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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP
Márcia Garbini Franco
Escola e fábrica: discursos sob tensão
MESTRADO EM LINGÜÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP
Márcia Garbini Franco
Escola e fábrica: discursos sob tensão
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para
obtenção do Título de MESTRE em
Lingüística Aplicada e Estudos da
Linguagem pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação da
Profª Drª Elisabeth Brait.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora:
_____________________________________
Profª Drª Elisabeth Brait
_____________________________________
Profª Drª Anna Rachel
_____________________________________
Profª Drª Liliana R. P. Segnini
AGRADECIMENTOS
A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a concretização desta pesquisa.
De modo especial:
À professora Elisabeth Brait, pela confiança depositada no meu trabalho e por orientar-me
nesse caminho acadêmico, contribuindo para minha formação como pesquisadora.
Aos professores Liliana Segnini, Anna Rachel Machado e Anselmo Lima pelas
importantes contribuições no período de qualificação desta pesquisa e no momento da defesa.
A todos os professores do Programa de LAEL com que tive o privilégio de adquirir novos
conhecimentos.
À professora Maria Inês, por suas contribuições “iluminadoras” onde, antes, havia apenas
sombras.
À Maria Lúcia, da secretaria da Pós-graduação, pela eficiência e atenção.
À minha irmã (amiga, mãe, filha), Margô, pelo carinho, colaboração, compreensão e
estímulo no decorrer da realização deste trabalho.
Aquele que foi e tem sido um grande incentivador e se tornou um importante interlocutor,
professor Varley Rodrigues Gomes, colega de trabalho e grande amigo.
Aos meus alunos, meninos e meninas com os quais mantenho uma eterna relação de
aprendizagem.
Ao diretor da escola, Marco Artur Constantino, pelo consentimento de minha ausência na
escola para freqüentar as aulas no LAEL e ao gerente de R.H. da empresa, Raimundo Ramos,
pela autorização para a realização desta pesquisa.
Aos colegas de trabalho, em especial, Adriana, Cirleni, professores Gladsney e Álvaro,
pelo incentivo e pela vibração.
Aos amigos da turma da Pós-graduação, em especial a Adriana, Anderson, Elaine e
Lucília, por compartilharem textos, reflexões, angústias e sucessos.
Às amigas Gardênia e Aline pela ajuda quando eu menos esperava.
“Quando contemplo no todo um homem situado fora
de mim, nossos horizontes concretos efetivamente
vivenciáveis não coincidem (...) [porque]sempre verei e
saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de
mim, não pode ver (...). Esse excedente da minha
visão, do meu conhecimento, da minha posse (...) é
condicionado pela singularidade e pela
insubstitutibilidade do meu lugar no mundo”
Mikhail Bakhtin
Márcia Garbini Franco
Escola e fábrica: discursos sob tensão
RESUMO:
Esta dissertação tem por objetivo investigar a construção verbo-visual da noção de trabalho
encontrada em relatórios de pesquisa desenvolvidos por aprendizes de uma escola
profissionalizante, localizada dentro da empresa mantenedora. Os relatórios são resultado do
projeto “Ergonomia nos postos de trabalho” que, apoiado teoricamente na análise ergonômica
britânica de postos de trabalho, tem como meta o desenvolvimento de atividades de compensação
postural e preparação física para o trabalho. O corpus é constituído por 11 relatórios selecionados
no período compreendido entre 2004 e 2006 que, além da dimensão verbal, apresentam
fotografias, de forma a sugerir a análise verbo-visual. A perspectiva teórica que embasa esta
dissertação centra-se em Bakhtin e seu Círculo e mais diretamente em enunciado concreto,
discurso citado, discurso polêmico e esferas da comunicação. Além dessa fundamentação e para
dar conta das imagens e suas implicações na construção da noção de trabalho, busquei apoio nos
estudos de Susan Sontag sobre a fotografia, principalmente no que se refere à questão da visão
fotográfica, e de Ivan Lima a respeito da relação de dominância visual. A partir da identificação
de alguns elementos verbais e visuais que compõem a materialidade do texto, assim como das
formas de presença do outro no discurso e das vozes sociais que compõem o corpus, foi possível
estabelecer relações entre o verbal e o visual que participam efetivamente da construção da noção
de trabalho nos relatórios. Os resultados da análise indicaram a “contradição” como elemento
estruturador do corpus. As imagens revelaram um sujeito por trás da câmera, ou seja, a
subjetividade e, articuladas aos elementos verbais, apontam para um confronto entre as vozes que
permeiam o corpus: a Ergonomia, discurso trabalhado pela escola, revela-se como o lugar do
ideal; as práticas nos postos de trabalho da empresa expõem-se como espaço do real; o discurso
da tecnologia e qualidade e o da sobrevivência como aspectos que circundam o trabalho. Por
fim, a presença dos discursos indicados pela análise do corpus, colocados em situação de
confronto, sinaliza as contradições que permeiam a noção de trabalho, conforme demonstrada
pelos relatórios.
Palavras-chave: escola profissionalizante, dialogismo, vozes discursivas, ergonomia.
Márcia Garbini Franco
School and factory: speechs under strain
ABSTRACT:
This dissertation has for objective to investigate the verbal-visual construction of the work notion
found in research reports developed by apprentices of a vocational school, located inside of the
company who supports the school. The reports are resulted of the project "Ergonomics in the
workstations" that, supported theoretically in the British analysis ergonomic of workstations, has
as goal the development of activities of compensation postural and physical preparation for the
work. The corpus is constituted by 11 reports selected in the period between 2004 and 2006 that,
besides the text, presents pictures, in way to suggest the verbal-visual analysis. The theoretical
perspective that bases this dissertation is centered in Bakhtin and its Circle and more directly in
concrete statement, mentioned speech, controversial speech and spheres of communication.
Besides this basis and to take the images and their implications in the construction of the work
notion, I looked for support in Susan Sontag's studies about photography, mainly in what she
refers to the subject of the photographic vision, and of Ivan Lima regarding the relationship of
visual dominance. Starting from the identification of some verbal and visual elements which
compose the materiality of the text, as well as in the ways of presence of the other in the speech
and of the social voices which compose the corpus, it was possible to establish relationships
between the verbal and the look that participate indeed of the construction of the work notion in
the reports. The results of the analysis indicated the "contradiction" as element who structures of
the corpus. The images revealed a subject behind the camera, in other words, the subjectivity and,
articulate to the verbal elements, appear a confrontation among the voices that permeate the
corpus: the Ergonomics, speech worked by the school, is revealed as the place of the ideal; the
practices in the workstations of the company, are exposed as space of the Real; the speech of the
technology and quality and the one of the survival as aspects that surround the work. Finally, the
presence of the suitable speeches for the analysis of the corpus, put in confrontation situation,
signals the contradictions that permeate the work notion, as demonstrated by the reports.
Key-words: vocational school, dialogism, discursive voices, Ergonomics
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 “Partes móveis” 116
Figura 2 “[J.A.R.]” 117
Figura 3 – “Garra utilizada pelo operador” 118
Figura 4 – “Bandeja do assoalho, onde as setas indicam os pontos de solda” 118
Figura 5 “Transporte manual” 119
Figura 6 – “linha do UB1” 119
Figura 7 – “Ponteadeira (1) e dispositivo (2)” 120
Figura 8 – “Operador na bancada” 121
Figura 9 “Ferramenta VAP” 122
Figura 10 – “Manutenção do m [otor]” 123
Figura 11 “Pescoço” 124
Figura 12 “Pernas” 124
Figura 13 “Estamparia” 126
Figura 14 – “Pouca iluminação” 126
Figura 15 “Ponteiro” 126
Figura 16 – Análise REBA – Tronco” 127
Figura 17 – Análise REBA – Pernas” 127
Figura 18 – “COLOCAÇÃO BANCOS TRASEIROS” 128
Figura 19 “CHICOTE” 129
Figura 20 “CHICOTE” 129
Figura 21 – “Operador analisando o motor” 130
Figura 22 – “Operador lavando a empilhadeira” 130
Figura 23 – “Bate-Pedra” 131
Figura 24 “Normalização” 131
Figura 25 – “Ponteadeira (1) e dispositivo (2) 132
Figura 26 – “Operador retirando o material para realizar a operação” 132
Figura 27 – “Movimento do operário” 132
Figura 28 – “Análise do punho direito” 133
Figura 29 – “Operador soldando o túnel no UB1” 136
Figura 30 – “Carrinho de ferramentas” 136
Figura 31 “Braço esquerdo” 136
Figura 32 – “Antebraço direito” 136
Figura 33 – “Estrutura do H” 137
Figura 34 – “Operador [J.C.R.] 137
Figura 35 – “Posição do operador” 138
Figura 36 – “BANCO DIANTEIRO” 138
Figura 37 – “Análise dos movimentos do punho direito 139
Figura 38 – “Operador centralizando o pneu” 148
Figura 39 – “Operador da AFO 300” 148
Figura 40 – “Análise dos Movimentos do Braço Direito” 148
Figura 41 – “Operador de mini prensa” 148
Figura 42 – “Operador subindo no guindaste” 149
Figura 43 – “Operador retirando o material para realizar a operação” 152
Figura 44 – “Operador arrumando motores fixos” 152
Figura 45 – “Operador soldando o túnel no UB1” 152
Figura 46 – “O operário trabalha a peça até que ela esteja pronta” 153
Figura 47 – “O Operário retira a peça do estampo” 154
Figura 48 – “Ferramenteiro [G.G.]” 154
Figura 49 – “Ferramenteiro [W.C.E.L.]” 154
Figura 50 – “COLOCAÇÃO DO CONSOLE” 156
Figura 51 – “COLOCAÇÃO BANCO TRASEIRO” 156
Figura 52 – “COLOCAÇÃO PORTAS” 156
Figura 53 – “fixação pára-lama” 156
Figura 54 “Fitas” 158
Figura 55 “Assoalho” 158
Figura 56 – “Carrinho de ferramenta” 159
Figura 57 – “Décor” 159
Figura 58 – Analise [sic] dos Movimentos do Tronco 160
Figura 59 – “Análise dos Movimentos das Pernas” 160
Figura 60 – “Análise do Punho Esquerdo” 160
Figura 61 – “Análise do Pescoço 161
Figura 62 – “Análise do Tronco” 161
Figura 63 – “Análise das Pernas” 161
Figura 64 “Pernas” 161
Figura 65 – “Punho Direito” 161
Figura 66 “Braço esquerdo” 161
Figura 67 – “Exercício 3 162
Figura 68 – “Rotatores do tronco” 162
Figura 69 “alongar II” 162
Figura 70 “Under Bau 2” 164
Figura 71 – “Formação dos subconjuntos” 164
Figura 72 – “Montagem das laterais” 164
Figura 73 “Audit” 165
Figura 74 “Notebook” 166
Figura 75 – “Gel e transdutor do aparelho Ultra-som” 166
Figura 76 – “Solda MIG da caixa de roda” 168
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
I Meu percurso profissional e acadêmico e as relações com a pesquisa 12
II A pesquisa 21
III Os capítulos que constituem o trabalho 22
1 O MUNDO DO TRABALHO E O ENSINO PROFISSIONAL NO BRASIL 25
1.1 O trabalho urbano industrial 26
1.2 Fatores que contribuíram para a inserção do mundo do trabalho nas escolas
brasileiras 50
1.3 Histórico da constituição do Centro de Formação Profissional 59
1.4 Algumas considerações 62
2 METODOLOGIA 64
2.1 Descrição do contexto de pesquisa 64
2.1.1 O Centro de Formação Profissional 64
2.1.2 A proposta pedagógica da escola 65
2.1.3 O curso Técnico Mecânico – Operador de Sistemas Integrados de
Manufatura 67
2.1.4 As disciplinas envolvidas no contexto de pesquisa 71
2.1.5 As aulas: tarefas e procedimentos de execução 72
2.1.6 A Empresa 75
2.2 Estabelecimento do corpus e instrumentos de coleta e seleção de dados 77
2.3 Objetivos de pesquisa 78
2.4 Procedimento de análise dos dados 78
3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 81
3.1 Enunciado concreto 82
3.2 Discurso citado 85
3.3 Discurso polêmico 89
3.4 Esferas da comunicação 93
3.5 O elemento visual: como “ler” uma fotografia 96
4 ANÁLISE DOS DADOS 110
4.1 Descrição do corpus 111
4.3 Cor e tonalidades escuras/ lugares de “difícil” acesso 116
4.4 Ângulos/ pontos de vista 130
4.5 Legendas e produção de sentido 151
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 177
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 188
ANEXOS (digitalizados em mídia CD)
INTRODUÇÃO
I Meu percurso profissional e acadêmico e as relações com a pesquisa
Para ser coerente, inclusive com a teoria que adoto em meu trabalho de pesquisa,
considero importante apresentar meu trajeto profissional e acadêmico. Não que ele simplesmente
justifique minhas escolhas neste trabalho, mas com certeza contribui para a contextualização que
a envolve.
Sou licenciada em Letras desde 1996, pela Faculdade de Filosofia e Letras Fundação
Santo André, em Santo André, São Paulo, e iniciei minha vida profissional antes mesmo da
conclusão do curso, por volta de 1994, atuando como professora de Língua Portuguesa e Inglesa
em escolas públicas, no ensino fundamental e médio.
Atuo desde 2001 como professora de Técnicas de Redação e Inglês Técnico numa escola
técnico-profissionalizante, na cidade de São Paulo, que tem uma particularidade bastante
significativa: fica dentro da própria empresa que a mantém. Voltarei a falar, mais adiante, desta
escola.
Concluida a graduação, procurei dar continuidade a minha formação continuada,
realizando cursos nas áreas de Língua Portuguesa, Literatura e, principalmente, teatro, uma de
minhas paixões. No decorrer de minha vida participei de várias oficinas e cursos de teatro,
incluindo um de formação profissional para atores, o qual não cheguei a concluir, pois meu
desejo pela Educação foi, é e tem sido maior. Não sou dramaturga ou atriz, sou educadora por
desejo e convicção.
De qualquer forma, percebi que seria possível e viável conciliar a educação com o teatro.
Na escola em que atuo, desenvolvemos o que chamamos de “Oficina de Teatro”, a qual teve
início após planejamento para sua aplicação, local apropriado, horário de aulas que seriam
destinadas para o trabalho, conteúdos e métodos que seriam desenvolvidos.
Assim, em 2002, o projeto foi efetivamente iniciado. Nas aulas, trabalhamos jogos teatrais
como método de aprendizagem, baseados na metodologia de Viola Spolin
1
. Tenho uma profunda
1
Viola Spolin (1906-1994) é conhecida por sua contribuição metodológica tanto para o ensino do teatro nas escolas
e universidades quanto para a prática da arte cênica. Duas das obras mais conhecidas são Improvisação para o teatro
e O jogo teatral no livro do diretor.
crença de que o teatro, mais especificamente, os jogos teatrais, contribui para o desenvolvimento
de crianças, jovens e educandos em geral, possibilitando a eles um olhar crítico de suas vidas e de
si próprios.
Interrompi o curso de formação para atores e busquei outro na área de Artes Cênicas que
pudesse ser pensado na Educação. Descobri o curso de especialização Lato Sensu em Artes
Cênicas na Faculdade São Judas Tadeu, em São Paulo, e o iniciei em 2003. Conclui a pós-
graduação lato sensu em 2004 com a monografia de título O Teatro e a Educação: A formação
do humano num curso técnico-profissionalizante.
Esse trabalho já apontava para minha busca numa (im)possível (?) conciliação dos
inevitáveis “choques” que os aprendizes sofrem entre realidade da vida escolar e realidade da
vida profissional, embora na época essa reflexão não se apresentasse dessa forma para mim.
As empresas, de um modo geral, procuram profissionais com formação técnica de
qualidade. Mais que isso: elas buscam profissionais que tenham atitudes comportamentais que
superem seu conhecimento técnico. A época da “mais-valia absoluta”, caracterizada pela
exploração extensiva da mão-de-obra (a força física do trabalhador) está se modificando para a
era da “mais-valia relativa”, marcada pela exploração da inteligência do trabalhador.
O mercado de trabalho atual prioriza a diminuição de custo de produção com menor
investimento em mão-de-obra e visa ao aumento de produtividade. Para tanto, introduz novas
formas de organização, novas tecnologias e equipamentos (Frigotto, 2002:25).
Desse modo, espera-se do profissional capacidade de interagir, intervir e modificar seu
espaço de trabalho e de se ajustar às tecnologias, a fim de elevar a produtividade da empresa.
Em função da incorporação tecnológica aos procedimentos de trabalho e crescimento
econômico sem aumento do nível de emprego, da reestruturação produtiva e globalização
excludente, enfim, da crise estrutural do trabalho assalariado, vivenciamos uma realidade de
desemprego estrutural (Frigotto, 2002:46).
Diante do quadro exposto, pode-se dizer que a realidade da vida profissional mostra-se
extremamente competitiva, discriminatória, economicista e, por vezes, pessimista, tanto àqueles
que já estão inseridos no mercado de trabalho, quanto àqueles que estão se preparando para
entrar.
As escolas profissionalizantes parecem ter um grande desafio: adequar seus projetos e
processos educativos, de maneira a preparar seus aprendizes, futuros profissionais, tanto técnico
quanto comportamentalmente, para as exigências desse mercado de trabalho.
Arriscaria dizer que a escola poderia também prepará-los para pensar as implicações e
contradições da vida profissional.
A partir dessas reflexões, percebi que havia a necessidade de compreender os dois
contextos de produção de enunciados concretos, escola e empresa, e os conflitos e contradições
resultantes desse confronto – um confronto, no dizer bakhtiniano, dialógico.
Desde o 2º semestre de 2003, a escola vem realizando, junto aos aprendizes, o projeto de
pesquisa “Ergonomia nos postos de trabalho” que propõe uma investigação em torno de questões
ergonômicas, no sentido britânico, nos postos de trabalho da empresa.
Acredito, neste momento, em função da natureza desta pesquisa, ser importante
apresentar o conceito e os objetivos da Ergonomia britânica, de modo a não correr o risco de
confundi-la com a Ergonomia de língua francesa que busca conhecer o trabalho sob o ponto de
vista das práticas linguageiras.
A Ergonomics Society (primeira Associação Científica de Ergonomia, criada na
Inglaterra, no início da década de 1950), define Ergonomia como
o estudo do relacionamento entre o homem e seu trabalho, equipamento,
ambiente e particularmente, a aplicação dos conhecimentos de anatomia,
fisiologia e psicologia na solução de problemas que surgem desse
relacionamento (Iida, 2005:2).
Segundo Itiro Iida, precursor da Ergonomia no Brasil, existem diversas definições para
Ergonomia. Em geral, todas ressaltam “o caráter interdisciplinar e o objeto de seu estudo, que é a
interação entre o homem e o trabalho, no sistema homem-máquina-ambiente” (2005:2, grifo do
autor). No Brasil, a Associação Brasileira de Ergonomia adota a seguinte definição:
(...) estudo das interações das pessoas com a tecnologia, a organização e o
ambiente, objetivando intervenções e projetos que visem melhorar, de
forma integrada e não-dissociada, a segurança, o conforto, o bem-estar e a
eficácia das atividades humanas (2005:2, grifos meus).
O objetivo da Ergonomia, de acordo ainda com Iida, é “estudar os diversos fatores que
influem no desempenho do sistema produtivo (...) [e] reduzir as suas conseqüências nocivas sobre
o trabalhador” (2005:3).
O projeto de pesquisa da escola, “Ergonomia nos postos de trabalho”, ou seja, as
observações, análises e avaliações feitas pelos aprendizes, orientados pelo professor especialista
em Ergonomia, é realizado, portanto, sob os princípios da Ergonomia de tradição britânica.
Ao término das pesquisas, os aprendizes devem apresentar o resultado final, formalmente,
em relatórios.
Desse modo, foi solicitada minha participação no projeto e, para colaborar com o
desenvolvimento do trabalho, planejamento e confecção dos relatórios, de maneira adequada, fez-
se necessário, para mim, um acompanhamento do projeto tanto na escola, no sentido de
compreender o que é Ergonomia, postura física e exercícios de compensação postural, quanto na
empresa, para conhecer as áreas da Manufatura, alguns postos de trabalho de cada área e as
atividades realizadas pelos operadores, enfim, conhecer o dia-dia do “chão de fábrica”.
A análise das operações realizadas nos postos de trabalho considera que cada situação de
trabalho exige, fisicamente, um comportamento corporal do operador. Se esse comportamento
não for ajustado para a operação específica do posto de trabalho, poderá provocar doenças
ocupacionais, chamadas D.O.R.T.
2
.
Essa situação traz um alto índice de absenteísmo para o setor, já que um funcionário
lesionado é afastado de seu trabalho. Mais do que prejudicar o processo, o operador é quem mais
sofre, pois essa situação pode-se agravar, levando-o a um baixo desempenho profissional, o que é
avaliado pelo setor negativamente, baixa qualidade de vida e, quando não, a um afastamento
definitivo do trabalho.
Portanto, como proposta educacional para evitar/ diminuir a ocorrência de lesionamento/
afastamento do trabalho, os aprendizes realizam o projeto de pesquisa sobre Ergonomia com foco
na realização de atividades de compensação postural e preparação física para o trabalho,
apropriadas aos postos de trabalho, nas quatro áreas da Manufatura
3
, nas linhas de produção da
empresa.
2
Segundo Mendes & Leite (2004:120), as Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (D.O.R.T.). “são
distúrbios funcionais que ocorrem principalmente nos membros superiores e têm aumentando nos últimos anos em
razão do desenvolvimento industrial, à organização do trabalho e ao contrato psicológico do trabalho”.
3
No capítulo que trata do contexto de pesquisa, apresento a empresa e as áreas da Manufatura.
A partir da análise dos postos de trabalho e entrevistas realizadas com os operadores, os
alunos apresentam propostas adequadas de compensação de posturas físicas e preparação física
para o trabalho. O objetivo é proporcionar a esses aprendizes a oportunidade de refletirem sobre
seu futuro trabalho e o modo de realizá-lo para, assim, terem condições de selecionarem a
atividade física adequada à atividade laboral que realizarão.
Como forma de acompanhamento dos resultados do projeto, o professor especialista em
Ergonomia realizou, entre os semestres de 2005 e 2006, um levantamento do índice de
absenteísmo apenas dos operadores que foram aprendizes da escola e que participaram do
projeto, nas áreas de Manufatura da empresa.
Segundo dados coletados pela escola, o número de operadores lesionados e/ ou afastados
de suas atividades laborais é preocupante e tem se mostrado crescente. Enquanto aprendiz, as
atividades propostas pela escola são desenvolvidas, na sua maioria, com êxito. Os aprendizes
apresentam conhecimento técnico e têm condições de desenvolver e aplicar as atividades
compensatórias posturais. No entanto, quando vão para a área, definitivamente como
funcionários, o resultado não é o esperado.
No decorrer do desenvolvimento desta pesquisa, observei que a análise dos dados
coletados pelos aprendizes dos trabalhos de análise ergonômica não contemplava algumas
questões que podem ser de fundamental importância para o êxito do projeto.
Essas questões, parece, ficaram mais claras após a realização de uma pesquisa de opinião
feita pela escola, em março de 2006, com os operadores que foram alunos da escola, a qual tinha
o objetivo de refletir sobre melhorias em seu processo educacional: “Objetivo da pesquisa:
coletar informações, com os ex-alunos que estão na Manufatura da [empresa], que permitam à
escola refletir sobre melhorias no seu processo educacional”.
As questões foram direcionadas de modo a apresentar as opiniões desses operadores sobre
seu aprendizado e se este foi adequado à realidade profissional que encontraram na Manufatura.
A pesquisa envolveu 110 operadores, sendo que 59 deles responderam ao questionário: 25
estão na área da Estamparia, 16 na área da Armação, 11 na área da Pintura e 7 na área da
Montagem Final.
Dentre as questões contempladas pelo questionário, foi pedido aos operadores que
avaliassem a afirmativa da questão “e- compenso posturas físicas, prevenindo D.O.R.T.’s
(L.E.R.’s
4
)”. Observe-se o quadro abaixo, referente aos resultados da pesquisa:
Observa-se que dos 59 participantes, 28,9% respondeu que concorda plenamente com a
afirmação; 28,9% está mais propenso a concordar, 20,4% concorda e discorda na mesma medida,
13,6% está próximo a discordar da afirmativa e 8,5% discorda completamente da afirmativa.
A princípio, esse resultado indicaria que a maioria dos operadores que foram alunos da
escola tende a realizar os exercícios de compensação postural, no entanto, informam que “o ritmo
produtivo oferece pouquíssimos instantes [para a realização dos exercícios], ficando para o
horário de banho essa realização” (grifo meu).
Há entre os resultados estatísticos e a informação que os segue uma aparente contradição.
No decorrer desta pesquisa e análise dos dados do corpus, o elemento contradição se revelou
4
De acordo com Mendes & Leite (2004:118) devido a monotonia dos movimentos repetitivos, pouco ou inadequado
descanso, o trabalhador poderá desenvolver doenças relacionadas a Lesões por Esforços Repetitivos (L.E.R.). Trata-
se de uma das doenças que surgem em linhas de produção de indústrias.
Em cada uma das afirmações abaixo, numere no quadrado correspondente com:
5 se você concordar plenamente com a afirmação;
4 se você estiver mais propenso a concordar;
3 se você concorda e discorda na mesma medida;
2 se você estiver próximo a discordar da afirmativa;
1 se você discordar completamente da afirmação
Resultados por item:
e- compenso posturas físicas, prevenindo DORT’s (LER’s)…………………………………….
Participantes
1 2 3 4 5
ESTAMPARIA
8 12 20 28 32
ARMAÇÃO
12,5 18,75 12,5 37,5 18,75
PINTURA
0 9 36 18 36
MONTAGEM
FINAL
14 14 14 28 30
TOTAL
8,5 13,6 20,4 28,9 28,9
Os respondentes informam que o ritmo produtivo oferece pouquíssimos instantes, ficando para o horário do
banho esta realização.
como constituinte nos relatórios. Os discursos que constroem o corpus, ou o embate entre as
vozes que permeiam os enunciados, são reveladores de contradição.
Segundo os resultados dos dados da pesquisa realizada pela escola, os operadores não
conseguem realizar os exercícios de compensação postural, pois “a realidade da linha de
produção não permite a prática”, muito embora os operadores tenham condições de avaliar e
desenvolver as atividades compensatórias, já que possuem conhecimento teórico e prático.
Uma das questões abertas pedia aos operadores que indicassem qual(is) foi(ram) a(s)
maior(es) dificuldade(s) de adaptação, técnicas e comportamentais encontradas na transição da
escola para a fábrica:
12. Minha(s) maior(es) dificuldade(s) - técnicas e comportamentais - na
transição da escola para a fábrica e de adaptação foi (foram)
a. A insegurança, a ansiedade e o medo do novo;
b. A resistência da área ao aplicar o que aprendi. Vencer as
críticas, ou não ter onde aplicar. Não há espaço para mostrar
o que se sabe;
c. Vencer a decepção, por crer que seria fácil;
d O horário de trabalho;
e. Em criar amigos e de relacionamento interpessoal;
f. A pouca atenção das pessoas;
g. A falta de preparo físico e psicológico para administrar o
trabalho pesado, a rotina, o ritmo e a repetitividade;
h. A pressão da liderança;
i. Ter pouco conhecimento específico em estamparia, eletricidade,
mecânica de manutenção, ferramentaria, robótica e automação;
j. Em obter informações: férias, salário;
l. Ir para área diferente da que fez ensino dual;
m.Em evitar pequenos acidentes;
n. Em cumprir prazos;
o. Adaptar-se aos documentos da área.
Observação 3: Os itens b, d, e, g e i, apresentaram maior freqüência nas
respostas oferecidas.
Dentre as respostas citadas, chamo a atenção para as seguintes que, na análise dos dados
do corpus, de uma ou outra forma, aparecerão permeando os enunciados:
“b. a resistência da área ao aplicar o que aprendi. Vencer as críticas, ou não ter onde aplicar. Não
há espaço para mostrar o que se sabe.” (um dos itens que apresentou maior freqüência nas
respostas oferecidas.);
“c.vencer a decepção, por crer que seria fácil;
“g. a falta de preparo físico e psicológico para administrar o trabalho pesado, a rotina, o ritmo e a
repetitividade.” (um dos itens que apresentou maior freqüência nas respostas oferecidas);
“h. a pressão da liderança”;
“l. em evitar pequenos acidentes”
(Obs: o relatório do resultado dos dados da pesquisa realizada pela escola não indica o número de
vezes que as respostas b, c e g foram oferecidas).
Há, também, outras questões que permeiam o contexto de produção do corpus que julgo
importante indicar:
Questão: “13. Minha(s) crítica(s) ao [nome da escola] é (são):
Resposta: m. não mostra o quanto é dura a realidade da Manufatura;”
Questão: “14. A(s) situação(ões) mais importante(s) para minha formação na escola foi(ram):
Resposta: h. os conceitos em ergonomia”
Questão: “15. As ações que o [nome da escola] deve realizar para melhor atender a formação
necessária para a Manufatura são:
Resposta: g. proporcionar maior contato dos alunos com a realidade da produção;”
Questão: “16. Para que estudei no [nome da escola]?
Respostas: “a. para trabalhar na [nome da empresa] e fazer carreira; b. para ter formação técnica e
profissão; (...) d. aprender tecnologias para nortear a escolha de curso superior; e.ser um bom
profissional; f. garantir um emprego futuro e pagar a faculdade; g.devido vontade do pai; (...)
i.para ter salário”.
As respostas a, b, f e i da questão 16 apresentaram maior freqüência. (Obs: o relatório do
resultado dos dados da pesquisa realizada pela escola não indica o número de vezes que as
respostas foram oferecidas).
O relatório de análise dos resultados da pesquisa realizada pela escola traz, também, no
campo “Observações” alguns comentários que foram acrescidos pelos operadores entrevistados
com relação à escola e seu processo de formação. Um desses comentários refere-se ao seguinte:
“O [nome da escola] foca muito a qualidade e a fábrica quer volume de produção”. Essa questão
permeia o corpus e será constantemente indica na análise dos dados.
Os resultados indicam que conhecer o espaço físico, os postos de trabalho da fábrica, e a
realização das operações em situação de trabalho não parece ser o suficiente para o trabalho de
análise das operações nos postos de trabalho e o desenvolvimento de propostas de aplicação dos
exercícios de compensação posturais pelos aprendizes. Ao contrário, os aprendizes relatam que
precisam “ter maior contato com a realidade da produção”.
Dentre as dificuldades levantadas por mim, como pesquisadora, para a realização dos
relatórios de pesquisa pelos aprendizes, diferentemente do que se poderia enumerar comumente,
dificuldades com o uso e operação da norma culta (ortografia, coesão, por exemplo) e
estruturação dos relatórios, a que parece ser de maior relevância é justamente a compreensão ou a
dificuldade de adequação à realidade da esfera profissional: a linha de produção.
As entrevistas realizadas pelos aprendizes trazem, nas vozes dos operadores, indicadores
da realidade de trabalho vivenciada por eles que não são consideradas para as propostas de
realização dos exercícios compensatórios.
Compreender o contexto dessa esfera, o que quer dizer compreender os discursos
sociais/ históricos/ ideológicos/ culturais, significa, por exemplo, entre outras considerações,
reconhecer o discurso do empregador, ao qual interessará práticas que não gerem custos ou que,
ainda, reduzam gastos (neste caso, o afastamento médico do operador, em função de problemas
causados pela má postura no posto de trabalho, é gerador de custos).
A proposta de modificações comportamentais nos postos de trabalho, ou seja, a
compensação postural, exige o reconhecimento e a compreensão das dificuldades que o operador
encontra para realizar sua atividade, dos discursos que circulam nessa esfera, tanto do operador
quanto daquele que está do outro lado da máquina, o empregador, que quer produção, resultados,
sem prejuízos, gastos ou redução de ganhos.
Os aprendizes, ao freqüentarem escola e fábrica, assimilam tanto os discursos que
circulam num quanto no outro ambiente. Os alunos, enquanto aprendizes, cumprem muito mais o
papel de observadores do sistema produtivo, na linha de montagem, do que de operadores
propriamente, ou seja, ainda não são e não atuam como profissionais.
No entanto, é justamente essa característica, escola e fábrica como formadores de opinião,
que colabora para a formação educacional e profissional desses aprendizes, inclusive para a
forma como entendem o que é trabalho e os aspectos que o envolvem.
Os relatórios de pesquisa, ou seja, as avaliações ergonômicas que os aprendizes
apresentam das áreas de Manufatura, especificamente do trabalho nos postos de trabalho, trazem
discursos, termos e expressões que apontam para marcas de sistema de valores, da ideologia da
vivência cotidiana na escola e na empresa, numa situação concreta, contextualizada histórico-
socialmente.
Desse modo, percebi que se apresentava para mim um problema de possível análise e que
se transformaria no objeto de estudo de minha pesquisa de mestrado: como se dá,
discursivamente, a construção da noção de trabalho em relatórios de pesquisa realizados por
jovens aprendizes de uma escola técnico-profissionalizante?
II A pesquisa
Esta pesquisa foi desenvolvida no LAEL – Programa de Estudos Pós-Graduados em
Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC, insere-se na linha de pesquisa Linguagem e Trabalho e no projeto maior Contribuições
teórico-metodológicas da perspectiva dialógica de discurso para a análise das relações estilo,
trabalho e construção de identidades que tem como tema principal “o estudo das relações
entretidas entre linguagem, identidade, trabalho e construção de sujeitos”.
Um dos maiores questionamentos dos lingüistas da atualidade, ao menos no Brasil, tem
sido justamente a discussão sobre a utilidade e a importância das pesquisas em Lingüística e,
principalmente, de seu comprometimento social.
No artigo “Repensar o papel da lingüística aplicada”, Rajagopalan observa, e insiste, que
a teoria lingüística deve sim considerar “aquilo em que os falantes crêem a respeito do fenômeno
da linguagem” e acredita ser improdutivo ao pesquisador afastar-se do sujeito de pesquisa se a
“meta é atuar no campo da(s) própria(s) prática(s) que envolve(m) o uso da linguagem”
(2006:158, 159).
Nessa linha de pensamento, a teoria que não pensa a prática, sob situações concretas,
longe da vida real, não tem valor algum, ou seja, “teorias que não contemplem sua aplicabilidade
na prática não valem nada” (Rajagopalan, 2006:165).
As pesquisas atuais, inclusive, conforme aponta Fabrício em seu artigo “Linguistica
aplicada como espaço de ‘desaprendizagem’ ”, indicam, pela forma de abordagem, ser
inseparável a linguagem das práticas sociais e discursivas: “a tendência de muitos estudos
contemporâneos em Lingüística Aplicada é focalizar a linguagem como prática social e observá-
la em uso, imbricada em ampla amalgamação de fatores contextuais” (2006:48).
Pode-se dizer, portanto, que, no Brasil, hoje, a Lingüística Aplicada e os Estudos da
Linguagem estão, ou ao menos buscam estar, comprometidos política e eticamente com a
transformação social e, embora não tenha o propósito de resolver um problema ou de aplicar uma
teoria, pode buscar ajudar no encaminhamento de problemas ou mesmo na compreensão de
questões de cunho social. O lingüista aplicado deve buscar compreender determinado fenômeno
social por meio da linguagem.
Desse modo, a contribuição desta investigação para o projeto maior de pesquisa
evidencia-se na medida em que ela propõe compreender, por meio da linguagem, o fenômeno
social concepção de trabalho em jovens aprendizes que estão se preparando para entrar no
mercado de trabalho.
Assim, partindo da idéia do comprometimento ético desta pesquisa com os sujeitos
envolvidos e com a investigação da linguagem como prática social, cultural, histórica, observada
num contexto específico, determinei como objetivo geral desta pesquisa investigar, por meio da
linguagem, como se dá a construção da noção de trabalho em relatórios de pesquisa
desenvolvidos por jovens aprendizes de uma escola técnico-profissional, inserida na empresa que
a mantém, e que têm a escola e a fábrica como agentes de formação.
III Os capítulos que constituem o trabalho
Para nortear a leitura, apresento um breve apanhado dos conteúdos que constituem os
capítulos desta pesquisa.
O trabalho é constituído de cinco capítulos. Antes de apresentar o primeiro capítulo,
conforme pôde ser visto, relato o meu percurso profissional e acadêmico de modo a indicar
minhas inquietações e suas relações com a pesquisa.
O capítulo 1, intitulado “O mundo do trabalho e o ensino profissional no Brasil”, é
dividido em quatro tópicos. No primeiro, procuro caracterizar o trabalho urbano-industrial,
especificamente, de modo a situar a pesquisa histórico-socialmente. Trata-se de compreender o
trabalho no capitalismo e as formas e métodos de produção manufatureira e fabril, que no
decorrer dos séculos XIX, XX e entrada do XXI mudaram completamente o trabalho e o perfil do
trabalhador e, conseqüentemente, da sociedade.
Mas, antes de chegar ao capitalismo, propriamente, faço, nesse primeiro tópico, um
percurso histórico sobre o escravismo e o servilismo, de forma a compreender como essas formas
evoluíram para o trabalho salariado.
Nos dois tópicos seguintes investiguei, primeiro, a formação das escolas
profissionalizantes no Brasil, de modo a conduzir a discussão para o levantamento de alguns
fatores que propiciaram a entrada do mundo do trabalho nas escolas e, assim, o surgimento das
escolas profissionalizantes. Depois, o surgimento do Centro de Formação Profissional, escola do
contexto desta pesquisa, com o objetivo de caracterizar a escola desde sua formação até o início
de 2006. Por fim, apresento, no último tópico, minhas considerações sobre as questões discutidas.
No capítulo 2, “Metodologia”, descrevo o contexto de pesquisa de modo a detalhar os
aspectos que envolvem a produção dos relatórios. Assim, apresento o Centro de Formação
Profissional, a proposta pedagógica da escola, o curso em que se dá a produção dos relatórios, as
disciplinas que, de alguma forma, estão envolvidas nessa produção, as aulas que prescrevem a
realização dos relatórios de pesquisa, as áreas da Manufatura onde se dão as pesquisas dos
aprendizes. Por fim, descrevo como se deu o estabelecimento do corpus, a questão de pesquisa
específica para este trabalho e, a partir dela, os objetivos determinados e os procedimentos de
análise dos dados.
O capítulo 3, “Pressupostos teóricos”, traz a fundamentação teórica estabelecida para
análise do objeto de estudo. Procurei discutir da Teoria/ análise dialógica do discurso os
conceitos de enunciado concreto, discurso citado, discurso polêmico e esferas da comunicação,
sempre segundo Mikhail Bakhtin e seu Círculo.
Para tratar das imagens, ou seja, das fotografias que compõem o corpus, apresento um
estudo sobre relação de dominância, em Ivan Lima, e visão fotográfica, em Susan Sontag, de
modo a compreender como se dá a relação superioridade versus inferioridade que se estabelece
entre fotógrafo e fotografado e o olhar subjetivo que foca um determinado acontecimento,
compreendido como uma “realidade”. A relação de dominância e a visão fotográfica apontam
“pistas” da subjetividade, sugerem um sujeito por trás da câmera.
No capítulo 4, “Análise dos dados”, apresento, primeiro, uma detalhada descrição do
corpus, de modo a caracterizar os relatórios e indicar todos os dados relevantes levantados que
serão considerados no momento da análise, desde as partes que constituem os relatórios, o
número de fotografias e suas características, até às legendas que identificam as imagens,
determinando, dessa forma, as categorias de análise.
Para a análise dos dados, dividi o capítulo em mais três tópicos. No tópico 4.2, trato da
relação verbo-visual que se estabelece entre cores e tonalidades escuras das imagens e alguns
enunciados verbais e vozes discursivas que se confrontam nessa relação.
No tópico 4.3, persigo as relações que se estabelecem entre os ângulos escolhidos para o
registro das imagens e alguns enunciados verbais que apontam a subjetividade na fotografia, ou
seja, para um sujeito por detrás da câmera e para a relação de dominância visual que se estabelece
entre fotógrafo e fotografado.
No tópico 4.4, investigo as legendas que identificam as fotografias e a produção de
sentidos que se dá em função dessa relação.
Por fim, no capítulo 5 discuto os resultados do trabalho desta pesquisa, apoiada nos
capítulos anteriores e retomando a análise dos dados em cada um dos tópicos, buscando
relacioná-los entre si, de modo que possam compor a idéia da noção de trabalho que se constrói
discursivamente, verbo-visualmente, nos relatórios de pesquisa.
Indico, também, uma possibilidade de continuidade e ampliação desta investigação.
1 O MUNDO DO TRABALHO E O ENSINO PROFISSIONAL NO BRASIL
Esta pesquisa investiga como se dá a construção da noção de trabalho em jovens
aprendizes de uma escola profissionalizante, que fica dentro da empresa mantenedora, e que se
preparam para entrar no mercado de trabalho.
Assim, em se tratando de aprendizes de uma escola profissional que, dadas as suas
características, remete imediatamente ao mundo do trabalho, julgo necessário, e apropriado,
caracterizar, compreender e discutir o que é trabalho.
O contexto em que se dá a produção dos relatórios pelos aprendizes envolve tanto escola
quanto empresa e esta remete a um tipo de trabalho bem específico: o urbano-industrial. Trata-se
de uma empresa, uma montadora automobilística, localizada em São Paulo, numa das regiões
mais industrializadas do país.
Portanto, faz-se necessário compreender um trabalho que tem, historicamente, duas
orientações: (1ª) “tradicional” (sociedade agrária); (2ª) “moderna” que, ao deixar a vida rural,
passa a ser caracterizada por um estilo de vida urbano-industrial.
Para discutir o trabalho urbano-industrial no capitalismo, apoiei-me, principalmente, em
Marx, na obra O Capital, publicada primeiramente em 1867.
Nessa obra, o autor centra-se na perspectiva do trabalho como criador da condição
humana, ou seja, é pelo trabalho que a espécie humana se produz; mais que isso: apresenta uma
compreensão de homem não como um sujeito individual mas como resultado de um processo
histórico, de relações sociais concretas.
Antes, porém, de chegar à forma de trabalho capitalista, levanto as principais
características das formas de trabalho escravista e servil, de modo a compreender as
transformações e evoluções nas formas e processos de trabalho e do próprio trabalhador.
Por fim, para tratar do surgimento e formação das escolas profissionalizantes no Brasil,
mais precisamente os fatores que propiciaram a entrada do mundo do trabalho na escola, apoiei-
me principalmente em Cunha (2000ª/ 2000b) e Nosella (2002), sempre tendo em mente o
binômio trabalho e educação, de forma a caracterizar a educação profissional no Brasil.
1.1 O trabalho urbano-industrial
O trabalho é uma atividade importante para a criação e recriação da vida e da sociedade.
As formas de realização e organização do trabalho refletem as formas de constituição de uma
dada sociedade, suas crenças, ideologias, enfim, sua maneira de pensar e agir.
Ao compreender como se deram as diversas formas de trabalho e as características,
especificamente, do trabalho urbano-industrial, conforme o tempo e lugar, o país ou a época, nas
principais relações econômicas, pode-se compreender também, como e porquê se dá a divisão do
trabalho e a diferenciação dos homens em camadas e profissões.
Marx, filósofo revolucionário do socialismo científico e da crítica ao capitalismo,
influenciado pelo idealismo alemão (Hegel, por exemplo), assim como pela economia inglesa
(Adam Smith, por exemplo) e por utopistas franceses (Charles Fourier, por exemplo), analisou,
detalhadamente, o significado concreto do trabalho e suas relações para o desenvolvimento do
homem na sociedade capitalista do século XIX (Giannotti, 1978:VII, XIII, XIV).
Para descrever o trabalho no capitalismo e, mais precisamente, caracterizar o trabalho
urbano-industrial, busquei, principalmente, em Marx, na obra O Capital, uma discussão que
conduzisse à compreensão do modo fundamental da produção capitalista, da divisão do trabalho
na manufatura e na sociedade, das relações que se estabelecem entre o homem e a máquina, da
produção da mais-valia absoluta e relativa, de modo que se pudesse compreender as
transformações que o trabalho urbano-industrial sofreu no decorrer dos séculos, desde o XIX até
o início do XXI.
Inicio esta discussão, buscando caracterizar, nesse primeiro momento, de modo geral, o
significado do trabalho.
As atividades e valores de trabalho tiveram, no decorrer dos tempos, motivações muito
diferentes. Trata-se de uma necessidade manifestada por formas diversas de dependência, de
coação, por vezes de caráter econômico.
Os valores atribuídos ao trabalho são diversos e contraditórios, justamente porque se trata
de uma atividade humana que, conforme Nascimento e Barbosa (1996:10), reflete a contradição
existente no próprio homem e na sociedade da qual ele faz parte.
Parece difícil pensar na história do surgimento da humanidade desassociada do
surgimento do trabalho. Mais difícil, ainda, seria tentar determinar quem surgiu primeiro: o
homem ou o trabalho? Independentemente dessa questão, o fato é que o homem se transforma em
função da prática do trabalho e essa o transforma também, a cada instante, de acordo com as
necessidades físicas e imediatas.
O trabalho, compreende Marx, é um ato que se passa entre o homem e a natureza; e o
homem é também uma força natural que, “ao mesmo tempo que modifica a natureza exterior,
modifica sua própria natureza” (s/d:3).
Uma das características diferenciais do trabalho humano em relação ao dos outros animais
é que ele “pré-existe na imaginação do trabalhador” (Marx, s/d:3), em outras palavras, ele se
constitui intelectualmente; antes de executar, o homem pensa o trabalho, ou seja, planeja-o no
plano das idéias.
