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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
DEMETRIUS OLIVEIRA TAHIM
ROSTO E ÉTICA NO PENSAMENTO DE EMMANUEL LEVINAS
Porto Alegre, 2008
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2
DEMETRIUS OLIVEIRA TAHIM
ROSTO E ÉTICA NO PENSAMENTO DE EMMANUEL LEVINAS
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de mestre, pelo Programa
de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Pergentino Stefano Pivatto
Porto Alegre
2008
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3
DEMETRIUS OLIVEIRA TAHIM
ROSTO E ÉTICA NO PENSAMENTO DE EMMANUEL LEVINAS
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de mestre, pelo Programa
de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Aprovada em __ de ____________ de ______
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Pergentino Stefano Pivatto (PUCRS) – Orientador
_______________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS)
_______________________________________________
Prof. Dr. Sandro Cozza Sayão (UCS)
4
Dedico este trabalho à minha família.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha família pelo apoio que me foi dado nestes anos de estudo,
especialmente, papai e mamãe.
Agradeço ao Prof. Pivatto pela orientação, pela paciência e disponibilidade com
que sempre me recebeu.
Agradeço aos meus amigos do Ceaque tanto me apoiaram neste período. Em
especial: Santo Anselmo, Nilton, Roberto, Roberta Bandeira, Roberta Kelly, Josivan,
Bárbara, Menino Jansen, Galiléia, Maxmiria, André Barreto, Tiago Régis, Alex Sandro.
Agradeço aos meus amigos gaudérios que tanto me acolheram. Em especial:
Rafael Bragé, Rógenes, Talita, Técio, Fernando Gnomo. Muito obrigado por tudo.
Agradeço ao Alexandre Junges e ao caríssimo Keberson pelas descontraídas
conversas na PUC.
Agradeço ao Adriano, ao Humberto e ao Fausto por me receber num momento
de dificuldade. Meus agradecimentos.
Agradeço a sra. Nedy que, por mais que eu brincasse e criticasse, sempre tentou
me ajudar.
Agradeço à CAPES e ao CNPq pelo apoio financeiro.
6
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo descrever, a partir do pensamento de Emmanuel
Levinas (1906-1995), a relação com o rosto de outrem como ética. O fio condutor deste
trabalho é a leitura levinasiana da idéia de infinito na qual é vislumbrada a possibilidade
de descrever um evento não pautado na abertura do ser nem como representação do
eu transcendental. A descrição da idéia do infinito indica a relação com algo
absolutamente exterior àquele que o pensa, assim como atesta uma abissal distância
entre o pensador e o pensado. Levinas utiliza-se da estrutura formal desta idéia para
descrever a relação com outrem, a concretude da idéia do infinito produz-se na relação
social que é mantida com o rosto de outrem. O delineamento dessa relação apresenta o
eu como acolhedor deste rosto descrito como absolutamente outro. Apenas a presença
de outrem interpela o eu, confrontando o seu livre e arbitrário movimento de
apropriação e posse. Esta impugnação da liberdade do eu por outrem será chamada de
ética e afirma a anterioridade da justiça em relação à liberdade e, destarte, a ética como
anterior à ontologia. Os desdobramentos dessa relação primeira face a face serão
discutidos no texto tendo como ponto de partida a história da filosofia dando ênfase,
principalmente, à crítica a ontologia fundamental proposta por Heidegger. Pretende,
com isso, mostrar que a relação com o rosto não se engloba na abertura do ser e, além
disso, é fonte de sentido e capaz de promover a justiça na humanidade como
acolhimento da diferença.
Palavras-chave: Outrem. Mesmo. Ética. Ontologia. Face a face.
7
ABSTRACT
This paper aims to describe, from the thought of Emmanuel Levinas (1906-1995), the
relationship with the face of others as ethics. The leitmotif of this work is the levinasian
reading of the infinity’s idea. The description of the idea of infinite indicates the
relationship with something completely outside of that who thinks about the former, as
well as affirming a big gap between the thinker and thought. Levinas works in the formal
structure of this idea in order to describe the relationship with others. The concreteness
of the idea of infinity is produced in the social relationship and is maintained with the
face of others. The design of this relationship shows the “I” as welcoming of this face
which is described as another. Only the presence of others concerns the “I”, confronting
its arbitrary and free movement of ownership and possession. This challenging of the
someone’s freedom will be called “ethics” and says the anticipations of justice in relation
to freedom and, thus, ethics and pre-ontology. The unfolding of this first relationship -
face to face - will be discussed in the text taking as a starting point the history of
philosophy emphasizing mainly on the critical key to the ontology proposed by
Heidegger. The aim, with this, is to show that the relationship with the face does not
include the opening of the being and, moreover, is a source of meaning and is capable
of promoting justice in humanity as a host of difference.
Keywords: Others. Same. Ethics. Ontology. Face to face.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
A FILOSOFIA E SEU CAMINHAR 14
Os caminhos da filosofia 16
PARA ALÉM – METAFÍSICA E TRANSCENDÊNCIA 26
A transcendência da relação 26
Metafísica 26
A metafísica precede a ontologia 32
A idéia de Infinito e sua concretude 35
Separação e Interioridade 38
A verdade do rosto 40
A linguagem 41
O discurso ético 43
INTERIORIDADE 46
A constituição da interioridade 46
O viver e suas alegrias 47
O corpo e as necessidades 49
A singularidade do eu 51
Independência e ateísmo 53
Habitação e Economia 55
O elemento indeterminado 55
A morada: condição de afirmação da interioridade 57
O feminino: a condição da intimidade do lar 58
O domínio do ser através da posse e do trabalho 60
Consciência e Conhecimento 61
O saber como atitude crítica 61
O saber ontológico 63
O saber metafísico 65
ROSTO 67
O rosto e seus vários significados 68
O rosto como mandamento ético 68
O rosto como fonte de sentido 71
O rosto como condição de objetividade e assimétrico 73
O rosto educa a vontade para o bem e se estende para toda a humanidade 75
CONCLUSÃO 78
REFERÊNCIAS 83
9
INTRODUÇÃO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
O bicho, Manuel Bandeira
O que mais nos pode chocar? A força da natureza ou a habilidade humana? Os
terremotos ou as guerras que alienam os seres de suas identidades? A história humana
parece estar fadada a um desfile de guerras e horrores, iluminados pela celebração de
falsos absolutos que movimentam os entes ao seu redor, dando-lhes sentido. Ou seria
exagero considerar a nossa história como um escândalo para a venerada razão?
O pensamento de Emmanuel Levinas (1906-1995) torna-se vital para uma crítica
da racionalidade que se perpetua na história da filosofia. Levinas é bastante respeitado
como comentador dos grandes mestres alemães Husserl e Heidegger, mas após sua
experiência com o nazismo começa a questionar a periculosidade que o pensamento
pode assumir ao se aliar ao mal
1
, ou seja, a racionalização das formas de opressão.
Mas, como Levinas compreende a história da filosofia?
Para Levinas, a história da filosofia ocidental pode ser resumida como exercício
do poder de redução de toda a diferença ao mesmo, expresso no conceito de ontologia.
A crítica levinasiana aponta para uma filosofia ocidental que exalta o sujeito ou a
identidade. Essa concepção transforma a liberdade no maior valor do ocidente, mas ao
1
Consideramos o mal como totalidade, egoidade, centramento, interesse.
10
mesmo tempo, exclui a possibilidade de um outro ou da diferença. O sujeito engloba
tudo e todos, cada ser humano se transforma numa parte do todo.
Podemos, diante disso, considerar que no pensamento de Levinas uma dura
crítica à totalidade que se manifesta nos seus mecanismos de neutralização da
diferença. A neutralização pode ocorrer no exercício do eu transcendental na sua
atividade de objetivação (Husserl), assim como na abertura do ser em geral (Heidegger)
em que o ser é colocado como condição de inteligibilidade dos entes. Contudo, Levinas
sugere um novo caminho em que a liberdade e o caminhar arbitrário do mesmo não
seja o fundamento. Faz-se necessário uma relação original e originária com o ser,
relação esta que não poderá ser descrita no horizonte da ontologia. E é com a idéia de
infinito que Levinas irá propor esta ruptura. A noção de infinito fará frente ao conceito de
totalidade, produzindo um excedente nesta totalidade mesma.
Contudo, este excedente é produzido como relação ética que é mantida com o
rosto de outrem, ou seja, Levinas ideslocar a questão relação com o infinito para o
plano ético no qual a relação com um ente infinitamente distante produz uma ruptura na
totalidade. Assim, neste espaço de abertura e des-territorialização vimos ao encontro
do pensamento de Emmanuel Levinas que com base em um diálogo crítico com a
filosofia ocidental sistematizado em sua obra Totalidade e Infinito de 1961, propõe a
reconstituição dos conceitos de subjetividade e intersubjetividade, deslocando do eu
para a relação ao outro o fundamento de toda teoria e de todo conhecimento.
Levinas explicita que a nossa relação com o mundo não é, primeiramente, com
as coisas ao nosso redor, mas sim com o ser. Nesse caso, o ser é a base pela qual
nossa existência e nossas relações no mundo podem ser compreendidas. Aqui, se
estabelece que tais relações acontecem apenas à luz do ser, sendo este o responsável
pela inteligibilidade, isto é, a compreensão tanto de nossa existência quanto das
relações que temos com as coisas.
11
Identificando ontologia com existência e esta como compreensão do ser, Levinas
afirma que tal relação não conta do encontro com outrem, pois, ultrapassa a rede
heliocêntrica luz do ser - que daria sentido ao encontro. A relação com este ente
privilegiado não ocorre, primeiramente, como objeto de compreensão horizonte pelo
qual o ser perfila-se e depois como interlocução. A compreensão do outro é uma fala
original que não estabelece sentido e nem referências, ou seja, compreender é
indissociável da invocação do outro.
Assim, a anterioridade da relação ontológica, onde para relacionar-me com um
ente seria, primeiramente, necessário compreender o seu ser, perde sua validade, pois,
o encontro com o outro é manifestação imediata de um rosto que, descontextualizado
do horizonte do ser, apresenta-se na sua nudez e pureza. Aqui, compreender este ente
é falar-lhe esta compreensão. A linguagem estabelece a relação com outrem.
Ao passar pelo outro a significação desloca seu centro de gravidade do sujeito
cognoscente para a linguagem que acontece na sociedade, no mundo concreto em que
os sujeitos são encarnados e têm em seu rosto um mandamento de justiça. Se a origem
do significado, da objetividade do conhecimento ocorre diante da linguagem, da
sociedade, do outro, sua crítica mais severa ultrapassa a ordem da razão e apresenta-
se como uma interpelação ética, diante de rostos que precisam de comida, saúde,
educação, habitação e justiça. Neste contexto podemos notar a postura firme de
Levinas ao analisar a sociedade ocidental que se legitima e a justifica pelo
conhecimento, desenvolvendo poderosos recursos para sua produção e avaliação, mas
ignora o que seria sua crítica mais contundente: a responsabilidade diante de outrem.
Compreende-se, desta maneira, o esforço de Levinas em instituir um novo
sentido para o humano, distante de toda forma de relação que imprima um caráter
imperialista sobre o outro. O rosto do outro é manifestação por excelência e o se
insere no jogo ontológico de compreensão. O resultado deste esforço é a inversão da
primazia da ética em detrimento da ontologia e o novo tratamento que nosso autor
confere à metafísica.
12
Com a idéia de Infinito, proposta em sua obra Totalidade e Infinito, Levinas
redefine o conceito de Metafísica tomando por base a relação com o outro, cuja
primazia fará da ética a filosofia primeira. Verificamos, então, o esforço de Levinas para
superar uma subjetividade, uma objetividade e uma moralidade constituídas
ontologicamente”
2
. Trata-se de uma defesa destas tendo como fundamento a idéia de
Infinito.
O discurso, condição da relação ética, promove não apenas uma aproximação
com o outro, mas, também, o anúncio de uma escuta ética: outrem fala, interpela. As
dimensões que esta escuta promove assumem proporções não pensadas, ou seja, traz
à tona o silêncio que sempre se manifestou em relação aos marginalizados. A pesquisa
sobre a linguagem ética, proposta por Levinas, abre espaço para uma “tarefa maior e
urgente da reflexão filosófico-ética que é repensar a realidade dos homens vencidos na
história quotidiana do mundo perseguidos, explorados, oprimidos, pobres,
estrangeiros, todos os sem voz e sem vez (...)”
3
, ouvir a voz de sempre invisível aos
olhos imperialistas.
Tendo isso em vista, no primeiro capítulo tentaremos compreender como Levinas
descreve a história da filosofia ocidental entendida como um processo de apropriação
das alteridades. Tentaremos mostrar, tamm, que nem todas as relações ocorrem sob
a forma de posse, ou seja, redução. No capítulo seguinte, articularemos essa relação
nos moldes da idéia de infinito de Descartes
4
tendo como objetivo descrever uma
relação com um ente privilegiado que possui a exterioridade como conteúdo. Várias
noções serão aqui explicitadas: metafísica, desejo, rosto, infinito, linguagem,
separação.
2
COSTA, Márcio Luis. Levinas: uma introdução. Trad. bras. J. Thomaz Filho. Petrópolis: VOZES, 2000.
p. 107.
3
PIVATTO, Pergentino. A ética de Levinas e o sentido do humano Crítica à ética ocidental e seus
pressupostos. Porto Alegre, Veritas, v. 37, nº 147, p. 325-363, set. 1992. p. 325.
4
Levinas utiliza do instrumental cartesiano para dispor do infinito para referir-se ao infinito.
13
No terceiro capítulo trataremos de descrever o eu separado, separação esta que
se produz como surgimento de uma interioridade capaz de abrir-se para a
exterioridade. Noções como gozo, economia, casa, posse e trabalho serão descritos
como etapas para a constituição desse eu. Por fim, no quarto capítulo mostraremos
como, após, o eu estar constituído pode abrir-se à relação com o rosto e como, nessa
relação, o rosto pode possuir vários significados.
14
A FILOSOFIA E SEU CAMINHAR
O logos grego, luz que nos encaminharia para a plenitude de uma vida pacífica,
mostrou-se capaz de indicar um caminho satisfatório para as exigências que surgiram
no seio da sociedade: o reconhecimento de outrem? O solo, pelo qual a filosofia
ocidental caminhou desde os gregos e as novas veredas que se abrem pelas estradas
sempre já percorridas, mostra-se árido e, no entanto, é nele que ainda nos firmamos
5
. É
necessário empreender: “navegar é preciso.
O horizonte, o qual se abre com a “navegaçãoque propomos, é inteiramente
novo aos olhos do Ocidente. Distante do discurso apologético de uma razão
fundamentada num eu que sempre retorna a si como Ulisses e sua Odisséia
6
propomos cortar o fio de Ariadne e deixar Teseu aventurar-se no labirinto em que o
encontro com o Minotauro, longe de ser o anúncio da morte deste, mostraria o encontro
com um absolutamente outro que limita meu poder e minha liberdade espanto,
traumatismo.
5
Pensamos que o pensamento de Levinas possui sua amplitude, tamm, como crítica à história da
filosofia como desdobramento totalizante do Ser. É nesse diálogo-confronto que Levinas tentará
descrever os limites deste pensamento. “A linguagem grega pressupõe assim, a bem até mesmo de sua
auto-compreensão, uma solidão original, a pretensão intelectual a uma univocidade perfeita de sentido,
atualizada ou em potência. A razão, como expressará a mentalidade moderna, tem de ser uma só; pois o
contrário seria compatível com a multiplicidade de sentidos, e o sentido está dado, de uma vez para
sempre, na expressão da igualdade equacional no verbo Ser. Algo é, ou não é: tertium non datur eis a
regra original, da qual dependem todas as outras da lógica de origem grega, inclusive, como
sugerimos, a gica dialética. O enunciado da razão como razão é a equação do verbo ser: a igualdade
redentora afasta da razão o perigo do diferente dela”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e
Alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p.
195.
6
Levinas descreve esta iia da seguinte maneira: "A filosofia produz-se como uma forma sob a qual se
manifesta a recusa de engajamento no Outro, a expectativa preferida à ação, a indiferença em relação
aos outros, a alergia universal da primeira infância dos filósofos. O itinerário da filosofia permanece sendo
aquele de Ulisses cuja aventura pelo mundo nada mais foi do que um retorno a sua ilha natal uma
complacência no Mesmo, um desconhecimento do Outro." Cf. LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do
outro homem. Trad. br. Pergentino S. Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 50. Para uma leitura
sintetizada dos principais pontos da filosofia de Levinas cf. PIVATTO, Pergentino. A ética de Levinas e o
sentido do humano – Crítica à ética ocidental e seus pressupostos. Porto Alegre, Veritas, v. 37, nº 147, p.
325-363, set. 1992. Tamm cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Sujeito, ética e história: Levinas, o
traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999 Coleção Filosofia:
92 e cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Levinas e a razão ética. In: Razões plurais: itinerários da
racionalidade no culo XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004 – Coleção Filosofia: 169.
15
Desta maneira, tendo como pano de fundo as críticas levantadas por Emmanuel
Levinas à filosofia, considerada como um processo de redução do outro ao mesmo no
decorrer da história
7
, nosso intuito é problematizar a questão da busca da verdade pela
filosofia busca esta que anima, tamm, as ciências - entendida como um processo
em que o eu liberdade sem limites dá sentido às coisas, ou seja, princípio ativo,
legitimado por si mesmo em seu movimento de apropriação da diferença, identidade
8
por excelência.
A crítica levinasiana estende-se, por conseguinte, à ontologia fundamental
proposta por Heidegger, "aquela que mais sucesso conhece em nossos dias"
9
. Para
Levinas, o pensamento filosófico ocidental, partindo da ontologia como filosofia
primeira, não efetivou a relação do eu com outrem e nem reconheceu no outro o lugar
que lhe era devido, subordinando a relação ética à relação com o ser. O resultado
desse procedimento foi a dominação de outrem pelo eu ou pela totalidade
10
desde o
pensamento clássico até a fenomenologia existencial.
A filosofia parece-nos, diante disso, nos mostrar qual seu sentido. Todavia,
seguindo os passos da proposta de Levinas, esboçaremos que algo anterior se impõe e
tal "imposição" não é ato de violência. Para isto, teremos que explicitar os caminhos
que a filosofia toma na busca da verdade.
7
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 202.
8
Segundo Pivatto, "as afirmações relativas à autonomia ficam mais claras e contrastantes quando
referidas ao tema que Levinas combate, sintetizado na expressão eu fichteano". Nesse sentido, segundo
o autor, para Fichte "o eu é o princípio origirio, porque se põe a si mesmo, não é posto por outro, é
autônomo. Assim, o princípio primeiro é condição incondicionada, constrói a si mesmo, é assim porque
assim se faz, é posição de si mesmo, em síntese, é auto criação." Cf. PIVATTO, Pergentino. A ética de
Levinas e o sentido do humano Crítica à ética ocidental e seus pressupostos. Porto Alegre, Veritas, v.
