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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS
E POLÍTICAS PÚBLICAS
Daniela Gomes
A EFETIVAÇÃO ADMINISTRATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA
PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETRIZES
APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE
Santa Cruz do Sul, outubro de 2007
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Daniela Gomes
A EFETIVAÇÃO ADMINISTATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA
PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETRIZES
APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Direito - Mestrado - Área de
Concentração em Direitos Sociais e Políticas
Públicas, da Universidade de Santa Cruz do
Sul - UNISC, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Hermany
Santa Cruz do Sul, outubro de 2007
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Daniela Gomes
A EFETIVAÇÃO ADMINISTATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA
PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETRIZES
APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE
Esta dissertação foi submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Direito - Mestrado -
Área de Concentração em Direitos Sociais e
Políticas Públicas, da Universidade de Santa
Cruz do Sul - UNISC, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Direito.
Dr. Ricardo Hermany
Professor Orientador
Pós Dr. Jorge Renato dos Reis
Dr. Ricardo Aronne
Aos pais, o motivo de tudo:
Vilmar e Valquíria,
À Natália, irmã predileta:
Pelo amor, apoio e paciência.
Com imensa saudade (in memorian):
Vó Helena, Vó Ana e Vô Adelino.
Ao professor Dr. Ricardo Hermany, minha
gratidão pela orientação, apoio e incentivo. À
coordenação do Mestrado em Direito, na pessoa
do Coordenador Professor Dr. Jorge Renato dos
Reis, pela oportunidade. À professora Elenise
Felzke Schonardie, pelo despertar da pesquisa
jurídica. Aos colegas de UPF, do grupo de
pesquisa “ambiente, saúde e comunicação”, pela
amizade. Aos afetuosos colegas de Mestrado, pela
força. Aos amigos e amigas do coração, pelo
apoio inicial e incentivo sempre. A Gaspar
Girardi, pelo carinho e paciência.
Devemos nos preparar para estabelecer os
alicerces de um espaço verdadeiramente humano,
de um espaço que possa unir os homens para e
por seu trabalho, mas o para em seguida dividi-
los em classes, em exploradores e explorados; um
espaço matéria-inerte que seja trabalhada pelo
homem mas não se volte contra ele; um espaço
Natureza social aberta à contemplação direta dos
seres humanos, e não um fetiche; um espaço
instrumento de reprodução da vida, e não uma
mercadoria trabalhada por outra mercadoria, o
homem fetichizado.
Milton Santos – Pensando o Espaço do Homem
RESUMO
O estudo da temática urbano-ambiental ocupa relevante papel na sociedade
contemporânea, uma vez que a regulamentação dos dispositivos constitucionais da política
urbana (artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988), através do Estatuto da Cidade,
propicia um olhar renovado aos temas da função social e ambiental da propriedade e da
cidade, do desenvolvimento urbano sustentável e, principalmente, da participação da
população nas decisões locais, enfatizando a necessidade de relações sinérgicas entre o
Estado e a sociedade. A Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, também conhecida como lei do
meio ambiente artificial, estabelece interfaces entre a política urbana e a política ambiental,
especialmente ao regular o uso da propriedade em prol do equilíbrio ambiental, bem como
remete ao município sua implementação através do Plano Diretor. Diante de tal situação a
propriedade privada deixa de ser um direito individual e absoluto, passando por um
processo de flexibilização, devendo cumprir seu papel socioambiental, privilegiando a
coletividade. Frente a isso, a finalidade desse estudo consiste em verificar quais
instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a efetivação da função
socioambiental da propriedade urbana. Para enfrentar tal questão adota-se o método de
abordagem hipotético-dedutivo, permeando a observação dos artigos da referida lei,
destacando como hipóteses de solução da problemática os instrumentos abarcados na
legislação referente ao tema, podendo ao final serem validadas ou falseadas. O
procedimento ou técnica de pesquisa empregado nessa investigação é o levantamento
bibliográfico do assunto por meio de doutrinas, artigos científicos, entre outros,
imprescindível à pesquisa jurídica. De igual forma, utilizam-se como referenciais teóricos
os estudos de Norberto Bobbio e Milton Santos. A partir de tais considerações, pretende-se
demonstrar que a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana passa
indiscutivelmente pela aplicação dos instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano
(parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo e
desapropriação). Nesse contexto, ressaltam-se a gestão democrática compartilhada, as
audiências públicas e os conselhos municipais como os principais instrumentos aptos ao
desiderato, uma vez que é na co-participação do ente público aliado à sociedade que se
configura um novo padrão de relação entre Estado-Sociedade, cujo alicerce está na
participação dos cidadãos. Ademais, acredita-se que é na ampliação de possibilidades de
apropriação do espaço público pela sociedade que se consolida a idéia de democratização
das decisões públicas e a idéia de controle social, possibilitando a concretização da função
socioambiental da propriedade urbana.
Palavras-chave: estatuto da cidade; função socioambiental; gestão democrática;
propriedade urbana.
ABSTRACT
The study of the urban-environmental thematic represents a relevant role in the
contemporary society, once the regulation of the constitutional devices of the urban politics
(articles 182 and 183 of the Federal Constitution of 1988), through the Statute of the City,
provides a renewed look to the subjects of the social and environmental function of the
property and the city, to the sustainable urban development and, mainly, to the
participation of the population in the local decisions, emphasizing the necessity of synergic
relations between State and society. Law 10,257 July 10
th
, 2001, also known as law of the
artificial environment, establishes interfaces between the urban politics and the
environmental politics, especially when regulating the use of the property in favor of the
environmental balance, as well as, makes the city responsible for its implementation
through the Managing Plan. In such situation, the private property stops being an
individual and absolute right, passing through a flexibilization process, and must fulfill its
social-environmental role, privileging the collective goal. Thus, the purpose of this study
consists in verifying which present instruments in the Statute of the City make possible the
effectiveness of the social-environmental function of the urban property. To face such
question the hypothetical-deductive approaching method is adopted, permeating the
comment of articles of the related law, emphasizing as solution hypotheses of the
problematic the instruments accumulated in the legislation referring to the subject, being
able in the end to be validated or falsified. The research procedure or technique used in this
inquiry is the bibliographical survey of the subject by means of doctrines, scientific
articles, among others, essential to the legal research. In the same way, the studies of
Norberto Bobbio and Milton Santos are used as theoretical references. From such
considerations, it is intended to demonstrate that the effectiveness of the social-
environmental function of the urban property passes undoubtedly through the application
of the induction instruments to the urban development (parceling, use or mandatory
construction, progressive time IPTU and dispossession). In this context, it is emphasized
the shared democratic management, the public audiences and the city councils as the main
instruments apt to the desideratum, once it is in the co-participation of the public being
allied to the society that a new standard of relation between State-Society is configured,
whose foundation is in the participation of the citizens. Besides, it is believed that it is in
the magnifying of possibilities of appropriation of the public space for the society, that the
idea of democratization of the public decisions and the idea of social control are
consolidated, making possible the concretion of the social-environmental function of the
urban property.
Key-words: statute of the city; social-environmental function; democratic
management; urban property.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................10
1 DEMARCAÇÃO HISTÓRICA E EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA: DO
INDIVIDUAL AO SOCIOAMBIENTAL ...........................................................................14
1.1 As diferentes formas de propriedade ao longo do tempo........................................................... 14
1.2 A contribuição doutrinária na caracterização da propriedade e da função social...................... 23
1.3 A influência da evolução histórica dos direitos fundamentais no direito de propriedade.......... 40
1.4 A flexibilização do direito de propriedade no Brasil: do individual ao socioambiental............ 47
2 O MEIO AMBIENTE ENQUANTO DIREITO - DEVER FUNDAMENTAL:
PROPRIEDADE, ESPAÇO URBANO E SUSTENTABILIDADE....................................52
2.1 O direito – dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.............................................. 52
2.2 O espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais.............................................. 62
2.3 O Estatuto da Cidade e suas diretrizes....................................................................................... 69
2.4 Sustentabilidade urbana ............................................................................................................. 78
3 A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE
URBANA SOB A ÓTICA DO ESTATUTO DA CIDADE ................................................92
3.1 O Plano Diretor enquanto instrumento público.......................................................................... 92
3.2 Do IPTU Progressivo no Tempo como instrumento tributário-financeiro à Desapropriação
como instrumento jurídico-político................................................................................................ 102
3.3 A Gestão Compartilhada: poder público e participação popular ............................................. 114
3.4 As Audiências Públicas e os Conselhos Municipais................................................................ 122
CONCLUSÃO....................................................................................................................129
REFERÊNCIAS..................................................................................................................138
ANEXO A – Quadro esquemático de utilização do método hipotético-dedutivo..............148
INTRODUÇÃO
O Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, tem por finalidade
regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que dispõem sobre a
política urbana municipal. Com o intuito de disciplinar o meio ambiente artificial, ou seja,
o espaço urbano, encontra amparo constitucional não apenas nesses artigos, como também
no artigo 225 do mesmo diploma legal, que trata do meio ambiente. Igualmente conhecido
como lei do meio ambiente artificial, estabelece interfaces entre política urbana e política
ambiental, trazendo contribuição essencial à caracterização e à efetivação da função
socioambiental da propriedade, da sustentabilidade urbana e da gestão democrática da
cidade em prol do equilíbrio urbano-ambiental para as presentes e as futuras gerações.
Com a regulamentação dos dispositivos constitucionais da política urbana pelo
Estatuto da Cidade, observa-se, no espaço urbano, a emergência de uma nova
racionalidade de planejamento e de gestão urbano-ambiental da cidade e das propriedades.
O parcelamento e a apropriação privada do solo urbano representaram e ainda representam
uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos problemas urbano-ambientais. Os
embates causados pelo não-acesso à propriedade evidenciam a necessidade de se repensar
a organização e o planejamento do espaço urbano. Nesse sentido, não poderia ser outro o
foco dessa investigação senão a funcionalização socioambiental da propriedade privada.
É importante ressaltar que a abordagem da função socioambiental da propriedade
urbana é cercada de dificuldades, levando-se em conta a tendência reducionista de pensar a
propriedade como um direito individual e absoluto. Frente a isso, torna-se imprescindível
verificar a possibilidade de efetivação da função socioambiental da propriedade urbana no
Brasil e as prováveis hipóteses para sua consecução, com base no Estatuto da Cidade e na
Constituição Federal de 1988. A partir de tais considerações, pretende-se investigar quais
instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a instrumentalização da função
socioambiental da propriedade urbana.
Buscando enfrentar a problemática da materialização da função inerente ao direito
de propriedade, utilizam-se, como referenciais teóricos, as obras do jurista Norberto
Bobbio, acerca dos direitos fundamentais, e os estudos do geógrafo Milton Santos,
11
referentes ao espaço urbano como espaço-tempo do homem. Contudo, embora sejam estes
os referenciais principais, esta pesquisa encontra respaldo ainda nas teorias de Léon
Duguit, José Rubens Morato Leite, Boaventura de Sousa Santos, entre outros, com a
finalidade de um enfoque ambiental e social do Estatuto da Cidade e da propriedade
privada.
Tendo em vista a consecução do trabalho proposto, de forma a lhe conferir
cientificidade, com suporte nas bases gicas de investigação científica, adota-se o método
de abordagem hipotético-dedutivo, permeando a observação dos artigos da legislação
referente ao tema, destacando como hipóteses de solução da problemática os instrumentos
abarcados na lei do meio ambiente artificial, podendo ao final serem validadas ou
falseadas. Nesse contexto, torna-se importante referir que o método hipotético-dedutivo foi
definido por Karl Popper a partir de críticas à indução, baseando-se no argumento de que a
indução não se justificaria uma vez que o salto indutivo de “alguns” para “todos” exigiria
que a observação de fatos isolados atingisse o infinito. Para Popper a indução cai no
apriorismo, e sua justificação exigiria o trabalho de sua verificação factual. Dessa forma, o
método hipotético-dedutivo afirma-se quando os conhecimentos disponíveis sobre
determinado assunto são insuficientes para a explicação de um fenômeno, surgindo o
problema. Para explicar o problema são formuladas conjecturas ou hipóteses das quais se
deduzem conseqüências que deverão ser testadas ou falseadas. Em tal método procuram-se
evidências empíricas para derrubar ou corroborar as hipóteses. Quando não se consegue
falsear a hipótese, tem-se a sua corroboração provisória, que não definitivamente
confirmada, uma vez que a qualquer momento poderá surgir fato que a invalide.
Dessa forma, pode-se dizer que o método hipotético-dedutivo parte de observações,
e destas, a uma hipótese, a parti daí, uma dedução reconduz a experiência para controlar a
hipótese, desembocando na idéia de coerência gica. Esse método é redutível a um ciclo,
pois, a pesquisa desenvolve-se colocando uma hipótese na presença de fenômenos e
presumindo-se que ela permitirá reencontrá-los como conseqüências. Observa-se, que o
método de tentativas e eliminação de erros, como também é conhecido, foi constituído com
a intenção de que toda a discussão científica partisse de um problema (P
1
), ao qual fosse
contemplado uma solução provisória, hipótese ou teoria-tentativa (TT), passando-se depois
a criticar a solução provisória com vistas à eliminação do erro (EE). Assim, esse processo
renovaria a si mesmo, acarretando o surgimento de novos problemas (P
2
) (ANEXO A).
12
Por outro lado, o procedimento ou técnica de pesquisa empregado nessa
investigação é o levantamento bibliográfico do assunto por meio de doutrinas, artigos
científicos, entre outros, indispensáveis à pesquisa jurídica. Utilizam-se igualmente os
métodos comparativo e funcionalista. Por método comparativo entende-se a pesquisa de
dois ou mais fenômenos ao mesmo tempo ou ao longo de um tempo, comparando-os entre
si, identificando e privilegiando as diferenças e semelhanças. Dessa forma, é utilizado o
método comparativo diacrônico, pois o estudo da propriedade-bem e da propriedade-
função abrange épocas distantes do tempo, conforme a evolução dos direitos fundamentais.
o método funcionalista, justifica-se na pesquisa, por essa levar em consideração que a
sociedade é formada por partes diferenciadas, cada uma com funções específicas na vida
social, mas, o ponto fundamental reside na percepção de que as partes são mais bem
compreendidas pela função que desempenham no todo. Assim, a relação da sociedade e
das questões relativas à percepção dos problemas urbano-ambientais, encontram-se
reunidas em uma estrutura complexa de grupos e indivíduos, em uma trama de ações e de
reações sociais, como um sistema correlacionado entre si. Se a sociedade é um todo em
funcionamento, o papel das partes é de extrema importância, pois é trabalhando as partes (a
exemplo do poder local), que se poderá buscar o fortalecimento e melhor funcionamento
do todo (percepção ou conscientização acerca dos problemas urbano-ambientais globais).
Assim, divide-se o presente trabalho em três partes, nas quais se desenvolve o tema de
forma a elucidar suas diversas facetas.
No primeiro capítulo, pretende-se, de maneira sintética, demarcar historicamente o
surgimento e a evolução da noção de propriedade como direito. A partir daí, procura-se
evidenciar as diferentes formas de propriedade ao longo do tempo, para, posteriormente,
proceder a uma análise sociológico-histórica do direito de propriedade, através da
contribuição doutrinária na caracterização desta e de sua função social. Ainda,
considerando-se a necessidade de esclarecer o direito de propriedade e a função
socioambiental como direitos fundamentais e princípios constitucionais, busca-se
demonstrar, por meio da evolução histórica dos direitos fundamentais e de sua
constitucionalização no ordenamento jurídico brasileiro, a importância das dimensões de
direitos na reconfiguração das feições do direito de propriedade. Por fim, aborda-se a
flexibilização do direito de propriedade no Brasil, passando de um direito individual de
caráter absoluto para um direito de cunho socioambiental.
13
No segundo capítulo, é abordado o meio ambiente enquanto direito-dever
fundamental. Parte-se da idéia de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado (natural
e artificial) não pode mais ser percebido apenas como um direito fundamental, tornando-se
imprescindível entendê-lo, igualmente, como um dever fundamental que se estende ao
Poder Público e, principalmente, à coletividade, buscando romper com a noção
antropocêntrica do homem como detentor da natureza. Visualizam-se, nesse sentido, o
espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais. Frente a isso, no ensejo de
concretização das propostas trazidas pela lei do meio ambiente artificial, prossegue-se à
lapidação do estudo, abordando-se as origens e as principais diretrizes do Estatuto da
Cidade com o propósito de se verificar sua aplicação frente à instrumentalização da função
socioambiental da propriedade urbana. Finalmente, são frisadas as particularidades da
sustentabilidade urbana com o objetivo de identificar a possibilidade de materialização de
um espaço urbano mais justo e solidário, corroborando com o adimplemento da função
socioambiental da propriedade urbana.
No terceiro capítulo, buscam-se demonstrar os possíveis caminhos para a
materialização da função socioambiental da propriedade urbana. Nesse sentido, analisa-se
o Plano Diretor municipal enquanto instrumento público. Posteriormente, estudam-se o
parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios do imóvel urbano e o IPTU
Progressivo no Tempo como instrumento tributário-financeiro. Em seqüência à aplicação
dos instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano, encontra-se a desapropriação-
sanção enquanto instrumento jurídico-político, apto a realizar o tão esperado ordenamento
das cidades e o adequado aproveitamento da propriedade urbana.
Como ápice do estudo, após a investigação dos principais instrumentos trazidos
pelo Estatuto da Cidade, ressaltam-se a gestão democrática compartilhada, as audiências
públicas e os conselhos municipais como os principais instrumentos capazes de
implementar uma política urbana eficiente. Nesse contexto, a lei traz a participação popular
como forma de propiciar a gestão democrática da cidade. Assim, procura-se demonstrar a
importância da gestão compartilhada, aliando-se o Poder Público à participação popular, o
que possibilita a conscientização de que todos fazem parte do meio ambiente artificial e
são co-responsáveis pela sua preservação para as presentes e as futuras gerações.
1 DEMARCAÇÃO HISTÓRICA E EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA: DO INDIVIDUAL
AO SOCIOAMBIENTAL
O estudo da propriedade privada traz no seu bojo a necessidade da demarcação
histórica do surgimento da propriedade como direito, bem como, da evolução da noção de
propriedade ao longo do tempo. Desse prisma, baliza-se a análise sociológico-histórica do
direito de propriedade
através da contribuição doutrinária na caracterização da propriedade
e da função social ao longo da história.
Considerando a influência das dimensões de direitos fundamentais e de sua
constitucionalização no ordenamento jurídico brasileiro, busca-se verificar o processo de
reconfiguração pelo qual tem passado o direito de propriedade, de um direito absoluto para
um poder-dever de contornos socioambientais.
1.1 As diferentes formas de propriedade ao longo do tempo
A propriedade não foi sempre a mesma. Não , na história da humanidade, um
conceito único de propriedade que seja imutável. Por essa razão, para que não haja um
entendimento inadequado de seu conteúdo, faz-se necessária uma abordagem no contexto
político, econômico, social e histórico do direito de propriedade
1
ao longo do tempo.
Assim, buscando traçar um panorama da evolução da noção de propriedade, a partir da
análise de sua história, procuram-se estabelecer quatro períodos de tempo distintos: a Idade
Antiga, a Idade Média, a Idade Moderna e a Idade Contemporânea.
2
1
Alguns autores, a exemplo de Edésio Fernandes, questionam a terminologia empregada para designar os
direitos do proprietário que, em vez de ter direito de propriedade, estaria frente a um direito à propriedade.
Essa terminologia direito à propriedade”, decorre do fato de ao proprietário se estenderem inúmeras
condições para o exercício legítimo de seu direito. Nessa pesquisa, optou-se por utilizar o termo “direito de
propriedade”, tendo em vista que não se faz distinção entre os termos, entendendo-os de mesmo significado.
FERNANDES, Edésio. Direito de propriedade e direito à propriedade. Jornal O Tempo, Belo Horizonte, 14
dez. 1996.
2
O tempo é uma convenção criada com o intento de facilitar o entendimento do que rodeia os homens. Frente
a essa perspectiva, os historiadores criaram “períodos de tempo” para a seqüência dos acontecimentos
históricos. Assim, a História foi “dividida em quatro épocas: Antiga (do aparecimento da escrita, por volta de
3500-3000 a.C., até a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C.); Medieval (de 476 a 1453, data
da tomada de Constantinopla pelos turcos); Moderna (de 1453 à Revolução Francesa de 1789); e
Contemporânea (de 1789 para a frente).” PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparicio Baez.
História: uma abordagem integrada. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1999, p. 4.
15
A demarcação histórica, com vistas a estabelecer o surgimento da noção de
propriedade, perde-se na história. Grande parte dos historiadores acredita ser mais seguro
avaliar o surgimento de alguma forma de propriedade, quando do aparecimento da escrita.
Entretanto, é possível afirmar que a propriedade surgiu com o homem.
Nos primórdios de sua existência, especificamente no período pré-histórico, o
homem era nômade e de comportamento similar às outras espécies de animais, ou seja,
vivia em um estado selvagem, coletando frutos e exercendo a caça. Com a domesticação de
animais, o cultivo de plantas e a utilização da cerâmica, o homem atinge o estado de
barbárie. Posteriormente, com a fundição do minério e a invenção da escrita, a
passagem do estado de barbárie para o estado de civilização. Mesmo no período selvagem,
o homem tem noção de propriedade, seja de sua canoa ou de seu instrumento de caça.
Entretanto, é com a domesticação de animais e o cultivo de plantas, no ano de 10.000 a.C.,
que o homem passa a fixar bases geográficas. Ocorre que, nesses períodos, a noção de
propriedade não assume as feições atualmente dadas pela sociedade, de tal forma que “a
relação de domínio exercida pelo homem sobre o objeto era condicionada e legitimada por
uma ordem jurídica natural, com vistas a assegurar-lhe a satisfação das necessidades mais
prementes [...]”.
3
Com a invenção da escrita e a passagem do homem ao estado de civilização, inicia-
se o período denominado de Antigüidade ou Idade Antiga. que se considerar nesse
período uma importante divisão: os povos do antigo oriente (egípcios, sumérios, acádios,
babilônios, assírios, caldeus, fenícios, hititas, hebreus, persas, cretenses, além da Índia e da
China) e os povos da antigüidade clássica como os romanos e os gregos.
Os povos do antigo oriente são as primeiras sociedades divididas em classes
(nobreza, elementos livres, servos e escravos) que inspiraram os povos gregos e romanos
na cultura material e espiritual. No Egito e na Mesopotâmia, a terra era controlada,
juntamente com seu produto agrícola, pelos governantes. Diferentemente se dava essa
relação na Pérsia, onde o regime de propriedade era o particular, no qual, o proprietário
pagava impostos elevados para cultivá-la. Contudo, é entre os babilônios, com o Código de
Hamurabi, por volta de 2.300 a.C., que a propriedade é regulamentada sob normas de
3
ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno.
Londrina: UEL, 1998, p. 35.
16
estrutura codificada (seja a propriedade do escravo ou a propriedade de qualquer objeto
material ou imaterial).
4
Também entre os povos hebreus, a instituição da propriedade
particular, de forma expressa, no segundo livro do Pentateuco
5
, denominado Êxodo.
6
A
preocupação com os bens particulares foi exaltada por Moisés nos Dez Mandamentos.
7
Ressalta-se ainda que, na Índia, também houve o reconhecimento expresso do direito de
propriedade, no Código de Manu.
De outro giro, na sociedade grega e romana, a propriedade privada começa a existir
a partir de uma modificação na organização gentílica. É com os gregos e os romanos que a
propriedade passa a incorporar o caráter individualista.
Entre os gregos, a “gens” na sua forma primitiva se fundamentava na concepção de
grupo de consangüíneos, e com certo grau de parentesco, a propriedade, de início, tinha o
aspecto de ser comum a todos. Com a introdução do direito paterno em substituição ao
direito materno, houve a acumulação de riquezas pela família, em função, principalmente
da instituição da herança. A partir daí, verifica-se que foi entre os gregos que apareceram
os primeiros impulsos à propriedade privada. “[...] a propriedade privada entre os gregos é
resultado de um processo que gera o fortalecimento concomitante da família. A partir daí,
família e propriedade privada são instituições que caminham juntas e no mesmo passo”.
8
Para Fustel de Coulanges, os gregos sempre reconheceram a propriedade privada.
Entretanto, seguiram caminho inverso ao natural, uma vez que a propriedade se aplicou
primeiro ao solo e, depois, à colheita. Em sua concepção, a religião doméstica, a família e
o direito de propriedade guardam relação inseparável em suas origens. “A idéia de
propriedade estava implícita na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus
4
Ibidem, p. 40-41.
5
Pentateuco é uma palavra derivada do grego e significa “cinco livros”. Essa palavra é usada para indicar os
cinco primeiros livros da Bíblia Cristã, isto é: nesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Também
chamado de Torá, uma palavra de língua hebraica com significado associado a ensinamento, instrução,
especificamente Lei. São os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica, de autoria de Moisés, conhecidos
pelos cristãos como Antigo Testamento. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990, p. 12.
6
Êxodo significa a saída dos hebreus do Egito, onde eram escravos. Está intimamente ligado com a
libertação do povo hebreu e o estabelecimento de uma aliança e de leis de transformação das relações
interpessoais. Essa aliança foi firmada de duas formas: princípios de vida (Decálogo) que orientam o povo
para um ideal de sociedade, e leis (Código de Aliança) que m por finalidade conduzir o povo a prática
desses ideais. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990, p.68.
7
Ver em Êxodo, capítulo 20, versículo 15 e 17. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990, 93.
8
ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno.
Londrina: UEL, 1998, p. 49.
17
antepassados. Esses deuses podiam ser adorados pela família e a ela protegiam; eram
sua propriedade.”
9
Assim, o lugar onde a família fixa seu altar é sua propriedade, é
domínio sagrado e protegido por divindades domésticas. Essa demarcação traçada pela
religião e por ela protegida é símbolo evidente do direito de propriedade, o que corrobora
com o entendimento de que não foram as leis, mas a religião que primeiro garantiu o
direito de propriedade.
A propriedade era fundamental na estrutura da polis. Em Esparta, a venda de terras
era expressamente proibida, assim como a casa e o túmulo eram inalienáveis. Quem
conferia lotes de terra aos homens adultos era o Estado. Esse direito de propriedade era
condicionado à exploração com eficiência, caso contrário, o Estado tomava-o e repassava-
o a alguém capaz de fazê-lo. Em Atenas, somente os cidadãos poderiam possuir terras.
Nesse caso, a posse encontra-se intimamente ligada à cidadania. Não havia nenhuma
vedação expressa à venda de terras, entretanto, quem as vendesse perderia o direito de ser
cidadão grego.
10
Em Roma, o processo é similar. A primeira forma de propriedade foram as tribos,
que deram origem à formação da cidade. Em um primeiro momento, toda a terra cultivada
era da tribo, e a propriedade era coletiva. Em um segundo momento, a propriedade passa a
ser familiar e somente os filhos homens eram herdeiros. Em um terceiro momento, a
propriedade passou a ser individual, ou seja, “essa concentração de poderes no grupo
familiar perdeu o vigor e passou a se focalizar no indivíduo”.
11
Assim, cada integrante do
grupo familiar foi adquirindo direito individual, o que acarretou a mudança do traço
familiar da propriedade para a característica da individualidade.
Com a passagem do traço familiar para uma propriedade individualista e absoluta,
ao proprietário assiste o direito livre e irrestrito de utilizá-la como bem entender. Esse foi o
ponto de partida dos três atributos do domínio: o jus utendi, o jus fruendi e o jus
9
COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 65-
77.
10
PIPES, Richard. Tradução de Luiz Guilherme B. Chaves e Carlos Humberto Pimentel Duarte da Fonseca.
Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 129.
11
MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da
cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 25-26.
18
abutendi.
12
A concepção romana inicial de propriedade é a de um direito absoluto e
protegido, que, com as complexas relações sociais, foi cedendo vez aos direitos do outro
indivíduo e não aos da coletividade. Cabe salientar que a Lei das XII Tábuas trouxe
consigo algumas limitações à propriedade, tais quais, as limitações em favor do interesse
dos vizinhos. É também por essa lei, que a propriedade passa a ser alienável.
O período da Idade Média foi caracterizado pelo surgimento do feudalismo como
uma nova organização econômica, política e social no Ocidente. A sociedade medieval tem
a sua origem com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., em função da
articulação de valores romanos, católicos e germânicos.
Em linhas gerais, entre os fundamentos para o surgimento do feudalismo,
encontram-se a preocupação com a segurança, com as desiguldades sociais e o interesse de
defesa das propriedades privadas, que estavam sendo invadidas e saqueadas
constantemente, acarretando todos os tipos de danos aos proprietários. Assim, os donos de
terras submeteram-nas ao soberano em troca de proteção. O soberano passa a ter o domínio
eminente, e a sua utilização - domínio útil - é garantida aos proprietários, agora
denominados de feudatários.
13
A sociedade feudal era dividida em estamentos: os
proprietários (clero e nobres) e os trabalhadores (servos).
Esse contexto foi fortemente influenciado pelo Cristianismo e pelas doutrinas
filosóficas de São Tomás de Aquino e de Santo Agostinho, que retomaram a discussão
acerca do direito de propriedade privada. O ponto de apoio da doutrina filosófica de São
Tomás de Aquino assenta-se no ideário de que a propriedade é um meio injusto de poder.
Em sua obra, Suma Teológica, ele não defende a idéia de uma propriedade coletiva,
entretanto salienta que a propriedade individual deve atender aos interesses coletivos.
14
O
impacto de suas idéias não foi absorvido no período feudal. Contudo, é o seu pensamento
que vai embasar a teorização acerca do princípio da função social da propriedade.
12
“Jus utendi é o direito de usar a coisa, como, por exemplo, o direito do proprietário de construir sobre
sobre o seu terreno, o de montar animal de sua propriedade, o de utilizar-se dos trabalhos do escravo. Jus
fruendi é o direito de usar, não propriamente a coisa, mas o direito de aproveitar os furtos e os produtos da
coisa. Jus abutendi é o direito que tem o proprietário de abusar da coisa, dispondo dela como melhor lhe
aprouver, inclusive destruindo-a, isto é, alterando-lhe a ‘substantia rerum’[...]”. CRETELLA JÚNIOR, José.
Curso de Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 155.
13
MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da
cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 28.
14
Ibidem, p. 29-30.
19
Durante a vigência do feudalismo, em 1245, ainda na Idade Média, surge a Magna
Carta na Inglaterra. A Magna Carta constituiu documento que procurava assegurar
liberdades individuais em relação ao rei, mas essas liberdades não tinham o propósito de se
estender a todos os membros da sociedade. Ressalta-se que, apesar do propósito nuclear de
atendimento apenas dos interesses dos nobres, a Magna Carta não foi apenas uma
conquista, foi também o marco inicial do surgimento das Declarações de Direitos. Entre as
liberdades que procurava assegurar, destaca-se o direito à propriedade privada.
15
Isso se
deu em função do declínio do feudalismo, uma vez que seus pressupostos não atendiam às
novas questões sociais que estavam surgindo.
O período moderno teve seu ponto de partida com as grandes expedições
marítimas, realizadas pelos europeus. Concomitante a esse acontecimento, constatou-se
uma Revolução Comercial, que se traduziu na transformação da economia européia e
trouxe como conseqüência a ascensão do capitalismo. O Renascimento também marcou
presença no período moderno, fazendo ressurgir valores da Antiguidade Clássica, como o
individualismo
16
. São esses três fatores (as grandes navegações, a Revolução Comercial e o
Renascimento) que modelaram e influenciaram as instituições na Idade Moderna.
Sob a influência desses fatores, surgiu o Iluminismo, que procurou contestar as
instituições políticas, econômicas e sociais da época. Seus ideais chegaram a influenciar a
independência dos Estados-Unidos, a Revolução Francesa e até mesmo os movimentos de
independência do Brasil.
17
Politicamente, foi uma ampla crítica à forma do poder vigente
(Absolutismo) e a proposta de um novo entendimento da vida social, mas foi, acima de
tudo, uma revolução cultural, além de ser a matriz do pensamento liberal.
No século XVIII, as práticas mercantilistas não atendiam as necessidades da
burguesia. Como uma crítica ao mercantilismo, que prejudicava a expansão do capitalismo,
e com a finalidade de combater as antigas formas da economia, surgiu o movimento
chamado Fisiocratismo. Foi sob a influência dos fisiocratas que nasceu uma nova corrente
de pensamento econômico, propondo uma ordem baseada na liberdade de comércio,
denominada Liberalismo.
15
ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno.
Londrina: UEL, 1998, p. 58-59.
16
Ibidem, p. 63-64.
17
Ibidem, p. 64.
20
Da combinação do declínio do Feudalismo e da intensificação do Absolutismo,
originou-se o movimento que culminou na Revolução Francesa de 1789. Os detentores da
riqueza (burguesia) estavam insatisfeitos em ter posses e não ter poder. Esse contexto de
centralização do poder nas mãos do clero e da nobreza foi, sem dúvidas, fator
desencadeante da Revolução. Os ideais iluministas de “liberdade, fraternidade e igualdade”
foram a manifestação do repúdio e do inconformismo com esse cenário. A propriedade se
tornou questão pontual entre os anseios da Revolução Francesa. Nesse sentido, também
houve a influência dos fisiocratas, que defendiam a propriedade como instituição
sacrossanta.
18
No entendimento de Antonio Carlos Wolkmer, o Estado Moderno é um processo
histórico que apresenta dois momentos: “o Estado Absolutista (soberano, monárquico e
secularizado) e o Estado Liberal (capitalista, constitucional e representativo)”.
19
O direito
moderno tem em seu marco a Revolução Francesa, fortemente caracterizada por uma
concepção individualista, produto do anseio de mínima intervenção do Estado na sociedade
e da luta por liberdades individuais. Norberto Bobbio salienta que a “concepção
individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se
observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, que o
Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado [...]”.
20
A crítica feita à
Revolução Francesa é a de que seu caráter ideológico favoreceu os interesses da burguesia,
exaltando a propriedade absoluta e individualista, preponderando o valor liberdade em
detrimento do valor igualdade.
Em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a propriedade
foi consagrada como direito inviolável e sagrado, inserindo-se no rol dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Com o Código Napoleônico de 1804, a definição romana de
propriedade absoluta foi resgatada. Ressalta-se que a noção de propriedade, adotada pelo
Código Civil brasileiro de 1916, é idêntica à do Código de Napoleão, o que causou e ainda
gera graves distorções em sua aplicação, uma vez que os contextos nos quais estavam
inseridos não guardam nenhuma semelhança.
18
MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da
cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p.30-31.
19
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Fabris, 1990, p. 24-25.
20
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 60.
21
Frente a isso, em contraponto à doutrina liberal, sustentada pela burguesia em um
momento no qual os países europeus se encontravam marcados por profundas
desigualdades sociais, que pioraram em razão da Revolução Industrial desenfreada, surge o
pensamento socialista
21
. A possibilidade de pensar uma nova forma de organização social
foi herança do Iluminismo. “No pensamento limitado pela religião, em que as coisas são da
forma que são pela vontade divina, não era possível questionar a estrutura social. Quando o
Iluminismo propôs que a sociedade fosse examinada pela razão, foi aberta a possibilidade
de elaborar uma outra estruturação da sociedade [...]”.
22
A partir daí, surgiram teorias que
defendiam uma estrutura social em que o poder fosse exercido pelas classes trabalhadoras.
Em linhas gerais, os socialistas acreditavam ser possível transformar a sociedade acabando
com os desequilíbrios econômicos.
O cenário de injustiças e de miséria da época inspirou o Socialismo Científico ou
Socialismo marxista, contribuindo para a difusão dos ideais de igualdade e de justiça
social, que se realizariam por meio da distribuição de riquezas, da crítica das relações de
trabalho e da tutela estatal dos bens de produção. A partir do pensamento marxista, a
propriedade passou a ser vista como um bem de produção, ligada à divisão do trabalho.
Dessa forma, a propriedade deveria pertencer à sociedade e não apenas a alguns homens.
O ideal marxista foi aplicado com a Revolução Russa de 1917, quando se chegou a
implantar a propriedade coletiva sob o domínio administrativo do Estado, abolindo-se as
propriedades privadas. Em outros países, o pensamento marxista também inspirou
21
Na transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, surgiram as doutrinas socialistas, que
propunham uma nova forma de organização da sociedade. Em 1838, o Movimento Cartista, através da
publicação da “Carta ao Povo”, por parte da Associação dos Operários ingleses, denunciou as dificuldades
pelas quais passavam os trabalhadores e reivindicou a participação política da classe trabalhadora, a fim de
melhorar a condição de vida dos operários. Por volta de 1820 e 1829, falou-se em Socialismo Utópico, que
nada mais foi do que a sensibilização de alguns empresários com a situação da época, propondo reformas que
mantinham o sistema capitalista, mas buscavam atender melhor os trabalhadores. Superando essas duas
teorias, surgiu o Socialismo Científico em 1848, com a publicação do Manifesto Comunista, de Karl Marx e
Friedrich Engels. O Socialismo marxista, em síntese, defendia a apropriação coletiva dos meios de produção
que deveriam pertencer a toda sociedade. Para conseguir a coletivização dos meios de produção, o ideal
marxista defendia a via revolucionária e a implantação da ditadura do proletariado (etapa provisória a ser
implantada até a eliminação da propriedade privada e sua coletivização). Realizadas essas transformações, a
sociedade entraria no Comunismo. Outra importante corrente socialista foi o Anarquismo ou Comunismo
Libertário, que pregava que a origem das desiguldades sociais está no Estado. O poder do Estado é corruptor,
e mesmo que controlado pelos trabalhadores gera desiguldades. Essa corrente fundamentava-se na
eliminação do Estado e no regime da autogestão em grupos, com leis próprias. PETTA, Nicolina Luiza de;
OJEDA, Eduardo Aparicio Baez. História: uma abordagem integrada. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1999,
p.182-183.
22
PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparicio Baez. História: uma abordagem integrada. 1. ed.
São Paulo: Moderna, 1999, p. 181.
22
mudanças, fazendo com que houvesse uma maior intervenção do Estado no domínio
privado. De certa forma, o pensamento marxista foi decisivo para o rompimento do
paradigma de propriedade absoluta.
A análise da propriedade privada na contemporaneidade é marcada pela revisão da
postura não-intervencionista do Estado e pela contestação do caráter individualista da
propriedade. A releitura da noção de propriedade, atribuindo-a caráter social, emerge a
partir da Revolução Industrial e do surgimento dos movimentos sindicais, que exigiam a
proteção dos direitos sociais por parte do Estado.
