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Mariana Camilo de Oliveira
A DOR DORME COM AS PALAVRAS
A POESIA DE PAUL CELAN NOS TERRITÓRIOS
DO INDIZÍVEL E DA CATÁSTROFE
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Mariana Camilo de Oliveira
A DOR DORME COM AS PALAVRAS
A POESIA DE PAUL CELAN NOS TERRITÓRIOS
DO INDIZÍVEL E DA CATÁSTROFE
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade
Orientador: Prof. Dr. Georg Otte
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Dedico este trabalho, celanianamente, a mãe e pai.
À Ana e ao grupo PAD-sublimação.
Ao Esteban, com amor.
À meria dos meus avós.
AGRADECIMENTOS
Ao Celan, com Celan: “denken (pensar) e danken (agradecer) são palavras da mesma
raiz”, disse o poeta. Seguindo-lhe: “gedenken (lembrar), eingedenk sein (rememorar), Andenken
(recordação) e Andacht (devoção)”. Assim sendo, agradeço, penso, rememoro e presto
devoção.
À Faculdade de Letras e à nossa Universidade Federal, por acolher e possibilitar este
trabalho.
Ao CNPq, pelo financiamento desta pesquisa.
Ao meu orientador, prof. Dr. Georg Otte, pelo apoio permanente e disposição para a
partilha da impossível tarefa de escuta do indizível; com quem aprendi que a “epistemologia
poética” é a que realmente vale a pena.
À Ana Cecília Carvalho, que, com delicadeza de escritora e psicanalista, ofereceu os
subsídios para este trabalho – desde as primeiras experiências de escuta analítica, às de escrita
e, especialmente, aos primeiros contatos com a obra de Celan. A quem devo as origens deste
projeto e cuja voz ecoa ao longo deste texto, sou profundamente grata.
À Ruth Silviano Brandão, pela generosidade das primeiras lições da “dança” da leitura.
Pelos preciosos ensinamentos de que a “escrita me leva para onde nem sempre quero, mas
desejo”.
Pelo acolhimento nas letras, agradeço aos professores Lúcia Castello Branco, Ana
Clark, Lyslei Nascimento, Élcio Cornelsen, Carlos Gohn e Marcus Vinícius.
Sou grata a Márcio Seligmann-Silva, cujos aportes foram fundamentais neste percurso,
pela valiosa interlocução.
À Celina, minha mãe, pela poesia. Ao Antônio, meu pai, pela prosa. A ambos, pelos
cuidados carinhosos nesta etapa.
Ao Esteban Amador, que, na condição de amador, sabe, inventa e ama, pelo apoio e
companhia. Obrigada pela leveza, sempre. Um schibboleth: “poesía... eres tú”.
Às minhas irmãs, Cláudia e Renata, pela ajuda concreta e pelo afeto; longe – sempre
perto.
Aos professores Guilherme Massara, Jaime Ginzburg, Jeferson Machado Pinto, Ana
Chagas, Maria Luísa Nogueira, Fábio Belo e Rui Rothe-Neves, pelo incentivo.
À Marilaine Lopes, pela amizade e ajuda inestimável; à Manuela Barbosa, pela leitura
de traduções; a Erick Costa, Henrique Lee, Thereza Junqueira, Janine Rocha, Cláudia Maia,
Vívien Gonzaga, Fábio Diniz e Luciana Silviano. Aos responsáveis pelo Winterkurs DAAD,
2005, junto à Universität Leipzig. Às “meninas estranhas”: Lívia Santiago, Elisa Massa,
Priscila Drummond; a Tatiana Oliveira, Júlia Mesquita, Célia Nahas, Aldo Ivan, Liliane
Camargos, Ivone Silva e Daniel Fernandes, pela cumplicidade e por sustentarem o silêncio.
Aos tios e primos. A Cecília, Cinira, Celso e Ana Alves. A Maria Celina, Maia, Reiko e Rute.
À Ana Portugal, pois também acredito no “vidro da palavra”.
Ao Hildebrando Sábato, pelo auxílio ao longo deste período.
Aos amigos do grupo Sarandeiros; pela compreensão agradeço a Gustavo Côrtes,
Vanessa Alves, Daniela Gomes, Andréia Abreu, Paulo Nunes, Petrônio Alves, Marcos Campos,
Cinara Gomes, Juliana Bergamini, Felipe Caliman, Ana Paula Ferreira e Vagner Miranda.
Ao Estevão Amaro dos Reis pela amizade, sempre. À Analu, com ternura.
Aos amigos do Cefar – Palácio das Artes.
A Lourdes e Fernanda, pela leitura dos originais, revisão e normalização.
Ao Cenex da Faculdade de Letras da UFMG, pelas oportunidades.
O poema mostra, e isso é indesmentível,
uma forte tendência para o emudecimento.
Paul Celan. O Meridiano.
A impossibilidade de não escrever,
a impossibilidade de escrever em alemão,
a impossibilidade de escrever de maneira diferente.
Franz Kafka. Carta a Max Brod.
Escrever é também não falar.
É se calar.
Marguerite Duras. Escrever.
A poesia já não se impõe, expõe-se.
Paul Celan. 26 de março de 1969.
RESUMO
Neste estudo pretende-se, a partir do legado literário do poeta Paul Celan, efetuar
uma aproximação da aporia em torno da (im)possibilidade de representação da experiência
catastrófica, considerada traumática e indizível. Visa-se, ademais, propor uma reflexão
sobre os efeitos da experiência poética neste âmbito. Para tal empreitada, foi necessária
uma incursão em uma parte da lírica celaniana. Deter-se-á na análise de noções como as de
testemunho, representação, indizível, trauma, dor e sublimação, bem como no fato de que
a língua poética de Celan era o alemão, que fora simultaneamente sua língua “materna e
dos assassinos” [“Muttersprache-Mördersprache”]. A obra de Paul Celan demonstra a
possibilidade de uma poesia após Auschwitz que se utiliza de procedimentos poéticos para
incorporar o silêncio como forma de falar. Observa-se que o poeta opera de maneira a não
tornar “belo” ou “facilmente assimilável” o horror da Shoah, além de que sua poética torna-
se mais fragmentária e silenciosa, no paradoxo entre o hermetismo e a dialogia. Assim
sendo, foram apontados caminhos para a abordagem do problema da representação da
catástrofe. Identificou-se, também, um duplo aspecto dos efeitos da escritura – restaurador
e disruptivo –, em especial daquela que se encontra nos territórios do indizível e da
catástrofe.
Palavras-chave: Paul Celan; poesia; catástrofe; indizível; representação; testemunho;
trauma; sublimação.
ABSTRACT
This study aims to establish an approach to the impasse connected with the
(im)possibility of representing the catastrophic experience, considered traumatic and
“unsayable”, starting from the grounds of Paul Celan’s literary legacy. It also intends to
reflect on the forthcoming effects of the poetical experience in this scope. For such a task it
is necessary to make an incursion in some of the celanian lyric. Notions such as testimony,
representation, “unsayable”, trauma, pain and sublimation are particularly analyzed, as
well as the fact that Celan’s poetical language was German, which was simultaneously his
“mother tongue” and “the language of the murderers” [“Muttersprache-Mördersprache”].
Paul Celan’s work shows the possibility of poetry after Auschwitz, and in order to achieve
this he makes use of poetical procedures that incorporate silence as a form of speaking. It
was observed that the poet acts in a way that neither develops the horror of the Shoah into
“beauty” nor converts it into something “easy to assimilate”. In addition, it was observed
that his poetics becomes more fragmentary and silent, indicating the paradox between
hermetism and dialogism. Thus, it allows us to point out some possible paths to deal with
the problem of representing the catastrophe. Furthermore, it is possible to address the
double aspect of the effects of writing, the restoring and the disruptive one, especially in the
writing that finds itself in the territories of the “unsayable” and of the catastrophe.
Key words: Paul Celan; poetry; catastrophe; “unsayable”; representation; testimony;
trauma; sublimation.
RESÜMEE
Ziel der vorliegenden Arbeit ist es, ausgehend vom literarischen Vermächtnis Paul
Celans zu einer Annäherung an die Aporie bezüglich der Un/Möglichkeit zu gelangen, die
als traumatisch und unsagbar betrachtete Erfahrung der Katastrophe darzustellen.
Darüberhinaus ist eine Überlegung über die Auswirkungen der dichterischen Erfahrung in
diesem Bereich vorgesehen. Die Verwirklichung dieses Vorhabens macht die Untersuchung
einzelner Gedichte Celans notwendig, die sich auf die Begriffe Zeugenschaft, Darstellung,
Unsagbarkeit, Trauma, Schmerz und Sublimierung, sowie auf die Tatsache, dass Celan in
seinen Gedichte auf die deutsche Sprache zurückgriff, konzentriert, die sowohl seine
Mutter- als auch seine Mördersprache war. Das Werk Paul Celans zeigt, dass es möglich
ist, nach Auschwitz Gedichte zu schreiben, die sich poetischer Mittel bedienen, um sich das
Schweigen als Form des Sprechens einzuverleiben. Dabei ist anzumerken, dass der Dichter
nicht so vorgeht, dass der Schrecken der Shoah “schön” wird oder “leicht zu assimilieren”
ist, abgesehen davon, dass seine Dichtung sich durch das paradoxale Verhältnis zwischen
Hermetik und Dialog fragmentarisch und verschwiegen gestaltet. So werden im folgenden
Wege angedeutet, wie man sich dem Problem der Darstellung der Katastrophe annähern
kann. Bei dieser Gelegenheit wurde auch ein doppelter – ein restaurativer und ein
zerstörerischer – Aspekt des Schreibens deutlich, besonders desjenigen, das sich auf dem
Gebiet des Unsagbaren und der Katastrophe bewegt.
Schlüsselbegriffe: Paul Celan; Dichtung; Katastrophe; unsagbar; Darstellung;
Zeugenschaft; Trauma; Sublimierung.
LISTA DE ABREVIATURAS
DAS OBRAS DE PAUL CELAN
SU: CELAN, Paul. Der Sand aus den Urnen. Viena, 1948. [A areia das urnas]
MuG: ______. Mohn und Gedächtnis. Stuttgart, 1952. [Papoula e memória]
VS: ______. Von Schwelle zu Schwelle. Stuttgart, 1955. [De limiar em limiar]
SG: ______. Sprachgitter. Frankfurt/Main, 1959. [Grade de linguagem]
NR: ______. Die Niemandsrose. Frankfurt/Main, 1963. [A rosa de ninguém]
AW: ______. Atemwende. Frankfurt/Main, 1967. [Sopro, viragem]
FS: ______. Fadensonnen. Frankfurt/Main, 1968. [Sóis desfiados]
LZ: ______. Lichtzwang. Frankfurt/Main, 1970. [A força da luz]
SP: ______. Schneepart. Frankfurt/Main, 1971. [A parte da neve]
ZG: ______. Zeitgehöft. Späte Gedichte aus dem Nachlass. Frankfurt/Main, 1976. [A cerca
do tempo]
FW: ______. Das Frühwerk. Edição 1989. [Obra inicial/ de juventude]
GN: ______. Die Gedichte aus dem Nachlaß. Edição 1997. [Poesia do espólio]
DAS OBRAS COMPLETAS E ANTOLOGIAS CONSULTADAS
GW: ______. Gesammelte Werke in fünf Bänden. Hrsg. von Beda Allemann uns Stefan
Reichert unter Mitwirkung von Rolf Bücher. Frankfurt/Main, 1983. [Obras completas em
cinco volumes].
KG: ______. Die Gedichte. Kommentierte Gesamtausgabe. Herausgegeben und
kommentiert von Barbara Wiedemann. Frankfurt/Main, 2005. [A poesia. Edição
comentada].
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................... 12
P
ARTE I
20
1 Paul Celan no Brasil .................................................................................... 21
1.1 Aporias na recepção de Celan .................................................................. 24
2 “Todesfuge” – Das (im)possibilidades da leitura ....................................... 29
3 Grito de uma flor ou modos de silêncio ..................................................... 45
3.1 A suave e dolorosa rima alemã ................................................................ 47
3.2 Palavra silenciada, contrapalavra ............................................................. 52
3.3 Ervas, escrita dispersa .............................................................................. 60
3.4 Um íntegro silêncio, uma pedra. A rosa do Nada, a de ninguém ............. 76
3.5 Meingedicht, das Genicht ......................................................................... 81
3.6 Tira-me, feito casca, da minha palavra ..................................................... 87
3.7 Tu lês, coletas ........................................................................................... 96
P
ARTE II
99
4 Niemand zeugt für den Zeugen-Ninguém testemunha pela testemunha ...... 100
4.1 “Após Auschwitz” e a conversa inconclusa entre Celan e Adorno .......... 100
4.2 Poética testemunhal, silêncio e metonímias da memória ......................... 115
4.2.1 Testemunho ..................................................................................
116
4.3 Indizibilidade e representação .................................................................. 124
4.3.1 Mimesis, Representação, Apresentação ................................................. 124
4.3.2 Às margens do indizível escrito ............................................................ 128
4.3.2.1 Poética do indizível ............................................................................ 136
P
ARTE III
143
5. A escritura e seus efeitos ............................................................................ 144
5.1 Schreiben wir uns – escrevemo-nos ......................................................... 144
5.2 “De todas as feridas”– trauma, real, dor, melancolia ............................... 149
5.2.1 Trauma ................................................................................................... 151
5.2.2 Dor ......................................................................................................... 152
5.2.3 Melancolia ............................................................................................. 154
5.3 “Língua sobrevivente” .............................................................................. 163
5.4 A sublimação em Paul Celan .................................................................... 166
5.4.1 Das coisas últimas ................................................................................. 170
5.4.2 A sublimação e seus limites .................................................................. 175
Conclusão ....................................................................................................... 182
Referências ..................................................................................................... 187
Anexo A – Algumas traduções de poemas ..................................................... 197
12
INTRODUÇÃO
Pesadez
conduzida pelo silêncio.
(CELAN. A morte é uma flor, p. 41)
Com essas palavras fala a poesia da qual nos aproximamos. As silenciosas, leves,
insonoras e, simultaneamente, de peso talvez material – “um íntegro silêncio, uma pedra
1
–,
que engendram a dor em seu interior, feridas,
2
cicatrizes,
3
coágulos,
4
“palavra-limiar”,
5
da
qual se deseja ser retirado “feito casca”.
6
São as palavras que, como o poeta, fizeram a
travessia “sem saída, no beco da História”
7
do século XX. Que deixam em suspensão a
possibilidade do dizer. Perpassadas de impossibilidades – indizíveis –, contudo, escritas.
É nesse beco da História que viveu Paul Celan. Pseudônimo anagramático e literário
de Paul Antschel,
8
nasceu na cidade romena de Czernowitz, Bucovina (hoje pertencente à
Ucrânia), aos 23 de novembro de 1920, filho de judeus falantes de alemão. No ano de 1942
os pais de Celan foram deportados para um campo de extermínio em Michailowka e ali
morreram. Celan foi deportado para um campo de trabalho onde esteve durante 18 meses.
Residiu em Bucareste, onde trabalhou como tradutor e leitor em uma editora, em Viena, até
estabelecer-se em Paris, em 1948. Obteve grau em filologia e literatura alemã e passou a
lecionar dois anos depois. Traduziu, para o alemão, poemas modernos franceses, russos,
italianos e portugueses, de poetas como Shakespeare, Paul Valéry, Henri Michaux, Ossip
1
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 117.
2
Cf. poema “Aus allen Wunden” [“De todas as feridas”]. CELAN. A morte é uma flor, p. 13.
3
Cf. poema “DAS NARBENWAHRE”. CELAN. KG, p. 488-489.
4
Cf. poema “COAGULA”. CELAN. KG, p. 203.
5
CELAN. A morte é uma flor, p. 25.
6
Ibidem, p.37.
7
BARRENTO. Memória e silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 127.
8
Após a guerra o poeta teria modificado seu sobrenome Antschel para a grafia romena, Ancel e, depois, para
seu anagrama, Celan.
13
Mandelstam e Fernando Pessoa. O poeta recebeu, então, importantes prêmios da literatura
alemã, como o Bremer Literaturpreis, em 1958, e o Georg-Büchner-Preis, em 1960. Paul
Celan suicidou-se em Paris, aos 20 de abril de 1970, deixando importantes livros, dentre
eles: Mohn und Gedächtnis [Papoula e memória], de 1952; Von Schwelle zu Schwelle [De
limiar em limiar], de 1955; Sprachgitter [Grade de linguagem
9
], de 1959; Die
Niemandsrose [A rosa de ninguém], de 1963; Atemwende [Sopro, viragem
10
], de 1967;
Fadensonnen [Sóis desfiados], de 1968; Lichtzwang [A força da luz], de 1970; Schneepart
[A parte da neve], de 1971; Zeitgehöft [A cerca do tempo], de 1976; além de diversos
poemas não publicados (de juventude e tardios) e alguns textos poetológicos.
Ao longo da obra – através do crescente uso dos versos curtos e vazios, de motivos
enigmáticos, da ruptura da sintaxe, do enxugamento da palavra até a letra e da
materialidade das imagens –, o leitor se vê no limiar do dizível, remetido a todo momento
aos limites representacionais da linguagem, em especial no que tange a experiência
catastrófica. Paul Celan consagrou-se como um dos maiores poetas da literatura alemã do
século XX especialmente após o conhecido poema “Todesfuge” [“Fuga da morte”],
poema de recepção controvertida, no qual evoca o horror da Shoah, levando muitos a
questionarem o suposto veredicto adorniano: “A crítica cultural encontra-se diante do
último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é
um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou imposvel
escrever poemas.
11
A afirmação de Adorno acerca da impossibilidade da poesia (e, como observaremos,
da crítica) após Auschwitz e a obra de Paul Celan (como refutação do dictum) são freqüente
9
Também traduzido por Prisão da palavra, Grelha de linguagem ou Grade verbal.
10
Também traduzido por Giro de fôlego, Mudança de respiração ou Mudança de inspiração.
11
ADORNO. Crítica cultural e sociedade, p. 26.
14
e exaustivamente evocadas como antagônicas. As catástrofes do século XX, em especial,
para nosso propósito, a Shoah, pode ser considerada um paradigma do “real”,
12
que escapa
à malha simbólica. Começa a esboçar-se, assim, o problema que mobiliza este trabalho.
O século XX é referido como a Era das catástrofes.
13
Problemas centrais referentes
à literatura em sua articulação com aquilo que escapa ao saber demandam uma retomada
sob nova perspectiva. Vislumbramos uma poesia que emerge – no âmago das
incongruências teóricas e artísticas do século – não apenas do período pós-guerra, mas
emaranhada à vivência traumática. Uma poética com rastros da catástrofe e que nos mostra
a necessidade de repensar o fazer artístico e crítico.
Nestrovski e Seligmann-Silva propõem, em Catástrofe e representação, a seguinte
ponderação em torno da definição de catástrofe:
A palavra “catástrofe” vem do grego e significa, literalmente, “virada para baixo”
(kata + strophé). Outra tradução possível é o “desabamento”, ou “desastre”; ou
mesmo o hebraico Shoah, especialmente apto no contexto. A catástrofe é, por
definição, um evento que provoca um trauma, outra palavra grega que quer dizer
“ferimento”. “Trauma” deriva de uma raiz indo-européia com dois sentidos:
“friccionar, triturar, perfurar”; mas também “suplantar”, “passar através”. Nesta
contradição – uma coisa que tritura, que perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o
que nos faz suplantá-la, já se revela, mais uma vez, o paradoxo da experiência
catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar por formas mais simples de
narrativa.
14
Tal percurso etimológico parece-nos apropriado para a presente reflexão uma vez
que demonstra que o termo contém a ambigüidade dos caminhos para uma poesia pós-
traumática: que perfura e, simultaneamente, suplanta, mostrando as duas vertentes
presentes em qualquer esforço de articulação daquilo que, sem cessar, produz furos na
12
Jacques Lacan refere-se aos campos de concentração como “real, sumamente real, tão real que o real é mais
hipócrita [bégueule] ao promovê-lo do que a língua” (LACAN. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre
o Psicanalista da Escola. In: _____. Outros escritos, p. 263).
13
A expressão consta no título SELIGMANN-SILVA (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na
era das catástrofes. Cf. HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 10. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. A “Parte um” do livro, que versa sobre o período desde “A era da guerra
total” até “O fim dos impérios”, é intitulada “A Era da Catástrofe”.
14
NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA. Catástrofe e representação, p. 8.
15
malha simbólica. Sinaliza, ainda, o fato de que a experiência, no terreno em que nos
encontramos, “não se deixa apanhar por formas simples de narrativa”
15
ou de poesia,
poderíamos dizer. O mesmo demonstra Paul Celan, uma vez que não faz de sua experiência
um relato testemunhal linear e totalizante. Sua obra parece deixar no leitor algo da marca de
uma experiência traumática ou do “resto” não simbolizável/assimilável da mesma.
Deparamo-nos, então, num terreno no qual a escritura resiste às formas simples ou
lineares. A poesia celaniana é, antes, vazia, elíptica, avessa à pretensão de completude,
fraturada, deixa apenas vestígios e restos daquilo que escapa à simbolização. A leitura se dá
num local de permanente risco: o leitor, freqüentemente, não sabe como reagir diante da
obra de um autor que experimentou o traumático ou irrepresentável. Simultaneamente,
portanto, impõe riscos a uma crítica que procura resistir à tendência de tornar-se uma
“camisa-de-força” ou “máquina de desleitura”
16
(ou que, de maneira reativa, rejeita o
vivido e sua transformação operada através da experiência da escrita). O desafio reside em
não circunscrever Paul Celan a uma chave de leitura ou ignorar a complexa relação (ou
impossibilidade de recobrimento) entre a linguagem e os acontecimentos.
Para vislumbrar a temática da representabilidade/(in)dizibilidade do trauma, faz-se
relevante, ademais, destacar o conflito dos judeus em relação à escrita em língua alemã.
Este, que já precedia a Shoah
17
passa, então, a ter implicações incomensuráveis. A escrita,
15
Ibidem.
16
Expressões utilizadas por Márcio Seligmann-Silva em “O testemunho: entre a ficção e o ‘real’” (p. 375).
17
Deleuze e Guattari apresentam uma relevante contribuição para essa discussão em Kafka por uma literatura
menor: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma
língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada para
um forte coeficiente de desterritorialização. Kafka define, nesse sentido, o beco sem saída que barra aos
judeus de Praga o acesso à escritura e que faz da literatura deles algo impossível: impossibilidade de não
escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outra maneira.”
(DELEUZE; GUATTARI. Kafka por uma literatura menor, p. 25. Grifo nosso) O trecho em destaque
indica paráfrase de uma passagem extraída de uma carta de Kafka a Max Brod: "A maioria dos jovens
judeus que começaram a escrever em alemão queria deixar o seu caráter judaico para trás, e seus pais
aprovavam isso, mas de uma maneira um pouco vaga (e é essa imprecisão que lhes era tão abominável).
16
como vimos, seria tida comumente como um instrumento por meio do qual se pode
perceber o esforço em representar o indizível do horror dos campos de concentração. E a
narrativa da vivência terrível era, de fato, necessária aos sobreviventes. Intriga-nos,
contudo, a escrita de Celan efetuada, em sua integridade, em língua alemã, com tudo o que
ela abarca.
Esta, transmitida a Paul Celan por sua mãe, fora a mesma daqueles que a
assassinaram, tornou-se um tema caro e recorrente para o poeta a questão da
Muttersprache-Mördersprache. Na mesma língua escrevia seus poemas e a ela dedicava
seu trabalho acadêmico em Paris, convivendo permanentemente com essa duplicidade,
como se a língua pudesse atravessar a catástrofe e restituir-se. Talvez lhe parecesse possível
ressignificar a experiência pregressa através da escrita nessa língua que, em sua
ambivalência, entranha a língua materna, a poesia, a tradição, mas, também, a difamação
18
,
a humilhação e o que há de mais terrível e avesso à simbolização, levando-nos a pensar na
função da escrita em Celan.
Aos aspectos da vida de Paul Celan que agregam singularidade a um entrelaçamento
entre a experiência e a escritura – e que suscitam, por certo, interesse nesta investigação –
soma-se o fato de que se trata de um autor que, de maneira trágica, põe fim à própria vida.
O auto-extermínio de um escritor evoca, também, efeitos de leitura paradoxais: por um
lado, a obra passa a ser lida por este viés, levando ao diagnóstico do escritor e à busca dos
No entanto, as suas patas de trás ainda estavam presas ao caráter judaico do pai, e suas patas dianteiras se
agitavam no ar, sem encontrar um terreno firme. O desespero resultante dessa situação tornou-se a sua
inspiração (...). O produto deste desespero não podia ser uma literatura alemã, por mais que exteriormente
aparentasse sê-lo. Eles viviam entre três impossibilidades, que eu chamo, por acaso, de impossibilidades
lingüísticas (...). Elas são: a impossibilidade de não escrever, a impossibilidade de escrever em alemão, a
impossibilidade de escrever de maneira diferente. Também se pode acrescentar uma quarta
impossibilidade, a impossibilidade de escrever..." (KAFKA apud ALTER. Sobre não se saber hebraico. In:
______. Anjos necessários: tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem, p. 56).
18
Faz-se referência à acusação de plágio sofrida pelo poeta, o conhecido caso Goll, de graves implicações,
somando-se ao trauma sofrido por Celan, como veremos no decurso do trabalho.
17
sinais que anunciam este terrível destino na obra; por outro, em contrapartida, alguns
buscam, de maneira defensiva, ignorá-lo, partindo para uma “análise puramente formal” e
“desvitalizada do texto”, como se fosse possível tratar indiferentemente o sofrimento
enredado na contigüidade entre o vivido e o escrito.
19
O suicídio do poeta leva-nos a
problematizar a noção psicanalítica de sublimação (usualmente tomada para referir-se ao
fazer artístico) como saída feliz, pois parece não ter sido capaz de efetuar uma contenção
que impedisse o fim trágico. Observamos, assim, a escritura do real em seu constante
movimento de perfurar e suplantar, cicatriz viva.
Na empreitada aqui proposta, julgamos que não há como negligenciar a vida e optar
por uma abordagem imanentista na leitura dos poemas. É perceptível ao leitor o fato de que
o intrincamento entre escritura, história e experiência subjetiva não se dá de forma linear,
não está sujeito à cronologia, não é de via única e não se mostra facilmente. É preciso
considerar que não se pode falar em vida e obra como uma articulação de oposição ou
paralelismo. Não se trata de uma relação especular, mas, antes, metonímica – há um
continuum entre vida e letra. O testemunho, termo de destaque em nosso trabalho,
estabelece, também, uma relação metonímica com aquilo que é testemunhado, sendo, por
assim dizer, parte de um todo, reflexão relevante ao longo de nosso percurso.
Dentre nossos objetivos: visamos, de maneira geral, examinar parte da obra do
poeta Paul Celan e analisar a relação entre a escrita e a experiência traumática –
considerada indizível –, a (im)possibilidade de representação da mesma, problematizando a
função mimética da literatura. Ademais, pretendemos nos aproximar de uma reflexão
acerca da representação no âmbito do testemunho. Almejamos, ainda, investigar as
19
Reflexões efetuadas em detalhes por Ana Cecília Carvalho, que serão retomadas ao logo desta dissertação.
(CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath, p. 15-16.)
18
possíveis funções subjetivas da escrita, nos territórios do trauma, da dor e da melancolia, a
criação na língua do perseguidor; uma articulação presumível entre a escrita, o suicídio e o
conceito psicanalítico de sublimação como um possível operador na presente elaboração.
São duas questões, entre várias, as que norteiam a empresa ora efetuada: a primeira, relativa
ao problema da representação permeada pela impossibilidade. A segunda, aos efeitos da
mesma.
O texto que se segue será composto de três partes. Na primeira delas, pretendemos
efetuar uma imersão na obra – deixar que estes silenciosos poemas falem. Diante da
dificuldade de acesso a eles, optamos por partir do conhecido em direção ao desconhecido
(embora esta distinção seja frágil). Assim, iniciaremos com o poema “Todesfuge” e sua
controversa recepção, seguido por um poema de juventude e sucessivamente, através da
cronologia e relativa distribuição ao longo da obra, em direção à poesia tardia e do espólio.
A segunda parte, por sua vez, versará sobre o primeiro problema aqui esboçado, i.e.,
da possibilidade e impossibilidade de representação daquilo que é arredio à malha
simbólica – o trauma e o real. Abarcará, portanto, a problematização adorniana da crítica e
da poesia após Auschwitz, a noção de testemunho, de representação e de indizibilidade. Na
terceira parte, veremo-nos às voltas com o desdobramento da primeira pergunta, seguindo
os caminhos dos efeitos da escritura do trauma. Consideraremos a contigüidade entre a vida
e a escrita para perpassar as noções de trauma, dor, melancolia, em especial, a partir do
legado freudiano; o problema da escrita na língua materna e dos assassinos, bem como a
acusação de plágio sofrida pelo poeta, o operador psicanalítico da sublimação e o suicídio.
Desde as primeiras e perigosas experiências de leitura dos poemas de Celan, estes se
tornaram caminho inevitável em nossos esforços. Inúmeros questionamentos sobre o lugar
epistêmico diante desta tafera que tangencia a impossibilidade, a de ler poesia, em especial
19
a silenciosa, surgiram. Esta pesquisa, a despeito da circunscrição e sistematização
necessária ao trabalho desta natureza, é também testemunho de uma experiência, naquilo
que tem de incompleto, fragmentário e ruinoso.
Celan escreve numa carta a Hans Bender, em 1960, que a condição de toda poesia é
o ofício – coisa de mãos (“Handwerk – das ist Sache der Hände”
20
). Afirma não ver
nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.
21
Sabemos da
dimensão corporal desta poesia – “qualquer coisa que pode significar uma mudança de
respiração”.
22
Se o corpo relaciona-se com a escritura, se é necessário pensar que há uma
“mão que escreve”,
23
testemunha-se, neste trabalho, o corpo que se articula na experiência
da leitura. Tais poemas parecem demandar, de forma radical, uma leitura circular, artesanal,
feita com as mãos – Handwerk. Uma leitura feita de fôlego e mãos, estrangeira, que se
ocupa com o que os poemas fazem soar bem como com aquilo que têm a dizer
24
– estes
foram os esforços registrados nas páginas a seguir.
20
CELAN. Briefe an Hans Bender, p. 49. Na continuidade, diz: “Und diese Hände wiederum gehören nur
einem Menschen, d. h. einem einmaligen und sterblichen Seelenwesen, das mit seiner Stimme und seiner
Stummheit einen Weg sucht” (Ibidem). Na tradução de João Barrento: “E estas mãos, por outro lado, só
pertencem a um indivíduo, isto é, a um único ser mortal que com sua voz e o seu silêncio busca um
caminho” (CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 66).
21
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 65-66.
22
Ibidem, p. 54.
23
BLANCHOT. Pena de morte, p. 118.
24
Hugo Friedrich menciona a importância do material sonoro da língua para a poesia, em especial a partir do
Romantismo europeu. FRIEDRICH. Estrutura da lírica moderna, p. 50.
20
P
ARTE I
21
1
P
AUL CELAN NO BRASIL
O interesse pelo legado literário de Paul Celan tem-se demonstrado crescente no
Brasil, e os caminhos de abordagem do mesmo, diversos. Entre as traduções de poemas em
volumes publicados, dispõe-se das de Flávio René Kothe – Paul Celan-Poemas e
Hermetismo e hermenêutica
25
–, além de poemas que compõem publicações periódicas
desde 1973, como nos jornais O Estado de S.Paulo, Imprensa Oficial – Minas Gerais e
Correio do Povo, de Porto Alegre. Conta-se também com a tradução de Cláudia Cavalcanti
no livro Cristal,
26
que compreende, além de poemas, o discurso O meridiano e carta a Hans
Bender de 18 de maio de 1960. Três volumes de edição portuguesa apresentam precioso
material: Sete rosas mais tarde,
27
antologia poética com tradução e prefácios de João
Barrento e Yvette Centeno; A morte é uma flor,
28
tradução, posfácio e notas de João
Barrento, que abarca uma seleção de poemas do espólio; e Arte poética: o meridiano e
outros textos,
29
tradução e posfácio de João Barrento, com textos poetológicos, pequenas
prosas e cartas. Ao longo do presente trabalho, faremos remissão bibliográfica à edição
correspondente em língua portuguesa; caso contrário, as traduções serão de nossa
responsabilidade.
25
CELAN. Hermetismo e hermenêutica: Paul Celan – Poemas II. Introdução, Tradução, Comentários e
Organização de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Instituto Hans Staden, 1985.
26
CELAN. Cristal. Seleção e tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras, 1999.
27
CELAN. Sete rosas mais tarde: antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K.
Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.
28
CELAN. A morte é uma flor: poemas do espólio. Tradução de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1998.
29
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos. Tradução de João Barrento e Vanessa Milheiro. Lisboa:
Cotovia, 1996.
22
Quanto à bibliografia sobre Celan no Brasil, para além dos comentários, prefácios e
posfácios das antologias mencionadas, constam, ainda, algumas teses, dissertações e
variados artigos. A poética do silêncio intitula o livro de Modesto Carone Netto, de 1979,
no qual se discorre sobre a poesia de Paul Celan e João Cabral de Melo Neto.
30
Junto ao
Programa de Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo foi defendida, em
2005, a tese da Juliana Pasquarelli Perez Offene Gedichte: eine Studie über Paul Celans
“Die Niemandsrose”,
31
que aborda a questão da abertura no livro A rosa de ninguém (NR),
de Paul Celan, de 1963. Na mesma, discorre-se sobre o problema da recepção da poesia
celaniana pela crítica literária dos anos 1960, que a taxa de hermética. Paul Celan responde
a tais críticas e defende a abertura de sua poesia em diversos aspectos, nas suas reflexões
poetológicas. Como produto de sua tese, Raquel Abi-Sâmara publica, em 2005, a tradução
do livro de Hans-Georg Gadamer, Quem sou eu, quem és tu?: comentário sobre o ciclo de
poemas Hausto-Cristal de Paul Celan.
32
Luiz Costa Lima faz observações sobre a relação
entre Heidegger e Celan no quarto capítulo de seu livro Mímesis: desafio ao pensamento.
33
A leitura do poema “Anábase”, de NR, feita por Alain Badiou, pode ser encontrada no livro
Século, do mesmo autor, publicado no Brasil em 2007.
34
Entre as dissertações de mestrado consta a abordagem comparatista entre A rosa do
povo, de Carlos Drummond de Andrade, e Die Niemandsrose, de Paul Celan,
35
defendida
30
CARONE NETTO. A poética do silêncio: João Cabral de Melo Neto e Paul Celan. São Paulo: Perspectiva,
1979.
31
PEREZ. Offene Gedichte: eine Studie über Paul Celans “Die Niemandsrose”. Orientador: George Bernard
Sperber/ Axel Gellhaus. 2005. 297 f. Tese (Doutorado em Letras, Língua e Literatura Alemã) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
32
GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?: comentário sobre o ciclo de poemas Hausto-Cristal de Paul Celan.
Introdução de Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005. 161 p. (Wer bin ich und wer bist du?
Ein Kommentar zu Paul Celans Gedichtfolge Atemkristall).
33
LIMA. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
34
BADIOU. Anábase. In: ______. Século. São Paulo: Idéias & Letras, 2007.
35
KLOSS. Uma abordagem comparatista entre ‘A rosa do povo’, de Carlos Drummond de Andrade, e ‘Die
Niemandsrose’, de Paul Celan. Orientadora: Rosani Ursula Ketzer Umbach. 2003. 118 f. Dissertação
23
por Milene Vânia Kloss, em 2003, e um estudo da correspondência de Paul Celan e Gisèle
Celan-Lestrange, que aborda aspectos diversos do fazer poético de Celan e importantes
autores da recepção francesa, realizado por José Eduardo Marques de Barros, em 2006.
36
No tocante à produção e tradução de artigos sobre Celan no Brasil, encontra-se
material igualmente diverso. A título de exemplo, deve-se mencionar o texto de Erwin
Theodor Rosenthal, publicado em 1985, denominado “O desafio de traduzir Paul Celan”.
37
Consta, também, no que tange ao tema da tradução, “Arte, poesia e tradução por Paul
Celan: ‘pensar Mallarmé até as últimas conseqüências’”, de Ute Harbusch, traduzido por
Vera Lúcia de Oliveira Lins
38
e Lutz Taufer e publicado em 2001.
39
Três profícuos ensaios
sobre Paul Celan, entre outros, compõem uma coletânea realizada por João Barrento: um
referente a Celan como tradutor de Fernando Pessoa; outro sobre o problema do
hermetismo; e um terceiro, acerca das interfaces entre Paul Celan e Walter Benjamin. O
livro intitula-se O arco da palavra, publicado no Brasil em 2006.
40
Concernente ao tema da
representação do trauma e da literatura de testemunho, faz-se mister destacar o título
Catástrofe e representação, que apresenta trabalhos organizados por Arthur Nestrovski e
Márcio Seligmann-Silva, nos quais a reflexão sobre uma possível ética de memória é
amplamente abordada. Seligmann-Silva organiza, ainda, o livro História, memória,
(Mestrado – Área de Concentração em Estudos Literários) – Universidade Federal de Santa Maria, UFSM,
Santa Maria-RS, 2003.
36
BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange. Orientadora:
Vera Lúcia de Oliveira Lins. 2006. 129 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
37
ROSENTHAL. O desafio de traduzir Paul Celan. Tradução & Comunicação Revista Brasileira de
Tradutores, p. 163-168.
38
De Vera Lúcia de Oliveira Lins constam, ainda, artigos como: LINS. Paul Celan: a poesia como lugar de
pensamento. Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, v. 5, p. 60-73, 1998, bem como traduções de Celan, como
LINS. Diálogo na montanha. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2000 e LINS. Fuga da morte. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1997.
39
Revista Alea – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. v. 3, n. 2, dez. 2001.
40
BARRENTO. O arco da palavra: ensaios. São Paulo: Escrituras, 2006.
24
literatura: o testemunho na era das catástrofes e é autor de O local da diferença. O
material fornecido pelos três títulos mencionados será amplamente utilizado ao longo da
segunda parte do estudo aqui efetuado.
A revisão acima realizada, longe de demonstrar-se exaustiva, permite-nos
vislumbrar a pluralidade de aproximações do legado celaniano no Brasil e,
simultaneamente, amplo espaço, ainda em aberto, para o leitor e pesquisador da lírica
celaniana em língua portuguesa.
1.1 APORIAS NA RECEPÇÃO DE CELAN
É curioso observar algumas cisões e discordâncias com que a crítica literária se
depara ao analisar a obra de Paul Celan. Ute Harbusch faz menção à crescente abordagem
pela teoria literária após a publicação de “Fuga da Morte” [“Todesfuge”] e dos livros que o
sucederam pelos antigos e novos métodos de análise aferidos por eles. Parte conformista do
juízo localiza a poética de Celan como hermética, fechada, obscura e difícil. Em outras
leituras, emerge como aberta e direta em relação à realidade. Harbusch menciona alguns
filósofos significativos, de variadas escolas, que se ocuparam do trabalho de Paul Celan,
como Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Jacques Derrida e Emmanuel Levinas, o
que, afirma, levaria Theodor W. Adorno a revogar sua afirmação sobre a impossibilidade
de poesia após Auschwitz.
41
Harbusch argumenta que a crítica sobre Celan seria perpassada
por um “paradigma Mallarmé” – quer positivo, quer negativo – i.e., ora afirmando-o na
tradição simbolista pura, de “artista de língua”, autor hermético e distante da realidade, ora
41
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 32. A relação entre Celan e Adorno será
contemplada na parte II de nosso trabalho.
25
posicionando-o no lado que renega o artificialismo artístico e o esteticismo de Mallarmé e
desacreditando a existência de uma poesia absoluta.
42
Vale, contudo, realizar um breve excurso para confrontar tal compreensão de
Mallarmé com outra que consta justamente num artigo que articula Celan, Mallarmé e
outros numa reflexão sobre a literatura de testemunho e seu ensino. Trata-se do texto de
Shoshana Felman – “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”.
43
Felman menciona a
preciosa palestra na universidade de Oxford, na qual Mallarmé afirma que “fizeram
violência ao verso” e que seria apropriado livrar-se da notícia desta violência, como um
viajante “que, sem demora, com a respiração ofegante, se desfaz do testemunho de um
acidente conhecido e que o persegue”.
44
O acidente consiste na revolucionária e violenta
experiência lingüística e poética da introdução do “verso livre” na poesia francesa, que
desintegra, afirma Felman, o alexandrino clássico, verso oficial francês com as tradicionais
12 sílabas, de rimas e ritmos simétricos. Se a poesia se define como a arte do ritmo,
prossegue, Mallarmé redefine o ritmo e repensa radicalmente a poesia pela
imprevisibilidade rítmica do verso livre.
45
Para a autora, esta explosão do meio, praticada
pela própria poesia, seria uma mudança estética e formal, porém, de dimensões políticas.
Mallarmé compara os efeitos da revolução poética com aqueles da Revolução Francesa – o
abalo civil das fundações oriundo da queda do governo não poderia ser tão profundo quanto
a acidentalização do verso. Tal acidente implica num estilhaçamento fundamental: “as
divisões hierárquicas tradicionais entre poesia e prosa – entre classes da linguagem – foram
42
Ibidem, p. 34.
43
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA
(Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000.
44
MALLARMÉ apud FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar, p. 30.
45
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar, p. 31.
26
dispensadas e intrinsecamente perturbadas”.
46
Na verdade, o acidente do verso teria algo
das dimensões políticas da Revolução Francesa, por ela inaugurada, mas consumada, de
fato, pela poesia. Tal dimensão política da poesia de Mallarmé relativiza-lhe o purismo e
parece-nos válida para pensar a lírica celaniana que, pertencente ou não à esteira da
tradição de Mallarmé, encena outro acidente do verso ou mesmo, propõe Felman, da
estética.
Outro aspecto, certamente polêmico, da lírica celaniana refere-se à consideração de
sua obra como um primeiro intento de representação poética da experiência
concentracionária. Trata-se de um desdobramento da aporia anterior – entre, de um lado, o
enquadramento na tradição da poesia pura e hermética e, de outro, sua vinculação histórica
e a abertura –, o que determinaria as concepções de leitura do legado celaniano. O dado
biográfico da passagem por um campo de trabalhos forçados pode conduzir a uma leitura
que o circunscreve ao mesmo, efetuada sempre no intuito de confirmar as mesmas
hipóteses, tornando-se uma leitura costumeira e desconsiderando a riqueza e densidade da
obra em sua totalidade.
Contudo, a reação a tal tendência pode ser, também, de certo efeito de “desleitura”.
Ute Harbusch diz, referindo-se ao poema “Todesfuge”: trata-se um intento primeiro de
descrição poética dos campos de concentração, conhecido por “quase todo aluno alemão” e
que “na Alemanha pós-guerra freqüentemente serviu de álibi – ao se ocupar sobretudo com
a dimensão estético-artística do poema, podia-se esquecer mais facilmente aquilo de que
fala, isto é, o fato histórico do extermínio dos judeus”.
47
Consideramos, é certo, que uma
abordagem lingüístico-formal não propicia necessariamente um esquecimento da História e
46
Ibidem. p. 32 (grifo da autora).
47
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 32.
27
que algumas pesquisas que ressaltam tais aspectos têm suscitado leituras importantes e
insuspeitas da poesia celaniana. No entanto, no referido período, a opção por uma leitura
estético-artística ou lingüístico-formal, ou, ainda, a consideração da mesma como um
“embelezamento” de Auschwitz e, também, a qualificação da obra como mero hermetismo
opaco, podem ter servido, elas também, para neutralizar a força da poesia em questão.
A observação de Harbusch incidiria não sob qualquer leitura lingüístico-formal, mas
sobretudo aquelas dos suplementos literários alemães dos anos 1950 e 1960 que deixavam
claro “que o conteúdo crítico de seus poemas poderia ser dessa maneira recalcado e seu
potencial político, desativado”.
48
Ou, ainda, leitores contemporâneos incrédulos que
rejeitam o “caráter político explosivo” de um poeta que, a despeito de todo hermetismo que
lhe é atribuído, escreve poemas os quais “reagem ao acontecido e ao que está acontecendo,
para perceber o tempo passado, presente e futuro em sua dimensão política”.
49
O que
valeria, prossegue Harbusch, para a sensibilidade de Celan quanto a temas como a ameaça,
difamação, perseguição, opressão e exílio, bem como acontecimentos únicos como a
Revolução Francesa, a Revolução Russa, a Guerra Civil espanhola, a ameaça atômica, a
guerra do Vietnã, maio de 1968 e, no invisível primeiro plano, a perseguição dos judeus no
Terceiro Reich.
A título de exemplo das interpretações que desativam o conteúdo político dos
poemas, Harbusch menciona a leitura do crítico Hans Egon Holthussen que afirma, em
1964, que a expressão “Mühlen des Todes” [moinhos da morte] seria “metáfora de genitivo
escolhida casual e arbitrariamente”,
50
sendo que, naquele momento, ocorria, em Frankfurt,
48
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 34.
49
Ibidem, p. 35.
50
Ibidem.
28
o processo de Auschwitz e, assim, tornava-se “uma realidade presente na consciência
pública
51
o confronto com a Alemanha Nacional-socialista. Ainda, que “‘Mühlen in
Auschwitz’ [moinhos em Auschwitz] e ‘Todesmühlen’ [moinhos da morte] foram
conhecidos eufemismos para os campos de concentração”,
52
usados pelos próprios nazistas
e retomados pelos aliados no pós-guerra. Ao se referir à expressão utilizada por Paul Celan
como uma metáfora qualquer, afirma a autora, reduz-se seu poema a um “objeto de arte
meramente lingüístico-formal, amputando sua relação concreta com a realidade e tentando,
ao mesmo tempo, recalcar a memória do que acontecera, além de tornar Celan um poeta
‘inofensivo’”.
53
Considera-se a importância de ler a poesia de Paul Celan sob os diferentes aspectos
que a mesma compreende, afrouxando, assim, uma possível “camisa-de-força” que a
biografia talvez imponha. Não obstante, o leitor que se acerca dessa obra deve estar atento
aos riscos do efeito de “desleitura” produzidos tanto pelo biografismo, quanto por uma
leitura formal de seus poemas. Ou seja, sabendo-se dos perigos (quase impostos) aos quais
se incorre na leitura de tal obra, adotando a segunda cautela, tentar-se-ia escapar e partir
para uma leitura desvitalizada, ignorando a riqueza da experiência e adotando uma espécie
de crítica defensiva. Ponderamos, enfim, que os dados biográficos referentes a Celan não
podem ser recalcados e modificam a maneira como o leitor ou crítico recebe seu texto, quer
o considere ou mencione, quer não, em sua análise.
51
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea.
52
Ibidem.
53
Ibidem.
29
2
“T
ODESFUGE DAS (IM)POSSIBILIDADES DA LEITURA
Propomos, como porta de entrada à lírica celaniana – simultaneamente hermética,
silenciosa, elíptica e aberta –, a consagrada e controversa “Todesfuge” [“Fuga da morte”].
Para além do fato de tratar-se de um poema amplamente interpretado, o que, por vezes,
auxilia o acesso do leitor, considerando que esta pesquisa visa uma retomada do
entrelaçamento entre a linguagem e os eventos, faz-se imprescindível a travessia de tal
poema – sua convocação –, uma vez que nele os dois elementos são cuidadosamente
encenados.
A redação do poema “Todesfuge” data de maio de 1945, em Bucareste, de acordo
com Barbara Wiedemann.
54
Wolfgang Emmerich, por sua vez, menciona que o conhecido
poema do período Antschel-Celan haveria sido concebido já no ano de 1944, em
Czernowitz, e recebera sua forma definitiva em Bucareste, no ano seguinte, e que Celan
considera este o ano da redação.
55
A primeira publicação separada do poema fora aos dois
de maio de 1947, em Bucareste, sob o título de “Tangoul morţii” [“Tango da morte”],
tradução romena realizada por Petre Solomon. O poema é incluído em A areia das urnas
(SU) e, posteriormente, introduzido em Papoula e Memória (MuG). Antes de falar das
reviravoltas em sua recepção no espaço germanofônico, deixemos que fale ele, o poema:
54
WIEDEMANN. KG, p. 606.
55
EMMERICH. Paul Celan, p. 49.
30
Fuga da morte
56
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve 5
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite 10
bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares 15
aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a tocar para a dança
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer 20
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus 25
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que veio da Alemanha
bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos 30
atinge-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares
brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio
da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete 35
os teus cabelos de cinza Sulamith
Todesfuge
57
Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar
Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er
pfeift seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervorßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar
Margarete
Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften da
liegt man nicht eng
Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt
er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau
stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum Tanz auf
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen
Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland
er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft
dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland
wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken
der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Auge ist blau
er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister
aus Deutschland
dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith
Como ler estes versos? – questão que se esboça paradoxalmente, uma vez que foram
aqui tomados justamente no intuito de permitir algum acesso ao leitor através da lírica
celaniana. Deparamo-nos, contudo, num terreno arriscado, de um poema de recepção
controversa, que já fornece toda a instrumentalização de sua leitura e que tornou seu autor
56
Tradução de João Barrento. CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 15.
57
CELAN. KG, p. 40.
31
mundialmente conhecido, garantindo-lhe um lugar entre os maiores poetas da literatura de
língua alemã do século XX. Não podemos negligenciar, como menciona Theo Buck, que o
autor destes versos, desde os anos 1960, os retirou de seu repertório de leituras em
público,
58
o que sinaliza, indubitavelmente, um distanciamento.
59
Tal gesto ocorre
correlativamente, como expõe Wiedemann, à suspeita de plágio por parte de Claire Goll.
60
Theo Buck evoca algumas palavras de Celan que constam no seguinte trecho, o qual
optamos por citar em sua integridade:
A poesia alemã segue, julgo eu, caminhos diferentes dos da francesa. Trazendo na
memória o que há de mais sombrio, tendo a sua volta o que há de mais
problemático, por mais que actualize a tradição em que se insere, ela já não
consegue falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda
esperar dela. A sua linguagem tornou-se mais sóbria, mais factual, desconfia do
“belo”, tenta ser verdadeira. É portanto – se me é permitido procurar a minha
expressão no campo visual, não perdendo de vista a policromia de uma pretensa
actualidade – uma linguagem “mais cinzenta”, uma linguagem que, entre outras
coisas, também quer ver a sua “musicalidade” situada num lugar onde ela já não
tenha nada em comum com aquela “harmonia” que, mais ou menos
despreocupadamente, se ouvia com o que há de mais terrível, ou ecoou a seu
lado.
61
“Todesfuge” encontra-se justamente neste ponto de tensão e é tangenciada por tais
problemas: a desconfiança do “belo”, a tentativa de ser “verdadeira”, o uso da “linguagem
mais cinzenta” e a “musicalidade”, que não é a mesma que ecoou ao lado do terrível. Theo
Buck afirma que alguns leitores impeliram-se em torno do conflito dos “belos versos” com
o tema do crime desumano, tendo como argumento que Auschwitz nega fundamentalmente
colocar-se a serviço da estetização.
62
Prossegue mencionando que, decerto, seria
58
“Dieses Gedicht muß jetzt, lange noch, ganz bei sich bleiben. Ich selbst lese es auch nicht mehr in der
Öffentlichkeit”. CELAN apud WIEDEMANN. KG. p. 607. [Este poema deve, agora e ainda por longo
tempo, permanecer consigo. Eu mesmo também não o leio mais em público].
59
BUCK. Paul Celans Todesfuge. In: SPEIER. Gedichte von Paul Celan – Interpretationen, p. 11.
60
Em abril de 1960 Claire Goll realiza pela primeira vez publicamente a acusação de plágio, por parte de
Celan, da obra de seu falecido marido Yvan Goll, o que dá início a um longo período denominado “Goll-
Affäre”. Cf. Introdução aos comentários sobre NR em CELAN. KG, p. 671. Retornar-se-á ao assunto em
outras ocasiões.
61
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 29-30. Em alemão: CELAN. GW, 3, p. 167. (Grifos
nossos)
62
BUCK. Paul Celans Todesfuge. In: SPEIER. Gedichte von Paul Celan – Interpretationen, p. 12.