37, nº 147, p. 325-363, set. 1992. p. 332.
9
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 206.
10
Mas, o que seria essa totalidade? “A Totalidade é o resultado da totalização, obra da Razão e do
Mesmo que envolvem e se apropriam de toda exterioridade, de todo transcendente, mesmo a Metafísica,
segundo uma ordem, em um sistema, em uma unidade; esta obra de apropriação progressiva porém
inelutável da Ontologia é a obra mesma da imanência. A totalidade é a imanência acabada: todos no
tudo, tudo no UNO, a multiplicidade na unidade original ou final”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Levinas e
a razão ética. In: Razões plurais: itinerários da racionalidade no século XX: Adorno, Bergson, Derrida,
Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004 – Coleção Filosofia: 169. p. 169.
16
Os caminhos da filosofia
Para Levinas, a filosofia, assim como as ciências podem caracterizar-se pela
busca da verdade, todavia, mesmo sendo uma caracterização ampla e, de início, vazia,
esta busca pode tomar dois caminhos, isto é, "ela permite distinguir duas vias em que o
espírito filosófico se compromete e que esclarecem a sua fisionomia."
11
O primeiro caminho é aquele em que a verdade está estreitamente ligada à
experiência. Aquele que pensa, mantém, na verdade, uma relação com aquilo que é
distinto dele, ou seja, uma relão com o “Absolutamente outro”
12
. A relação, aqui,
assume o significado mesmo da palavra experiência, pois, nos coloca em contato com
uma realidade que está além de nossa natureza, das nossas criações. Assim, verdade
implica uma relação com a exterioridade, com a transcendência, com o estranho. A
filosofia voltar-se-ia, desta maneira, para o absolutamente diferente, ou seja, a própria
heteronomia
13
.
Contudo, verdade significa também a investigação livre por parte do ser
pensante onde este não encontra qualquer restrição enquanto liberdade de
investigação. Essa liberdade é o próprio exercício de negação do outro, um não alienar-
se em seu movimento, pois, o contato com uma realidade outra não impede sua
marcha. Destarte, a busca da verdade como exercício da liberdade pode ser entendida
como a marcha da autonomia, caminhada do mesmo. A filosofia não seria outra coisa
senão essa caminhada de apropriação do ser pelo homem no decorrer da história. Para
Levinas, "vista por este prisma, a filosofia empenhar-se-ia em reduzir ao Mesmo tudo
aquilo que se opõe a ela como outro."
14
11
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a exisncia com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 201.
12
Ibidem, p. 201.
13
Ibidem, p. 202.
14
Ibidem, p. 202.
17
Ora, para Levinas, a descrição deste projeto de filosofia não é a formulação de
um esquema abstrato, mas sim a indicação de um eu humano, ou seja, de um eu que
se mantém como identificação do diverso
15
. Mesmo com todos os obstáculos que,
porventura, surgem na história do eu, ele é sempre o mesmo. Os diversos
acontecimentos que surgem no decorrer da história, ele os transforma na sua história.
O mesmo acumula conteúdos diversos afetivos, históricos - mas a sua identidade
continua a mesma, ou seja, o mesmo figura como camadas pintadas no decorrer do
tempo, contudo, um núcleo duro perdura como liberdade de atuação, autonomia. "A
conquista do ser pelo homem através da história eis a fórmula que resume a
liberdade, a autonomia, a redução do Outro ao Mesmo."
16
Dito isso, Levinas lança a questão da escolha da filosofia, ou seja, que esta
pendeu, na maior parte de seu percurso, para a defesa da liberdade e,
consequentemente, para o mesmo
17
. Proclama-se, assim, a anterioridade da autonomia
em detrimento da heteronomia: a "violência" e a apropriação estariam justificadas
18
.
A autonomia é entendida como liberdade que não precisa de justificação fora de
si, isto é, justifica-se a partir de si mesma. Enfim, assegura a identidade
19
dos seres
20
.
No surgimento de algo estranho, no choque com uma realidade distinta, surge o
incômodo. Torna-se necessária a apropriação, a integração dessa diferença no
movimento livre do eu, ou seja, "é preciso ultrapassá-lo e integrá-lo nessa vida. Ora, a
15
Ibidem, p. 202.
16
Ibidem, p. 202.
17
“A cultura ocidental teria nascido do embate contra a natureza e contra a alteridade estranha à
identidade; tal embate é ‘sui generisno processo de formação de um humanismo como ‘ego cogito’ pelo
qual, consciência de si mais consciência do todo, sintetiza-se idêntico e não idêntico. As relações
interpessoais tornam-se dominadas pela objetividade e pela razão do Mesmo, pela liberdade do que
acumula ter e ser. Do ente, do real, infere-se o ser ou a essência; esta se faz presença à luz de uma
consciência, de um horizonte, de um conceito ou de um pensamento, possibilitando o conhecimento
assimilação”. Cf. PELIZZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1994. p. 65.
18
Como bem comenta Pivatto: ”Tal regime pode tornar-se fonte de inumanidade e arbitrariedade e
poderá estar aí uma chave de compreensão dos pressupostos que determinam a civilização ocidental de
propriedade, de exploração, de tirania potica, de guerra e de preservação de privilégios”. Cf. PIVATTO,
Pergentino. A ética de Levinas e o sentido do humano Crítica à ética ocidental e seus pressupostos.
Porto Alegre, Veritas, v. 37, nº 147, p. 325-363, set. 1992. p. 337.
19
Cf. nota 3.
20
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 203.
18
verdade é precisamente essa vitória e essa integração."
21
Assim, a liberdade age como
processo de integração da diferença coincidindo com a verdade, uma liberdade não
justificada. A procura pela verdade ocorre como uma espontaneidade que não encontra
limite e reduz toda a diferença no mesmo. O impacto desse encontro é incontestável
pela evidência, ou seja, a relação com o outro, a verdade desse outro, não anula a
liberdade, pelo contrário, coincide com ela.
Destacamos um primeiro traço da filosofia do mesmo: o seu processo de
identificação é a atividade mesma de apropriação, redução do outro ao mesmo. A
busca pela verdade é entendida, assim, como espontaneidade por parte de um ser livre
e, por conseguinte, graças a essa verdade podem-se compreender as coisas ao redor.
A "essência da verdade" não estaria, assim, numa relação verdadeiramente
heterônoma. A relação que este eu mantém com o mundo é reminiscência, ou melhor,
diálogo consigo mesmo. A palavra diálogo não descreve essa relação, outra palavra
deve ser colocada: monólogo. Pois, para Levinas:
" É a lição de Sócrates, que apenas deixa ao mestre o exercício da
maiêutica: todo o ensinamento introduzido na alma se encontrava.
A identificação do Eu a maravilhosa autarquia do eu – é a prova
natural dessa transmutação do Outro em Mesmo."
22
Tal constatação fará com que este autor confira a essa filosofia” a alcunha de
egologia. Todavia, a identificação exige outro movimento: a mediação. Distinguimos,
por conseguinte, uma segunda característica da filosofia do mesmo, isto é, o seu
recurso aos Neutros
23
. Para que o acesso à diferença ocorra é necessário o recurso a
um termo que, na sua essência, é abstrato, geral. Dissolve-se desta maneira a
‘alteridade’ do outro. O conhecimento torna-se neutralização do outro, ou seja,
conhecer é conceituar. "O conhecimento consiste em apreender o indivíduo que existe
sozinho, não na sua singularidade, que o conta, mas na sua generalidade, a única
21
Ibidem. p. 203.
22
Ibidem, p. 204.
23
Ibidem, p. 204.
19
em que ciência."
24
Conhecer seria, justamente, reconhecer através daquilo que não
faz com que a coisa seja ela mesma.
Começa, então, o jogo de poder, pois, a apropriação das coisas exteriores pela
liberdade pelo recurso aos Neutros – universalização, generalidade, conceituação – não
é apenas um exercício de compreensão, mas a posse, a redução mesma do outro, uma
supressão da singularidade. Tal exercício é a suspensão da independência na
manutenção desta realidade.
Vê-se, desta maneira, que aquilo que é outro está, desde sempre, sob o meu
poder, ficando de refém das estratégias do pensamento
25
. Parece-nos que nada se
antepõe a essa liberdade do eu. Sendo assim, surgem as perguntas: será que isso se
sucede com os homens? Os homens são como as coisas? Não poriam eles em causa
essa liberdade?
O uso da força poderia opor essa liberdade, todavia, podemos opor, tamm, as
liberdades. Tal oposição é a situação de guerra. Mas, na guerra essa livre vontade
pode fracassar sem, por isso, ser colocada em questão
26
. Como liberdade ela poderia
não renunciar ao seu direito e anunciar a revanche. Desta maneira, o mesmo não é
posto em questão por outrem. A liberdade saber-se-ia injusta? Mas, saber-se injusta
não é o resultado de um processo que esta consciência ime a si mesma.
Dito de outra maneira, sabendo-se injusto, o mesmo não repousa com
tranqüilidade em si. Isso traz à tona a constatação de que a filosofia parece não estar,
necessariamente, ligada ao jogo que engloba todo outro ao mesmo o que escapa?
Tal dúvida será elaborada posteriormente. Pois, cabe-nos agora verificar como a
24
Ibidem, p. 205
25
O absolutamente outro - a experiência no sentido radical perderia sua validade nesse raciocínio.
Todavia, “sua Alteridade consiste fundamentalmente em permanecer avesso a toda representação
intelectual”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Levinas e a razão ética. In: Razões plurais: itinerários da
racionalidade no culo XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004 – Coleção Filosofia: 169. p. 169.
26
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 205
20
proposta heideggeriana é vista, por Levinas, como perpetuadora da tradição ocidental,
ou seja, como uma filosofia em que o mesmo mantém a sua supremacia sobre o
outro
27
.
Na ontologia fundamental de Heidegger, explicita Levinas, a nossa relação com o
mundo não é, primeiramente, com as coisas ao nosso redor, mas sim com o ser. Nesse
caso, o ser é a base pela qual nossa existência e nossas relações no mundo podem ser
compreendidas. Aqui, estabelece-se que tais relações acontecem apenas à luz do ser,
sendo este o responsável pela inteligibilidade, isto é, a compreensão tanto de nossa
existência quanto das relações que temos com as coisas.
Quando ele traça a via de acesso a cada singularidade real através do
Ser, que não é um ser particular nem um nero onde entrariam todos
os particulares, mas de alguma forma o próprio acto de ser que o verbo
ser exprime e não o substantivo, (...) conduz-nos à singularidade através
de um Neutro que esclarece e comanda o pensamento e o torna
inteligível”.
28
Ora, vimos que o recurso ao neutro é um traço da filosofia do mesmo. Para
Heidegger, o homem é possuído pela liberdade e não o contrário. Nesse sentido,
estabelece-se a submissão do homem a um neutro que ilumina a liberdade, mas não a
coloca em questão. Levinas entende que esta subordinação exalta a vontade de poder
e, mais ainda, coloca a relação com outrem como dependente da relação com um
neutro que é o ser
29
. O ser anônimo e neutro ordena uma liberdade eticamente
indiferente ao outro. Liberdade esta sem culpa que é "resultado de uma longa tradição
de arrogância, de heroísmo, de dominação e de crueldade."
30
27
Mas, por que Heidegger? “É com a ontologia fundamental de Heidegger que principia formalmente o
diálogo levinasiano. Se Heidegger encarna toda uma extraordinária maturidade de milênios de encantos
e desencantos da racionalidade ocidental, é porque subsume os esforços e derrotas, fracassos e
sucessos de uma imensa multiplicidade de ramificações, de uma variada gama de energias de origem
(...) E é justamente porque houve Heidegger que o discurso levinasiano pode assumir sua incisividade
particular na língua particular em que é expresso”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e Alteridade:
dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 53.
28
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 206
29
Ibidem, p. 207
30
Ibidem, p. 207
21
Percebe-se, nesse sentido, uma submissão do pessoal ao neutro que é o ser. Os
seres seriam subsumidos por um conceito abstrato no qual perdem sua singularidade
emprestando a sua voz a um termo geral perdendo, assim, sua capacidade de
interpelar. Na relação entre os seres que ocorre na abertura do ser em geral ergue-se
“um logos que não é verbo de ninguém e, por isso, abre a possibilidade para o
anonimato e o triunfo da violência”
31
. A proposta de Levinas surge numa busca, ou
seja, na tentativa de anunciar um lugar onde o humano possa irromper. No jogo
ontológico, este espaço parece não existir. Essa relação não é de compreensão,
excede a mesma. Mas, quem não se enquadra nesta ordem? Para Levinas, outrem não
se manifesta como objeto a ser desvelado.
As principais idéias defendidas por Heidegger o primado do ser em relação ao
ente, da ontologia em relação à metafísica alicerçam a tradição em que o mesmo se
apropria do outro, onde a liberdade se põe como anterior à justiça. Mas, justiça o
significaria responsabilidade em relação ao outro antes do mesmo?
A inversão dos termos não é para Levinas uma simples inversão da diferença
ontológica
32
. Tem-se por objetivo investigar uma relação em que o outro não caia nas
malhas do pensamento do mesmo, expondo outro sentido para a vida humana. Tal
relação é vista em Platão quando coloca o Bem acima do ser. Todavia, é com
Descartes, principalmente, na idéia de infinito, que Levinas encontra a estrutura formal
para desenvolver o seu pensamento
33
.
Para Descartes, o eu pensante mantém uma relação com o Infinito. Todavia,
esta relação esclarece que o ser pensante não é capaz de conter o seu conteúdo e,
além disso, conserva a distância entre conteúdo e continente porque infinito. Mesmo
31
Cf. PIVATTO, Pergentino. A ética de Levinas e o sentido do humano Crítica à ética ocidental e seus
pressupostos. Porto Alegre, Veritas, v. 37, nº 147, p. 325-363, set. 1992. p. 338.
32
"Essa inversão terá sido o primeiro passo de um movimento que, abrindo-se para uma ética mais
velha do que a ontologia, dará margem a significações que irão além da diferença ontológica o que,
sem dúvida, é a própria significação do Infinito." Cf. LEVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente.
Trad. br. Paul Albert Simon, Ligia Maria de Castro Simon. Campinas: PAPIRUS, 1998. p. 13.
33
Desenvolveremos esidéia com maior ênfase no próximo capítulo, todavia, consideramos que citá-la,
neste contexto, facilita entender a busca de Levinas por uma “saída” das redes da ontologia.
22
sendo descrito de maneira tão negativa, para Descartes, essa é a idéia do Infinito em
nós.
A partir do exposto, podemos destacar dois aspectos presentes na forma de
Descartes conceber o infinito e que terão grande influência no modo de Levinas pensar
a relação entre o mesmo e o outro, para além da categoria da totalidade. O primeiro
aspecto está ligado à exterioridade da idéia do infinito em relação ao cogito. Isso
significa inverter a lógica do pensamento, uma vez que não é o cogito que pensa a idéia
do infinito; ela não provém do “eu penso”, mas de uma substância infinita. Sendo assim,
ela é exterior ao sujeito que a pensa.
O segundo aspecto refere-se à inadequação do pensamento em relação ao
infinito, isto é, a iia de infinito excede a toda forma de adequação do pensamento,
uma vez que o infinito não pode ser englobado pelo conceito ou pela representação
derivada do sujeito. Sendo assim, como inadequação, a idéia do infinito é tamm um
transbordamento do próprio ideatum, isso porque na relação do cogito com o a idéia do
infinito, o ideado, que é o infinito, transborda a própria idéia que dele se tem.
Para Levinas essa é a experiência por excelência, pois, é relação com o
totalmente outro, com uma exterioridade, sem que essa se desvaneça no mesmo.
Todavia, como essa relação, que é separação, pode ser mantida, ou melhor,
concretizada?
Manter uma relação com o infinito é produzi-lo. Todavia, esta produção não é
parte do movimento de uma consciência, ou melhor, o infinito não é uma
representação. A concretude de sua idéia está na relação com outrem e tal concretude
atesta a plenitude da experiência. "A experiência, a idéia de infinito, está ligada à
relação com Outrem. A idéia do infinito é a relação social."
34
34
LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda
Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 – Coleção Pensamento e Filosofia. p. 210.
23
Essa relação de socialidade consiste em abordar um ser que mantém a sua
exterioridade por ser infinito e, por isso, o eu não o pode conter. Verifica-se que outrem,
nesse sentido, não se revela como tema e não se manifesta, da mesma maneira, a
partir de um conceito. A exterioridade manifesta-se como resistência à apropriação,
opondo-se aos meus poderes.
Claro que o outro se oferece, sob certo aspecto, aos meus poderes e pode, por
fim, ser testado pelas estratégias da minha consciência, ou seja, o outro pode me opor
sua força. Mas, ele pode opor-se, tamm, na nudez de seu rosto denunciando sua
fragilidade e a franqueza de seu olhar: "a verdadeira exterioridade está nesse olhar que
me proíbe qualquer conquista."
35
A questão aqui colocada não é a do fracasso de uma
consciência, no seu exercício livre de identificação de si, que não consegue no seu
retorno trazer a objetivação. Mas, ela, diante de outrem, já não pode poder
36
. Vê-se a
desarticulação ou a inversão da estrutura da liberdade, pois, "a referência do pensado
não está no que o pensa, mas na vida própria do pensado que não se determina pelos
artifícios lógicos do pensamento ontológico."
37
Outrem se manifesta, então, como uma resistência que Levinas chamará de
resistência ética. Além disso, esta resistência abre a dimensão do infinito que, por
conseguinte, confronta o irresistível movimento do mesmo. Chamar-se-á rosto a essa
manifestação de exterioridade que se apresenta de maneira direta a um eu.
A relação com este ente privilegiado não ocorre, primeiramente, como objeto de
compreensão horizonte pelo qual o ser perfila-se e depois como interlocução. A
compreensão do outro é uma fala original que não estabelece sentido e nem
referências, ou seja, compreender é indissociável da invocação do outro.
35
Ibidem, p. 210
36
Levinas não nega a possibilidade da objetivação de outrem, todavia, esta não seria a maneira ideal de
abordá-lo.
37
TIMM, Ricardo. Levinas e a razão ética. In: Razões plurais: itinerários da racionalidade no século XX:
Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004 Coleção Filosofia:
169. p. 173.
24
Assim, a anterioridade da relação ontológica, onde para relacionar-me com um
ser seria, primeiramente, necessário compreender o seu ser, perde sua validade, pois,
o encontro com outrem é manifestação imediata de um rosto que, descontextualizado
do horizonte do ser, apresenta-se na sua nudez e pureza. Aqui, compreender este ente
é falar-lhe esta compreensão. A linguagem estabelece a relação com o outro.
