul. 2004, p. 47.
154
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 21.
68
Nessa conjuntura, não haveria como dissociar o meio ambiente urbano da
tutela ambiental prevista pelo artigo 225 da Carta Constitucional. Percebe-se, pois,
que a função sócio-ambiental das cidades é o Bem Comum do povo. Nesse
contexto, a compreensão da qualidade de vida e da sustentabilidade urbana
ultrapassa o limite de ser apenas um direito fundamental, para ser considerado
como um bem pertencente à sociedade.
Ainda em perspectiva constitucional, o meio ambiente artificial, que centra sua
tutela na dignidade da pessoa humana, também pode ser considerado princípio
fundamental
155
. Afinal, enquanto proteção geral do meio ambiente tutela, também, a
vida. A sua relação com as cidades é, portanto, direta, haja vista a impossibilidade
de desvinculação da política urbana com o direito à qualidade de vida, à dignidade
da pessoa humana e a um ambiente sadio e sustentável, sempre com o objetivo
maior de atender ao bem-estar dos cidadãos.
Como bem-estar entende-se a promoção de direitos fundamentais do ser
humano, dentre os quais se destacam a saúde, a moradia, o trabalho, a educação, o
lazer, e, acima de tudo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado para garantir a
sobrevivência da humanidade. Assim, a cidade que garantir esses direitos por meio
de políticas públicas que não agridam o interesse social (vontade popular em um
dado momento histórico), ou seja, que tenha priorizado o interesse coletivo em prol
do individual, terá atingido sua função social.
A função social dos municípios, por seu turno, aceitando-se as considerações
de Pasold
156
sobre a função social dos Estados Membros e transportando-as para o
155
Elencado no artigo 1° da Constituição Federal de 1988.
156
De forma bastante sintética, Pasold defende ser o Estado o instrumental utilizado pela sociedade
na persecução do Bem Comum, estabelecido por ela mesma. Assim, a interferência estatal dá-se
na medida em que a vida da Sociedade é regulada pela noção de Bem Comum. Percebendo-se,
assim, o Bem Comum como um ordenamento de crenças e valores da sociedade em um
determinado momento histórico, garante-se a dinamicidade social e o não engessamento das
políticas públicas. Referindo-se aos objetivos do Bem Comum, resume-os à expressão bem-estar
coletivo. Portanto, para esse autor, sendo a função social a principal função do Estado, ela
destina-se à valorização do ser humano, possibilitando seu crescimento individual e em
sociedade. Donde conclui que o objetivo da função social seria a realização da Justiça Social.
(RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 153 et seq.)
69
âmbito municipal, busca sua melhor interpretação no Bem Comum, tendo o ser
humano como destinatário das ações. Deve o Município, enquanto entidade estatal
que representa os indivíduos, objetivar em todas as suas ações os anseios sociais,
em busca de Justiça Social.
Mas alerta-se que nesse conceito de Justiça Social não se está defendendo a
utilização de uma mesma política pública a todos os indivíduos. Compreendendo o
Município, além da zona urbana, também a zona rural, as ações implementadas
deverão ser conformadas à necessidade individual. Nessa perspectiva, tratando os
desiguais de forma desigual, o resultado de Justiça Social será alcançado. Repete-
se, pois, que para realizar a sua função social, respeitando por certo os direitos e
garantias fundamentais do cidadão previstos constitucionalmente, deve o Município
observar as particularidades individuais e o momento social que vive.
E, diferentemente do que ocorre com a função social das cidades, todos os
munícipes, e não apenas aqueles que estejam inseridos no pólo administrativo,
deverão ter seu bem-estar resguardado. Garante-se, com a função social dos
Municípios, o direito ao bem-estar coletivo, compreendendo aqui toda e qualquer
pessoa, habite ou não na zona urbana.
Enfim, sendo o Município parte integrante do Estado Federativo brasileiro,
suas políticas públicas encontram-se, inegavelmente, atreladas às normas
constitucionais, principalmente aquelas referentes aos Direitos Fundamentais por
serem parte componente do Bem Comum. E este deve ser balizado pelos princípios
constitucionais, em especial o princípio da precaução, que garantirá condições
dignas de vida, promovendo o bem-estar social. As ações municipais, portanto,
devem estar direcionadas, dentro de suas competências, à promoção do
desenvolvimento sustentável.
70
2.3 Competências municipais
Em Estados Federalistas, a repartição de poderes autônomos costuma
constituir o núcleo do conceito Estado Federal. O termo poderes, nesse caso,
significa a porção de matéria distribuída entre as unidades autônomas pela
Constituição, e que comporiam seu campo de atuação governamental, ou seja, sua
área de competência.
157
Com efeito, será por meio dessas regras de competência
que “as atividades legalmente conhecidas e admitidas pela força democrática,
poder-se-ão efetivar-se com o intuito de promover o bem comum”
158
.
Assim, para que seja possível ter a exata compreensão e, quem sabe,
delimitação das atribuições municipais, principalmente naquilo que diz respeito ao
meio ambiente, não se pode deixar de examinar o sistema constitucional brasileiro
de repartição de competências. A técnica adotada foi a divisão, segundo diretrizes,
nas modalidades horizontal e vertical.
As competências horizontais separam as áreas de atuação por entes da
federação, concedendo atribuições próprias a cada um. Também podem ser
denominadas de competências privativas ou exclusivas. De outra parte, as verticais
separam as matérias a serem disciplinadas em níveis diversos entre as unidades
federativas.
159
Além disso, a Constituição Federal adota o sistema de “competências ou
poderes reservados ou enumerados”
160
para União e municípios, ou seja, enumera
os poderes que pertencem à União e aos municípios. Ao Estado Membro caberá o
remanescente, conforme consubstanciado no artigo 25, parágrafo 1º da Constituição
Federal
161
.
157
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 45-
46.
158
SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 191.
159
Ibidem, p. 196.
160
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 131.
161
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem,
observados os princípios desta Constituição. § 1° - São reservadas aos Estados as competências
71
Segundo Meirelles, decorre desse sistema, por exemplo, que a manifestação
expressa e privativa da competência municipal repele a de qualquer outro ente
estatal. No entanto, sobre a competência implícita do Município prevaleceria a
competência expressa estadual ou federal, mas se a competência estadual também
for implícita, ao Município dar-se-ia a preferência.
162
Sendo as competências comuns às três esferas, surgem alguns impasses.
Certos autores como Meirelles acreditam que, nesse caso, e quando houver área de
ação livre para todas as entidades, deveria haver prevalência da maior para a
menor. Nessa perspectiva, Krell
163
adverte que haveria contradição do constituinte.
Este, embora tenha optado pelo federalismo enquanto forma de organização do
Estado brasileiro, ao mesmo tempo teria impedido que a descentralização se
consolidasse de forma efetiva. A divisão de competências da Constituição Federal
164
destinou aos municípios, segundo o autor, poucas matérias em termos de
legislação, bem como em nenhuma hipótese concedeu a competência plena.
O cerne da competência administrativa municipal está no artigo 30, inciso I,
da Constituição Federal com a discriminação das matérias nos incisos que seguem
(II-IX). Tal dispositivo menciona que cabe aos municípios “legislar sobre assuntos de
interesse local”. Esse se caracterizaria pela predominância do interesse municipal
frente ao estadual e federal, donde surgem algumas divergências. A principal
concentra-se na dificuldade de diferenciação entre interesse local e regional. Afinal,
dada a atual conjuntura, determinado assunto municipal poderá repercutir também
no Estado e na União, haja vista a interligação destes entes pelo pacto federativo.
Meirelles argumenta, com uma abordagem ampliada das competências
municipais, que “não assunto municipal que não seja reflexamente de interesse
que não lhe sejam vedadas por esta Constituição.
162
O autor define como competências expressas aquelas “literalmente expressas no texto
constitucional, como as dos artigos 21 e 22, para a União, e os do artigo 30, para os Municípios.
As implícitas são as que resultam como conseqüência lógica e necessária de um poder explícito,
ou dos princípios adotados pela Constituição Federal”. (MEIRELLES, op. cit., 133-134.)
163
KRELL, Andreas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos
conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004, p. 93-103, passim.
164
Competências estabelecidas nos artigos 21 a 31 da Constituição Federal de 1988.
72
estadual e nacional. A diferença é apenas de grau e não de substância”
165
. No
mesmo sentido, assevera Santana que
Parece-nos de que outro modo não se poderia imaginar o âmbito de
ação municipal. É claro que o Município está situado dentro de um dado
Estado e esse dentro da Federação Brasileira, ao que formam o todo,
formam a união indissolúvel e, não há antinomia entre interesses locais
e interesses gerais. O traço que torna diferente o interesse local do
interesse geral é a predominância, jamais a exclusividade, como já aqui
afirmado.
166
Deve-se, portanto, observar a predominância de interesse, de tal forma que
seja possível identificar a superioridade ou não do interesse local frente aos demais,
determinando-se, por conseqüência, a competência. Dessa forma, entende-se que
uma ampla gama de competências destinadas aos municípios, contrapondo-se
ao posicionamento de Krell, havendo apenas limitações constitucionais a autonomia
dos municípios, previstas nos artigos 34 e 35 da Constituição Federal.
Outro aspecto interessante reside na importância da competência
suplementar legislativa do Município, prevista no artigo 30, inciso II, da Constituição
Federal, que irá adaptar a lei federal ou estadual à realidade local. Não se pode
olvidar que, muitas vezes, a legislação é feita para o contexto nacional, porém,
tomando o sul e sudeste do país como padrão. Essa prática corrente ocasiona
disparidades, que precisam ser corrigidas por meio de legislação suplementar,
adequando as leis às realidades das demais regiões, principalmente no que se
refere à legislação ambiental. Afinal,
[...] se o município possui competência legislativa para suplementar
legislação nacional e estadual, é claro que esta normação poderá se
desenvolver “quando isso couber”. E, segundo pensamos, caberá a
legislação ambiental do Município não somente em caso de espaço
normativo não preenchido, mas sobretudo quando a legislação
ambiental existente não seja justificável ante a realidade local. Com tal
interpretação estamos dando ao Município a dimensão que ele
realmente desfruta da Lei Maior.
167
165
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 134-
135.
166
SANTANA, Jair Eduardo. Competências legislativas municipais. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p,
120.
167
Ibidem, p. 142.
73
Além disso, é no espaço local que se pode perceber um maior sentimento de
pertencimento das pessoas. Os atores sociais se conhecem e as políticas públicas
podem se integrar tornando seus resultados visíveis à comunidade.
2.3.1 Competências municipais ambientais
Por competências ambientais municipais se entende os campos de atuação
em que o Poder Público atuará, direcionando suas funções à defesa e preservação
do meio ambiente. Essa competência, quanto à sua extensão, é previamente
dividida pela Constituição Federal em competência material exclusiva ou comum
e competência legislativa – privativa, exclusiva, concorrente ou suplementar.
168
A competência material refere-se ao exercício de competências
administrativas, ou, do poder-dever do poder público em realizar determinadas
ações exigidas pela coletividade. Como interessa à presente pesquisa as
competências municipais, discorrer-se-á apenas sobre elas, não se aprofundando
sobre as competências exclusivas que não podem ser delegadas exercidas pela
União.
Ao declarar, no artigo 23, inciso VI da Constituição, a proteção ambiental
como competência comum, quis o legislador unificar a atuação nessa área,
construindo um padrão mínimo para que os entes federados enfrentem estes
problemas. Além disso, parece determinar que a proteção ao meio ambiente é dever
de todos os entes federativos, dentro dos limites impostos a cada um deles.
Entretanto, o foco de atenção, no momento, é o Município.
A Carta Constitucional determinou, em seu artigo 23, incisos VI e VII, a
competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
para proteger o meio ambiente, combater a poluição em qualquer de suas formas e
preservar as florestas, a fauna e a flora.
168
SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 198.
74
A competência legislativa ambiental trata-se, por sua vez, de um poder
direcionado a determinado ente federativo pela Constituição Federal através do qual
exercita sua capacidade legiferante em busca do bem social.
No artigo 24, em seus incisos VI e VIII, a Constituição Federal atribuiu
competência legislativa concorrente entre todos os entes federados. Essa
competência foi fixada para legislar sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação
da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e
controle da poluição (VI), bem como sobre responsabilidade por dano ao meio
ambiente, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico (VIII). Sendo concorrente a competência, a atuação da União limitar-se-
á ao estabelecimento de normas gerais, não excluindo, assim, a competência
suplementar de outros entes federativos.
A competência suplementar dos municípios à legislação federal e estadual,
quando e no que couber, está prevista no artigo 30, inciso II, da Constituição
Federal. Ademais, possuem competência para promover o adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do
solo urbano, bem como para legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30,
inciso VIII, CF/88).
Na lição de Machado, “em matéria ambiental como em todos os campos da
Administração Pública de pouca valia será a ação compartimentalizada e isolada em
suas manifestações”
169
. O fim último de qualquer política municipal deve ser o bem-
estar de seus habitantes, com a incessante busca pelo equilíbrio social, ao que se
pode denominar como função social dos municípios, como já visto.
Porém, isso não significaria a aplicação de modelos prontos e engessados,
mas a simples harmonização das políticas nas regiões, para que pudessem ser
alcançados os objetivos da Agenda 21
170
de um desenvolvimento sustentável.
Portanto, cada Município deveria implementar as políticas ambientais de acordo com
169
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 73.
170
A Agenda 21 é um documento consensual entre sociedade civil e governos de 179 países que
institui um programa de ação para promover um novo padrão de desenvolvimento em escala
planetária, conciliando proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica.