Outra característica é o fato de o homem criar instrumentos diversos para a realização do
trabalho: “desde que há adaptação a uma situação imprevista e, por exemplo, fabricação de
instrumento, nós nos aproximamos (...) das condições e exigências intelectuais do trabalho
humano” (Friedmann, 1973:19).
Pode-se dizer, portanto, a partir dessas considerações, que a intelectualidade, o próprio
corpo do homem, suas mãos, por exemplo, os instrumentos ou máquinas criados por ele e suas
ações, com uma finalidade prática, caracterizam o trabalho humano.
Há, ainda, outra característica fundamental para Marx: “a essência humana da natureza
não existe senão para o homem social (...). A sociedade é, pois, a plena unidade essencial do
homem com a natureza” (1978:10, grifo do autor). Isso quer dizer que o homem se constitui a si
mesmo e à sua consciência através de sua atividade prática no mundo, o que indica
necessariamente a presença de outros. Isso porque o trabalho humano é sempre uma atividade
social que compõe uma teia de relações sociais, mesmo o trabalho, aparentemente, realizado
isoladamente:
(...) mesmo quando atuo cientificamente, etc., uma atividade que
raramente posso levar a cabo em comunidade imediata com outros,
também sou social, porque atuo enquanto homem. Não só o material de
minha atividade – como a própria língua, na qual o pensador é ativo – me
é dado como produto social, como também meu próprio modo de
existência é atividade social, porque o que eu faço de mim, o faço para a
sociedade e com a consciência de mim enquanto um ser social (Marx,
1978:10, grifos do autor).
Houve, no decorrer da história, formas fundamentais que determinaram as relações
sociais em que se estabeleceram o processo de trabalho, ou seja, formas como os homens
produziram (e produzem) os meios materiais, a riqueza, e as formas como organizam o trabalho –
a divisão do trabalho.
Julgo necessário, antes de caracterizar o trabalho, especificamente, no capitalismo,
levantar historicamente alguns aspectos e características principais das formas de organização do
trabalho que já existiram.
Uma dessas formas é conhecida como escravismo. Ser um escravo, seja no período greco-
romano, seja nos séculos XVII, XVIII e XIX, por exemplo, significava ser uma “propriedade” de
alguém. Essa dominação acontecia tanto no plano ideológico (trata-se de fazer acreditar, por
exemplo, que se nasce escravo porque Deus assim o determinou) quanto no plano físico, sob
tortura e, muitas vezes, até mesmo com a morte aqueles que se revoltassem contra a vontade de
seu proprietário (Oliveira, 1991:31).
Economicamente, de acordo com Oliveira, o escravo era considerado o realizador do
trabalho, aquele que produz, e, ao mesmo tempo, o meio de produção: o escravo é “o produtor
direto, mas, como propriedade de outro homem, é também meio de produção, propriedade móvel
que pode ser vendida” (1991:31). Ao escravo, a parte que lhe cabia do produto de seu trabalho
era o mínimo necessário para que continuasse a reproduzir a força de trabalho.
A partir do século VI a.C., a agricultura, artesanato e comércio passaram a ser
considerados a “mola-mestra” da economia de Atenas (Oliveira, 1991:33).
Na agricultura, a terra era trabalhada basicamente por escravos, complementado pelo
trabalho livre, o camponês sem terras. No artesanato e comércio, os trabalhadores qualificavam-
se segundo as categorias, por exemplo, artesãos urbanos (escultores, curtidores de couro, tecelões
etc).
Há três tipos de trabalhadores nas oficinas de artesanato: o homem livre, o meteco e o
escravo. A forma como esses trabalhadores se relacionavam, em função da especialização nas
tarefas artesanais, configura uma divisão do trabalho. Essa divisão, conforme Oliveira, se
organiza em benefício da economia mercantil (1991:34).
Em Roma havia, também, na agricultura, além da produção escrava, a força de trabalho
mercenarii, “força de apoio remunerada e temporária” (Oliveira, 1991:39). Esses trabalhadores,
especificamente, eram destinados aos serviços de fenação, da vindima, das colheitas.
A partir do século II, d.C., a economia, baseada no cultivo de terras, entrava em declínio
por vários fatores, sendo um deles a falta de mão-de-obra escrava, provocada, conforme relata
Oliveira, pela gradativa eliminação das fontes abastecedoras tradicionais. (1991:39). A economia
escravista clássica entrava, por fim, em crise.
O trabalho artesanal era organizado, em Roma, pelo agrupamento dos trabalhadores em
associações ou em corporações. A religião em comum era, a princípio, a forma de organização
que reunia tecelões, tintureiros, sapateiros, médicos etc. No final da República, essas corporações
tornaram-se mais organizadas, possuindo cada qual seu próprio estatuto, fundado na mutualidade,
com sede e constituídas por doações individuais (Oliveira, 1991:40).
As corporações de ofício romanas dividiam-se em sodalitia e collegia. A primeira, uma
organização mista, agregava patrões, empregados e escravos e se destinavam à organização do
trabalho em diferentes níveis como, por exemplo, agrícola, doméstico; a segunda, organizada por
profissões, reunia trabalhadores urbanos de várias categorias e, de acordo com Oliveira, sua
principal característica era fazer frente à concorrência do trabalho escravo (1991:40). Os collegia
tinham membros como padeiros, artífices, bombeiros, armadores, comerciantes.
Em função das profundas transformações econômicas, ocorridas na Europa ocidental de
domínio romano, após as invasões bárbaras, o trabalho passou a ter uma nova configuração: do
escravismo passava para o servilismo (Oliveira, 1991:42).
Uma característica dos germanos, segundo Oliveira, é que eles desconheciam a
propriedade individual absoluta da terra, isso quer dizer que a estrutura fundiária bárbara
consistia na “apropriação coletiva da terra, no trabalho e na apropriação individual dos produtos
da criação” (1991:43).
O período após as invasões bárbaras resultou, portanto, da combinação de dois modos de
produção, o escravista e o germânico, o que convergiu no modo de produção feudal (a
vassalagem, o benefício, o manor, a senhoria, a própria estrutura geral da comunidade aldeã
feudal).
O feudalismo é caracterizado por formas de coerção direta, traduzidas pelo trabalho
compulsório sob relações de dominação e de servidão (Oliveira, 1991:48). Um exemplo dessas
formas é a do produtor direto que não era proprietário da terra e trabalhava para o senhor sob
formas de dependência social e jurídica, legitimadas pelo poder político.
A igreja, por sua vez, também exercia certo poder e influência. Em 585, instituiu o
dízimo, uma cobrança de 10% sobre os rendimentos, em nome da proteção espiritual e da
manutenção da unidade cristã. Tornou-se autônoma, separada da nobreza feudal e monarquia. No
entanto, tinha controle ideológico de todas as categorias da sociedade feudal.
No sistema feudal, os pequenos e médios proprietários recebiam suas próprias terras de
volta em troca de proteção e só permaneciam nelas na condição de trabalhadores, sob os efeitos
do beneficium, ou seja, o camponês deveria entregar ao seu senhor uma parte dos produtos
obtidos na exploração da terra. Essa forma de trabalho caracterizou a vassalagem, que era o
“princípio de uma relação de dependência fundada na apropriação dos meios dos excedentes pelo
suserano (o protetor)” (Oliveira, 1991:49).
O trabalho dos camponeses era realizado nas terras de cultivo (campos de cereais,
vinhedos, hortaliças e pomares), nas de pastoreiro (criação sedentária intensa) e nas florestas
(lenha e madeira).
Havia, também, um outro tipo de trabalhador muito numeroso nos feudos, o diarista, ou
jornaleiro, que trabalhava principalmente nos serviços de horta e de pastoreiro.
O trabalho rural era realizado por homens (sapateiros, torneiros, carpinteiros, fabricantes
de escudos etc), mulheres (artesanato têxtil) e escravos (fabricantes de tochas de cera, ripas e
tábuas de madeira etc). O artesanato urbano, que se desenvolveu próximo a áreas fornecedoras de
matéria-prima e mão-de-obra, era organizado em torno dos fiandeiros e tecelões, sob o controle
de pequenos mercadores e mestres de ofício.
Os artesãos, de acordo com Oliveira, eram homens do campo, que deixavam suas famílias
e comunidades aldeãs e viviam marginalizados na cidade. Eles não tinham posse de instrumentos
de trabalho e da matéria-prima; a característica dessa forma de trabalhado era o “empréstimo” da
capacidade produtiva do artesão em troca de uma remuneração instável (pagamento diário ou
semanal), com uma jornada diária de trabalho que ficava entre 8 a 16 horas (1991:58).
Os trabalhadores se associavam em grupos nas formas de comunidades aldeãs, confrarias
e corporações de ofício. A primeira tinha os princípios do funcionamento baseados nos interesses
comuns (políticos, religiosos, territoriais, organização do trabalho); a segunda, associações
patrocinadas pela Igreja, dividiam-se em rurais, formação de ligas agrárias e urbanas, que se
organizavam de acordo com os ofícios; por fim, a terceira funcionava na defesa dos interesses
comuns de trabalhadores de diferentes ofícios.
A terceira forma, as corporações de ofício, segundo Oliveira, eram mais amplas do que
os collegia romanos. Os trabalhadores, recrutados desde a fase de aprendizagem, seguiam uma
linha hereditária, ou seja, os pais transmitiam a seus filhos seus ofícios (1991:62).
Em 1258, foi criada uma regulamentação, o Livre des métiers de Paris, que estabeleceu o
conceito de ofício, criando mecanismos de controle do exercício e, inclusive, “guardas”
encarregados de
fazer observar os estatutos, a condição do aprendiz (ter entre 12 e 15 anos
de idade, pertencer a um só mestre, tempo de aprendizado, sanções etc.), a
condição do oficial (condição transitória entre o aprendiz e o mestre),
juramento aos santos padroeiros, fixação da remuneração, jornada de
trabalho), a condição de mestre (respeitar o juízo dos magistrados,
compromissos com a confraria, pagar direito ao rei ou ao senhor ao qual
está enfeudado). Os estatutos regulamentam também as formas de controle
do trabalho (Oliveira, 1991:62, 63).
Essa forma de estrutura artesanal de produção, baseada nas corporações, correspondia a
uma estratégia feudal que, conforme observa Oliveira, mantinha o trabalhador atado aos
proprietários das oficinas, mesmo sendo dado a ele o direito de associação e de reunião
(1991:63).
Com a adoção da prática mercantilista, que estava voltada para os interesses da burguesia
emergente (comercial, na Inglaterra; industrial, na França; metalista, na Espanha), o feudalismo
começou entrar em crise e a economia avançou para a consolidação do capitalismo.
Para Oliveira, as relações de trabalho tomavam outra configuração: as relações entre
proprietário e trabalhador rural acabaram liberando o camponês da terra, mas não de
determinadas formas de dependência. Por vezes, o camponês tornava-se assalariado ou, com a
sua liberação, migrava para os centros urbanos (1991:66).
Na cidade, as manufaturas gradativamente iam substituindo as antigas oficinas de
artesanato, sendo as manufaturas têxteis o principal núcleo de atividade econômica. O comércio
se tornou, entre os séculos XVI e XVIII, o setor mais desenvolvido da economia européia. O
negociante medieval vai sendo substituído pelo manufatureiro-comerciante (Oliveira, 1991:67).
O trabalhador rural é submetido a duas formas de exploração: o arrendamento e a
parceria. Na primeira forma, a produção estava comprometida com o aluguel e na segunda, o
compromisso era com a repartição dos produtos com os proprietários das terras cultivadas.
Oliveira observa, no entanto, que dificilmente o camponês conseguia acumular algo que
permitisse sua independência. Na verdade, em toda a Europa, a condição desses camponeses era
“bastante precária e difícil” (1991:69).
De acordo com Oliveira, é nos sistemas de arrendamento e de parceria que a burguesia
investidora encontrou condições de exploração do trabalho de forma a garantir a produtividade,
investindo em técnicas que permitiram o desenvolvimento de cultivos de especulação (1991:70).
A partir do século XVI, o trabalho artesanal começou a modificar-se em função do
aumento da demanda, o que exigiu expansão das oficinas e melhoria qualitativa dos tecidos.
Naquele momento, a condição do trabalhador passou a alterar-se, distanciando-o das corporações
que foram se enfraquecendo por não se adaptarem rapidamente às novas condições da economia
européia e mundial.
Em função da necessidade de uma produção em grande escala e da nova configuração da
divisão do trabalho, ou melhor, “do conflito entre o trabalho livre emergente e o trabalho
semicompulsório tradicional” (Oliveira, 1991:72), as corporações não resistiram. Desse modo, foi
dado, naquele momento, o passo para a implantação das grandes indústrias urbanas.
No século XVII, na Inglaterra, a burguesia se instalou no poder. Na França, foi iniciado
um ciclo revolucionário burguês com a revolução de 1789 e, mais adiante, intensificado com a de
1848. Finalmente, aconteceu a substituição do Estado feudal pelo Estado burguês, o que
significou, por fim, a passagem para o capitalismo.
O ponto alto, no momento da passagem para o capitalismo, é a Revolução Industrial que
foi caracterizada, de acordo com Oliveira, pela “evolução tecnológica aplicada na produção e a
conseqüente revolução nos processos de produção e nas relações sociais, combinação que confere
um caráter social a essa Revolução” (1991:75).
Naquele momento, portanto, o trabalho, sua divisão, o próprio trabalhador adquiriram
uma nova configuração. Trata-se do trabalho no sistema capitalista.
Faço, neste ponto, uma consideração: esta pesquisa busca compreender como se dá a
construção da noção de trabalho para jovens aprendizes de uma escola técnico-profissionalizante,
inserida na própria empresa que a mantém, e que estão se preparando para ingressar no mercado
de trabalho. Esses jovens assumirão, em geral, postos de trabalho na linha de produção da
empresa.
Os relatórios feitos pelos aprendizes resultam da pesquisa realizada por eles nos postos de
trabalho da empresa. Os aprendizes analisam, portanto, a partir da Ergonomia, o trabalho de
operadores, em situação de trabalho, de uma empresa automobilística, localizada num dos
maiores centros urbanos do país.
Cabe, portanto, caracterizar e compreender, do ponto de vista do capitalismo, as principais
características do trabalho urbano-industrial.
Obviamente, desde seu surgimento até o momento atual, houve muitas modificações e
evoluções na configuração do trabalho.
De manufatureiro, o trabalho passou para a era da automatização, por exemplo, e essa
modificação acarretou alterações na vida social, econômica e cultural das sociedades. No entanto,
historicamente, há aspectos que, por mais que tenham sofrido mudanças, são peculiares do
trabalho urbano-industrial e, por isso, devem ser considerados atentamente.
Assim, inicio a caracterização do trabalho urbano-industrial, no capitalismo, com a
discussão sobre o valor da força coletiva de trabalho.
Para Marx, o que constituiu o ponto de partida histórico da produção capitalista foi a
forma de trabalho baseada na cooperação. Essa é a forma de trabalho em que “vários trabalham
conjuntamente, visando a um objetivo comum, mesmo processo de produção, ou em processos
diferentes, mas conexos” (s/d:6). Essa forma de força de trabalho funciona como uma força
coletiva do trabalho.
A cooperação, ou seja, o trabalho realizado conjuntamente por vários homens reunidos,
tende a elevar a capacidade individual:
Mesmo quando executam a mesma tarefa (por exemplo, carregar pedras da
base ao cume de uma construção), quando essa é exercida
cooperativamente, o tempo no qual o objeto de trabalho percorre
determinado espaço é diminuído. (...) Agindo conjuntamente com outros
fins comuns e de acordo com um plano, o trabalhador supera os limites de
sua individualidade e desenvolve sua capacidade como espécie (s/d:6, 7).
O modo de produção capitalista transformou o trabalho isolado em trabalho social que,
nas mãos do capital, aumentou suas forças produtivas, explorando-as, de acordo com Marx, com
mais lucro (s/d:9).
A forma de trabalho caracterizada pela cooperação, empregada na Antiguidade e Idade
Média, conforme já discutido, baseava-se em relações de dominação e servidão. No capitalismo,
ao contrário, pressupõe-se um trabalhador livre, que vende sua força de trabalho.
Para Marx, o trabalho é o uso da força de trabalho. Um operário não vende diretamente o
seu trabalho, mas sim, a sua força de trabalho. Há, de acordo com algumas leis estabelecidas, o
“máximo de tempo” pelo qual um trabalhador pode vender a sua força de trabalho. Essa é uma
das características que, de acordo com o autor, distingui o trabalhador livre do trabalhador
escravo, pois, caso o trabalhador vendesse sua força sem limitação de tempo converter-se-ia em
“escravo do patrão pelo resto de sua vida” (1978:80).
A força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la.
Marx observa que, assim como se diferenciam os custos de produção de força de trabalho de
diferente qualidade, se diferenciam, também, os valores das forças de trabalho aplicados nas
diferentes indústrias. Por esse motivo, o autor acredita ser um erro a “luta” pela igualdade de
salários. No sistema do salariado, o valor da força de trabalho se fixa como o de outra mercadoria
qualquer. Assim, necessariamente, terá preços distintos no mercado de trabalho (1978:81).
O valor da força de trabalho é determinado, segundo Marx, pelo valor dos artigos de
primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho:
“o valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua
conservação, ou reprodução, mas o uso dessa força só é limitado pela energia vital e a força do
operário” (Marx, 1978:82).
A quantidade de trabalho que, de alguma forma, limita o valor da força de trabalho do
operário, não limita, no entanto, a quantidade de trabalho que a força de trabalho do operário
pode executar.
Para Marx, a produção da mais-valia se dá justamente no intercâmbio entre o capital e o
trabalho: o operário vende sua força de trabalho ao capitalista e trabalha o tempo necessário para
reproduzir o valor da força de trabalho; o capitalista, ao comprá-la, serve-se dela de modo que o
operário prolongue sua jornada, reproduzindo sua força de trabalho além do tempo no qual o
operário se limita a reproduzir o valor de sua força de trabalho – “sobretempo” ou
“sobretrabalho” (1978:83).
Nesse modo de produção, o trabalhador é considerado “produtivo” quando fornece ao
capital a mais-valia. Marx define a produção da mais-valia absoluta como o prolongamento da
jornada de trabalho (sobretempo ou sobretrabalho) e a considera a base geral do sistema
capitalista e o ponto de partida da mais-valia relativa que está diretamente relacionada com a
produtividade do trabalho (s/d:71).
A produção da mais-valia absoluta interfere apenas na duração do trabalho enquanto que a
da mais-valia relativa transforma seus processos técnicos e suas combinações sociais: ela provém
da “abreviação do tempo de trabalho necessário e da modificação correspondente na grandeza
relativa das duas partes de que se compõe a jornada” (s/d:69).
Com relação ao valor ou o preço da força de trabalho, Marx considera que, primeiro, em
função do “sobretempo” ou “sobretrabalho”, a força de trabalho tem, aparentemente, o preço ou o
valor do próprio trabalho; segundo, a remuneração de apenas uma parte do trabalho diário,
mesmo que seja esse aspecto que caracterize a mais-valia ou o lucro, leva a crer que todo o
trabalho é trabalho pago (1978:84). Essa característica é que distingui o trabalho salariado do
trabalho escravo ou trabalho servil.
No sistema salariado, o trabalho não remunerado parece trabalho pago; no sistema
escravista, ao contrário, mesmo o trabalho “pago” parece ser trabalho não remunerado, já que
para trabalhar “o escravo tem que viver e uma parte de sua jornada de trabalho serve para repor o
valor de seu próprio sustento” (Marx, 1978:84). Como não havia nenhum tipo de acordo ou
contrato entre escravo e senhor que configurasse venda e compra, o trabalho parecia “dado de
graça”.
Conforme discutido anteriormente, no sistema do servilismo, o servo tinha que,
forçosamente, trabalhar para si, na sua própria terra ou na qual tivesse sido atribuída a ele, por um
determinado período, e para o seu senhor, por outro período equivalente. Trata-se, conforme
Marx, do chamado trabalho compulsório e gratuito na propriedade do senhor. As duas partes do
trabalho, a paga e a não paga, aparecem nitidamente separadas. Marx entende que no trabalho
salariado essas duas partes se confundem pela “interferência de um contrato e o pagamento
recebido no fim de semana” (1978:84).
A diferença entre o trabalho do servo e o do assalariado, considera o filósofo, é que o
primeiro é “arrancado” pela força enquanto o segundo “parece” entregue voluntariamente.
Pode-se considerar que o valor da força de trabalho é formado, portanto, pelo elemento
físico, ou seja, seu limite mínimo é determinado pelos artigos de primeira necessidade que são
indispensáveis para a existência física do trabalhador, e pelo elemento de caráter histórico e
social, o que significa que o padrão de vida, a satisfação de certas necessidades depende das
condições sociais em que vivem e se criam os homens de um determinado grupo social, que pode
diferenciar-se, até, por exemplo, em cada região de um mesmo país.
Neste ponto faço uma observação que julgo importante com relação ao elemento de
caráter histórico e social: os aprendizes da escola técnico-profissionalizante são filhos ou irmãos
de operadores, enquadrados na categoria metalúrgicos, que trabalham numa indústria
automobilística, localizada numa das principais regiões industrializadas do país.
Historicamente, essa região foi, e ainda tem sido, considerada, muito embora nas duas
últimas décadas tenha se iniciado uma crise de desindustrialização, com a retirada das empresas
da região (Tomizaki, 2006:157), a de maiores salários, ou seja, dos trabalhadores metalúrgicos
melhor remunerados, em relação a demais regiões do país. É considerada, também, uma das
regiões com maior custo de vida.
Tomizaki observa em seu artigo “A herança operária entre a fábrica e a escola” que,
inicialmente, o perfil dos trabalhadores que constituiu a categoria dos metalúrgicos, no início da
década de 50, era formado, basicamente, por trabalhadores vindos do campo. Portanto, a mão-de-
obra do setor rural transferiu-se para o urbano. Essa mudança representou, conforme observa a
autora, uma considerável melhoria na qualidade de vida dessas pessoas (2006:156).
Outra característica é o fato da montadora automobilística, tanto do contexto de pesquisa
de Tomizaki, quanto desta pesquisa, ter desenvolvido uma política de formação de mão-de-obra
concretizada por uma escola profissionalizante que selecionava, e seleciona ainda, ao menos no
caso do contexto desta pesquisa, filhos ou irmãos de funcionários. Isso significa, conforme a
autora, uma política de contratação que privilegia jovens que estudaram na escola profissional da
empresa, formando, assim, “novas gerações de trabalhadores ligadas entre si por laços de
parentesco” (2006:155).
Ao avaliar, historicamente, o desenvolvimento industrial da região, Tomizake observa que
o quadro geral de trabalhadores nas montadoras automobilísticas, no estado de São Paulo, na
década de 1990, diminuiu, assim como, também, o número de trabalhadores com baixa
escolaridade (2006:157).
De acordo com a pesquisa de mestrado de Celso Frederico sobre a Consciência Operária
no Brasil, no período de 1970 a 1971, numa fábrica na região do ABC paulista, os operários
tinham “orgulho profissional” e tendiam a valorizar as condições de trabalho nas grandes
indústrias:
as relações de trabalho nas pequenas e médias indústrias parecem, aos
operários, marcadas por um tipo de dominação própria e imediata do
patrão sobre os chefes de seção e destes sobre os operários. Daí a
valorização do trabalho nas grandes indústrias onde, além dos salários
maiores e das possibilidades de ascensão, as relações de dominação seriam
mais “humanas” [sic], mais mediadas, (...) (1979:105).
O autor avalia que havia, por um lado, na sociologia acadêmica, uma imagem do operário
brasileiro distorcida ou inadequada: “como a de um ‘caipira’ recém-chegado à cidade grande, e
‘naturalmente’ submisso à dominação ‘paternalista’ do patronato e ao ‘autoritarismo’ das
lideranças nacional-populistas e dos chefes militares” (1979:135). Por outro lado, algumas
análises políticas construíam a imagem do operário como a de um “revolucionário nato”.
Os resultados da pesquisa realizada por Frederico indicaram, no entanto, operários
inseguros, condição, aliás, de acordo com o autor, própria de uma situação de classe marcada
pelas dificuldades de uma carência econômica constante, mas, ao mesmo tempo,
individualmente, otimistas e esperançosos de “dias melhores”, visão essa linear e progressiva da
história (1979:134).
Observa-se, portanto, no que se refere ao caráter histórico e social que, na região do ABC
paulista, a mão-de-obra operária foi formada, inicialmente, praticamente por trabalhadores rurais
e, posteriormente, as próprias empresas formavam, junto a escolas profissionalizantes, seus
trabalhadores.
Outro aspecto refere-se ao fato de as grandes indústrias da região serem consideradas,
pelos trabalhadores, como as dos “maiores” salários e com os melhores benefícios oferecidos. Por
fim, a mão-de-obra operária com baixa escolaridade, nessa região, com o passar do tempo, foi
diminuindo.
Até o momento, discuti, de acordo com Marx, o significado do valor da força de trabalho.
Passarei, neste momento, a caracterizar e discutir a divisão do trabalho na manufatura, na
indústria e na sociedade.
Marx considera que a manufatura se originou de duas maneiras: na primeira, um mesmo
produto poderia ser trabalhado por vários artesãos de ofícios diversos e independentes, por
exemplo, até que se tornassem operações parciais e complementares na produção do objeto; na
segunda, o mesmo objeto, devido a exigência do mercado de maior produtividade, poderia ser
trabalhado por artesãos de um mesmo ofício, decompondo a mesma atividade em suas diferentes
operações (s/d:10).
Esse operário parcial, em função da realização de uma operação do todo da atividade,
empregará menos tempo que o artesão que, a princípio, realizaria uma série de operações. Dessa
forma, analisa Marx, há uma multiplicação da força produtiva do trabalho (s/d:11).
A produtividade do trabalho dependerá, desse modo, do domínio e da técnica do
trabalhador e, também, da perfeição de seus instrumentos que poderão servir a várias operações.
Para Marx, o mecanismo específico do período manufatureiro é o trabalhador coletivo que
se constitui da combinação de muitos trabalhadores parciais. Cada uma das diversas operações
exige uma habilidade diferente do trabalhador (atenção, força etc). Quando essas habilidades são
agrupadas por igualdade, a manufatura desenvolve forças de trabalho especializadas apenas em
funções específicas (s/d:13).
A divisão do trabalho na manufatura se dá, portanto, em função de certo número de
operários simultaneamente ocupados. O trabalhador na manufatura produz parcialmente uma
mercadoria; apenas o produto coletivo se tornará mercadoria. Os trabalhos parciais na manufatura
têm como condição a venda das diferentes forças de trabalho.
A divisão do trabalho, quanto ao aspecto social, se dá pelas relações de dominação e de
hierarquia; quanto ao aspecto técnico, pelas exigências da eficácia técnica, do rendimento.
Na sociedade, a divisão do trabalho é considerada em seus grandes ramos, como a
indústria e a agricultura, por exemplo, e seus produtos são considerados mercadorias. A troca de
mercadorias põe em contato as diferentes esferas da produção, tornando-as “mais ou menos”
dependentes da produção social. O intermédio dessa troca se estabelece pela compra e venda de
seus produtos. Essa divisão do trabalho, que se dá em função da troca de mercadorias, tem, para
Marx, por base fundamental a separação entre a cidade e o campo (s/d:14).
Por fim, Marx observa que a divisão social do trabalho, seja ela estabelecida ou não pela
troca de mercadorias, “é inerente às mais diversas formações econômicas da sociedade”, mas a
divisão manufatureira “é criação específica do modo de produção capitalista” (s/d:15).
A divisão do trabalho exprime uma relação de cooperação tecnicamente eficaz, ou seja,
indivíduos e grupos são levados a distribuírem (ou a ver autoritariamente distribuídas) entre si as
suas tarefas e as coordenam.
A divisão do trabalho na manufatura exige um número de operários considerável. Trata-
se de uma necessidade técnica para que haja crescimento progressivo do capital mínimo
necessário ao capitalista.
Dessa forma, foi-se produzindo uma divisão cada vez mais nítida entre os serviços de
preparação, fabricação e manutenção. O número de engenheiros e dirigentes técnicos elevou-se
enquanto que o número de trabalhadores manuais diminuía consideravelmente.
De acordo com Naville, a divisão do trabalho e distribuição das tarefas se dá em função
das equipes e grupos inteiros de trabalho, o tipo de ligação e de cooperação entre os postos
(1973:436).
Assim, pode-se distinguir, no início do maquinismo moderno, a divisão dos postos de
trabalho da seguinte forma: “postos de entrada e saída dos processos (carga, descarga,
posicionamento); postos de cortes (...) do processo automático (manipulação e controle); postos
de controle e vigilância nos quadros centrais; postos de manutenção” (Naville, 1973:436).
Esse aspecto leva Marx a avaliar que, além do trabalho ser dividido em várias operações,
o trabalhador também é “retalhado e metamorfoseado em aparelho automático de uma operação
exclusiva”. Para o filósofo, é na divisão manufatureira que as potências intelectuais da produção
tornam-se propriedade de outrem e é justamente essa cisão que “mutila o trabalhador a ponto de
reduzi-lo a uma parcela de si mesmo” (s/d:16).
Faço neste ponto outra observação: a análise dos dados apontou para o modo como os
aprendizes, discursivamente, verbo-visualmente, tratam o operador: ele é “enxergado” de modo
“fragmentado”, em suas partes, assim como o processo produtivo; por vezes, chega a ser
equiparado às próprias máquinas.
Marx analisou o trabalho, seu significado concreto e suas relações para o
desenvolvimento do homem, na sociedade capitalista do século XIX. Os aprendizes imprimem,
no século XXI, apesar do inegável desenvolvimento e melhoria das condições de trabalho e
conquistas da classe, de todos os avanços tecnológicos, o mesmo “olhar” que Marx imprimiu ao
avaliar o trabalho: trabalhador retalhado, metamorfoseado em aparelho automático; trabalhador
fragmentado, considerado apenas em suas partes, que trabalha como trabalham as máquinas.
A máquina foi considerada por Marx como o ponto de partida da revolução industrial. O
capital, na busca de acumular maiores lucros, diminuindo o preço das mercadorias, procurou
meios de substituir a habilidade do ofício independente dos próprios operários. Assim, a
fabricação de instrumentos e aparelhos mecânicos resultou em máquinas que, pela sua
intervenção, eliminaram a atividade artesanal, não havendo mais a necessidade técnica de fixar o
trabalhador a uma função parcial pelo resto da vida (s/d:19).
Novas máquinas foram inventadas e algumas delas sequer precisavam do esforço
físico do homem. O trabalho do homem começava a ser substituído pela máquina, ao que Marx
chamaria de “máquina-ferramenta”:
Na fábrica, a habilidade no manejo da ferramenta passa do
operário para a máquina... A distinção essencial é a que classifica os
trabalhadores em operários realmente ocupados nas máquinas-ferramentas
(independentemente de alguns trabalhadores encarregados de fiscalizar e
alimentar a máquina motriz) e em simples ajudantes (quase
exclusivamente crianças) subordinadas aos primeiros. (...)
O trabalho à máquina exige que o operário fique logo adestrado
nesse gênero de ocupação, a fim de aprender a regular os seus próprios
movimentos de acordo com o movimento uniforme e contínuo do
autômato... (...) A especialidade que consistia em manejar, durante toda a
sua vida, uma ferramenta parcelária, torna-se a especialidade de servir, a
vida inteira, uma máquina parcelária. (...) (Marx, 1978:61).
As máquinas realizavam o trabalho de centenas de trabalhadores. Efetivamente, o
aparecimento das grandes fábricas e do avanço tecnológico, aliado a procura da economia de
tempo e aumento da produtividade, transformou o trabalho e o trabalhador; transformou
definitivamente a forma de pensar o trabalho.
A máquina substituiu o trabalhador que, até então, operava um instrumento por um
mecanismo que opera ao mesmo tempo com vários instrumentos semelhantes e recebe seu
impulso de uma força única.
Um mecanismo é composto por três partes necessárias para que seja considerado como
tal: motor, transmissão e máquina-instrumento. A última executa com seus instrumentos as
mesmas operações que o trabalhador antes executava com instrumentos semelhantes.
A indústria mecânica, portanto, ao contrário da manufatureira, que acomodava a operação
de acordo com a habilidade do operário, deixa de ter, para Marx, um princípio subjetivo,
tornando-se independente das habilidades individuais do operário (s/d:21), adquirindo, assim, um
princípio objetivo.
Para que houvesse o progresso das indústrias, baseadas no modo mecânico de produção,
foi necessário o aumento de operários especialistas. Esse modo de produção provocou,
necessariamente, a evolução nas condições gerais do processo de produção, isto é, “nos meios de
comunicação e de transporte” (Marx, s/d:21).
Outra questão em relação às máquinas refere-se ao fato de elas não produzirem valor, mas
apenas transmitirem valor ao produto: “seu valor entra, pois, no valor do produto” (Marx, s/d:22).
O autor avalia, por fim, que a máquina substitui o trabalho do operário e não o salário.
Ao examinar as consequências imediatas da indústria sobre o trabalhador, mais
precisamente o meio de trabalho como o ponto de partida da grande indústria, o filósofo propõe
observar três efeitos retroativos mais imediatos dessa revolução sobre o operário.
O primeiro deles refere-se ao fato de a máquina tornar supérfluo o uso da força muscular.
Esse aspecto permitiu, portanto, a contratação de operários sem grande força muscular. Foi, mais
precisamente, naquele momento que mulheres e crianças, em maior número, entraram para o
mercado de trabalho. No entanto, para Marx, ao “lançar” a família no mercado, a máquina
depreciou o valor da força de trabalho, pois distribuiu “por várias forças o valor de uma única
família” (s/d:24).
O segundo efeito trata da questão do prolongamento da jornada de trabalho. O valor da
máquina é determinado pelo tempo que exige sua reprodução e não pelo tempo de trabalho nela
realizado. Marx acreditava que esse era o motivo que fazia “do primeiro período de vida da
máquina o período agudo do prolongamento do trabalho” (s/d:24). É esse “prolongamento” que
permite aumentar a escala de produção, sem aumentar a parte do capital fixado em edifícios e
máquinas, aumentando a mais-valia e diminuindo as despesas necessárias para obtê-la.
O terceiro efeito observado por Marx é com relação ao fato de a sociedade ter decretado
limites legais à jornada em função do aumento prolongado, sem limites, do trabalho pela
máquina. Esse fato se deu em decorrência da “crescente revolta” da classe operária que forçou o
Estado a impor uma jornada “normal”.
O capital reagiu ao decreto, na produção da mais-valia relativa, investindo no
desenvolvimento acelerado do sistema mecânico. Ao mesmo tempo, o caráter da mais-valia
relativa ia sofrendo modificações, de modo que o operário era também “coagido” a produzir mais
atividade no mesmo tempo.
Outra questão importante para essa pesquisa é buscar uma definição para fábrica, já que,
primeiro, o contexto em que se dá a produção do corpus desta pesquisa é entre escola e fábrica e,
segundo, Marx entendia que, com as máquinas, a manufatura deixava de existir e ganhava outros
aspectos.
O autor apresentou duas definições para fábrica, apoiado no economista inglês Andrew
Ure: (1ª) “a fábrica é uma cooperação de várias espécies de operários”; (2ª) “é um vasto
autômato” (Marx, s/d:26).
Com relação à primeira definição, Marx analisa o fato de o trabalhador coletivo figurar
como o sujeito dominante e o autômato mecânico, ou seja, a própria máquina, como seu objeto
([198-]:26).
Na segunda definição, de acordo com Marx, a própria máquina é o sujeito e os
trabalhadores são “simplesmente ligados como órgãos conscientes a seus órgãos inconscientes e
com eles subordinados à força motriz central” (s/d:26).
Desse modo, as habilidades no manejo do instrumento passam do operador para a
máquina. Há, para o filósofo, em função desse aspecto, uma tendência a “igualar ou nivelar” os
trabalhos e a predominar as diferenças naturais como idade e sexo.
Marx analisa que na manufatura o operário se servia da máquina, de modo que o
movimento do trabalho partia dele. Os trabalhadores, considera o autor, eram membros de um
“organismo vivo” (s/d:27).
Na fábrica, ao contrário, o operário serve à máquina, apenas seguindo o seu movimento,
incorporando-se a um “mecanismo morto” que existe independente dele (Marx, s/d:27). Nesse
caso, avalia o filósofo, a máquina não “liberta” o operário do trabalho, mas “despoja-o” de seu
interesse.
Por fim, considera Marx, foi a grande indústria mecânica que separou o trabalho das
potências intelectuais da produção, transformando-as em poderes do capital sobre o trabalho
(s/d:27).
O operário especializado da indústria moderna não é mais caracterizado pela sua
capacidade de executar uma operação manual, mas sim pela aptidão para adaptar-se às condições
da produção mecanizada e em grande série.
A linha de montagem não é, considera Touraine, uma realidade natural, não-social.
Concebida por homens, o seu ritmo foi decidido por eles, o que quer dizer que
a natureza do trabalho operário, a partir do momento em que a indústria
entra no novo sistema de trabalho, depende, em grande parte, das decisões
tomadas por técnicos responsáveis pela organização do trabalho.(...) a
iniciativa profissional do trabalho já não é o princípio da central da
oficina, a organização do trabalho deve considerar o homem como
elemento do sistema de produção e não mais apenas como o homo faber
(1973:457).
A grande indústria, de fato, efetuou uma revolução na manufatura com a eliminação da
cooperação baseada no ofício e na divisão do trabalho.
Como ocorre nas revoluções, houve reações por parte do proletariado contra a indústria,
sendo a legislação fabril a primeira delas. Da mesma forma que a grande indústria precisava da
modificação no trabalho, da fluidez das funções, da mobilidade universal do trabalhador, também
esse precisava, de certa maneira, impor limites à nova forma de trabalho que se configurava na
indústria.
No entanto, Marx observa que pelos regulamentos que impõe às fábricas, às manufaturas,
a legislação estava mais voltada para os interesses e direitos dos “senhoriais do capital”. Para o
filósofo, a legislação fabril foi a “confissão oficial” pela indústria da exploração das mulheres e
crianças pelo capital: “todos os esforços dessa legislação visam apenas reprimir os excessos do
sistema de escravidão” (s/d:33).
De qualquer forma, essa legislação era indispensável para proteger física e moralmente a
classe operária. Ademais, promoveu o aceleramento da transformação do trabalho isolado,
disseminado e executado em pequena escala, em trabalho socialmente organizado e combinado
em grande escala e, também, a concentração dos capitais e o regime exclusivo da fábrica.
Com relação, ainda, às linhas de produção ou linhas de montagem, houve no decorrer do
século XIX e século XX o desenvolvimento de três principais métodos de trabalho, o taylorismo,
o fordismo e o toyotismo (ohnoísmo), que deram-no novas características.
No final do século XIX, apareceu Frederick W. Taylor, um dos maiores responsáveis pela
criação de um novo processo de trabalho: a chamada organização científica do trabalho, ou
taylorismo. Ele observou o trabalhador em movimento e analisou o trabalho dos operários mais
produtivos, de modo a torná-los ainda mais produtivos. Conforme avaliam Nascimento e Barbosa
(1996), Taylor “não inventou uma nova máquina, mas um novo homem frente à máquina”, que
não necessariamente trabalharia melhor, mas sim trabalharia mais, muito mais.
O taylorismo se baseia na mecanização da produção, no estudo dos tempos e movimentos,
na seleção e treinamento científico, que consiste em definir um perfil profissional adequado à
tarefa junto a profissionais das áreas da psicologia e serviço social, na separação entre a
concepção e a execução do trabalho, o que equivale à gerência pensar o modo de realização do
trabalho e ao trabalhador apenas a execução do procedimento prescrito e determinado pela chefia,
e num plano de incentivo salarial – o trabalhador recebe por peça produzida ou hora trabalhada.
A divisão capitalista do trabalho é, para Marx (1978:24), a fonte de todas as alienações.
Nesse modo de produção, o trabalhador não conhece a totalidade do processo produtivo e do
próprio produto que produz. Ele, assim como o processo, está fragmentado, sujeito a um ciclo de
movimentos repetitivos. O saber do trabalho pertence à chefia ou localiza-se nas máquinas.
Toda essa nova forma do processo de produção, divisão e parcelamento de tarefas, divisão
entre trabalho manual e intelectual, a ciência nas mãos de poucos (a elite), colabora para a
perpetuação e dominação do capital que se deve justamente pelas técnicas de produção e de
dominação patronal sobre aqueles que produzem; a produção, “alheia aos trabalhadores, só pode
ser realizada por eles, sob coerção (direta ou velada)” (Gorz, 2001:11).
Outra forma de pensar o processo de produção interessa particularmente à essa pesquisa,
justamente porque inaugurou uma nova forma do sistema de produção nas linhas de montagem
automobilísticas e que até o século XXI ainda é bastante utilizada: a produção estandardizada
(padronizada), criada por Henry Ford.
Esse processo não rompe com o taylorismo. De acordo com Nascimento e Barbosa
(1996), é a base técnica e cultural para um novo modo de produção, feita principalmente pelas
indústrias automobilísticas.
No fordismo é o fluxo da linha de montagem que determina o tempo de produção e
operação. O operador fica fixo num posto de trabalho e tem um tempo imposto (tacto) para a
realização de sua operação. Pode-se dizer que no fordismo encontrou-se a forma perfeita para a
superexploração da força de trabalho (Nascimento e Barbosa, 1996).
No entanto, foram justamente essas formas de organização do trabalho, mesmo sob
alienação e determinada coerção como repressão e rotatividade no emprego, que levaram os
trabalhadores a buscarem formas de resistência, reivindicando e conquistando direitos
trabalhistas.
Os processos de produção, até então, trouxeram vários problemas de saúde física e mental
a milhares de trabalhadores em função do aumento do ritmo da linha de montagem em busca de
maiores lucros e das péssimas condições de trabalho que aumentavam os acidentes de trabalho, o
que se intensificou no período final da década de 1960 e início de 1970.
Desse modo, cresceu a resistência operária com manifestações de greves, sabotagens de
peças que prejudicavam as margens previstas de lucro, absenteísmo alto (faltas ao trabalho) e
baixa produtividade. Nesse contexto, o movimento sindical surgiu e se expandiu, aumentando a
influência dos operários sobre o processo produtivo.
Diferentemente da Idade Medieval, que não questionava as relações de poder em função
dos preceitos religiosos impostos pela igreja católica, essa nova geração de operários, nas décadas
de 1960 e 1970 especialmente, com a guerra do Vietnan e a revolução cultural chinesa,
questionavam as idéias aceitas sobre a superioridade da técnica ocidental e a neutralidade da
ciência:
O fato é que a expansão do “comunismo asiático” e a agitação
dos operários especializados na Europa rapidamente venceram um mito
sobre o qual os mandarins da nossa sociedade tinham assentado poderes e
privilégios: o mito de que a ciência e a técnica são “neutras”; de que não
têm conteúdo ou cunho de classe; de que a divisão do trabalho que elas
estabelecem resulta de “necessidades objetivas” e não de exigências da
acumulação capitalista (Gorz, 2001:10).
Mesmo sob condições de alienação e mecanização do trabalho, o ser humano encontra
formas criativas de interferir e melhorar o dia-a-dia do seu trabalho. Clot (2006) se refere a essa
particularidade como a subjetividade na ação profissional - o trabalhador tende a reorganizar o
seu próprio trabalho; o coletivo de trabalho redefine a tarefa prescrita pela gerência, tornando-a
sua:
O trabalho não é só organizado pelos projetistas, pelas diretrizes e pelo
enquadramento. Ele é reorganizado por aquelas e aqueles que o realizam, e
essa organização coletiva comporta prescrições indispensáveis à feitura do
trabalho real (Clot, 2006:18).
De qualquer forma, foi justamente esse novo modo de processo de produção, com a
massificação das linhas de montagem, que criou e fortaleceu a identidade da classe trabalhadora.
A partir de 1968, o sindicalismo avança, com crescente poder de influência dos
trabalhadores, tanto nos locais de trabalho, quanto na própria sociedade. Desse modo, os
sindicatos, partidos, associações, comissões de fábrica, entre outras inúmeras entidades,
encontraram espaço de manifestação, reivindicação, garantia e manutenção de direitos
trabalhistas adquiridos, principalmente nos países de primeiro mundo, existindo legalmente até
mesmo dentro das próprias empresas. Essas entidades são espaços de produção e reflexão de uma
cultura sócio-ideológica própria da classe de trabalhadores.
Em função da crise financeira mundial, na década de 70, da introdução e difusão da
informática nos países desenvolvidos, da automação e dos novos métodos de organização do
trabalho surgiu uma nova forma de trabalhar e de organizar a produção.
No início o homem criou e se serviu da ferramenta como forma de potencializar a força
do corpo. Em seguida, criou as máquinas que ampliaram milhões de vezes essa capacidade que,
por meio da mecanização, substituíram o esforço físico do homem na execução e realização de
uma atividade. A automação, com o uso da informática, é um passo adiante nessa evolução e
modificação no modo de trabalho.
De acordo com Nascimento e Barbosa (1996), a informática substitui o esforço físico e os
procedimentos “mentais” do ser humano, ao que eles denominam de automação.
A automação substituiu o esforço físico e mental do homem, sendo desnecessária a
interferência de vários trabalhadores na realização de determinadas operações num processo de
trabalho qualquer. Na verdade, basta um trabalhador especializado que programe os comandos de
uma específica máquina para a realização de uma ou mais partes do processo produtivo.