Essa relação privilegiada que o eu possui com o outro ser humano permite-nos
compreender o quão infinito é outrem em comparação com a idéia que o representa
como ente inteligido. O rosto de outrem se apresenta significando, excedendo-se de
modo que não posso colocá-lo numa rede conceitual, isto é, conceitualizá-lo,
contextualizá-lo
O encontro com outrem é discurso e, tendo como fundamento a relação com
outrem, a linguagem fundar-se-ia na experiência ética por excelência: o face a face.
Aquele que se mostra nesta relação é outrem que destrói a todo o momento a imagem
que tenho dele. Sendo presença viva, outrem é capaz de desmentir o dito e em cada
palavra proferida anuncia mais do que enuncia. “O rosto fala. A manifestação do rosto é
já discurso. Aquele que se manifesta traz ajuda a si próprio, segundo a expressão de
Platão. Desfaz a cada instante a forma que oferece.”
38
A linguagem ética estabelece uma relão original com a exterioridade que se
manifesta no rosto de outrem. O eu não produz o sentido e tampouco arrebata o outro
num arcabouço teórico destruindo, assim, a sua alteridade. No discurso ético, outrem
põe o eu em questão. Desloca o eu de sua segurança e coloca em crise as suas
liberdades individuais, acusando-a de injusta e ingênua. Distante de todo o “inter-esse”,
o rosto manifesta-se significando. Compreende-se, desta maneira, o esforço de Levinas
em instituir um novo sentido para o humano, distante de toda forma de relação que
imprima um caráter imperialista sobre outrem. O rosto de outrem é manifestação por
excelência e não se insere no jogo ontológico de compreensão. Outrem não pode ser
38
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 53.
25
conhecido objetivamente nem pela fenomenologia nem pelo conceito, nem tampouco
ser possuído ou incorporado a uma totalidade. O resultado deste esforço é a inversão
da primazia da ética em detrimento da ontologia.
Surge uma fenda no ser.
26
PARA ALÉM – METAFÍSICA E TRANSCENDÊNCIA
Após a discussão feita no capítulo anterior, torna-se necessário explicitarmos
como Levinas descreve a relação não anexada aos estatutos do ser
39
, ou seja, relação
que não se produz como desvelamento, mas como ruptura, ou melhor, como resistência
à totalidade. Contudo, que resistência é esta? Como ela se produz? Como é possível
uma resistência produzida no ser não estar sob sua luz? Quais seus desdobramentos?
Tais perguntas parecem indicar que é possível relações fora da totalidade, ou melhor
ainda, parece entrever uma situação em que mostra os limites dessa totalidade - um
além, um aquém. Descrever tal desituação é o objetivo desse capítulo.
A transcendência da relação
Metafísica
O que poderia significar descrever esse além
40
? O mesmo não pode ser descrito
como atemporal ou pertencente a outro mundo, pelo contrário, deve ser mostrado no
interior da totalidade, pois, "nós estamos no mundo"
41
. A metafísica – noção que
39
Levinas assinala em vários textos essa tentativa de descrever tal relação. Todavia, a obra principal de
nossa análise é Totalidade e Infinito (1951), logo, vejamos o que o próprio Levinas fala acerca desta
obra: “Esse livro contesta que a síntese do saber, a totalidade do ser abraçada pelo eu transcendental, a
presença captada na representação e o conceito e a interrogação sobre a semântica da forma verbal do
ser – estações inevitáveis da Razão – sejam as instâncias últimas do significativo (sensé)”. Cf. LEVINAS,
Emmanuel. Entre Nós Ensaios sobre a alteridade. Trad. bras. Pergentino Stefano Pivatto et al. 2ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 283.
40
Nosso intuito não é a descrição deste além, pois, seria um contra-senso. Temos sim por objetivo
explicitar o sentido.
41
Poderíamos insinuar que esta é a tese central de Levinas? Esta frase é o contraponto da feita por
Rimbaud : “nós não estamos no mundo, a verdadeira vida está ausente”. Pensamos que todo o esforço
de Levinas vai de encontro à iia que a relação por ele descrita assume ares de ascese ou ainda de
cunho religioso. Levinas, como fenomenólogo, busca o concreto e é no paradigma fenomenológico que
devemos nos guiar. Cf. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro.
Lisboa: Edições 70, 1988. p. 21.
27
pretendemos desenvolver e que adquiri sentido próprio em Levinas assume essa
condição do para além, o de outro modo. A noção de metafísica indica, desta maneira,
a relação entre dois termos absolutamente separados, irredutíveis à assimilação de um
pelo outro. Ela assinala, portanto, uma relão de transcendência entre o eu e o outro
que vai além da apropriação, da totalização e da dominação. Dito de outro modo é a
relação em que o eu aborda o outro sem o tocar e sem destruir a sua alteridade,
abrindo espaço para que o outro se manifeste pela linguagem e a expressão de
maneira que cada um permaneça em si. Destarte, a relação metafísica é descrita como
relação entre o eu e o outro em que não há posse nem objetivação, mas acolhimento e
respeito do outro em sua alteridade.
O movimento dessa relação possui um sentido próprio. Não se trata de uma
satisfação das necessidades, a busca daquilo que me falta. A noção de metafísica
assinala o total estranhamento do outro, sua condição de estrangeiro, pois, não
território comum. Todavia, é para ele que o movimento descrito como desejo do
absolutamente outro. Contudo, na base do desejo não se encontra a necessidade.
O Outro metafisicamente desejado não é <outro> como o pão que
como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo,
como, por vezes, eu para mim próprio, este <eu>, esse <outro>. Dessas
realidades, posso <alimentar-me> e, em grande medida, satisfazer-me,
como se elas simplesmente me tivessem faltado (...) O desejo metafísico
tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente
outro”.
42
Notemos, pois, na descrição acima a total exterioridade do termo metafísica. Não
se trata de um jogo, uma dramatização. O movimento metafísico, descrito como desejo
e inadequação pois, fora da esfera do conhecimento objetivante, mostrando, assim, a
desmedida do desejo - é transcendente. A transcendência tem como característica
fundamental a distância em que os termos se encontram absolutamente separados,
permanecendo em si mesmo e constituindo a sua identidade, ou seja, não há totalidade
nem correlação entre o mesmo e o outro. De acordo com Levinas, "a transcendência
42
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 21.
28
pela qual o metafísico o designa tem isto de notável: a distância que exprime
diferentemente de toda a distância – entra na maneira de existir do ser exterior".
43
Convém, porém, destacarmos a diferença de significado entre as noções de
metafísica e transcendência descritas por Levinas, ou seja, metafísica não é
movimento. Esta é descrita como o estatuto da relação entre o outro com um eu em que
o eu não mantém o seu poder sobre o outro, ou melhor, não está sob o meu domínio,
todavia, mantemos uma relação com ele.
44
A noção de transcendência pode ser descrita de dois modos, isto é, como
totalmente outro, nesse sentido, está além de meus poderes; ou como movimento
meta-físico em que o eu, animado pelo desejo metafísico, é capaz de ir além de suas
necessidades com atos. Toda a "subjetividade" se põe em movimento no plano do
desejo. Assim, é abertura e acolhimento para o outro como responsabilidade e
bondade.
Todavia, explicitadas as noções, a relação entre o mesmo e o outro, a separação
radical entre eles, precisa ser tomada a sério. A distância anunciada não se torna
necessidade de preenchimento e muito menos ida e regresso do movimento. Caso o
fosse os termos entrariam numa totalidade que registraria essa correlação anulando a
distância. Para que a alteridade absoluta do outro seja respeitada é preciso um ponto
de partida, uma entrada na relação que é possível apenas se o termo for o eu.
A alteridade, a heterogeneidade radical do Outro, é possível se o
Outro é realmente Outro em relação a um termo cuja essência é
permanecer no ponto de partida, servir de entrada na relação, ser o
Mesmo não relativa, mas absolutamente. Um termo só pode permanecer
absolutamente no ponto de partida da relação como Eu.”
45
43
Ibidem. p. 23.
44
Levinas, em seu artigo A filosofia e a idéia de infinito (1957), já anuncia essa descrição. Neste pequeno
trabalho podemos verificar algumas idéias que, posteriormente, irão compor as questões centrais de
Totalidade e Infinito. Cf. LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger.
Trad. port. Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1949 Coleção Pensamento e Filosofia. p. 201-
226.
45
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 24.
29
Apesar de todas as mudanças que possam ocorrer na vida do eu, ele continua
sempre idêntico, atividade mesmo da identificação, pois, “a maneira do Eu contra o
<outro> do mundo consiste em permanecer, em identificar-se existindo aí em sua
casa
46
. Mesmo diante da alteridade do mundo o eu subsiste como apropriação,
possuindo e suspendendo a alteridade daquilo que é outro. Essa atividade de posse é a
maneira do Mesmo
47
. Como veremos, posteriormente, é através do corpo, da casa, do
trabalho, da posse e da economia que o eu se realiza concretamente como egoísmo,
mantendo assim uma separação radical – psiquismo - entre o eu e o outro.
Porém, como pode o eu, descrito como egoísmo e afirmação de si, entrar em
relação com o outro sem anular a sua alteridade? o estaríamos aqui utilizando de
recursos artificiais para sustentar essa relação? Ressaltamos, agora, a importância da
distinção feita acima das noções de metafísica e transcendência. A relação metafísica
não é da ordem da representação, caso contrário o outro seria objeto de constituição do
eu. O eu não percorre a distância - que marca a relação metafísica - assinalada pela
alteridade do outro, ou seja, na alteridade radical o eu não tem poderes. O outro chega
como o estrangeiro, o estranho que abala as estruturas do eu que navega em si.
“ O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma
alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma
alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior
a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do mesmo; outro de uma
alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro; outro de uma
alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria
rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do
sistema, ainda o mesmo.”
48
A relação entre o mesmo e o outro não forma totalidade, pois, não um termo
geral que possa definir essa relação e, mais ainda, essa relão não cabe na estrutura
da consciência intencional, ou seja, noético-noemática. Para que a relação metafísica
46
Ibidem, p. 25.
47
Ibidem, p. 25.
48
Ibidem, p. 26.
30
não seja desmentida o absolutamente Outro é Outrem, não faz mero comigo”
49
. A
relação do eu com o outro não possui terreno comum, não gênero, não
parentesco, não unidade anônima do conceito ligando-os. Não possuindo pátria
comum são apenas o mesmo e o outro. Mas, como nas exigências descritas, se torna
possível esta relação? Para Levinas, a única forma do mesmo se relacionar com outrem
é através da linguagem. Somente quando o mesmo na sua “ipseidade”, isto é, na sua
condição de “eu” único e singular sai de si e vai ao encontro do outro pela linguagem,
ocorre a relação como discurso.
A relação entre o mesmo e o outro, não unidos em um sistema, produz-se como
face a face descrito num âmbito em que a atividade do entendimento não atua.
Contudo, essa relação precisa ser pensada e para que isso ocorra é necessário um eu.
A distância a ser percorrida necessita do eu que, não apenas pense essa distância,
mas a curse como o próprio movimento da transcendência não tecida como uma
invenção subjetiva. A alteridade é possível a partir de mim”
50
. Mas, o que leva o
mesmo a se movimentar para o outro?
O desejo metafísico
O movimento para o outro, descrito como transcendência, não é a busca de
satisfação, busca de algo que falte ao eu. Como dissemos acima, a transcendência
possui um sentido próprio tendo como base o desejo metafísico. Aqui, novamente, nos
deparamos com a novidade do sentido proposta por Levinas, ou seja, o desejo assume
um significado diferente da tradição. O desejo é descrito como desejo do outro, para
além das necessidades, nesse sentido, “o desejo metafísico tem outra intenção
deseja para o que está além de tudo o que pode simplesmente completá-lo
51
. As
relações no âmbito ontológico são regidas pela necessidade, sempre em vista da
49
Ibidem, p. 26.
50
Ibidem, p. 27.
51
Ibidem, p. 22.
31
fruição e satisfação do eu. O desejo metafísico, ao contrário da relação ontológica, não
se encontra no nível das carências e necessidades passíveis de satisfação na qual o eu
está voltado para si mesmo, pois já supõe as necessidades satisfeitas.
Distinguimos, portanto, a diferença entre necessidade e desejo na relação entre
o mesmo e o outro. Na ordem da necessidade, está a apropriação, a dominação, a
redução do outro ao mesmo. O eu, no seu empreendimento, é busca de satisfação.
Todavia, o desejo é abertura ao outro e respeito a sua alteridade, relação com o
invisível, mas que nem por isso deixa de manter a relação. Trata-se de “um Desejo sem
satisfação que, precisamente, entende
52
o afastamento, a alteridade e a exterioridade
do Outro”
53
. O desejo metafísico não tem a estrutura egoística do gozo, uma vez que
não se conclui no gozo, pelo contrário o desejado não satisfaz o desejo, mas o
aprofunda.
Como desejo do invisível deseja o absolutamente outro que, como tal, não pode
ser visto sob a luz da rao na sua atividade conceitual ou totalizante, mas que
permanece em seu mistério, em seu não-lugar, estranho ao eu. Respeito ao estranho,
ao estrangeiro
54
que, precisamente, é o sentido do desejo entendido “como alteridade
de Outrem e como a do Altíssimo
55
. O desejo revela-se, portanto, como bondade.
Diante disso, parece que vislumbramos uma relação que não possui seu sentido
no horizonte do ser – totalidade – e nem da consciência intencional. Mas, como teorizar
52
Ação que privilegia uma relação de sentido afetivo, assim, não podemos confundir esse termo na
esfera cognoscitiva.
53
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 22.
54
Levinas se utiliza muito da figura do estrangeiro, para, justamente, como metáfora, descrever aquele
que me chega de uma terra estranha. Ao colocar esse termo levanta-se a questão do hospedeiro, ou
seja, aquele que acolhe. Mas, como acolher o estranho? Como escutar a sua língua? Derrida aponta
nessa questão um paradoxo entre a hospitalidade incondicional e as leis da hospitalidade: “A questão da
hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale a nossa língua,
em todos os sentidos do termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre
nós? Se ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós compartilhássemos tudo o que
se compartilha com uma língua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propósito
dele, em asilo e hospitalidade?”. Cf. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques
Derrida a falar Da Hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003. p. 15.
55
LEVINAS, Emmanuel.Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 22.
32
a respeito dessa relação que a mesma não se sustenta mais no terreno seguro?
da ontologia? A teoria ou o saber assumiriam um novo significado?
56
A metafísica precede a ontologia
O que buscamos com as descrições feitas acima? Buscamos descrever uma
situação, entendida como relação, que não seja iluminada pela luz do ser. Todavia, não
podemos acenar para esta tentativa de modo ingênuo, isto é, precisamos mostrar, por
meio de conceitos, essa relação. Articular, dentro da totalidade, a situação em que a
mesma se rompe. A teoria possui o estatuto para essa descrição?
Para Levinas, o saber ou a teoria possui dois significados: o primeiro tem um
sentido metafísico que não faz desaparecer o ser conhecido respeitando a sua
alteridade. Assim, o suporte para a teoria seria o desejo metafísico. Entretanto, o
segundo, essencialmente ontológico, significa inteligência ou compreensão do ser e,
nesse caso, a alteridade do outro se desvanece. O processo de conhecimento torna-se
o exercício de uma liberdade que não encontra obstáculos, ou seja, nada o limita.
O conceito o terceiro termo - é o referencial teórico a partir do qual se pode
amortecer o impacto do encontro entre o mesmo e o outro. Cada um abdica de sua
singularidade em favor de um termo geral neutro. Ao lidar com o conceito através da
ontologia, o eu solitário está livre das intervenções dos seres particulares que poderiam
estorvar ou contradizer a sua espontaneidade, pois, “a ontologia que reconduz o Outro
ao Mesmo, promove a liberdade que é a identificação do Mesmo, que não se deixa
alienar pelo Outro”
57
.
56
“A verdade implicaria, mais do que uma exterioridade, a transcendência. A filosofia ocupar-se-ia do
absolutamente diferente, seria a própria heteronomia”. Cf. LEVINAS, Emmanuel. Descobrindo a
existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p.
202.
57
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 30.
33
No entanto, a teoria pode abrir-se para o respeito à exterioridade e neste sentido
outra estrutura é apresentada, isto é, a da crítica. Como crítica ela põe em questão a
espontaneidade e a liberdade do exercício ontológico, descobrindo o dogmatismo de
seu movimento arbitrário. A busca de suas origens torna-se marcha e exercício de sua
liberdade numa regressão ao infinito. O mesmo não é capaz de limitar-se, nesse caso,
a teoria como crítica assume esse papel, pois, a mesma é descrita por Levinas como
capaz de pôr em questão o exercício do mesmo, e esta possibilidade é chamada de
ética, pois, apenas outrem
58
questiona essa espontaneidade.
(...) a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe
em questão o exercício do Mesmo. Um pôr em questão do Mesmo que
não pode fazer-se na espontaneidade egoísta do Mesmo é algo que
se faz pelo Outro. Chama-se ética essa impugnação da minha
espontaneidade pela presença de Outrem.”
59
A navegação do eu pelo si é perpassada por uma tormenta. A tempestade que
se anuncia tem a sua concretude como questionamento do mesmo por outrem, onde a
metafísica, a transcendência e, por conseguinte, o acolhimento de outrem pelo mesmo
produz-se como ética e “tal como a crítica precede o dogmatismo, a metafísica precede
a ontologia”
60
. A afirmação da ética como filosofia primeira funda-se na sua essência
crítica e questionadora. Essa afirmação vai de encontro à filosofia ocidental interpretada
por Levinas como ontologia – redução do outro ao mesmo.
A abertura do ser, na ontologia, não me põe em relação com os seres enquanto
tais, isto é, respeitando a sua alteridade, mas garante a soberania do eu sobre o outro
ou se utiliza de um termo médio que garante a inteligibilidade do ser. A filosofia
58
Outrem (autrui) aqui entendido como rosto do outro homem. Levinas o acenou para isso ainda, mas,
a partir daqui, toda vez que nos referirmos ao rosto utilizaremos outrem. Para tanto, seguimos a sugestão
de Simon Critchley feita em seu texto introdutório à tradução espanhola da obra Difícil libertad: “Levinas
hace una distinción entre dos formas de alteridad, expresadas en francés como autre y autrui, y que en
estilo bastante asistemático de Levinas a veces llevam mayúscula y otras veces no. Autre alude a todo lo
que es otro: la computadora en la que escribo, las ventanas y los edificios que veo cruzando la calle.
Autrui esreservado para el otro ser humano (...)”. Cf. LEVINAS, Emmanuel. Difícil libertad: ensayos
sobre el judaísmo. Trad. esp. Nilda Prado. Buenos Aires: Lilmod, 2005. p. 25.
59
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 30.
60
Ibidem, p. 30.