75
a sua realidade específica, haja vista a diversidade de problemas e de potenciais
entre as localidades. Mesmo utilizando um mesmo modelo de gestão, o que não
seria indicado, os resultados variariam segundo os arranjos políticos, econômicos e
culturais de cada municipalidade.
Um outro impasse que surge no direcionamento de políticas ambientais à
competência municipal refere-se ao orçamento. Saliba o eleva mesmo à condição de
principal instrumento do Estado, pois
[...] é o meio pelo qual seus intentos serão promovidos durante um
período; nele é depositada a vontade política em benefício da ordem
geral, [...] por meio do direcionamento de receitas e despesas e
redistribuição de benefícios públicos, almeja uma vontade suprema, ou
seja, a vontade maior da sociedade.
171
A participação dos municípios no campo da pesquisa para um
desenvolvimento sustentável dar-se-ia, necessariamente, por intermédio do
desenvolvimento orçamentário, levando em consideração o envolvimento de
interesses de uma ordem geral. Nessa conjuntura, é imprescindível que se
verifiquem as competências tributárias municipais, fonte de recursos orçamentários
dessa entidade federativa.
2.3.2 Competências municipais tributárias
Para alcançar o bem-estar da sociedade, incluindo tudo que se refira à
proteção do meio ambiente, os meios de que dispõe o Estado para intervir na ordem
econômica são as imposições ou incentivos fiscais. Mas, para que o exercício
tributário coadune com a vontade soberana da população e permaneça em
concordância com o Estado Federal, que prevê a autonomia de cada pessoa
política, deve se efetivar por meio de competências tributárias, de forma harmônica,
não reciprocamente invasoras.
Inicialmente, é preciso entender o que seja competência tributária. Essa pode
ser conceituada, conforme Amaral, como “o poder que determinada pessoa política
171
SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 130.
76
possui para legislar sobre certos tributos, como definir suas hipóteses de incidência,
seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas,
dentre outros”
172
.
Ademais, uma importante característica assenta-se no caráter único do poder
legiferante recebido, que obriga a unidade federada a permanecer com ele. Em
decorrência disso, a competência tributária deve ser vista como exclusiva, pois
quando atribuída a uma entidade excluirá as demais.
173
Em nada se alterará isso a
competência comum, pois cada ente permanecerá com exclusividade para exercê-
la. Por comum tem-se apenas a designação genérica, sendo o exercício da
competência, conforme Jardim, exclusivo a cada pessoa tributante
174
.
Nesse contexto, assevera Carrazza que o exercício da competência tributária
pelas pessoas políticas portadoras de tal prerrogativa nascimento, em um plano
abstrato, aos tributos.
175
Cada ente federativo exercerá, no entanto, a competência,
dentro dos limites e regras impostos pela Constituição Federal.
Os municípios, enquanto entidades autônomas, podem obter receitas de
várias formas. Uma delas seria através do repasse de recursos pela União e pelos
Estados Membros. Outra forma, no entanto, trata-se da prerrogativa que lhe foi
conferida pela Constituição, em seu artigo 145, de instituir impostos, taxas e
contribuições de melhoria. Os impostos que couberam exclusivamente aos
municípios, na repartição de competências, estão definidos no artigo 156 do mesmo
diploma legal, sendo eles: imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
(IPTU), imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis e direitos a eles
relativos (ITBI) e imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS).
172
AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 59.
173
SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 215.
174
JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Manual de direito financeiro e tributário. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 198.
175
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 431-432.
77
Não se pode esquecer a prerrogativa conferida aos municípios pelo artigo 149
da Carta Constitucional de instituir a contribuição para o custeio do serviço de
iluminação pública (COSIP), nos termos do artigo 150, I e III do mesmo diploma
legal.
Possível a percepção, diante do exposto, de que todos os entes políticos
estão imbuídos, pela Constituição, de competências ambientais e tributárias com o
intuito de atender ao bem-estar do cidadão. A existência de uma simetria nesse
sentido pode, assim, vir a favorecer a instituição de normas tributárias em favor da
defesa e preservação do meio ambiente, sem qualquer conflito.
2.4 Poder local: uma maneira de efetivar políticas de preservação ambiental
Até o início dos anos de 1980, as políticas públicas tinham um cunho
fortemente clientelista, em que se estabeleciam articulações entre o governo federal,
detentor dos recursos, e os governos estaduais e municipais, expostos às demandas
sociais. Chauí afirma ser a sociedade brasileira autoritária, e o faz pensando em
alguns traços gerais das relações sociais que se repetem em todas as esferas da
vida social. Para a autora,
Vivemos em uma sociedade verticalizada e hierarquizada [...] na qual
as relações sociais são sempre realizadas ou sob a forma da
cumplicidade (quando os sujeitos sociais se reconhecem como iguais)
ou sob a forma do mando e da obediência entre um superior e um
inferior (quando os sujeitos sociais são percebidos como diferentes, a
diferença não sendo vista como assimetria, mas como desigualdade).
[...] A forma autoritária da relação é mascarada por aquilo mesmo que a
realiza e a conserva: as relações de favor, tutela e clientela.
176
Agravando ainda mais esse quadro, essas políticas eram concebidas de
maneira independente, ou seja, não existiam ações coordenadas dirigidas à
satisfação de uma necessidade social. Além disso, o processo de formulação,
176
CHAUÍ, Marilena. Raízes teológicas do populismo no Brasil: teocracia dos dominantes,
messianismo dos dominados. In: DAGNINO, Evelina (Org.) Anos 90: política e sociedade no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 27-28.
78
implementação e controle das políticas excluía a sociedade civil. Nesse sentido,
Boneti acrescenta que
[...] o debate em torno da elaboração de uma política pública, portanto,
é feito entre os “agentes do poder”, quer seja nacional ou global,
constituindo-se, na verdade, de uma disputa de interesses pela
apropriação de recursos públicos, ou em relação aos resultados da
ação de intervenção do Estado na realidade social.
177
Em razão disso, percebe-se um grande descrédito em relação ao Estado
naquilo que diz respeito às ações estatais e às políticas públicas, principalmente
após o processo de democratização da década de 1980. Como decorrência,
articulou-se uma visão minimalista
178
, que propõe a redução do Estado. Destacou-se
o estabelecimento de uma nova relação entre Poder Público e Sociedade.
Curiosamente, Farah
179
chama a atenção que esse modelo fora proposto pelo
Banco Mundial desde o final da década de 1950 para os países em
desenvolvimento. A recomendação foi no sentido de envolver a sociedade civil na
busca de soluções aos problemas sociais.
No Brasil, esse movimento se direcionou para a democratização da gestão e
das políticas públicas, a partir da descentralização. Essa proposta surge em
decorrência da preocupação com a eficiência, a eficácia e a efetividade da ação do
Estado. Afinal, vê-se a descentralização, sobretudo, como um meio de redistribuir o
poder, democratizando o acesso aos mais diversos serviços sociais, e cumprindo
com a função social dos municípios.
Antes, porém, de aprofundar um pouco a discussão nessa mudança de
paradigma da relação entre Estado e Sociedade, enfocando, não se poderia deixar
de fazê-lo, a participação popular, é preciso explicitar o que se compreende por
política pública. As políticas públicas, segundo P. Cunha e M. Cunha, têm sido
criadas como resposta do Estado às demandas que emergem da sociedade e do
177
BONETI, Lindomar Wessler. Políticas públicas por dentro. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006, p. 16-17.
178
Saliente-se que esta visão minimalista é apenas um viés da nova relação entre Estado e
Sociedade.
179
FARAH, Marta Ferreira Santos. Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas públicas locais.
Revista de Administração Pública, v. 35, n. 1, p. 119-145, jan/fev 2001.
79
seu próprio interior, sendo expressão do compromisso público de atuação em uma
determinada área.
180
No mesmo sentido, Boneti acrescenta que
[...] é possível compreender como políticas públicas as ações que
nascem do contexto social, mas que passam pela esfera estatal como
uma decisão de intervenção pública numa realidade social, quer seja
para fazer investimentos ou para uma mera regulamentação
administrativa.
181
No entanto, Franco ressalta que de uma maneira geral, os Estados definem
as políticas de cima para baixo, dizendo como e o que as populações deveriam
demandar. Essa prática, com resquícios de clientelismo, não estaria permitindo a
participação da população nas decisões. Para o autor, o estabelecimento de um
novo padrão de relação entre o Poder Público e a comunidade, alicerçado na
participação dos cidadãos em suas comunidades, em clima de parceria entre
múltiplos atores, necessita que haja políticas de indução ao desenvolvimento
humano e social em detrimento de políticas assistenciais.
182
Essa nova concepção de cooperatividade traz um papel estratégico para a
sociedade, mas para a sua concretização é preciso investimento em capital social,
ou seja, na capacidade dessa sociedade de formar redes e resolver seus problemas
democraticamente. A compreensão que se tem de capital social é a adotada por
Schmidt, segundo a qual é um “conjunto de redes, relações e normas que facilitam
ações coordenadas na resolução de problemas coletivos e que proporcionam
recursos que habilitam os participantes a acessarem bens, serviços e outras formas
de capital”
183
.
Contudo, a modificação de práticas políticas é um processo lento, que requer
etapas de aprendizado dos atores envolvidos em sua implementação. Não basta
simplesmente tentar impor mecanismos de participação. Este é um processo que
deve, necessariamente, partir da própria sociedade, na construção de seu capital
social. Para Barbosa,
180
CUNHA, E. da P.; CUNHA, E.S.M. Políticas públicas sociais. In: CARVALHO, A. et al. (Org.).
Políticas públicas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 12.
181
BONETI, Lindomar Wessler. Políticas públicas por dentro. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006, p. 74.
182
FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. Brasília: AeD, 2002, p. 58.
183
SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social. Minas Gerais: Mimeo, 2006, p. 7.
80
[...] a freqüência com que são feitas menções à existência de elementos
clientelistas, autoritários e patrimonialistas no âmbito das
administrações municipais, em que pesem nítidas diferenças regionais,
serve para reforçar a convicção de que a cultura democrática não se
instaura automaticamente [...]
184
Nessa sociedade que desponta, mais capacidade de governo deve ser
traduzida como maior capacidade de gestão e de decisão política na própria base da
sociedade. Não se trata do Estado total nem do Estado mínimo liberal. A gestão
estatal continuará a ser necessária, mas agora de forma reestruturada. Busca-se,
pois, a interlocução entre Estado e sociedade civil, possível, conforme Dowbor
185
,
com a mudança de uma visão de pirâmides verticais para redes interativas
horizontais.
O objetivo a ser alcançado é, pois, o fortalecimento da democracia no
relacionamento entre Administração Pública e cidadãos, aumentando o grau de
responsabilização e de participação do sistema. Não mais é aceitável que o Poder
Público tenha uma visão limitada do conceito e divisão do público como um setor
reservado e excludente da sociedade civil.
Público e privado não podem mais ser aplicados automaticamente ao
Estado e à sociedade. Existem, também, esferas estatal-privadas (empresas
estatais que buscam interesses particulares, econômicos ou setoriais) e públicas
não-estatais (movimentos que perseguem objetivos sociais como as organizações
não governamentais – ONGs).
Esse espaço nascido com as ONGs é considerado por alguns autores
186
como
condição para a democracia moderna, pois permitiriam a existência de espaços
públicos de decisão independentes do governo, de partidos políticos e de estruturas
estatais. Trata-se, pois, de modernizar a sociedade civil, transformando as
184
BARBOSA, Eva Machado. Poder local e cultura democrática: elementos para uma abordagem
multi-escópica em ciências sociais. Sociologias, Porto Alegre, n. 3, jan/jun 2000, p. 36.
185
DOWBOR, Ladislau. A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 354.
186
Ver VIEIRA, Liszt. Cidadania e controle social. In: PEREIRA, L.C.B.; GRAU, N.C. O público não-
estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 233-252,
passim; REILLY, Charles A. Redistribuição de direitos e responsabilidades cidadania e capital
social. In: PEREIRA, L.C.B.; GRAU, N.C. O público não-estatal na reforma do Estado. Rio de
Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 407-450, passim.
81
tradicionais estruturas de dominação. É preciso uma integração construtiva e
sinérgica em um regime de parceria onde os interesses públicos serão discutidos e
negociados.
A busca de novas formas de articulação com a sociedade civil e a introdução
de novas formas de gestão nas organizações estatais, em virtude do processo de
democratização, tem intensificado as iniciativas de governos municipais, que vem
ampliando sua ação nas políticas sociais por meio de programas locais.
Essa força dos municípios constitui então um meio de aproximação com os
cidadãos. As cidades tem ido em busca de parcerias e novas articulações sociais,
em uma tentativa inclusive de recuperar seu espaço econômico e a dimensão de
cidadania local.
A base da ação, segundo Santos, deve ser o espaço compartilhado no
cotidiano, que precisa ser reconstituído. Porém, não em uma visão de “small is
beautiful”, mas por meio da reorganização dos espaços locais com os demais que
compõem a sociedade complexa.
187
Ianni exprime esta idéia de forma poética: “o
todo parece uma expressão diversa, estranha, alheia às partes. E estas
permanecem fragmentadas, dissociadas, reiterando-se aqui ou lá, ontem ou hoje,
como que extraviadas, em busca de seu lugar”
188
.
Apesar de não ser fator exclusivo para a garantia da construção de uma
cidadania governante, como destaca Hermany, é nesse espaço sócio-político que
melhor se manifestam os instrumentos de socialização do processo legislativo e das
demais decisões públicas.