32
inquestionável a inviabilidade das “belas artes” e, assim, “Todesfuge” não seria uma
“estetização do cinzento”.
63
Buck posiciona-se através da afirmação de que aqueles que
consideram o poema belo não o compreenderam.
64
Diz, ademais, que poucos versos
colocam tão claramente a beleza em questão – naturalmente, não a arte.
Procuremos, então, efetuar um percurso de leitura destes versos e situar as
inevitáveis aporias que se delineiam. O título do poema sugere sua constituição formal: a
fuga, que, como lembra Buck, como estrutura autônoma da música foi, desde o século
XVIII, incluída como técnica de composição contrapontística.
65
A apresentação em fuga,
prossegue, representa a tensão como jogo artístico, com repetições, espelhamentos e
complexas técnicas de projeção. Buck discorre sobre a idéia de uma “partitura poética de
várias vozes”.
66
Sem a pretensão de evocar a voz do autor como privilegiada, empresa
exaustivamente questionada (posto que a instância autoral seja também construção dotada
de sua historicidade, teve seu surgimento na modernidade e seu ocaso em meados do século
XX), consideramos válido o contato com o material para-textual, a disposição de mais um
elemento na leitura da poesia. Paul Celan menciona, ao se referir aos princípios musicais de
seu poema, numa carta a Herbert Greiner-Mai de 23/02/1961:
Meu poema “Todesfuge” (não A Todesfuge) não é “composto a partir de
princípios musicais”; antes, pelo contrário, não considerei injustificado chamá-lo
“Todesfuge” quando surgiu: vindo da morte, que procura trazer à linguagem, junto
63
O problema de estetização é freqüentemente evocado ao se discorrer sobre a poesia de Celan. Shoshana
Felman o retoma em seu artigo “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino”, que será abordado
posteriormente.
64
Emmerich, sem considerar o poema inofensivo em sua leitura, demonstra que conserva uma beleza
fascinante, um atrativo musical e uma força sobrenatural, o que o permitira, de fato, ser lido como belo
durante os anos 1950. (EMMERICH. Paul Celan, p. 56)
65
BUCK. Paul Celans Todesfuge. In: SPEIER. Gedichte von Paul Celan – Interpretationen, p. 16.
66
Ibidem, p. 17.
33
com seus pares [?]. Em outras palavras: “Todesfuge”–, isto é uma unicidade, de
modo algum uma palavra repartível em seus componentes.
67
É preciso destacar a necessidade de promover um distanciamento dos “princípios
musicais”, pois, de fato, tal movimento poderia coadunar justamente com o esforço
contrário. Lembremos que esta poesia almeja a desconfiança do “belo” e a “musicalidade
– trata-se de uma musicalidade que não é aquela que “ecoou” ao lado do “terrível”.
Devemos ressaltar a aclaração final, da unicidade da palavra “Todesfuge”, da
impossibilidade de reparti-la, deste procedimento de junção de substantivos passível de uso
na língua alemã e amiúde adotado pelo poeta. Desta forma, optamos, neste trabalho, pela
utilização do título do poema em alemão, como maneira de evocar a unicidade da forma e
do conteúdo. A forma musical em tema e contra-tema leva-nos a perceber, no poema, a
metáfora proporcionada pelo ritmo e pela repetição. A música deveria ser senão uma
“fuga”, com tudo o que a palavra abrange. A forma do poema é, enfim, um conteúdo. É
certo que os fragmentos do poema não deixam dúvida sobre seu referencial (equiparando
este ao “conteúdo”); no entanto, o poema fala, da/sobre a impossibilidade de falar por não
conseguir dizer algo de maneira coesa.
68
Wiedemann, noutra ocasião, elucida o argumento celaniano contra a composição “a
partir de princípios musicais” dizendo que a recusa do poeta seria de considerar a
apresentação do falar [“Sprechen”] musical como puro experimento da forma, sem relação
necessária com o conteúdo.
69
Através do emprego que se repete de duas linhas temáticas
(“Leite negro” – versos 1, 10, 19 e 27 – e “Na casa vive um homem” – 5, 13, 22, 32),
67
“Mein Gedicht >Todesfuge< (nicht Die Todesfuge) ist nicht >nach musicalische Prinzipien komponiert<;
vielmehr habe ich es, als dieses Gedicht da war, als nicht unberechtigt empfunden, es >Todesfuge< zu
nennen: von dem Tod her, den es – mit den Seinen – zur Sprache zu bringen versucht. Mit anderen
Worten: >Todesfuge<,– das ist ein einziges, keineswegs in seine >Bestandteile< aufteilbares Wort”.
(CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 608. Tradução nossa. Grifo no original)
68
Devemos esta observação a orientação feita pelo prof. Georg Otte aos 24/11/2007.
69
WIEDEMANN. Einzelkommentare. In: ______. Paul Celan ,,Todesfuge“ um andere Gedichte, p. 129-130.
34
sobretudo, porém, através da “ausência do eu” [“Ich-Losigkeit”] e do “teor citacional”
[“Zitathaltigkeit”] de sua fala [“Sprechen”], o poema pode, não obstante e de fato, ser
entendido no contexto da fuga com forma de arte de estilo imitativo contrapontístico; esta
forma é aqui, contudo, necessariamente relacionada com o dizer [“Sprechen”] sobre a
literatura após Auschwitz.
70
Devemos atentar para a noção de “teor citacional”: além de
“citar” a tradição da poesia, o poema “cita” metonimicamente a catástrofe. Cabe
mencionar, ainda, como característica da fuga bachiana, o “stretto”, o afunilamento ou a
condensação de motivos inicialmente distantes, que não somente se contrapõem, mas
também se revezam, com intensidade crescente.
71
“Todesfuge” é composta de 36 versos de ritmo livre, predominantemente dactílicos,
72
sem pontuação. Theo Buck ressalta o crescente efeito da repetição, antitética, e sua mesclada
disposição na simultânea constelação do texto, bem como a estratégia lírica da combinatória
contrastante – de um lado, “nós bebemos”, de outro, “na casa vive um homem”; ou através do
paralelismo contrastante – “os teus cabelos de oiro Margarete”/ “os teus cabelos de cinza
Sulamith”; bem como a modulação “vala na terra” [“Grab in der Erde”], verso 8, “túmulo nos
70
(Ibidem, p. 130). Wiedemann articula também a ausência da pontuação, entre outros aspectos, à forma
métrica da condução temática fugal. Os versos iniciais, não completamente regulares, embora de efeito
monótono, dactílicos, de comprimento não uniforme, estabelecem-se com o chamado “mestre que veio da
Alemanha”, de versos absolutamente regulares de cinco tempos dactílicos; paralelamente, a única rima
“blau”/ “genau” é equiparada, em sua exatidão, à precisão de um disparo (Ibidem). Compreendemos o
contexto do posicionamento de Celan, uma reação política contra a composição “a partir de princípios
musicais” devido à sua recepção pela imprensa e crítica (como “embelezamento” de Auschwitz).
Wiedemann parece querer demonstrar que é possível ler o poema como composição fugal, desde que se
tenha em mente a questão da poesia após Auschwitz. Embora estes dois aspectos possam não ser
excludentes, não permanece claro como fazê-lo (considerar o experimento da forma e simultaneamente seu
conteúdo político). Todo leitor de “Todesfuge” se depara com este problema. Os diferentes lugares da
leitura desempenham certamente um papel – como vimos a respeito da recepção da poesia de Celan na
Alemanha dos anos 1950 e 1960. Consideramos que o confronto deve ser exposto, de maneira a não
eliminar o que o poema traz de indefinível e neutralizar o conflito.
71
Observação feita pelo prof. Georg Otte aos 24/11/2007.
72
Por exemplo: “wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng”.
35
ares” [“Grab in den Lüften”], versos 4 e 15, “fumo aos céus” [“Rauch in die Luft”], verso 25,
e “túmulo nas nuvens” [“Grab in den Wolken”], verso 26.
73
A respeito do conhecido oxímoro “Leite negro da madrugada” (versos 1, 10, 19,
27), Celan afirma, em 1960:
Leite negro da madrugada: não é nenhuma daquelas metáforas de genitivo, que
nos é oferecida por nossos pretensos críticos, de forma a não irmos mais ao
poema; isso não mais
é figura de linguagem, oxímoro, é realidade.| Metáfora de
genitivo = não, um nascer-umas-para-as-outras das palavras
num momento de
grande necessidade.
74
Trata-se de outra defesa enfática realizada pelo poeta, pois a leitura do verso como
mera metáfora, que implica uma abstração, pode ser considerada uma espécie de evitação
que neutraliza seu efeito – de certo apelo ao real. Dentre as notas de Celan, escritas ao
longo do poema, entre os anos 1958 e 1960 consta: “madrugada [Frühe] (o começo
75
do
Outro)” e, ainda:
(...) o poema torna-se cada vez mais mortífero (mais escasso [enxuto]) | Um
poema com a morte e “em direção à morte”| Leite da madrugada – o alimento |
do Outro | Falam os moribundos, – eles falam | apenas enquanto tal – a morte é |
certa a eles – eles falam | como mortos e defuntos.
76
Eles | falam com a morte |
desde a morte. Eles bebem da morte (eles bebem | e bebem) || eles bebem e
bebem: este beber dura continuadamente, – não pára | nem ao final do poema.
77
Ainda no que se refere às imagens “um túmulo nos ares” [“ein Grab in den
Lüften”], versos 4 e 15, e “um túmulo nas nuvens” [“ein Grab in den Wolken”], verso 26,
Wiedemann menciona uma carta de Celan a Vaclav Lohniský: “neste poema tentei trazer
73
BUCK. Paul Celans Todesfuge. In: SPEIER. Gedichte von Paul Celan – Interpretationen, p. 18.
74
“Schwarze Milch der Frühe: das ist keine jener Genitivmetaphern, wie sie uns von unseren sogenannten
Kritikern vorgesetzt [wird], damit wir nicht mehr zum Gedicht gehen; das ist keine Redefigur umd kein
Oxymoron mehr
, das ist Wirklichkeit.| Genitivmetapher = Nein, ein unter Herzensnot Zueinander-
Geboren-Werden der Worte
”. (CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 608. Grifo no original)
75
A palavra utilizada é “Anbruch”, para a qual optou-se pela tradução por “começo”, embora abarque em seu
espectro o sentido de “amanhecer”.
76
“als Gestorbene und Tote” são as palavras utilizadas em alemão, sendo a primeira relativa ao verbo
“sterben” [morrer] e a segunda, ao substantivo “Tote” [morto].
77
“(...) das Gedicht wird immer tödlicher (knapper) | Ein Gedicht mit dem Tod und >zum Tode< | Milch der
Frühe – das Nährende | des Anderen | Es sprechen die Sterbenden,– sie sprechen | nur als solche – der Tod
ist | ihnen sicher – sie sprechen | als Gestorbene und Tote. Sie | sprechen mit dem Tode, vom Tode her. Sie
trinken vom Tode (sie trinken | und trinken [)] || sie trinken und trinken: dieses Trinken dauert fort, – es
hört | auch am Ende des Gedichts nicht auf” (CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 607. Grifo no original).
36
para a linguagem a monstruosidade da morte pelo gás”.
78
Ainda, numa carta a Walter Jens:
“O ‘túmulo nos ares’ – querido Walter Jens, isto é, neste poema, Deus sabe, nem
transposição, nem metáfora”.
79
A metáfora supõe um “como se”, uma mera comparação
que funciona como mediação, uma “estetização”, em sua acepção mais simples – um
distanciamento, enfim, em sua relação ao seu referencial (i.e., a fumaça que saía das
chaminés em direção ao seu “túmulo nos ares”).
No verso 5, “Na casa vive um homem que brinca com serpentes
80
escreve”, deve-se
observar, quanto ao “homem” que “vive na casa”, o notável o endereçamento marcado
através da diferenciação entre “nós” (a enunciação sempre coletiva) e “ele”. Nós “bebemos
e bebemos”, “cavamos”, “não ficamos apertados”; ele “escreve”, “vive”, “brinca”,
“assobia”, “ordena”, “grita”, “atiça” e “acerta”. Celan, em suas anotações, menciona: “Na
casa vive um homem = os outros – nós – estamos fora
”.
81
A despeito das escassas localizações encontradas na poesia publicada de Celan, há
uma única referência geográfica em “Todesfuge”: “Alemanha” [“Deutschland”], versos 6,
14, 24, 28, 30 e 34. Ao longo de toda a obra de Paul Celan, esta palavra repete-se apenas
78
“In diesem Gedicht habe ich versucht, das Ungeheuerliche der Vergasung zur Sprache bringen” (Ibidem, p.
608).
79
“Das >Grab in der Luft< – lieber Walter Jens, das ist, in diesem Gedicht, weiß Gott weder Entlehnung noch
Metapher.” (Ibidem. Grifo no original)
80
O brincar com “serpentes” é aproximado por Walter Jens, por ocasião da redação de um artigo de defesa de
Celan contra a acusação de plágio, ao verso do poema “Salmo”, de Georg Trakl: “No seu túmulo o mago
branco brinca com suas serpentes” [“In seinem Grab spielt der weiße Magier mit seinen Schlangen”] (KG,
p. 609). Celan, por sua vez, menciona: “aqui é, imediatamente junto ao arquetípico... a transformação
arquetípica: cabelo (e aqui, no caso da figura de Margarete [Gretchen], pensa-se também em tranças)
transforma-se freqüentemente (em contos como em mitos) em serpentes. Eu não menciono isso para
interceptar a aproximação das linhas de Trakl; eu creio apenas que algo decisivo se torna visível aqui:
somente o reencontro transforma o encontro em... encontro.” [“hier ist, unmittelbar neben dem
Archetypischen... archetypische Verwandlug: Haar (und hier, bei der Gretchen-Gestalt, denkt man ja auch
an Zöpfe) verwandelt sich oft (im Märchen wie im Mythos) in Schlangen. Ich erwähne das nicht, um die
Nähe der Trakl-Zeile zu unterschlagen; ich meine nur, daß hier etwas Entscheidendes sichtbar wird: daß
erst Wiederbegegnung Begegnung zur... Begegnung macht”] (CELAN apud WIEDEMANN.
Einzelkommentare. In: _______. Paul Celan ,,Todesfuge“ und andere Gedichte, p. 131. Tradução nossa).
81
“Ein Mann wohnt im Haus = die andern – wir – sind draußen” (Ibidem, p. 607. Tradução nossa. Grifo no
original).
37
uma vez num poema do espólio, não dado a publicação, intitulado “Grão-de-lobo”
[“Wolfsbohne”].
Entre os temas que efetuam contraponto no poema encontram-se “os teus cabelos de
oiro Margarete” (versos 6, 14, 22, 32 e 35) e “os teus cabelos de cinza Sulamith” (versos
15, 23 e 36). Os dois nomes femininos indicam obras centrais da literatura alemã e
hebraica: Margarete, personagem de Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe, e
Sulamita,
82
do Cântico dos cânticos. Margarete, acompanhando Wiedemann,
83
é
simultaneamente amante e vítima na obra mais conhecida da literatura alemã, e aos seus
cabelos, embora permaneçam de cor indeterminada em Goethe, é atribuído o ouro, o louro,
que corresponde ao chavão da mulher alemã, propagado pelos nazistas. O Cântico dos
cânticos, da Bíblia, é o canto lírico entre amantes, compreendido também, na exegese
teológica, como expressão da especial relação entre Deus e Israel. A descrição então
efetuada dos cabelos de Sulamita
84
é: “Teus cabelos são como um rebanho de
cabras/descendo impetuosamente pelas encostas de Galaad”
85
e, ainda, “tua cabeleira
tremula (ao vento) como a púrpura,/ e um rei se acha preso aos teus cachos”.
86
Outra referência que Wiedemann
87
associa a uma passagem bíblica é “vocês outros
cantes e toquem” (verso 16). Tratar-se-ia de uma alusão ao salmo “Os rios de Babilônia”:
As margens dos rios de Babilônia,
Assentamo-nos a chorar,
Lembrando-nos de Sião.
Nos salgueiros daquela terra,
82
Wiedemann acrescenta, ainda, através de indicação de Bertrand Badiou, que, no hebraico, o nome
“Schulamith” possui as três consoantes da palavra “Schalom”, que corresponde a “Friede” [paz], no
alemão, funcionaria a partir do mesmo princípio do nome da mãe de Celan, Friederike (KG, p. 609).
83
WIEDEMANN. Einzelkommentare. In: Paul Celan Todesfuge und andere Gedichte, p.132.
84
Consta, em nota, que a palavra “Sulamita” significa “oriunda de Sulam, localidade da Galiléia, antigamente
chamada de Sunam, terra natal de Abisag, escolhida para aquecer o rei Davi em seus últimos dias”
(BÍBLIA SAGRADA. A. T. Cântico dos Cânticos. cap. 7, ver. 1 (nota), p. 847).
85
BÍBLIA SAGRADA. A. T. Cântico dos Cânticos. cap. 6, ver. 5, p. 846.
86
Ibidem. cap. 7, ver. 6, p. 847.
87
WIEDEMANN. KG. p. 609.
38
Suspendemos, então, as nossas harpas,
E, ali, aqueles que nos fizeram cativos,
Pediam-nos que lhes cantássemos um cântico.
Nossos opressores exigiam de nós alegria:
“Cantai-nos um dos cânticos de Sião”.
88
A emblemática imagem do opressor que exige de seus cativos que cantem remete-
nos ao que houve de mais cínico no interior do espaço concentracionário. É de grande
importância o assunto da música executada nos campos devido à estreita ligação dos judeus
com a música; o elevado nível cultural destes degenerado a uma “diversão” dos chefes dos
campos (o que faz parte do referido cinismo). Considerando também o destaque da música
no que tange à leitura de “Todesfuge”, parece-nos apropriado um excurso para evocar a
obra do escritor francês Pascal Quignard que, através do gênero literário do “pequeno
tratado”, aborda o tema em Ódio à música, de 1996. No sétimo tratado, Quignard afirma
que “a música foi a única, entre todas as artes, que colaborou com o extermínio dos judeus
organizado pelos alemães de 1933 a 1945”.
89
Menciona haver sido a única arte requisitada
pela administração dos Konzentrationslager e que pôde se arranjar com a fome, o
despojamento, a dor, a humilhação e a morte. Faz menções ao músico Simon Laks,
pianista, violinista, compositor e maestro, que esteve em Beaune, Drancy, Auschwitz,
Kaufering e Dachau e publicou o livro intitulado Musiques d’un autre monde, em 1948,
bem como ao escritor Primo Levi através de seu livro Se questo è un uomo? (É isto um
homem?),
90
de 1947. Quignard divide a meditação de Laks na forma de duas perguntas:
“Por que a música pôde estar ‘misturada à execução de milhões de seres humanos’?” e “por
que ‘tomou uma parte mais do que ativa’ nela?”
91
Ao longo do texto de Quignard, com a
liberdade formal do “pequeno tratado” e através da evocação de sobreviventes e escritores,
88
BÍBLIA SAGRADA. A. T. Salmos. cap. 136, ver. 1-3, p. 751.
89
QUIGNARD. Ódio à música, p. 119.
90
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
91
QUIGNARD. Ódio à música, p. 121-122.
39
são apresentadas posições relativamente antagônicas sobre a função da música nos campos:
de um lado, a de renovar extraordinariamente as forças daqueles que já se encontravam por
demais extenuados, como relata Kasimierz Gwizdka, para “aumentar a obediência e soldá-
los a todos na fusão não pessoal”, a partir de Primo Levi
92
e ainda, citando Tolstoi: “Onde
se quer ter escravos, é preciso ter o máximo de música”.
93
De outro lado, constam
elementos que coadunam com uma espécie de música que conduz à morte. Nas palavras de
Quignard, “é preciso ouvir isto tremendo: era em música que esses corpos nus entravam na
câmara”, ou nas de Levi: “No Lager a música arrastava para o fundo”.
94
Fala-se da música
que captura o corpo através das Sereias, que se tornam a odos da Odisséia – ode, no grego,
refere-se simultaneamente ao caminho e ao canto.
95
Quanto a tal paradoxo, finalmente,
menciona Simon Laks com precisão:
Não faltam publicações que declaram, não sem uma certa ênfase, que a música
sustentava os prisioneiros descarnados e lhes dava a força de resistir. Outros
afirmam que aquela música produzia o efeito inverso, que ela desmoralizava os
infelizes e precipitava o seu fim. Quanto a mim, compartilho desta última
opinião.
96
A despeito das possíveis funções da música dos campos, pode-se afirmar, tal como
o fez Quignard e, de certa forma, Celan, que a arte não é contrária à barbárie. Quignard
prossegue: “A razão não é a contradição da violência. Não se pode opor a arbitrariedade ao
Estado, a paz à guerra, o sangue derramado ao aguçamento do pensamento (...)”.
97
As
experiências descritas, agregadas às idéias mencionadas, demonstram não se tratar,
portanto, de algo especialmente surpreendente o fato de esta barbárie haver tido origem no
92
QUIGNARD. Ódio à música, p. 124.
93
Ibidem, p. 134. Diversos desdobramentos de tais idéias são encontrados ao longo do tratado. Pode-se
agregar, ainda, uma citação de Tucídides: “A música não é destinada a inspirar os homens no transe mas a
lhes permitir marchar no passo e permanecer em fileiras. Sem música, uma linha de batalha está exposta a
se desorganizar no momento em que ela avança para o assalto” (Ibidem, p. 134).
94
Ibidem, p. 121.
95
Ibidem, p. 131.
96
LAKS apud QUIGNARD. Ódio à música, p. 129.
97
QUIGNARD. Ódio à música, p. 131.
40
interior da Europa civilizada no século XX, noção freqüentemente debatida nas reflexões
sobre a cultura nesse século. Quanto a tal vinculação da razão na raiz do terror e viragem da
razão à barbárie, devemos fazer necessária remissão à Dialética do Esclarecimento,
98
de
Adorno e Horkheimer. Ademais, à conhecida afirmação benjaminiana de “Sobre o conceito
da História”: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie”.
99
Compreende-se, portanto, a ênfase de Celan em se opor à composição sob
princípios musicais de “Todesfuge”. Simultaneamente, uma poesia dos campos demonstra-
se atrelada à esta modalidade artística que pôde entranhar-se à destruição. Poder-se-ia
argumentar que tal confronto seria também o dilema de Celan – não estaria ele
“embelezando” Auschwitz como as orquestras que tocavam nos campos? Esta foi
precisamente a afirmação feita por parte da imprensa alemã nos anos 1960, que acabou por
levar o poeta a restringir a circulação de “Todesfuge” e tornou evidente a necessidade de se
opor frontalmente a tais leituras, o que será retomado na parte II.
A busca insistente de referências efetuada anteriormente, que não pretende ser
exaustiva, não consiste num mero esforço de interpretação através de uma ingênua
atribuição de sentido, mas, antes, justifica-se pela própria estrutura do poema. A
“Zitatstruktur”
100
– estrutura de citação , para usar a expressão mencionada por Emmerich,
um “acerto de contas” com a tradição. A necessidade de tal estrutura é indissociável do
problema da literatura após Auschwitz, de sua (im)possibilidade e do ato de torná-la
possível recorrendo à tradição. A eficácia do poema consiste também em não se tratar de
98
ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido
Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
99
BENJAMIN. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura, p. 225.
100
EMMERICH. Paul Celan, p. 53.
41
um retorno costumeiro à tradição – trata-se de uma evocação de alguém “sobrevoado por
estrelas que são obra humana”,
101
efetuada para deflagrar o horror da experiência dos
campos, articulado magistralmente através da citação e musicalidade. Emmerich destaca
este “acerto de contas” com a tradição da literatura alemã e evoca, entre as referências: a
arte da fuga de Bach, Fausto de Goethe, Heine de “Das Sklavenschiff”, Maler Nolten de
Mörike, a literatura medieval de danças de morte e as alegorias líricas de morte, desde
Gryphius até Heym e Trakl. Emmerich considera que o uso mesmo dos versos pode ser lido
como uma espécie de citação encoberta de grande parte da tradição lírica alemã, de Goethe
a Hofmannsthal e Rilke. O tema de “Todesfuge”, para Emmerich, talvez se encontre
justamente neste ponto. O poema atribui aos alemães uma dupla maestria [“doppelte
Meisterschaft”]: da arte e da morte.
102
A “Zitatstruktur” tem um caráter metonímico, já que toda citação é uma parte de um
todo (de um texto ou obra de um autor). Talvez este seja um dos pontos que fundamentam a
singularidade do poema “Todesfuge”: a montagem de citações da tradição alemã, bem
como de citações dos campos de concentração. Em poemas posteriores, a citação parece
circunscrever-se à experiência idiossincrática (hermética) dos campos. Observa-se que as
citações mais transparentes em “Todesfuge” tornam-se, nos poemas tardios, mais obscuras
e fragmentadas.
Shoshana Felman realiza uma leitura de “Todesfuge” em “Educação e crise, ou as
vicissitudes do ensinar”, destacando o intento do poema de experimentar exatamente a
relação entre linguagem e eventos. “Todesfuge” dramatiza a experiência nos campos,
“porém não direta e explicitamente, por intermédio de uma narrativa linear, de confissão
101
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 34.
102
EMMERICH. Paul Celan, p. 54.
42
pessoal ou de reportagem testemunhal, mas elipticamente e circularmente, por intermédio
da arte polifônica”.
103
Sobre o testemunho em “Todesfuge”, optamos por formular que o
poema possui teor testemunhal e, especialmente, que consiste num testemunho metonímico.
O poema, para Felman, não seria simplesmente sobre violência, mas sobre a relação
entre violência e linguagem, da passagem de um pelo outro. A violência encenada no
poema reside nos atos de fala do mestre alemão, do comandante que dirige a orquestra que
acompanha musicalmente o cavar de suas próprias covas e o celebrar, em mortal fuga
extática, o ferir da terra e o próprio aniquilamento – “é na própria prática de sua língua que
o comandante aniquila os judeus, negando-os ativamente como sujeitos, reduzindo suas
individualidades subjetivas a uma massa de objetos indistintos, aviltados e inumanos, a
coisa para seu capricho brincar”.
104
Sobre o problema da estetização, questão ao menos
tangenciada por todos aqueles que se propõem a ler o poema, Felman afirma que a
violência é tanto mais obscena por ser estetizada,
por estetizar sua própria desumanização, ao transformar sua própria perversão
assassina na sofisticação cultural e no transe erudito de uma performance artística
hedonista. Porém o poema funciona (...) de modo a deslocar este mascarar da
crueldade como arte, exibindo a obscenidade desta estetização ao opor o êxtase
melódico do prazer estético aos atos de fala dissonantes do comandante, à
violência de seu abuso verbal e introduzindo na amnésia da “fuga” – no
esquecimento do embebedamento artístico – o beber do leite negro como
impossibilidade do esquecer e de obter postergação do sofrimento e da memória e
como o retorno sinistro, insistente e inesquecível daquilo que o prazer estético
esqueceu.
105
Felman, através de menções a Theodor Adorno, afirma a necessidade da arte de se
desestetizar. Theo Buck, por sua vez, diz que aquele que lê o poema como belo não o
compreendeu. “Todesfuge”, porém, parece tornar possível a literatura após Auschwitz
justamente por transformá-la em versos, por responder à catástrofe no interior da própria
103
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA
(Org.). Catástrofe e representação, p. 41.
104
Ibidem, p. 43. Grifo no original.
105
Ibidem, p. 44. Grifo no original.
43
língua. Se a etimologia de estética demonstra tratar-se das faculdades do perceber e do
sentir, esta não se localiza, necessariamente, ao lado das belas artes. Felman, evocando
Adorno, diz que todo pensar, todo escrever, terá agora que pensar e escrever contra si
mesmo.
106
“Todesfuge” abarca a usurpação do canto dos internos por parte do mestre, diz ainda
Felman. Mencionamos que Celan o exclui de suas leituras em público nos anos 1960.
Como vimos, disse o poeta em 1970 que o poema deveria permanecer consigo mesmo.
107
Felman afirma que algo da usurpação reproduziu-se inadvertidamente no próprio destino de
“Todesfuge”, e prossegue, “cujo imenso sucesso e antologização entre os germanófonos
tornou rapidamente Celan semelhante a outro ‘mestre’ celebrado”.
108
Menciona também
que Celan se voltou contra seus poemas iniciais nos seus últimos anos, recusando-se a
autorizar sua reimpressão em antologias. É especialmente válido, contudo, observar como
esta rejeição é efetuada no interior de sua obra, no silenciamento, na fragmentação e na
ausência de referências explícitas dos poemas tardios. Felman lembra os versos que dizem
“MAIS NENHUMA ARTE DE AREIA, nenhum livro de areia, nenhum mestre”.
109
Porém,
não podemos afirmar apenas uma convergência ao silêncio ao longo da obra, diz Celan:
“tendência em direção ao silêncio, isso também não pode ser dito assim. Não devemos criar
novos fetiches. Até o antifetiche pode tornar-se fetiche”.
110
Como ler estes versos? – diante do paradigma mallarmaico, através da composição
precisa, do hermetismo, dos belos versos e, não obstante, das referências diretas, de
106
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA
(Org.). Catástrofe e representação, p. 47.
107
“Dieses Gedicht muß jetzt, lange noch, ganz bei sich bleiben” (CELAN. KG, p. 607).
108
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA
(Org.). Catástrofe e representação, p. 48.
109
CELAN apud FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI;
SELIGMANN-SILVA (Org.). Catástrofe e representação, p.49.
110
Ibidem.
44
potencial político explosivo e de uma ética da representação. Seria, talvez, necessário
conceber uma forma de ler contra si mesmo. É certo que a leitora que no momento escreve
faz uma escolha, ao convocar novamente estes versos que ecoam na história, tamanha a sua
relação estreita com o ethos, sempre sob o risco de uma fetichização. Talvez a pergunta se
desfaça, ou ainda deva ressoar depois de permanecer consigo, assim como o poema.
45
3
G
RITO DE UMA FLOR OU MODOS DE SILÊNCIO
Deixemos de lado, portanto, o poema “Todesfuge”, tal como o fez o poeta. Fazêmo-
lo não sem antes afirmar, contudo, que este poema, embora comumente adotado como
aquele que muito disse, também silencia. A forma de seu silêncio consiste, antes, em seu
caráter metonímico que, na condição de parte de um todo, possui algo manifesto e uma
outra parte, oculta, silenciada.
111
A ausência de pontuação em “Todesfuge” impede uma
leitura preestabelecida – um fluxo esperado de leitura, de pausas não demarcadas –, torna-
se um aspecto que impossibilita a organização das palavras. Estamos nas margens daquilo
que se tornou difícil após Auschwitz. Pois organizar as palavras através de uma pontuação
significa aceitar uma sintaxe preexistente, apta a organizar a catástrofe (lembremos que a
ordem também é opressiva e impõe outro silêncio. A ordem é, também, uma mutilação). No
poema contrastam referências diretas e citações claras com sua forma assintática.
“Todesfuge”, um dos mais conhecidos poemas do século, pode, em certa medida, ser
considerado um corpo estranho no corpus de poemas de Celan – estranho, de fato, por ser
menos estranho, mais poroso que outros poemas ditos “herméticos”. Não o é, todavia, se
tivermos em conta outros diversos poemas, contemporâneos a ele ou não, publicados em
vida ou postumamente, nos quais as referências se mostram com mais facilidade, ou mesmo
que se entrecruzem com “Todesfuge”. Não se trata de afirmar que a obra evolua para o
111
Cabe mencionar que, embora falemos em partes manifestas e ocultas de um todo para referir à metonímia,
devemos indagar em que medida a escrita celaniana deve ou pode ser abordada segundo um modelo
“vertical” de um iceberg, cuja ponta – significante manifesto – remeteria a um significado submerso,
invisível e indizível. Trata-se, antes, de ruínas espalhadas horizontalmente ou de escombros de uma grande
ruína, da catástrofe da Shoah.
46
silêncio, criando nova “fetichização”, como responderia Celan. Tal empresa – a de propor
uma evolução, coadunando com uma atribuição de sentido – não seria factível nem
desejável.
Trata-se, antes, de discorrer sobre possíveis modulações do silêncio, fluxo
deslizante entre os motivos, as imagens, a forma, a voz, o som, os topoi percorridos pelo
poeta para falar (ou calar e fazer reluzir pela ausência) daquilo que seria indizível. Este será
o exercício realizado ao longo do presente tópico. O critério para apresentação dos poemas
que se seguem será, a princípio, o cronológico, buscando certa distribuição ao longo da
obra (procurou-se contemplar, de início, um poema por livro e alguns poemas do espólio).
Embora seja aparentemente uma via simples, tal critério pode se demonstrar tão
problemático e arbitrário quanto qualquer outro e, dessa forma, acaba por supor uma
atribuição de sentido despropositada à temporalidade, em especial no que tange à poesia de
Celan. Aceitamos, no entanto, provisoriamente, o risco, componente cuja presença se faz
permanente para aquele que elege a leitura desta poesia, na esperança de que os poemas
possam servir como “meridianos”
112
na obra de Celan, evocando assim outros poemas.
Devemos atentar, em especial, aos “objetos mudos”, como a “pedra”, que evoca a
impossibilidade de comunicação; bem como, lembra Georg Otte, “objetos hostis”,
113
como
as armas medievais dos poemas de juventude, mas também as plantas, que trazem, por sua
112
Fazemos referência, aqui, à noção fornecida por Paul Celan no discurso “O Meridiano”, de uma linha
imaginária que leva o poema (não necessariamente endereçado a alguém) a cruzar-se com datas – leva o
poema ao encontro –, proferido na ocasião do recebimento do prêmio Georg Büchner, a ser mais
cuidadosamente convocado na parte III deste trabalho. Propomos que estas repetições presentes nos
poemas sirvam, elas também, como meridianos que nos dão coordenadas. Georg Otte sugere uma relação
com o que Benjamin diz a respeito da repetição que, a rigor, não existiria, pois a mesma palavra num
poema diferente deixa de ser a mesma e, ao mesmo tempo, esta palavra, sempre igual, permite uma ligação
entre os poemas (orientação feita em 20/02/2008).
113
Orientação feita em 20/02/2008.
47
vez, um silêncio (próximo à paz,
114
por assim dizer). Ainda, o crucial “du” que, é certo,
nada parece responder e a nada corresponder.
Quanto ao método deste trabalho diríamos, parafraseando o fragmento N 1a, 8 das
Passagens de Walter Benjamin, que temos muito a mostrar e nada – ou pouco – a dizer.
115
O que dizem os poemas possui algo de irredutível a outros dizeres. A sistematização
necessária pode tornar precário o acesso. Será dedicada atenção, é claro, aos motivos – em
especial àqueles que se tornam, eles mesmos, “meridianos”além dos sons, rimas, ritmo e
métrica, na medida da demanda, maior ou menor, que parece indicar cada poema. Por
vezes, também, aspectos sobre a obra na qual o poema se encontra, período da composição
e aspectos da recepção, com o cuidado de que a busca de referências não se torne por
demais ruidosa, alheia à poesia ou ao debate proposto, que venha apenas para auxiliar num
acesso nada fácil. Foi-nos necessário, em alguns momentos, manter-nos nas bordas do texto
até que alguma entrada nos acenasse. E finalmente, deixar transcorrer um tempo, lendo e
relendo, para assim ser capaz de, como sinaliza a etimologia do verbo “ler”, “legere”,
“coletar”, recolher vestígios. Diz Octavio Paz:
Se é certo que em toda tentativa de compreender a poesia se introduzem resíduos
alheios a ela – filosóficos, morais ou outros –, também aquilo que é o caráter
suspeito de toda poética parece como que redimido quando se apóia na revelação
que, em certo momento, durante algumas horas, um poema nos proporcionou. (...)
Pois o poema é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da
existência. A poesia não é nada senão tempo, ritmo perpetuamente criador.
116
3.1 A SUAVE E DOLOROSA RIMA ALEMÃ
PRÓXIMO AOS TÚMULOS
117
NÄHE DER GRÄBER
118
1 Conhece a água do rio austral,
119
ainda, Kennt noch das Wasser des südlichen Bug,
114
Cf. poema “Nähe der Gräber” [“Próximo aos túmulos”], na continuidade, versos 5 e 6.
115
BENJAMIN. Passagens, p. 502.
116
PAZ. O arco e a lira, p. 30-31.
117
Tradução nossa. Dado o uso instrumental do poema, para os objetivos deste trabalho, privilegiou-se a
semântica e, sempre que possível, a rima, com certo detrimento em relação ao metro do verso celaniano.
118
CELAN. KG, p. 17.
48
mãe, a onda que bateu em tua ferida? Mutter, die Welle, die Wunden dir schlug?
Inda sabe, com moinhos em meio, o capão Weiß noch das Feld mit den Mühlen inmitten,
quão suave anjos teus sofreu teu coração? wie leise dein Herz deine Engel gelitten?
5 Nenhum dos choupos e prados pode mais, Kann keine der Espen mehr, keine der Weiden,
retirar-te o infortúnio, of’recer-te a paz? den Kummer dir nehmen, den Trost dir bereiten?
E não vai o Deus co’a vara que germina Und steigt nicht der Gott mit dem knospenden Stab
colina abaixo e colina acima? den Hügel hinan und den Hügel hinab?
E como outrora em casa, suportas, mãe, Und duldest du, Mutter, wie einst, ach, daheim,
10 a suave, dolorosa, rima alemã? den leisen, den deutschen, den schmerzlichen Reim?
Trata-se de um poema cuja redação atribui-se ao ano de 1944, período no qual
Celan encontrava-se em Czernowitz. “Nähe der Gräber” compõe o primeiro livro do poeta,
A areia das urnas (SU), de 1948. Este conta com três ciclos de poemas, relativamente
ordenados pela cronologia. A composição de tais poemas, apesar da dificuldade em precisar
algumas datas, ocorre do ano de 1940 a 1948, sendo alguns de 1943, período no qual Celan
encontrava-se no campo de trabalho de Tabaresti.
No presente poema aproxima-se, então, aos túmulos. Sabemos que se trata de uma
poesia feita justamente para os mortos que não os tiveram, i.e., aqueles que não foram
enterrados e foram vítimas não de um assassinato individual, mas da proporção do
genocídio. O poema é um indagar constante, o que confere a ansiosa tensão de pergunta
que não cessa. A menção direta à mãe agrega-lhe uma explicitação e o faz dialogar com
outros poemas, publicados em vida ou não, tais como: “Winter” [“Inverno”] (FW), com o
verso inicial “Es fällt nun, Mutter, Schnee in der Ukraine” [“Cai agora, mãe, neve na
119
“Bug” designa um rio do leste europeu localizado no sudoeste da Ucrânia, que deságua no Mar Negro. Em
português, “südlicher Bug” seria traduzido por “Bug meridional”. A solução encontrada pelo tradutor
espanhol José Luis Reina Palazón foi de utilizar “proa”, tradução literal da palavra “Bug” (CELAN. Obras
completas, p. 400). Optamos por “rio austral” para não estender excessivamente o verso ou gerar
estranheza. Agrega-se que em “rio austral” há, também, uma referência geográfica.
49
Ucrânia”
120
], poema cujo período da composição é incerto, porém sugerido por Ruth Kraft
como sendo o inverno de 1942/1943, momento no qual a mãe de Celan, Friederike
Antschel, é assassinada.
121
De 1943 em diante, incluindo anos posteriores, constam,
“Schwarze Flocken” [“Flocos negros”], de SU, no qual também é evocado o motivo da
neve e, em seus versos finais: “Kam mir die Träne. Webt ich das Tüchlein” [“Veio-me a
lágrima. Teci o lenço”]. Emmerich considera que o verso nomeia o rio de lágrimas como
fundamento [Grund] da poesia pós Shoah, apenas o lenço tecido, esta textura que funciona
como condição e se legitima após a Shoah; a condição da literatura deve estar ancorada
neste luto, na fonte das lágrimas.
122
Também o poema “Espenbaum” [“Álamo”], de MuG, é
articulável a “Próximo aos túmulos” pelo do motivo da espécie de árvore: “Espen”
[“choupo”] e “Espenbaum” [“Álamo”]. Deve-se conferir, ainda, “Der Reisekamerad” [“O
companheiro de viagem”], de MuG, “Vor einer Kerze” [“Diante de uma vela”], de VS, e
“Wolfsbohne” [“Grão-de-lobo”], de GN. De referência talvez mais indireta, poder-se-ia
incluir “Die Hand voller Stunden” [“Com a mão cheia de horas”], de MuG, e “Sie kämmt
ihr Haar” [“Ela penteia o seu cabelo”], de MuG.
Os versos apresentam motivos (que funcionam como um ponto de fuga, para usar as
palavras de Emmerich. Ou, ainda, como “meridianos”) que evocam imagens reiteradas na
obra. Inicialmente, “südlichen Bug”, em oposição a “westlichen Bug”, trata-se de dois
diferentes rios que, segundo Wiedemann, fazem referência direta ao local do campo de
120
Cf. também as menções à Ucrânia (ou, ainda, Michailowka, o campo de concentração onde os pais de
Celan foram assassinados) nos poemas “Schwarze Flocken” [“Flocos negros”], “Espenbaum” [“Álamo”] e
“Wolfsbohne” [“Grão-de-lobo”].
121
WIEDEMANN. KG, p. 893. Um estudo que contempla tradução e leitura do poema “Winter”, bem como
aspectos da vida e obra de Celan foi realizado por Ania Cavalcante no SIMPÓSIO DE PÓS-
GRADUAÇÃO DE LÍNGUA HEBRAICA, LITERATURA E CULTURA JUDAICAS de 2007, através
da apresentação: CAVALCANTE. Shoah e Literatura: os poemas de Paul Celan do campo de trabalho
forçado de Tabaresti. In: SIMPÓSIO DA PÓS-GRADUAÇÃO DE LÍNGUA HEBRAICA, LITERATURA
E CULTURA JUDAICAS, 4. 2007, São Paulo. IV Simpósio dos Pós-Graduandos. São Paulo, 2007.
122
EMMERICH. Paul Celan, p. 49.
50
extermínio onde foram mortos os pais de Celan.
123
Motivos que se repetem são os
referentes a árvores, como o choupo, salgueiros, bem como, em outros poemas, arbustos,
plantas e grãos que trazem à baila imagens diversas da botânica, em especial, do leste
europeu. Se, como mencionado, a botânica e as referências às plantas podem ser
consideradas na poesia de Celan como “objetos” silenciosos, porém de um silêncio que
remete à paz e à calmaria, vemos, nos versos 5 e 6, a associação entre “Espen” [“choupos”],
“Weiden” [“prados”] e “Trost” [“paz”, “consolo”]. Hans-Georg Gadamer menciona que
Celan fora um poeta doctus, sobretudo um homem com um conhecimento admirável da
natureza. Diz, ainda, que Heidegger contara-lhe que lá, no alto da Floresta Negra, onde se
encontraram, Celan tinha mais conhecimento que ele sobre plantas e animais.
124
Gadamer
também parece demonstrar, contudo, que o leitor não necessariamente precisa identificar
todas as referências e ter tais conhecimentos para ler o poema. Talvez se possa dizer que a
busca excessiva de referências possa, em certos casos, servir como esquiva perante as
dificuldades dos poemas.
Nos versos aparece, ainda a imagem de um Deus errante, perdido, com a vara que
germina, que alude, seguindo indicações de Wiedemann, ao Antigo Testamento, a vara de
Aarão.
125
Finalmente, o emprego do adjetivo “deutsch”, feito também em poemas
posteriores, do espólio, como “Mutter, Mutter” [“Mãe, mãe”], “Sichtbar-unsichtbar”
[“Visível-invisível”], “Sprüchlein-Deutsch” [“Pequeno Provérbio-Alemão”], “Port Bou-
deutsch?” [“Port Bou-alemão?”] e “24 rue Tournefort” [“Rua Tournefort, 24”].
123
WIEDEMANN. KG, p. 586.
124
GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 47.
125
“E eis que a vara de meu eleito florescerá, e desse modo farei cessar diante de mim as murmurações dos
filhos de Israel contra vós” e “voltando no dia seguinte, entrou no pavilhão, e eis que tinha florescido a
vara de Aarão, pela tribo de Levi: tinha aparecido botões, saído flores e amadurecido amêndoas” (BÍBLIA
SAGRADA. A. T. Números. cap. 17, ver. 20 e 23, p. 199).
51
“Próximo aos túmulos” é um poema composto em rimas, o que se demonstra
freqüente na poesia deste período e cujo uso se tornará, na obra tardia de Celan, restrito. No
entanto, surpreendentemente, em “Próximo aos túmulos” o conteúdo se volta contra a
forma do próprio poema através da evocação metalingüística que o finaliza: a palavra
“rima” (que contrasta, ainda, com as imagens anteriores), sobre a qual questiona se seria
suportável, em um poema rimado. Diz, ademais, de que rima se trata: a suave e dolorosa
rima alemã. Para Emmerich, a pergunta condensa-se em “pode esta língua servir como
medium da poesia?”.
126
A indagação clara da tensão presente ao longo de toda obra de
Celan sobre o problema de uma escritura realizada na língua materna e dos assassinos
encena-se na pergunta final. Emmerich destaca, portanto, o uso da palavra “rima” como
pars pro toto referindo-se à língua alemã de maneira geral e à sua rica tradição colocadas
em questão – algo que, posteriormente, o poema “Todesfuge”, dentre outros, efetuaria mais
uma vez. Trata-se de uma indagação genérica – através da qual se estabelece a dúvida sobre
a própria criação do poema. A referência à rima que se tornou insuportável parece aludir a
esta vinculada a uma expressão de harmonia (do “fechar” ou “arredondar” o verso)
associada à métrica regular – métrica e rima parecem referirem-se a algo imposto, a uma
ordem violenta. A métrica do poema é, de fato, regular, tradicional – não causa nenhum
incômodo. O poeta não rompe com a métrica, mas indaga a possibilidade da rima, deixando
em suspensão a possibilidade da criação.
126
EMMERICH. Paul Celan, p. 48.
52
Faz-se necessário, segundo Emmerich, voltar os olhares para cada motivo – cada
um é dirigido a um mágico ponto de fuga, pois parte considerável dos poemas contém, a
partir de 1943, de maneira implícita e, não raro, explícita, a imagem da mãe.
127
Permanecemos, enfim, com as ressonâncias do poema, neste exercício no qual se
procura realizar um percurso do problema da representação e seus efeitos: ao se aproximar
dos túmulos, do escrito que se cava, é preciso indagar se a poesia nesta língua e com as
marcas deste tempo ainda será não apenas possível, mas, especialmente, suportável.
3.2 PALAVRA SILENCIADA, CONTRAPALAVRA
Passemos, então, a um poema do terceiro volume publicado em vida por Paul Celan.
Von Schwelle zu Schwelle [De limiar em limiar], VS, consiste em um tomo de 47 poemas,
ordenados não cronologicamente em três ciclos, escritos entre 1952 e 1954. Inclui poemas
como “Ich hörte sagen” (“Ouvi dizer”), “Von dunkel zu dunkel” (“De escuridão em
escuridão”), “Grabschrift für François” (“Epitáfio para François”), “Vor einer Kerze”
(“Diante de uma vela”), “Abend der Worte” (“Noite das palavras”), “Schibboleth”
128
e
“Sprich auch du” (“Fala tu também”).
129
O volume data do ano de 1955 e é dedicado à
127
EMMERICH. Paul Celan, p. 48. Deve-se fazer menção a um soneto que precede tal data, de juventude,
citado por Felstiner, escrito ainda no ano de 1939, período no qual Paul Antschel passara um período na
França, distante dos pais, e a guerra era iminente. Tem início com o verso “DIE MUTTER, lautlos heilend,
aus der Nähe” [“A MÃE, que em silêncio nos cura, estando próxima”] e, no verso 6, diz “und sie muß da
sein, läuternd wie der Tod” [“e ela estará aí, purificadora como a morte”]. Felstiner observa que são
perceptíveis, na composição, o esforço em rimar, além de uma dificuldade de compreensão de estilo
rilkeano, que resulta na imagem de uma mãe “purificadora como a morte”, que insinua uma perda
excessiva para o momento, diz Felstiner, talvez premonição (FELSTINER. Paul Celan: poeta,
superviviente, judío, p. 36-37). Embora prefira não falar em premonição ou dimensionar a perda do sujeito
empírico, não podemos deixar de evocar no poema, com certo sobressalto, os motivos da mãe, do silêncio,
da proximidade, da cura, da purificação e da morte.
128
Cf. DERRIDA. Schibboleth pour Paul Celan.
129
O último poema é freqüentemente mencionado para se fazer referência à “linguagem cinzenta”, da qual
Celan também fala em correspondência (a qual citamos na seção sobre “Todesfuge”), uma vez que no
poema consta a não separação do Sim e do Não e, ainda, a afirmação de que “Fala verdade quem diz
53
esposa de Paul Celan, a artista plástica Gisèle Celan-Lestrange, sendo o único livro de
Celan dedicado a alguém vivo. Sobre o título, o poeta menciona um não insignificante
“traço poético” [“Zug des Dichterischen”], seu “caráter-limite” [“liminaren Charakter”],
130
bem como sua “permanente inquietude” [“Nie-zur-Ruhe-Kommen”] e, portanto, a
“pretensão de infinitude” [“Unendlichkeitsanspruch”] de qualquer declaração neste
âmbito.
131
Acrescenta, ainda, a questão da repetição da palavra central, da aproximação
repetida desta ao olho do leitor.
Noutra ocasião, contudo, o poeta diz que originalmente o volume seria intitulado
“Argumentum e Silentio”, um poema do terceiro ciclo, composto em 1954, com o qual
daremos continuidade aos nossos esforços.
ARGUMENTUM E SILENTIO
132
Para René Char
Posta em correntes
entre ouro e esquecimento:
a noite.
Ambos quiseram agarrá-la.
5 A ambos ela o consentiu.
Põe,
põe tu também ali, agora, o que
quer alvorecer junto aos dias:
a palavra sobrevoada de estrelas,
10 a sobrerregada de mar.
A cada um a palavra.
A cada um a palavra, que a ele cantou,
quando a matilha o atacou pelas costas –
A cada um a palavra, que a ele cantou e estarreceu.
15 A ela, à noite,
a sobrevoada de estrelas, a sobrerregada de mar
a ela a silenciada,
cujo sangue não coagulou, quando o dente venenoso
as sílabas atravessou.
ARGUMENTUM E SILENTIO
133
Für René Char
An die Kette gelegt
zwischen Gold und Vergessen:
die Nacht.
Beide griffen nach ihr.
Beide ließ sie gewähren.
Lege,
lege auch du jetzt dorthin,was herauf-
dämmern will neben den Tagen:
das sternüberflogene Wort,
das meerübergossne.
Jedem das Wort.
Jedem das Wort, das ihm sang,
als die Meute ihn hinterrücks anfiel –
Jedem das Wort, das ihm sang und erstarrte.
Ihr, der Nacht,
das sternüberflogne, das meerübergossne,
ihr das erschwiegne,
dem das Blut nicht gerann, als der Giftzahn
die Silben durchstieß.
sombra” (CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 67). Cf. PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et
l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible.
130
CELAN. KG, p. 621. Grifo no original.
131
CELAN. KG, p. 621.
132
Tradução nossa.
133
CELAN. KG, p. 86-87.
54
20 A ela a palavra silenciada.
Contra as outras, as que em breve,
as que prostituídas pelos ouvidos dos carrascos,
também escalam por tempo e tempos,
ela testemunha por último,
25 por último, quando apenas correntes ressoem,
ela dá testemunho da que ali jaz
entre ouro e esquecimento,
a ambos irmanada desde quanto –
Pois onde
30 alvora, então, diz, senão junto dela,
que na correnteza de suas lágrimas
aos sóis imersos a seara mostra
outra e outra vez?
Ihr das erschwiegene Wort.
Wider die andern, die bald,
die umhurt von den Schinderohren,
auch Zeit und Zeiten erklimmen,
zeugt es zuletzt,
zuletzt, wenn nur Ketten erklingen,
zeugt es von ihr, die dort liegt
zwischen Gold und Vergessen,
beiden verschwistert von je –
Denn wo
dämmerts denn, sag, als bei ihr,
die im Stromgebiet ihrer Träne
tauchenden Sonnen die Saat zeigt
aber und abermals?