Nesse contexto, o trabalhador, que antes era considerado “não qualificado”, passa a ser
exigido técnicamente para que possa gerenciar um sistema que se torna cada vez mais complexo.
Moraes Neto (2007), em seu artigo “Trabalho no século “XXI”, entende que, por um lado,
esse trabalho torna-se mais gratificante porque utiliza melhor as potencialidades dos indivíduos
no trabalho. Por outro lado, a produção industrial por meio da automação exige um número
menor de trabalhadores, o que, em termos imediatos, significa desemprego ou, pelo menos,
subemprego.
O fenomeno da globalização da economia trouxe maior competitividade para as
organizações com outras de outros países, inclusive. Para garantir competitividade, as empresas
começaram, a partir da década de oitenta, e mais intensificamente nas décadas seguintes, a
terceirizarem as atividades consideradas não-estratégicas ao processo de produção, passando a
outras empresas ou profissionais autônomos essas atividades (Nascimento e Barbosa, 1996).
Surge, então, uma nova forma de organização de trabalho conhecida como toyotismo, pois
surgiu nas fábricas da Toyota do Japão. O princípio dessa organização fundamenta que a
participação intelectual daquele que executa o trabalho é fundamental para garantir melhorias da
produtividade e da qualidade do processo e do produto.
Nessa concepção, o trabalhador deixaria de ser uma simples peça na engrenagem do
sistema de produção para atuar como agente de transformação e melhorias no sistema produtivo.
Assim, “diminui-se” a alienação do trabalhador sobre os processos e produtos. Todos são
“estimulados” a compreenderem o processo produtivo de maneira a pensarem na peça mais
importante desse processo: o cliente. No mercado atual, decisões, diretrizes, mudanças giram em
torno dessa peça fundamental do consumo capitalista (Nascimento e Barbosa, 1996).
Desse modo, no final de década de 1990 e início do século XXI, surge, mais uma vez, um
novo trabalhador com características apropriadas a essa exigência: ele deve desempenhar
múltiplas funções e tarefas; tem que ser polivalente. A responsabilidade sobre a limpeza e a
manutenção dos equipamentos, por exemplo, também passam a ser do operador. Até mesmo
funções fora da especialidade do trabalhador passarão a ser incluídas na exigência e cumprimento
de suas tarefas (Nascimento e Barbosa, 1996).
Clot vai mais além ao deflagrar que, nesse novo modo de pensar o processo produtivo,
caberá ao trabalhador inclusive a conciliação daquilo que foi projetado para o trabalho pela
gerência. O trabalhador de hoje é responsável pelos sucessos e fracassos da empresa:
(...) trata-se de uma mobilização integral da pessoa que é exigida
para que ela se encarregue de conciliar o inconciliável: regularidade,
velocidade, qualidade, segurança. A interiorização psíquica dos conflitos
de critérios associados a objetivos praticamente irrealizáveis conduz a
novas dissociações. E isso em empresas ou serviços que acumulem em
demasiada freqüência os defeitos das burocracias tayloristas tradicionais e
os das organizações comerciais, delegando aos assalariados arbitragens
que no passado eram responsabilidade das hierarquias (Clot, 2006:16).
Há, nesse novo contexto de trabalho, várias características desse comportamento do
mercado de trabalho, especialmente das indústrias. Dentre elas destacam-se a introdução dos
cinco S, técnicas de administração japonesa, que consiste na aplicação dos sensos de utilização,
ordenação, limpeza, conservação e autodisciplina. Há uma maior valorização no trabalho em
equipe, o que modificou o layout dos locais de trabalho, inclusive nas linhas de montagem,
organizados em círculos, núcleos, células ou ilhas de produção, eliminando espaços e salas
individualizadas (Nascimento e Barbosa, 1996).
Outra característica desse modo de gerência é que os níveis hierárquicos e as chefias estão
sendo cada vez mais reduzidos, sendo o próprio grupo de trabalho responsável pelo autocontrole
e autogerenciamento. O trabalhador é avaliado pelo cumprimento de metas estabelecidas,
produtividade e eficiência, pelos clientes e fornecedores, o que determinará uma promoção,
aumento de salário ou participação nos resultados da empresa, aumentando a concorrência dentro
da própria empresa.
As empresas criam programas de redução de custos, aumento de rentabilidade, melhoria
contínua do processo produtivo e do produto (PMC²), com a participação dos funcionários e
premiação para as melhores propostas possíveis de implementação (Nascimento e Barbosa,
1996).
Desse modo, pode-se considerar que há um contínuo aumento das funções e das tarefas
realizadas pelo trabalhador e também um aumento do trabalho intelectual.
O trabalho urbano-industrial e as exigências do novo modelo produtivo, no final o século
XX e início do século XXI, nesse contexto, indicam, portanto, uma tendência em atenuar a
diferença entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais, o que não significa,
necessariamente, menos trabalho ou redução da jornada de trabalho (Moraes Neto, 2007).
O trabalhador é exigido de forma a ter um comportamento de fidelidade, não em relação
ao coletivo e, consequentemente, ao sindicato, mas à empresa. Trata-se de um deslocamento dos
interesses coletivos de um grupo de trabalho, nesse caso, os metalúrgicos, para a individualização
dos interesses (Moraes Neto, 2007).
A introdução da microeletrônica, por meio da robotização, por sua vez, transforma a linha
de montagem em um sistema de máquinas, favorecendo o aprimoramento das condições técnicas
de produção.
Avalia-se que essa característica tende a eliminar os trabalhos considerados
“desumanizadores”, permitindo ao homem dedicar-se a outras atividades as quais não poderão ser
substituídas por máquinas como saúde, educação, lazer, artes, entretenimento, ciência etc.
Diante das considerações feitas, é possível refletir que os postos de trabalho em linhas de
produção tendem a ser eliminados aos poucos até sua máxima redução. O que se pode visualizar
é um número mínimo necessário de operadores, extremamente qualificados, para monitorarem o
trabalho de robôs/ máquinas em linhas de produção.
Na verdade, essa nova cultura do trabalho, junto aos avanços tecnológicos, sinaliza
menores jornadas de trabalho, mas para maiores cargas e funções de tarefas; no entanto não
aponta emprego para todos.
Desse modo, cabe às escolas profissionalizantes repensarem seu papel frente ao
desemprego estrutural e ao perfil que o mercado de trabalho atual impõe à formação de
trabalhadores que estão prestes a atuarem, especificamente, nas linhas de montagem das grandes
indústrias que estão, por sua vez, aceleradamente, reduzindo o número de postos de trabalho e,
conseqüentemente, de trabalhadores.
No próximo tópico, discutirei como se deu a formação das escolas profissionalizantes de
modo a não perder de vista as considerações feitas com relação ao mundo do trabalho até o
momento.
1.2 Fatores que contribuíram para a inserção do mundo do trabalho nas escolas brasileiras
Para compreender adequadamente a escola do contexto desta pesquisa, proponho um
levantamento histórico dos principais fatores que conduziram o mundo do trabalho para as
escolas, formando, assim, as escolas profissionalizantes.
Essa discussão se justifica em função da fundamentação teórica base adotada nesta
pesquisa: uma teoria e/ou análise dialógica do discurso que emerge das obras de Bakhtin e seu
Círculo.
Uma das características dessa teoria é justamente o fato dela própria lançar mão de outros
domínios das Ciências Humanas como, por exemplo, Filologia, Sociologia, História, entre outras,
de maneira a produzir questões que apontem caminhos que, de acordo com Grillo, “não se
esgotam em uma única disciplina acadêmica” (2006:133).
A escola profissionalizante, que se desenvolve num terreno comum da linguagem verbal
humana, tem sua própria particularidade, sua especificidade da produção ideológica e coerções
que a caracteriza.
A partir das considerações acima, busquei compreender como se desenvolveu as escolas
profissionalizantes, num contexto sócio-histórico, de modo a situá-las na atualidade e apontar
possíveis relações com o corpus que se julguem adequadas e necessárias.
Conforme o procedimento adotado por Lima (2004:11) em sua dissertação, o tratamento
dado aqui à questão educação profissional será relacionado à questão trabalho. Pretendo
investigar em que momento e sob quais condições o mundo do trabalho entrou na escola e quais
circunstâncias propiciaram a formação das escolas profissionalizantes.
Para dar conta de minha proposta, inicio a discussão com Nosella (1998:166), que trata de
algumas questões que apontam justamente para a relação escola e mundo do trabalho.
O autor tem como objetivo, em seu artigo, analisar a qualidade do ensino da escola
brasileira do final de século XX, identificando alguns fatos históricos que contribuíram para a
formação das escolas. Embora não seja a qualidade do ensino a minha questão, o texto identifica
aspectos que, de um modo ou de outro, constituem a formação e o desenvolvimento das escolas
profissionalizantes.
Nosella considera que a educação escolar brasileira do século XX passou por três
momentos: (1º) a escola brasileira republicana (1889-1930); (2º) a escola brasileira populista e
corporativa (1880-1990); (3º) a escola brasileira do final de século, tendo como foco nesse
terceiro momento a questão da “difícil recuperação da qualidade” do ensino (1998:166).
Esse modo de divisão dos momentos da educação escolar brasileira do século XX,
proposto pelo autor, visa destacar as principais políticas educacionais do século XX. Uma delas,
em específico, interessa a este trabalho: a política populista de abertura da escola ao mundo do
trabalho.
De acordo com Nosella, a Primeira República, ou o primeiro momento, pretendeu
democratizar o ensino primário, mas o conseguiu parcialmente. Por um lado, universalizou a
idéia de uma rede de ensino primário, público, gratuito e laico, o que, segundo o autor, significa
que o sistema educacional brasileiro foi marcado por uma filosofia educacional católica, opondo-
se “às culturas e linguagens regionais/ nacionais” (1998:167). Por outro lado, esse sistema de
ensino ignorou o mundo do trabalho.
Isso se deve à produção material e à organização social brasileira que se fundamentava
nas formas produtivas extrativistas e arcaicas. Para realização de tal atividade, como avalia
Nosella, precisava-se de “mão-de-obra bruta, desqualificada, braçal, ‘escrava’ ” (1998:168).
Cunha, por sua vez, aponta para a questão de qual “público” se destinava o ensino
profissional. Segundo o autor, no período da Colônia e do Império, o ensino artesanal e
manufatureiro era dirigido “aos miseráveis, aos órfãos, aos abandonados, aos delinqüentes (...)”
(2000a:6). O trabalho artesanal e manufatureiro era, ao menos pressupunha-se, desenvolvido
pelos escravos, o que, a princípio, afastava os homens livres de tais atividades, inclusive como
forma de diferenciá-los, marcando sua distinção da condição escrava.
o havia, portanto, necessidade de inteligência e criatividade para lidar com
mercadorias que já estavam praticamente prontas – pastos, florestas e águas nas abundantes e
férteis terras (Nosella, 1998:168).
Sendo assim, então, Nosella pergunta: “Para que serve uma escola moderna, industrial, se
precisamos de noções e hábitos extrativistas?” (1998:168). A dita escola moderna, industrial,
tinha a premissa de formar o homem cidadão, ou seja, “homem-de-cidade”, de desenvolver
modernas fazendas industrializadas, o que exigia para a escola grandes investimentos. Essa
característica representava “o esforço de transformar o arcaico homem rural à luz de novas e
originais formas produtivas” (Nosella, 1998:168).
Para o autor, o período da Primeira República foi marcado por esse traço dual: a
educação não escolar para aqueles muitos trabalhadores da atividade extrativista, ou seja, da
mão-de-obra braçal, e a educação escolar para poucos, uma minoria, que seriam responsáveis
pela construção de indústrias e serviços urbanos.
Uma sociedade marcada por essa dualidade acabaria por excluir da escola inúmeros
cidadãos. Nosella (1998:171) argumenta que em função de vários aspectos como métodos
pedagógicos, planos de ensino, “os belos prédios” que abrigavam as escolas, ricos conteúdos
escolares, severa avaliação, clientela formada basicamente por filhas de fazendeiros, grandes
negociantes, altos funcionários públicos, é possível perceber que a intenção do Estado não era
“populista”. Portanto, a escola que se pretendia populista, na verdade, passou a excluir dela
amplas camadas populares.
Nosella avalia que a Antiga Escola Normal ignorava o mundo do trabalho braçal e
industrial: “vivia e reproduzia um clima cultural marcado por uma profunda ruptura com o
trabalho, não apenas com trabalho produtivo braçal (que ignorava), mas até mesmo com o
próprio trabalho industrial moderno (...)” (1998:172). Em função da ruptura da escola com o
trabalho reforçou-se a cultura da distinção social.
O segundo momento da educação escolar é identificado pelo autor como “populista”. A
escola que deveria ser para todos era, na verdade, para poucos. Ela tornou-se elitista, já que
acabava por excluir as camadas populares, e refletia a forma conservadora de administração do
governo populista.
Trata-se da áurea ideológica “natural” de uma clássica forma política de se administrar as
crises sociais. Tais crises surgiram da “tensão existente entre o setor tradicional arcaico
extrativista e o setor moderno industrial”. Em função do semi-industrialismo surge uma
consciência coletiva que denuncia as diferenças sociais. Como estratégia política para administrar
esses conflitos governa-se sob a égide do populismo que tem a função de “cicatrizar a ferida
social produzida pela manutenção da enorme desigualdade e tensão entre o ponto máximo e o
ínfimo” (Nosella, 1998:173, grifos meus).
Neste ponto faço uma observação com relação ao termo “tensão” aplicado por Nosella. A
análise dos dados do corpus desta pesquisa indicou como elemento estruturador do texto a tensão
que se estabelece nas próprias imagens que o constitui, entre elas e os elementos verbais, entre os
discursos que se entrecruzam e compõem o corpus – ergonomia, tecnologia e qualidade,
sobrevivência.
O fato de a escola estar localizada dentro da própria empresa mantenedora já aponta para
uma situação de tensão. A escola, que trabalha com conceitos e comportamentos considerados
“ideais” para o mundo do trabalho, entra em confronto imediato com a empresa, mais
especificamente a linha de produção, que, por sua vez, trabalha com situações reais.
O aprendiz vive esse confronto intensamente, pois, no mesmo momento em que é levado
a refletir sobre determinado comportamento ou técnica, e ser exigido dele esse conhecimento,
pode avaliar, imediatamente, na prática, em situações reais, justamente o contrário daquilo que é
considerado pela escola como “ideal”.
O ideal e o real estão, nesse contexto, muito próximos. Esse aspecto faz com que os
aprendizes estejam, no mesmo momento, entre o que e como deve ser feito e o que e como
realmente é feito. Essa característica leva a inevitáveis conflitos e questionamentos sobre as
exigências da formação escolar profissional, com relação aos conhecimentos e comportamentos,
que nem sempre vão ao encontro daquilo que, na prática, é realizado.
Ao que parece, o elemento “tensão” é, arriscaria dizer, histórico-social constitutivo na
formação e desenvolvimento das escolas profissionalizantes.
A partir dos anos 30, de acordo com Nosella, o governo propôs uma política populista de
conciliação entre o tradicional e o moderno, entre “os antigos coronéis e os modernos
empresários, os escravos e os operários” (1998:173). Essa forma de política, ao contrário de
“conciliadora”, se dava de forma tensa, dada a necessidade de modernização do país que
encontrava resistência no setor tradicional arcaico extrativista.
A escola também refletiu essa política populista, procurando conciliar “as pobres escolas
do faz-de-conta e as que adotam modelos pedagógicos arrojados (...), vestibulares altamente
competitivos com outros meramente ilusórios” (1998:173).
Foi, no entanto, esse mesmo “populismo” que criticava o elitismo da escola da Primeira
República, que abriu as portas da escola ao mundo do trabalho:
(...) se o populismo político ensinou às massas trabalhadoras a freqüentar
os espaços públicos, onde se faz política, através de manifestações, de
eleições, de discussões, de sindicatos, de partidos, etc., o populismo
educacional ensinou ao povo o caminho da escola, onde se faz cultura.
(Nosella, 1998:174).
A partir do surgimento das primeiras indústrias, das máquinas e equipamentos que
sofisticavam-se, foi surgindo a necessidade de buscar-se mão-de-obra qualificada. Isso acarretou
a “importação” de operários, o que trouxe dois problemas: primeiro, os operários não formavam
seus substitutos locais, o que, evidentemente, os valorizava; segundo, esses operários estrangeiros
tinham “práticas e idéias consideradas atentatórias à ordem estabelecida, como a paralização da
produção para pressionar os patrões pela melhoria dos salários e das condições de trabalho e até
mesmo a organização sindical.” (Cunha, 2000a:6).
Como estratégia para “livrar-se” desses inconvenientes, adotou-se uma postura ideológica
para valorização do trabalho do elemento nacional, buscando, para tanto, não mais os miseráveis,
órfãos, abandonados e delinqüentes, mas um público diferenciado (Cunha, 2006a:6).
Em função dessa mudança, os trabalhadores passaram a ser submetidos a exames
psicotécnicos, de modo a atender aos requisitos do taylorismo. Segundo Cunha, “a aptidão e a
escolha dos melhores foram dois critérios inseridos na prática e no discurso do ensino
profissional” (2000a:6). No entanto, como já observado por Nosella e também apontado por
Cunha, o emprego de práticas vocacionais na “escola nova” tinha um objetivo mais pedagógico
do que profissional.
Verifica-se, portanto, a manutenção da dualidade escolar por meio da política educacional
do governo populista: ensino secundário, destinado às elites condutoras e os ramos profissionais
do ensino médio, destinado às classes menos favorecidas.
Para Nosella o “populismo” intensificou a dicotomia entre trabalho braçal, em geral
emprego simples ou até subemprego, e trabalho intelectual. O estudo não era considerado
trabalho, era antes um “não-trabalho” (1998:176).
No momento em que o mundo do trabalho entrou na escola, o rigor científico se afastou
dela. Essa escola, analisa o autor, ensinava que podia-se estudar sem muito esforço e que para
conseguir fugir de empregos mal remunerados, braçais, bastava um diploma escolar que não
exigia disciplina, aplicação, estudo, exames (1998:175).
Para atender a aspirações populares de uma melhor formação profissional, técnica e
humanista, foram criados “pacotes escolares noturnos caros (em tempo e dinheiro) e
fraudulentos” (Nosella, 1998:175). No ensino noturno, os alunos passariam a ter uma dupla
jornada de trabalho, a do estudo e a do emprego.
Um dos aspectos que interessa a esta pesquisa no estudo de Nosella é com relação à
referência que o autor faz à dicotomia que se estabelece entre o ensino profissionalizante e o
ensino secundário. Conforme já indicado, é no “populismo” que o mundo do trabalho entra na
escola. No entanto, esses dois mundos não se integram.
Nosella considera que o “idealismo populista, que pensa em criar a escola ‘unitária’, abre
ao trabalhador o longo caminho de uma escola secundária empobrecida, sem lhe proporcionar
meios de percorrer os anos da universidade” (1998:175). Trata-se, para o autor, de um “idealismo
cínico”.
Em busca de uma melhor formação profissional, técnica e humanista, abrem-se várias
escolas noturnas, exames e ensino supletivos de caráter duvidosos e para um público específico:
(...) o populismo educacional democratizou a clientela escolar, mas
deformou o método rebaixando a qualidade; ensinou ao povo o caminho
da escola, porém não lhe deu uma verdadeira escola. Criou pobres cursos
supletivos, cursos noturnos de “faz-de-conta”, faculdades de beira de
estrada, quatro ou até cinco turnos diários, superlotação de salas,
sobrecarga da jornada de trabalho dos professores, má formação
profissional, ridícula remuneração dos docentes, grande confusão na
avaliação dos resultados, redução da hora/ aula, etc., tudo para “cicatrizar”
a dolorosíssima ferida de uma sociedade desigual, que para uns oferece a
escola, para outros “faz de conta” que oferece (Nosella, 1998:179).
Foi, de acordo com Cunha, no período da segunda década da Primeira República que se
iniciou a criação e, posteriormente, a expansão das escolas profissionalizantes (2000b:20).
Em função das mudanças de forma de produção e da necessidade de impulsionar o
processo de industrialização, a formação profissional se desenvolveu, a princípio,
particularmente, no estado de São Paulo porque tinha na época algumas condições consideradas
ideais para isso: (1º) acúmulo de capital que poderia ser transferido para a manufatura e a
indústria; (2º) capacidade dos empresários de acumular capital; (3º) existência de consumidores
(burgueses, camadas médias e assalariados) para os produtos manufaturados; (4º) existência de
um número de trabalhadores, principalmente imigrantes e descendentes, que se dispunham a
deixar a agricultura para se ocuparem da manufatura e da indústria como operários; (5º)
disponibilidade de energia elétrica para que as empresas pudessem fazer as máquinas trabalhar
(Cunha, 2000b:115).
Naquele momento, as estradas de ferro, que surgiram em função dos negócios do café,
eram de suma importância para o desenvolvimento da indústria paulista, já que a mão-de-obra
das primeiras fábricas da cidade se formou segundo os padrões fabris da mão-de-obra da
construção das estradas de ferro (Cunha, 2000b:8, 9).
A primeira escola de formação profissional foi a Escola Prática de Aprendizes das
Oficinas, fundada em 1906, no estado do Rio de Janeiro, e era patrocinada pela Estrada de Ferro
Central do Brasil (Cunha, 2000b:115, 116).
A escola era patrocinada por empresas ferroviárias e empregava operários na manutenção
de equipamentos, veículos e instalações ferroviárias, associando, conforme observa Cunha,
oficina e escola (2000b:115).
Em 1924 foi criada a Escola Profissional Mecânica no Liceu de Artes e Ofícios de São
Paulo. Um acordo entre o Liceu e, então, patrocinadores como a Estrada de Ferro Sorocabana, a
São Paulo Railway, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a Companhia Mogiana de
Estradas de Ferro e o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio propiciou o surgimento
dessa escola (Cunha, 2000b:131).
Os alunos desenvolviam atividades no Liceu e estágios práticos nas oficinas da empresa
São Paulo Railway que tinham o objetivo, conforme Cunha, de fazer com que os aprendizes se
aproximassem da realidade ferroviária (2000b:132).
Nos meados da década de 1930, as escolas profissionais, instaladas no Brasil por padres
salesianos, entravam em decadência. Cunha observa que embora a clientela fosse o proletariado,
os padres salesianos acabaram atendendo jovens de famílias abastadas e das camadas médias,
com o objetivo de financiar as escolas profissionais (2000a:7).
Mas, por fim, em função do aumento da demanda para as escolas secundárias, a
concorrência das promoções estatais, ou seja, as escolas profissionais públicas e os centros de
formação profissional do Senai, as escolas profissionais instaladas pelos salesianos não resistiram
e fecharam suas portas.
Cunha enfatiza que, mesmo com iniciativas privadas, as escolas profissionais foram
consolidadas e difundidas pelo patrocínio estatal, como por exemplo, o Liceu de Artes e Ofício
de São Paulo. Para o autor, essa escola foi a “mais forte influência para a irradiação das práticas
da Escola Profissional Mecânica, em especial pela metodologia do ensino” que substituiu o
método tradicional de ensino de ofícios pela aprendizagem metódica, incorporando novas
práticas pedagógicas e psicotécnicas (2000a:8).
O Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (CFESP), que incorporou tais
práticas, foi criado em 1934 pelo Governo Paulista e aproximou as ferrovias das escolas
profissionais da rede estadual. Essas escolas recebiam aprendizes enviados por empresas que
também financiavam o empreendimento.
Assim, de acordo com Cunha, empresas privadas, empresas estatais e instituições
escolares públicas colaboravam, pela primeira vez, com o ensino profissional. O Senai, inclusive,
criado oito anos após, surgiu com essa característica: a colaboração no custeio do
empreendimento de vários setores (2000a:8).
O ano de 1942 ficou marcado na história do ensino de ofícios por dois acontecimentos: o
aparecimento do SENAI e a Lei Orgânica do Ensino Industrial.
O engenheiro Roberto Mange, idealizador do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção
Profissional de São Paulo (CFESP), foi nomeado Diretor Regional do SENAI, o que justifica a
forte influência que o SENAI sofreu do CFESP com relação à organização, métodos pedagógicos
e, inclusive, funcionários.
Para orientar as espécies de cursos oferecidos pelo SENAI e a formação de mão-de-obra,
a escola procurou conhecer as necessidades da indústria paulista. Assim, em 1946, as indústrias
que mais empregavam eram a dos tecidos, seguida a de mecânica, material elétrico, construção
civil e confecção de mobiliário (Fonseca, 1986:148).
O Senai, no período denominado por Cunha democrático-populista, expandiu e
consolidou sua rede, atingindo seu ápice nos primeiros dez anos do regime militar,
transformando-se em “instituição hegemônica no âmbito do ensino industrial” (2000:9).
São Paulo progredia em ritmo acelerado e os estabelecimentos fabris iam suprindo o país
de tudo o que era necessário ao progresso moderno. Na mesma medida, as escolas industriais e
técnicas acompanhavam o crescimento, fornecendo às fábricas, usinas e oficinas mão-de-obra
qualificada indispensável ao prosseguimento daquele que foi o “rush” industrial (Fonseca, 1986:
174).
O cenário econômico, tecnológico e político mudou, desde então, e se transforma cada
vez mais rápido. A conquista e manutenção, pelas empresas, de uma posição vantajosa no
mercado, exigem grande capacidade de adaptação e de aprendizado. Valle, Carneiro & Coelho
Júnior (2003:17) destacam as exigências crescentes de produtividade e competitividade e o
desenvolvimento e difusão crescente e novas tecnologias como os principais aspectos que
modificaram as expectativas de desempenho no trabalho.
Porém, avaliam os autores, as instituições de formação profissional mudam num ritmo
mais lento. Segundo eles, a reestruturação produtiva afasta as empresas dos “modelos
administrativos clássicos e ‘flexibiliza’ as relações trabalhistas” (2003:17). Até na Alemanha,
cujo famoso sistema dual (horas de aprendizagem divididas entre escola e empresa) sempre foi
considerado como referência internacional para o ensino profissional, apresenta “fortes” sinais de
corrosão nas antigas estruturas de formação e de descrição dos cargos.
O capital mudou de interesses, buscando no trabalhador muito mais certas disposições e
virtudes como interesse, motivação e criatividade do que conhecimento técnico. Há certa
tendência do mercado em avaliar negativamente a formação profissional tradicional por acreditar
que ela se concentrou mais em “saberes técnicos” e pouco “trabalhou os ‘recursos’ mobilizáveis
pelo trabalhador para ‘resolver problemas’ ” (Valle, Carneiro & Coelho Júnior 2003:19).
Em função da tecnologia atual exigir um novo perfil profissional, as escolas
profissionalizantes adaptam seus currículos, buscando formar para esse mercado um profissional
com habilidade para lidar com a cultura da gestão do trabalho. Nesse sentido, “produzir significa
agora gerir o produto e as inter-relações entre as pessoas” (Valle, Carneiro & Coelho Júnior
2003:22).
As escolas profissionalizantes surgiram, se desenvolveram e se adaptaram (e se adaptam),
portanto, em função de uma série de fatores e interesses econômicos, políticos e sociais.
Nesse contexto, cabe levantar as principais características do Centro de Formação
Profissional, escola deste contexto de pesquisa, desde seu surgimento dentro da própria empresa
mantenedora.
1.3 Histórico da formação do Centro de Formação Profissional
A empresa em que a escola está inserida promove, desde 1960, a aprendizagem
profissionalizante industrial com cursos de ferramenteiros para menores e funileiros, formando
cerca de 300 alunos por ano
1
. Esses cursos eram ministrados com a participação do SENAI, que
entrava com recursos que iam do material didático aos professores. A escola localizava-se na Ala
4 da fábrica, a área de produção da Armação.
Durante a década de 1960 foram desenvolvidos também cursos para adultos, o programa
de incentivo à formação dos funcionários, como o de alfabetização até o segundo grau (atual
ensino médio) – o supletivo. Os horários das aulas eram adaptados aos horários de revezamento
dos funcionários que trabalhavam em turnos.
Em 1973, a partir de um convênio assinado dois anos antes com uma instituição que
promove cursos profissionalizantes, foi instalado na empresa o Centro de Formação Profissional
(daqui em diante C.F.P.), numa área de 13.500 m2, na Ala 7, isolado da linha de produção.
O ambiente dispunha de quarenta salas de aulas e seis salas ambiente (Desenho, Ciências
Gerais, Laboratório Físico Metalográfico), além de Biblioteca própria. Havia também
almoxarifes, salas de cortes e salas de Medidas equipadas para aulas teóricas e práticas de
Metrologia, Forjaria, Têmpera e Solda, Eletricidade, Hidráulica e Pneumática.
Até a década de 1980 o C.F.P. dispunha de 270 máquinas entre tornos, plainas, esmeris,
retificadoras, fresadoras e prensas.
O ambiente era composto de vestiários, banheiros e a área externa, com quadra destinada
às aulas de Educação Física.
Além das aulas teóricas e práticas, os aprendizes desenvolviam atividades artísticas,
trabalhos científicos e competições esportivas.
O ingresso no C.F.P. dependia de um exame de admissão, com provas de conhecimentos
gerais, testes para avaliar aptidões e habilidades, testes psicológicos e entrevistas. Os candidatos
tinham de ser filhos ou irmãos de funcionários.
Ao serem aprovados, os aprendizes participavam, durante a primeira semana de aula, de
palestras com o objetivo de promover a integração na Empresa/ Escola. Uma vez matriculado, o
1
As informações sobre o histórico da formação da escola foram obtidas na Revista interna dos funcionários –
FAMÍLIA, produzida pela própria empresa (Ano XX, novembro/ dezembro – 1981, nº 196) e revista NOTÍCIAS
FIESP/ CIESP (Ano 4, nº 78, 18 fevereiro 2002).
aprendiz passava a ser funcionário da empresa, com registro em carteira e todos os benefícios do
empregado.
O curso compreendia a duração de três anos. O primeiro semestre do curso era básico e
somente no segundo ano o aprendiz escolhia sua especialidade de acordo com as aptidões
manifestadas: Ferramenteiro, Afiador de Ferramentas, Fresador, Torneiro, Serralheiro e
Mecânico de Autos. No 5º semestre, o aprendiz começava o estágio nos diversos setores da
fábrica, compatíveis com a sua profissão em aprendizagem.
Em 1982, o C.F.P. desenvolveu uma nova modalidade no Curso de Aprendizagem que
consistia de duas etapas distintas: a primeira de formação profissional, com duração de três
semestres e a segunda, de especialização, com um ou dois semestres de duração, reduzindo,
portanto, o tempo de formação.
Entre 1973 e 2000, o convênio entre a instituição que promove cursos profissionalizantes
e empresa formou, no C.F.P., cerca de 5.500 mecânicos, sendo que a maioria deles foram
imediatamente contratados pela fábrica.
Desde 2002, a aprendizagem industrial é composta pelo Curso de Aprendizagem
Industrial, com a formação em Mecânico Industrial, com 1.500 horas de duração (dois semestres)
e pelo curso de Educação Profissional Técnica, com a formação de Técnico Mecânico – Operador
de Sistemas Integrados de Manufatura, com 1.500 horas (dois semestres). O aprendiz tem maior
carga horária nas aulas de oficinas, ou seja, na parte prática. Todas as aulas teóricas têm duração
de 45 minutos.
Por volta de 1999, a empresa iniciou a construção de uma das linhas de produção mais
modernas do grupo, já que se tratava de novas tecnologias, para passar a fabricar, a partir de
2002, um novo modelo de automóvel.
Assim, para atender às demandas profissionais da empresa que necessitava de operadores
qualificados para o trabalho e acompanhamento das tecnologias que a nova linha de produção
exigia, o C.F.P. reestruturou sua grade curricular para adequá-la a esse novo perfil, otimizando a
carga horária disponível e incorporando novas disciplinas.
Com esse objetivo, planejaram-se as mudanças necessárias na diretriz de aprendizagem
industrial, adequando-as ao novo perfil de entrada, e as alterações no plano do curso, além dos
trâmites dentro da própria instituição que promove cursos profissionalizantes e do Ministério da
Educação.
Para tanto, foi preciso equipar a escola com laboratórios de Robótica, Softwares
Avançados, CAD/ CAM
2
, atualizar o de Eletrônica e implantar um sistema dual de ensino de
modo que os aprendizes, além das aulas teóricas, fossem integrados também às áreas de produção
da fábrica, adquirindo experiência prática imediata.
Desse modo, os aprendizes passaram a pesquisar as áreas da Manufatura e a realizar
estágios nas próprias áreas, por meio período, ainda durante a realização do curso.
Além da exigência técnica, era preciso uma mudança comportamental desse operador,
pois o novo ambiente tecnológico “mais sofisticado” demandaria profissionais com habilidades
para atuar em equipe de trabalho versátil e multicapacitada, com condições de responder às
constantes e rápidas inovações tecnológicas e organizacionais.
Desse modo, a escola buscou dar foco para o trabalho com as habilidades
comportamentais, procurando formar um aprendiz, futuro operador, autônomo, com capacidade
para planejar, coordenar, pesquisar e ser, principalmente, capaz de trabalhar em equipe.
Trata-se de adequar a educação e formação profissional a um mercado de trabalho que
exige o desenvolvimento de habilidades no plano do conhecimento, das atitudes e dos valores,
produzindo competências para gestão da qualidade, para a produtividade, competitividade e
empregabilidade.
A escola busca, portanto, atender às necessidades da empresa que, por sua vez, se adequa
às exigências do mercado, modificando e adequando seu currículo de acordo com a demanda.
Os relatórios de pesquisa, que constituem o corpus, realizados pelos aprendizes da escola,
são fruto da adequação do currículo da escola às novas tendências do mercado profissional,
especificamente da empresa em que o C.F.P. está inserido.
Os conflitos que surgem do confronto entre escola e empresa resultam dessa nova
configuração no processo de aprendizagem que se apóia no ensino dual como forma de
“diminuir” as distâncias entre escola e o mundo do trabalho.
Os aprendizes, ao transitarem pela escola e linha de produção, nesse ir e vir constante,
vivenciam, com grande intensidade, as contradições do mundo do trabalho antes mesmo de o
ingressarem como profissionais.
2
Desenho Assistido por Computador/ Manufatura Assistida por Computador
1.4 Algumas considerações
É possível observar, historicamente, desde o surgimento da escravidão na Antiguidade
Clássica, uma tendência em separar o trabalho intelectual do manual.
A entrada do sistema capitalista acentuou essa separação, transformando o trabalho
criador numa profunda fonte de alienação, mercadoria e força de trabalho.
As próprias escolas, e a deste contexto de pesquisa não é diferente, tendem a separar o
ensino teórico do prático, elegendo, por vezes, consciente ou inconscientemente, a teoria como
“senhora” da prática, desvalorizando, de certo modo, o trabalho técnico.
A escola, especificamente deste contexto de pesquisa, implementa o ensino dual na
tentativa de diminuir as distâncias entre teoria e prática, proporcionando aos aprendizes a
possibilidade de uma “vivência” prática. No entanto, ao que tudo indica, conforme a pesquisa de
opinião realizada pela escola (vide páginas 17, 18, 19 e 20), o encurtamento dessa distância se dá,
ainda, somente no plano físico.
Entre o ensino profissional, conceitos e competências ideais que os aprendizes devem
conhecer e desenvolver, e a empresa, mundo “real” do trabalho, continua havendo grandes
distâncias que só contribuem para justificar a divisão que ainda se dá entre trabalho manual e
trabalho intelectual, apesar da tendência do modelo de produção toyotista, do final do século XX,
que conta com a participação intelectual do trabalhador no processo produtivo.
Conforme discutido até o momento, observa-se que o caráter do trabalho parece estar
mudando: de predominantemente manual para intelectual; de produtivo (setor primário e
secundário industrial) para improdutivo (serviços). É possível, mesmo, visualizar o trabalhador
com mais tempo livre, o que não significa, ainda, qualidade de vida em função dessa
característica.
Os postos de trabalho nas fábricas estão acentuadamente diminuindo, principalmente em
função da crescente tecnologia que, por sua vez, exige um número mínimo de trabalhadores,
porém, muito mais qualificados.
O que se vivência é uma realidade de desemprego estrutural, trabalho supérfluo, e, na
mesma medida, crescimento e incorporação da tecnologia, aumento de produtividade,
crescimento econômico sem aumento do nível de emprego.
Nesse contexto, as escolas profissionalizantes, especificamente, tratam do mundo do
trabalho ainda de forma muito distante. Há, no meu entender, ainda, nesse tênue limite entre
escola e trabalho, formação profissional e realidade de desemprego estrutural ou emprego
precário, uma relação de forte tensão que, longe de se resolver, tende a acentuar o
desenvolvimento de uma sociedade cada vez mais desigual.
2 METODOLOGIA
2.1 Descrição do contexto de pesquisa
Para melhor compreender o objeto de pesquisa, ou seja, os relatórios produzidos pelos
aprendizes, é necessário apresentar, antes, os vários contextos em que ele está inserido.
Num primeiro momento, descrevo a escola, o Centro de Formação Profissional, buscando
indicar como ela se organiza. Em seguida, apresento a proposta pedagógica da escola, de modo a
compreender os objetivos do Centro de Formação Profissional, centrados nas necessidades da
fábrica que a mantém.
É importante, também, descrever o curso Técnico Mecânico – Operador de Sistemas
Integrados de Manufatura, pois suas características justificam a vivência dos aprendizes nos
postos de trabalho da linha de produção.
Apresento as disciplinas envolvidas no trabalho de pesquisa dos aprendizes, descrevendo
as ementas e as aulas destinadas a esse trabalho, bem como o desenvolvimento das tarefas e os
procedimentos de execução.
Para finalizar a descrição do contexto de pesquisa, apresento a empresa, mais
especificamente a área de Manufatura, de maneira a identificar como se dá a divisão das linhas de
montagem.
Os tópicos seguintes são reservados à indicação do estabelecimento do corpus, dos
objetivos de pesquisa e dos procedimentos de análise dos dados.
2.1.1 O Centro de Formação Profissional
O Centro de Formação Profissional, de acordo com o documento Plano Escolar, teve
início em 10 de janeiro de 1973, é assistido pelo Departamento Regional da instituição que
promove cursos profissionalizantes em São Paulo e sua mantenedora é a empresa. Está localizado
dentro da própria empresa automobilística que a mantém, na cidade de São Paulo.
A instituição oferece, em média, 30 vagas semestrais a filhos ou irmãos de funcionários.
Os aprendizes são selecionados por meio de uma classificação, resultante do processo seletivo
que compreende provas de raciocínio verbal, mecânico, espacial e numérico, além de provas de
português e matemática e, por fim, avaliação médica do trabalho.
Como requisito fundamental para o ingresso, os alunos devem freqüentar,
concomitantemente, no período noturno, a 1ª série do ensino médio, se o mês de ingresso for o de
julho, ou matriculado na 2ª série do ensino médio, se o ingresso for em janeiro. Em caso de
reprovação, tanto no ensino médio, quanto na escola técnico-profissional, o aprendiz é desligado
(demitido) da escola e, conseqüentemente, da empresa.
Os estudantes passam o período integral na escola, das 8h às 17h, de segunda a sexta-
feira, e são contratados pela empresa como APRENDIZES, em regime CLT, portanto são
assalariados. Ao término do curso são, na sua maioria, contratados pela empresa, em geral como
funcionários operadores, para a área da Manufatura, automaticamente (até 2005).
O número de alunos ingressantes é definido pela empresa a cada semestre, o que tem
girado em torno de 30 alunos. Em geral o número total de aprendizes é de 120, sendo que, em
média, 30 desses são do sexo feminino. A idade dos jovens varia de 15 anos e 6 meses a 16 anos
incompletos, ao iniciarem o curso, e 18 anos no momento de conclusão.
A duração do curso é de dois anos, dividido em duas fases: no primeiro ano, formação em
Mecânico Industrial (Educação Profissional Básica); no segundo ano, em Técnico Mecânico –
Operador de Sistemas Integrados em Manufatura (Educação Profissional Técnica).
No curso Básico, o aprendiz passa meio período em aulas teóricas e meio período em
aulas práticas de oficina, dentro da escola.
No curso Técnico, o aprendiz passa meio período das aulas em atividades teóricas, na
escola, e meio período das aulas em atividades de pesquisa e práticas, dentro da empresa, nas
áreas de Manufatura, o Ensino Dual.
2.1.2 A proposta pedagógica do C.F.P.
O Plano Escolar foi revisto e modificado em 2002 pela equipe escolar – corpo docente,
coordenação e direção – e passou a vigorar em 2003.
De acordo com o descrito no Plano Escolar, a escola tem como objetivo global, “formar o
homem para o exercício pleno de sua cidadania e o profissional comprometido com as
necessidades de produtividade e qualidade da empresa”.
Para o cumprimento do objetivo global, a escola, conforme descrito no documento, tem
suas ações orientadas para os objetivos específicos transcritos abaixo:
a) “proporcionar ao aluno a adaptação e o desempenho técnico-comportamental eficaz no
trabalho, nas áreas da manufatura.”
b) “contribuir para que o aluno possa interagir com a comunidade fabril, interferindo e
transformando a própria realidade.”
c) “incorporar e aplicar conceitos de preservação do meio ambiente, através da redução de
resíduos, bem como a emissão de poluentes.”
d) “desenvolver e aplicar conceitos de sustentabilidade, combatendo desperdícios e
melhorando a qualidade de vida.”
e) “promover o respeito e a tolerância às etnias culturais e sociais.
f) “incorporar no cotidiano do aluno ações que promovam a arrumação, a organização, a
limpeza, a saúde e a segurança no posto de trabalho.”
g) “aplicar em todas as atividades técnicas de organização e execução do trabalho,
comunicação interpessoal, autonomia, responsabilidade, auto-desenvolvimento e
resistência à pressão.”
h) “desenvolver no aluno o senso estético e identificar suas aptidões, agregando valores à
comunidade e à sociedade.”
i) “facilitar as relações entre a escola, a comunidade, os pais, através de ações educativas
que conduzam à realização de atividades formativas e informativas.”
j) “influenciar os órgãos gestores nas políticas de relacionamento entre a educação
profissional e o emprego.”
k) “mediar a construção do conhecimento pelos docentes e discentes, através dos recursos
tecnológicos da [fábrica] e do aprimoramento técnico-profissional.”
l) “promover a interdependência entre as disciplinas e as áreas de trabalho, proporcionando
formação abrangente e flexível.
m) “identificar situações-problema, na empresa, para que sejam utilizadas como estudos de
casos e possam contribuir como contexto para a aprendizagem de posturas e melhorias
contínuas.”
n) “desenvolver as qualidades pessoais através de projetos estimuladores da criatividade dos
alunos, professores e equipe escolar.”
o) “utilizar recursos tecnológicos da [fábrica] para o desenvolvimento de conceitos, para o
aprimoramento técnico-profissional e para a atitude no posto de trabalho, necessários para
a atuação do aluno em diferentes situações na comunidade.”
p) “proporcionar condições para a aquisição de pré-requisitos técnico-comportamentais para
que o aluno possa atuar em processos de manufatura.”
A Meta proposta em seu Plano Escolar consiste em efetivar, na empresa, 100% dos seus
alunos formados.
Para a verificação das dimensões técnica e comportamental é utilizada principalmente a
avaliação 360º, que consiste na auto-avaliação, na avaliação da equipe (aprendizes quando em
trabalho em equipe), avaliação do professor da disciplina e outras pessoas envolvidas que tiveram
contato com os aprendizes durante o processo de execução da atividade ou projeto (por exemplo,
um monitor, líder de célula ou supervisor nas áreas de manufatura).
Os critérios para a avaliação 360º são as qualificações-chave descritas no projeto PETRA
3
utilizado pela escola.
Além das aulas previstas no componente curricular, a escola promove atividades
complementares e concomitantes ao Processo Educativo, tais como: Cultura e Movimento,
Ginástica de Compensação de Posturas, Oficina de Teatro, Programa Espaço Cultural,
Campanha Beneficente, Programa de Prevenção à Saúde, Datas Cívicas e Comemorativas,
Prática de “Housekeeping” e Programa “Sponsor” na manufatura da fábrica.
2.1.3 O curso Técnico Mecânico – Operador de Sistemas Integrados de Manufatura
O curso profissionalizante compreende dois momentos – o Básico, Aprendizagem
Industrial – Mecânico Industrial, com duração de dois termos ou semestres, com 1500 horas (750
3
Projeto de Educação e Transferência
horas em cada termo) e o Técnico Mecânico – Operador de Sistemas Integrados de Manufatura
com duração de dois termos ou semestres, com 1500 horas (750 horas em cada termo).
O curso Básico apresenta como base complementar as disciplinas de Matemática
Aplicada, Ciências Aplicadas, Educação Física, Inglês Técnico, Técnicas de Redação e Oficina
de Teatro; como base tecnológica as disciplinas de Higiene e Segurança no Trabalho, Desenho
Técnico, Metrologia, Eletricidade Básica, Prática de Oficina (ajustagem, soldagem e tratamento
térmico, mecânica de manutenção, torneamento, fresamento e retífica), Materiais de Construção
Mecânica, Eletrônica Básica, Hidráulica e Pneumática.