189
É intrínseca a relação entre a previsão de
competências constitucionais municipais e a construção de um direito social, como
forma de apropriação do espaço público pela sociedade, em face do fator potencial
que o espaço local possui para o exercício do controle sobre as decisões públicas.
187
SANTOS, Milton. Espaço, ciência e técnica. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 37.
188
IANNI, Octavio. A idéia de Brasil moderno. Brasília: Brasiliense, 1992, p. 177.
189
HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de
Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2007, p. 287.
82
Ainda que tenha a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 23, inciso VI,
declarado a proteção ambiental como competência comum aos entes federados,
precisa-se fortalecer a gestão a partir do local. O que significa que a grande maioria
das ações em sede de planejamento ambiental deveria ser de interesse local.
Somente de maneira excepcional, a competência seria atribuída às demais esferas
de governo. Isso em uma tentativa de retirar a sociedade da posição de sujeito
passivo das políticas públicas.
A realidade é que somos condicionados, desde nossa infância, a
acreditar que as formas de organização do nosso cotidiano pertencem
naturalmente a uma misteriosa esfera superior, o Estado, ou aos
poderosos interesses da especulação [...] O problema central, portanto,
é o da recuperação do controle por parte do cidadão, no seu bairro, na
sua comunidade, sobre as formas do seu desenvolvimento, sobre a
criação das dinâmicas concretas que levam a que nossa vida seja
agradável ou não.
190
Essa relevância local se caracteriza pela predominância do interesse dos
Municípios sobre os dos Estados Membros e da União, apesar de indiretamente
refletir nestes dois últimos, haja vista que a população dos Municípios também o é
dos Estados Membros e da União Federal. Dessa maneira, tem-se uma abordagem
ampliada das competências municipais.
Ressalte-se, pois, que embora devam os municípios se guiar pela legislação
federal e estadual no que concerne à proteção ambiental, eles podem e devem fazer
uso de sua autonomia para criar e implementar políticas condizentes com a sua
realidade específica. Tendo em vista a grande diversidade de problemas e
potenciais entre cada Município, cada situação requererá uma gestão ambiental
específica.
Não basta copiar um modelo de gestão de outra localidade, pois os resultados
irão variar segundo os arranjos políticos, econômicos e culturais existentes em cada
lugar, mostrando-se inclusive dependentes dos tipos de atores envolvidos e da
cultura política local. Seguindo o raciocínio de Moraes,
190
DOWBOR, Ladislau. A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 9.
83
[...] as especificidades territoriais (locais-regionais) passam a ser
consideradas na elaboração dessas políticas, que deixam de adotar
tipologias simplificadas e abrem espaços para a participação da
população local, na elaboração e implantação dessas políticas.
191
Assim, sendo o meio ambiente um dos assuntos de interesse local, a partir da
Política Nacional de Meio Ambiente, os municípios passaram a ser considerados
responsáveis pela proteção e melhoria do ambiente. Posição essa ratificada
posteriormente pela Constituinte. Mais recentemente, a resolução CONAMA
237/97
192
atribui aos municípios o licenciamento ambiental de empreendimentos e
atividades de impacto ambiental local.
Contudo, esses processos de democratização ambiental, segundo Leff,
“contemplam um amplo processo de transformações sociais”. E segue
argumentando que “o Ambientalismo mobiliza a participação da população na
tomada de decisões que afetam as suas condições de existência, desencadeando a
energia e a criatividade social para gerar uma nova cultura política e múltiplas
opções de organização produtiva”.
193
Uma primeira mudança significativa perceptível nas políticas ambientais
implementadas por poderes públicos locais consiste na “promoção de ações
integradas” dirigidas a um público alvo em comum. Somado a isso se tem o
“estabelecimento de vínculos de parceria com outros níveis de governo e com
governos de outros municípios”.
194
O que se tem proposto é, pois, uma gestão descentralizada e compartilhada
entre os diferentes níveis de governo (verticalmente) e diferentes setores
(horizontalmente), incluindo a iniciativa privada e população local, com o objetivo de
serem desenvolvidos programas inter-setoriais com enfoque ambiental. A
191
MORAES, Jorge Luiz A. de. Capital social e desenvolvimento regional. In: CORREA, Silvio M. de
S. Capital social e desenvolvimento regional. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 124.
192
ROCCO, Rogério. Legislação brasileira do meio ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p.
188-199.
193
LEFF, Henrique. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e
desenvolvimento sustentável. Trad. Jorge Esteves da Silva. Blumenau: Ed. da FURB, 2000, p.
371-372.
194
FARAH, Marta Ferreira Santos. Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas públicas locais.
Revista de Administração Pública, v. 35, n. 1, p. 119-145, jan/fev 2001.
84
humanização do desenvolvimento passa necessariamente por essa reconstituição
dos espaços comunitários.
Portanto, nas palavras de Franco, para que se tenha crescimento com
desenvolvimento deve-se ter presente a idéia de cooperação entre os mais variados
atores sociais.
195
Isso em busca de um novo padrão de relação Estado-Sociedade,
que leva em consideração a existência e a importância de uma nova sociedade civil,
integrada e participativa, com vistas ao desenvolvimento sustentável e integrado.
Cada vez mais o Poder Público municipal deverá contar com planos
ambientais de maneira a integrar ações de desenvolvimento que sejam sustentáveis,
atendendo à Agenda 21 e tendo acesso às fontes de financiamento. Defende Brose
que “em se mantendo as atuais tendências, as prefeituras deverão deixar cada vez
mais o seu papel de síndico da cidade para atuar mais como agente de
desenvolvimento humano”.
196
Nesse contexto, possibilita-se vislumbrar um Estado renovado, democrático e
de justiça social, no qual, através da participação popular, viabilize-se o
desenvolvimento sustentável das cidades. É preciso que se insufle a comunidade a
uma conscientização em relação aos problemas advindos com a urbanização
desordenada.
Nesse sentido, o Estatuto da Cidade pode contribuir de maneira ímpar para a
concretização de uma democracia participativa realmente ativa. Na tentativa de
defesa do meio ambiente artificial, em face do descaso observado nas cidades
brasileiras, desponta esse instrumento, com diretrizes gerais capazes de propiciar
uma sensibilização ambiental.
Sensibilização essa, como bem lembra Nalini, fundamental em uma
sociedade egoísta que não crê na preservação do ambiente para as futuras
gerações. A única preocupação, para o autor, é com a fruição presente e
195
FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. Brasília: AeD, 2002, p. 80.
196
BROSE, Markus. Fortalecendo a democracia e o desenvolvimento local: 103 experiências
inovadoras no meio rural gaúcho. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 70.
85
momentânea do meio ambiente, traduzindo tudo o que for possível em vantagens
econômicas, em um modelo de exploração que tem causado danos sistemáticos.
197
Dessa forma, políticas públicas de precaução seriam muito mais econômicas,
É menos dispendioso prevenir antes que o dano ocorra do que sofrer prejuízos
posteriores, tendo em vista que algumas perdas podem ser irreparáveis. Por essa
razão, poderes públicos em todos os âmbitos de atuação, mas principalmente o
municipal iniciativa privada e cidadãos, além de um direito, possuem o dever de
zelar pelo meio ambiente, coordenando suas ações em busca do indispensável
desenvolvimento sustentável.
198
Nessa seara, Leite investiga a possibilidade de instaurar um Estado de Direito
Ambiental. Contudo, salienta que a construção desse Estado pareceria um tanto
utópica, se levado em conta que nele deve haver um Estado de direito democrático,
de justiça social e ambiental para sua concretização.
199
Para Santos,
[...] sua realização pressupõe a transformação global, não dos
modos de produção, mas também do conhecimento científico, dos
quadros de vida, das formas de sociabilidade e pressupõe, acima de
tudo, uma nova relação paradigmática com a natureza, que substitua a
relação paradigmática moderna. É uma utopia democrática porque a
transformação a que aspira pressupõe a repolitização da realidade e o
exercício radical da cidadania individual e coletiva.
200
Ao contrário do que afirma Santos, Sirkis entende que “o objetivo de uma
cidade sustentável não é uma meta utópica, ela depende de uma série de ações
197
NALINI, José Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2003, p. XV-XXVI.
Esse pensamento do autor lembra, em grande medida, a teoria catastrófica de Dupuy, comentada
no capítulo anterior.
198
Ibidem, p. XXVII-XLVIII.
199
LEITE, J. R. Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinariedade e a proteção jurídico-
ambiental em sociedades de risco: direito, ciência e participação. In: LEITE, J.R. Morato; BELLO
FILHO, Ney de Barros. (Org.) Direito ambiental contemporâneo. Barueri: Manole, 2004, p.104.
200
SANTOS, Boaventura de Souza. Pelas mãos de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7.
ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 43-44.
86
perfeitamente alcançáveis, conquanto, algumas difíceis por fortes injunções
culturais, políticas e econômicas”.
201
Para que esse Estado de Direito Ambiental possa ser implementado, alguns
obstáculos precisariam ser transpostos, dentre eles a dimensão transfronteiriça dos
danos ambientais, de modo que seriam necessários instrumentos capazes de atingir
o âmbito global.
202
Porém, a melhor tática não seria submeter a proteção ambiental à
internacionalização. Ao contrário, deve-se atentar para o fato de que os verdadeiros
implementadores das políticas ambientais são os órgãos locais e a comunidade que,
atuando de forma cooperativa entre si, acabarão por resolver os problemas de
ordem global.
Para isso, é essencial que se supere a crise de percepção pela qual passa a
sociedade. Isso poderá ser feito através de instrumentos que busquem produzir a
informação, possibilitando o consenso em matéria ambiental e a modificação da
compreensão do futuro, atribuindo-se obrigações e responsabilidades a todos os
membros da sociedade. Nesse cenário de mudanças, reitera-se, a participação
popular é fundamental, uma vez que possibilita o exercício da democracia ambiental.
Ainda em relação à proposta desenvolvimentista de um Estado Ambiental,
Canotilho refere-se, semelhantemente, a um Estado Constitucional Ecológico
conjugado à idéia de democracia sustentada, definindo, para tanto, que
[...] o estado constitucional além de ser um estado de direito
democrático e social deve ser também um estado regido por princípios
ecológicos. O estado ecológico aponta para formas novas de
participação política sugestivamente condensada na expressão
democracia sustentada.
203
A democracia do Estado moderno precisa se adequar ao desenvolvimento
ambientalmente justo. A proposta de Canotilho é de que se possibilite a percepção
dos problemas jurídico-ambientais e a tutela ambiental como responsabilidade
201
SIRKIS, Alfredo. O desafio ecológico das cidades. In: TRIGUEIRO, André (Coord.). Meio ambiente
no século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 228.
202
LEITE, J. R. Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinariedade e a proteção jurídico-
ambiental em sociedades de risco: direito, ciência e participação. In: LEITE, J. R. Morato; BELLO
FILHO, Ney de Barros (Org.) Direito Ambiental Contemporâneo. Barueri: Manole, 2004, p.106.
203
NALINI, José Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2003, p.31.
87
global. Ao direito de cada um corresponde o dever de cidadania na defesa do meio
ambiente, de tal sorte que este é considerado bem público e sua proteção é função
pública. Contudo, deve-se ter uma perspectiva associativa, capaz de estimular a
democracia participativa no suprimento das deficiências do Estado.
204
Diante da realidade, urgência na formação de uma nova concepção de
Estado, um Estado Democraticamente Ambiental e de gestão compartilhada com
outros atores sociais. necessidade de repensar a teoria jurídica tradicional,
buscando a cooperatividade entre os diversos atores sociais com vistas ao Bem
Comum. Urge o reconhecimento da vinculação jurídica da sociedade, em seu
aspecto coletivo e individual, e do próprio poder público, para que se torne possível
a efetivação das normas constitucionais e infraconstitucionais de proteção
ambiental.
Medeiros entende que a análise interpretativa do disposto no art. 225 da
CF/88 permite afirmar ser a proteção do meio ambiente, além de um direito do
homem, um dever fundamental. O ser humano não existe isoladamente, nem sua
liberdade é absoluta, de tal sorte que todos os indivíduos são co-responsáveis pelo
progresso e bem-estar da sociedade. Enfim, pode-se dizer que, intrinsecamente
vinculado ao direito de proteção ambiental, existe um dever fundamental, que se
caracteriza pela obrigação incumbida ao Poder Público, principalmente municipal, e
a cada um dos indivíduos da sociedade de zelar pelo patrimônio ambiental.
205
Além disso, a construção de um espaço participativo não tem que ser visto
como uma possibilidade, mas como uma necessidade. “O melhor modo de tratar as
questões do meio ambiente é assegurando a participação de todos os cidadãos
interessados”. Nesse sentido, “o direito ambiental faz os cidadãos saírem de um
estatuto passivo de beneficiários, fazendo-os partilhar da responsabilidade na
gestão dos interesses da coletividade inteira”.
206
204
NALINI, José Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2003, p.32-33.
205
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de
uma nova concepção de um estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman
(Org.) Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, v. 2, p. 201.
206
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de
uma nova concepção de um estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman
(Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, v. 2, p. 203.
88
Então, pode-se dizer que o papel da sociedade civil e da esfera pública se
atualiza por intermédio de um efetivo exercício da democracia. Aliando-se um
Estado renovado e participação popular, pode-se alcançar uma gestão ambiental
compartilhada, que efetive as funções sociais dos municípios em prol do Bem
Comum das presentes e futuras gerações.