O título do poema, bem como os motivos e a agudeza dos versos evocam algo que
julgamos ter centralidade na obra e que orienta esta leitura. “Argumentum e Silentio” é uma
expressão latina, em sua aparência não muito corrente, mas de possível origem na lógica e
no âmbito jurídico que, dentre os argumenta, designaria um argumento do silêncio, o
atestar de uma evidência negativa – se os dados nada dizem, não é possível afirmar que seja
algo verdadeiro.
A palavra argumentum deriva de arguō, verbo que significa “denunciar”, sinônimo
de accūsāre. O sentido geral, contudo, seria o de “explicar”, “declarar”, que persiste no
derivado argumentum, sendo empregado com a acepção de “assunto” ou “tema” e,
curiosamente, para nosso propósito: “toda matéria de composição literária chama-se
argumento; nem é de estranhar, visto como os próprios artífices dão este nome ao objeto de
seu trabalho”.
134
A preposição e ou ex
135
indica ponto de partida, do interior de, retirar,
134
QUINTILIANO apud MAGNE. Dicionário etimológico da língua latina, p. 39.
135
Menciona-se que a ortografia da preposição seria “ex” ao preceder vogais e consoantes, e “e” apenas antes
de consoantes (In: Oxford Latin Dictionary, p. 628). Ainda, que a forma “ex” é a preferida na língua
falada, e “e” de uso corrente na língua escrita (FARIA. Dicionário escolar latino-português, p. 367).
55
desde, a partir de. Finalmente, silentio consiste na forma ablativa de silentium, designando,
assim, a idéia de “em silêncio”.
136
Atesta-se, aqui, algo que reluz por sua ausência. O silêncio não consiste em um
vazio, um nada, mas em algo eloqüente. Diante do indizível, o silêncio do poeta não é
mutismo, mas a tarefa de extrair a palavra do silêncio.
A primeira das sete estrofes apresenta a “noite”, frágil, passiva, ameaçada, desejada
e que consente sua captura por aqueles aos quais é irmanada, mencionam-se,
posteriormente: as enigmáticas imagens do ouro e do esquecimento. Os dois versos finais,
compostos em anáfora, indicam uma espécie de sedução. Em nossa tradução, diferindo das
disponíveis em língua portuguesa,
137
optamos, assim como no original, pelo uso do verbo
“pôr”, em detrimento de “acorrentar” (existente também no alemão – “ketten”), para
ressaltar a repetição do mesmo na segunda estrofe, assim como pela ênfase em certa
passividade evocada pela expreso tal como fora utilizada pelo poeta. A preposição “an”,
que dá início ao verso, coaduna com a concepção que nos propusemos a seguir, sendo “an
die Kette(n) legen” [“pôr em corrente(s)”] usado habitualmente para referir-se a animais.
Nas estrofes subseqüentes dá-se início às referências a certa “palavra”. Esta que
“quer alvorecer junto aos dias” (em oposição à noite anteriormente mencionada) é descrita
como “sobrevoada de estrelas
138
e “sobrerregada de mar”. A terceira estrofe é composta
em certo paralelismo sintático, bem como uma conformidade através da repetição dos
136
GAFFIOT. Dictionnaire Illustré Latin-Français, p. 46.
137
CELAN. Hermetismo e hermenêutica. Tradução de Flávio R. Kothe, p. 53; CELAN. Sete rosas mais tarde.
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno, p. 69.
138
É relevante aproximar tal expressão a um uso feito da mesma posteriormente, na “Alocução na entrega do
Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen”, em 1958: “São os esforços de quem,
sobrevoado por estrelas que são obra humana, de quem, sem tecto, também neste sentido até agora nem
sonhado e por isso desprotegido da forma mais inquietante, vai ao encontro da língua com a sua existência,
ferido de realidade e em busca de realidade” (CELAN. Arte poética. Tradução de João Barrento, p. 34.
Grifo nosso).
56
versos, seguidos por orações subordinadas/relativas. Na quarta, por sua vez, o motivo da
“noite” é novamente trazido à baila, em articulação com a “palavra”: “à noite” a (palavra,
apostrofada, de certa maneira) “sobrevoada de estrelas,/ a sobrerregada de mar”. Ainda, a
ela a (palavra) silenciada. Na terceira e quarta estrofes, respectivamente, aparecem também
motivos eloqüentes e agudos, como “a matilha que o atacou pelas costas”
139
e o “sangue”
da palavra silenciada, que “não coagulou,
140
quando o/ dente venenoso/ atravessou as
sílabas”.
A quinta estrofe consiste de um verso solitário, pivô do poema, que o articula ao seu
título e modifica radicalmente a orientação dos versos subseqüentes: “A ela a palavra
silenciada”. O termo “erschwiegene”, além de uma junção atípica, conta com o prefixo
“er”, que denota as idéias de causar, produzir, originar, fazer, algo conseguido com
esforço.
141
Assim como no título, o poema põe à mostra a idéia de uma palavra produzida,
conseguida com esforço por meio do silêncio. O silêncio é dotado de notável positividade.
A sexta estrofe evoca as “outras” palavras, contra as quais a “palavra silenciada” –
esta contrapalavra – se posiciona. As outras são palavras prostituídas (“umhurt”) pelos
ouvidos dos carrascos, são as palavras fáceis, objeto da luta na qual o poeta se empenha.
139
Com respeito à força desta formulação conectada à palavra poética, ainda em articulação à forma de
argumentação jurídica referida no título do poema, Wiedemann menciona possível relação com as
acusações de plágio feitas por Claire Goll, que têm início algum tempo antes da composição deste e de
outros poemas (WIEDEMANN. KG, p. 641).
140
A imagem da coagulação ou cristalização (em certa medida cara também a Walter Benjamin) tem diversas
ocorrências na obra celaniana. A título de exemplo, o poema “COAGULA”, do livro AW (que contém
possível menção indireta ao assassinato de Rosa Luxemburg). Talvez se possa falar no ato de escrever
como um coagular; na palavra como uma condensação de algo fluido ou difuso. Do verso em questão
pode-se pensar que parece haver, de fato, um veneno que impede tal coagulação.
141
No dicionário Wahrig, de maneira mais detalhada, os verbos com o prefixo “er-” são agrupados
principalmente entre os que expressam a idéia de causar e fazer; aqueles que remetem à noção de deixar
nascer, produzir, criar e provocar; conseguir resultado e para designar uma pequena ação ou início de um
ato ou ação (WAHRIG (Hrsg.). Der kleine Wahrig. Wörterbuch der deutschen Sprache, p. 294). Em
Langenscheidt, por sua vez, mencionam-se os verbos com o prefixo que expressam a idéia de tornar-se
algo, da aquisição de novas propriedades; os que denotam a noção de conseguir resultado através de um
ação ou processo de pensamento e a idéia de início (GÖTZ; HAENSCH; WELLMANN. Langenscheidt
Großwörterbuch Deutsch als Fremdsprache, p. 303).
57
Em verso sonoro, através de aliteração, a palavra silenciada “testemunha por último”
(“zeugt es zuletzt”).
Detenhamos-nos neste ponto para um breve excurso. A dedicatória do poema a
René Char deve ser destacada e, junto dela, os entrecruzamentos do poema. Wiedemann
menciona que no mesmo caderno da impressão inaugural de “Argumentum e Silentio”
consta a tradução feita por Celan de “A la santé du serpent” (“Der Schlange zum Wohl”),
de Char.
142
Tal poema consta num volume, da edição francesa, denominado Le Poème
pulvérisé, que inclui, dentre outros, o texto “Argument”:
Os homens de hoje querem o poema à imagem de sua vida,
feita com tão pouca atenção, tão pouco espaço e queimada de
intolerância.
Porque não lhes é mais permitido agir supremamente com
a preocupação fatal de se destruir por seu semelhante, porque
a riqueza inerte deles os freia e aprisiona; os homens de hoje,
o instinto enfraquecido, perdem, mesmo se conservando vivos,
até a poeira de seus nomes.
Nascido do apelo do futuro e da angústia da retenção, o
poema, elevando-se de seu poço de lama e estrelas,
143
será
testemunha em quase total silêncio, que não há nada nele que
não exista verdadeiramente noutra parte, nesse rebelde e
solitário mundo de contradições.
144
É preciso que o poeta silencie, e o silêncio do poema é testemunha efetiva.
Quaisquer palavras, tentativas de articulação, demonstram-se irreais e fúteis. O problema da
indizibilidade da experiência – “unsagbar” ou “Sprachlosigkeit” – configura aquilo que,
ambivalentemente, atrela carrasco e vítima. A impronunciabilidade encontra-se em ambos
os lados. O silêncio da poesia de Celan, contudo, difere sensivelmente do silêncio dos
carrascos, por sua eloqüência, por tudo aquilo que tem a mostrar.
142
WIEDEMANN. KG, p. 640.
143
Cf. verso 4 da segunda estrofe de “Argumentum e Silentio”: “a palavra sobrevoada de estrelas” e, ainda,
nota 138 (sobre “Alocução em Bremen”).
144
CHAR. O nu perdido e outros poemas. Tradução Augusto Contador Borges, p. 159. Grifo nosso.
58
Márcio Seligmann-Silva efetua um cuidadoso transcurso sobre o verbo “zeugen”,
em O local da diferença. Em nota no texto intitulado “Após ‘violento abalo’”, Seligmann-
Silva parte de um trecho de Walter Benjamin em “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, que conduz ao rico espectro, no alemão, do verbo ou radical em
questão. Nas palavras de Benjamin: “um das tarefas mais importantes da arte foi sempre a
de gerar (“erzeugen”) uma demanda cujo atendimento integral só poderia produzir-se mais
tarde”.
145
Zeugen abarca, diz, não apenas a noção do testemunhar, como também gerar e
procriar, no que tange ao papel masculino na reprodução. O verbo utilizado, erzeugen, que
conta ainda com o prefixo “er” supracitado, denota a idéia de produzir, gerar, provocar,
conseguir. A significação do verbo como gerar é, segundo Seligmann-Silva, derivada de
Zeug – material, coisa –, por sua vez, oriundo de ziehen, que significa puxar, retirar.
Zeugen, em sua acepção de testemunhar, também se originaria de ziehen, tal como na
expressão “das Ziehen vor Gericht” – “citar alguém [diante do] tribunal”
146
ou também
“jemanden vor Gericht ziehen” (“citar alguém perante o tribunal”).
Consta em “Após ‘violento abalo’”, ainda, outra menção de Walter Benjamin do
verbo, igualmente benjaminiana ao jogar com a duplicidade e remeter à variabilidade da
palavra alemã, em Rua de mão única: “Überzeugen ist unfruchtbar” – que pode ser
traduzido por “convencer é infecundo”, porém sem negligenciar a composição Über-
zeugen, passível de ser compreendida como supergerar e supercriar. Seligmann-Silva, com
Sigfrid Weigel, ressalta que na frase Benjamin entrecruza sua filosofia da linguagem e da
história, na qual critica a visão instrumental da linguagem na modernidade e, por sua vez, a
criação intelectual, no caso, sexualizada. Überzeugen teria ainda forte conotação jurídica,
145
BENJAMIN apud SELIGMANN-SILVA. Após “violento abalo”. In: ______. O local da diferença, p. 29.
146
SELIGMANN-SILVA. Após “violento abalo”. In: ______. O local da diferença, p. 29.
59
considerando seu uso original de “convencer alguém no tribunal por meio de
testemunhos”.
147
A afirmação benjaminiana sugere, segundo Seligmann-Silva no debate em
questão, que não somente a linguagem do conhecimento é vazia, como também a
linguagem da criação, super ou sobrecriação:
Esse espaço assombrado aberto pela poética do convencer, onde criação e
“verdade dos fatos” embatem-se, é o próprio terreno onde o testemunho se dá.
Nele a citação (em termos literários e jurídicos) desdobra a sua lógica de
descontextualização (de descolamento do suporte “originário”). (...) A voz
testemunhal não é apenas falo e fonocêntrica, mas sim, antes, deve ser pensada
como espaço escritural e ambíguo.
148
O que a reflexão de Márcio Seligmann-Silva destaca e a lírica celaniana sinaliza é o
espaço onde se dá o testemunho, bem como a palavra poética – palavra silenciada. Esta
testemunha “em quase total silêncio”, como aponta Char, diferentemente do testemunho
totalizante e falocêntrico, atrelado a regras positivistas, que ambiciona compreender os
eventos em sua completude
149
. O teor testemunhal que interessa a Seligmann-Silva e que
nos aproxima da poesia de Celan é o que “funcionaria no registro dos traços e rastros
(Spuren) e da escritura ruinosa da memória (que sempre está articulada ao
esquecimento)”.
150
O poema de Celan, intitulado pela expressão aparentemente jurídica,
distancia-se, enfim, de um testemunho jurídico, ao tematizar a “palavra silenciada” e
argumentar através do silêncio e da ruína da palavra atrelada a este.
Na estrofe final do poema “Argumentum e Silentio” indaga-se, enfim, “onde
alvora” a palavra; aquela que queria alvorecer junto aos dias alvoreceria talvez junto à
noite, em versos igualmente silenciosos. E, assim como o poema, que, também em ruína,
147
Ibidem, p. 29.
148
SELIGMANN-SILVA. Após “violento abalo”. In: ______. O local da diferença, p. 29-30 passim.
149
É preciso ressaltar que a noção de um testemunho completo funciona apenas como uma espécie de contra-
modelo, uma vez que mesmo aquele do âmbito jurídico ou que tenha a pretensão de dizer tudo depara-se com
sua impossibilidade.
150
Ibidem, p. 30.
60
nos deixa em eloqüente silêncio, abandonamos quaisquer pretensões de compreensão
totalizante dele, em respeito àquilo que é exterior ao saber.
3.3 ERVAS, ESCRITA DISPERSA
Se a língua alemã possibilita a composição de palavras através da junção
permanente, por vezes atípica, das mesmas, sem que nenhuma delas, especialmente no caso
da poesia aqui abordada, seja destituída de importância; ainda, se tal recurso recebe uma
utilização digna de atenção em Celan, é preciso destacar que, a partir do tomo Sprachgitter
(SG) – Grade de linguagem –, em todos os títulos de suas obras é utilizado tal princípio.
Traduções tão diversas para o português, que variam desde Grade verbal, de Flávio Kothe,
Prisão da palavra,
151
de Cláudia Cavalcanti, e Grelha de linguagem, de João Barrento e Y.
K. Centeno, evidenciam a complexidade da composição e diferentes soluções na tradução.
A linguagem, a palavra, o verbo seriam aprisionados pela grade ou material mesmo que a
compõe e, portanto, aprisionantes? A palavra composta por Paul Celan permite e sustenta a
ambigüidade que suscita.
O volume, publicado em 1959, compreende seis ciclos não intitulados de 33
poemas, de ordenamento cronologicamente relativo, cuja composição data
aproximadamente do período de 1955 a 1958. Trata-se do volume mais estreito de Celan,
de um período do qual se tem registro de apenas três poemas não publicados. Wiedemann
menciona uma carta de Paul Celan a Hermann Lenz na qual se faz referência a esta possível
“coibição” em relação à escrita: “Mas acredite, eu teria escrito mais, se – ainda tivesse
151
Consideramos que a opção pela palavra “prisão” na tradução sobre-interpreta e restringe a expressão
cunhada pelo poeta.
61
podido escrever. Pois tenho um ano tão sem palavras atrás de mim – atrás de mim? – que
devo duvidar se este estado jamais encontra um fim”.
152
Dentre os poemas compreendidos, chama-nos a atenção “À distância” (“In die
Ferne”) e “Baixa-mar” (“Niedrigwasser”)
153
sendo, deste, versos como:
(ninguém
nos cortou a palavra da – –), construíram
o gancho para fora – um pontal, diante
de um pequeno
inavegável silêncio
154
O poeta vale-se, aqui, dos parêntesis, dos versos curtos e condensados – coágulos –,
traços e destacada tematização do silêncio.
Mencionemos, também, o poema “Blume”, “Flor”, motivo da tradição literária por
excelência, “assunto de poetas de todos os tempos”,
155
evocada por Celan na ocasião como
“Flor – palavra de cegos”. Flávio Kothe observa que o poeta, de maneira contrária à
distorção beletrista operada através da noção de que “flor é a palavra flor”, fala de uma flor
palavra de cegos, regada por lágrimas, de uma arte que não deve existir para enfeitar o
mundo.
156
Harbusch, por sua vez, afirma que este poema, antes intitulado “Fleur”, é uma
réplica à famosa passagem de Mallarmé de “Crise de vers”,
157
além de uma das primeiras
palavras que seu filho tentou articular.
158
Gadamer comenta o mesmo poema e ressalta que
152
“Aber glaub mir, ich hätte längst geschrieben, wenn – ich noch schreiben könnte. Denn ich habe ein so
wortloses Jahr linter mir – hinter mir? –, daß ich daran zweifeln muß ob dieser Zustand je ein Ende findet”
(CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 643).
153
Os poemas “À distância” e “Baixa-mar” contam com tradução nossa em anexo.
154
No original: CELAN. KG, p. 112. Grifo do autor.
155
ROSENTHAL. O desafio de traduzir Paul Celan. Tradução & Comunicação Revista Brasileira de
Tradutores, p. 165.
156
KOTHE apud ROSENTHAL. O desafio de traduzir Paul Celan. Tradução & Comunicação Revista
Brasileira de Tradutores, p. 166.
157
“Digo: uma flor! E, fora do esquecimento que minha voz relega algum contorno, como algo diferente dos
cálices sabidos, musicalmente se ergue, idéia propriamente e suave, a ausente de todos os buquês”
(MALLARMÉ apud HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas
conseqüências. Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 40).
158
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 40.
62
é “absolutamente inócuo imaginar que se poderia adivinhar, pela leitura do poema, que se
trata do filhinho de Celan descobrindo um dia a palavra ‘flor’ como uma promessa”.
159
O
autor considera que algumas informações externas podem ser preciosas, mas que não
precisamos saber este dado – a “flor”, no poema, se vincula a uma história de crescimento e
eclosão, não somente, como em Hölderlin, a “flor da palavra” (sendo “palavra”
correspondente a “linguagem”). Crescer um em direção ao outro, diz, pode acontecer em
várias constelações diferentes.
160
A seguir, inclui-se, em sua integridade, o poema “Stretto”, último do livro SG e
mais extenso de Celan publicado em vida, atípico por sua extensão, sob o qual iremos nos
deter mais cautelosamente.
STRETTO
*
Carregados para o
campo
com a marca inconfundível:
5 ervas, escrita dispersa.
161
As pedras, brancas,
com as sombras das folhas:
Não leias mais – olha!
Não olhes mais – vai!
Vai, tua hora
ENGFÜHRUNG
*
Verbracht ins
Gelände
mit der untrüglichen Spur:
Gras, auseinandergeschrieben. Die Steine, weiß,
mit den Schatten der Halme:
Lies nicht mehr – schau!
Schau nicht mehr – geh!
Geh, deine Stunde
159
GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 128.
160
Ibidem.
161
Sobre a tradução deste verso cabe mencionar o que Peter Szondi observa a respeito da tradução francesa de
Jean Daive, provavelmente comentada com o poeta, na qual ocorre o mesmo que na tradução portuguesa:
“Herbe, écrite: désassemblée.” Na observação, destaca que a tradução suprime o equívoco, a ambigüidade
e, portanto, a polissemia gramaticalmente possível do alemão – daquilo que é disperso referir-se à erva ou,
alternativa ou simultaneamente, àquilo que é carregado. A supressão do equívoco operada pela tradução,
ainda que autorizada pelo poeta, não indica tratar-se do verdadeiro sentido que o equívoco do original
permite afirmar; a ambigüidade não consiste em um defeito, nem um traço estilístico, mas estrutura mesma
do texto poético (SZONDI. Estudios sobre Celan, p. 51).
162
Em nota, o tradutor espanhol do ensaio de Peter Szondi afirma que embora no alemão “Kelchblatt”
designe, de fato, “sépala”, opta pela tradução por “folha do cálice” da flor. Tal opção é justificada uma vez
que, recuperando o termo “folha” (Blatt) e “cálice”, aproxima-se do uso feito por Celan da linguagem
botânica, pois seu alemão não seria um “alemão esperado”, mas um “alemão traduzido”, que se deve
“aprender a ler em sua ressemantização”. Ademais, ao traduzir por “sépalo”, argumenta, perde-se a
referência à folha de papel na qual se escreve o poema (SZONDI. Estudios sobre Celan, p. 74-75).
163
CELAN. Sete rosas mais tarde. Tradução de João Barrento, p. 83-95.
63
10 não tem irmãs, tu estás –
estás em casa. Uma roda, lenta,
rola para fora de si, os raios
trepam,
trepam, em campo enegrecido, a noite
15 não precisa de estrelas, em parte alguma
perguntam por ti.
*
Em parte alguma
perguntam por ti –
20 O lugar onde estavam tem
um nome – não o
tem. Eles não estavam lá. Havia
qualquer coisa entre eles. Não
conseguiam ver através dela.
25 Não viam, não,
falavam de
palavras. Nenhum
acordou, o
sono
30 veio e assaltou-os.
*
Veio. Veio. Em parte alguma
perguntam –
Sou eu, eu,
35 estava entre vós, estava
aberto, era
audível, toquei-vos, a vossa respiração
obedeceu, sou
eu ainda, mas vocês
40 estão a dormir.
*
Sou eu ainda –
Anos (sic)
anos, anos, um dedo
45 desce e sobe a tactear, tacteia
à sua volta:
Costuras, palpáveis, aqui
abre-se muito, aqui
voltou a fechar-se – quem
50 a cobriu?
*
hat keine Schwestern, du bist –
bist zuhause. Ein Rad, langsam,
rollt aus sich selber, die Speichen
klettern,
klettern auf schwärzlichem Feld, die Nacht
braucht keine Sterne, nirgends
fragt es nach dir.
*
Nirgends
fragt es nach dir –
Der Ort, wo sie lagen, er hat
einen Namen – er hat
keinen. Sie lagen nicht dort. Etwas
lag zwischen ihnen. Sie
sahn nicht hindurch.
Sahn nicht, nein,
redeten von
Worten. Keines
erwachte, der
Schlaf
kam über sie.
*
Kam, kam. Nirgends
fragt es –
Ich bins, ich,
ich lag zwischen euch, ich war
offen, war
hörbar, ich tickte euch zu, euer Atem
gehorchte, ich
bin es noch immer, ihr
schlaft ja.
*
Bin es noch immer –
Jahre.
Jahre, Jahre, ein Finger
tastet hinab und hinan, tastet
umher:
Nahtstellen, fühlbar, hier
klafft es weit auseinander, hier
wuchs es wieder zusammen – wer
deckte es zu?
*
164
CELAN. KG, p. 113-118.
64
Cobriu-
-a – quem?
Veio, veio.
55 Veio uma palavra, veio,
veio pela noite,
queria brilhar, queria brilhar.
Cinza.
Cinza, cinza.
60 Noite.
Noite-e-noite. – Desce
para os olhos, os húmidos.
*
Desce
65 para os olhos,
os húmidos –
Furacões.
Furacões, de sempre,
turbilhão de partículas, o resto,
70 tu
sabes bem,
lemo-lo no livro, era
ilusão.
Era, era
75 ilusão. Como
nos tocámos
– nós, com
estas
os?
80 Estava também escrito que –
Onde? Nós
pusemos um silêncio sobre isso,
apaziguamos o veneno, grande,
um
85 silêncio
verde, uma sépala,
162
suspenso
dela um pensamento de coisa vegetal –
verde, sim,
suspenso, sim,
90 sob céu
ardiloso.
De, sim,
coisa vegetal.
Sim.
95 Furacões. Tur-
bilhão de partículas, restou
tempo, restou,
para o tentar na pedra – era
Deckte es
zu – wer?
Kam, kam.
Kam ein Wort, kam,
kam durch die Nacht,
wollt leuchten, wollt leuchten.
Asche.
Asche, Asche.
Nacht.
Nacht-und-Nacht. – Zum
Aug geh, zum feuchten.
*
Zum
Aug geh,
zum feuchten –
Orkane.
Orkane, von je,
Partikelgestöber, das andre,
du
weißts ja, wir
lasens im Buche, war
Meinung.
War, war
Meinung. Wie
faßten wir uns
an – an mit
diesen
Händen?
Es stand auch geschrieben, daß.
Wo? Wir
taten ein Schweigen darüber,
giftgestillt, groß,
ein
grünes
Schweigen, ein Kelchblatt, es
hing ein Gedanke an Pflanzliches dran –
grün, ja,
hing, ja,
unter hämischem
Himmel.
An, ja,
Pflanzliches.
Ja.
Orkane, Par-
tikelgestöber, es blieb
Zeit, blieb,
es beim Stein zu versuchen – er
65
hospitaleira, não
100 cortava a palavra. Que
bom tempo passámos:
Granulosa,
granulosa e fibrosa. Hasteada,
compacta;
105 cacho e irradiação; forma de rim,
espalmada e
grossa; leve, ra-
mificada – : ela, aquilo
não cortava a palavra, aquilo
110 falava,
gostava de falar a olhos secos antes de os fechar.
Falava, falava.
Era, era.
Nós
115 não cedíamos, ficávamos
no meio, um
castelo de poros, e
aquilo veio.
Veio ter connosco, a-
120 travessou, remendando
invisível, remendando
a última membrana,
e
o mundo, um cristal de mil faces,
125 começou a formar-se, a formar-se.
*
A formar-se, a formar-se.
Depois –
Noites, desconjuntas. Círculos,
130 verdes ou azuis, quadrados
vermelhos: o
mundo investe o seu mais íntimo
no jogo com as novas
horas. – Círculos
135 vermelhos ou pretos, quadrados
claros, nem uma
sombra alada,
nem uma
mesa de medições, nem uma
140 alma de fumo sobe para se juntar ao jogo.
*
Sobe para
se juntar ao jogo –
No abrigo da coruja, na
war gastlich, er
fiel nicht ins Wort. Wie
gut wir es hatten:
Körnig,
körnig und faserig. Stengelig,
dicht;
traubig und strahlig; nierig,
plattig und
klumpig; locker, ver-
ästelt –: er, es
fiel nicht ins Wort, es
sprach,
sprach gerne zu trockenen Augen, eh es sie schloß.
Sprach, sprach.
War, war.
Wir
ließen nicht locker, standen
inmitten, ein
Porenbau, und
es kam.
Kam auf uns zu, kam
hindurch, flickte
unsichtbar, flickte
an der letzten Membran,
und
die Welt, ein Tausendkristall,
schoß an, schoß an.
*
Schoß an, schoß an.
Dann –
Nächte, entmischt. Kreise,
grün oder blau, rote
Quadrate: die
Welt setzt ihr Innerstes ein
im Spiel mit den neuen
Stunden. – Kreise,
rot oder schwarz, helle
Quadrate, kein
Flugschatten,
kein
Meßtisch, keine
Rauchseele steigt und spielt mit.
*
Steigt und
spielt mit –
In der Eulenflucht, beim
66
145 lepra petrificada,
nas
nossas mãos fugidas, na
última rejeição,
por cima da
150 barreira das balas junto do
muro soterrado:
visível, de
novo: as
estrias, os
155 coros, naquele tempo, os
salmos. Ho, ho-
sana.
então ainda templos de pé. Uma
160 estrela
tem de certo ainda luz.
Nada,
nada está perdido.
Ho-
165 sana.
No abrigo da coruja, aqui,
as conversas, cinza do dia,
das marcas de água subterrâneas.
*
170 (– – cinza do dia,
das
marcas de águas subterrâneas –
Carregado
para o campo
175 com
a marca
inconfundível:
Ervas.
Ervas,
180 escrita dispersa.)
163
versteinerten Aussatz,
bei
unsern geflohenen Händen, in
der jüngsten Verwerfung,
überm
Kugelfang an
der verschütteten Mauer:
sichtbar, aufs
neue: die
Rillen, die
Chöre, damals, die
Psalmen. Ho, ho-
sianna.
Also
stehen noch Tempel. Ein
Stern
hat wohl noch Licht.
Nichts,
nichts ist verloren.
Ho-
sianna.
In der Eulenflucht, hier,
die Gespräche, taggrau,
der Grundwasserspuren.
*
(– – taggrau,
der
Grundwasserspuren
Verbracht
ins Gelände
mit
der untrüglichen
Spur:
Gras.
Gras,
auseinandergeschrieben.)
164
Que fazer com estes versos, com que mão tocá-los, após uma leitura de um só
fôlego? Talvez, na diversidade de abordagens que temos encontrado nesta experiência de
leitura, a única regularidade seja, novamente, a necessidade de continuar lendo para deixar
que se mostrem os vestígios, mesmo que pareçam escassos à primeira vista. Os versos
67
curtos, a repetição de palavras e a condensação de temas se fazem ressaltar, em
comparação, a título de exemplo, com a obra inaugural de Celan – não na evolução da obra,
como mencionado anteriormente, mas na trajetória da poética celaniana em sua radical
operação com a língua. A extensão do poema contrasta, contudo, com outros poemas
contemporâneos e com a obra tardia de Celan de maneira geral. Será o
condensar/concentrar/cristalizar da palavra o estreitamento aqui operado?
As dificuldades acenam imediatamente. Porém revelam-se meios tradicionais dos
quais se serve a leitura, sobretudo no que tange aos textos mais obscuros que, distantes de
levar a uma compreensão – a nosso ver, na dupla acepção do termo: entendimento,
apreensão e abrangência, totalidade –, não apenas falseiam a leitura, afirma Peter Szondi,
mas também a leitura que o lê.
165
Poder-se-ia, diz, recorrer ao método das passagens
paralelas, da confrontação de um verso ou passagem que não se entende, obscura, com
outras passagens da obra do autor na qual figuram algumas das mesmas expressões, as
quais se acredita compreender. Acompanhamos o posicionamento de Szondi quando afirma
que mesmo no caso em que se pretende que haja identidade de sentido entre uma ou várias
expressões em ambos os lugares, o que, em si, já é duvidoso, e mesmo no caso em que a
interpretação que se tem por segura em uma das passagens pareça iluminar o sentido do uso
dessa mesma palavra no verso que se tenta compreender, dito verso se faz mais claro, mas
165
SZONDI. Celan-Studien, p. 47. Peter Szondi estabelecera amizade com Paul Celan e Jean Bollack em
1959. Tornou-se profundo conhecedor da poesia de Celan. Debruça-se sobre a obra deste no volume
Celan-Studien, publicado pela Suhrkamp Verlag, no qual consta um capítulo dedicado ao poema em
questão, intitulado “Durch die Enge geführt. Versuch über die Verständlichkeit des modernen Gedichts”.
Disponível em tradução para a língua espanhola sob o título “Lectura de ‘Strette’. Ensayo sobre la
inteligibilidad del poema moderno”, em SZONDI. Estudios sobre Celan. Madrid: Trotta, 2005. Embora a
leitura de Szondi seja extensa, exaustiva e por demais detalhada para nosso propósito, será evocada, na
medida do possível, ao longo deste debate. Isto se deve ao intuito de tornar acessível ao leitor de língua
portuguesa a recepção de Celan por parte deste consagrado estudioso, exposto, é claro, de maneira crítica e
reflexiva.
68
não por isso se compreende, já que só é o que é nesse uso particular, o qual, precisamente,
resiste à compreensão.
166
Antoine Compagnon faz, também, críticas ao método das passagens paralelas
(Parallelstellenmethode). Afirma que mesmo os partidários da morte do autor jamais
renunciaram a falar de ironia e sátira, embora estas categorias não façam sentido sem uma
suposição de intenção. O mesmo ocorreria, segundo Compagnon, com o recurso ao método
em questão, definido como aquele que, “para esclarecer uma passagem obscura de um
texto, prefere uma outra passagem do mesmo autor a uma passagem de um outro autor”.
167
Posteriormente, agrega que o referido método pressupõe não apenas a pertinência da
intenção do autor para a interpretação de um texto, mas também a coerência de tal
intenção.
168
Compagnon afirma, então, que a hipótese de intenção é uma hipótese de
coerência (do texto, da obra), que legitima aproximações e oferece alguma probabilidade de
serem índices suficientes – “Sem coerência pressuposta no texto, isto é, sem intenção, um
paralelismo é um índice frágil demais, uma coincidência aleatória: não podemos nos
fundamentar na probabilidade de uma palavra ter o mesmo sentido em duas ocorrências
diferentes”.
169
Compagnon faz também referência a Szondi e a outros autores que
solucionam o problema da possibilidade de contradição entre passagens paralelas do
mesmo autor através da história do texto: “a palavra solitude em O spleen de Pariso
esclarece necessariamente a palavra solidão em As Flores do Mal; Baudelaire, que
reivindicava o direito de contradizer-se, pode ter mudado de opinião nesse meio tempo”.
170
166
SZONDI. Celan-Studien, p. 47-48.
167
COMPAGNON. O demônio da teoria: literatura e senso comum, p. 68.
168
COMPAGNON. O demônio da teoria: literatura e senso comum, p. 75.
169
Ibidem.
170
Ibidem.
69
O posicionamento aqui adotado é, antes, o de dedicar atenção aos motivos e
expressões que se repetem, mas sem atribuir-lhes identidade de sentido, ter em conta a
polissemia de cada um, considerar a diferença engendrada na repetição e, em especial,
abandonar a compreensão em sua forma mais antiquada, da busca de sentido. Repetimos
com Szondi: a passagem é o que é em seu uso que resiste à compreensão. Não se considera
privilegiada uma elucidação que o autor
171
oferece de seu texto, porém tampouco
privilegia-se a explicação do leitor ou crítico.
“Engführung” designa, de fato, no alemão, termo oriundo da música, “stretto” (de
“strictus”), realização de tema imitativo de uma fuga, fragmentos do tema ou diálogo
contrapontístico no qual tema e resposta se perseguem, num “afunilamento”. Sabemos da
insuficiência deste dado no tratamento do texto poético e que não deve, assim, orientar
ingenuamente a nossa leitura, conduzindo-nos à busca dos princípios musicais da
composição. Não se deve, contrariamente, negligenciar este vestígio e deixar de ouvir o que
diz, de maneira flexível e não totalizante, “Engführung”. Para Szondi, o princípio de
composição que em música se conhece por este nome, “estreito”, dá conta de uma parte da
função dos versos repetidos e da relação estreita, apertada (estrita) estabelecida entre as
nove partes do poema. Estas se apresentam, por outro lado, como vozes, sendo-as,
verdadeiramente, não apenas no sentido musical do termo.
172
Na primeira das nove partes, observam-se os verbos no presente e no imperativo. De
início, o leitor se encontra num contexto desconhecido, mesmo que se trate como se
devesse conhecer, é “carregado” a um lugar estranho e estrangeiro. Nem se sabe, porém, o
171
Normalmente, fala-se em passagem paralela de um mesmo autor sem especificar, contudo, a natureza da
passagem que se supõe que deverá lançar luz sobre o texto. Deve-se ao menos mencionar que é possível
supor uma diferença entre a elucidação que o autor oferece de uma passagem em paratextos e a ocorrência
repetida ao longo da mesma obra ou, no caso de Celan, entre poemas de um mesmo ciclo ou de ciclos
distintos.
172
SZONDI. Celan-Studien, p. 56.
70
que é “carregado”, o que permite ao leitor pensar que ele também o é; vê-se deslocado para
o interior do texto, de maneira que já se torna impossível distinguir entre aquele que lê e o
que lê, pois o sujeito leitor coincide com o sujeito da leitura.
173
“Ervas, escrita dispersa. As pedras, brancas,/ com as sombras das folhas” –
“auseinandergeschrieben” já sugere a separação ou dispersão das ervas, como quando
pisadas, porém com o verbo “schreiben”, “escrever”, seguido pelo branco e o escuro
papel e letra. Com o método relativamente convencional de Hugo Friedrich, ao se referir à
lírica moderna, poder-se-ia ressaltar a associação entre palavra e coisa, o concreto e o
abstrato e, portanto, de uma paisagem que é também texto. Szondi refere-se a tal verso com
agudeza, afirmando que, no comentário de texto tradicional, baseado em uma retórica
tradicional, nos diria indubitavelmente que a erva da paisagem se compara às letras e que a
analogia entre ambas (segundo a definição aristotélica de metáfora) permite ao poeta dizer
tais versos, e ao leitor, compreender que a erva se parece às letras dispersas. Pois, então,
não se trata expressamente de letras – e o que é o texto poético senão a textura do verbo? –
senão, com efeito, de erva. A erva encontra-se “escrita dispersa” – a erva também é letra, a
paisagem também é texto.
174
“Não leias mais – olhe!/ Não olhes mais – vai!”:
175
ainda no horizonte da leitura do
texto-lugar, poesia-paisagem, o poema exorta a ir para além da textualidade da paisagem e
considerá-la como tal, como incita Szondi: a poesia deixa de ser mimesis, representação –
torna-se realidade (posteriormente indaga, ainda, se tais ordens se dirigem à palavra ou ao
173
Ibidem, p. 48-49.
174
SZONDI. Celan-Studien, p. 50.
175
Sobre os mesmos versos, Blanchot ressalta “a vista pois (talvez), mas em vista sempre de um movimento,
associada a um movimento: como se se tratasse de ir em direção ao chamado desses olhos que vêem mais
além do que há que ver: olhos cegos ao mundo, olhos que a palavra submerge até a cegueira, e que olham
(ou têm seu lugar) no conjunto das fissuras do morrer.” (BLANCHOT. La bestia de Lascaux: el último en
hablar, p. 57. Grifo do autor indicando menção ou paráfrase do poema).
71
poeta/leitor). Realidade poética, texto que se projeta sobre si mesmo, que se constitui como
realidade,
176
pode-se dizer: como coisa. Szondi deixa manifesto seu posicionamento, ainda
no que se refere aos versos que seguem: a hora que não tem irmãs é a hora da morte; a
poesia não mais descreve a realidade, mas faz existir o campo enegrecido. O texto não está
a serviço da representação, ou melhor: passa-se do texto-representação ao texto-realidade.
Há, para esse leitor, uma preocupação do poeta em respeitar a realidade estética de sua
poesia, quase inteiramente debruçada sobre a memória dos mortos. O aspecto tangenciado
neste debate, a saber, o problema da mimesis, da representação e o texto poético de Celan,
suscita-nos especial interesse e, portanto, será abordado novamente ao longo do presente
estudo.
Cada uma das partes subseqüentes, divididas por asteriscos, inicia-se com os versos
que finalizavam a parte precedente; sutilmente modificados, entretanto, ou recompostos,
invertidos, com novas pausas, deslocados para a direita, deixando vazios no papel.
“O lugar onde estavam tem/ um nome – não o/ tem. Eles não estavam lá.” Opõem-
se, no início destes versos, fato e palavra, neste jogo em que se afirma o fato, seguido pelo
nome, nega-se o nome e, depois, nega-se o fato. Opera-se uma inversão temporal através da
passagem dos verbos no presente, da parte anterior, para os verbos no passado e,
posteriormente, um retorno ao presente.
Nas considerações de Szondi, o tecido de “Stretto” se dá precisamente na
composição de vozes que formam as partes e na relação entre as vozes que, por sua vez,
determinam a progressão do poema. Considera que compor um poema a partir de um
modelo musical – pressuposto que não acolhemos integralmente – implica renunciar, numa
parte do enunciado, à expressão discursiva. Assim sendo, não apenas as palavras, mas as
176
SZONDI. Celan-Studien, p. 52.
72
frases e, de maneira muito particular, as relações (entre as vozes) devem ser lidas. Estas,
porém, nunca podem ser estabelecidas com certeza, pois tais relações não discursivas
devem ser traduzidas a uma língua de leitura que o é. O movimento entre o fato e a palavra
acima mencionado é descrito na discussão como figura que na retórica se conhece por
“correção”, a qual nos remete à composição musical e seu discurso, diz, considerada
essencial na leitura de “Stretto”, que deve ser tomada com cuidado; não se sabe, ainda, as
razões da correção. Sabe-se que “eles não estavam lá” porque “havia algo entre eles” – este
“algo”, que não lhes permite ver através, tomará a palavra na parte três e será motivo do
encaixe entre estas.
177
Keines erwachte – Szondi chama a atenção, uma vez mais, para a
ambigüidade do texto em alemão – quem não acordou? As palavras ou as pessoas?
“Sou eu”, apresenta-se aquilo, “algo” que aparece entre eles, falando-lhes como nova
voz no poema, “aberto” e “audível”, seguido pela evocação da temporalidade, através do
ticken, que indica, no caso, tanto “fazer tic tac” quanto “tocar”, sendo a segunda eleita pelo
tradutor português. Szondi conclui da passagem que o que apareceu entre eles, que não estavam
lá, que dormem neste campo enegrecido que é a morte, o não-tempo, é também palavra, verbo,
que teria a possibilidade, ao se fazer audível a eles, de acordá-los, de trazê-los à existência, de
devolver-lhes à vida – efetuando a equação entre dormir, estar morto e não ouvir; e, por sua
vez, entre viver e ouvir.
178
“Anos. Anos, anos”: nada se diz a respeito do tempo, apenas se
nomeia – porém deve-se ler na insistência da repetição o que esta tem de essencial, diz Szondi:
a duração. O tempo se torna espaço, superfície sobre a qual se move tateando.
179
A quinta parte, central neste poema de nove partes, tem início, como as demais, com
a repetição do verso que a precedeu, porém, no caso, com uma inversão sintática “cobriu-/ -
177
SZONDI. Celan-Studien, p. 59-62 passim.
178
Ibidem, p. 66.
179
Ibidem, p. 68.
73
a –quem?”. As repetições das ações, a insistência em nomear conduz-nos a uma sensação
de insuficiência da linguagem, o que, decerto, é relevante ao longo de toda a leitura, mas
destacadamente nessa parte que opera um giro no poema. Na mesma parte afirma-se, ainda,
que aquilo que veio, ou que também veio, se trata de uma palavra, que “queria brilhar”.
A sexta parte, a mais extensa delas, é designada por Szondi como a da criação do
mundo ou recriação mediante o verbo. A referência à cosmogonia atomista de Demócrito – à
citação que diz que nada existe além de átomos e espaços vazios, o demais é opinião
(Meinung) – é trazida à tona, bem como a estrutura teológica de Dante, ambas mencionadas
também por Wiedemann.
180
O “turbilhão de partículas”,
181
embora neste contexto
cosmogônico, é designado por Paul Celan em cartas, como menção, “não apenas implícia”, à
bomba atômica e à morte por ela.
182
Szondi considera que na mesma parte o texto parece
distanciar-se da linguagem musical da composição para recair no discurso hermético
tradicional.
183
“Um/ silêncio/ verde”, este motivo que ressoa ao longo da obra celaniana, salta aos
olhos para o nosso propósito, aparece, aqui, qualificado, caracterizado. Para Szondi, em vez
de criar um novo mundo, no lugar de esperar a palavra (ou seja, a existência), na última
hora, esta que não tem irmãs, eles puseram (“nós pusemos”) um silêncio sobre isso.
184
Se se trata de um poema no qual se operam condensações, deve-se dar destaque à
redução efetuada no “ensaio cosmogônico” da sexta parte, no qual a supressão da
linguagem se faz através dos versos que se restringem aos verbos conjugados: “Falava,
falava./ Era, era.” Com o verbo “falava”, abarca-se “ele”, “cortava a palavra” e “a olhos
180
WIEDEMANN. KG, p. 668-669.
181
“Partikelgestöber”. Cf. poema “Ein Dröhnen”: “Metapherngestöber”. In. CELAN. KG, p. 206.
182
CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 668.
183
SZONDI. Celan-Studien, p. 80.
184
Ibidem, p. 80.
74
secos antes de os fechar”; “era” abrange, por sua vez, “ela”, “a pedra”, “foi hospitaleira”.
Para Szondi, a repetição dos verbos “falar” e “ser” constata e confirma a identidade do falar
e do ser, por sua vez, do texto poético e da realidade poética.
185
Deixemos alguns vazios e passemos a imagens da sétima e oitava partes, que parecem
descrever uma transição efetuada no poema, através de motivos tais como a “alma de fumo”
(remete-nos, inevitavelmente, ao poema “Todesfuge”?), “lepra petrificada”, a “última
rejeição”, a “barreira de balas” e as “estrias”. Quanto à “última rejeição” – “der jüngsten
Verwerfung” –, Szondi destaca que não pode designar outra coisa que o destino dos judeus, a
última reprovação que sofreu Israel desde o começo de sua história – a “solução final”,
Endlösung, o campo de extermínio. Sabe-se, diz, que os judeus deportados, no instante
preciso de seu último suplício, rezavam e cantavam salmos. “Hosana”, em hebraico, designa
o pedido de salvação, “Salva, por favor”. A salvação é a palavra, o verbo. A realidade e
permanência dos templos está na palavra. Encontra-se, assim, na oitava parte, a evocação
esperançosa do poder da palavra, da força da criação subjacente ao verbo, da origem verbal
da realidade. Deve-se considerar a menção à força criadora da palavra em conexão com os
campos de extermínio, como condição, por sua vez, dever poético e, como ressalta Szondi,
não apenas o dever, mas, em especial, a necessidade poética perante os mesmos. A palavra
criadora é aquela pronunciada pelos judeus deportados ao campo no momento de sua morte.
No verso não se consegue, porém, destaca Szondi, pronunciar a palavra na primeira tentativa:
os primeiros sons dirigidos a Deus são uma espécie de grito profano, quase vulgar –“Ho, ho-”
– até reaparecer em estrofe posterior – “Ho-/ sana”. “Nunca demonstrou Celan de modo tão
claro e de maneira tão convincente como em ‘Stretto’ a legitimidade do lema secreto de sua
185
Ibidem, p. 82.
75
obra, seu caráter essencialmente não-pessoal e não-confessional”, afirma.
186
Na parte final,
por sua vez, repetem-se os versos iniciais, sem que se trate, por certo, de um círculo,
considerando o lugar da repetição, em especial, no presente poema.
À guisa de finalização, faz-se necessário evocar novamente a trajetória realizada
neste trabalho de tentativa de incursão no legado celaniano, que partiu da “Todesfuge” em
direção a outros poemas, daquilo que se supõe conhecido ao desconhecido. Se nos
deparamos novamente com o inevitável pano de fundo da experiência traumática ou
indizível, tenhamos no horizonte a modulação efetivada do silêncio ou da memória em
“Todesfuge” e em “Stretto”.
Neste extenso e aparentemente inacessível poema, o percurso nas bordas do
indizível se faz de maneira polissêmica e, ao mesmo tempo, precisa. Parte, em
estreitamento, do lugar estranho, para a paisagem-texto, do abandono da representação para
o ingresso na realidade poética como tal, da palavra como possibilidade de despertar
aqueles que dormem e não a ouvem, para a origem verbal da criação, até a rejeição final, e
da palavra criadora da salvação. O leitor encontra-se num território no qual a poesia
congrega o primitivismo, a profanação, a ambigüidade, mas, simultaneamente, a
composição musical, abandono da enunciação discursiva (talvez sem necessária opção pela
composição musical), a metalinguagem, o experimento da forma e a salvação libertadora.
Nesta leitura, que não deseja pretender-se nem comentário de texto, nem exaustiva,
em respeito ao expressivo silêncio dos versos condensados e estritamente estreitados,
permite-se, ela também, estreitar-se para deixar seus vazios.
186
SZONDI. Celan-Studien, p. 100-107 passim.
76
3.4 UM ÍNTEGRO SILÊNCIO, UMA PEDRA. A ROSA DO NADA, A DE NINGUÉM
Os versos acima se encontram, respectivamente, nos poemas “Para onde me caiu a
palavra, a imortal” e “Salmo”, ambos do volume Niemandsrose, NR, A rosa de ninguém, de
1963. Conta com quatro ciclos de 53 poemas, de relativo ordenamento cronológico. Celan
dedica-o a Ossip Mandelstam, de quem fora tradutor para o alemão, poeta russo de origem
judaica, aparente
187
vítima do stalinismo.
A publicação dessa coleção coincide ainda com o “caso Goll” (especialmente com
uma fase “pública” do caso), no qual Claire Goll acusa o nosso poeta de ter plagiado a
poesia de seu falecido marido, Yvan Goll. Barbara Wiedemann dedicara-se em
profundidade ao estudo do caso
188
e afirma que se tratava, com efeito, de calúnia, uma vez
que semelhanças entre a poesia de Celan e a obra póstuma de Goll teriam sido feitas através
de manipulação por parte de Claire Goll, que conhecera a obra inaugural de Celan.
189
Por
certo, uma acusação de tal natureza não permanecera sem efeitos – para além de seu
aspecto jurídico, de tratar-se de um crime, representa também uma apropriação indevida,
uma espécie de “roubo” da palavra do outro, justamente da língua “materna e assassina”;
implicava acusar de criminoso aquele que fora vítima de um crime histórico e coletivo e
187
Segundo Felstiner, em 1958 Celan acreditara na hipótese de que a morte de Mandelstam ocorrera durante a
campanha de Hitler contra a União Soviética em 1941 e não anteriormente, na Sibéria (FELSTINER. Paul
Celan: Poeta, Superviviente, Judío, p. 175). A imagem do poema como uma “mensagem na garrafa”, da
“Alocução em Bremen” é articulada com o ensaio “Sobre o interlocutor”, de Mandelstam, 1913, no qual é
descrito um passeio sobre as dunas entre as quais encontra-se uma garrafa e, em seu interior, o nome e destino
de um poeta que naufragara. Fesltiner menciona, ademais, que Celan teria se proposto a ser esse “destinatário
secreto” de seu antecessor russo. Entre os diversos fatores que levaram a tal “comoção de reconhecimento”
(Felstiner utiliza a expressão de Melville) cita que Mandelstam – “tronco de amêndoa”, o que, para Celan, era
“estirpe judia”, diz – trabalhara como tradutor, havia tentado suicídio; como Celan, crescera estreitamente
vinculado à mãe e, em função do pai, tinha ambivalente relação com o judaismo; sofrera perseguição política
e literária que não deixava de estar associada à sua origem; a partir de uma acusação de plágio, Mandelstam
resgatara seu judaismo. Tal nexo conduz Felstiner a afirmar que talvez explica-se o fato de Celan dizer que
Mandelstam fora vítima do nazismo e não do exílio siberiano, como era a crença geral. (FELSTINER. Paul
Celan: Poeta, Superviviente, Judío, p. 190)
188
WIEDEMANN (Hrsg.). Paul Celan. Die Goll-Affäre. Dokumente zu einer Infamie, 2000.
189
WIEDEMANN. KG, p. 671-672.
77
justamente naquilo que tange ao que lhe era mais caro: a poesia, esta na língua que deveria
ser restaurada. Celan reagiu a tais acusações em seu discurso “O Meridiano” e, em especial,
destaca Wiedemann, diretamente com sua poesia.
190
Este acontecimento fora não apenas
um retorno do trauma mas, talvez, algo ainda mais grave que, de fato, privou o poeta da
possibilidade de falar.
Tendo em conta tal debate, dever-se-ia trazer à baila, com efeito, poemas como
“Chymisch” (“Quimicamente”)
191
ou “Erratisch” (“Errático”),
192
em articulação com o
esboço para o discurso “O Meridiano” e a correspondência. Naquele, motivos freqüentes
como o silêncio aparecem em versos amargos, metalingüísticos, que evocam a queima dos
nomes, das palavras, e dos corpos – mãos carbonizadas:
Silêncio, fundido como ouro, em
mãos
carbonizadas.
(...)
Todos os nomes, todos aqueles
nomes queimados
juntamente. (...)
193
Ainda, no primeiro poema da obra, o cavar incessante, Deus, o saber, a canção e a
linguagem:
HAVIA TERRA NELES, e
cavavam.
Cavavam e cavavam, assim passava
o seu dia, a sua noite. E não louvavam a Deus,
que, segundo ouviam, queria tudo isto,
que, segundo ouviam, sabia tudo isto.
Cavavam e não sabiam mais nada;
não se tornavam sábios, não inventavam nenhuma canção,
190
Ibidem, p. 672.
191
Wiedemann ressalta o interesse de Celan pela alquimia e, no caso, formulações sobre uma possível
alquimia da linguagem em associação ao caso Goll (WIEDEMANN. KG, p. 682.)
192
O período da composição deste poema coincide com a publicação da tese de Dietrich Schaefer sobre Paul
Celan e Yvan Goll no que tange à obra MuG, bem como a reação pública de Celan de agradecimento a
Goll pelo suposto “estímulo” ou “sugestão”. Celan escreve em seu esboço ao “Meridiano”: “[...] o poema
quer, uma vez mais, estar aí, errático –” (“[...] das Gedicht möchte noch einmal erratisch, da sein”. CELAN
apud WIEDEMANN. KG, p. 686).