O processo de socialização dos direitos e de limitação das liberdades individuais
teve por influência o ideário socialista, o anarquista e também o Cristianismo de cunho
social. Nesse sentido, o Estado Contemporâneo, de postura intervencionista, passa a ser
conhecido como Welfare State ou Estado do Bem Estar Social. Para César Luiz Pasold o
marco do surgimento do Estado Contemporâneo se deu com a Constituição Mexicana de
1917 e com a Constituição de Weimar de 1919, que impôs limites aos direitos privados e
incluiu a idéia do direito de propriedade vinculado a obrigações sociais.
23
Assim, tem-se
que, no Estado Contemporâneo, a propriedade passa a estar vinculada ao cumprimento da
função social.
Nas palavras de Rogério Moreira Orrutea, há, no século XX
[...], uma nova fórmula ao direito de propriedade privada, fugindo àquele caráter
absolutista prevalecente em fases anteriores. Floresce neste período, ao lado do
caráter individual e eminentemente civilista, o caráter social e de cunho até
publicista. O direito de propriedade particular assume e concilia aspectos
jurídicos que à primeira vista parecem infensos e inconciliáveis entre si, eis que
passa a figurar, à partir de então, entre os chamados direitos individuais e entre
os direitos econômicos, compromissado que se com a ordem econômica. É
sem sombra de dúvidas o inaugurar de um novo predicativo ao direito de
propriedade privada e que a ele atribuiu um novo papel ou uma nova função,
notadamente sob a ótica do social.
24
A essência desse processo histórico-evolutivo da propriedade é pertinentemente
resumida por Eros Roberto Grau, quando afirma que
23
PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo. 2. ed. Florianópolis: Estudantil, 1988, p.
43.
24
ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno.
Londrina: UEL, 1998, p.87.
23
a observação da evolução da propriedade – que da plena in re potestas de
Justiniano, da propriedade como expressão do direito natural vai desembocar,
modernamente, na idéia de propriedade-função social apresenta momentos e
matrizes realmente encantadoras, bastantes para desviar o estudioso da senda
que tencione explorar. Tal evolução consubstancia, como afirmou André Piettre,
a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção
romana, que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade
dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a
justifica por seu fim, seus serviços, sua função.
25
No Estado Democrático de Direito, a propriedade deve adequar-se à busca da
realização da justiça social e da igualdade, através da passagem de uma propriedade-direito
(absoluta e individualista) para uma propriedade-função. A propriedade contemporânea
deve orientar-se para os valores sociais e ambientais.
Com isso, realizada a demarcação histórica da noção de propriedade na antigüidade
até sua evolução para uma propriedade privada na modernidade e na contemporaneidade,
pretendeu-se assinalar que não um conceito universal e imutável de propriedade ao
longo do tempo. O direito de propriedade tem caráter dinâmico, está em constante
transformação, e tem seu conteúdo modificado em virtude das necessidades sociais e
ambientais. Frente a isso, buscar-se-á demonstrar que essa alteração na concepção de
propriedade privada, além de ser produto histórico, também teve origem na contribuição
doutrinária de autores clássicos e contemporâneos.
1.2 A contribuição doutrinária na caracterização da propriedade e da função social
A origem e os fundamentos da propriedade sempre instigaram interesse e
controvérsias de doutrinadores e filósofos que se dividiram em três correntes de
pensamento acerca do assunto. os que contestam a propriedade privada e defendem sua
abolição; existem também, os que afirmam ser a propriedade um direito natural do homem,
que nasce no estado de natureza, antes e independentemente do surgimento do Estado, e
outros tantos, entendem que a propriedade é uma criação do Estado, conseqüência da
constituição do estado civil e que, portanto, está sujeita às normas que dele derivam.
25
GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle
ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 63.
24
No desenvolver histórico da Idade Moderna, procurou-se dar destaque à
contribuição das doutrinas socialistas (socialismo utópico, socialismo científico e
anarquismo) na caracterização da propriedade. Embora abordado de maneira sucinta o
aporte marxista nesse cenário, cabe destacar a importância das críticas à propriedade que
partiram de Pierre-Joseph Proudhon e de Friedrich Engels.
As críticas mais radicais à propriedade constam na obra O que é a propriedade? de
Pierre-Joseph Proudhon, um dos expoentes do Socialismo anarquista. Para ele, “[...] nem o
trabalho, nem a ocupação, nem a lei podem criar a propriedade; que ela é um efeito sem
causa [...]”.
26
A origem das desigualdades sociais está no Estado, que sempre vai agir em
benefício de um pequeno grupo e em detrimento do restante da sociedade. Ao esboçar seu
entendimento em relação à propriedade, afirma: “A propriedade é o roubo!”.
27
De outro lado, a crítica de Friedrich Engels contextualiza a causa das desiguldades
na propriedade, em sua forma privada. Para ele, foi a privatização da propriedade que
trouxe a distinção entre as classes e as divergências de interesses. Assim, o Estado nada
mais é do que um instituto criado com o intuito de mediar os conflitos e, principalmente,
de proteger a propriedade privada.
28
De tal forma, demonstrar a importância dos diversos focos doutrinários no
delineamento do direito de propriedade ao longo do tempo é de suma relevância para a
compreensão do reconhecimento e da sistematização da função social como princípio
consagrado no ordenamento jurídico brasileiro.
Aristóteles, filósofo grego, em sua obra A política, dentre outros temas relevantes,
traz contribuição essencial à temática da propriedade privada ao abordá-la de forma
vinculada a uma destinação social.
De início, fala Aristóteles da felicidade e do bem comum, anseios que dão origem à
cidade como uma espécie de comunidade política. Se a cidade é para ele uma criação
26
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Tradução de Gilson sar Cardoso de Souza. São
Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 15.
27
Ibidem, p.16.
28
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro
Konder. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, 158-159.
25
natural, “[...] o homem é por natureza um animal social [...]”,
29
que desenvolve suas
potencialidades vivendo em sociedade. A vida humana, no contexto associativo, visa à
realização de um interesse comum que atribua alguma vantagem ao cidadão. Nesse
contexto, a realização do bem comum traria a felicidade individual. Assim, o Estado passa
a ser visto como uma associação de homens, entrelaçados que estão em busca de sua
parcela de felicidade.
A supremacia do interesse público sobre o particular e o bem comum são evidentes
e marcantes em sua obra. O bem comum deve ser garantido pela Constituição uma vez que
é o objetivo da Sociedade e do Estado. O interesse público, por sua vez, guarda ligação
com o juízo defendido por Aristóteles, de que o todo deve ser colocado antes das
partes,
30
ou seja, o Estado está à frente do indivíduo. Por isso, em função de o Estado ser a
união de homens, o interesse público deve ser preponderante ao interesse individual.
Entretanto, é a partir da noção de justiça que Aristóteles examina a propriedade
privada. Refere ele que a noção de justiça idealizada para o Estado vai depender da
ponderação dos interesses públicos e privados, ou seja, “[...] a palavra justiça refere-se ao
mesmo tempo ao interesse geral da cidade e ao interesse particular dos cidadãos”.
31
O
preceito de justiça determina a concepção de propriedade dada por Aristóteles que, apesar
de ser uma propriedade privada, deve ser utilizada como se comum a todos fosse.
A propriedade compreende as feições do individual e do comum. A harmonização
dessas feições é essencial à vida privada e à vida pública. Aristóteles não busca a
comunidade dos bens, tanto é que entende a propriedade como condição primordial ao
cidadão. O justo está na noção de meio-termo. Na verdade, para ele, são as qualidades do
cidadão, tais como a amizade, que farão com que os bens dos amigos sejam comuns quanto
ao uso, sem que haja a necessidade de privação de qualquer meio de subsistência por parte
do cidadão proprietário.
ponderava Aristóteles que “há uma diferença indizível, em termos de prazer,
quando uma pessoa sente que um bem é exclusivamente seu, pois o instinto generalizado
29
ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 15.
30
Ibidem, p. 15.
31
Ibidem, p. 68.
26
de amor próprio certamente não é uma vaidade, e sim um sentimento natural [...]”, e
continua essa explanação evidenciando que “[...] fazer favores e prestar assistência a
amigos ou hóspedes ou companheiros é um grande prazer, e isto é possível quando se
dispõe de bens próprios”.
32
A crítica que ele faz à apropriação coletiva dos bens, baseia-se no entendimento de
que os pertences coletivos despertam pouco interesse e cuidado. Para ele, os homens têm
mais zelo com aquilo que lhes pertence individualmente. Nas palavras de Aristóteles: “[...]
nada inspira menos interesse que uma coisa cuja posse é comum a um grande número de
pessoas. Damos uma importância muito grande ao que propriamente nos pertence,
enquanto que ligamos às propriedades comuns na proporção do nosso interesse
pessoal”.
33
Dessa forma, conclui-se que, para Aristóteles, a propriedade deve ter características
de propriedade privada e de propriedade comum, ou seja, a propriedade deve ir além da
satisfação dos interesses do proprietário, deve ter um uso de interesse comum. Em função
disso, revela-se a importância do meio-termo entre privado e público.
Devido ao caráter teológico da doutrina de Santo Agostinho e de Santo Tomás de
Aquino, em um primeiro momento, parece inconcebível qualquer referência à função
social da propriedade. Entretanto, embora sem tratamento expresso do tema, alguns
fundamentos acerca da função social podem ser apontados.
Em Santo Agostinho, a propriedade privada pode ser interpretada analisando-se o
entendimento referente aos bens como concepção da obra divina.
34
A propriedade
particular não é objeto da criação divina, existe apenas a título de providência aos seres
humanos, com o fim de atendimento das necessidades sociais. Para ele, “[...] os bens
oriundos da criação divina não se colocam como sujeitos a uma relação de domínio
32
Ibidem, p. 42.
33
Ibidem, p. 42.
34
Santo Agostinho elabora o entendimento de que as “coisas” se fazem presentes por obra divina no livro:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
27
privada, individualizada, submetida a um critério personalista. Assim, teria Deus criado o
céu e a terra, sem contudo transferi-los a uma relação de domínio individual [...]”.
35
No entendimento de Rogério Moreira Orrutea, é basicamente na “ausência de
exclusividade do interesse individual” quanto aos objetos, que se encontra a contribuição
de Santo Agostinho em relação à função social da propriedade. Há, por parte de Agostinho,
a preocupação com a característica de produção da terra, que somente secompleta em
sua finalidade quando corresponder a uma função produtiva. Para ele, a função social da
terra é dar frutos, o que deixará de existir no momento em que inexistir produção.
36
De outro lado, em Santo Tomás de Aquino, há referência mais direta sobre a
propriedade como direito.
37
Influenciado pelo pensamento de Santo Agostinho, ao tratar da
propriedade, vai buscar confrontar o interesse privado e o interesse público. Santo Tomás
de Aquino reconhece ao homem um direito natural de posse dos bens materiais, uma vez
que sua condição como homem é uma condição natural. Os bens disponíveis pertencem a
todos, sendo apenas provisoriamente destinados ao domínio individual. que se ressaltar
na doutrina tomista o forte apelo à solidariedade e ao compartilhamento das riquezas. Os
proprietários devem temer a Deus e utilizar suas áreas em proveito de toda a sociedade.
38
A admissão do direito de propriedade privada está, então, condicionada ao interesse
individual e ao interesse social. “Destarte, o direito de propriedade é algo resultante e posto
por uma vontade comunitária, geral, donde se extrai o interesse público na conformação do
instituto [...]”.
39
É justamente na presença do interesse público que se interpreta a
manifestação do princípio da função social da propriedade. Em outros termos, o
pensamento de São Tomás de Aquino deixa transparecer a preocupação com a utilização
dos bens, buscando a realização do bem comum e do interesse público. Frente a essas
considerações, abre-se espaço para o reconhecimento da função social da propriedade.
35
ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno.
Londrina: UEL, 1998, p. 138.
36
Ibidem, p.140.
37
São Tomás de Aquino aborda o uso e o caráter privatista das coisas exteriores na obra: AQUINO, Tomas
de. Suma teológica. Porto Alegre: Sulina, 1980.
38
BERTAN, José Neure. Propriedade privada & função social. Curitiba: Juruá, 2005, p. 26.
39
ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno.
Londrina: UEL, 1998, p.142.
28
O princípio da função social apenas vem a lume com o envolvimento da Igreja nas
discussões acerca da propriedade, através das Encíclicas Papais. O marco do envolvimento
da Igreja se deu com o papa Xisto IV (Francesco Della Rovere), em 1476, quando da
edição da bula In ducit nos. Com essa bula, pretendeu-se cobrar dos proprietários de terras
o compromisso com a produção, ou seja, a propriedade para ser legítima deveria ser
produtiva e não ociosa. Medidas semelhantes foram tomadas pelo papa Clemente VII
(Giulio de Médici) entre os anos de 1523 a 1534, durante o exercício de seu papado.
Com o papa Leão XIII (Gioacchino Pecci) e a edição da Encíclica Rerum Novarum,
em 1891, referência expressa ao uso racional da propriedade privada. Nessa Encíclica,
destaca-se a manutenção da propriedade privada, tentando eximi-la da perversidade do
capitalismo liberal. É praticamente uma crítica ao cenário vigente do operariado e uma
tentativa de união de todos na realização de uma ordem justa. Para isso, admite-se a
propriedade privada exigindo o seu exercício em conformidade com os princípios cristãos.
O direito de propriedade privada é reconhecido como um direito natural, condicionado ao
atendimento do interesse público no suprimento das necessidades sociais.
Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto de que
Deus concedeu a terra a todo o gênero humano para a gozar, porque Deus não a
concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal
não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou
uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das
propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que
dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade
comum de todos, atendendo a que não ninguém entre os mortais que não se
alimente do produto dos campos [...]. De tudo isto resulta, mais uma vez, que a
propriedade particular é plenamente conforme a natureza.
40
Quarenta anos após, especificamente em 1931, com o papa Pio XI (Achille Ratti), é
publicada a Encíclica Quadragesimo Anno, com o objetivo de comemorar o 40°
aniversário da Rerum Novarum. Além de reiterar as idéias postas quarenta anos atrás,
avança no trato com a função social da propriedade ao evidenciar a distinção entre
propriedade privada e o uso que se faz dela.
40
VATICANO. Carta Encíclica: Rerum Novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em: 18
mai. 2007.
29
[...] o direito de propriedade é distinto do seu uso. Com efeito, a chamada
justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não
invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio; que porém os
proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da
justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento não pode urgir-se por vias
jurídicas. Pelo quê sem razão afirmam alguns, que o domínio e o seu honesto
uso são uma e a mesma coisa; e muito mais ainda é alheio à verdade dizer, que
se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele
.
41
Por sua vez, com João XXIII (Angelo Giuseppe Roncalli), em 1961, foi elaborada a
Encíclica Mater et Magistra, que trata da evolução da questão social à luz da doutrina
cristã. Essa Encíclica destaca o princípio da função social, questionando a legitimidade da
propriedade como direito natural, quando ela o atende o princípio da função social. A
propriedade deve satisfazer as necessidades materiais dos homens, pois, agora, passa a
estar vinculada a uma verificação de ordem social e coletiva. O exercício do direito de
propriedade deve levar em conta a utilidade para todos.
42
Por fim, é com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes
43
de 1965, que a Doutrina
Social da Igreja aponta para a necessidade de conscientização do homem em relação à sua
natureza social. Somente consciente de seu compromisso social, o homem se
comprometido com o que o rodeia e passa a reconhecer a importância da função social da
propriedade para o bem comum.
Thomas Hobbes, na obra Leviatã ou Matéria, Forma ou Poder de um Estado
Eclesiástico e Civil, busca fazer distinção entre o estado de natureza e o estado civil. Para
ele, no estado de natureza, os homens vivem em liberdade absoluta, sem leis e em
constante luta, ao passo que, no estado civil, através de um pacto social, os homens
renunciam a liberdade natural em nome de um poder soberano, com vistas à obtenção de
segurança e paz. Naturalmente, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder
comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquelas condições a
que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”.
44
41
VATICANO. Carta Encíclica: Quadragesimo Anno. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em:
18 mai. 2007.
42
VATICANO. Carta Encíclica: Mater et Magistra. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em:
18 mai. 2007.
43
VATICANO. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. Disponível em:
<http://www.vatican.va>. Acesso em: 18 mai. 2007.
44
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 75.
30
Hobbes reconhece tanto o Estado quanto a anarquia como dois males. O menor
deles é o Estado, pois necessário. No seu entender, a passagem do estado de liberdade para
o estado de servidão é preço pago pela segurança. A solução posta por Hobbes para o
estado natural (anarquia) leva a um estado absoluto.
45
É através do contrato social que se dá a renúncia de todos os direitos naturais e a
transferência de poder em favor de um único homem ou assembléia. O que move os
homens para o estado civil é o instinto de autoconservação, de garantia de segurança e de
paz. Dessa forma, estando o homem em sua condição natural, na qual todos têm direito a
todas as coisas, é impossível existir propriedade. Para Hobbes, “outra conseqüência da
mesma condição é que não propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o
teu; pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for
capaz de conservá-lo”.
46
Nesse sentido, aponta Hobbes que a propriedade não é um direito natural, mas um
benefício concedido pelo poder soberano por meio da instituição do Estado e das leis. A
propriedade, de fato, é um efeito do Estado através de um ato do soberano. Com o contrato
social e o estabelecimento de um estado civil, fica evidente a forte relação entre
propriedade e justiça, pois a instituição do poder soberano justifica-se e tem como
condição de existência o entendimento da justiça como “a vontade constante de dar a cada
um o que é seu”.
47
Assim, para Hobbes:
Onde não o seu, isto é, não propriedade, não pode haver injustiça. E onde
não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não Estado, não
propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde
não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste
no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a
instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é
também só aí que começa a haver propriedade.
48
Cabe ressaltar que Hobbes destaca a existência de limitações à propriedade, por
parte do poder soberano, em função da manutenção da paz social. Para ele, a lei civil tem a
45
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 45.
46
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 77.
47
Ibidem, p. 86.
48
Ibidem, p. 86.
31
incumbência de limitar a liberdade dada pela lei da natureza.
49
Então, no estado civil, só
a liberdade que a lei permite, nos limites da obrigação civil. Nessa perspectiva, o direito de
propriedade, que é um direito excludente para os outros homens que não o proprietário,
não exclui o direito de o Estado limitá-la. De fato, uma propriedade absoluta e ilimitada
prejudica a manutenção do Estado e da ordem social.
A verdadeira essência da propriedade em Hobbes consiste no fato de ela ser um
direito criado, fruto do Estado e não decorrência de um direito natural. A propriedade é
prerrogativa dada ao poder soberano através das leis civis, que também tem a finalidade de
limitar o direito de propriedade em razão da necessidade de manutenção do Estado e em
função do bem comum. Dessa forma, a liberdade civil que assiste ao detentor da
propriedade privada é uma liberdade condicionada às obrigações da vida em sociedade.
John Locke foi um dos principais pensadores dos séculos XVII e XVIII. Suas idéias
deram origem ao Iluminismo e embasaram teoricamente o Liberalismo. Sua teoria não é
propriamente oposta à teoria desenvolvida pelo pensamento cristão, entretanto, sobre seus
escritos recaíram acusações de ateísmo e materialismo. Incompreensões à parte, é em
Locke que se encontra o principal embasamento da teoria individualista da propriedade.
O ponto de partida de Locke é a afirmação do estado natural como o estado
originário dos homens, que não conheciam outras regras a não ser as advindas das leis
naturais. O estado de natureza, embora seja um estado ideal para os seres racionais, não é
mais suficiente no momento em que os homens não agem sempre racionalmente. No
estado de natureza, todos os indivíduos se guiam pela liberdade absoluta. Por não haver
nenhum poder que lhes seja superior, acabam, por vezes, retribuindo ofensas de forma
desproporcionada. Assim, o estado de natureza, que deveria ser um estado de paz,
transforma-se em um estado de guerra. É justamente para se livrar do estado de guerra e de
incertezas que os homens constituem o estado civil.
50
Para Locke, frente às opções de liberdade sem segurança ou de segurança sem
liberdade, a alternativa é encontrar uma forma de conciliar a liberdade do estado de
49
Ibidem, p. 174.
50
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 37.
32
natureza com a segurança proporcionada pelo estado civil. Essa alternativa buscada por ele
leva à ideologia do estado liberal.
Em sua obra Segundo tratado sobre o governo, sustenta a origem do estado civil no
desejo de os homens conservarem os direitos naturais, principalmente à vida e à
propriedade. Para constituírem o estado civil, os homens não renunciam os direitos
naturais, como Hobbes pensava, ao contrário, têm seus direitos naturais assegurados pelas
leis. O que ocorre é uma espécie de integração que permite a instituição do Estado sem a
perda dos benefícios do estado natural. Dessa forma, a única renúncia feita pelos homens é
a do direito de fazer justiça por si mesmos. É com a passagem do estado natural para o
estado civil, através do contrato social, que os homens vêem preservado o seu direito
natural à propriedade.
51
Há, portanto, uma clara distinção entre Locke e Hobbes em relação ao direito de
propriedade. Hobbes entende a propriedade como um direito criado em decorrência do
surgimento do Estado, ao passo que Locke o apresenta como um direito inerente à natureza
do homem. Assim, para Locke, a propriedade é um direito natural que precede a
constituição do estado civil. Esse entendimento fica evidente ao afirmar que:
A fim de evitar esses inconvenientes que perturbam as propriedades dos homens
no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que disponham da força
reunida da sociedade inteira para garantir-lhes e assegurar-lhes a propriedade, e,
para que gozem de leis fixas que a limite, por meio das quais todos saibam o
que lhes pertence. É para esse fim que os homens transferem todo poder natural
que possuem à sociedade para a qual entram, e a comunidade põe o poder
legislativo nas mãos que julga mais convenientes para esse encargo, a fim de
que sejam governados por leis declaradas, senão ainda ficarão na mesma
incerteza a paz, a propriedade e a tranqüilidade, como se encontravam no estado
de natureza.
52
Em relação à forma de aquisição da propriedade no estado natural, dispõe Locke
que o homem que tomar uma porção de terra para si e trabalhar sobre ela, adquire a
propriedade, pois é justamente o trabalho que a legitima. “A extensão de terra que um
homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua propriedade.
51
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do
entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978,
p. 34.
52
Ibidem, p. 88.
33
Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum”.
53
Entretanto, mesmo a propriedade
sendo um direito natural, ela pode sofrer algumas limitações, uma vez que, no estado civil,
não é aceita a apropriação de terras além dos limites necessários à subsistência. Apropriar-
se de recursos, além do necessário, é desperdício, que caracteriza a intervenção de
terceiros.
54
Cabe destacar que a propriedade privada, na teoria de Locke, é um dos fins maiores
da sociedade, pois os indivíduos uniram-se justamente para assegurá-la. Contra a
propriedade legítima (constituída em função do trabalho na terra, que não ultrapassa os
limites do que se tem condição de cultivar), não se pode opor qualquer intervenção do
governo ou dos indivíduos, pois é absoluta, exclusiva e ilimitada. A intervenção na
propriedade privada contraria o fim para o qual o Estado foi instituído.
55
Assim, conclui-se que Locke, apesar de entender a propriedade como um direito
natural, absoluto, exclusivo e ilimitado, compreende que essas características apenas se
estendem às propriedades que estão legitimas pelo trabalho. Inegavelmente, deixa
transparecer que o cumprimento da função social se dá por meio da utilização dessa
propriedade através do trabalho. Por isso, quando o homem se apodera de um montante de
terras que não tem condições de explorar com seu trabalho, fica evidente a possibilidade de
intervenção.
De outro modo, a teoria desenvolvida por Jean-Jacques Rousseau é composta de
entendimentos derivados do jusnaturalismo. Contudo, a solução que propõe ao problema
da Constituição estatal é diferenciada dos caminhos antes traçados (de liberdade sem paz
ou paz sem liberdade). Para ele, entre o estado natural e o estado civil, deve-se optar pelo
estado civil, visto que entre eles não há meio-termo. Em virtude desse entendimento,
desenvolve a teoria de Hobbes em um sentido democrático, fundamentando sua teoria no
problema da compatibilidade entre Estado e liberdade.
53
Ibidem, p. 47.
54
Ibidem, p. 47.
55
CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks,
2003, p. 41.
34
Com a pretensão de verificar o entendimento de Rousseau acerca do estado social e
da propriedade, são importantes duas obras: Do contrato social e Discurso sobre a origem
e fundamentos da desigualdade entre os homens.
Na obra Do contrato social, Rousseau procura elaborar uma fórmula que
compatibilize liberdade e Estado. Para isso, examina como se a passagem do estado
natural para o estado civil. A solução encontrada por ele está na fórmula do contrato. Para
avaliar essa passagem, liga-se, em partes, ao entendimento de Hobbes. Dessa forma,
entende que o contrato social é um ato coletivo de renúncia aos direitos naturais, pôr cada
um em favor de todos, e não em favor de um terceiro. Com a renúncia, abandona-se a
liberdade natural para se obter uma liberdade superior que é a liberdade civil (liberdade no
estado).
56
Para Rousseau, é preciso “encontrar uma forma de associação que defenda e
proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto
antes”.
57
O estado civil, constituído através do contrato social, cujo núcleo fundamental é o
permanecer tão livre quanto antes, é elogiado por Rousseau. Com o contrato social, a
mudança mais importante foi a substituição do instinto humano pela noção de justiça.
Corroborando com o exposto, Rousseau frisa: “o que o homem perde pelo contrato social é
a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que
com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui”.
58
Na teoria de Rousseau, com o contrato social, a garantia da posse natural do
primeiro ocupante que, com a instituição do Estado e das leis, torna-se proprietário. Nesse
sentido, compartilhando do entendimento de Hobbes, a propriedade como direito somente
tem origem a partir da instituição do Estado. Entretanto, assim como em Locke, também
em Rousseau, é o trabalho realizado pelo homem, no cultivo da terra, que vai caracterizar a
legitimidade do direito de propriedade.
56
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 46-
47.
57
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 1. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1973, p. 38.
58
Ibidem, p. 42.
35
Cabe ressaltar que o direito de propriedade, como um direito privado, estará sempre
subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos os bens, pois a propriedade
como direito está vinculada ao atendimento do bem comum. Com base nisso, pode-se
afirmar que também em Rousseau uma forma embrionária de funcionalização da
propriedade, subordinada que está aos direitos da coletividade.
É na obra Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens
que Rousseau faz críticas à propriedade privada. Para ele, a origem da desigualdade está na
propriedade. Sua intenção não era a de contestar a propriedade, mas salientar as
desigualdades que dela resultavam. A sua crítica fica evidente com a afirmação de que “o
verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acredita-
lo”.
59
É justamente com a instituição da propriedade como direito, através das leis, que há a
destruição da igualdade e da liberdade do estado de natureza. O direito de propriedade é a
usurpação de um direito irrevogável, que subordina toda a coletividade e causa inúmeras
desigualdades.
Por outro lado, Thomas More, filósofo humanista, acreditava que a solução dos
problemas sociais estava intimamente ligada à adequada utilização da razão e à sujeição
dos homens à natureza. Seu principal livro, A Utopia, é uma obra política que, além de
constituir uma crítica à estrutura social e política da Inglaterra, compõe uma importante
apreciação da propriedade enquanto direito privado.
Para elaborar A Utopia, Thomas More inspirou-se em A República de Platão. Na
República, Platão fala de uma cidade ideal. Na Utopia, More fala de um Estado ideal, de
organização perfeita, no qual prevalecem a igualdade e a justiça. Nessa sua obra, a Utopia
é uma ilha que abarca a sociedade ideal. É através da ficção da ilha da Utopia, fazendo um
paralelo entre a Inglaterra e a ilha, que o filósofo aponta as imperfeições do Estado inglês.
De tal forma, refere ele que a Inglaterra é marcada por leis injustas, pela ganância e por
todos os tipos de explorações advindas da propriedade privada, ao passo que, na ilha de
Utopia, as instituições são justas, as pessoas vivem em harmonia e em comunidade de
bens.
59
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Lourdes Santos Machado. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 265.
36
Para More, uma sociedade justa não precisa possuir muitas leis, mas necessita de
riquezas repartidas. Assim, uma de suas principais críticas é à propriedade privada e aos
males que dela advêm. More é um dos primeiros a contestar a propriedade privada e a
defender a comunidade dos bens. É com base nesse seu pensamento, que, anos depois,
Pierre-Joseph Proudhon vai chamar a propriedade de roubo.
Aponta More que a propriedade privada é a causadora dos males do Estado, pois é
contrária à justiça. A sua crítica à propriedade está pautada nos valores da igualdade e da
justiça, que são ameaçados pela concepção privatista da propriedade. Nesse sentido,
entende que
a igualdade é, creio, impossível num Estado em que a posse é particular e
absoluta; porque cada um se apóia em diversos títulos e direitos para atrair para
si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na
posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas
indigência e miséria.
60
Buscando a solução para restabelecer a igualdade e a justiça Thomas More, aponta
a necessidade de eliminação da propriedade privada e a adoção da comunidade dos bens.
Assim, em seu entendimento, “[...] o único meio de distribuir os bens com igualdade e
justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o
direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais
estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desespero”.
61
More não acredita
que medidas limitadoras ao direito de propriedade possam solucionar os problemas por ela
causados, pois, para ele, não passam de medidas paliativas.
62
Portanto, pode-se dizer que, na teoria de More, recrimina-se o individualismo e
incentiva-se o uso comum dos bens. Para ele, onde não a propriedade privada, um
Estado ideal, de igualdade e de justiça para todos os homens.
Afirma-se que o primeiro a mencionar a expressão “função social”, ligando-a à
propriedade, foi o criador do positivismo, Augusto Comte, em sua obra Opúsculos de
60
MORE, Thomas. A utopia. Tradução de Jeferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. 1. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 52.
61
Ibidem, p. 53.
62
Ibidem, p. 53.
37
filosofia social.
63
Contudo, foi somente com Leon Duguit, grande publicista francês, que se
desenvolveu a teoria da função social da propriedade, de modo a contribuir
significativamente para a incorporação da função social como princípio em diversos
ordenamentos jurídicos.
As indagações trazidas por Duguit evidenciam a justificação da função social em
uma construção lógica, de premissas extraídas da observação do papel social a ser exercido
pelos homens. Com uma análise sutil, no âmbito da doutrina do direito social, vem a lume
com Duguit, uma nova faceta da propriedade particular, entremeada do princípio da função
social.
Duguit procura se desfazer do caráter absoluto do direito de propriedade, admitido
em virtude da adoção de institutos do Direito Romano e do Código de Napoleão. Para ele,
“[...] a propriedade cessa de ser um direito subjetivo do indivíduo e tende a tornar-se uma
função social do detentor de capitais móveis e imóveis”.
64
A propriedade deixa de ser o
direito subjetivo de caráter individual e passa a ser uma função social do detentor do bem.
Em uma análise superficial, quer parecer que Duguit tem posicionamento contrário à
propriedade como um direito particular. Essa conclusão se baseia em uma análise mal
elaborada de seu pensamento, pois não parece ter pretendido Duguit incitar a abolição da
propriedade privada da ordem jurídica. Muito ao contrário, apenas trabalha ele sobre a
modificação da noção jurídica da propriedade privada em observância à função social do
detentor do bem. Nessa perspectiva, deve haver uma mudança no comportamento do
proprietário ao exercer seu direito, que deve se basear em uma finalidade social e não
apenas em uma finalidade individual. É justamente a finalidade social que justifica a
propriedade privada e a legitima perante o interesse público, que deverá então protegê-la e
garanti-la. Assim, a função social em Duguit, é, basicamente, resultado da condição do
homem em sociedade.
63
Embora Augusto Comte não tenha desenvolvido trabalho específico sobre a função social da propriedade
reconheceu a necessidade do exercício da propriedade particular em combinação com interesses de ordem
social. Para ele, o proprietário deve exercer seu direito de propriedade sem se descuidar do bem comum. Na
teorização de Comte, nenhuma noção de direito pode ser fundada na individualidade, pois o positivismo não
admite deveres que não seja de todos para com todos. Em seu entendimento, o exercício da propriedade
particular está envolto de um interesse geral, que se traduz em função social. COMTE, Augusto. Opúsculos
de filosofia social. Tradução de Ivan Lins e João Francisco de Souza. São Paulo: Editora Globo, 1972.
64
Na expressão literal: “[...] la propriété cesse d’ être le droit subjectif de l’ individu et tend à devenir la
fonction sociale du detenteur de capitaux mobiliers et immobiliers”. DUGUIT, Leon. Manuel de droit
constitutionnel. 2. ed. Paris: Fontemoing, 1911, p. 295.
38
Para uma correta análise da teoria da função social da propriedade em Duguit, é
necessário iniciar pelo questionamento por ele feito ao fundamento do direito, diante dos
chamados direitos individuais. De início, questionou ele se o fundamento e a existência de
um direito independe da instituição do Estado. Pois bem, para Duguit, o direito não
depende do Estado ou de alguma autoridade política para existir, pois é anterior ao Estado.
Assim, em sua concepção, as regras de direito surgiram em decorrência da necessidade da
sociedade, de tal forma que “não é impossível demonstrar que fora de uma criação por
parte do Estado, o direito tem um fundamento sólido, que ele é anterior e superior ao
Estado e que, como tal, ele se impõe ao próprio Estado”.
65
Por esse entendimento, buscando comprovar seu entendimento acerca do direito e
da função social da propriedade, utilizou-se da classificação de dois grupos de doutrinas: as
doutrinas do direito individual e as doutrinas do direito social. É com base no contraponto
dessas duas doutrinas, que Duguit vai chegar à justificação da função social em sua teoria.
As doutrinas individualistas fundamentam-se no entendimento de que o homem é
portador de direitos subjetivos (direitos individuais naturais). O homem, por ter nascido
livre, tem o direito de se desenvolver livremente. A todos os homens cabe então o dever de
respeitar o desenvolvimento de seus semelhantes. Para a doutrina do direito individual, é
justamente essa obrigação que sustenta e que fundamento ao direito. Duguit, por seu
turno, critica os postulados dessa doutrina por compreender que a afirmação do homem
natural, livre e detentor de direitos constituídos em função dessa liberdade, deve ser
considerada apenas uma abstração não condizente com a realidade. Para ele, esse homem
que a doutrina se refere, é membro da coletividade, pois vive em sociedade. E, em sendo
membro da sociedade, está sujeito às obrigações necessárias para a manutenção da vida em
sociedade.
66
De outro lado, as doutrinas socialistas partem do direito objetivo para chegar ao
direito subjetivo, da norma social para chegar ao direito individual, da mesma forma que
partem da sociedade para chegar ao indivíduo. A doutrina do direito social tem por
pressuposto que o homem é um ser social por natureza, ao qual se impõem regras e
65
Ibidem, p. 2.
66
DUGUIT apud ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito
constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p.156.
39
obrigações sociais com os outros homens. Baseado nas doutrinas socialistas, Duguit vai
desenvolver sua teoria, relacionando-a a questões como a interdependência social e a
solidariedade como fundamentos do direito. Para ele, se o homem vive em sociedade, é
lógico concluir que o direito se fundamenta na solidariedade social, sem a qual, não
haveria sociedade. Entretanto, a vivência em sociedade não retira do homem a consciência
de sua individualidade. Dessa forma, estão postos por Duguit, através dessas colocações,
os princípios elementares de sustentação da função social da propriedade, que deve
atender, ao mesmo tempo, ao interesse individual e ao interesse social.
67
Duguit assinala ainda que a lei positiva, para ser legítima, deve ser a expressão do
princípio da solidariedade social. Ao homem se impõe a regra de que não deve fazer nada
que atente contra essa solidariedade. Complementando o que já foi dito, salienta:
L’ homme vivant en société a des droits; mais ces droits ne sont pas des
prérogatives qui lui apparttiennent en sa qualité d’ homme; ce sont des pouvoirs
qui li appartiennent parce que, étant homme social, il a um devoir à remplir et
qu’ il doit avoir le pouvoir de remplir ce devoir. On voit qu’ on est loin de la
conception du droit individuel. Ce ne sont pas les droits naturels, individuels,
imprescritibles de l’ homme, qui sont le fondement de la règle de droit s’
imposant aux hommes vivant en société.
68
Para Duguit, o homem já nasce com um dever social a ser cumprido. O exercício
desse dever lhe é instrumentalizado através de direitos que lhe são conferidos pela ordem
social. Nesse sentido, para ele, uma transição do paradigma dos direitos subjetivos, de
caráter individualista, para um paradigma mais condizente com a realidade, uma vez que
estão baseados nas funções que cada membro da sociedade deve desempenhar. Frente a
esse entendimento, a propriedade implica para o detentor, a obrigação de empregá-la na
produção de riqueza social.
No entendimento de Fernanda de Salles Cavedon, Duguit pretendeu expressar que
nem o homem, nem a coletividade têm direitos. O que os indivíduos têm em sociedade é
uma determinada função a cumprir, uma certa atividade a executar. É esse o fundamento
67
Ibidem, p. 157.
68
Pode se traduzir por: “O homem vivendo em sociedade tem direitos, mas esses direitos não são
prerrogativas que lhe pertencem em sua qualidade de homem. São poderes que lhe pertencem, porque sendo
homem social, ele tem um dever a cumprir e deve ter o poder para cumprir esse dever. Vê-se que se está
longe da concepção do direito individual. Não são os direitos naturais, individuais, imprescritíveis do homem
que são o fundamento da regra de direito que se impõe aos homens vivendo em sociedade”. DUGUIT, Leon.
Manuel de droit constitutionnel. 2. ed. Paris: Fontemoing, 1911, p. 12.
40
da regra de direito que a todos se impõe. Em conseqüência disso, não existem direitos
individuais e coletivos, o que existe é uma função social a cumprir.
69
La propiedad no es un derecho; es una función social. El propietario, es decir, el
poseedor de una riqueza tiene, por el hecho de poseer esta riqueza, una función
social que cumplir; mientras cumple esta misión sus actos de propietario están
protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no cultiva su tierra
o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es legítima para
obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en asegurar el
empleo de las riquezas que posee conforme a su destino.
70
Dessa forma, observa-se que a propriedade em Duguit se apresenta como uma
instituição jurídica, constituída em função de uma necessidade econômica, que abarca
interesses individuais e coletivos. A propriedade se traduz na idéia de um poder-dever por
parte do proprietário. Por sua vez, a esse poder-dever se estende uma dupla função: a
satisfação das necessidades particulares e a satisfação das necessidades da coletividade. É
com base nesse entendimento que Duguit afirma que o proprietário não tem um direito,
mas tem um poder-dever e que a propriedade não é um direito subjetivo, mas uma situação
jurídica objetiva, uma função social.