A sociedade é a maior interessada na solução dos problemas urbanos e é
também a que melhor conhece e sente a dimensão de tais problemas. Dentro desse
espírito de gestão democrática, proposto pelo Estatuto da Cidade, a participação
popular representa um novo conceito de governo e de democracia. Após o
surgimento da lei do meio ambiente artificial, a participação da sociedade não se
restringe apenas em eleger seus representantes, mas sim assegurar, na medida do
possível, a conjunção de democracia representativa e participativa na busca do bem
coletivo.
A Constituição Federal de 1988 apresentou instrumentos que permitem a
participação cada vez mais ampla da população na defesa e promoção dos
interesses coletivos. O Estatuto da Cidade, complementarmente, amplia essa
participação para todos os atos da política pública municipal. Cabe agora aos
cidadãos a tarefa de exercer esses direitos e abrir caminho para o exercício da
gestão democrática participativa, mas cabe-lhes, principalmente, a tarefa de
conscientização de que todos fazem parte do meio ambiente artificial e são co-
responsáveis na sua preservação.
A partir desse enfoque, ou seja, da conjugação de esforços almejando um
meio ambiente equilibrado, e com base nas competências e características dos
municípios brasileiros, buscou-se verificar, no próximo capítulo, a contribuição das
políticas públicas tributárias por meio de convênios e consórcios municipais para a
aplicação do princípio da precaução.
89
3 POLĺTICAS TRIBUTÁRIAS MUNICIPAIS
O discurso do desenvolvimento, atualmente, transcende aquele do início do
século XX que se voltava para o crescimento quantitativamente considerado. A
preocupação estende-se, também, aos indicadores sociais e à qualidade de vida,
tornando a discussão transdisciplinar.
Ao englobar a qualidade de vida, está-se falando em desenvolvimento
sustentável, colocando em evidência que os seres humanos são parte integrante do
meio em que vivem. Sob essa ótica, os objetivos econômicos devem respeitar o
habitat, tendo-se uma atuação estatal voltada ao direcionamento dos
comportamentos dos contribuintes visando novas e adequadas tecnologias capazes
de prevenir, neutralizar ou minimizar o impacto negativo das atividades econômicas
sobre o ambiente.
Não obstante, a preservação ecológica gera os mais variados custos,
principalmente aos países subdesenvolvidos. Por essa razão, é preciso encontrar
instrumentos tributários capazes de aliar desenvolvimento e sustentabilidade. Busca-
se, assim, na extrafiscalidade e nos convênios e consórcios municipais um caminho
para driblar os problemas orçamentários em matéria ambiental.
3.1 Extrafiscalidade
Primeiramente, é preciso diferenciar as funções fiscais e extrafiscais dos
tributos, para somente após verificar como os tributos municipais cumprem cada
uma de suas funções. Para uma primeira concepção do que seja a extrafiscalidade
no Direito Tributário, busca-se apoio em Derzi, com a ciência de que a autora está
baseada na concepção clássica.
Costuma-se denominar extrafiscal aquele tributo que não almeja,
prioritariamente, prover o Estado dos meios financeiros adequados a
seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com a
90
sua função social ou a intervir em dados conjunturais (injetando ou
absorvendo a moeda em circulação) ou estruturais da economia. Para
isso, o ordenamento jurídico, a doutrina e a jurisprudência têm
reconhecido ao legislador tributário a faculdade de estimular ou
desestimular comportamentos, por meio de uma tributação progressiva
ou regressiva, ou da concessão de benefícios
207
e incentivos fiscais
208
.
A Constituição expressamente os admite para promover o equilíbrio do
desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país
(art. 151, I), determina ainda que o imposto da propriedade rural, assim,
como autoriza a progressividade do imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana, para assegurar a função social da
propriedade.
209
Enquanto o tributo fiscal, segundo Gouvêa, visa à arrecadação de recursos
financeiros para cobrir as necessidades dos cofres públicos, a tributação extrafiscal
almeja efeitos não arrecadatórios, mas de interferência no domínio econômico,
político e social.
210
A extrafiscalidade, então, quer forçar o contribuinte a adotar um
determinado comportamento.
Em sintonia com o pensamento de Gouvêa, Balthazar leciona referente à
classificação dos impostos que serão eles, quanto à finalidade:
Fiscais, os impostos cuja única finalidade seria a arrecadação de
receita para os cofres do Estado, visando a satisfação das
necessidades públicas. Extrafiscais, os impostos utilizados com fins
outros que não a mera obtenção de receita. O Estado deles se serviria
para intervir no domínio econômico ou social, forçando o contribuinte a
adotar um determinado comportamento. O objetivo a alcançar não seria
tão somente o aumento da receita, mas a realização de uma
determinada política econômica ou social.
211
Pode-se verificar que Meirelles coaduna com o posicionamento dos autores
citados, definindo a extrafiscalidade como a utilização dos tributos para fomento ou
desestímulo a atividades sociais e econômicas. Segundo ele, “é ato de política fiscal,
207
Segundo dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, benefício é o auxílio legal,
em dinheiro, concedido a segurado da Previdência Social que fizer jus em face de determinado
evento.
208
Como incentivo fiscal entende-se o estímulo, na forma de isenção tributária, com o objetivo de
proporcionar equilíbrio no desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país.
Essa conceituação foi retirada do dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
209
DERZI, Misabel A. M. Atualização a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 233/234.
210
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey,
2006, p. 40-48, passim.
211
BALTHAZAR, Ubaldo César. Manual de Direito Tributário. Florianópolis: Diploma Legal, 1999, p.
52.
91
isto é, de ação do governo para o atingimento de fins sociais, através da maior ou
menor imposição tributária”
212
.
Por sua vez, Saliba identifica como extrafiscalidade
[...] os efeitos que a norma tributária irradia no campo social quando da
sua incidência. Efeitos estes que provocam além do ingresso nos cofres
públicos de quantias que sirvam para abastecê-los com vista ao
financiamento de gastos na ordem geral (organização de gastos
públicos), como também para a implementação de políticas sociais,
visando dirigir uma economia nacional através da redistribuição de
riquezas – rendas e patrimônio.
Nesta circunstância, o Estado, cuja autorização está estampada na
Constituição Federal, acaba implementando atividades – política fiscal –
que intervenham no comportamento da sociedade, regulando assim a
ordem econômica, e garantindo, por conseguinte, a igualdade entre os
grupos sociais que nela se situam.
213
Implícito está, no raciocínio do autor, que os tributos possuem as duas
funções, fiscal e extrafiscal. Corroborando esse posicionamento, tem-se a conclusão
de Amaral de que poderá haver, em alguns casos, o predomínio do caráter fiscal ou
extrafiscal, mas que jamais se observará apenas um caráter.
214
Sobre essa questão,
Carvalho considera que
[...] não existe, porém, entidade tributária que se possa dizer pura, no
sentido de realizar tão-só a fiscalidade, ou, unicamente, a
extrafiscalidade. Os dois objetivos convivem, harmônicos, na mesma
figura impositiva, sendo apenas lícito verificar que, por vezes, um
predomina sobre o outro.
215
Logo, possuem os tributos dupla função, que será diferenciada,
fundamentalmente, pelo fim perseguido. A natureza arrecadatória, por um lado, é o
objetivo fundamental para que o Estado consiga custear as necessidades públicas,
ao que Amaral caracteriza como função primária do tributo”
216
. Em contrapartida,
212
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 178.
213
SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 272-273.
214
AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 64.
215
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 149.
216
AMARAL, op. cit., p. 64.
92
pode-se adotar o tributo como instrumento de política social, econômica e, também,
ambiental. Sempre, é claro, com o intuito de concretizar os preceitos constitucionais.
Nessa seara, poder-se-ia mesmo afirmar que se percebe o caráter extrafiscal
na tributação ambiental, pois seu escopo seria estimular condutas ecologicamente
corretas, não-poluidoras e coibir aquelas que agridem o meio ambiente, ficando a
natureza arrecadatória em segundo plano.
Portanto, mesmo sem a previsão expressa da Constituição Federal de 1988
quanto à possibilidade de utilizar os tributos em defesa do meio ambiente, não se
percebe a dupla finalidade dos tributos ambientais, como também a predominância
de seu caráter extrafiscal. Moiche, pontualmente, evidencia que
[...] os tributos ambientais serão as prestações pecuniárias exigidas por
um ente público com a finalidade principal de produzir efeitos de
conservação, reparação, melhoria e, em geral, proteção do meio
ambiente. Essa é sua finalidade principal, entretanto, não que se
esquecer que nunca estará ausente sua finalidade arrecadadora.
217
A orientação de Gouvêa dá-se no mesmo sentido, sendo extrafiscal “a norma
voltada à realização de valores constitucionais”. Além disso, considerando-se que é
inconcebível norma jurídica contrária aos valores constitucionais, bem como norma
tributária contrária à arrecadação, conclui o autor que toda norma tributária será, ao
mesmo tempo, “fiscal e extrafiscal”.
218
O que ocorre, segundo o autor, é a
preponderância de um princípio sobre outro, mas não a supressão de um em
detrimento do outro.
Percebe-se, assim, a utilização do caráter fiscal e extrafiscal como mecanismo
de intervenção na economia. Ao serem estabelecidos tributos relacionados à
degradação ambiental, as receitas obtidas serão tidas como compensação. Todavia,
o papel mais importante será o desestímulo a atividades nocivas e estímulo a
atividades de proteção ambiental.
217
MOICHE, Susana Bokobo. Gravámenes e incentivos fiscales ambientales. Madrid: Civitas, 2001,
p. 83.
218
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey,
2006, p. 47.
93
O desenvolvimento da extrafiscalidade pode se dar de diversas formas, seja
pelo desestímulo a determinadas atividades do setor privado com a cobrança de
tributos, seja através de isenções fiscais que propiciarão atividades que forem do
interesse público.
Beltrame ressalta a atuação da tributação ambiental, que pode agir como
penalização ao sobretaxar atividades ou modalidades de gestão que prejudiquem o
habitat, ou, então, como incentivador ao conceder isenções fiscais àquelas
atividades favoráveis ao meio ambiente. Conforme o autor, em qualquer dos dois
casos os resultados não são garantidos, sendo indicado a tomada de um certo
número de precauções.
219
É válido ressaltar que uma política de precaução se associa à extrafiscalidade
quando utilizada sob a forma de incentivos fiscais a condutas ecologicamente
corretas, pois, conseqüentemente, estar-se-á desestimulando condutas poluidoras.
Nunes
220
acredita que as isenções fiscais seriam os mecanismos ideais para o
controle do equilíbrio ambiental, conforme se observa no texto abaixo, extraído de
sua obra:
Destarte, o raciocínio deve ser invertido. Não é tributando que se
preserva. É abrindo mão de parte da carga tributária que se incentiva e
se conscientiza o poluidor do problema ambiental. [...] A adoção de
incentivos, em vez da majoração de tributos, poderá trazer resultados
mais eficientes, visto que estimula o empreendedor a adquirir novas
técnicas de preservação.
221
O estímulo aos agentes econômicos contribui para o desenvolvimento e
adoção constantes de tecnologias cada vez mais limpas e eficientes. Medidas
adotadas na Alemanha, por exemplo, estimularam empresas a adotarem instalações
para o tratamento de água, reduzindo a proporção de efluentes não tratados de 43%
em 1975 para 18% em 1993
222
.
219
BELTRAME, Pierre. La fiscalité environnementale est-elle au service de la propriété foncière?. In:
FALQUE, Max; MASSENET, Michel (Dir.). Droits de propriété et environnement. Paris: Dalloz,
1997, p. 268.
220
NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 161.
221
Ibidem, p. 162-163.
222
BELTRAME, Pierre. La fiscalité environnementale est-elle au service de la propriété foncière?. In:
FALQUE, Max; MASSENET, Michel (Dir.). Droits de propriété et environnement. Paris: Dalloz,
1997, p. 272.
94
A cobrança extrafiscal de tributos, na tentativa de coibir condutas nocivas ao
meio ambiente por meio da utilização de sobretaxas, por exemplo, possui certa
utilidade mas é, em parte, conflitante com uma política de precaução. Isso ocorre,
pois políticas de precaução são adotadas para evitar que ocorra o dano, enquanto a
tributação ao dano, ao contrário, não impediu a sua realização, apenas puniu o
causador do evento.
A partir disso, têm-se que o legislador, para concretizar os fins constitucionais
através da extrafiscalidade em sintonia com políticas precaucionistas, poderá utilizar
distintos meios à dinâmica do tributo. Pela isenção, ou seja, pela não arrecadação
do tributo, tem-se medidas legislativas para alcançar melhores arrecadações futuras
a partir da estimulação a investimentos. Outra possibilidade seria os incentivos
fiscais, com a redução da carga tributária a quem atenda a determinados requisitos
previamente estipulados pelo legislador, e que estimulem práticas protecionistas.
Com o advento da Lei Complementar 101, que instituiu a Lei de
Responsabilidade Fiscal, surge um impasse quanto à utilização da função extrafiscal
dos tributos municipais: como conceder isenções fiscais se a referida lei
223
demonstra preocupação contrária, ou seja, com a arrecadação dos tributos de
competência municipal?
Pensando nesse impasse, a própria lei de responsabilidade fiscal, ao tratar da
renúncia de receitas fiscais, determina as regras para efetivação da concessão ou
ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária que ocasione renúncia
224
à
receita. Prevê, em seu artigo 14, a necessidade da concessão possuir estimativas
do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que iniciar sua vigência, bem
como nos dois exercícios seguintes. Outra possibilidade disponibilizada pela lei
refere-se à obediência das concessões à Lei de Diretrizes Orçamentárias, de forma
223
Art.11. Constituem requisitos essenciais de responsabilidade na gestão fiscal a instituição,
previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos de competência constitucional do ente da
Federação. § Único. É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não
observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos.