As disciplinas que constituem o curso Técnico são as seguintes: Técnicas de Redação em
Língua Portuguesa, Desenho Assistido por computador, Tecnologia dos Materiais, Organização
Industrial, Relações Humanas, Mecânica Aplicada, Eletroeletrônica, Hidráulica e Pneumática,
Resistência dos Materiais, Robótica, Processos de Manufatura, Ginástica de Compensação de
Posturas, Projetos de Sistemas de Manufatura, Processos a Comando Numérico
Computadorizado, Manufatura assistida por Computador, Sistemas de Produção, Ensaios
Mecânicos, Administração da Manutenção, Gestão pela Qualidade, Logística e Inglês Técnico.
Segue abaixo o perfil de conclusão do profissional Mecânico Industrial e Técnico
Mecânico – Operador de Sistemas Integrados de Manufatura que a instituição pretende formar,
tal qual é explicitado no Plano Escolar (2006) do Centro de Formação Profissional:
9 Mecânico Industrial:
1) “Monta conjuntos, usina peças metálicas e faz manutenção no processo de manufatura da
indústria automobilística, atuando em grupo ou individualmente, empregando máquina-
ferramenta, equipamentos, instrumentos e ferramentas, fazendo o controle de qualidade
dos produtos e processos e obedecendo as especificações, padrões, desenhos técnicos e
procedimentos industriais, de acordo com normas técnicas, de saúde, segurança,
qualidade e ambientais”.
2) “Torneia, fresa e retifica peças, conferindo-lhes forma, dimensão e grau de acabamento de
superfícies estabelecidos em projetos e, quando necessário, faz ajustagem de peças e de
conjuntos mecânicos em campo e em bancada”.
3) “Estabelece, de acordo com o componente veicular a ser executado, a seqüência de
usinagem, seleciona equipamentos e ferramentas de corte, controla o abastecimento da
máquina e interfere no processo, aplicando técnicas e métodos de trabalho, tendo em vista
o máximo rendimento da máquina”.
4) “Faz o controle das dimensões, da forma, da posição e do grau de acabamento de peças,
empregando instrumentos de medição direta e indireta, aparelhos ópticos, mecânicos e
eletromecânicos de medição, bem como o rugosímetro e comparando a qualidade do
produto com as normas técnicas”.
5) “Interpreta desenhos técnicos de peças e de conjuntos mecânicos e pode elaborar,
também, projeções ortográficas básicas”.
6) “Monta conjuntos mecânicos utilizando dispositivos e equipamentos automáticos e
manuais, conforme procedimentos de montagem e normas de qualidade”.
7) “Realiza manutenção produtiva total de máquinas operatrizes, executando tarefas de
conservação, fazendo levantamento das condições de funcionamento com auxílio de
instrumentos e equipamentos, realizando a lubrificação de acordo com especificações
técnicas, procedimentos industriais e normas ambientais e procedendo, quando
necessário, a ajustes e substituições de peças”.
8) “Atua em grupos de melhoria, visando a otimizar a organização do posto de trabalho, bem
como o processo produtivo total, e comunicando-se com competência”.
9) “Adota normas de segurança gerais e específicas no desempenho de suas funções, zelando
pela conservação e limpeza de ferramentas, equipamentos e local de trabalho”.
9 Técnico em Mecânica –Sistemas Integrados de Manufatura
1) “Planeja, coordena, orienta, controla e realiza ações relativas aos processos de usinagem,
montagem, instalação e manutenção produtiva total de sistemas mecânicos integrados a
eletroeletrônicos, eletrohidráulicos e eletropneumáticos, destinados à fabricação de
veículos sobre pneus, em linhas de produção de indústrias automobilísticas, atuando em
grupo ou individualmente, empregando conhecimentos tecnológicos, técnicas de controle
e desempenho, executando e fazendo executar métodos de trabalho em cumprimento a
planos de produção, seguindo normas técnicas, ambientais e de segurança, procedimentos
industriais e metas da empresa, podendo, ainda, operar máquinas-ferramenta
convencionais e programáveis e sistema robotizado”;
2) “Programa, prepara e opera máquinas de usinagem convencionais, automatizadas e de
comando numérico computadorizado, recursos robotizados e sistemas flexíveis de
manufatura, em linhas de produção ou células de fabricação, estabelecendo a seqüência de
usinagem, selecionando equipamentos e ferramentas de corte, de acordo com o produto a
ser executado, aplicando rotinas da manutenção produtiva total, seguindo princípios de
segurança no trabalho, tendo em vista o máximo rendimento da máquina”;
3)
“Programa e controla a produção, administrando materiais e integrando ações do sistema
da qualidade e do programa de manutenção produtiva total ao processo produtivo,
desempenhando funções básicas da logística industrial”;
4)
“Controla a qualidade de peças e conjuntos executados, empregando instrumentos e
aparelhos de medição e interpretando resultados de ensaios mecânicos, de acordo com
normas e padrões estabelecidos e controlando estatisticamente o processo”;
5)
“Controla o desempenho da produção e das ações de manutenção produtiva total,
utilizando indicadores previamente estabelecidos, segundo o método de gerenciamento
visual, tomando decisões de aplicação imediata e elaborando relatórios que subsidiam
tomadas de decisão em nível superior”;
6)
“Define e interpreta leiautes, analisando o fluxo produtivo e promovendo o
balanceamento de linha, a padronização de trabalho e dos processos de qualidade,
introduzindo novas tecnologias, adotando técnicas de aumento da produtividade, de
melhoria contínua e elaborando procedimentos de produção, testes e inspeção ao realizar
estudos sobre organização e simplificação do trabalho, empregando recursos de
informática aplicados a indústria”;
7)
“Interpreta desenhos técnicos de peças e de conjuntos mecânicos, podendo elaborá-los
com o auxílio de computador”;
8)
“Elabora projeto de melhoria dos processos de produção veicular, de manutenção ou de
instalação, bem como leiautes e diagramas conforme normas vigentes, propondo a
incorporação de novas tecnologias, tendo em vista a relação custo-benefício por meio da
elaboração de planilhas de custos”;
9)
“Orienta a execução de tarefas de produção e manutenção, de acordo com tempos e
métodos de trabalho, solucionando problemas e assegurando os padrões técnicos
estabelecidos”;
10) “Colabora na implantação e operacionalização de sistemas e processos padronizados da
qualidade, seguindo procedimentos, aplicando ferramentas da qualidade e auxiliando na
capacitação de profissionais”;
11)
“Aplica conhecimentos de elementos de conversão, transformação, transporte e
distribuição de energia, em trabalhos de instalação e manutenção, seguindo normas e
procedimentos de gestão ambiental”.
2.1.4 As disciplinas envolvidas no contexto de pesquisa
O programa prevê 80 aulas da disciplina de Técnicas de Redação em Língua Portuguesa
no curso Básico (40 no 1º semestre e 40 no 2º semestre), sendo ministradas duas aulas de 45 min.
por semana. No curso Técnico são previstas 40 aulas (no 1º semestre) de Técnicas de Redação
em Língua Portuguesa, sendo ministradas duas aulas de 45 min. por semana.
De acordo com o Plano Escolar, a ementa consta dos seguintes conteúdos para as aulas
do curso Básico: técnicas de intelecção de texto; parágrafo; descrição: objeto, processo,
ambiente; dissertação; relatório: estrutura, tipos de relatório; estruturas padrão de redação técnica;
correspondência comercial: memorando, fax, relatório, correio eletrônico (e-mail); comunicação
escrita e oral; metodologia de pesquisa bibliográfica; apresentação áudio-visual: fundamentos e
técnicas de elaboração de material para seminários e trabalhos acadêmicos, cuidados na
apresentação (postura, expressão verbal e corporal).
Para as aulas do curso Técnico os conteúdos são os seguintes: comunicação e funções da
linguagem; níveis de fala, seqüência de idéias; coerência; coesão; concisão; parágrafos;
argumentação e dissertação; descrição de objeto e processo; resumo; relatórios; memorandos e
ordens de serviço; elaboração de currículos; planejamento e apresentação de seminários e
palestras; normas ABNT – aplicação e adequação a relatórios.
A Oficina de Teatro tem, em média, 25 aulas por semestre, sendo uma aula por semana de
60 min. A sua realização se dá apenas na Aprendizagem (1º e 2º semestres), mas todo o
desenvolvimento das propostas das aulas refletirá nos projetos desenvolvidos no decorrer do
curso, tanto na Aprendizagem quanto no Técnico. A ementa consta dos seguintes conteúdos: a
arte e as diferenciadas formas de manifestações artísticas; arte como linguagem; elementos
constitutivos do teatro; linguagem teatral; interpretação; encenação; dramaturgia; improvisação;
jogos teatrais; performance; criação e construção dos personagens.
As aulas de Ginástica de Compensação de Posturas ou Ergonomia nos postos de trabalho
são realizadas apenas no curso Técnico e são previstas 40 aulas no 1º semestre. A ementa consta
dos seguintes conteúdos: ergonomia; riscos ergonômicos; preparação física e emocional;
exercícios de resistência (muscular e orgânica); exercícios de flexibilidade, alongamento,
relaxamento; ginástica de compensação de posturas.
Outras aulas como de Educação Física e Higiene e Segurança no Trabalho também
participam como apoiadoras no desenvolvimento do trabalho. A primeira prevê 80 aulas e a
segunda 40 aulas, ambas no curso Básico e seus conteúdos são respectivamente:
condicionamento físico, ginástica de compensação para postura física, higiene ambiental,
segurança em Educação Física, nutrição, ginástica laboral e ergonomia aplicada; ato inseguro e
condição insegura; prevenção de acidentes e doenças do trabalho; riscos ocupacionais;
equipamentos de proteção individual; primeiros socorros e housekeeping.
As disciplinas de Técnicas de Redação em Língua Portuguesa e Oficina de Teatro são
ministradas por mim e as aulas Ginástica de Compensação de Posturas ou Ergonomia nos postos
de trabalho, Educação Física e Higiene e Segurança no Trabalho são ministradas pelo professor
de Educação Física, profissional especializado em Ergonomia.
2.1.5 As aulas: tarefas e procedimentos de execução
Desde 2003, o professor de Educação Física, especialista em Ergonomia, vem realizando
na escola junto aos aprendizes do curso Técnico o projeto de pesquisa que propõe uma
investigação em torno de questões ergonômicas nos postos de trabalho da montadora
automobilística.
Para a execução e registro do projeto, o professor procurou-me de modo a juntos
realizarmos uma parceria no projeto. Assim, a partir de 2004, estruturei meu plano de aula na
disciplina de Técnicas de Redação em Língua Portuguesa de modo a trabalhar com os aprendizes
a entrevista como método de pesquisa, o planejamento do projeto de pesquisa, desenvolvimento e
confecção de relatório e a utilização e aplicação das normas e padrões ABNT para a confecção
dos relatórios.
Os conteúdos passaram a ser desenvolvidos e trabalhados por mim ainda no curso Básico
(1º semestre de 2004) para que quando os aprendizes chegassem ao curso Técnico (2º semestre
de 2004) já tivessem o conhecimento mínimo necessário para o desenvolvimento do projeto.
Nesse projeto atuo, portanto, no desenvolvimento do trabalho de modo a orientar os
aprendizes para o planejamento e aplicação das entrevistas realizadas nas áreas de Manufatura e a
confecção dos relatórios, resultado das pesquisas, nas aulas da disciplina de Técnicas de Redação
em Língua Portuguesa; a orientação para as questões específicas sobre Ergonomia, a análise dos
dados levantados com relação aos aspectos ergonômicos, bem como as propostas dos exercícios
de compensação postural, são coordenados pelo professor de Educação Física, especialista em
Ergonomia.
Os aprendizes são divididos em quatro grupos de pesquisa e todos realizam um rodízio
nas quatro áreas da Manufatura: Estamparia, Armação, Pintura e Montagem Final.
Eventualmente, a área da Manutenção poderá ser, também, um campo para a pesquisa.
Ao final do rodízio, ou seja, quando os quatro grupos já tiverem passado por todas as
áreas, cada grupo deverá selecionar uma área da Manufatura, de maneira que todas as áreas sejam
contempladas. Em seguida, orientados pelo professor de Ergonomia, selecionam um ou mais
postos de trabalho da área para a realização da pesquisa.
Estabelecido a área de pesquisa de cada grupo e os postos de trabalho que serão
analisados, os aprendizes saem da escola e vão para a fábrica no momento do ensino Dual (meio
período), para realizar pesquisas sobre como o operador atua em seu posto de trabalho,
observando os seguintes aspectos ergonômicos: posto de trabalho (máquinas, equipamentos e
ferramentas, análise da tarefa que trata da biomecânica ocupacional, ou seja, metabolismo e
movimento humano), ambiente de trabalho (riscos físicos, químicos, biológicos e mecânicos),
organização do trabalho (tempos e métodos).
Ao retornarem das áreas, com dados iniciais levantados, os alunos têm condições de
relacionar uma série de questões que julguem importantes e que precisam ser consideradas para a
análise ergonômica, inclusive questões que serão direcionadas aos operadores que atuam nos
postos de trabalho avaliados.
Para a realização das entrevistas, os aprendizes são orientados num primeiro momento a
planejarem as questões. Assim, antes das questões propriamente ditas, devem conhecer a área, o
posto de trabalho e a operação realizada no local.
Realizada essa primeira etapa, os aprendizes vão novamente para as respectivas áreas de
pesquisa com as questões previamente planejadas e selecionadas. Os alunos registram as
perguntas, as respostas, os possíveis comentários que os entrevistados realizem num caderno ou
bloco de papéis apropriado.
Os alunos são orientados a realizar os registros da forma mais fiel possível, inclusive
considerando usos inadequados da norma culta. No entanto, sabe-se que os registros passam pelo
filtro da subjetividade, ou seja, não há garantia de que se tenha as mesmas palavras utilizadas
pelos entrevistados no decorrer das entrevistas nos registros feitos pelos aprendizes.
O registro das entrevistas no relatório final poderá ser feito de duas formas, dependendo
da escolha feita pelos próprios aprendizes: num texto corrido, ou modo “indireto”, em que as
declarações são citadas entre aspas ou comentadas pelo redator do texto, ou pode-se montar um
texto de perguntas e respostas, também chamado "pingue-pongue". As entrevistas também
poderão ser consideradas como anexos.
Os relatórios devem ser produzidos de acordo com o que pede as normas e padrões ABNT
para a produção de trabalhos acadêmicos. A produção das folhas inscrição e agradecimentos são
exigidas como forma de exercício, embora não sejam consideradas itens obrigatórios.
A introdução deve conter tema e objetivos do trabalho, apresentar a área de pesquisa e
suas particularidades. As análises dos postos de trabalhos e das atividades realizadas pelos
operadores devem abrir um novo capítulo no trabalho.
Finalmente, os aprendizes devem apresentar a conclusão, referências e anexos, quando se
fizer necessário.
Na Oficina de Teatro busco focar o trabalho corporal e a valorização do mesmo, por meio
de atividades de alongamento, e a comunicação, com a aplicação de jogos teatrais.
A formação no teatro trouxe ao meu trabalho uma atenção especial com relação ao
trabalho corporal.
Uma das questões mais importantes tratada nas atividades da Oficina de Teatro que
desenvolvo na escola refere-se à preparação corporal para toda e qualquer atividade que se deva
realizar.
O trabalho de preparo, no teatro, começa inevitavelmente pelo corpo, pois é por meio dele
que se promove a socialização entre os atores e do próprio ator consigo mesmo.
Prontidão e tonicidade são aspectos muito importantes para a preparação corporal. O
corpo precisa corresponder, reagir ao que se pensa sentir, ao que se diz e ao que se ouve, ou seja,
precisa estar “pronto” para realizar o movimento, mesmo que seja um “movimento estático”
4
.
Para que se alcance esse estado de prontidão é preciso trabalhar a tonicidade.
Tonificar o corpo significa mantê-lo alerta, tornar a musculatura rígida, de modo que os
movimentos venham preenchidos de sentido. Isto quer dizer, por exemplo, que se o subtexto do
ator pede a ele que se levante da poltrona, vá até o interruptor e apague a luz, os movimentos de
deslocamento (neste caso, dinâmicos) - das pernas, dos braços, das mãos, do olhar - devem ser
carregados do sentido “quero apagar a luz”.
As aulas são sempre iniciadas pela preparação corporal com exercícios de alongamento e
jogos teatrais que trabalhem a atenção, a tonicidade e a prontidão do corpo.
Com o olhar direcionado para a preparação corporal, tanto meu, enquanto professora,
quanto do professor de educação física, os aprendizes são orientados a cuidar do corpo, de modo
a prepará-lo adequadamente para a operação que deverão realizar nos postos de trabalho.
2.3.6 A Empresa
Para compreender adequadamente a esfera empresarial do contexto desta pesquisa,
recorro a uma definição de Naville e Rolle para indústria: “a unidade de produção corrente na
indústria pode ser definida por dois critérios: a fábrica, ou estabelecimento, unidade técnico-
geográfica, e a empresa ou firma, entidade jurídica ou financeira” (1973:414, grifos dos autores).
De acordo com os autores, na indústria artesanal, por exemplo, as duas unidades
coincidem. Já nas indústrias automobilísticas, como é o caso do contexto desta pesquisa, a
empresa coordena a atividade da fábrica ou, até mesmo, de várias fábricas.
4
Movimento estático: movimento que não tem deslocamento, movimento de contração muscular (conceito
fisiológico).
A esfera empresarial em que a escola está inserida é dividida, portanto, em duas grandes
áreas: os setores administrativos (R.H., compras, importação etc), considerados empresa, e a
Manufatura, ou seja, a linha de produção, considerada fábrica.
O Sistema de Produção da Manufatura é dividido em quatro áreas, na seguinte ordem:
Estamparia, Armação, Pintura e Montagem Final. Cada uma dessas áreas tem a responsabilidade
de desenvolver as várias etapas do processo produtivo.
Na Estamparia, as peças da superfície do carro como laterais, pára-lama, teto, tampa
traseira etc, são estampadas por meio de prensas manuais, robotizadas e pelo setor de corte.
Na Armação, ou área de Carroceria, área de estudo dessa pesquisa, o veículo começa a ser
montado. A área anterior envia as peças estampadas para que se inicie o processo de solda por
dispositivos de solda automáticos, formando assim os conjuntos túnel, caixa de rodas, caixas de
rodas com longarina, entre outros.
O processo de pré-tratamento é realizado na Pintura, composto de 10 estágios, dentre eles
remoção de sujidades da carroceria, deposição de camada de fosfato de zinco para garantir a
proteção anticorrosiva etc.
Depois de passar por 10 estágios, a carroceria pintada é, por fim, encaminhada à área da
Montagem Final. Nesta os componentes de maior importância são agregados ao veículo: tapetes,
tetos, central elétrica, painel e revestimentos internos, mecanismo de direção, vidros, freios,
portas, bancos, marcação de chassis, enfim, o veículo é “montado”. É neste setor também que os
testes de qualidade final são executados, tais como teste de freios, teste elétrico, prova d’água,
inspeção final de qualidade.
Dentro de cada uma dessas áreas há vários postos de trabalho nos quais são desenvolvidas
as etapas do processo produtivo. Desse modo, pode-se dizer que a linha de montagem é um fluxo
de produção onde são montadas as peças de um determinado produto, por meio dos postos de
trabalho que apresentam operações específicas.
Cada grupo de trabalho, num posto de trabalho, tem um monitor que exerce a função de
Coordenador e Porta Voz, um Líder de Célula, primeiro nível de supervisão da Manufatura que
administra de 3 a 6 Grupos de Trabalho e um Supervisor, profissional de nível executivo e
responsável pela supervisão de 3 a 6 líderes de Célula.
O trabalho é realizado em dois turnos: das 6h às 15h e das 15h às 23h. Os operadores
trabalham 8 horas/ dia, 5 dias por semana, de segunda-feira a sexta-feira e, eventualmente,
dependendo da demanda de produção, trabalham também aos finais de semana. Eles têm apenas
um intervalo para café de 10min. e horário para almoço de 50min. Os operadores são contratados
como horistas e trabalham por produção.
2.2 Estabelecimento do corpus e instrumentos de coleta e seleção de dados
A cada semestre, conforme já apresentado no tópico “As aulas: tarefas e procedimentos de
execução”, os aprendizes do curso técnico, divididos em quatro grupos, produzem um relatório
de pesquisa da respectiva área analisada. A área de Manutenção foi eventualmente escolhida em
2005 (2º semestre) e 2006 (1º semestre) para o desenvolvimento do projeto.
O projeto de pesquisa “Ergonomia nos postos de trabalho” foi iniciado no 2º semestre de
2004. Assim, entre o 2° semestre de 2004 e o 1º de 2006, foram realizados 16 relatórios.
Para estabelecer o corpus, determinei trabalhar com os relatórios produzidos desde o
início do projeto, 2º semestre de 2004, até o 1º semestre de 2006, início de minhas atividades de
pesquisa no mestrado.
Dessa forma, procurei levantar na escola os 16 relatórios produzidos. Constatei que não
havia, em arquivo, todos os relatórios produzidos até então. Essa constatação levou-me a procurar
os aprendizes que foram alunos da escola e que participaram do projeto, de modo a recuperar
todos os relatórios confeccionados no decorrer desse período.
Dentre os 16 relatórios produzidos, foi possível recuperar sete deles, além dos quatro
existentes em arquivo, o que perfaz um total de 11 trabalhos recuperados. Os relatórios que
compõem o corpus de pesquisa são, portanto, os seguintes:
9 2004 (todos se referem ao 2º semestre)
- um relatório referente à área da Estamparia
- um relatório referente à área da Armação
- um relatório referente à área da Pintura
- um relatório referente à área da Montagem Final
9 2005 (todos se referem ao 2º semestre)
- um relatório referente à área da Estamparia
- um relatório referente à área da Armação
- um relatório referente à área da Manutenção
9 2006 (todos se referem ao 1º semestre de 2006)
- um relatório referente à área da Estamparia
- um relatório referente à área da Armação
- um relatório que contempla duas áreas: Montagem Final/ Pintura
- um relatório referente à área da Manutenção
2.2 Objetivos de pesquisa
A questão de pesquisa norteadora do trabalho é: a partir de quais discursos, elementos ou
formas que constituem a materialidade do texto, é possível identificar como a noção de trabalho é
construída verbo-visualmente em relatórios de pesquisa desenvolvidos por aprendizes de uma
escola técnico-profissionalizante?
Para responder à questão, determinei como objetivo geral de pesquisa compreender como
alguns elementos verbais, visuais, verbos-visuais e discursos sociais, constroem a noção de
trabalho nos relatórios de pesquisa. Para melhor sistematizar esse trabalho, proponho quatro
objetivos específicos:
I. descrever, analisar e interpretar alguns elementos ou formas verbais, visuais e verbo-
visuais que compõem a materialidade do texto;
II. descrever, analisar e interpretar algumas formas de presença do outro no discurso;
III. descrever, analisar e interpretar alguns discursos que compõem o texto;
IV. articular as implicações estabelecidas na relação verbo-visual e que participam da
construção da noção de trabalho.
2.4 Procedimento de análise dos dados
Para trabalhar os relatórios produzidos pelos aprendizes, foi necessário solicitar da
empresa uma autorização formal. A autorização foi concedida pelo gerente do R.H. com a
condição de que não houvesse a divulgação/ identificação do nome da empresa bem como o da
escola.
Optei por digitalizar o corpus, gravando-o em mídia CD. Ao digitalizar os 11 relatórios de
pesquisa, apaguei o nome da empresa, substituindo-o pelo termo [empresa], o nome da escola,
substituindo-o pelo termo [escola], o nome dos modelos dos carros fabricados pela fábrica,
substituindo-os pela expressão [modelo do carro], o slogan da empresa, substituindo-o pela
expressão [slogan da empresa].
Os nomes dos aprendizes e dos professores que aparecem nos relatórios foram apagados e
substituídos pelas suas iniciais. Há outros nomes de colaboradores/ operadores que são citados no
decorrer dos relatórios, principalmente na folha agradecimentos, que também foram substituídos
pelas iniciais.
Todas as fotografias de operadores em situação de trabalho, e eventualmente de
aprendizes, também foram manipuladas, de modo a não permitir identificação dos sujeitos.
Após as primeiras leituras do corpus e, posteriormente, às análises iniciais, optei por
trabalhar com todos os relatórios, pois seria possível identificar com maior consistência alguns
elementos e formas materiais e, também, alguns discursos que “atravessam” os relatórios e que se
entrecruzam num permanente diálogo.
A pesquisa “Ergonomia nos postos de trabalho” é realizada, conforme já relatado, parte na
escola, com discussão teórica sobre Ergonomia, e parte na fábrica, nos postos de trabalho das
áreas da Manufatura, com observação e análise dos postos de trabalho, dos movimentos
executados pelos operadores e da realização do trabalho.
Os relatórios de pesquisa trazem, portanto, registros do modo como os aprendizes
avaliam, a partir da Ergonomia, os postos de trabalho das áreas da Manufatura, o trabalhador e o
trabalho.
A partir dessas considerações li (e reli inúmeras vezes) cada um dos 11 relatórios, para
identificar, inicialmente, termos, expressões, formas verbais, visuais, verbo-visuais que se
mostrassem constantes no decorrer dos textos. Foi um trabalho preliminar com o objetivo de
familiarizar-me com o material.
Após as leituras iniciais, tratei de descrever, minuciosamente, o corpus, suas partes
constituintes, a divisão dos capítulos, os títulos, os tópicos, os termos e expressões que se
repetem, principalmente, nos capítulos que tratam da análise dos postos de trabalho, as
fotografias e as legendas que as identificam. O trabalho de descrição foi para a pesquisa um
momento muito importante, pois colaborou para um conhecimento aprofundado do corpus.
Trata-se, posso considerar, do “raio-x” dos relatórios.
Esses dados foram lançados em quadros analíticos como forma de avaliar,
quantitativamente e qualitativamente, alguns aspectos que sobressaíram na descrição do corpus e
que pudesem indicar uma forma de “entrada” no corpus.
O primeiro quadro foi dedicado à análise das partes que constituem todos os relatórios e
das suas divisões, ou seja, capa, folha de rosto, folha de inscrição, sumário, divisão dos capítulos,
dos tópicos etc, com o objetivo de, ao compará-los, identificar quais partes se repetem e mantém
o mesmo padrão, quais diferem, quais não se repetem e suas possíveis relações.
O segundo quadro tratou de analisar termos e expressões que se repetem no decorrer dos
textos com o objetivo de avaliar quais aparecem com mais freqüência, em quais partes dos
relatórios e possíveis relações.
O terceiro quadro foi dedicado às fotografias que compõem o corpus. Cabe esclarecer o
seguinte recorte feito em relação às imagens: optei por trabalhar apenas com as fotografias que
foram registradas pelos aprendizes e que retratam operadores, ambiente de trabalho, peças,
equipamentos e ferramentas.
A análise desse quadro comparou, primeiro, o número de fotografias que retratam
operadores e o número que retratam outros elementos (equipamentos, peças, ferramentas,
ambiente) sem a presença dos operadores; segundo, o número de fotografias em cores e o número
em preto-e-branco. Foi possível, inclusive, avaliar em quais relatórios há um predomínio de um
ou de outro e as possíveis relações.
O último quadro comparou o número de legendas que identificam as fotografias que
retratam operadores e o número que identificam as fotografias que retratam outros elementos sem
a presença dos operadores, com o objetivo de avaliar as formas verbais (o próprio léxico, alguns
traços lingüísticos e suas relações semânticas) aplicadas para se referirem aos elementos
retratados.
3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Bakhtin e seu Círculo fundamentaram seus estudos teóricos a partir da concepção de
linguagem como constitutivamente dialógica. O conceito de dialogismo implica “diálogo” entre
diferentes discursos e sujeitos que instauram e são instaurados por esses mesmos discursos,
determinados sócio/ histórico/ culturalmente, “atravessados” por ideologias. Pode-se dizer que o
fundamento da concepção dialógica da linguagem é o discurso que traz em seu interior o “outro”,
as outras vozes.
A perspectiva dialógica do discurso interessa a este trabalho porque permite “dialogar”
tanto com elementos internos que constituem o texto, elementos no sistema da língua
(particularidades sintáticas léxico-semânticas), quanto com os externos, considerados
extralingüísticos, no campo do discurso.
A análise dialógica do discurso apesenta alguns conceitos que são fundamentais para o
desenvolvimento da análise dos dados em busca de respostas à pergunta: a partir de quais
elementos ou formas e discursos sociais que constituem a materialidade do texto, é possível
identificar como a noção de trabalho é construída verbo-visualmente em trabalhos de pesquisa
desenvolvidos por aprendizes de uma escola técnico-profissionalizante?
Dessa forma, da análise dialógica do discurso adoto as noções de enunciado concreto,
discurso citado, discurso polêmico e esferas da comunicação.
Com relação às imagens, ou seja, às fotografias que compõem o corpus, realizei um
estudo a partir de Lima (1985), que trata, principalmente, da noção de dominância visual e
remete à relação superioridade vs inferioridade entre fotógrafo e fotografado.
Outra noção que interessa a este trabalho é o de visão fotográfica, tratada por Sontag
(1986), e que remete à questão da subjetividade na fotografia.
O estudo em Lima e Sontag colaborou para compreensão de como alguns dos elementos e
formas identificados nas imagens podem ser “lidos” na fotografia.
A seguir discutirei cada uma dessas concepções e de que maneira elas se relacionam e
contribuem para a análise dos dados desta pesquisa.
3.1 Enunciado concreto
O estudo do enunciado concreto interessará para a compreensão e análise dos enunciados
destacados do corpus porque permite considerar uma situação extraverbal, os elementos que os
constituem na situação e que fazem parte de um contexto maior e que, por isso, os tornam um
enunciado concreto.
Bakhtin/ Voloshinov considera que as análises sintáticas do discurso “constituem análises
do corpo vivo da enunciação”. Para o autor as formas sintáticas são “mais concretas que as
formas morfológicas ou fonéticas e são mais estreitamente ligadas às condições reais da fala”
(1929/ 2004:140).
Uma das críticas que o autor faz se refere à divisão das unidades da língua. Ao dividir
uma oração em palavras, por exemplo, e aplicar todas as categorias usadas pelos lingüistas a uma
ou a cada uma das palavras “fica evidente que essas categorias definem a palavra exclusivamente
em termos de um elemento potencial da fala e que nenhuma engloba a enunciação completa”
(Bakhtin/ Voloshinov, 1929/ 2004:140).
Outra crítica se refere ao fato da “justificada abstração científica” com relação à função
comunicativa da linguagem. Para Bakhtin, o esquema que representa o processo da comunicação,
ou seja, “o falante e o ouvinte (o receptor do discurso)”, só deve ser compreendido apenas como
abstração e não ser apresentado “como fenômeno pleno concreto e real”, isso porque esse
esquema de representação sugere “processos passivos de recepção e compreensão do discurso do
ouvinte” (1979/ 2003:271, 273).
Um enunciado concreto prevê um outro enunciado que o antecedeu e um outro que virá
adiante. Um sujeito que termina seu enunciado o faz para passar a palavra a outro, ou ao menos
para “dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva” (Bakhtin, 1979/ 2003:275). Nesse
sentido, para Bakhtin, o enunciado não deve ser tratado como uma “unidade convencional”,
correndo o risco de não ser compreendido, mas sim como uma “unidade real”, já que há um
determinado contexto que o envolve e que deve ser levado em consideração.
Bakhtin ressalta que as enunciações, nos diversos campos da atividade humana, têm,
como unidades da comunicação discursiva, características estruturais comuns, por mais diferentes
que sejam (ou pelo volume, ou pelo conteúdo, ou ainda, pela construção composicional) e,
sobretudo, “limites absolutamente precisos” (1979/ 2003:275). A alternância dos sujeitos do
discurso é que define ou cria os limites do enunciado.
A oração, por exemplo, enquanto unidade da língua, não tem seus limites definidos pela
alternância dos sujeitos do discurso. É a alternância dos sujeitos que converte a oração em
enunciado pleno. Nesse sentido, a oração pode ser considerada um “pensamento relativamente
acabado”:
o contexto da oração é o contexto da fala do mesmo sujeito do discurso
(falante); a oração não se correlaciona de imediato nem pessoalmente com
o contexto extraverbal da realidade (a situação, o ambiente, a pré-história)
nem com as enunciações de outros falantes, mas tão-somente através de
todo o contexto que a rodeia, isto é, através do enunciado em seu conjunto.
Se, porém, a oração não está cercada pelo contexto do discurso do mesmo
falante, ou seja, se ela é um enunciado pleno e acabado (uma réplica do
diálogo), então ela estará imediatamente (e individualmente) diante da
realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciações
dos outros; depois destas já não vem a pausa, que é definida e assimilada
pelo próprio falante (...); depois delas espera-se uma resposta ou uma
compreensão responsiva de outro falante (1979/ 2003:277, 278).
O contexto das enunciações necessariamente remeterá a um contexto ideológico, ambos
são inseparáveis. Dito de outro modo, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial” (Bakhtin/ Voloshinov, 1929/ 2004:95).
Portanto, é importante considerar o contexto desta pesquisa, de forma a compreender os
enunciados do corpus, suas características estruturais comuns, seu conteúdo e sua construção
composicional; é preciso levar em conta a quem eles se destinam, a quais discursos eles
antecedem e a quais eles respondem.
Dessa forma, faço a seguinte consideração: os aprendizes da escola são necessariamente
filhos ou irmãos de funcionários e que, raras exceções, esses familiares projetam expectativas
quanto ao futuro “profissional” dos aprendizes. Para muitos desses operadores, a empresa é,
ainda, “uma mãe” e a única realidade para a salvação com relação ao desemprego e a garantias
como um “bom salário”. Muitos alunos estão na escola em função do desejo dos familiares e não
do próprio querer.
Outra importante consideração é que a escola fica dentro da empresa mantenedora e está
exposta a diversas interferências que não só do âmbito escolar – professores, coordenação,
direção, secretaria, biblioteca. Os aprendizes têm contato direto com os funcionários de vários
setores da empresa e não apenas da Manufatura, inclusive da “Comissão de Fábrica” que tem
presença constante na escola e grande força dentro da empresa. É importante considerar,
inclusive, que a circulação de funcionários, terceiros e visitantes é livre na Ala onde se localiza a
escola.
Os relatórios de pesquisa são produzidos pelos aprendizes por exigência da escola, o que
significa que serão avaliados: eles são uma “resposta” ativamente responsiva ao projeto da escola
– “Ergonomia nos postos de trabalho”. Os aprendizes devem corresponder ao que a escola e a
empresa esperam com relação ao conhecimento técnico e a dimensão comportamental que o
futuro profissional deve ter desenvolvido.
Para apreender a significação, por exemplo, que levou o aprendiz à escolha da citação “
‘O mundo que deixaremos para nossos filhos depende dos filhos que deixaremos para nosso
mundo’ ” (vide anexo folha inscrição do relatório Estamparia/ 2004) ou identificar a que discurso
ideológico a citação “Depois dessa pesquisa, percebi o quanto (...) muitas vezes o operador se
submete para receber um salário justo, estragando seu corpo para isso” (vide anexo conclusão do
relatório Manutenção/ 2005) é preciso levar em conta o contexto em que se deu a produção dos
relatórios de pesquisa; é preciso considerá-los como um enunciado concreto.
Segundo Bakhtin/ Voloshinov, toda enunciação é uma resposta a algo anterior a ela e
conta com reações ativas da compreensão, antecipa-as (1929/ 2004:98). A compreensão das
formas que constituem uma enunciação completa só poderá se realizar se forem relacionadas às
outras enunciações que pertencem ao mesmo contexto histórico/ cultural/ social/ ideológico.
Assim, ao considerar um enunciado, deve-se levar em conta a situação extraverbal que se
incorpora a ele e que será parte integrante da estrutura de sua significação.
O corpus desta pesquisa, considerado como um enunciado concreto, poderá ser analisado
à luz dessa categoria justamente porque ela permite compreender as marcas de enunciação,
verbais, visuais, verbo-visuais de um sujeito que tem um lugar histórico e social determinado.
3.2 O discurso citado
Conforme discutido no tópico “enunciado concreto”, todo enunciado é, de certa forma,
uma resposta a um que o antecedeu e uma antencipação a um outro que virá adiante.
Os aprendizes, ao produzirem os relatórios de pesquisa, levam em conta o destinatário –
empresa/ escola/ professor: esse já é uma voz, uma “instância interior ao enunciado”.
O texto, nas Ciências Humanas, tem como objeto específico o discurso.
O corpus é, praticamente, se não em sua totalidade, uma reunião de vários discursos e de
várias “vozes”.
Há, por exemplo, a chamada citação de campo (Amorim, 2001: 180), que traz as vozes
dos operadores entrevistados em campo e discursos como o da tecnologia e da qualidade, da
sobrevivência, da Ergonomia que, de forma direta ou indireta, influenciam e interferem nas
pesquisas efetuadas pelos aprendizes e conseqüentemente, nos resultados.
Todo enunciado, segundo Bakhtin, vem sempre carregado de outros enunciados: “nosso
discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos
outros (...)” (1979/ 2003:294), ou seja, o homem traz consigo a palavra de sua época, de seu
círculo social, seja familiar, profissional, de amigos. A arte, a ciência, a política são, por exemplo,
enunciados investidos de autoridade que, de certa forma, se desenvolveram em uma interação
constante com enunciados individuais de qualquer pessoa.
No entanto, isso não quer dizer que exista enunciado reprodutível na sua integridade
lingüística, já que cada enunciado é único, irreprodutível: “as unidades da comunicação
discursiva – enunciados totais – são irreprodutíveis (ainda que se possa citá-las) e são ligadas
entre si por relações dialógicas” (1979/ 2003:335).
As palavras de outrem, ao serem incorporadas num outro enunciado, não são mais
exatamente as mesmas, pois o contexto lhes determinará outro sentido. O tom valorativo do
enunciado será sempre reelaborado, reacentuado pelo sujeito que o incorpora.
No estudo das formas de transmissão do discurso de outrem, o que interessará a Bakhtin/
Voloshinov (1929/ 2004) não é apenas a estrutura gramatical, as formas sintáticas, por exemplo,
dos discursos como direto, indireto e indireto livre, mas também, e principalmente, a dinâmica, as
relações dialógicas que se estabelecem entre o discurso citado e contexto narrativo que o integra;
mais: a maneira como se dá a apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem. O estudo
das formas de apreensão do discurso leva em consideração não somente as formas em si, mas o
que motivou a criação de tais formas.
Para tanto, Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004) analisa que o falante (não o ser
individualizado, mas o social), ao trazer a enunciação de outro para a sua própria enunciação,
para o seu contexto narrativo, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais ao incorporá-
la, cria esquemas de acordo com o que a língua tende, num determinado momento histórico, a
disponibilizar aos falantes.
Esses esquemas, que assumem forma e função na língua, exercerão, segundo o autor, uma
“influência reguladora, estimulante ou inibidora, sobre o desenvolvimento das tendências da
apreensão apreciativa, cujo campo de ação é justamente definido por essas formas” (1929/
2004:147).
A questão que interessará a esse estudo é justamente o que motivou o aprendiz a
incorporar os discursos de outrem de determinadas formas e não de outras – trata-se de investigar
e estabelecer os sentidos construídos nas relações que se dão entre o discurso citado e o contexto
que o incorpora.
Bakhtin/ Voloshinov leva em conta, portanto, a interação dinâmica que se estabelece entre
o discurso citado e o contexto, pois é nessa inter-relação que ambos terão uma existência
concreta, real. Na verdade, continua o autor, essa dinâmica refletirá uma outra – as inter-relações
sociais “dos indivíduos na comunicação ideológica verbal” (1929/ 2004:148).
Essas dinâmicas apresentam orientações que se desenvolveram em duas principais
direções na transmissão da palavra de outrem e que Bakhtin/ Voloshinov distingue em estilo
linear e estilo pictórico.
Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004:153) considera importante observar a orientação do
discurso, pois ela determinará a forma de incorporação do discurso de outrem.
O discurso retórico, por exemplo, tende a admitir pouca ou quase nenhuma interferência
do narrador no discurso citado que será incorporado por ele, o que está mais próximo do discurso
linear, enquanto que, nesse sentido, o literário é mais livre, estando mais próximo do discurso
pictórico.
Foi identificado no corpus algumas formas de incorporar o discurso do outro. Por vezes, o
discurso de outrem aparecerá na forma de citação – essa forma se aproximará daquilo que
Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004) considera como discurso linear: ‘ “é mais fácil você me
perguntar onde não dói” – operador da Armação’ (vide anexo Epígrafe do relatório Armação/
2004).
Nesse caso, os aprendizes trouxeram o discurso de outrem visivelmente delimitado, com
aspas, identificação do autor e na folha inscrição do relatório, não o integrando ao seu contexto,
“evitando”, ao que parece, valores apreciativos.
O estilo linear corresponde às formas do discurso direto e à citação literal. Ele busca
representar, de acordo com Bakhtin/ Voloshinov, o discurso do outro com delimitações de
fronteiras nítidas e estáveis, por exemplo, com o uso de marcas como as aspas, o itálico ou o
emprego do sic, entre outras. Essa orientação tende a isolar, de forma clara e estrita, o discurso
citado de maneira a evitar a interferência da palavra daquele que a incorpora a seu contexto
narrativo, tornando-a, como considera o autor, dogmática e autoritária (1929/ 2004:149).
O grau de autoritarismo e dogmatismo, no entanto, varia. Assim, quanto maior esse grau,
mais distante ficamos do outro, ou seja, a palavra citada sofrerá pouco ou nenhum efeito na
estrutura do texto (Amorim, 2001:182). Essa posição autoritária caberá tanto aquele que
incorpora a palavra citada ao seu contexto narrativo, não permitindo que seu texto seja infiltrado
pela palavra do outro, quanto à própria palavra citada que, por seu grau de “importância”
hierárquica, não admitirá uma atitude apreciativa, ou positiva, do narrador.
Amorim (2001), no entanto, faz uma importante consideração com relação às citações que
compõe um texto científico e que interessará particularmente a essa pesquisa, já que o corpus é
um “campo de citações” e se aproxima, respeitadas as diferenças, de um texto científico.
A autora entende que as citações de outrem que o narrador traz para o seu contexto
narrativo tratam de travar uma polêmica entre os pontos de vista, o que não necessariamente pode
ser considerado como uma relação de autoritarismo (2001:183).
Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004) considera o estilo linear dogmático, autoritário,
portanto, muito mais propenso ao monologismo, já que a palavra citada entra em contato com a
palavra do narrador na sua forma exterior, não permitindo, ao que parece, uma relação dialógica.
Amorim identifica que no decorrer dos estudos de Bakhtin e seu Círculo, o monologismo e
mesmo o estilo linear vai tomando outras direções e ganhando valores positivos:
(...) os últimos textos bakhtinianos [consideram] (...) que o monologismo
deixa de ser necessariamente autoritário e encontra seu lugar preciso na
poesia e na ciência enquanto palavra assumida e orienta mais para o objeto
que para o interlocutor e a representação dos discursos. Se, por um lado,
nos textos iniciais, os termos monológico/ dialógico aparecem não só na
condição de conceitos mas também na de valores excludentes, por outro
lado, nos textos que gostaríamos de referir a uma “maturidade teórica”,
tais termos adquirem toda a complexidade e modalização necessárias para
acederem à condição de categorias operantes de análise (2001:185).
A primeira orientação é considerada uma forma bastante rígida, com contornos bem
definidos do discurso citado. No entanto, o contrário também poderá se dar:
A entonação que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso
escrito) é um fenômeno de tipo especial: é uma espécie de alternância dos
sujeitos do discurso transferida para o interior do enunciado. Os limites
criados por essa alternância são aí enfraquecidos e específicos: a expressão
do falante penetra através desses limites e se dissemina no discurso do
outro, que podemos transmitir em tons irônicos, indignados, simpáticos,
reverentes (...) (Bakhtin, 1979/ 2003:298).
Assim, à medida que as fronteiras delimitadoras do discurso citado vão sendo
enfraquecidas, a ponto de até serem apagadas, o contexto narrativo passa a absorver a palavra do
outro, desfazendo sua estrutura compacta e fechada. Quando a palavra do outro passa a sofrer
interferências daquele que a incorpora, e, ao incorporá-la, se deixa interferir por ela, estamos
diante da segunda orientação, proposta por Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004) – o estilo pictórico.
Nos relatórios de pesquisa foi identificada outra forma de incorporação do discurso de
outrem que parecem se “misturar” com a voz dos aprendizes: “Esses conhecimentos são
imprescindíveis para nossa formação técnica, pois somos os profissionais do futuro e devemos
apresentar todas as qualificações necessárias a demanda da fábrica, (...), para então aumentar a
produtividade do setor (...)” (vide anexo Introdução do relatório Estamparia/ 2004).
Essa forma de incorporar o discurso se aproxima do chamado discurso pictórico. Aqui é
possível identificar, pelo menos, duas vozes, escola e empresa, que se misturam à voz dos
aprendizes. Não se tem mais uma delimitação que marca as fronteiras da voz do outro – as vozes
se misturam a ponto de não identificarmos com nitidez quem fala.
Nesta segunda orientação, as formas que mais possibilitam tal interferência são a do
discurso indireto e, particularmente, o discurso indireto livre, que, segundo Bakhtin/ Voloshinov,
é a forma última de enfraquecimento das fronteiras do discurso citado (1929/ 2004:152).
Essa forma, de acordo com Amorim (2001:182), é caracterizada por um dialogismo
profundo porque permite ao narrador trazer julgamentos de valor, interferindo no próprio interior
da palavra, de forma que, muitas vezes, encontremos apenas os elementos básicos da enunciação
citada. Mas, ainda assim, sempre será possível descobrir “toda uma série de palavras do outro
semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade” (Bakhtin, 1979/ 2003:299).