Após breve digressão à contribuição doutrinária na caracterização da propriedade e
da função social, como forma de elucidar o delineamento do direito de propriedade ao
longo do tempo, é mister abordar a influência da evolução histórica dos direitos
fundamentais no direito de propriedade, a fim de estabelecer o momento histórico e os
fatores que contribuíram para a consagração da função social da propriedade como
princípio jurídico.
1.3 A influência da evolução histórica dos direitos fundamentais no direito de propriedade
Para que se possam compreender o direito de propriedade e a função social como
direitos fundamentais e princípios constitucionais, tão importante quanto à evolução
histórica da noção de propriedade e à contribuição doutrinária ao tema, é verificar as
69
DUGUIT apud CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis:
Visualbooks, 2003, p. 49.
70
Ibidem, p. 50.
41
conseqüências da constitucionalização dos mesmos. Para atingir esse propósito, busca-se
demonstrar, através da evolução histórica dos direitos fundamentais e de sua
constitucionalização no ordenamento jurídico brasileiro, a importância das dimensões de
direitos na reconfiguração das feições do direito de propriedade.
Em um primeiro momento, é necessário fazer a distinção entre “direitos humanos”
e “direitos fundamentais”. Conforme explicita Ingo Wolfgang Sarlet, embora exista uma
confusão entre os dois termos, os direitos fundamentais sempre serão direitos humanos,
uma vez que sua titularidade será sempre vinculada ao ser humano. A distinção reside no
fato “de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado
Estado” ao passo que o termo “direitos humanos” está relacionado “com os documentos de
direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser
humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e
tempos”.
71
De tal forma, fica evidente que os direitos humanos tratam de questões relativas à
universalização dos direitos, ao passo que os direitos fundamentais
72
envolvem a
positivação dos direitos humanos na esfera dos Estados. A abordagem do direito de
propriedade e do princípio da função social da propriedade está inserida no contexto dos
direitos fundamentais
73
. A par disso, faz-se necessário salientar que o se pretende
abordar a contribuição jusnaturalista e juspositivista em relação ao surgimento dos direitos
fundamentais, nem o tema da hierarquização e da colisão dos direitos fundamentais, por
71
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 33.
72
Segundo a concepção de Carl Schmitt, citado por Paulo Bonavides, dois critérios formais de
caracterização dos direitos fundamentais. “Pelo primeiro, podem ser designados por direitos fundamentais
todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional. Pelo segundo, tão
formal quanto o primeiro, os direitos fundamentais são aqueles direitos que receberam da Constituição um
grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabaenderliche) ou pelo menos de
mudança dificultada (erschwert), a saber, direitos unicamente alteráveis mediante lei de emenda à
Constituição”. SCHMITT apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 1999, p. 515.
73
Na definição de Dalmo de Abreu Dallari, os direitos fundamentais “são aqueles indispensáveis para que o
ser humano possa atender a suas necessidades básicas, materiais, afetivas e espirituais, vivendo com
dignidade e podendo realizar plenamente sua personalidade”. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e
constituinte. 2. ed. Saraiva: São Paulo, 1984, p. 28.
42
não serem objeto direto desse estudo.
74
O que se pretende, de forma breve, é destacar as
dimensões de direitos fundamentais a fim de evidenciar os fatores desencadeantes do
surgimento da função social como princípio constitucional.
Os direitos fundamentais apresentaram-se com o surgimento do Estado
Constitucional
75
, no século XIX, como conseqüência da evolução da sociedade. A
historicidade demonstra que os direitos fundamentais não são resultado de um
acontecimento histórico determinado, mas de todo um processo. Em decorrência disso,
perante a doutrina tradicional, os direitos fundamentais podem ser estudados e
classificados, dividindo-os em dimensões como fazem Robert Alexy e Willis Santiago
Guerra Filho; em gerações conforme Norberto Bobbio e Paulo Bonavides, ou então
classificados conforme arrolados na Constituição Federal de 1988, como o faz José Afonso
da Silva, o que não implica uma diferenciação de valores entre os direitos fundamentais.
76
É importante destacar o entendimento de Norberto Bobbio, de que os direitos
fundamentais surgem e se modificam conforme as condições históricas, ou seja, são
fenômenos sociais, por isso não se pode lhes atribuir fundamento absoluto, pois são
historicamente relativos. A prova de que os direitos fundamentais surgiram em decorrência
de fenômenos sociais históricos e sucessivos fica evidente no momento em que se observa
que somente, em uma sociedade em constante transformação, podem surgir exigências de
novos direitos, antes inimagináveis.
77
Os direitos fundamentais de primeira dimensão foram produto do pensamento
liberal do século XVIII. Tiveram por fundamento a hipótese do estado de natureza, que foi,
74
Para pesquisa detalhada desses temas ver: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 3. ed.
Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2002. CANOTILHO, JoJoaquim Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. LOPES, Ana Maria
D’Ávila. Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo Fundo: UPF, 2001.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003.
75
Para Canotilho o Estado Constitucional é caracterizado como o Estado que é constituído ou organizado
segundo uma constituição. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002, p. 81-83.
76
Em relação à terminologia empregada, critica-se a expressão geração por implicar o entendimento de uma
sucessão cronológica, de alternância de uma geração para outra, preferindo-se o termo dimensão, que o
reconhecimento de novos direitos fundamentais apresenta-se como um processo cumulativo e de
complementariedade. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003, p. 50. O mesmo entendimento consta em: GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 40.
77
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 18-19.
43
na verdade, a tentativa racional de uma ficção doutrinária, para justificar as novas
exigências da sociedade burguesa. Esses direitos decorreram da necessidade de defesa
contra os poderes do Estado, em busca dos direitos de liberdade. São direitos de cunho
individualista, pois pautam pela não-intervenção estatal na esfera privada. Em decorrência
disso, são considerados direitos de cunho “negativo”, devido à necessidade de abstenção
por parte do poder público.
78
A característica desses direitos é terem como titular o
indivíduo, refletindo a subjetividade como traço característico. Foram os primeiros direitos
fundamentais a serem positivados. Frente a isso, fica evidente uma clara separação entre
sociedade e Estado, valorizando-se o homem singular, o homem das liberdades abstratas.
79
Compreende os direitos individuais ou civis e políticos da primeira dimensão o direito de
propriedade privada.
Em contrapartida, os direitos fundamentais de segunda dimensão são cingidos pelo
princípio da igualdade, em um processo de socializar o Estado, criando consciência da
necessidade de proteção da sociedade e não apenas do indivíduo. Isso se deve,
historicamente, à superação da visão liberalista, em função do desenvolvimento industrial e
de novas relações intersubjetivas no século XIX, de caráter social e econômico. Surgiram,
em decorrência da constatação de que a liberdade, por si só, não dava garantia de gozo aos
direitos de primeira dimensão. Com isso, atribuiu-se comportamento ativo ao Estado na
busca de justiça social, passando esse a ter uma dimensão “positiva”, visto que
liberdade, mas por intermédio do Estado.
80
São os conhecidos direitos econômicos, sociais
e culturais, nos quais se insere a função social da propriedade como direito fundamental e
princípio da ordem econômica e financeira.
Os direitos fundamentais de terceira dimensão, também conhecidos como direitos
de solidariedade ou de fraternidade, têm como traço característico o desprendimento da
titularidade de direitos por parte do homem-indivíduo, passando a considerar e a proteger o
gênero humano, cujos direitos passam a ter titularidade coletiva ou difusa. O direito ao
meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado constitui um dos direitos de terceira
dimensão, resultado de novas reivindicações do ser humano e de grandes transformações
78
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 51-52.
79
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 517-518.
80
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 52-53.
44
no Estado Social.
81
Dessa maneira, com o advento do Estado Democrático de Direito, a
reformulação das idéias liberais e a construção do direito à solidariedade, que não depende
apenas de um Estado ativo, mas que depende igual e fundamentalmente da participação da
sociedade civil.
82
Assim, os direitos de primeira dimensão ganham novas feições quando do
surgimento de novos direitos fundamentais. Nesse caso, “[...] o direito individual de
propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos
fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social, e com o aparecimento
da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental”.
83
Dessa afirmação,
depreende-se que o direito de propriedade absoluta como era entendida, não pode mais
assim ser tratada em função do surgimento de novas dimensões de direitos. Deve-se, para
tanto, conjugar o direito de propriedade com as novas dimensões que lhes são atribuídas,
ou seja, a propriedade individualista e ilimitada passa a estar vinculada a uma função social
e incorpora valores ambientais que passam a integrar seu conteúdo.
Cabe salientar que parte da doutrina constitucional entende que, enquanto os
direitos de primeira dimensão possuem aplicabilidade imediata, os direitos de segunda e
terceira dimensões estão sujeitos a uma progressividade, traduzida em normas
programáticas.
84
Nesse sentido, a aplicação desses direitos fica condicionada ao
desenvolvimento de políticas que lhes viabilizem materialmente. Nas palavras de Ana
Maria D’Ávila Lopes, “do ponto de vista conceitual e histórico, tal distinção parece válida,
pois, se, para vigência concreta dos direitos individuais e políticos, apenas se requer a
abstenção do Estado” para que haja a concretização dos direitos sociais e dos direitos
81
Ibidem, p. 53-54.
82
José Alcebíades de Oliveira Junior destaca ainda, o surgimento de novos direitos, de quarta e quinta
geração. Para ele, são direitos de quarta geração “os direitos de manipulação genética, relacionados à
biotecnologia e bioengenharia, e que tratam de questões sobre a vida e a morte, e que requerem uma
discussão ética prévia”. Já os direitos de quinta geração apresentam-se “com a chamada realidade virtual, que
compreendem o grande desenvolvimento da cibernética na atualidade, implicando o rompimento de
fronteiras, estabelecendo conflitos entre países com realidades distintas, via internet”. OLIVEIRA JUNIOR,
José Alcebíades de. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p.86.
83
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. o Paulo: Celso
Bastos Editor, 1999, p. 40.
84
Para Ingo Wolfgang Sarlet, as normas programáticas são aquelas “que apresentam a característica comum
de uma (em maior ou menor grau) baixa densidade normativa, ou, se preferirmos, uma normatividade
insuficiente para alcançarem plena eficácia, porquanto se trata de normas que estabelecem programas,
finalidades e tarefas a serem implementados pelo Estado, ou que contêm determinadas imposições de maior
ou menor concretude dirigidas ao Legislador”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 280.
45
difusos “impõe-se ao Estado uma certa obrigação de fazer, consistente em criar e propiciar
as condições materiais de tais direitos”.
85
No entanto, em que pese essa diferenciação, quanto à classificação das normas
constitucionais, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), no art. 5°, §1°, estatui que as
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, de tal
forma, que basta estarem vigentes para que possam produzir efeitos. Entretanto, o fato de
alguns direitos fundamentais necessitarem de ato legislativo posterior, que lhes configure
exigibilidade, tem provocado controvérsias.
Em verdade, o argumento da função social da propriedade como norma
constitucional programática serve apenas para justificar a não-aplicação do princípio. É
possível defluir das disposições constitucionais referentes ao princípio, que o mesmo se faz
eficaz simplesmente por fazer parte do texto constitucional. Para Liana Portilho Mattos,
não é característica dos direitos fundamentais a necessidade de regulamentação. Em seu
entendimento, uma coisa é um princípio ter conteúdo determinado e preciso, outra, é o
texto constitucional conter princípios carecedores de preenchimento pelo intérprete. Para a
referida autora, esse é o caso do princípio da função social da propriedade. Mesmo
ocorrendo uma profunda identidade entre os conceitos jurídicos indeterminados e as
normas programáticas, a função social da propriedade não é uma norma programática.
Relegar a função social à norma programática é atribuir o mesmo perfil ao direito de
propriedade.
86
Cabe ainda destacar que o significado de “aplicação imediata”, a que se refere o art.
5°, §1° da CF/88, envolve os conceitos de eficácia (eficácia jurídica e eficácia social) e de
efetividade. Para José Afonso da Silva, a eficácia consiste na aptidão do ato jurídico para
produzir efeitos e irradiar suas conseqüências. Já a eficácia jurídica da norma assinala a sua
qualidade em produzir efeitos jurídicos ao regular as situações indicadas por ela. Nesse
caso, basta a possibilidade de produzir efeitos jurídicos, não sendo necessária a efetividade
dos efeitos para que ocorra a eficácia jurídica da norma, ou seja, diz respeito à
aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma. A eficácia jurídica é inerente a
85
LOPES, Ana Maria D’Ávila. Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo
Fundo: UPF, 2001, p. 70.
86
MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da
cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 100-101.
46
todas as normas constitucionais aplicáveis. No entanto, a eficácia social, diferentemente da
eficácia jurídica, aponta para uma efetiva conduta, de acordo com o que está previsto na
norma. Traduz-se no fato de a norma ser verdadeiramente aplicada e obedecida. Dessa
forma, a eficácia social somente será revelada, ou não, após a aplicação da norma.
87
No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso vislumbra na eficácia social os
mecanismos para a aplicação da norma, para sua efetividade. Para ele, efetividade e
eficácia social são tomadas por sinônimos. No trabalho ora proposto, quando se fala em
possibilidade de concretização da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da
Cidade, remete-se à noção de efetividade proposta por Barroso.
[...] a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho
concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos
fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto
possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.
88
Para Eros Roberto Grau, a norma que define direito ou garantia constitucional é
dotada de eficácia jurídica e tem aplicabilidade imediata, cabendo aos particulares o dever
de cumpri-la, e ao Estado o dever de torná-la exeqüível e impor seu cumprimento, razão
pela qual estacompelido a conferir-lhe efetividade. “Por essa razão é que tais normas
não têm mais caráter meramente programático, assumindo a configuração de preceitos
auto-executáveis [...]”.
89
Imbuído do mesmo entendimento, acrescenta Lênio Luiz Streck:
[...] se a doutrina constitucional trabalhara, durante as ordens constitucionais
anteriores, com uma classificação de normas constitucionais, onde as normas
programáticas ficavam relegadas a um plano secundário, parece gico que, na
presença de um novo texto constitucional, que buscou inspiração no
contemporâneo constitucionalismo europeu, seria necessário que fosse
elaborada uma nova teoria acerca da eficácia das normas. Recorde-se que essa
discussão acerca da (des)classificação das normas constitucionais já estava
superada desde há muito no direito contemporâneo [...].
90
Além do exposto, cumpre referir que o Estatuto da Cidade, ao positivar o princípio
da função social da propriedade, retirou-lhe a condição de princípio exclusivamente
87
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1982, p. 55-56.
88
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades
da constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 85.
89
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
278-279.
90
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p.29.
47
constitucional, transformando-o em norma jurídica ordinária, passível de plena
concretização.
Por fim, uma vez averiguada a importância das dimensões de direitos fundamentais
na reconfiguração das feições do direito de propriedade, parte-se para a investigação da
flexibilização do direito de propriedade no Brasil.
1.4 A flexibilização do direito de propriedade no Brasil: do individual ao socioambiental
O direito de propriedade tem passado por profundas alterações, visando a adequar-
se aos novos direitos tutelados pela ordem jurídica, dentre os quais, destacam-se os direitos
difusos de ordem ambiental. As transformações do direito de propriedade fazem-no um
direito renovado, por adquirir contornos socioambientais conforme dispõe a Constituição
Federal de 1988 e o Código Civil de 2002.
91
Com isso, a noção de função social
92
evoluiu
gradativamente até se incorporar ao próprio conceito de propriedade. Nesse contexto, com
o surgimento do Estatuto da Cidade, o rompimento definitivo do paradigma civilista da
91
Com base na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, por propriedade, entende-se a
relação entre um bem imóvel e aquele que o possui como proprietário, tendo direitos e obrigações referentes
ao bem, garantidos e exigíveis por meio de normas positivas. Assim sendo, é preciso considerar que, com
base no ordenamento jurídico, a propriedade tem dois sentidos. Conforme o Código Civil de 2002, no artigo
1.128, pode ser considerada a faculdade pertencente ao proprietário de usar, gozar e dispor do bem, com
presunção de plenitude e exclusividade. Considerando-se o disposto na Constituição Federal de 1988, no
artigo 5º, incisos XXII e XXIII e no artigo 170, incisos II e III, a propriedade constitui-se em um poder-
dever. Ao proprietário se estende o poder de usufruir seu bem no limite do dever para com a coletividade,
devendo estar atento ao cumprimento da função social. Considerando-se ainda o artigo 225 da CF/88 e lei
10.257/01 (Estatuto da Cidade), deve-se atentar ao uso ordenado e ecológico da propriedade, visando à
proteção e à manutenção de recursos naturais e artificiais nela existentes, que se traduz na necessidade de
observação da função ambiental da propriedade.
92
Conforme o entendimento de Antônio Herman Benjamin, função é “a atividade finalística dirigida à tutela
de interesse de outrem, caracterizando-se pela relevância global, homogeneidade de regime e manifestação
através de um dever-poder”. BENJAMIN, Antônio Herman. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de
propriedade na tutela da reserva legal e das áreas de preservação permanente. In: Anais do Congresso
Internacional de Direito Ambiental 5 anos da Eco 92. São Paulo: Imprensa Oficial, 1997, p. 28. Com base
nessa definição, a função social da propriedade indica o dever do proprietário com a satisfação de interesses
da sociedade, cujo exercício de poder é condicionado ao cumprimento de um dever. Nas palavras de François
Ost: “é notório que a relação com as coisas não se afasta nunca, neste contexto, da relação com os homens: o
uso acompanha-se de obrigações para com os outros membros da comunidade.” OST, François. A natureza à
margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 58. Importa ainda destacar
que, no ordenamento jurídico brasileiro, o conceito de função social da propriedade urbana tem sua matriz na
Constituição Federal de 1988 e seu conteúdo mínimo é dado pelo Estatuto da Cidade, devendo ser
complementado de acordo com as peculiaridades locais pelo Plano Diretor de cada município.
48
propriedade, vinculando-a ao cumprimento de uma função social e ambiental no interesse
da coletividade.
dois tipos de normas constitucionais que dispõem sobre propriedade e função
social: as normas do Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais e as normas do
Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira. Entre os Direitos e Garantias
Fundamentais do artigo 5°, encontra-se o direito de propriedade no inciso XXII, como um
direito subjetivo individual, e o princípio da função social no inciso XXIII, como um
direito subjetivo público. De outro modo, a propriedade privada e a função social da
propriedade constam como princípios gerais da atividade econômica, no artigo 170,
respectivamente nos incisos II e III da Constituição Federal de 1988. Nesse mesmo título,
Da Ordem Econômica e Financeira, no artigo 170, inciso VI, encontra-se a defesa do meio
ambiente como princípio, bem como, no artigo 182 e 183, encontram-se as disposições
referentes à Política Urbana, ora disciplinadas pela Lei Federal n.° 10.257/2001 (Estatuto
da Cidade). São essas normas, em conjunto com o artigo 225, que imprimem uma nova
leitura às regras do Código Civil, fazendo com que a função social e ambiental sejam
atributo do direito de propriedade.
O constituinte reconhece na propriedade uma tríplice finalidade: individual, social e
ambiental. uma função pessoal, na qual a propriedade é um direito com o fim de servir
à pessoa. uma função social, em que a propriedade é bem comum da sociedade.
também uma função ambiental, pela qual todos os cidadãos têm o dever de contribuir com
a preservação do ambiente natural e artificial, para as presentes e futuras gerações.
Da conjunção da proteção legal conferida ao Direito de Propriedade e ao Meio
Ambiente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, origina-se a Função Ambiental
da Propriedade. A partir do momento em que o Direito de Propriedade passa a
ser objeto de limitações derivadas da proteção legal do Meio Ambiente, a
Propriedade adquire uma nova Função, de caráter ambiental, pela qual o seu
uso, gozo e fruição deverá garantir a integridade do patrimônio ambiental nela
existente.
93
Ao se referir à função social e ambiental da propriedade urbana, não se pode deixar
de mencionar que a função social e ambiental não impõe ao proprietário somente condutas
93
CAVEDON, Fernanda de Salles et al. Função ambiental da propriedade urbana e áreas de preservação
permanente: a proteção das águas no ambiente urbano. In: BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). Direito,
água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2., p. 181.
49
negativas, ou seja, de abstenção, mas impõem igualmente condutas positivas, verdadeiras
obrigações de fazer (diferentes das obrigações do Direito Civil). Antônio Herman
Benjamin esclarece que, inicialmente, por influência da concepção individualista da
propriedade, entendia-se que a função social da propriedade operava somente através de
imposições negativas. Entretanto, percebeu-se que o instituto da função social demanda
prestações positivas por parte do proprietário. De tal forma, a função social requer regras
impositivas, que estabeleçam obrigações e comportamentos ativos em prol da sociedade.
94
No que tange à ligação da propriedade à função social e ambiental, deve-se
considerar uma outra faceta dessa relação. Ivan Chemeris, ao abordar a superação da
distinção entre função social e propriedade, entende que a função social é um imperativo
dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Contudo, comenta ele que
parte da doutrina caracteriza a função social como elemento externo à propriedade, de tal
forma que “a função social seria um dado absolutamente heterogêneo relativamente à idéia
de propriedade como direito subjetivo, e a sua presença na Constituição explicar-se-ia
como uma concessão feita pelo constituinte às forças políticas e sociais de esquerda”. Em
outros termos, “a função social não opera no interior da propriedade, não é a propriedade
que é disciplinada de forma a realizar a função social; ao contrário, a função social é
realizada pela lei; não é a propriedade que é dirigida para a realização da função social, é a
lei que atua na função social”.
95
Em sentido semelhante, Orlando Gomes afirma que “a propriedade chamada a
absorver a função social não é a propriedade direito-subjetivo, mas a propriedade instituto-
jurídico”.
96
Segundo esse entendimento,
[...] a função social seria uma atribuição legislativa entre o sujeito e o objeto do
direito real, que resultaria na função social prevista no inciso III, do art. 170, da
Constituição Federal, como um dos princípios gerais da atividade econômica.
Difere da garantia assegurada no inciso XXIII, do art. 5°, da mesma Carta.
Aquela, prevista no inciso III do art. 170 da Constituição Federal, é um
elemento do direito de propriedade, cuja finalidade é, pois, a de assegurar a
todos uma existência digna. Por outro lado, a garantia de que a propriedade
94
BENJAMIN, Antônio Herman. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva
legal e das áreas de preservação permanente. In: Anais do 2° Congresso Internacional de Direito Ambiental –
5 anos da Eco 92. São Paulo: Imprensa Oficial, 1997, p. 14.
95
PRATA apud CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade: o papel do Judiciário diante das
invasões de terras. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 64.
96
GOMES, Orlando. Direitos reais. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 108.
50
atenderá a sua função social, assegurada no inciso XXIII, do art. 5°, da
Constituição Federal seria um interesse transindividual de natureza difusa.
97
Seguindo esse entendimento, e considerando as condutas positivas atinentes ao
proprietário como verdadeiras obrigações de fazer, tem-se que, em face do princípio da
função social, o não-atendimento aos interesses difusos da coletividade pode levar o
proprietário à perda do bem. Se não o cumprimento da função social, não o direito
legítimo de propriedade.
Note-se que, embora confrontada a posição que considera a função social como
dado externo ao direito de propriedade, o entendimento tido no presente trabalho é que a
função social é elemento integrante do direito de propriedade. A função social é parte do
conteúdo do direito de propriedade, mas não conteúdo exclusivo, ou seja, o direito
subjetivo de propriedade tem seu exercício condicionado ao atendimento da função social.
“O direito de propriedade é direito subjetivo mais função social. O direito subjetivo não se
transformou em função, continua a ser subjetivo, sujeito, porém, a condicionamentos que
têm se alargado no tempo”.
98
Frente a isso, o direito de propriedade apresenta-se como um direito-dever. O
princípio da função social e ambiental da propriedade passa a condicionar o
reconhecimento e também a proteção do direito de propriedade (poder), direcionando sua
utilização no atendimento dos interesses sociais e ambientais (dever). Dessa forma, a
propriedade deixa de ser somente direito para conjugar-se também em função.
Nessa linha de idéias, portanto, a função social é que garante a legitimidade da
propriedade e da posse, não merecendo tutela aquela que não esteja vinculada à
busca da dignidade humana e à solidariedade social. Não se cuida aqui apenas
de um princípio programático, como querem alguns, ou de uma derrogação da
propriedade privada como insinuam outros. Trata-se, sim, de uma
reconceitualização do direito de propriedade, inserindo-se um novo elemento
em sua estrutura e no seu regime jurídico. O proprietário ou possuidor, portanto,
recebe do ordenamento jurídico não apenas um direito fundamental, mas
também um dever fundamental, que seu direito se afigura legítimo e, pois,
tutelável apenas e na medida em que realize a função a que está destinado
constitucionalmente.
99
97
CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade: o papel do Judiciário diante das invasões de terras. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 66.
98
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no Direito Agrário. São Paulo: Atlas, 1992, p. 30.
99
SENTENÇAS E DECISÕES DE PRIMEIRO GRAU. Porto Alegre: Poder Judiciário e AJURIS, v. 7/8,
jun./dez. 2002, p. 153.
51
No que diz respeito ao regime jurídico da propriedade urbana, destaca-se que, com
o advento da Constituição Federal de 1988 e o surgimento da função social da propriedade
como princípio fundamental, não há mais como conceber o regime jurídico da propriedade
subordinado às normas de Direito Civil. Isso se deve à constitucionalização do regime
jurídico da propriedade privada e à sua regulamentação sob o regime da função social, que
modificou profundamente as disposições privatistas de Direito Civil. Com isso, ao Direito
Civil cabe a regulamentação das relações civis decorrentes do direito de propriedade, mas
não seu regime jurídico, que é constitucional e tem fundamento em normas de direito
público.
O Código Civil é, por excelência, o conjunto de normas que visa a regular as
relações privadas entre particulares. Por muito tempo, foi considerado a base
para o entendimento e regulação da Propriedade. Com o advento da expansão
da regulação da Propriedade no âmbito constitucional, o entendimento da
Propriedade no Ordenamento Jurídico Brasileiro requer uma análise conjunta
das normas de Direito Civil e dos dispositivos constitucionais, buscando a
integração dos mesmos.
100
Outro ponto importante a ser salientado é o de que a função social e ambiental da
propriedade não se confunde com restrições administrativas ou limitações ao exercício do
direito de propriedade. O princípio da função social da propriedade, para José Afonso da
Silva, “[...] tem sido mal definido na doutrina brasileira, obscurecido, não raro, pela
confusão que dele se faz com os sistemas de limitação da propriedade. Não se confundem
porém. Limitações dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário, enquanto a
função social interfere com a estrutura do direito [...]”.
101
A concepção contemporânea do direito de propriedade une direito subjetivo à
função social e ambiental, de tal sorte que, ao direito de propriedade, conjugam-se direito e
dever. Assim, o direito de propriedade se regulamentado sobre o regime da função
social, em que a sistematização normativa concilia perfeitamente o direito subjetivo do
proprietário e a função social e ambiental, sem que haja contradição entre ambos.
Conforme dito anteriormente, houve uma reformulação do direito de propriedade a fim
de adequá-lo aos contornos constitucionais, clareando ainda mais a transmutação do caráter
individual para o socioambiental da propriedade.
100
CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks,
2003, p.176.
101
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 65-66.
2 O MEIO AMBIENTE ENQUANTO DIREITO - DEVER FUNDAMENTAL: PROPRIEDADE,
ESPAÇO URBANO E SUSTENTABILIDADE
A análise, o diagnóstico e as possíveis soluções para os problemas urbano-
ambientais da atualidade requerem um posicionamento crítico, inovador, ético e
participativo por parte da sociedade e do Estado. Desse prisma, o meio ambiente
ecologicamente equilibrado (natural e artificial) não pode mais ser percebido apenas como
um direito fundamental, tornando-se imprescindível a revisão da relação predatória e de
superioridade do homem perante a natureza. Ademais, fazem-se necessário visualizar o
espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais de caráter socioambiental.
Considerando os graves problemas enfrentados no cenário urbano, pretendem-se,
neste capítulo, abordar as origens e as principais diretrizes do Estatuto da Cidade com o
propósito de verificar a sua aplicação frente à instrumentalização da função socioambiental
da propriedade urbana, assim como, possibilitar a implementação de um espaço urbano
sustentável.
2.1 O direito – dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
Embora a questão ambiental seja um problema antigo, a preocupação com o meio
ambiente é recente. Pode-se afirmar que a degradação ambiental é histórica, pois é com o
surgimento do homem que se inicia o processo de transformação da natureza.
102
Nesse
sentido, a degradação ambiental se confunde com a própria origem do ser humano.
Entretanto, esse processo de modificação das condições naturais está sendo percebido e
temido recentemente.
102
É importante ressaltar que a natureza está em constante transformação desde muito antes da aparição do
homem. A diferença entre a transformação natural e a promovida pelo homem reside no fato de que o homem
tem consciência (razão faculdade cognitiva) de que pode se utilizar e moldar a natureza conforme suas
necessidades e interesses. Assim, o homem promove processos (transformações) artificiais na natureza. Cabe
lembrar que todos os animais (seres senscientes não-humanos) podem alterar a natureza, mas, apenas o
homem tem condições de fazê-lo de forma tão ameaçadora e não-natural. Sobre as transformações naturais e
o surgimento do homem ver: COSMOS. Produção de Carl Sagan. São Paulo: Editora Abril, [S.a]. 1 DVD.
53
Nem sempre a relação homem e natureza foi determinada pela ação humana. Por
muito tempo, essa relação foi de temor e de total dependência, posto que a natureza
subjugava e aterrorizava os primeiros seres humanos. O homem das cavernas possuía
poucas condições de modificar seu habitat. Esse fato, não obstante, não o impediu de
provocar mudanças no ambiente.
103
“O ser humano não foi capaz de se adaptar à ordem
natural das coisas, necessitando intervir na natureza, para modificar o ecossistema, a fim de
moldá-lo às suas necessidades”.
104
O conflito do homem com a natureza sempre existiu. Nesse sentido, não se pode
imputar somente ao homem contemporâneo a responsabilidade pelos problemas
ambientais. Para a arqueologia científica, a relação do homem primitivo com a natureza,
pautada pelo determinismo, representada pela idéia pós-darwiniana do humano enquanto
produto da seleção natural, subordinado às leis biológicas, é uma tese que não se sustenta
mais. Os homens, ao atuarem sobre o meio e ao transformá-lo, deixam de ser vistos como
meros objetos e passam a ser agentes geográficos. Essa influência do homem sobre o meio
chama-se possibilismo.
105
O que se vivencia atualmente é um colapso ambiental, conseqüência de um longo e
crescente processo de intervenção humana. Embora os impactos ambientais causados
estejam surtindo conseqüências em um ritmo alarmante, a preocupação e a ação humana na
tentativa de minorar os efeitos desses impactos não parecem estar na mesma intensidade. O
homem pensa se distinguir da natureza pela racionalidade, o que, em tese, o torna superior.
Acredita que a tecnologia pode amenizar ou até mesmo resolver os problemas ambientais
vindouros. Ao não se considerar parte da natureza, dependente e determinado por ela, o
tem sensibilidade para perceber que ao agredi-la está a se auto-destruir.
106
103
A afirmação de que a degradação ambiental é um processo histórico, tem por base relatos da civilização
primitiva, que descrevem a passagem do homem habitante das cavernas para a condição de caçador; da
condição de caçador para a de pastor e, por conseguinte, para a de agricultor. Foi com a técnica da cultura, do
desgaste do solo pelas queimadas e da rotatividade na utilização de terras, que o homem intensificou as
transformações drásticas no ambiente. É evidente que o processo de intervenção humana nos domínios
naturais iniciou com o homem primitivo, contudo, esse processo vem aumentando ao passo que aumentam as
necessidades humanas.
104
OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e
Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 14.
105
NALINI, Renato. Ética Ambiental. 2. ed. São Paulo: Millennium Editora, 2003, p. 3-4.
106
Esse mesmo entendimento é colocado pelo paleontólogo Peter Ward, em sua obra “O fim da evolução”.
Ao trabalhar os três grandes eventos de extinção em massa, procura enfatizar na relação homem-natureza as
causas de uma possível terceira extinção e evidencia que essa extinção já está ocorrendo. O autor demonstra a
54
Em um retrospecto histórico, podem-se destacar alguns acontecimentos que
influenciaram a conscientização acerca da crise ambiental. Em um primeiro momento,
houve a constatação de que os ecossistemas
107
não se reconstituem automaticamente,
levam muito tempo para se recompor, colocando em risco a própria sobrevivência humana.
Por conseguinte, constatou-se também, que a forma de organização e de gestão da
sociedade conflita com o ideal de qualidade de vida. A par disso, um marco significativo
para a conscientização foi o desastre nuclear ocorrido em Hiroxima e Nagasaki, deixando
evidentes os riscos que o conhecimento científico e o capitalismo podem causar.
108
De igual forma, cabe destacar que as duas principais formas assumidas pelo Estado
Moderno: o Estado liberal e o Estado social não foram capazes de propiciar o bem-estar
desejado e protelaram hipóteses de solução da problemática ambiental para momento
posterior, dissociando-a das demais demandas da sociedade. Nesse sentido, a consciência
da crise ambiental também se deu em virtude da crise do Estado socialista. Foi em função
da despreocupação estatal com a questão ambiental que, a partir de 1950, a sociedade civil
começou a se articular por meio de Organizações Não-Governamentais. Entretanto,
somente a partir de 1970, a preocupação torna-se mais explícita, culminando com a
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada em 1972 em
Estocolmo.
109
No Brasil, observam-se três fases em relação à evolução legislativa sobre meio
ambiente. A primeira, que se iniciou com o descobrimento do Brasil e persistiu até os anos
60, foi uma fase de exploração desregrada (laissez-faire), de normas isoladas referentes a
recursos naturais específicos. No período de 1982 a 1985, constituiu-se uma segunda fase,
considerada fragmentária, na qual somente eram tutelados os recursos naturais que
apresentassem interesse econômico. A terceira fase, conhecida como holística, inicia-se
com a Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, que instituiu a Política Nacional do Meio
Ambiente. Nessa fase, o meio ambiente passa a ser protegido de maneira integral, como
necessidade de preservarmos a vida antes que nada mais possa ser feito. WARD, Peter. O fim da evolução:
extinções em massa e a preservação da biodiversidade. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
107
Por ecossistema entende-se “a comunidade total de organismos, junto com o ambiente físico e químico no
qual vivem. É composto por seres vivos (biocenose) e pelo meio físico (biótipo)”. RICARDO, Beto;
CAMPANILI, Maura. Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim. De qualquer jeito, não. São Paulo:
Instituto Socioambiental, 2004, p. 452.
108
OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e
Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 20 – 21.
109
Ibidem, p. 21-22.
55
bem jurídico. O ponto culminante foi a Constituição Federal de 1988, que dedicou um
capítulo inteiro ao meio ambiente.
110
A expressão meio ambiente foi inserida no meio científico pelo naturalista francês
Geoffroy de Saint-Hilaire, que a empregou, pela primeira vez, em sua obra Éstudes
progressives d’un naturaliste, em 1835.
111
A utilização da expressão na legislação
brasileira, em um primeiro momento, causou divergências. Para Edis Milaré,
tanto a palavra meio como o vocábulo ambiente passam por conotações
diferentes, quer na linguagem científica quer na vulgar. Nenhum destes termos é
unívoco (detentor de um significado único), mas ambos são equívocos (mesma
palavra com significados diferentes). Meio pode significar: aritmeticamente, a
metade de um inteiro; um dado contexto físico ou social; um recurso ou insumo
para se alcançar ou produzir algo. ambiente pode representar um espaço
geográfico ou social, físico ou psicológico, natural ou artificial. Não chega,
pois, a ser redundante a expressão meio ambiente, embora no sentido vulgar da
palavra ambiente indique o lugar, o sítio, o recinto, o espaço que envolve os
seres vivos e as coisas. De qualquer forma, trata-se de expressão consagrada na
língua portuguesa, pacificamente usada pela doutrina, lei e jurisprudência de
nosso país, que, amiúde, falam em meio ambiente, em vez de ambiente
apenas.
112
Com entendimento contrário, advertem José Rubens Morato Leite e Paulo Affonso
Leme Machado, que os termos meio e ambiente são equivalentes, e a expressão meio
ambiente é um pleonasmo.
113
No entanto, no que pese o conflito de entendimento, o fato é
que a expressão foi consagrada e incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Por ser
uma expressão ampla, pode abrigar inúmeras realidades ligadas à proteção ambiental. Se
houvesse uma definição precisa e restrita de meio ambiente, muitas situações inseridas na
órbita do conceito atual deixariam de estar amparadas.
110
Ibidem, p. 23-25.
111
Em francês, a expressão milieu ambiant (meio ambiente) é compreendida com base no significado
atribuído aos termos meio e ambiente. A palavra milieu (meio) significa contexto, espaço ou lugar, ao passo
que o termo ambiant (ambiente), significa “o que rodeia por todos os lados”. Nesse sentido, meio ambiente é
todo o espaço ou contexto que circunda o homem. PRIEUR, Michel apud MILARÉ, Edis. Direito do
ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001,
p. 63.
112
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2001, p. 63.
113
LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao conceito jurídico de meio ambiente. In: VARELLA, Marcelo
Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro (Org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey,
1988, p. 51. Ver também MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 69: “O que acontece é que ambiente e meio são sinônimos, porque meio é precisamente
aquilo que envolve, ou seja, ambiente”.
56
Em linguagem cnica, o meio ambiente pode ser compreendido como a
combinação de todas as coisas e fatores, externos aos indivíduos, que se constitui por seres
bióticos e abióticos e suas relações.
114
Em outros termos, “[...] é o conjunto dos elementos
físico-químicos, ecossistemas naturais e sociais em que se insere o Homem, individual e
socialmente, num processo de interação que atenda ao desenvolvimento das atividades
humanas, à preservação dos recursos naturais e das características essenciais do entorno,
dentro de padrões de qualidade definidos”.
115
Em linguagem jurídica, em um contexto que
contempla implicações da relação humana com o que está a sua volta, pode-se
compreender por meio ambiente “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais
e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas
formas”.
116
Na legislação brasileira, o conceito operacional de meio ambiente é encontrado na
Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) que, no artigo 3º, inciso I,
preceitua o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas”. O conceito legal supera a visão de meio ambiente apenas como o conjunto de
recursos naturais, levando em consideração a interação do homem com a natureza. Assim,
o homem passa a estar integrado ao conceito de meio ambiente e à vida, humana e não-
humana (animal e vegetal) encontra-se protegida no mesmo patamar de importância.
No mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, caput,
refere: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Dessa forma, pode-se dizer que o constituinte, além de reforçar a relação de interação e
interdependência entre homem e natureza, buscou acentuar a necessidade de preservação
do meio ambiente em suas diversas manifestações (meio ambiente natural, artificial,
cultural), bem como, procurou atribuir essa responsabilidade à coletividade e ao Poder
Público.
114
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2001, p. 64.
115
COIMBRA, José de Ávila Aguiar. O outro lado do meio ambiente. São Paulo: CETESB, 1985, p. 29.
116
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 20.
57
Questão que tem causado controvérsias por parte da doutrina é a utilização da
expressão “futuras gerações”. Alguns doutrinadores questionam a possibilidade de ser
sujeito ativo de um direito quem ainda não existe. Frente a isso, Patzig argumenta que não
princípio moral que obrigue as presentes gerações a garantir um meio ambiente
ecologicamente equilibrado às gerações futuras.
117
Contudo, grande parte da doutrina
entende viável falar em direitos e deveres entre gerações. Nessa linha de pensamento, Jesús
Ballesteros afirma “que é possível falar – não somente do ponto de vista ético, mas
também jurídico de direitos das futuras gerações. E de direitos e obrigações de gerações
presentes para com as futuras”.
118
O meio ambiente é um bem pertencente à coletividade, a
sua degradação afeta todos os seres humanos, tornando-se irrelevante a discussão acerca da
validade ou não de se atribuir direitos às futuras gerações. Acima de tudo, a preservação do
meio ambiente para as presentes e futuras gerações é uma questão moral.
Fica evidente, pelo conceito de meio ambiente, a incontestável interdependência
apresentada pela relação homem-natureza. Não como dissociar a existência humana do
convívio com o natural, pois é condição imperativa para sua sobrevivência. Essa relação de
interdependência é bem exemplificada por Samuel Murgel Branco ao expor:
O homem pertence à natureza tanto quanto numa imagem que me parece
apropriada o embrião pertence ao ventre materno: originou-se dela e canaliza
todos os seus recursos para as próprias funções e para o desenvolvimento, não
lhe dando nada em troca. É seu dependente, mas não participa (pelo contrário,
interfere) de sua estrutura e função normais. Será um simples embrião se
conseguir sugar a natureza, permanentemente, de forma compatível, isto é, sem
produzir desgastes significativos e irreversíveis; caso contrário, será um câncer,
o qual se extinguirá com a extinção do hospedeiro.
119
Não é possível conceituar o meio ambiente fora de uma visão antropocêntrica. A
proteção ambiental depende do homem, uma vez que o direito é construção humana,
elaborada para servir os propósitos humanos. A evolução do direito para uma posição de
reconhecimento e respeito às formas de vida não-humanas “não é suficiente para deslocar
117
PATZIG, G. apud FERNÁNDEZ LARGO, Antonio Osuna. Los Derechos Humanos: ámbitos y
desarrollo. Salamanca: San Esteban; Madrid: Edibesa, 2002, p. 295.
118
BALLESTEROS, Jésus. Los derechos de las futuras geraciones. In: BALLESTEROS, sus (Ed.).
Derechos Humanos: concepto, fundamentos, sujetos. Madrid: Tecnos, 1992, p. 209.
119
BRANCO, Samuel Murgel. Conflitos conceituais nos estudos sobre meio ambiente. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 9, nº 23, 1995, p. 217.
58
o eixo ao redor do qual a ordem jurídica circula”.
120
Paulo de Bessa Antunes faz referência
à evolução antropocentista ao mencionar que
a questão que se coloca, contudo, é a de não confundir a pretensa superação do
antropocentrismo com uma modalidade de irracionalismo, muito em voga
atualmente, que, colocando em pé de igualdade o Homem e os demais seres
vivos, de fato, rebaixa o valor da vida humana e transforma-a em algo sem valor
em si próprio, em perigoso movimento de relativização de valores. O que o DA
busca é o reconhecimento do Ser Humano como parte integrante da Natureza.
Reconhece, também, como é evidente, que a ação do Homem é,
fundamentalmente, modificadora da Natureza, culturalizando-a. O DA
estabelece a normatividade da harmonização entre todos os componentes do
mundo natural culturalizado, no qual, a todas as luzes, o Ser Humano
desempenha o papel essencial.
121
Assim, torna-se imprescindível superar a visão do antropocentrismo clássico
122
e
progredir em direção à construção de um modelo de antropocentrismo alargado,
123
no qual,
o homem seja considerado parte da natureza. Nesse sentido, “pela visão antropocêntrica
alargada, tutela-se o meio ambiente pelo seu valor intrínseco e não apenas pela utilidade
que os recursos naturais podem ter para o homem. O homem passa a figurar como o
guardião da biosfera e o mais como o seu dono”.
124
Essa superação do antropocentrismo
clássico, pela inclusão de valores ligados à proteção da vida não-humana, não indica a
120
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 20.
121
Ibidem, p. 20.
122
“Antropocêntrico vem a ser o pensamento ou a organização que faz do homem o centro de um
determinado universo, ou do Universo todo, em cujo redor (ou órbita) gravitam os demais seres, em papel
meramente subalterno e condicionado. É a consideração do homem como eixo principal de um determinado
sistema, ou ainda, do mundo conhecido”. A corrente do antropocentrismo clássico” teve força no mundo
ocidental em função do pressuposto de que a razão é atributo exclusivo do homem, valor maior e
determinante. Somando-se a essa influência (do atributo da razão), a expansão da cultura religiosa judaico-
cristã contribuiu para solidificar a situação de dominação do homem sobre os demais seres vivos. Esse
cenário de dominação, de natureza-objeto, se sustentou ao momento em que o homem começou a sentir os
reflexos da sua exploração ilimitada. MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x
Ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 36, p. 9-41, out.- dez. 2004, p.
10-12.
123
A expressão “antropocentrismo alargadoatribuída a José Rubens Morato Leite, é utilizada para designar
o novo panorama da interação homem-natureza. A novidade dessa concepção encontra-se na ruptura da
existência de dois mundos distintos: o humano e o natural, avançando no sentido da interação de ambos.
“Abandonam-se as idéias de separação, domínio, submissão e busca-se uma interação entre os universos
distintos e a ação humana”. Para Leite, “[...] a perspectiva antropocêntrica alargada propõe não uma restritiva
visão de que o homem tutela o meio ambiente única e exclusivamente para proteger a capacidade de
aproveitamento deste, considerando precipuamente satisfazer as necessidades individuais dos consumidores,
em uma definição economicocêntrica. Com efeito, esta proposta visa, de maneira adversa, a abranger também
a tutela do meio ambiente, independentemente da sua utilidade direta, e busca a preservação da capacidade
funcional do patrimônio natural, com ideais éticos de colaboração e interação”. LEITE, JoRubens Morato.
Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 76.
124
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 78-79.
59
adoção de um modelo pautado no biocentrismo.
125
O que se postula é a superação de um
modelo no qual o homem se afigura como detentor da natureza, abrindo caminho ao
entendimento do homem como parte do natural e principal responsável pela sua
preservação.
Para José Rubens Morato Leite, a tutela jurídico-ambiental brasileira (Lei
6.938/81 e artigo 225, caput, da CF/88), adota o regime por ele determinado misto,
denominado antropocentrismo alargado. Esse entendimento se baseia no fato de o
ordenamento jurídico brasileiro conjugar meio ambiente ecologicamente equilibrado e sua
essencialidade para a qualidade de vida, com a tutela dos interesses das futuras gerações.
Assim,
não como refutar, desta forma, que no sistema jurídico brasileiro, além da
proteção à capacidade de aproveitamento do meio ambiente, simultaneamente,
visa-se a tutelar o mesmo, para se manter o equilíbrio ecológico e sua
capacidade funcional, como proteção específica e autônoma, independente do
benefício direto que advenha ao homem.
126
A adoção do antropocentrismo alargado pela legislação brasileira também é
comentada por Álvaro Luiz Valery Mirra ao afirmar que tal concepção representa uma
proteção ambiental que visa, simultaneamente, a garantir a integridade do ambiente em si
mesmo considerado, o equilíbrio ecológico, enquanto condição indispensável a todas as
formas de vida, e a satisfação das necessidades imediatas do homem.
127
Nicolau Dino de
Castro e Costa Neto, também referencia o mesmo entendimento ao salientar a postura de
equilíbrio da legislação entre os extremos do “antropocentrismo excludente” e do
“biocentrismo exacerbado”. Para ele, o processo de evolução pelo qual passa o Direito
Ambiental, deve ter por fundamento a ética ambiental e o reconhecimento do valor do
meio ambiente para além da satisfação dos interesses do homem. Assim, “[...] enquanto
atores de um mesmo cenário biótico, cabe aos seres humanos a adoção de uma
125
O biocentrismo almeja fazer da natureza não mais um objeto, mas um próprio sujeito. Há, para tanto, uma
inversão de perspectiva, não é mais o planeta que pertence ao homem, mas sim, o homem que pertence ao
planeta. Alimenta-se um impulso de retorno à natureza. O limiar dessa posição tem origem na preocupação
do homem com a proteção do meio ambiente. Assim, com o foco voltado para todos os aspectos da vida,
surgiu o biocentrismo. “A ampliação da consciência sobre a situação do planeta Terra, somada às
preocupações criadas pelo processo da globalização, impulsionou rapidamente a idéia de uma ética global ou
ética planetária”. MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x Ecocentrismo na
ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 36, p. 9-41, out.- dez. 2004, p. 14-16.
126
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 77.
127
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a reparação do dano ao meio ambiente. o Paulo:
Juarez de Oliveira, 2002, p. 61.
60
interpretação ecológica e uma postura ética que ultrapassem a posição egoística de que a
natureza se presta apenas à satisfação de suas necessidades”.
128
Ademais, a análise interpretativa do disposto no artigo 225 da Constituição Federal
de 1988 permite afirmar que a proteção do meio ambiente, além de um direito fundamental
de o homem usufruir um meio ambiente saudável, é também um dever essencial.
129
Intrinsecamente vinculado ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, existe
um dever fundamental, que se caracteriza pela obrigação incumbida ao Poder Público e a
cada um dos indivíduos partícipes da sociedade.
Para José Casalta Nabais, o tema dos deveres fundamentais constitui um dos mais
esquecidos da doutrina contemporânea. Pode-se dizer que se priorizou a liberdade
individual em detrimento da responsabilidade comunitária. Apesar disso, comenta ele, que
na medida em que os direitos fundamentais deixam de ser apenas os clássicos direitos de
liberdade para se constituírem também em direitos de participação política, direitos (a
prestações) sociais e direitos ecológicos, passam a exprimir exigências do indivíduo face
ao Estado, alargando a esfera jurídica do cidadão e, por outro lado, também limitando essa
mesma esfera através de deveres que lhes andam associados ou coligados.
130
Dessa forma, os deveres fundamentais “são deveres jurídicos do homem e do
cidadão que, por determinarem a posição jurídica fundamental do indivíduo, têm especial
significado para a comunidade e podem por esta ser exigidos”.
131
Caracterizam-se por não
se traduzirem em meras situações de inércia, ao contrário, os deveres fundamentais são
situações ativas, que implicam um comportamento positivo dos seus titulares. Assim, os
deveres fundamentais constituem posições universais e permanentes, ou seja, de um lado,
são encargos ou sacrifícios para a comunidade, que valem relativamente a todos os
indivíduos e não apenas a alguns deles. De outro, os deveres fundamentais também se
128
COSTA NETO, Nicolau Dino de Castro e. Proteção jurídica do meio ambiente I Florestas. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p. 31.
129
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma
nova concepção de um Estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.).
Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2, p. 201.
130
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p.
49-50.
131
Ibidem, p. 64-65.
61
configuram como posições duradouras (característica da irrenunciabilidade). Por fim, são
posições essenciais, do mais elevado significado para a comunidade.
132
Todos os deveres fundamentais são, em certo sentido, deveres com a comunidade.
Estão diretamente a serviço da realização de valores assumidos pela coletividade. A defesa
do meio ambiente, nesse cenário, constitui-se como um dever fundamental de conteúdo
econômico, social ou cultural. Entretanto, não é apenas um dever decorrente do convívio
em sociedade, que se pauta na solidariedade. O dever ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado vai mais além, é um dever ético, que deve se pautar também na fraternidade.
Nesse sentido, o meio ambiente é para o homem um direito - dever fundamental.
Não há direitos sem deveres, nem deveres sem direitos, “porque não há garantia jurídica ou
fáctica dos direitos fundamentais sem o cumprimento dos deveres do homem e do cidadão,
indispensáveis à existência e funcionamento da comunidade [...]”.
133
Cabe lembrar que o
dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não representa apenas um dever
negativo, ou seja, um dever de abstenção, por meio de comportamento passivo (não
degradar, não poluir, não desmatar). Acima disso, é um dever positivo, que implica
comportamento ativo por parte do cidadão (arborizar as cidades, cumprir com a função
socioambiental da propriedade urbana, separar o lixo doméstico, utilizar racionalmente a
água potável, atentar ao consumo sustentável de bens e serviços, dentre outros) e se traduz
na necessidade de se visualizar o gênero humano como parte da natureza.
De tal forma, é muito mais econômico o agir ambiental. É menos dispendioso
prevenir antes que o dano ocorra do que sofrer prejuízos posteriores, pois perdas que
são irreparáveis. Assim, todos são igualmente titularizados no direito e no dever de zelar
pelo meio ambiente equilibrado.
134
Em função disso, a construção de um espaço
participativo nas questões ambientais, não tem de ser visto como uma possibilidade, mas
como uma necessidade. “O melhor modo de tratar as questões do meio ambiente é
assegurando a participação de todos os cidadãos interessados. Nesse sentido, o direito
132
Ibidem, p. 67-73.
133
Ibidem, p. 118-119.
134
NALINI, José Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2003, p. XXX – XXXI.
62
ambiental faz os cidadãos saírem de um estatuto passivo de beneficiários, fazendo-os
partilhar da responsabilidade na gestão dos interesses da coletividade inteira”.
135
É importante ressaltar que a inserção da proteção ambiental na Constituição Federal
de 1988, enquanto direito-dever fundamental, ocasionou profundas alterações em todos os
ramos do Direito, que passaram a incorporar as normas de Direito Ambiental na
caracterização de seus institutos. Embora a tutela constitucional-ambiental seja
eminentemente coletiva, regula também condutas privadas. Essa ingerência do Direito
Ambiental nas condutas individuais acarreta implicações, sobretudo para o Direito Privado,
representadas pelas restrições ambientais à propriedade e, principalmente, pelo dever de
cumprimento da função socioambiental da propriedade privada. Frente a isso, convém
analisar a (im)possibilidade de visualizar a propriedade privada e o espaço urbano como
bens ambientais, suscetíveis à apropriação privada e ao cumprimento da função
socioambiental e as implicações decorrentes disso.
2.2 O espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais
Embora, em um primeiro momento, a compreensão do ambiental relacionado às
cidades tenha restado limitada ao imaginário do espaço urbano dissociado do meio
ambiente (em função da percepção do ambiental apenas como o conjunto de elementos
naturais), atualmente, há uma inversão, na qual, se busca evidenciar que o ambiental
contempla o social, sobretudo representado pelo ambiente cultural e artificial. A expressão
meio ambiente não se restringe apenas ao conjunto de processos naturais, estende-se às
relações entre esses e as dinâmicas sociais. Assim, em uma primeira análise, o ambiente
urbano é a síntese do embate entre o natural e o social.
O espaço urbano, forma singular de patrimônio ambiental artificial, é, dessa forma,
o resultado maior da capacidade social de adaptar e transformar o espaço natural, sem
deixar de ser parte e de estar submetido aos processos da natureza. Em função do caráter
holístico do meio ambiente, produto das interações sociais com o ambiente natural, o
135
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma
nova concepção de um Estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.).
Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2, p. 203.
63
ambiente construído também é objeto de proteção ambiental. O desenvolvimento urbano
torna-se indissociável de uma gestão urbano-ambiental, uma vez que há evidente interação
entre o desenvolvimento humano artificial e o meio ambiente natural.
O processo de artificialização do ambiente inicia com o homem pré-histórico. Para
Elida Séguin, o homem primitivo, para fugir da vastidão dos espaços abertos, ao aprisionar
determinado volume espacial das cavernas como abrigo, acarreta a primeira adaptação da
natureza às necessidades humanas. Em função disso, produz-se o meio ambiente artificial,
compreendido como “[...] o espaço ocupado e transformado pelo ser humano, de forma
continuada, onde ele desenvolve suas relações sociais. É o produto da interação do homem
com o Meio Ambiente Natural”.
136
Milton Santos refere que a paisagem urbana compreende dois elementos: os objetos
naturais (que independem do homem) e os objetos sociais (que são obras do homem). Os
processos de mudança pelos quais passa a sociedade são determinantes para a configuração
da paisagem, que nada tem de fixo ou imóvel. O espaço se transforma “para se adaptar às
novas necessidades da sociedade”. Dessa forma, a paisagem urbana representa os diversos
momentos do desenvolvimento social, “é o resultado de uma acumulação de tempos”.
137
“É por isso que a sociedade não se distribui uniformemente no espaço: essa distribuição
não é obra do acaso. Ela é o resultado de uma seletividade histórica e geográfica, que é
sinônimo de necessidade. Essa necessidade decorre de determinações sociais fruto das
necessidades e das possibilidades da sociedade em um dado momento”.
138
Nessa perspectiva, é importante salientar que se entende por meio ambiente
artificial o conjunto de edificações particulares ou públicas, principalmente urbanas,
formado por construções realizadas exclusivamente pela ação do homem, uma vez que sua
principal característica é o meio ambiente urbano.
139
Nesse mesmo sentido, José Afonso da
Silva conceitua meio ambiente artificial como o meio “constituído pelo espaço urbano
construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos
136
SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 21.
137
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2004, p. 54.
138
Ibidem, p. 61.
139
CAPOLA, Gina. O meio ambiente artificial. Prática Jurídica, Ano III, n. 28, p. 46-50, jul. 2004, p. 47.
64
equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano
aberto)”,
140
sendo as cidades exemplo bastante significativo.
Conforme o disposto no caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, o
meio ambiente é classificado como um bem de uso comum do povo, incorpóreo e
imaterial, não podendo ser utilizado economicamente de forma privada, nem apropriado
pelo indivíduo particular. “[...] o uso do meio ambiente não é bem do Estado nem é bem
privado é bem pertencente a toda coletividade, pelo que não pode ser apropriado”.
141
Assim, o meio ambiente
142
configura-se como um bem de interesse público, contrapondo-
se ao interesse individual. Entretanto, perante a doutrina clássica e o Código Civil, bem de
uso comum do povo é uma espécie de bem público que, embora utilizado coletivamente,
cabe ao Poder Público sua titularidade.
Frente a isso, procurando esclarecer o meio ambiente como bem de uso comum do
povo, diverge a doutrina acerca da natureza jurídica dos bens ambientais.
143
Para Celso
Antônio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues, existem três categorias de bens no
ordenamento jurídico: os bens públicos, os bens privados e os bens difusos. Afirmam eles
que o meio ambiente está inserido no ordenamento jurídico como um bem difuso,
144
cuja
titularidade difere da titularidade dos bens públicos.
145
Com esse mesmo entendimento,
Rui Carvalho Piva refere o meio ambiente como um bem ambiental de natureza difusa,
uma vez que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Se o uso do
140
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 21.
141
MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p.
36.
142
O meio ambiente, no contexto de bem de uso comum do povo, deve ser considerado em todos os seus
aspectos: meio ambiente natural ou físico, cultural e artificial, classificação adotada por José Afonso da Silva.
143
Patrimônio ambiental ou bem ambiental não é bem público nem privado, é um bem jurídico de valor
material ou imaterial, que antes de ser valor jurídico está atrelado a um valor humano, um bem de vida. Para
Rui Carvalho Piva, o bem ambiental é um bem jurídico de direito coletivo em sentido amplo-metaindividual
(gênero), caracterizando-se como um interesse difuso (espécie). PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São
Paulo: Max Limonad, 2000, p. 97.
144
Os bens, direitos ou interesses difusos são aqueles que tem por característica a transindividualidade (que
transcende o indivíduo, ultrapassando o limite da esfera dos direitos e obrigações de cunho individual, ou
seja, resulta da qualidade do indivíduo como ser humano), a natureza indivisível (há a indivisibilidade do
objeto, ou seja, o meio ambiente na concepção de macrobem não comporta fracionamento para apropriação
exclusiva individual), a intensa litigiosidade interna, a transição ou mutação no tempo e no espaço e a
titularidade indeterminada (ausência de individualidade ou titularidade plena), ligada por circunstâncias de
fato. Sobre direitos difusos ver: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação
para agir. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 66-70; OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de;
GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São
Paulo: Madras, 2004, p. 54; PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 31-34.
145
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e
legislação aplicável. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 94.
65
bem ambiental é assegurado a todos, certamente se está diante de um bem vinculado ao
gênero dos interesses coletivos metaindividuais, cuja espécie são os direitos ou interesses
difusos.
146
Posicionamento diverso adotam José Afonso da Silva e Paulo Affonso Leme
Machado, por entenderem os bens ambientais como bens de interesse público. Para ambos,
a compreensão do meio ambiente como bem de interesse público supera a dicotomia entre
bens públicos e bens particulares, permitindo uma proteção mais abrangente dos bens
ambientais. Assim, o patrimônio ambiental pertence a todos e não pode ser apropriado
individualmente, nem mesmo pelo Estado. Nesse sentido, patrimônio ambiental e
patrimônio público não se confundem.
147
Quando o texto constitucional se refere a
patrimônio público, está indicando os bens de propriedade do Estado, ou seja, os bens
públicos, dos quais o meio ambiente não faz parte, pois tem como titular a coletividade.
Essa distinção fica bem evidente no artigo 5°, inciso LXXIII da Constituição Federal de
1988, que trata da ação popular: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação
popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da
sucumbência” (grifo nosso).
Para José Rubens Morato Leite, “não resta dúvida que o bem ambiental de interesse
público deve ser separado da definição de bens públicos e privados do Código Civil
Brasileiro. Outrossim, a concepção da lei civil é destoante do estipulado na Constituição
Federal, que trata do meio ambiente como bem da coletividade, e não como res nullius”.
Para ele, o meio ambiente, bem de uso comum do povo, é um “bem jurídico autônomo de
interesse público”, tratado pelo legislador constitucional como res communes omnium.
148
Nesse mesmo sentido, salienta José Afonso da Silva que os “atributos do meio
ambiente [a qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico] não podem ser de apropriação
privada, mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares”. Para ele,
146
PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 33.
147
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
667.
148
LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao conceito jurídico de meio ambiente. In: VARELLA, Marcelo
Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro (Org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey,
1988, p. 62.
66
“significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da
qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela o integra sua
disponibilidade”.
149
Em função disso, o meio ambiente não é patrimônio público nem
particular, por ser essencial à qualidade de vida, está intimamente vinculado a um fim de
interesse coletivo.
É importante referir o entendimento de Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira e
Flávio Romero Guimarães, para os quais, “não se configura incompatível a caracterização
do meio ambiente como bem de interesse público e como interesse difuso”.
150
Não se pode
negar o caráter difuso e o interesse público que caracteriza o meio ambiente. Dessa forma,
para eles, que se tecerem algumas distinções ao se atribuir interesse blico e interesse
difuso ao meio ambiente. Assim, “quando se diz que o meio ambiente é um bem de
interesse público, pretende-se afirmar que não apenas o Poder Público tem legitimidade
para promover sua tutela jurisdicional, como também o cidadão”. De outro modo, quando
se afirma que o meio ambiente é um interesse difuso, “quer-se afirmar que dele advém uma
situação de vantagem ou utilidade para todo o gênero humano, o que legitima todo e
qualquer cidadão a promover a sua defesa na esfera processual”.
151
Dessa forma, o meio
ambiente é um bem de uso comum do povo, de interesse público e difuso.
Além de bem de uso comum do povo, de interesse público e difuso, o meio
ambiente apresenta-se como um macrobem, considerado na sua integralidade como o
conjunto de influências e interações que abriga e rege a vida em todas as suas formas.
152
O meio ambiente, representado no seu todo (complexo ou universalidade de bens
agregados), é um bem imaterial e incorpóreo, não se confundindo com os bens materiais e
imateriais que o compõem (microbens). Nesse mesmo sentido, o espaço urbano, forma
singular de patrimônio ambiental artificial, constitui um macrobem ambiental, peculiar e
diferenciado. O ambiente urbano, na concepção de macrobem, também se caracteriza como
um bem de uso comum do povo, de interesse público e difuso. Dessa forma, o espaço
urbano, ou seja, a cidade, pertence a todos, não podendo ser objeto de apropriação privada.
149
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 56.
150
OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e
Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 58.
151
Ibidem, p. 57.
152
Os alicerces para a definição do meio ambiente como macrobem encontram-se no artigo 3°, inciso I, da
Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), bem como, nos artigos 225, caput e 170,
inciso VI da Constituição Federal de 1988.
67
De outro modo, os elementos que compõem o complexo ambiental, sejam bens
materiais (um rio ou um lago, uma variedade de planta, uma espécie de animal, um imóvel
de valor histórico, dentre outros) ou imateriais (como o ar puro, sonoridade do ambiente,
gases emitidos pelas plantas, dentre outros), são considerados microbens ambientais. Os
microbens podem ter regime de propriedade variado entre pública e privada e áreas e/ou
bens de interesse público, ao contrário dos macrobens que sempre serão qualificados como
bens de interesse público. Os elementos que compõem o meio ambiente, que estejam sob o
regime de uso privado, devem atender ao interesse público inerente aos bens ambientais e
atentar aos critérios estabelecidos pela legislação ambiental.
O solo urbano, fracionado em propriedades privadas, públicas e áreas de interesse
público ou difuso, também é um microbem ambiental. Nesse sentido, a propriedade como
um elemento ambiental individualmente considerado, é apropriável pública ou
privadamente. Entretanto, em que pese a possibilidade de retenção privada, como bem
ambiental que representa, deve cumprir a função socioambiental, observando-se o disposto
no artigo 225 e também o princípio da proteção ambiental conforme estatui o artigo 170,
inciso VI, da Constituição Federal de 1988.
Para atingir os fins propostos da análise da função socioambiental da propriedade
urbana, interessa verificar somente a propriedade em sua forma privada, inserida na
categoria dos microbens ambientais. De tal modo, em um contexto de preservação urbano-
ambiental e qualidade de vida nas cidades, a propriedade, em sua forma privada, à frente e
antes de sê-la, é um microbem ambiental. Incumbe ao proprietário do bem privado um
dever fundamental com a coletividade, de utilização não apenas em seu favor, mas no
interesse de toda a sociedade, representado pelo atendimento à função socioambiental,
condição que integra o direito-dever pertencente ao proprietário.
A propriedade privada, em um panorama de inserção das normas de direito
ambiental na caracterização dos institutos de Direito Privado, deixa de ser um vínculo
jurídico individual e absoluto estabelecido entre uma pessoa e um bem, para apresentar-se
como um vínculo jurídico coletivo, difuso na sua espécie, que se estabelece entre pessoas
indeterminadas e um bem de uso comum, sem deixar de ser um bem de titularidade
privada.
68
Em outras palavras, a caracterização da propriedade privada urbana como um bem
ambiental (microbem) se em função da interação e dependência existente do meio
artificial com o meio natural, que compõe o complexo ambiental. É com base nessa relação
de interação que advém a necessidade de pensar o solo urbano de forma não fracionada,
mas em sua totalidade, relacionado e determinante para o ambiente urbano e
principalmente para o meio ambiente como um todo. O meio ambiente é o complexo de
bens, dos quais todas as frações do solo urbano e o próprio ambiente urbano fazem parte.
Sua inadequada utilização traz conseqüências não apenas para o proprietário do imóvel,
mas reflete de forma global no meio ambiente.
Dessa forma, o que caracteriza a propriedade privada como um microbem
ambiental é a percepção de que o uso do solo, com vistas a garantir o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, é determinante para a qualidade de vida nas cidades e implica
a preservação e a manutenção do meio ambiente para as presentes e as futuras gerações.
Nesse sentido, a conseqüência de visualizar a propriedade privada como uma espécie de
bem ambiental é a obrigação que se estende ao proprietário do bem em realizar a função
socioambiental de sua propriedade.
Em razão desse entendimento, a função socioambiental a ser cumprida pelo
proprietário do imóvel urbano, exprime o dever de utilização da propriedade, embora de
forma privada, em proveito de toda sociedade, uma vez que a justa titularidade de tal
direito depende do equilíbrio entre o interesse individual e o interesse da coletividade,
caracterizando a função social a ser cumprida. De outra parte, essa mesma obrigação que
se estende ao proprietário, além de ser social, estabelece uma outra faceta, característica da
própria condição humana (do homem como parte integrante do meio ambiente),
representada pelo dever de proteção e preservação ambiental. A funcionalização da
propriedade é envolta de especificidades de natureza social e ambiental, donde falar em
perspectiva socioambiental não explicita uma “posição de concorrência das duas
dimensões da realidade, mas sim de complementariedade das mesmas, afinal, quando as
questões ambientais afloram torna-se muito difícil excluir suas repercussões sociais”.
153
153
MENDONÇA, Francisco. S.A.U. Sistema Ambiental Urbano: uma abordagem dos problemas
socioambientais da cidade. In: MENDONÇA, Francisco (Org.). Impactos socioambientais urbanos. Curitiba:
UFPR, 2004, p. 188.
69
É importante referir a necessidade de equilíbrio entre o ambiente natural e o
ambiente artificial, bem como entre os elementos que os compõem. A inexistência de
equilíbrio pode acarretar modificações irreversíveis como a destruição de espécies animais
e vegetais. Na cidade, o desequilíbrio entre o artificial e o natural pode levar a grandes
problemas de difícil solução, tais quais, a impermeabilização do solo, a ocorrência de
grandes enchentes, a disseminação de doenças, as mudanças climáticas em função da
destruição da vegetação, formando ilhas de calor, dentre outras. Entretanto, ao contrário
dos ambientes naturais, o equilíbrio na cidade é conservado artificialmente, assegurado
mediante o planejamento urbano.
154
Frente ao exposto, observa-se que o parcelamento e a apropriação privada do solo
urbano representam uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos problemas
urbano-ambientais. Os embates causados pelo não-acesso à propriedade urbana (a
especulação imobiliária, o déficit habitacional, a ocupação predatória de áreas
inadequadas, dentre outros) evidenciam a necessidade de organização e de planejamento
do espaço urbano. Diante da emergência de Reforma Urbana, foi aprovada a Lei Federal nº
10.257, em julho de 2001, denominada de Estatuto da Cidade.
2.3 O Estatuto da Cidade e suas diretrizes
As preocupações com o ambiente urbano e o seu planejamento remontam ao final
do século XIX e início do século XX, com as intervenções sanitaristas e o surgimento do
direito urbanístico como disciplina autônoma. No final dos anos 70, o planejamento
urbano, nos moldes tradicionais, começa a ser questionado em função da emergência de
movimentos sociais urbanos,
155
que pretendiam uma Reforma Urbana. A Emenda Popular
da Reforma Urbana, encaminhada à Constituinte de 1988, resultou no capítulo da Política
Urbana na Constituição Federal de 1988. Com isso, viabilizaram-se novos instrumentos de
154
BRANCO, Samuel Murgel. Ecologia da cidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2003, p. 7.
155
“Por movimento social urbano podemos designar toda atitude, revestida do caráter coletivo, cujo objetivo
é modificar as condições de vida referentes a um determinado grupo, utilizando-se de uma linguagem própria
para atingir o objetivo comum. Como exemplo, podemos citar: a) os grupos de pessoas sem-terra ou sem-
teto, que procuram “resolver” seus problemas de moradia ocupando áreas em aparente desuso; b) associações
de bairros que reivindicam redes de água, de esgotos, mudanças no atendimento por ônibus urbanos, a
exigência de vagas nas escolas públicas, as manifestações contra aumentos de tarifas e impostos, etc”.
SPÓSITO, Eliseu Savério. A vida nas cidades. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1996, p. 63.
70
controle do uso adequado do solo, trazendo o conceito fundamental de “Direito à Cidade”,
como direito fundamental difuso,
156
propiciando o surgimento do Estatuto da Cidade.
Não seria conveniente abordar o capítulo constitucional da Política Urbana e sua
regulamentação através do Estatuto da Cidade, sem antes proceder a um breve resgate de
suas origens. Para uma adequada compreensão da evolução do planejamento urbano no
Brasil, a necessidade de uma linha histórica do passado ao presente, que proporcione
refletir sobre os acontecimentos que contribuíram para a passagem de uma gênesis
sanitarista para o Estatuto da Cidade como trajetória do direito urbanístico no Brasil.
A legislação urbanística brasileira tem sua origem na tentativa de solucionar os
problemas resultantes do acelerado processo de urbanização. Foi o aumento do crescimento
urbano durante o século XIX, decorrente do processo de industrialização e do modelo
capitalista, que forçou o direito a acompanhar essa “evolução” através do aprimoramento
da legislação. Mesmo com o advento da República, por volta de 1889, as cidades
continuaram a ser pensadas apenas como o local de moradia, ou seja, não havia qualquer
preocupação associada ao planejamento urbano. Nesse cenário, considera-se o Código de
Posturas do Município de São Paulo, de 1886, como uma das primeiras legislações de
caráter urbanístico que procurava estabelecer um padrão a ser seguido para os novos
arruamentos e as novas construções urbanas, além de adotar o zoneamento como um de
seus instrumentos.
157
A principal preocupação da época, por parte do poder público, era o
disciplinamento do espaço urbano a fim de estabelecer regras para conter o avanço dos
cortiços para as áreas centrais da cidade. As preocupações eram por higiene e
embelezamento das cidades, dando origem à fase denominada de urbanismo sanitarista.
158
De tal forma, durante o período da Primeira República (1889-1930), o foco da ação pública
era o controle da ordem social. A inquietação com a saúde pública, parte do discurso
156
RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de
qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p.303-305.
157
SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do direito e o direito à
cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 31-32.
158
VILLAÇA apud SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do
direito e o direito à cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) Programa de Pós-
Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2005, p. 32.
71
hegemônico do poder público, serviu apenas de pretexto para fomentar ações de resultados
insuficientes, acelerando ainda mais o processo de segregação espacial.
159
É importante salientar que o Código Civil de 1916 foi pioneiro ao introduzir
dispositivos disciplinadores do uso do solo urbano e do direito de construir. Outro marco
importante para o desenvolvimento da legislação urbanística foi a promulgação do Decreto-
Lei nº 25, em 1937, pelo então presidente Getúlio Vargas, tratando do tombamento de bens
e imóveis de interesse público. Também a aprovação da Lei Federal 6.766/79 (Lei de
Parcelamento do Solo Urbano)
160
constituiu um avanço significativo ao disciplinar às
relações de uso do solo urbano.
161
Salienta Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro que os problemas urbanos das décadas de
1960 e 1970 fizeram parte da questão distributiva da sociedade, integrando o programa de
“reformas de base”,
162
fundamentais para o desenvolvimento econômico do país. Para ele,
o posicionamento dos teóricos desenvolvimentistas ficou adormecido durante o período do
regime autoritário, que abandonou os temas das reformas urbana e rural e impulsionou a
consolidação da concentração de renda e de poder. Frente a esse cenário, as primeiras
notícias do que hoje se conhece por Estatuto da Cidade datam de 1976 com o “anteprojeto
de desenvolvimento urbano”, elaborado pelo Conselho Nacional de Política Urbana, com o
auxílio de técnicos progressistas. Esse fato suscitou manchetes alarmistas nos jornais,
alertando para o fato de uma possível “socialização do solo urbano” pretendida pelo
governo militar.
163
O clima de desconfiança instaurado fez com que o anteprojeto fosse abandonado,
não se transformando em proposição de lei. Em momento posterior, a Conferência
159
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Da cidade à nação: gênese e evolução do
urbanismo no Brasil. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert (Orgs.). Cidade, povo e
nação: gênese do urbanismo moderno. São Paulo: Civilização Brasileira, 1996, p. 58.
160
A Lei Federal de parcelamento do solo urbano, Lei 6.766/79, teve sua redação alterada pela Lei
9.785/99, visando estabelecer requisitos urbanísticos a serem observados em projetos de loteamentos e
desmembramentos, com a finalidade de combater a especulação imobiliária e assegurar ao Poder Público o
controle e a gestão do solo urbano.
161
SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do direito e o direito à
cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 33.
162
A abordagem acerca das reformas de base iniciou-se com a realização do seminário “Habitação e Reforma
Urbana” em 1964.
163
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In:
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática:
promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003, p. 11-12.
72
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou o “solo urbano” como tema da Campanha
da Fraternidade, defendendo o enfrentamento da pobreza urbana através do controle
público sobre o mercado imobiliário. Essa iniciativa fez com que houvesse a retomada de
mobilização dos movimentos sociais, ativando o debate acerca da necessidade de uma
política nacional de desenvolvimento urbano.
164
Com a democratização do país, entre as décadas de 1970 e 1980, passou-se a
questionar o direito de todos à cidade. As conseqüências da rápida urbanização acarretaram
precárias condições de vida nas grandes cidades, que vão desde a formação de favelas, ao
caos urbano nos serviços de transporte e saneamento básico até a degradação ambiental em
função da ocupação predatória de áreas inadequadas, gerando uma crise urbano-ambiental
sem precedentes. Essa crise faz emergir o movimento pela Reforma Urbana (retomando os
ideais reformistas dos anos 60), que se firmou nas décadas seguintes com o Projeto de Lei
do Desenvolvimento Urbano, o PL 775/83, culminando com a incorporação de um capítulo
tratando exclusivamente das diretrizes nacionais da Política Urbana, consolidado nos
artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.
O principal objetivo da reforma urbana foi o estabelecimento de novos padrões de
política pública, pautados na instituição da gestão democrática da cidade. Sua finalidade
era ampliar o espaço de exercício da cidadania, primando pela regulação pública do uso do
solo urbano, com vistas a garantir que a propriedade imobiliária atendesse ao princípio da
função social da propriedade. De igual forma, buscava assegurar a justa distribuição dos
ônus e dos benefícios da urbanização.
A Constituição Federal, através dos artigos 182 e 183, reconhece o direito à cidade,
à qualidade de vida e ao bem-estar como direitos fundamentais. São fixados, pela primeira
vez na história constitucional brasileira, princípios referentes à política urbana, à
sustentabilidade, à função social da cidade e da propriedade e à democratização da gestão
urbana. Atribui-se ao município a responsabilidade na promoção da política urbana,
estabelecendo-se o plano diretor como instrumento básico para o desenvolvimento urbano
sustentável e para a implementação da efetivação da função socioambiental da propriedade
e da cidade.