224
Conforme a mesma lei, em seu art. 14, § 1°, compreende-se como renúncia a anistia, a remissão,
o subsídio, o crédito presumido, a concessão de isenção em caráter geral, a alteração de alíquota
ou a modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou
contribuições, ou, ainda, outros benefícios que impliquem tratamento diferenciado.
95
a não afetar as metas de resultados fiscais. Muito importante, também, que estejam
acompanhadas de medidas compensatórias, aumentando a receita através de
outros tributos ou contribuições, dependendo a entrada em vigor do benefício da
implementação destas medidas.
No entanto, mesmo com tantas regras para evitar a renúncia ao recebimento
de receitas, a referida lei deixou em aberto a possibilidade para a ocorrência de
guerra fiscal entre os entes federados. Isso ocorre, conforme Rodrigues, pois é
permitido aos municípios abrir mão de receita futura de empresa ainda não instalada
sem que haja compensação. Afinal, segundo o autor, não se compensa aquilo que
não existe
225
.
Em resumo, os municípios são obrigados a instituir os tributos de sua
competência, principalmente os impostos, bem como devem obedecer às regras
estabelecidas na lei de responsabilidade fiscal para renunciarem às receitas que
lhes são de direito.
Tendo sido verificadas as disposições legais que poderiam instituir limites à
utilização da extrafiscalidade, pode-se, agora, direcionar o presente estudo para a
aplicação da extrafiscalidade em cada tributo municipal.
Embora, normalmente, fala-se em extrafiscalidade referindo-se à sua utilização
nos impostos, também nas taxas e contribuições de melhoria pode-se perceber a
extrafiscalidade. Tal possibilidade é defendida por Coêlho, no fragmento de seu
texto transcrito abaixo:
Nas taxas e contribuições de melhoria, o princípio realiza-se
negativamente pela incapacidade contributiva, fato que tecnicamente
gera remissões e reduções subjetivas do montante a pagar imputado
ao sujeito passivo sem capacidade econômica real. É o caso, v. g., da
isenção da taxa judiciária para os pobres e o da redução ou mesmo
isenção da contribuição de melhoria em relação aos miseráveis que,
sem querer, foram beneficiados em suas humílimas residências por
obras públicas extremamente valorizadas. Obrigá-los a vender suas
225
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 201.
96
propriedades para pagar a contribuição seria impensável e
inadmissível, a não ser em regimes totalitários de direita.
226
Depreende-se, pois, que a utilização extrafiscal das taxas e contribuições de
melhoria ocorre em função da incapacidade contributiva de determinadas pessoas.
Porém, ressalta Rodrigues
227
, que também poderá ocorrer em razão de políticas
públicas, enquanto instrumento de geração de empregos, por exemplo. Isso seria
possível com a não cobrança das taxas ou contribuições de melhoria, por certo
período, de empresas, visando determinadas condutas por parte destas.
A referida contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública
(COSIP), aprovada pelo Congresso Nacional pela Emenda Constitucional 39, de
19 de dezembro de 2002, também permite a sua utilização extrafiscal. Essa poderá
se dar, por exemplo, com o estabelecimento de alíquotas seletivas, ou seja, através
de percentuais menores ou maiores conforme a atividade ou localização. Dessa
forma, seria permitido inclusive conceder isenção de referida contribuição a
determinadas empresas que adotassem políticas de preservação ambiental.
O posicionamento dos autores quanto à presença da extrafiscalidade nos
impostos municipais é praticamente unânime. Como visto anteriormente, atualmente
é difícil visualizar impostos apenas com finalidades fiscais. Observa-se a presença
da extrafiscalidade em menor ou maior intensidade, mas ela não deixa de estar
presente.
No Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), as alíquotas poderão ser
reduzidas ou, ainda, isentas. A redução deverá ocorrer nos termos da Súmula 539
do Supremo Tribunal Federal (STF), que prescreve ser “constitucional a lei do
município que reduz o imposto predial urbano sobre imóvel ocupado pela residência
do proprietário, que não possua outro”.
226
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, p. 17.
227
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 203.
97
A isenção normalmente é utilizada em prol de pessoas hipossuficientes como
aposentados e deficientes físicos. O município de Santa Cruz do Sul, por exemplo,
em sua Lei 2.998/97, concede isenção do IPTU às pessoas acima de 65 anos,
bem como àquelas absoluta e relativamente incapazes. Para tanto, essas pessoas
devem comprovar renda familiar inferior a 02 salários mínimos, além da
obrigatoriedade do bem em questão ser o único imóvel do qual dispõem.
Não bastasse a Súmula do STF, o artigo 182, parágrafo 4°, da Constituição
Federal de 1988 prevê o caráter extrafiscal com a progressividade do IPTU, com a
finalidade de cumprir a função social da propriedade. Outra possibilidade, ainda, é a
prevista no artigo 156, parágrafo 1°, inciso II do mesmo diploma legal, com a
seletividade do IPTU, ou seja, com a diferenciação das alíquotas em razão da
localização ou do uso do imóvel, matéria também disciplinada pelo Estatuto da
Cidade.
Além do artigo 182, parágrafo 4°, a progressividade também é prevista no
artigo 156, parágrafo 1°, inciso I. Essa se em razão do valor do imóvel. Em um
primeiro olhar parece haver apenas fim arrecadatório nesta previsão, mas os fins
extrafiscais estão igualmente presentes. Pode-se vislumbrar estes, por exemplo, na
busca por uma melhor aplicação dos princípios da igualdade e da capacidade
contributiva, bem como no incentivo a empresas pela sua não-cobrança ou redução
da alíquota
228
.
Ao Imposto sobre Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis e Direitos a eles
relativos (ITBI) não se pode, da mesma forma, negar seu fim extrafiscal. A sua
manifestação poderá ser através da isenção do imposto ou da redução da alíquota
servindo tanto como estímulo a empresas que queiram se instalar em determinados
municípios quanto como política social, em planos de moradias populares cujos
contribuintes não possuam capacidade contributiva.
228
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 205.
98
Quanto ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), esse permite
tanto o uso da seletividade quanto da não-cobrança, por tempo determinado, para
profissionais novos no mercado de trabalho, ou mesmo por tempo indeterminado
para pessoas portadoras de deficiência física ou mental, por exemplo. A utilização
do caráter extrafiscal do ISS pode servir como incentivo a empresas, para a sua
instalação ou manutenção em dado Município.
Por fim, também à Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação
Pública (COSIP) é atribuído o caráter extrafiscal, com a previsão de possibilidade de
isenção da contribuição àquelas residências, urbanas e rurais, com consumo, por
exemplo, inferior a 50 ou 70 Kw/h, respectivamente. Ademais, não qualquer
impedimento que essa isenção seja estendida e aplicada a empresas, como
incentivo a novos empreendimentos.
Vê-se, nos últimos anos, a concessão, em escala cada vez maior, de
incentivos e isenções tributárias pelos municípios com o objetivo principal de
desenvolver economicamente sua região, fato este que vem alimentando a guerra
fiscal entre entes federados. E, conforme Tramontin
229
, com respaldo constitucional
para esta forma de intervencionismo estatal. Diante disso, embora esses incentivos
teriam o condão de reduzir desigualdades regionais ou ainda alavancar algum setor
estagnado da economia, promovendo o desenvolvimento nacional, a inversão de
seus efeitos é nítida: além de estimularem diferenças, com o deslocamento sem
causa de empresas de uma região para outra, seus motivos e os procedimentos
adotados em sua concessão são, por vezes, obscuros. Quantas vezes foi
noticiada a concessão de incentivos fiscais a determinadas empresas com fins
meramente políticos, sem que a empresa favorecida tenha a obrigação de qualquer
contraprestação à sociedade, sua real financiadora?
Acredita-se, pois, que este seja o momento para repensar as práticas em
voga até então. Como subsídio a uma nova proposta (se assim poderá ser
denominada), tem-se a obra de Tramontin. Esse autor parte do princípio que
qualquer concessão de incentivos econômicos a empresas privadas deve obedecer
229
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 41-44, passim.
99
a todos os princípios que norteiam a prática administrativa, dentre eles os princípios
da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da eficiência, da
supremacia do interesse público, da razoabilidade e da economicidade e da
finalidade, demonstrando a submissão da Administração ao direito.
230
A não observância dos mesmos poderia, inclusive, resultar em anulação do
ato administrativo. Até porque, poder-se-ia incentivar uma empresa em detrimento
de outra, por exemplo, dando margem à concorrência desleal, o que certamente não
interessa ao Bem Comum.
A concessão desses incentivos com o fim único de criar empregos e riquezas
deve ser visto com reservas. Afinal, esta é uma ótima oportunidade para empresas
deixarem de investir seu capital para utilizarem o dinheiro público. Essa intervenção
estatal é, no mínimo, contraditória, levando-se em consideração o modelo de Estado
Liberal em que justamente se busca a diminuição do papel do Estado. Hack
manifesta sua preocupação ao afirmar que
[...] tais incentivos têm sido utilizados erroneamente, gerando
desperdícios de recursos públicos e fraudes, com enriquecimento dos
envolvidos às custas do Erário e descrença da população no sistema
de sua concessão. Ainda que os incentivos sejam corretamente
aplicados, na maioria dos casos nada se exige em troca pelas
vantagens oferecidas, não decorrendo deles qualquer vantagem para o
Estado ou para a população da região beneficiada.
231
São várias as modalidades de incentivos concedidos às empresas, como por
exemplo, a doação de imóveis, infra-estrutura, pagamento de aluguéis, concessão
de isenção fiscal por determinado período, empréstimos com juros subsidiados,
entre outros. Obviamente que diante desse panorama, a tendência das empresas é
buscar a melhor oferta de incentivos, o que causa a guerra fiscal entre os entes
federados.
230
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 120-126, passim.
231
HACK, Érico. Incentivos fiscais ao desenvolvimento regional. JUS NAVIGANDI, Teresina, ano 11,
n. 1561, 10 out. 2007, p. 1. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10522>.
Acesso em: 09 dez. 2007.
100
Quando uma empresa deixa de se instalar em um Município e vai para outro,
nem sempre essa mudança traz benefícios. Se for analisado o quadro geral, ou
melhor, os benefícios propiciados à federação, pouco se observa. Afinal, essa
mudança pode gerar apenas um deslocamento, não trazendo qualquer benefício aos
Estados Membros e à União.
É temeroso, no entanto, que tal prática venha sendo vista com bons olhos
pelos governantes, que a têm utilizado sem qualquer controle, ou mesmo, poder-se-
ia dizer, senso de responsabilidade. No entanto, muitas vezes estes incentivos são
necessários, nem sempre como incentivadores econômicos, mas como auxiliares na
adoção de condutas ecologicamente corretas
232
.
Nesse caso, o papel do poder público é alcançar a eficiência necessária dos
atos administrativos, para que não haja subutilização de verbas públicas. O
desenvolvimento sócio-econômico não mais pode ser medido pela renda per capita
e PIB (indicadores econômicos que se referem unicamente a valores). Com o Índice
de Desenvolvimento Humano
233
(IDH), possibilita-se uma mudança de concepção
acerca do que seja esse desenvolvimento sócio-econômico. A partir desse novo
modelo de avaliação, para que os incentivos fiscais sejam constitucionais e
justifiquem a sua adoção com a conseqüente renúncia à receita, é imprescindível
que ofereçam, que gerem melhorias nas condições de vida da população. A forma
como este incremento nos indicadores sociais ocorreria é irrelevante, ou seja, em
nada influi se ocasionado diretamente pela concessão do incentivo ou se, ao
contrário, gerado de contrapartida exigida das empresas privilegiadas com os
mesmos.
232
Por conduta ecologicamente correta entendem-se as ações que conduzam ao desenvolvimento
sustentável, conceito este já debatido em capítulo anterior.
233
Esse índice foi criado por Mahbub el Haq e Amartya Sen e “considera, além do PNB per capita,
outros indicadores de desenvolvimento, como a expectativa de vida ao nascer, as taxas de
alfabetização de adultos, a paridade do poder efetivo de compra e renda interna. Em suas versões
mais recentes está incorporando outros indicadores, como as condições culturais prevalecentes, a
relação entre trabalho e o lazer e os graus observados de liberdade política”. (ROSSETI, José
Paschoal. Introdução à economia. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 371)
101
Sugere, assim, Tramontin
234
, que as concessões de incentivos sejam feitas
através de um contrato que obrigue o tomador dos benefícios a atingir os objetivos
prometidos. Não sendo as metas alcançadas, caberia ao poder público a faculdade
de revogar as vantagens recebidas e de reaver o valor dispendido com as mesmas.
Complementando a sugestão de Tramontin, Ferraz apresenta ainda o requisito da
temporariedade. Para ele,
[...] a temporariedade é requisito inafastável da lei que institua incentivo
porque esta sempre haverá de identificar um objetivo determinado que
se pretende alcançar através do incentivo. Uma vez alcançado o
objetivo, deixará de existir motivo a justificar o incentivo, evidenciando-
se portanto a sua necessária temporariedade, combinada com a
obrigatoriedade de avaliações periódicas quanto ao possível
esgotamento da função do incentivo.