No estilo pictórico podem prevalecer as interferências tanto do narrador, que acrescenta
suas entonações ao discurso citado, quanto do próprio discurso citado, que entra no contexto
narrativo sem nenhuma cerimônia, ou até mesmo prevalecer interferências de ambas,
reciprocamente (Amorim, 2001:183).
De qualquer forma, é na segunda orientação que a presença do outro se torna muito mais
próxima, e, refere Amorim, quanto maior a alusão da presença do outro, “mais ela se encontra
livre e solta para se disseminar e se inscrever (...); a forma alusiva revela o outro já em mim,
naquilo que ele me interpela (...)” (2001:183).
Para ser coerente com as escolhas dos conceitos, que são fundamentais para a análise do
corpus, escolhi o discurso citado justamente porque é nas formas de transmissão do discurso de
outrem e nas relações que se estabelecem entre discurso citado e o discurso que o incorpora que
se poderão estabelecer os possíveis sentidos que revelam relações de valores que são geradores
de conflitos e contradições.
3.3 O discurso polêmico
Na obra Problemas da poética de Dostoievski (2005), Bakhtin estuda as formas e os graus
de representação da heterogeneidade da linguagem, compreendendo-a a partir do tratamento
dialógico.
De acordo com Brait, nessa obra Bakhtin discute os seguintes aspectos: o “método de
estudo dos discursos, questões de gêneros dos discursos, questões de tipos de discurso na prosa,
aspectos que alimentam os conceitos de polifonia, de dialogismo e de heterogeneidade como
participantes da natureza da linguagem” e diz que no capítulo “O discurso em Dostoiévski”,
Bakhtin anuncia qual será o seu objeto de estudo – a língua e seus aspectos da vida concreta do
discurso, apontando para observações metodológicas (2005b:97).
O centro dos estudos de Bakhtin, na obra de Dostoievski (2005), concentra-se no que
Bakhtin chamou de romance polifônico que mantém o valor da variedade da linguagem e das
características do discurso. Nesse estudo a questão é compreender sob que ângulo dialógico
estilos de linguagem, dialetos sociais, etc, confrontam-se ou se opõem na obra.
As relações dialógicas, para o autor russo, são objetos da metalingüística. A lingüística,
pela sua própria natureza, não dá conta desse estudo. Ela estuda a forma composicional do
discurso dialógico enquanto fenômenos puramente lingüísticos, no plano da língua, nas suas
particularidades sintáticas léxico-semânticas.
Bakhtin acredita ser impossível haver relações dialógicas no sistema da língua, justamente
porque elas são extralingüísticas. Assim, não podem ser separadas do campo do discurso, onde
situam-se as relações dialógicas, que, por isso, é considerado como o “verdadeiro campo da vida
da linguagem” (2005:183). Esse campo pode ser a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a
artística etc.
Para estudar as relações dialógicas é preciso que elas personifiquem-se na linguagem, ou
seja, devem “tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na
linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas” (Bakhtin, 2005:183).
Segundo Bakhtin, não basta constatar, por exemplo, uma relação lógica entre dois termos.
É preciso, no enunciado de um sujeito, que esses dois juízos materializem-se “para que possa
surgir relação dialógica entre eles ou tratamento dialógico deles” (2005:183). Ao dividirmos
esses “juízos” entre dois diferentes enunciados de dois sujeitos diferentes, surgirá entre eles
relações dialógicas.
Os dois juízos “cruzam-se” dialogicamente, tocam-se internamente, entrando em relação
semântica: “Em um só discurso ocorrem duas orientações semânticas, duas vozes.” (2005:189).
Bakhtin considera que o tratamento dialógico é possível: (1º) a “qualquer parte
significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada”, basta ouvirmos nela a voz do outro;
(2º) entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais etc, bastam compreendê-los como certas
posições semânticas; (3º) com “a enunciação como um todo, com partes isoladas desse todo e
com uma palavra isolada nele (...)”; (4º) entre “outros fenômenos conscientizados desde que estes
estejam expressos numa matéria sígnica. Por exemplo, (...) entre imagens de outras artes “(...)”
(2005:184).
A estilização, paródia, skaz
5
e diálogo, fenômenos metalingüísticos, têm, para Bakhtin
um traço em comum: uma dupla orientação: “aqui a palavra tem duplo sentido, voltado para o
objeto do discurso enquanto palavra comum e para um outro discurso, para o discurso de um
outro” (2005:185, grifo do autor).
Essa dupla orientação é menos evidente no skaz e no diálogo, no entanto, na maioria dos
casos, estão orientados para o discurso do outro. Segundo o autor, o skaz estiliza o discurso do
outro; o diálogo, enquanto réplica, leva em conta esse outro discurso, correspondendo-lhe,
antecipando-lhe.
Para considerarmos a estilização ou a paródia, devemos, de acordo com o autor,
compreender se no matiz lexical da palavra é sugerido algum traço da palavra de um outro, ou
seja, “algum enunciado de um outro ao qual dada palavra é tomada de empréstimo ou em cujo
espírito ela se constrói.” (2005:186).
Para Bakhtin, os discursos duplamente orientados precisam ser diferenciados, porque
englobam fenômenos heterogêneos como a estilização, a paródia e o diálogo e desenvolvem-se
de acordo com possibilidade e meios pelos quais “se combinam em um contexto discursos
pertencentes a diferentes tipos” (2005:186).
Os tipos de discurso que Bakhtin identifica são: (1º tipo) discurso referencial direto e
imediato, o discurso que nomeia, comunica, enuncia, representa; (2º tipo) discurso representado
ou objetificado, discurso direto dos heróis; (3º tipo) discurso convencional – parodístico,
estilização e skaz estilizado.
É na terceira variedade do 3º tipo, chamada por Bakhtin de variedade ativa, que
encontraremos o que o autor chama de “discurso polêmico velado”. Nesse tipo de discurso, a
palavra de outrem influi a ponto de, de certa forma, determinar a palavra do autor: “a palavra do
outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela
se refere” (2005:195).
Uma das características desse tipo de discurso, segundo Bakhtin, é o fato de ele se chocar
no próprio objeto com o discurso do outro: “este último não se reproduz, é apenas subentendido”
5
“Tipo específico de narrativa estruturado como narração de uma pessoa distanciada do autor (pessoa concretamente
nomeada ou subentendida), dotada de uma forma de discurso própria e sui generis” (Bakhtin, 2005:185)
(2005:196). O discurso do outro é repelido e “atacado” indiretamente. Na polêmica velada
identifica-se a idéia do outro refletido no discurso, determinando-lhe o tom e a significação.
No caso dos relatórios que compõem o corpus desta pesquisa, não haveria, parece, outra
possibilidade de confronto dos discursos que não fosse o discurso polêmico velado: trata-se de
trabalhos escolares desenvolvidos pelos aprendizes para a escola que fica dentro da própria
empresa mantenedora. O embate que se dá entre os discursos que compõem os relatórios não é
explícito, nem poderia ser.
Para Bakhtin essa característica muda “radicalmente a semântica da palavra: ao lado do
sentido concreto surge um segundo sentido – a orientação centrada no discurso do outro.”
(2005:196). Para compreender esse tipo de discurso é preciso considerar o colorido polêmico do
discurso que pode manifestar-se em traços puramente lingüísticos, tais como a entonação, a
construção sintática, o próprio léxico, entre outros.
No decorrer da análise dos dados, verificou-se, principalmente, a entonação como um
traço lingüístico bem marcado em algumas passagens dos textos.
No discurso polêmico velado, o discurso do outro começa a influenciar o discurso do
autor de dentro para fora. Por esse motivo, Bakhtin considera esse discurso como bivocal. E,
também, por esse motivo, a relação entre o discurso do autor e o discurso do outro será marcada
pela tensão: “O discurso sente tensamente ao seu lado o discurso do outro falando do mesmo
objeto e a sensação da presença deste discurso lhe determina a estrutura.” (2005:196, grifo meu).
Bakhtin considera que o discurso polêmico interno é encontrado tanto no linguajar
cotidiano quanto no discurso literário. O discurso do cotidiano assimila todas as indiretas,
alfinetadas, todo discurso aviltado, empolado, auto-renegado, discurso com milhares de
ressalvas, concessões, evasivas etc. A forma como o sujeito constrói o seu discurso “é
determinada consideravelmente pela sua capacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios
de reagir diante dela.” (2005:197).
Outra importante distinção que o autor faz é entre dialogismo velado e polêmica velada.
Naquele, percebe-se que, embora apenas um fale, o diálogo é marcado por uma “tensão”, porque
as palavras respondem e reagem “com todas as suas fibras ao interlocutor invisível, sugerindo
fora de si, além dos seus limites, a palavra não-pronunciada do outro.” (2005:198); nesta, a
palavra do outro influencia ativamente o discurso do autor, “forçando-o a mudar adequadamente
sob o efeito de sua influência e envolvimento.” (2005:198).
Cada época, cada momento histórico encontra um meio autorizado e sedimentado de
refração do discurso do outro, dominando o discurso convencional numa de suas variedades.
Bakhtin observa que se não houver tal meio, o discurso bivocal orientado, ou seja, “o discurso
parodístico em todas as suas variedades ou um tipo especial de discurso semiconvencional, semi-
irônico” (2005:203), será dominante.
A questão colocada por Bakhtin, no estudo da obra de Dostoiévski, refere-se ao estudo do
discurso artístico, mas que, como já visto, pode ser levado ao discurso do cotidiano: “Que
discurso domina numa determinada época e numa dada corrente, quais as formas de refração da
palavra que existem, o que serve de meio de refração?” (2005:204).
O estudo do corpus desta pesquisa revela-o, como se verá, como um campo de vozes que
se cruzam, entrecruzam num confronto dialógico, sob uma constante “tensão”. Os discursos se
tocam e se repelem, determinando sua estrutura, apontando para contradições e conflitos que
surgem das relações entre escola e fábrica e que colaboram para a construção da noção de
trabalho nos relatórios.
3.4 Esferas da comunicação
Conforme já abordado, a escola do contexto desta pesquisa tem uma particularidade que a
distingui das demais: fica dentro da empresa mantenedora. Os aprendizes, em função do ensino
dual, circulam tanto pela escola, quanto pela empresa, mais especificamente nos vários postos de
trabalho da linha de produção.
Escola e empresa são, a princípio, lugares da atividade humana com características,
funções e objetivos diferentes e bem definidos. Histórico e socialmente, inclusive, pôde-se
verificar, no capítulo 1 deste trabalho, “O mundo do trabalho e o ensino profissional no Brasil”,
alguns desses aspectos tratados.
No entanto, apesar de serem campos diferentes da atividade humana estão ligados ao uso
da linguagem.
Na teoria central adotada para este trabalho a língua existe na interação verbal que se
realiza na enunciação. Esta é de natureza social, ou seja, a interação se dá entre indivíduos
organizados socialmente.
A linguagem, por sua vez, refletirá, conforme Bakhtin, “as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem
(...), mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (2003:261).
Cada campo da atividade humana desenvolve o conteúdo temático, o estilo e a construção
composicional de acordo com a sua especificidade. Trata-se dos gêneros do discurso, definidos
por Bakhtin como tipos relativamente estáveis de enunciados (2003:262).
As esferas da comunicação discursiva dispõem de sua própria função no conjunto da vida
social e constituem, segundo a lógica particular de cada esfera, as produções ideológicas. A
ciência, a religião, a literatura, enfim, os vários campos de produção ideológica têm um modo
próprio de se constituir e organizar.
Para Bakhtin, os estilos de linguagem são “estilos de gênero de determinadas esferas da
atividade humana e da comunicação” e esses gêneros “correspondem às condições específicas de
dado campo” (2003:266).
A ideologia do cotidiano é o ponto de partida para a constituição das esferas ideológicas.
Conforme Miotello, ela se organiza em um estrato superior, nas interações mais definidas e
estáveis que estabelecem, de certo modo, padrões mínimos de estabilidade nos sentidos postos
em circulação. Nesse caso, exemplifica o autor, trata-se de grupos organizados, de pessoas
sindicalizadas, trabalhadores de profissão definida, estudantes, grupos religiosos, grupos não
governamentais (2005:173).
A ideologia do cotidiano nasce sem um padrão fixo, nas relações sociais mais ínfimas e
casuais, “se conservando relativamente instabilizada frente ao que é considerado ideologia oficial
em uma dada sociedade” (Miotello, 2005:173). E é nesse nível que a ideologia
principia sua relação mais efetiva com esse nível oficial da ideologia,
infiltrando-se progressivamente nas instituições ideológicas (imprensa,
literatura, ciência, leis religião), e as renovando, ao mesmo tempo em que
é renovada por elas. Nesse sinal de renovação também está presente o
sinal de refração da ideologia, pois que a classe dominante confere ao
signo ideológico um caráter intangível, imutável e supraclasses sociais,
abafando ou ocultando a luta dos índices sociais de valor, e divulgando o
discurso da monovalência. A manutenção da divisão social e perpetuação
da hegemonia da classe dominante exige que os sinais contraditórios
ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados (Miotello,
2005:173)
Cabe, neste ponto, apontar algumas considerações. A escola tem como um de seus
projetos a realização de pesquisa nas áreas da Manufatura da empresa. Os aprendizes estudam,
para realizarem a pesquisa, a Ergonomia aplicada a alguns aspectos do trabalho, mais
precisamente o trabalho realizado na linha de produção.
Na escola, a Ergonomia é estudada a partir de alguns preceitos que considera como
“ideais” ao trabalho. O aprendiz, portanto, sai da escola com esses preceitos e vai para a linha de
produção realizar a pesquisa. Na linha de produção o aprendiz é um aluno que busca observar,
analisar e avaliar a relação entre alguns aspectos do trabalho e da Ergonomia de forma que realize
sua pesquisa, no mínimo, satisfatoriamente.
Ao entrar na fábrica, nos postos de trabalho, o aprendiz observa que, não só a Ergonomia,
como também, alguns outros preceitos, tanto técnicos quanto comportamentais, tratados pela
escola como “ideais” não são, necessariamente, aplicados no trabalho, numa situação concreta,
real.
Entre escola e empresa há um confronto de práticas ideológicas que, inevitavelmente,
resultará em conflitos e contradições. Os aprendizes, sendo alunos e funcionários ao mesmo
tempo, ou seja, estabelecendo relações específicas nessa esfera de produção, que tem relações de
produção e uma estrutura sócio-histórico-política definida, realizam os tipos de comunicação
verbal possíveis nesse contexto específico.
Bakhtin defende que “o papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é
excepcionalmente grande”. Esses outros é que definirão a força e a influência deles no enunciado,
pois são “participantes ativos da comunicação discursiva: desde o início o falante aguarda a
resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se
construísse ao encontro dessa resposta” (2003:301).
O termo relatório é utilizado na esfera escolar/ acadêmica, mas também é amplamente
utilizado nas empresas, seja nas áreas administrativas, seja nas áreas produtivas (“chão de
fábrica”). No entanto, nesses casos, obviamente, os relatórios não serão “trabalhos acadêmicos”.
A utilização do termo relatório, na escola, pode se dar em função da “interação constante
e contínua com os enunciados dos outros” (Bakhtin, 1979/ 2003:294), ou seja, com as outras
vozes que constituem a escola técnico-profissionalizante: a empresa, a escola, os postos de
trabalho, a Comissão de Fábrica, os professores, a família.
Assim, a composição, o tema e o estilo dos relatórios são definidos pelo gênero do
discurso relatório que circula num dado campo da comunicação discursiva, neste caso a escola
que fica dentro da empresa que a mantem, e que tem uma concepção típica de destinatário: os
professores, mais especificamente, e, de certa forma, mais ampla, a empresa contratante, que
remunera os aprendizes, e a escola.
Portanto, a forma como os relatórios foram construídos, ou seja, a escolha feita pelos
aprendizes, consciente ou não, de todos os recursos lingüísticos, das formas e elementos verbais e
visuais que constituem o texto, é determinada sob maior ou menor influência do destinatário e da
sua resposta antecipada.
3.5 O elemento visual: como “ler” uma fotografia
Para trabalhar com as imagens do corpus, as fotografias de operadores em situação de
trabalho, de equipamentos, ferramentas, peças e ambientes, faz-se necessário um importante
levantamento de algumas concepções existentes sobre o que é fotografia, as formas e os
significados implicados na sua leitura.
Ivan Lima
6
apresenta o significado do termo fotografia referindo-se a duas origens: a
primeira grega, usada nos países ocidentais, significa foto = luz, grafia = escrita; a segunda
oriental, significa reflexo da realidade (particularmente o termo sha-shin é utilizado no Japão)
(1985:17).
Lima trata na obra A fotografia é a sua linguagem de um estudo da leitura de fotografias
utilizadas na imprensa, ou seja, “fotografia de imprensa”.
De acordo com o autor, a fotografia utilizada na imprensa “tem caráter e predominância
informativa” (1985:17). O autor considera que as fotografias nos jornais, principalmente,
complementam os “vazios” dos textos e vice-versa.
6
Ivan Lima (1948-), formado em Arquitetura (1978), doutorado em História Contemporânea pela Ecole de Hautes
Etudes em Sciences Sociales de Paris (1984-1986), estudou em Paris fotografia com Sebastião Salgado e pintura com
o pintor expressionista suíço Rudolf Mumprecht (1978-1981).
Em geral, as fotografias na imprensa, acompanhadas de uma notícia, despertam maior
interesse do público, do que uma notícia sem imagem. Lima (1985:17) faz referência a raras
exceções como, por exemplo, o jornal francês Le Monde que não utiliza imagens.
Segundo Lima, a fotografia de imprensa exige, também, impacto. Trata-se de um
“estímulo” para fazer com que o leitor se interesse em ler o texto, seja jornal, revistas etc., e, por
conseqüência, faça-o vender mais.
O autor considera que esse aspecto faz perder a real função da fotografia: “transmitir a
informação esgotando suas possibilidades, ou seja, adquirindo também um caráter estético e
transmitindo valores culturais” (1985:24).
Outra característica da fotografia de imprensa é a combinação dos elementos na imagem
que devem “expressar o fato, evento ou acontecimento de forma clara, imprimindo-lhe a sua
predominância” (Lima, 1985:25).
“Forma clara”, é, para o autor, por exemplo, a visualização do corpo da pessoa retratada
(rosto, olhos = expressão; mãos, braços = gestos; corpo, perna = postura), dos artefatos (roupas,
uniformes, objetos próximos identificadores), do espaço (espaço do corpo, espaço pessoal, espaço
social) e à combinação dos elementos sujeito, circunstância e ambiente. (Lima, 1985:26).
A fotografia de imprensa é, portanto, para Lima, a combinação dos elementos pessoa,
espaço e paisagem estabelecida na seguinte hierarquia: os elementos sujeito, circunstância e
ambiente como predominantes; o corpo, os artefatos, o espaço, a relação entre sujeito e figurantes
e a situação do conjunto como elementos complementares (1985:26).
Langford faz, também, algumas considerações sobre as funções desempenhadas pela
fotografia em vários campos. Na publicidade, por exemplo, as fotografias “vendem” um produto
ou serviço e devem, em geral, oferecer aos observadores “uma imagem deles próprios”
(1996:18).
Já as fotografias de reportagem têm função diferente. Elas devem capturar um
acontecimento que se tornará uma imagem definitiva. Essa imagem e os elementos que a
compõem deve sintetizar a situação retratada. Langford considera, no entanto, que esse registro
fotográfico pode ser “colorido”, ao escolher-se, por exemplo, um determinado ângulo:
Fotografa-se uma manifestação por detrás de uma fila policial e poderá
mostrar-se uma multidão ameaçadora; fotografa-se a partir de um ponto
diante da multidão que se manifesta, e mostraremos as autoridades
repressivas. (...) Fotografar-se um destes momentos e etiquetá-lo com uma
referência sobre qualquer evento, e não será difícil alterar a verdade dos
factos reais (1996:17).
Neste ponto, faço uma observação com relação às imagens do corpus. Os aprendizes
retratam operadores, em situação de trabalho, de costas, curvados, agachados e de perfil para a
câmera. De acordo com Langford, a escolha do ângulo que registrará o acontecimento pode
“alterar a verdade dos fatos reais”.
A escolha do ângulo é, portanto, uma questão de subjetividade e depende dos valores
(sociais/ culturais/ ideológicos), interesses e motivações do fotógrafo para registrar determinado
acontecimento, determinado fragmento da “realidade”.
Com relação às fotografias “decorativas para calendários ou ilustrações editoriais”,
Langford as considera como imagens que podem comunicar beleza por si próprias e, por ser a
beleza uma qualidade subjetiva, é “influenciada por atitudes e pela experiência” (1996:17).
Por fim, o autor faz referência às fotografias empregadas na educação, em medicina, e em
diversas espécies de conhecimento científico. Nesse campo, as fotografias têm a função de
oferecer “a maior objetividade e informação”, fazendo uso dos detalhes e clareza do meio
fotográfico de informação. Essas imagens têm a característica de “comunicarem
internacionalmente, sem a barreira da linguagem da palavra escrita”, [o que torna] “mais fácil a
identificação e a leitura da informação diretacmente da fotografia” (1996:18).
As fotografias que compõem o corpus são imagens realizadas pelos aprendizes, nos
trabalhos de pesquisa para a escola, para avaliarem os movimentos dos operadores, os ambientes
de trabalho, peças, ferramentas, equipamentos. Pode-se considerar, nesse sentido, essas
fotografias como de caráter científico e que têm, portanto, a característica de oferecer a
objetividade e informação da pesquisa desenvolvida em campo, ou seja, dos aspectos analisados e
avaliados pelos pesquisadores/ aprendizes nos postos de trabalho da empresa.
Considerando as diferentes esferas de circulação, fotografias na imprensa e fotografias em
trabalhos acadêmicos, ou seja, os relatórios, é possível estabelecermos relações para a leitura de
alguns elementos das fotografias que compõem o corpus.
Antes de discutir a leitura desses elementos, propriamente, chamo a atenção para outra
questão: as legendas.
As fotografias do corpus são acompanhadas por legendas que as identificam. Os
aprendizes nomeiam as imagens como “figuras”, acompanhadas por numeração (figura 1, figura
2, por exemplo) e, a seguir, pelo título: “Figura 3 – Trafogun” (vide anexo trabalho Armação,
2004:17). Trata-se de uma característica composicional desse tipo de trabalho que deve
identificar as imagens por numeração sequencial.
Com relação às legendas, Lima considera que, por um lado, o fato de os leitores, de modo
geral, terem certa defasagem na leitura do visual e, por outro, as imagens, como signos icônicos,
terem dois níveis de leitura, a sugestiva e a descritiva, o fotógrafo pode lançar mão de um
instrumento de forma que oriente a leitura visual: a legenda (1985:23).
A legenda, considera o autor, é parte integrante de uma fotografia e é sempre colocada
fora do espaço da imagem, acompanhada, também, pela identificação do fotógrafo (o crédito),
colocada ao lado da imagem (Lima, 1985:31).
Para Lima, a legenda funciona como “mediadora entre a realidade vivida pelo fotógrafo e
a imagem posteriormente vista pelo receptor” (1985:31). Lima avalia, também, que a legenda
“induz a uma interpretação da imagem” (1985:23).
Outra observação é com relação aos tipos de legendas. Elas podem ser orais (álbuns de
família, por exemplo), escritas (jornais, exposições) e implícitas, “quando tudo pode ser
entendido pela própria imagem” (1985:31). Esta última, mais uma vez, remete à questão do
subjetivismo, pois vai depender de quem lê a fotografia para que “tudo seja entendido” pela
própria imagem.
A legenda tanto pode reforçar o acontecimento retratado pela imagem quanto, ao
contrário, distorcê-lo, modificá-lo:
Nesses casos, a legenda tanto pode endossar o que se passa na imagem
como modificar inteiramente o que se vê na fotografia. Algumas vezes
essa mudança de leitura que a legenda produz na imagem se dá em função
de que aquela imagem não é expressiva daquele acontecimento, que se
desenrolou de forma dinâmica e não teve um registro fixo que o
representasse. Em outros casos, a própria intenção da reportagem
pretendida não encontra, na fotografia, que tem características realistas,
um correspondente, utilizando-a como um mero e mau exemplo de
ilustração (Lima, 1985:32).
Essa consideração é importante para a análise do corpus desta pesquisa. A maioria das
legendas não aponta para o elemento vivo, considerado por Lima, na ordem de hierarquia na
fotografia, como o dominante (mais adiante discutirei sobre esse aspecto). As legendas apontam
como elemento central nas imagens que retratam operadores em situação de trabalho qualquer
outro que não o humano. Cabe encontrar no corpus os significados implicados nesse aspecto.
Para o autor, a fotografia será considerada uma obra escolhida, seja como registro
histórico ou como obra de arte, quando a imagem extrapolar o registro do dia-a-dia. E, nesse
caso, a legenda passa a ser reduzida, “deixando a imagem se comunicar praticamente por si só”
(1985:32).
Por fim, Lima avalia que o fotógrafo é a pessoa certa para fazer a legenda da sua imagem:
“ele conhece bem as razões de ter apertado o botão de seu aparelho, assim como as condições
daquele instante. A ele também cabe preservar a transmissão da sua mensagem já que uma
legenda pode modificar inteiramente uma obra original” (1985:34).
As legendas das fotografias dos relatórios são feitas pelos próprios fotógrafos, ou seja,
pelos aprendizes. Pode-se dizer, portanto, que eles, como “pessoas mais indicadas para fazerem
as legendas das fotografias”, porque “conhecem bem as razões de terem apertado o botão” da
câmera fotográfica, assim como “as condições do instante em que retrataram as imagens”,
indicam nas legendas aquilo que consideram como elementos centrais das imagens.
Com relação aos componentes que compõem às fotografias, Lima discute a questão da
hierarquia que se estabelece entre tais componentes. Para o autor, um componente na escrita
icônica, ou seja, na imagem, é o mesmo que uma palavra é na escrita alfabética (Lima, 1985:19).
Lima classifica os componentes de uma imagem como: (1) componentes vivos (os
humanos e os animais); (2) componentes móveis (certos fenômenos e elementos naturais); (3)
componentes fixos (os objetos de toda forma) (1985:19).
Entre esses componentes, chamados também de elementos, há, segundo o autor, uma
relação hierárquica que é regra fundamental na escrita fotográfica. Um elemento vivo (homem e
animais) “domina sempre os outros”; componentes móveis (certos fenômenos e elementos
naturais) “dominam componentes fixos (objetos), qualquer que sejam seus tamanhos respectivos”
(Lima, 1985:19).
No entanto, há, para essa regra, de acordo com Lima, duas exceções. A primeira se refere
ao elemento vivo e o espaço que ele ocupa. Se esse elemento vivo for reduzido na foto, passa a
ser um grafema, ou seja, um símbolo gráfico, “sem significado expressivo”. A segunda se refere
ao elemento fixo que pode representar “qualquer coisa inabitual que força o interesse” (1985:20).
Observa-se, neste ponto, que a segunda exceção leva a crer que para um elemento fixo ser
considerado “qualquer coisa inabitual” dependerá, em certa medida, de quem o avalia, portanto,
trata-se de subjetividade.
De acordo com Lima (1985:20), a leitura de uma fotografia é bidimensional e prospectiva,
diferentemente da leitura da escrita, por exemplo, que se dá de forma linear e unidimensional. A
leitura da imagem é feita a partir dos componentes existentes dentro da imagem.
A imagem é a combinação das estruturas geométricas (estática e simétrica) e perceptuais
(dinâmica e assimétrica). A leitura perceptual é feita a partir da esquerda, considerada o início,
para a direita, considerada a conclusão.
Esse modo de leitura vale tanto para os ocidentais quanto para os orientais. O que nos
diferencia no modo de olhar, de acordo com o autor, é que para os ocidentais o homem é a figura
principal, enquanto que para os orientais o espaço é a figura central (Lima, 1985:21).
Com relação a esse aspecto é importante lembrar que as fotografias do corpus retratam, na
sua maioria, imagens de operadores em situação de trabalho. No entanto, as legendas que
identificam essas imagens se referem, na sua maioria, a elementos fixos (ferramentas, máquinas,
equipamentos, área de trabalho), por vezes à ação realizada, ou ainda, às partes específicas do
corpo do operador. Essa observação será considerada na análise dos dados.
A leitura de uma foto, de acordo com Lima, se dá em três fases: (1ª) percepção, (2ª)
identificação e (3ª) interpretação (1985:22).
A primeira fase é unicamente ótica e se dá em menos de um segundo: trata do
reconhecimento das formas e tonalidades; a segunda registra oticamente as imagens e
mentalmente seu conteúdo; a terceira fase é puramente mental, em que se registra o “caráter
polissêmico da fotografia” (Lima, 1985:22), trata-se da subjetividade.
Em geral, a pessoa que realiza a fotografia tende a centralizar o elemento principal,
dividindo o espaço em partes iguais, o que exige simetria. A proporção também pode ocorrer de
espaço e conteúdo: se a divisão do espaço for de forma inclinada, acentua o “desequilíbrio do
conteúdo, ao mesmo tempo em que a proporção equilibrada das formas acentua a beleza da
imagem” (Lima, 1985:49).
A proporção também se dá, ainda, pelo contraste do claro e escuro: se for maior a
quantidade de superfícies escuras em relação às superfícies claras acentua a dramaticidade da
imagem.
A consideração em relação às cores escuras e claras interessa particularmente a essa
pesquisa já que as fotografias do corpus apresentam-se, na sua maioria, em preto-e-branco.
Para fotografias em preto-e-branco, o autor considera que a nitidez e a textura dos
elementos registrados dependem da quantidade de luz que incide sobre eles. O excesso de luz,
por exemplo, acentua o contraste entre as superfícies claras e escuras, porém retira dos elementos
os seus detalhes e texturas que permitem uma visualização detalhada da superfície (1985:87).
Lima considera que a cor branca representa clareza e vida; é uma cor ativa e sua
irradiação extrapola os seus limites, ampliando o espaço. O preto, considerado o inverso do
branco, é uma cor passiva; se fecha em si mesma e representa o sombrio, o mistério e a morte
(1985:87).
Nesse aspecto, Michael Langford
7
refere-se à fotografia em preto-e-branco como sendo
considerada “mais expressiva e sutil, menos cruelmente realista do que a fotografia em cores”
(Langford, 1996:13).
Langford considera, ainda, que fotografar em cores é muito mais fácil, porque o resultado
se assemelha mais ao modo pelo qual a cena retratada aparece no visor da câmera. Por outro lado,
as fotografias em cores exigem mais trabalho de laboratório, devido ao controle do equilíbrio das
cores. (1996:13).
Com relação à luz, o autor observa que seu uso permite tanto mostrar certos aspectos de
um elemento diante da câmera quanto ocultar ou suprimir outros.. Há, ainda, seis características,
consideradas essências, quanto à iluminação: qualidade, direção, contraste, uniformidade, cor e
intensidade (Langford, 1996:29).
A qualidade da luz se refere ao tipo de sombra que o elemento iluminado produz: dura e
definida, que produz um pequeno reflexo luminoso, ou suave e gradual, que produz uma
iluminação difusa, fazendo com que pareça menos rica (Langford, 1996:121).
Com relação à direção da fonte de luz, o autor considera que ela afeta o aspecto da textura
e o volume (forma), determinando onde será projetada a luz e a sombra do elemento.
7
Michael Langford, fotógrafo, foi professor no “London College of Printing”,nomeado para o “Royal College”. É
autor de diversos livros e artigos para revistas especializadas.
Langford observa que há uma tendência em se aceitar a iluminação que provém de cima
como a mais natural, já que essa é a situação durante o dia. A iluminação de baixo tende a
produzir um efeito macabro, dramático e até ameaçador. A luz proveniente de trás pode acentuar
um recorte e produzir uma forma bem definida, no entanto, considera o autor, perde-se a maior
parte dos detalhes nas sombras e a forma fica com menos relevo (1996:121).
O contraste da iluminação é a relação entre a luz que incide nas partes iluminadas e a que
incide nas partes sombrias do elemento retratado. Assim, se houver incidência de luz nas zonas
mais claras, as sombras ficam “incaracterísticas”, embora seja possível identificar ainda alguns
detalhes; o contrário, incidência de luz nas zonas mais escuras, as zonas claras ficam
“queimadas” (1996:121). A irregularidade da luz se dá devido ao uso inadequado da câmera,
perto demais do elemento que se deseja fotografar.
Sobre a cor e a tonalidade, o autor também se refere às grandes zonas escuras que
associam-se à força, drama, mistério e ameaça; as zonas mais iluminadas podem sugerir
delicadeza, espaço e suavidade (1996:125).
Sobre o formato da fotografia, Lima observa que o quadrado representa a forma
geométrica do equilíbrio absoluto, porém poucos assuntos se adaptam, perfeitamente, ao
quadrado, sendo essa uma das razões pelas quais as fotografias, de modo geral, se desenvolveram
através do formato retangular (1985:53).
No formato horizontal, o retângulo dá a impressão de repouso, de profundidade e de
frieza; no sentido vertical, dá a impressão de ação, proximidade e de calor (1985:53).
Com relação às linhas, na fotografia elas se dividem em horizontais (correspondem à linha
ou à superfície do homem em repouso ou morto; linha fria, calma e tranqüila), verticais (forma
uma contraste de efeitos e de caracteres; exprime altura, portanto, calor) e diagonais (ocupam um
lugar de equilíbrio entre o frio e o quente; linha resultante de forças). As linhas oblíquas formam
dentro do espaço da imagem elementos de desordem e exigem linhas horizontais e verticais para
lhes conferir equilíbrio (1985:67).
Outra consideração importante é com referência a distinção que Lima faz em relação à
fotografia considerada retrato, ou representação, e à fotografia espontânea. De acordo com o
autor, o acaso na fotografia pode ser eliminado de duas maneiras: várias fotos da mesma cena são
executadas para posterior seleção da imagem, considerada pelo fotógrafo, “ideal”; e no
reenquadramento de laboratório, pois o fotógrafo pode “eliminar” os elementos, considerados por
ele, “supérfluos” da imagem (1985:92).
Para Lima o retrato em fotografia é “a imagem de um sujeito que sabe que vai ser
fotografado” (Lima, 1985:93). Desse modo, essa definição exclui a pessoa “pega de surpresa”.
No caso das fotografias que compõem o corpus é importante apontarmos que os
aprendizes vão para a área de trabalho durante alguns dias, observam a realização do trabalho e,
posteriormente, realizam as fotografias, inclusive com a ciência e autorização dos operadores e da
chefia da área, o que, a princípio eliminaria a “intenção do acaso”.
A questão do “acaso” na fotografia remete à outra: a discussão da subjetividade na
fotografia versus a fotografia como registro “fiel da realidade”.
Para Susan Sontag
8
, a visão fotográfica, ao examinar-se as suas pretensões, consiste
justamente na prática de uma espécie de “visão dissociativa” (Sontag, 1986:92), trata-se de um
hábito subjetivo que é reforçado pelas diferenças objetivas entre “o modo como a câmara e o olho
humano focam e avaliam a perspectiva” (Sontag, 1986:92). A autora traz um exemplo sobre
como o fotógrafo pode lidar com o “acaso”, apontando para a subjetividade daquele que registra
uma imagem:
Os membros da Farm Security Administration, projecto fotográfico do fim
dos anos 30, todos eles com imenso talento (...), tiraram dúzias de retratos
frontais de cada rendeiro até estarem seguros de terem obtido o aspecto
que pretendiam: a expressão correta do rosto que transmite as suas
próprias noções da pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e
geometria. Ao decidirem como deverá ser uma imagem, ao optarem por
uma determinada exposição, os fotógrafos impõem sempre normas aos
temas que fotografam (Sontag, 1986:16) (grifos meus).
Sontag observa que o fotógrafo, no surgimento da fotografia, era considerado um
observador arguto, mas imparcial: “um escritor e não um poeta” (1986:84). Rapidamente, no
entanto, segundo a autora, percebeu-se que ninguém tira a mesma fotografia de um mesmo
objeto.
8
Susan Sontag (1933-2004), escritora, ensaísta, recebeu o prêmio norte-americano National Book Critics Circle por
Ensaios sobre fotografia. Escreveu obras influentes como On Photograhy, na qual argumentava que as imagens
muitas vezes distanciam o observador do tema que retratam.
Assim, foi abaixo a idéia de que as câmeras registravam uma imagem impessoal e
objetiva. As fotografias passaram a ser consideradas uma evidência do que existe e, também, o
modo como o fotógrafo vê o que existe, ou seja, “não só como um registro mas uma avaliação do
mundo” (1986:84), portanto uma “visão fotográfica”.
Esse modo de considerar as imagens interessa a essa pesquisa na medida em que se pode
relacioná-la à forma como os aprendizes enquadram as imagens e como selecionam, dos vários
registros das áreas, postos de trabalho e operadores, as fotografias que integrarão os trabalhos de
pesquisa.
De alguma forma, essa seleção passa pela subjetividade, ou seja, pela maneira como os
aprendizes decidem o que é a “realidade” do trabalho dos operadores, o que é ergonomicamente
adequado ou inadequado, impondo “normas aos temas que fotografam”.
Há outra questão que interessa, particularmente. Na fotografia, de acordo com Lima, são
utilizados dois tipos de movimentos: (1°) os de ação, processos de ação física das pessoas, e (2°)
os de comunicação, meios de comunicação entre duas ou mais pessoas (1985:104). O autor
observa que as comunicações não-verbais utilizam três espécies de suporte: o corpo, estudado na
expressão (o rosto, tendo como elemento principal os olhos); os artefatos, associados ao corpo
como roupas e objetos próximos identificadores; o espaço e a disposição do indivíduo no espaço
que o cerca ou que está ligado a ele (1985:107).
Lima observa que na transmissão das emoções é fundamental a visualização do rosto e
dos olhos do fotografado. O olhar, especialmente, pode estabelecer algumas relações de sentido
como, por exemplo, a hierarquia entre os homens:
Enquanto fala, um indivíduo olha menos o seu interlocutor do que quando
escuta. Quando se confrontam indivíduos de estatutos diferentes, os
resultados são outros. É o sujeito de categoria inferior que olha com mais
freqüência o seu interlocutor. A percentagem aumenta com a diferença
hierárquica. O indivíduo de categoria inferior olha mais quando escuta do
que quando fala – o que está de acordo com a regra geral (...). O indivíduo
de categoria superior não fixa mais o olhar enquanto escuta do que fala,
tendendo até a fixá-lo mais quando fala do que quando escuta. Existe
nesses casos o comportamento de dominância visual (1985:108, grifo
meu).
Segundo Lima, há por parte do fotógrafo uma “relação de superioridade” com o
fotografado. O fotógrafo é quem vai mostrar a imagem fotografada. Essa relação de superioridade
exige maior atenção do fotografado para o “ ‘possuidor’ da sua imagem’ ” (Lima, 1985:109). O
fotógrafo é considerado, portanto, “superior” aos seus assuntos, pois dá aos fotografados imagens
que lhes são despercebidas, indesejáveis ou mesmo desejáveis.
Sobre os gestos na fotografia, Lima observa que a postura é um indicador da atitude
afetiva e pode comunicar as intenções de aproximação, de acolhida ou de desafio, rejeição ou
ameaça. As informações posturais podem ter dois tipos de referência: a orientação de um
elemento do corpo, em relação ao restante do corpo, e a orientação do corpo da figura principal
da fotografia, em relação às outras pessoas (1985:113).
Assim, para Lima, na fotografia, se o corpo está inclinado para frente, pode-se considerar
atitudes de aproximação; se o corpo se afasta do outro, pode-se considerar atitudes de rejeição,
recusa ou repulsão; se a cabeça, o tronco e os membros se encontram estendidos, pode-se
considerar atitudes de expansão, orgulho, arrogância ou desdém; e, finalmente, se a cabeça está
curvada sobre o tronco e os ombros caídos, pode-se considerar atitudes de contração, depressão
ou abatimento (1985:113).
Esse aspecto também nos interessa já que das 148 fotografias do corpus que registram os
operadores em situação de trabalho, 132 delas retratam os operadores de costas ou de perfil para
o fotógrafo, com a cabeça baixa, corpo curvado e, muitas vezes, agachado (retomo essas
considerações na análise dos dados).
Quanto à utilidade da fotografia, Sontag relata que, no início de seu surgimento (por volta
de 1840), ela não tinha uma utilidade social e como não havia profissionais, também não havia
amadores. Com a industrialização, a fotografia se assumiu como arte, mas não é praticada pela
maioria das pessoas como tal: “é sobretudo um rito social, uma defesa contra a ansiedade e um
instrumento de poder” (Sontag, 1986:18).
A fotografia, considera a autora, é o resultado do interesse do fotógrafo pelas coisas como
estão, ao menos o tempo necessário para que ele consiga uma imagem “adequada”, seja qual for
o assunto, incluindo a dor ou o infortúnio alheios.
A autora refere-se ao ato de fotografar, de registrar uma imagem, como algo predatório:
“Fotografar pessoas é violá-las, vendo-as como elas nunca se vêem, conhecendo-as como elas
nunca poderão conhecer (...)” (Sontag, 1986:23).
Fotografar pessoas não é intervir nas suas vidas, mas apenas visitá-las. Sontag (1986)
afirma que o fotógrafo é uma espécie de “superturista, um prolongamento do antropólogo, que
visita os nativos e regressa com notícias dos seus costumes exóticos e estranhos ornamentos”
(Sontag, 1986:46).
Nesse sentido, pode-se considerar os aprendizes como, no dizer de Sontag,
“superturistas”, que, ao irem para as áreas da Manufatura, nos postos de trabalho, observarem os
operadores no seu dia-a-dia, registrarem em imagens esses operadores em situação de trabalho,
retornam à escola com suas “impressões” sobre os operadores e o trabalho que realizam nos
vários postos de trabalho.
Interessante observar aqui como Bakhtin considera, semelhantemente, a pesquisa, o
pesquisador e o trabalho da atividade de pesquisa: trata-se do conceito de exotopia.
Amorim (2003) observa que o conceito de exotopia, formulado por Bakhtin,
primeiramente no campo estético, refere-se à obra de arte como o lugar de “tensão”, porque há
entre o artista que realiza, por exemplo, o retrato de um outro, e o retrato que esse outro tem de si
mesmo, “uma diferença fundamental de lugares e, portanto, de valores” (2003:14).
Assim, as fotografias nos relatórios podem ser consideradas como um “olhar exotópico”,
pois os aprendizes, enquanto pesquisadores, observam e registram em imagens como os
operadores realizam e avaliam o trabalho que desenvolvem nos postos de trabalho, para depois,
exteriormente, fora daquele lugar, e retornando ao seu lugar, avaliarem como eles próprios “vêem
o que os operadores vêem”.
Sontag observa ainda que as fotografias podem não só mostrar o que deve ser admirado,
mas, também, podem “revelar o que deve ser enfrentado, deplorado e solucionado.” (1986:64).
Poderia-se acreditar que, ao retratarem os operadores, a área de trabalho, ao registrarem
um “fragmento de uma realidade” em imagens, os aprendizes as aceitariam como a câmera as
registra. No entanto, para Sontag, isto é o oposto da compreensão que consiste justamente em não
se aceitar o mundo como parece ser. Para a autora “toda possibilidade de compreensão está
enraizada na capacidade de dizer não.” (1986:31).
Mais uma vez, recorro a Bakhtin (1929/ 2004: 33, 34): a compreensão, que se dá na
interação, é a capacidade de reagir à palavra: “compreender um signo consiste em aproximar o
signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma
resposta a um signo por meio de signos.”
Escolher o registro de determinadas imagens em detrimento de outras, significa, portanto,
capacidade de compreensão, exige uma réplica ativamente responsiva, uma tomada de posição
diante do texto.
Compreender significa não aceitar a “realidade” retratada como ela aparenta ser; mais:
significa capacidade de dizer não, de reagir às incoerências e contradições da “realidade”
observada. Se os aprendizes retratam determinados fragmentos da “realidade” e os selecionam
para compor os trabalhos de pesquisa, o fazem porque antes foram capazes de compreender, ou
melhor, de assumir uma postura, de não aceitar a “realidade” tal como parece ser. Pode-se dizer
que, se não a aceitam, ao menos fazem emergir valores sociais de orientação contraditória.
A idéia de considerar as fotografias como um fragmento da realidade, leva Sontag a
acreditar que, com o passar do tempo, elas afrouxam suas amarras em relação ao primeiro aspecto
a que estavam vinculadas e se soltam “à deriva num passado flexível e abstrato, aberto a qualquer
tipo de leitura (ou de associação a outras fotos)” (1986:71).
A fotografia, segundo a autora, também pode ser descrita como uma citação, o que
tornaria “um livro de fotos semelhante a um livro de citações.” (1986:71).
Para Sontag (1986) as imagens das pessoas retratadas, as situações retratadas, apresentam,
de certa maneira, um relato próprio de uma “realidade”.
Pode-se considerar que, ao registrarem um determinado “fragmento da realidade”, os
aprendizes buscaram “recortar” exatamente um específico fragmento que relata um momento da
“realidade” que os interessa de certa forma, e o enquadraram num ponto de vista que lhes era
adequado: as imagens são seguidas por enunciados que as observam e as analisam de acordo com
os conceitos e os objetivos da Ergonomia, compreendidos pelos aprendizes.