164
Ibidem, p. 12.
73
Com a aprovação da Constituição Federal em 1988, a luta passa a ser pela
regulamentação dos instrumentos da Política Urbana, em função da necessidade de controle
e ordenamento das cidades. Surge então, como projeto de lei em 1989, o PL 5.788,
intitulado Estatuto da Cidade, apresentado ao Senado através do 171/89, pelo senador
Pompeu de Souza (PSDB/DF).
Embora aprovado e encaminhado à Câmara dos Deputados em 1990, o projeto de
lei foi alvo de campanhas contra sua aprovação, articuladas principalmente pelos sindicatos
da construção civil, com o argumento de que a propriedade não poderia sofrer limitações,
uma vez que tem caráter absoluto. Em função disso, na época, trinta e dois parlamentares
assinaram emendas defendendo o direito de propriedade. Tramitando lentamente até 1997,
o projeto de lei assegura sua primeira aprovação e, em dezembro de 1998, segue para a
última análise de mérito pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI) que,
após aprová-lo, encaminhou-o à Comissão de Constituição, Justiça e Redação, onde foi
aprovado em novembro de 2000. Após toda a tramitação, o projeto retornou ao Senado,
sendo aprovado por unanimidade.
165
A trajetória do Estatuto da Cidade foi longa e
demorada, com mais de 11 anos de negociação até ser aprovado em 10 de julho de 2001
como Lei Federal 10.257. A lentidão entre a propositura do projeto de lei à sua
aprovação evidencia os conflitos de interesse em jogo no cenário urbano.
Com o intuito de disciplinar o ambiente urbano, o Estatuto da Cidade encontra
amparo constitucional não apenas nos artigos da Política Urbana, mas também no artigo
225 da Constituição Federal de 1988, que trata do meio ambiente. Também conhecido
como “lei do meio ambiente artificial”, traz contribuição essencial à caracterização e à
efetivação da função social e ambiental da cidade e da propriedade urbana. Estabelece
interfaces entre a política urbana e a política ambiental, especialmente ao regular o uso da
propriedade urbana em prol do equilíbrio ambiental e ao garantir o direito às cidades
sustentáveis. Com base no Estatuto da Cidade, para que a sociedade possa usufruir desse
“direito à cidade”, há a necessidade de que a cidade e a propriedade cumpram sua função
social. A função social da cidade e da propriedade passa a ser objetivo da Política Urbana,
165
FELICIO, Bruna da Cunha; FOSCHINI, Regina Célia. A função social e ambiental da propriedade
urbana: contribuições do Estatuto da Cidade. In: CONGRESSO DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL: 5
ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS, 1, 2006, Porto Alegre. Anais. Porto
Alegre: CORAG, 2006, p. 619.
74
uma vez que o fundamento da lei do meio ambiente artificial gira em torno da adequada
utilização do solo.
O Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e de interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar
dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. São suas principais diretrizes, a garantia de cidades
sustentáveis, do direito à terra urbana e da cooperação entre governo e sociedade. Para
atingir os objetivos e alcançar as diretrizes apontadas, o Estatuto estabelece uma série de
instrumentos (Parcelamento, edificação e utilização compulsórios, IPTU Progressivo no
Tempo, Desapropriação, dentre outros) e aponta o Plano Diretor como meio de
regulamentar e adequar a lei do meio ambiente artificial à realidade de cada município.
Como o principal elemento de concretização do Estatuto da Cidade e de seus objetivos,
surge a gestão democrática da cidade, que coloca na participação da população o elemento
basilar de legitimação de políticas públicas locais.
Cabe destacar que não poderia ser outro o ponto de partida do Estatuto da Cidade se
não fosse a propriedade urbana. Historicamente, é através da inacessibilidade à propriedade
que se revelou o crescimento das desigualdades sociais. É em função dela que se verifica a
ocupação desordenada e predatória do solo urbano e a tão crescente especulação
imobiliária. Nesse cenário, com base no Estatuto da Cidade, interessam dois tipos de
propriedade, analisadas conforme a sua utilização de acordo com o artigo 225 da
Constituição Federal de 1988. A primeira propriedade é aquela que atende a função
socioambiental, tem tutela no art. da Constituição e no capítulo da propriedade do
Código Civil. Apresenta-se, de regra, como sustentável e revela-se como objetivo a ser
alcançado em todas as propriedades. A segunda, é a propriedade que não atende a função
socioambiental, caracterizando-se por ser insustentável, na qual deverão incidir os
instrumentos do Estatuto da Cidade.
Convém referir ainda, que o Estatuto da Cidade, contém dois modelos de políticas
urbanas: o redistributivo-regulatório e o distributivo. O modelo redistributivo pretende ser
um instrumento propício a fomentar condições de “financiar a ação pública que igualize as
condições habitacionais e urbanas da cidade”, através da captura de parte da renda gerada
pela expansão urbana, evidenciando-se regulatório “por pretender submeter o uso e a
ocupação do solo urbano, vale dizer, a valorização da terra aos imperativos das
75
necessidades coletivas”. O segundo modelo adotado, o distributivo, es relacionado ao
fornecimento de serviços, direta ou indiretamente pelo Poder Público, tais quais: a
urbanização de favelas, a regularização fundiária, a rede de saneamento básico, dentre
outros.
166
O Estatuto da Cidade instaurou um novo cenário para o planejamento urbano,
trazendo a necessidade de revisão das práticas de gestão das cidades. A regulamentação do
Estatuto da Cidade, em nível local, através do Plano Diretor, assume relevante papel no
processo transformador do cenário urbano. Entretanto, somente a aprovação do Estatuto
não é o suficiente para acarretar a redução dos impactos socioambientais, é imprescindível
a revisão das políticas públicas até então adotadas e a efetiva participação da sociedade na
gestão do ambiente urbano.
Nas palavras de Edésio Fernandes,
a aprovação do Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional quanto ao
controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando a reorientar a ação do
Poder Público, do mercado imobiliário e da sociedade de acordo com novos
critérios urbanísticos, econômicos, sociais e ambientais. Sua efetiva
materialização em leis e sobretudo políticas públicas, contudo, depende
fundamentalmente da ampla mobilização da sociedade brasileira, dentro e fora
do aparato estatal.
167
De outro lado, é forçoso referir que o espaço urbano, principalmente nas últimas
décadas, vem-se caracterizando por aprofundar as diferenças sociais, ocasionando um
movimento paradoxal: o espaço que une é o mesmo que separa os homens. No entender de
Milton Santos, ao passo que as cidades crescem, aumenta a distância entre os homens. A
proximidade física proporcionada pelo convívio nas cidades, não elimina o distanciamento
social, que reflete uma falsa unidade. “Os progressos de nossa infeliz civilização conduzem
mais e mais a uma sociedade atomizada por um espaço que impressão de reunir”.
168
Frente a essa realidade, o Estatuto da Cidade permite um modo de percepção global dos
problemas urbano-ambientais, possibilitando e instrumentalizando uma possível resolução
166
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In:
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática:
promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003, p. 15.
167
FERNANDES, Edésio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória
do Direito Urbanístico no Brasil. In: MATTOS, Liana Portilho (Org.). Estatuto da Cidade Comentado: lei n.
10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 62.
168
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2004, p.34.
76
desses problemas em âmbito local, através da aproximação social, por meio da
participação.
De certa forma, o planejamento urbano é reflexo das relações sociais, pois reproduz
essas relações mesmo que indiretamente. É impossível esperar que uma sociedade
caracterizada pela desigualdade possa produzir cidades que não estejam pautadas por essa
característica. O espaço urbano “se constrói e se reproduz de forma desigual e
contraditória. A desigualdade espacial é produto da desigualdade social”.
169
O homem
urbano é individualista, apesar de conviver, não interage socialmente, o que acaba por
propiciar a violência urbana e o desvinculamento do valor da solidariedade. “Criar, nas
cidades, espaços de convivência solidária é tarefa difícil, posto que se defronta com uma
concepção privatista de propriedade própria do nosso Direito Civil e, culturalmente, muito
bem assimilada e estratificada”.
170
Nesse mesmo sentido, salienta Milton Santos que as desigualdades sociais e a
reprodução do espaço desigual também têm origem no fato de que o espaço urbano
transforma o homem em mero instrumento de trabalho, desvinculando-o de sua
característica principal, de ser sujeito modificador da realidade. Em outra perspectiva, da
cidade como o ambiente de consumo, retrata Milton Santos que “quando se confundem
cidadão e consumidor, a educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como conquistas
pessoais e não como direitos sociais. [...] o lugar do cidadão vai ficando menor, e até
mesmo a vontade de se tornar um cidadão por inteiro se reduz”.
171
Para Ana Fani, a cidade é a representação da materialização do trabalho social, é o
instrumento da criação da mais-valia. Assim, a cidade é vista como um bem material, uma
mercadoria a ser consumida de acordo com as determinações de reprodução do capital, em
que a terra urbana é a principal mercadoria.
172
De tal forma, “[...] no centro da crise urbana,
está o poder conferido pela propriedade privada da terra que cria as atuais normas de acesso
à cidade, tanto no que se refere à moradia, como às condições de vida [...]”.
173
Assim, para
os não consumidores a realidade é bem mais significativa, pois representada pela exclusão
169
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999, p. 23.
170
ROSA, Elianne M. Meira. A cidade antiga e a nova cidade. In: GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu
Estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 13-14.
171
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987, p. 127.
172
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999, p. 27-28.
173
Ibidem, p. 33.
77
social. De outro modo, em face do espaço coletivo que a cidade representa, Rogério Gesta
Leal destaca:
[...] pensar as possibilidades de uma Cidade Democrática de Direito é
possível a partir de uma Sociedade Democrática de Direito, concebida como
resultado de um novo projeto de racionalidade e de civilidade social não
meramente instrumental. Tal projeto diz respeito a uma também nova concepção
de sociabilidade calcada em valores e objetivos humanitários e solidários,
forjado não pela lógica da exclusão social, mas pela premissa de que todos
somos cidadãos e merecemos tratamento e consideração iguais”.
174
As cidades, em uma análise contemporânea, pertencem ao capital, subjugando os
homens à satisfação das necessidades de consumo e lazer, condicionando as relações
humanas à coisificação na medida em que as relações sociais tendem a aparecer como
relações entre coisas. A forma de vida nas cidades faz com que as pessoas percam a
identificação com o ambiente urbano, com o seu local de moradia e de trabalho, e,
principalmente, percam a identificação com as outras pessoas, diluindo os contatos e
tornando as relações fragmentadas.
175
Frente a essa realidade, as desigualdades sociais passam a ser vistas como naturais,
como características da cidade, fomentando a segregação. “A propagação deste sentimento
de não-cidadania e não-solidariedade como algo incontrolável acaba por espalhar uma
sensação de conformismo e o convívio começa a se desintegrar, conduzindo a uma
apartação social [...]”.
176
É justamente esse processo de exclusão social e territorial uma
das principais causas da degradação ambiental, pois, não tendo as mesmas condições de
moradia e de acesso a produtos e serviços, a maior parte da população de baixa renda é
ejetada para a periferia e para áreas de risco, como os morros por exemplo, invadem áreas
públicas ou áreas de preservação permanente, acarretando danos para o ambiente natural e
artificial.
Ressalta-se novamente que a forma de apropriação e utilização do solo urbano
representa uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos problemas urbano-
ambientais. É inegável que os percalços causados pelo não-acesso à propriedade urbana
174
LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 44.
175
Ibidem, p. 14-15.
176
RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Uma cidade para todos. In: GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu
Estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 180.
78
evidenciam urgência na promoção de reformas urbanas, voltadas, principalmente, para a
sustentabilidade urbana. Por evidente que o Estatuto da Cidade é aparato legislativo
indispensável na busca de justiça social, de equilíbrio ambiental e do bem-estar coletivo.
Frente a isso, questiona-se: quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade
possibilitam a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana?
Com o propósito de buscar respostas ao questionamento proposto e com base nos
apontamentos subscritos, procurar-se-á verificar quais os instrumentos abarcados na lei do
meio ambiente artificial são aptos a efetivar a função socioambiental da propriedade
urbana. De tal forma, uma vez examinada as origens do Estatuto da Cidade e suas
principais diretrizes, convém analisar a importância da sustentabilidade no espaço urbano.
2.4 Sustentabilidade urbana
A temática urbano-ambiental passou a ocupar relevante papel na sociedade
contemporânea, uma vez que a regulamentação dos dispositivos constitucionais da política
urbana e o conseqüente surgimento do Estatuto da Cidade propiciaram uma progressiva
atenção ao meio ambiente. Em um espaço cada vez mais urbanizado, tornam-se
indispensáveis a instituição e a implementação de políticas públicas
177
voltadas para a
sustentabilidade urbana.
177
O significado da expressão políticas públicas de certa forma encerra uma redundância, uma vez que se
pode interpretá-las como sendo a arte de lidar com um público que é público. Quando se fala em políticas
públicas está se fazendo uma distinção entre aquilo que é público, do ponto de vista orçamentário, e aquilo
que é privado, ou seja, fala-se em recursos públicos advindos do Estado. Assim, o significado da expressão
toma corpo, designando o conjunto de ações políticas voltadas ao atendimento de demandas sociais, ou seja,
é o resultado da atividade política. BONETTI, Lindomar Wessler. Políticas públicas por dentro. Ijuí: Unijuí,
2006, p. 9. Norberto Bobbio salienta que a palavra política está associada a tudo que se relaciona à cidade,
sociável ou social. Em suas origens o significado possuiria a designação de lis, tendo-se assim a possível
razão de sua associação ao termo “pública” (comum a todos) para evidenciar ligação ao planejamento,
aplicação e execução de medidas necessárias à sociedade. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a
filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 159. Por sua vez, Alessandra
Gotti Bontempo entende que as políticas públicas estão ligadas a implementação dos direitos sociais, uma
vez que a constitucionalização de tais direitos exige do Estado uma postura ativa, a fim de promover
condições para que os direitos sociais sejam realmente efetivados. Dessa forma, as políticas públicas
representam instrumentos para o cumprimento das normas constitucionais. BONTEMPO, Alessandra Gotti.
Direitos sociais: eficácia e acionabilidade à luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2005, p. 210. Por
fim, é importante destacar que para Maria Paula Dallari Bucci as políticas públicas são “[...] programas de
ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a
realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas públicas são “metas
79
Nas últimas décadas, os meios de comunicação passaram a veicular notícias a
respeito de: aquecimento global, aumento do nível de água nos oceanos, escassez de água
potável, chuva ácida, poluição do ar, questão dos resíduos e lixo urbano, agrotóxicos,
esgotos a céu aberto, grandes enchentes, entre outros. Todas essas questões são reflexos do
impacto das ações humanas sobre o ambiente, colocando a proteção ambiental como
problema de repercussão global.
178
Frente a isso, torna-se evidente que a aplicação dos
princípios do desenvolvimento sustentável se impõe, principalmente, no ambiente urbano.
O desenvolvimento sustentável é tema recente, tem origem nas transformações da
ordem internacional e, principalmente, na emergência do movimento ambientalista global.
Com a intensificação dos problemas socioambientais globais, a preocupação com o meio
ambiente aflorou na década de 1960 com a revolução ambiental estadunidense,
expandindo-se para o Canadá, Europa Ocidental, Japão, Nova Zelândia e Austrália na
década de 1970 e atingindo a América Latina, a Europa Oriental, a União Soviética, o Sul
e o Leste da Ásia na década de 1980.
179
Assim, o ambientalismo, surgido como um
movimento reduzido de pessoas preocupadas com o meio ambiente, transformou-se em um
movimento multissetorial.
180
coletivas conscientes” e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato”. BUCCI, Maria Paula
Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 241.
178
Por muito tempo no Brasil tivemos (ou ainda temos) um “[...] modelo de desenvolvimento ecologicamente
predatório, economicamente concentrador, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante. Devastamos
mais da metade de nosso país acreditando que era preciso deixar a natureza para entrar na história, pois eis
agora que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exige-nos como passaporte justamente a
natureza”. RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de
qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, [s.p].
179
Para Maria de Assunção Ribeiro Franco, “o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu da Estratégia
Mundial para a Conservação (World Conservation Strategy) lançada pela União Mundial para a Conservação
(IUCN) e pelo Fundo Mundial para a Conservação (WWF), apoiados pelo Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (PNUMA), embora já tivesse aparecido com o nome de “ecodesenvolvimento” na Reunião
de Founeux em 1971 [...]. Explica que a sustentabilidade tem origem no conceito ecológico do
“comportamento prudente” do predador em não explorar demasiadamente sua presa, tendo em vista assegurar
uma “produção ótima sustentável”, em outras palavras, a sustentabilidade quer passar a idéia de o quanto se
pode consumir sem empobrecer. FRANCO, Maria de Assunção Ribeiro. Planejamento ambiental para a
cidade sustentável. 2. ed. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 26.
180
Salientam Eduardo Viola e Hector Leis, que a preocupação pública com a deterioração ambiental fez
emergir e desenvolver: 1) organizações não-governamentais e grupos comunitários de proteção ambiental; 2)
agências estatais incumbidas de proteger o ambiente; 3) grupos e instituições científicas de pesquisa dos
problemas ambientais; 4) a implementação de um paradigma de gestão dos processos produtivos por parte de
administradores e gerentes, buscando a redução da poluição, a conservação da energia e o controle de
qualidade; 5) um mercado consumidor verde, demandando alimentos orgânicos, papel reciclado e produtos
com tecnologias limpas, entre outros; 6) agências e tratados internacionais. VIOLA, Eduardo J.; LEIS,
Hector R. A evolução das políticas ambientais no Brasil, 1971-1991: do bissetorialismo preservacionista para
o multissetorialismo orientado para o desenvolvimento sustentável. In: HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA,
Paulo Freire (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. 2.ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1995, p. 75-76.
80
É importante referir que, no início da década de 1970, o ambientalismo contava
com dois posicionamentos: a minoria catastrofista e a maioria gradualista. A minoria
catastrofista (noticiada pelo relatório “Os limites de Crescimento”, elaborado para o Clube
de Roma) acreditava ser necessário parar de imediato o crescimento econômico e
populacional. Por sua vez, a maioria gradualista (evidenciada com a declaração da
Conferência de Estocolmo em 1972) defendia a necessidade do estabelecimento de
mecanismos de proteção ambiental voltados à reversão da dinâmica demográfica e
populacional, visando a corrigir ou, pelo menos, atenuar os problemas ocasionados pelo
desenvolvimento econômico.
181
De outro modo, com a consolidação do ambientalismo como movimento
internacional, ao final da década de 1980, passam a distinguir-se duas posições
relacionadas à política: uma minoritária e outra majoritária. A posição minoritária não
assume características de dimensão política, apenas enfatiza a necessidade de atitudes
éticas e espirituais de tendência biocêntrica. a posição majoritária admite uma dimensão
política, subdividindo-se em duas outras posições: uma minoritária radical, considerando a
necessidade de disseminação de valores ecológicos e a redistribuição do poder político e
econômico; e outra majoritária reformista, defendendo a urgência na adoção de um modelo
de desenvolvimento centrado na sustentabilidade social e ambiental, assim como a
necessidade de incentivo ao planejamento familiar.
182
Frente às particularidades do cenário ambientalista internacional, o conceito de
desenvolvimento sustentável passa a ocupar posição central, sobretudo após a publicação
do relatório da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987
(“Nosso Futuro Comum”, também conhecido como Relatório “Brundtland”).
183
Em face
181
Ibidem, p. 76.
182
Ibidem, p. 77.
183
No campo do desenvolvimento sustentável, existem muitas dimensões de sustentabilidade com valores
ético-sociais muito diversos. Nesse sentido, Eduardo Viola e Hector Leis classificam as versões de
desenvolvimento sustentável em três categorias: estatista, comunitária e de mercado. Para eles, “o enfoque
estatista considera que a qualidade ambiental é essencialmente um bem público que somente pode ser
resguardado eficientemente através de uma incisiva intervenção normativa, reguladora e promotora do
Estado”, esse enfoque baseia-se exclusivamente em mecanismos de comando e controle. Já o enfoque
comunitário considera que as organizações de base da sociedade têm papel predominante na transição para
uma sociedade sustentável, valorizando “as possibilidades de avanços em nível local e regional nos lugares
em que as mudanças nos valores da população tenham sido mais significativas”, priorizando o princípio da
equidade social. De outro lado, o enfoque de mercado, “afirma que através da lógica intrínseca do mercado,
com significativa apropriação privada dos recursos naturais e da qualidade ambiental e expansão dos
consumidores verdes, pode-se avançar eficientemente na direção de uma sociedade sustentável”. Esse
81
disso, o debate dos anos 70, separando as questões ambientais do tema do
desenvolvimento, é substituído pela preocupação em atingir um desenvolvimento
sustentável, buscando harmonizar desenvolvimento econômico e proteção ambiental.
O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente
sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas
próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: 1 – o conceito de
“necessidades”, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que
devem receber a máxima prioridade; 2 – a noção das limitações que o estágio da
tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de
atender às necessidades presentes e futuras [...]. Em seu sentido mais amplo, a
estratégia do desenvolvimento sustentável visa a promover a harmonia entre os
seres humanos e entre a humanidade e a natureza. No contexto específico das
crises do desenvolvimento e do meio ambiente surgidas nos anos 80 que as
atuais instituições políticas e econômicas nacionais e internacionais ainda não
conseguiram e talvez não consigam superar - , a busca do desenvolvimento
sustentável requer: um sistema político que assegure a efetiva participação dos
cidadãos no processo decisório; um sistema econômico capaz de gerar
excedentes e know-how técnico em bases confiáveis e constantes; um sistema
social que possa resolver as tensões causadas por um desenvolvimento não
equilibrado; um sistema de produção que respeite a obrigação de preservar a
base ecológica do desenvolvimento; um sistema tecnológico que busque
constantemente novas soluções; um sistema internacional qu estimule padrões
sustentáveis de comércio e financiamento; e, um sistema administrativo flexível
e capaz de autocorrigir-se.
184
No Brasil, os primeiros antecedentes do ambientalismo remontam ao ano de 1958,
em razão da criação da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza. Entretanto, o
processo de criação do ambientalismo brasileiro se efetivamente na década de 1970,
quando começam a aflorar propostas de preservação ambiental por parte do Estado e da
sociedade civil, estruturando um movimento bissetorial constituído por associações
ambientalistas e agências estatais de meio ambiente.
185
Na década de 1980, com a
disseminação da preocupação ambiental, o ambientalismo brasileiro transforma-se em um
movimento multissetorial.
enfoque considera necessária a existência de mecanismos reguladores estatais e a atuação da sociedade
organizada, subordinados aos mecanismos de mercado. Ibidem, p. 79-80.
184
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 46.
185
É importante lembrar que na época da realização da Conferência de Estocolmo, em 1972, o governo
brasileiro assumia posição de resistência ao reconhecimento dos problemas ambientais. A principal
justificativa para tal atitude focava-se no argumento de que a poluição existente era a miséria, negando-se ao
reconhecimento da questão da explosão demográfica no Brasil. Os fundamentos desse posicionamento estão
ligados à política interna da época, que procurava atrair indústrias (mesmo que poluentes), baseando-se na
idéia de desenvolvimento a qualquer custo. Assim, de certa forma, a criação da Secretaria Especial do Meio
Ambiente, em 1973, foi uma tentativa de diminuir a imagem negativa causada pelo Brasil em Estocolmo.
VIOLA, Eduardo J.; LEIS, Hector R. A evolução das políticas ambientais no Brasil, 1971-1991: do
bissetorialismo preservacionista para o multissetorialismo orientado para o desenvolvimento sustentável. In:
HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA, Paulo Freire (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento
sustentável. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 81-82.
82
Cabe ressaltar ainda, que o ano de 1990 foi importante para a definição da
problemática ambiental brasileira. Com a decisão de sediar a Conferência das Nações
Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD 92), houve uma mudança
qualitativa nos debates ambientais, não se falando mais em proteção ambiental e
desenvolvimento econômico dissociados. Alterou-se o eixo do debate para o enfoque de
um novo estilo de desenvolvimento, permeado pela proteção ambiental.
Essa nova relação “sociedade - meio ambiente” foi expressa, mesmo que de forma
parcial, na Resolução 44/228, de 22 de dezembro de 1989, na Assembléia Geral das
Nações Unidas, quando convocada a Conferência sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Assim, com a ECO 92,
como ficou conhecida, o desenvolvimento sustentável foi adotado na Declaração do Rio
186
e na Agenda 21
187
como objetivo a ser alcançado. De tal forma, superou-se o antagonismo
entre desenvolvimento socioeconômico e proteção ao meio ambiente. A propósito, cabe
referir que a Agenda 21 destaca ainda, como indispensáveis ao desenvolvimento
sustentável, o estabelecimento de novos padrões de consumo, alinhando-se ao exposto no
Princípio 8 da Declaração do Rio,
188
o que significa
186
Princípio 4: “Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte
integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste”. Declaração do
Rio. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007.
187
No preâmbulo da Agenda 21 consta: “A humanidade se encontra em um momento de definição histórica.
Defrontamos-nos com a perpetuação das disparidades existentes entre as nações e no interior delas, o
agravamento da pobreza, da fome, das doenças e do analfabetismo, e com a deterioração contínua dos
ecossistemas de que depende nosso bem-estar. Não obstante, caso se integrem as preocupações relativas a
meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer às necessidades
básicas, elevar o nível da vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e construir um
futuro mais próspero e seguro. São metas que nação alguma pode atingir sozinha; juntos, porém, podemos -
em uma associação mundial em prol do desenvolvimento sustentável”. Agenda 21. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007.
188
Princípio 8: Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais elevada para
todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insustentáveis de produção e consumo, e promover
políticas demográficas adequadas”. Declaração do Rio. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso
em: 11 set. 2007.
83
[...] advogar um novo estilo de desenvolvimento que seja ambientalmente
sustentável no acesso e no uso dos recursos naturais e na preservação da
biodiversidade; socialmente sustentável na redução da pobreza e das
desigualdades sociais e promotor da justiça e da eqüidade; culturalmente
sustentável na conservação do sistema de valores, práticas e símbolos de
identidade [...]; politicamente sustentável ao aprofundar a democracia e garantir
o acesso a e a participação de todos nas decisões de ordem pública. Este novo
estilo de desenvolvimento tem por norte uma nova ética do desenvolvimento,
ética na qual os objetivos econômicos do progresso estão subordinados às leis
de funcionamento dos sistemas naturais e aos critérios de respeito à dignidade
humana e de melhoria da qualidade de vida das pessoas.
189
Desse modo, a Agenda 21 global, como um projeto audacioso pautado em um pacto
ético, prevê a elaboração e a implementação de Agenda 21 nacional e de Agenda 21 local
pelos países signatários. A versão brasileira da Agenda 21 nacional representa um processo
e um instrumento de planejamento participativo para o desenvolvimento sustentável. A
construção da Agenda 21 brasileira iniciou em 1996 e foi finalizada em 2002, sendo que a
partir de 2003, entrou em fase de implementação. De outro lado, a agenda 21 local
representa a criação e a implementação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento
sustentável. Com a Agenda 21 local o reconhecimento da importância do nível local na
concretização de políticas públicas uma vez que as estratégias de sustentabilidade se
evidenciam mais eficientes quando concebidas com o apoio da população.
Nesse sentido, sendo estabelecida a Agenda 21 local pelo município e
implementadas as diretrizes do Estatuto da Cidade através do Plano Diretor municipal, a
possibilidade de efetivação da função socioambiental da propriedade urbana aumenta
consideravelmente. A propriedade urbana, quando atende a função socioambiental,
promove o desenvolvimento racional, adequado e sustentável do solo urbano. A função
socioambiental da propriedade urbana está intimamente ligada ao princípio do
desenvolvimento sustentável, pois ambas são objetivos e diretrizes gerais da lei do meio
ambiente artificial.
No entanto, fazendo um breve recorte, é impossível não referir, como bem lembra
Renato Nalini, que a sociedade egoísta não crê na preservação do ambiente para as futuras
gerações. Importa usufruir, ocupar todos os terrenos e cortar todas as árvores. Interessa
traduzir tudo em pecúnia. Não se observa que a natureza e o ambiente artificial
189
GUIMARÃES, Roberto P. A ética da sustentabilidade e a formulação de políticas de desenvolvimento. In:
VIANA, Gilney; SILVA, Marina; DINIZ, Nilo (Orgs.). O desafio da sustentabilidade: um debate
socioambiental no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 55.
84
equilibrados não estão dissociados do progresso, de tal maneira que a degradação a todas
as formas de meio ambiente vem assumindo proporções catastróficas. Nas cidades, a
problemática agrava-se ainda mais em decorrência de uma falsa idéia de urbanização. Em
nome do desenvolvimento, justifica-se a destruição do ambiente, invocando-se
incompatibilidade entre progresso e preservação.
190
Considerável parcela das agressões ao ambiente deriva do desconhecimento. O
ser humano desconhece - ou se comporta como se o desconhecesse - a interação
entre homem e Natureza. [...] Não satisfeita, a ignorância conseguiu uma
eficiente aliada: a cupidez. Acreditando-se eterno, o ser humano apenas se
preocupa com amealhar mais e mais matéria, como se lhe fosse possível dela
usufruir durante a eternidade. O dinheiro anestesia a consciência. Em nome dele
tudo se legitima. As pessoas acostumaram-se a ver a natureza como um
supermercado gratuito. Dali tudo se extrai, nada se devolve.
191
As sociedades contemporâneas têm-se mostrado complexas sociedades de risco,
baseadas num modelo de exploração econômica dos recursos ambientais, cujo efeito são
danos ambientais sistemáticos, acabando por vitimizar as gerações presentes e futuras.
Nessa seara, José Rubens Morato Leite investiga a possibilidade de instaurar um Estado de
Direito Ambiental. Contudo, salienta que a construção desse Estado parece um tanto
utópica se, levado em conta que nele deve haver um estado de direito democrático, de
justiça social e ambiental para sua concretização.
192
Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos,
sua realização pressupõe a transformação global, não dos modos de
produção, mas também do conhecimento científico, dos quadros de vida, das
formas de sociabilidade e pressupõe, acima de tudo, uma nova relação
paradigmática com a natureza, que substitua a relação paradigmática moderna.
É uma utopia democrática porque a transformação a que aspira pressupõe a
repolitização da realidade e o exercício radical da cidadania individual e
coletiva.
193
Para edificação do Estado de Direito Ambiental, surgem obstáculos, tendo em vista
que as exigências para sua implementação dizem respeito a uma dimensão transfronteiriça,
de modo que são necessários instrumentos que atinjam nível global. Contudo, ao ver de
190
NALINI, Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2003, p. XV-XXVI.
191
Ibidem, p. XXVII.
192
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinaridade e a Proteção Jurídico-
ambiental em Sociedades de Risco: Direito, Ciência e Participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO
FILHO, Ney de Barros (Org.). Direito Ambiental Contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2004, p.104.
193
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São
Paulo: Cortez, 2000, p. 43-44.
85
José Rubens Morato Leite, submeter a proteção ambiental a uma internacionalização
poderia ocasionar a transferência de soberania dos Estados. Deve-se atentar ao fato de que
os verdadeiros implementadores das políticas ambientais são os órgãos locais e a
comunidade.
194
Objetivando alcançar o Estado de Direito Ambiental, propõe-se a superação da
crise de percepção pela qual passa a sociedade, através de instrumentos que busquem
produzir a informação, por meio de soluções transdisciplinares, possibilitando a construção
do consenso democrático e modificação da compreensão do futuro, atribuindo-se
obrigações e responsabilidades a todos os membros da sociedade. Nesse cenário de
mudanças, a participação popular é fundamental, uma vez que possibilita o exercício da
democracia ambiental, de tal forma que a transdisciplinaridade das questões ambientais
sejam alternativas para a organização de um modelo de Estado sustentável para o futuro.
Para que esse modelo de Estado se materialize, em primeiro lugar, deverá haver
uma nova cultura ambiental capaz de coibir a reiteração de práticas lesivas. Isso, no
entanto, não depende do governo, pois a crise não é do ambiente, a crise é de valores. É
uma crise ética.
195
Em relação à proposta desenvolvimentista de um Estado Ambiental, José Joaquim
Gomes Canotilho refere-se a um "Estado Constitucional Ecológico" conjugado à idéia de
democracia sustentada, definindo, para tanto, que
[...] o Estado constitucional, além de ser e dever ser um Estado de Direito
democrático e social, deve ser também um Estado regido por princípios
ecológicos; [...] o Estado ecológico aponta para formas novas de participação
política sugestivamente condensadas na expressão democracia sustentada.
196
A democracia do Estado moderno precisa se adequar ao desenvolvimento
ambientalmente justo. A proposta de Canotilho é de que se possibilite a percepção dos
problemas jurídico-ambientais e a tutela ambiental como responsabilidade global. Ao
194
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinaridade e a Proteção Jurídico-
ambiental em Sociedades de Risco: Direito, Ciência e Participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO
FILHO, Ney de Barros (Org.). Direito Ambiental Contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2004, p.106.
195
NALINI, Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2003, p. XXXIII.
196
CANOTILHO apud NALINI, Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2003, p.
31.
86
direito de cada um corresponde o dever de cidadania na defesa do meio ambiente, de tal
sorte que o meio ambiente é considerado um bem ambiental difuso.
197
Contudo, deve-se ter
uma perspectiva associativa que estimule a democracia participativa no suprimento das
deficiências do Estado.
Canotilho propõe alcançar o nível de Estado Constitucional Ecológico, concebendo,
de forma integrada, o ambiente, através de uma proteção global e sistemática;
institucionalizando os deveres fundamentais ecológicos, criando uma comunidade com
responsabilidade ambiental, ou seja, a tarefa cidadã de zelar pelo meio ambiente, o agir
interativo da administração. Menciona que a tutela sistemática e global do meio ambiente
não é tarefa solitária dos agentes públicos; é também dever dos cidadãos. Como
conseqüência dessa nova concepção de Estado Constitucional Ecológico, haverá na
participação popular uma maior responsabilização de todos e será incutida a idéia de
sustentabilidade.
198
Diante da realidade de um período de intensos contrastes, a proteção ambiental
indica urgência na formação de uma nova concepção de Estado, um Estado
Democraticamente Ambiental. necessidade de repensar a teoria jurídica tradicional e
buscar uma transdisciplinaridade, relacionando as ciências sociais, humanas e jurídicas na
busca do bem comum. Cumpre salientar que o homem está inserido no meio ambiente, ou
seja, faz parte dele, não estando desvinculado ou apartado. Diante de tal assertiva,
depreende-se que, para a proteção efetiva ao meio ambiente, deve haver o deslocamento da
posição do homem como centro, desvinculando-se da teoria antropocêntrica clássica, para
conceber o homem como parte do meio ambiente.
199
Contudo, conforme explica Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros, diante da
realidade, apesar da grandiosidade da proteção ambiental como um direito fundamental e
com todas as conseqüências que emanam disso, não se tem mostrado suficientemente
eficaz. Torna-se necessário o reconhecimento da vinculação jurídica da sociedade, em seu
197
Ibidem, 32-33.
198
Ibidem, p. 33-34.
199
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma
nova concepção de um estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.).
Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, v. 2, p. 197-198.
87
aspecto coletivo e individual, e do próprio poder público, para que se torne possível a
efetivação das normas constitucionais e infraconstitucionais de proteção ambiental.
200
Outra questão que se coloca frente à irreversível urbanização em todo planeta é a
ecologia urbana. As relações entre o ambiente natural e o artificial, num primeiro
momento, são vistas de forma conflituosa, aos poucos, percebe-se que as cidades não
constituem um ente em separado da natureza. Em relação às cidades, há um intenso desafio
ecológico, intimamente ligado à questão da função socioambiental da propriedade e do
desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Deve-se perceber que a cidade de concreto, de asfalto e de vidro constituem uma
natureza transformada, um novo ecossistema, diferente do ambiente natural, mas não fora
dele. “A criação do homem interage incessantemente, para o bem ou para o mal, com o
ambiente natural que o rodeia e o envolve. No ambiente construído, a natureza não chega a
desaparecer”.
201
O meio ambiente natural reage, se a ão do homem tende ao
desequilíbrio, trazendo efeitos inesperados ao meio ambiente construído. Para Alfredo
Sirkis, “a ecologia urbana não se confunde com simples conservação do verde e de
amenidades paisagísticas”, envolve, acima de tudo, a “sustentabilidade econômica, social,
energética das relações humanas e daquelas entre o meio ambiente natural e o
construído”.
202
Os modelos urbanísticos, uma vez implementados, têm vida longa, e suas
conseqüências sobrevivem a gerações, sendo difícil reverter os males causados. Ao
contrário do que se pensa, a urbanização dos últimos anos, não é simples produto de uma
estrutura rural injusta. Tampouco da redução de mão-de-obra, conseqüente da mecanização
dos meios de produção. É "movida pelo desejo da juventude rural de acesso a
oportunidades, bens materiais, conhecimentos, vivências que a urbe tem como oferecer,
precisamente pela sua imensa gama de oportunidades de contato".
203
200
Ibidem, p. 200.
201
SIRKIS, Alfredo. O desafio ecológico das cidades. In: TRIGUEIRO, André (Coord.). Meio ambiente no
século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 215.
202
Ibidem, p. 218.
203
Ibidem, p. 219.
88
De tal forma, o principal obstáculo, no desenvolvimento das diretrizes trazidas pelo
Estatuto da Cidade e no estabelecimento de um espaço urbano sustentável, é que a maioria
das cidades possui, em sua parte informal, ou seja, nas "favelas", desequilíbrios que
comprometem um possível espaço urbano sadio. Para que se possa desenvolver uma
ecologia urbana, devem-se estabelecer políticas públicas que integrem as "favelas" à
cidade formal, propiciando-lhes condições adequadas de urbanização e de uma maior
atuação do poder público nas questões de interesse local.
Ao contrário do que afirma Boaventura de Sousa Santos, Alfredo Sirkis entende
que "o objetivo de uma cidade sustentável não é uma meta utópica, ela depende de uma
série de ações perfeitamente alcançáveis, conquanto, algumas difíceis por fortes injunções
culturais, políticas e econômicas".