235
Essa temporariedade levantada por Ferraz implica que deverá a atividade
conseguir se manter mesmo quando terminar o incentivo fiscal. Veja-se, por
exemplo, a Zona Franca de Manaus: os incentivos concedidos às indústrias de
eletrônicos mantém um desenvolvimento artificial da região. No momento em que os
incentivos cessarem, acredita-se que a maioria das indústrias instaladas irão se
transferir para outras regiões, mais próximas de seus centros consumidores, de
forma a reduzir os custos com o transporte das mercadorias. Não fossem os
incentivos fiscais recebidos, que outra razão haveria para uma empresa sediar sua
fábrica no meio da Amazônia, distante dos principais mercados consumidores?
Claro está, pois, que devem os incentivos fiscais respeitar as características da
região, de tal maneira que sua supressão não signifique o estancamento do
desenvolvimento.
Como afirma Gouvêa
236
, se não houver a crença na eficácia dos meios
utilizados, não legitimidade para o seu manejo. Por essa razão, a proposta de
Tramontin, conjugada com a de Ferraz, de um processo licitatório aberto e claro,
com regras bem definidas que possibilitem o controle pelo poder público do emprego
234
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 115-119, passim.
235
FERRAZ, Roberto. Incentivos fiscais: um enfoque constitucional. In: Revista de Estudos
Tributários, n. 28, nov./dez. 2002, p. 103. Porto Alegre: Síntese.
236
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey,
2006, p. 85.
102
de suas verbas na iniciativa privada é, sem dúvida, o princípio para a aceitação pela
sociedade dessas formas de intervenção pelo Bem Comum.
3.2 Convênios e Consórcios municipais
A situação de vários municípios brasileiros pode ser considerada angustiante
se for levada em conta a falta de recursos e de pessoal qualificado para concretizar
seus projetos. Contudo, apesar desse panorama desalentador, a superação dessas
deficiências e dificuldades municipais é vislumbrada a partir da reunião de vários
municípios em ações conjuntas, com a união de esforços em prol de um mesmo
objetivo.
Essa união também é aconselhada nos casos em que os municípios
disponham de recursos suficientes, porém que sua ação individual não apresentaria
resultados satisfatórios se não fosse coordenada com os municípios limítrofes.
Como exemplo, pode-se citar matérias como a canalização de esgotos de
municípios vizinhos para um único terminal, a realização de programas de
preservação ambiental e de combate à poluição atmosférica e da água, ou, ainda,
de melhor aproveitamento dos recursos hídricos de determinada bacia.
Mas para que a análise dessas ações conjuntas se torne viável, antes é
preciso compreender o que sejam convênios e consórcios, ou melhor, estabelecer a
sua diferenciação conceitual. Segundo a distinção clássica,
O Consórcio Intermunicipal é uma cooperação (pacto) entre dois ou
mais municípios, que se comprometem a executar, em conjunto, um
determinado empreendimento. Trata-se, portanto, do ponto de vista
doutrinário, de uma modalidade de acordo firmado entre entidades da
mesma natureza. Esta forma de associação permite aos Governos
Municipais assegurar a prestação de serviços as suas populações.
237
Ao contrário, conforme orientação da doutrina de Meirelles, os convênios se
caracterizariam pela realização entre pessoas e entidades de espécies diferentes
237
IBAM. A saúde no município: organização e gestão. Rio de Janeiro: UNICEF/IBAM, 1992, p. 129.
103
que convergem a um interesse comum.
238
A prática de convênios entre pessoas
públicas e particulares seria, então, muito comum.
Portanto, de modo diferente do convênio ‘acordo’ assinado por
entidades públicas de qualquer espécie, ou entre elas e organizações
particulares, para a realização de objetivos de interesse comum, o
consórcio é um ‘acordo’ assinado entre entidades estatais autárquicas,
fundacionais ou paraestatais, sempre da mesma espécie, para a
realização de objetivos de interesse comum.
239
Entretanto, adotando uma nova posição, o artigo 241 da Constituição
Federal
240
prevê a viabilidade de celebração de consórcios com a União. Nessa nova
concepção, passariam os consórcios a terem natureza heterogênea, assim como os
convênios, abandonando a diferenciação clássica.
Tanto consórcios quanto convênios tratam-se, sem considerar diferenciações
concentuais, de instrumentos importantes para os municípios. Combinando recursos
financeiros e humanos, poderão realizar ações conjuntas muito mais eficientes que
se desempenhadas isoladamente por um único Município. Além disso, essa
agremiação em torno de objetivos comuns poderá ser atrativa a investimentos
privados, bem como poderá ampliar o poder de negociação desses municípios junto
aos governos estaduais e federal.
241
Os consórcios públicos estão disciplinados na Lei nº. 11.107, que dispõe
sobre as normas gerais para contratação, regulamentada pelo Decreto 6.017/07.
Nesse contexto, prescreve o artigo da referida lei: o consórcio público será
constituído por contrato cuja celebração dependerá da prévia subscrição de
protocolo de intenções”. (Grifo nosso) Igualmente, o artigo do Decreto 6.017
238
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 324.
239
MISOCZKY, Maria Ceci; BASTOS, Francisco Avelan. Avançando na implantação do SUS:
consórcios intermunicipais de saúde. Porto Alegre: Dacasa, 1997, p. 9.
240
Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os
consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão
associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços,
pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.
241
BORGES, Alice Gonzalez. Consórcios públicos, nova sistemática e controle. In: Revista Eletrônica
de Direito Administrativo Econômico. n. 6, mai/jul 2006, Salvador Instituto de Direito Público da
Bahia, p. 3.
104
prevê a celebração do contrato de consórcio público com a ratificação do protocolo
de intenções, mediante lei.
Consórcios e convênios de cooperação não poderiam, porém, possuir
natureza contratual. Contratos são acordos de vontades entre partes com interesses
opostos que geram vínculos obrigacionais de prestação e contraprestação.
Diferentemente, os ajustes estabelecidos nos consórcios e nos convênios
evidenciam acordos em que as vontades dos partícipes convergem ao interesse
comum.
Como conseqüência dessa convergência ao Bem Comum, preserva-se a
decisão e a autonomia dos Governos locais, por se basear em relação entre iguais,
e não em relação hierárquica. Diante desse panorama, incorpora-se um aspecto
fundamental para a concepção e a viabilização dos consórcios, qual seja a
autonomia municipal.
Embora a competência para estabelecer as diretrizes gerais norteadoras de
convênios e consórcios (de regular a aplicação de dispositivos constitucionais) seja
de lei nacional, ou seja, da Lei 11.107, regulamentada pelo Decreto 6.017, a
decisão quanto à participação ou não do ente federado, bem como a estipulação de
suas condições, é de sua exclusiva competência.
O respaldo legal para que possam os municípios criar consórcios
intermunicipais encontra-se na Constituição Federal. No artigo 18 da Carta Magna
está assegurada a autonomia dos entes federativos, bem como no artigo 30 define-
se o poder do Município para legislar sobre matéria de interesse local. Conjugando
estes dispositivos legais, conclui-se pela possibilidade dos municípios se reunirem
em consórcios para atender a demandas locais que não surtiriam efeitos se
empregadas isoladamente.
Fontes trata os consórcios como “instrumentos para o planejamento local, na
perspectiva do desenvolvimento microrregional”. Considera esse espaço como um
fórum privilegiado para a discussão de problemas comuns e o conseqüente encontro
105
de suas soluções, como um facilitador da organização municipal e um articulador
político intra e entre as esferas do Poder Público”.
242
Envolvendo-se, assim, na formulação de políticas regionais, desempenham
os consórcios típica função de gestão, através do planejamento regional para a
solução de problemas comuns. Um exemplo desse tipo de parceria é o Consórcio
Intermunicipal do Grande ABC, que reúne sete municípios com o objetivo de
desenvolver uma gestão regional conjunta, tratando de maneira integrada as
matérias referentes ao planejamento ambiental.
Nesse novo vínculo uma co-responsabilização pela política e por seus
resultados, mesmo que caibam papéis diversificados a cada participante. Em
consonância com o princípio federativo, mantém-se a igualdade jurídica dos
consorciados, mesmo que a contribuição de cada um esteja de acordo com suas
possibilidades.
A Lei 11.107, regulamentada pelo Decreto 6.017, inovou, também, ao
atribuir personalidade jurídica aos consórcios públicos, com o intuito de facilitar seu
processo operacional. Como a doutrina entendia pela impossibilidade de concessão
de natureza jurídica aos consórcios, limitando suas ações e bloqueando o sucesso
de seus objetivos, Meirelles recomendava, no caso dos convênios, a estruturação de
sociedade civil, a ser integrada pelos prefeitos dos municípios participantes.
Conforme ele,
[...] é de toda conveniência a organização de uma entidade civil ou
comercial, com a finalidade específica de dar execução aos termos do
convênio, a qual receberá e aplicará os seus recursos nos fins
estatutários, realizando diretamente as obras e serviços desejados
pelos partícipes, ou contratando-os com terceiros. Assim, o convênio
manter-se-á como simples pacto de cooperação, mas disporá de uma
pessoa jurídica que lhe dará execução, exercendo direitos e contraindo
obrigações em nome próprio e oferecendo as garantias peculiares de
uma empresa.
243
242
FONTES, Ângela. Consórcios intermunicipais: um instrumento para o planejamento local. Revista
de Administração Municipal. v. 38, n. 198, jan/mar 1991, p. 56.
243
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 308-
309.
106
Azevedo contraria esse posicionamento de Meirelles, argumentando que tal
prática permitiria que os recursos públicos fossem perdidos em “custos burocráticos
e tributários, típicos de pessoa privada”. Sendo uma das justificativas para o
consórcio entre municípios a realização eficiente do interesse público, “a criação de
pessoa jurídica privada para receber e administrar recursos públicos não se coaduna
perfeitamente com o interesse público”.
244
Complementarmente, Moreira Neto
contribui propondo a estruturação dos consórcios a partir de autarquias ou entidades
paraestatais.
245
Porém, os artigos 1º, parágrafo 1º, e da Lei 11.107, bem como o artigo
do Decreto 6.017, elucidaram qualquer divergência que ainda pudesse haver
quanto à personalidade jurídica dos consórcios públicos. Resta estabelecida a
configuração da personalidade jurídica como associação, podendo essa ser tanto de
direito público quanto de direito privado.
Sendo de direito público, sua apresentação se como associação pública,
enquanto subespécie de autarquia, conforme a redação do artigo 41, inciso IV, do
Código Civil:
Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
[...]
IV – as autarquias, inclusive as associações públicas.
Conforme entendimento de Borges, a consideração das associações públicas
como subespécies das autarquias é conseqüência do artigo 37 da Constituição
Federal que prevê apenas as autarquias, fundações e empresas públicas e
sociedades de economia mista como integrantes da administração indireta. Essa
teria sido, segundo a autora, a maneira encontrada pelo legislador de evitar edição
de emenda constitucional.
246
244
AZEVEDO, Damião. A natureza jurídica das associações de municípios e dos consórcios
intermunicipais. In: Revista de Direito Administrativo. São Paulo, ano 7, n. 238, p.383, mai/jun
2006.
245
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 29-30.
246
BORGES, Alice Gonzalez. Consórcios públicos, nova sistemática e controle. In: Revista Eletrônica
de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6, mai/jul
2006, p. 6. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>, acessado em 09 de outubro de
2007.
107
Ratificando o entendimento de que as associações públicas são parte
integrante da administração indireta, dispõe o parágrafo do artigo da Lei
11.107: “o consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a
administração indireta de todos os entes da Federação consorciados”.
Para a aquisição de personalidade jurídica de direito público pelo consórcio,
como associação pública, o artigo estabelece a necessidade da “vigência da lei
de ratificação do protocolo de intenções”. Conclui-se do exposto que a subscrição do
protocolo de intenções é pré-requisito para a constituição do consórcio, ou melhor,
trata-se de um dos primeiros atos a serem executados. Será através desse protocolo
que irão se fixar as diretrizes quanto ao funcionamento do consórcio público entre os
municípios, com a definição do objeto e das condições do ajuste, nos termos do
artigo 4º e seus incisos da Lei nº 11.107 e dos artigos 4° e 5° do Decreto n° 6.017.
Assinado o protocolo de intenções pelos entes federados, através dos chefes
de Executivo, ele será remetido ao Poder Legislativo de cada Município para a sua
ratificação. Editada a lei ratificadora dos termos e condições do protocolo e
constante deste a previsão de personalidade jurídica de direito público, criada estará
por cada ente federado em sua estrutura administrativa uma associação pública que
fará parte da administração indireta. Por sua vez, a organização e funcionamento
desses consórcios reger-se-ão pela lei civil, mais especificamente pelos artigos 53 a
61 do Código Civil, que disciplina as matérias atinentes às associações civis.
Quanto aos consórcios criados com personalidade jurídica de direito privado,
prevê o artigo 4º, inciso IV, que deverá constituir-se em “pessoa de direito privado
sem fins lucrativos”, ou seja, em associação civil sem fins lucrativos, devendo
obediência à legislação civil. Entretanto, tudo que fizer referência à realização de
licitação, celebração de contratos e prestação de contas obedecerá às normas de
direito público.
Inquieta-se Borges por considerar a previsão de personalidade de direito
privado um “retrocesso à anterior proliferação de consórcios administrados por
pessoas de direito privado, existentes em milhares de municípios, sob as mais
inusitadas formas, sem nenhuma regra disciplinadora, conforme noticiado pelo IBGE
108
em 2001”.
247
A autora não considera essa personalidade adequada para reger as
relações a serem travadas exclusivamente entre pessoas de direito público interno.