193
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 107.
78
não imaginavam qualquer espécie de linguagem.
Cavavam.
(...)
194
Diversos são os versos desta obra fundamental cuja convocação faz-se necessária.
Devido às limitações deste trabalho, façamos algumas menções, como ao já referido poema
intitulado “Tübingen, Jänner”
195
(“Tübingen, janeiro”),
196
que congrega citações de
Hölderlin e pode ser lido, também, em associação ao “20. Jänner” (“20 de janeiro”) de “O
Meridiano”, bem como ao poema intitulado “Frankfurt, September” (“Frankfurt,
setembro”). Ademais, poemas imprescindíveis como “Radix, Matrix”, “Benedicta”,
“Anabasis”,
197
“Wohin mir das Wort” (“Para onde me caiu a palavra”) e “Mit allen
Gedanken” (“Com todos os pensamentos”).
198
Na mesma obra, de composição em Paris, aos 20 de setembro de 1962:
Do silhar
199
da ponte, da qual
ele para a vida re-
bateu, capaz
de voar de feridas,– da
ponte Mirabeau.
Onde o Oka não flui junto. Et quels
amours! (Coisas cirílicas, amigo, também isso
cavalgo sobre o Sena,
cavalga sobre o Reno.)
200
194
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 99.
195
“Jänner” corresponde a “Januar” na grafia austríaca.
196
Poema cuja composição data, segundo Wiedemann, do dia do retorno de Celan de uma visita a Walter Jens
em Tübingen, ocasião em que se informara sobre a acusação de plágio por parte de Claire Goll e seus
auxiliares (WIEDEMANN. KG, p. 680).
197
Cf. leitura do poema efetuada por Alain Badiou no livro: BADIOU. Século. São Paulo: Idéias & Letras,
2007.
198
O poema, em sua integridade, conta com tradução nossa em anexo.
199
Por “quader” entende-se “pedra de cantaria”, “pedra lavrada”, “paralelepípedo” ou, no contexto,
“supedâneo” ou “pedestal”. Apesar da baixa freqüência de do vocábulo “silhar”, pareceu-nos a solução
mais concisa.
200
“Von der Brücken-/ quader, von der/ er ins Leben hinüber-/ prallte, flügge/ von Wunden, – vom/ Pont
Mirabeau./ Wo die Oka nicht mitfließt. Et quels/ amours! (Kyrillisches, Freunde, auch das/ ritt ich über die
Seine,/ ritts übern Rhein.)” (CELAN. KG, p. 165. Tradução nossa).
79
Este fragmento é extraído do poema “Und mit dem Buch aus Tarussa” (“E com o
livro de Tarussa”). Um extenso poema de quarenta e oito versos, com alusões diversas,
palavras compostas e pronomes sem referência. Um poema que, de maneira especial,
delineia um movimento da poesia celaniana de 1962 de “falar para o leste”,
201
com as
traduções de Tsvetáieva e Mandelstam, com a linguagem do poeta no exílio e com sua
deriva “além da zona dos povos mudos”.
202
Sobre os poemas de 1963, em correspondência,
diz Celan: “percorreram – comigo – um longo caminho que não foi fácil”.
203
Sobre a ponte Mirabeau escrevera Guillaume Apollinaire:
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu’il m’en souvienne
La joie venait toujours après la peine
(...)
Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
204
A epígrafe do poema de Celan é da poeta russa Marina Tsvetáieva, citado em
caracteres cirílicos: “todos os poetas são judeus”, que João Barrento associa à condição da
poesia moderna, da deriva, desde o Romantismo, como o proscrito, o rebelde, o eremita,
solitário do Velho Marinheiro, Judeu Errante, Holandês Voador: “O poeta moderno
(auto)condena-se à errância eterna do desassossego.”
205
O fragmento de “E com o livro de Tarussa” possui, contudo, algo notadamente
trágico. Celan, também na estrofe, alude a Marina Tsvetáieva. Ela viveu sua infância na
cidade de Tarussa, por onde passa o rio Oka. Em 1941, a autora russa enforcou-se. Por
201
Cf. Capítulo 11 de FELSTINER, John. Paul Celan: poeta, superviviente, judío. Madrid: Trotta, 2002.
202
Verso do poema “E com o livro de Tarussa” citado por FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente,
judío, p. 274.
203
CELAN apud FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 275.
204
APOLLINAIRE. Alcools, p. 15-16.
205
BARRENTO. Nous sommes embarqués. In: ______. O arco da palavra: ensaios, p. 185.
80
volta do dia 20 de abril de 1970, aproximadamente sete anos após a escrita deste poema,
Celan, que residia há alguns metros da ponte Mirabeau por um ano e meio, na Avenue
Émile Zola, salta da mesma, lançando-se ao Sena. Esta estrofe, diz Carlos Ortega, compõe
um estranho eco, lança uma sonda trágica entre duas existências, tão distintas e tão comuns
neste século.
206
Na obra do poeta, a morte (e até mesmo a própria morte) é motivo-
“meridiano” e recebe matizes e nomeações tão diversas, inclusive a do misterioso “du”, que
impõe, necessariamente, dificuldades ao leitor,
207
como neste poema de FS, no qual a morte
parece ser tudo o que resta:
TU ERAS a minha morte: DU WARST mein Tod:
a ti podia agarrar-te dich konnte ich halten,
enquanto tudo me fugia.
208
während mir alles entfiel.
209
Em “E com o livro de Tarussa”, contudo, o destino trágico do suicídio, sombra
inevitável sob a qual o verso passa a ser lido, parece ser encenado através de “capaz de voar
206
ORTEGA. Que nadie testifique por el testigo. In: CELAN. Obras completas, p. 10.
207
Hans-Georg Gadamer escreve os comentários sobre o ciclo Atemkristall, mobilizado pela questão que dá
título a seu livro Quem sou eu, quem és tu?, além de seu interesse pela aporia entre a dialogia e o
hermetismo, o silêncio críptico da poesia tardia de Celan. Gadamer indaga: “trata-se de uma lírica de
amor? Ou de uma lírica religiosa? Ou ainda do diálogo da alma consigo mesma? O poeta não saberia
dizer”. Pode-se prometer elucidações, diz, encontradas, porém, apenas sob certas condições e “em função
da polivalência de sua estrutura”. (GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 44). Sabemos que o Eu
pronunciado em um poema lírico não pode referir-se apenas ao Eu do poeta, que seria um Eu diferente
daquele do leitor. “Assim é em Celan, onde o ‘eu’, o ‘tu’ e o ‘nós’ são emitidos de um modo totalmente
direto, tão indeterminado quanto as sombras, que mudam constantemente” (Ibidem, p. 44-45). O Tu pode
ser simplesmente destinatário, função semântica geral, prossegue. “Será razoável perguntar quem é este
Tu? [...] Meu próximo? Ou talvez aquele que está próximo e distante de mim: Deus? A questão não pode
ser respondida” (Ibidem, p. 45). Gadamer menciona, contudo, que não significa que a diferença entre o Eu
que fala e o Tu ao qual se dirige se apagariam nestes poemas. “Não sabemos por antecipação e nem a partir
de uma visão de conjunto o que significam aqui o Eu e o Tu” (Ibidem). Geoffrey H. Hartman diz, ainda:
“No entanto, uma coisa é bastante óbvia: surgem dificuldades toda vez que o pronome íntimo du surge ou
procura surgir em seus escritos. Até o final da guerra, muitos dos poemas são diretamente endereçados, por
meio desse du, à mãe do poeta. Depois disso, o ato de endereçar-se a um outro, um outro perdido ou um
outro de dentro, torna-se problemático” (HARTMAN. Holocausto, testemunho, arte e trauma. In:
NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA (Org.). Catástrofe e representação, p. 228).
208
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 141 (Tradução de Y. Centeno). Este poema conta também com tradução
de Flávio Kothe: “Eras a minha morte:/ a ti eu podia reter/ quando tudo me desertava” (CELAN.
Hermetismo e hemenêutica, p. 129). Optou-se por citar, no corpo do texto, a tradução de Centeno devido à
utilização explícita do “tu”. Ademais, a tradução de Kothe, embora apropriada e precisa nos dois primeiros
versos, pareceu-nos sobre-interpretar o uso do verbo “entfallen” ao traduzi-lo por “desertar”.
209
CELAN. KG, p. 242.
81
de feridas” (flügge von Wunden)
210
e, entremeado pela evocação metalingüística do alfabeto
cirílico (usado na epígrafe), o cavalgar sobre o Sena.
211
Ser capaz de voar de feridas da
ponte Mirabeau – de maneira precoce e irrefreável, aproxima-nos do fim, ao qual
retornaremos no decurso deste trabalho.
3.5 MEINGEDICHT, DAS GENICHT
Um rimbombar: é a
própria verdade
que chegou
às pessoas
no meio do
turbilhão de metáforas.
212
Com o volume Atemwende – que também possui, como já mencionamos, traduções
tão diversas como Sopro, viragem, de Barrento e Centeno, Mudança de ar, de Cavalcanti, e
Mudança de inspiração,
213
de Kothe –, aproximamo-nos da poesia tardia de Celan e das
viragens de seu texto. Nesta obra de 80 poemas, escritos sobretudo entre 1963 e 1965,
divididos em seis ciclos e publicada em 1967, pode-se considerar que uma das aporias
centrais na leitura de Celan coloca-se com veemência, a saber, o já referido problema do
hermetismo,
214
do silêncio críptico, da tendência ao mutismo e, por outro lado, da abertura,
210
O adjetivo “flügge” indica ser capaz de voar, usado com freqüência para referir-se aos filhotes de pássaros
ao atingirem o tamanho que os torna aptos a voar. Coloquialmente usa-se também para aludir a aquisição
de autonomia. O tradutor espanhol opta simplesmente por “en vuelo de heridas” (CELAN. Obras
completas, p. 202), possivelmente para manter o verso mais curto.
211
Sobre esta imagem, é interessante observar a dupla acepção de “Übersetzen” – tradução e travessia para a
outra margem de um rio. Cf. WIEDEMANN. KG, p. 716.
212
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 133.
213
Esta tradução, a nosso ver, sobre-interpreta a expressão, uma vez que a palavra “inspiração”, no âmbito da
poesia, acarreta outras associações. A simultânea materialidade e a fluidez do ar e a respiração com sua
dimensão corporal parecem ter mais afinidade com a poesia de Celan no período em questão.
214
Paul Celan não se considera um hermético e o declara em cartas, no discurso “O Meridiano” e em poemas
como “Na verdade”. Sobre este, cf. posfácio da tradução dos poemas do espólio por João Barrento:
82
dialogia
215
de sua poesia.
216
Este aspecto instigou seus leitores, em especial Hans-Georg
Gadamer, que escrevera um livro sobre o ciclo Atemkristall, orientado pelo problema do
“ich” (“eu”) e do “du” (“tu”),
217
como mencionamos, em nota.
Também em “O Meridiano” o poeta fala em Atemwende, em articulação com a
poesia: “Poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração”.
218
Os neologismos que intitulam a sessão constam num poema do livro, a saber:
VARRIDA pelo WEGGEBEIZT vom
vento dardejante da tua Palavra Strahlenwind deiner Sprache
a variegada desconversa da vida das bunte Gerede des An-
vivida – as cem das hundert-
línguas do im- züngige Mein-
poema, o niilema. gedicht, das Genicht.
(...) (...)
Fundo Tief
na fenda do tempo in der Zeitenschrunde,
no beim
favo de gelo Wabeneis
espera, cristal de sopro, wartet, ein Atemkristall,
o teu testemunho dein unumstößliches
irrefutável.
219
Zeugnis.
220
BARRENTO. Memória e silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 127; e ensaio: BARRENTO. Paul
Celan: hermetismo, hermenêutica e tradução. In: ______. O arco da palavra: ensaios, p. 169.
215
Raquel Abi-Sâmara chama a atenção para esta aporia que interessou a Gadamer na apresentação de sua
tradução do livro do filósofo (GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 9).
216
A respeito do livro em questão, escreve o poeta a Gisèle Celan-Lestrange: “É realmente o mais poético que
escrevi até agora, também o mais completo. Em algumas viradas (Wendungen), devo confessar, senti
orgulho. – Finalmente dividi o manuscrito em ciclos – devem ser arejados –, que em dimensão decerto
diferente são, pois, ‘fechados em si mesmos’” (CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 718. Tradução
nossa). A seu filho Eric, diz: “este livro significa, em todos os sentidos, antes de todos em vista de sua
linguagem, uma virada (o que seus leitores certamente experimentarão)” (Ibidem).
217
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu?: comentário sobre o ciclo de poemas Hausto-
Cristal de Paul Celan. Tradução e apresentação de Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005. A
tradutora justifica sua tradução de Atem por “hausto”, em detrimento de outras do mesmo campo semântico
como hálito, fôlego, respiração, inspiração ou expiração pelo fato de que a palavra alemã consiste num
vocábulo mais poético, que remonta ao século VIII e, assim, a escolha do termo “hausto”, apesar de
inevitáveis perdas, estaria em maior consonância com a tessitura sonora, em detrimento da semântica, de
Atem.
218
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 54.
219
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 125 (Tradução de João Barrento). Embora questões concernentes à
tradução ultrapassem os objetivos e o alcance deste trabalho, alguns aspectos devem ser ao menos
mencionados ao se tratar da palavra poética – em especial a celaniana –, que exige certo grau de precisão.
O poema supracitado é de tradução espinhosa, para o qual os diferentes tradutores procuraram soluções
variadas. A mais problemática delas, a nosso ver, consiste em: “das hundert-/züngige Mein-/gedicht, das
Genicht.” De fato, hundertzüngige funciona aqui como adjetivo: Raquel Abi-Sâmara, bem como João
Barrento, optou por substantivá-lo, diferentemente de Flávio Kothe, cuja escolha foi “o cento-linguarudo”,
83
Trata-se, novamente, de um metapoema em que, assim como nos anteriores (por
exemplo, no questionamento acerca da suave e dolorosa rima alemã de “Nähe der Gräber”),
a linguagem é colocada sob suspeita, desconfiança, visto seu caráter de bunte Gerede
(“variegada desconversa” ou “hiper-colorido palavreado”, em Kothe) e a aleatoriedade das
“cem línguas” do poema falso. Difere nitidamente, entretanto, de outros poemas
metalingüísticos inaugurais, através do preciso e radical experimento com a palavra
(levando Mallarmé “às últimas conseqüências?”, indagação enigmática feita por Celan em
“O Meridiano”).
Sobre os versos acima, Gadamer diz serem um segundo ato do acontecimento
dramático evocado no poema “Wortaufschüttung”
221
(“Pilha de palavras”, por Barrento).
Como se o poema em questão se iniciasse após o evento que destruiu a falsa aparência da
linguagem. Assim, prossegue Gadamer, determina-se o significado do segundo verso da
primeira estrofe – um vento que irrompe de distantes regiões cósmicas que, com sua força,
solução que, além da estranheza, remete a outras associações. Os neologismos em torno do vocábulo
Gedicht (poema), contudo, são os mais sinuosos. Meingedicht o prefixo mein-, embora pareça fazer
remissão imediata ao pronome possessivo, pertence ao ramo do substantivo Meineid (falso juramento) e do
adjetivo meineidig (perjuro), sendo Eid, juramento e mein sinônimo de falsch, falso, em seu uso
relativamente arcaico (oriundo do Althochdeutsch). João Barrento opta, em detrimento da escolha
semântica do tradutor espanhol (a saber, “falso poema”), por manter uma só palavra, com o prefixo “im”,
impoema. Flávio Kothe, por sua vez, não renuncia à possível ambigüidade de mein e elege a opção pouco
concisa “pseudo-meu-poema”. Raquel Abi-Sâmara desconsidera a noção de “falso”, traduzindo por
“meupoema”, sem qualquer justificativa. Embora deva ser tomado com cautela (i.e., não como voz
oracular que paira sobre o texto), é interessante observar o que diz o poeta sobre este neologismo em carta
a Gideon Kraft: “meu de todo polemicamente intencionado ‘Genicht’ – ‘Meingedicht’ (no qual ‘mein’
significa falso, como em ‘Meineid’)” (CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 726). Mais relevante é,
contudo, observar a indagação sobre a falsidade do poema e da linguagem no interior do próprio poema em
questão, que sinaliza a leitura da nova palavra engendrada. O neologismo seguinte, Genicht, que, com a
modificação de apenas uma consoante em relação ao vocábulo Gedicht (poema), passa a conter o nicht,
partícula de negação, que remete ao nada. A decisão de Barrento “niilema” parece-nos uma solução válida,
embora já não remeta tão explicitamente ao vocábulo poema, como no alemão, e evoque, também,
associações diversas relativas ao Niilismo. O tradutor espanhol, por sua vez, elege nadema, com o mesmo
problema da distância do vocábulo poema. Kothe e Abi-Sâmara, escolhem, respectivamente, impoema e
nãopoema.
220
CELAN. KG, p. 180-181.
221
“Aufschüttung” remete, mais precisamente, a algo como um aterro. A tradução por “pilha” pode dar a
entender algo organizado, enfraquecendo, assim, a imagem.
84
corrói (wegbeizen – causticar, retirar com um corrosivo) a conversa vazia do que se
vivenciou com outros. A camada corroída, para Gadamer, são os pseudopoemas, a colorida
conversa vazia, que é colorida porque a linguagem destas criações é uma linguagem
qualquer, da simples necessidade de efeitos decorativos, de ornamento, assim, sem cor
própria nem língua própria. Finalmente, Gadamer complementa:
Essas pseudocriações da linguagem falam em cem línguas justamente porque são
de tal modo arbitrárias que, na realidade, não testemunham nada, mas dão, por
assim dizer, falsos testemunhos.
222
Este é o Meingedicht, diz, que presta um falso juramento e que é um Genicht, ou
seja, é insignificante, apesar de aparentar possuir uma significação.
223
Por último, este
testemunho irrefutável, que não se pode contestar, contrasta claramente, para Gadamer,
com os falsos testemunhos dos poemas “feitos”: “‘Tu’ és o que testemunha (‘teu’
testemunho) – o Tu íntimo e desconhecido que é para o Eu, que aqui é tanto o Eu do poeta
quanto o Eu do leitor, seu Tu, ‘todo, todo real’”.
224
Refere-se, aqui, ao poema precedente no mesmo ciclo, cujos versos dizem:
Onde uma palavra em chamas nos testemunhou? Wo flammt ein Wort, das für uns beide zeugte?
Tu – toda, toda real. Eu – todo imaginação. Du – ganz, ganz wirklich. Ich – ganz Wahn.
225
Ainda, em verso de um dos poemas supracitados (“Pilha de palavras”), o poeta faz
novo uso do verbo zeugen, usado, no caso, em sua acepção de “gerar”:
e gera und der herz-
crateras-como-corações förmige Krater
nuas para os começos nackt für die Anfänge zeugt
226
222
GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 118.
223
Ibidem. Tal leitura de Gadamer corrobora o problema de tradução debatido em nota precedente.
224
Ibidem, p. 120.
225
CELAN apud GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 114.
226
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 122-123.
85
Chama-nos a atenção, novamente, a incidência, entre estes e outros poemas, do
vocábulo, em seu amplo espectro semântico, articulado à palavra, à desconfiança em
relação à linguagem, os falsos poemas que nada testemunham, são meros ornamentos e, ao
mesmo tempo, o outro testemunho (a “palavra silenciada” que testemunha por último em
“Argumentum e Silentio”?) comparado a um sopro de cristal, o qual se aguarda e espera.
Na mesma obra encontra-se, ainda, um poema evocado durante o debate sobre
“Todesfuge”:
MAIS NENHUMA ARTE DE AREIA, nenhum livro de areia,
nenhum mestre.
Nada ganho dos dados. Quantos
mudos?
Dezessete.
5 Tua pergunta – tua resposta.
Teu canto, o que sabe ele?
fundonaneve
undonaeve,
U – a – e.
227
K
EINE SANDKUNST MEHR, kein Sandbuch,
keine Meister.
Nichts erwürfelt. Wieviel
Stumme?
Siebenzehn.
Deine Frage – deine Antwort.
Dein Gesang, was weiß er?
Tiefimschnee,
Iefimnee,
I – i – e.
228
Trata-se de poema conciso, breve jogo de leitura do futuro que remete a um
passado. Wiedemann comenta
229
o poema, evocando a referência de um vetusto método de
exploração do futuro. Pouco se sabe dos Sandbücher (“livros de areia”) alemães dos
séculos XIV e XV; contudo, procedimentos ulteriores conhecidos por Sandkunst der
sechzehn Meister (“Arte da areia do mestre dezesseis”) eram realizados através de marcas
na areia, ou certa quantidade de pontos nela, ou através da indagação aos dados, de
227
CELAN apud FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI;
SELIGMANN-SILVA (Org.). Catástrofe e representação, p. 48. (Tradução de Cláudia Valladão de
Mattos).
228
CELAN. KG, p. 183-184.
229
Barbara Wiedemann, em suas observações, menciona aspectos da chamada Sandwissenschaft [“Ciência da
areia”] a partir da introdução de Gerhard Eis para Wahrsagetexte des Spätmittelalters [“Textos-adivinhos
da baixa Idade Média”].
86
dezesseis perguntas fixas sobre o futuro, a um “juiz” de nome hebraico, e dezesseis
respostas correspondentes.
230
Para além de tal referência, porém, deve-se ter em vista que a primeira obra de
Celan intitulava-se A areia das urnas (SU), ele mesmo um possível “livro de areia”, sendo
a areia um motivo de destaque também ao longo da obra. Mencionemos, ademais, a
associação incoercível do “mestre”, aqui rejeitado, e o afamado e polêmico verso de
“Todesfuge”, da morte como mestre que veio da Alemanha. Tratar-se-ia, talvez, com o
argumento de Felman, de uma denúncia da usurpação do canto dos internos por parte do
mestre; da recusa, por parte de Celan, de ocupar o lugar do “mestre” e, assim, do voltar-se
contra os poemas iniciais, da evitação de uma “estética embebida de entusiasmo pelo
próprio verso”, não da música e seu cantar, mas de uma predeterminada musicalidade.
231
Assim, da desconfiança mais radical em relação à poetização e ao belo.
Harbusch, por sua vez, lê no poema uma negação à poesia de Mallarmé: “Ora, o
Mestre não é apenas o protagonista de ‘Un coup de dés’, que com seu lance de dados tenta
vencer o acaso de um naufrágio, mas também uma maneira pela qual o próprio Mallarmé
era chamado por seus admiradores, o que permite ler no poema de Celan uma referência à
maestria da técnica do poeta francês”.
232
Harbusch afirma, contudo, que o Mestre também
é, imediatamente, o oficial nazista, com seu domínio de conhecimentos e técnicas.
233
Deixamos em suspensão, contudo, a constatação de que seria necessariamente uma
negação à poesia de Mallarmé, mas uma instigante referência, numa constelação, analisada
por Harbusch, que inclui um poema do poeta francês traduzido por Celan, além da menção
230
WIEDEMANN. KG, p. 728-729.
231
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA.
Catástrofe e representação, p. 48.
232
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 40-41.
233
Ibidem, p. 41.
87
feita em “O Meridiano”. Ademais, é frequente a inclusão de Celan na esteira de poetas
modernos considerados herméticos que se inicia em Mallarmé, assunto ao qual
retornaremos na segunda parte.
Finalmente, em outra modulação extrema do silêncio, fundo na neve, condensado ao
mais ínfimo, à letra. Seguimos Lúcia Castello Branco com a “Palavra em ponto de p: em
ponto de letra, em ponto de ponto. ‘Ponto: que não tem dimensão alguma’, dizia Euclides.
Ponto: ‘furo feito com agulha enfiada em qualquer tecido’, diz o Aurélio. [...] Ou mais:
‘grau de consistência que se dá ao açúcar em calda’”.
234
Ainda, muito próximo ao
enxugamento até a letra do verso celaniano:
O descascamento da palavra até o seu ponto de letra, o descascamento da palavra
até o seu ponto da abreviatura ou mancha ou fim. O descascamento da palavra
até a sua consistência insuportável de silêncio: “O osso da ostra/ A noite da
ostra/ Eis um material de poesia” diz Manoel de Barros.
235
3.6 TIRA-ME, FEITO CASCA, DA MINHA PALAVRA
Movemo-nos, então, em um salto, a um território próximo e especial: dos poemas
do espólio, excluídos por Celan de seus livros publicados em vida, trazidos à luz na
Alemanha em 1997, Die Gedichte aus dem Nachlass, editado por Bertrand Badiou, Jean-
Claude Rambach e Barbara Wiedemann. Em sua maioria, trata-se de poemas escritos nos
últimos dez anos da vida de Celan. Consiste, segundo João Barrento, de um conjunto de
476 poemas rejeitados pelo poeta – quase tantos quantos os publicados, que somam 498
dos quais a edição alemã utiliza 218. O tradutor português menciona que foram rejeitados,
mas não excluídos; antes conservados em pastas com dizeres: “Não publicar!” ou
“Absolutamente impublicável!”. Para Barrento, demonstra as exigências crescentes do
234
CASTELLO BRANCO. Os absolutamente sós, p. 24.
235
Ibidem, p. 25.
88
poeta, porém as razões não consistem apenas na qualidade poética: também por se tratarem
de poemas mais íntimos, pessoais, polêmicos, mais provisórios e inacabados (o que acarreta
outros “perigos” para a leitura), nos quais a oficina do poeta estaria mais à mostra, que
permitem “entender melhor o processo criativo e humanizam-lhe o hermetismo”.
236
Tudo
se passa como se aquilo que se esboça na poesia édita e nos textos poetológicos ganhasse
novas proporções. Os temas centrais e figuras da poesia celaniana também atravessam estes
poemas, como assinala Barrento: ser judeu, a dor de ser com os outros, a tortura da
desconversa, a morte redentora, as vítimas, a mãe ou Mandelstam, porém os motivos
aparecem, aqui, “nus e à beira da navalha”,
237
em carne viva.
Deste conjunto, instiga-nos um poema em particular. Trata-se de “Wolfsbohne”,
“Grão-de-lobo”, cuja primeira versão, sob o título de “Menorah”,
238
data de 1959, nas
palavras de Celan um “exercício contrapontístico” ao “Todesfuge”. Em carta a Rudolf
Hirsch, Celan agradece pela não publicação do poema no Almanach, pois, verdadeiramente,
não seria um poema e deveria permanecer privado.
239
O poema fora também extraído de
NR e não incluído em nenhum dos livros posteriores. Em artigo dedicado à leitura do
poema, Ibarlucía evoca Michael Hamburger, proeminente tradutor de Celan na língua
inglesa, que argumenta que o poema seria impublicável por ser o que mais
descarnadamente, entre os poemas de maturidade, expôs a ferida da morte dos pais nos
campos de concentração. Diz, ademais, que enquanto Celan acreditou que a ferida poderia
ser curada (inclusive depois da morte de seu filho recém-nascido, François, acrescenta o
autor) – o poema ainda era publicável; algumas linhas adicionadas tardiamente em 1965,
236
BARRENTO. Memória e silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 128-129.
237
Ibidem, p. 130. (Aspas indicam que Barrento cita um poema de Celan)
238
IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan, Adorno y la poesía después de Auschwitz. Trans/Form/Ação, p.
135.
239
CELAN apud WIEDEMANN. KG, p. 922.
89
que contradizem o “estou perdido, estamos perdidos” foram as últimas e vãs tentativas de
não tratá-lo como um poema, mas sim orientá-lo em direção à cura dessa ferida.
240
Deixemos, então, que fale:
GRÃO-DE-LOBO
...Oh,
Flores da Alemanha, oh, meu coração torna-se
Um cristal infalível que
Põe à prova a luz quando a Alemanha...
(Hölderlin, “Vom Abgrund nähmlich...”)
... como nas casas dos Judeus (para lembrança
da Jerusalém destruída) sempre alguma coisa
tem que ficar inacabada...
(Jean Paul, “Das Kampaner Thal”)
Põe o ferrolho à porta: há
rosas na casa.
sete rosas na casa.
5
o candelabro de sete braços na casa.
O nosso
filho
sabe isso e dorme.
10 (Lá longe, em Michailowka, na
Ucrânia, onde
eles me mataram pai e mãe: que
floria aí, que
floresce aí? Que
15 flor, mãe
te fazia doer aí
com o seu nome,
mãe, a ti,
que dizias grão-de-lobo, e não
20 lupino?
Ontem
veio um deles e
matou-te
outra vez no
25 meu poema.
Mãe,
mãe, que
mão apertei eu
quando com as tuas
30 palavras fui para
a Alemanha?
WOLFSBOHNE
... O
Ihr Blüten von Deutschland, o mein Herz wird
Untrügbarer Kristall an dem
Das Licht sich prüfet, wenn Deutschland
(Hölderlin, “Vom Abgrund nämlich... ”)
... wie an der Häusern der Juden (zum Andenken
des ruinirten Jerusalem’s), immer etwas unvollendet
gelassen werden muß...
(Jean Paul, “Das Kampaner Thal”)
Leg den Riegel vor: Es
sind Rosen im Haus.
Es sind
sieben Rosen im Haus.
Es ist
der Siebenleuchter im Haus.
Unser
Kind
weiß es und schläft.
(Weit, in Michailowka, in
der Ukaine, wo
sie mir Vater und Mutter erschlugen: was
blühte dort, was
blüht dort? Welche
Blume, Mutter,
tat dir dort weh
mit ihrem Namen?
Mutter, dir
die du Wolfsbohne sagtest, nicht:
Lupine.
Gestern
kam einer von ihnen und
tötete dich
zum andern Mal in
meinem Gedicht.
Mutter.
Mutter, wessen
Hand hab ich gedrückt,
da ich mit deinen
Worten ging nach
Deutschland?
240
HAMBURGER apud IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan, Adorno y la poesía después de Auschwitz.
Trans/Form/Ação, p. 135.
241
CELAN. A morte é uma flor, p. 28-35. (Tradução de João Barrento)
90
Em Aussig, dizias tu, sempre, em
Aussig junto
ao Elba,
35 durante
a fuga.
Mãe, aí moravam
assassinos.
Mãe, eu
40 escrevi cartas.
Mãe, não veio resposta.
Mãe, veio uma resposta.
Mãe, eu
escrevi cartas a ––
45 Mãe, eles escrevem poemas.
Mãe, eles não os escreveriam
se não fosse o poema que
eu escrevi, por
ti, pelo
50 amor
do teu
Deus.
Bendito, dizias tu, seja
o Eterno, e
55 louvado, três
vezes
Amém.
Mãe, eles ficam calados.
Mãe, eles consentem que
60 a ignomínia me difame.
Mãe, ninguém
cala a boca aos assassinos.
Mãe, eles escrevem poemas.
Oh,
65 mãe, quanto
chão mais estranho dá o teu fruto!
Dá esse fruto e alimenta
os que matam!
Mãe, estou
70 perdido.
Mãe, estamos
perdidos.
Mãe, o meu filho, que
Se parece contigo.)
75 Põe o ferrolho à porta: há
rosas na casa.
sete rosas na casa.
In Aussig, sagtest du immer, in
Aussig an
der Elbe,
auf
der Flucht.
Mutter, es wohnten dort
Mörder.
Mutter, ich habe
Briefe geschrieben.
Mutter, es kam keine Antwort.
Mutter, es kam eine Antwort.
Mutter, ich habe
Briefe geschrieben an ––
Mutter, sie schreiben Gedichte.
Mutter,sie schreiben sie nicht,
wär das Gedicht nicht, das
ich geschrieben hab, um
deinetwillen, um
deines
Gottes
willen.
Gelobt, sprachst du, sei
der Ewige und
gepriesen, drei-
mal
Amen.
Mutter,sie schweigen.
Mutter, sie dulden es, daß
die Niedertracht mich verleumdet.
Mutter, keiner
fällt den Mördern ins Wort.
Mutter, sie schreiben Gedichte.
O
Mutter, wieviel
fremdester Acker trägt deine Frucht!
Trägt sie und nährt
die da töten!
Mutter, ich
bin verloren.
Mutter, wir
sind verloren.
Mutter, mein Kind, das
dir ähnlich sieht.)
Leg den Riegel vor: Es
sind Rosen im Haus.
Es sind
sieben Rosen im Haus.
Es ist
242
CELAN. KG, p. 455-457.
91
80 o candelabro de sete braços na casa.
O nosso
filho
sabe isso e dorme.
241
der Siebenleuchter im Haus.
Unser
Kind
weiß es und schläft.
242
Em “Grão-de-lobo”, os temas mais caros a Celan encenam um duplo jogo de
referências – as duas designações alemãs de tremoceiro: Lupine e Wolfsbohne. Barrento
menciona, em suas notas à tradução, a opção por manter o motivo do lobo, utilizado na
poesia para referir-se também aos “assassinos”. Wolfsschanze (“reduto do lobo”), presente
em algumas variantes do poema em contraponto a Wolfsbohne, designa o nome do quartel-
general de Hitler na Polônia durante a Segunda Guerra. As “sete rosas” são encontradas
(repetidas) também em outro poema,
243
além de dar nome a um ciclo de VS: “Sieben Rosen
später” (“Sete rosas mais tarde”). Menorah, supracitado, em hebraico, refere-se a
candelabro. Elementos de oração judaica também se fazem presentes nesses versos.
244
As
menções aos lugares feitas em “Grão-de-lobo” são pouco habituais na poesia de Celan:
Aussig – localidade tcheca onde a mãe vivera como refugiada judia antes da Guerra – e
Michailowka – campo de concentração em Gaissin, Ucrânia –, onde morreram os pais de
Celan.
245
As sete rosas, a morte do pai e da mãe, o filho, as flores, o grão, o poema, as
palavras, a Alemanha, a fuga, os assassinos, o escrever, o calar, as cartas, Deus, a
difamação e as localidades nomeadas: motivos centrais, “meridianos”, em sua maioria,
porém muitas vezes quase irreconhecíveis.
“Eu”, “tu, mãe”, em contraponto a “eles”, articulam-se à escrita e expõem a
ambivalência em relação à palavra: “um deles matou-te no meu poema”, “com as tuas
palavras fui para a Alemanha”, “escrevia cartas”, “eles escrevem poemas”, “eles não
243
Cf. “Kristall”. In: CELAN. KG, p. 44.
244
“Bendito, dizias tu, seja/ o Eterno, e/ louvado, três/ vezes/ Amém.” Trata-se, de acordo com Wiedemann,
de um Berachah, oração judaica de louvor e agradecimento (WIEDEMANN. KG, p. 923).
245
BARRENTO. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 122.
92
escreveriam se não fosse o poema que eu escrevi”, “eles ficam calados” e ainda “mãe,
quanto chão do mais estranho dá teu fruto”.
“Wolfsbohne”, de maneira excepcionalmente explícita, traz à tona o procedimento
metonímico.
246
Consiste em uma palavra usada pela mãe e que, à maneira da madeleine
proustiana, evoca inevitavelmente a lembrança da mãe. “Lupine” é um sinônimo
comumente usado, de origem latina (lupus, no latim), que contém a palavra “lobo”, mas
que nunca terá o mesmo efeito, ou até mesmo o efeito contrário – uma palavra comum,
parte do Gerede compatilhado indistintivamente por Mörder e Mutter (pelo carrasco e pela
vítima). Nesta partilha dolorosa da língua está a dor de Celan e a necessidade de silenciar-
se. “Wolfsbohne” é uma palavra-objeto, que muito mais do que seu significado evoca,
metonimicamente, seu usuário, é parte dele, signo inequívoco que, por ser um signo
singular, perde sua qualidade comunicativa e se torna “hermético”.
247
“Wolfsbohne” é um
signo da mãe – absolutamente singular, contudo, o que nos leva a indagar se a
singularidade permite nomeá-lo por signo. Pode-se pensar, talvez, num signo que não faz
parte de uma linguagem – como um “idioleto” –, hermético em sua definição. Talvez o
silêncio seja uma forma de unir o singular-individual ao coletivo (que designam os esforços
da poesia, de maneira geral). O silêncio é, também, uma forma de partilhar a dor, esta
também radicalmente singular e difícil de ser integrada na coletividade da linguagem.
248
O
silêncio é, também, o da mãe – o silêncio (que não silencia) “cita”, portanto, a mãe (ou, de
maneira específica, o silêncio cometido), assim como a palavra singular (como
246
Devemos tais observações a orientação feita por Georg Otte aos 21/03/2008. De pouco nos serve,
menciona, investigar os detalhes desta referência, como o uso cultural da planta, o medicinal, por exemplo.
247
Ver considerações sobre a tipologia do hermetismo na parte II desta dissertação.
248
Ver, na parte III, considerações sobre a “dor” e sobre a relação dor-linguagem.
93
“Wolfsbohne”). O segundo tipo de citação parece ser, entretanto, demasiadamente explícito
para Celan, levando-o a proibir sua publicação.
Talvez uma das únicas maneiras de se aproximar (que difere de entender) da palavra
singular é detectar suas repetições. Em primeiro lugar porque deixam de ser totalmente
singulares; em segundo, justamente pelo caráter metonímico – é um denominador “comum”
(i.e., a mesma parte de dois “todos” que “denomina” dois “todos” diferentes, forçando a sua
aproximação), desde que não se suponha uma identidade de sentido, como discutimos a
respeito do método das passagens paralelas. A repetição seria uma espécie de comunicação
minimalista entre uma ocorrência e outra. Cabe mencionar que a ocorrências do silêncio
também participam desta reflexão. Assim, a segunda, a terceira ocorrência, e assim por
diante, passam a citar a(s) ocorrência(s) anterior(es) e, assim, os “todos” anteriores,
cotejando-os e permitindo que se forme uma constelação em torno da palavra em questão,
como o “Wolf” [“lobo”] em “Wolfsbohne”.
Como retirar-se “feito casca”
249
desta palavra, que é a da mãe, porém a mesma que
alimenta aos que matam? Trata-se do fio temático concentrado no extenso parêntesis do
poema, esta questão que mobiliza nossa leitura. Torna-se, por um lado, instigante o fato de
que Celan tenha dedicado a obra, em sua integridade, à língua alemã, alimentando, assim, a
língua dos que matam. Por outro lado, parece-nos, contudo, não haver outra opção para esta
poesia: “(‘Meine Muttersprache ist die Sprache der Mörder meiner Mutter’/ minha língua
materna é a língua dos assassinos de minha mãe) – ele tinha, por assim dizer, que constituir
uma língua própria”,
250
diz Carone Netto. À nossa língua – desta forma o poeta dá início à
249
Compõe, também, verso de outro poema do espólio: “CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. Tu,/ tira a
casca, anda,/ tira-me, feito casca, da minha palavra.// É tarde já, mas nós/ queremos estar nus e à beira/ da
navalha” (CELAN. A morte é uma flor, p. 37).
250
CARONE NETTO. A poética do silêncio, p. 20.
94
“Alocução em Bremen” – dedicara também seu trabalho acadêmico e suas traduções (que,
em alguns momentos, foram seu contato efetivo com a poesia). Poderia esta língua, por
assim dizer, ser, de fato, restituída, fazer a travessia e não gastar uma palavra com o que
aconteceu?
251
“Mãe, eles escrevem poemas”: qual a verdade terrível revelada nestes versos?
252
Ibarlucía, ao fazer esta indagação, lança-se em questões tortuosas sobre o problema da
poesia após Auschwitz, a saber: se após Auschwitz não se pode escrever poesia, como
sustenta o dictum de Adorno, seria por haver poesia em Auschwitz? Que significa dizer que
em Auschwitz o poeta é, ao mesmo tempo, carrasco?
253
Tais perguntas, que recebemos com
sobressalto, devem ser explicitadas, pois já orientaram conclusões sobre a poesia em
questão. Ibarlucía cita, a respeito do problema da metáfora em Celan, a comunicação de
Martine Broda, de 1992, na qual a autora polemiza a afirmação de Ferenc e Agnès Heller
de que fazer poesia sobre Auschwitz seria “fazer metáfora sobre uma metáfora”.
254
É
preciso ressaltar o perigo desta leitura – e Celan sabia do problema da recepção de sua
poesia; motivo pelo qual se negara a ler e sugerira deixar de lado “Todesfuge”.
Em “Grão-de-lobo”, todavia, o assunto paradoxal parece ser colocado, como discute
Ibarlucía: poder-se-ia supor que a poesia após Auschwitz é uma continuação da poesia
originada pelo carrasco? O poeta, prossegue, pede uma resposta à mãe morta: a ela, que
251
Ver “Alocução em Bremen”. In: CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 33.
252
IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan, Adorno y la poesía después de Auschwitz. Trans/Form/Ação, p.
141.
253
Entre as indagações de Ricardo Ibarlucía, a questão colocada é detalhada com elementos de “Todesfuge”.
Neste, “feito fumo subireis aos céus”, gritos do carrasco, não seriam, também, “linguagem poética”?, é
uma de suas questões. Ainda, a única rima do mesmo poema, os olhos azuis do carrasco (blau) e o tiro em
cheio da bala de chumbo (genau) – Celan estaria insinuando que a poesia em Auschwitz teria um grau de
precisão equivalente ao registro burocrático dos prisioneiros no arquivo do campo, uma exatidão
comparável ao número que sobre a pele lhes marcava a fogo (IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan,
Adorno y la poesía después de Auschwitz. Trans/Form/Ação, p. 141).
254
Ibidem.
95
preferira o alemão ao romeno, que o ensinou, na Bucovina, a falar esta língua através dos
contos, ela, que com suas palavras o levou para a Alemanha, e, sem saber, alimentava os
assassinos:
Víctimas y verdugos se nutren de lo mismo: la lengua alemana. Celan – en su
condición de poeta, sobreviviente y judío – es fruto de su Muttersprache, cuyo
suelo “extraño” abona a la vez, con sus versos: “Madre, ellos escriben poemas./
Madre, ellos no los escribirían,/ si no fuera por el poema que yo escribí por/ tu
voluntad, por/ voluntad de tu/ Dios.” Los judíos – parece querer decir Celan – son
quienes alimentan en tierra extranjera, en la “más extranjera de las tierras”
(fremdester Acker), la “simiente de lobo”: ellos – la madre, el poeta y su hijo –
fecundan con sus palabras a quienes luego serán sus verdugos.
255
Por certo, Celan quisera mantê-lo em âmbito privado – por saber dos riscos da
recepção paradoxal que este poema (embora ele não o considerasse como tal) poderia ter.
Revela uma consciência terrível daquilo que está em jogo em sua poesia, de tudo aquilo que
ressoa em cada um de seus poemas. Fraturar a gramática e constituir sua língua, a atividade
do poeta por excelência, não seria talvez e simultaneamente, o contrário da catástrofe, esta,
por sua vez, avessa à representação? Quais seriam, contudo, os efeitos desta experiência no
interior da poesia?
Este fora um poema do espólio e, por assim dizer, do “último livro” de Celan: na
ambigüidade do gesto do poeta de conservar os poemas, diz João Barrento, quis e não quis
que fosse o último. Há últimos livros por destino e por destinação, segue, aludindo a Hans
Blumenberg em seu ensaio póstumo “Últimos livros”: os primeiros estão condenados a sê-
lo por força das circunstâncias externas (como “O livro” de Mallarmé, sempre latência); os
segundos, por seus autores (como grande parte da obra de Kafka e os poemas do espólio de
Celan).
256
Neste, nos quais o silêncio foi quebrado (ou profanado? indaga Barrento), fala
um duplo silêncio: o dos poemas cuja publicação arrancou à sombra do silêncio, e o da
255
IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan, Adorno y la poesía después de Auschwitz. Trans/Form/Ação, p.
142.
256
BARRENTO. Memória e silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 131.
96
linguagem que se retira (se rarefaz) para deixar agigantar-se, sem o lastro diluidor do
discursivo, a memória dos mortos e a História de seus assassinos, na nudez e na dureza da
linguagem nua, no fio da navalha”.
257
Deixemos o último livro para passar brevemente ao último poema. O debate aqui
evocado, sempre em nosso horizonte, se estenderá, real e virtualmente, até o fim deste
trabalho. E, como na epígrafe de “Grão-de-lobo” de Jean Paul, sempre alguma coisa tem
que ficar inacabada.
3.7 TU LÊS, COLETAS
VINHATEIROS escavam REBLEUTE graben
os relógios das horas sombrias die dunkelstündige Uhr um,
cada vez mais fundo Tiefe und Tiefe,
tu lês, du liest,
5 o Invisível es fordert
desafia der Unsichtbare den Wind
o vento, in die Schranken,
tu lês, du liest,
os Abertos trazem die Offenen tragen
10 a pedra atrás do olho, den Stein hinterm Aug,
ela te reconhecerá, der erkennt dich,
no dia do Sabbath.
258
am Sabbath.
259
Este é o último poema escrito por Paul Celan, em sua residência na Avenue Émile
Zola, junto à ponte Mirabeau, em Paris, aos 13 de abril de 1970, aproximadamente uma
semana antes de sua morte, portanto. Neste poema, lembra Felstiner, Celan retornou às
palavras que sempre havia guardado consigo: graben (cavar), dunkel (escuro), Stunde
257
Ibidem, p. 132.
258
CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 185-187. (Tradução de Y. Centeno)
259
CELAN. KG, p. 368.
97
(hora), tief (profundo), offen (aberto), Stein (pedra), Aug(e) (olho), du (tu), lesen (ler).
260
Sem atingir clareza última, exceto pela palavra final, que “afeta o tradutor”: Sabbath.
261
Dirige-se ao tu, simultaneamente poeta e leitor. Du liest, diz Felstiner, contraposto à
dureza do trabalho dos vinhateiros; du liest, sucedendo versos de força primordial –
“resposta escritural em um texto vazio”; a pedra muda, o inevitável, a visão endurecida.
262
E, uma vez mais, o dirigir-se a um tu. Para João Barrento, trata-se de uma poética que serve
a uma “causa própria” – no plano da experiência e no da poesia – que nem vive nem
sobrevive sem uma atenção ao outro; sendo radicalmente hermética, propõe uma poética da
revelação e do encontro.
263
Espera-se, finalmente, ser reconhecido (“te reconhecerá”) por esta pedra salvadora
no dia do repouso do Senhor, dia de renovação. A última palavra de seu primeiro poema
publicado Sulamith, e a última palavra do último poema escrito: Sabbath.
264
Se o poeta
visava, neste último vocábulo escrito, a redenção, o reencontro desejado, não se saberá.
Nem mesmo se com o poema atingiria (acompanhando Felstiner, a partir da carta escrita na
véspera na qual cita Kafka)
265
“elevar o mundo ao Puro, ao Verdadeiro, ao Imutável”.
266
260
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 385.
261
Y. K. Centeno acompanha e desenvolve as idéias de John Felstiner em: CENTENO. Paul Celan: o sentido
e o tempo. In: CELAN. Sete rosas mais tarde, p. XXII. Felstiner acrescenta, a respeito da palavra Sabbath,
que possui, neste poema, um retoque: a letra “h”. As outras incidências do vocábulo ao longo da obra
foram apenas em compostos como Sabbatglanz (brilho de sabat), Sabbatkerzen (velas do sabat), escrito:
Sabbat. A letra “h” reflete a pronúncia hebraica tradicional e no alemão moderno parece antiquada, diz,
embora Lutero tenha escrito com “h”, nas bíblias do século XX ou em outras obras usou-se a grafia Sabbat
(FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 388).
262
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 387.
263
BARRENTO. Memória e silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 128.
264
Ver: FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 23.
265
Celan ministrava (neste momento em que se voltava para Bucovina, Israel e Alemanha) um seminário
sobre Kafka na École Normale Supérieure. Escontrava-se às voltas com o interesse de Kafka pela lenda do
golem, por sua equiparação segundo a qual “escrever é uma doença”. Ainda, com a narrativa na qual um
homem sofre um acidente mortal, mas continua vivo, pois sua “barca da morte” se extravia, talvez ao dar
uma volta “por sua maravilhosa pátria”. Retornava, também, ao conto de Kafka “Um médico rural”, no
qual um médico sai em pleno inverno para atender a um chamado de um doente e percebe que não poderá
mais voltar à casa. Enganado!, diz, uma vez atendido o alarme falso do sino da noite, nunca poderá
reparar-se. Celan escreve a uma amiga de Israel que talvez tivesse respondido ao falso chamado, que havia
98
Finalmente, “tu lês”, diz Centeno, como no Livro mudo: lege, lege, relege... “Da meditação
cuidadosa, paciente, sairá a Pedra, marca do caminho. Ou sairá a Palavra redentora do dia.
Ou então o silêncio”.
267
aceitado o destino equivocado (retornaremos a esta menção na parte III deste trabalho). Finalmente, em
carta escrita aos 12 de abril de 1970, se diz satisfeito com o seminário de Kafka e cita: “mas felicidade
apenas se elevar o mundo ao Puro, ao Verdadeiro, ao Imutável” (FELSTINER. Paul Celan: poeta,
superviviente, judío, p. 385).
266
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 385 e 388.
267
CENTENO. Paul Celan: o sentido e o tempo. In: CELAN. Sete rosas mais tarde, p. XXIII.
99
PARTE II
100
4
N
IEMAND ZEUGT FÜR DEN ZEUGEN NINGUÉM TESTEMUNHA PELA
TESTEMUNHA
4.1 “AS AUSCHWITZ E A CONVERSA INCONCLUSA ENTRE CELAN E ADORNO
Devemos retornar, então, à questão por trás do presente estudo. Supomos ser
perceptível ao leitor destes esforços aquilo que beira a impossibilidade de sobrevivência da
voz crítica em sua imersão neste texto poético. Se, por vezes, nos perdemos naquilo que se
refere ao objeto aqui abordado, isso apenas demonstra o que este tem de arredio ao saber; a
capacidade disso (que escapa à malha simbólica) de produzir seu próprio desconhecimento.
Lembramos, uma e outra vez, que este trabalho é, ele, também, testemunho do encontro
com esta poesia, com tudo o que isso abrange.
Orientemos-nos, portanto, pela questão, que se subdivide. Vamos nos ater, por ora,
à primeira delas, que se refere ao problema da representação ou da apresentação do evento
traumático, de sua indizibilidade. É preciso retomar, de maneira cuidadosa, a aporia da
poesia após Auschwitz – o dictum adorniano, portanto. Outros pormenores, ou mesmo
aspectos relevantes do legado de Theodor W. Adorno não se encontram, destarte, no escopo
deste texto, mas tão-somente (e, ainda, de maneira breve) a intricada e estranha relação
entre Celan e Adorno no que tange à poesia pós Shoah. Faço, ainda, uma ressalva,
parafraseando Jeanne Marie Gagnebin:
268
não sou leitora sistemática de Adorno; se me
arrisquei a trazer aqui alguns fragmentos de leitura é por que me perseguem as relações
entre estética, memória e sofrimento; por reconhecer a importância do autor na reflexão
268
GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: ______. Lembrar escrever esquecer, p. 60.
101
inaugural do problema da poesia e crítica após Auschwitz e, de maneira muito especial,
pelos pontos de incidência, encontro e desencontro com o poeta em questão.
Já nos anos 1950 a obra de Adorno não é desconhecida para Paul Celan.
269
Em
1955, Adorno inclui na reunião de textos Prismen, o ensaio escrito em 1949, publicado em
Soziologische Forschung in unserer Zeit, em 1951: “Kulturkritik und Gesellschaft”.
270
No
início do controvertido ensaio, evoca-se a antinomia flagrante na crítica cultural naquele
período: “O crítico da cultura não está satisfeito com a cultura, mas deve unicamente a ela
esse seu mal-estar”.
271
O crítico cultural é da mesma essência daquilo que julga ter aos seus
pés e mal consegue evitar a insinuação, considera Adorno, de que possui a cultura que diz
faltar – a idéia de cultura permanece isolada, inquestionada e dogmática. Tal crítico
profissional, prossegue, converte-se num mero “informante” (ou ainda, quando rebaixado,
um propagandista ou censor) que apenas orienta sobre o mercado dos produtos espirituais e
sob os quais recaem julgamentos que possuem uma ilusão de competência.