204
O termo “cidade sustentável” surgiu logo após a difusão do princípio do
desenvolvimento sustentável, na década de 1970. Foi nessa época que se pôde perceber a
degradação da qualidade de vida, principalmente no espaço urbano, causada pelo consumo
exacerbado de recursos naturais. Entretanto, o conceito de cidade sustentável somente
apareceu no cenário internacional a partir da década de 1990, tendo papel relevante para o
desenvolvimento do conceito a promoção de conferências do Habitat promovidas pela
Organização das Nações Unidas nos anos de 1976 (Habitat I Vancouver, Canadá), 1996
(Habitat II – Istambul, Turquia) e 2001 (Istambul+5 - Nova Iorque, EUA).
205
No ordenamento jurídico brasileiro, o conceito de cidade sustentável surgiu com o
Estatuto da Cidade, que prevê, no art. 2°, inciso I, o que vem a ser uma cidade sustentável:
Art. 2° A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes
diretrizes gerais:
I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
futuras gerações;
206
204
Ibidem, p. 228.
205
A conferência Habitat I, foi concomitante à criação do Centro das Nações Unidas para os
Estabelecimentos Humanos, em Nairobi, no Quênia. Em seqüência, a conferência Habitat II possibilitou a
produção de dois documentos internacionais: a Declaração de Istambul (sobre os Estabelecimentos
Humanos) e a Agenda Habitat. SILVA, José Antônio Tietzmann e. As perspectivas das cidades sustentáveis:
entre a teoria e a prática. In: Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 1, n. 43, p. 133-176, jul./set. 2006, p.
140-141.
206
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e outras providências. Diário Oficial [da] República
89
Desse conceito legal, entende-se que cidade sustentável é aquela que atende ao
disposto no art. 2°, inciso I. No entanto, não basta a forma como a lei tentou conceituar o
que seja a sustentabilidade da cidade, eis que, atualmente, a construção de comunidades
sustentáveis tem sido um dos maiores desafios.
Em verdade, conforme leciona Fritjof Capra, as definições de sustentabilidade são
"conselhos" morais, que advertem sobre a responsabilidade de propiciar às futuras
gerações um mundo com tamanhas oportunidades, tais quais existem hoje. Lembra ele, que
a sustentabilidade está ligada ao movimento da ecologia profunda, uma vez que não se
separa o homem do ambiente como objeto isolado, mas sim, visualiza-se o mundo como
uma rede de fenômenos interligados, no qual o homem é apenas um dos filamentos da teia
da vida. Nessa nova forma de perceber as interconexões, desenvolve-se um pensamento
sistêmico, em que as cidades, embora figurem como ecossistemas diferenciados dos
ecossistemas naturais, são também um sistema vivo e interligado, fazendo parte do todo.
207
De outro modo, tomando-se a teoria dos sistemas vivos, discutida de forma
instigante por Fritjof Capra, pode-se dizer que existe um elo entre as comunidades
ecológicas e as comunidades humanas. As comunidades ecológicas (ecossistemas) têm se
organizado, durante bilhões de anos de evolução, de maneira sutil e complexa, com a
finalidade da sustentabilidade. Para ele, as comunidades humanas deveriam aprender a
viver de maneira sustentável, adotando o princípio da “interdependência”, no qual, todos
os membros da comunidade ecológica estão interligados em uma rede de relações - a teia
da vida onde o comportamento de cada membro depende do comportamento dos outros.
Dessa forma, “o sucesso da comunidade depende do sucesso de cada um de seus membros,
enquanto que o sucesso de cada membro depende do sucesso da comunidade como um
todo”.
208
Nessa seara, as preocupações com o meio ambiente adquirem importância, uma vez
que as conseqüências da irresponsabilidade humana têm-se mostrado cada vez mais
alarmantes. Quanto a isso, refere que os problemas tanto em relação ao meio ambiente
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de jul. 2001. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 11
set. 2007.
207
CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO,
André (Coord.). Meio ambiente no século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 19-22.
208
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. o Paulo: Cultrix,
1999, p. 232.
90
natural como ao artificial, não podem ser entendidos isoladamente. Os problemas são
sistêmicos. "Esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de
uma única crise, que é, em grande medida, uma crise de percepção". Algumas das soluções
para os principais problemas urbanos são simples. Como refere Fritjof Capra, "requerem
uma mudança radical em nossas percepções, no nosso pensamento e nos nossos
valores".
209
Nas palavras de Leonardo Boff, "todos nós somos reféns de um paradigma que nos
coloca contra o sentido do universo, sobre as coisas ao invés de estar com elas". Nesse
aspecto, "a ecologia representa um novo paradigma civilizacional, uma forma de organizar
os seres humanos, a natureza e todo o universo". "Há que se criar uma nova espiritualidade
nas pessoas para que se evoque cuidado e respeito com o Planeta Terra".
210
Incutido um ponto de vista sistêmico em relação às cidades, as soluções viáveis são
as sustentáveis. Para que o ideal de sustentabilidade se viabilize, que ocorrer uma
considerável mudança de paradigmas. Isso significa "uma maneira organizada, sistemática
e coerente de nos relacionarmos com nós mesmos e com todo o resto à nossa volta. Trata-
se de modelos e padrões de apreciação, de explicação e de ação sobre a realidade
circundante".
211
Ou o desenvolvimento é sustentável, ou não é desenvolvimento. O “preço” que
temos de pagar é o de melhorar o ambiente, aprender a evoluir em sintonia com
ele, pois não verdadeiro avanço da civilização que não seja ao mesmo tempo
um melhoramento das condições ambientais propícias a nossa espécie. [...] é
preciso fazer uma revisão drástica do paradigma do crescimento indefinido e a
qualquer custo [...], pois o futuro nos desafia a uma nova síntese: a
sustentabilidade socioambiental.
212
A crise urbana pode ter ido longe demais para que se possa voltar. Contudo, a
construção de uma sociedade sustentável pode ser uma alternativa viável no presente e no
futuro. Mas para que as cidades se tornem sustentáveis, necessita-se, por primeiro,
despertar para novos valores. Como um grande passo urbanístico, a lei do meio ambiente
artificial surge para adequar o meio urbano a um efetivo espaço urbano sustentável,
209
Ibidem, p. 23.
210
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
211
KUHN apud BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004,
p. 25.
212
RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de
qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, [s.p].
91
possibilitando a compreensão e o respeito por todas as formas de vida. Numa primeira
análise, as contribuições de Capra e Boff podem parecer utópicas, se relacionadas ao meio
ambiente artificial, ainda que, indiquem solução singular. Aliando-se educação ambiental e
participação popular de forma interdisciplinar, pode-se alcançar uma gestão ambiental
compartilhada, que efetive as funções sociais das cidades e das propriedades urbanas, em
prol do bem comum e em benefício das presentes e futuras gerações.
3 A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA SOB A
ÓTICA DO ESTATUTO DA CIDADE
O século XX foi marcado pela emergência de uma nova racionalidade em relação
ao planejamento e à gestão urbano-ambiental das cidades brasileiras. A criação e a
aprovação do Estatuto da Cidade foi e ainda é considerada uma grande conquista dos
movimentos sociais pela reforma urbana e de toda sociedade. A lei do meio ambiente
artificial, como também é conhecido, trouxe consigo o debate sobre a(s) possibilidade(s) de
efetivação da função socioambiental da propriedade urbana a partir de um enfoque
democrático, participativo e sustentável de gestão das cidades. Com isso, passou-se a
questionar: quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a efetivação da
função socioambiental da propriedade urbana?
Procurando responder a esse questionamento, pretende-se, nesse capítulo, verificar
quais instrumentos do Estatuto da Cidade viabilizam a concretização da função
socioambiental da propriedade urbana. Para tanto, buscar-se-ão analisar o plano diretor
enquanto instrumento público, o IPTU Progressivo no Tempo como instrumento tributário-
financeiro, a desapropriação como instrumento jurídico-político, a gestão compartilhada, as
audiências públicas e os conselhos municipais como instrumentos democrático-
participativos.
3.1 O Plano Diretor enquanto instrumento público
No Brasil, a ausência de diálogo entre a população e o poder público desencadeou,
ao longo da história, a produção de planos e de leis urbanístico-ambientais com parâmetros
excludentes, refletindo apenas os interesses de uma pequena parcela da população. O
Estatuto da Cidade, nesse cenário, representa um grande avanço nas políticas urbano-
ambientais ao instituir instrumentos que visam a garantir a participação da população no
processo decisório de planejamento e de gestão do espaço urbano. Dessa forma, o Plano
Diretor surge como o principal instrumento à disposição do ente federativo municipal para
alcançar os objetivos da política urbana e garantir condições dignas de vida aos cidadãos.
93
O Plano Diretor é tratado pelo constituinte no tulo da ordem econômica e
financeira, capítulo da política urbana, artigo 182 da Constituição Federal de 1988, onde se
encontram as atribuições e as diretrizes gerais do Plano Diretor. No Estatuto da Cidade,
está previsto como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana no artigo 4º, inciso III, alínea “a”. É especificado, em capítulo próprio, dos artigos
39 a 42, nos quais o legislador ratifica as funções constitucionais do Plano Diretor.
Antes de adentrar ao estudo do Plano Diretor com base nos dispositivos do Estatuto
da Cidade, cabe tecer comentários, relacionando a concepção tradicional de planejamento à
concepção de Plano Diretor contida na lei do meio ambiente artificial. Na concepção
tradicional, a cidade era tratada como objeto puramente técnico, em que a função da lei
seria apenas estabelecer padrões satisfatórios de qualidade para o funcionamento das
cidades. Ignorava-se qualquer dimensão de reconhecimento de conflitos ou da realidade da
desigualdade de condições de renda e sua influência sobre o funcionamento dos mercados
imobiliários. Naquele momento, com as limitações do poder legislativo e a desarticulação
da sociedade civil, o planejamento urbano foi produzido no gabinete, enquadrado e
limitado por uma visão centralizadora e tecnocrática que dominava o sistema de
planejamento do país. A partir do final dos anos 70, os parâmetros tradicionais do
planejamento urbano começam a ser fortemente questionados, devido à emergência dos
movimentos sociais. Esses movimentos impulsionaram o tema reforma urbana, politizando
o debate sobre a legalidade urbanística e influenciando fortemente a formulação de
instrumentos urbanísticos. Foi tema de debate a relação da legislação com a cidade real e
sua responsabilidade com a cidade irregular, informal e clandestina. A necessidade de
reconhecer e legalizar a cidade real resulta na proposta de reformulação da legislação.
Diferentemente da concepção tradicional (que praticava a separação total entre
planejamento e gestão), o novo paradigma parte do pressuposto de que a cidade é
produzida por uma multiplicidade de agentes que devem ter sua ação coordenada, não em
função de um modelo produzido em escritórios, mas, a partir de um pacto social, que
corresponda ao interesse público da cidade e dos cidadãos.
213
Essa nova concepção de
planejamento exige a construção de novos princípios, instrumentos e formas de
intervenção pública.
213
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 40-42.
94
Para Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Adauto Lucio Cardoso, o período de reformas
e de reconstrução do espaço urbano iniciou com o desenvolvimento do capitalismo e a
necessidade de adaptação das cidades às exigências da economia industrial. A preocupação
dos planejadores da época era a higiene pública. Os problemas urbanos confundiam-se
com os problemas sociais, caracterizando as intervenções como mera reforma social
através da transformação do espaço de vida da população de baixa renda. Posteriormente,
sob a influência dos planejadores urbanistas americanos, surgiram, na década de 1920, os
“urbanistas” brasileiros, firmando-se nos anos 30 em função da experiência do Plano
Agache no Rio de Janeiro e dos estudos do arquiteto Le Corbusier. A cidade passou a ser
vista a partir de princípios da filosofia social e da racionalidade técnica, consagrando a
visão corbuseana, introduzida na Carta de Atenas, da obrigação de adequar o crescimento
da cidade às necessidades humanas, definidas a partir de 4 funções básicas e universais:
habitar, trabalhar, recrear-se e circular.”
214
Esse cenário se transformou, no final dos anos 60, em virtude do surgimento dos
problemas urbanos (principalmente o do crescimento populacional), supostamente
resultado da migração do campo para a cidade. Admitiu-se o despreparo dos governos
municipais na promoção do desenvolvimento urbano e passaram-se a realizar programas
de integração da população de baixa renda através da construção de conjuntos
habitacionais. Na época, em pleno período do “milagre econômico” o planejamento urbano
era pensado como um projeto desenvolvimentista, perdendo o caráter político e ganhando
ênfase tecnicista. Contudo, ao final da década de 1970, com a crise do “milagre
econômico”, o surgimento do movimento de resistência à ditadura militar e o fracasso dos
modelos de planejamento desenvolvidos pelo governo federal, surgiram inúmeras críticas
baseadas no argumento de que os problemas urbanos eram conseqüência da concentração
de renda e de investimentos e que a solução residiria na reformulação dos padrões de
crescimento do país. De outro lado, travou-se um intenso combate ao tecnocratismo,
fazendo com que os planejadores, para defender sua sobrevivência enquanto corporação,
fabricassem a idéia de planejamento participativo.
215
É nesse contexto, que, no período
seguinte à falência dos modelos de planejamento, institui-se o processo constituinte e
passa-se a discutir a formulação da emenda popular de reforma urbana.
214
RIBEIRO, Luiz Cesar de; CARDOSO, Adauto Lucio. Plano diretor e gestão democrática da cidade. In:
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática:
promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003, p.104-105.
215
Ibidem, p. 106-107.
95
Com base em uma nova concepção de planejamento, contida no Estatuto da Cidade,
o Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras que orientam a
ação dos agentes construtores e utilizadores do espaço urbano. Nesse sentido, o objetivo do
Plano Diretor não é resolver todos os problemas da cidade, mas sim, ser instrumento para a
definição de estratégias, servindo também de base para uma gestão pactuada da cidade.
Assim, mais do que um documento técnico, distante dos conflitos reais que caracterizam a
cidade, o Plano Diretor passa a significar espaço de debate para os cidadãos e de definição
de políticas públicas. Trata-se de um processo de construção coletiva da cidade.
216
Cabe
lembrar que o Plano Diretor não é instrumento pronto e acabado, deverá estar sempre em
transformação, procurando adequar-se às demandas sociais. Ressalta-se ainda que falar em
Plano Diretor não significa falar em igualdade, mas sim, em desenvolvimento de políticas
públicas participativas que visam à inclusão social.
Hely Lopes Meirelles, em sua obra Direito Municipal Brasileiro, define o que vem
a ser o Plano Diretor da seguinte forma:
O plano diretor ou plano diretor de desenvolvimento integrado, como
modernamente se diz, é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o
desenvolvimento global e constante do Município, sob os aspectos físico, social,
econômico e administrativo, desejado pela comunidade local. Deve ser a
expressão das aspirações dos munícipes quanto ao progresso do território
municipal no seu conjunto cidade/campo. É o instrumento técnico-legal
definidor dos objetivos de cada Municipalidade, e por isso mesmo com
supremacia sobre os outros, para orientar toda atividade da Administração e dos
administrados nas realizações públicas e particulares que interessem ou afetem a
coletividade.
217
Ao Plano Diretor, como plano urbanístico e ambiental, incumbe a tarefa de
estabelecer metas e diretrizes da política urbana municipal. Também lhe incumbe
estabelecer critérios para verificar se a propriedade atende sua função socioambiental, bem
como, fixar normas condicionadoras do exercício do direito de propriedade, a fim de
alcançar os objetivos da política urbana: garantia de condições dignas de vida, pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e cumprimento da função socioambiental
da propriedade (artigo 39). Cabe salientar que o município também deve observar os
princípios constitucionais fundamentais que norteiam o Plano Diretor: a função
socioambiental da propriedade, as funções sociais da cidade, os princípios da igualdade e
216
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 42.
217
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 518.
96
da justiça social, da participação popular e do desenvolvimento sustentável. De tal forma,
seus instrumentos e diretrizes se impõem à coletividade, ficando os particulares obrigados
a respeitar quaisquer normas de conduta.
Para que haja aprovação e aplicação do Plano Diretor, existem alguns requisitos no
artigo 40 do Estatuto da Cidade a serem observados. Como instrumento social e ambiental,
o Plano Diretor tem de obedecer a pressupostos. Nesse sentido, deve ser aprovado por lei
Municipal, ou seja, é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo ser
integrado ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e ao orçamento anual (artigo 40,
§1°). Outro pressuposto é a promoção de debates, audiências e consultas públicas como
condição obrigatória para aprovação das leis orçamentárias e conseqüente aprovação do
Plano Diretor pela Câmara Municipal. Logo, deve haver uma gestão orçamentária
participativa (artigo 40, §4°, I).
É importante referir que os requisitos mínimos para a elaboração do Plano Diretor
constam, em parte, no Estatuto da Cidade, que refere objetivos, diretrizes e instrumentos a
serem observados. No entanto, o Ministério das Cidades, através do Conselho das Cidades,
por meio da Resolução 34, de 01 de julho de 2005, emitiu orientações e recomendações
sobre a aplicação do Estatuto da Cidade e o conteúdo mínimo para a elaboração do Plano
Diretor. Nas considerações iniciais, a resolução é incisiva ao afirmar, de forma categórica
que
[...] o objetivo fundamental do Plano Diretor é definir o conteúdo da função
social da cidade e da propriedade urbana, de forma a garantir o acesso a terra
urbanizada e regularizada, o direito à moradia, ao saneamento básico, aos
serviços urbanos a todos os cidadãos, e implementar uma gestão democrática e
participativa;
218
A resolução observa ainda que “a efetividade dos instrumentos previstos no
Estatuto da Cidade, destinados a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e da propriedade [...] dependem em grande medida da elaboração dos planos
diretores municipais”,
219
indicando o Plano Diretor como principal instrumento na
concretização da função socioambiental da propriedade urbana.
218
BRASIL. Ministério das Cidades. Resolução n. 34, de 01 de julho de 2005. Disponível em:
<http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2007.
219
Ibidem.
97
Em relação às etapas de construção do Plano Diretor, divergência doutrinária
quanto ao estabelecimento de quatro, cinco ou mais etapas para a elaboração. Nesse
sentido, José Afonso da Silva destaca quatro fases para o processo de elaboração do Plano
Diretor: a) Estudos preliminares (levantamento da situação e dos problemas); b)
Diagnóstico (aprofundamento da análise dos problemas e identificação de prováveis
soluções); c) Plano de diretrizes (apontamento de soluções, fixação de objetivos e de
diretrizes); e, d) Instrumentação do plano (elaboração dos meios de atuação através de
medidas capazes de atingir os objetivos).
220
Por sua vez, Jorge Luiz Bernardi propõe dividir o processo de elaboração do Plano
Diretor em duas fases distintas. A primeira inicia-se com a decisão política de elaboração
do anteprojeto do Plano Diretor por iniciativa do Executivo Municipal, culminando na
elaboração de um projeto de lei encaminhado à Câmara Municipal. Na segunda etapa,
ocorre o processo de análise do projeto pelo Legislativo Municipal e a deliberação pelo
Plenário da Câmara. Destaca o autor que, na primeira etapa, o projeto subdivide-se em
mais sete fases: 1) Diagnóstico da realidade municipal; 2) Prognóstico; 3) Deficiências
(pontos fracos); 4) Tendências positivas; 5) Estratégias; 6) Custos; 7) Prioridades. na
segunda etapa, a tramitação do projeto deverá ter, no mínimo, três fases: a) análise técnica;
b) análise nas comissões; c) discussão e votação.
221
Retornando à análise do disposto no Estatuto da Cidade, o §2° do artigo 40
estabelece que o Plano Diretor deverá englobar o território do Município como um todo.
Quanto a esse dispositivo, o Estatuto da Cidade "define a abrangência territorial do Plano
Diretor de forma a contemplar as zonas rurais com respaldo no texto constitucional". A
política urbana, de acordo com a diretriz prevista no inciso VII do artigo do Estatuto da
220
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
138-139. O Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, em guia para elaboração do Plano
Diretor, desenvolvido em parceria com o Ministério das Cidades também prevê quatro fases na elaboração do
Plano Diretor. Na primeira fase, são desenvolvidas leituras técnicas e comunitárias para identificar a situação
socioeconômica, ambiental e de infra-estrutura do município. Em uma segunda etapa, são formuladas
propostas prioritárias, definidas estratégias e instrumentos para atingir a implementação das prioridades. Em
um terceiro momento, são definidas as ferramentas que constarão no Plano Diretor, de acordo com os
objetivos e estratégias prioritárias. Por fim, na quarta etapa, é estabelecido o sistema de gestão e de
planejamento do município como um processo participativo, onde são previstas instâncias de monitoramento,
como por exemplo, o conselho da cidade. BRASIL. Ministério das Cidades. CONFEA. Plano Diretor
Participativo: guia para elaboração pelos municípios e cidadãos. Brasília: CONFEA, 2005.
221
BERNARDI, Jorge Luiz. Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos. 2006. Dissertação
(Mestrado em Gestão Urbana) Programa de s-Graduação em Gestão Urbana, Universidade Católica do
Paraná, Curitiba, 2006, p. 107.
98
Cidade, deve promover a integração e a complementaridade entre as atividades urbanas e
rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob
sua área de influência. A Constituição Federal de 1988, ao prescrever os objetivos da
política de desenvolvimento urbano, não diferencia os habitantes situados na zona rural dos
que estão situados na zona urbana.
222
Como requisito e também condição de validade, a lei que instituir o Plano Diretor
deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos (artigo 40, § 3°). Nesse contexto, e por
considerar que o Estatuto da Cidade visa a um desenvolvimento social, econômico e
ambiental sincronizado, é imperioso que se revise e atualize o Plano Diretor, para que o
mesmo seja condizente com a realidade urbana, tendo sempre como foco o crescimento
constante das cidades.
Nesse processo de elaboração, fiscalização e implementação do Plano Diretor, os
Poderes Legislativo e Executivo municipais devem garantir a publicidade e o acesso de
qualquer interessado aos documentos e às informações produzidas (artigo 40, § 4°, II e III).
Contudo, como principal garantia, senão a mais importante, tem-se a participação da
população, assegurada no inciso I, do § 4°, do artigo 40 do Estatuto da Cidade.
223
Nas
palavras de Rogério Gesta Leal, para terem eficácia, as “políticas públicas não podem ser
elaboradas e aplicadas à revelia da sociedade civil, ao contrário, devem contar com ela de
forma ativa e deliberativa [...]”.
224
O direito à participação popular, como requisito constitucional do Plano Diretor,
tem base no parágrafo único do artigo 1°, combinado com o artigo 29, inciso XII da
Constituição Federal de 1988. Essa participação da população nas questões de interesse
local se transforma de requisito constitucional à condição obrigatória de validade e de
legitimidade do Plano Diretor, configurando-se em condição basilar no processo de
222
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 50.
223
Interessante notar que a participação da população na fase do processo legislativo é recomendada pela
Resolução n. 25 do Conselho das Cidades, no artigo 3º, parágrafo 1º: “A coordenação do processo
participativo de elaboração do Plano Diretor deve ser compartilhada, por meio da efetiva participação de
poder público e da sociedade civil, em todas as etapas do processo, desde a elaboração até a definição dos
mecanismos para a tomada de decisão.” BRASIL. Ministério das Cidades. Resolução n. 25, de 18 de março
de 2005. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2007.
224
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e
políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 1998, p. 132.
99
discussão, elaboração e implementação. O planejamento participativo tem como elemento
obrigatório a participação popular em todas suas fases, "o que pressupõe a adoção de
mecanismos de controle popular para ações do Executivo e do Legislativo, devendo ser
compreendido como um processo resultante de práticas de cidadania, voltadas para
eliminar as desigualdades sociais."
225
Ao enfrentar o estudo do Plano Diretor enquanto elemento jurídico-político,
ordenador da ocupação da propriedade urbana e da cidade, Rogério Gesta Leal refere que,
nos termos da Constituição Federal de 1988, a regulamentação de matéria urbanística da
qual trata o Plano Diretor é de competência de todos os entes federativos. Há, portanto,
uma competência concorrente. Salienta ele, que "a preponderância do Município nessa
matéria, não diminui nem isenta de responsabilidade a União e os Estados."
226
Mesmo que, ao Plano Diretor seja atribuída matéria urbanística, tanto a
Constituição Federal de 1988 no artigo 182 quanto a lei do meio ambiente artificial,
referem que a política de desenvolvimento urbano é de competência municipal. Valoriza-
se, pois, o "poder local".
227
A exemplo do Plano Diretor, ocorre uma descentralização das
225
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 51.
226
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e
políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 1998, p.133.
227
Para Ladislau Dowbor Poder Local significa o espaço de vida e de participação social. Destaca ele que
“[...] o município está despontando como um grande agente de justiça social. É no nível local que se podem
realmente identificar com clareza as principais ações redistributivas. Essas ações dependem vitalmente de
soluções locais e momentos políticos, e as propostas demasiadamente globais simplesmente não funcionam,
na medida em que enfrentam interesses dominantes organizados e complexidades políticas que inviabilizam
projetos. Enfim, o município permite uma democratização das decisões, na medida em que o cidadão pode
intervir com muito mais clareza e facilidade em assuntos da sua própria vizinhança, dos quais tem
conhecimento direto, sem a mediação de grandes estruturas políticas. Com o volume de problemas que se
apresenta, o poder local não pode mais ser visto, portanto, como um nível de decisão que se limita à
construção de praças, recolhimento de lixo e outras atividades de cosmética urbana. Trata-se de um eixo
estratégico de transformação do modo como tomamos as decisões que concernem ao nosso desenvolvimento
econômico e social.” DOWBOR, Ladislau. O que é poder local. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 35-36.
Complementando tal entendimento, Janaína Rigo Santin acrescenta que a noção histórica de Poder Local no
Brasil esteve vinculada ao coronelismo, ao patrimonialismo e ao personalismo no exercício do poder político.
No entanto, em um regime democrático, o Poder Local “[...] apresenta-se como um novo paradigma de
exercício do poder político capaz de aliar descentralização e participação. Está fundado na emancipação de
uma nova cidadania, rompendo as fronteiras burocráticas que separam o Estado do cidadão e recuperando o
controle do cidadão no seu município mediante a reconstrução de uma esfera pública comunitária e
democrática. Visa a conjugar práticas de democracia participativa à representação tradicional, em que os
cidadãos, agindo de forma conjunta com o poder público, passarão a ser responsáveis pelo seu destino e pelo
destino de toda a sociedade.” Nesse sentido, trata-se “da reconstituição de espaços comunitários, capazes de
recuperar a cidadania a partir do espaço local, reproduzindo identidades fora do Estado, mas legitimados por
ele, os quais desencadeiam um processo de combinação e articulação permanente entre a democracia direta
de participação voluntária dos cidadãos e a democracia representativa.” SANTIN, Janaína Rigo. O poder
local e o meio ambiente urbano: um novo paradigma democrático de gestão a partir do Estatuto da Cidade.
100
decisões, tendo em vista que é mais fácil descentralizar funções administrativas para ente
menor, pois estão mais próximos de quem sofre as conseqüências da gestão pública: os
cidadãos. Na elaboração do Estatuto da Cidade, o legislador buscou privilegiar o espaço
local (Município), pois, por ser o ente federativo mais próximo, poderá proceder a uma
gestão compartilhada, criando canais de acesso para efetiva participação popular nas
decisões da administração, propiciando, dessa forma, aliar democracia participativa à
democracia representativa.
Significa entender e construir o Plano Diretor na esfera local com a clara
compreensão de que ele é um importante documento do governo, portanto, a
principal referência para a ação governamental e, ao ser legitimado por todos,
estabelece-se, entre os diferentes agentes do desenvolvimento, um pacto. Dessa
forma, suas orientações são, ao mesmo tempo, resultado de uma construção
pactuada coletivamente e base para o controle social sobre a ação do poder
público no território municipal.
228
Nesse entendimento, "o Plano Diretor deixa de ser o plano de alguns para ser de
todos, construído a partir da participação dos diferentes setores sociais". Para tanto, o
Plano Diretor configura-se num pacto legitimado por todos e para todos.
229
Conforme estabelece o Estatuto da Cidade no artigo 41, o Plano Diretor é
instrumento obrigatório para Municípios com população acima de vinte mil habitantes. A
lei também estabeleceu essa obrigatoriedade para aqueles Municípios situados em regiões
metropolitanas ou aglomerações urbanas, em áreas de interesse urbanístico ou em áreas
sob influência de empreendimentos de grande impacto ambiental.
230
Municípios que não se
In: SCHONARDIE, Elenise Felzke; PILAU SOBRINHO, Liton Lanes (Orgs.). Ambiente, saúde e
comunicação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007, p. 59-60.
228
OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da Cidade: para compreender. Rio de Janeiro:
IBAM/DUMA, 2001, p. 20.
229
Ibidem, p. 18.
230
É interessante destacar a pesquisa realizada pela Federação das Associações de Municípios do Rio Grande
do Sul (FAMURS) acerca da situação dos Planos Diretores nos Municípios gaúchos ao final do mês de
dezembro de 2006. Os dados estatísticos de tal investigação apontaram a obrigatoriedade do Plano Diretor
para 121 dos 496 Municípios gaúchos existentes. A pesquisa revelou ainda que desse universo de 121
Municípios, no mês de dezembro de 2006, havia: a) 12 Municípios em fase de elaboração do Plano Diretor;
b) outros 12 já possuíam o Plano Diretor e estavam realizando revisões; c) da mesma forma, 26 desses
Municípios também possuíam o Plano Diretor e estavam atualizando o mesmo; d) em outros 22
Municípios o Plano Diretor estava tramitando na Câmara de Vereadores; e) os outros 49 Municípios restantes
haviam aprovado o Plano Diretor. Dessa forma, constatou-se, que ao final do ano de 2006, 75 Municípios
já haviam concluído (aprovado ou atualizado) seu Plano Diretor, o que representou o total de 61,99% dos 121
Municípios. Outros 46 Municípios encontravam-se com o Plano Diretor em andamento (licitação,
elaboração, revisão ou na mara de Vereadores), representando a margem de 38,01% dos 121 Municípios
com a obrigatoriedade do Plano Diretor. FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE MUNICÍPIOS DO RIO
GRANDE DO SUL. Área de Tecnologia da Informação. Re: Plano Diretor [Mensagem pessoal]. Mensagem
recebida por <da_ni_go[email protected]m> em 16 out. 2007.
101
incluem em qualquer dessas categorias, precisam dispor de Plano Diretor, se houver
pretensão de aplicar os instrumentos da política urbana.
No que diz respeito ao artigo 42, a base para aplicação de todos os instrumentos da
lei do meio ambiente artificial é o projeto da cidade, ou seja, o que se encontra explicitado
no Plano Diretor. "Cabe ao Plano Diretor cumprir a premissa constitucional de garantia da
função social da cidade e da propriedade urbanas". Em outras palavras, é justamente o
Plano Diretor o instrumento legal que vai definir, em nível municipal, os limites, as
faculdades e as obrigações envolvendo a propriedade urbana. É através dele que se
estabelecerá o destino específico às diferentes regiões do município. Salienta-se que essa
divisão do território municipal, em unidades territoriais, se através do
macrozoneamento, instrumento imprescindível na definição da destinação das áreas da
cidade.
231
Por fim, cabe frisar que o Plano Diretor é um dos instrumentos mais importantes do
Estatuto da Cidade, no desenvolvimento de políticas públicas participativas, na busca da
efetivação da função socioambiental da cidade e das propriedades urbanas. Também se
caracteriza por ser instrumento viabilizador da concretização de uma distribuição espacial
eqüitativa, capaz de satisfazer os interesses locais e de proporcionar um desenvolvimento
sustentável pautado na justiça social, com vista ao bem comum.
O legislador e o administrador municipal, para exteriorizarem legalmente a política
de desenvolvimento urbano do Município, deverão utilizar-se do Plano Diretor. O que não
constar no Plano Diretor, não poderá integrar a política urbana. Nesse caso, a função
socioambiental da propriedade somente estará sendo cumprida, se a propriedade estiver de
acordo com o que estabelece o Plano Diretor. Se a propriedade estiver em desacordo com
os princípios expostos para o desenvolvimento da política urbana, que constam no Plano
Diretor, haverá então, a aplicação dos instrumentos posteriores, objetos do Estatuto da
Cidade, quais sejam: parcelamento e utilização compulsórios, com as penalidades do IPTU
progressivo e desapropriação com pagamento de títulos da dívida pública.
231
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 43.
102
3.2 Do IPTU Progressivo no Tempo como instrumento tributário-financeiro à
Desapropriação como instrumento jurídico-político
Cada cidade é um caso particular e único, todavia, na maioria das cidades, uma
expressiva e inaceitável quantidade de terrenos ociosos, com fins especulativos. Os
proprietários retêm o imóvel aguardando a valorização do local, que se dá devido à
intervenção exclusiva do poder público, com a instalação de infra-estrutura básica e a
implementação de equipamentos urbanos essenciais. Essas terras oneram o poder público,
além de interferirem de forma negativa no mercado imobiliário. O Município, na obrigação
de atender às reivindicações dos moradores de áreas desprovidas de equipamentos
públicos, dota de serviços também os terrenos ociosos que se encontram no caminho.
232
A retenção especulativa de imóvel urbano ocorre quando o respectivo
proprietário não investe em seu terreno e também não o vende, esperando que
seu valor de mercado aumente ao longo do tempo, em virtude dos investimentos
feitos na vizinhança pelo poder público e, também, por agentes privados.
233
No artigo 182, §4° da Constituição Federal de 1988, encontra-se estabelecida a
faculdade incumbida ao poder público municipal, mediante lei específica, para área
incluída no Plano Diretor, de exigir do proprietário do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento. Se o
proprietário não o promover, seu imóvel estará sujeito ao parcelamento, edificação ou
utilização compulsórios, imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo e
igualmente sujeito à desapropriação. Salienta-se que esses instrumentos, de aplicação
sucessiva, têm, por principal objetivo, combater a retenção de terrenos ociosos, para que se
evite a expansão desnecessária das áreas urbanas.
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 5°, determina a criação de lei municipal
específica para reger o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que estejam incluídos no Plano
Diretor. A essa lei incumbe fixar condições e prazos para implementação da obrigação.
232
OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da Cidade: para compreender. Rio de Janeiro:
IBAM/DUMA, 2001, p. 25.
233
Ibidem, p. 25.
103
Essa medida possibilita ampliar o acesso à terra urbana e materializar a função
socioambiental da propriedade.
234
Com a aplicação deste primeiro instrumento, procura-se otimizar os
investimentos públicos realizados e penalizar o uso inadequado, fazendo com
que a propriedade urbana cumpra a sua função social. Além disso, poderá ser
ampliada a oferta de imóveis no mercado imobiliário e promovido o uso e a
ocupação de imóveis em situação de abandono, especialmente aqueles
localizados na área central das grandes cidades, que poderão abrigar, por
exemplo, o uso habitacional como forma de revitalização do centro urbano.
235
Por sua vez, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) Progressivo no Tempo,
como instrumento tributário e financeiro da política urbana, está previsto no artigo 4º,
inciso IV, alínea a”, e detalhado no artigo do Estatuto da Cidade. Trata-se de imposto
progressivo no tempo sobre imóveis urbanos que, de acordo com o artigo 182, § 4º, inciso
II, incumbe ao Poder Público municipal. Poucos instrumentos são tão necessários na
promoção do desenvolvimento urbano sustentável quanto o IPTU Progressivo no Tempo.
Este é um instrumento capaz de contribuir decisivamente para a efetividade da função
socioambiental da propriedade urbana e da cidade, evitando a formação de vazios urbanos,
da urbanização em “saltos” e inibindo a especulação imobiliária.
Para a aplicação do IPTU Progressivo no Tempo, previsto no Estatuto da Cidade,
deve-se ter um imóvel em desacordo com a legislação ambiental e urbanística,
confrontando-se com o estabelecido no Plano Diretor, ou seja, não cumprindo a função
socioambiental. Por conseguinte, deve o proprietário ser notificado, para, no prazo de um
ano, apresentar projeto de parcelamento ou edificação do imóvel. Apresentado o projeto,
abre-se prazo de dois anos para edificação ou parcelamento. Contudo, caso não cumprido
nenhum ou algum dos prazos, incide o IPTU Progressivo, mediante majoração da alíquota
pelo prazo de cinco anos consecutivos, tendo como limite máximo 15% do valor do
lançamento fiscal do imóvel. A finalidade desse instituto é punir os proprietários que não
atenderam à notificação, com tributo de valor crescente, ano a ano. Assim sendo, objetiva-
se estimular a utilização justa e adequada dos imóveis ociosos ou sua venda. No caso de
venda do imóvel, o novo proprietário será responsabilizado pela adequação.
234
Ibidem, p. 27.
235
Ibidem, p. 27.
104
A razão de existir desse instrumento, também reside no fato de que, se toda a
coletividade custeia a infra-estrutura urbana e, aqui salientando os graves problemas de
escassez de moradias e os grandes vazios urbanos em decorrência da especulação
imobiliária, seria razoável exercer “pressão” sobre esses proprietários, que se beneficiam
ao valorizarem seus imóveis quando a região é dotada de equipamentos públicos (rede de
esgoto, iluminação, sistema de abastecimento de água, coleta de lixo, entre outros).
Entretanto, para evitar fornecer aos grandes proprietários urbanos um argumento que lhes
seja favorável, o Estado deve cumprir sua parte, ou seja, dotar de infra-estrutura aquelas
áreas que se destinem à expansão urbana. Em área desprovida de infra-estrutura e sem
loteamento aprovado, fica comprometida a legitimidade, e mesmo, a legalidade da
cobrança do IPTU, bem como, de sua progressividade. Uma vez dotada a área de infra-
estrutura necessária, se o proprietário não tomar alguma atitude em relação a sua
propriedade, surge o fato gerador da progressividade do imposto.
236
Da forma como está previsto no Estatuto da Cidade, o IPTU Progressivo no Tempo
não traz risco de uma “expropriação a prazo”, como uma leitura superficial poderia
induzir. Mesmo que assim fosse, não seria de todo ilegítimo, uma vez que o proprietário do
imóvel pode ter sua propriedade questionada em razão do não-cumprimento da função
socioambiental, e ainda, porque o que está em jogo é a punição de uma situação
evidentemente especulativa, essa sim, ilegítima. Contudo, é necessário que o Plano Diretor
municipal estabeleça parâmetros de conteúdo concreto, levando em conta a realidade local,
a fim de evitar equívocos ou mesmo injustiças a pretexto de promover justiça social.