O Tribunal de Contas de Minas Gerais apresenta uma possível solução a
esse impasse de como proceder uma organização privada, formada pela associação
de pessoas jurídicas de direito público interno, na gestão de obrigações públicas
com recursos também públicos.
[...] por gerir recursos públicos, a entidade a ser criada deverá dispor
em seus estatutos sobre a obrigatoriedade da observância por seus
gestores, sob pena de responsabilidade, dos preceitos próprios das
entidades de direito público, em especial quanto à utilização e à
prestação de contas dos recursos recebidos ao TCE; admissão de seus
servidores através de concurso público e submissão às normas que
regulam a execução de obras, compras e serviços na administração
pública. [...] Então seria o que? Uma entidade de direito privado com as
obrigações das entidades de direito público. Teria que se submeter aos
mesmos mecanismos de controle e de fiscalização das entidades de
direito público, quais sejam: licitação de compras, planos de
investimento, concurso público para admissão de pessoal e submissão
da contabilidade ao Tribunal de Contas. Resumindo, entidade de direito
privado com o mesmo procedimento das entidades públicas de direito
público.
248
Além da prestação de contas ao órgão fiscalizador (Tribunal de Contas
competente para apreciar as contas de cada ente federado partícipe), Misoczky e
Bastos
249
incluem a transparência pública dos atos como um importante aspecto na
gerência dos recursos públicos por associações com personalidade de direito
privado. Essa transparência pode ser definida pela possibilidade que têm os
cidadãos de controlar o desempenho institucional, sendo fundamental, para isso, o
acesso às informações atualizadas e claras.
A lei, todavia, omitiu-se completamente quanto ao controle participativo dos
cidadãos. Não qualquer previsão no texto legal de realização de consultas ou
audiências públicas. Tampouco sugere a criação de consultas com representação
247
BORGES, Alice Gonzalez. Consórcios públicos, nova sistemática e controle. In: Revista Eletrônica
de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6, mai/jul
2006, p. 7. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>, acessado em 09 de outubro de
2007.
248
MINAS GERAIS. SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Consórcio Intermunicipal de Saúde.
1997, p. 57.
249
MISOCZKY, Maria Ceci; BASTOS, Francisco Avelan. Avançando na implantação do SUS:
consórcios intermunicipais de saúde. Porto Alegre: Dacasa, 1997, p. 24.
109
da sociedade civil capaz de influir na estruturação dos consórcios. E, no entanto, tais
medidas seriam de suma importância levando em consideração que se trata de
organismos que irão gerir recursos públicos.
No contexto brasileiro, considera-se pouco provável a união harmônica e
coordenada de governos municipais em prol de políticas públicas de preservação
ambiental, que acabe por desconsiderar eventuais divergências político-partidárias
ou, ainda, interesses econômicos de setores privilegiados. Certamente essa frágil
articulação entre prefeitos apresenta-se como uma das dificuldades freqüentemente
apontadas.
Essa barreira precisa ser transposta. Deve-se crer que uma mudança de
concepção ainda é possível, com o abandono de práticas prejudiciais ao bem
comum, como o fortalecimento da guerra fiscal em decorrência da carência de
políticas tributárias harmonizadas entre as mais variadas regiões.
Acredita-se que a solução para as desigualdades regionais passe pela junção
de vários municípios por meio dos consórcios. Consórcios públicos que tenham por
objetivo, por exemplo, a concessão de incentivos fiscais com a finalidade primordial
de proteção ambiental, são permitidos pela Lei 11.107. O artigo 2º, parágrafo 1º,
inciso I permite aos consórcios a realização de contratos e acordos de qualquer
natureza. Tal dispositivo faculta, dessa forma, que consórcios intermunicipais
tenham por objetivo a concessão de incentivos fiscais a empresas que adotem
condutas compatíveis ao desenvolvimento sustentado, firmando contrato
250
com as
mesmas, além de instruir todo o processo pelos princípios
251
de direito
administrativo.
Destarte, não basta que sejam concedidos incentivos a determinadas
empresas em locais esparsos, pois tal conduta, além de não oferecer a proteção
ambiental desejada, ainda contribui para o agravamento da guerra fiscal. A palavra
250
Contrato esse que permitirá a cobrança da contraprestação da empresa, no caso, de atitudes de
proteção ambiental.
251
O artigo 112 da Lei nº 8666/93 prevê a possibilidade de realização de licitação para a contratação
entre os consórcios e entidades ou órgãos.
110
de ordem, atualmente, é consolidar políticas públicas tributárias harmônicas entre as
mais variadas regiões, rompendo com práticas antigas.
3.3 Harmonização de políticas tributárias
Como esplanado em momento anterior, a guerra fiscal se consolidou em um
cenário político e econômico que conduz as municipalidades a concederem
incentivos fiscaissejam totais ou parciais – com a finalidade de atraírem empresas
e investimentos para suas regiões. Tal conduta, no entanto, gera o deslocamento
dessas empresas de uma região à outra, não contribuindo para o desenvolvimento
da federação. Como lembra Shoueri
252
, políticas tributárias diferentes e conflitantes
dão margem à guerra fiscal.
Longe de se pretender negar aos municípios a utilização da extrafiscalidade
como instrumento possibilitador ou de fomento ao seu desenvolvimento, quer-se
coibir os efeitos nefastos da guerra fiscal sobre aqueles que não a praticam e, por
isso, são prejudicados. Ademais, de nada adiantariam políticas tributárias de
proteção ambiental localizadas ou setorizadas se os danos ambientais são
transfronteiriços.
Em consonância ao entendimento de Rodrigues, que considera “a visão geral
da Constituição e a crença de que o federalismo somente pode funcionar se
baseado em relações de harmonia e cooperação entre suas partes componentes”
253
,
deve-se buscar ações integradas entre os municípios, dirigidas a um público alvo em
comum. O autor propugna, pois, pela adoção de um princípio de harmonização
solidária de políticas tributárias com o intuito de reduzir e, quiçá, remover
completamente as desigualdades entre os entes federados.
252
SHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 346.
253
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 228.
111
Para a construção desse “princípio constitucional geral, implícito e delimitador
das ações tendentes ao cumprimento da função social dos Municípios”
254
, Rodrigues
ampara-se em normas constitucionais escritas. Baseia-se, primeiramente, no
preâmbulo constitucional, por oferecer as diretrizes orientadoras da sociedade. Em
seu enunciado, o preâmbulo traça objetivos, como assegurar o exercício de direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça. Esses objetivos são tidos como valores de uma sociedade
fraterna, entendida por Rodrigues como uma “sociedade afetuosa, amigável e
cordial”.
255
Valores esses que vão contra a prática da guerra fiscal, conforme se verá
adiante.
A dignidade da pessoa humana, princípio previsto no artigo 1º, inciso III, da
Constituição Federal de 1988, pode ser a primeira norma a sustentar a necessidade
de um princípio de uniformização tributária. Por dignidade da pessoa humana
entende-se, com fundamento em Silva, o conteúdo de todos os direitos
fundamentais
256
. Como decorrência, tem-se que além de assegurar direitos
individuais frente ao Estado e aos demais indivíduos, também estabelece o dever de
tratar os semelhantes de forma igual.
O fato de a guerra fiscal implicar menor arrecadação de recursos que seriam
utilizados em programas e projetos para o bem-estar da população, assim como de
gerar a migração de postos de trabalho de uma região à outra, gerando desemprego
no local que “perdeu” o empreendimento, demonstra o tratamento desigualitário
entre iguais, sendo uma séria afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Está-se diante, pois, de outro princípio de suma importância: o princípio da
igualdade. Conforme Rodrigues, a Constituição Federal não pretende a eliminação
total das desigualdades com a igualização absoluta das pessoas. O que busca a
Constituição é a cristalização da justiça social
257
com a redução das desigualdades.
254
Ibidem, p. 228.
255
Ibidem, p. 233.
256
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 109.
257
Compreende-se por justiça social “a superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do
produto econômico”. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed.
São Paulo: Malheiros, 2002, p. 266.)
112
Nesse contexto, não são inconstitucionais normas que procuram tratar desiguais de
forma desigual com o fim de reduzir a desigualdade presente entre eles.
258
Aparentemente, portanto, pareceria constitucional a aplicação da guerra fiscal
por municípios menos desenvolvidos sob a alegação de reduzir a desigualdade em
relação a outros municípios. Entretanto, sob essa ótica, também seria permitido aos
municípios que perderiam as empresas alegar o princípio da igualdade como defesa,
utilizando, igualmente, a guerra fiscal.
259
Com relação às empresas que recebem os benefícios fiscais, não estariam
elas em vantagem frente a outras empresas que não possuem tais privilégios?
Empresas iguais, porém em municípios diversos, estariam assim em situação de
vantagem/desvantagem competitiva. Esse tratamento desigual para contribuintes em
igual situação é vedado pelo artigo 150, inciso II da Constituição Federal.
Observando-se o panorama até então explicitado, o princípio da igualdade,
unicamente considerado, não poderia impedir a utilização da guerra fiscal. Contudo,
associando-se esse princípio a outros da ordem constitucional, poder-se-ia alegar a
inconstitucionalidade da guerra fiscal.
260
Afinal, para que se alcance o ideal de uma sociedade fraterna, como antes
exposto, a dignidade de alguns não pode significar a redução de dignidade de
outros. Ressalta-se, portanto, a importância de políticas públicas tributárias
harmonizadas e fundamentadas nos objetivos
261
do Estado brasileiro, quais sejam: a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia de
desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a
redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos
sem discriminação.
258
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 241.
259
Ibidem, p. 242.
260
Ibidem, p. 242-244, passim.
261
Objetivos previstos no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
113
Tais objetivos têm por finalidade uma atuação cooperativa entre as partes que
compõem a Federação, visando ao bem coletivo, em detrimento à concorrência.
Sendo a cooperação entre os povos fundamental ao progresso da humanidade,
analogamente pode-se estender a imposição de cooperação aos entes federados,
em busca do bem-estar do povo brasileiro.
O parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal ratifica esse
entendimento de cooperação ao dispor: “Lei Complementar fixará normas para a
cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em
vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. Esse
dispositivo, seguindo o entendimento de Rodrigues, deixa clara a intenção de que à
União deve caber a responsabilidade em mediar as relações entre os entes
federados, por meio de Lei Complementar, almejando o equilíbrio entre eles.
262
Não se pretende, com isso, eliminar a federação ou a autonomia dos entes
federados. Ao contrário, deseja-se apenas que a União exerça papel interventivo no
sentido de todas as unidades federadas terem direito ao desenvolvimento. Com um
papel mais atuante da União, impede-se que entes federados defendam interesses
próprios, prejudicando o desenvolvimento nacional em função de um pseudo-
desenvolvimento regional. Como visto em capítulo anterior, o desenvolvimento
nacional se faz a partir do desenvolvimento regional. Porém, de nada adianta se
apenas uma região se desenvolver. Razão pela qual se propugna pela
harmonização das políticas tributárias, de forma a possibilitar o desenvolvimento
eqüitativo entre todas as regiões, o que de fato levaria ao desenvolvimento nacional
e melhoria da qualidade de vida de todo o povo brasileiro.
Contrariamente ao pensamento de Silva, que acredita ser incompatível com o
federalismo o sistema de planejamento global da economia, Rodrigues
263
defende a
sua compatibilidade, com fundamento em Canotilho. Considerando-se que as
normas constitucionais devem possuir igual importância, não havendo hierarquia
262
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 244.
263
Ibidem, p. 246-247, passim.
114
entre elas, não é possível, segundo o autor, ascender hierarquicamente o princípio
federativo sobre os demais.
Oferecendo-se aos municípios brasileiros ampla autonomia quanto ao
aspecto tributário e econômico, estar-se-á estimulando a guerra fiscal em busca do
desenvolvimento de uma única região em detrimento do todo, com o
descumprimento de diversas normas constitucionais que impossibilitariam a busca
por justiça social. Por outro lado, mantendo-se a autonomia dos municípios, mas
limitando sua atuação pela Constituição Federal, obrigando a União a exercer seu
papel de mediadora ou coordenadora do desenvolvimento nacional, harmonizando
as relações entre eles, estar-se-á mais próximo de atingir a principal obrigação
Estatal, ou seja, o Bem Comum.
O princípio da harmonização solidária de políticas tributárias
municipais, implícito à CF/88, não é fruto de mera abstração, mas a
concretização de um mandamento constitucional retirado do seu
contexto interno, cuja necessidade se originou de um fato social
concreto, a guerra fiscal entre Municípios, compondo-se assim um
contexto ainda maior, onde a Constituição surge para determinar da
possibilidade de aceitar-se ou não tal tipo de prática. Concluiu-se que
não.
264
Portanto, a Constituição Federal exige que as relações entre os municípios
sejam harmoniosas e amigáveis, assegurando, dessa forma, o direito à dignidade a
todos os brasileiros, sem diferença em virtude do local onde habitam. A
solidariedade, por sua vez, exige que cada pessoa satisfaça seus direitos sem
prejudicar outras pessoas. Somente a partir dessa harmonização solidária das
políticas é que conseguirão os municípios cumprir sua função social.
264
RODRIGUES, Hugo Thamir. Harmonização solidária das políticas tributárias municipais: um
princípio constitucional geral, implícito, delimitador das ações tendentes ao cumprimento da
função social dos municípios. 2003. 276 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direito
Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 249.