272
Efetuados os percursos, à maneira ensaística, relativos ao problema da liberdade de
expressão atrelado à atividade crítica, Adorno evoca o caro conceito de crítica. Lembremos
269
Joachim Seng observa o interesse de Celan pelos ensaios de Adorno, sua proximidade de Benjamin e
Scholem, bem como seus escritos sobre George, Heine, Kafka e Schönberg, além da crítica da sociedade
alemã do pós-guerra. Tal interesse é curiosamente comparável com o que tinha por Heidegger (SENG.
Frankfurter Rundschau. Disponível em: <http://www.hagalil.com/archiv/2000/11/Celan.htm>).
270
Utilizamos a tradução disponível em língua portuguesa: ADORNO. Crítica cultural e sociedade. In: _____.
Prismas.
271
ADORNO. Crítica cultural e sociedade. In: _____. Prismas, p. 7.
272
Debate-se, no ensaio, um aspecto que está no alicerce da crítica cultural: a “liberdade de opinião”, com
suas origens na liberdade espiritual da sociedade burguesa, e a dialética de tal conceito; se, por um lado,
este se liberou da tutela teológico-feudal graças à socialização das relações humanas, por outro, caiu sob o
controle anônimo das relações vigentes, que, por sua vez, são tão impiedosas ao espírito autônomo quanto
antes os ordenamentos heterônimos que se impunham. A aparência de liberdade, diz, torna a reflexão sobre
a não-liberdade incomparavelmente mais difícil. Tampouco devemos conduzir-nos em invectivas contra a
liberdade de expressão que, para Adorno, compreendem também seus riscos: “invocar a sério a censura
contra os escribas seria exorcizar o demônio apelando para o Belzebu” (Ibidem, p. 10). No entanto, a tolice
e a mentira florescidas sob a proteção da liberdade de imprensa não são algo acidental, mas, para Adorno,
estigmas da falsa emancipação. O filósofo convoca, então, um conceito central e especialmente aporético
no período, dizendo que “em nenhum outro lugar isto se torna tão evidente quanto lá onde o espírito
arranca os seus próprios grilhões: na crítica” (Idem).
102
que esta opõe-se, originalmente, tanto ao dogmatismo quanto ao ceticismo. Adorno afirma
que os fascistas alemães proscreveram a palavra “Kritik” e a substituíram pelo aguado
conceito de “Kunstbetrachtung” [“contemplação da arte”], apenas seguindo, desta forma, o
forte interesse do Estado autoritário que “ainda temia na irreverência do colaborador de
folhetins o pathos do Marquês de Posa”.
273
Os fascistas, para Adorno, além de se voltarem
ressentidos contra aqueles que podiam expressar o negativo que eles tiveram que ocultar,
sucumbiram à mesma ingenuidade: da crença na cultura enquanto tal, sentindo-se os
médicos da cultura que a livrariam do aguilhão da crítica. Porém, prossegue, deixaram de
admitir o entrelaçamento entre crítica e cultura, para bem ou para mal.
274
Trata-se da primeira menção, no ensaio, do problema entre a atividade crítica e o
fascismo alemão. É no fim do mesmo ensaio que Adorno traz à baila o célebre dictum, em
sua integridade:
Quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificado será também o
espírito, e tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da
reificação. Mesmo a mais extremada consciência do perigo corre o risco de
degenerar em conversa fiada. A crítica cultural encontra-se diante do último
estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após
Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que
hoje se tornou impossível escrever poemas.
275
Condizente com o estilo do texto e o modus operandi ensaísta, a passagem não
recebe elucidação pormenorizada e faz-se suscetível a recepções diversas. Se o que parece
ser impossível é a poesia mesma, ou tal como era concebida anteriormente, a poiesis, a
criação e, portanto, qualquer intento de narrativa ou de articulação tangenciaria a barbárie,
ou, destacadamente, a atividade crítica,
276
uma vez que o evento produz seu
273
ADORNO. Crítica cultural e sociedade. In: _____. Prismas.
274
Ibidem, p. 11.
275
Ibidem, p. 26. Grifo nosso.
276
Sobre o tema da crítica após Auschwitz – em especial no âmbito da literatura –, valor, humanismo e
desconstrucionismo, ver: HIRSCH. The Deconstruction of Literature: Criticism after Auschwitz.
103
desconhecimento ou “corrói” a forma de conhecer os motivos da impossibilidade e, desta
forma, seus esforços mesmos deparar-se-iam com o paradoxo. Ao longo do ensaio,
contudo, nada parece nos autorizar a afirmar que Adorno consideraria a poesia após
Auschwitz uma continuação do mesmo, como vimos com Ibarlucía e, ainda, como foi
recebido por parte da imprensa alemã, como veremos na continuidade. No entanto, a
afirmação acima suscitou ampla e polêmica recepção, aproximável ao problema de leitura e
recepção de “Todesfuge”. Ambos terminaram, curiosamente, por serem colocados em
oposição. Assim, ora a poesia de Celan comprovaria a ineficácia do dictum, ora este seria
usado como forma de desqualificar e criticar os poemas, como efetuado, posteriormente,
por parte da imprensa alemã.
Aqueles que se ocuparam da filologia desta relação destacam que o veredicto
adorniano não poderia se referir ao poema “Todesfuge”, embora alguns tenham se
esforçado em fazê-lo, o que irritava profundamente Celan. É, de fato, pouco provável que
Adorno conhecera o poema, uma vez que sua difusão ocorreu, de maneira efetiva, a partir
de 1952, com a publicação de Papoula e memória (MuG).
277
Em julho de 1959, juntamente com sua esposa Gisèle e seu filho Eric, Celan fizera
uma viagem a Sils-Maria, Engadin, nos Alpes Suíços, e, por intermediação de Szondi, se
reuniria com Adorno. No entanto, Celan retornou antes a Paris e, “não por coincidência”,
comentou, não chegou a vê-lo.
278
Pouco tempo depois, este desencontro motivou a escrita
da única narrativa em prosa feita por Celan: Gespräch im Gebirg [Diálogo na montanha].
Trata-se de uma composição breve, porém loquaz, diz Felstiner, bem humorada e fatídica,
sobre a linguagem, o eu, a percepção, Deus e a natureza, cujas referências entrecruzadas
277
Ver: FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 204; IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan,
Adorno y la poesía después de Auschwitz. Trans/Form/Ação, p. 138.
278
CELAN apud FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 203.
104
são diversas: alguns o consideram um palimpsesto de Lenz, de Georg Bücher; também
parece estar presente a fonte nietzschiana de Assim falava Zaratustra, concebido
igualmente em Sils-Maria; Der Ausflug ins Gebirge, de Kafka, que chama Deus de
“Ninguém” e lamenta uma linguagem feita de “puro Isso”; Gespräch in den Bergen de
Martin Buber, com o diálogo “eu-tu” que interessava a Celan; e, ainda, a presença de
Mandelstam.
279
No texto, o judeu Pequeno e o judeu Grande conversam enquanto
caminham pela montanha. Assim tem início:
Um dia à tardinha, o Sol, e não apenas ele, tinha-se posto, ia andando, saiu da
casinha e ia andando o judeu, judeu e filho de judeu, e com ele ia o seu nome, o
indizível, ia e vinha, arrastando-se, fazia-se ouvir, vinha de bengala, vinha sobre
a pedra, estás a ouvir-me?, tu estás a ouvir-me, sou eu, eu, eu e aquele que tu
ouves, julgas ouvir, eu e o outro – (...)
280
O nome indizível (do judeu para os nazistas e o inefável nome divino, lembra
Felstiner
281
), o eu, o tu e a insistência no ouvir já evidenciam, de início, as dificuldades no
entorno da fala. E prossegue:
Ele vinha, vinha, alto, vinha ao encontro do outro, o grande ao encontro do
pequeno, o judeu Pequeno fez calar a sua bengala diante da bengala do judeu
Grande. E assim calou também a pedra, e fez-se silêncio na montanha por onde
eles iam, este e aquele.
(...) Eles estão aí, os dois irmãos, no meio de uma estrada na montanha, e a
bengala em silêncio, e a pedra em silêncio, e o silêncio não é silêncio, nenhuma
palavra se calou ali, nenhuma frase, é apenas uma pausa, um espaço vazio no
meio da aldeia, uma clareira, e tu vês todas as sílabas em círculo à sua volta;
língua e boca são estes dois, como antes foram, e dos olhos pende-lhes o véu, e
vós, pobres de vós, vós não estais nem de pé nem em flor, vós não existis, e
Julho não é Julho.
Que faladores! Têm qualquer coisa para dizer um ao outro, também agora, com a
língua a bater atabalhoadamente contra os dentes e os lábios a não quererem
arredondar-se! Bom, que falem então...
282
279
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 204-205.
280
CELAN. Diálogo na montanha. In: ______. Arte poética: o meridiano e outros textos. (Tradução de João
Barrento), p. 35.
281
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 209.
282
CELAN. Diálogo na montanha. In: ______. Arte poética: o meridiano e outros textos. (Tradução de João
Barrento), p. 36-37. São dignas de atenção as incidências diversas, neste fragmento, de palavras como
“calar”, “silêncio” e, ainda, “pedra”, este “objeto mudo” sempre presente na poesia de Celan.
105
Assim se dá o diálogo (sempre inacabado) entre o judeu Pequeno e o judeu Grande:
com lábios que se arredondam com dificuldade, com língua atabalhoada, com as sílabas em
círculo, com um silêncio ruidoso. Felstiner chama a atenção pela maneira como, no
Diálogo, o alemão é “idichizado”, bem como a forma como se refere ao judeu: Jud. A
etiqueta infame, utilizada em séculos de propaganda anti-semita (tal como o vocábulo
escrito desta forma designa) torna-se um signo de orgulho, efetuando um salto semiótico.
283
Na dedicatória de um exemplar enviado ao amigo vienense Reinhard Federmann,
Celan demonstra alguma decepção relativa ao filósofo, fazendo menção a Sils-Maria –
“onde fui encontrar-me com o professor Adorno, quem acreditei ser judeu...” –, o diz,
referindo-se à omissão do sobrenome do pai judeu, Theodor Wiesengrund (“Wiesengrund”
aparece sempre como inicial, “W.”), e utilização do sobrenome da mãe católica: Adorno.
284
Deparamo-nos, surpreendentemente, com um motivo referente à palavra “Wiesengrund”,
também, num poema do espólio “Mutter, Mutter”.
285
Na dedicatória, prossegue Celan,
fazendo menção à Nietzsche, por quem nutria alguma simpatia: “em memória de Sils-Maria
e Friedrich Nietzsche, quem – como sabes – queria fusilar a todos os anti-semitas”.
286
Quando finalmente chegaram a se conhecer, Adorno disse a Celan que deveria ter
permanecido mais tempo em Sils-Maria, pois, deste modo, conheceria “o verdadeiro judeu
283
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío. p. 210.
284
Ibidem, p. 204.
285
Destacamos, para o propósito do debate, as menções ao mestre ou maestria em meisterlich, seguido por
deutsch que, além da remissão ao poema “Todesfuge”, são de uso preciso e escasso na obra. Além disso, o
jogo efetuado com o sobrenome de Adorno: abgründig, que designa enigmático, sendo Abgrund, abismo, e
wiesengründig. “Mutter, Mutter./ Der Luft entrissne,/ der Erde entrissne.// Herunter-,/Herauf-,/gezerrte.//
Vor die Messer/ schreiben sie dich,/ kulturflott, linksnibelungisch, mit/ dem Filz-/ schreiber, auf
Teakholztischen, anti-/ restaurativ, proto-/ kolarisch, prä-/ zise, in der neu und gerecht/ zu verteilenden Un-
/ menschlichkeit Namen,/ meisterlich, deutsch,/ mannschmannsch, nicht/ ab-, nein wiesen-/ gründig,/
schreiben sie, die/ Aber-Maligen, dich/ vor/ die/ Messer.// Etwas tun,/ etwas/ tun/ in der Höhe, der/ Tiefe./
Etwas, auf Erden” (CELAN. KG, p. 482). Cf. também a crítica feita por Lukács a Adorno – “Grand Hotel
Abgrund”.
286
CELAN apud FELSTINER. Paul Celan. Poeta, superviviente, judío, p. 204. Também em: CELAN apud
SENG. Frankfurter Rundschau. Disponível em: <http://www.hagalil.com/archiv/2000/11/Celan.htm>.
Tradução nossa.
106
Grande: Gershom Sholem”, com seu resgate da tradição mística judaica que começava a
atrair Celan.
287
Joachim Seng menciona também a resposta interessada de Adorno e este
breve período de correspondência sobre a prosa celaniana como sendo o momento de maior
entendimento entre ambos.
288
A mencionada exploração feita pela impressa alemã do dictum e do poema,
contudo, também vinha à tona. Em 1965, o ensaio adorniano é reeditado, e a revista Merkur
relaciona-o, diretamente, ao poema “Todesfuge”, agregando, ainda, um comentário do
filósofo no qual o poema e todos os seus motivos, tudo isso seria “composto em refinada
partitura. Não demonstrava, já, excessivo prazer na arte, no desespero que graças a ele
voltava a ser bela?”.
289
Em seguida, consta, no semanário Die Zeit, a reação de um leitor,
que deplorava “a falta de compromisso ético com certas concepções da arte: converter
Auschwitz em solo fértil para a arte, harmonizar em versos perfeitos o grito de morte dos
sacrificados... essa beleza
290
que Paul Celan extrai da degeneração nazista me parece
questionável”.
291
Celan responde com sarcasmo: “Mesmo quando, como anunciou um
jornal em sua seção de cartas ao leitor, o que apresentei sub specie calami constitui um
particular agradecimento aos assassinos de Auschwitz, agora na revista Merkur... que segue
estritamente o pensamento de Adorno, sabe-se por fim onde há que procurar os
bárbaros”.
292
287
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 204.
288
SENG. Frankfurter Rundschau. Disonível em: <http://www.hagalil.com/archiv/2000/11/Celan.htm>.
289
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 312. Tradução nossa.
290
Tal como observamos no debate sobre o poema “Todesfuge”, é problemática a identificação entre estética
e beleza, pois representar/apresentar algo não significa embelezá-lo. Não escrever poesia após Auschwitz
também pode ser uma forma de colaborar com seu esquecimento.
291
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 312. Tradução nossa.
292
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 312. Felstiner menciona que o poeta fora também
defendido por um escritor de prestígio. Simultaneamente, desaprovou a inclusão de “Todesfuge” numa
antologia (que também trazia Ernst Jünger). Tratava-se, ademais, de um período de grande vulnerabilidade,
no qual Celan ingressava em uma clínica psiquiátrica nos arredores de Paris.
107
É preciso destacar, ainda, três momentos reluzentes dessa sucessão de
(des)encontros: as Noten zur Literatur III [Notas de literatura], a afirmação feita por
Adorno na terceira parte da Dialética negativa, confrontado, também, com a poesia de
Celan, bem como seu projeto nunca concretizado de escrita de um comentário ao ciclo SG,
cujos apontamentos se limitaram a algumas menções em Teoria Estética.
Nas Notas de Literatura, diz Adorno:
A afirmação de que continuar a escrever lírica após Auschwitz seja bárbaro, essa
frase não quero suavizá-la; nela se diz negativamente o impulso que anima a
poesia engajada. (...) De jeito nenhum aquilo que incomoda na Alemanha porque
não permite que se recalque o que se quer recalcar a todo preço.
293
Devemos nos deter sobre a reação de Adorno à apropriação questionável de sua
afirmação, na ocasião, refratária à sua relativização. Gagnebin analisa cautelosamente o
problema. Detlev Claussen, menciona, observa que o dictum, na atualidade do “bom senso”
neoliberal, é usado para denegrir a radicalidade crítica de intelectuais tachados de
pessimistas e intolerantes.
294
Se Adorno retorna a esta polêmica da maneira como o faz,
isso se dá por uma necessidade de se pensar a cultura após Auschwitz de maneira
293
ADORNO apud GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: ______. Lembrar escrever esquecer, p. 78. (Tradução
de Jeanne Marie Gagnebin). Na tradução das Notas disponível em português, consta: “Eu não procuraria
desculpar a frase: escrever-se lírica depois de Auschwitz é um ato bárbaro; aí está negativamente
confessado o impulso que anima a poesia engajada. A pergunta de alguém em Morts sans Sépultures: há
sentido viver quando existem homens que batem até que os ossos se quebram no corpo, é ao mesmo tempo
a pergunta se a arte em suma ainda pode existir, se uma regressão do intelecto no conceito de literatura
engajada não é sujeitada pela regressão da sociedade mesma. Mas também continua válida a aproximação
contrária de Enzensberger: a poesia precisa resistir a esse veredicto; ser portanto de tal modo que não tome
a si pela simples existência depois de Auschwitz, o cinismo. Sua própria situação já é paradoxal; e não
apenas o modo de comportamento frente a ela. O excesso de sofrimento real não permite o esquecimento; a
palavra teológica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se secularizar”. (ADORNO. Notas de literatura,
p. 64). Por motivos de clareza, mantivemos a tradução do fragmento feita por Gagnebin. No entanto, a
última frase citada no corpo do texto gera alguma estranheza. Na tradução de Galeão e Silva consta: “Há
uma dor que se associa à composição de Schönberg. E não é absolutamente aquilo que aborrece o alemão,
porque não permite reprimir o que quer afastar a qualquer preço. Mas ao ser feita imagem metafórica,
apesar de toda a crueza e incompatibilidade, é como se a vergonha frente às vítimas fosse ferida.” (Ibidem,
p. 64-65). Conferir no original, a primeira e última frase da citação: “Den Satz, nach Auschwitz noch Lyrik
zu schreiben, sei barbarisch, möchte ich nicht mildern (...). Keineswegs das, woran man in Deutschland
sich ärgert, weil es nicht zu verdrängen erlaubt, was man um jeden Preis verdrängen möchte.” (ADORNO.
Noten zur Literatur, p. 422-423)
294
CLAUSSEN apud GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: _____. Lembrar escrever esquecer, p. 72.
108
radicalmente crítica. Pois, como frisa Gagnebin, nas duas retomadas evidentes da
problemática, Adorno
não trata de amenizá-la, pedindo desculpas aos poetas, mas, ao contrário, radicaliza
e amplia o seu alcance. Não é somente a beleza lírica que se transforma em injúria
à memória dos mortos da Shoah, mas a própria cultura, na sua pretensão de formar
uma esfera superior que exprima a nobreza humana, revela-se um engodo, um
compromisso covarde, um “documento da barbárie”, como disse Walter
Benjamin.
295
No ensaio, Gagnebin menciona uma passagem da Dialética negativa, talvez muito
mais suscetível a sobre-interpretações, na qual Adorno afirma que toda a cultura após
Auschwitz, inclusive a crítica que urge dela, seria lixo. Não (apenas) aquilo que apodrece e
fede, diz, mas como o nada que sobra, o que é jogado fora.
Nas Notas, assim como nas evocações a serem mencionadas a seguir, Adorno
parece opor-se não à poesia, mas ao imobilismo, ao recalque e à apropriação pela máquina
do entretenimento (a “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer) que conduz
irremediavelmente ao esquecimento.
Na Dialética negativa, de Adorno, publicada em Frankfurt em 1966, é anunciado
que a expressão mesma que intitula o livro é um atentado à tradição, que já a dialética
platônica desde então é instrumento lógico a serviço de um resultado sempre positivo. A
terceira parte do livro traz modelos de dialética negativa, não como exemplares, mas como
intenção concreta daquilo que foi tratado de maneira geral. Tal parte, intitulada
“Meditações sobre a metafísica”, tem, por sua vez, seu primeiro subitem denominado
justamente de “Após Auschwitz”.
Logo em seu primeiro parágrafo, sucedendo à exposição sobre a insustentabilidade
de uma posição tradicional, afirma: “depois de Auschwitz, a sensibilidade não pode menos
que ver em toda afirmação da positividade da existência uma charlatanearia, uma injustiça
295
GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: _____. Lembrar escrever esquecer, p. 72.
109
para com as vítimas, e tem que rebelar-se contra a extração de um sentido, por abstrato que
seja, daquele destino trágico”.
296
Ao longo de sua argumentação, Adorno expressa que a
capacidade da metafísica permanecera paralisada, e isso se deve ao fato de que o ocorrido
desfez, ao pensamento metafísico especulativo, a base de sua compatibilidade com a
experiência.
297
O filósofo menciona o aspecto especialmente temível da morte, quando se
trata do assassinato administrado de milhões de pessoas, o indivíduo dos campos despojado
do último que lhe resta, que não apenas morre como indivíduo, mas como exemplar de uma
espécie. Não se trata, pode-se dizer, de uma catástrofe qualquer, mas daquela planejada por
seres humanos. A partir do desenvolvimento de tais idéias, chega-se à possível
confrontação com a poesia celaniana, embora esta não seja diretamente citada:
Quando no campo de concentração os sádicos anunciavam a suas vítimas
“amanhã serpentearás como fumaça dessa chaminé ao céu” eram expoentes da
indiferença pela vida individual à que tende a história. Com efeito, o indivíduo é
já em sua liberdade formal tão disponível e substituível como o foi sob os chutes
de seus liquidadores.
298
É inevitável não se fazer ouvir a voz do comandante, seus ordenamentos e
provocações em “Todesfuge”, com a imagem mesma do serpentear como fumaça no céu,
onde não se jaz apertado. Em seguida, escreve:
Mas a partir do momento em que o indivíduo vive em um mundo cuja lei é o
proveito individual universal e, portanto, não possui mais que este eu convertido
em indiferente, a realização da tendência desde antigamente familiar é ao mesmo
tempo o mais espantoso. Nada pode retirar-lhe este espanto, como tampouco o
pôde do arame eletrificado que rodeava o campo de concentração. A
perpetuação do sofrimento tem tanto direito a expressar-se como o torturado a
gritar; daí talvez tenha sido falso afirmar que depois de Auschwitz já não se
pode escrever poemas.
299
296
ADORNO. Dialéctica negativa (Tradução de José María Ripalda), p. 361. Tradução nossa.
297
Precede esta idéia a menção ao terremoto de Lisboa, que bastou para curar Voltaire da teodicéia
leibniziana, mas tal catástrofe é insignificante comparada à outra, social, cujo inferno real à base de
maldade humana ultrapassa nossa imaginação. ADORNO. Dialéctica negativa (Tradução de José María
Ripalda), p. 361-362. Tradução nossa.
298
Ibidem, p. 362.
299
Ibidem, p. 362-363. Grifo nosso.
110
Para além das minúcias filológicas da relação Celan-Adorno, i.e., os momentos
precisos nos quais ambos passam a conhecer as respectivas obras, tomam conhecimento um
do outro que, quiçá, mais interessa aos biógrafos que aos nossos propósitos, é sonoro o eco
do encontro com a poesia de Celan e a recepção controversa do dictum. A reação pregressa
da imprensa alemã o demonstra, na medida em que acusa a poética de Celan de uma
barbárie ela mesma, extirpa do poeta qualquer possibilidade de articulação do trauma,
funcionando quase como uma espécie de censura em tempos de pretensa liberdade de
expressão. Adorno, todavia, não afirma irresponsavelmente o “direito ao grito” (“A
perpetuação do sofrimento tem tanto direito a expressar-se como o torturado a gritar”
300
) –
sabe da impossibilidade que permeia tal “grito” ao falar da necessidade de rebelar-se contra
a extração de sentido do destino trágico, rebelar-se contra o tratamento banal. Ao que,
talvez, possa-se aproximar da necessidade do testemunho silencioso da poesia, e não tanto
da extração de sentido do testemunho “falocêntrico”, total, que almeja a completude.
Márcio Seligmann-Silva, ao comentar a mesma passagem de Adorno, diz que o “grito” da
poesia de Celan não seria de modo algum como o grito de Filoctetes, de Sófocles, já
comparado ao de Laocoonte. Antes, seria “uma voz mais ‘contida’ ou, melhor dizendo,
mais ‘quebrada’, fragmentada, vale dizer: sufocada”.
301
Na continuidade do texto de Adorno, após a reserva de que talvez tenha sido falso
afirmar que já não se pode escrever poemas, diz que o que, em contrapartida, não é falso (e
neste momento, talvez, radicalize ainda mais o dictum, estendendo-o para além da lírica e
da crítica), é a questão menos cultural de se se pode continuar vivendo após Auschwitz, i.e.,
se isso estará totalmente permitido ao que escapou casualmente quando tinha de ter sido
300
Ibidem, p. 363.
301
SELIGMANN-SILVA. Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito. In: _____. O local
da diferença, p. 53.
111
assassinado. Sua sobrevivência, segue Adorno, requereria já a frieza, o princípio
fundamental da sociedade burguesa sem o qual Auschwitz não haveria sido possível. “Que
culpa tão radical a do que se salvou!”, destaca o filósofo, e conclui dizendo que o
pagamento dele (do que se salvou) são os sonhos dos quais padece, nos quais é alguém que
já não vive, que morreu numa câmara de gás em 1944 e “cuja existência posterior inteira é
mera imaginação, emanação do desejo delirante de um assassinado há vinte anos”.
302
Após Auschwitz deve ser resguardado o direito de intento de articulação, assim
como o do silêncio, não o racionalizado (silêncio que não libera do círculo ao “racionalizar
a própria incapacidade subjetiva com a situação da verdade objetiva”
303
), mas o silêncio
eloqüente que não é mudez, em torno do indizível. Justamente pelo fato de o trauma ser
arredio ao saber, também a atividade crítica
304
encontra-se perante o paradoxo e, ainda, a
própria vida após Auschwitz.
Nos “Paralipomenos” da Teoria Estética de Adorno, o debate se dá no terreno da
estética no que concerne à compreensão e à valoração, do concreto da experiência versus e
em contato com o medium do conceito universal. Partindo deste plano e passando a alguns
modelos, Adorno evoca problemas como a relação entre arte e sociedade, as vãs tentativas
de apreender teoricamente esta relação.
305
Aborda-se de passagem, então, a questão da
poesia hermética:
A opacidade da obra de arte em relação à realidade empírica tornou-se programa
explícito da poesia hermética. Perante cada uma de suas obras de qualidade –
pensa-se em Celan –, deveria ser permitida a questão de até que ponto elas são
efectivamente herméticas; segundo uma observação de Peter Szondi, o seu
302
ADORNO. Dialéctica negativa (Tradução de José María Ripalda). p. 363. Tradução nossa.
303
Ibidem, p. 367.
304
Adorno afirma na sessão “Morrer hoje”, também na terceira parte do livro: “entre a crítica da cultura e a
barbárie reina um certo acordo” (Ibidem, p. 368).
305
Adorno menciona aquilo que no momento se nomeava engagement, que parece também não desenvolver a
questão; ademais a oposição à irremediavelmente obsoleta l’art pour l’art, que “não cede aos fins que lhe
são exteriores, mas desiste da ilusão de um puro reino da beleza, que depressa se revela como kitsch
(ADORNO. Teoria estética, p. 352).
112
hermetismo não se confunde com a sua inteligibilidade. Em vez disso, poderia
pressupor-se uma relação entre a poesia hermética e os momentos sociais.
306
Adorno faz esta menção a Celan, porém, agora, no âmbito de uma discussão que vai
além da aporia da lírica pós Auschwitz. O problema do hermetismo impõe outra corrente de
antinomias no que se refere à poética de Celan. Adorno sinaliza também a problematização
do hermetismo no poeta. Posteriormente, afirma, ainda na tônica das questões do
hermetismo, que a arte só é íntegra quando não entra no jogo da comunicação.
307
Diz
também que, depois de Mallarmé, a poesia hermética, então com mais de oitenta anos,
modificou-se enquanto reflexo no que se refere à tendência social. “O lugar comum da torre
de marfim não atinge as obras sem janelas”,
308
afirma o filósofo.
Consta, então, nova referência a Celan:
No representante mais importante da poesia hermética da lírica alemã
contemporânea, Paul Celan, o conteúdo experimental do hermetismo inverteu-se.
Este lirismo está impregnado da vergonha da arte perante o sofrimento, que se
subtrai tanto à experiência quanto à sublimação. Os poemas de Celan querem
exprimir o horror através do silêncio. O seu próprio conteúdo de verdade, torna-se
negativo. Imitam uma linguagem aquém da linguagem impotente dos homens, e
até de toda a linguagem orgânica, a linguagem do que está morto na pedra e nas
estrelas. São eliminados os últimos rudimentos do orgânico; aparece o que
Benjamin indicava em Baudelaire ao dizer que sua lírica não tinha aura.
309
A materialização da lírica celaniana, esta poesia das coisas mortas (acrescenta-se a
“botânica”
310
celaniana, objetos também mudos, como já mencionado), inverte o conteúdo
do hermetismo e está, curiosamente, aquém da linguagem impotente. Ibarlucía, lendo a
306
ADORNO. Teoria estética, p. 353.
307
Sobre o “jogo da comunicação”, ver o dictum de Walter Benjamin no primeiro parágrafo de “A tarefa do
tradutor”: “Em parte alguma, o fato de se levar em consideração o receptor de uma obra de arte ou de uma
forma artística revela-se fecundo para o seu conhecimento. Não apenas o fato de se estabelecer uma
relação com determinado público ou seus representantes constitui um desvio; o próprio conceito de
receptor ‘ideal’ é nefasto em quaisquer indagações de caráter estético, pois devem pressupor unicamente a
existência e a natureza do homem em geral. (...) Pois nenhum poema dirige-se ao leitor, nenhum quadro, ao
espectador, nenhuma sinfonia, aos ouvintes” (BENJAMIN. A tarefa-renúncia do tradutor. In:
HEIDERMANN (Org.). Clássicos da teoria da tradução, p. 189).
308
ADORNO. Teoria estética, p. 353.
309
Ibidem, p. 354.
310
Pode-se indagar, ademais, em que medida a “botânica” celaniana não se relaciona, contrariamente, com a
linguagem como instância da vida.
113
mesma passagem, destaca que devemos reter a observação de que os poemas de Celan não
dizem o silêncio, mas nomeiam um horror indizível através do silêncio.
311
Ainda, que os
poemas de Celan não discorrem sobre a morte, não a cantam impudicamente como o
homem que brinca com serpentes, não é a morte viril do “mestre que veio da Alemanha”,
mas procede dela e a atravessa. Ibarlucía cita versos: “uma palavra a imagem do silêncio” e
“uma palavra – bem sabes:/ um cadáver”.
312
Adorno prossegue, em suas evocações finais de Celan na seção:
A infinita discreção (sic), com que procede o radicalismo de Celan, aumenta sua
força. A linguagem do inanimado torna-se a última consolação da morte privada de
todo o sentido. A transição para o anorgânico deve não só observar-se nos motivos
temáticos, mas reconstruir nas obras fechadas a via que conduz do horror ao
silêncio. Numa semelhança remota com o modo como Kafka procedeu com a
pintura expressionista, Celan transpõe para os processos lingüísticos a
desobjectivação da paisagem, que se aproxima do anorgânico.
313
Pode-se dizer, enfim, que o que Adorno nomeia como linguagem do inanimado, a
pedra, a estrela, o cadáver, bem como o grito silencioso de uma flor, o cântaro, os talos, as
ervas escritas, estas são, talvez, a aproximação mais radical e efetiva de um testemunho
elíptico da morte sem sentido.
“Após Auschwitz” – elegemos, nesta seção, o uso (repetitivo) dessa expressão-
problema, devido a tudo o que abrange. Gagnebin, ao dar este título ao seu ensaio, o
justifica (paulatinamente), a iniciar por um colóquio interdisciplinar realizado na França a
respeito da Shoah, suas repercussões e não repercussões nas ciências humanas. Este se
justificava pela atualidade política das formas de violência coletiva. Assim, não se
pretendia uma celebração piedosa das vítimas da Shoah, mas sua rememoração em seu
311
IBARLUCÍA. Simiente de lobo: Celan, Adorno y la poesía después de Auschwitz. Trans/Form/Ação, p.
140.
312
Ibidem, p. 140-141.
313
ADORNO. Teoria estética, p. 354.
114
sentido benjaminiano, de memória ativa que transforma o presente,
314
mediante a
representação/representificação do passado (tal afirmação faz-se ainda mais necessária ao
se tratar da poética de Celan que, como diz Marko Pajevic, não se volta para o passado – é
uma poesia do presente e do porvir
315
). Se, nesta ocasião, retomamos este debate,
brevemente, em alguns de seus meandros, fazêmo-lo por apostarmos na necessidade
reiterada de afirmar com Adorno que as mais nobres características humanas, razão e
linguagem, logos, não podem, após Auschwitz, permanecer intacto em sua autonomia.
316
Optamos, ainda, por trazer à baila fragmentos da obra de Adorno, já que inaugura a
problematização, mas sobretudo, pelo peculiar diálogo com a lírica de Paul Celan. Se se
podem constatar alguns desencontros biográficos entre o poeta e o filósofo, é possível ver,
na trajetória, um ponto de contato especial. O que tenha levado Adorno a retomar a
polêmica do dictum e Celan a retirar o poema “Todesfuge” de algumas antologias e não
mais lê-lo em público, seja pelo fato de que ambos, em seus respectivos âmbitos, reagissem
fortemente contra o esquecimento do trauma através da apropriação do mesmo como mero
produto cultural a ser consumido. Ou seja, fazer de Auschwitz algo “representável, isto é,
com sentido, assimilável, digerível”.
317
Estes são, enfim, os fragmentos obtidos desta relação, que abarca a poesia, a crítica
e a impossibilidade. Diálogo inconcluso e, ele mesmo, silenciosamente eloqüente.
314
GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: ______. Lembrar escrever esquecer, p. 59. Gagnebin faz menção,
ainda, a outros autores de destaque que permitiriam, em estudos ulteriores, nos aprofundarmos nas
reflexões adornianas, tais como Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe, Primo Levi, Enzo Traverso e
Albrecht Wellmer, não evocados para não ultrapassar as dimensões deste trabalho. Acrescentaria, é claro,
precedendo e em primeiro plano devido à teorização sobre memória e História, Walter Benjamin.
315
PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 108.
316
Gagnebin faz esta menção a Adorno como algo que se depura de seu texto, bem como de Primo Levi ou
Robert Antelme. Noutras palavras, formula: “a violação da dignidade humana, em seu aspecto primevo de
pertencente ao vivo, tem por efeito a destituição soberba da soberania da razão” (GAGNEBIN. Após
Auschwitz. In: ______. Lembrar escrever esquecer, p. 77).
317
Alguns filmes sobre o Holocausto, com diversas excessões, se prestam a isso, como lembra Gagnebin:
fazer de Auschwitz mercadoria que faz sucesso, bem cultural que o torna mais leve e mais integrável à
cultura que o gerou. (GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: ______. Lembrar escrever esquecer, p. 79).
115
4.2 POÉTICA TESTEMUNHAL, SILÊNCIO E METONÍMIAS DA MEMÓRIA
tu folheias, agora terra fina,
os meus remotos
testemunhos.
Paul Celan
318
a paciência in-
sonora do meu desespero.
Paul Celan
319
Estão esboçadas as diretrizes que nos auxiliam a passar ao território da discussão
sobre o testemunho, quais sejam: a catástrofe (a violação da dignidade humana) – evento
traumático refratário à simbolização, indizível, a impossibilidade de articulação
(representação/apresentação) através da linguagem (o questionamento de até que ponto
seria desejável fazê-lo devido ao risco de torná-lo facilmente assimilável) e uma poesia que,
como vimos, desmantela o paradoxo, cujo testemunho, designadamente poético, é remoto,
folheável terra fina. Gagnebin constata que a discussão sobre uma estética do
irrepresentável, do indizível ou mesmo do sublime, está muito mais presente nas pesquisas
atuais sobre a literatura dos campos de concentração. No entanto, afirma, o sublime não
mais designa o inefável que ultrapassa a compreensão humana,
320
mas as cinzas, os cabelos
sem cabeça, os dentes arrancados, sangue e excrementos; sublime de lama e cuspe, por
baixo, sem enlevo nem gozo.
321
Podemos afirmar, talvez, que se trata de um indizível não
apenas além, mas aquém da linguagem.
318
CELAN. A morte é uma flor: poemas do Espólio, p. 107.
319
Ibidem, p. 109.
320
Gagnebin refere-se ao sublime na terceira crítica kantiana e possivelmente a outras teorizações sobre o
sublime e o belo. Mencionaremos, posteriormente, de maneira breve, as formulações de Márcio
Seligmann-Silva sobre o sublime e o abjeto.
321
GAGNEBIN. Após Auschwitz. In: ______. Lembrar escrever esquecer, p. 79.
116
4.2.1 TESTEMUNHO
É preciso efetuar uma circunscrição, mesmo que de difícil recorte, em torno do que
nos referimos ao falar em testemunho.
Propomos a incursão através de breves considerações a respeito do testemunho, com
destaque para a acepção que vem sendo adotada nos últimos anos no Brasil, as quais
acenam, por assim dizer, não um novo (e provisório) gênero para substituir as obsoletas
“literaturas nacionais”,
322
mas uma nova abordagem ou um novo paradigma para a crítica
literária. Isto se deve ao fato de a noção de teor testemunhal permitir pensar não apenas a
Shoah (locus originário do conceito) e o Testimonio das ditaduras na América Latina (que
são ambos, de fato, os espaços inaugurais e tradicionais da literatura de testemunho), mas a
literatura de maneira geral, da Antigüidade ao século XX, em sua relação com a experiência
testemunhada.
Márcio Seligmann-Silva – a quem devemos a proposição cuidadosa e aguçada deste
debate na atualidade – debruça-se sobre o assunto em seu texto “O testemunho: entre a
ficção e o ‘real’”.
323
O autor dá início à abordagem do problema do testemunho e sua
complexa relação com a verdade (questão, como dito, subjacente às origens das teorizações
literárias), realizando uma reflexão sobre a ironia. Esta, afirma, seria uma potente máquina
de desleitura por deixar o leitor sem saber como se comportar – se separa o verdadeiro do
falso, a seriedade da brincadeira. O chão pelo qual se trilha está sempre por ruir. A ironia,
diz, implode a leitura na medida em que obscurece e desarticula as funções referenciais e
comunicativas do discurso, abrindo o campo da auto-referência da linguagem. Não é por
322
Quando a este aspecto, é interessante observar como a poesia de Celan escapa a tal intuito de classificação
ou comensurabilidade, já que a região da Bucovina pertencera ao Império Austro-húngaro, Romênia e
Ucrânia, e o poeta, que residira em Bucareste, Viena e Paris, dedicou toda a sua obra à língua alemã.
323
SELIGMANN-SILVA. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: _______. (Org.). História, Memória,
literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 375.
117
acaso, ressalta Seligmann-Silva, que a ironia foi praticada e teorizada por aqueles que
instituíram o conceito moderno de literatura: Friedrich Schlegel e Novalis. Pois a literatura,
prossegue, trabalha também no campo minado entre a referência e a auto-referência.
Seligmann-Silva evoca a dupla origem do termo testemunho em latim: testis e
supertes. A primeira designaria o depoimento de um terceiro num processo, e a segunda o
sobrevivente, que passou por uma provação, tal como o Martyros, que, em grego, significa
testemunha.
324
Lembremos, ademais, da digressão sobre o vocábulo alemão zeugen, este
utilizado por Celan em “Argumentum e Silentio”, como em outros poemas – “gerar” e
“testemunhar”, simultaneamente. Felstiner lembra que o termo zeugen é essencial nos
poemas de 1963
325
e discorre, do mesmo modo, sobre a sua dupla acepção de “gerar”,
“procriar”, partilhando sua origem com os termos ingleses bear witness – “ser” ou “dar”
prova, no qual o elemento bear
326
tem, também, o significado de “parir” – e testify
derivado igualmente de testis: “testemunho”, mas também “testículos”.
327
A denotação de
“gerar” do zeugen remete, também, ao fato de que, por menor ou mais restrito que seja o
testemunho, ele é capaz de criar uma totalidade. Ao mesmo tempo, a testemunha costuma
ser parcial em três sentidos: por relatar – via representação mimética – apenas uma parte
dos acontecimentos; por ser parte – metonímica – deles (aspecto que temos procurado
ressaltar); e por dar (parcialmente) uma versão subjetiva deles.
O testemunho como um terceiro, acompanhando as reflexões de Seligmann-Silva, já
sinaliza o problema localizado no cerne da literatura: encontra-se numa zona de indefinição
324
SELIGMANN-SILVA. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: _______. (Org.). História, Memória,
literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 377-378.
325
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 302.
326
Cf., no alemão, o termo “gerbären”, que também significa “parir”, “dar a luz”.
327
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 309. No Oxford Latin Dictionary consta, de fato,
o vocábulo testis: de “ter-stis”, “tri-stis”, raiz de “TRES”, como terceiro, testemunho, observador, que
evidencia. Ainda , com uso especial em Horácio, testis para designar “testículos” (testis+cvlvs, diminutivo
de testis) (GLARE. In: Oxford Latin Dictionary, p. 1931-1932).
118
pela dúvida, de verdade dúbia e imprecisa, risco da mentira (trata-se da antinomia mesma
da ficção, do seu estatuto de mentira que diz uma verdade).
328
Porém indica também que
não apenas aquele que experimentou está (mais) apto a relatar o vivido. Por sua vez, o
testemunho sobrevivente, “mártir”, parece ter que abarcar o “real” da experiência a
posteriori. Neste caso, diz Seligmann-Silva, do que “viu a morte de perto”, uma
modalidade de recepção é despertada em seus leitores, que mobiliza a empatia e desarma a
incredulidade. O autor traz à baila alguns casos, dos quais destacamos dois: um escritor que
não passou pela experiência traumática e a descreve, denominando-se autobiográfico, é o
caso do suíço Binjamin Wilkomirski (ou Bruno Doessekker). Seligmann-Silva chama a
atenção para a força advinda de tal obra, justamente pelo fato de ser fictícia – os autênticos
sobreviventes seriam incapazes de narrar com tal precisão de detalhes. Menciona, ainda, o
caso de Art Spiegelman, que escreveu uma carta ao The New York Times, para reclamar o
fato de que sua obra Maus – que relata a história de seu pai, um sobrevivente – apareceu na
lista na coluna de “ficção”, afirmando que aceita o valor literário, mas que não implica em
teor fictício: “‘fiction’ indicates that a work isn’t factual”,
329
disse. Seligmann-Silva
argumenta que a ficção não pode ser equacionada como mentira e lembra, com
Baumgarten, que no campo da estética só existe a “verdade estética”. Encontramo-nos,
deste modo, num terreno nebuloso que permeia a teorização da literatura desde as suas
328
A idéia de que a verdade se mostra através de uma ficção também é tematizada no texto freudiano sobre
“Dichtung und Wahrheit” de Goethe, em suas considerações sobre o chiste, bem como em diversos ensaios,
ao longo de toda a sua obra. Antes, porém, o problema da verdade e da ficção, a partir da importante noção de
“realidade psíquica”, já é assunto das reflexões freudianas, como se observa desde as cartas a Fliess: “o
conhecimento seguro de que não há indicações de realidade no inconsciente, de modo que não se pode
distinguir entre a verdade e a ficção que foram catexizadas pelo afeto” (MASSON (Org.). A correspondência
completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p. 265-266. Viena, 21 set. 1897). Digna de
menção, também, é a consideração lacaniana de que a verdade tem estrutura de ficção, presente ao longo de
sua obra (nos Seminários 10, 13, 16, 18, 19 e nos Escritos). Tal asserção, no contexto no qual nos
encontramos ganha, contudo, novas nuanças, como veremos no relato de Robert Antelme. Dada a
inverossimilhança do ocorrido, do traumático, apenas a imaginação seria capaz de acessá-lo.
329
SPIEGELMAN apud SELIGMANN-SILVA. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: _______. (Org.).
História, Memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 385.
119
origens (desde a República de Platão, para mencioná-lo diretamente), mas que, ao se tratar
do testemunho, torna-se mais evidente.
Luiz Costa Lima, em Sociedade e discurso ficcional, trata alguns meandros do assunto.
Afirma: a ficcionalidade concede, ao discurso que rege, uma liberdade selvagem e ameaçadora
de todo regime zeloso de sua verdade. Por isso, diz, onde ela aponte, é de se esperar que os
defensores da verdade institucionalizada estendam sua mão de ferro.
330
Perpassa o ensaio de
Valéry de 1927, “Stendhal”, discorrendo com cautela a questão da documentalidade face à
literatura. Diz, assim, que falar em caráter documental da literatura não quer dizer que um texto,
ao se tornar ou pretender-se literário, automaticamente se despoje da qualidade de documento.
Pode-se falar em uma inevitabilidade documental de tudo o que o olhar humano atinge.
Inevitabilidade, prossegue, por certo proveniente da relação que o homem mantém com os
signos. Nenhum signo é capaz de se esgotar em si mesmo. Finalmente, todo produto humano
significa além do propósito em que fora concebido.
331
Se, por um lado, Luiz Costa Lima demonstra que a literatura detém algo de
documental, por outro, evidencia o que ela tem de não documental:
Quando, pois, afirmamos que a formação discursiva própria à literatura tem um
caráter não documental, uma radicalidade não documental, não tornamos nosso
enunciado congruente com a noção beatífica de ficção – i.e., de ficção como
território que não se contamina com a realidade. Afirmamos, sim, que o discurso
literário não se apresenta como prova, documento, testemunho do que houve,
porquanto o que nele está se mescla como que poderia ter havido; o que nele se
combina com o desejo do que estivesse; e que por isso passa a haver e a estar.
332
Márcio Seligmann-Silva explicita o aspecto imprescindível no que concerne a
nossos esforços: da dissociação entre o “real” e nossas representações lingüísticas – i.e., do
330
LIMA. Sociedade e discurso ficcional, p. 187.
331
LIMA. Sociedade e discurso ficcional, p. 193.
332
Ibidem, p. 195.
120
desejo e da necessidade, vinculados à impossibilidade.
333
O relato de Robert Antelme de
sua passagem pelos campos de concentração é evocado para auxiliar numa aproximação:
ele conta da memória viva que traziam, que tinham um desejo frenético de falar, mesmo
que as demais dissessem que a aparência física era suficientemente eloqüente. Porém,
afirma, era impossível. “Mal começávamos a contar e nos sufocávamos. A nós mesmos,
aquilo que tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável.
334
Antelme descreve
o impasse da discrepância entre o vivido e a possibilidade de narração e diz, por fim,
apenas pelo meio da imaginação poderiam tentar dizer algo daquela realidade.
335
Seligmann-Silva convoca, então, Friedrich Schlegel: “ali onde cessa a filosofia, a
poesia tem que começar”.
336
Se, como menciona o autor dos ensaios, Auschwitz se
configura como um dos maiores intentos de “memorricídio” da história, e que o
sobrevivente deve efetuar uma espécie de recriação da língua, a poesia de Celan incide
exatamente neste ponto (sem eliminar, é claro, as aporias da mesma, em especial no que se
refere à língua). Pois, seja nos poemas inaugurais, seja nos tardios, publicados em vida ou
póstumos (ocultamente conservados), cada qual a sua maneira, as localizações são escassas,
a língua deve ser fragmentada e, finalmente, a única maneira de fazer referência ao ocorrido
333
SELIGMANN-SILVA. Introdução. In: ______. História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes, p. 43.
334
ANTELME apud SELIGMANN-SILVA. Apresentação da Questão. In: _______. História, memória,
literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 45-46. Citado também por Maurice Blanchot em:
BLANCHOT. Lo indestructible. In: _______. El diálogo inconcluso. Caracas: Monte Avila, 1970. p. 228.
335
Em nota, Seligmann-Silva menciona Giorgio Agamben, em Quel che resta di Auschwitz. L’archivio e il
testimone, assinalando um paroxismo referente ao problema do testemunho e do silêncio que, como
observa o autor, é perigoso. Para Agamben, afirma, o único testemunho autêntico é o “Muselman”,
prisioneiro do campo à beira da morte, autômato desumanizado. Para Seligmann-Silva, isso desqualifica o
enorme trabalho de testemunho a partir da Shoah e distingue registro da memória e historiografia. Diz: “No
primeiro caso, a dor pode justificar o silêncio (mas ela muitas vezes leva à necessidade de testemunho); no
segundo é obrigação do pesquisador identificar os fatos e procurar a compreensão: por mais infinita que
essa tarefa seja. É claro que nesse modelo penso em tipo ideais do trabalho da memória. Eles nunca
existem de modo ‘puro’ e sempre interagem mutuamente” (SELIGMANN-SILVA. História, memória,
literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 419).
336
SCHLEGEL apud SELIGMANN-SILVA. Apresentação da Questão. In: ______. História, memória,
literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 47.
121
sem convertê-lo em Gerede (palavreado, desconversa, tagarelice),
337
em Sprachgestöber
(turbilhão de linguagem),
338
é através da materialização da palavra e, mais radicalmente, do
silêncio.
O silêncio é, talvez, uma das únicas formas de tornar a dor mais partilhável. Pois,
dado o seu caráter absolutamente singular, a dor não tem significante na linguagem
coletiva; a palavra “dor”, por certo, não é a dor, e pode ser tão-somente ou, em especial,
uma banalização dela (também Gerede). Falar diante da dor pode ser um ato de cinismo,
uma “mentira”. Talvez o grito como expressão da dor esteja mais próximo dela. No
entanto, expressão maior que o grito é o silêncio (como quando se pede um minuto de
silêncio), quando a dor não apenas é indizível, mas sufoca o grito.
339
Num poema do
espólio de Celan, uma imagem nos chama a atenção: “O grito de uma flor/ anseia por
existência”.
340
Este é, talvez, o grito do qual obtemos ecos através da poesia de Celan. O
testemunho se dá, aqui, na direção contrária a qualquer pretensão de totalização, de um
dizer completamente. Trata-se, enfim, de um grito em silêncio. “Hermetismo dialógico”, se
assim se pode dizer, e silêncio parecem ser as saídas encontradas nesta poesia.
Poderíamos nos indagar, então, se a lírica celaniana pode e deve ser designada como
testemunho. Devemos constatar a ampla gama de esforços que o desejo e a necessidade de
narrar a dor mobilizam: desde os relatos mencionados, aos comics de Spiegelman, o filme
Shoah, de Claude Lanzmann, e poemas como os de Celan e outros tantos meios, cada um
337
Cf. poema “VARRIDA”, bem como os versos: “soviel rennt mich an/ mit Gerede,/ daß ich zuweilen
spreche/ wie einer, der redet,/ daß ich zuweilen/ spreche wie einer,/ der schweigt.” [“tanta coisa me
assedia/ com desconversa/ que dou por mim a falar/ como quem conversa,/ que dou por mim/ a falar como
quem/ fica em silêncio.”] (CELAN. A morte é uma flor, p. 84-85).
338
Cf. em “Stretto”, Partikelgestöber (turbilhão de partículas) e em “Ein Dröhnen”, Metapherngestöber
(turbilhão de metáforas).
339
Valemo-nos, neste trecho, de orientações em comunicação pessoal do prof. Georg Otte feitas aos 20 de
março de 2008.
340
CELAN. A morte é uma flor, p. 65.
122
deles com sua aporia, eficácia e impossibilidade. A denominação utilizada por Márcio
Seligmann-Silva de teor testemunhal parece-nos especialmente apta, já que, através deste
conceito, resguardam-se as peculiaridades dos diferentes meios, deixando esboçadas as
aporias que os percorrem: da relação (tensa) entre a ficção e o real (tanto em sua acepção de
realidade empírica quanto daquilo que escapa à malha simbólica); bem como da
impossibilidade de recobrimento pela linguagem.
Nos poemas, através do silêncio mencionado, reside a singularidade de certa ética
da representação, debatida por Seligmann-Silva, que não se satisfaz com um “positivismo
inocente” que almeja “dar conta” do passado (ou uma “historicização total do nacional-
socialismo”), nem com o “relativismo inconseqüente” que quer resolver o problema da
representação “eliminando o real”.
341
No filme Shoah, de Lanzmann, esta nova ética parece
ser sustentada através do Bildverbot (“proibição de imagem”, no caso, de cadáveres, para
não destituir o ocorrido de significado e banalizá-lo), sendo ele todo feito através de
entrevistas, mantendo a memória através do privilégio concedido à palavra e não à
imagem
342
– curiosamente, temos uma destituição da primazia da imagem praticada
justamente no âmbito do cinema. Em outro ensaio, o mesmo autor aproxima Celan e
Lanzmann através desta ética da representação: Lanzmann no cinema, Celan na poesia e
Anselm Kiefer nas artes plásticas trabalham na delicada linha entre o sublime e o abjeto.