34
ocidental, tendo como ponto de apoio a ontologia, é injustiça, pois, incapaz de respeitar
a alteridade.
No que concerne as coisas, a tarefa da ontologia consiste em captar o
indivíduo (que é o único a existir) não na sua individualidade, mas na
sua generalidade (a única de que ciência). A relação com o Outro só
aí se cumpre através de um terceiro, que encontro em mim. A filosofia é
uma egologia.”
61
A inversão dos termos parece-nos ser a solução proposta por Levinas, todavia,
não se trata de uma simples inversão, fruto de um trabalho conceitual e, por assim
dizer, artificial. A inversão deve buscar descrever algo mais fundamental, a experiência
por excelência, o face a face. Nesse sentido, a ontologia perde o seu estatuto de
filosofia primeira e abre espaço para uma filosofia onde a justiça e a bondade, ou seja,
respeito ao outro são vitais. A ontologia compreensão do ser não lança sua sombra
para essa relação original, isto é, a relação com outrem, infinitamente distante, produz-
se como uma ruptura, uma fenda no cerne do ser. Diante disso, a proposta de Levinas
é que a ética dar sentido à ontologia, justificá-la. A relão é de tal respeito pela
alteridade do outro que não podemos fazer interrogações sobre o seu ser, mas sim
“interrogá-lo”, pois só ele tem autoridade para falar sobre si mesmo.
A compreensão do ser exprime-se no ente que ressurge por detrás
do tema em que ele se oferece. Este <<dizer a Outrem>> - esta relação
com Outrem como interlocutor, esta relação com um ente precede
toda a ontologia, é a relação última no ser. A ontologia supõe a
metafísica”.
62
Todavia, cabe-nos explicitar a base filosófica de que Levinas se utiliza para
descrever essa relação com o absolutamente outro. Que ente é esse que
interrogamos? Como é descrita a concretude dessa relação? Não estaríamos apenas a
escrever sobre uma situação hipotética, ou seja, um norte, um fim para o qual deveria
guiar a humanidade? Enfim, onde podemos vislumbrar a presença dessa relação?
61
Ibidem, p. 31.
62
Ibidem, p. 35.
35
A iia de Infinito e sua concretude
Notemos que, no esquema acima descrito, a teoria assume um novo significado,
ou seja, possui a ética na sua base. Nesse sentido, as relações de conhecimento não
implicam uma posse do eu sobre o outro conhecido afirmando a separação entre o
mesmo e o outro. Dito isso, a transcendência dessa relação não se torna religiosa ou
ainda transcendência que mergulha na participação. uma total separação,
necessária, do eu. Mas, então, surge a pergunta: como podemos descrever essa
relação que, ao mesmo tempo, implica uma não relação?
Levinas toma como modelo dessa relação a “idéia de infinito” de Descartes, que
se diferencia da idéia das outras coisas, pois, nesta, sempre uma correspondência
entre a idéia e a coisa, embora ambas sejam distintas. Ao passo que na “idéia de
infinito”, o infinito pensado (ideatum) ultrapassa infinitamente a idéia que se tem dele.
“ A relação do Mesmo com o Outro, sem que a transcendência da
relação corte os laços que uma relação implica, mas sem que esses
laços unam num Todo o Mesmo e o Outro, está de facto fixada na
situação descrita por Descartes em que o <<eu penso>> mantém com o
Infinito, que ele não pode de modo nenhum conter e de que está
separado, uma relação chamada <<idéia do infinito>>“.
63
O interesse não é, com a idéia de infinito, renovar o argumento ontológico, mas,
a partir de seu modelo formal
64
, estruturar e descrever como a relação com o
absolutamente outro pode ser descrita como relação com o infinito. O infinito possui a
distância é o seu conteúdo necessária para delinear a relação com o outro, pois, “o
63
Ibidem, p. 35-36.
64
“Mas, a análise cartesiana da idéia do infinito que, da maneira mais característica, esboça uma
estrutura de que apenas queremos conservar, aliás, o desenho formal”. Cf. LEVINAS, Emmanuel.
Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Trad. port. Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto
Piaget, 1997. p. 209. Ainda: “Parto da ideia cartesiana do infinito, onde o ideatum desta ideia, isto é, o
que esta ideia visa,é infinitamente maior do que o próprio acto pelo qual eu penso. desproporção
entre o acto e aquilo a que o acto acesso. Para Descartes, reside aqui uma das provas da existência
de Deus: pensamento não pôde ter produzido algo que o ultrapassa; era necessário que este algo tivesse
sido posto em nós. Logo há que admitir um Deus infinito que pôs em nós a ideia do Infinito. Mas não é a
prova procurada por Descartes que aqui me interessa (grifo nosso). LEVINAS, Emmanuel. Ética e
Infinito – Diálogos com Philippe Nemo. Trad. Port. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 83.
36
infinito é a característica própria de um ser transcendente, o infinito é o absolutamente
outro”
65
. A transcendência entra como característica do infinito, pois, possui a
exterioridade, ou melhor, está infinitamente afastado da idéia que fazemos dela. Pensar
esta estrutura é romper os limites desse pensamento, pois, o mesmo pensaria aquilo
que não possui contornos. Pensamento do invisível? Sim. A objetividade aqui é
secundária e abre espo para uma nova intencionalidade que é a da transcendência.
O pensamento procura abarcar o inabarcável e nesse seu movimento, que não é
começado por ele, pensa mais ou faz melhor do que pensar. Um pensamento que faz
melhor do que pensar é desejo.
O infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela idéia do
Infinito, produz-se como Desejo. Não como um Desejo que a posse do
Desejável apazigua, mas como o Desejo do Infinito que o desejável
suscita, em vez de satisfazer. Desejo perfeitamente desinteressado
bondade”.
66
Desejo e bondade que devem se instaurar concretamente. A concretude dessa
relação não deve ser a dominação daquilo que é desejado, pelo contrário, deve ser a
oferta de um mundo a outrem, sendo este outrem a presença de um rosto. A violência
que poderia ser exercida contra o outro perde sua força diante de outrem, assim, de
violência transmuta-se em generosidade, nunca abordando outrem de mão vazias. A
relação entre eu e outrem é da ordem do discurso.
Discurso que é acolhimento e respeito a outrem. Mas, delineamos essa
relação de respeito à alteridade. A relação descrita assume a estrutura formal da idéia
do infinito, ou seja, relacionar-me com outrem é possuir a idéia do infinito. Outrem,
como rosto, ultrapassa, constantemente, a idéia que posso fazer dele. Sua imagem não
é pstica e possui sua própria luz, ou melhor, outrem como rosto é descrito como a
desituação, pois, não necessita de horizontes para surgir seu significado. O rosto se
apresenta por si, isto é, ele exprimi-se ao apresentar-se. Não necessita de ajuda, pois,
ele mesmo traz o seu significado.
65
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 36.
66
Ibidem, p. 37.
37
Relacionar-se com o outro pelo discurso é ter a idéia do infinito
67
que quer dizer,
receber do outro mais do que aquilo que sou capaz. Significa ser ensinado. Levinas
pretende superar o predomínio da subjetividade em que o eu sozinho julga-se o dono e
a fonte da verdade. A acolhida de outrem no discurso é descrita como a relão por
excelência, ou seja, se a experiência significa a relação com aquilo que é
absolutamente outro, a relação com outrem, com o rosto é a experiência imediata,
anterior, anterior aos poderes, aos horizontes, à posse. O imediato é o face a face.
68
“ Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele
ultrapassa em cada instante a idéia que dele tiraria um pensamento. É,
pois, receber de Outrem para além da capacidade do Eu; o que significa
exactamente: ter a idéia do infinito”.
69
A concretude da idéia do infinito produz-se na relação que mantenho com
outrem, relação esta que não é totalização. O frente a frente, que agora podemos
chamar de face a face
70
, torna-se o ponto onde devem ser erigidos os pilares do ser,
pois, a luz vem desta relação original e não o contrário. Levinas acenara em outros
textos sobre os limites da ontologia fundamental e da consciência intencional, buscando
descrever a base, inclusive, que a atividade destas se ergue.
A relação face a face descrita como relação entre dois entes separados e que,
mesmo assim, mantêm uma relação pela linguagem ponte que ‘liga’ a infinita
67
A noção de Infinito é vista pelo por Timm como essencial para compreender a filosofia de uma época
sendo a mesma discutida, de modo implícito ou explícito, desde os primórdios da filosofia. Interessa-nos
destacar seu pensamento no que tange à ‘compreeno’ desta noção para pensar os problemas da
contemporaneidade: “Nesse momento, interessa-nos destacar o seguinte: se é verdade o que afirmamos
anteriormente, ou seja, que ao longo da história o conceito dominante de ‘infinito’ co-determina a
estrutura racional de auto-compreensão de uma época à medida em que se auto-determina e, como
sugerimos, temos muito boas razões para crer nisso então uma época que é capaz de conceber uma
noção de ‘infinito’ que escape ou supere as dimensões de um necessitarismo ontológico-categorial
determinante na tradição do pensamento ocidental será também capaz de superar os condicionamentos
de uma racionalidade solitária e aferrada obsessivamente a si mesma com seu corolário de auto
legitimações cada vez mais insustentáveis a qualquer espírito lúcido – pois tende a se fechar faticamente
em uma estrutura de sentido suicida-totalizante”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade:
dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 126.
68
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 39.
69
Ibidem, p. 38.
70
Face a face (le face à face) é descrito como a estrutura primeira da socialidade.
38
distância entre eles – está aquém da história e suas narrativas. Abordar outrem é desde
já acolher seu infinito transbordar, abraçar o estrangeiro aquele que não tem lugar
acolher sem perguntas
71
: bondade. Mas, novas noções surgiram: separação, rosto,
discurso, linguagem qual a importância que elas assumem nas descrições feitas
acima?
Separação e Interioridade
A noção de separação é necessária para a produção da idéia do Infinito. A
separação do eu não pode ser concebida como correlação recíproca da transcendência
do outro. Além disso, a separação não atesta uma antítese. Se assim o fosse, a relação
entraria num movimento dialético onde o outro seria subsumido. Esta afirmação traz
conseqüências concretas para a vida moral: o eu não tem direito de exigir do outro o
que ele pode exigir de si. Esta experncia tão comum na vida das pessoas mostra a
irreciprocidade e assimetria da relação pessoal e a total impossibilidade de se fazer um
julgamento verdadeiro dos outros a partir de si. Desta maneira, a relação é inintegrável,
a descrição desta mostra a não totalização de um evento.
Mas, como ocorre essa separação do mesmo? Movimentando-se como egoísmo,
o mesmo é gozo, busca de sua satisfação e, nesse sentido, alimenta-se do mundo. A
separação do mesmo produz-se nessa vida que frui e constitui-se como uma vida
interior, ou seja, como psiquismo. A interioridade aqui não é refletida, pelo contrário, ela
é ida ao mundo e gozo. Celebra o mundo na medida em que se satisfaz nele, mas a
constituição da interioridade é uma primeira resistência à totalidade. Com isso, “o
71
Verificamos aqui, novamente, o paradoxo da hospitalidade. Como acolher esse estranho? Deve existir
algo anterior à lei da hospitalidade contudo, não desligada dela que sustente esse acolhimento.
Pensamos que a linguagem sustenta essa relação, todavia, a linguagem é possível apenas num ser cuja
interioridade está resguardada. Haveria, assim, uma proximidade entre interioridade e linguagem?
39
psiquismo – articula a separação; não reflectida no pensamento, mas produzida por ele”
72
.
A separação atesta, tamm, a não integração do ser particular na história, que
pode acontecer após a morte deste. Historicamente, não se conhece o homem na
sua singularidade particular como ente humano, mas sim, pelas suas obras. A história
lida com dados objetivos (fatos e obras). Trata-se de uma história documentada, por
isso, os vencedores fazem história. Para Levinas, a história não faz justiça à
interioridade, pois, o psiquismo não se limita ao ser. Nenhum tribunal da história está
em condições de julgar esse ente, pois, cada um é incomensurável.
A idéia da separação ao ente a possibilidade de se situar além da morte, isto
é, comportar um sentido para além da história. A questão aqui é que a história não
indica o sentido último e, menos ainda, uma época seria capaz de englobar, por meio
das narrativas, essa interioridade. Escatologia? Sim. A escatologia é ir contra o conceito
de história. O psiquismo é o ponto de inflexão, a dobra na sincronicidade, pois, ele vem
de si, de um não lugar – do nada?
O nascimento de um ser separado que deve provir do nada, o começo
absoluto, é um acontecimento historicamente absurdo. De igual modo, a
actividade saída de uma vontade que, na continuidade histórica, marca,
a toda o instante, a ponta de uma nova origem. Estes paradoxos
ultrapassam-se pelo psiquismo.”
73
Interioridade
74
vinda de onde? Não memória capaz de atestar esse
surgimento. A memória, nesse caso, é o fenômeno da interioridade, isto é, ela não se
liga à teoria do conhecimento e sim ao psiquismo. A resistência desta interioridade não
72
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 42.
73
Ibidem, p. 43.
74
Mesmo não sabendo sua origem, a interioridade surge. Descrita, posteriormente, como estar em casa
chez soi. Mas, essa interioridade possui o seu auge, se assim podemos falar, no acolhimento de
outrem. Como se a intimidade do lar só pudesse ser plena na presença de um estranho. “(...) como se o
estrangeiro, então, pudesse salvar o senhor e libertar o poder de seu hóspede; é como se o senhor
estivesse, enquanto senhor, prisioneiro de seu lugar e de seu poder, de sua ipseidade, de sua
subjetividade (sua subjetividade é refém)”. Cf. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida
Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003. p. 109.
40
é deficiência de uma consciência que não consegue lembrar-se de seu início. A
resistência é o modo de ser da interioridade, ou seja, essa interioridade surge como
resistência às forças da totalidade. Não deve a nada a não ser a si mesmo. Eis o que
podemos compreender por ateísmo. Para Levinas, o ateísmo atesta a absoluta
independência do mesmo, aliás, é uma exigência que surge pela idéia do Infinito
preservando a vida interior.
Interioridade não conceituável, todavia, descrita. Não palavras que possam
fechar o significado desse psiquismo alheio à totalidade, ao sistema. Trata-se de um
enigma. Irrupção que surge como descontinuidade, segredo capaz de sustentar a
totalidade e, a partir dele, determinar as totalidades. A relação com outrem, a partir do
eu separado, constitui a fonte de sentido para a compreensão dos sistemas. Outrem
que não precisa de auxílio e que se revela no rosto.
A verdade do rosto
Levinas introduz um conceito de verdade que não é a verdade intelectual, mas a
sua condição. Com efeito, toda teoria e toda investigação sobre o mundo e a realidade
supõe a relação com outrem. A verdade só pode ser encontrada entre a relação eu com
outrem, pois apesar do modo de ver a verdade não ser igual, eles podem decidir
mesmo com o risco de errar – a buscar juntos a verdade, colocando em comum os seus
pontos de vista, sem violar a interioridade - a busca da verdade supõe a separação de
um ser autônomo.
Não fazendo parte de um todo, a verdade metafísica, ou seja, a alteridade não
pode ser procurada pelo sujeito como alguma coisa que lhe falte, pois esta não se
baseia nem na “privaçãonem na “necessidade” mas num desejo que supõe um ser
satisfeito. O que guia a busca pela verdade é a exterioridade daquilo com que
41
relação, tornando-se um modo privilegiado de busca. Ora, vimos que a relação por
excelência, como exterioridade total, é a relação com o infinito.
A idéia de infinito delineia um sentido ela não vem de mim. A busca pela
verdade não é, como já dissemos, uma busca para suprir as necessidades do eu. Esse
movimento parte de um não lugar, revelando-se a mim e suscitando o Desejo de
outrem, descrevendo um pensamento que, a todo instante, ultrapassa suas fronteiras
porque inabordável. A relação com essa absoluta exterioridade, desmedida do Desejo,
é relação com o rosto.
Esta noção de verdade não se opõe à verdade intelectual, obtida através da
pesquisa teórica que é o modo mais específico de busca da verdade, mas é mais
fundamental do que ela. A idéia do infinito é indispensável nessa primeira relação para
que outrem não seja deduzido a partir de mim. A linguagem é o modo específico da
relação de Desejo. Por meio dela, o ser autônomo e independente, procura a verdade
em outrem. Pois, “a verdade surge justamente onde um ser separado do outro não se
afunda nele, mas lhe fala”
75
.
Separação e interioridade, verdade e linguagem são, pois, as categorias
constitutivas da relação ética no pensamento de Levinas. Todavia, como podemos
descrever a ponte que “une” o mesmo e outrem?
A linguagem
A partir das descrições acima, é preciso distinguir o conhecimento objetivo do
conhecimento metafísico, pois, ambos assumem novo conteúdo. No conhecimento
objetivo, as coisas se apresentam para nós, segundo à nossa visão. É compreendido
75
75
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70,
1988. p. 50.
42
como desvelamento, uma vez que o objeto é desvelado segundo a compreensão do
sujeito, seja pela submissão da sensibilidade ao entendimento, seja pela elaboração de
um projeto. Este conhecimento nos põe em relação com “o que”, com a coisa pronta e
acabada a coisa não fala. Por essa razão, o conhecimento do outro é superficial e
muitas vezes equívoco.
Contrariamente, no conhecimento metafísico, outrem não é desvelado, não se
apresenta ao nosso olhar como um objeto que se interpreta, mas se manifesta segundo
ele mesmo, quer dizer, por si”, sendo relação de conhecimento no sentido absoluto do
termo
76
. Isso quer dizer que seu modo de aparecer independe das posições do mesmo
e da totalidade. Não há tomada de posição em relação a essa exterioridade.
(...) contrariamente a todas as condições da visibilidade de objectos, o
ser não se coloca à luz de um outro, mas apresenta-se ele próprio na
manifestação que deve apenas anunciá-lo, está presente como quem
dirige essa mesma manifestação, que somente o manifesta. A
experiência absoluta não é desvelamento, mas revelação (...)”
77
Ao se exprimir, outrem se expõe como rosto ultrapassando a forma plástica, ou
seja, outrem segundo a imagem que eu poderia constituir, na qual se apresenta sem se
reduzir à iia que posso fazer dele. Exprimir-se é, portanto, revelar-se, é a experiência
absoluta que produz sentido. Sentido construído no constante desfazer-se da forma
instituída pelo mesmo, ou seja, falar. O rosto como manifestação é discurso em que não
necessita de auxílio para sua manifestação mesma ele significa por si. No entanto,
por poder dispor do sentido, pode outrem mentir sem esconder sua franqueza de
interlocutor que se apresenta na nudez do rosto, cuja alteridade se mostra no olhar. Ele
pode usar de sinceridade ou de falsidade.