115
3.4 Da extrafiscalidade ao princípio da precaução: um roteiro de proteção
ambiental para municípios
A utilização da tributação como instrumento de proteção ambiental, embora
sem previsão expressa na Constituição Federal de 1988, é possível e possui caráter
predominantemente extrafiscal. Prevalece o caráter extrafiscal, pois a primeira
finalidade, em matéria ambiental, é estimular condutas ecologicamente corretas e
coibir aquelas que agridem o meio ambiente, restando em segundo plano a natureza
arrecadatória. Em outras palavras, a conscientização eficaz do poluidor se
através das isenções e imunidades tributárias, por impedirem em tempo útil a
realização dos danos ambientais.
Todavia, se cada Município instituir individualmente sua política tributária
extrafiscal, dar-se-á margem ao surgimento da guerra fiscal, conforme
amplamente debatido. Essa prática, além disso, é ineficaz como política pública de
preservação ambiental, pois os danos ambientais são transfronteiriços, não ficando
restritos à área geográfica dos municípios.
Por essa razão, propõe-se a harmonização das políticas tributárias ambientais
entre os municípios de uma mesma região, cujas características sejam semelhantes.
Através da harmonização solidária, pretende-se desenvolver todos os municípios de
forma igualitária, evitando a ocorrência de guerra fiscal, e fazendo com que os entes
federados cumpram com sua função social de promover o Bem Comum.
Acredita-se que os instrumentos para a concretização dessa harmonização
solidária das políticas tributárias ambientais municipais sejam os convênios e
consórcios firmados entre os municípios. Tal crença firma-se na presunção de que
ações conjuntas podem ser mais eficientes que ações isoladas. Ao firmarem
acordos que convergem ao interesse comum, ou seja, que estabelecem regras para
a concessão de incentivos fiscais, estarão os municípios freando a guerra fiscal.
Essa mudança de postura dá causa a uma inversão dos papéis entre o poder
público e o poder econômico representado por empresas privadas. O que se
116
percebe, atualmente, com a concessão de incentivos fiscais sem qualquer
uniformização é a busca desenfreada das empresas pelo local que oferecer os
maiores privilégios, sem que sejam compelidas a dar qualquer contrapartida à
sociedade que a recebeu, desrespeitando, inclusive, normas de preservação
ambiental. Entretanto, sendo firmados convênios e consórcios entre os municípios,
as empresas ainda receberão incentivos, mas terão obrigatoriamente que oferecer
uma contraprestação.
Sendo o objeto do presente estudo a aplicação do princípio da precaução de
maneira a não causar entrave ao desenvolvimento, ao se unirem, os municípios, em
prol do Bem Comum, poderão eles fixar normas para a concessão de incentivos
fiscais, cuja concretização dependerá da adoção de medidas precaucionistas por
parte da empresa.
Veja-se um exemplo prático para a elucidação da matéria. Suponha-se a
criação de uma nova empresa de produtos químicos, que pretende se instalar na
região X. Os municípios da região X unem-se em prol de toda a comunidade e
estabelecem, através de convênio ou consórcio, que empresas de produtos
químicos deverão se instalar em local determinado Y, afastado dos centros urbanos
e de propriedades rurais. Por meio desse acordo firmado, criam uma localidade
específica para receber tais empresas, bem como fixam os incentivos e imunidades
fiscais que poderão ser concedidos, como a isenção de pagamento do IPTU por um
período pré-fixado. Assim, quando houver o interesse de determinada empresa, as
regras estarão predeterminadas
265
, o que não exclui a necessidade de realização
de processo licitatório.
Levando-se em consideração a obrigatoriedade de igualdade de tratamento
entre contribuintes em condições semelhantes prevista na Constituição Federal, a
realização de processo licitatório vem ao encontro de tal norma constitucional,
objetivando oportunizar igualdade de condições a empresas concorrentes. Mesmo
havendo, em função das regras estabelecidas nos convênios ou consórcios,
exigências mínimas de preservação ambiental a serem adotadas pela empresa
265
A predeterminação de regras contribui para a eliminação de concorrência entre os Municípios de
uma determinada região, possibilitando a ação conjunta e solidária em prol em um interesse
comum.
117
vencedora no processo licitatório, este procedimento permitirá um ganho maior em
medidas precaucionistas.
No exemplo em questão, imagine-se que o consórcio intermunicipal exija da
empresa vencedora o tratamento de seus efluentes associado à instalação de filtros
em suas chaminés. Porém, uma das empresas concorrentes, além de se
comprometer com tais medidas obrigatórias, apresenta, ainda, seu
comprometimento com a reutilização da água e encaminhamento de seu lixo para
usinas de reciclagem, naquilo que for recomendável. Certamente, essa empresa
deverá sair vencedora nesse processo licitatório, devendo ser firmado contrato com
o consórcio intermunicipal por prazo determinado.
A assinatura de contrato configura-se em medida necessária para a posterior
fiscalização e cobrança da contraprestação. O prazo determinado, por sua vez,
impede a manutenção vitalícia de incentivos. Esses devem ser concedidos para
estimular o desenvolvimento sustentado, devendo cessar antes que se crie um
mecanismo de dependência responsável pela manutenção de um desenvolvimento
artificial, que colapsará com o fim dos incentivos. Incentivos e imunidades fiscais
deverão ser mantidos até que se viabilizem a estruturação da empresa dentro das
normas de preservação ambiental. Acaso a empresa vencedora no procedimento de
licitação não cumprir sua parte no contrato, o cancelamento das isenções fiscais
deverá ser imediato.
Adotando-se tais procedimentos, estar-se-ia viabilizando a aplicação do
princípio da precaução, ou seja, medidas assecuratórias estarão sendo tomadas
antes mesmo de existir a prova do perigo em determinado empreendimento, sem, no
entanto, frear ou impedir o desenvolvimento. Para isso, a utilização da
extrafiscalidade através de convênios ou consórcios intermunicipais terá importante
papel, conforme acima demonstrado.
118
CONCLUSÃO
A partir da constatação de que os processos de organização do capitalismo
estão em conflito com a qualidade de vida, desvelou-se a existência de uma crise
ambiental. Nesse contexto de uma sociedade de risco, verificou-se, inicialmente, que
grande parte dos perigos relacionados ao meio ambiente e à qualidade de vida são
potenciais, ou seja, por não terem sido verificados, a sua incidência e a magnitude
de seus efeitos são desconhecidas. Ademais, essa nova gama de riscos não se
identifica a contextos espaciais, tampouco são perceptíveis aos sentidos, razões
pelas quais se apresentou o princípio da precaução como medida assecuratória na
preparação da adaptação aos mesmos antes que se disponha de certezas
científicas sobre as causas e a existência do perigo.
Quanto ao princípio da precaução, não resta dúvida tratar-se de princípio
constitucional com expressa previsão na Constituição Federal de 1988, devendo
coexistir com os demais princípios constitucionais, dentre eles aquele que resguarda
o desenvolvimento tecnológico. Com o propósito de se manter fiel ao sistema
constitucional aberto de regras e princípios proposto por Canotilho, relativizou-se o
princípio da precaução, direcionando-o para uma abordagem proporcional que não
ambiciona a erradicação total dos danos ambientais ou a garantia de ausência de
perigos futuros. Ao contrário, conclui-se que o princípio em questão procura
equilibrar as ações em função das hipóteses de risco, possibilitando a
proporcionalidade entre a severidade das medidas precaucionistas e os níveis de
perigos existentes, postura adotada para viabilizar o balanceamento dos valores e
interesses envolvidos, conduzindo ao desenvolvimento sustentável.
Assim, medidas assecuratórias contra os perigos potenciais são necessárias,
e o principal instrumento à disposição é o princípio constitucional da precaução.
Para a sua implementação, ganha importância o papel exercido pelos municípios
brasileiros. No que se refere a eles, defendeu-se o posicionamento que considera os
municípios como entes federados, dotados de autonomia política, normativa e
administrativa. Procurou-se relativizar a autonomia financeira, limitando-a à gestão
dos recursos públicos em prol da comunidade. Nessa gestão, as políticas públicas
119
tributárias devem seguir orientações gerais fixadas pela União, como medida
preventiva à utilização desse mecanismo para atrair empresas através da concessão
de incentivos e imunidades fiscais, ocasionando a guerra fiscal entre entes
federados.
O Município, como ente federado que é, e por ser a unidade federativa mais
próxima do cidadão, oferecendo tão alto potencial de organização, deve ter sua
autonomia reforçada para uma gestão coerente e o conseqüente fortalecimento da
democracia. O Município, então, é encarado como o gestor do interesse comunitário.
Nesse contexto, verificou-se que o objetivo primordial do federalismo é a
garantia do bem-estar do ser humano. Sendo o Município unidade federativa, sua
função social é objetivar em todas as suas ações os anseios sociais, em busca de
Justiça Social, sempre respeitando as devidas diferenças. Para atender a sua
função social, concedeu-se aos municípios competência para legislar sobre
assuntos de interesse local, tanto em matéria ambiental quanto em matéria
tributária, em consonância com as diretrizes fixadas na Carta Magna.
Constatou-se, igualmente, que tanto as políticas públicas ambientais quanto
as tributárias não terão valia se compartimentalizadas e isoladas. As ações, para
serem eficazes, devem ser coordenadas e harmonizadas. A procura por um
mecanismo capaz de aliar objetivos econômicos e respeito ao habitat, a partir da
atuação estatal, mas culminando com o direcionamento dos comportamentos das
pessoas visando novas e adequadas tecnologias que consigam prevenir, neutralizar
ou minimizar impactos negativos que as atividades econômicas poderiam ter sobre o
meio, encontrou seu ponto derradeiro na extrafiscalidade.
Viu-se que a extrafiscalidade dos tributos almeja efeitos não arrecadatórios,
mas de interferência no domínio econômico, político e social, estimulando ou
desestimulando determinadas condutas do contribuinte. Argumentou-se, entretanto,
que à política de precaução que se pretende, se associa a extrafiscalidade quando
utilizada sob a forma de incentivos fiscais, e não sobretaxando atividades
prejudiciais. Ao sobretaxar tais atividades, não se previne a ocorrência do dano,
porém somente se estabelece uma forma de punição. Por sua vez, através da
120
concessão de incentivos fiscais, estimulam-se condutas protecionistas, realizando-
se valores constitucionais.
Como conseqüência da busca pela concretização de valores constitucionais
que conduzam ao Bem Comum, conclui-se que aos municípios é dada a permissão
para utilizarem a extrafiscalidade, nos moldes postos, em todos os tributos de sua
competência, desde que ponderada e coordenadamente.
Tanto ponderação quanto coordenação são peças chaves para a efetivação
de políticas públicas ambientais que tenham como instrumento a extrafiscalidade.
Exigiu-se tais requisitos, pois ações localizadas não trazem contribuições ao todo
ou, em outras palavras, políticas tributárias municipais desencontradas dão margem
ao surgimento da guerra fiscal entre os entes federados, apenas alternando as
pessoas destinatárias dos privilégios, não contribuindo concretamente para que haja
o desenvolvimento do país de maneira a abarcar toda a população. Considerou-se,
ainda, que sendo a proteção ambiental a finalidade da aplicação da extrafiscalidade,
ela se torna inócua quando desvinculada de um planejamento global. De nada
adianta um Município possuir tais políticas públicas se seu vizinho for relapso, pois
os danos ambientais ultrapassam as fronteiras geográficas.
Vislumbrou-se, portanto, nos convênios e consórcios intermunicipais a
solução para este impasse, oportunizando a harmonização de políticas públicas
tributárias, principalmente aquelas que tiverem em seu cerne a utilização da
extrafiscalidade com a finalidade de viabilizar que certa região possa se desenvolver
sem riscos ambientais à sua população, mantendo e, quiçá, melhorando a qualidade
de vida de seus habitantes.
Essa união de entes federados em prol da concretização do Bem Comum
atende, sem sombra de dúvida, à função social preconizada na Carta Constitucional
de 1988. Nesse novo vínculo, percebeu-se a co-responsabilização pela política
pública adotada e por seus resultados.
Diante dessas considerações, a utilização da extrafiscalidade por meio de
convênios e consórcios intermunicipais parece ser uma excelente medida para
121
aplicação do princípio da precaução, capaz de possibilitar a conjunção entre
proteção ambiental e desenvolvimento tecnológico. Para tanto, estabeleceu-se
algumas diretrizes que não podem deixar de ser seguidas pelos municípios
consorciados, sob pena de a finalidade maior ser frustrada.
A primeira delas diz respeito à assinatura de protocolo de intenções pelos
representantes dos municípios que irão compor o convênio ou o consórcio,
estabelecendo todos os critérios e exigências para a concessão dos benefícios
fiscais. A segunda refere-se à ponderação de Tramontin sobre a necessidade de
processo licitatório para a concessão dos benefícios fiscais pelos consórcios. Esse
pequeno, porém, importante cuidado é que garantirá ao Município a realização de
contrapartida pelo contribuinte. O processo público de licitação permite a igualdade
de condições entre contribuintes na obtenção de incentivos fiscais, bem como
garante ao consórcio público a exigibilidade da contraprestação a que se obrigou o
contribuinte na assinatura do contrato, sendo possível a suspensão da concessão do
benefício em caso de descumprimento.
Portanto, o emprego de benefícios fiscais através de convênios ou consórcios
intermunicipais para possibilitar a aplicação do princípio da precaução permite a
integração entre poder público principalmente em âmbito municipal -, iniciativa
privada e comunidade no cumprimento do dever fundamental de zelar pelo meio
ambiente, coordenando e harmonizando suas ações com o objetivo de alcançar o
indispensável desenvolvimento sustentável.
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