343
Se Lanzmann optou por trabalhar “sem a imagem”, Celan, por sua vez, caracteriza-se pela
poética de “cercamentos em torno do sem-palavras, do sem-limites”.
344
Ambos “citam” o
341
SELIGMANN-SILVA. Introdução. In: ______. História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes, p. 10.
342
Ibidem, p. 18.
343
Idem. Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito. In: ______. O local da diferença, p.
56. Voltaremos ao tema na continuidade.
344
CELAN apud SELIGMANN-SILVA. Literatura e trauma: um novo paradigma. In: _______. O local da
diferença, p. 79.
123
ocorrido, evocando-o metonimicamente: em Lanzmann, nos depoimentos, nos trilhos dos
trens, árvores e rios das localidades onde se encontravam os campos; em Celan, nos cabelos
(Haar), grãos (Wolfsbohne, Lupine), ervas (Gras), neve (Tiefimschnee), e, do mesmo
modo, nas árvores (Espen, Espenbaum), rios (südlichen Bug, Oka, Seine, Rhein) e na pedra
(Stein). Noutro contexto, refere-se àquilo que Márcio Seligmann-Silva designa como arte
antimimética, que “funciona no registro indicial (como índice) como uma cicatriz, ruína,
traço de algo com o qual ela mantém uma conexão física”.
345
Tomamos, então, as relações
metonímicas como fundantes, precedentes às metafóricas. Na contigüidade ou parte pelo
todo, desloca-se o todo para uma parte, prescindindo da ingerência subjetiva; enquanto as
relações metafóricas, por sua vez, exigem o salto da aproximação de dois campos
semânticos diferentes, de simbologia arbitrária, de maneira triádica, conferindo-lhes
identidade ou equivalência. Poderíamos formular, assim, diferentes acepções de relação da
obra de arte com o evento: a “simbólica-imitativa” (ou “mimética”),
346
que procura recobrir
o “real” com a linguagem; e a metonímica-poética (também, por vezes, hermética), que
funcionaria à maneira da madeleine proustiana – designada aqui, por assim dizer, como
metonímia da memória, contígua à mesma.
345
SELIGMANN-SILVA. Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito. In: ______. O
local da diferença, p. 52.
346
Seligmann-Silva aponta tal questão, ao dizer: “poderíamos pensar, grosso modo, em um modelo mimético
– no sentido mais restrito desse termo, enquanto imitatio – da escritura da história que se oporia a um
outro, marcado não mais pelo paradigma da ‘representação’, mas sim pelo da ‘apresentação’ – que,
pensando em termos kantianos, é o único adequado para as idéias estéticas e éticas” (SELIGMANN-
SILVA. Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória. In:
_______ (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 391-392). Tal
assunto será aprofundado na continuidade.
124
4.3 INDIZIBILIDADE E REPRESENTAÇÃO
Dois conceitos centrais (que se articulam entre si) no engendramento deste trabalho
devem ser retomados: o primeiro, referente à representação (que abrange, ainda, noções
como apresentação e mimesis); e o segundo, ao indizível (irrepresentável e, ainda,
sublime).
4.3.1 MIMESIS, REPRESENTAÇÃO, APRESENTAÇÃO
O problema da representação requer um excurso sobre a trama de conceitos deste
campo semântico, embora já perpasse o presente estudo. Trata-se, também, de uma das
questões localizáveis no cerne da teorização sobre a literatura, desde as suas origens no
mundo ocidental. A temática da articulação do evento traumático e do testemunho,
contudo, também o torna mais visível.
Luiz Costa Lima ocupa-se de uma detalhada incursão neste problema através dos
deslocamentos e apropriações da mimesis desde a Antigüidade, em seu livro Vida e
mimesis. Esse cuidadoso defensor da mimesis destaca, inicialmente, o estranho destino da
Poética de Aristóteles quando, apropriada pelos tratadistas italianos, teve em seu interior
um equívoco: entender mimesis por imitatio. Em seu instante inaugural, a mimesis não seria
semântica – dispensava a palavra – e não girava em torno de um significado
347
(o que não
exclui uma significação de seu produto): “à sua razão (logos) não era indispensável a
palavra (logos)”.
348
A dimensão “abstrata” da mimesis, prossegue o autor, torna mais nítida
347
Curiosamente, acompanhando as formulações de Luiz Costa Lima, nos mais antigos registros de
mimeisthai, o termo é encontrado em articulação ao hino de Delos, à dança das bacantes. Mimos
designaria, por sua vez, o ator em um culto a Baco. A mimesis era usada para referir-se à dança e à música
e não à pintura e escultura, i.e., originariamente articula-se a um evento e não a uma ornamentação plástica
de uma idéia.
348
LIMA. Vida e mimesis, p. 65.
125
a dificuldade que traz consigo: o fato de tratar-se de um fenômeno cuja “agramaticalidade”
pressionava em favor de uma “gramaticalidade”; que tende a uma apropriação semântica
(tal como o teatro sucede a dança). De qualquer forma, parece interessante levar em
consideração que uma mera descrição da mimesis como semântica seria inadequada e,
assim, acarretadora de equívocos a sua tradução por imitatio.
O autor utiliza a tradução de Dupont-Roc e Lallot – mimeisthai por représenter e
derivados –, embora afirme que esta causa outro embaraço, que seria o de estender à Grécia
clássica uma perspectiva subjetivante, do indivíduo, que emergiria especialmente com os
moralistas ingleses do séc. XVIII. O reconhecimento do self estaria articulado com certo
ocaso da mimesis. Esta voltaria à cena com destaque em Hegel, com ênfase na Vorstellung.
349
Entretanto, seguindo as elaborações de Luiz Costa Lima, as concepções platônica, aristotélica
e hegeliana de mimesis, embora diferentes, são todas engendradas em um mundo de sentido,
dotado de verdade imanente. A genealogia da verdade nietzschiana, contudo, paralisaria esta
máquina interpretativa na medida em que não há lugar para uma concepção substancialista de
mimesis. Torna-se, assim, incabível a visão clássica da atuação da mimesis como carente da
máxima ferramenta intelectual – o conceito. Ou, ainda, uma mimesis substancialista através
da qual o reconhecimento é mediatizado pelo mestre em conceitos. Encontrar-se-ia uma
noção de mimesis dispersa e não restrita ao fazer artístico.
350
349
Na acepção hegeliana, segundo Luiz Costa Lima, o produto da arte só é bem entendido se correlacionado a
algo que não se cumpre pela arte. O conceito (Begriff) – aquilo que agarra – pode explicar/agarrar a
produção artística que, portanto, está em dois mundos (LIMA. Vida e mimesis, p. 189).
350
De maneira mais detalhada, Luiz Costa Lima menciona, no que se refere a uma concepção de mimesis que
se pode extrair do legado nietzschiano: “É no quadro nada glorioso, incerto, tortuoso e inseguro, sem nada
da aura que se associa ao transcendente, das sociedades humanas que se torna possível pensar noutra
concepção de mimesis. Em vez de circunscrita a uma atividade discursiva, a da arte, mais precisamente a
da arte verbal, a mimesis opera indiscriminada e anonimamente em todo o tecido social. Portanto, se em
Nietzsche se apresenta a condição de repensar-se a mimesis em contexto diverso, mesmo antagônico, ao
tradicional, ao mesmo tempo se impõe a necessidade de sua consideração fora do estrito campo da arte. E
isso se estende aos próprios conceitos” (LIMA. Vida e mimesis, p. 211).
126
O pequeno histórico da mimesis conduz a situá-la como algo difuso no tecido social,
bem como pensar a literatura não somente como lugar de “representação”, mas de invenção
mesma da vida (sem excluir as ressalvas sobre o risco do relativismo ingênuo,
especialmente no âmbito em que nos encontramos).
Noutra ocasião, o mesmo autor procederia ainda de maneira mais radical no que se
refere à noção de representação, sob as hipóteses de que as noções de “sujeito” e
“representação” fazem parte de um pensamento ultrapassado, incapaz de pensar o mundo, a
literatura e as artes de maneira geral; avançando, ainda, que tais conceitos, esses sim, seriam
da mesma família do “imitatio”. “Sujeito” e “representação” partem, para o autor, de uma
concepção “solar”, na qual o homem é capaz de construir um conhecimento verdadeiro ou
falso do mundo.
351
Em Mímesis: desafio ao pensamento, Luiz Costa Lima abordara também
a discussão sobre sujeito e representação associada à mímesis, relendo o pensamento
moderno. Assinala, então, que “se o sujeito comanda as representações e, sendo a mesis
um modo de representação, ela não passaria de uma das emanações do sujeito”.
352
Evidentemente, até o momento fizemos uso descritivo do termo “representação”
(bem como da terminologia “apresentação” e “função mimética”
353
) como simples
convenção, sem a pressuposição de uma articulação especular com a realidade ou mera
imitação ingenuamente realista. É preciso lembrar, ainda, um aspecto, por certo não
351
LIMA. Um par problemático: representação e sujeito moderno. In: BARTUCCI, Giovanna (Org.).
Literatura, psicanálise e estéticas de subjetivação, p. 198-199.
352
LIMA. Mímesis: desafio ao pensamento, p. 230. O autor diz, ainda, que para que o sujeito fosse tomado
como fonte das representações “era preciso que a representação fosse entendida como uma construção
humana equivalente a algo prévio a ela, constituindo uma espécie de maquette do mundo externo, cuja
reprodução, com pretensão explícita ou tácita de seu domínio, era assim assegurada” (Ibidem).
353
Luiz Costa Lima sinaliza, também, a distinção entre mímesis e aquilo que nas línguas modernas se entende
por mimético. Este supõe uma reduplicação, como no caso dos animais que, para fins de defesa,
mimetizam o ambiente. A acepção moderna da mímesis que a equipara ao mimético, afirma o autor,
subordina a arte a algo anterior à ela, ao “mundo da realidade”, à natureza (LIMA. Mímesis: desafio ao
pensamento, p. 230-231).
127
desconsiderado pelo teórico em questão já que o menciona nas preliminares do artigo
supracitado: que o pensamento freudiano – responsável por uma das grandes fraturas da
“concepção solar” de sujeito – faz uso, desde as reflexões inaugurais da metapsicologia, das
noções de Vorstellung e de Darstellung. Lembremos também que a fratura operada reside
justamente em supor verdade (inconsciente) no erro, premissa inconcebível perante uma
tradição que privilegia a realidade factual. Freud, ao utilizar os termos em questão,
certamente parte do vocabulário clássico da filosofia alemã, embora passe a fazer uso
original dos mesmos. Pois a Vorstellung freudiana, que não pode ser vista associada a um
receptáculo de imagens, abarca desde usos como representação inconsciente, que pode
aparentar um paradoxo, até aproximações à noção de significante. A Darstellung, por sua
vez, embora receba traduções diversas como “figuração” ou “figurabilidade” na
Traumdeutung, e também possa ser concebida como “apresentação”, tem por tradução, por
alguns, “presentificação”.
Tais polêmicas, sob o risco de tornarem-se minúcias terminológicas, certamente não
podem nem devem adquirir centralidade em nosso percurso, sendo tão-somente ferramentas
para nosso trabalho. A apresentação-figuração-presentificação da qual falamos talvez esteja
próxima, mutatis mutandis, às primeiras ocorrências da mímesis como evento (agramatical).
Assim, embora nos tenhamos referido, por vezes, à “função mimética” na acepção mais
restrita e convencional da mesma, não pretendemos ignorar todas as suas nuanças. Feitas
tais ressalvas, sem nos deixarmos perder na trama dos conceitos, a noção de representação
permanece de maneira descritiva, para referir-se à articulação (não especular ou imitativa)
do “real” e, ocasionalmente, a apresentação seria uma radicalização, já que prescinde de
uma idéia convencional que distancia a representação daquilo que é representado, por assim
128
dizer.
354
Supõe-se, de fato, uma operação de transformação ou deslocamento, que sinaliza
algo de um “real” (que não se confunde com a realidade empírica) mais do que o expõe.
Finalmente, destacamos que o que de fato está em jogo nesta experiência de leitura
encontra-se alhures, não numa defesa destes conceitos e, assim, valemo-nos do que fora
dito na apresentação do livro Catástrofe e representação:
Representar ou não representar: essa é uma, entre outras questões antigas, que
retornam com acento próprio na era da catástrofe. Representar ou não
representar: isso não altera, afinal, o que precisa ser dito. “O irrepresentável
existe” (Lyotard).
355
4.3.2 ÀS MARGENS DO INDIZÍVEL ESCRITO
Dem Menschen als Nachricht [...]
kann wohl nur Mensch als Schweigen
gegenübertreten.
Paul Celan
356
Se, nos umbrais da questão de uma poesia após Auschwitz, que, por excelência,
escapa à articulação, vemo-nos obrigados a retomar uma e outra vez a terminologia
corrente da discussão, assim como a representação, o indizível e seus derivados ganham
uma acepção especial, que deve ser percorrida.
No livro Literatura européia e Idade Média Latina, Curtius faz um breve histórico
do termo num período circunscrito da literatura européia, numa passagem denominada “Os
Topoi do Indizível”.
357
Tais topoi designariam em sua raiz, segundo Curtius, a incapacidade
de dominar o assunto, em todos os tempos, desde Homero. O orador não encontraria
354
Talvez seja possível pensar numa aproximação entre a representação e a metáfora, por um lado, e a
apresentação e a metonímia, por outro. As primeiras referem-se a relações estabelecidas ou intermediadas
por um sujeito – i.e., o sujeito procura representar uma realidade simbolicamente através da linguagem.
No procedimento metonímico e na apresentação (que aproximamos ao testemunhal), não há sobreposição
simbólica a uma realidade por ela significada; na metonímia há palavras que são partes ou indícios de uma
realidade, verbal ou não.
355
NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA. Catástrofe e representação, p. 11.
356
“Ao ser humano como informação pode-se apenas confrontar o ser humano como silêncio”. Tradução
nossa.
357
CURTIUS. Literatura européia e Idade Média Latina, p. 233-235.
129
palavras para louvar convenientemente a pessoa homenageada ou o soberano no panegírico.
Na Idade Média congrega também a idéia de dizer apenas um pouco do que se teria para
fazê-lo, em especial sobre a vida de um santo.
No prefácio do livro L’indicible, organizado por Françoise Rétif, destaca-se a
vinculação originária da noção com a religião. Na tradição hebraica, diz Françoise Rétif, o
nome de Deus – YHWH – é impronunciável. É, simultaneamente, revelado e indizível; o
que é apresentado pelas consoantes é subtraído pelo vazio entre elas. Rétif prossegue:
“revelação e ocultação, presença e ausência, dizível e indizível estão indissociavelmente
mesclados”.
358
A secularização do pensamento religioso no século XVIII, afirma, não é sem
repercussão para o sentido do termo que, aos poucos, esvazia-se do conteúdo original.
Posteriormente, Sigmund Freud afirmaria que o “sentimento oceânico” que Romain
Rolland associa à mística inefável não pode ter outra origem que não a psíquica. Embora
Wittgenstein o exclua do âmbito filosófico, o indizível é tema das formulações
psicanalíticas. Rétif menciona que, para Lacan, o real, o trauma e o gozo fazem buracos na
malha significante. Estes estariam, assim, nas bordas do buraco.
Breve parêntesis: o indizível aparentemente não possui tratamento sistematizado em
Lacan, mas pode ser encontrado de maneira dispersa ao longo de toda a sua obra. Em
alguns momentos, a noção em questão recebe uso descritivo, associada ao falo, à castração
e à angústia; noutros, como necessariamente nas reflexões sobre a linguagem, parece ser
adotada de maneira privilegiada. Depara-se, também, com formulações nas quais o Real
impõe limites à linguagem e a sua propriedade indizível determinaria todo discurso. A que
se refere ao dizer o “Real” em Lacan? Ram Mandil afirma que estamos em vias de
358
RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 7. Tradução nossa.
130
recensear tal noção.
359
Pois pode abarcar aquilo que se manifesta além do campo
representacional com efeitos sobre ele; ao mesmo tempo, impossível de representar;
impossível de se captar no campo da imagem; sem lei, bem como aquilo que retorna
sempre ao mesmo lugar. Pode-se dizer, ainda, que o indizível místico, embora não
nomeado, também é articulado no Seminário livro 20 – Mais, ainda.
Próxima da noção de indizível e também originalmente religiosa é a de
irrepresentável. O laço de ambas as noções aparece, segundo Rétif, na poesia de Rilke, em
sua concepção de figura. A imagem, na poesia mencionada, seria uma forma de
representação do indizível, maneira de articular o “fora e dentro da linguagem”.
360
No entanto, de acordo com Françoise Rétif, após a Segunda Guerra Mundial, não se
pode mais evocar o indizível sem fazer surgir o horror da Shoah – “a palavra indizível pode
dificilmente ser pronunciada atualmente sem fazer referência ao universo concentracionário
que feriu o coração da Europa civilizada em pleno século XX”.
361
Menciona-se no prefácio que a poesia de Celan pode ser considerada entre as mais
valiosas realizações artísticas contemporâneas. Ele, como outros escritores e poetas
germanofônicos do período imediato ao pós-guerra, confronta a dificuldade de escrever
numa língua corrompida e contaminada pelo nazismo. Através de seus meios estilísticos e
uma radicalidade inigualável, o poeta coloca em obra o silêncio como modo de falar.
Reservadas as semelhanças e diferenças quanto ao testemunho propriamente dito, a
representação, neste caso, é antes criptografada, fragmentada e deslocada.
359
Esta consideração foi feita pelo professor Ram Mandil na palestra intitulada “Representações do corpo na
literatura, no teatro e na psicanálise”, no evento: VII SEVFALE – Semana de Eventos da Faculdade de
Letras da UFMG (01 a 05 de outubro de 2007). Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, 02 de outubro de 2007.
360
RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 8. Tradução nossa.
361
COLLIN apud RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 9. Tradução nossa.
131
Lamentavelmente, afirma Rétif, o universo concentracionário é o que faz,
essencialmente, referência ao indizível no século XX, no espaço franco-germânico. No
entanto, diz, o indizível pode igualmente fazer laço. Alguns autores (re)introduziram o
vazio e o silêncio na fala e na escritura; revelaram-nos que dar lugar ao indizível é manejar
um espaço onde seja possível acolher o outro, o entre, o indecidível e o indefinível – o
contrário ao universo concentracionário. As escrituras da memória não podem nem devem
suprimir o indizível. De geração em geração, conclui Rétif, a escritura faz laço, deixa seu
traço sobre o “imenso e complicado palimpsesto da memória”.
362
Daremos continuidade a algumas reflexões que tangenciam o problema da
indizibilidade e iremos circunscrevê-la segundo os nossos objetivos para, posteriormente,
fazermos a incursão de maneira mais específica ao indizível na lírica celaniana. Não iremos
nos deter, por desígnio, à aproximação entre o indizível após a Shoah e o da experiência
mística. Embora se trate de algo instigante, devemos indagar até que ponto tal justaposição
pode conduzir a que o termo perca as especificidades concedidas pelos dois âmbitos
(lembremos a formulação à qual chegamos – de um indizível além e outro aquém da
linguagem). Ambos, decerto, testemunho e místico, podem ter em comum certo caráter
singular e intransferível do experimentado. O problema mesmo da poesia é aproximável a
tal idéia – tornar o universal (linguagem) singular; barrar o automatismo da linguagem.
Luiz Costa Lima menciona que a espessura da palavra poética é tarefa no limite
impossível
363
: a nomeação é impraticável sem certa generalização, para que se possa
362
COLLIN apud RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 13.
363
Lembramo-nos da formulação de Silvina Rodrigues Lopes em artigo intitulado “Poesia: uma decisão”, no
qual afirma que a poesia seria um passo para fora do corte entre o ver e o dizer (que supõe a existência de
dois modos incomensuráveis de constituição da realidade). A poesia, diz Lopes, “corresponde a um
trabalho de singularização que coloca o poeta contra o imaginário, contra o mundo na medida em que ele é
imaginário, ou seja, representação construída na reversibilização de imagens e conceitos. ‘Contra’ tem aqui
que ser entendido num duplo sentido: algo que é ‘contíguo’, como um corpo contra a parede que o suporta;
132
comunicar. Porém, a palavra poética particulariza, querendo singularizar – singularizar
aquilo que é geral e semelhante.
364
Vimos que a noção de indizível, após a Shoah, ganha nova acepção, remetendo
inevitavelmente a ela, não apenas do inefável, mas também ao indizível metonímico dos
“dentes” e dos “cabelos”.
365
Do mesmo modo, o conceito de sublime passa a ser
redimensionado e articulado a novos termos, como demonstra Márcio Seligmann-Silva no
ensaio “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo”.
366
Uma teoria do
sublime passa a emergir, seguindo o texto mencionado, entre os séculos XVII e XVIII, no
momento em que o paradigma da tríade do Belo, Bom e Verdadeiro passa a ser colocado em
questão e aumenta o interesse na recepção da obra de arte. O autor menciona uma teoria do
sublime mais sensualista, por assim dizer, de Edmund Burke, na qual o termo é definido
como aquilo que está para além da capacidade de saber, alheio à conceituação (pois esta
exige uma formatação e o sublime é uma manifestação do ilimitado) e, desta forma, é
negativo absoluto, alheio ao logos. Trata-se de algo que produz a mais forte emoção de que o
espírito é capaz, um abalo de tal intensidade que provoca o deleite ou o “horror deleitoso”.
367
algo que se opõe a outra coisa” (LOPES, Silvina Rodrigues. Poesia: uma decisão. ALETRIA Revista de
estudos de literatura, Belo Horizonte, v. 10/11, p. 72-79, 2003/2004).
364
LIMA. Vida e mimesis, p. 194-195.
365
A palavras, em Celan, são, de certa forma, “dentes” e “cabelos”. As palavras da testemunha (também a
jurídica), são partes de uma realidade, indícios de um crime. A testemunha mesma, com um número
tatuado em seu braço, cuja aparência, já vimos com Antelme, era eloqüente – é um indício. O sobrevivente
poeta mostra de maneira evidente como as palavras são indícios, ruínas da Shoah. Seligmann-Silva
observa, em nota, que a arte e a literatura com forte teor testemunhal têm as quatro características do índice
definidas por Peirce: conexão física, singularidade, designação (aponta, é um gesto) e atestação (atesta, dá
testemunho) (SELIGMANN-SILVA. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In:
______. O local da diferença, p. 43).
366
SELIGMANN-SILVA. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In: ______. O local
da diferença, p. 31-44.
367
Cabe mencionar, de passagem, que a poesia é considerada locus privilegiado nesta teorização: “A poesia é
particularmente propícia para a representação do sublime justamente pelo seu aspecto extramaterial, pelo
seu caráter de não-objeto, pela sua indefinição” (SELIGMANN-SILVA. Do delicioso horror sublime ao
abjeto e à escritura do corpo. In: _______. O local da diferença, p. 35).
133
Seligmann-Silva discorre sobre aquilo que seria o sublime espiritualista de
Mendelssohn, expressão do infinito, entidade superior ou divina – que será, posteriormente,
desdobrado pelos teóricos alemães. Interessa-nos, em especial, a consideração feita pelo
autor sobre o sublime burkiano como antecessor do nosso conceito moderno de abjeto. Este
é teorizado por Julia Kristeva em Pouvoirs de l’horreur, de 1980. O abjeto não é um
objeto, frisa Seligmann-Silva, nem um sujeito: trata-se do que há de mais primitivo em
nossa economia psíquica, ocasiona-se a partir do recalque originário, manifestação da
protocisão [Urspaltung] – uma negação violenta que instaura o eu. Um não sentido que nos
oprime, diferentemente do sublime, sobre-sentido que nos escapa.
368
A manifestação
privilegiada do abjeto (assim como a palavra para Celan) é o cadáver (cadere, corpo que
cai); o corpo sem alma. O autor lembra que, assim como a teoria freudiana do trauma não
pode ser compreendida sem a relação com a Primeira Guerra Mundial, a “cultura do
abjeto”
369
não pode ser dissociada daquilo que mais foge ao discurso simbólico: a Shoah. O
autor afirma, finalmente, que a escritura de Celan não se entrega ao abjeto, “mas se
confronta com ele”.
370
Em ensaio subseqüente, Márcio Seligmann-Silva retoma uma questão articulada a
esta, no que tange ao aspecto da plausibilidade da conciliação entre arte e dor. Além de não
serem mutuamente excludentes, percebe-se a importância, no curso da história da arte, de
seu enveredar através do grotesco, do feio, da dor, do picaresco, carnavalesco, excesso ou
368
SELIGMANN-SILVA. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In: _______. O local
da diferença, p. 39 passim. Seligmann-Silva evoca, na continuação, as palavras de Kristeva, associando o
abjeto ao trabalho de luto: “é a violência do luto de um objeto sempre já perdido” (KRISTEVA apud
SELIGMANN-SILVA. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In: _______. O local
da diferença, p. 40).
369
Formula-se a noção de arte-ritual abjeta como uma espécie de escritura do real (SELIGMANN-SILVA. Do
delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In: _______. O local da diferença, p. 41).
370
Ibidem, p. 44.
134
ironia.
371
No entanto, após a Segunda Guerra Mundial (e deve-se ter em mente os milhões
de mortos neste ocorrido e a estetização do político nazista como Gesamtkunstwerk,
372
lembra Seligmann-Silva), emerge nova acepção de “arte da dor” ou “arte do corpo” e,
assim, um novo olhar sobre o “real”. Valer-se do corpo e seus limites como suporte da arte
– seja através de cortes, excreções – decorre da violência da técnica e a desafia. O autor
menciona, para referir-se a esta chamada arte abjeta, as performances de autodestruição,
extensões da pele, body art, suspensões do corpo, passando por exposições como a do
médico Gunther von Hagens “Körperwelten” [“Mundos do corpo”], com esculturas feitas
com cadáveres humanos, até artistas como Cindy Sherman ou Nan Goldin, que, como diz,
desconstroem a representação.
373
Em alguns casos, diz Seligmann-Silva, a superestetização
culmina na antiestética – “percepção (aisthesis) em demasia tranforma-se em
impossibilidade de percepção” –, a visão do “real” produz uma espécie de “queimadura”;
um “corte” na película do “real” que dissolve fronteiras, característico da pós-
modernidade.
374
É em torno dessa argumentação que Celan aparece, assim como outros
artistas, que, ao contrário deste cegamento produzido pelo excesso de percepção, propicia a
reflexão sobre a ética (da representação), que supõe um limite e respeito ao outro,
menciona, entre o sublime e o abjeto. O indizível em Celan não está, enfim, no âmbito do
sublime que eleva, tampouco na exibição do cadáver que impede a percepção.
371
O autor destaca que, no Romantismo, a auto-reflexão da arte vincula-se à questão da percepção (aisthesis)
e, assim, o corpo e a dor ganham nova dimensão (SELIGMANN-SILVA. Arte, dor e kátharsis. Ou:
variações sobre a arte de pintar o grito. In: _______. O local da diferença, p. 47).
372
Referência ao termo atribuído ao compositor alemão Richard Wagner.
373
Seligmann-Silva explicita que, no caso, refere-se tanto à representação ilusionista como à representação de
papéis; ainda, trata-se de uma arte que é fruto de uma cultura na qual a identidade (e também a pele) é tida
como vestimenta que pode ser modificada periodicamente através de cirurgias plásticas. O autor indaga
sobre a modalidade de tal encenação, se seria pura mise-en-scène neo-romântica, mas considera também
que não se trata do que importa e que não se deve condená-la com tal moralismo barato (SELIGMANN-
SILVA. Arte, dor e kátharsis. Ou: variações sobre a arte de pintar o grito. In: _______. O local da
diferença, p. 51-52).
374
SELIGMANN-SILVA. Arte, dor e kátharsis. Ou: variações sobre a arte de pintar o grito. In: _______. O
local da diferença, p. 55.
135
Outra instigante noção aproximável à de indizível, a qual apenas mencionaremos, é
a língua pura/ pura língua [reine Sprache] benjaminiana de “A tarefa do tradutor”. A
afinidade entre as línguas, diz, deve ser buscada não em seu parentesco histórico, mas no
fato de, em cada uma, se querer dizer algo que não se pode acessar em nenhuma delas de
maneira isolada, mas na totalidade de suas intencionalidades: na língua pura.
375
Posteriormente, precisa-a dizendo que se trata daquilo que na tradução é intraduzível, resto
intocável.
376
O tradutor deve, precisamente, fazer ecoar algo dessa língua pura na tradução.
Desta forma, acrescenta algo ao chamado “original” – que, por sua vez, já consiste em um
“eco”, uma tradução – da língua pura. São caras a Walter Benjamin idéias como eco e
reflexo (não necessariamente especular), as quais podem ser vistas como os tênues
vestígios do indizível que se deixam mostrar (como vimos na poesia de Celan).
Efetuado este breve percurso em torno do indizível em articulação com o sublime e
com a língua pura, ainda uma consideração sobre o termo em questão. Alain Badiou, no
texto “Por uma estética da cura analítica”, ao debater o conceito de transposição de
Mallarmé, avalia o indizível como uma noção obscurantista e opta por “real do dizer”.
377
Consideramos, contudo, que ambas as noções podem remeter à idéia de um real que escapa
à malha simlica. Nas incidências do termo “indizível” ao longo desta elaboração,
procuramos nos aproximar não de uma concepção daquilo que “não se pode dizer”, mas de
procurar as vias através das quais o poema diz. Além disso, deve-se ter em conta que
mesmo que aquilo que não pode ser dito pode ser escrito – neste gesto não há garantias de
contenção do excesso da experiência. Ademais, que aqueles que muitas vezes tiveram o
375
BENJAMIN. A tarefa-renúncia do tradutor (Tradução de Susana Kampff-Lages). In: HEIDERMANN
(Org.). Clássicos da teoria da tradução, p. 199.
376
Ibidem, p. 201.
377
BADIOU. Por uma estética da cura analítica, p. 240.
136
projeto de aproximar-se de uma completude em sua escrita demonstram terrível
proximidade do horror da experiência, como discutiremos posteriormente.
A noção de indizível conduz-nos a enveredar por passagens diversas, as quais
mencionamos ou apenas citamos, em conformidade com os objetivos do trabalho. Situemo-
la, então, na poesia de Paul Celan.
4.3.2.1 POÉTICA DO INDIZÍVEL
Em L’indicible, Marko Pajevic, estudioso da lírica celaniana, apresenta o artigo “Ce
qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible”. Pajevic destaca alguns aspectos sobre a
temática, entre eles, a decisão de testemunhar através da poesia, eventualmente silenciosa e
obscura, em face daqueles que, segundo o autor, sugerem que a poesia é um modo
deficitário de prosa. Pajevic cita Primo Levi: “o dizível é preferível ao indizível; a fala
humana ao grunhido animal”.
378
Diz, ainda, que Levi teria atribuído o suicídio de Celan ao
fato de que não mais se comunicava. É certo que a posição de Levi se justificava e que o
indizível pode ser uma categoria vaga. Levi defendia que, empiricamente, se algo ocorreu,
pode ser dito. Pajevic menciona, contudo, que, finalmente, se seguirmos tal argumentação,
devemos lembrar que Levi também se suicidou.
379
É ilusório acreditar que os fatos falam
por si, acrescenta Pajevic.
É preciso fazer um breve excurso a este respeito para observar, contudo, como
constata a germanista italiana Valentina di Rosa, um viés dissonante da visão costumeira do
378
LEVI apud PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible,
p. 106. Tradução nossa.
379
Pajevic afirma peremptoriamente a relação direta entre a escrita e o suicídio para fazer oposição ao que
designa como a lógica de Levi para referir-se ao suicídio de Celan. Sem querer estabelecer uma relação de
causalidade, tais noções serão abordadas na parte III deste trabalho. Talvez possamos arriscar-nos a
afirmar, por enquanto, que o projeto de Levi, realista, com a intenção de não omitir nada do que viu, não
ofereceu mais garantias ou o protegeu mais do que a escrita silenciosa de Celan.
137
percurso de Primo Levi. O químico, sobrevivente de Auschwitz, possuía, de fato, uma
aposta (cientificista, talvez) na linguagem, insistira na possibilidade de se escrever, visava
sempre a clareza da palavra e da consciência, pois considerava o entendimento como uma
maneira de salvação, o não parar do exercício da razão como forma de resistência.
No entanto, isso passa a ruir no momento em que Levi dá início a uma tradução de
Kafka, em 1983. Kafka lhe produzia uma repulsa profunda, um mal-estar que não era capaz
de entender e explicar. No início dos anos 1980, Levi inaugura, também, a sua obra poética.
Relatava que escrevia poesia, mas era como escrever em outra língua. Seus contos
fantásticos eram, do mesmo modo, recebidos com resistência pelo público que acreditava
que isso contaminaria a figura austera do testemunho. O encontro com Kafka era descrito
por Levi como uma doença, um contato com uma alma que lhe era estranha. Valentina di
Rosa destaca que Primo Levi, de certa forma, tornou-se ou passou a designar-se como
judeu pela experiência de Auschwitz, pois antes se considerava predominantemente
italiano. A partir do contato com Kafka, estes lugares se vêem desarranjados – Kafka traz à
tona o seu não pertencimento à cultura alemã, trata a língua como estranha. Levi traduz O
processo como prosa linear; do “sabor a nada” que Hannah Arendt atribui ao texto
kafkiano, Levi traz uma linguagem clara, de sabor cotidiano.
No entanto, depois de entregue a tradução (e traduzir, lembra, é olhar o texto num
microscópio e ver sua tessitura), não pode deixar de pensar em Kafka. O processo é um
labirinto sem fio de Ariadne, afirma, e com ele Kafka desmente o otimismo de Primo Levi.
A área cinzenta da culpa do sobrevivente – daquele que, como constava em um dos textos
de Adorno anteriormente debatido, parece ter certo saber, terrível, de que para ter
sobrevivido alguém foi morto em seu lugar – acena-lhe através do personagem Josef K.
com sua culpa incompreensível; esta parece promover um curto-circuito com a vergonha e
138
remorso do lugar de ex-prisioneiro de um campo. Primo Levi, neste período que precede
sua morte, faz menções ao que lhe escapa à consciência e o deixa sem defesas, como a
memória do cheiro (involuntária), que fora ocultada por outra memória: quando sentia o
“cheiro da Polônia” afirmava que, naquele momento, havia “voltado a ser prisioneiro”.
Acreditava-se, anteriormente, que Levi seria o único que não se suicidaria, pois outros
sobreviventes já haviam encontrado este fim trágico.
380
Este tema nos conduzirá num
debate ulterior. O excurso foi feito, enfim, para deixar em suspensão/mostrar alguns
meandros de um possível antagonismo feito entre o testemunho de Levi e Celan, para
esboçar algo do indizível que acena também na experiência de Levi.
Retornando à leitura de Pajevic, Celan não padeceria, obviamente, de incapacidade
de expressão lingüística e não se trata, é claro, de que lhe faltariam as palavras. O autor
radicaliza o pensamento em sentido contrário: exprime-se em excesso, a língua transborda
de significação.
381
Depara-se, em especial, com o problema que, como vimos, percorre os
poemas de Celan ao longo de sua obra: a escritura na língua alemã, que também transborda,
corrompida, “enriquecida” [angereichert]
382
pelo Terceiro Reich. Dizer o indizível impõe o
dilema – como fazer um “novo projeto de realidade”,
383
purificar, renovar, reconstruir a
língua impregnada se o meio de expressão é, ele próprio, maculado? Diz Pajevic, esta fala
deve, por um lado, tematizar a corrupção e, por outro, demarcar/delimitar a forma pela qual
ela não perpetua a corrupção.
384
380
Palestra realizada pela profa. Valentina di Rosa, debatida pelo prof. Élcio Cornelsen, intitulada “De
Auschwitz a Kafka”, aos 26 de novembro de 2007, junto à Faculdade de Letras (FALE), da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
381
PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 107.
382
Menção feita por Celan em ocasião do recebimento do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de
Bremen. Voltaremos a ela em breve.
383
Expressão utilizada por Paul Celan no mesmo discurso da nota supracitado.
384
PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 109.
139
O impasse do indizível responde-se, para Marko Pajevic, pelo modo através do qual
Celan fala – seus procedimentos literários.
385
Dois aspectos, talvez centrais, são destacados:
por certo, o trabalho de memória da obra celaniana; também, contudo, dar forma ao
indizível.
Evoca-se o “silêncio wittgensteiniano”, afirmação efetiva de que tudo o que se deixa
dizer, se deixa dizer claramente, quanto ao demais, deve-se calar. Pajevic chama a atenção
para o que precede a afirmação, e que, dessa forma, constata-se que para Ludwig
Wittgenstein o indizível existe – e refere-se, é certo, à mística.
386
Interessa-nos, contudo, o
retorno de Pajevic ao indizível celaniano: a poesia de Celan não se cala diante do indizível,
mas o cala. O silêncio é o modo de expressão adequado, o poema fala por seu silêncio. Mas
o silêncio deve se manifestar, não pode existir só sem ser reduzido a nada
387
– o silêncio
não é, enfim, o nada. Algo que os poemas revelam e que devemos reter: o silêncio ruidoso
que faz falhar a linguagem, não-mudo, que se faz ouvir.
Não devemos, contudo, apegar-nos a esta fórmula sem que isso tenha sido
presentificado através do procedimento poético de Celan: seus cortes no interior mesmo da
palavra,
388
rupturas de unidades de sentidos, novas relações de sentido, isolamentos de
385
A título de exemplo, o autor cita o emprego do vocabulário especializado da mineralogia, algo da
particularidade da escritura de Celan – sem repetir o horror, fazendo referência às tumbas e à memória dos
mortos. Remete ao estudo presente em WERNER. Textgräber: Paul Celans geologische Lyrik, 1998.
386
No que tange a esta questão, tomada aqui de maneira periférica, Pajevic menciona que o que precede o
famoso enunciado refere-se ao fato de que ele se aplica a poucos casos, mesmo que todas as questões
filosóficas, a saber, para Wittgenstein, analíticas, possam ser resolvidas, os problemas da vida não são
tocados. Menciona que é significativa a diferença entre o ativo “darüber schweigen” utilizado pelo filósofo
e “davon schweigen”. Finalmente, o argumento do jovem Wittgenstein é de que as coisas não analíticas são
indizíveis, mas são. Posteriormente, através da teoria dos jogos de palavras, ele irá mais longe em recusar
toda possibilidade de enunciado unívoco, mesmo analítico (PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul
Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 111).
387
Ibidem.
388
Pajevic traz à baila um exemplo de corte de palavra e violenta interrupção do poema “Einem, der vor der
Tür stand” que termina com o fragmento lingüístico “Ra --”. Uma tal cisão reforça a nova carga da palavra
numa parada violenta, um silêncio que não é apenas pelo fim de uma expressão (PAJEVIC. Ce qu’un
poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 113).
140
palavras, prefixos e proposições em uma linha, traços (“quando a matilha o atacou pelas
costas –”, bem como “escrevi cartas a –”), estrofes irregulares, questões sem resposta (“a
suave, a dolorosa, a rima alemã?”), brancos, interrupções violentas ou pausas,
escalonamentos espaciais,
389
asteriscos, linhas pontilhadas. Todas as marcas graficas,
técnicas de silêncio ou de dizer o indizível, enfatiza Pajevic, são falantes. O silêncio – tal
como é tematizado e explicitado através de tais técnicas – é a resposta poética ao uso
abusivo da língua.
Outra solução comumente encontrada para referir-se à obra de Celan, talvez
articulável às noções de indizível e do silêncio, a qual João Barrento qualifica como fácil,
mas de modo algum insatisfatória, é incluí-lo na tradição moderna que vem de Mallarmé e
desemboca “nos poetas chamados ‘herméticos’, modernistas e contemporâneos (Valéry e
Ungaretti, Gottfried Benn e René Char)”.
390
Por um lado, menciona, Celan é referido como
último representante do “poema puro”. Ele próprio com freqüência resiste a esta leitura.
391
389
No poema “Stretto” observamos:
Desce
para os olhos,
os úmidos –
também, em versos posteriores:
– – cinza do dia,
das
marcas de águas subterrâneas –
Pajevic cita, ainda, o poema “Du liegst” no qual se evoca o assassinato de Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht, finalizado com as palavras:
Nichts
stockt.
Estas palavras são de difícil tradução, pois significam, simultaneamente, que nada se coagula/ interrompe/
hesita/ pára/ detém/ coalha (PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF
(Org.). L’indicible, p. 112). As paradas promovidas por estes versos, associadas aos vazios que deslocam o
olhar do leitor, são exemplos de procedimentos do silêncio poético que diferem da ausência de fala.
Devemos a Georg Otte a lembrança de que tais apresentações do silêncio são feitas por meio do branco da
página, à maneira de Mallarmé.
390
BARRENTO. Paul Celan: Hermetismo, hermenêutica, tradução. In: _______. O arco da palavra, p. 169.
391
João Barrento evoca o próprio “Diálogo na montanha”, bem como outros textos poetológicos (em “O
Meridiano” afirma podermos encontrar ambas as vertentes) e um dos poemas do espólio (“WIRKLICH”
141
É certo que a leitura dos poemas de Celan, como pudemos observar, impõe
dificuldades diversas. Barrento traz à baila um ensaio de George Steiner intitulado “On
Difficulty”, de 1978, no qual faz uma tipologia das dificuldades, as quais, considera
Barrento, aplicam-se à poesia de Celan. A primeira, das “dificuldades contingentes”, está
relacionada à articulação mundo-linguagem e evidencia-se no nível do léxico (uso de
arcaísmos, neologismos, mots rares, auto-referencialidade do sistema da própria poesia,
entre outros). A título de exemplo, em “Tübingen, Jänner”, o uso do “Pallaksch”
hölderliniano. No segundo tipo de dificuldades, as “modais”, das incapacidades de
apropriação do texto por parte do leitor, por implicações culturais ou literárias, já não temos
acesso a uma grande parte da literatura universal (assim, diversos sinais do judaísmo ou
aspectos do leste europeu, por exemplo, escapam-nos). A terceira dificuldade, segue, é a
“tática”, da “lógica do oculto”, das linguagens cifradas e dos mitos pessoais, freqüentes no
Simbolismo e no Surrealismo. O quarto tipo, enfim, é a ontológica, “própria do hermetismo
moderno, no qual o próprio estatuto da significação é colocado em causa”;
392
resultado de
uma crise de valores da modernidade, a linguagem radicaliza-se em seu exílio, cultiva-se na
“anticomunicação” e na “privacidade semântica”. Este último é, de fato, usado para
designar a poesia de Celan. Na continuidade da leitura de Barrento, considera-se que neste
hermetismo o leitor é tido como intruso (Barrento pondera, contudo, que Steiner
consideraria tal afirmação ultrapassada e que o poeta também não a legitima). Para
Barrento, a poesia de Celan, que dispõem destas e de outras dificuldades, não autoriza esta
[“NA VERDADE”]), como âmbitos nos quais Celan reage à redução de seus poemas à obscuridade e ao
hermetismo (Ibidem).
392
BARRENTO. Paul Celan: hermetismo, hermenêutica e tradução. In: _______. O arco da palavra: ensaios,
p. 173.
142
conclusão, pois apela à intervenção, não sobrevive sem a atenção do outro, sem o encontro
com o leitor e, em seu clímax, com o tradutor.
393
Um silêncio que fala:
394
o conflito e a ambivalência desta idéia devem ser
sustentados para não se reduzir a poesia celaniana ao fechamento obscuro e silencioso do
hermetismo (do absolutamente incomunicável) ou à abertura dialógica e comunicativa de
uma linguagem que pode abarcar (se tudo é dito, o diálogo inexiste.
395
Falar demais
também pode ser um crime,
396
que torna Auschwitz digerível, que, por superestetizá-lo,
torna-o impossível de ser percebido).
393
Ibidem, p. 174.
394
Devemos ver, nas indicações de Pajevic, o ensaio de Jean Bollack intitulado “Paul Celan sur la langue” –
no título Sprachgitter [Grade de linguagem], de uma perspectiva dialógica, a grade pode ser interpretada
como aquilo que faz uma separação, mas, também, contrariamente, como uma estrutura que liga as coisas.
(PAJEVIC. Ce qu’un poeme veut dire: Paul Celan et l’indicible. In: RÉTIF (Org.). L’indicible, p. 127).
395
Pajevic ressalta: “a escuta, a orelha, são, também, tão importantes como o enunciado e a boca – e o lugar
que estas palavras ocupam na obra de Celan o confirma” (Ibidem, p. 128).
396
Cf. poema “EIN BLATT, baumlos”, tradução nossa em anexo.
143
PARTE III
144
5
A
ESCRITURA
397
E SEUS EFEITOS
5.1 SCHREIBEN WIR UNS ESCREVEMO-NOS
Passamos ao desdobramento da primeira pergunta que orienta este trabalho (como
na menção inaugural da questão que temos como pano de fundo: trata-se do problema da
representação do indizível em Celan e seus efeitos). A escritura de um indizível aquém da
linguagem, vimos, faz-se em Paul Celan através de diversos procedimentos poéticos. A
inquietante pergunta passa, então, ao território dos efeitos da escritura. Aquilo que na
Lebensschrift celaniana transita, em sua contigüidade, de um limiar a outro. A trama de
palavras que doravante nos enreda é o trauma (abrangendo o real e a dor), a melancolia, o
problema da língua (materna, dos assassinos e, ainda, a acusação de plágio sofrida pelo
poeta) e, finalmente, a questão do suicídio e o conceito psicanalítico de sublimação. É certo
que o debate que propusemos até então esteve a todo o momento sob a tênue e perigosa
linha que bordeja os âmbitos da ficção, da verdade e do real, do recobrimento ou não pela
linguagem dos eventos da realidade. Esta questão persiste, contemplando, ainda, a vida em
articulação à escrita, aspecto central para a abordagem dos efeitos à qual nos propusemos.
397
Para justificar a eventual designação do texto de Celan como escritural, valemo-nos do percurso feito por
Lúcia Castello Branco. A escritura, diz a autora, difere de uma escrita comum ou mesmo de uma escrita
literária convencional, que Barthes chamaria de escrevência. O conceito de escritura é trabalhado por
Barthes, Derrida e Lacan (em seu Seminário XVIII) sendo que, embora não seja idêntico nos três autores,
estabelece nuanças com o conceito de escrita. Lúcia Castello Branco afirma que, em Barthes, a escritura se
opõe à escrevência por ser intransitiva, não visando à comunicação. Em Derrida, por sua vez, destaca-se o
seu caráter de diferência, em sua especificidade de traço não anterior, mas também não posterior (ou
exterior) à linguagem. Lacan, no referido Seminário, chega a dizer que se não existisse escritura talvez não
existiriam as palavras. Também em Lacan encontra-se a afirmação de que a escritura é gozo, que tem ecos
em Barthes e Derrida. Este afirma “A escritura sempre ameaçou, pois traz a questão do corpo como
condição da constituição de seja lá o que for” (CASTELLO BRANCO. Os absolutamente sós, p. 48-49).
145
Lebensschrift: um vocábulo composto, utilizado por Celan, tradução literal para o
alemão de bio-grafia, lembra José Eduardo Barros aludindo a Fernand Cambon,
398
cuja força
da literalidade é parcialmente perdida na tradução por não dispor de palavras compostas.
Barros convoca a perspectiva de dois autores: Maingueneau, para o qual se deve abordar a
biografia de um escritor com uma barra que une e separa, de dupla via da grafia à vida e da
vida à grafia; Laporte que diria da bio da grafia, da via percorrida pela escrita.
399
Vida escrita – embora não se trate de uma composição que, tal como em
Lebensschrift, já traz uma contigüidade, talvez nos poupe de arcar com os possíveis mal-
entendidos do uso da biografia de um escritor. Em ensaio intitulado “A vida escrita”, Ruth
Silviano Brandão menciona: “A vida escrita é a vida que se escreve, mesmo que não se saiba.
Como a lesma que deixa uma gosma viscosa em seu caminho. Como a lágrima que fala em
seu silêncio de dor ou alegria”.
400
Como observamos a relação metonímica entre a palavra
poética e a memória (em “Wolfsbohne”), vida e escrita articulam-se metonimicamente.
401
398
CAMBON apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 23.
399
BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 18.
400
BRANDÃO. A vida escrita. In: ______. A vida escrita, p. 23.
401
Devemos observar que nos encontramos num contexto posterior à destituição da figura autoral como
“autoridade” que impera sobre o texto, oráculo a ser ingenuamente consultado quando se tem dúvidas
acerca da compreensão de seus escritos e, assim, novas possibilidades de articulação entre a vida e a obra
dos escritores vêm sendo praticadas. Debates sobre a “ficção auto/biográfica” e a “crítica biográfica”
revelam maneiras interessantes de abordagem da vida dos escritores, abrangendo suas doenças, morte,
morada (contenções, deslocamentos) e escrita. Por certo, não mais importa se o evento ocorreu e a maneira
exata como se deu – se a mãe de Proust o beijava todas as noites, durante a sua infância (o que é de
interesse apenas dos biógrafos). O vivido nunca aparece como tal no escrito. A título de exemplo, Eneida
Maria de Souza menciona, na passagem de Roland Barthes por Roland Barthes, a orientação das datas e do
tempo: Barthes escreve ao lado de sua foto de infância “Eu começava a andar, Proust vivia ainda e
terminava a Busca” (BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 29. Grifo no original). Com
Souza podemos observar que a vida do escritor já se orienta não por datas empíricas, mas literárias – a vida
de Barthes já era, desta forma, literária. O autor empírico não quer saber do empírico, mas dos outros
escritores. Autores desejam conhecer o túmulo dos outros, como Hannah Arendt em relação a Walter
Benjamin. (palestra realizada por Eneida Maria de Souza no evento CRÍTICA BIOGRÁFICA E FICÇÃO
AUTO/BIOGRÁFICA, aos 05 de novembro de 2007, Faculdade de Letras da UFMG.) É esta operação de
dupla via de transformação entre o vivido e o escrito a que nos interessa de maneira especial.
146
Não se trata de uma relação especular (em sua acepção mais imediata), nem de paralelas, mas
de tangenciamentos: “a matéria da vida está ligada à letra”.
402
Tangenciamentos que, em termos celanianos, são gerados por Meridianos, linhas
imaginárias que dão título ao texto poetológico proferido em ocasião do recebimento do
prêmio Georg Büchner. Celan o elucida em seu discurso:
Minhas senhoras e meus Senhores: encontro alguma coisa que me consola
um pouco por, na vossa presença, ter percorrido este caminho do impossível, este
impossível caminho.
Encontro aquilo que une e como que conduz o poema ao encontro.
Encontro qualquer coisa – como a linguagem – de imaterial, mas terreno,
planetário, de forma circular, que regressa a si mesma depois de passar por ambos
os pólos e – coisa divertida! – cruzar os trópicos: encontro um Meridiano.
403
Esta linha cruza imaginariamente, delimita, liga, leva o poema ao encontro (como a
Flaschenpost, mensagem na garrafa, carta/poema como algo não endereçado a alguém
específico, do discurso de Bremen, de certa forma). Ainda, o Meridiano de Celan parece
levar o poema ao encontro de sua data, do evento com o qual pode se relacionar. Barros
recorre a Deguy: “Ele [o poema] espera repassar no ‘meridiano’: quer dizer cruzar com
uma circunstância”.
404
Precede, ainda, uma articulação de Celan referente a data:
Talvez se possa dizer que em cada poema fica inscrito o seu “20 de janeiro”.
Talvez o que há de novo nos poemas que hoje se escrevem seja isto: que é aí que,
da forma mais clara, se procura manter a memória de tais datas.
Mas não é a partir de tais datas que se escreve o nosso destino? E escrevemo-
nos em direcção a que datas?
405
“No dia 20, Lenz atravessou a montanha”:
406
assim tem início “Lenz”, de Georg
Büchner, que dá título ao prêmio literário recebido por Celan. Büchner redigira “Lenz”,
como conta o tradutor português no posfácio intitulado “A forma de uma morte”,
402
BRANDÃO. A vida escrita. In: ______. A vida escrita, p. 25.
403
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 63.
404
DEGUY apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 38-39. Barros menciona que Celan busca um MeridianoSelbstbegegnung [encontro de si
mesmo], como escreve em sua agenda no dia do recebimento do prêmio (Ibidem, p. 37-38).
405
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 54.
406
BÜCHNER. Lenz, p. 7.