As fotografias, no corpus analisado, serão, portanto, consideradas como um fragmento de
uma “realidade”, ou melhor, um modo de olhar e “recortar” a realidade. Ao recortarem
determinados fragmentos e os selecionarem para os trabalhos de pesquisa, os aprendizes propõem
um diálogo entre os “relatos que as próprias imagens oferecem” e as análises que fazem desses
fragmentos, ora para questioná-los, ora para afirmarem ou negarem um determinado momento da
“realidade”.
Entendo, ainda, que as fotografias, pelo fato do enquadramento num papel, estão fora de
seu contexto original e, dependendo do lugar onde possam circular, no nosso caso nos relatórios
de pesquisa, devem ser consideradas num outro contexto que não o original.
Sontag observa que a fotografia possibilita que nos detenhamos num único momento o
tempo que desejarmos. Para a autora, “a vida não é feita de detalhes significativos subitamente
iluminados e fixados para sempre. A fotografia sim” (Sontag, 1986:79). A fotografia “ilumina”
e “fixa” para sempre determinados “detalhes significativos”, que, arrisco a considerar, esses
mesmos detalhes podem ser contemplados em momentos diferentes da vida e serão, portanto,
avaliados de formas diferentes, ou seja, a avaliação das mesmas fotografias não será sempre a
mesma.
As imagens do corpus revelam elementos significativos para que se possa identificar
como a noção de trabalho se constrói nos relatórios de pesquisa, principalmente ao considerar-se
o “olhar subjetivo”, ou, no dizer de Sontag, a “visão fotográfica”.
Esses elementos denunciam um enunciador (ou enunciadores) que, ao recortar uma
determinada imagem, em detrimento de outra, evidencia um olhar, uma forma de compreender e
avaliar a realidade.
No próximo capítulo, tratarei de descrever detalhadamente o corpus, de forma a indicar os
elementos que o compõem para, em seguida, descrever, analisar e interpretar alguns desses
elementos ou formas, verbais, visuais e verbo-visuais, que colaborarão para a compreensão de
como se dá a construção da noção de trabalho.
4 ANÁLISE DOS DADOS
Para atingir os objetivos propostos, tomei como pressuposto teórico central a análise
dialógica do discurso, segundo Bakhtin e seu Círculo, como forma de apontar “estratégias
discursivas que se apresentam no corpus, verbais, visuais e verbo-visuais, e que conduziram à
identificação de discursos e vozes em confronto, em discordância, influenciando o discurso dos
aprendizes. Por meio dessa dimensão discursiva foi possível identificar como se constrói a noção
de trabalho nos relatórios.
Da análise dialógica do discurso, para rastrear as “estratégias” discursivas, compreender a
forma como a enunciação verbal, visual e verbo-visual se dá, sem perder de vista a interação em
que ocorrem e identificar os discursos e as vozes sociais que compõem o corpus, adotei as
categorias de enunciado concreto, discurso citado, discurso polêmico e esferas da comunicação.
Com relação às imagens, especificamente, busquei perseguir o “sujeito por trás da
câmera”, ou seja, marcas enunciativas de subjetividade. Assim, adotei, a partir de Lima (1985), as
categorias cor e tonalidades escuras, ângulos e legendas.
Para iniciar a análise dos dados, proponho primeiramente a apresentação do corpus.
Antes, porém, faço uma consideração sobre os relatórios.
Ao descrever o corpus, constatei que os relatórios produzidos pelos aprendizes, conforme
discutido no tópico “esferas da comunicação” apresentam características relativamente estáveis
no que se refere à estilística, à temática e à composição do gênero discursivo trabalho acadêmico
(T.C.C., monografias, dissertações, teses) que circula na esfera acadêmica, escolar.
Os relatórios produzidos pelos aprendizes não apresentam o termo relatório nas capas ou
folhas de rosto. No entanto, é possível encontrar essa referência em seis trabalhos, conforme
constata-se na introdução dos relatórios Estamparia/ 2004:11, Armação/ 2004:13, Armação/
2005:10 e nas folhas resumo dos relatórios Estamparia/ 2005, Armação/ 2006 e Manutenção/
2006.
Os demais relatórios são denominados pelos aprendizes como, por exemplo, projeto (vide
anexo folha Resumo do relatório Montagem Final/ Pintura/ 2006) e trabalho (vide anexo
relatório Montagem Final/ Pintura/ 2006:9 e Pintura/ 2004:8).
Feitas essas considerações, passo para a descrição pormenorizada do corpus e, em
seguida, para a análise dos dados.
4.1 Descrição do corpus
O corpus é composto de 11 relatórios, sendo que:
9 quatro se referem ao 2º semestre de 2004 (um da área de Estamparia, um da
Armação, um da Pintura e um da Montagem Final);
9 três se referem ao 2º semestre de 2005 (um da área de Estamparia, um da Armação
e um da Manutenção);
9 quatro se referem ao 1º semestre de 2006 (um da área de Estamparia, um da
Armação, um da Montagem Final/ Pintura e um da Manutenção)
Os relatórios apresentam, em geral, as seguintes folhas: capa, folha de rosto, folha de
inscrição, agradecimentos, sumário, lista de figuras/ tabelas, introdução, capítulos que discutem
aspectos ergonômicos, capítulos que apresentam a análise dos postos de trabalho, capítulos que
apresentam propostas de melhoria nos postos de trabalho, conclusão e referências bibliográficas.
Os relatórios que se referem às áreas de Estamparia/ 2005 e os das áreas de Armação,
Estamparia, Montagem Final/ Pintura e Manutenção, todos de 2006, apresentam a folha resumo,
logo após a folha agradecimentos.
O relatório da área de Manutenção/ 2006 não apresenta as folhas inscrição e introdução;
os das áreas de Estamparia e de Armação/ 2005 não apresentam a folha conclusão. Todos os
relatórios de 2006 trazem a folha de aprovação.
Os relatórios foram avaliados pelos professores das disciplinas envolvidas no projeto e
trazem, no decorrer das folhas, correções e comentários feitos à caneta.
Os relatórios apresentam, em geral nos capítulos que tratam das propostas de exercícios
de compensação postural, figuras que retratam os movimentos dos exercícios sugeridos e,
algumas vezes, fotografias de pessoas praticando os exercícios, focalizando os movimentos que
devem ser realizados.
Há também figuras que retratam a musculatura do corpo humano, como, por exemplo,
“músculo do braço”, “músculo do dorso”, “bíceps”, nos capítulos que tratam da biomecânica,
relacionados à Ergonomia. Essas figuras e, por vezes, fotografias, não serão consideradas na
soma do total de fotografias realizadas pelos aprendizes para comporem os relatórios.
As figuras e fotografias que discutem exercícios físicos ou fisiologia e a biomecânica
foram incorporadas aos relatórios pelos aprendizes, no entanto não foram produzidas por eles,
melhor dizendo, não foram enquadradas pela “visão fotográfica” dos aprendizes, por traz de uma
câmera fotográfica. Isso não quer dizer, é claro, que não passaram por uma escolha, uma seleção
subjetiva, e que não constrõem sentidos.
Havia a necessidade, dado a natureza do corpus e as possibilidades de tratamento, pensar
num recorte. Desse modo, optei por considerar para a análise do corpus o conjunto de fotografias
que passaram antes pela “visão fotográfica” dos aprendizes, ou seja, as imagens que foram
registradas por eles.
Assim, os trabalhos apresentam, no total, 206 fotografias realizadas pelos aprendizes. Há,
no entanto, 185 legendas, isso porque, por vezes, os aprendizes consideram duas fotografias
como uma única figura. Conforme já indicado, as legendas apresentam o termo figura seguido
por uma numeração, sequencial, e o título da fotografia. No decorrer da análise dos dados,
utilizarei nas fotografias apresentadas neste trabalho, o mesmo título das legendas dado pelos
aprendizes nos relatórios.
Para melhor trabalhar com as imagens, as 206 fotografias, quantifiquei, primeiro, o
número de ocorrências com relação às cores das imagens, dividindo-as em dois grupos: coloridas
e preto-e-branco.
Em seguida, com relação aos componentes retratados, dividi-os, também, em dois grupos:
fotografias que têm apenas elementos fixos (objeto) e fotografias que têm elementos vivos
(humano) e fixos.
Por fim, verifiquei, com relação aos elementos vivos, os ângulos em que os operadores
são retratados. Agrupei-os de acordo com os seguintes aspectos: perfil, costas, curvado,
agachado, apenas partes do corpo (mãos e braços) e retratados de frente para a câmera; desse
último grupo distingui os operadores que dirigiram o olhar para a câmera dos que não
direcionaram o olhar.
O resultado foi o seguinte:
Com relação às legendas, procedi da mesma forma, procurando agrupá-las de acordo com
algumas características. Assim, num primeiro momento, dividi as 185 legendas em dois grupos:
206 fotografias
58 retratam elementos
fixos
(equipamentos,
ferramentas, peças, ambiente);
33 concentram-se no relatório
Armação/ 2004
148 retratam elementos
vivos
(operadores em
situação de trabalho)
5 retratam apenas
mãos e bra
os
11 retratam
operadores agachados
52 retratam
operadores de perfil
37 retratam
o
p
eradores curvados
27 retratam
o
p
eradores de costas
16 retratam
operadores de frente
9 operadores direcionam o
olhar para câmera
7 operadores não direcionam o
olhar para a câmera
12 em cores (concentram-se
no relatório Montagem Final/
2004
)
194 em preto-e-
branco
(demais relatórios)
(1º) legendas que identificam imagens que retratam apenas elementos fixos e (2º) legendas que
identificam imagens que retratam elementos vivos e fixos.
Em seguida, levantei, nos dois grupos, o número de legendas que apresentam o termo
operador (por vezes ferramenteiro, operário e o próprio nome do trabalhador). Verifiquei,
também, no total, o número de legendas que apresentam verbos substantivados.
Por fim, com relação ao segundo grupo (legendas que identificam imagens que retratam
elementos vivos e fixos), levantei o número de legendas que se referem apenas às partes do corpo
dos operadores e as que se referem apenas aos elementos fixos (equipamentos, peças,
ferramentas, ambiente).
O resultado foi o seguinte:
185 legendas
47 identificam imagens
apenas com elementos fixos
(objetos)
138 identificam imagens com
elementos vivos (operadores)
e fixos (objetos)
1 apresenta o termo
operador
(carrinho do
oper [sic] – Manutenção/
2005:13)
3 apresentam verbos
substantivados
36 apresentam o
termo operador
49 se referem aos
elementos fixos
29 apresentam verbos
substantivados
51 se referem a partes
do corpo
(cabeça,
tronco, mãos, pernas etc)
Verificou-se que o corpus apresenta um maior número de fotografias que registram
elementos vivos e fixos na mesma imagem em relação às que registram apenas elementos fixos:
das 206, 148 imagens retratam operadores em situação de trabalho juntos a equipamentos, ou
ferramentas, ou peças.
Apenas 58 imagens retratam elementos fixos sem a presença do elemento vivo. Há uma
consideração importante: dessas 58, 33 concentram-se no relatório Armação/ 2004. A análise dos
dados revelou nesse relatório, com maior presença, uma discurso social que, de uma forma ou
outra, percorre o corpus: o da tecnologia e qualidade.
É possível considerar, em função do número de fotografias que retratam elementos vivos,
um maior interesse por esses componentes.
Das 148 imagens que retratam operadores, 100 legendas que as identificam se referem
apenas ou a partes específicas do corpo dos operadores ou aos elementos fixos. Essas legendas
não se referem, portanto, aos operadores retratados. Apenas 36 legendas fazem referencia ao
termo operador (por vezes, ferramenteiro, operário, ou até mesmo o nome dos operadores).
Portanto, das 185 legendas que identificam as imagens no total, 95 delas se referem a
qualquer outro elemento retratado que não o humano e 51 se referem ao elemento humano de
forma fragmentada: “análise dos braços”, “pernas”, “punho direito”, “tronco” etc.
Ainda, com relação às 138 legendas que identificam as 148 imagens que retratam
elementos vivos, chamo atenção para as 29 legendas que se referem à operação realizada,
utilizando para isso verbos substantivados (“colocação bancos”, “fixação pára-lama”). Esse
número pode parecer relativamente inexpressivo, no entanto, no decorrer da análise, mostrou-se
significativo, apontando para um “apagamento” da ação e conseqüentemente do sujeito que a
realiza.
Desse modo, das 185 legendas, no total, que identificam as imagens, 147 se referem a
qualquer outro elemento das imagens que não o operador. Pode-se considerar que as legendas
indicam, portanto, que o operador não é o elemento central nas fotografias.
Outra observação é com relação ao ângulo em que os operadores são retratados: das 148
imagens, apenas 16 retratam os operadores de frente para a câmera/ fotógrafo e dessas, apenas 9
são retratados direcionando o olhar para a câmera/ fotógrafo. As demais imagens, 132, retratam
operadores ou de costas, ou curvados, ou agachados, ou de perfil.
Os aspectos verbais e visuais identificados na descrição do corpus serão apontados no
decorrer da análise e relacionados aos dados, à medida que se façam pertinentes e necessários.
4.2 Cor e tonalidades escuras/ lugares de “difícil” acesso
Como já descrito, o corpus apresenta um total de 206 fotografias realizadas pelos
aprendizes. Dessas, 194 são imagens em preto-e-branco e apenas 12 são coloridas e concentram-
se no trabalho Montagem Final/ 2004.
Ao identificar alguns dos elementos presentes nas fotografias que compõem o corpus,
evidenciam-se as seguintes constantes: predominância da cor preta e tonalidades escuras.
Observe-se as imagens abaixo (vide anexo Armação/ 2004:81):
Figura 1: “Partes móveis”
Trata-se, como indica a legenda, de imagens das “partes móveis”, ou seja, de um
ambiente. Verifica-se a predominância das cores e tonalidades escuras e a presença de elementos
fixos (objeto de toda forma) (Lima, 1985:19) como peças, equipamentos e placas com dizeres
que, pela qualidade da luz, impossibilita a sua leitura e identificação.
Há presença, também, de um elemento móvel (certos fenômenos e elementos naturais), a
luz (Lima, 1985:19). Na relação hierárquica, segundo Lima, quando há a presença de um
elemento móvel na fotografia ele é dominante em relação aos fixos, independente do tamanho
desses. Pode-se considerar, dessa forma, em função da legenda-título, que o elemento central na
imagem é o ambiente, embora não se visualize adequadamente detalhes desses elementos.
A cor e tonalidades escuras tendem, segundo Lima (1985:49) a “fechar” o ambiente
retratado, tornando-o sombrio. Nesse caso, a predominância da cor preta e das tonalidades
escuras dificulta a visualização e identificação da imagem e dos elementos que a compõem,
embora a legenda faça referência ao ambiente como elemento central na imagem.
Numa outra imagem, figura 2 (vide anexo Estamparia/ 2004:40), em que se tem o
elemento vivo, figura humana como elemento componente, verifica-se também a predominância
de cores e tonalidades escuras, o que dificulta a identificação e visualização de seus
componentes.
Na relação hierárquica, o elemento vivo é o dominante em relação aos demais. A legenda,
nesse caso, traz o nome e sobrenome do operador retratado, indicando-o como elemento central
na fotografia.
Figura 2 – “[J.A.R.]”
Constata-se que, na maioria das imagens que compõem o corpus, há pouca ou nenhuma
iluminação. As imagens que apresentam iluminação têm, normalmente, incidência de luz nos
equipamentos, ferramentas e peças.
Por exemplo, a imagem a seguir, à esquerda, figura 3, (vide anexo Armação/ 2004:42),
tem predominância das tonalidades claras e apresenta maior incidência de luz na “garra” que o
operador utiliza; a imagem à direita, figura 4, (vide anexo Armação/ 2005:13), tem incidência de
luz na peça, iluminando-a.
Figura 3 - “Garra utilizada pelo operador” Figura 4 - “Bandeja do assoalho, onde as setas
indicam os pontos de solda”
Retomo Lima, neste ponto, para rever um aspecto importante para análise das fotografias
acima.
A luz é considerada, na fotografia, fundamental, principalmente quando a imagem for em
preto-e-branco. A nitidez e a textura dos elementos fotografados dependem da quantidade de luz,
assim como depende da luz o contraste entre o preto e o branco (Lima, 1985:85).
Assim, uma quantidade de luz adequada favorece a identificação e visualização dos
detalhes dos elementos que compõem uma imagem. Verifica-se que a imagem à direita, figura 4,
permite, de fato, a visualização e identificação de detalhes da peça, inclusive dos que as setas
inseridas na fotografia pelos aprendizes indicam. A legenda também faz referência à peça como
elemento central na imagem e aos detalhes da superfície da peça.
O excesso de luz, ao contrário, embora acentue o contraste entre as superfícies claras e
escuras, retira dos objetos detalhes e texturas que permitem sua identificação nos pormenores.
Observa-se na figura 3 que a grande incidência de luz na garra do operador não permite a
visualização e identificação de detalhes desse elemento que, segundo a legenda, é o elemento
central na imagem.
Tem-se na figura 3 uma referência ao operador, no entanto, o sujeito integral não é
retratado; apenas uma parte desse elemento é focado pela câmera. O operador é considerado pela
“visão fotográfica”, por apenas uma parte específica de seu corpo.
Como já discutido, numa relação hierárquica o elemento vivo é considerado dominante
em relação aos demais elementos. A legenda da figura 3, no entanto, tem como elemento central
na fotografia a garra.
Eventualmente, verifica-se cores ou tonalidades claras no uniforme dos operadores,
equipamentos e peças. Na figura 5 (vide anexo Estamparia/ 2005:78), observa-se um contraste:
cor preta e tonalidades escuras no objeto que o operador segura e no ambiente; cores claras no
corpo do operador (a imagem, novamente, retrata apenas o tronco do operador – braços e mãos),
o que permite uma visualização e identificação do elemento vivo adequada:
Figura 5 - “Transporte manual”
As fotografias dão, ao que parece, às ferramentas, peças, equipamentos e, por vezes,
partes do corpo humano, um tratamento “privilegiado”. Quando há iluminação, e na maioria das
vezes não há (as imagens têm a predominância da cor preta e tonalidades escuras), a incidência
de luz recai nos objetos, nas peças, nos equipamentos, no uniforme e partes do corpo do operador
e, por vezes, nos ambientes. Mas, quando há a presença do elemento humano (imagem do corpo
inteiro ou rosto), em geral, a iluminação é insuficiente.
Por exemplo, verifica-se, como na figura 6 (vide anexo Armação/ 2004:69), cores claras
que iluminam, principalmente, as peças e equipamentos do ambiente. O excesso de incidência de
luz, no entanto, retira dos elementos fixos registrados os detalhes de sua visualização. Não há
presença do elemento humano nessa imagem:
Figura 6 - “linha do UB1”
Numa outra imagem, figura 7 (vide anexo Armação/ 2005:14) em que há presença do
elemento humano, verifica-se o contrário: a imagem tem predominância da cor preta e
tonalidades escuras, tornando quase impossível a identificação e visualização dos elementos que
a compõe. O elemento vivo, considerado dominante, é visualizado apenas pelo contorno do
corpo, em função do contraste entre o uniforme, mais claro, e o ambiente, escuro. No entanto a
qualidade da imagem é questionável:
Figura 7 – “Ponteadeira (1) e dispositivo (2)”
Muitas vezes é relatada pelos aprendizes a questão da iluminação das áreas como sendo
pouca, insuficiente ou precária: “a iluminação da estamparia é precária, por esse motivo na linha
do try-out são colocado [sic] lâmpadas, (...)” (Estamparia/ 2005:33); “o operador trabalha (...)
com pouca iluminação”; “a oficina é um local com (...) iluminação insatisfatória (...)”;
(Manutenção/ 2005:11, 24).
O enunciado verbal “pouca iluminação”, por exemplo, é acompanhado do enunciado
visual figura 8 (vide anexo Manutenção/ 2005, p.12), que registra, de fato, pouca ou nenhuma
iluminação no ambiente:
Figura 8 – “Operador na bancada”
Observa-se que a cor preta e a tonalidade escura predominam na imagem; há
apenas uma incidência de luz fora do espaço da bancada e do elemento humano. Pelo contraste
que a luz cria, pode-se dividir a imagem em dois ambientes: um, do operador, equipamentos e
peças de trabalho; outro, fora do operador, equipamentos e peças de trabalho.
A legenda identifica como elemento central na imagem o operador e, também, a bancada.
No entanto, a imagem retrata muito mais a “sombra” de um sujeito, do que propriamente um
sujeito.
Há, de acordo com as imagens retratadas, na sua maioria, uma tendência para a
iluminação no ambiente de trabalho quando não há a presença da figura humana; quando o
sujeito compõe a imagem, a iluminação, em geral, não incide sobre ele.
Por vezes, ao contrário, com relação à qualidade da iluminação do ambiente, os
aprendizes descrevem, por exemplo, no trabalho de pesquisa Manutenção/ 2005, o ambiente
externo com iluminação satisfatória: “a oficina é um local com piso áspero, com iluminação
satisfatória (...)” (Manutenção/ 2005:11).
Há, nesse trabalho, apenas uma imagem que retrata o ambiente externo: trata-se do item
que descreve o “ferramental”.
A figura 9 apresenta uma incidência de luz no chão, do lado direito do elemento “VAP”,
refletida pela água e é acompanhada do seguinte enunciado verbal: “a vap fica localizada perto do
operador num lugar de fácil acesso (...)” (vide anexo Manutenção/ 2005:27, grifo meu). Nota-se
que nessa imagem, que tem grande incidência de luz, o termo verbal aplicado que avalia o
ambiente, diferentemente de outras situações que descreverei a seguir, é qualificado,
semanticamente, como positivo – “fácil”:
Figura 9 - “Ferramenta VAP”
A imagem que tem grande incidência de luz é acompanhada do enunciado verbal lugar de
fácil acesso.
Não há, no entanto, imagens que seguem o enunciado verbal “iluminação satisfatória” que
avalia o tópico “ambiente externo” (vide anexo Manutenção/ 2005:11, 15, 18, 21, 24, 29),
ilustrando-o, da mesma forma como quando os aprendizes referem-se ao ambiente interno.
Por exemplo, a figura 10 (vide anexo Manutenção/ 2005:12) segue logo após os
enunciados que avaliam os itens “Problema” e “Ambiente Interno”: “na operação, ele fica por
várias horas com sua coluna totalmente curvada e para trabalhos em locais de difícil acesso é
exigido muito de seu ombro (...)” e “o operador trabalha fazendo testes no motor de partida e fica
sujeito a ruídos, fumaça e trabalha com pouca iluminação. É nesse local onde se encontram 90%
das posturas não-ergonômicas” (vide anexo Manutenção/ 2005:11, grifos meus):
Figura 10 - “Manutenção do m [otor]”
Observa-se que para descrever o ambiente os aprendizes utilizam termos como “fica com
coluna totalmente curvada”, “trabalhos em locais de difícil acesso”, “fica sujeito a”, “pouca
iluminação” e “local de posturas não-ergonômicas”.
Conforme já discutido, a predominância da cor preta e tonalidades escuras nas fotografias
tendem a “fechar” o ambiente retratado. Os enunciados que seguem a essas imagens as
descrevem como um “local de difícil acesso”. Os termos aplicados que avaliam alguns aspectos
do trabalho, avaliados ergonomicamente, são, semanticamente, negativos. O elemento vivo está
“escondido” na imagem; a legenda considera a “manutenção do m [otor]”, ou seja, a atividade
como elemento principal da fotografia.
No trabalho de pesquisa Montagem Final/ Pintura/ 2006:14, por exemplo, os aprendizes
apresentam a descrição do “Layout da Área” como adequada: “a iluminação do local é adequada.
Como se pode perceber nas fotos, ass [sic] luminárias se encontram quase na altura do chão,
facilitando assim a iluminação (...)”.
No entanto, as fotografias que são apresentadas no decorrer do trabalho de pesquisa, têm a
predominância de cores e tonalidades escuras, como por exemplo, as figuras 11 e 12 (vide anexo
Montagem Final/ Pintura/ 2006:19, 39):
Figura 11 - “Pescoço” Figura 12: “Pernas”
A imagem à esquerda, figura 11, tem cor e tonalidade escura, praticamente sem variações
de nuances, o que torna os elementos vivo e fixo que a compõem praticamente como um único
elemento. Há incidência de luz ao longe, dividindo a imagem em dois elementos: (1) sujeito/ peça
e (2) ambiente.
A imagem à direita, figura 12, também tem cor e tonalidade escura, contrastando com
tonalidades claras. É quase imperceptível a presença do elemento vivo (o operador) nessa
imagem, não fosse o círculo inserido na fotografia pelos aprendizes para indicar as “pernas” do
operador.
A cor e tonalidades dos elementos peça e humano tem pouca, ou nenhuma, variação de
nuances. O sujeito, que está “escondido” na imagem, mistura-se ao ambiente, quase que
“camaleonicamente”. Sujeito, peça e ambiente tornam-se, praticamente, um só elemento.
Essas imagens reforçam a questão já citada das cores e tonalidades escuras quando
presença do elemento humano. Observa-se a incidência de luz fora dos elementos humano e peça.
Há, ainda, considerando o enunciado verbal “a iluminação do local é adequada” e os
enunciados visuais que compõem o trabalho de pesquisa Montagem Final/ Pintura/ 2006 (as
imagens acima são um exemplo), uma contradição: predomina na imagem a cor preta e
tonalidades escuras, justamente o contrário do que afirma o enunciado verbal.
Poderia-se dizer, neste momento, que a qualidade das imagens não é boa ou satisfatória e
que o ambiente talvez tenha, como relatam os aprendizes, iluminação adequada. Mas, para a
teoria central que adoto nesta pesquisa, não é possível trabalharmos com “intenções”; a
materialidade do texto é o material de trabalho.
O que os relatórios de pesquisa apresentam são, na sua maioria, imagens escuras, com
pouca ou nenhuma iluminação, dificultando a identificação e visualização dos elementos que as
compõem. Essas imagens, que foram realizadas e selecionadas pelos próprios aprendizes para
comporem os relatórios, ao serem articuladas aos enunciados verbais, geram um sentido:
apontam para contradições.
Pode-se fazer, neste ponto, algumas considerações com relação às cores e tonalidades
descritas nas imagens. De acordo com Lima (1985:49), há na cor preta uma forte tendência em
associá-la à dramaticidade das imagens, à passividade; é um elemento que fecha, diminui o
espaço, tornando-o sombrio.
De fato, verifica-se nas imagens que as cores e tonalidades escuras “fecham” o ambiente,
diminuindo-o, “dificultando” sua visualização. Ao articularmos os enunciados visuais aos
verbais, verifica-se que o termo “difícil acesso” será, em muitas situações, aplicado para referir-
se aos ambientes retratados, conforme observado, escuros.
Por exemplo, no trabalho Manutenção/ 2005, a expressão “trabalhos em locais de difícil
acesso” é aplicada, em geral, no tópico “Problema”: “na operação, ele [o operador] fica por várias
horas com sua coluna totalmente curvada e para trabalhar em locais de difícil acesso é exigido
muito de suas pernas e coluna” (vide anexo Manutenção/ 2005:11, 15,18, 24, 29, grifo meu).
Com relação ao tópico “Descrição do Trabalho”, os aprendizes avaliam que “a área de
trabalho, [sic] não oferece ao operador posições ergonomicamente corretas, tendo o mesmo que
curvar-se (...)” (vide anexo Manutenção/ 2005:20).
Num outro trabalho, Estamparia/ 2005, os aprendizes avaliam que “a maior parte da
iluminação é natural, o que torna a iluminação inconstante e ruim, prejudicando os funcionários”.
Avaliam ainda que “a área não possui uma boa ventilação, o que proporciona um ambiente
abafado e quente” (vide anexo Estamparia/ 2005:11).
Por outro lado, avaliam, também, que o “chão é limpo constantemente para evitar (...)
escorregar” e que a “disposição do maquinário é boa”.
Na página seguinte, página 12 (vide anexo Estamparia/ 2005), os aprendizes apresentam
uma fotografia da área avaliada. A imagem ocupa, praticamente, mais da metade da folha.
Apenas os enunciados “Fig. 1 Estamparia”, acima da foto, e “Fonte: Estamparia”, abaixo da foto,
acompanham a imagem:
Figura 13 – “Estamparia”
Trata-se de uma imagem em que as tonalidades claras, em contraste com tonalidades mais
escuras, possibilitam uma boa visualização e identificação da área. O tamanho e o plano
dedicados à imagem favorecem a visualização do chão e a disposição dos elementos fixos que
compõem à imagem (maquinário) e dos elementos vivos (três sujeitos).
No entanto, conforme já discutido em Lima, há um aspecto a ser observado nessa imagem
com relação ao elemento vivo e o espaço que ele ocupa. Se esse elemento vivo for muito
reduzido na foto, em relação ao espaço, passa a ser um grafema, ou seja, um símbolo gráfico,
“sem significado expressivo” (1985:20). O elemento humano, além de não ser central na imagem,
passa a ser considerado, na fotografia, como elemento sem significado expressivo.
No decorrer do trabalho, os aprendizes apresentarão, ao contrário da imagem acima,
fotografias escuras, que dificultam a visualização dos elementos que as compõem, “fechando” o
ambiente, diminuindo-o, conforme as figuras 14 e 15: (vide anexo Estamparia/ 2005:14, 51):
Figura 14 – “Pouca iluminação” Figura 15 – “Ponteiro”
Na figura 14 nota-se uma pequena incidência de luz, ao fundo da imagem, e não há a
presença do elemento humano; na figura 15 verifica-se a presença do elemento humano que,
como já visto, em função do seu tamanho em relação ao ambiente, torna-se um grafema:
novamente, a cor e tonalidade escura, praticamente sem nuances, a falta de iluminação ou alguma
incidência de luz torna o ambiente, peças, equipamentos e sujeito, praticamente, como um único
elemento na imagem – o sujeito se esconde, ou é escondido, “camaleonicamente”.
No trabalho de pesquisa Manutenção/ 2006, os aprendizes apresentam uma avaliação do
posto de trabalho analisado. No item “AMBIENTE DE TRABALHO”, por exemplo, há
considerações com relação a alguns aspectos do posto como: “grande ruído causado pelos outros
compressores de ar no local, a deficiência na iluminação, a deficiência na ventilação do ambiente
e pela umidade excessiva do local” (vide anexo Manutenção/ 2006:30).
Algumas das imagens desse trabalho evidenciam operadores “montados” nos
compressores de ar. Os aprendizes observam que “o operador fica em várias posições anti-
ergonômicas desde quando pega suas ferramentas até quando faz a manutenção, para isso, ele
fica agachado dentro dele, entre outras posições que exigem um bom condicionamento físico (...)
(vide anexo Manutenção/ 2006:11).
As imagens retratam um ambiente escuro, de “difícil” acesso, conforme as figuras 16 e 17
(vide anexo Manutenção/ 2006:13, 15):
Figura 16 - “Análise REBA – Tronco” Figura 17 – “Análise REBA – Pernas”
Avalia-se, por fim, que o elemento considerado como central nas imagens não é nem o
operador, nem a função que ele realiza, nem o ambiente ou equipamentos retratados: o elemento
central é a análise dos movimentos de partes específicas do corpo do operador: tronco e pernas.
A opção pelas imagens em preto-e-branco dá às fotografias, segundo Langford (1996:13),
um tratamento “menos cruel da realidade”. De acordo com a afirmação do autor, pode-se inferir
que as imagens em cores, diferentemente das em preto-e-branco, dão um tratamento “cruel” à
realidade.
O único trabalho de pesquisa que apresenta as imagens em cores é o da Montagem Final/
2004. Há, no total, 12 fotografias, todas de operadores em situação de trabalho. As cores que
prevalecem nas imagens são vermelho (peças/ carroceria), azul (uniforme do operador), amarelo
(estrutura dos equipamentos e da área de trabalho) e cinza (peças/ carroceria).
A figura 18 (vide anexo Montagem Final/ 2004:38), por exemplo, tem as cores cinza e
azul como predominantes na imagem:
Figura 18 - “COLOCAÇÃO BANCOS TRASEIROS”
Logo abaixo da imagem, os aprendizes avaliam que “o operador utiliza com maior
intensidade os músculo [sic] da região cervical, lombar e membros superiores, utilizando um alto
índice de força e flexibilidade” (vide anexo Montagem Final/ 2004:38).
Verifica-se que, associados à imagem, seguem enunciados verbais como “maior
intensidade” e “alto índice de força”. No decorrer das análises, os aprendizes consideram esses
aspectos ergonomicamente inadequados, de acordo com a tabela de cores que avalia os
movimentos dos operadores como “baixo, médio, e alto nível de intensidade”.
Algumas dessas cores são reforçadas em apenas duas fotografias, figuras 19 e 20 (vide
anexo Montagem Final/ 2006:56), em partes do corpo dos operadores, com retoques do recurso
do programa do Word “paint brush”, associando-as à tabela de análise dos dados que identifica os
“níveis de intensidade” em cada movimento realizado pelo operador na operação.
Assim, de acordo com a tabela, a quantidade de vermelho representa “alto índice
de Força” do movimento, amarelo “Médio índice de Força” e verde “Baixo índice de Força”:
Figura 19 – “CHICOTE” Figura 20 – “CHICOTE”
O enunciado verbal que segue às duas imagens avalia que os movimentos repetitivos
realizados pelos operadores, a cada “2m 35s”, tornam o trabalho “cansativo e desgastante alem
[sic] de ser prejudicial a sua saúde” (vide anexo Montagem Final/ 2004:56).
As legendas que identificam as fotografias se referem ao elemento central nas imagens –
chicote - que, sequer, pode ser identificado visualmente. O que se identifica são dois elementos:
um vivo, o operador, e um fixo, a carroceria.
Outra consideração feita pelos aprendizes, ainda na mesma página, enfatiza que o
“operador utiliza muito dos músculos dorsais, cervicais, e os membros superiores alem [sic] das
pernas por permanecer 8 h diárias em pé. Mesmo com tanto desgaste o mesmo não reclama de
dores ou de cansaço (...)” (vide anexo Montagem Final/ 2004:56).
As imagens em cores, associadas à quantificação de intensidade do movimento dos
operadores, intensificadas com o reforço das cores vermelho, verde e amarelo, de acordo com a
tabulação de análise dos dados do trabalho Montagem Final/ 2004, e associadas aos enunciados
verbais intensidade, alto índice de força, cansativo, desgastante, prejudicial, acentuam a idéia de
dramaticidade da “realidade”.
Verificou-se, portanto, que tanto as fotografias em preto-e-branco quanto em cores
tendem a acentuar a dramaticidade das imagens. As fotografias em preto-e-branco, ainda, em
função das cores e tonalidade escuras tendem a “esconder” o elemento vivo.
4.3 Ângulos/ pontos de vista
Antes de iniciar a análise propriamente, relembrarei o número de imagens que retratam
operadores em situação de trabalho: 148 fotografias.
Dessas, 52 retratam operadores de perfil; 37 retratam operadores curvados; 27 retratam
operadores de costas; 11 retratam operadores agachados; 16 retratam o rosto dos operadores de
frente para a câmera e, dessas, apenas nove retratam os operadores direcionando o olhar para a
câmera/ fotógrafo; cinco retratam partes específicas do corpo dos operadores (braços e mãos).
As figuras 21 e 22 (vide anexo Manutenção/ 2005:18, 25), por exemplo, evidenciam os
operadores, na imagem à esquerda, curvado, “escondido” atrás da tampa do motor, e, na imagem
à direita, agachado, de perfil, no plano inferior.
Figura 21 – “Operador analisando o motor” Figura 22 – “Operador lavando a empilhadeira”
O enunciado verbal que analisa a figura 21 avalia que o “operador trabalha (...) e fica
sujeito a ruídos, fumaça (...). É nesse local onde se encontram 90% das posturas não-
ergonômicas” (vide anexo Manutenção/ 2005:18).
O enunciado verbal que analisa a figura 22 avalia que “a oficina é um local com piso
áspero (para evitar escorregar), com iluminação insatisfatória e ferramentas de fácil acesso. O
ruído é constante”. A avaliação indica, ainda, que o operador fica “agachado completamente
exigindo uma postura bem pior do que a anteriormente dita” (vide anexo Manutenção/ 2005:24,
25).
Alguns dos termos utilizados para se referirem ao ambiente e à operação realizada (“fica
sujeito”, “posturas não-ergonômicas”, “iluminação insatisfatória”, “ruído constante”, “exigindo
postura bem pior”) indicam aspectos, ergonomicamente, considerados pelos aprendizes,
inadequados.
No relatório Pintura/ 2004, os aprendizes avaliam que o operador “é forçado a manter uma
posição ergonomicamente incorreta (...) com isso o trabalhador fica arcado” e “é submetido a
posturas extremamente incomodas” (vide anexo Pintura/ 2004:29, 30, 50).
As figuras 23 e 24 (vide anexo Pintura/ 2004:28, 49) retratam os operadores, na imagem à
esquerda, curvados, de perfil, na imagem à direita, curvado, “escondido” atrás da tampa do motor
da carroceria:
Figura 23 - Bate-Pedra Figura 24 – “Normalização 4”
Outro trabalho de pesquisa, Armação/ 2005, também apresenta enunciados verbais
semelhantes: “O esforço feito pelo operário é muito grande (...), após algumas portas, ele já esta
[sic] se inclinando opostamente ao peso da porta (...) deixando-o numa posição ergonomicamente
incorreta” (vide anexo Armação/ 2005:35).
Há, nesse trabalho, apenas três imagens de operadores em situação de trabalho. As figuras
25, 26 e 27 (vide anexo Armação/ 2005:12, 14, 22 ). A imagem à esquerda, retrata o operador de
perfil. A qualidade da imagem, conforme já analisada no tópico “4.2 Cor e tonalidades escuras”,
é questionável, não permitindo identificação do elemento vivo. As demais imagens, central e à
direita, retratam os operadores de costas:
Figura 25 - “Ponteadeira (1) e Figura 26 “Operador retirando o Figura 27 - ”Movimento
dispositivo de fixação (2)” material para realizar a operação” do operário”
Os enunciados que seguem às imagens se referem à análise da operação. Os aprendizes
avaliam, por exemplo, com relação à imagem central, figura 26, que “o operador necessita retirar
a peça (pesando em torno de 7 kilogramas) (...) [e] finalizado o processo de solda a peça é
retirada pelo próprio operador para um outro estoque intermediário, que fica a uma distância de 3
metros.”; com relação à imagem à direita, os aprendizes avaliam que “o membro superior é a
parte do corpo [sic] sofre a maior tensão, pois a movimentação da peça é realizada manualmente
e com uma carga de 7 Kg” (p.12, 22).
Observa-se que as fotografias, em função da cor e tonalidade tendem a “esconder” o
elemento vivo que as compõem. Os enunciados que seguem às fotografias e que avaliam a
operação de trabalho consideram os aspectos analisados, ergonomicamente, inadequados.
Neste ponto, retomo Langford e Sontag para fazer uma consideração com relação ao
ângulo.
Segundo Langford, pode-se imprimir à fotografia um “colorido”, devido ao ângulo que se
escolhe para registrar determinada situação. Se uma cena de manifestação for fotografada por
detrás de uma fila policial, poderá se mostrar uma multidão ameaçadora; se for fotografada, ao
contrário, num ponto diante da multidão, poderá se mostrar autoridades repressivas (1996:17).
O ângulo, ou seja, o ponto de vista pelo qual a cena é retratada, implica sentidos. A
escolha do ângulo, no entanto, é feita pelo fotógrafo; quem, por fim, determina o ponto de vista é
o fotógrafo.
Nas duas imagens do relatório de pesquisa Armação/ 2005, figura 26 e 27, os operadores
são retratos de costas para a câmera; os fotógrafos/ aprendizes optaram, em função de “normas”
que impuseram ao tema – Ergonomia nos postos de trabalho-, por registrar os operadores sob
esse ângulo.
As “normas” são determinadas pelo fotógrafo e pela “visão fotográfica”, o que equivale
dizer pelo “modo como a câmera e o olho humano focam e avaliam a perspectiva” (Sontag,
1986:92, grifos meus). A escolha do ângulo é, portanto, uma avaliação; a fotografia é, nesse
sentido, o resultado de uma avaliação.
Vejamos em outros trabalhos de pesquisa o modo como a “visão fotográfica” registra os
elementos que compõem as fotografias.
No relatório Estamparia/ 2006, os aprendizes avaliam que “(...) os parafusos superiores
quanto os inferiores não estão na altura correta (...), fazendo com que o operador se incline mais
prejudicando seus membros (...)” (vide anexo Estamparia/ 2006:24).
As fotografias, que não seguem imediatamente a esses enunciados verbais, retratam os
operadores por vezes curvados, de perfil ou de costas. Observa-se que a legenda se refere à
análise do punho direito do operador, conforme figura 28 (vide anexo Estamparia/ 2006:18). Há
duas setas que foram acrescidas à imagem pelos aprendizes, indicando, de acordo com a legenda,
ser esse o elemento central na imagem. O operador, considerado elemento dominante na
fotografia, é retratado curvado:
Figura 28 - “Análise do punho direito
Ao levantar alguns dos termos que os aprendizes utilizam para analisar as operações,
constatei que, ao agrupá-los, reforçam idéias, a princípio, similares.
No trabalho Manutenção/ 2005, por exemplo, levantei termos ou expressões como
“coluna curvada”, “o operador que precisa se curvar”, “o operador que se sujeita”, “o trabalho
que exige muito da coluna do operador”, “o operador que é exigido em posturas não
ergonômicas”, “o operador que tem que curvar-se e agachar-se”, “o operador se submete” (p.10,
20, 26, 10, 14, 44, todos grifos meus).
Em outros trabalhos de pesquisa identifiquei enunciados semelhantes. Por exemplo: “os
operários ficam curvados”, (Estamparia, 2005:17); “o operador é forçado a manter uma posição
ergonomicamente incorreta durante a realização de sua função” (Pintura/ 2004:29); “o operador
faz o lixamento (...) [e] fica praticamente o turno todo na mesma posição, forçando a região
cervical (...)” (Estamparia/ 2004:54); “o operador realiza o movimento com a cabeça (...) [e] a
inclina cerca de 30° para baixo, (...)” (Armação/ 2005:18, todos grifos meus).
Observe-se, semanticamente, alguns desses termos.
O substantivo coluna tem, segundo o dicionário Houaiss (2001), mais de vinte
denominações. Selecionei as seguintes: “1.ARQ. suporte vertical, cilíndrico ou quase cilíndrico;
4.qualquer suporte vertical cilíndrico que trabalhe sob compressão; 10.pessoa ou coisa muito
forte; pilar; 27.c.espinhal ANAT m.q. coluna vertebral; c.vertebral ANAT conjunto das vértebras
que se sobrepõem umas às outras na parte dorsal do tronco, formando uma espécie de coluna que
vai do crânio ao cóccix.” (grifos meus).
O dicionário Houaiss (2001) registra o vocábulo curvar como: “1. Tornar(-se) curvo;
envergar(-se) em arco ou em ângulo; arquear(-se); 2.impor domínio sobre; submeter; subjugar;
3.sujeitar-se a; submeter-se; ETIM lat curvo, curvar, dobrar, apiedar, comover”. O vocábulo
curvado é registrado como: “subjugado, dominado, resignado, oprimido” (grifos meus).
O vocábulo agachar é registrado pelo mesmo dicionário da seguinte maneira: “1.fazer
ficar ou ficar de cócoras; abaixar(-se); 1.1fig. submeter-se a situação humilhante; rebaixar-se
(costuma a __ -se ao primeiro grito do chefe); 1.2.ceder diante de argumento, fato, uso de força
etc; curvar-se (ante o testemunho indiscutível, os contestadores agacharam-se).” O vocábulo
agachado é registrado como: “1.posto de cócoras, abaixado, escondido; 1.1.fig. que se encontra
abatido ou humilhado; 1.2.que é servil, subserviente” (grifos meus).
O dicionário Houaiss registra da seguinte maneira o vocábulo submeter: “1.tirar a
liberdade e a independência de; dominar, subjugar, sujeitar. 2.reduzir à obediência, à
dependência, ou render-se, entregar-se, obedecer às ordens ou vontade de outrem; 3.fazer
(alguém ou algo) de alvo de alguma ação; sujeitar(-se), entregar(-se), expor(-se); ETIM. lat.
submitto ou summitto por debaixo, lançar (o macho à fêmea); subjugar, sujeitar” (grifos meus).
Com relação às imagens, observei a constância do registro dos gestos “curvar a coluna” e
“baixar a cabeça”, realizados pelos operadores retratados. De acordo com Câmara Cascudo,
curvar a cabeça e dobrar o tórax indica um gesto instintivo, espontâneo e natural, num plano
intencional de convivência: “deveria constituir a primeira demonstração submissa pelo
desnivelamento proposital, aparentando maior altura física ao homenageado” (2003:225, grifos
meus).
Assim, os termos coluna, curvar, agachar e submeter e os gestos visuais baixar a cabeça
e curvar a coluna remetem à idéia, no sentido figurado, de rebaixamento, inferiorização,
diminuição de valor e demonstração de submissão.
Visualmente, ainda, essa idéia apontará, também, para a questão da relação de dominância
visual, superioridade versus inferioridade entre fotógrafo e fotografado. Trata-se, conforme Lima
(1985:108) de relações de hierarquia.
Como já indicado anteriormente, não é possível a identificação dos rostos e dos olhos dos
operadores na maioria das situações. Apenas 16 fotografias retratam os operados com o rosto de
frente para a câmera, sendo que em nove delas, os operadores não direcionam o olhar para a
câmera/ fotógrafo.