Essa noção de interpessoalidade a partir da revelação comporta um tipo de
conhecimento inverso ao da intencionalidade em outros filósofos como Husserl e
Heidegger. Pois, em nenhum deles encontra-se a idéia da separação e do infinito que
assegura a revelação da alteridade mediada pela linguagem como interpelação e
76
Ibidem, p. 52.
77
Ibidem, p. 53.
43
invocação. Os altos muros do mesmo apenas são ultrapassados mediante o apelo de
outrem na medida em que estes muros mesmo mostram-se incapazes de rebater o
chamado de outrem. O rosto fala.
Para Levinas, a palavra é princípio, não em si mesma, mas princípio enviado
para outrem
78
. Ele acredita encontrar aqui toda a origem da objetivação. Portanto, se a
relação ao infinito, isto é, a relação com outrem descrito com justiça e respeito a essa
alteridade radical - vem antes e se ele é o fundamento, a transcendência tem a primazia
sobre a objetividade e, conseqüentemente, a filosofia primeira é a ética e não a
ontologia.
O discurso ético
Levinas contrapõe sua idéia à concepção do pensamento europeu. Este, ao
colocar o pensamento universal antes das relações pessoais, anula a função da
linguagem como relação entre as pessoas. Se os pensamentos singulares se
fundamentam todos no pensamento universal, todos devem falar a mesma coisa. Não
há, portanto, necessidade de comunicação. É próprio da razão ser única e, por isso,
não podendo admitir a singularidade. Ela fala na primeira pessoa e não precisa se
dirigir ao outro, porque é única e soberana.
A filosofia reduz a função reveladora da linguagem à “coerência dos conceitos”,
enquanto o sujeito singular é ignorado. A linguagem teria, então, a função de suprimir o
outro, reduzindo-o ao mesmo. No entanto, não seria esta função da linguagem. A
linguagem o é um monólogo, mas um dirigir-se a outrem o invocando como um ser
que se revela a mim. Não é a linguagem que pressupõe a universalidade e a
78
“Não se terá esquecido uma terceira dimensão, isto é, a direção para Outrem, que não é somente o
colaborador e o vizinho de nossa obra cultural de expressão ou o cliente de nossa produção artística,
mas o interlocutor: aquele para quem a expressão exprime, a celebração celebra (...)”. LEVINAS,
Emmanuel. Humanismo do outro homem. Trad. bras. Pergentino S. Pivatto et al. Petrópolis: Vozes,
1993. p. 57.
44
generalidade, mas é a generalidade e a universalidade que pressupõem a linguagem.
Nesse sentido, a linguagem, ao manter outrem a quem se dirige, torna-se ética.
A linguagem supõe ainda outra condição do sujeito no seu modo de ser
separado. Trata-se na nudez do rosto que torna a pessoas totalmente estranhas a toda
qualificação e a todo atributo. A linguagem existe exatamente para fazer a relação entre
dois termos que não são comuns, quer dizer, entre termos transcendentes. Destarte, o
discurso pode ser descrito como a experiência do estranho, traumatismo do espanto,
para utilizar uma expressão de Levinas. Todavia, apenas esse estranhamento é capaz
de instrução e, para Levinas, apenas o homem pode ser totalmente estranho
79
.
A nudez desse ente especial, desse rosto que se apresenta, significa um ser
despojado dos elementos da cultura, das totalidades, dos sistemas ou de qualquer
leque de teorias que tentem compreendê-lo. A linguagem exerce essa função de
manter a relação com essa nudez, liberta de toda forma que possa aprisioná-la, pois,
possui seu próprio significado, sua luz. Essa ausência o é privação. Descrevemos,
pelo contrário, como rosto.
Nessa relação que nunca é recíproca, a liberdade é o Outro. Eu tenho o meu
mundo, a minha maneira de ser e a minha visão das coisas, mas outrem não pertence
ao meu mundo, ou seja, outrem é livre em relação a mim. À nudez do rosto que é essa
liberdade e estranheza de outrem Levinas associa a nudez do corpo que tem frio e
passa fome.
A transcendência do rosto é, ao mesmo tempo, a sua ausência do
mundo em que entre, a expatriação de um ser, a sua condição de
estrangeiro, de despojado ou de proletário. A estranheza que é liberdade
é também estranheza-miséria”
80
.
O reconhecimento de outrem começa pelo reconhecimento de sua fome e de sua
penúria e pela doação que ele necessita. Entretanto, não se trata de uma doação de
79
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. Port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 60.
80
Ibidem, p. 62.
45
quem se sente superior e está acima, porque tem, mas uma doação a alguém que é
mais do que eu meu mestre e meu senhor. A relação com outrem é relação com
aquele que possui miséria, pois, despojado e pobre de mundo, mas, tamm, relão
com o altíssimo
81
.
Percebe-se aqui que a ética levinasiana aponta para a passagem do egoísmo à
generosidade. O “objetivo” no sentido ético não é aquilo que pode ser contemplado
impassivelmente, mas aquilo que pode ser doado ao outro. No discurso, eu comunico e
dou o meu mundo. Aquilo que era meu torna-se de todos - universal. O discurso
ético não é apenas palavra vazia, mas se concretiza na partilha e na doação. O
discurso instaura a relação entre o mesmo e outrem como a face positiva da idéia do
infinito, ou seja, a concretude da relação produz-se como discurso na experiência
original e única do face a face.
81
Relação com uma altura que é o sentido mesmo do Desejo: “para o desejo a alteridade, inadequada à
idéia, tem um sentido. É entendida como alteridade de Outrem e como a do Altíssimo. A própria
dimensão de altura é aberta pelo Desejo metafísico”. Cf. Ibidem, p. 22-23.
46
INTERIORIDADE
A pretensão do capítulo anterior foi descrever a relação entre o mesmo e outrem
tendo como pano de fundo a leitura levinasiana da idéia de infinito. Mas, como estes
dois termos infinitamente distantes poderiam manter essa relação? A linguagem
estabelecia este vínculo, todavia, tal ligação não se estabelece num plano comum
82
. A
relação entre o mesmo e outrem, poder-se-ia dizer, é uma relação sem relação, pois, os
termos permanecem absolutamente separados
83
. Separação necessária para
ocorrência do acolhimento. Mas, como podemos descrever esta separação? Qual a
importância que a mesma assume no pensamento de Levinas?
Tentaremos mostrar que a separação do mesmo produz-se como vida interior ou
psiquismo
84
. A descrição aqui buscada ocorre no seio do ser e já manifesta uma
resistência à totalização separação radical. Separação e interioridade são os
constitutivos essenciais do sujeito e deles depende toda a compreensão da metafísica
como transcendência ética
85
e, por sua vez, estes conceitos – separação e interioridade
são condicionados pela felicidade da fruição e da morada que geram a independência
e a soberania do eu.
A constituição da interioridade
Levinas usa o termo “mesmo” para designar a ipseidade, pois, em sua relação
com o mundo, o eu sai de si e retorna a si, reduzindo toda diferença à sua própria
interioridade, ou seja, reduz o “outro” ao “mesmo” sem que o outro determine jamais o
82
“Esta experiência moral, tão banal, aponta uma assimetria metafísica: a impossibilidade radical de ver-
se de fora e de falar no mesmo sentido de si e dos outros; por conseqüência, tamm a impossibilidade
da totalização”. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa:
Edições 70, 1980. p. 41.
83
Ibidem, p. 89.
84
Ibidem, p. 42.
85
“O psiquismo e as perspectivas que ele abre mantêm a distância que separa o metafísico do Metafísico
e a sua resistência à totalização”. Cf. Ibidem, p.96.
47
mesmo. Contudo, a relação primeira que o mesmo mantém com o mundo não é da
ordem da representação, pois, ainda não consciência que represente esta relação.
Mas, o que queremos dizer com isso? Queremos afirmar que o mesmo, no seu viver,
não é enquadrado nos atos da intencionalidade constituinte. Aquilo que alimenta essa
ipseidade não é objeto de representação.
Além disso, as coisas de que se vive não são, tamm, utensílios ou ferramentas
como se a existência se esgotasse num sistema utilitário, onde os alimentos possuem
fins dentro de uma determinada totalidade
86
. Fins estes que, porventura, atestam a
dependência do eu diante do mundo. O homem começa a viver no mundo para
começar a “viver-se, isto é, a viver em si mesmo. Ele sai de si e retorna a si, sem se
dissolver, mantendo-se num primeiro movimento “para-si
87
.
O viver e suas alegrias
Viver é, portanto, gozar a vida intensamente com todas as suas possibilidades de
relação com o mundo e com a natureza. Os conteúdos da vida, isto é, as coisas que
nos cercam e das quais nos servimos, antes de serem meios de nutrição ou objetos
úteis a uma finalidade, fazem o prazer de viver. De acordo com Levinas: “Vivemos de
<<boa sopa>>, de ar, de luz, de espetáculos, de trabalhos, de idéias, de sono, etc."
88
Vive-se, neste nível, uma felicidade dependente e independente. Independente porque
as coisas não são usadas pela via do ser. No entanto, a felicidade da fruição depende
sempre de um conteúdo que não é o eu, mas o outro.
86
“As coisas, na fruição, não se afundam na finalidade técnica que as organiza num sistema”. Cf. Ibidem,
p. 115.
87
SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas.
Petrópolis: VOZES, 1984. p. 35
88
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 96.
48
O alimento, como meio de revigoração, é a transmutação do outro em
Mesmo, que está na essência da fruição: uma energia diferente,
reconhecida como outra, reconhecida vê-lo-emos como sustentando
o próprio acto que se dirige para ela, torna-se, na fruição, a minha
energia, a minha força, eu”.
89
Neste vel da interioridade, toda relação com o mundo
90
acontece na forma de
fruição, como alimento. Nesta dimensão, ainda, não é necessária a consciência de
quais sejam os conteúdos da vida, pois a vida é simplesmente alimentada e vivida.
Segundo Levinas, o primeiro contato da criança com o mundo ocorre através da boca
pela sucção do leite materno, ao contrário de Husserl (através dos olhos) e de
Heidegger (a mão que utiliza os instrumentos). Da mesma forma que a alimentação
produz gozo e prazer, assim acontece com todas as outras atividades.
Tudo é fruição na medida em que cada atividade alimenta o ato
91
. Desta forma,
até o simples fato de comer e trabalhar faz a alegria e o prazer de viver. Vemos,
portanto que, para Levinas, a felicidade é o modo primordial de ser no mundo. Este
nível não é ainda o da reflexão nem tem conotação moral, mas é o que Levinas
descreve como o “egoísmo da vida”, felicidade que nos envolve pelo simples fato de
vivermos. Ser feliz, portanto, é uma propriedade do eu, a felicidade é o seu alimento.
A felicidade é condição da actividade, se actividade significa começo
na duração contínua. O acto supõe, sem dúvida, o ser, mas marca, num
ser anônimo onde fim e começo não têm sentido um começo e um
fim. Ora, a fruição realiza a independência em relação à continuidade,
dentro dessa continuidade: cada felicidade chega pela primeira vez. A
subjectividade tem a sua origem na independência e na sobrerania do
eu”.
92
89
Ibidem, p. 97.
90
“O mundo é uma primeira positividade, uma primeira possibilidade de afirmação”. Cf. SUSIN, Luiz
Carlos. O homem messiânico uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas. Petrópolis:
VOZES, 1984. p. 35
91
“A maneira de o acto se alimentar da sua própria actividade é precisamente a fruição”. Cf. LEVINAS,
Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 97.
92
Ibidem, p. 99.
49
O eu começa soberanamente livre, pois rompe com a totalidade absorvendo
prazerosamente os seus alimentos, uma liberdade e uma auto-suficiência subordinada
ao gozo e este à relação com o mundo. A interioridade levinasiana irrompe, portanto, da
relação de gozo do mundo e viver esta relação é a primeira justiça do eu. O eu da
fruição é um eu livre das tramas do ser, mas é um eu da ipseidade, ainda de interesse.
Justiça esta que se concretiza na felicidade da fruição como interioridade.
Comentamos que a relação do mesmo com o mundo é descrita como dependência e
independência. Contudo, esta dependência não é escravidão, pelo contrário, descreve-
se como fruição. Tal estrutura supõe uma satisfação do mesmo com as suas
necessidades. O viver de... torna-se, desta maneira, uma dependência que atesta a
soberania do eu – felicidade egoísta. Contudo, dependência que não se refere às
necessidades, pois, a felicidade aqui não é a busca de algo privado ao mesmo. A
felicidade é a realização da fruição. Viver é fruir da vida
93
e, nesse sentido, a vida é
descrita como afectividade e sentimento. A vida descrita como felicidade delineia a
pessoalidade desta vida mesma. A felicidade do viver de... produz o surgimento de um
eu.
A personalidade da pessoa, a ipseidade do eu, mais do que a
particularidade do átomo e do indivíduo, é a particularidade da felicidade
da fruição. A fruição leva a cabo a separação ateia: desformaliza a
noção de separação que não é um corte no abstracto, mas a existência
em si de um eu autóctone”.
94
O corpo e as necessidades
Segundo Levinas, a soberania do gozo e a independência da interioridade é
condicionada pelo corpo através da necessidade. O ser humano é feliz por suas
93
Ibidem, p. 100.
94
Ibidem, p. 101.
50
necessidades. É através do corpo
95
que o eu pode ultrapassar os limites de suas
necessidades, superando as resistências da natureza em que vive. No entanto, quando
não consegue satisfazer as suas necessidades, este mesmo corpo faz com que o
mesmo sofra a pobreza e a indigência. Em outras palavras, através do corpo o eu é
dono de si, mas tamm através deste ele pode ser impedido de se realizar. A
necessidade está aqui na origem desta ambigüidade.
A necessidade é o primeiro movimento do Mesmo; sem dúvida, a
necessidade é também uma dependência em relação ao outro, mas é
uma dependência através do tempo, dependência que não é uma
traição instantânea do mesmo, mas uma suspensão ou um adiamento
da dependência e, assim, a possibilidade, pelo trabalho e pela
economia, de quebrar a própria ponta da alteridade de que depende a
necessidade”.
96
Apesar do homem romper com a condição animal e vegetal , desprendendo-
se do mundo e criando uma distância na qual é a essência da necessidade, ele
continua dependendo do mundo para se alimentar. No entanto, agora, dispondo de si
mesmo, passa a se relacionar com o mundo em forma de necessidade e supera a fase
da fruição imediata.
A independência do mundo criada pela necessidade coloca o sujeito numa
situação ambígua intermediada pelo próprio corpo, pois, se de um lado, torna possível o
trabalho e, com ele, o domínio sobre o mundo e a satisfação da necessidade, por outro
lado, o corpo continua necessitado e, por isso, ameaçado pela incerteza do futuro.
95
O corpo assume um papel importante do pensamento de Levinas, pois, é colocado como a posição
primeira no mundo - receptividade: “A primeira posição no mundo é uma posição corporal, mas de corpo
nu e indigente, todo ele sensibilidade e exposição, necessitado e no ponto inicial do movimento à
satisfação”. Cf. SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico – uma introdução ao pensamento de
Emmanuel Levinas. Petrópolis: VOZES, 1984. p. 40.
96
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 101.
51
De acordo com Levinas, ser necessitado não é ser dependente de outro, mas é
ser sujeito. Ele opõe à concepção de necessidade a de desejo. A necessidade diz
respeito ao material, aquilo que pode ser satisfeito. Aqui, a relação com o outro é uma
relação de consumo. O eu abre-se ao outro tendo em vista o retorno a si na felicidade.
O desejo, ao contrário, refere-se ao espiritual não susceptível de satisfação. Ao
tomar consciência da necessidade como possível de ser satisfeita, “o eu pode voltar-se
para aquilo que não lhe falta”
97
. Ou seja, ele se volta para o outro e nessa relação não
fruição e nem retorno. Aqui, a interioridade passa da fruição imediata para a
necessidade e começa um novo tipo de relação com o outro, não mais com relação
aos elementos da natureza, objetos de sua fruição, mas com o outro. Através da
mediação do corpo que trabalha e satisfaz às suas necessidades, o homem sai de seu
egoísmo, necessário ao nascimento do eu e completamente surdo ao outro, abre-se em
direção a outrem. Não ainda nesse momento uma relação ética, mas o eu eleva-se
da sua condição instintiva natural à altura do espiritual, que é justamente o Desejo do
Outro.
A singularidade do eu
Nós já vimos que o psiquismo que começa na fruição, antes de emergir como
sujeito que pensa, é sensibilidade e experncia de gozo. A felicidade da fruição não é
vivida e nem pensada, ela é sentida. É na sensibilidade que o homem vive a fruição.
Ela pertence à dimensão do sentimento e da afetividade onde se manifesta o egoísmo
do eu, e não ao domínio do conhecimento. É, a partir deste início da vida sensível, que
se torna possível à interioridade emergir ao nível da teoria como veremos mais adiante.
97
Ibidem, p 102.
52
O surgimento do eu é marcado por uma carência, que não é uma “carência
infeliz”, mas uma plenitude e felicidade. Um exemplo disso é o suicídio, pois é preferível
a morte a continuar no ser, quando se perde toda a esperança e a alegria de viver. A
felicidade é, portanto, um valor que está acima e anterior ao ser. Por isso é possível o
sacrifício do ser por um valor. Embora a felicidade dependa dos elementos, o gozo faz
com que a pessoa esqueça a própria dependência, sentindo-se pleno em si, quer dizer,
o gozo e a felicidade criam no sujeito o sentimento de soberania e liberdade.
Da relação da sensibilidade com os elementos que proporciona o gozo, surge o
psiquismo como espaço de interioridade que não é mais de ordem material. O
psiquismo é o que Levinas chama de “interioridade” que forma o eu único e separado. É
nisso que consiste a singularidade do eu. Desta forma, a irrupção do eu não está na
razão, nem na objetividade, mas na fruição e na separação
98
.
A recusa do conceito, neste caso, não é apenas um dos aspectos do
seu ser, mas todo o seu conteúdo – é interioridade. Esta recusa do
conceito empurra o ser que o rejeita para a dimensão da interioridade.
Está em sua casa. O eu é assim a maneira segundo a qual se realiza
concretamente a ruptura da totalidade, que determina a presença do
absolutamente outro”.
99
A singularidade ou a interioridade da pessoa é, segundo Levinas, o absoluta
que não se liga a nenhum outro ser e nem se encaixa em nenhuma relação conceitual
onde se possa distinguir entre particularidade e universalidade. Ou seja, o eu não pode
ser reduzido a um conceito, a não ser enquanto ser biológico. Enquanto sujeito,
interioridade e psiquismo, é totalmente separado e é nessa separação que consiste a
interioridade pela qual a pessoa emerge fora do puro ser – há .
98
“No consentimento afetivo à relação gozosa do mundo se origina o psiquismo que sente. O psiquismo
original e originante, que abre espaço à interioridade, irrompe desde a sensibilidade, é aí ‘originado’”. Cf.
SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas.