147
provavelmente entre a primavera e o inverno de 1835, referindo-se à passagem de Lenz
pelos Vosges e à sua estadia com o pastor Johann Friedrich Oberlin, de 20 de janeiro até 8
de fevereiro de 1778, em Waldbach, um povoado na proximidade de Estrasburgo.
407
20 de
janeiro de 1942 é o dia da “Wannsee-Konferenz”, no qual a “solução final”, Endlösung,
para a “questão judaica” – decisão pelo extermínio dos judeus – fora tomada e
estrategicamente planejada.
408
A data, em Celan é, para além da indicação temporal, algo
que permite entrecruzar acontecimentos, informações ou fatos históricos, políticos,
literários e pessoais; são as coordenadas do meridiano. Emmerich menciona, ainda, o 20 de
janeiro, no plano pessoal, como data que poderia ser utilizada para corresponder à morte da
mãe, algo que nunca poderia ser comprovado.
409
Lembremos, sua mãe, como as outras
vítimas, não teve túmulo e também não teve data de falecimento. Fora estirpada de seu
corpo e de sua morte. Nas palavras da poeta e amiga de Celan Nelly Sachs: “foi a própria
morte que foi roubada daqueles que morreram e foram exterminados”.
410
“Escrevemo-nos” – schreiben wir uns
411
– Celan utiliza esta articulação atípica na
língua alemã neste contexto no qual uma data-meridiano, por assim dizer, ressignifica ou
reescreve um poema e nós nos escrevemos
412
em direção às datas. O poeta parece querer
reivindicar, também, seu gesto de recorrer aos fatos reais (não ser surrealista, como se lhe
atribui durante um período). Reage com frustração e raiva, como comenta Harbusch, com a
incompreensão a seus poemas: “Totalmente não herméticos” – consta na dedicatória do
livro Die Niemandsrose a seu tradutor inglês Michael Hamburger. O poeta diz a um amigo,
407
DUARTE. A forma de uma morte. Lenz e Büchner. In: BÜCHNER. Lenz, p. 95.
408
EMMERICH. Paul Celan, p. 9-10.
409
Ibidem, p. 12.
410
SACHS apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 116.
411
CELAN. GW. Dritter Band: Gedichte III, Prosa, Reden, p. 196.
412
Cf. poema “NÃO TE ESCREVAS/entre os mundos,// ergue-te contra/ a variedade de sentidos,// confia no
rasto das lágrimas/ e aprende a viver” (CELAN. A morte é uma flor, p. 73).
148
em 1968: “Meu último livro é considerado cifrado. Acredite-me, cada palavra foi escrita
com referência direta à realidade. Mas não, isso é o que não querem absolutamente
entender...”
413
A questão sobre o sentido, diz Celan na “Alocução em Bremen”, é a questão sobre o
“sentido dos ponteiros do relógio”, ou seja, a direção e a temporalidade. Celan argumenta
que o poema não é atemporal, mesmo que proclame pretensão de infinitude, que atua
através dos tempos e não além deles.
414
Celan, no texto poetológico “O Meridiano”, transita entre a questão da auto-
referencialidade da poesia (como ao mencionar o ato de levar Mallarmé às últimas
conseqüências) e, ao mesmo tempo, o falar “em causa alheia”, o “radicalmente Outro”,
415
o “Eu esquecido de si”:
Talvez a poesia – é apenas uma pergunta –, talvez a poesia tal como a arte, se
dirija, com um Eu esquecido de si, para aquelas coisas inquietantes e estranhas,
para de novo se libertar – mas onde? mas em que lugar? mas com que meios?
mas em que condição?
416
Datas com suas fisionomias (como lembra benjaminiamamente Barros),
417
a
singularidade das circunstâncias, a reivindicação do atrelamento à realidade – uma
realidade ferida – figuram na poesia de alguém “ferido de realidade e em busca de
realidade”.
418
Os poemas são, também, marcados por feridas, ou além, parafraseando Ana
Cristina César em Inétidos e dispersos, os poemas são, eles mesmos, feridas. Ora restaura,
413
CELAN apud HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas
conseqüências. Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea. Estudos Neolatinos, p. 42.
414
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 34.
415
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 55.
416
Ibidem, p. 51.
417
José Eduardo Barros menciona, aludindo ao livro Schibboleth de Derrida, a questão do “enigma da data”,
bem como as referências a lugares, já que diversos poemas são datados em Zurich, Tübingen, Todnauberg,
Paris, Jerusalém, Lyon, Tel-Aviv, Viena, Assis, Colônia, Genebra, entre outros (BARROS. Passagens ao
poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 39).
418
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 34.
149
cura, ora sangra, hemorragia, a poesia de Celan deve fazer esta travessia “letal”.
419
Encontramo-nos, assim, nesta finíssima textura entre a linguagem e os eventos,
Lebensschrift, não sem riscos, marcas ou efeitos.
5.2 “DE TODAS AS FERIDAS TRAUMA, REAL, DOR, MELANCOLIA
Escritura do trauma, da dor e do real foram alguns dos termos usados aqui para
designar os acontecimentos ou aquilo que, insistentemente, escapa à malha simbólica. Não
devem, contudo, ser tomados como equivalentes, embora estejam entrelaçados. Conquanto
os termos não tenham sido precisa e conceitualmente citados, já perpassam nossa reflexão
em sua integridade. Serão feitas aqui, portanto, breves considerações teóricas sobre os
mesmos.
É necessário considerar, antes, que os termos em questão possuem tradicional
trajetória na teoria psicanalítica. Esta, decerto, também precisa ser reconsiderada após
Auschwitz, como menciona Bohleber na revista psicanalítica alemã Psyche, em 2000,
evocado por Seligmann-Silva:
As catástrofes do século passado, bem como as do que se inicia, guerras,
Holocausto, perseguição racista e étnica, bem como o crescimento da violência
social e a consciência agora desenvolvida com relação à violência na família, aos
maus tratos e abuso sexual de crianças, fizeram e fazem dos traumatismos das
pessoas e das suas conseqüências uma tarefa incontornável para o desenvolvimento
teórico e para a técnica da psicanálise.
420
É certo que Jacques Lacan teceu algumas considerações a respeito dos campos de
concentração, sem deter-se exaustivamente. Merece destaque, talvez, aquela realizada na
Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o analista da Escola:
419
“as mil trevas de um discurso letal”, consta na “Alocução em Bremen”. CELAN. Arte poética: o meridiano
e outros textos, p. 33.
420
BOHLEBER apud SELIGMANN-SILVA. Literatura e trauma: um novo paradigma. In: ______. O local
da diferença, p. 63.
150
A terceira faticidade, real, sumamente real, tão real que o real é mais hipócrita
[bégueule] ao promovê-la do que a língua, é o que torna dizível o termo campo de
concentração, sobre o qual nos parece que nossos pensadores, vagando do
humanismo ao terror, não se concentraram o bastante.
Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror,
representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como
conseqüência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente,
da universalização que ela ali introduz.
[...]
Que a “coexistência” [entre a IPA e os campos, como se refere], que bem
poderia, também ela, ser esclarecida por uma transferência, não nos faça esquecer
um fenômeno que é uma de nossas coordenadas geográficas, caberia dizer, e cujo
alcance é mais mascarado por tagarelices sobre o racismo.
421
A despeito de algumas considerações que fogem ao nosso escopo, devemos destacar
que, assim como Adorno situa o paradoxo entre Auschwitz versus lírica e crítica; observa-
se que para a psicanálise os campos também esboçam uma aporia. Ademais, que o vagar
dos pensadores entre o humanismo e o terror pode também banalizar o problema dos
campos ou impedir/bloquear sua percepção.
Na passagem, interessa-nos especialmente a menção dos campos como aquilo que
há de demasiadamente real – produzindo assim o seu desconhecimento. É, desta forma, um
problema, também para a psicanálise.
Consideramos, contudo, que a teoria e técnica esboçada por Freud – que não pôde
falar do lugar epistêmico dos pensadores “pós Auschwitz” – oferece elementos valiosos
para a reflexão em questão. Ainda, que os esforços de teorização em torno da catástrofe,
que é avessa ao saber, fazem-se necessários, uma vez que não pensamos no ocorrido como
um evento histórico isolado.
421
Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola. In: Outros escritos, p. 263. O contato
com esta e outras referências de Lacan aos campos de concentração devo a Simone Pinho Ribeiro, do
Mestrado em Teoria Psicanalítica na UFMG e cuja dissertação versa o problema da psicanálise e os
campos de concentração.
151
5.2.1 TRAUMA
Nestrovski e Seligmann-Silva lembram que o locus classicus do estudo moderno do
trauma é o capítulo 18 das “Conferências introdutórias” de Freud, no qual se estuda o caso
dos soldados austríacos que retornam da Primeira Guerra incapazes de falar sobre o que
viram.
422
Na conferência XVIII, Freud define o trauma como “uma experiência que, em curto
período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para
ser manejado ou elaborado de maneira normal”.
423
O traumático é definido, portanto, em
seu aspecto econômico, i.e., a situação traumática permite-nos compreender de maneira
mais apurada o aspecto econômico do funcionamento mental. Nesta conferência, o que nos
chama a atenção e que inquietou Freud era justamente supor um modelo de fixação pautado
na teoria da sexualidade, i.e., da fixação num momento em que a satisfação libidinal sofria
menos restrições e, posteriormente, deparar-se com sujeitos que parecem, estranhamente e
de maneira pouco prática, fixarem-se justamente num trauma. Freud indaga-se mesmo se
isso não seria uma característica geral das neuroses.
424
É relatado que estes pacientes
422
NESTROVSKI; SELIGMANN-SILVA. Apresentação. In: ______. Catástrofe e representação, p. 8.
423
FREUD. Fixação em traumas: o inconsciente (1917 [1916-1917]). Conferência XVIII. In: ______.
Conferências introdutórias sobre a psicanálise, p. 325.
424
Considerando, com o aporte de Freud, uma acepção mais abrangente do trauma, é possível postular um
alcance maior da literatura originária do trauma, tal como da noção de teor testemunhal. De certa forma, a
experiência é sempre traumática (sem que se desconsidere a particularidade da escrita dos sobreviventes de
eventos violentos ou que os impactos destes sejam subestimados). Deve-se observar que na “Introdução a
‘A psicanálise e as neuroses de guerra’”, de 1919, Freud encontra-se às voltas com uma distinção entre as
“neuroses de transferência” e as “neuroses traumáticas”. Enquanto nas primeiras o inimigo é a libido; na
segunda, o ego defende-se de um perigo de fora ou incorporado. Em ambos os casos, há um ego
prejudicado, porém, pela libido ou pela violência externa, respectivamente. O recalque, base de toda
neurose, é uma reação ao trauma (FREUD. Introdução a “A psicanálise e as neuroses de guerra”, p. 262-
263). Também na Conferência XVIII Freud afirma que a neurose poderia equivaler a uma doença
traumática que aparece em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse
excessivamente intenso (FREUD. Fixação em traumas: o inconsciente (1917 [1916-1917]). Conferência
XVIII. In: ______. Conferências introdutórias sobre a psicanálise, p. 325).
152
repetem com regularidade a situação traumática em seus sonhos, como se não tivesse
findado ou se tivesse uma tarefa não executada.
425
É interessante observar que em muitos casos de eclosão de sintomas das neuroses
traumática ou de guerra (lembremos que tais classificações não eram a preocupação central
de Freud) não há ferida física. O recalque, defesa primária contra o excesso, está na base de
todas as neuroses, e tais casos não se excluem. O mais eloqüente nesses casos é justamente
o fato de que a ferida física sofrida na situação de violência parece ser uma possibilidade de
ligação, uma inscrição. Tudo se passa como se a lesão física pudesse fazer uma
“amarração” em torno da experiência.
Em uma breve passagem da Conferência XVIII chamou-nos a atenção uma possível
articulação entre trauma (na acepção aqui utilizada) e luto (um trabalho perpassado pela dor
psíquica): “um perfeito modelo de fixação afetiva em algo que é passado, é o que se nos
apresenta no luto, que realmente envolve a mais completa alienação do presente e do
futuro”.
426
5.2.2 DOR
Tais temas permitem uma aproximação da reflexão sobre a dor (física, psíquica),
também indizível, lembremos. Jaime Ginzburg, em artigo dedicado ao tema da dor e da
linguagem, convoca as Investigações filosóficas, de Ludwig Wittgenstein, para pensar o
problema da inserção da dor na vida privada e a manifestação da mesma ao outro. A
palavra “dor” seria uma espécie de conector para que o outro pudesse compreender o que se
425
FREUD. Fixação em traumas: o inconsciente (1917 [1916-1917]). Conferência XVIII. In: ______.
Conferências introdutórias sobre a psicanálise, p. 325.
426
FREUD. Fixação em traumas: o inconsciente (1917 [1916-1917]). Conferência XVIII. In: ______.
Conferências introdutórias sobre a psicanálise, p. 326.
153
passa em mim, mas que não coincide com uma manifestação na vivência imediata, como
um grito. Tais vivências são inacessíveis aos outros. Ainda, ao tentar representar a dor dos
outros, devo pautar-me numa dor que sinto para compreender uma dor que não sinto, o que
impõe, também, dificuldades. As reflexões propostas estão, portanto, nos territórios do
indizível – “a perturbação resultante do antagonismo entre a necessidade de integração com
o outro e a vertigem do isolamento”.
427
As palavras escapam à finalidade comunicativa, seja a dor física ou psíquica. Esta
distinção é, ela mesma, relativamente arbitrária. Como diferenciar a dor física, do corpo,
daquela da alma ou psíquica? Ao sentirmos alguma dor no corpo, algum padecimento
orgânico, isso parece nos consumir do ponto de vista psíquico, a libido se volta para o ego,
como diz Freud, e, ainda, convocando Wilhelm Busch: concentrada está a alma (do poeta
que sofre de dor de dentes) no estreito orifício do molar.
428
A dor psíquica – como o luto
devido à perda de um ente querido – também nos exaure fisicamente – desfazer associações
é, de fato, sempre doloroso.
Freud se dedica ao problema da dor desde seu “Projeto para uma psicologia
científica”, de 1895, com formulações em torno da vivência de satisfação e da vivência da
dor.
429
Consta, também, a dimensão da dor como forma de obter conhecimento sobre os
nossos órgãos e, assim, ter uma idéia ou representação interna do corpo. Já se fala em
melancolia como “ferida”, “hemorragia interna” ou “furo no psíquico” – observa-se que
para referir-se à dor psíquica são necessárias analogias ao corpo, este como uma espécie de
427
GINZBURG. Dor e linguagem: em torno de Wittgenstein. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=24&id=263&tipo=1>. Acesso em:
07 abr. 2008.
428
FREUD. Sobre o narcisismo: uma introdução [1914]. In: ______. A história do movimento psicanalítico,
p. 98.
429
Sobre o tema da dor ao longo da obra de Freud, ver a dissertação de Mestrado em Psicologia de Marinella
Morgana de Mendonça (As incidências da repetição no corpo, pela via da dor. 2006. Universidade Federal
de Minas Gerais).
154
envoltório perfurado, sob o referencial do ego (narcísico). É interessante pensar que, até o
surgimento da psicanálise, era utilizada uma orientação de um modelo médico ou orgânico
para se tratar a queixa psíquica. O sujeito histérico, entretanto, desafia este modelo, pois
mimetiza a lesão. O que não significa, por certo, que sua dor seja falsa.
De fato, a dor não é um termo que se possa definir apressadamente. Freud fala, em
um dado momento, de “pseudo-pulsão”. A dor é sem contrário – não pode ser integrada na
série prazer-desprazer – o contrário da dor não é o prazer, i.e., ao eliminar uma dor não se
tem, necessariamente, prazer. Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, bem como
em “Instinto e suas vicissitudes” consta, ainda, a “dor” vinculada ao prazer ou à fruição a
propósito do sadismo e do masoquismo.
5.2.3 MELANCOLIA
Devemos convocar, assim, o valioso aporte de Freud em Luto e melancolia (1917
[1915]). No mesmo, o luto é referido como “reação à perda de um ente querido, à perda de
uma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade, ou o ideal
de alguém”.
430
Menciona, em seguida, que, em algumas pessoas, as mesmas influências
podem produzir a melancolia. No trabalho do luto, o teste de realidade demonstra que o
objeto não mais existe. Na melancolia, os traços assemelham-se aos do luto, a exceção da
perturbação dos sentimentos chamados de auto-estima – “sabe quem ele perdeu, mas não o
que perdeu nesse alguém”.
431
Desta forma, se no luto o mundo torna-se empobrecido, na
melancolia isso ocorre com o próprio eu, constata Freud.
430
FREUD. Luto e melancolia [1915]. In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre
metapsicologia e outros trabalhos, p. 275.
431
Ibidem, p. 277-278 (Grifo no original).
155
A melancolia é um território extenso, passível de abordagem desde a Antigüidade,
conceito caro também a Walter Benjamin, momentaneamente trazido à baila ao longo deste
estudo. Articulações entre a escrita e a melancolia, mesmo sobre uma escrita melancólica,
já contam com extensa bibliografia no âmbito da crítica literária. Reflexões sobre uma
poética da melancolia em Paul Celan são feitas por José Eduardo Barros em Passagens ao
poético. Para fins de situar o debate em questão: Barros dedica-se à troca epistolar entre
Paul Celan e sua esposa Gisèle Celan-Lestrange, organizada por Bertrand Badiou. Trata-se
de uma correspondência extensa (iniciada em 1951 e finda em 1970), que lança luz sobre o
processo criativo de Celan, as invenções e experiências que povoam sua poesia. Também o
intenso sofrimento psíquico dos últimos anos da vida de Celan são trazidos à tona. O autor
convoca, ainda, massiva parte da recepção francesa de Celan.
A questão da língua encontra-se, notadamente, em cena, já que o poeta escrevia à
sua mulher em francês, sua língua de exílio e não sua língua poética. Traduções dos
poemas,
432
neologismos que, de certa forma, galicizam o alemão ou germanizam o
francês
433
(como com as diversas línguas, Celan babeliza
434
o seu alemão), comentário
sobre o engendramento de uma língua própria
435
de Celan, sobre a língua como sua
432
Celan fazia traduções de seus poemas para o francês para que sua esposa pudesse compreendê-los. Consta
em uma carta de Gisèle Celan-Lestrange “Meu Poeta querido, eu gostaria tanto de poder ler tudo o que
você escreve. Mas, não acredita você que eu ficarei sempre um pouco estrangeira?” (BARROS. Passagens
ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 61). Ademais, Celan escreve
“lestrangement”, aludindo à sonoridade do nome “De Lestrange” com “De l’étranger” (Ibidem, p. 65).
433
O autor cita Bertrand Badiou: “há um certo gozo ao manejar o francês e ao inventar em francês”
(BADIOU apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 55).
434
Em alemão, umbabeln. Ver o poema do volume SP: “O OUTRORA, UM BORDEL. E a eternidade/ babelizada
em negro-sangue” (CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 165). “H
URIGES SONST. Und die Ewigkeit/
blutschwarz umbabelt” (CELAN. KG, p. 317).
435
Cf. CARONE NETTO. A poética do silêncio: João Cabral de Melo Neto e Paul Celan. São Paulo:
Perspectiva, 1979. p. 19-20.
156
pátria
436
ou seu país denominado Celanie,
437
entre outros, ganham espaço neste vasto
terreno da escrita do poeta.
Se, por um lado, mencionamos o uso de parâmetros corporais tais como “ferida” ou
“hemorragia interna” como esforço de aceder à melancolia, Barros detém-se sobre um
neologismo de Celan, com sua origem na troca epistolar, especificamente naquilo que o
autor chama de “Dicionário Celan” – indicações que Celan agrega aos poemas para auxiliar
a tradução na leitura de sua esposa – cicatricement, “cicatrizmente”, e Narbenwahr.
438
A
Narbenwahr “sempre em movimento, enganchada/ no extremo,/ impossível de se
desenredar”.
439
A cicatriz não é, portanto, uma solução, como aparenta – é uma marca, está
viva em seu movimento, mas é impossível de desenredar.
A partir de 1962, agrava-se o sofrimento psíquico de Celan, fortemente atrelado ao
caso Goll. A relação do casal torna-se, também, cada vez mais precária. Celan interna-se
em uma clínica psiquiátrica particular de Epinay-sur-Seine. Trata-se do período
contemporâneo à redação de alguns poemas de Die Niemandsrose. A troca de
correspondência é, para o poeta, vital, como cita Barros: “Continue, eu lhes peço, me
escrevendo todos os dias: é de suas cartas que jorram minha esperança e minha
coragem”.
440
436
Cf. HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências,
p. 31.
437
José Eduardo Barros menciona o engendramento da pátria Celanie e, ainda, uma observação de Fernand
Cambon sobre a homofonia do nome do poeta com o verbo em francês celer [ocultar] e celant [ocultando]
e indaga se teria alguém pensado que “Celan” poderia ser lido como “ocultando” (BARROS. Passagens ao
poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 55).
438
“Narbenwahr” poderia ser traduzido por “verdade-cicatriz”: uma verdade que se manifesta através das
cicatrizes; também pode ser compreendido como sendo algo “da verdade de uma cicatriz”. Cf. poema
“DAS NARBENWAHRE” (CELAN. KG, p. 488-489).
439
CELAN apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 71.
440
Carta de Paul Celan do dia 04 de janeiro de 1963, traduzida e citada por BARROS. Passagens ao poético.
A correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 76. Tradução de Barros.
157
Em abril de 1965, Celan padece novamente de um episódio depressivo e interna-se,
no mês de maio, em outra clínica psiquiátrica. José Eduardo Barros cita a carta na qual
Celan afirma estar conseguindo dormir com a ajuda de soníferos e que lê uma novela de
Camus: “Poucas palavras, poucas coisas – e no entanto é um grande progresso. São forças
recuperadas para lutar, juntos, por e com nosso filho. A Poesia, também ela, virá nos
ajudar. Somos sempre parte dela, estamos sempre nela”.
441
Celan aposta na força da poesia
como “cura”,
442
possibilidade de restabelecimento, contígua e em reciprocidade com
relação à vida. Do mesmo mês consta uma carta não enviada ao crítico Jean Starobinski,
um pedido de ajuda, que lhe recomende um médico judeu. Judaísmo e Poesia, diz, são
formas do Humano.
443
Na mesma carta diz estar muito perturbado, que tanto fizeram para o
perturbar, mas que não está sem lucidez.
Entre os dias 17 e 18 de janeiro de 1965, Celan escreve uma extensa carta, marcada
pelas horas, que Barros designa como uma espécie de diário de angústia: “(...) Sem esta
campanha contra mim [caso Goll], e que é, isso é cada vez mais evidente, uma vasta
tentativa de recalcar, de excluir este poeta um pouco aliás que eu sou, sem tudo isso: como
nossa vida teria sido tão serena, de amor e de trabalho, da educação de nosso filho. (...)”.
444
Após outras internações, o estado de Celan agrava-se, até que ela propõe a separação, para
441
Carta de Celan do dia 18 de maio de 1965, traduzida e citada por BARROS. Passagens ao poético. A
correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 78. Esboça-se, através desta afirmação, o seu
“programa metonímico” (Expressão utilizada por Georg Otte).
442
Cf. aforismo de Benjamin intitulado “Conto e cura”: “Também já se sabe como o relato que um paciente
faz no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo curativo. Daí vem a pergunta se a
narração não formaria o clima propício e a condição mais favorável de muitas curas, e mesmo se não
seriam todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe – até a foz –, na correnteza
da narração. Se imaginarmos que a dor é uma barragem que se opõe à correnteza da narrativa, então vemos
claramente que é rompida onde sua inclinação se torna acentuada o bastante para largar tudo o que
encontra em seu caminho ao mar do ditoso esquecimento” (BENJAMIN. Rua de mão única: obras
escolhidas. v. II, p. 269).
443
Carta de Paul Celan do dia 04 de janeiro de 1963, traduzida e citada por BARROS. Passagens ao poético:
a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 81.
444
Ibidem, p. 83. O autor dedica-se a uma reflexão dos verbos stehen e maintenir, utilizados ao longo desta
carta e em outras cartas do período.
158
poupar o filho, recebida por ele com dificuldade. Na noite entre os dias 23 e 24 de
novembro de 1965, durante uma profunda crise, em estado delirante, Celan tenta matar
Gisèle com uma faca. Ela escapa com o filho e pede ajuda aos vizinhos. Aos 28 de
novembro, Gisèle Celan-Lestrange, juntamente com os médicos que o atendiam, optam por
uma internação forçada.
445
O casal continua a se corresponder, ambos em profunda aflição
e sofrimento.
Em fevereiro de 1966, Celan encontra-se em tratamento numa clínica, e a questão
relativa ao seu nome volta a entrar em cena. Na ocasião, Celan não apresenta objeção em
ser chamado por Antschel, mas prefere Antschel-Celan: “com isso nós nos habituamos com
os dois nomes”, diz.
446
No ano de 1955, ao solicitar a sua naturalização na França, o poeta
havia desejado manter o nome Paul Celan, mas obtém resposta negativa, já que a
administração pública francesa considera uma “francesação” do nome, uma verdadeira
mudança de nome que não poderia ser feita. Assim, o nome “Antschel” é utilizado nos
períodos de internação oficial e diante da necessidade de realizar algum ato
administrativo.
447
No mês de junho de 1966 Celan deixa o hospital e retoma as atividades na École
Normale Supérieure. Os episódios de delírios cessam durante um período, até o mês de
janeiro de 1967, no qual o poeta enfrenta novamente dificuldades psíquicas, agravadas por
um encontro fortuito com Claire Goll no Instituto Goethe de Paris. No fim do mesmo mês,
Celan tenta suicídio com uma facada próxima ao coração, salvo por Gisèle Celan-
445
Fora necessário o uso de camisa de força. Alguns anos depois, Celan escreve um poema referindo-se ao
ocorrido, intitulado “DIE LIEBE, zwangsjackenschön” [“O AMOR, de uma beleza de camisa de força”]
(Ibidem, p. 85).
446
Ibidem, p. 87.
447
Ibidem, p. 88.
159
Lestrange, que o leva ao hospital in extremis,
448
tendo que se submeter a cirurgias no
pulmão que fora perfurado. Celan é novamente internado em hospital psiquiátrico, onde
escreve mais da metade dos poemas de um dos livros tardios. Aos 18 de março de 1970
escreve uma de suas últimas cartas a Gisèle Celan-Lestrange, na qual diz “Que posso eu te
oferecer, minha querida Gisèle? Eis um poema escrito pensando em você” seguido por um
poema, em alemão com uma tradução para o francês, cujos últimos versos dizem: “De meu
(do meio de) delírio (minha loucura)/ Partido(a) em estilhaços/ eu me ergo (me erijo)/ e
contemplo minha mão/ que traça/ o um, o único/ círculo”.
449
Vemos o poeta “em ruínas”
(estilhaços), que almeja “fechar o círculo”, criar um todo redondo, como se tratasse da
totalidade da própria vida.
Este excurso biográfico revela o intenso sofrimento do poeta nos últimos anos de
vida, de uma vida dolorosa, intimamente imbricada à escrita – seja nos pedidos de socorro à
Poesia, na retomada epistolar, nos intensos trabalhos de tradução e composição de poemas
(inclusive e, por vezes, especialmente durante as internações), no caso Goll e sua
permanente revivescência do “roubo” daquilo que era tão caro ao poeta – um trauma,
talvez, ainda mais grave, que o priva de sua palavra; seja, também e de maneira especial, no
convívio aturado com o constante fragmentar e fazer reviver a língua alemã (sempre
materna e dos assassinos). A poética de Celan encontra-se em território próximo à morte, à
retomada da língua e necessidade de fraturá-la. Trabalha-se às voltas com a morte – aquela
que está no entorno da língua alemã, a morte produzida naquela língua, a morte daquela
448
BARROS cita a cronologia elaborada por Bertrand Badiou (BARROS. Passagens ao poético: a
correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 91).
449
Ibidem, p. 94 (Tradução, do francês, de Barros).
160
língua.
450
A cicatriz na língua está sempre na iminência de ser aberta, é tecido frágil que
não cerra.
Ao argumentar a idéia de uma poética da melancolia em Celan, Barros utiliza as
palavras de Martine Broda: trata-se de um “lirismo da dor”, a partir de “um jogo de luto”.
451
Tal como na conhecida formulação freudiana de que, na melancolia, “a sombra do objeto
caiu sobre o ego”,
452
a imersão nestas “tantas perdas”, a travessia das “mil trevas de um
discurso letal”
453
não é sem efeitos. Barros observa, com referências a Benjamin, ao
barroco e à alegoria, que o mergulho no objeto, com a intenção de salvá-lo, acarreta o preço
de perder-se nele:
454
intento encenado em vários versos, como “Inselhin, neben den Toten”
[“Em direção à ilha, junto aos mortos”] e, certamente e em primeiro plano, “o luto
insuperável e insuperado da mãe”.
455
Poderíamos convocar, entre os poemas mencionados em nosso trabalho, para
descrever esta trajetória, desde os versos escritos na ocasião do recebimento da notícia da
morte da mãe, “Es fällt nun, Mutter, Schnee in der Ukraine” [“Cai agora, mãe, neve na
450
O autor cita expressões que designam experiências, cunhadas por Jacques Derrida, como “carne viva” e
“morte da língua”, além da detalhada explicitação feita por Derrida em ocasião de uma entrevista ao Diário
de poesia, na qual expõe aquilo que enfrenta o poeta que escreve na língua alemã: “em todos aqueles
lugares onde sentiu que a língua alemã era assassinada de alguma maneira, por exemplo, por sujeitos de
língua alemã que faziam certo uso dela: que a lastimavam, a matavam, lhe davam morte porque a faziam
falar de tal ou qual modo. A experiência do nazismo é um crime contra a língua alemã. O que se disse em
alemão, sob o nazismo, é uma morte. Há outra morte que é a simples banalização da língua. E logo há
outra morte que é aquela que não pode advir à língua, senão a causa do que ela é, quer dizer: repetição,
letargia, mecanização, etc.” (DERRIDA apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul
Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 102).
451
BRODA apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 103.
452
FREUD. Luto e melancolia [1915]. In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre
metapsicologia e outros trabalhos, p. 281.
453
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 33.
454
BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, p. 106.
455
SAGNOL apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 108. Sagnol aponta a travessia realizada nos poemas da juventude, desde o poema “Papoula”,
no qual o coração da bem amada está “negro de melancolia”, e em “Do azul”: “o granizo preto da
melancolia/ cai num lenço, todo branco de dizer adeus”. Barros evoca também o poema de Gerard de
Nérval, “El Desdichado”, citado por Julia Kristeva em Sol negro – depressão e melancolia, que fora
traduzido por Paul Celan e que tivera, neste, forte efeito (Ibidem).
161
Ucrânia”], ao seu próprio “leito de neve” [“Schneebett”], seu indagar constante à mãe
morta – sobre a suave e dolorosa rima alemã, que rima justamente “daheim” [casa, lar] e
“Reim” [rima] em um poema de juventude; e o que floresce aí, mãe?, que mão apertei
quando com tuas palavras fui para a Alemanha? da poesia do espólio percorrida em nossos
esforços. A culpa irreparável de haver sobrevivido sempre em seu pano de fundo. A noite
da deportação dos pais, 27 de junho de 1941, nunca lhe foi simples de relatar. Ruth Lackner
conta que havia encontrado um refúgio numa fábrica de cosméticos. Paul Antschel obstina-
se em fazer com que seus pais o acompanhem, mas sua mãe, resignada, teria dito que não
podiam escapar ao destino que lhes correspondia e que, finalmente, havia muitos judeus
vivendo na Transnístria.
456
Diz-se que Paul Antschel discutiu com seus pais e se foi,
furioso. No dia seguinte, a casa estava vazia e seus pais teriam desaparecido. Ao menos
duas versões, com variações desta, são descritas por Felstiner, segundo os relatos de amigos
e informantes. Porém, todas evidenciam uma cena de aspecto traumático essencial, da culpa
terrível por uma “traição”.
457
A dolorosa deportação e morte dos pais e a culpa implicada nestes acontecimentos
figuram na poesia de Celan e são reeditadas através da questão da língua “materna” e “dos
assassinos”. Acrescenta-se, ainda, o caso Goll, que acarreta nova e mais grave dimensão ao
problema da língua, agregado de afirmações ofensivas e imorais que reeditam a culpa e o
luto de Celan sobre a morte dos pais – diz Claire Goll: “sua triste lenda [!]”, “tão trágica de
contar”,
458
fazendo ataques sarcásticos a sua identidade de judeu sobrevivente cujos pais
456
Felstiner observa que eles não teriam como saber que, neste período, dois terços dos judeus transportados à
Transnístria já estavam mortos (FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 41).
457
Estas informações, bem como outros detalhes acerca da deportação dos pais de Celan, são encontradas
com mais detalhes na biografia feita por Felstiner (FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío,
p. 41).
458
“seine traurige Legende [!]” e “so tragisch zu erzählen“. Claire Goll citada por EMMERICH. Paul Celan,
p. 117.
162
foram mortos. Os pedidos de socorro à Poesia, a luta em torno desta “campanha” contra o
poeta e sua poesia, que o fazem lamentar a impossibilidade de encontrar serenidade com a
mulher e filho, estes, que renovavam suas esperanças. O problema do plágio é
especialmente grave, uma vez que se observa, com Michel Schneider, que, em casos
diversos, a questão do nome próprio, a inibição de escrever, a angústia de algum tipo de
influência já figuram em uma criatividade difícil.
459
No nosso poeta, a questão do roubo da
palavra chega ao seu extremo; Celan é duplamente perseguido e privado da fala. Ademais,
fazendo referência a um fragmento de Hofmannsthal, Schneider lembra que a
Sprachlosigkeit se liga à Ichlosigkeit, a perda da linguagem à ausência do eu”.
460
Linguagem “mais cinzenta”,
461
diz em resposta a um inquérito da Librairie Flinker,
“cinza mais branca/ repousa sobre a palavra em que acreditaste”,
462
“tira-me, feito casca, da
minha palavra”
463
em confronto com “ergo-me íngreme no meio/ da obediência à palavra,
livre”,
464
“ergue-te contra/ a variedade de sentidos,// confia no rasto das lágrimas”.
465
Coagular, cristalizar, cicatrizar – são os esforços impossíveis de alguém que se encontra
entre “tantas perdas”,
466
profundamente “ferido de realidade e em busca de realidade”.
467
É,
todavia, possível fazer esta travessia sem gastar uma palavra?
468
459
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 14.
460
Ibidem, p. 15.
461
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 30.
462
CELAN. A morte é uma flor, p. 23.
463
CELAN. A morte é uma flor, p. 37.
464
CELAN. A morte é uma flor, p. 63.
465
CELAN. A morte é uma flor, p. 73.
466
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 33.
467
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 34.
468
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 33.
163
5.3 “LÍNGUA SOBREVIVENTE
Os textos poétologicos de Celan – tais como “O Meridiano”, a “Alocução à entrega
do prêmio da cidade livre e hanseática de Bremen” e outros – são uma pequena e valiosa
parte da obra do poeta, que envolve reflexões sobre arte, estética e, em especial para o
nosso propósito, a escrita, a poesia e a língua. Não sem rugosidades (para utilizar uma
expressão de Silvina Rodrigues Lopes) e tal como os poemas, também requerem leitura
circular e artesanal. Vejamos a “Alocução em Bremen”, em parte anteriormente
mencionada:
No meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva – a
língua. Sim, apesar de tudo, ela, a língua, permaneceu a salvo. Mas depois de
atravessar o seu próprio vazio de respostas, o terrível emudecimento, mil trevas
de um discurso letal. Ela fez a travessia e não gastou uma palavra com o que
aconteceu, mas atravessou esses acontecimentos. Fez a travessia e pôde reemergir
“enriquecida” com tudo isso.
469
O poeta parece apostar na língua, a mesma impregnada de jargões nazistas, a língua
assassinada, como considera Derrida, a materna e dos assassinos, a língua pátria, da poesia.
Celan almeja, em seu ato poético, pôr também a salvo esta língua recorrendo à memória
dos que melhor a usaram, antes de todos, Hölderlin,
470
como lembra João Barrento. O poeta
destaca que a língua pôde reemergir “enriquecida” de sua travessia. A língua abrangerá os
restos da experiência? Lembremos, com Harbusch, “enriquecida” [angereichert], contém a
palavra Reich, nome tradicional do Estado alemão posto em destaque pelo nacional-
socialismo, que concretiza o que, de fato, o poeta está dizendo: as palavras não atravessam
a história sem danos e culpas.
471
Seligmann-Silva, levando em conta as formulações de
Walter Benjamin, afirma que a língua seria também um sobrevivente: “a língua é
469
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 33.
470
BARRENTO. Memória e silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 131.
471
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 40.
164
sobrevivente da catástrofe e é a única que porta tanto o ocorrido como a possibilidade de
trazê-lo de volta”.
472
Segue Celan:
Nesses anos e nos anos seguintes tentei escrever poemas nesta língua:
para falar, para me orientar, para saber onde eu me encontrava e onde isso
iria me levar, para fazer o meu projecto de realidade.
473
Seu fazer poético é, portanto, uma empreitada no intuito de saber onde se
encontrava e para fazer seu projeto de realidade (este, feito através da escritura nesta
língua). Lembremos: os poemas são, para Celan, nesta “Alocução” mensagens na garrafa
[Flaschenpost], lançadas ao mar em direção a algo aberto, um destino incerto, ocupável,
um “tu apostrofável”, “uma realidade apostrofável” – os poemas não são endereçados a um
“tu” específico, mas a um tu endereçável. Esta língua, a “nossa língua”, como tem início o
texto em questão, nela deve engendrar-se um projeto de realidade. A vertente apresentada é
eminentemente dialógica, o poema é uma possibilidade de abertura em direção a um outro
– é, quem sabe, uma saída. No final da “Alocução”, Celan menciona que são os esforços de
quem, assim como outros poetas, sobrevoado por estrelas que são obra humana, sem teto,
vai ao encontro da língua com a sua existência, ferido de realidade e em busca de
realidade”.
474
Trata-se do que a obra sinaliza: alguém que vai ao encontro da língua com
sua existência. A língua, com o que abrange: materna, dos assassinos, que deve ser
assassinada, que deve ressurgir das cinzas, da poesia da tradição, da poesia de Celan, que
tenta fazer falhar sua gramática, que a “babeliza”. Os poemas evidenciam a ambivalência
da língua e da palavra para Celan: “palavra-limiar”, “palavra que já esteve tempo demais no
472
SELIGMANN-SILVA. Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da
memória. In: ______. (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes, p. 402.
Trata-se, por assim dizer, de uma espécie de “efeito madeleine” da palavra (expressão utilizada por Georg
Otte).
473
CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 33.
474
No original: “mit seinem Dasein zur Sprache geht, wirklichkeitswund und Wirklichkeit suchend”
(CELAN, Paul. Gesammelte Werke in fünf Bänden. Dritter Band: Gedichte III, Prosa, Reden. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1983, p. 186. Grifo nosso).
165
mundo”, “palavra em que acreditaste”, palavra “dor”, “ferida”, “cicatriz”, “suave e dolorosa
rima”, “palavra silenciada”, “palavras dos carrascos”.
A poesia de Paul Celan, em seus diversos procedimentos, quer fazer respirar a
língua alemã. Em “O Meridiano” é dito que a poesia seria qualquer coisa que leva a uma
mudança de respiração, dando-lhe estatuto de fluidez e dimensão corporal. Atemwende,
“mudança de respiração”, “sopro, viragem”, expressão utilizada em poemas e que dá título
a um de seus livros, conta com um primeiro ciclo de poemas intitulado Atemkristall, “cristal
de respiração”, “Hausto-cristal”, que traz a idéia do processo de cristalização ou coagulação
de algo fluido. No entanto, Harbusch lê na expressão uma referência poética extremamente
realista, de uma metáfora forjada para significar o Zyklon B, composto gasoso usado no
envenenamento de judeus, de estrutura química cristalina.
475
A autora cita este e outros
exemplos de Anreicherung [enriquecimento] da língua, mas menciona que tal processo não
se dá apenas com as experiências ocorridas no nacional-socialismo alemão. Em Celan,
como em Mallarmé, diz, há notável polissemia de referências de sentido
476
na obra tardia,
mas, se em Mallarmé as palavras “se iluminam por reflexos recíprocos”, em Celan elas
condensam referências lingüísticas, históricas e humanas.
477
Este esforço de fazer respirar a língua (em seus poemas e traduções) remete-nos ao
que Roland Barthes profere, em sua Aula: não vemos o poder que reside na língua, que nos
esquecemos de que toda língua é uma classificação e, assim, é opressiva. Menciona,
475
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 42.
476
Como o Meridiano, que “passa” por referências e/ou sentidos diversos. Se, de fato, há “sentido”, ou se o
sentido tem alguma importância, seria no uso metonímico da palavra.
477
HARBUSCH. Arte, poesia e tradução em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências.
Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins. Revista Alea, p. 42. Na questão do sentido para Celan, como vimos
na “Alocução em Bremen”, fala também a pergunta do sentido dos ponteiros do relógio, pois o poema não
é intemporal, embora proclame pretensão de infinitude, atua através e não além dos tempos (CELAN. Arte
poética: o meridiano e outros textos, p. 34).
166
remetendo-nos a Jakobson, que um idioma define-se menos por aquilo que ele permite
dizer do que por aquilo que ele obriga a dizer. Finalmente, afirma que a “língua não se
esgota na mensagem que engendra; que ela pode sobreviver a essa mensagem e nela fazer
ouvir, numa ressonância muitas vezes terrível, outra coisa para além do que é dito (...)”.
478
A língua é passível de flexibilidade apenas através da “trapaça salutar”, “esquiva”, “logro
magnífico que permite ouvi-la fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente
da linguagem: a literatura.
479
Celan menciona esta esquiva à obediência da palavra em um
poema de 1966: “Minado/ pela dor transbordante,/ a alma amarga,/ ergo-me íngreme no
meio da obediência à palavra, livre.”
480
Os esforços poéticos de Paul Celan parecem,
contudo, ter de ir além da “trapaça salutar” que uma obra literária opera na gramática
opressiva e na linguagem, estando, também, às voltas com o gesto de desenriquecê-la, de
fazer dela (com o que abarca) seu projeto de realidade, de ir ao encontro da língua com sua
própria existência.
5.4
A SUBLIMAÇÃO EM PAUL CELAN
A sublimação, em especial na sua articulação ao fazer artístico, é um conceito caro à
psicanálise. Freud atribuía aos artistas uma saber “endopsíquico” e à arte, uma forma de
acesso privilegiado ao saber. Idéia afim ao que encontramos em Walter Benjamin, para a
qual Georg Otte formula a noção de “epistemologia poética”.
481
Em artigo sobre Benjamin
e Baudelaire, Otte cita o último: “Há muito tempo digo que o poeta é soberanamente
478
BARTHES. Aula, p. 12-13. Em seu texto, Roland Barthes refere-se, contudo, a instâncias estruturais como
agentes da mencionada ressonância terrível. Devido à ausência de indicações mais precisas acerca de tal
idéia na continuação da obra citada, optamos por não evocar a noção, uma vez que escaparia ao escopo da
presente elaboração.
479
BARTHES. Aula, p. 15.
480
CELAN. A morte é uma flor, p. 62.
481
Termo utilizado por Georg Otte em artigo intitulado “Dizem-me que sou louco: as epistemologias poéticas
de Baudelaire e Benjamin”. Alea Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 9, p. 230-238, 2007.
167
inteligente (...) e que a imaginação é a mais científica das faculdades”.
482
Linhas tênues se
esboçam, como mencionamos nas incursões sobre o problema da verdade e da ficção. Mas
também com Barthes aprendemos que uma obra literária “assume muitos saberes” – “num
romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial),
técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura)”.
483
“Nós,
leigos”,
484
como tem início o texto “Escritores criativos e devaneios”, seguimos
esforçando-nos insistentemente no intuito de alguma aproximação.
Embora Freud tenha dito, em seu texto sobre Dostoievski, que, “Diante do problema
do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas”
485
(do que também se pode
inferir que há algo na arte que escapa ao saber), nem Freud e nem os psicanalistas que o
sucederam se renderam às aporias do âmbito em questão. A psicanálise, que nasce com o
século XX,
486
está as voltas com as catástrofes e com a arte de século. André Green, em O
desligamento, menciona a crítica literária psicanalítica como parte integrante dos
patrimônios da psicanálise.
487
Green agrega, ciente das objeções dos teóricos da literatura à
crítica psicanalítica, que tais “exercícios psicanalíticos, ao contrário dos trabalhos clínicos e
482
Citado por Georg Otte. “Dizem-me que sou louco: as epistemologias poéticas de Baudelaire e Benjamin”.
Alea Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 9, p. 238, 2007.
483
BARTHES. Aula, p. 18. Menciona, na ocasião, três conceitos gregos para referir-se à força da literatura:
Mathesis, Mimesis, Semiosis.
484
FREUD. Escritores criativos e devaneios (1908 [1907]). In: ______. “Gradiva” de Jensen e outros
trabalhos, p. 149.
485
FREUD. Dostoievski e o parricídio (1928 [1927]). In: ______. O futuro de uma ilusão; O mal-estar na
civilização e outros trabalhos, p. 205.
486
Freud desejava que constasse “1900” na capa da Traumdeutung, que indicaria o nascimento da psicanálise
junto com o novo século.
487
GREEN. O desligamento, p. 9. Vladimir Safatle insiste, em seu livro sobre Lacan, na relevância das
posições deste autor no que tange à clínica psicanalítica, mas não somente ela, tornando-se interlocutor
privilegiado e, juntamente com Sigmund Freud, passagem obrigatória para diversas reflexões
contemporâneas desde a filosofia, teoria literária, crítica de arte, política, teoria social, até teoria do cinema
e problemas de gênero (SAFATLE. Lacan, p. 8-9).
168
teóricos, fazem com que o leitor possa se referir ao objeto de sua análise. Sabem
perfeitamente que deixam intactos os enigmas da criação literária”.
488
O conceito de sublimação, de fato, não tivera um ensaio exclusivamente dedicado à
sua reflexão, o que leva muitos a falarem da carência de informações sobre o mesmo no
legado freudiano. Os exercícios estéticos psicanalíticos, na verdade, demonstram (com as
devidas precauções) que empreitadas desta natureza estão muito mais próximas da escuta
489
psicanalítica do que supomos e que dispõem de instrumentação diversa. A obra de Freud –
em sua variedade e quantidade de material dedicado à cultura, bem como os textos relativos
à metapsicologia e à técnica – demonstra-se rica em ferramentas para a abordagem da arte e
terreno fértil para formulações metapsicológicas da mesma.
A sublimação, encontrada de maneira dispersa em Freud, pode ser concebida apenas
ao se pensar o conceito freudiano de pulsão, limite entre o psíquico e o somático, passível
de diferentes destinos, como consta em “O instinto e suas vicissitudes”. “A pulsão é uma
força (Drang) que necessita ser submetida a um trabalho de ligação e simbolização para
que se possa inscrever no psiquismo propriamente dito”, observa Giovanna Bartucci.
490
A
sublimação – e a criação artística atrelada à mesma – é celebrada, de maneira geral, como
um destino nobre da pulsão, que se distancia do recalque e difere do sintoma, bem como
uma forma pessoal de estruturar a realidade, ordenando circuitos e inscrevendo a pulsão no
488
GREEN. O desligamento, p. 9.
489
No artigo “É possível uma crítica literária psicanalítica?”, Ana Cecília Carvalho tematiza a possibilidade
de tal crítica mencionando os impasses da sutilíssima distinção entre a criação literária e outras formações
do inconsciente, bem como a transposição de uma escuta para uma leitura psicanalítica, que exigiria um
redimensionamento da noção de interpretação (CARVALHO. É possível uma crítica literária psicanalítica?
Percurso, São Paulo, n. 22, p. 59-68, 1.sem. 1999.)
490
BARTUCCI. Apresentação. In: _______ (Org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação, p. 11.
169
registro da simbolização.
491
Através da sublimação evidencia-se, sobretudo, a enorme
capacidade transformadora da pulsão.
A sublimação é, portanto, um conceito metapsicológico, um destino das pulsões
(sexuais e agressivas, por assim dizer), algo que não é completamente contido pelo
recalque. Freud, por certo, distingue-o do sintoma (observe-se que sintoma e sublimação
não são excludentes). A sublimação não consiste, tampouco, em uma formação reativa.
492
Um parâmetro em voga é aquele referente ao “laço social”: algo que leva o sujeito a
escapar da mesmice individual do sintoma e a realizar algo com um produto socialmente
partilhável. Trata-se de um critério relativamente frágil, pois acaba por receber o uso
vulgar, da medida de reconhecimento ou não, em vida, obtido pelo artista, além de
restringir o uso do conceito de sublimação à arte canônica e reconhecida. É certo que Freud
cita o cânone (Michelangelo, Goethe, Da Vinci, Dostoievski, entre outros); o que não
significa, entretanto, que a sublimação seja privilégio dos mesmos e que tenham sido
destituídos de seus sintomas e sofrimento. O artista apenas torna a sublimação mais
ruidosa. O parâmetro do laço social também nos leva a distinguir a sublimação da
idealização, algo que Freud realiza, cuidadosamente, em seu texto “Sobre o narcisismo:
uma introdução”.
493
Problemas na compreensão deste conceito também são advindos do
fato de conter o termo sublime, com o qual (já) não mantém relação.
491
Ibidem.
492
A sublimação pode sinalizar a maneira como o sujeito reagia à sua sexualidade no momento do conflito,
mas não há oposição enérgica e contrária ao impulso, como o obsessivo que adora o sujo e dedica-se
obstinadamente à limpeza (observação feita em aula por Ana Cecília Carvalho, na disciplina
“Sublimação”, no curso de especialização em Teoria Psicanalítica).
493
Na idealização há um apego aos ideais, uma fetichização do objeto do qual não se pode renunciar. A
sublimação implica uma ultrapassagem dos modelos ideais e certa ousadia quanto aos mesmos (Cf.
FREUD. Sobre o narcisismo: uma introdução [1914]. In: ______. A história do movimento psicanalítico,
artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos, p. 111-112).
170
Uma inquietação que nos mobilizou ao longo deste trabalho é relativa ao fato de que,
tradicionalmente, considera-se uma vicissitude bem-sucedida a simbolização da dor através
da linguagem, a arte com funções de restabelecimento e cura. Parece-nos instigante, porém, o
fato de que tais atividades, que sugerem restituição e ordenamento (e que realmente
conduzem a tais efeitos, como corroboram inúmeros exemplos), possam ser, ao mesmo
tempo, incapazes de efetuar contenção, atenuar o sofrimento ou, ainda, aparentar certo tipo de
acoplamento ao mesmo. Tais funcionalidades ou disfuncionalidades
494
da sublimação
parecem ainda mais inquietantes diante dos casos em que a escrita de um autor se dá
precisamente perante algo que parece se tratar daquilo que mais escapa à representação, a
catástrofe, e, ainda, em que o artista põe termo à sua vida através do suicídio.
5.4.1 DAS COISAS ÚLTIMAS
Celan escreve, em 1942/1943:
Was wär es, Mutter: Wachstum oder Wunde –
versänk ich mit im Schneewehn der Ukraine?
Que seria, mãe, crescimento ou ferida –
se eu também me afundasse na neve da Ucrânia?
495
Ao longo do mês de abril de 1970, Celan lecionava duas vezes por semana na École
Normale Supérieure. Toda a temporada era perpassada, segundo Felstiner, pelo gesto de
voltar-se alternativamente para Bucovina, Israel e Alemanha.
496
Celan lecionava seminários
sobre Kafka. Retornava freqüentemente ao conto kafkiano “Um médico rural”, atraído de
494
Noção cunhada por Ana Cecília Carvalho (Cf. CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2003).
495
Trata-se dos versos finais do poema já citado “Es fällt nun, Mutter, Schnee in der Ukraine” (CELAN. KG,
p. 399, tradução nossa). Citado também por FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 46.
Ania Cavalcante traduz: “o que seria, mãe, crescimento ou ferida –/ submergirei também eu nas dores da
neve da Ucrânia?” (CAVALCANTE. Shoah e literatura: os poemas de Paul Celan do campo de trabalho
forçado de Tabaresti. In: SIMPÓSIO DA PÓS-GRADUAÇÃO DE LÍNGUA HEBRAICA, LITERATURA
E CULTURA JUDAICAS, 4. 2007, São Paulo. IV Simpósio dos Pós-Graduandos. São Paulo, 2007).