As 16 imagens foram verificadas nos seguintes relatórios: Armação/ 2004 (p. 59, 71, 73),
Pintura/ 2004 (p.52, 57), Estamparia/ 2004 (p.38, 47), Montagem Final/ 2004 (p.42),
Manutenção/ 2005 (p.31), Armação/ 2006 (p.34, 43, 50), Montagem Final/ Pintura/ 2006 (p. 21,
22, 23, 24).
Por exemplo, observa-se nas figuras 29 (vide anexo Armação/ 2004:73) e 30 (vide anexo
Manutenção/ 2005:31) que os operadores são retratados de frente para a câmera; melhor, o
fotógrafo/ aprendiz escolhe esse ângulo, permitindo a visualização do rosto e, por vezes, dos
olhos dos operadores.
No entanto, o olhar dos operadores não é direcionado para a câmera/ fotógrafo. Na
imagem à esquerda, figura 29, o operador dirige o olhar para o plano inferior, em direção à peça
que está soldando; na imagem à direita, figura 30, o olhar é direcionado para a esquerda do
operador, na direção do plano inferior:
Figura 29 - “Operador soldando o túnel no UB1” Figura 30 - “Carrinho de ferramentas”
As imagens seguintes, figuras 31 e 32 (vide anexo Montagem Final/ Pintura/ 2006:21,
24), também retratam os operadores de frente para a câmera, ou melhor, o fotógrafo se coloca à
frente do operador. Porém, o olhar do operador está direcionado para o plano superior, em
direção à peça que está acima de sua cabeça. Outras duas imagens desse mesmo trabalho de
pesquisa retratam situações semelhantes (vide anexo Montagem Final/ Pintura/ 2006:22, 23).
Figura 31 - “Braço esquerdo” Figura 32 – “Antebraço direito”
A figura abaixo, 33, retrata o operador direcionando o olhar para a câmera/ fotógrafo.
Observa-se na imagem (vide anexo Armação/ 2004:71) a presença de dois operadores: o da
direita é retratado de perfil e tem o olhar direcionado à peça que carrega, enquanto que o da
esquerda é retratado de frente para a câmera. Nota-se que o olhar desse operador é direcionado
para a câmera/ fotógrafo, porém a imagem é bem escura (predomínio da cor preta e tonalidades
escuras), dificultando a visualização e identificação do rosto do operador. Mais uma vez, o
operador “se esconde ou é escondido” na imagem:
Figura 33 - “Estrutura do H”
Na imagem abaixo, figura 34 (vide anexo Estamparia/ 2004:38), verifica-se o
corpo do operador retratado de perfil e somente o rosto voltado de frente para a câmera/ fotógrafo
o que, a princípio, permitiria a visualização e identificação do rosto do operador. No entanto, a
qualidade da imagem é questionável, dificultando a visualização e identificação.
Figura 34 - “Operador [J.C.R.]”
A imagem seguinte, figura 35 (vide anexo Estamparia/ 2004:47), retrata dois
operadores. Observa-se que o operador à direita da imagem está de costas, apenas com o rosto e o
olhar voltados para frente, direcionados para a câmera/ fotógrafo; o operador à esquerda está de
frente para a câmera/ fotógrafo, no entanto dirige o olhar para o operador da direita. A imagem é
escura, dificultando a visualização e identificação de ambos operadores:
Figura 35 - “Posição do operador 2”
Na figura 36 (Montagem Final/ 2004:42), em cores, o rosto e o olhar do operador estão
voltados diretamente para a câmera/ fotógrafo, porém, o corpo do operador é retratado de perfil.
Figura 36 - “BANCO DIANTEIRO”
Dentre as nove imagens que retratam os operadores com o olhar direcionado para a
câmera/ fotógrafo, há quatro delas, inclusive a figura 36, em que se pode visualizar e identificar o
operador com nitidez em função da luz, do ângulo e do plano em que ele é retratado.
Na imagem acima, visualiza-se nitidamente o operador, considerado o elemento
dominante em relação aos demais elementos fixos que compõem a imagem. A legenda, no
entanto, indica que o elemento central da fotografia é o elemento fixo que o operador carrega –
banco dianteiro.
As outras três imagens em que os operadores são retratados de frente, direcionando o
olhar para a câmera são as fotografias “Análise dos movimentos do punho direito”, “Análise do
braço esquerdo” e “Análise do punho direito” (vide anexo Armação/ 2006:34, 43,50).
As imagens são em preto-e-branco e, em função do ângulo em que foram retratados os
operadores e da incidência de luz que reforça o contraste entre as tonalidades claras e escuras,
permitem visualizar e identificar os elementos que as compõem, inclusive detalhes do rosto dos
operadores.
Nas três imagens, o corpo do operador (o operador retratado é o mesmo sujeito e a
fotografia se repete no decorrer do relatório) é retratado de perfil, no entanto o rosto e o olhar
dirigem-se diretamente à câmera/ fotógrafo, como no exemplo da figura 37 (vide anexo
Armação/ 2006:34). As legendas, nesse caso, se referem a partes específicas do corpo dos
operadores.
Figura 37 – “Análise dos movimentos do punho direito”
As quatro imagens que permitem uma adequada visualização e identificação do rosto e
olhar dos operadores apresentam aspectos que devem ser considerados.
Com relação ao ângulo, os aprendizes/ fotógrafos escolheram registrar os operadores de
frente para a câmera. Os operadores, por sua vez, direcionaram o olhar para a câmera.
Trata-se de operadores que, pode-se dizer, “enfrentaram” a câmera/ fotógrafo; eles
olharam diretamente para ela.
Diferentemente dos demais operadores retratados, apenas essas quatro imagens receberam
um tratamento de luz, ângulo e plano, pode-se dizer, privilegiados, porque permitem a
visualização e identificação dos rostos dos operadores e de seus detalhes.
Nessas imagens verifica-se que os operadores estão eretos, embora o corpo seja retratado
de perfil. As quatro únicas imagens que permitem a identificação e visualização do rosto
operadores, inclusive de detalhes desses elementos, têm boa incidência de luz, com os contrastes
bem marcados entre tonalidades claras e escuras, e retratam os sujeitos eretos.
Essa constatão remete para uma suposta “relão de superioridade versus inferioridade”
do fotógrafo para o fotografado. Mais que isso: esse tratamento aponta, como se verá mais
adiante, para implicações de sentido na construção da noção de trabalho.
Neste ponto, retomarei Lima para melhor discutir a questão da dominância visual. O autor
observa que na transmissão das emoções é fundamental a visualização do rosto e dos olhos do
fotografado. O olhar, especificamente, pode estabelecer relações de sentido como a hierarquia
entre os homens, por exemplo (1985:108).
O autor considera que há por parte do fotógrafo uma “relação de superioridade” com o
fotografado, pois é o fotógrafo quem vai mostrar a imagem fotografada.
Nesse sentido, o fotografado, pode-se considerar, “submete-se” ao olhar do fotógrafo: “o
‘possuidor’ da sua imagem” (Lima, 1985:109). O fotógrafo é considerado, portanto, “superior”
aos seus assuntos, pois dá aos fotografados imagens que lhes são despercebidas, indesejáveis ou
mesmo desejáveis.
Desse modo, os aprendizes/ fotógrafos se colocam numa posição de superioridade em
relação aos operadores. As imagens retratadas e selecionadas pelos aprendizes focam os
operadores, na maioria das situações, de costas, de perfil, curvados, agachados, “escondidos”
atrás de tampas de motores e carrocerias, por exemplo, em ambientes com pouca ou nenhuma
iluminação, prevalecendo imagens em cor preta e tonalidades escuras.
A exceção se dá em apenas quatro imagens nas quais os operadores “enfrentam” a
câmera/ fotógrafo. Essas imagens privilegiam os sujeitos fotografados em ângulo, plano e luz,
permitindo uma visualização e identificação dos operadores.
Neste ponto, cabe fazer a seguinte consideração: obviamente os aprendizes não são
fotógrafos profissionais. Mas, escolheram, conscientemente ou não, determinados planos, luz,
ângulos, ou mesmo posicionamento dos operadores, a partir da análise ergonômica em relação
aos movimentos realizados pelos operadores.
Na verdade, há uma gama de possibilidades para o enquadramento das imagens: os
aprendizes poderiam ter optado, por exemplo, por retratar os operadores de frente para a câmera,
ao invés de os retratá-los de costas.
Também não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que os operadores trabalhem 100%
do tempo curvados, de costas, agachados (embora os aprendizes quantifiquem, em muitas
situações, inclusive, o tempo em que os operadores permanecem nessas posições em situação de
trabalho. Vide anexos, por exemplo, Montagem Final/ 2004:35, 37, 50, Estamparia/ 2004:37,
Armação/ 2006:13).
No entanto, o que interessa à análise do discurso é justamente a materialidade do texto. E
as fotografias selecionadas para os trabalhos de pesquisa, consideradas como enunciados visuais,
portanto, texto, retratam necessariamente sujeitos curvados, agachados, “escondidos” atrás de
tampas de motores, de carrocerias, em ambientes escuros. E são esses elementos, associados aos
enunciados verbais, que constroem sentidos.
Os aprendizes, ao fotografem determinadas situações, ao optarem por determinados
ângulos, ao registrarem um fragmento da, considerada por eles, “realidade”, de acordo com a
compreensão que eles têm de Ergonomia, impõem “normas aos temas que fotografam”.
De alguma forma, o registro e a seleção dessas imagens passa pela subjetividade, ou seja,
pela maneira como os aprendizes compreendem ou decidem o que é a “realidade” do trabalho dos
operadores, o que é ergonomicamente adequado ou inadequado ao trabalho, e como focam essa
“realidade” com a câmera. Trata-se da “visão fotográfica”: modo como os aprendizes focam e
avaliam a perspectiva.
Os operadores podem não passar a maior parte do tempo do trabalho agachados,
curvados, no entanto, o modo como o fotógrafo/ aprendiz vê o que existe, ou seja, não só registra,
mas avalia alguns fragmentos da “realidade”, o modo como as imagens são focadas e
selecionadas para comporem os relatórios, o número de imagens que retratam operadores de
costas, curvados, agachados, relacionadas a alguns elementos verbais já discutidos, constroem a
idéia de um trabalho que remete à “submissão”, de um sujeito que trabalha tendo que “sujeitar-
se”, “submeter-se” a determinadas posições.
Para comprovar essa idéia com relação a como se dá a construção da noção de trabalho,
nos trabalhos de pesquisa, procurarei estabelecer possíveis relações dialógicas entre os elementos
já identificados nos relatórios de pesquisa, até o momento, às outras partes que os compõem:
introdução, conclusão e epígrafe.
Segundo Bakhtin, não basta constatar, por exemplo, uma relação lógica entre dois termos.
É preciso, no enunciado de um sujeito, que esses dois juízos materializem-se “para que possa
surgir relação dialógica entre eles ou tratamento dialógico deles” (2005:183). Ao dividirmos
esses “juízos” entre dois enunciados de dois sujeitos diferentes, surgirá entre eles relações
dialógicas. Vamos a esses enunciados, a essas diferentes vozes.
Os aprendizes compreendem, de acordo com a introdução do trabalho de pesquisa
Manutenção/ 2005, que a “ergonomia é o estudo dos aspectos do trabalho e sua relação com o
conforto e bem-estar do trabalhador. Esta mais ligada às posturas, movimentos e ritmo
determinados pela atividade, (...)”. Continuam, ainda, considerando que “a ergonomia intervém
analisando o trabalho, as posturas adotadas pelo trabalhador, sua movimentação e seu ritmo que
de modo geral são determinados por outros fatores organizacionais” (vide anexo Manutenção/
2005:9).
No segundo parágrafo, os aprendizes apresentam a compreensão que têm do objetivo da
Ergonomia: “ela tem como objetivo analisar um posto de trabalho e poder trazer o máximo de
conforto para o operador” (vide anexo Manutenção/ 2005:9).
Verifica-se no enunciado verbal que os aprendizes compreendem que “a ergonomia
intervém analisando o trabalho” e “trata de aspectos do trabalho e sua relação com o conforto e
bem-estar do trabalhador” e deve proporcionar ao operador tais fatores. Essa compreensão, é
preciso lembrar, é trabalhada na e pela escola.
Na Introdução do trabalho de pesquisa Estamparia/ 2005 verifica-se, também, a
compreensão dos aprendizes com relação ao objetivo da Ergonomia como o de “melhorar a
relação homem e o ambiente, usando a ciência para desenvolver projetos de melhorias no
homem, dando a ele mais segurança, conforto, saúde e consequentemente aumetando [sic] o seu
desempenho no trabalho (...)” (vide anexo Estamparia/ 2005:10).
Na Introdução do trabalho Armação/ 2005, os aprendizes compreendem que a “ergonomia
trata-se do estudo da interação do homem e seu ambiente de trabalho, utilizando de [sic] ciências
(...) com um só propósito: Aplicar em projetos de máquinas, equipamentos e sistemas de
manufatura [sic] com o objetivo de melhorar segurança, saúde, conforto e a eficiência do
trabalho.” (vide anexo Armação/ 2005:10).
A Introdução do trabalho Armação/ 2006 traz a compreensão que os aprendizes têm de
Ergonomia como “o estudo da adaptação do trabalho ao homem. O trabalho aqui tem uma
acepção [sic] bastante ampla, abrangendo não apenas aqueles executados com máquinas e
equipamentos (...) mas também todo [sic] a situação em que ocorre o relacionamento entre o
homem em uma atividade produtiva. (...) abrangendo atividades de planejamento e projeto, que
ocorrem antes do trabalho, (...) durante e após esse trabalho” (vide anexo Armação/ 2006:10,
grifo dos aprendizes).
Observa-se que, para os aprendizes, a Ergonomia deve estudar a adaptação dos “aspectos
do trabalho ao homem”, “intervindo” e “aplicando” melhorias “em projetos de máquinas,
equipamentos e sistemas de manufatura”, objetivando “segurança, saúde, conforto e bem-estar”
ao trabalhador.
Os aprendizes reproduzem o discurso trabalhado na e pela escola. Trata-se, de acordo com
Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004:150), da incorporação do discurso de outrem.
Esse tipo de assimilação da palavra do outro é considerado pelo autor como o estilo
pictórico. Nesse estilo não identificamos com nitidez a palavra do outro: “sua tendência é atenuar
os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem” (Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004:150).
Ao apresentarem a definição e objetivos da Ergonomia, os aprendizes “apagam as
fronteiras do discurso citado”. Não há, por exemplo, uma referência ao autor com relação à
definição de Ergonomia ou aspas que indiquem ser o texto de um outro.
No entanto, ao assimilar a palavra de outrem, e deliberadamente apagar as fronteiras do
discurso citado, o autor pode “colori-lo com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, o seu
ódio, com o seu encantamento ou desprezo” (Bakhtin/ Voloshinov (1929/ 2004:150).
O enunciado “a Ergonomia é o estudo da adaptação do trabalho ao homem (...) durante
e após esse trabalho” (vide anexo Armação/ 2006:10) e a aplicação do recurso negrito justamente
nos termos adaptação, durante e após, evidencia o “colorido”, a entonação de uma outra voz, e
não apenas a da Ergonomia: a voz dos aprendizes que respondem ativamente a outros
enunciados.
Cabe compreender, no contexto, o sentido que esse “colorido” pode criar.
No decorrer da análise feita pelos aprendizes, constata-se que, por exemplo, de fato,
alguns aspectos do trabalho, relativos à Ergonomia, como o ambiente externo, são avaliados
como adequados: “a oficina é um local com piso áspero, com iluminação satisfatória e
ferramentas de fácil acesso” (vide anexo Manutenção/ 2005:11).
Em outros relatórios identifiquei enunciados semelhantes. Por exemplo: “a linha de
acabamento (...) [é] um local bem iluminado, e aparentemente limpo, para que assim seja mais
fácil identificar os defeitos e retrabalhar a carroceria”; “os equipamentos e ferramentas utilizados
no processo torna o mesmo mais fácil e rápido” (vide anexo Armação, 2004: 89, 92).
No trabalho Estamparia/ 2005, os aprendizes observam que “a disposição do maquinário é
boa e permite que tanto funcionários quanto empilhadeiras circulem tranqüilamente, sem correr o
risco de se chocar em algo (...)” (vide anexo Estamparia/ 2005:11).
O trabalho Armação/ 2005 também apresenta enunciados semelhantes: “O local é grande
dando disponibilidade do operador se locomover com a porta (...)” (vide anexo Armação/
2005:35).
Os aprendizes avaliam, ainda, com relação à área de Montagem Final, que “o layout é
bem aproveitado e organizado, já que este fornece aos operários um ambiente limpo, com baixo
ruído e ferramentas de fácil localização” (Montagem Final/ Pintura, 2006:36).
Numa outra passagem do mesmo relatório, os aprendizes também indicam que “a linha de
produção (...) está organizada em uma linha linear, para facilitar o fluxo de peças, operários,
manutenção e avaliação de qualidade. Por isso e outros motivos, a montagem final pode ser
classificada como um posto bom por fornece [sic] um ambiente agradável a seus funcionários”
(Montagem Final/ Pintura, 2006:36).
No entanto, verifica-se que a análise feita pelos aprendizes aponta para uma situação de
contradição. Vejamos.
Por exemplo, os aprendizes analisam que “durante o trabalho, o operador é exigido em
posturas não ergonômicas, afetando toda a coluna (...)” (Manutenção/ 2005:11, 23, 28). Na
página 11, por exemplo, logo a seguir, no tópico “Problema”, os aprendizes avaliam que “na
operação, ele [o operador] fica por várias horas com sua coluna totalmente curvada e para
trabalhos em locais de difícil acesso é exigido muito de seu ombro (...)”.
No trabalho Armação/ 2004, os aprendizes referem-se à área de trabalho como um lugar
de difícil acesso, o que pode ser considerado no texto como um aspecto ergonômico inadequado:
“devido as áreas [porta capote, caixa de roda, travessa central e dianteira] a serem retrabalhadas
possuírem um difícil acesso, os operadores acabam fazendo sua operação com posturas
incorretas” (p.84).
As imagens, em geral, retratam os ambientes em tonalidades escuras, de cor preta. Como
já visto, trata-se de um elemento que tende a “fechar”, diminuir o espaço. Visualmente, inclusive,
pode-se considerar os ambientes, dada a pouca ou nenhuma iluminação, como lugares de “difícil
acesso”.
Numa outra passagem do trabalho Manutenção/ 2005, os aprendizes avaliam que “o
operador trabalha fazendo testes no motor e fica sujeito a ruídos, fumaça e trabalha com pouca
iluminação. É nesse local onde se encontram 90% das posturas não-ergonômicas”; “o operador
retrabalha alguns defeitos no pneu e fica sujeito a ruídos. É nesse local onde se encontram 90%
das posturas não-ergonômicas”; “o operador trabalha fazendo ligações elétricas no motor e fica
sujeito a ruídos, fumaça e trabalha com pouca iluminação. É nesse local onde se encontram 90%
das posturas não-ergonômicas” (vide anexo Manutenção/ 2005:11, 15, 18, 21).
Os aprendizes avaliam, no relatório Armação/ 2005, imediatamente após apontarem um
aspecto, considerado por eles, ergonomicamente adequado - “o local é grande dando
disponibilidade do operador se locomover com a porta” -, dois aspectos inadequados: “mas, [1] a
iluminação é precária e [2] não há um banco ou cadeira para que, se o operador quiser sentar
aguardando [sic] a porta vir.” (vide anexo Armação/ 2005:35).
No trabalho Estamparia/ 2005, imediatamente após avaliarem a “disposição do
maquinário” como “boa”, os aprendizes julgam que “as prensas ao realizarem o seu trabalho dão
origem a um forte nível de ruído e vibração, que mesmo que não seja tão evidente interfere nas
operações e pode acarretar em problemas” (vide anexo Estamparia/ 2005:11).
Verifica-se, portanto, de acordo com a constatação e avaliação dos aprendizes, que há, nos
postos de trabalho, alguns aspectos que envolvem o trabalho ergonomicamente adequados
(ambiente de trabalho, ferramentas, por vezes iluminação).
Mas, em situação de trabalho, esses mesmos aspectos passam a ser avaliados, pelos
aprendizes, como inadequados: “a disposição do maquinário [as prensas] é boa e permite que
tanto funcionários quanto empilhadeiras circulem tranqüilamente, sem correr o risco de se chocar
em algo”. No entanto, “as prensas ao realizarem o seu trabalho dão origem a um forte nível de
ruído e vibração (...) [que] pode acarretar em problemas (...) [como] perda parcial ou total da
audição (...) irritação e dor der [sic] cabeça.” (vide anexo Estamparia/ 2005:11).
Pode-se dizer, nesse sentido, que os aspectos que envolvem o trabalho, avaliados como
adequados num primeiro momento e, em seguida, como inadequados, não oferecem ao operador
“segurança, conforto, saúde, bem-estar” em situação de trabalho.
De acordo com a análise dos aprendizes, que se colocam na posição de ergonomistas, há
aspectos positivos que envolvem o trabalho, porém, em situação de trabalho, esses mesmos
aspectos, parece, perdem o valor.
Assim, em função desses aspectos “os operários ficam curvados”, são “forçado[s] a
manter uma posição ergonomicamente incorreta durante a realização” de seu trabalho, “forçando
a região cervical”. O operador “precisa se curvar”, “se sujeita[r]”, pois o trabalho “exige muito da
coluna do operador” e ele, por sua vez, “é exigido em posturas não ergonômicas”, tendo que
“curvar-se, agachar-se” e “submete[r-se]”.
Os termos adaptação, durante e após grifados em negrito na introdução do trabalho
Armação/ 2006:10, “a Ergonomia é o estudo da adaptação do trabalho ao homem (...) durante e
após esse trabalho” apontam, de acordo com as relações estabelecidas, para um questionamento,
uma contradição com relação à Ergonomia.
Pode-se “ouvir” a contradição apontada pelos aprendizes: alguns aspectos do trabalho
estão “adaptados” à ergonomia, portanto, é de se esperar que ofereceram saúde, segurança,
conforto e bem-estar aos operadores durante e após o trabalho. Há, nos locais de trabalho
analisados, aspectos adequados ergonomicamente, mas quando associados ao operador em
situação de trabalho não oferecem mais saúde, segurança, conforto e bem-estar.
Na Conclusão do trabalho de pesquisa Manutenção/ 2005, os aprendizes iniciam o
parágrafo na terceira pessoa do plural, “Concluímos”, afirmando que “em muitos postos de
trabalho a palavra ergonomia é totalmente desconhecida.”(vide anexo Manutenção/ 2005:44).
No mesmo parágrafo, verifica-se a passagem da terceira pessoa do plural para a primeira
pessoa do singular:percebi o quanto existe posições não ergonômicas e o quanto muitas vezes o
operador se submete para receber um salário justo, estragando seu corpo para isso.”
(Manutenção/ 2005:44, grifo meu).
Nesse momento, o aprendiz traz para si a responsabilidade da enunciação: ele apresenta
na sua própria voz, não mais na voz da escola ou da empresa, a sua consideração com relação ao
trabalho e com relação aos aspectos ergonômicos analisados por ele: “percebi o quanto o
operador se submete”.
No parágrafo final da conclusão do trabalho Manutenção/ 2005, os aprendizes constatam
que os postos de trabalho analisados “desconhecem a palavra ergonomia” e concluem que “a
resposta está na ginástica de compensação de posturas para que pelo menos haja um tratamento
melhor com seu corpo” (vide anexo Manutenção/ 2005:44, grifo meu).
Nessa passagem verifica-se que o aprendiz retoma a voz da escola e da empresa,
assimilando o discurso da Ergonomia, quando enuncia que a ginástica de compensação postural
deve ser aplicada nos postos de trabalho para tratar melhor do corpo dos trabalhadores.
Esse enunciado responde, ativamente, a outros enunciados: os da escola, que espera
verificar se e o quanto o aprendiz aprendeu para atribuir-lhe uma nota que represente o seu
aprendizado - o aprendiz espera, portanto, ter uma boa avaliação, ou uma boa nota -; os da
empresa, que espera por um profissional que tenha capacidade de avaliar o seu próprio trabalho,
de maneira a torná-lo mais eficaz.
Mas, ainda assim, é possível constatar nesse enunciado uma oscilação entre, pelos menos,
duas vozes: “a resposta está na ginástica de compensação de posturas para que pelo menos haja
um tratamento melhor com seu corpo”. Há nesse enunciado uma oscilação entre a voz da
Ergonomia, trabalhada na e pela escola, e a voz do aprendiz que aponta para um elemento
valorativo: pelo menos.
A ginástica de compensação pode, “pelo menos”, tratar “melhor” do corpo já que, pode-se
dizer, a Ergonomia não dá conta de, conforme a análise dos aprendizes, relacionar aspectos do
trabalho, analisados como adequados, ao bem-estar e conforto do trabalhador enquanto em
situação de trabalho.
Verifica-se que a conclusão do relatório não reforça os problemas que eventualmente
podem surgir em função de se trabalhar com a coluna curvada por longo período de tempo,
conforme a análise apresentada pelos aprendizes.
Na verdade, a conclusão parece reforçar a idéia de “curvar a coluna” associada à
submissão, ao ter que sujeitar-se a algo: “(...) percebi o quanto muitas vezes o operador se
submete para receber um salário justo, estragando seu corpo para isso.” (vide anexo
Manutenção/ 2005:44, grifo meu).
O operadorestraga seu corpo”, de acordo com a análise dos aprendizes, em função de se
“submeter a um salário justo” e não em função da coluna curvada, numa posição
ergonomicamente inadequada.
Voltemos às fotografias dos trabalhos de pesquisa que, visualmente, remetem à idéia de
submissão: operadores agachados, curvados, “de quatro”, cabeça “escondida” atrás do motor, de
costas (conforme figuras 38, 39 40 e 41 - vide anexos Manutenção/ 2005:15; Armação/ 2004:86;
Armação/ 2006:30; Estamparia/ 2004:42, respectivamente):
Figura 38 – “Operador centralizando o pneu” Figura 39 – “Operador da AFO 300”
Figura 40 – “Análise dos Movimentos do Figura 41 – “Operador de mini prensa”
Braço Direito”
Os aprendizes concluem, por fim, que os exercícios de compensação postural podem,
“pelo menos”, diminuir possíveis lesões, nesse caso, da coluna especialmente.
No entanto, arrisco a seguinte consideração, em função da análise dos dados até o
momento: a Ergonomia não propõe exercícios de compensação à submissão, ao ter que sujeitar-
se a uma determinada situação, de modo a receber um, considerado pelos aprendizes, “salário
justo”.
No trabalho de pesquisa Manutenção/ 2005, há uma fotografia figura 42 (vide anexo
Manutenção/ 2005:21), que, diante das relações já estabelecidas, e da imagem visual retratada,
remete a um ditado popular sobre a questão da submissão: “Quem muito se abaixa, a bunda
mostra” (Fontes Filho, 2006:266). Há outras variações, de acordo com o dicionário de expressões
idiomáticas de Fontes Filho: “quem muito se abaixa o cu lhe aparece” ou “quanto mais te
abaixas, mais te põem o pé em cima” (2006:266).
Figura 42 - “Operador subindo no guindaste”
A imagem do operador que “revela” as nádegas é, pode-se considerar, a tradução de uma
condição: de tanto se curvar, estando curvado ou não (na imagem acima o operador está
praticamente “pendurado”), acaba-se “mostrando” as nádegas.
Mais uma vez, faço a seguinte consideração: provavelmente não houve um “plano” para
retratar o operador com a calça caída, revelando suas nádegas. É muito provável que o próprio
operador sequer tenha dado conta do acontecido. Lembro: quem possui a imagem é o fotógrafo; o
fotografado “submete-se” ao possuidor de sua imagem.
Novamente, os aprendizes teriam uma gama de possibilidades para enquadrar essa
imagem, esse fragmento da “realidade”. Poderiam, inclusive, ter refeito a fotografia, pedindo ao
operador que ajustasse seu uniforme, ou, simplesmente, poderiam ter eliminado a fotografia do
trabalho de pesquisa.
A questão é que é exatamente essa imagem, e não outra, que compõe o relatório de
pesquisa. E essa imagem, esse enunciado visual, essa materialidade do texto, diante das relações
já estabelecidas, cria sentidos, remete à idéia de “submissão”, de “sujeitamento”.
A inscrição no relatório Manutenção/ 2005, associada aos enunciados visuais dos
trabalhos de pesquisa, bem como aos demais enunciados verbais já analisados, parece corroborar
com a idéia de que nem a Ergonomia e nem os exercícios de compensação postural resolverão a
questão da submissão: “Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância (Sócrates)”.
A citação aparece na folha inscrição, isolada, destacada do contexto narrativo, claramente
demarcada por aspas, itálico e identificação do autor da frase: trata-se, de acordo com Bakhtin, do
discurso citado de orientação linear que tende, ao isolar o discurso, evitar a interferência da
palavra daquele que a incorpora.
A frase atribuída a Sócrates, isolada na folha inscrição, permite identificar com nitidez
que se trata de uma outra voz que não a dos aprendizes.
No entanto, ao incorporar a citação no relatório de pesquisa, exatamente na folha
inscrição, lugar onde o sujeito se inscreve, ao selecionar exatamente essa específica citação e não
outra, já não se tem mais uma voz única: reconhece-se aí a “alternância dos sujeitos do discurso
(Bakhtin: 1979/ 2003:298), de, pelo menos, dois sujeitos: o autor da citação, autoria atribuída a
Sócrates, e o autor que incorporou a citação no trabalho de pesquisa, os aprendizes.
Mesmo delimitando esse discurso, o autor imprime a ele um tom valorativo (irônico,
indignado, simpático, reverente). A citação na folha inscrição é um enunciado em “resposta
aquilo que foi dito sobre dado objeto” (Bakhtin, 1979/ 2003:298), nesse caso, sobre a análise
Ergonômica nos postos de trabalho da fábrica.
Para Bakhtin essa resposta, ou melhor, essa responsividade, pode não ter uma nítida
expressão externa. Ela pode se manifestar “na tonalidade do sentido, na tonalidade da expressão,
na tonalidade do estilo, nos matizes mais sutis da composição”. O enunciado é, para o autor
“pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo
de um enunciado” (Bakhtin: 1979/ 2003:298).
As imagens do corpus retratam, na sua maioria, operadores de costas, com a coluna
curvada, agachados, cabeça baixa, por vezes, “escondidos”. Os enunciados verbais que compõem
o corpus se referem aos operadores como trabalhadores que têm que se curvar, se submeter a
determinadas posições não-ergonômicas nas operações de trabalho, em função, muitas vezes, dos
locais de difícil acesso.
Nessas condições, ou seja, curvados, agachados, de costas, escondidos, os operadores
não podem ver o que está à sua volta - desconhecem totalmente a palavra ergonomia; não têm,
portanto, condições de enxergar os limites da própria ignorância, diferentemente dos aprendizes:
percebi o quanto existe posições não ergonômicas e o quanto muitas vezes o operador se
submete”.
Por fim, a conclusão do relatório Manutenção/ 2005 evidencia, também, uma outra “voz”
que “atravessa” o enunciado - o discurso da sobrevivência: trabalhadores que se “submetem” a
um tipo de trabalho, com ferramental e local por vezes avaliados como ergonomicamente
adequados (piso adequado, iluminação satisfatória, ferramentas com tamanhos e texturas
adequadas para o manuseio e de fácil acesso e locomoção), mas com lugares de “difícil” acesso,
que exigem dos operadores que se submetam ou se sujeitem a posturas “não ergonômicas”, em
troca de um, considerado pelos aprendizes, “salário justo”.
4.2.3 Legendas e produção de sentido
Antes de iniciar a análise, propriamente, retomo o levantamento quantitativo feito com
relação às legendas.
O corpus tem no total, 206 fotografias realizadas pelos aprendizes e 184 legendas que as
identificam. O número de legendas é menor em relação às fotografias, em função de algumas
legendas considerarem duas ou mais fotografias como uma só figura.
Nos trabalhos de pesquisa Pintura e Montagem Final/ 2004, Armação e Manutenção/
2005, Montagem Final/ Pintura, Estamparia, Armação e Manutenção/ 2006 verifiquei que as
legendas são colocadas abaixo das fotografias. Nos demais trabalhos, são colocadas acima das
imagens.
As fotografias também são identificadas por outro enunciado verbal: fonte das imagens.
Os trabalhos Armação e Estamparia/ 2004 e Estamparia e Armação/ 2005 têm o enunciado verbal
“fonte das imagens” colocados abaixo das fotografias; os trabalhos Montagem Final/ Pintura e
Armação/ 2006 acima das fotografias. Os demais trabalhos não apresentam esse enunciado
verbal.
Das 184 legendas, 47 delas identificam imagens que retratam equipamentos, ferramentas,
peças e área de trabalho; 33 delas concentram-se no trabalho de pesquisa Armação/ 2004.
As demais legendas, 137, identificam imagens que retratam operadores em situação de
trabalho.
Das 137 legendas que identificam operadores em situação de trabalho, apenas 36 aplicam
o termo “operador”.
Dessas 36 legendas, 13 aplicam o termo operador seguido por um verbo de ação, no
gerúndio: operador subindo, retirando, soldando, guardando, centralizando, encaminhando,
analisando, arrumando, dirigindo, lavando, preparando, pegando, ajustando.
Por exemplo, as figuras 43, 44 e 45 (vide anexos Armação/ 2005:12, Manutenção/
2005:19 e Armação/ 2004:73, respectivamente):
Figura 43 - “Operador retirando o Figura 44 – “Operador arrumando Figura 45 – “Operador soldando
material para realizar o operação” motores fixos” o túnel no UB1”
Retomo Lima, neste ponto, para algumas considerações com relação aos elementos que
compõem uma imagem.
Segundo o autor, o elemento vivo (homens e animais) que compõe uma imagem na
fotografia é dominante em relação aos demais elementos (móvel: fenômenos e elementos naturais
e fixos: objetos) (1988:19). Lima observa, ainda, que para os ocidentais o homem é a figura
principal, enquanto que para os orientais o espaço é o elemento central.
As fotografias acima têm como elemento dominante na imagem o homem. Esse
componente está centralizando no enquadramento. Todas as três fotografias apresentam também
elementos fixos: peça, figura 43, motor, figura 44, e ferramenta, figura 45.
Na figura 43 o operador é retratado de costas; na 44, sentado, de perfil; na 45, de frente,
porém olhar do operador se dirige à ferramenta.
As legendas que identificam as fotografias se referem ao operador e à operação realizada
por ele: “operador retirando o material para realizar a operação”,operador arrumando motores
fixos” e “operador soldando o túnel no UB1”.
Nesse sentido, pode-se considerar, então, que, de fato, as legendas apontam o operador e a
operação que ele realiza como elemento principal nas imagens, muito embora nas figuras 43 e 44
não seja possível a visualização dos operadores.
Já no trabalho de pesquisa Estamparia/ 2005 verifica-se, por exemplo, certa
“discordância” na relação que se estabelece entre as legendas e as fotografias.
A figura 46 (vide anexo Estamparia/ 2005:79) retrata apenas os braços do operador e a
peça que ele trabalha, cortando a parte superior do corpo do operador, a cabeça. A legenda aplica
o termo operário seguido por um verbo de ação, no presente. O elemento vivo não está
centralizado na imagem.
Figura 46 - “O operário trabalha a peça até que ela esteja pronta.”
Percebe-se nessa imagem que o elemento humano é retratado de forma “fragmentada”,
pois visualiza-se apenas braços e mãos do operador. O elemento central na imagem é apenas uma
parte do corpo do operador, a peça e a operação que ele realiza.
Há apenas mais uma legenda, nesse mesmo trabalho, que aplica o termo “operário”,
conforme figura 47. (vide anexo Estamparia/ 2005:78). A imagem retrata o operador de corpo
inteiro, centralizado na imagem, curvado, de perfil para a câmera. A legenda aponta para o
elemento central na imagem: o operário e o trabalho realizado por ele:
Figura 47 - “O Operário retira a peça do estampo.”
O relatório de pesquisa Estamparia/ 2004 traz nas legendas o nome dos operadores em 7
das 12 fotografias, conforme as imagens 48 e 49 (vide anexo Estamparia/ 2004:54, 57):
Figura 48 – “Ferramenteiro [G.G.]” Figura 49 - Ferramenteiro [W.C.E.L.]”
Pode-se considerar, nesse sentido, que as legendas apontam como elemento principal nas
imagens os operadores que, nesse caso, são identificados pelos nomes e sobrenomes. As imagens,
no entanto, não permitem a identificação visual do rosto dos operadores.
A figura 48, em função do contraste entre as cores claras e escuras e da iluminação, é
nítida, permitindo identificar os elementos que a compõe, inclusive detalhes; a figura 49 já
apresenta pouca incidência de luz, predominando cor e tonalidades escuras, embora seja possível
visualizar os contornos do corpo do operador.
Conforme descrito, os relatórios de pesquisa apresentam, no decorrer das páginas,
avaliação e comentários dos professores que acompanham, nas suas disciplinas correspondentes,
o projeto. Na imagem à esquerda, figura 48, observa-se o seguinte enunciado verbal: “* foto
distorcida pode ter falsa interpretação do processo”.
Esse enunciado remete à questão do que é considerado como “real” na fotografia. Sontag
observa que ninguém tira a mesma fotografia de um mesmo objeto, o que quer dizer que as
câmeras não registram uma imagem impessoal e objetiva. As fotografias são uma evidência do
que existe e, também, o modo como o fotógrafo vê o que existe: “não só como um registro mas
uma avaliação do mundo” (1986:84).
A figura 48 e o enunciado “* foto distorcida pode ter falsa interpretação do processo”, ou
seja, essas duas vozes discursivas, apontam para um conflito entre o que o enunciado verbal
considera como realidade e o que o enunciado visual retrata - a visão fragmentada de um
momento da “realidade”.
Há, por parte do professor que avalia a fotografia, um questionamento daquilo que para
ele é a forma como os aprendizes avaliam o “real”. A fotografia, conforme descrito, apresenta
visualização e identificação adequados dos elementos que a compõem. No entanto, o professor a
considera como “foto distorcida” a ponto de dar “falsa interpretação do processo”.
Entre a “visão fotográfica” dos aprendizes e a do professor se estabelece, portanto, uma
tensão, um conflito: a forma como cada um “enxerga”, ou melhor, avalia tal fragmento da
“realidade”, são dissonantes.
Verificou-se, também, que 101 legendas, que identificam as fotografias que retratam
operadores em situação de trabalho, se referem a outros elementos da imagem que não o
operador. Há, portanto, no total, 147 legendas que se referem a equipamentos, ferramentas, peças,
operação, área de trabalho e partes específicas do corpo dos operadores (mãos, braços, pernas,
tronco e cabeça).
Das 137 imagens de operadores em situação de trabalho, 30 delas têm legendas que se
referem à operação realizada: “colocação/ normalização/ aplicação/ ponteamento/ lixamento/
fixação”.
Por exemplo, o trabalho de pesquisa Montagem Final/ 2004 traz imagens de operadores
em situação de trabalho. No entanto, as legendas que as identificam se referem à operação
realizada (figuras 50, 51 e 52 - vide anexo Montagem Final/ 2004: 36, 38, 45):
Figura 50 - “COLOCAÇÃO DO Figura 51 - “COLOCAÇÃO Figura 52 – “COLOCAÇÃO
CONSOLE” BANCOS TRASEIROS” PORTAS”
Verifica-se nas imagens a presença de dois elementos: o vivo, ou seja, o operador,
dominante, praticamente centralizado nas fotografias, e o fixo, carroceria. Contrariamente, as
legendas indicam como elemento central nas fotografias a operação em si e as peças trabalhadas
na operação e não o sujeito que realiza a operação.
Aliás, o sujeito, sintaticamente, é apagado no enunciado (os verbos estão substantivados),
conseqüentemente a ação que realiza. Esse aspecto é constatado em outros momentos, por
exemplo: “Normalização 1”, “Aplicação de Massa” (vide anexo Pintura/ 2004:33, 44),
“ponteamento do assoalho traseiro”, “montagem do capô” (vide anexo Armação/ 2004:56, 59),
“Ajuste do Anel
(vide anexo Estamparia/ 2005:35).
Os verbos substantivados (normalização, aplicação, fixação, colocação, formação,
ligação, manutenção, ponteamento, lixamento, levantamento, montagem, ajuste, transporte)
deixam de ter um sujeito agente – aquele que pratica a ação. O elemento humano e a ação
praticada por ele são, portanto, “apagados” na legenda.
Nas imagens verifica-se também, por vezes, a fragmentação ou, até mesmo, o
“apagamento” do sujeito. Por exemplo, a figura 53 (vide anexo Armação/ 2004:62):
Figura 53 - “fixação pára-lama”
Trata-se de fotografias com tonalidades claras e grande incidência de luz, o que, como já
discutido, retira a identificação e visualização de detalhes dos componentes.
O elemento vivo está centralizado e há, também, a presença de elementos fixos (a
carroceria). Não é possível a identificação e visualização do rosto dos operadores: na imagem à
esquerda, o operador é retratado curvado, de perfil para a câmera/ fotógrafo; na imagem à direita
o operador é retratado de costas para a câmera/ fotógrafo. Os operadores foram registrados no
momento em que realizavam os movimentos, o que confere à fotografia imagens desfocadas.
A legenda indica, no entanto, como elemento principal na imagem a operação realizada
“fixação pára-lama”, subtraindo a ação de fixar e o sujeito que realiza a ação, que fixa o pára-
lama. Há um “apagamento” do sujeito verbo-visualmente.
Retomo Lima, neste ponto, para rever algumas considerações com relação às legendas.
Trata-se de um elemento integrante de uma fotografia que funciona como mediadora entre a
realidade vivida pelo fotógrafo e a imagem posteriormente vista pelo receptor. Ela pode, por um
lado, confirmar o que se vê na fotografia, mas, por outro, pode modificar inteiramente o que se vê
na imagem (1996:33).
Com relação a esse aspecto, Langford observa que, ao se fotografar um determinado
momento e etiquetá-lo com uma referência sobre qualquer evento “não será dicil alterar a
verdade dos factos reais” (1985:17).
De qualquer forma, para Lima, a pessoa certa para fazer a legenda da imagem fotografada
é a própria pessoa que a realizou, porque ela “conhece bem as razões de ter apertado o botão de
seu aparelho, assim como as condições daquele instante” (1996:33).
Pode-se dizer, portanto, que a legenda tende a indicar aquilo que é central para aquele que
dá o título à fotografia, nesse caso, o fotógrafo/ aprendiz. A legenda é, também, um aspecto
subjetivo, ou seja, assim como a imagem é o resultado de uma “visão fotográfica”, a legenda
também o será.
Os fotógrafos/ aprendizes dão nas fotografias, por meio das legendas, a indicação daquilo
que, para eles, é o elemento central nas imagens.
Há, no total, 110 fotografias com legendas que se referem às peças, equipamentos,
ferramentas, área de trabalho ou partes específicas do corpo do operador. Dessas, 71 têm o
elemento humano retratado na imagem.
No trabalho de pesquisa Pintura/ 2004, verifica-se, por exemplo, imagens que retratam
operadores em situação de trabalho. As legendas que identificam as fotografias se referem ao
material utilizado na operação e à peça que é trabalhada na operação, por exemplo, figuras 54 e
55 (vide anexo Pintura/ 2004:52, 60):
Figura 54 – “Fitas” Figura 55 – “Assoalho
Nota-se que os elementos citados nas legendas, fitas e assoalho, aliás, únicos elementos
verbais, não são identificados nas imagens. O que se identifica são sujeitos em situação de
trabalho (figura 54) retratados de frente para à câmera, mas que não direcionam o olhar para o
fotógrafo e (figura 55) sujeito curvado, de costas, praticamente dentro da carroceria.
No relatório Manutenção/ 2006, por exemplo, verifica-se na figura 56 (vide anexo
Manutenção/ 2006:27) uma imagem que retrata três elementos: um sujeito, elemento vivo,
considerado dominante em relação aos demais; uma incidência de luz refletida na janela,
elemento móvel, considerado dominante em relação ao elemento fixo; um carrinho de
ferramentas, elemento fixo.
A luz cria um contraste nítido entre o claro e o escuro: entre a cor da parede, tonalidade
clara, o corpo do operador, tonalidade escura, e o chão do ambiente, tonalidade escura. O
operador está retratado de corpo inteiro, de perfil e a cabeça voltada para a parede, o que não
permite a identificação do seu rosto. Ele segura uma alavanca que está “ligada” ao carrinho de
ferramentas e que, em função da tonalidade escura, na parte inferior da imagem, está quase
imperceptível, dificultando sua identificação e visualização:
Figura 56 - “Carrinho de ferramenta”
Verifica-se, portanto, que é possível visualizar a silhueta do corpo do operador, detalhes
do uniforme, do cabelo longo e preso. Mas, o carrinho que o operador segura pela alavanca está,
praticamente, imperceptível.
A legenda que identifica essa imagem se refere, no entanto, justamente ao elemento que
está quase imperceptível na imagem: “Carrinho de ferramenta”. O elemento central na fotografia,
contrariamente ao que a imagem retrata, é o carrinho de ferramentas que, em função da qualidade
da imagem, não é identificado ou visualizado.
A legenda “apaga” o elemento vivo, considerado na fotografia, dominante.
No relatório de pesquisa Pintura/ 2004 verificou-se uma imagem que retrata os elementos
carroceria e sujeito, conforme figura 57. A legenda que identifica a fotografia se refere à área
(vide anexo Pintura/ 2004:26):
F
igura 57 - Décor
A imagem é composta pelo elemento dominante, o operador, e o elemento fixo, a
carroceria. A legenda, no entanto, aponta como elemento principal na imagem a área Décor que
não é identificada na imagem como tal.