Petrópolis: VOZES, 1984. p. 42.
99
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p.103.
53
Temos, assim, em Levinas, uma interioridade que surge como psiquismo,
independente do puro ser. Esta iia de separação encontra-se, segundo Levinas, bem
demonstrada no cogito cartesiano onde o antes (Deus) é acolhido pelo cogito como se
viesse depois. Devido a essa inversão, o eu pode colocar-se no presente sem
preocupação nem com o passado nem com o futuro, como se fosse único e sem
origem, só futuramente apoiando-se no absoluto.
Independência e ateísmo
A interioridade que surge na fruição é descrita como uma independência
dependente. A vida depende de nutrientes como água, ar, alimentos, trabalho,
utensílios. A necessidade dessas coisas é vista, por Levinas, como objetos necessários
à fruição, isto é, para que o homem possa experimentar o gozo da vida.
Para a lógica formal é inconcebível uma independência dependente sob o
mesmo aspecto e ao mesmo tempo, vale dizer, liberdade e necessidade. Mas para
Levinas é aqui que se encontra o paradoxo e a maravilha do ser humano. A felicidade,
o gozo da vida é uma experiência única e singular para cada pessoa. Este é o ponto
central da singularidade, pois, é nessa vincia única que a vida se torna pessoal. Viver
coincide com afetividade e sentimento. O sofrimento não é a ausência da felicidade,
mas sim uma falta de felicidade. A liberdade e a necessidade, que para os filósofos
modernos são contraditórios, conciliam-se no gozo que surge da relação.
Situa-se, aqui, o problema da origem, pois, no gozo o ser humano esquece a
dependência, como se fosse soberano e não tivesse nenhuma causa fora de si. Se
admitisse uma causa à sua origem a soberania do eu seria comprometida, perdendo o
54
seu caráter de separação absoluta
100
. Ora, afirmar a separação significa a quebra na
participação, ou seja, na trama ontológica. Se que o eu se deve ao ser? Para resolver
esta questão da origem, Levinas articula a idéia da criação ex-nihilo, ou seja, do nada
– ateísmo e solidão.
Mesmo assim, segundo Levinas, o ateísmo é um momento necessário e
constitutivo da interioridade. Ele representa primeiramente a glória e a bondade do
Criador. Em segundo lugar, o ateísmo levinasiano é um pré-requisito para que haja a
verdadeira religião, pois não existe a religião natural, ela é uma relação entre seres
absolutamente separados, onde um respeita o outro. Em terceiro lugar, é condição
necessária para que haja separação a fim de que a alteridade seja protegida não da
relação de parentesco entre a criatura e o criador como não faz parte de nenhum
sistema ou totalidade, permitindo-lhe ser livre e separado. Uma vez que, não tem
nenhuma obrigação ontológica de aderir a um Deus, pois sequer existem provas que
Ele existe, há somente o fato do ex-nihilo
101
.
Sendo assim, podemos perceber que o psiquismo não começa idealisticamente
a partir do pensamento, mas na existência concreta, material e terrena, gozando de
uma felicidade “animal e vivente”. Todavia, esta não é a última condição do homem,
visto que existem possibilidades melhores ao superar este nível.
100
“Momento radical do absolutamente , mergulho na sensibilidade e felicidade desenraizando da
participação ontológica e representativa, a separação indica uma individuação tal que o se contempla
ainda a alteridade no seu sentido mais forte”. Cf. PELIZZOLI, Marcelo Luiz. Levinas: a reconstrução da
subjetividade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 77.
101
“Para que se faça justiça ao ‘ex nihilo’, é necessário, segundo nosso autor, que nem mesmo o
pensamento esteja ligado a qualquer tipo de unidade, a nenhuma totalidade, sem ‘participação’ a algum
pensamento universal, sem cordão umbilical”. Cf. SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico uma
introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas. Petrópolis: VOZES, 1984. p. 47.
55
Habitação e Economia
O elemento indeterminado
Após as considerações feitas acima, devemos descrever a interioridade diante
do mundo que o cerca, o que Levinas trata, aqui, é uma primeira dimensão da vida
humana que não é nem a da consciência nem a da representação, mas que já pertence
à interioridade, que é a vida no nível da fruição.
Nesse nível, o mundo de que vive o sujeito apresenta-se como indeterminado,
pois goza dos seus elementos sem saber nada sobre sua origem e seu fim. Os objetos
de fruição proporcionam um gozo imediato. Eles não garantem nada para o futuro visto
que, como qualidades sem substância, torna-se impossível a sua identificação. E é
justamente esse caráter elemental, ou seja, a sua indeterminação que constitui a sua
fragilidade e se apresenta como uma ameaça à segurança do gozo. Ele é o meio de
onde provêm as coisas e como tal é indeterminado e não pode ser possuído.
O elemento, isto é, a matéria indeterminada prolonga-se no futuro adquirindo
assim uma significação mítica, como se ela fosse envolvida por uma noite que causa
medo e insegurança, uma sensação de vazio, incerteza e dor. Levinas usa essa
metáfora da noite para traduzir a experiência que ele denomina como “há” (il y a), que
significa não o ser, em geral, no qual se perde toda singularidade, como tamm, o
futuro com todas as suas incertezas que acarreta à subjetividade a insegurança e o
medo da indigência.
No entanto, apesar da instabilidade do gozo e da felicidade, o mundo elemental,
fonte de nutrição, torna-se, muitas vezes, motivo de idolatria visto que o eu satisfeito e
feliz é tentado a prestar-lhe reconhecimento e adoração como se fosse o fundamento
56
do seu ser e da felicidade. Contudo, esse momento de idolatria é, segundo Levinas, um
momento necessário para conduzir a interioridade até a separação ativa (na medida em
que a economia e o trabalho vão substituindo a dependência mítica).
Insuficiência do gozo
O gozo é insuficiente na medida em que é imediato e não garante nada para o
futuro. Desta forma, é necessário adiar a hora do gozo para assegurá-la futuramente.
Surge assim a economia, que adiará o gozo para dar lugar ao trabalho e à posse
102
.
que o elemento é desconhecido, pode-se dizer que o futuro não garante a
permanência do seu instante de gozo na fruição, há uma preocupação com relação ao
amanhã. É o que Levinas “chama o mal da necessidade” que diz respeito à indigência a
que ela está sujeita. O mal, segundo ele, não está em sentir fome, mas em não poder
saciá-la.
Abre-se uma nova dimensão, a da economia. Através do trabalho, o homem vai
além da fruição para organizar o mundo e torná-lo habitável, assegurando o gozo de
amanhã. O nada do futuro passa a ser promessa de superação da indigência pelo
tempo dedicado ao trabalho e à aquisição da propriedade que, por sua, vez exige a
morada. A habitação é, portanto, a primeira condição da economia. A própria etimologia
grega da palavra já traz esse sentido: “economia significa “lei da casa. É a partir da
casa que se constrói o mundo econômico.
102
“É a espessura própria do elemento, sua resistência escapando para a noite silenciosa de onde
proveio, que obriga a sensibilidade a ‘tomar pro-vidência’, ou seja: adiar a boa hora do gozo para
assegura-la para amanhã”. Cf. SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico uma introdução ao
pensamento de Emmanuel Levinas. Petrópolis: VOZES, 1984. p. 53.
57
A morada: condição de afirmação da interioridade
Uma vez que a pessoa humana não é um ser jogado, abandonado, ele necessita
de um ponto de recolhimento que lhe sirva de referencial, onde possa assim construir
sua intimidade e interioridade. O eu, enquanto surge como psiquismo, compreende que
logo o alimento iacabar e que a fragilidade do seu corpo expõe à morte a qualquer
momento. Sendo assim, ele procura descobrir os meios para construir e garantir não só
a permanência do gozo, mas da sua própria existência e sua interioridade.
O homem constrói a casa para ter uma identificação no mundo, através dela ele
não será confundido com os elementos. À fruição segue-se, imediatamente, a
habitação como exigência de separação e afirmação da interioridade do eu. A casa é,
portanto, o ponto de referência, onde a subjetividade possa sentir-se segura e observar
a realidade ao seu redor sem ser observado. Antes o mundo era a sua casa, agora a
casa é o seu mundo.
O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da actividade
humana, mas em ser a sua condição e, nesse sentido, o seu começo. O
recolhimento necessário para que a natureza possa ser representada e
trabalhada, para que se manifeste apenas como mundo, realiza-se como
casa. O homem mantém-se no mundo como vindo para ele a partir de
um domínio privado, de um <<em sua casa>>, para onde se pode retirar
a qualquer altura”.
103
Na relação com a habitação, acontece tamm, a mesma dinâmica da fruição: o
eu sai de sua interioridade, ou seja, de sua casa (movimento de extensão) e vai ao
mundo exterior onde trabalha para garantir o gozo e retorna a si, à sua casa
(movimento de involução) para então gozar do fruto de seu trabalho.
103
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 135.
58
Nesse sentido, a morada é anterior à constituição dos objetos, porque toda ação
se faz a partir do sentido da morada. Essa prioridade significa para Levinas que a
interioridade, antes de tomar consciência de ser um sujeito diante do mundo e dos
objetos, já existe como morador em algum lugar, mantendo sua intimidade e identidade,
preservadas pela existência do lar. A existência da pessoa se concretiza como
interioridade primeiramente na intimidade da casa, só depois é que ela pode realizar as
demais dimensões como o saber, a cultura e a civilização.
Levinas repensa a idéia da casa como uma dimensão ontológica do eu: não é a
casa que chama o eu ao recolhimento e interioridade, mas o próprio eu é que é
separação e recolhimento, por esse motivo é que ele tem a necessidade de construir
sua casa e nela se refugiar. No entanto, para que essa interioridade se realize como
pessoa única e singular ainda é preciso desenvolver outras dimensões através da ação
do trabalho e pela teoria. O eu passa então do recolhimento para a ação, o ato. Mas,
como o eu se relaciona na sua própria casa?
O feminino: a condição da intimidade do lar
O recolhimento do homem na casa não pode acontecer simplesmente em quatro
paredes sem motivação e sem vida. O gozo estende-se tamm à relação do homem
com a casa. Portanto, é necessário que haja um ambiente acolhedor, doce e
aconchegante para que ele se sinta protegido e em casa”. A relação com o lar supõe
uma intimidade, uma familiaridade com este ambiente.
Nesse momento, a interioridade reflete e procura de outra forma a garantir a
fruição. Enquanto ela adia o gozo imediato da satisfação da necessidade, a pessoa
59
goza a alegria do acolhimento e o aconchego do lar. Recolher-se em casa é recolher-se
em si mesmo, como lugar de hospitalidade, acolhimento e calor humano
104
. Para
Levinas, a descrição deste espaço se realiza como a presença da mulher.
O acolhimento e a doçura da casa não exigem, necessariamente, a presença
física da mulher, mas o está desligada da figura feminina em quem se concretiza o
acolhimento e a relação de amizade, a “intimidade com alguém”. A mulher como
condição do recolhimento e da interioridade da morada não representa ainda a
linguagem como transcendência ética, mas indica a sua possibilidade. Ou seja, no
nível da interioridade enquanto somente vivente”, o eu ainda não é capaz de uma
relação de alteridade no sentido ético, pois, ele não tem consciência da alteridade do
Outro. Isto não significa que a alteridade da mulher seja negada - pelo contrário, é a
alteridade por excelência mas, enquanto figura feminina do lar ela é uma alteridade
velada.
A mulher entra no contexto da habitação como “condição” de intimidade e
economia. A sua alteridade é um mistério que se esconde através do pudor e da
discrição. Levinas , na relação erótica, um anúncio dessa alteridade na medida em
que ela se distingue da relação de gozo com os elementos. Existe uma materialidade
elemental que satisfaz o gozo (feminilidade do corpo), mas tamm uma alteridade que
apesar de se esconder, é percebida pela carícia. Realizando a concretização da
interioridade, o eu está preparado para estabelecer novas relações com o mundo
através da posse e do trabalho.
104
O feminino indica que esta interioridade deve manter uma relação de acolhimento para si mesmo, ou
seja, antes de ser hospitalidade com outrem, seria hospitalidade consigo mesmo?
60
O domínio do ser através da posse e do trabalho
A casa garante e protege a separação do eu, mas não o isola do seu habitat
natural, a permanência em casa não elimina essa relação. No adiamento da fruição
(gozo) e no recolhimento da casa, o homem repõe suas energias necessárias para o
trabalho, através do qual os elementos da natureza são transformados em coisas
duráveis, como bens móveis, que podem ser transportados e guardados em casa.
Nesse sentido, a casa é o fundamento da posse e do trabalho.
Todavia, Levinas, estabelece uma distinção entre a posse a partir da fruição e a
posse a partir da morada efetuada pelo trabalho, isto é, na fruição a sensibilidade
mergulhada no “elemento” sem adquirir, “sem apanhar”, não nenhum compromisso
do eu com o seu objeto de satisfação e a duração da posse coincide com o momento
da fruição. Mas a partir da habitação, a posse ganha um novo significado. Aqui o objeto
não se confunde com o gozo e pode ser permanentemente possuído. Pois, através do
trabalho, a subjetividade se afasta do gozo imediato e, ao extrair da natureza os
elementos de que necessita à fruição, ela anula a independência desses elementos,
para transformá-los em propriedade. Em síntese, o homem fabrica coisas manipuláveis
que possam ser levadas para a sua casa.
A posse elimina a qualidade da coisa, parte do elemento que foi arrebatada e
trabalhada, podendo ser guardada e comercializada. Seu “ser-em-si é suspenso
enquanto qualidade, para torna-se “ser-para-mim”, como posse. Sendo assim, a obra
perde a sua alteridade, passando a ser uma propriedade da qual posso dispor quando
quiser.
Na posse, as coisas incorporam-se ao eu como uma extensão do próprio corpo,
estendendo tamm o gozo e garantindo o gozo futuro. Nesse sentido, a posse do
61
objeto é mais importante que o objeto possuído, pois, o que se procura é a posse pela
posse, independente do seu conteúdo. A riqueza é então amada por si mesma, nela o
eu apreende o mundo como propriedade e se confunde com o ter. Desta forma, a
pessoa humana vale de acordo com o que tem, se não tem, não vale nada.
Todavia, essa forma de se relacionar com as coisas, segundo Levinas, é uma
tendência inata mas, não do humano -, pois é próprio do eu dominar através da
posse, o mundo e a natureza, assegurando a sua sobrevivência no futuro e adiando a
morte. Nesse nível, a posse realiza-se pelo trabalho, cujo meio fundamental é a mão,
que faz a ligação entre o elemento, a posse e a morada. Mais do que instrumento da
fruição, ela é meio de aquisição. A mão está ligada aos objetos de uso como
ferramentas, instrumentos de trabalho.
Em sua concepção de trabalho, Levinas o chama de “técnica original”, a qual não
está ligada ao saber e à técnica enquanto aplicação de uma teoria. A relação do
homem com a matéria, através do trabalho, não é como a relação do homem com outro
homem. Pois, a resistência da matéria é diferente da resistência de um rosto, na
relação face-a-face. A matéria se dobrará, certamente, com a força da mão. A matéria
não tem rosto, por isso, o trabalho não é uma violência contra ela, pois a sua
resistência representa o nada. Pelo trabalho, o homem domina o ser e pela posse
garante o futuro.
Consciência e Conhecimento
O saber como atitude crítica
O homem na sua preocupação em permanecer no ser e com o seu futuro evolui
da economia ao saber e à teoria, para melhor executar a economia. O conhecimento e
62
a reflexão são um prolongamento da economia, em linha de continuidade com o gozo e
a posse, ao contrário do idealismo, que o coloca na origem da subjetividade. Segundo
Levinas, só depois da fruição e da economia é que surge a teoria como estágio
necessário ao desenvolvimento da interioridade. Como na fruição, o sujeito encontra
uma insuficiência na vida econômica, pois, nem sempre suas obras correspondem às
suas expectativas. Mas, como se dá esse processo da economia à teoria?
A teoria, no pensamento de Levinas, não é a origem de toda a realidade segundo
o intelectualismo ou uma superestrutura resultante das condições materiais da vida,
como dizem os materialistas, ela é uma atitude crítica de desconfiança de si, um
caminho de volta à origem para se saber onde e em que falhou. A teoria surge a partir
de um distanciamento do ato, de uma parada na ação.
O pensamento e a reflexão surgem, portanto, de uma experiência de vida. No
gozo, no sofrimento, a sua reflexão e o seu saber o condicionados por essas
vivências. Assim, como na fruição e na economia, no nível do saber, o homem se torna
soberano e capaz de ignorar sua dependência da vida, colocando-o como a fonte e a
origem de si mesmo. É o que o autor chama de “desenraizamento” da representação.
Aqui, mais uma vez ocorre a inversão: o que é condicionado torna-se a condição,
origem e fundamento
105
.
A desconfiança de si ou atitude crítica que é a base do processo da economia
até a teoria, o saber pode decorrer por dois motivos contrários e excludentes. A primeira
surge da descoberta de suas limitações, de seus fracassos. Deste modo, a teoria terá
como objetivo a clareza de seus atos, sua segurança e afirmação de si. Conhecer é,
portanto, compreender a si mesmo e ao mundo. Aqui, o saber identifica-se com a
ontologia. A segunda baseia-se na dúvida de seus atos morais, se o que faço é certo ou
não. Essa atitude é possível pela consideração da relação com o Outro”. Neste
105
A obra do prof. Susin está demasiada presente neste capítulo. Cf. SUSIN, Luiz Carlos. O homem
messiânico – uma introdução ao pensamento de Emmanuel Levinas. Petrópolis: VOZES, 1984. p. 71.
63
caso, o saber aparece como a busca da justificação e correção dos atos diante da
convivência com o outro. Desta forma, seu objetivo principal será no nível moral, ou
seja, a relação ética.
É a partir dessas duas posturas que Levinas faz a distinção entre a Ontologia e a
Metafísica. A Ontologia é o pensamento voltado para a compreensão do ser do mundo,
da objetividade e da eficácia do eu. O conhecimento ontológico na sua versão moderna
preserva a soberania do eu dentro da totalidade. A Metafísica liga-se à segunda
motivação, ou seja, à relação ética onde o conhecimento metafísico volta-se para Outro
– absolutamente outro.
Estamos diante de uma heteronomia em que Levinas se opõe frontalmente à
autonomia kantiana. A moralidade não é uma legislação da própria vontade, mas uma
exigência que vem de fora, de outrem que julga a minha liberdade. A metafísica
encontra assim um novo significado: não mais a busca da verdade do ser que es
além da física, mas, dentro da totalidade, relação de um sujeito absoluto e solitário
chamado a abertura para outrem que se encontra além da totalidade, pondo, desta
forma, o eu em relação com a transcendência de outrem, traduzida pelo conceito de
infinito.