496
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 385.
171
maneira especial pelo seu final. Na narrativa, um médico tivera que fazer uma viagem
urgente, pois um doente o esperava em uma aldeia distante, numa noite de forte nevasca. O
médico afirma que todo o distrito o martiriza, valendo-se da sineta para os chamados à
noite. No doente, descobre sua grande ferida – uma “flor no seu flanco”. O médico é
despido e colocado junto ao rapaz com a ferida. Ele percebe que nunca poderá voltar a sua
casa. “Nu, exposto à geada desta época desafortunada, com um carro terrestre e cavalos não
terrenos, vou – um velho – vagando. (...) Fui enganado! Fui enganado! Uma vez atendido o
alarme falso da sineta noturna não há mais o que remediar, nunca mais”.
497
Segundo
Felstiner, Celan escreve a uma amiga de Israel dizendo que talvez houvesse respondido a
um falso chamado, que havia aceitado o destino equivocado.
498
Aos 13 de abril de 1970, escreve seu último poema, “REBLEUTE”.
Aproximadamente aos 20 de abril, Celan lança-se da ponte ao Sena. Gisèle Celan-
Lestrange telefona a um amigo para saber se Celan havia ido a Praga. No dia primeiro de
maio, seu corpo fora encontrado por um pescador, há onze quilômetros de distância da
ponte, seguindo o curso do rio. Em sua mesa de trabalho, uma biografia de Hölderlin aberta
numa página com a seguinte passagem sublinhada: “Este gênio, às vezes, se ensombrecia e
se afundava em amargos poços do seu coração”.
499
A morte do poeta deixa desolados seus
amigos da Europa e de Israel. Celan iria participar de uma reunião em Friburgo aos 13 de
maio. Os que foram para vê-lo tiveram que se contentar com seus poemas, diz Felstiner, por
si sós dedicados profundamente à ausência e à morte – “mas na grande poesia, como uma
vez dissera Celan de Mandelstam, quando não é uma questão das coisas últimas?
500
497
KAFKA. Um médico rural: pequenas narrativas, p. 21.
498
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 385.
499
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 389.
500
CELAN apud FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 390. Grifo no original.
172
Após a morte de Celan, comenta Felstiner, toda sorte de interpretações abusivas do
poema “Todesfuge” teve lugar: “demasiado retórica”, “compaixão pelo carrasco”, “vítima
do sistema” ou “espírito de reconciliação” eram alguns dos comentários que integravam
publicações de artigos em memória e poemas. Adaptações musicais e coreográficas, título
de filmes documentários passam a conter versos de “Todesfuge”. Felstiner afirma: “Celan
se poupou de tudo isso. Depois de sua morte, o público alemão continuou absorvendo
‘Todesfuge’ como uma instituição virtual”.
501
Hipóteses diversas eram formuladas, agrega
Felstiner: que Celan tirou sua vida pois não era possível falar validamente de Auschwitz em
alemão (embora o autor ressalte que esta impossibilidade fora justamente o que o
mobilizou); que se encontrava demasiadamente só; que não suportaria continuar sofrendo
entre medicações e confinamentos.
502
Ao suicídio de um escritor também se pode aplicar a expressão “máquina de
desleitura”
503
– este dado biográfico produz efeitos de leitura, com seus riscos, assim como
o dado de ser sobrevivente de uma catástrofe (decerto, cada dado biográfico produz seus
efeitos, à sua maneira). Não é possível nem desejável fazer uma tipologia do escritor
suicida, mesmo entre aqueles que se depararam com a catástrofe do século XX (o fato de
que Walter Benjamin, Peter Szondi ou, mais especificamente, dentre os sobreviventes,
Primo Levi e outros tenham se suicidado
504
– não autoriza que destes se vislumbre a
formação de um grupo). Se existe uma associação entre a escrita e o fim trágico, ela não
501
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 391.
502
FELSTINER. Paul Celan: poeta, superviviente, judío, p. 389.
503
Tal expressão já fora citada nesta dissertação. Trata-se da reflexão de Márcio Seligmann-Silva sobre a
“ironia”, comparando seus efeitos aos da leitura do texto de um sobrevivente, no texto “O testemunho entre
a ficção e o ‘real’”.
504
Seligmann-Silva menciona o suicídio de Primo Levi em 1987 e sua afirmação do suicídio como “ato
meditado, uma escolha não instintiva”. Evoca, também, alguns sobreviventes que acabaram de maneira
voluntária com suas próprias vidas, “tais como Paul Celan, Tadeusz Borowski e Jean Améry.
(SELIGMANN-SILVA. Literatura e trauma: um novo paradigma. In: ______. O local da diferença, p. 79.)
O autor faz menção, também, ao suicídio de Walter Benjamin, em 1940, em Port Bou.
173
pode ser irresponsavelmente estendida “a todo o universo” de suicidas.
505
Os escritores,
bem sabemos, são avessos às tipologias. Não podemos ignorar, alerta Ana Cecília
Carvalho, que se trata de obras variadas, vidas transcorridas em contextos históricos,
sociais e culturais distintos, problemáticas pessoais muito diferentes,
506
além da
singularidade de seus projetos literários. A dor de cada um deles é, também, singular.
Ana Cecília Carvalho alude aos riscos, parafraseando Freud: como se a sombra do
suicídio tivesse caído permanentemente sobre o texto.
507
A obra passa a ser lida sob este
viés inevitável. Por certo, é possível encontrar marcas diversas na obra e na vida de Celan:
o fascínio pela água; menções ao suicídio por afogamento; a afirmação da amiga de
infância do poeta Edith Silbermann, na qual diz que desde a juventude impressionara-se
“pela máscara mortuária da ‘Desconhecida do Sena’” e que o poema “Kenotaph”, escrito
nos anos 1950, pode ser lido como um epitáfio que “havia imaginado para si mesmo”.
508
Soma-se, ainda, o poema “E com o livro de Tarussa”, já mencionado neste estudo. O
suicídio parece, assim, ser “ensaiado”.
A escrita de um poeta que põe fim à própria vida produz efeitos de leitura (dos quais
devemos estar cientes), por vezes uns reativos aos outros. Carvalho menciona que não sem
razão proliferaram leituras para compor um diagnóstico da personalidade do escritor
suicida, cujo equívoco está em ver o texto como teste projetivo da mente supostamente
doentia, que já privilegia o aspecto não literário.
509
Outros, por sua vez, tentando
provavelmente “escapar à fascinação paralisante que a escrita do autor suicida desperta”, se
voltam para “uma análise puramente formal” e uma “leitura desvitalizada do texto, como se
505
CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath, p. 15.
506
CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath, p. 14.
507
CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath, p. 15.
508
SILBERMANN apud BARROS. Passagens ao poético: a correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-
Lestrange, p. 59.
509
CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath, p. 16.
174
fosse possível ignorar a densidade afetiva que mobilizou a escrita e o sofrimento emocional
que antecedeu o suicídio”.
510
Outro risco, talvez, desdobramento da atração medusiana
provocada pela morte do escritor, é considerá-la, por si, uma obra de arte. Esta aproximação
a uma espécie de performance parece-nos obscena numa leitura dos poemas de Celan. Todo
o movimento aqui efetuado vai ao sentido contrário. Não podemos, defensivamente, ignorar
o suicídio de Celan – desvincular sua morte de sua vida e esta, de sua escrita, sua
Lebensschrift. Se empreendemos nossos esforços inclusive neste complicado âmbito, é por
considerarmos que esta produção artística, de grande eficácia em seus procedimentos
estéticos de aproximação do indizível, que tornou possível reinventar a língua, a “Poesia”
que ajudaria e, de fato, ajudou, que esteve sempre lado a lado, como diz Celan em carta à
esposa, infelizmente não foi capaz de refrear o sofrimento do escritor e efetuar uma
contenção. Uma breve incursão sobre o conceito de sublimação permitirá pensar a dupla
acepção da atividade artística, a ser efetuada a seguir. Antes, contudo, lemos as palavras de
Henri Michaux, poeta traduzido por Paul Celan:
Paul Celan encontrou-se no caminho da vida com grandes obstáculos, obstáculos
muito grandes, alguns quase insuperáveis, e um, o último, insuperável de
verdade. Foi naquele penoso período no qual teve lugar nosso encontro, no qual
nos conhecemos... sem conhecermo-nos. Falamos muito com o fim de não ter que
falar. Nele, o que era grave era demasiado grave. Não teria consentido que
alguém se intrometera. Para deter-te, utilizava com freqüência um sorriso, um
sorriso que havia passado por mil naufrágios.
Fazíamos como se nossos poemas tivessem a ver sobretudo com o verbo.
Em um leito de neve, em seu “Schneebett”, desolado, desesperado,
admiravelmente duro, repousa o poeta e fará que repousem para sempre de uma
maneira estranha e singular aqueles que sentem mal estar de qualquer forma de
repouso.
A cura que a escritura lhe proporcionava não era suficiente, não foi suficiente.
Saltos em vão. Sempre na sala dos gritos, apertado nos instrumentos de tortura.
Cada vez, um céu de tinta. Cada dia traz finalmente seu golpe.
Nos foi. Claro que podia escolher. O fim não será tão longo. À flor d’água, o
cadáver tranqüilo.
511
510
CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath.
511
MICHAUX apud ORTEGA. Prólogo. In: CELAN. Obras completas, p. 34-35. Tradução nossa.
175
5.4.2 A SUBLIMAÇÃO E SEUS LIMITES
Por que a escolha do conceito de sublimação para se pensar o processo criativo e,
ainda, as funções subjetivas da escrita em Paul Celan? Em primeiro lugar, é necessário
fazer algumas ressalvas, efetuar um percurso, o qual tem sido nosso esforço nas
investigações sobre a sublimação. É preciso insistir na advertência feita por Sarah Kofman,
reiterada por Carvalho: a sublimação não deve ser tratada como um conceito moral, mas
sim metapsicológico, e, dessa forma, relativo ao campo pulsional e com suas dimensões
dinâmica, econômica e sua determinação inconsciente.
512
Apesar de se tratar de uma
constatação aparentemente simples, verificamos amiúde a dificuldade de desprender-se de
uma concepção aristocrática da sublimação, como privilégio dos gênios e contrastante em
relação a outras atividades e produções humanas. Antes de mais nada, devemos evitar o
risco de designar atividades intrinsecamente sublimatórias. É inconcebível, do ponto de
vista teórico, supor que a sublimação ocorre para alguns e não para outros. A sublimação
estaria para todos – o artista apenas a torna mais evidente, como já mencionado.
O aspecto que, no entanto, mobilizou-nos, de fato, à retomada do conceito de
sublimação na presente investigação é a própria possibilidade de pensar os seus limites – o
que foi possível, no que tange à reflexão teórica, a partir da introdução da noção
fundamental de pulsão de morte. É claro que nos encontramos em um âmbito que suscita
poderosa resistência e o torna de difícil acolhimento do termo.
Entendemos, com Kofman, os motivos pelos quais “a ‘aplicação’ da psicanálise à
arte tenha encontrado uma resistência tão forte: é que a arte era o último bastião do
narcisismo”.
513
Sarah Kofman, na ocasião desta afirmação, refere-se ao que considera a
512
CARVALHO. Limites da sublimação na criação literária. Estudos de Psicanálise, p. 16.
513
KOFMAN. A infância da arte, p. 26.
176
grande contribuição da psicanálise à biografia – esta, uma ilusão que mobiliza uma atitude
idealizadora, religiosa e narcísica por parte de biógrafos e estetas. Freud, ao demonstrar que
os artistas não estariam destituídos de sofrimento e de sintomas, é um intérprete “demolidor
de ídolos”, “perpetrador do assassinato do pai”, algo que em nada agrada ao público.
Quanto aos aspectos disfuncionais da criação (a qual reconhecemos, com razão, como algo
prazeroso e funcional), parece haver uma reação semelhante. O que, decerto, não nos deve
fazer recuar.
São três as vias as quais procuramos formular para aproximar-nos das duas questões
centrais que orientam esta dissertação: a primeira seria positiva com relação ao problema da
representação/apresentação – da possibilidade, mesmo que de forma silenciosa, elíptica,
através de procedimentos poéticos que possibilitem dizer o que é impossível de ser
representado. A segunda, por sua vez, pode ser aferrada à impossibilidade, ao insolúvel do
inenarrável, à morte, como indizível, que apenas e de maneira radical escapará
irrefreavelmente à linguagem.
Ambas podem encontrar seus representantes na obra de Celan, em seus poemas e
textos poetológicos. Ambas, contudo, parecem ser contestáveis pela mesma obra. A
primeira, pelo risco de uma aposta na função comunicativa da linguagem – algo
imediatamente desmantelado pelo poeta – e por beirar a crença em uma abertura que, como
vimos, torna Auschwitz digerível. A segunda, por apoiar-se na solução fácil do hermetismo,
de um passado que apenas impede o fluxo da narrativa; um mero recuo diante das
dificuldades da poesia. Corre o perigo de tornar-se um imobilismo ou obscurantismo.
Diante disso, formulamos a terceira, que não deixa de ser um certo compromisso
entre as vias de abordagem anteriores: a representação/apresentação parece ser possível,
como demonstra Celan em seu fazer poético, embora não sem preço. Narrar o traumático é
177
uma forma de esquecê-lo e relembrá-lo, pois sabemos que esquecer é uma forma aberrante
de lembrar, ou, nas palavras de Seligmann-Silva: “recordar e esquecer são dois fatores
dinâmicos inseparáveis”
514
e, ainda, “escritura com a sua trama de esquecimento e
recordação”.
515
É, em certa medida, revivê-lo e recriá-lo. Embora, seguindo as
recomendações do poeta, não se possa falar em evolução para o silêncio, os versos de Celan
tornam-se cada vez mais curtos, materiais, fragmentários e vazios. Diz Barrento:
linguagem sentida e trabalhada a um tempo como magma vital e inalienável lugar
do rasto e do rosto do Outro (como diria Lévinas), atalho que conduz ao abismo.
Celan foi um poeta que, como poucos, sabia o Nada de cor, e esse saber,
alimentado pela memória, na carne, de tantos Auschwitz, e por uma condição sem
voz (a do judeu), haveria de revelar-se todo numa luta desigual com as palavras
nos limites do branco.
516
Finalmente, parece não haver outra saída que não a morte como inscrição última.
Associamos, à terceira via aqui esboçada, o conceito psicanalítico de sublimação, a partir
da introdução da pulsão de morte na teorização freudiana. Se, nos moldes da primeira teoria
das pulsões, já parecia difícil admitir a sublimação com origens na sexualidade perversa
polimorfa infantil e se esta constatação (embora não apresente problemas, do ponto de vista
teórico) já suscitaria, também, forte resistência – principalmente ao se tratar da atividade
artística –, a introdução do conceito de pulsão de morte, junto à sublimação, torna esta
concepção tardia da sublimação ainda mais difícil de aceitar. Devido a isso, Ana Cecília
Carvalho designa como “noção recalcada” a passagem na qual Freud apresenta
explicitamente a sublimação sob a égide da pulsão de morte, em 1923, e convoca a uma
leitura cuidadosa do trecho.
517
514
SELIGMANN-SILVA. Introdução. In: ______. História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes, p. 14.
515
Ibidem, p. 29.
516
BARRENTO. Paul Celan: o verbo e a morte. In: CELAN. Sete rosas mais tarde, p. XXIX.
517
Cf. CARVALHO, Ana Cecília. Limites da sublimação na criação literária. Estudos de Psicanálise, p. 17.
178
Freud menciona a desfusão pulsional envolvida na operação da sublimação, na qual
a dessexualização colocaria o eu a serviço de objetivos opostos aos das pulsões de vida,
deixando o eu “ao perigo de maus-tratos e morte”. Verifica-se, na passagem em questão:
Mas já que o trabalho de sublimação do ego resulta numa desfusão dos instintos
e numa liberação dos instintos agressivos no superego, sua luta contra a libido
expõe-no ao perigo de maus-tratos e morte. Sofrendo sob os ataques do superego
e talvez a eles sucumbindo, o ego se defronta com uma sorte semelhante à dos
protistas que são destruídos pelos produtos da decomposição que eles próprios
criaram.
518
Carvalho lê atentamente a passagem, expondo seus resultados em um artigo no qual
aborda a aporia referente ao processo criativo: forma de transformação e prazer para
alguns; alimentação do sofrimento para outros. A autora destaca três noções conhecidas
referentes à criatividade e à sublimação.
A primeira das três noções consiste na elaboração freudiana da sublimação (nos
parâmetros da primeira teoria das pulsões) como destino pulsional que promove
apaziguamento, orienta o sofrimento em uma direção benéfica e que, diversamente do
sintoma (este, um arranjo conciliatório, que, de fato, muitas vezes não fracassa), não seria
uma conciliação, mas talvez uma alternativa mais “saudável”. A segunda, por sua vez, de
inspiração lacaniana, seria da sublimação que não se opõe ao sintoma, mas permite uma
inscrição subjetiva, tal como demonstra Lacan ao se referir a Joyce. A terceira, derivada
desta última, reside na sublimação como transformação em algo partilhável socialmente
daquilo que, de outra maneira, seria uma experiência subjetiva singular, i.e., o laço social
estabelecido pelo produto artístico constituiria a sua especificidade.
Carvalho menciona ser inegável a eficácia destas vias. No entanto, constata, todas elas
evidenciam apenas o aspecto funcional da atividade criativa. A autora enfatiza que é
518
FREUD. O ego e o id, uma neurose demoníaca do séc. XVII e outros trabalhos. [1923] 1980, p. 73. Grifo
nosso.
179
necessário pensar, também, as situações nas quais tudo parece caminhar para outra
direção.
519
No âmbito da segunda teoria das pulsões, a elaboração tardia de Freud sobre a
sublimação acima citada oferece aportes para um caminho de reflexão diverso. Ana Cecília
Carvalho efetua este trajeto, através da constatação de que a sublimação, além de não
deixar de se referir à angústia ou à dor, possui, em seu interior, a possibilidade do retorno
dos elementos sentidos como perigosos e deixa sob suspeita a idéia de se tratar de um
“destino menos defensivo”.
Finalmente, seguindo a compreensão de Carvalho a respeito desta vertente posterior do
trabalho da sublimação no legado freudiano, o artista deve manter algum grau de contato com
a fonte desses perigos para poder criar,
520
sob o risco, contudo, de sucumbir a tais perigos.
521
Tal contato pode ser vislumbrado através do mito da Medusa – e Celan menciona uma
concepção de arte como “cabeça de Medusa”, através de Büchner, em “O Meridiano”
522
.
Italo Calvino, na leitura de Eneida Maria de Souza, evoca o mito da Medusa para explicitar a
relação do poeta com o mundo:
523
como Perseu, o poeta deve olhar o mundo de maneira
indireta e enviesada. Perseu valeu-se da leveza do apoio das sandálias aladas no vento, a
519
CARVALHO. Limites da sublimação na criação literária. Estudos de Psicanálise, p. 16-17.
520
CARVALHO. Limites da sublimação na criação literária. Estudos de Psicanálise, p. 17-18.
521
Ana Cecília Carvalho inaugura a reflexão sobre os limites da sublimação e demais teses relativas ao tema
em seu livro: CARVALHO. A poética do suicídio em Sylvia Plath. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003; e no
texto: CARVALHO. Pulsão e simbolização: limites da escrita. In: BARTUCCI (Org.). Psicanálise,
literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
522
No texto poetológico, na leitura de Ute Harbusch, são apresentados dois lados da arte: o da “marionete”,
do “autômato”, que indica o que a arte tem de engenhoso e artificial; o da “cabeça de Medusa”, que
transforma algo vivo em pedra, sai da esfera do humano, vai a um campo inquietante. Nessa imagem, diz
Harbusch, Celan problematiza a poesia – tanto o aspecto da técnica artística, no domínio da estética,
quanto aquilo que a ultrapassa, a contradição entre arte e vida (HARBUSCH, Ute. Arte, poesia e tradução
em Paul Celan: pensar Mallarmé até as últimas conseqüências. Tradução Vera Lúcia de Oliveira Lins.
Revista Alea, p. 38-39).
523
CALVINO apud SOUZA. Madame Bovary somos nós. In: BARTUCCI (Org.). Psicanálise, Literatura e
Estéticas de Subjetivação, p. 137.
180
leveza como sinal de estratégia guerreira e da imagem oblíqua do simulacro da Medusa presa
no escudo de bronze. Seria a “lição do processo de continuar escrevendo”.
524
Afirmamos, com Barrento, que o poema seja, de fato e estritamente, uma experiência:
etimologicamente, do latim ex-periri: uma travessia arriscada, também no alemão Er-fahrung,
que contém os semas de travessia (fahren) e de perigo (Gefahr) – mas não se pode confundir
com uma “vivência”, que não tem conseqüências poéticas, nem “resto”.
525
A poesia de Celan é,
sobretudo, uma experiência e, portanto, deixa seu “resto” inscrito, veiculado.
Como continuar escrevendo? Embora esteja no horizonte da poesia, em especial na
poética de Celan, dizer tudo, percebemos que não fazê-lo é também uma forma de
continuar escrevendo, e que, diante do excesso, a contenção parece ser a morte.
Ressaltamos, uma vez mais, que tais articulações não devem ser desdobradas em uma
consideração irresponsável do suicídio como grande obra do autor, elogiosa do
silenciamento radical perante o irrepresentável. Insistimos em dissolver o risco desta
interpretação, já que adotamos, antes, uma posição contrária: sabemos da vertente terrível e
mortífera do silêncio imposto, e que narrar o trauma é, principalmente, uma necessidade. O
direito de narrar, assim como o de silenciar, deve indubitavelmente ser garantido àquele
que sobreviveu à catástrofe. Propusemo-nos, aqui, a tentar compreender os efeitos de uma
situação de aproximação do excesso da vivência traumática e sua revivescência e
apresentação no âmbito da arte.
Vemos, enfim, dois lados da travessia perigosa, da experiência da escrita: o da
transformação e restauração; e o do excesso, da imediaticidade, que, lembra também
524
SOUZA. Madame Bovary somos nós. In: BARTUCCI (Org.). Psicanálise, Literatura e Estéticas de
Subjetivação, p. 138.
525
BARRENTO. Posfácio. Memória e Silêncio. In: CELAN. A morte é uma flor, p. 133.
181
Massimo Recalcati, “apresenta o Real mais do que o representa”.
526
Optamos pelo conceito
de sublimação para se pensar o processo criativo, pois, com a introdução da pulsão de
morte e da noção de desfusão pulsional, passa a conter, na definição, seu limite.
526
Cf. RECALCATI. As três estéticas de Lacan. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de
Psicanálise, São Paulo, n. 42, fev. 2005.
182
CONCLUSÃO
Uma folha, sem árvore,
para Bertolt Brecht:
527
que tempos são estes,
em que uma conversa
é quase um crime
pois tanto dizer
comprime?
Paul Celan
528
Assim como no “Stretto” celaniano, à guisa de conclusão, repetimos, sem que isso
signifique descrever um círculo, pois já não se trata, a rigor, de uma repetição.
Que tempos são estes, em que quaisquer intentos de articulação através da
linguagem parecem um crime?, diz o poeta (justamente aquele que teve que encontrar um
modo de articulação outro). “Que voz crítica pode sobreviver ao convívio aturado com esta
poesia?”,
529
indaga João Barrento. Que pode esta voz crítica dizer, diante desta poética do
silêncio e do negativo, sem recair ela mesma no palavreado banal, “Gerede”,
“Sprachgestöber” ou, ainda, (benjaminianamente) no “documento de barbárie”; sem a
pretensão oculta de tornar Auschwitz (e a poesia após o mesmo) digerível, representável e
assimilável? Com estes problemas sem respostas satisfatórias deve conviver o leitor da
lírica celaniana. Esta, cuja leitura é perigosa experiência, pois encena-se no território
deslizante entre a linguagem e os eventos.
527
Paul Celan estabelece diálogo com o poema de Bertolt Brecht intitulado “An die Nachgeborenen” [“Aos que
vão nascer”]: “Was sind das für Zeiten, wo/ Ein Gespräch über Bäume fast ein Verbrechen ist/ Weil es ein
Schweigen über so viele Untaten einschließt!” (BRECHT. Die Gedichte von Bertolt Brecht in einen Band, p.
722-723). “Que tempos é êste, em que/ uma conversa sôbre árvores chega a ser uma falta/ Pois implica em
silenciar sôbre tantos crimes?” (BRECHT. Poemas e canções. Tradução de Geir Campos, p. 91).
528
No original: “EIN BLATT, baumlos,/ für Bertolt Brecht:// Was sind das für Zeiten,/ wo ein Gespräch/
beinah ein Verbrechen ist,/ weil es soviel Gesagtes/ mit einschließt?” (CELAN. KG, p. 333, tradução
nossa). O verbo einschließen denota as idéias de abranger, compreender, incluir, entranhar e, ainda,
cercar e encurralar. Optamos, na nossa tradução, por comprimir, para privilegiar a rima, diferindo de
outras traduções disponíveis na língua portuguesa (Cf. CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 171. Tradução de
João Barrento; e CELAN. Cristal, p. 155. Tradução de Cláudia Cavalcanti).
529
BARRENTO. Paul Celan: o verbo e a morte. In: CELAN. Sete rosas mais tarde, p. XXIX. Curiosamente
Barrento usa justamente o verbo “sobreviver”.
183
Perdemo-nos diversas vezes, é certo, pois estamos em torno daquilo que, de fato,
escapa ao saber – não tivemos a ingênua pretensão de circunscrevê-lo, em posição de
maestria –, apenas aceitamos a condição de errância no texto.
Esta leitora, que ao longo de todo o trabalho indagou-se sobre o seu lugar epistêmico,
lado a lado com o risco, precisou extrair algo deste empuxo ao silêncio. Este testemunho de
leitura (já que nos permitimos falar em voz crítica sobrevivente) se dá, contudo, de outro
lugar – pois não se apóia sobre o branco e o nada, como o faz a poesia. Hans-Georg Gadamer
ressalta: “Quem deseja compreender e decifrar a lírica hermética não pode, certamente, ser
um leitor apressado. Mas não precisa, por outro lado, ser um leitor erudito ou especialmente
instruído: deve ser um leitor empenhado em continuar ouvindo.”
530
Pretendi, em escuta insistente, seguir o rastro do traço da poesia de Celan – que
resultou na árida primeira parte desta dissertação. Traço que percorre o caminho do trauma
à morte. Em cada uma das duas partes subseqüentes procurei, através de fina e indefinível
trama de conceitos, colocar-me às voltas com as duas questões que estão por trás deste
trabalho.
A primeira delas: o problema da representação-apresentação do evento traumático,
considerado indizível. Tal representação e a poesia são, em Celan, possíveis após
Auschwitz – sem tornar novamente possível o “belo” e o rapidamente assimilável –, e não
sem preço. Vimos os procedimentos poéticos de Celan para “exprimir o horror através do
silêncio”;
531
estes, ao longo da obra, de maneira cada vez mais silenciosa, lacunar,
fragmentária e vazia, em radical experiência com a língua. No que se refere a um duplo
aspecto do gesto de exprimir o horror, Márcio Seligmann-Silva destaca as duas posições: a
530
GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p. 43.
531
ADORNO. Teoria estética, p. 354.
184
platônica, do “poder corruptor da mímesis trágica”; e a aristotélica, de seu “poder de
depuração das emoções de piedade e de temor”.
532
Este exprimir através do silêncio mostra que há, na lírica celaniana, uma “ética da
representação”, sempre atrelada à sua técnica, incorporando o silêncio na sua poesia de
maneira a não produzir um excesso de aisthesis
533
em sua apresentação do real, que “cega”
e inviabiliza a reflexão sobre a mesma.
Formulamos, desse modo, a noção de testemunho metonímico – diferente do
testemunho mimético (imitativo), que teria uma pretensão totalizante. O testemunho
metonímico é um índice, e assim é, ele também, uma espécie de “estilhaço” resultante da
explosão da catástrofe. São os cabelos (os de “ouro” e de “cinzas”
534
) e dentes
(“Schreibzähnen” [“dentes de escrita”],
535
diz Celan). A palavra-objeto,
536
indicial ou
532
SELIGMANN-SILVA. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In: ______. Local da
diferença, p. 31. Noutra ocasião, Seligmann-Silva faz menção ao livro de Susan Sontag intitulado Diante
da dor dos outros (São Paulo: Cia. das Letras, 2003), no qual cita uma passagem de Platão sobre um
sujeito que, ao aproximar-se de um grupo de pessoas ao redor de um cadáver, sente um desejo irrefreável
de vê-lo. Isso fora especialmente explorado a partir do século XVII pela teoria do sublime e, em especial,
com Edmund Burke, dando origem às duas perspectivas e seus desdobramentos – em Platão, como um
vício que deve ser dominado; em Aristóteles, uma descarga útil e prazerosa. A partir do século XVII, os
gestos de “mostrar a desgraça” e “ver o horror” passam a ser adotados como condimento da arte. Os
desdobramentos da vertente platônica conduzem a pensar que a apresentação da violência fomenta-a e
estimula-a; a aristotélica, por sua vez, defenderia na apresentação da violência a possibilidade de
simbolização desta. Decerto, trata-se de um debate interminável, sem saída. No entanto, com as catástrofes
do século XX, tais discussões voltam à tona, com novas dimensões. É preciso pensar que a arte produz
uma nova temporalidade, que permite um distanciamento crítico diante do horror ou da catástrofe
(SELIGMANN-SILVA. “Narrar o trauma: escrituras híbridas da memória do século XX” In: FESTIVAL
DE INVERNO DA UFMG 39. 16 jul. 2007, Diamantina, MG. Palestra).
533
Vimos com Seligmann-Silva: “percepção (aisthesis) em demasia transforma-se em impossibilidade de
percepção” (SELIGMANN-SILVA. Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito. In:
______. O local da diferença, p. 55).
534
Ver, também, poema “MANDORLA”, de NR, versos 8 e 14: “Judenlocke, wirst nicht grau” e
“Menschenlocke, wirst nicht grau” (CELAN. KG, p. 142). Na tradução de Yvette Centeno e João Barrento:
“Madeixa de judeu, és imortal” e “Madeixa de homem, és imortal” (CELAN. Sete rosas mais tarde, p.
111-113).
535
Cf. poema “FALAR COM OS BECOS sem saída/ ali defronte,/ da sua/ expatriada/ significação –– :// mastigar/
este pão, com/ dentes de escrita” (CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 169).
536
Sobre este aspecto da palavra que a literatura põe em cena e, em especial, a poesia de Celan, convocamos
as palavras de Ruth Silviano Brandão: “A palavra em si é matéria dúctil para o fazer literário, ela mesma é
coisa, objeto. Coisa em si, como barro moldável, mas também como cristal ressoante. O cristal das
palavras é uma metáfora de Freud para dizer que a linguagem, como o cristal, tem uma estrutura também
185
indexal, recorte da catástrofe, é também um “estilhaço” – como “Wolfsbohne” e “Lupine”
são, também, “palavras-estilhaço”. A palavra é, ela mesma, um cadáver que deve ser
lavado, como no poema:
Uma palavra – bem sabes:
um cadáver.
Vamos lavá-lo,
vamos penteá-lo,
vamos voltar-lhe os olhos
para o céu.
537
Encontramo-nos no âmbito do indizível – não aquele que está além da linguagem
(da “mística inefável” ou do “sublime espiritualista”), mas justamente, em sua
materialidade, aquilo que está aquém da linguagem. Vemo-nos às voltas com a leitura sob
uma perspectiva da poesia hermética, cifrada ou críptica que, para afastar-se, talvez, do
“bunte Gerede”, fecha-se de maneira opaca; ao mesmo tempo, contudo, dialógica, aberta,
que almeja o encontro, em busca de um “tu” ou de uma “realidade”, não endereçada, mas
sempre endereçável.
Para abordar o segundo problema, referente aos efeitos da escritura, formulamos
três hipóteses de trabalho, expostas na terceira parte desta dissertação: possibilidade,
impossibilidade e a terceira via – da possibilidade (com os procedimentos vistos), não sem
preço. Percebemos que a escrita – esta escritura da dor – se dá em contigüidade com uma
vida também dolorosa. A dor da vida e a dor do texto mostram-se através desta poesia
perpassada pelo evento traumático, bem como da visão abismal
538
e melancólica do objeto
perdido e reencontrado. Um reencontro que se dá na língua materna e dos assassinos, a
reveladora do sujeito. (Não resisto à idéia de que o cristal ressoa, tendo algo de musical em sua matéria.
Transparência e sonoridade, ou um som abscôndito, que guarda o silêncio em seu âmago)” (BRANDÃO.
Escrita do sintoma, escrita da letra. In: ______. A vida escrita, p. 22).
537
Fragmento do poema “DE NOITE, ARREPANHADOS” (CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 59).
538
Pode-se dizer que na escritura nos territórios da melancolia parece produzir-se uma espécie de mise-en-
abîme entre aquele que perdeu e o objeto perdido.
186
única língua passível de ser território para o reencontro. Esta língua da poesia, de Hölderlin
e da tradição, mas também da esfera do plágio, do “roubo” da palavra poética, da ignomínia
e da difamação, da humilhação e do crime histórico. Palavra, língua e poesia – que “virá
nos ajudar”, “mudança de respiração”, “aperto de mão”, ou “falso chamado” (kafkiano)?
Palavra silenciada que é, diz o poeta, uma contrapalavra, que está sempre contra as
palavras prostituídas pelos ouvidos dos carrascos.
Na terceira via entre a possibilidade e a impossibilidade, formulada ao longo deste
trabalho, a escritura funciona sob duplo aspecto, para o qual Ana Cecília Carvalho convoca
o phármakon de Platão. Neste termo ambíguo, Derrida apresenta o funcionamento como
remédio – droga benéfica da medicina, tradução que não é inexata. No entanto, girando o
phármakon (que não pode ser somente benéfico) em torno do seu invisível eixo, ali onde
parece autorizar sua tradução por remédio, apresenta-se a sua nocividade, o veneno.
539
Mostram-se os dois aspectos da escritura (em especial no âmbito do trauma): aquele
que restaura, da língua que torna possível a articulação; e o disruptivo, vinculado à definição
psicanalítica de sublimação sob a égide da segunda teoria das pulsões, para o qual a única
maneira de deter a escritura e a revivescência do terrível parece ser a morte. A dor das e nas
palavras (que são sem exterior): é somente nelas e através delas que se pode restaurar o que
fora fraturado, mas elas não oferecem garantias àquele que realiza tal imersão. O uso das
palavras é feito, na poesia, para se proteger daquilo que parece advir senão das mesmas. Ou
precisamente aí, com Celan, percebemos que “a dor dorme com as palavras”.
540
539
DERRIDA. A farmácia de Platão, p. 46-48 passim.
540
CELAN. A morte é uma flor, p. 45. No original: “Der Schmerz schläft bei den Worten” (CELAN. KG, p.
461. Grifo nosso destacando a aliteração, presente também na tradução).
187
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197
ANEXO A
A
LGUMAS TRADUÇÕES DE POEMAS
NÄHE DER GRÄBER
541
Kennt noch das Wasser des südlichen Bug,
Mutter, die Welle, die Wunden dir schlug?
Weiß noch das Feld mit den Mühlen inmitten,
wie leise dein Herz deine Engel gelitten?
Kann keine der Espen mehr, keine der Weiden,
den Kummer dir nehmen, den Trost dir bereiten?
Und steigt nicht der Gott mit dem knospenden Stab
den Hügel hinan und den Hügel hinab?
Und duldest du, Mutter, wie einst, ach, daheim,
den leisen, den deutschen, den schmerzlichen Reim?
P
RÓXIMO AOS TÚMULOS
542
Conhece a água do rio austral,
543
ainda,
mãe, a onda que bateu em tua ferida?
Inda sabe, com moinhos em meio, o capão
quão suave anjos teus sofreu teu coração?
Nenhum dos choupos e prados pode mais,
retirar-te o infortúnio, of’recer-te a paz?
E não vai o Deus co’a vara que germina
colina abaixo e colina acima?
E como outrora em casa, suportas, mãe,
a suave, dolorosa, rima alemã?
541
CELAN. KG, p. 17. O poema consta no livro Der Sand aus den Urnen [A areia das urnas].
542
Devido ao uso instrumental do poema, privilegiamos a rima e a semântica, em detrimento do metro do
verso celaniano. Optamos também por efetuar algumas compensações referentes às assonâncias e
aliterações. O vocábulo “Nähe”, presente no título, é um substantivo que designa “proximidade”,
“vizinhança” ou “imediações”. A opção por “próximo” deve-se exclusivamente ao fato de ser uma forma
mais curta.
543
“Bug” indica, de fato, um rio do leste europeu localizado no sudoeste da Ucrânia. Trata-se de uma
referência ao local próximo ao campo de extermínio onde morreram os pais do poeta. “Südlicher Bug”
pode ser traduzido, em português, por “Bug meridional”. O tradutor espanhol adota como solução a
tradução literal da palavra “Bug”: “proa” (CELAN. Obras completas, p. 400. Tradução de José Luis Reina
Palazón). A opção por “rio austral” deve-se à sua concisão e clareza, além de manter uma referência
geográfica.
198
ARGUMENTUM E SILENTIO
544
Für René Char
An die Kette gelegt
zwischen Gold und Vergessen:
die Nacht.
Beide griffen nach ihr.
Beide ließ sie gewähren.
Lege,
lege auch du jetzt dorthin,was herauf-
dämmern will neben den Tagen:
das sternüberflogene Wort,
das meerübergossne.
Jedem das Wort.
Jedem das Wort, das ihm sang,
als die Meute ihn hinterrücks anfiel –
Jedem das Wort, das ihm sang und erstarrte.
Ihr, der Nacht,
das sternüberflogne, das meerübergossne,
ihr das erschwiegne,
dem das Blut nicht gerann, als der Giftzahn
die Silben durchstieß.
Ihr das erschwiegene Wort.
Wider die andern, die bald,
die umhurt von den Schinderohren,
auch Zeit und Zeiten erklimmen,
zeugt es zuletzt,
zuletzt, wenn nur Ketten erklingen,
zeugt es von ihr, die dort liegt
zwischen Gold und Vergessen,
beiden verschwistert von je –
Denn wo
dämmerts denn, sag, als bei ihr,
die im Stromgebiet ihrer Träne
tauchenden Sonnen die Saat zeigt
aber und abermals?
544
CELAN. KG, p. 86-87. O poema consta no livro Von Schwelle zu Schwelle [De limiar em limiar].
199
ARGUMENTUM E SILENTIO
Para René Char
Posta em correntes
545
entre ouro e esquecimento:
a noite.
Ambos quiseram agarrá-la.
A ambos ela o consentiu.
Põe,
põe tu também ali, agora, o que
quer alvorecer junto aos dias:
a palavra sobrevoada de estrelas,
a sobrerregada de mar.
A cada um a palavra.
A cada um a palavra, que a ele cantou,
quando a matilha o atacou pelas costas –
A cada um a palavra, que a ele cantou e estarreceu.
A ela, à noite,
a sobrevoada de estrelas, a sobrerregada de mar
a ela a silenciada,
cujo sangue não coagulou, quando o dente venenoso
as sílabas atravessou.
A ela a palavra silenciada.
Contra as outras, as que em breve,
as que prostituídas pelos ouvidos dos carrascos,
também escalam por tempo e tempos,
ela testemunha por último,
por último, quando apenas correntes ressoem,
ela dá testemunho da que ali jaz
entre ouro e esquecimento,
a ambos irmanada desde quanto –
Pois onde
alvora, então, diz, senão junto dela,
que na correnteza de suas lágrimas
aos sóis imersos a seara mostra
outra e outra vez?
545
Diferentemente das traduções disponíveis em língua portuguesa (CELAN. Hermetismo e Hermenêutica.
Tradução de Flávio R. Kothe, p. 53; CELAN. Sete rosas mais tarde. Tradução de João Barrento e Y. K.
Centeno, p. 69), optamos pelo uso do verbo “pôr”, em detrimento do “acorrentar” (existente também no
alemão – “ketten”), com o intuito de enfatizar a repetição do mesmo na estrofe seguinte, bem como pela
ênfase na passividade evocada pela expressão.
200
IN DIE FERNE
546
Stummheit, aufs neue, geräumig, ein Haus –:
komm, du sollst wohnen.
Stunden, fluchschön gestuft: erreichbar
die Freistatt.
Schärfer als je die verbliebene Luft: du sollst atmen,
atmen und du sein.
À DISTÂNCIA
547
Mudez, de novo, espaçosa, uma casa –:
venha, tu deves morar.
Horas, malditamente escalonadas: alcançável
o refúgio.
Mais afiado que nunca o ar restante: tu deves respirar,
respirar e ser tu.
546
CELAN. KG, p.621. O poema consta no livro Sprachgitter [Grade de linguagem].
547
“In die Ferne” traduz-se por “Em direção a distância” (a idéia de direção é fornecida pelo acusativo).
Optamos por “à distância” devido à sua forma mais concisa. Fez-se uso de crase para evitar a ambigüidade.
201
NIEDRIGWASSER.
548
Wir sahen
die Seepocke, sahen
die Napfschnecke, sahen
die Nägel an unsern Händen.
Niemand schnitt uns das Wort von der Herzwand.
(Fährten der Strandkrabbe, morgen,
Kriechfurchen, Wohngänge, Wind-
zeichnung im grauen
Schlick. Feinsand,
Grobsand, das
von den Wänden Gelöste, bei
andern Hartteilen, im
Schill.)
Ein Aug, heute,
gab es dem zweiten, beide,
geschlossen, folgten der Strömung zu
ihrem Schatten, setzten
die Fracht ab (niemand
schnitt uns das Wort von der – –), bauten
den Haken hinaus – eine Nehrung, vor
ein kleines
unbefahrbares Schweigen.
BAIXA-MAR. Vimos
os cirrípedes, vimos
as lapas, vimos
as unhas em nossas mãos.
Ninguém nos cortou a palavra da parede do coração.
(Rastros de crustáceo, manhã,
sulcos do arrastar, esconderijos, desenhos
do vento no lodo
cinzento. Areia fina,
areia grossa, o
que se solta das paredes, junto
doutras partes duras, no
peixe.)
549
Um olho, hoje,
a deu ao segundo, ambos
fechados, seguiram a correnteza para
sua sombra, depositaram
a carga (ninguém
nos cortou a palavra da – –), construíram
o gancho para fora – um pontal, diante
de um pequeno
inavegável silêncio.
548
CELAN. KG, p. 111-112. O poema consta no livro Sprachgitter [Grade de linguagem].
549
A palavra “Schill”, em alemão, designa uma espécie de peixe (Sander lucioperca ou Esox lucius), também
chamado “Zander”. Em português, a espécie é popularmente referida por “lúcio”. Por motivos de clareza
optamos, genericamente, por “peixe”.
202
MIT ALLEN GEDANKEN
550
ging ich
hinaus aus der Welt: da warst du,
du meine Leise, du meine Offne, und –
du empfingst uns.
Wer
sagt, daß uns alles erstarb,
da uns das Aug brach?
Alles erwachte, alles hob an.
Groß kam eine Sonne geschwommen, hell
standen ihr Seele und Seele entgegen, klar,
gebieterisch schwiegen sie ihr
ihre Bahn vor.
Leicht
tat sich dein Schoß auf, still
stieg ein Hauch in den Äther,
und was sich wölkte, wars nicht,
wars nicht Gestalt und von uns her,
wars nicht
so gut wie ein Name?
COM TODOS OS PENSAMENTOS fui
para fora do mundo: lá estavas tu,
tu minha quieta, tu minha aberta, e –
tu nos recebeste.
Quem
diz que tudo nos morreu,
quando nos quebraram o olho?
Tudo despertou, tudo se ergueu.
Grande veio um sol flutuante, diáfanas
confrontaram-no alma e alma, claras,
imperiosas pressilenciaram-lhe
sua trajetória.
Leve
abriu-se o teu seio, soturno
subiu um sopro ao éter,
e o que se anuviou não era,
não era forma e desde nós,
não era
tanto quanto um nome?
550
CELAN. KG, p. 130-131. O poema consta no livro Die Niemandsrose [A rosa de ninguém].
203
UND MIT DEM BUCH AUS TARUSSA
551
Bсе nоэmы жu∂ы
Marina Zwetajewa
Vom
Sternbild des Hundes, vom
Hellstern darin und der Zwerg-
leuchte, die mitwebt
an erdwärts gespiegelten Wegen,
von
Pilgerstäben, auch dort, von Südlichem, fremd
und nachtfasernah
wie unbestattete Worte,
streunend
in Bannkreis erreichter
Ziele und Stelen und Wiegen.
Von
Wahr- und Voraus- und Vorüber-zu-dir,
von
Hinaufgesagtem,
das dort bereitliegt, einem
der eigenen Herzsteine gleich, die man ausspie
mitsamt ihrem un-
verwüstlichen Uhrwerk, hinaus
in Unland und Unzeit. Von solchem
Ticken und Ticken inmitten
der Kies-Kuben mit
der auf Hyänenspur rückwärts,
aufwärts verfolgbaren
Ahnen-
reihe Derer-
vom-Namen-und-Seiner
Rundschlucht.
Von
einem Baum, von einem.
Ja, auch von ihm. Und vom Wald um ihn her. Vom Wald
Unbetreten, vom
Gedanken, dem er entwuchs, als Laut
und Halblaut und Ablaut und Auslaut, skythisch
zusammengereimt
im Takt
der Verschlagenen-Schläfe,
mit
geatmeten Steppen-
halmen geschrieben ins Herz
der Stundenzäsur – in das Reich,
in der Reiche
weitestes, in
den Großbinnenreim
jenseits
551
Do livro Die Niemandsrose (A rosa de ninguém). CELAN. KG, p. 164-166.
204
der Stummvölker-Zone, in dich
Sprachwaage, Wortwaage, Heimat-
waage Exil.
Von diesem Baum, diesem Wald.
Von der Brücken-
quader, von der
er ins Leben hinüber-
prallte, flügge
von Wunden, – vom
Pont Mirabeau.
Wo die Oka nicht mitfließt. Et quels
amours! (Kyrillisches, Freunde, auch das
ritt ich über die Seine,
ritts übern Rhein.)
Von einem Brief, von ihm.
Vom Ein-Breif, vom Ost-Brief. Vom harten,
winzigen Worthaufen, vom
unbewaffneten Auge, das er
den drei
Gürtelsternen Orions – Jakobs-
stab, du,
abermals kommst du gegangen! –
zuführt auf der
Himmelskarte, die sich ihm aufschlug.
Vom Tisch, wo das geschah.
Von einem Wort, aus dem Haufen,
an dem er, der Tisch,
zur Ruderbank wurde, vom Oka-Fluß her
und den Wassern.
Vom Nebenwort, das
ein Ruderknecht nachknirscht, ins Spätsommerohr
seiner hell-
hörigen Dolle:
Kolchis.
E
COM O LIVRO DE TARUSSA
Todos os poetas são judeus.
Marina Tsvetáieva
Da
constelação do cão, da
luminosa estrela em seu interior e o anão
resplandecente, que junto tece,
em direção à terra, caminhos espelhados,
dos
cajados de peregrino, também lá, do sul, estranho
205
e da proximidade de uma fibra noturna
como palavras insepultadas,
vagantes
no círculo de banimento
552
metas
atingidas e estelas
553
e berço.
Do
vero- e pré- e passado-por-ti,
do
dito-para-cima,
que ali se situa, um
como próprias pedras do coração, que se cuspiu
junto com sua in-
destrutível engrenagem de relógio, para fora
na desterra e no destempo. De tal
tic-tac e tic-tac em meio
dos cubos-saibros com
a que, perseguível pelos rastros de hienas,
para trás, para cima
genea-
logia daqueles
dos-nomes-e-seu
redondo abismo.
De
uma árvore, de uma.
Sim, também dela. E do bosque ao redor. Do bosque
inexplorado, do
pensamento do que cresceu, como fonia
e semifonia e apofonia e fonia final,
554
citas
555
juntamenterrimado
no compasso
das têmporas-dos-astutos
com
respirados talos
da estepe escritos no coração
da cesura das horas – no império
no mais amplo
dos impérios, na
grande-rima-interior
além
da zona-dos-povos-mudos, em ti
balança-da-linguagem, balança-da-palavra, balança-
do-lar exílio.
Desta árvore, deste bosque.
552
“Bannkreis” pode, aparentemente, ser compreendido por “jurisdição”, bem como por “esfera de
influência”. “Bann” possui também a acepção de “encanto” ou “feitiço”.
553
“Stele”, “estela” é um termo de origem grega, que designa pedra (com relevo, inscrições e decorações)
erguida por motivos comemorativos ou para funerais.
554
Os termos “Laut” (“som”, “fonema”), “Halblaut” (“meia voz”), “Ablaut” (“apofonia”) e “Auslaut” (“som
final”) são lexicalizados com as respectivas traduções. Optamos por efetuar variações a partir da palavra
“fonia”, para manter a repetição, como no alemão, do vocábulo “Laut”.
555
Povos iranianos que, na Antigüidade, habitavam a região da Cítia, na Eurásia.
206
Do silhar
556
da ponte, da qual
ele para a vida re-
bateu, capaz
de voar
557
de feridas,– da
ponte Mirabeau.
Onde o Oka não flui junto. Et quels
amours! (Coisas cirílicas, amigo, também isso
cavalgo sobre o Sena,
cavalga sobre o Reno.)
De uma carta, dele.
Da carta-única, da carta-leste. Do duro
diminuto monte-de-palavras, do
olho desarmado, que ele leva
aos três
botões-estrelas do cinto de Órion – cajado-
de-Jacó, tu,
outra vez vens tu andando! –
no
mapa-celeste, que a ele se abriu.
Da mesa, onde ocorreu.
De uma palavra, do monte
junto a ela, a mesa,
tornou-se banco-do-remador, desde o rio Oka
e das águas.
Da palavra-lateral, que
um remador faz ranger na orelha-de-verão-tardio
sua clara
serva forqueta:
558
Cólquida.
556
Por “quader” entende-se “pedra de cantaria”, “pedra lavrada”, “paralelepípedo” ou, no contexto,
“supedâneo” ou “pedestal”. Apesar da baixa freqüência do vocábulo “silhar”, pareceu-nos a solução mais
concisa.
557
O adjetivo “flügge” designa, precisamente, ser capaz de voar. É usado com freqüência para caracterizar
filhotes de pássaro em tamanho que os possibilita voar ou, coloquialmente, a aquisição de autonomia. A
solução utilizada pelo tradutor espanhol, provavelmente por sua forma mais enxuta, foi de traduzir por “en
vuelo de heridas” (CELAN. Obras completas, p. 202).
558
“Dolle” designa uma espécie de garfo de dois dentes (ou com tubo em sua extremidade) no qual se apóia o
remo.
207
EIN BLATT,
559
baumlos,
für Bertolt Brecht:
Was sind das für Zeiten,
wo ein Gespräch
beinah ein Verbrechen ist,
weil es soviel Gesagtes
mit einschließt?
UMA FOLHA, sem árvore,
para Bertolt Brecht:
que tempos são estes,
em que uma conversa
é quase um crime
pois tanto dizer
comprime?
560
559
CELAN. KG, p. 333. O poema consta no livro Schneepart [A parte da neve]. Paul Celan dialoga com o
poema de Bertolt Brecht intitulado “An die Nachgeborenen” [“Aos que vão nascer”]: “Was sind das für
Zeiten, wo/ Ein Gespräch über Bäume fast ein Verbrechen ist/ Weil es ein Schweigen über so viele Untaten
einschließt!” (BRECHT. Die Gedichte von Bertolt Brecht in einen Band, p. 722-723) “Que tempos é êste,
em que/ uma conversa sôbre árvores chega a ser uma falta/ Pois implica em silenciar sôbre tantos crimes?”
(BRECHT. Poemas e canções. Tradução de Geir Campos).
560
O einschließen pode ser traduzido por abranger, compreender, incluir, entranhar, bem como cercar e
encurralar. Em nossa solução, comprimir privilegia a rima, diferindo de outras traduções disponíveis na
língua portuguesa (Cf. CELAN. Sete rosas mais tarde, p. 171. Tradução de João Barrento; CELAN.
Cristal, p. 155. Tradução de Cláudia Cavalcanti).