No cenário municipal, destaca-se a existência de duas “espécies” de Imposto
Predial e Territorial Urbano. De um lado, o IPTU estabelecido no artigo 156, inciso I da
Constituição Federal de 1988 e no artigo 32 do Código Tributário Nacional, um tributo
fiscal, de função arrecadatória. De outro, o IPTU Progressivo no Tempo, estabelecido no
artigo 182, § 4º, inciso II da Constituição Federal de 1988, regulamentado no artigo do
Estatuto da Cidade, com parâmetros a serem definidos conforme a realidade local, em cada
Plano Diretor municipal. O IPTU Progressivo no Tempo, objeto deste trabalho e
instrumento da política urbana, caracteriza-se pelo seu caráter punitivo e pela sua natureza
extrafiscal.
236
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos.
2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 231-232.
105
Em relação à progressividade do Imposto Predial Territorial Urbano, esse pode ser
fiscal ou extrafiscal. "A progressividade fiscal se fundamenta no artigo 145, §1°, artigo
150, inciso II e no artigo 156, § 1°, de modo a promover a distribuição justa da riqueza
inerente à propriedade, como instrumento de realização da justiça social". Nesse caso, de
caráter fiscal, sua aplicação independe dos pressupostos do artigo 182, §4°. Sem prejuízo
da progressividade no tempo a que se refere o artigo 182, §4°, o imposto sobre a
propriedade predial e territorial urbana poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel
e ter alíquotas diferentes de acordo com a localização do bem.
237
O enfoque da fiscalidade é o enfoque da receita. Portanto, tem finalidade, por
meio da arrecadação, de construir receita para o Estado promover suas
atividades e funções em benefício da coletividade. O enfoque extrafiscal não
tem a natureza arrecadatória de tributos. A utilização da extrafiscalidade visa
permitir a regulagem de condutas, fazendo com que, no interesse da
coletividade, esta ou aquela atividade, este ou aquele comportamento seja
estimulado ou desestimulado.
238
Salienta-se, entretanto, que ao se tratar de políticas públicas, no sentido da
intervenção estatal na ordem social, é por meio da extrafiscalidade que o Estado intervêm
na economia. No caso dos impostos, em que é vedada a vinculação de receita por expressa
vedação no artigo 167, IV da Constituição Federal de 1988, a extrafiscalidade é a única
possibilidade de utilização do imposto para o implemento de políticas públicas
direcionadas ao meio ambiente urbano sustentável.
O IPTU Progressivo no Tempo, como sanção ao proprietário que não destinou sua
propriedade a uma função socioambiental, tem natureza extrafiscal. Seu objetivo é motivar
a utilização devida da propriedade urbana, de modo a garantir o cumprimento da função
socioambiental da propriedade. A finalidade dessa espécie de IPTU progressivo no tempo
não é a arrecadação fiscal, mas a indução do proprietário do imóvel urbano ao
cumprimento da obrigação que consta no Plano Diretor. Nas palavras de Luís Portella
Pereira, o objetivo específico do IPTU Progressivo no Tempo é o de motivar a utilização
da propriedade urbana, de modo a garantir a função socioambiental, não caracterizando
arrecadação fiscal, tendo assim, caráter nitidamente sancionatório.
239
237
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 103.
238
Ibidem, p. 104.
239
PEREIRA, Luís Portella. A função social da propriedade urbana. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 121.
106
Cabe referir ainda, que o §3° do artigo do Estatuto da Cidade veda a concessão
de isenções ou anistia, relativas à tributação progressiva, para os proprietários de imóveis
que não estejam cumprindo com a obrigação de destinação social e ambiental da
propriedade urbana. Essa medida é fundamental, para evitar o benefício do proprietário de
imóvel urbano que não esteja cumprindo a função socioambiental. "Por se tratar de um
imposto, não é cabível a possibilidade de isenções e anistias". A única hipótese em que o
proprietário deixará de pagar IPTU Progressivo no Tempo será pelo adimplemento da
obrigação que lhe foi determinada pelo Poder Público municipal.
240
Entretanto, se não é permitida nenhuma forma de isenção ao proprietário de imóvel
que descumpre a função socioambiental da propriedade urbana, o Estatuto da Cidade nada
refere quanto à possibilidade de o município instituir programas como o “IPTU
Regressivo” para os imóveis que comprovadamente participem de programas de
preservação de recursos naturais e cujos proprietários estejam cumprindo a função
socioambiental de seus imóveis. Na medida em que o proprietário faz uso correto e
sustentável do imóvel, poderia haver a concessão de um benefício fiscal, como por
exemplo, a redução do valor do IPTU fiscal
241
(art. 156, I da CF/88). Um programa
municipal nesses moldes, poderia incentivar o cumprimento da função socioambiental da
propriedade urbana, bem como, representar uma ferramenta para a conscientização ou a
sensibilização dos munícipes com as questões urbano-ambientais. Sabe-se que o município
não pode recusar receita, a fim de evitar a caracterização de crime de responsabilidade
fiscal. De outro giro, também se sabe que é competência comum da União, dos Estados e
dos Municípios a proteção ao meio ambiente (artigo 23 da CF/88), assim como, é
competência dos municípios legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30 CF/88).
Dessa forma, ao instituir um programa de “Regressividade do IPTU”, ao mesmo tempo em
que não se está abdicando de receita, o município está possibilitando o implemento de
políticas públicas.
240
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p.106.
241
Nesse caso, o IPTU embora tenha caráter arrecadatório, será fiscal e extrafiscal ao mesmo tempo. A
fiscalidade e a extrafiscalidade estão sempre e necessariamente juntas, separam-se apenas hipoteticamente. A
extrafiscalidade está presente em função da “regressividade do IPTU” que visa a estimular o comportamento
sustentável por parte do proprietário do imóvel urbano. Quanto à indissociabilidade do caráter fiscal e
extrafiscal, ver GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del
Rey, 2006, p. 46-48.
107
Assim, com base no exposto, o IPTU Progressivo no Tempo enquanto instrumento
tributário-financeiro, deixa de ser apenas um instrumento jurídico para abastecer os “cofres
públicos”, assumindo caráter ambiental ao viabilizar a função social e ambiental da cidade
e da propriedade urbana. Quando descumpridas as condições ou os prazos definidos no
artigo 5.º do Estatuto da Cidade, incide o tributo a ser cobrado de forma progressiva,
salientando que essa progressividade vai até um limite para que não haja caráter
confiscatório, demonstrando ser mais um instrumento para que a municipalidade possa
concretizar a função socioambiental da propriedade urbana.
De outro lado, torna-se relevante destacar a função extrafiscal do IPTU Progressivo
no Tempo como instrumento de intervenção do Estado para efetivação de políticas
públicas. Nesse sentido, o IPTU Progressivo no Tempo, como instrumento da política
urbana, tem caráter exclusivamente extrafiscal. Por esse motivo, sua receita não segue a
regra da vedação constitucional do artigo 167, inciso IV da Constituição Federal de 1988,
de tal forma que a receita deve ser aplicada de acordo com o estabelecido no orçamento
municipal, atendendo ao disposto no Plano Diretor. Assim, compreende-se que:
Em planejamento e gestão urbanos, os tributos não interessam sob o ângulo
estritamente fiscal, vale dizer, de seu potencial de arrecadação. Tão ou mais
importante é, na verdade, a extrafiscalidade dos tributos, isto é, a sua
capacidade de permitirem que outros objetivos que não somente o de
arrecadação sejam perseguidos seja o desestímulo de práticas que atentem
contra o interesse coletivo (minimamente salvaguardado, na Constituição de
1988, por meio do princípio da “função social da propriedade”), seja a
promoção de redistribuição indireta e renda, sejam a orientação e o
disciplinamento da expansão urbana, seja, ainda, o incentivo a determinadas
atividades.
242
Nas palavras de Marcus de Freitas Gouvêa, a extrafiscalidade é princípio que
decorre da outra face do corolário da supremacia do interesse público, que fundamenta
juridicamente a tributação com fins diversos do puramente arrecadatório. Para ele, o tributo
é instrumento a ser utilizado na busca de valores constitucionais, ou ainda, são os objetivos
constitucionais que preenchem o conteúdo da extrafiscalidade, dando caráter extrafiscal à
norma tributária.
243
242
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos.
2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 226.
243
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006,
p. 43.
108
Assim sendo, pode-se destacar o IPTU Progressivo no Tempo como instrumento
tributário capaz de concretizar políticas públicas voltadas a atingir os fins e os valores
estabelecidos na Constituição Federal de 1988, evidenciando ser um importante
instrumento de mudança social e de viabilização da sustentabilidade urbana. “[...] não
podemos ver a tributação apenas como técnica arrecadatória ou de proteção ao patrimônio;
devemos vê-la também da perspectiva da viabilização da dimensão social do ser
humano”.
244
Em suma, a tributação extrafiscal, como instrumento de intervenção estatal no
domínio econômico, constitui um instrumento a serviço de políticas públicas específicas e
direcionadas. Dessa forma, o IPTU Progressivo no Tempo, como instrumento tributário
extrafiscal da política urbana, se utilizado adequadamente pelo poder público municipal,
tem o condão de ser meio para efetivação de políticas públicas com a finalidade de garantia
de desenvolvimento urbano sustentável.
Retomando a distinção entre o IPTU Fiscal e o IPTU Extrafiscal, pode-se dizer que
em relação à progressividade do Imposto Predial e Territorial Urbano, muito se discutiu
e ainda se discute acerca da progressividade fiscal e da progressividade extrafiscal. Na
Constituição Federal de 1988, em sua redação original, no artigo 156, §1°, os municípios
estavam autorizados a instituir IPTU Progressivo “nos termos da lei municipal, de forma a
assegurar o cumprimento da função social da propriedade”. Com a Emenda Constitucional
29/2000, alterou-se o §1° do artigo 156, que atualmente prevê que sem prejuízo da
progressividade no tempo a que se refere o artigo 182, §4°, inciso II, o IPTU poderá ser
progressivo em razão do valor do imóvel e ter alíquotas diferentes de acordo com a
localização e o uso do imóvel. Em 24 de setembro de 2003, o Supremo Tribunal Federal
(STF) editou a Súmula 668: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido,
antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se
destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.
245
São várias as jurisprudências que confirmam tal entendimento, dentre elas destaca-
se:
244
GRECO, Marco Aurélio. Solidariedade social e tributação. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI,
Marciano Seabra de (Coords). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 179.
245
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.° 668. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso
em: 20 abr. 2007.
109
IPTU IMPOSTO DE CARÁTER REAL REDAÇÃO ORIGINAL DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 PROGRESSIVIDADE
PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – O STF firmou
entendimento de que, na forma da redação original da CF/88, é vedada a
progressividade fiscal nos impostos de caráter real. Restou decidido nos autos
do RE 153771-0, que a única progressividade admitida para o IPTU é a
progressividade extrafiscal, a ser utilizada como instrumento de pressão para
obrigar o proprietário a dar ao imóvel sua função social, conforme definido no
art. 182, § e 4°, da CF/88. (TJMG APCV 000.325.682-3/00 C.Civ.
Rel. Des. Edivaldo George dos Santos – J. 31.03.2003)
Verifica-se, com isso, que o STF entende que o IPTU Progressivo no Tempo, do
artigo 156, §1° combinado com o art. 182 § da Constituição Federal de 1988, é o único
admitido pelo Poder Constituinte Originário. A ampliação das hipóteses de progressividade
se deu em razão da EC 29/2000. A regra é a da proporcionalidade dos tributos uma vez que
a progressividade se admite apenas em casos expressamente autorizados na Constituição
Federal de 1988. Nenhuma Emenda Constitucional pode suprimir direitos e garantias
individuais conforme expressa o artigo 60, §4° da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, entende-se que a progressividade do IPTU somente pode ser
aplicada com a finalidade de assegurar o cumprimento da função socioambiental da
propriedade urbana. O Poder Constituinte Originário é o único que poderia prever
exceções para a progressividade em impostos reais. A partir disso, entende-se que a EC
29/2000 violou cláusulas pétreas, sendo portanto, inconstitucional.
246
A constitucionalidade da EC 29/2000 está sendo apreciada no Recuso
Extraordinário 423768-7, pelo Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio, em
seu voto, admitiu a progressividade tratada na Emenda Constitucional, entretanto, o
julgamento foi interrompido em 2006 em razão do pedido de vistas feito pelo Ministro
Carlos Ayres Britto.
247
Esse Recurso Extraordinário tem como objeto um acórdão que
declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal 13.250/01, que estabeleceu alíquota
progressiva para o IPTU com base no valor venal do imóvel. Cabe salientar que mesmo
antes da EC 29/2000, o Ministro Marco Aurélio já admitia que a progressividade, em
observância ao princípio da capacidade contributiva, restringia-se aos impostos pessoais,
246
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Direito Ambiental Tributário. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 93-94.
247
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/
ler.asp?CODIGO=199913&tip+UN&param=progressivo>. Acesso em: 22 abr. 2007.
110
podendo também ser aplicada aos impostos reais como o IPTU conforme voto proferido no
RE 234.105-3/SP.
248
É importante destacar que o entendimento do Ministro Marco Aurélio é contrário
ao que se defende neste trabalho. Com vistas ao tratamento dado ao IPTU Progressivo no
Tempo, como tributo extrafiscal, defende-se o mesmo ponto de vista de Ives Gandra da
Silva Martins, para quem, a Emenda Constitucional 29/2000 é inconstitucional, dentre
outros argumentos, por afrontar cláusulas pétreas.
249
Ressalta-se que é vedada a criação de
novas hipóteses de progressividade, uma vez que, somente se admite a progressividade em
casos autorizados pelo Poder Constituinte Originário.
Frente ao exposto, é importante salientar ainda que, depois de decorridos cinco
anos da cobrança do IPTU Progressivo no Tempo sem que o proprietário do imóvel
tenha cumprido com a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização do solo o
município deverá proceder à desapropriação do imóvel.
A desapropriação tem previsão no artigo 4º, inciso V, alínea "a" da lei do meio
ambiente artificial e encontra-se pormenorizada no artigo do Estatuto da Cidade. De
origem constitucional, tal qual o IPTU Progressivo no Tempo, também tem amparo no
artigo 182, §4°, inciso III da Constituição Federal de 1988.
Por desapropriação, Hely Lopes Meirelles entende ser
a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública, de entidade
de grau inferior para superior) para o Poder Público ou seus delegados, por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro, e, ainda, por desatendimento a normas do Plano
Diretor (desapropriação-sanção–art. 182, § 4.º, III, da cf), neste caso com
pagamento em títulos da dívida pública municipal.
250
Num primeiro momento, o poder público poderá exigir do proprietário
parcelamento, edificação ou utilização do solo de forma compulsória. Caso não atendida
248
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em http: <//www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?
classe=RE&processo=234105&origem=IT&cod_classe=437>. Acesso em: 22 abr. 2007.
249
MARTINS, Ives Gandra da Silva; BARRETO, Ayres F. IPTU: por ofensa a Cláusulas Pétreas, a
Progressividade prevista na Emenda n.° 29/2000 é inconstitucional. Revista Dialética de Direito Tributário.
São Paulo, n.° 80, p. 105-126, mai. 2002.
250
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 408.
111
essa exigência, o Município procederá à cobrança do IPTU Progressivo no Tempo. Após
cinco anos da cobrança do tributo sancionatório, sem que o proprietário do imóvel tenha
cumprido com a obrigação, proceder-se-á à desapropriação. Essa desapropriação de cunho
urbanístico será paga com títulos da dívida pública, de emissão previamente aprovada pelo
Senado Federal. A lei estabelece prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais,
iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de seis por
cento ao ano conforme § do artigo da lei do meio ambiente artificial. Cabe salientar
que a lei estipula juros legais de seis por cento ao ano, contudo, não pode mais ser
considerada essa estipulação, em virtude da Emenda Constitucional 40, posterior à lei
ordinária federal. Nesse caso, possibilita-se a discussão, em razão da revogação do § 3°, do
artigo 192 da Constituição Federal de 1988.
A desapropriação, na forma como está prevista no Estatuto da Cidade, caracteriza-
se como mais uma penalidade para o proprietário de imóvel em desacordo com as normas
previstas no Plano Diretor.
251
Essa penalidade tem causado controvérsias, como bem
salienta Luís Portella Pereira. Por sua vez, essas divergências decorrem das dificuldades
em relação à autorização pelo Senado Federal, bem como para estipular o valor real da
indenização, uma vez que, no artigo 8º, §2°, incisos I e II da lei, o legislador procurou
definir o valor real da indenização pelo valor de base de cálculo para o lançamento do
IPTU, desprezando o valor real do imóvel. Haveria uma violência ao direito fundamental à
propriedade e à desapropriação constitucionalmente prevista, pois, conforme interpretação
constitucional, não poderá haver desapropriação sem justa e prévia indenização em
dinheiro. Contudo, o que se verifica no Estatuto da Cidade, é que as desapropriações-
sanção serão pagas em tulos da dívida pública, que não poderão ser compensados com
impostos e serão resgatados no prazo de até 10 anos. Para Luís Portella Pereira, essa
desapropriação, da forma como está prevista, margem a uma possível
inconstitucionalidade, já que a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 50, inciso
251
Para Victor Carvalho Pinto essa modalidade de desapropriação tem por finalidade exclusiva o
parcelamento ou a edificação do imóvel, nos termos do Plano Diretor. Em seu entendimento, não pode ser
utilizada para fins de manutenção do imóvel em definitivo no domínio público. PINTO, Victor de Carvalho.
Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da
Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 146.
Contudo, Nelson Saule Júnior defende posição adversa ao afirmar a admissão dessa modalidade de
desapropriação para fins de regularização fundiária, criação de espaços públicos de lazer e de preservação
ambiental. SAULE JÚNIOR, Nelson. Aplicabilidade do parcelamento ou edificação compulsórios e da
desapropriação para fins de reforma urbana. In: MOREIRA, Mariana (Coord.). Estatuto da Cidade. São
Paulo: CEPAM, 2001, 233.
112
XXIV, bem como no artigo 182, § 3.º, vinculam o instituto da desapropriação à prévia e
justa indenização em dinheiro, ou seja, moeda corrente nacional.
252
Em sentido contrário, no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, para o
direito brasileiro, dois tipos de desapropriação. Uma delas é a desapropriação em nome
da política urbana, de competência do município, que se pago em títulos da dívida
pública, e a outra, é a desapropriação para fins de reforma agrária, no qual compete à
União realizá-la.
253
O instituto da desapropriação, previsto no inciso III do § 4° do artigo 182 da
política urbana, é caso de exceção ao artigo 5°, inciso XXIV da Constituição Federal de
1988. Nessa exceção, a desapropriação será efetuada mediante pagamento em títulos da
dívida pública, caracterizando-se como sanção, devido ao critério definido para fins de
pagamento.
Pela forma como está prevista no texto constitucional, essa desapropriação é um
instrumento urbanístico que possibilita ao poder público aplicar uma sanção ao
proprietário de imóvel urbano, por não respeitar o princípio da função social da
propriedade, nos termos do plano diretor e do plano urbanístico local.
254
Por ser mais um instrumento destinado a garantir o cumprimento da função
socioambiental da propriedade urbana, a desapropriação caracteriza-se também como
instrumento capaz de promover a reforma urbana. Em outras palavras, a desapropriação-
sanção é apta a promover transformações profundas no espaço urbano, merecendo,
portanto, tratamento especial.
Considerando a utilização indevida dos títulos da dívida pública como uma
realidade, o Estatuto da Cidade antecipou-se ao impor restrições ao uso dos títulos, objeto
de restituição em face da desapropriação. Estabelece, no §3° do artigo 8°, que os títulos da
dívida pública, decorrentes do pagamento da desapropriação da política urbana, não
poderão ser utilizados para pagamento de tributos.
252
PEREIRA, Luís Portella. A função social da propriedade urbana. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 124.
253
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros,
2001.
254
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e
cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 106.
113
Outro ponto fundamental relacionado à desapropriação é o valor da indenização,
que recebe tratamento diferenciado por se tratar de desapropriação-sanção. Pela análise
contextual da lei e dos objetivos a que ela se propõe, percebe-se a necessidade de critérios
diferenciadores na apuração do valor da desapropriação para fins de reforma urbana. De
acordo com o §2° do artigo 8° do Estatuto da Cidade, para definir o valor real da
indenização, o poder público refletirá o valor da base de cálculo do IPTU, descontando o
montante incorporado em função de obras realizadas pela municipalidade na área onde o
imóvel se localiza. Na definição do valor real,o serão computadas expectativas de
ganho, lucros cessantes nem juros compensatórios. Visando a atendimento ao texto
constitucional e levando em conta a destinação do imóvel, o Estatuto da Cidade estabelece
critérios diferenciadores para aferir o valor da indenização. Ao contrário do que salienta
Luís Portella Pereira (quando se refere a uma possível violência ao direito e conseqüente
inconstitucionalidade), da lei do meio ambiente artificial, depreende-se o entendimento de
que o tratamento igualitário caracterizaria o desrespeito ao princípio da igualdade, pois os
proprietários que respeitam a função socioambiental estariam recebendo o mesmo
tratamento destinado aos proprietários de imóveis especulativos.
255
A regulamentação da desapropriação pelo Estatuto da Cidade atende ao objetivo de
não considerar, na apuração do valor da indenização, a valorização imobiliária decorrente
de investimentos públicos. A introdução desse critério evita que o Município destine
parcela de seus recursos para pagamento de indenizações de imóveis urbanos, sem que tais
imóveis tenham um uso social e ambiental que atenda aos interesses da coletividade. A
natureza de desapropriação sanção significa, nitidamente, que a indenização com valor
abaixo de mercado é uma forma de respeitar o princípio da igualdade e de promover a justa
distribuição dos benefícios e ônus da convivência urbana.
Com o escopo de reforçar o objetivo a que se destina a desapropriação, a lei do
meio ambiente artificial atribuiu dever ao Município de dar aproveitamento ao imóvel
desapropriado (artigo 8º, §4º). Com base nisso, terá o poder público municipal prazo de
cinco anos para dar o adequado aproveitamento ao imóvel, contados a partir da sua
incorporação ao patrimônio público. Dessa forma, verifica-se que, destinado o imóvel,
255
Ibidem, p. 108.
114
conforme estabelece o Plano Diretor Municipal, a propriedade estará cumprindo com sua
função socioambiental.
256
Por fim, após a investigação dos principais instrumentos trazidos pelo Estatuto da
Cidade, percebe-se que as ferramentas da política urbana são alternativas viáveis para a
concretização da função socioambiental da propriedade urbana. Contudo, por si só, não são
capazes de implementar uma política urbana eficiente. Nesse contexto, para garantia de
uma gestão adequada dos recursos urbanos, a lei trouxe mais um instrumento: a
participação popular como forma de gestão democrática da cidade.
3.3 A Gestão Compartilhada: poder público e participação popular
Um dos grandes avanços da legislação brasileira foi a incorporação da participação
dos cidadãos nas decisões de interesse público mediante a gestão democrática,
257
disposta
no Estatuto da Cidade. A participação popular abordada na lei do meio ambiente artificial
não está expressa em nenhum dispositivo constitucional, mas pode ser subentendida em
razão do parágrafo único do artigo da Constituição Federal de 1988, que estatui que
"todo o poder emana do povo". De tal forma, o princípio democrático está inserido na
Constituição Brasileira, pois emanado o poder do povo, será exercido de forma direta ou
indireta por meio de representantes eleitos, acolhendo, assim, postulados da democracia
256
Salienta Victor Carvalho Pinto que “o destino a ser dado ao imóvel será aquele indicado no plano diretor e
na lei específica, quando a hipótese for de parcelamento. As unidades finais lotes, edificações ou unidades
autônomas de condomínio – deverão retornar ao mercado, uma vez que o pressuposto do instituto é a
existência de ‘demanda para utilização(artigo 42, I) da infra-estrutura existente. Presume-se, portanto, que
esta seja uma operação economicamente rentável, que não deverá onerar o orçamento público, uma vez que
Município poderá se auferir de recursos com a venda das unidades finais ou do próprio imóvel durante o
período de dez anos de resgate dos títulos emitidos. Trata-se, a rigor, de uma ‘exploração direta de atividade
econômica’, justificada por imperativo de relevante interesse coletivo’, nos termos do artigo 173 da
Constituição.” PINTO, Victor de Carvalho. Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In:
MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 146-147.
257
Para Maria Paula Dallari Bucci, “deve-se frisar o sentido da palavra ‘gestão’, que difere do mero
‘gerenciamento’, na medida em que a primeira compreende grande amplitude de responsabilidades de
coordenação e planejamento, enquanto a segunda, mais usual na tradição das cidades brasileiras, diz respeito
à simples execução cotidiana de tarefas e serviços de administração. Assim, a gestão democrática das cidades
implica a participação dos seus cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e
avaliação das políticas urbanas.” BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática da cidade. In: DALLARI,
Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p. 323.
115
representativa e participativa, uma vez que possibilita aos cidadãos liberdade de
participação no processo político.
258
A idéia de Estado Democrático de Direito [...], está associada, necessariamente,
à existência de uma Sociedade Democrática de Direito, o que de uma certa
forma resgata a tese de que o conteúdo do conceito de democracia aqui se
assenta na soberania popular (poder emanado do povo) e na participação
popular, tanto na sua forma direta como indireta, configurando o que podemos
chamar de princípio participativo, ou, em outras palavras: democratizar a
democracia através da participação significa em termos gerais, intensificar a
optimização das participações dos homens no processo de decisão.
259
Respeitando os pressupostos constitucionais da democracia participativa, o Estatuto
da Cidade incorpora a gestão democrática como uma diretriz geral da política urbana, por
meio do inciso II do artigo 2°. Por sua vez, o capítulo IV, da lei do meio ambiente
artificial, é dedicado inteiramente à gestão democrática da cidade, de tal forma que a
participação popular assume papel de destaque e de extrema relevância na gestão dos
recursos urbanos. Essa participação encontra lugar em todas as dimensões da política
urbana, desde a formulação do Plano Diretor, sua instituição e suas revisões periódicas.
Também é garantida a gestão democrática, a partir da constituição de órgãos colegiados de
política urbana, debates, audiências, consultas públicas, conferências sobre assuntos de
interesse urbano e iniciativa popular em projetos de lei, planos e programas que visem ao
desenvolvimento urbano (artigo 43).
260
A plena realização da gestão democrática é a
garantia de que os instrumentos da política urbana serão verdadeiros mecanismos de
promoção do desenvolvimento urbano-ambiental justo e sustentável. Assim,
258
É interessante referir que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948,
considera a participação política um direito fundamental. Em seu artigo XXI diz: “todo homem tem o direito
de tomar parte do governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos”. Também a Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos (Habitat II
realizada em Istambul em junho de 1996), fazia previsão da institucionalização da participação social na
gestão pública como fator de democracia e da busca pelo desenvolvimento sustentável.
259
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 149.
260
Deve-se ressaltar que o artigo 43 do Estatuto da Cidade enfatiza quatro mecanismos principais: órgãos
colegiados, debates, audiências e consultas públicas, conferências temáticas e iniciativa popular. Trata-se de
rol meramente exemplificativo uma vez que o legislador deixou abertura para o desenvolvimento de novas
possibilidades de participação popular ao utilizar-se da expressão “entre outros” no caput do artigo 43 da lei
do meio ambiente artificial.
116
[...] a inserção de mecanismos de participação na esfera local permite o
desenvolvimento de uma prática participativa constante e regular, o que denota
o caráter pedagógico dos instrumentos de participação. Esta nova estratégia de
legitimação das decisões públicas, ao contemplar a participação da cidadania
como elemento de validade das decisões públicas, de fato, rompe com a idéia de
cidadão destinatário das políticas públicas, para uma cidadania efetiva e
emancipatória que se constrói a partir de uma permanente interação entre espaço
público estatal e sociedade.
261
É importante frisar que, diante das dificuldades do Estado em enfrentar as questões
locais, a lei do meio ambiente artificial privilegiou o poder local, acarretando a
descentralização de algumas decisões Federais e Estaduais para o Município. A lei
privilegiou a co-participação do ente público aliado à sociedade, primando por uma co-
responsabilidade na criação do Plano Diretor e na aplicação dos instrumentos capazes de
efetivar a função socioambiental da cidade e da propriedade.
262
“É na ampliação de
possibilidades de apropriação do espaço público pela sociedade” que se consolida a idéia
de democratização das decisões públicas e a idéia de controle social, “superando a
concepção tradicional de que o Estado, representado no espaço local pelo Município, deva
suprir e resolver integralmente as demandas da sociedade, enquanto esta permanece numa
posição de sujeito passivo das políticas públicas”.
263
Com o Estatuto da Cidade e sua adaptação à realidade local, através do Plano
Diretor, de um lado, configura-se um novo padrão de relação entre Estado e sociedade
(pautado na sinergia Estado-sociedade), cujo alicerce está na participação dos cidadãos, de
suas comunidades e de suas organizações, em parceria com múltiplos atores sociais
articulados. A esse novo protótipo combinam-se descentralização e integração, atribuindo-
se a idéia de responsabilidade social.
264
De outro lado, remete-se à idéia de um novo e
diferenciado “pacto social urbano”, pautado na busca de um espaço urbano para todos e de
todos, onde cada cidadão possua iguais condições de desenvolver suas potencialidades.
A democratização das ações públicas, principalmente na esfera municipal,
incorpora uma nova dimensão à gestão urbana. A população ganhou espaço para intervir
diretamente na organização do seu espaço de vida, o que significa uma integração entre
261
HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de
Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 297.
262
OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da cidade: para compreender. Rio de Janeiro:
IBAM/DUMA, 2001, p.16.
263
HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de
Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 295-296.
264
FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002, p.61.
117
gestão da cidade e democracia participativa. Os instrumentos previstos no capítulo da
gestão democrática da cidade dão passagem a uma nova cultura na complementaridade da
democracia participativa e representativa. Assim, todos têm o direito de participar
ativamente na gestão da cidade, na qual, de um lado, o poder público vincula-se aos
dispositivos legais e, de outro, os cidadãos tomam parte ativamente das decisões,
demonstrando a importância da participação popular como meio de aproximar o ente
político da população.
Dessa forma, na implementação das diretrizes gerais e dos instrumentos da política
urbana, o poder público municipal tem o dever jurídico de agir. A esse dever jurídico do
ente público corresponde uma obrigação que se estende aos cidadãos, ou seja, no momento
em que a proteção ao ambiente urbano e a concretização dos instrumentos de indução ao
desenvolvimento socialmente justo se impõem ao poder público e à coletividade, fica
estabelecida uma co-responsabilidade que se reflete no papel que o cidadão tem frente à
aplicação das políticas públicas locais. Não incumbe apenas ao poder público a
legitimidade para cobrar do proprietário do imóvel ocioso o racional e adequado
aproveitamento da propriedade. Também o particular está legitimado a exigir a utilização
social e ambiental do bem.
A responsabilidade não é do poder público, a democracia pressupõe direitos
e deveres, portanto, uma gestão democrática será aquela que apresentar a co-
participação de todos os agentes e atores responsáveis pelo desenvolvimento
envolvidos diretamente nas variadas e permanentes questões apresentadas no
quotidiano da cidade.
265
André Franco Montoro visualiza a participação popular de um ponto de vista
diferenciado, relacionando-a com a descentralização. Segundo ele, a descentralização e a
participação são formas de denotar a importância do município na democracia. O destino
da democracia no Brasil está estreitamente ligado à descentralização do poder e à
participação da sociedade. Nesse contexto, a descentralização de responsabilidades revela
ser o melhor caminho para a solução dos problemas socioambientais, tendo em vista que as
iniciativas e as atividades locais estão mais perto da população e, por isso, são mais
265
Ibidem, p.17.
118
realistas e eficientes. A seu ver, "descentralizar é colocar o governo mais perto do povo e,
por isso, torná-lo mais participativo, mais eficiente e mais democrático".
266
A participação organizada e progressiva da população é o caminho
insubstituível para a formação de uma sociedade realmente democrática, em que
a pessoa humana como fundamento e fim da vida social tenha sua dignidade
respeitada. O homem contemporâneo começa a tomar consciência de que não é
apenas um espectador passivo da história, mas seu agente. [...]. O sentimento de
participação é um dos mais poderosos elementos propulsores da atividade
humana. É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma obra
coletiva, seja ela uma casa, uma estrada, uma catedral ou uma cidade mais
humana.
267
Para Bernardo Kliksberg, o avanço em direção à democracia requer um profundo
redesenho do Estado, que substitua o modelo burocrático alheio aos cidadãos. a
necessidade de abrir o Estado à participação cidadã, de descentralizar, de favorecer formas
de co-gestão social. O caminho rumo à descentralização está cada vez mais claro, uma vez
que, em muitos casos, os municípios apresentam melhores condições de ajustar a
administração às necessidades dos cidadãos.
268
A sociedade é a maior interessada na solução dos problemas urbanos e é também a
que melhor conhece e sente a dimensão de tais problemas. Nesse espírito de gestão
democrática, proposto pelo Estatuto da Cidade, a participação popular representa um novo
conceito de governo e de democracia. Após o surgimento da lei do meio ambiente
artificial, a participação da sociedade não se restringe apenas a eleger seus representantes,
mas igualmente assegurar, na medida do possível, a conjunção de democracia
representativa e participativa na busca do bem coletivo.
Ao tratar dos construtos epistemológicos da gestão pública compartilhada no Brasil,
empregando uma abordagem habermasiana do agir comunicativo, Rogério Gesta Leal
condiciona a legitimidade da administração pública no Estado Democrático de Direito à
existência de um processo democrático de comunicação política, que institui espaço de
permanente construção de entendimentos racionais, a partir de instrumentos e mecanismos
de co-gestão que garantam a visibilidade, a compreensão e o debate das questões
266
MONTORO, André Franco. Descentralização e participação: importância do município na democracia.
In: FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA - Cepam. O município no século XXI: cenários e perspectivas.
Edição especial. São Paulo, 1999, p.298.
267
Ibidem, p.298.
268
KLIKSBERG, Bernardo. O desafio da exclusão: para uma gestão social eficiente. São Paulo: Fundap,
1997, p.63.
119
comunitárias relevantes. Assim, para ele, a participação da população na gestão dos
interesses públicos não é formal ou circunstancial, mas fundacional, pois “[...] na ação de
gestar a cidade, o cidadão a constitui enquanto lugar de civilização, comunhão e existência
digna; é nesta cidade que o homem se torna ser no mundo, porque co-responsável pela sua
criação e desenvolvimento, e tudo que diz respeito à cidade diz respeito a ele”.
269
Dessa
forma,
[...] a partir do espaço da cidade, constituída na cidadania, as responsabilidades
de gestão dos interesses comunitários que lhes são particulares, uma vez
compartilhadas, devem ser o resultado direto de políticas públicas integradoras
e de inclusão social, fruto da capacidade de articulação entre interesses públicos
e privados.
270
Em um breve recorte, cumpre destacar a gestão democrática participativa como um
possível instrumento de inclusão social e de cidadania. No entanto, embora a participação
da população seja uma possibilidade de inclusão social, deve-se destacar que a inclusão
também depende de outros fatores como o desenvolvimento do capital humano e do capital
social.
Com base em João Pedro Schmidt, pode-se dizer que os conceitos de inclusão e
exclusão social são recentes, uma vez que se tornaram usuais nas últimas décadas do
século XX. A exclusão social é um conceito que abarca muitos significados, por isso,
muitas vezes, considerado polissêmico, mas que é muito importante para a compreensão de
fenômenos relacionados às desiguldades sociais. A principal relação que se pode
estabelecer com o termo exclusão é a de privação de direitos ou benesses a que a sociedade
deveria ter acesso. Em contrapartida, oposta à exclusão, encontra-se a inclusão social,
numa acepção de inserção e integração na sociedade.
271
Nesse sentido, pode-se destacar na
gestão democrática participativa, proposta no Estatuto da Cidade, um grande potencial de
inclusão social, uma vez que a participação da sociedade nas decisões de interesse local
possibilita a criação de redes sociais de mobilização e de integração da sociedade em prol
de objetivos comuns.
269
LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 56.
270
Ibidem, p. 56.
271
SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social. Mimeo, 2006, p. 5-6.
120
De tal forma, igualmente ligados aos conceitos de inclusão e exclusão social,
encontram-se os temas do capital humano e do capital social. Pode-se dizer que o capital
humano está intimamente ligado às ações voltadas ao indivíduo, como o acesso à
educação, à saúde, entre outros. Para Augusto de Franco, o principal elemento do capital
humano não é o nível de escolaridade ou expectativa de vida da população, mas o
empreendedorismo, uma vez que,
[...] do ponto de vista do desenvolvimento, o principal elemento do capital
humano, o que distingue e caracteriza o humano como ente construtor do futuro
e, portanto, gerador de inovação, é a capacidade das pessoas de fazer coisas
novas, exercitando a sua imaginação criadora o seu desejo, sonho e visão e
se mobilizando para desenvolver as atitudes e adquirir os conhecimentos
necessários capazes de permitir a materialização do desejo, a realização do
sonho e a viabilização da visão.
272
o capital social relaciona-se a aspectos do ambiente em sociedade. Para João
Pedro Schmidt, destacam-se duas vertentes da conceituação de capital social. A primeira
entende o capital social “como recurso que os indivíduos possuem para acessarem recursos
socialmente valorizados em virtude de suas relações com outras pessoas”.
273
Nessa
perspectiva, o recurso (conhecimentos, informações) é o capital, e é social porque acessível
apenas em um circuito de relações. A outra vertente entende o capital social como
“variadas formas de interação social dos membros de uma comunidade, [...] e dos
componentes psico-sociais a elas subjacentes, como os sentimentos de confiança e
reciprocidade”.
274
Assim, pode-se definir capital social como o “conjunto de redes,
relações e normas que facilitam ações coordenadas na resolução de problemas coletivos e
que proporcionam recursos que habilitam os participantes a acessarem bens, serviços e
outras formas de capital”.
275
Nesse sentido, o capital social indica a possibilidade de efetivação da participação
popular e de inclusão social, pois contribui para a constituição de vínculos sociais de
cooperação em prol de interesses coletivos, cujas atividades são coordenadas com
propósitos comuns entre as pessoas de uma mesma cidade ou região. Há que se referir
também, que o caminho para alcançar uma participação social ativa nas decisões de
272
FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002, p. 63-64.
273
SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, Inclusão e capital social. Mimeo, 2006, p. 8.
274
Ibidem, p. 8.
275
Ibidem, p. 9.
121
interesse local, passa indiscutivelmente pela interlocução entre Estado e Sociedade e
principalmente pela mobilização do capital social comunitário.
Corroborando esse entendimento, Augusto de Franco diz que “o fortalecimento do
capital humano e do capital social é, portanto, ingrediente sem o qual as políticas públicas
e as ofertas de serviços governamentais não serão eficientes nem suficientes”.