O saber ontológico
Diante dessas duas oões, ontológica ou metafísica, uma será fundamental e a
outra secundária, existindo em função da outra. Levinas, no decorrer de toda sua obra,
não deixa de criticar a filosofia ocidental por ter seguido o caminho da Ontologia em
detrimento da Metafísica, relegando assim, a moral em segundo plano e reduzindo-a a
acordos e diplomacias entre os vários “eu’s” da sociedade
106
.
106
Ibidem, p. 71.
64
Quando a consciência é quem determina o sentido daquilo que se encontra fora
dela, o que é exterior torna-se interior. A adequação do objeto do saber ao pensamento,
como total imanência, sem nada de excedente ou oposição, anula a alteridade do
objeto no interior da própria consciência. Conhecer é, pois, uma atividade livre da
consciência (o mesmo) que determina o objeto (o outro) sem ser por ele determinado; é
a eliminação da alteridade do outro no interior do mesmo, ou seja, redução do outro ao
mesmo
107
. Na representação, uma determinação do sujeito pelo objeto, mas uma
determinação de tal modo gratificante que o pensante se sente autor do conhecimento.
O movimento utilizado para realizar esse domínio absoluto do eu é a sincronia do
tempo. O presente ao reunir o passado e o futuro, ao eu o poder de exercer o seu
domínio sobre o tempo na medida em que resume tudo ao seu próprio sentido. Desse
modo, gradativamente, o mesmo vai construindo a sua liberdade transformando a
dependência em independência que a caracteriza como ser separado. Primeiramente,
no gozo dos alimentos, depois na atividade econômica que garante o gozo futuro e,
finalmente, pela razão que o eleva a um poder universal, levando-a, a uma liberdade
absoluta. Levinas vê a consumação desse poder da razão nas filosofias modernas de
Descartes a Husserl.
“ (...) Razão triunfante do saber, mas também no fim de milênios de lutas
fratricidas políticas, mas sangrentas, de imperialismo tomado como
universalidade, de desprezo humano e de exploração e, até este século
de duas guerras mundiais, da opressão, dos genocídios, do holocausto,
do terrorismo, do desemprego, da miséria sempre incessante do
Terceiro Mundo, das cruéis doutrinas do fascismo e do nacional-
socialismo e aao supremo paradoxo em que a defesa da pessoa se
inverteu em stalinismo. Terá a Razão sempre convencido as vontades?
Terão estas sido sempre razão prática para permanecer numa cultura
em que a Razão triunfante das ciências animava a própria história e não
devia aí cometer nenhum paralogismo?
108
107
Analisamos estas noções no primeiro capítulo.
108
LEVINAS, Emmanuel. Entre nós - Ensaios sobre a alteridade. Trad. bras. Pergentino Stefano Pivatto
et al. 2ª ed. Petrópolis: VOZES, 2005. p. 242-243.
65
Quando a Razão segue o caminho da Ontologia, a Boa Vontade” não é a
vontade que se conforma à bondade, portanto, que se situa na linha da ética, mas a
vontade que age conforme a razão, fonte de verdade e valor.
O saber metafísico
O caminho da Ontologia que repete o movimento da interioridade análogo ao da
fruição, extensão e involução uma saída de si na contemplação da obra e uma volta
para si na medida em que o saber reverte em auto-afirmação de si mesmo e da
liberdade - faz com que o mesmo continue encerrado em sua interioridade, em si e para
si, onde determina o outro sem ser determinado por ele. Desta forma, não é possível
uma relação de reciprocidade e muito menos nas relações de interpessoalidade.
No entanto, como o ser humano não pode viver sozinho, isolado no mundo, ele
está sempre em relação tamm com outras interioridades. O homem é um ser em
relação, mas esta relação poderá ocorrer no nível ontológico, negando a alteridade do
Outro, como poderá ocorrer no nível metafísico.
A teoria pode deixar de privilegiar a verdade do ser e o seu domínio, para se
preocupar com a moral, isto é, com a atitude justa ou injusta diante de outrem,
ocorrendo, assim, a relação metafísica de que nos descreve Levinas. Mas, como
ocorre? Da mesma forma que a economia supunha o distanciamento do gozo imediato,
a representação tamm supõe o distanciamento do ato para ser bem compreendido.
Contudo na relação metafísica é necessário que, além disso, haja o afastamento da
posse, ou seja, o desapego das coisas.
66
a doação pode libertar o eu da dependência do não-eu. Entretanto, isso é
possível com a presença de outrem que me questiona, e tal questionamento deve vir de
uma exterioridade que não se torne uma propriedade do eu, que o possa ser
reduzida ao mesmo como na representação do idealismo transcendental.
Levinas salienta aqui a dimensão ética acima da dimensão ontológica. Para ele,
a relação com o Outro não pode ser colocada no mesmo nível da relação com as
coisas, (relação de objetividade, em que o mundo é visto, a partir de fora, constituído e
objetivado pela consciência), mas “a partir de cima”, quer dizer, fora de toda relação
objetiva, numa dimensão que impede a apropriação e supressão do outro, ou seja,
assassínio.
É na linguagem, entendida como ensino, que acontece essa contestação de
outrem. A voz que vem de outrem como ensino manifesta toda a sua transcendência. O
saber ético não provém do próprio eu, mas de outrem que me interpela, ou seja, da
relação ética. A presença de outrem me ensina a sair do meu egoísmo e abrir-me para
um valor maior - a ética, a sociedade - sem, no entanto, me violentar.
A busca não pretende delinear a moral como harmonização de interesses,
preocupado em evitar conflitos entre as liberdades, mas colocar à distância de si o
próprio eu para julgá-lo. A liberdade do saber metafísico não consiste num poder
absoluto que domina e elimina o Outro, mas em libertar-se do egoísmo e da posse e ser
capaz de praticar a justiça a partir do questionamento de outrem. Ele liga a relação
ética com a vida econômica, uma vez que esta não pode ser dissociada do mundo em
que se vive, pois, a ética para ser concretizada começa com a hospitalidade,
acolhimento da total estranheza de outrem. Mas, no acolhimento dessa exterioridade, o
que podemos vislumbrar? O que surge de novo nessa relação com outrem – rosto?
67
ROSTO
Face a face expressão demasiado repetida neste trabalho. Repetida porque
buscada. Mas, o que de significativo podemos descrever quando estamos diante de
outrem? De um rosto
109
? Sabemos e esperamos ter deixado isso bem claro que a
relação ética aqui buscada produz-se entre dois termos separados, separação que se
produz como interioridade, psiquismo. Todavia, chegamos ao momento em que este
psiquismo após ter ido ao mundo material, usufruindo-o e retornando a si mesmo pleno
e cumulado, poderá abrir-se para a transcendência irredutível, ou seja, à alteridade.
Esta abertura a outrem, abertura que teria se tecido no gozo, e que jamais
poderá ser uma relação de assimilação de outrem pelo eu, é possível com a visitação
do rosto um rasgo na teia do sensível. É a palavra rosto que Levinas usapara
traduzir a noção de alteridade
110
. O autor tem um extremo cuidado ao se referir à
alteridade, pois, falar de outrem implica falar a partir do eu, e outrem é descrito como
uma realidade que está além do que posso conhecer
111
.
Como, então, o pensamento pode almejar mais do que o pensado? Ou então,
como o mesmo se relacionará com essa alteridade, se esta o pode ser captada pelo
109
Rosto (visage). entre os estudiosos de Levinas um debate em torno à tradução deste termo por
Olhar ou Rosto. Em uma nota, o prof. Timm comenta e se posiciona sobre este assunto: “A tradução de
visage’ por ‘rosto’, embora gramaticalmente correta, nos parece muitas vezes imprópria no âmbito estrito
do pensamento levinasiano, no sentido de que pode sugerir uma determinada materialidade facilemente
redutível à determinação ontológica, mais ‘picturável’, no momento mesmo em que se estabelece, ética e
faticamente, o ponto de fuga de toda determinação ontológica. Um rosto dá-se, em sua dignidade, à
materialização como ‘circunscrição espacial’ isto não acontece com o ‘olhar’, cuja presença é, desde
sempre, a subversão mesma da noção normal de espacialidade determinável”. Cf. SOUZA, Ricardo
Timm de. Razões Plurais: itinerários da racionalidade no século XX – Adorno, Bergson, Derrida, Levinas,
Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS , 2004. p. 168.
110
“Ainda: ‘Alteridade’ assume a forma concreta, expressa por Levinas sob o termo visage, Olhar ou
Rosto do absolutamente Outro, daquele que meu intelecto não é capaz de compreender desde suas
próprias (do meu intelecto) leis”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais: itinerários da
racionalidade no século XX – Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS ,
2004. p. 168.
111
“A síntese da questão: todo e qualquer conhecer, todo e qualquer ‘entrar em relaçãotem de ser dar
necessariamente no jogo prederminado da ontologia cognoscente?”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de.
Sujeito, ética e história: Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999. p. 59.
68
eu? Esta inadequação realizar-se como desejo do absolutamente outro, o qual
descrevemos como rosto em que se manifesta a “presença” enigmática do infinito
112
.
Falar
113
a outrem, portanto, é concretizar a idéia do infinito.
Nesse sentido, abordaremos a questão do rosto refletindo sobre os seus vários
significados, ou seja: o rosto como mandamento ético; o rosto como fonte de sentido; o
rosto como condição de objetividade e·assimétrico e enfim, o rosto educa a vontade
para o bem e se estende a toda a humanidade.
O rosto e seus vários significados
O rosto como mandamento ético
O rosto como expressão, na sua forma sensível, poderia de alguma forma ser
apreendido pela compreensão ou pela posse, mas devido à sua resistência aos
estratagemas do eu, vislumbra-se a abertura de uma nova dimensão. Esta dimensão
descreve o rosto como resistente não à apreensão ou apropriação, mas também ao
poder de matar. É uma resistência ética que se opõe à resistência ontológica. Não se
trata de apontar as fraquezas do eu diante de outrem, como se a relação se tratasse de
um jogo de forças onde os poderes são medidos. O rosto desafia e coloca em questão
o poder de poder do mesmo
114
.
112
“A idéia do infinito, o transbordamento do pensamento finito pelo seu conteúdo, efectua a relação do
pensamento com o que ultrapassa a sua capacidade, com o que a todo o momento ele apreende sem ser
chocado. Eis a situação que denominamos acolhimento do rosto. A iia do infinito produz-se na
oposição do discurso, na socialidade”. Cf. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José
Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 176.
113
Podemos afirmar que a linguagem realiza o acolhimento? “Rosto e discurso estão ligados. O rosto
fala. Fala, porque é ele que torna possível e começa todo o discurso. Recusei, agora mesmo, a noção de
visão para descrever a relação autêntica com outrem: o discurso e, mais exactamente, a resposta ou a
responsabilidade, é que é esta relação autêntica”. Cf.LEVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito Diálogos
com Philippe Nemo. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 79.
114
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 176.
69
A resistência ontológica é a oposição concreta e real das armas, de uma vontade
contra outra vontade, é a resistência da violência e da guerra. Todavia, a resistência
ética é a resistência do que não tem resistência, mas proíbe pelo olhar
115
. Como
dissemos, não se trata aqui de um confronto entre o eu e outrem, no qual outrem
resiste por ser mais forte, ou por dispor de mais condições materiais de defesa, mas
que convoca o eu para uma relação diferente da relação de poder, nesse sentido, a
relação se estabelece em âmbito diferente do conhecimento ou da fruição.
Contudo, o rosto é manifestação no sensível e, desta maneira, ainda se oferece
aos poderes do eu. Dominar, apropriar-se são modos de descrever o movimento do
mesmo na sua ida ao mundo. Assimilar e, nesse sentido, negar parcialmente a
alteridade dos elementos que visam satisfazer suas necessidades. Mas, o rosto é
descrito como o único que se expõe a um tipo de poder que não é de domínio, mas de
aniquilamento. O assassínio não é dominação, mas aniquilamento. Exerce um poder
que é impotente diante da alteridade que se exprime no rosto, uma vez que é poder
somente como destruição do sensível, no entanto, o rosto rompe o sensível.
Matar não é dominar mas aniquilar, renunciar em absoluto à
compreensão. O assassínio exerce um poder sobre aquilo que escapa
ao poder. Ainda poder porque o rosto exprime-se no senvel; mas
impotência porque o rosto rasga o sensível”.
116
Como frisa Levinas, esta tentativa matar outrem atesta um triunfo e, ao
mesmo tempo, uma derrota. Triunfo, pois, o poder do eu se efetiva, todavia, no
momento mesmo desta realização outrem me escapa. Vislumbra-se a impotência do
meu poder, pois, matar seria colocar o rosto de outrem na abertura do ser
117
, no
115
“O mesmo é tocado pela presença do Outro, na medida em que uma guerra não pode ser iniciada. E
por que não pode? Porque agora houve a invasão, na lógica da guerra, de elementos de outra ordem,
que não se curvam a essa lógica”. Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais: itinerários da
racionalidade no século XX – Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS ,
2004. p. 178.
116
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 177.
117
LEVINAS, Emmanuel. Entre Nós ensaios sobre a alteridade. Trad. bras. Pergentino Stefano
Pivatto et al. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 31.
70
mundo, contudo, o rosto, como nu, é desenraizado, ou seja, está fora dos elementos
que poderiam dar-lhe significado. Ele é por si. O rosto escapa aos tentáculos do eu,
destarte, ao matar outrem não o possuo, teremos nas mãos apenas um corpo, um
cadáver
118
.
Logo, é a transcendência do rosto de outrem que suspende no mesmo o seu
poder de matar como mandamento ético: “não matarás”. Brilha, de certa maneira, no
rosto de outrem uma infinita resistência absolutamente transcendente. Levinas
chamará essa resistência de ética
119
. Esta impossibilidade de matar o corresponde
somente de forma negativa e formal, mas apela para o eu sobre a sua responsabilidade
diante da miséria e fome de outrem, pois, “a compreensão dessa miséria e dessa fome
instaura a própria proximidade do Outro.”
120
.
Os exemplos que representam, segundo Levinas, a alteridade por excelência
são: o pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro
121
. É desses excluídos e despojados que
surge o apelo, como expressão do discurso original e solicitação que vem de sua
miséria e sua altura.
A “altura” é a dignidade e o valor ético da sua alteridade. É o seu apelo que faz
com que o mesmo ouça, promovendo pela sua consciência moral, o nascimento da
bondade. Esta bondade não consiste em uma atitude caridosa, mas traduz a noção de
justiça. Eis o motivo pelo qual a moral não pode provir do eu, mas sim de outrem.
118
“O assassino quer a vida do Outro, mas conquista a Morte, um corpo morto; a vida do outro sua
alteridade refugiou-se no pesadelo de toda ontologia: no Nada, Nada de Ser”. Cf. SOUZA, Ricardo
Timm de. Sentido e Alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000. p. 41.
119
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 178.
120
Ibidem, p. 178.
121
“A quatríade é a seguinte: ‘o pobre’ (que não tem recursos econômicos), ‘a viúva’ (que não tem marido
que a sustente), ‘o órfão’ (que não tem abrigo que o recolha), ‘o estrangeiro’ (que não tem pátria onde
pisar). Em síntese, são ‘os condenados da terra’, que hoje chamamos de exluídos”. Cf. CINTRA,
Benedito Eliseu Leite. Emmanuel Levinas e a idéia do infinito. Margem, São Paulo, nº16, p. 107-117, dez.
2002. p. 114.
71
É irrecusável. O rosto abre o discurso original, cuja primeira palavra é
obrigação que nenhuma <<interioridade>> permite evitar. Discurso que
obriga a entrar no discurso, começo do discurso que o racionalismo
exige com os seus votos, <<força>> que convence mesmo <<as
pessoas que não querem ouvir>> e fundamenta assim a verdadeira
universalidade da razão”.
122
Vale ressaltar que o discurso não traduz apenas um pensamento preexistente na
interioridade, e sim, a união da responsabilidade da interioridade e a expressão do rosto
de outrem.
O rosto como fonte de sentido
O sentido primeiro de todo conhecimento e comunicação é o rosto, como
proximidade de outrem, proporcionando uma relação inter-humana que condiciona e
fundamenta a razão. Levinas faz uma separação radical entre linguagem e obra,
discurso como expressão e discurso como trabalho, levando-se em conta o lado prático
da linguagem.
No pensamento objetivante a linguagem encarnada na obra e na atividade, opera
como um eu posso”. Dessa forma, antes da palavra tomar um sentido, o pensamento
transforma o eu penso” em um poder, originando a significação. Esta significação
passa a ser constituída e representada pela intencionalidade da consciência.
Entretanto, para Levinas, a análise intencional não consegue dar conta da
significação, pois esta é o infinito que se apresenta do rosto de outrem123. Diante
disso, percebemos que anterior aos signos verbais algo que sentido a esses
signos mesmos, als, não apenas sentido, mas sustentação. A expressão não se
apresenta apenas como uma reunião de termos, formando orações nas quais
122
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 179-180.
123
A diferença entre objectividade e transcendência vai servir de indicação geral a todas as análises
deste trabalho”. Ibidem, p. 36.
72
poderíamos falar sobre o mundo. A expressão é descrita como o testemunho de si e
este testemunho é descrito como rosto – significação primeira.
Se no fundo da palavra não subsistisse a originalidade da expressão, a
ruptura com toda a influência, a posição dominante do falante, estranha a
todo o compromisso e a toda a contaminação, a rectidão do face a face, a
palavra o ultrapassaria o plano da actividade da qual, evidentemente,
ela não é uma espécie, embora a linguagem possa integrar-se num
sistema de actos e servir de instrumento”.
124
É com a presença de outrem que se fundamenta a linguagem - o rosto como
primeira significação no ser. A expressão do rosto como testemunho de si mesmo, com
sua palavra, abre a inteligibilidade
125
. Até mesmo sua obra não apresenta a sua
originalidade e singularidade, mas somente um conteúdo, que se refere ao “que” e não
ao “quem”. Desta maneira, Levinas salienta que “o sentido é o rosto de outrem e todo o
recurso à palavra se coloca já no interior do face a face original da linguagem
126
.
Da mesma forma, estabelece-se a diferença entre o Dizer e o Dito. O Dizer é a
palavra ao vivo, ou seja, é palavra ou sinal de outrem, e o Dito é a palavra reduzida à
função de ato ou obra, e como tal não exprime perfeitamente o seu autor. Sendo assim,
somente o Dizer possibilita a linguagem em sua “essência de expressão”.
Esta relação face-a-face na qual o outrem é a origem de todo o sentido
127
instaura a paz entre a interioridade e a alteridade, pondo um fim à violência e
instaurando a razão sem tirar a liberdade de outrem, pois, pelo contrário esta
aproximação de outrem é apelo e chama a liberdade do mesmo à responsabilidade. A
124
Ibidem, p.180.
125
“È deste modo que Levinas pode afirmar que a condição da verdade teóretica sua justificação, sua
autenticidade e o que a indica como realmente humana – é a palavra do rosto, expressão de outrem, ‘que
qualquer mensagem já supõe”. Cf. PELIZZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao outro em Husserl e Levinas.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. p. 87.
126
Ibidem, p.185.
127
“O discurso é produção de sentido. O sentido é dito e ensinado pela presença do outro, a significação
é a presença da exterioridade”. Cf. SILVA, Jussemar da. A relação face a face como significação em
Emmanuel Levinas. Veritas, Porto Alegre, v. 37, nº147, p. 397-402, set. 1992. p. 397.
73
relação com outrem, o face a face, produz-se como apelo em que o eu vê sua liberdade
investida de responsabilidade
128
.
O rosto como condição de objetividade e assimétrico
É devido à existência de outrem que o mundo objetivo tem um significado, dando
à interioridade a oportunidade de tematizar o mundo da sua fruição, adquirindo sentido.
A objetividade decorre, para Levinas, da linguagem entre seres assimétricos e
separados, e resulta no seu desprendimento entre sujeito e objeto, criando uma
distância radical que ultrapassa sua significação espacial.
A objectividade resulta da linguagem que permite pôr em causa a
posse. Este desprendimento tem um sentido positivo: entrada da coisa
na esfera do outro. A coisa torna-se tema. Tematizar é oferecer um
mundo a Outrem pela palavra”.
129
A relação ética entre o eu e outrem que produz a objetividade - exige, portanto,
a libertação da economia e da posse, assim como a economia exige a libertação da
fruição imediata. Contudo, esta tarefa de desapossamento não pode vir do eu, pelo
contrário, é a presença do infinito de outrem que chama este egoísmo ao discurso, pois,
este desprendimento surge na esfera da linguagem
130
.
Levinas, ainda descreve que a relação entre o mesmo e outrem é de assimetria,
que provém da separação radical entre os termos, salvando assim a absoluta
transcendência. Mas, como podemos descrever esta assimetria? De início, a idéia de
uma irreciprocidade, ou seja, entre o mesmo e outrem não vestígios comuns. Além
128
Liberdade esta que deve atuar no mundo e ser capaz de promover relações melhores entre os
homens. A questão torna-se a seguinte: como tornar o mundo mais justo?
129
Ibidem, p.187.
130
“A objectividade não é o que resta de um utensílio ou de um alimento, separados do mundo onde o
seu ser se agita. Ela põe-se num discurso, numa conversa que propõe um mundo. Esta proposição
mantém-se entre dois pontos que não constituem sistema, cosmo, totalidade”. Cf. Ibidem, p.82.
74
disso, a responsabilidade do eu não é medida pelo possível retorno de gratificação, isto
é, a responsabilidade é uma questão do mesmo
131
.
Mais ainda a relação assimétrica descreve uma relação com algo absolutamente
transcendente e que por sua altura infinita - não é capaz de ser abordável pelos
movimentos do eu, altura esta capaz de frear este movimento arbitrário
132
. Contudo, a
assimetria tamm se expressa na pobreza e na nudez que se apresenta no rosto de
outrem, miséria esta que faz com que o eu seja incapaz de abordá-lo de mãos vazias.
Ouvir a sua miséria que clama justiça não consiste em representar-se
uma imagem, mas em colocar-se como responsável, ao mesmo tempo
como mais e como menos do que o ser que se apresenta no rosto.
Menos porque o rosto em chama às minhas obrigações e me julga. O
ser que nele se apresenta vem se uma dimensão de altura, dimensão da
transcendência onde pode apresentar-se como estrangeiro, sem se opor
a mim, como obstáculo ou inimigo. Mas, porque a minha posição de eu
consiste em poder responder à miséria essencial de outrem, em
encontrar recursos”.
133
Levinas coloca a interioridade como responsável e, nesse sentido, ela é ao
mesmo tempo menos e mais do que a alteridade. Menos, porque é justamente outrem
que convida e ensina o eu para sua obrigação. E ela é mais, na medida em que, pode
encontrar recursos para responder aos apelos de outrem. A assimetria ou a
irreciprocidade consiste dessa forma em uma relação desigual, onde o eu não pode
exigir de outrem o que exige de si.
131
“Um dos temas fundamentais, de que ainda não falámos, de Totalidade e Infinito, é que a relação
intersubjectiva é uma relação não-simétrica. Nesse sentido, sou responsável por outrem sem esperar a
recíproca, ainda que isso viesse a me custar a vida. A recíproca é assunto dele”. Cf. LEVINAS,
Emmanuel. Ética e InfinitoDiálogos com Philippe Nemo. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1988.
p. 90.
132
“O rosto, na sua essência, é o que resta do outro, uma vez exaurida a ordem de referências à própria
existência e ao horizonte do ser e do mundo. Neste sentido, é nudez, é miséria, é exposição, ao mesmo
tempo que é ideal, altura e mestre”. Cf. PIVATTO, Pergentino Stefano. A ética de Levinas e o sentido do
humano – Crítica à Ética Ocidental e seus pressupostos. Veritas, Porto Alegre, v. 37, nº147, p. 325-363,
set. 1992. p. 343.
133
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. port. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.
p. 193.
75
Ela tanto pode reforçar o egoísmo como pode desabrochar a generosidade, ou
seja, o desapego às coisas. Mas, isso ocorrerá se a interioridade se converter à
alteridade de outrem, ouvindo o seu mandamento ético. Para Levinas, se houvesse
reciprocidade em vez da assimetria, acabaríamos igualando os termos e
conseqüentemente perderia a originalidade da diferença.
O rosto educa a vontade para o bem e se estende para toda a humanidade
Levinas em todo ser humano, um fundo de bondade, isto é, um fundo de
humanidade. Se o homem não for chamado a agir eticamente, ele será submergido por
outras forças que surgem desse mesmo fundo natural, são as forças do seu egoísmo.
Da mesma forma, se a sociedade não for impelida pela profecia da bondade e pelo seu
grito profético, será inserida em uma estrutura egoísta e arbitrária.
Na história da filosofia a vontade é, para Levinas, a expressão que melhor se
adequou ao ser do homem. Mas é tamm a mais questionada, pois até que ponto é
possível mantê-la? O ditado popular nos diz que “a minha liberdade acaba quando
começa a do vizinho”. Mas, até onde vai a liberdade do meu vizinho, ou seja, de
outrem? Inicia-se aqui um jogo de poderes entre a força do eu e a força de outrem,
gerando conflito entre as liberdades, prolongando-se a toda a sociedade.
A questão é quando existem conflitos em nossa sociedade, as pessoas se
entendem através da razão ou pela força, em vez de se entender através da ética, ou
seja, a ética deveria ser a base na qual estes conflitos deveriam ser solucionados.
Contudo, ao prevalecer a lei do mais forte, os marginalizados, os pobres, isto é, os mais
fracos serão sempre vencidos. É preciso então educar a vontade, quer dizer, a
liberdade. Mas, quem educa?
Na multiplicidade, a singularidade é necessária para que haja a moralidade. A
pessoa é a fonte da razão e da significação, mas como existem várias pessoas, a razão
76
pode sair do intercâmbio das rias vontades, da linguagem que produz o
ensinamento de uma interioridade, chamando-a para a responsabilidade. Para Levinas,
o individual e o pessoal são necessários para que o Infinito possa se produzir como
infinito
134
. Para que haja o discurso, o necessários seres separados que falam por
si, pois, a paz se instaura como a aptidão à palavra.
“ (...) a subjectividade se fixa como um ser separado em relação com um
outro absolutamente outro ou Outrem se o rosto traz a primeira
significação, ou seja, o próprio surgir do racional, a vontade distingui-se
fundamentalmente do inteligível que ela não deve compreender e onde
não deve desaparecer, porque a inteligibilidade desse inteligível reside
precisamente no comportamento ético, isto é, na responsabilidade à
qual ele convida a vontade”.
135
A interioridade investida pela bondade passa a ficar na mesma condição de
outrem nu e faminto ou além do ser. Graças à bondade, o eu ganha uma significação
melhor que o ser, isto é, o bem. A vontade torna-se livre para suas escolhas, contudo,
não pode se inclinar perante o rosto de outrem, ou seja, de ignorar a responsabilidade
que essa proximidade chama. Outrem me chama à responsabilidade indeclinável.
No entanto, a relação não se produz como hermeticamente fechada com outrem,
ou seja, a relação com outrem não se limita num egoísmo a dois, pois, existe um
“terceiro”, que significa toda a humanidade, e todos, na sua singularidade, merecem da
mesma forma a sua responsabilidade. Ela toma, portanto sobre si não a
responsabilidade pelo outro mais por todos os homens. Como se no rosto de outrem
brilhasse a responsabilidade pela humanidade nos clamando justiça. O rosto, como
expressão original, apresenta a humanidade.
Essa abertura, promovida pela presença de outrem, não se descreve apenas
como inserção no discurso em que a ética se produz, mas como ato construtor de um
mundo melhor. Não se trata apenas da impugnação da liberdade do mesmo, trata-se de
134
Ibidem, p. 195.
135
Ibidem, p. 196.
77
um chamado ético-prático, de erguer profetas, dar voz a esse chamado que se
concretiza em responsabilidade pela humanidade.
A presença do rosto o infinito do Outro é indigência, presença do
terceiro (isto é, de toda a humanidade que nos observa) e ordem que
ordena que mande. Por isso, a relação com outrem ou discurso é não
apenas o pôr em questão da minha liberdade, o apelo que vem do Outro
para me chamar à responsabilidade, não apenas a palavra que pela qual
me despojo da posse que me encerra, ao enunciar um mundo objectivo
e comum, mas também a pregação, a exortação, a palavra profética”.
136
Todavia, somente, numa comunidade fraterna, é possível o acolhimento
responsável do rosto do outrem e do terceiro. É através da ética da alteridade radical,
que a interioridade chega finalmente à sua real plenitude, sendo capaz de sacrificar não
o ser, mas a vida por outrem, passando do seu egoísmo natural e necessário para o
nível ético.
136
Ibidem, p. 191.
78
CONCLUSÃO
Começamos por uma confissão: gostaríamos de ter escrito o título desta parte do
trabalho de outras maneiras. Estávamos tentados a ousar, contudo, a ousadia não
tomou forma, entretanto, viu-se com sentido após a nossa leitura de Derrida,
principalmente, da obra: Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da
Hospitalidade
137
. Além da maestria com que o autor aborda o tema do acolhimento,
nos chamou a atenção isso é o que nos interessa para o momento o subtítulo do
livro intitulado: Nada de hospitalidade, passo da hospitalidade.
De acordo com o tradutor, o título original é: Pas d’hospitalité. A tradução do
francês para o português permite uma dupla interpretação, pois, pas pode ser não”
(advérbio de negação) como tamm pode significar “passo de”. A impossibilidade da
tradução para o português manteve a dubiedade da expressão que pode significar
“nada de” ou “passo da”, sendo que esta última ainda sugere além de”
138
. Nesse
sentido, tendo essa leitura em mente, poderíamos escrever: nada de conclusão? Além
das conclusões?
Distante do brincar com as palavras, nosso intuito é frisar que o pensamento de
Levinas cunha sentidos originais em expressões carregadas pela história da filosofia
ocidental. As noções descritas assumem novos conteúdos fazendo com que o leitor
sinta, sob si, estremecer o terreno antes seguro. Desta maneira, consideramos que o
pensamento levinasiano, mais do que afirmar suas idéias é um convite à reflexão, um
chamado singular que, por mais que tentemos não escutar, ressoa. Destarte, está além
de conclusões.
Além termo muito utilizado em nosso trabalho. Mas, qual sentido ele assume?
O além parece indicar uma ultrapassagem de fronteiras e, ao ultrapassar, indica o
137
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade.
Trad. bras. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003. 144p.
138
Ibidem, p. 67.
79
questionamento destas, como se apenas nos limites circunscritos por elas pudéssemos
compreender o significado desse além. Mas, dentro destes limites o além seria além?
Contudo, fora desses o além possui sentido? A busca deste trabalho, todo o seu
esforço, sintetiza-se na tentativa de descrever - não apenas a sua descrição, mas o seu
sentido - este fora, este distante, porém, o termo distante não possui referências
espaciais que possam medir essa distância mesma. Não seria por acaso que,
constantemente, evocávamos nestas páginas termos como fendas, resistência, além,
desituação. Situações essas que convergem e se concretizam na relação que
mantemos com o rosto de outrem, ou seja, no face a face. Outrem foi descrito como
capaz de apresentar-se por si, isto é, sua significação não depende da abertura do ser.
Claro que podemos dar vários sentidos ao rosto. A história, a psicologia, a
estética, a cultura podem dar suas contribuições para a múltipla percepção desta
presença que chamamos rosto, todavia, elas não são capazes de abordar totalmente
outrem. O rosto apresenta-se nu, pois, despojado dos elementos culturais e ideológicos
que possam reduzi-lo ao conceito geral ou a uma cifra numa contabilidade. Ele é
absoluto, pois, exterior aos sistemas.
Contudo, a descrição dessa situação não seria possível sem a análise
levinasiana da idéia de infinito. Como dissemos em nosso trabalho, a estrutura formal
desta idéia proporciona uma relação com um ente absolutamente separado e tendo
como conteúdo esta exterioridade total. A produção da iia de infinito, sua concretude,
assume seu peso no mundo, justamente, na relão com outrem, ou seja, na relação
social. Esta relação seria capaz de ser o farol que aponta o porto seguro na qual a
filosofia poderia se aproximar.
No entanto, a filosofia aproximar-se-ia daquilo que, desde a sua origem, ela tenta
expurgar: o estranho, o desconhecido. Ora, o rosto de outrem como nu, não significaria
a impossibilidade de sua tematização? Representando, assim, relação com algo de fora
80
de todo território conhecido, relação com o estrangeiro
139
. A filosofia parece-nos estaria
pronta para assumir a postura de filosofia do acolhimento? Abertura ao totalmente
diferente?
A colocação do face a face como fonte de sentido e fundamento abre, para nós,
outros questionamentos: abolição do maniqueísmo polarizado entre ocidente e oriente?
Abolição das fronteiras nacionais que, mais que nunca, mostram sua dureza diante da
aproximação dos estrangeiros? Seria possível a criação de leis para esta
hospitalidade?
140
São questionamentos que não se reduzem aos modismos da
contestação, mas acentua a não indiferença diante de outrem. Não indiferença esta
que, tamm, podemos chamar de ética.
O problema não consiste na pluralidade das culturas em que estamos imersos,
mas no fluxo de significados que emergem cada um por si como doadores de sentido
para a realidade. Para Levinas, “esta multivocidade do sentido do ser esta essencial
desorientação é, talvez, a expressão moderna do ateísmo”
141
. O face a face como
relação ética deveria banhar a multiplicidade dando-lhe um sentido – a não indiferença.
A relação com outrem, com esse estranho - descrito na figura não apenas do
estrangeiro, mas na do pobre, do órfão e da viúva considerados marginalizados pela
sociedade invoca uma resposta, suscitada pelo rosto na sua condição de miséria.
Como se o rosto de outrem mostrasse o fracasso do homem com a humanidade. Como
139
O que é um estrangeiro? “Não é apenas aquele ou aquela no estrangeiro, no exterior da sociedade,
da família, da cidade. Não é o outro, o outro inteiro relegado a um fora absoluto e selvagem, rbaro, pré-
cultural ou pré-jurídico, fora e aquém da família, da comunidade, da cidade, da nação ou do Estado”. Cf.
Ibidem, p. 65.
140
“Através de alusões discretas, mas transparentes, Levinas dirigia então nosso olhar para o que se
passa hoje, tanto em Israel quanto na Europa e na França, e na África, e na América, e na Ásia, ao
menos desde a I Guerra Mundial e a partir do que Hanna Arendt denominou ‘O declínio do Estado-
Nação’ onipresente onde os refugiados de toda espécie, os imigrados, com ou sem cidadania, exilados
ou deslocados, com ou sem documentos, do coração da Europa nazista à Iuguslávia, do Oriente Médio a
Ruanda, do Zaire à Califórnia, da igreja São Bernardo ao bairro XIII, de Paris, cambojanos, armênias,
palestinos, argelinos e tantos e tantos outros pedem ao espaço sócio e geopolítico uma mutação
mutação jurídico-política mas, sobretudo, se este limite guarda ainda a sua pertinência, conversão ética”.
Cf. DERRIDA, jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. Trad. bras. Fábio Landa. São Paulo, Perspectiva,
2004. p. 91.
141
LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Trad. bras. Pergentino S. Pivatto et al.
Petrópolis: VOZES, 1993. p. 40.
81
se o homem fosse chamado a perceber o seu descaso diante da fome, da miséria, da
sede, da violência, da apropriação que sofrem grande parcela da população mundial. O
rosto de outrem como que contesta a celebração do homem na sua certeza do
progresso da humanidade. Mas, quem disse que progresso material significa progresso
moral?
A questão, aqui, não se resume em apenas dar comida ou água para os
famintos. Não significa apenas saciar a sede e fome que no mundo, mas efetivar
relações melhores, ou seja, tornar o mundo mais justo
142
. O pensamento de Levinas
assume características ético-práticas em que todos são chamados a ‘sujar as mãos’ se
assim podemos dizer. Não há uma distinção entre teoria e prática, não há hierarquia, ou
seja, estas, como que propositalmente, caminham juntas. Pede-se um engajamento na
resposta.
O presente trabalho alcança seu objetivo se tiver mostrado como, no
pensamento de Emmanuel Levinas, a relação com o rosto de outrem é descrito como
relação ética. Relação capaz de chamar o eu a sair de si para um movimento de
responsabilidade para com outrem. Relação em que o eu é chamado a perder-se pelo
desconhecido, a inquietar-se e que essa inquietação seja produzida pela presença de
outrem. Mesmo tendo dito o objetivo que nosso trabalho almeja, não deixamos de
considerar que as leituras feitas levantaram mais questionamentos do que respostas.
Nada de conclusão.
Além das conclusões. O propósito, tamm deste trabalho embora pretensioso
é destacar a importância que Levinas a construção de um mundo tendo como
sentido a orientação ética do face a face. A construção significa a prática, o
engajamento e a imersão no mundo com atos, cujo conteúdo, transborda em
142
“O que a equação ‘pobreza=fome’ esconde são muitos outros aspectos complexos da pobreza
‘horríveis condições de vida e moradia, doença, analfabetismo, agressão, famílias destruídas,
enfraquecimento dos laços sociais, ausência de futuro e produtividade- ; aflições que não podem ser
curadas com biscoitos superprotéicos e leite em pó”. Cf. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as
conseqüências humanas. Trad. bras. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 81-82.
82
responsabilidade com outrem. Enfim, cada um carrega, em si, a possibilidade do
profeta.
83
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