276
Para ele,
combater a pobreza e a exclusão social não é transformar pessoas e
comunidades em beneficiários passivos e permanentes de programas
assistenciais, mas significa, isto sim, fortalecer as capacidades de pessoas e
comunidades de satisfazer necessidades, resolver problemas e melhorar sua
qualidade de vida.
277
Uma política pública realmente eficiente e eficaz tem como centro a pessoa
humana. Para o desenvolvimento da pessoa humana, ou seja, da vida, a necessidade de
um ambiente saudável. Nesse sentido, as políticas públicas também devem ser voltadas
para a proteção do que cerca o homem e essa proteção, conforme ressaltado anteriormente,
não é apenas dever do ente público, mas um direito-dever da sociedade. A Constituição
Federal de 1988 propiciou a criação de instrumentos que permitem a participação cada vez
mais ampla da população na defesa e na promoção dos interesses coletivos. Por sua vez, o
Estatuto da Cidade amplia essa participação para todos os atos da política pública
municipal. Cabe agora aos cidadãos a tarefa de exercer esses direitos e abrir caminho para
a prática de uma democracia participativa.
A lei do meio ambiente artificial impõe normas, indica diretrizes e oferece
dispositivos para sua adoção, contudo, por si só, não garante uma justa e adequada
aplicação. O caminho para a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana
está traçado pelo Estatuto da Cidade, por meio dos instrumentos de indução ao
desenvolvimento urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU
Progressivo no Tempo e desapropriação), mas, para que haja um real estabelecimento da
função socioambiental da propriedade urbana, deve haver uma gestão compartilhada, na
qual o poder público municipal disponibilize canais de acesso à democracia participativa
como forma de inclusão social. Possibilita-se, assim, uma nova forma de pensar a cidade,
criando uma nova racionalidade, abrindo espaço para a conscientização de que todos fazem
276
FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002, p.60.
277
Ibidem, p. 60.
122
parte do meio ambiente artificial e são co-responsáveis pela sua preservação para o futuro
das novas gerações.
3.4 As Audiências Públicas e os Conselhos Municipais
A constituição e a efetivação de uma gestão urbano-ambiental sustentável e da
função socioambiental da propriedade urbana, como se destacou nos tópicos anteriores,
passam indiscutivelmente pela aplicação sucessiva dos instrumentos de indução ao
desenvolvimento urbano e pela democratização do espaço urbano através de mecanismos
que possibilitem a participação ativa dos cidadãos nas demandas de interesse local.
Contudo, embora tais instrumentos sejam imprescindíveis à funcionalização
socioambiental da propriedade, torna-se necessário ainda, referir a importância dos
instrumentos de gestão democrática da cidade, contidos nos incisos do artigo 43 do
Estatuto da Cidade (órgãos colegiados de política urbana; debates, audiências e consultas
públicas; conferências sobre assuntos de interesse urbano; iniciativa popular de projeto de
lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano). Em especial, procurar-
se-ão salientar as audiências públicas e os conselhos municipais como espaços públicos de
interlocução política e administrativa entre o governo local e a sociedade, viabilizadores da
efetiva materialização socioambiental da propriedade urbana.
Iniciando a abordagem pelos conselhos municipais,
278
é importante destacar que os
últimos anos, precisamente os anos 90, foram marcados pela institucionalização
279
e
difusão dos conselhos municipais como canais de democratização da gestão pública local e
de aumento da eficiência e da eficácia das políticas públicas. A participação da sociedade
na formulação e na gestão de políticas públicas foi legitimada institucionalmente com a
278
Para Liana Portilho Mattos, os conselhos são esferas mistas, não totalmente estatais nem somente
comunitárias, caracterizando-se por serem canais de interação entre Estado e sociedade que contribuem
significativamente para a inserção de novos temas e demandas na agenda pública. MATTOS, Liana Portilho.
Da gestão democrática da cidade. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n.
10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 307.
279
A institucionalização dos conselhos municipais é referida por Maria da Glória Gohn, com o significado de
inclusão da participação cidadã no “arcabouço jurídico institucional, a partir da criação de estruturas de
representação novas, em termos de objetivos, finalidades, práticas e composição social.” Pressupõe a
existência de uma nova cultura política fundada na interlocução permanente entre Estado e sociedade.
GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves
dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder
local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 59.
123
Constituição Federal de 1988, quando foram estabelecidas a soberania e a cidadania como
fundamentos do Estado Democrático de Direito e combinados os procedimentos de
democracia representativa e democracia direta.
280
A dimensão e o significado desta mudança são enormes porque não se trata
apenas de “inserir o povo” em práticas de gestão pública, como ingenuamente
preconizavam as propostas da democracia com participação comunitária nos
anos 80, quando a idéia da participação vinculava-se à apropriação simples de
espaços físicos. Trata-se agora de mudar a ótica do olhar, do pensar e do fazer;
alterar os valores e os referenciais que balizam o planejamento e o exercício das
práticas democráticas. Partir das necessidades sociais significa adotar posturas
que têm como meta práticas de inclusão social [...]. Partir das demandas reais
implica adotar um outro ponto de partida: o da necessidade de inclusão social
dos que estão fora do acesso dos direitos fundamentais e do mercado de bens,
produtos e serviços necessários à sobrevivência condigna, e não de
favorecimento aos que já participam, ou dominam, esse mercado.
281
A par disso, acredita-se que o funcionamento efetivo dos conselhos municipais
significa uma gestão mais transparente do poder público, ao permitir que a sociedade
acompanhe suas ões de maneira mais próxima. O sentimento de pertencimento, a ser
estimulado no espaço local, permite a aproximação social dos munícipes em prol de
interesses comuns, favorecendo a construção da responsabilidade e do controle social,
contribuindo para o implemento de políticas públicas adequadas às demandas locais,
282
assim como, propiciando uma gestão sustentável do meio ambiente artificial. A inserção
desse mecanismo de participação, na esfera local, possibilita a prática da democracia
participativa de forma constante e regular. É através desses instrumentos
institucionalizados de gestão democrática urbana que se torna possível realizar os
princípios constitucionais, ou seja, a sociedade, quando decide, acaba por concretizar
alguns dos preceitos fundamentais da Constituição Federal.
280
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz.
Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR,
Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança
democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase,
2004, p. 21.
281
GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando
Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e
poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 61.
282
Destaca Maria da Glória Gohn que é o princípio ético que orienta a participação da sociedade, cujo foco
central está na relação entre a sociedade civil e a sociedade política. Em função disso, as políticas públicas
ganham destaque como ponto de contato entre Estado e sociedade. GOHN, Maria da Glória. Os conselhos
municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz;
AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos
municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 59.
124
É necessário o reconhecimento de que esse processo de mudanças e de
democratização da participação da sociedade não foi gerado espontaneamente. Existem, no
mínimo, dois fatores que foram determinantes para a adoção dos conselhos municipais
como instrumentos de gestão democrática. Como um primeiro fator, podem-se destacar as
experiências de participação desenvolvidas pelos movimentos sociais, que abriram
caminho para a instauração de canais de participação direta da sociedade na gestão dos
interesses públicos. De outro lado, como um segundo fator, pode-se referir que houve
vontade política para que pudesse ser implantado um novo espaço público, de caráter não-
estatal. “Este espaço surgiu como um agente de mudança, de decisão, e exigiu a construção
de regras de institucionalidade bem claras para que os mecanismos de participação, de
caráter democrático, viessem a operar.”
283
Nesse sentido, evidencia-se a importância dos conselhos municipais para estimular
a participação e proporcionar a inclusão social dos munícipes. Os conselhos podem ser
considerados os “[...] canais de participação mais expressivos da emergência de um novo
regime de ação pública no plano local, caracterizados pela abertura de novos padrões de
interação do governo com a sociedade em torno da definição de políticas sociais.”
284
Esses
canais de intermediação governo sociedade têm a capacidade de deliberar e influir na
gestão das secretarias municipais, acarretando assim o comprometimento desses órgãos
com as decisões dos conselhos. Nessa perspectiva, os conselhos municipais podem
constituir instrumentos efetivos de aprofundamento da democracia. Frente a isso,
destacam-se quatro categorias de competências atribuídas aos conselhos:
a) competências decisórias, consideradas as que estão relacionadas à
formulação de políticas e à regulação das atividades na área de atuação do
conselho; b) competências monitórias, consideradas as que estão relacionadas à
fiscalização, monitoramento e à avaliação de ações nas quais o Conselho não
tem execução direta; c) competências exclusivas, consideradas aquelas relativas
à execução direta de atividades pelo Conselho; e d) competências de
autogestão, relativas às atividades de organização e funcionamento do próprio
Conselho. Acrescente-se, ainda, a bem da precisão, uma e) competência de
assessoria, ou seja, aquela competência em que o conselho sugere ou estimula
determinadas políticas a outros órgãos da Administração.
285
283
Ibidem, p. 60.
284
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz.
Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR,
Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança
democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase,
2004, p. 25.
285
GONZÁLEZ, Rodrigo Stumpf apud HERMANY, Ricardo; RECK, Janriê Rodrigues; STEIN, Leandro
Konzen. A gestão local/compartida do meio ambiente por meio dos conselhos: fundamentação, explicitação e
125
Nesse particular, é importante referir que os conselhos municipais, como canais
institucionais de participação da sociedade, possuem algumas características importantes,
tais quais: são temáticos, ou seja, ligados a políticas sociais específicas (transporte, saúde,
educação, entre outros); são de caráter semi-representativo e com mandatos geralmente não
remunerados, prevendo a participação voluntária de representantes da sociedade civil e de
organizações sociais; são deliberativos, abrangentes e permanentes uma vez que não estão
restritos apenas à formulação de sugestões; são de composição paritária entre governo e
sociedade, ou seja, metade dos representantes pertence a organizações da sociedade civil e
outra metade aos órgãos governamentais; são autônomos ou semi-autônomos em relação
ao governo (embora vinculados aos órgãos do poder público, têm autonomia para definir
suas regras e seu funcionamento).
286
Em uma perspectiva histórica, torna-se interessante a contribuição de Rogério
Gesta Leal ao abordar a criação dos conselhos municipais na cidade de Porto Alegre.
Como órgãos auxiliares da Administração Pública porto-alegrense, os conselhos
municipais foram instituídos no auge do governo militar no Brasil através da Lei
Municipal 3.607, de 27 de março de 1972. Naquele momento histórico, os conselhos
não tiveram autonomia nem independência, tampouco conseguiram mobilizar a sociedade
para a participação na gestão pública. Isso se deu, por um lado, em razão do autoritarismo
vigente que não permitia o envolvimento da sociedade em questões políticas e
administrativas; por outro, ao fato de que os conselhos eram nomeados através de ato do
prefeito municipal, inviabilizando ações contrárias às práticas oficiais de gestão. Todavia,
em 20 de janeiro de 1992, através da Lei Complementar 267, ocorreu a regulamentação
dos conselhos municipais concebendo-os, “[...] não mais como instâncias de assessoria do
Poder Público, mas como órgãos de participação direta da comunidade na administração
pública, tendo por finalidade propor, fiscalizar e deliberar matérias referentes a cada setor
da administração.”
287
De tal forma, a partir desse período, a escolha dos membros do
questões pontuais. In: RODRIGUES, Hugo Thamir (Org.). Direito Constitucional e Políticas Públicas. Porto
Alegre: Imprensa Livre, 2005, p. 122.
286
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz.
Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR,
Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança
democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase,
2004, p. 22-24.
287
LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 160-161.
126
conselho passou a ocorrer por eleição em Assembléia própria, não ficando mais a encargo
do prefeito, assegurando a legitimidade do processo de administração da cidade.
Complementando o exposto, cabe lembrar a necessidade de se fixarem diretrizes
para criação, composição e funcionamento dos conselhos municipais uma vez que o
potencial de efetividade desse instrumento implica um considerável comprometimento da
sociedade. De outro modo, torna-se imprescindível reconhecer que muitas vezes esses
espaços de participação são imbuídos de caráter meramente formal, com o intento de
possibilitar o repasse de verbas Federais ou Estaduais, demonstrando uma participação
vinculada a uma gica de legitimação fundada em um interesse público forjado.
288
Frente
a isso,
[...] a simples existência de um conselho, objetivando atender a requisito legal
para a liberação de recursos federais ou estaduais, [...] se desacompanhada de
uma ampla reformulação do espaço público local, com a conseqüente atuação
da sociedade como sujeito ativo no processo de formulação das decisões
administrativas e legislativas [...] pode servir para consolidar equívocos do
processo de deliberação pela maioria, a partir de simples juízos de homologação
de projetos elaborados pelo corpo técnico das Administrações.
289
Diante desse panorama, deve-se estimular o potencial criativo do poder local para a
constituição de conselhos inovadores, pautados em demandas específicas e necessárias,
procurando ampliar a relação dos conselhos previstos na legislação vigente e adequá-los
à realidade local. Uma maior democratização do espaço local indica uma
reconceitualização da participação dos cidadãos. a necessidade de liberdade e de
capacidade de engajamento da sociedade no processo de gestão da cidade, buscando
288
No debate teórico acerca dos desafios e dos obstáculos à participação cabe destacar a contribuição pontual
de Rebeca Abers, citada por Marcelo Lopes de Souza, ao indicar três problemáticas referentes à participação
popular nos conselhos. Para ela, uma primeira problemática diz respeito à implementação dos instrumentos
de gestão democrática, que se traduz nas dificuldades enfrentadas pela administração pública na instituição
das políticas participativas. Essa dificuldade se revela através de boicotes, da escassez de recursos devido ao
desperdício, da incompetência ou da corrupção das administrações anteriores, dos conflitos ideológicos entre
grupos da administração, da resistência corporativa dos técnicos e dos planejadores, entre outros. A solução
para esse impasse não é fácil, implica quase sempre em uma solução política de negociação. A cooptação é
uma segunda problemática, relacionada à deformação da participação, gerando muitas vezes uma falsa
participação. Por último, a problemática da desigualdade, que não depende apenas do Estado para a sua
superação. Essa problemática indica as dificuldades de participação voluntária da população, geralmente em
função de sua condição de vida e dos poucos recursos dos quais dispõem. “Com tantos obstáculos, fica fácil
perceber que a participação popular no planejamento e na gestão urbanos não é algo trivial. A retórica da
participação é simpática mas, não raro, vazia e enganosa, exatamente quando se subestimam os vários
obstáculos ou quando se tenta ‘vender gato por lebre’.” ABERS, Rebeca apud SOUZA, Marcelo Lopes de.
Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003, p. 387-388.
289
HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de
Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 301-302.
127
romper com a cultura centralizadora que subordina os cidadãos ao invés de integrá-los ao
debate público.
Dessa forma, os canais institucionais de participação da sociedade, criados na
esfera pública local - a exemplo dos conselhos municipais e de outros instrumentos
trazidos pelo Estatuto Cidade, como as audiências públicas, o orçamento participativo,
entre outros - podem fazer da política um campo de exercício e de consolidação da
democracia.
290
Os conselhos municipais, principalmente os conselhos municipais do meio
ambiente, são canais institucionais com potencialidade expressiva na constituição da
interação entre o governo e a sociedade. Em primeiro lugar, isso se deve ao contato dos
atores locais entre si e com os representantes governamentais, o que propicia ao indivíduo
o aprofundamento sobre a realidade dos problemas urbano-ambientais da cidade, como
também estabelece alianças e parcerias entre esses atores sociais na busca de soluções.
Assim sendo, acredita-se que, através dos conselhos municipais do meio ambiente, seja
possível buscar a implementação de uma gestão urbano-ambiental sustentável e viabilizar a
função socioambiental da propriedade urbana. Os conselhos municipais, nesse sentido,
representam locais de solidarização, conscientização e sensibilização ambiental.
Por conseguinte, outro importante mecanismo de democratização da gestão e da
fiscalização e controle da efetivação da função socioambiental da propriedade urbana é
representado pelas audiências públicas. Para Liana Portilho Mattos, as audiências públicas,
além de estarem direcionadas à discussão dos assuntos de interesse da população e à
veiculação de informação (artigo 5°, XXXIII da CF/88) sobre as decisões e/ou projetos do
poder público, também são dirigidas ao implemento da co-gestão entre o governo e a
população, proporcionando um acompanhamento mais próximo das ações a serem
implementadas pelo poder público.
291
As audiências públicas, além de estarem previstas no Estatuto da Cidade (artigo 40,
§ 4º, artigo 43, inciso II e artigo 44), também se encontram estabelecidas na Lei de
Licitações e na Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 48). Na Constituição Federal de
290
GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando
Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e
poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 87.
291
MATTOS, Liana Portilho. Da gestão democrática da cidade. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto
da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 310.
128
1988, está prevista, no artigo 58, § 2º, inciso II, de modo a garantir a gestão compartilhada
e a consolidar o disposto no artigo 29, inciso XII do mesmo diploma legal.
Assim, também as audiências públicas permitem a abertura do espaço público para
a participação da sociedade, imbuindo o cidadão de um sentimento de pertencimento e de
responsabilidade na gestão do seu ambiente de vida. “Com a participação traduzindo-se em
fator permanente, temáticas que eram desconhecidas pela população passam a integrar a
prática cotidiana, incorporando-se ao vocabulário dos cidadãos [...]. O exercício constante
e permanente contribui de forma definitiva para uma nova construção da cidadania.”
292
Frente a isso, a obrigatoriedade das audiências públicas colabora para a ampliação do
processo de publicização das necessidades coletivas e para a efetivação de uma gestão
partilhada entre Estado e sociedade. Em outros termos,
deve-se aproveitar a esfera local como estratégia capaz de manter canais
permanentes e simplificados de discussão sobre políticas públicas, definindo-as
e, principalmente, possibilitando o controle de sua execução. É o espaço local
que permite uma discussão mais pormenorizada, com critérios factíveis para
que o cidadão realmente esteja inserido no processo de democratização da
gestão [...].
293
Diante disso, tem-se que a resposta acerca da possibilidade de efetivação da função
socioambiental da propriedade urbana e do implemento de uma gestão urbano-ambiental
sustentável, não se relaciona apenas aos instrumentos de indução do desenvolvimento
urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo
e desapropriação), tampouco somente à gestão compartilhada exposta na lei do meio
ambiente artificial. Complementando a aplicação dos instrumentos de indução ao
desenvolvimento, encontram-se os conselhos municipais e as audiências públicas como
ferramentas importantes para a efetivação da função socioambiental da propriedade
urbana.
292
HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de
Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 305-306.
293
Ibidem, p. 308.
CONCLUSÃO
As demandas sociais evidenciam-se cada vez mais complexas e desafiadoras aos
aplicadores do direito. Nesse cenário, o Programa de Mestrado em Direito da UNISC, com
área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, especificamente na linha de
pesquisa de Políticas Públicas e Inclusão Social, busca compreender e investigar as
condições e possibilidades de gestão dos interesses públicos a partir da construção de
políticas públicas de inclusão social e da participação política da cidadania. Dessa forma, o
presente trabalho buscou demonstrar que a efetivação da função socioambiental da
propriedade urbana é um demanda social contemporânea, relacionada diretamente aos
temas da inclusão social e das políticas públicas no espaço local.
Nesse sentido, eleger abordagem teórica que busque encerrar um trabalho voltado
para a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana não é tarefa das mais
fáceis. Primeiro, em razão da riqueza e da abrangência do tema enfrentado, sempre
fomentador de novos questionamentos; segundo, porque muitas outras questões foram
suscitadas, e grande parte de suas respostas acabam por instigar novas problemáticas,
abrindo caminho para investigações futuras.
Respeitando a proposta originária da presente investigação, procuraram-se buscar
as respostas das indagações entre os instrumentos elencados no Estatuto da Cidade. Nesse
contexto, pôde-se perceber que o direito de propriedade, com o surgimento da lei do meio
ambiente artificial, apresenta-se como um direito renovado, que passa por um processo de
publicização a fim de se adequar às demandas sociais e ambientais da coletividade. Essa
propriedade, agora vinculada ao cumprimento de uma função socioambiental, torna-se um
instituto que contempla a proteção dos interesses públicos e privados que lhes são
inerentes. É essa proporcionalidade, trazida pelo Estatuto da Cidade, que caracteriza a
justiça social e a realização do bem comum tão esperadas no contexto urbano e
proporciona o implemento de políticas públicas includentes.
As novas necessidades e exigências da sociedade contemporânea, dentre as quais,
as de ordem ambiental, requeriam uma adequação do direito. Essa reorientação deveria
priorizar um direito de caráter social e ambiental, propiciando, dessa forma, a
130
concretização da função socioambiental da propriedade urbana. Contudo, é importante
destacar que as respostas ao questionamento não se encontram apenas no âmbito do direito,
mas relacionam-se com outras áreas do conhecimento, tais quais, Ciências, Filosofia,
Sociologia, Biologia, dentre outras.
Na busca de respostas, iniciou-se o estudo tendo por base os preceitos da
Constituição Federal de 1988. Percorreu-se o caminho da demarcação histórica e do
surgimento da propriedade como direito. Analisaram-se as diferentes formas de
propriedade ao longo do tempo. Em virtude disso, houve a necessidade de fragmentação da
análise em períodos distintos: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade
Contemporânea, onde se verificaram os traços característicos do direito de propriedade em
cada período da história da humanidade.
Nos primórdios da existência humana, especificamente no período pré-histórico, o
homem era nômade e de comportamento similar às outras espécies de animais. Embora
vivendo em um estado selvagem tinha a noção de propriedade. Com a invenção da
escrita e a passagem do homem ao estado de civilização, iniciou-se o período da Idade
Antiga, onde a noção de propriedade aparece regulamentada sob normas de estrutura
codificada. De outro modo, destacou-se, através da passagem do traço familiar para a
propriedade individualista e absoluta, característica da concepção romana, que a concepção
inicial de propriedade foi cedendo vez aos direitos do indivíduo e não aos da coletividade.
Na Idade Média, com o surgimento do feudalismo como organização econômica,
política e social, os donos de terras passaram a submeter suas propriedades ao domínio do
soberano em troca de proteção. Essa situação acarretou a inquietação dos proprietários e o
retorno da discussão acerca da propriedade privada. Por outro lado, o período moderno foi
marcado pelas grandes navegações, pela Revolução Comercial e pelo renascimento,
fortemente influenciado pelos ideais iluministas, que permitiram a passagem do Estado
Absolutista ao Estado Liberal. O direito moderno teve seu marco na Revolução Francesa,
caracterizada por uma concepção individualista, favorecendo os ideais de propriedade
absoluta e individualista. Frente a isso, em contraponto à doutrina liberal, em um período
marcado por profundas desigualdades sociais, surgiu o pensamento socialista, decisivo
para o rompimento do paradigma de propriedade absoluta. Foi na contemporaneidade que
se tornou evidente o caráter dinâmico do direito de propriedade, passando a assimilar
131
interesses sociais e ambientais. Assim, constatou-se que não um conceito universal e
imutável de propriedade, uma vez que esta tem seu conteúdo modificado em virtude de
necessidades sociais e ambientais.
Com isso, passou-se a investigar a contribuição de doutrinadores e filósofos para a
caracterização da propriedade e da função social, buscando demonstrar que as alterações
na concepção da propriedade privada, além de produto histórico, também tiveram origem
no pensamento e nas teorias de diversos estudiosos. Nesse sentido, destacaram-se três
correntes de pensamento: os que contestavam a propriedade privada e defendiam sua
abolição, os que afirmavam ser a propriedade um direito natural do homem e os que a
defendiam como criação do Estado e conseqüência do Estado Civil.
O primeiro a contribuir com o rompimento da idéia de direito absoluto e individual
de propriedade foi Aristóteles. Para Aristóteles, a propriedade privada deveria,
necessariamente, estar vinculada a uma destinação social, compreendendo a harmonização
das feições individuais e comuns. Buscou ele, através de suas obras, criticar a apropriação
coletiva dos bens, argumentando a falta de cuidado com o que é de todos. Em função dessa
crítica, no que tange à propriedade privada, destacou a necessidade de ponderação entre o
interesse público e o interesse privado, tornando-se justo o meio-termo. Com conotação
diversificada, Santo Agostinho configurava os bens como obras divinas. Em seu
entendimento a propriedade privada era providência dos homens, com a finalidade de
atendimento das necessidades sociais e não apenas individuais. Destacava ele que a função
da terra era a produtividade e que o homem que a descumprisse ausentava-se de
exclusividade em seu interesse individual. Em São Tomás de Aquino, observou-se o
entendimento de um direito natural à posse de bens materiais, provisoriamente destinados
ao domínio individual. Nesse sentido, para ele, admitia-se o direito de propriedade privada,
condicionada ao interesse individual e ao interesse social. Entretanto, é com a Doutrina
Social da Igreja que a propriedade privada passou a estar imbuída de um compromisso
social. Com isso, tornou-se evidente a necessidade de conscientização do homem em
relação a sua natureza social e ao seu compromisso com o bem comum, a ser realizado por
intermédio da propriedade privada.
Com Thomas Hobbes a propriedade privada passou a ser entendida como efeito do
Estado, através de ato do soberano. Para ele, a passagem do Estado Natural ao Estado Civil
132
se deu com a renúncia dos direitos naturais em favor do soberano. Dessa forma, a liberdade
civil do detentor da propriedade privada estava condicionada às obrigações da vida em
sociedade. De outro modo, para John Locke, na passagem do Estado Natural para o Estado
Civil, a propriedade, como direito inerente à natureza do homem, absoluta, exclusiva e
ilimitada, compreende essas características apenas quando legitimada pelo trabalho. Em
contrapartida, em Jean-Jacques Rousseau, se observou a renúncia dos direitos naturais em
favor de toda coletividade, como prerrogativa da liberdade civil. Assim, para ele, a
propriedade originou-se como direito somente com a instituição do Estado. A partir disso,
reconheceu na instituição da propriedade como direito, através das leis, a destruição da
igualdade e da liberdade do Estado de Natureza, o que causou inúmeras desigualdades.
Com Thomas More, discutiu-se que o Estado ideal deveria priorizar a igualdade e a justiça.
Baseando-se nisso, criticou-se a apropriação privada do solo e procurou-se incentivar o uso
comum dos bens. Por fim, foi com Léon Duguit a contribuição mais expressiva no
desenvolvimento da noção de função social da propriedade. Para Duguit, a propriedade
deixou de ser o direito subjetivo de caráter individual e passou a ser uma função social do
detentor do bem. Dessa forma, o direito de propriedade se traduz na idéia de um poder-
dever, ou seja, o proprietário não tem um direito subjetivo, mas uma situação jurídica
objetiva, de realização da função social.
Verificados os contextos históricos que marcaram o direito de propriedade e o
surgimento da noção de função social, partiu-se para a investigação da influência da
evolução histórica e da constitucionalização dos direitos fundamentais no direito de
propriedade a fim de se esclarecer o momento histórico e os fatores que contribuíram para
a consagração da função social da propriedade como princípio jurídico.
Em um primeiro momento, procurou-se demonstrar que os direitos fundamentais
não foram resultado de um acontecimento histórico determinado, mas de todo um
processo. Em decorrência disso, os direitos fundamentais são estudados e classificados em
dimensões. Não se pode lhes atribuir fundamento absoluto pois são historicamente
relativos uma vez que surgem e se modificam influenciados por fenômenos sociais
sucessivos. Frente a isso se concluiu que os direitos de primeira dimensão ganharam novas
feições quando do surgimento de novos direitos fundamentais. Nesse caso, o direito de
propriedade privada, num contexto de reconhecimento da segunda dimensão de direitos,
133
passou a estar condicionado ao exercício de uma função social, e com o aparecimento da
terceira dimensão, observando-se igualmente uma função ambiental.
Por fim, uma vez averiguada a importância das dimensões de direitos fundamentais
na reconfiguração das feições do direito de propriedade, partiu-se para a investigação da
flexibilização do direito de propriedade no Brasil. Salientou-se que a concepção
contemporânea do direito de propriedade une o direito subjetivo à função socioambiental,
de tal sorte que ao direito de propriedade se conjugam direito e dever. Com isso, de um
lado, objetivou-se demonstrar que as transformações do direito de propriedade fizeram-no
um direito renovado, por adquirir contornos socioambientais. De outro, procurou-se
salientar a evolução gradativa da noção de função socioambiental até sua incorporação ao
conceito de propriedade privada. Nesse contexto, com o surgimento do Estatuto da Cidade,
houve o rompimento definitivo do paradigma civilista de propriedade absoluta,
vinculando-a ao cumprimento de uma função social e ambiental no interesse da
coletividade. Assim, no contexto da lei do meio ambiente artificial, a propriedade não pode
mais ser vista como uma instituição de direito privado. Com o advento da Constituição
Federal de 1988 e a posterior adequação do Código Civil de 2002, a propriedade assume
uma feição renovada, assimilando, com o Estatuto da Cidade, contornos sociais e
ambientais. uma flexibilização do direito de propriedade que perpassa o individual ao
socioambiental na busca da igualdade de condições dignas de vida nas cidades.
Em um segundo momento do trabalho, priorizou-se a visualização do meio
ambiente enquanto direito-dever fundamental. Verificou-se que os problemas ambientais
no espaço urbano são antigos, embora a preocupação com o meio ambiente artificial seja
recente. Procurou-se abordar a necessidade de superação do modelo antropocêntrico
clássico, no qual o homem se afigura como detentor da natureza, abrindo caminho ao
entendimento do homem como parte do ambiente e principal responsável pela sua
conservação e preservação (antropocentrismo alargado). Restou evidente, pelo conceito de
meio ambiente, a incontestável interdependência apresentada pela relação homem-
natureza. De tal forma, confirmou-se pela análise interpretativa do disposto no artigo 225
da Constituição Federal de 1988, a afirmação de que a proteção do meio ambiente, além de
um direito fundamental de o homem usufruir um meio ambiente saudável, é também um
dever essencial, que se caracteriza pela obrigação incumbida ao Poder Público e a cada um
dos indivíduos partícipes da sociedade. Assim, embora em um primeiro momento a
134
compreensão do ambiental relacionado às cidades tenha restado limitada ao imaginário do
espaço urbano dissociado do meio ambiente, atualmente houve uma inversão, na qual se
buscou evidenciar que o ambiental contempla o social, sobretudo representado pelo
ambiente cultural e artificial.
Nesse sentido, buscou-se enfatizar e justificar o espaço urbano e a propriedade
privada como categorias de bens ambientais de interesse público e interesse difuso,
indicando, com isso, que a propriedade em sua forma privada, à frente e antes de sê-la, é
um microbem ambiental, acarretando ao proprietário o dever fundamental de utilizá-la não
apenas em seu favor, mas no interesse de toda coletividade. Em outras palavras, a
propriedade privada, em um panorama de inserção das normas de direito ambiental na
caracterização dos institutos de Direito Privado, deixou de ser um vínculo jurídico
individual e absoluto estabelecido entre uma pessoa e um bem, para apresentar-se como
um vínculo jurídico coletivo, difuso na sua espécie, que se estabelece entre pessoas
indeterminadas e um bem de uso comum, sem deixar de ser um bem de titularidade
privada.
Em razão desse entendimento, destacou-se que o parcelamento e a apropriação
privada do solo urbano representam uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos
problemas urbano-ambientais. Os embates causados pelo não-acesso à propriedade urbana
evidenciam a necessidade de organização e de planejamento do espaço urbano. Assim,
enfatizou-se a viabilização de novos instrumentos de indução ao desenvolvimento através
da aprovação do Estatuto da Cidade. Analisou-se, ainda, a emergência da instituição e da
implementação de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano sustentável,
concluindo-se que ou o desenvolvimento é sustentável ou não é desenvolvimento. Nesse
sentido, a meta de uma cidade sustentável depende de uma considerável mudança de
paradigmas, tornando-se necessário o despertar para valores solidários e fraternos.
Pensar o direito à cidade e à propriedade urbana, nesse particular, é ampliar ao
máximo as condições e as possibilidades de eficácia dos instrumentos da política urbana,
na busca da materialização da função socioambiental da propriedade. Isso implica uma
nova forma de entender a relação do homem com o seu ambiente.
135
Na última parte do trabalho, procuraram-se identificar os possíveis caminhos para
alcançar a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana. Para isso,
investigaram-se alguns dos instrumentos da política urbana, trazidos pelo Estatuto da
Cidade. De início, salientou-se que, no Brasil, a ausência de diálogo entre a população e o
Poder Público desencadeou, ao longo da história, a produção de planos e de leis
urbanístico-ambientais com parâmetros excludentes, refletindo apenas os interesses de uma
pequena parcela da população. O Estatuto da Cidade, nesse cenário, representou um grande
avanço nas políticas urbano-ambientais ao instituir instrumentos garantidores da
participação popular no processo decisório e de gestão do espaço urbano. Dessa forma, o
Plano Diretor surgiu como o principal instrumento à disposição do ente federativo
municipal para alcançar os objetivos da política urbana e garantir condições dignas de vida
aos cidadãos. Nesse contexto, o Plano Diretor é um primeiro passo para que seja possível a
aplicação dos demais mecanismos sociais e ambientais da lei do meio ambiente artificial.
Destacou-se ainda, que o legislador e o administrador municipal, para
exteriorizarem legalmente a política de desenvolvimento urbano do Município, deverão
utilizar-se do Plano Diretor. O que não constar no Plano Diretor, não poderá integrar a
política urbana. Ademais, ressaltou-se que, o direito à participação popular e a efetiva
participação, como requisitos constitucionais, são condição obrigatória de validade e de
legitimidade do Plano Diretor.
Em seqüência, havendo imóvel em desacordo com a função social e ambiental, é
exigido do proprietário o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória, para
depois de descumpridas as exigências, incidir a cobrança do IPTU Progressivo no Tempo.
Por sua vez, o IPTU Progressivo no Tempo, como instrumento tributário e financeiro da
política urbana, visa a punição de uma situação evidentemente especulativa,
caracterizando-se pelo seu caráter punitivo e pela sua natureza extrafiscal. Seu objetivo é
motivar a utilização devida da propriedade urbana, de modo a garantir o cumprimento da
função socioambiental da propriedade. Por fim, como instrumento jurídico-político, a
desapropriação evidencia-se como mais um penalidade para o proprietário de imóvel em
desacordo com as normas previstas no Plano Diretor. Buscou-se referir que a
desapropriação, prevista na política urbana, é efetuada mediante pagamento em títulos da
dívida pública, o que a caracteriza como uma sanção, devido ao critério definido para fins
de pagamento. Por ser mais um instrumento destinado a garantir o cumprimento da função
136
socioambiental da propriedade urbana, a desapropriação caracteriza-se, também, como
instrumento capaz de promover a reforma urbana.
A utilização desses instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano,
defendidos nesse trabalho, afiguraram-se como apenas alguns dos mecanismos aptos ao
desiderato. Sem dúvida, tais instrumentos, por si só, não garantem a efetivação da função
socioambiental, eis que fatores políticos, econômicos e principalmente sociais influenciam
diretamente no tema. Nessa perspectiva, o Estatuto da Cidade assegurou meios para buscar
a implementação de políticas públicas, dentre eles, a participação popular como fator
indispensável para a validade das propostas da lei do meio ambiente artificial.
Um dos grandes avanços da legislação foi, sem vida, a incorporação da
participação dos cidadãos nas decisões de interesse público, através da gestão democrática,
por meio de audiências públicas e dos conselhos municipais, entre outros. A lei privilegiou
o poder local, entendendo ser o ente municipal o mais próximo, capaz de satisfazer as
necessidades dos munícipes. Com base no artigo 225 da Constituição Federal de 1988,
estabeleceu-se uma responsabilidade compartilhada na gestão urbano-ambiental, aliando-se
poder público municipal e participação popular. A sociedade é a maior interessada na
solução dos problemas urbanos e é também a que melhor conhece a dimensão desses
problemas. Na proposta do Estatuto da Cidade, a gestão democrática representa uma nova
forma de interação da comunidade, não-restrita a apenas eleger seus representantes, mas a
assegurar, na medida do possível, a conjunção de democracia representativa e participativa
na busca da materialização das funções socioambientais das cidades e das propriedades.
Assim, as audiências blicas e os conselhos municipais, como instrumentos da gestão
democrática, representam canais institucionais de participação da sociedade, criados na
esfera pública local, capazes de despertar nos cidadãos o sentimento de pertencimento e de
responsabilidade na gestão do seu ambiente de vida. Por isso, também considerados
mecanismos de inclusão social, imprescindíveis à efetivação da função socioambiental da
propriedade urbana.
Diante do exposto, conclui-se que a resposta acerca da possibilidade de efetivação
da função socioambiental da propriedade urbana e do implemento de uma gestão urbano-
ambiental sustentável não se relaciona apenas aos instrumentos de indução do
desenvolvimento urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU
137
Progressivo no Tempo e desapropriação), tampouco somente à gestão compartilhada
exposta na lei do meio ambiente artificial. Complementando a aplicação dos instrumentos
da política urbana, encontram-se os conselhos municipais e as audiências públicas como
ferramentas importantes para a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana
e para a conscientização de que todos fazem parte do meio ambiente artificial e são co-
responsáveis pela sua preservação para as presentes e as futuras gerações.
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ANEXO A – Quadro esquemático de utilização do método hipotético-dedutivo
CONHECIMENTO PRÉVIO
TEORIAS EXISTENTES
Art.5° CF/1988 (direito de propriedade x função
social da propriedade) = colisão de direitos
Surgimento Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade
(prioridade do atendimento à função social)
LACUNA, CONTRADIÇÃO OU PROBLEMA (P
1
)
Quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a
efetivação da função
socioambiental da
propriedade urbana?
CONJECTURAS, SOLUÇÕES OU HIPÓTESES (TT)
Efetivação através:
1-Instrumentos e diretrizes gerais do Estatuto da Cidade
2-Plano direito municipal
3-Parcelamento, utilização ou edificação compulsórios
4-IPTU Progressivo no Tempo
5 -Desapropriação
6-Gestão compartilhada: poder público x sociedade
7
-
Audiências
Públicas e Conselhos Municipais
TESTAGEM (EE)
Observação da probabilidade prática de (não)
ocorrência/ (in)eficiência das hipóteses.
AVALIAÇÃO DAS CONJECTURAS, SOLUÇÕES OU HIPÓTESES
REFUTAÇÃO
(rejeição)
CORROBORAÇÃO
(aceitação/validação)
A função socioambiental da
propriedade urbana pode ser
efetivada através de tais meios/
instrumentos ...
NOVA TEORIA
Teoria da efetivação da função socioambiental da
propriedade urbana através de instrumentos de gestão
democrática da cidade.
NOVA LACUNA, CONTRADIÇÃO OU PROBLEMA (P
2
)
Como atingir níveis expressivos de participação popular para
possibilitar a gestão democrática e compartilhada das cidades?
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