Com relação, ainda, às imagens que retratam os operadores, encontramos cinco
fotografias no corpus que retratam partes específicas do corpo dos operadores como braços e
mãos.
O número de imagens parece ser insignificante, a princípio, porém, ao articularmos com
alguns elementos verbais identificados no corpus, revelará outra questão que envolve a
construção da noção de trabalho: a visão “fragmentada” do operador e do processo. Mais adiante,
retomarei essa consideração.
Outras legendas se referem à análise ergonômica, destacando no título algumas partes do
corpo dos operadores analisadas (mãos, pernas, braços, tronco).
Por exemplo, o trabalho de pesquisa Armação/ 2006, traz legendas como as figuras 58, 59
e 60 (vide anexo Armação/ 2006:26, 28, 48):
Figura 58 – “Analise [sic] dos Figura 59 – “Análise dos Figura 60 “Análise do Punho
Movimentos do Tronco” Movimentos das Pernas” Esquerdo
Novamente, reforço: na fotografia, o sujeito é o elemento dominante, seguido pelos
elementos fixos. No entanto, as legendas se referem a partes específicas do corpo humano como o
elemento central, identificadas nas imagens por círculos e retas de ângulos, inseridas pelos
aprendizes, apontando para uma visão fragmentada do elemento humano que compõe a
fotografia.
O trabalho de pesquisa Estamparia/ 2006 também têm legendas que se referem às partes
do corpo humano como elemento principal na imagem, conforme as figuras 61, 62 e 63 (vide
anexo Estamparia/ 2006:11, 12, 13). As imagens, contrariamente, tendem a centralizar o
elemento humano, destacando-o como central. Os operadores são retratados, inclusive, de corpo
inteiro, no entanto, de costas, curvado e de perfil:
Figura 61 – “Análise do pescoço” Figura 62 – “Análise do Tronco” Figura 63 – “Análise das Pernas”
O trabalho de pesquisa Montagem Final/ Pintura/ 2006, traz legendas conforme as figuras
64, 65 e 66 (vide anexo Montagem Final/ Pintura/ 2006:20, 26, 40). Observa-se nessas imagens
que, em função das cores e tonalidades, a identificação e visualização do elemento humano é
dificultada. É, aliás, quase imperceptível a identificação do elemento humano na figura 66:
Figura 64 “Pernas” Figura 65 – “Punho Direito” Figura 66 – “Braço esquerdo”
Foi observado, portanto, que, das 137 legendas que identificam as imagens de operadores
em situação de trabalho, 101 imagens apresentam legendas que não se referem diretamente ao
operador como elemento central na imagem.
Algumas das imagens tendem a centralizar o elemento humano, indicando-o como
elemento central nas fotografias. No entanto, a visualização e identificação desse elemento é
comprometida em função das cores e tonalidades e dos ângulos que os operadores são retratados.
Muitas vezes, os operadores são retratados de costas, curvados, “escondidos” atrás de
carrocerias, tampas de motores. Outras vezes, em função da tonalidade, o sujeito “é escondido
no ambiente, confundindo-se com ele. Por vezes, são retratadas apenas partes específicas do
corpo dos operadores. Em função desse aspecto, pode-se considerar que há uma tendência a
“apagar” o sujeito retratado; por vezes, em “fragmentar” esse sujeito.
As legendas tendem a indicar como elemento principal nas imagens qualquer outro que
não o humano. A maioria delas se refere às peças, equipamentos, área de trabalho, ferramentas,
partes do corpo humano. Muitas vezes, quase não se identifica tais elementos nas imagens.
Outras legendas, quando se referem à operação realizada, têm os verbos substantivados,
“apagando” a ação e, por conseqüência, o sujeito que a realiza.
Em resumo, as legendas identificam como elemento principal nas imagens não o
operador, mas sim a operação em si, os equipamentos, as ferramentas, as peças, a área de
trabalho, as partes do corpo do operador.
Esses elementos identificados até o momento, articulados a outros enunciados verbais,
constroem no corpus uma idéia de visão “fragmentada” do processo e do próprio homem que o
realiza. Vejamos como se dá essa construção associada a outros elementos verbais.
No decorrer dos relatórios identifica-se figuras e, algumas vezes, fotografias que foram
incluídas nos capítulos e tópicos que tratam da biomecânica e das propostas de exercícios físicos,
que retratam, na sua maioria, partes do corpo humano e ilustram a execução de alguns exercícios
físicos. Por exemplo, as figuras 67, 68 e 69 (vide anexos Pintura/ 2004:35, Armação/ 2005:20 e
Montagem Final/ Pintura/ 2006:56, respectivamente).
Figura 67 - “Exercício 3 Figura 68 - “Rotatores do tronco Figura 69 - “alongar II
Os aprendizes denominam os tópicos dos capítulos que tratam da análise das operações e
dos movimentos dos operadores, aplicando termos específicos de partes do processo de produção
e de partes do corpo humano, fragmentando o modo de referirem-se a eles.
Por exemplo, há tópicos com títulos como “assoalho dianteiro”, “assoalho esquerdo”,
“plataforma”, “lateral e teto”, “partes móveis”, “soldagem do túnel” (vide anexo Armação/ 2004);
“regulagem nas prensas”, “regulagem de altura”, “regulagem nos robôs”, “mini-prensa”,
“lixamento de estampos” (vide anexo Estamparia/ 2004).
No trabalho Montagem Final/ 2004, por exemplo, observa-se títulos dos tópicos como
“braço 1”, “braço 2”, “tacto 35”, referindo-se a partes dos robôs e processo; no trabalho
Armação/ 2005 verifica-se títulos de tópicos como “tronco”, “membros inferiores”, “pescoço”,
“peça”, “ferramental”.
Numa específica passagem do trabalho de pesquisa Armação/ 2004, os aprendizes
consideram, inclusive, o operador como “as mãos” da empresa.
Antes convém lembrar o seguinte: há 47 fotografias no decorrer desse trabalho. Como já
descrito anteriormente, 33 fotografias retratam peças, ferramentas, máquinas ou área de trabalho.
Vamos compreender o porquê, especificamente, o relatório Armação/ 2004 dedica um maior
número das imagens a elementos que não o humano.
Verifica-se na introdução do relatório Armação/ 2004 que os aprendizes apresentam o
objetivo do trabalho: “(...) abordar todos os procedimentos sofridos pelas peças (...) enfim, todos
os fatores que influenciam na fabricação da carroceria, inclusive os operários que são as mãos da
empresa e que precisam ser cada vez mais qualificados e conscientes de hábitos e mudanças
necessárias para que se tenha uma empresa competitiva e agradável.” (vide anexo Armação,
2004:13, grifos meus). O texto é finalizado com “Sem mais, boa leitura.”
Observa-se no texto que os aprendizes consideram como fatores que influenciam na
fabricação do carro os procedimentos e, “inclusive”, os operários. Esses operários que são fatores
que influenciam na fabricação, são, também, “as mãos” da empresa e devem ser “qualificados e
conscientes”, para tornar a empresa “competitiva e agradável”; as peças “sofrem” procedimentos.
Retomarei esses apontamentos mais adiante.
No decorrer do trabalho de análise das operações e das áreas de trabalho, os aprendizes
relatam sobre os processos que a empresa utiliza para manter a qualidade de seus produtos: “O
treinamento é In The Job; existe (...) a carta de versatilidade e absenteísmo; a equipe é
informada sobre as não conformidades ocorridas através do dialogo de qualidade para que seja
tomado mais cuidado e se tenha mais atenção, a chapelonaria (ferramenteiros que trabalham na
linha) utilizam [sic] as medidas fornecidas pelos Perceptrons, para cada vez mais melhorar a
qualidade do produto (...)” (vide anexo Armação/ 2004:75, todos grifos meus).
As imagens que seguem a esses enunciados retratam máquinas utilizadas nas operações.
Observa-se que as fotografias não são nítidas, ora pela predominância de tonalidades escuras, ora
pela acentuada incidência de luz, conforme figura 70 (vide anexo Armação/ 2004:76):
Figura 70 – Under Bau 2
Num outro momento, os aprendizes continuam a apresentar os equipamentos que fazem o
controle da qualidade: “(...) e para que se tenha a garantia da qualidade, é realizado o pry-bar, os
testes no Tear Down, medições através do Perceptron e na Sala de Medidas.” (...) “antes de
serem armazenadas, elas [as peças] passam pelo Perceptron para que seja garantida a qualidade
da peça (...)” (vide anexo Armação/ 2004:76, 77, todos grifos meus).
As imagens que seguem a esses enunciados retratam o ambiente de trabalho e as legendas
se referem à operação realizada, conforme figuras 71 e 72 (vide anexo Armação/ 2004:77):
Figura 71 – “Formação dos subconjuntos” Figura 72 – “Montagem das laterais”
A imagem à esquerda, figura 71, é composta, também, pelo elemento humano. No entanto
a legenda indica como elemento central na imagem a operação em si. O verbo substantivado
formação, como já discutido, “apaga” a ação realizada e, por conseguinte, o sujeito que a realiza.
A imagem à direita, figura 72, não tem o elemento humano. O verbo substantivado
montagem indica que a operação é o elemento central na imagem; o maquinário retratado tem
também a ação “apagada”. Ambas as imagens retratam um ambiente “confuso”, com
interferência de várias linhas horizontais e verticais que se interpõem umas às outras sem que seja
possível identificar e visualizar adequadamente o espaço e os elementos que compõem as
imagens:
O trabalho de pesquisa Armação/ 2004 continua a apresentar, exaustivamente, os
equipamentos, processos e as tecnologias utilizados para manter a qualidade: “O objetivo do
AUDIT é fazer com que cada vez mais as pessoas se empenhem (...) contribuindo para a obtenção
de um produto cada vez com mais qualidade.” (...) “O Regelkreis, chamado também de Ciclo de
ajustes da Qualidade, é um sistema de qualidade (...), que visa (...), [minimizar] os problemas
identificados durante o processo.” (vide anexo Armação/ 2004:99, 100, todos grifos meus).
A imagem que retrata o ambiente Audit, figura 73 (vide anexo Armação/ 2004:99), por
exemplo, tem cores, tonalidades e iluminação equilibradas, permitindo uma boa identificação e
visualização dos elementos que a compõe:
F
igura 73 – “Audit”
O enunciado verbal que se refere à imagem acima avalia o sistema Audit como um
aspecto do trabalho adequado: “o objetivo do AUDIT é fazer com que cada vez mais as pessoas
se empenhem para ter uma nota final baixa (...), contribuindo para a obtenção de um produto cada
vez com mais qualidade” (vide anexo Armação/ 2004:100).
Observa-se que tanto o enunciado visual quanto o verbal apresentam elementos, pode-se
considerar, positivos: cores, tonalidades e iluminação adequadas e “Audit contribui para produto
de qualidade”.
Na página seguinte, os aprendizes continuam a apresentar processos e tecnologia: “A
norma VDA 6.3 é (...) responsável pelas auditorias de processo aqui da [nome da empresa]. Ela
avalia não só o produto final, mas todo o processo (...). Cada detalhe é analisado minuciosamente
para que o carro chegue ‘perfeito’ ao final do processo.” (vide anexo Armação/ 2004:101, todos
grifos meus).
Numa outra passagem, os aprendizes avaliam que “Por ser um método de análise mais
desenvolvido tecnologicamente, o Ultra-som apresenta algumas vantagens sobre o tear down
que, futuramente, pode vir a ser substituído” (vide anexo Armação/ 2004:105, todos grifos
meus).
As imagens que retratam o Ultra som e alguns dos elementos utilizados na realização da
operação têm boa iluminação, permitindo identificação e visualização dos elementos que as
compõem.
A figura 74 que realiza o ultra-som tem, especialmente, uma incidência de luz na tela do
aparelho, o que retira a visualização de alguns detalhes. A figura 75 tem os elementos fixos gel e
transdutor centralizados, cores, tonalidades e iluminação equilibradas (vide anexo Armação/
2004:104, 105):
Figura 74 – “Notebook” Figura 75 – “Gel e transdutor do aparelho Ultra-som”
Até o momento identificou-se qualidade e tecnologia como aspectos que envolvem o
trabalho, considerados pelos aprendizes, ergonomicamente adequados.
As imagens que retratam os equipamentos, peças e áreas, por vezes, também têm um
tratamento de luz, contrastes, cores e tonalidades adequadas, permitindo identificação e
visualização dos elementos que as compõem.
Pode-se inferir, portanto, que os equipamentos, processos, ferramentas, enfim a tecnologia
utilizada no processo de fabricação do carro “assegura”, de acordo com a introdução do trabalho
Armação/ 2004, a “qualidade do produto final da empresa”. Os aprendizes reconhecem, inclusive
que “Sem o auxílio de máquinas e equipamentos seria praticamente impossível a construção do
carro.” (vide anexo Armação/ 2004:78, grifos meus).
A área da Armação é considerada pelos aprendizes a “(...) de maior tecnologia de toda a
[fábrica], e para isso forma [sic] feitos grandes investimentos em infra-estrutura e qualificação
de profissionais, mas mesmo assim ocorrem muitas não conformidades.” (vide anexo Armação,
2004:79, grifos meus).
Num determinado momento, os aprendizes constatam uma situação que aponta, parece,
para uma contradição com relação aos aspectos tecnologia e qualidade considerados,
ergonomicamente, adequados: “(...) o operador faz solda MIG da caixa roda com a lateral parte
interna, ela se localiza após a ilha de robôs que faz a soldagem MIG na travessa do teto, no [sic]
porta pacote e na junção traseira. Esta operação [sic] feita manualmente pois os robôs não tem
tanta mobilidade para soldar em baixo da carroceria” (Armação/ 2004:83, grifos meus).
Verifica-se, nesse enunciado, a idéia de operários que são as “mãos da empresa”: a
operação é realizada em partes pelos robôs e em partes pelos operadores: “feita manualmente
pois os robôs não tem tanta mobilidade para soldar em baixo da carroceria”.
A imagem abaixo, figura 76, segue ao enunciado verbal: “apesar de neste tacto a
carroceria ficar suspensa, e o operador entrar em baixo da caixa de roda para solda-la [sic],
mesmo assim há a necessidade da compensação de postura, pois o operador fica muito tempo de
pé e com a cabeça erguida e com os braços erguidos e carregando um peso de 500 gramas (...)”
(vide anexo Armação/ 2004:83):
Figura 76 - “Solda MIG da caixa de roda”
O operador é retratado de costas, centralizado na imagem; as cores e tonalidades
predominantes são escuras, exceção a peça caixa de rodas que tem tonalidade clara. Os
elementos operador, abaixo da peça, e ambiente têm, praticamente, a mesma cor, “escondendo”
parte da silhueta do operador no ambiente. Observa-se pequenos focos de luz nas janelas.
Os elementos ao centro da fotografia são duas “mangueiras” que aparecem à frente do
operador. A legenda indica como elemento central na imagem a Solda MIG da caixa de roda.
Mais uma vez, verifica-se o “apagamento” da ação, neste caso, de “soldar” e, conseqüentemente,
do sujeito que a realiza. Na imagem, inclusive, verifica-se, também, um “apagamento” do sujeito.
Os aprendizes avaliam a área da Armação como a de maior tecnologia, no entanto os
robôs não têm “mobilidade” para realizarem a operação de solda em baixo da carroceria.
Nesse sentido, pode-se dizer que os operadores, que são considerados pelos aprendizes as
“mãos” da empresa (“o operador faz manualmente”), ao que parece, têm “mobilidade” para
trabalhar na operação de solda, em baixo da carroceria.
Retomo neste ponto à questão da submissão, já tratada anteriormente. O operador tem que
se curvar, agachar, submeter a operações e posições ergonomicamente inadequadas. Pode-se
inferir, de acordo com a avaliação dos aprendizes, que na área de maior tecnologia,
contraditoriamente, quem se “submete” para soldar a parte inferior da carroceria é o operador e
não o robô. Vejamos de que forma os aprendizes vão apontando para essa contradição.
Os aprendizes relatam o ritmo de trabalho dos operadores que, pode-se considerar,
assemelha-se ao das máquinas e robôs: “(...) [o operador gasta] em cada operação cerca de
cinqüenta segundos (...)”; “(...) ao final de cada operação ele [operador] tem aproximadamente
1min livre.” (vide anexo Armação/ 2004:71, 94).
As máquinas não se queixam das atividades que realizam, e nem poderiam já que são
máquinas, embora não tenham, de acordo com a avaliação dos aprendizes, mobilidade para
“soldar em baixo da carroceria”.
Diferentemente das máquinas, os operadores, que têm mobilidade, se queixam. Essa
constatação só é possível ao verificarmos o enunciado verbal na folha inscrição do trabalho de
pesquisa: “ ‘É mais fácil você me perguntar onde não dói’ (Operador da Armação, grifo dos
aprendizes)”.
Os aprendizes não dizem explicitamente que o trabalho dos operadores, numa área
considerada de alta tecnologia, é “pesado”. Avaliam, no máximo, que “apesar de neste tacto a
carroceria ficar suspensa (...) há a necessidade da compensação de postura, pois o operador fica
muito tempo de pé (...)”.
A “queixa” é do operador e vem, inclusive, destacada do texto, visivelmente delimitada,
com aspas e identificação do autor, fora do contexto narrativo que analisa e avalia
ergonomicamente a operação. Trata-se do discurso citado de orientação linear: é como se os
aprendizes dissessem “não somos nós que fazemos essa consideração”, evitando, ao que parece,
valores apreciativos.
Mas, os enunciados, ao serem articulados, ao estabelecermos relações dialógicas entre
eles, “a área da Armação é a de maior tecnologia de toda a [fábrica], com grandes investimentos
em infra-estrutura e qualificação de profissionais, mas mesmo assim ocorrem muitas não
conformidades”, “esta operação [sic] feita manualmente pois os robôs não tem tanta mobilidade
para soldar em baixo da carroceria” e “ ‘É mais fácil você me perguntar onde não dói’, apontam
para uma idéia de contradição.
Trata-se de uma polêmica que não é declarada abertamente, conscientemente. Verifica-
se, inclusive, o discurso da tecnologia e qualidade, discurso que circula tanto na fábrica quanto na
escola, incorporado pelos aprendizes.
Os aprendizes reproduzem esse discurso em concordância com a fábrica, com a escola:
“operários (...) que precisam ser cada vez mais qualificados e conscientes de hábitos e mudanças
necessárias para que se tenha uma empresa competitiva e agradável”; “pode-se observar a
veracidade do famoso slogan [reprodução do slogan], devido as [sic] inúmeras maneiras que a
empresa possui para que seja possível fabricar carros com a qualidade necessária” (Armação/
2004:13, 107)
É, portanto, por meio de estratégias discursivas, como, por exemplo, a delimitação do
enunciado do operador na folha inscrição, não o considerando na análise da operação, no
contexto narrativo, que se pode chegar ao discurso polêmico.
No enunciado “ ‘É mais fácil você me perguntar onde não dói’ (Operador da
Armação)” tem-se, pelo menos, duas vozes: a do operador e a dos aprendizes que incorporaram a
citação ao relatório de pesquisa, inscrevendo-se, marcando, de forma polêmica, a contradição
observada.
A expressão do enunciado responde a outros enunciados, a outras vozes: “não pode deixar
de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto”. E essa
expressão “irá manifestar-se na totalidade do sentido, na totalidade da expressão, na totalidade do
estilo, nos matizes mais sutis da composição” (Bakhtin, 1979/ 2003:298).
Os aprendizes não polemizariam abertamente: trata-se de um trabalho escolar que envolve
avaliação. Eles precisam demonstrar que compreenderam o tema, Ergonomia, adequadamente e,
no mínimo, satisfatoriamente.
Há nessa citação a queixa dos operadores, mas, também, uma outra voz que avalia o
trabalho da área de “maior tecnologia, considerada ergonomicamente adequada: a voz dos
aprendizes que respondem ativamente ao objeto de discurso “Ergonomia nos postos de trabalho”.
Os aprendizes trazem a voz do operador para dizer aquilo que não podem, não devem ou não
querem dizer declaradamente, explicitamente.
A relação que vai se estabelecendo entre tecnologia e qualidade e os aspectos do trabalho,
avaliados e considerados pelos aprendizes ergonomicamente adequados, é bastante conflituosa e
vai se mostrando inconciliável, como se pode constatar num outro relatório.
No decorrer da análise dos dados das operações, no trabalho de pesquisa Armação/ 2005,
os aprendizes descrevem uma operação em que há a necessidade da atuação da tecnologia e do
homem: “O operário aguarda o robô da ilha depositar a porta num dispositivo que a segura. Após
isso, o operário aperta um botão para desativar o dispositivo e em seguida, com as próprias mãos,
carrega a porta por 3 metros e encaixa no carro (...). A peça (porta) é sempre transportada
manualmente pelo operário e pesa cerca de 26 quilos.” (vide anexo Armação/ 2005:34).
Na página seguinte os aprendizes avaliam que “o esforço feito pelo operário é muito
grande sendo que, após algumas portas, ele já esta [sic] se inclinando opostamente ao peso da
porta (...) assim deixando-o numa posição ergonomicamente incorreta.” (vide anexo Armação/
2005:35).
Observa-se que a avaliação ergonômica da operação, feita pelos aprendizes, indica um
aspecto inadequado.
No entanto, com relação ao “ambiente”, os aprendizes avaliam que “o local é grande
dando disponibilidade do operador se locomover com a porta, mas a iluminação é precária e não
há um banco ou cadeira para que, se o operador quiser [sic] sentar aguardando a porta vir” (vide
anexo Armação/ 2005:35).
Nesse caso, um aspecto do trabalho, ou seja, “o local”, é avaliado, ergonomicamente
adequado: “é grande” por isso dá ao operador “disponibilidade de se locomover com a porta”.
Outros aspectos, ao contrário, são avaliados como inadequados.
Retomarei a introdução do trabalho Armação/ 2005, em que os aprendizes apresentam a
compreensão que têm de Ergonomia: “(...) estudo da interação do homem e seu ambiente de
trabalho, (...) com um só propósito: Aplicar [sic] em projetos de máquinas, equipamentos e
sistemas de manufatura com o objetivo de melhorar segurança, saúde, conforto e a eficiência do
trabalho.” (vide anexo Armação/ 2005:10, grifos meus).
A Ergonomia tem um só propósito, de acordo com a compreensão dos aprendizes:
“aplicar em projetos de máquinas (...)” e “melhorar segurança, saúde, conforto (...)”.
Nesse sentido, pode-se inferir que a tecnologia, que atua de modo a programar um robô
que “deposita a porta num dispositivo”, assegura a “melhoria da segurança, saúde, conforto e
eficiência do trabalho” dos operadores, portanto, um aspecto ergonomicamente adequado.
O operador deve acionar um “botão” para trabalhar com o robô, de modo que desative o
dispositivo. No entanto, de acordo com a observação dos aprendizes, quem carrega a porta que
pesa cerca de 26 quilos, por 3 metros, com as próprias mãos é o operador e não o robô, o que,
ergonomicamente, não é adequado, pois não melhora a segurança, saúde, conforto e a eficiência
do trabalho.
Os aprendizes não fazem essa consideração, explicitamente. Eles analisam e avaliam as
operações, os movimentos dos operadores e alguns aspectos que envolvem o trabalho de acordo
com os princípios da Ergonomia.
Percebe-se que o discurso da Ergonomia é assimilado pelos aprendizes que fazem
avaliação da operação como ergonomistas: “o operário aguarda o robô da ilha depositar a porta
num dispositivo que a segura. Após isso, o operário aperta um botão para desativar o dispositivo
e em seguida, com as próprias mãos, carrega a porta por 3 metros e encaixa no carro (...). A peça
(porta) é sempre transportada manualmente pelo operário e pesa cerca de 26 quilos”.
Mas, há na forma de transmissão desse enunciado um tom que, pode-se considerar, aponta
para uma contradição: “o robô deposita a porta num dispositivo” mas quem carrega a porta, que
“pesa cerca de 26 quilos, por 3 metros, com as próprias mãos, é o operador”. Esse enunciado
remete, ainda, a idéia de que o operador é “as mãos da empresa”.
O enunciado com as próprias mãos vem carregado de uma entonação expressiva, de um
tom emocional que sugere indignação. Essa expressão é “um eco de uma expressão individual
alheia, que torna a palavra uma espécie de representante da plenitude do enunciado do outro
como posição valorativa determinada” (Bakhtin, 2003:295).
A atitude responsiva frente à observação dos aprendizes com relação ao processo de
trabalho, numa área considerada de alta tecnologia, reflete-se na expressão do próprio discurso:
“na seleção de recursos lingüísticos e entonações, determinada não pelo objeto do próprio
discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto” (Bakhtin, 2003:297).
A expressão do enunciado, portanto, responde, polemiza com outros enunciados, neste
caso, com a tecnologia e qualidade e a sua relação com a Ergonomia.
Veja-se como identificar a contradição apontada em outros momentos no decorrer do
relatório.
Os aprendizes avaliam, com relação à “análise dos membros superiores” que “o membro
superior é a parte do corpo [sic] sofre a maior tensão, pois a movimentação da peça é realizada
manualmente e com uma carga de 7kg.” (...) “existe também uma tensão nos músculos flexores
dos dedos do punho” (vide anexo Armação/ 2005:22).
A folha inscrição, do trabalho de pesquisa da Armação/ 2005, traz uma consideração com
relação ao posto de trabalho e à operação realizada nele:‘...Esse aqui os cara corre pra num
pegar...’ Operador da armação se referindo a um posto de trabalho” (grifo dos aprendizes).
Novamente, o enunciado é destacado do contexto narrativo com aspas, em negrito e
itálico, e a identificação do autor da frase, evitando, ao que parece, valores apreciativos. É como
se os aprendizes dissessem: “quem faz essa avaliação do posto de trabalho é o operador”.
Mas, ao articular enunciados como “a Ergonomia (...) [tem] um só propósito: Aplicar [sic]
em projetos de máquinas, equipamentos e sistemas de manufatura com o objetivo de melhorar
segurança, saúde, conforto e a eficiência do trabalho”; “o operário aguarda o robô da ilha
depositar a porta num dispositivo (...) e em seguida, com as próprias mãos, carrega a porta por 3
metros e encaixa no carro (...). A peça (porta) (...) pesa cerca de 26 quilos” e “esse aqui os cara
corre pra num pegar”, verifica-se um discurso que aponta para contradições de alguns aspectos
do trabalho relacionados à Ergonomia e à tecnologia e qualidade.
Há, novamente, na citação “esse aqui os cara corre pra num pegar”, pelo menos, duas
vozes: a do operador e a dos aprendizes. Essa citação, incorporada na folha inscrição, ou seja, no
lugar onde o sujeito se inscreve, é um enunciado que responde ativamente aos discursos que
compõem o trabalho de pesquisa: qualidade e tecnologia e Ergonomia.
Outros trabalhos de pesquisa também indicam o discurso da tecnologia e qualidade como
algo inconciliável ao trabalho dos operadores.
No relatório da Montagem Final/ 2004, identifiquei na Introdução uma referência à
tecnologia como “algo que envolve as linhas de montagem”. Essa iia percorrerá toda a análise
da área e das operações feita pelos aprendizes: “Atualmente a tecnologia tem envolvido meios
mundiais, (...) até nas fábricas nas linhas de montagem (...) (vide anexo Montagem Final/
2004:11)”.
O termo tecnologia será associado a termos como facilitar, agilizar, bem equipada,
avançada, revolução, inovador, desenvolvida: “A linha de montagem do [modelo do carro] conta
com alguns dispositivos que visam facilitar e agilizar a montagem dos componentes do carro
(...); Já a linha de montagem do [modelo do carro] conta com alta tecnologia, já vista que é a
linha de montagem mais bem equipada e avançada da América Latina (...)” (vide anexo
Montagem Final/ 2004:13, todos grifos meus).
Numa outra passagem encontramos: “A Montagem Final do [modelo do carro] foi uma
grande revolução em termos tecnológicos, trazendo para o Brasil algo inovador no ramo
automobilístico. Tornado-se [sic] a linha mais desenvolvida da América Latina.” (vide anexo
Montagem Final/ 2004:24, todos grifos meus).
Nesse contexto, pode-se considerar que tecnologia é um elemento que se associa a termos
semanticamente positivos.
No entanto, esse elemento, mais uma vez, será considerado como algo inconciliável ao
trabalho do operador, de acordo com os princípios da Ergonomia. Vejamos como é possível
identificar essa situação.
Os aprendizes avaliam que os operadores têm condições de realizar compensações de
posturas físicas no tempo “ocioso
9
”: “como o tempo de ociosidade do operador é muito longo, ele
não encontraria problemas para fazer a compensação de postura, basta apenas que ele tenha
consciência de quanto isso é importante para seu bem estar físico. (...)” (vide anexo Montagem
Final/ 2004:41).
O tempo de “ociosidade” do operador é considerado pelos aprendizes “longo”, portanto,
pode ser um momento de realizar a compensação de posturas: “(...) o operador fica ocioso 2min
e 10seg por operação, nesse tempo ele fica esperando o próximo carro sem realizar nenhuma
atividade. Então neste tempo ocioso ele poderia fazer um exercício de alongamento, (...)”
(Montagem Final, 2004:43).
Veja-se como nesse processo de produção, o operador é tratado discursivamente, pelos
aprendizes: um sujeito “ocioso” que “espera”, ou seja, passivo.
Numa outra passagem, os aprendizes analisam que “(...) o operador fica ocioso 52s, nesse
tempo ele fica esperando o próximo carro sem realizar nenhuma atividade, e nesse mesmo tempo
ele podia estar fazendo uma compensação de postura física, (...)” (vide anexo Montagem Final/
2004:46, todos os grifos meus).
Os aprendizes, no lugar de ergonomistas, analisam a tarefa e encontram momentos para
que a Ergonomia possa atuar. Esses momentos são 2min e 10seg e 52s. Basta aos operadores
terem “consciência de quanto isso é importante para seu bem estar físico” (vide anexo Montagem
Final/ 2004:41).
Os aprendizes encontraram momentos em que fosse possível aplicar a Ergonomia, os
exercícios de compensação postural, adequadamente, nos momentos de realização da atividade
dos operadores.
Os operadores, no entanto, dizem que não têm tempo para tal prática. “Mesmo com tanto
desgaste o mesmo [o operador] não reclama de dores ou de cansaço, e deixa bem claro que não
9
A expressão “tempo ocioso”, assim como “tempo morto” é aplicada pela área da linha de produção para referir-se
ao intervalo de tempo do operador entre a realização de uma e outra tarefa.
realiza aquecimento, relaxamento, ou qualquer exercício físico na área, por falta de tempo.”
(vide anexo Montagem Final/ 2004:56).
Nos dois enunciados destacados, “O operador revelou...” e “o mesmo [o operador] não
reclama de dores ou de cansaço, e deixa bem claro...”, observa-se que os aprendizes retomam a
voz dos operadores, delegando a eles a responsabilidade da enunciação.
Quem considera, portanto, que “não evita riscos e problemas ergonômicos” e que não
realiza exercícios físicos “por falta de tempo” são os operadores e não os aprendizes que, como
analisado, encontram momentos para tal prática.
Novamente, pode-se fazer, nesses enunciados, a seguinte leitura: “quem diz que não tem
dores ou cansaço, que não evita riscos, que não realiza exercícios por falta de tempo são os
operadores”.
A citação na folha inscrição do relatório da Montagem Final/ 2004, no entanto, ao
articularmos com a citação “[o operador] não reclama de dores ou de cansaço” parece revelar
uma contradição: “ ‘No começo do dia a parafusadeira pesa 1Kg, No final do dia ela pesa 10Kg.’
(operador da montagem final)”.
Num primeiro momento, não há, por parte dos operadores, queixa de dores ou cansaço.
No entanto, na folha inscrição, os aprendizes trazem a voz do operador que revela que, do início
das atividades do dia ao final, seu instrumento de trabalho, que “pesa 1Kg”, passa a “pesar
10Kg”.
A citação na folha inscrição - “no começo do dia a parafusadeira pesa 1Kg, No final do
dia ela pesa 10Kg” - articulada ao enunciado “não reclama de dores ou de cansaço”, revela vozes
(operadores e aprendizes) que se confrontam no interior dos enunciados, polemizando, apontando
para contradições do trabalho. Parece que podemos ouvir: “como não há de queixa de dor ou
cansaço, se no final do dia o instrumento de trabalho parece ser muito mais pesado do que
realmente é?”.
Essas vozes, ainda, respondem ativamente aos discursos da Ergonomia e da tecnologia e
qualidade.
A Conclusão do relatório Montagem Final/ 2004, apresentada pelos aprendizes, observa
que a tecnologia da área é uma “grande evolução” que contribui para “uma melhor qualidade no
produto final”. E, com esse “crescimento da linha de produção, os funcionários também precisam
evoluir e perceber que seu corpo é a sua principal ferramenta de trabalho, por isso devemos além
de remediar, prevenir.” (vide anexo Montagem Final/ 2004:62).
Pode-se fazer, nesse momento, dois apontamentos com relação à Conclusão: o primeiro,
de acordo com os aprendizes, se refere ao fato de os operadores precisarem evoluir assim como a
linha de produção cresce; o segundo, os aprendizes consideram o corpo dos operadores uma
ferramenta de trabalho.
Por fim, verificou-se a presença do discurso da tecnologia e qualidade em discordância
com o da Ergonomia: trata-se de um elemento inconciliável com alguns aspectos do trabalho.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como objetivo geral compreender como alguns elementos verbais,
visuais e verbo-visuais, assim como alguns discursos sociais constroem a noção de trabalho nos
relatórios de pesquisa que constituem o corpus desta investigão.
Para tanto, iniciei a discussão, apresentando meu percurso profissional e acadêmico,
buscando indicar como esse trajeto se relacionou com esta pesquisa. O aspecto motivador para a
concretização deste trabalho se deu, primeiramente, pela minha inquietação numa busca de
encontrar meios possíveis de tornar a passagem dos aprendizes do mundo da escola para o mundo
do trabalho menos “angustiante”, de forma a conciliar alguns conflitos que surgem em função do
embate que se dá entre esses dois campos da comunicação.
As discussões sobre o mundo do trabalho no capitalismo e o ensino profissional no Brasil
serviram como um pano de fundo para situar os contextos desta pesquisa, ou seja, escola e
empresa, e colaboraram para a caracterização e a compreensão, histórico e socialmente, de como
se dão as produções ideológicas desses diferentes campos da atividade humana que estão ligados
ao uso da linguagem.
Um dos fatores relevantes, que sobressaiu nessa discussão, refere-se ao elemento tensão
que se mostrou constituinte na formação das escolas e das empresas, histórico e socialmente, e
entre escola e empresa deste contexto, à medida que a exigência de certos conceitos, habilidades,
técnicas e comportamentos, pela escola, não corresponde, necessariamente, aos que são
praticados na e pela empresa.
Outro fator refere-se à divisão histórico-social entre trabalho intelectual e trabalho
manual que, por sua vez, as escolas refletiram e intensificaram, especialmente no capitalismo:
separação entre teoria e prática. Mesmo com tentativas em aproximar a teoria da prática, por
meio de vários métodos como o ensino dual, por exemplo, as escolas ainda reproduzem a
separação entre teoria e prática, trabalho manual e trabalho intelectual, o mundo “ideal” do
trabalho e o mundo “real” do trabalho.
Conforme os resultados da pesquisa realizada pelo C.F.P., indicados nesta pesquisa (vide
p. 17, 18), uma das críticas dos profissionais, que foram aprendizes da escola, refere-se ao fato de
a escola “não mostrar o quanto é dura a realidade da Manufatura” e que deveria, portanto,
“proporcionar maior contato dos alunos com a realidade da produção”.
Mas, a escola já faz essa aproximação, pelo sistema de ensino dual. No entanto, essa
aproximação, para esses profissionais, não parece ter sido o suficiente.
Ao que parece, e os resultados da análise dos dados desta pesquisa direcionaram, também,
para essa reflexão, a questão-chave desses dois enunciados - “não mostrar o quanto é dura a
realidade da Manufatura” e “proporcionar maior contato dos alunos com a realidade da
produção” - é indicada pelo termo realidade: a que “realidade” os profissionais estão
especificamente se referindo? Os dados revelaram que, de certa forma, os aprendizes “enxergam”
alguns conflitos e contradições do trabalho.
Enquanto aprendizes, o contato com as áreas de trabalho não proporciona ainda um
“mergulho na ideologia do cotidiano” desse lugar, no sentido de que ainda não são profissionais,
ou seja, não vivenciam a prática do trabalho como operadores nas linhas de produção: “no nível
mais inferior da ideologia do cotidiano (...) as reações do indivíduo ainda não são marcadas
ideologicamente, pois as interações são extremamente superficiais e casuais” (Miotello,
2005:175).
Verificou-se nos relatórios de pesquisa que os operadores da área, ao serem questionados
pelos aprendizes, não se queixam do trabalho (e, acredito, nem o fariam): “mesmo com tanto
desgaste o [operador] não reclama de dores ou cansaço”. No entanto, isso não significa que os
aprendizes não tragam para os relatórios “reflexos” da ideologia cotidiana. A incorporação das
citações dos operadores na folha inscrição pode ser um exemplo disso.
Identificou-se, nos enunciados dos aprendizes, um discurso orientado para outros
discursos tanto os da escola quanto os da empresa. Os aprendizes trazem nas enunciações
reflexos do sistema ideológico daquele grupo: seja nos conteúdos sígnicos, seja nas
representações, nas palavras, nas entonações e nas enunciações que vão revelando estar
completamente integradas no sistema ideológico: “o meio social envolve, então, por completo o
indivíduo” (Miotello, 2003:175).
Posso concluir que, de certa forma, os aprendizes entram sim em contato com a
“realidade” da Manufatura. A questão é que a “realidade” é uma enquanto aprendizes e outra
enquanto profissionais. De toda forma, já nesse primeiro contato, os aprendizes revelam nos
enunciados verbais, visuais e verbo-visuais conflitos e contradições que surgem do confronto
entre escola e empresa.
Os pressupostos teóricos, por sua vez, foram tratados de modo a, primeiro, justificar
minha escolha para o trabalho com a análise dos dados; segundo, apontarem as noções principais
que contribuíram para o trabalho de análise e interpretação dos dados.
A “análise/ teoria dialógica do discurso” permitiu “reconhecer, recuperar e interpretar
marcas e articulações enunciativas” (Brait, 2006:13), formas e elementos léxicos-semânticos-
sintáticos na materialidade lingüística, colaborando para a caracterização dos discursos sociais
identificados no decorrer da análise dos dados, e que apontam a forma como se dá a construção
da noção de trabalho no corpus.
Ao descrever, minuciosamente, o corpus e os elementos que o compõem, busquei precisar
elementos e formas que colaborariam com o objetivo geral determinado para esta pesquisa, bem
como a identificação das categorias que conduziram a análise dos dados.
Assim, foi identificado no corpus, na materialidade do texto, o modo como
discursivamente alguns elementos e formas verbais, visuais e verbo-visuais se articulam, algumas
vozes sociais que constituem o texto e as implicações de sentido na construção da noção de
trabalho.
Com relação à primeira categoria cor e tonalidades escuras/ lugares de “difícil” acesso
pôde-se verificar:
9 a predominância da cor preta e tonalidades escuras e a quantidade de luz, que pouco ou
nada reforça o contraste entre o preto e o branco, tende a dificultar a visualização e a
identificação dos elementos que compõem as imagens, “escondendo” ou “apagando” os
detalhes ou, até mesmo, os próprios elementos;
9 a grande incidência de luz em algumas poucas fotografias será dedicada aos elementos
fixos e, raras vezes, a algumas partes específicas do corpo dos operadores, elementos
vivos. No entanto, o excesso de incidência de luz num elemento, embora acentue o
contraste entre as superfícies claras e as escuras, também tende a dificultar a visualização
e a identificação dos componentes que compõem as imagens, “escondendo” ou
“apagando” os detalhes ou, até mesmo, os próprios elementos;
9 as imagens predominantemente escuras são associadas ao enunciado verbal locais de
difícil acesso e a termos como não-ergonômico, portanto semanticamente negativos;
9 as imagens em cores tendem, ao associar o vermelho, verde e amarelo à intensidade dos
movimentos do operadores e a expressões como alto índice de força, cansativo,
desgastante, prejudicial, a acentuar a “dramaticidade” dos fragmentos da “realidade”
retratados.
Pude concluir que, de acordo com a análise, se estabelece nas próprias imagens uma
contradição. As imagens em preto-e-branco que deveriam atenuar a dramaticidade, ao contrário,
em função da predominância da cor e tonalidades escuras sobre o branco, a acentuam.
As imagens em cores, associadas a alguns elementos verbais e reforçadas pelas cores
verde, vermelho e amarela que avaliam a intensidade dos movimentos dos operadores, acentuam
a dramaticidade das cenas retratadas.
A relação entre alguns elementos verbais e visuais também sugere uma contradição: as
imagens que seguem ao enunciado verbal iluminação satisfatória retratam, ao contrário,
ambientes escuros.
O trabalho, nesse sentido, é relacionado à idéia de dramaticidade.
O tratamento dado às fotografias, em função da predominância da cor preta e tonalidades
escuras, sugere que o elemento vivo, ou seja, o operador, considerado elemento dominante na
fotografia, passa a se “misturar”, de forma “camaleônica” a outros elementos fixos que compõem
as imagens como equipamentos, peças, ferramentas, ambiente, compondo com eles um único
elemento.
Em alguns momentos, em função do tamanho que o elemento vivo ocupa na fotografia em
relação ao espaço, o operador retratado torna-se, na imagem, um grafema, ou seja, um símbolo
gráfico “sem significado expressivo” na fotografia.
O sujeito, portanto, tende a ser “escondido” ou, até mesmo, “apagado” nas imagens, não
podendo ser identificado como mais um elemento que compõe a fotografia.
Por vezes, identifica-se o sujeito como uma “sombra” no ambiente de trabalho; por vezes,
chega a se tornar “invisível”: há um “apagamento” do sujeito que compõe a imagem.
Nesse sentido, é difícil dizer onde começa o sujeito, onde começa o equipamento, a
ferramenta, o ambiente: componentes vivos e fixos vão se tornando um mesmo e único elemento.
Com relação à segunda categoria ângulos/ pontos de vista, pôde-se verificar:
9 o ângulo de registro das imagens revela a subjetividade, ou melhor, um sujeito por trás da
câmera fotográfica que, pelo modo como foca e avalia a perspectiva (“visão fotográfica”)
impõe normas aos temas que fotografa;
9 o ângulo de registro das imagens aponta, na relação de dominância visual, para a
superioridade dos fotógrafos/ aprendizes em relação aos assuntos que fotografam
(elemento vivo e fixo);
9 o resultado da “visão fotográfica”, ou seja, as imagens que retratam operadores nos
gestos curvado, agachado, com a cabeça baixa, articuladas aos elementos verbais coluna,
curvar, agachar sujeitar e submeter remetem à idéia, no sentido figurado, de
rebaixamento, inferiorização, diminuição de valor e demonstração de submissão;
9 a “visão fotográfica” é resultado de um modo de avaliar o mundo, nesse caso operadores
em situação de trabalho, e, também, uma resposta ativa às vozes sociais que percorrem e
constituem o corpus.
Pude concluir, em função da “visão fotográfica” e de alguns elementos verbais,
especificamente, que a idéia de trabalho que se constrói no corpus, discursivamente, verbo-
visualmente, aponta para o elemento submissão como constituinte do trabalho.
A imagem do trabalhador que se constrói no corpus, discursivamente, verbo-visualmente,
é a de um sujeito que tem que se sujeitar, se submeter a determinadas posições e movimentos
corporais para realizar o trabalho.
Esse modo de dizer o trabalho levou à identificação de um discurso social: o da
sobrevivência. O fato de os trabalhadores se “submeterem” ou se “sujeitarem” a um tipo de
trabalho, com ferramental e local por vezes avaliados como ergonomicamente adequados, mas
com lugares de “difícil” acesso, que exige dos operadores posturas “não ergonômicas”, é em
função de um, considerado discursivamente pelos aprendizes, “salário justo”.
Portanto, a idéia que se constrói no texto de trabalhador é a de um sujeito que quase não é
enxergado em seu ambiente de trabalho, que se esconde atrás de tampas de motores, que deixa de
ser um trabalhador para tornar-se uma sombra, uma projeção de um trabalhador, que se curva, se
agacha, força e é forçado a dobrar a coluna, em função da sobrevivência, em troca de um “salário
justo”.
As legendas e produção de sentido, terceira categoria, parecem reforçar essa idéia. Na
análise dos dados, pôde-se verificar que esses enunciados verbais que identificam as imagens:
9 tendem, na sua maioria, a indicar como elemento central nas fotografias que retratam
operadores em situação de trabalho qualquer outro que não o humano: peças,
equipamentos, ferramentas, ambiente, partes específicas do corpo humano;
9 “apagam”, em função do uso de verbos substantivados, a ação e, por conseguinte, o
sujeito que a realiza;
9 referem-se ao elemento humano retratado nas imagens de forma fragmentada e não na sua
totalidade.
Pude concluir que o trabalhador é “fragmentado”, enxergado apenas em suas partes, assim
como o processo produtivo.
O trabalhador é considerado “as mãos” da empresa porque realiza manualmente
atividades que o robô não pode realizar em função de não ter flexibilidade para tal. Os aprendizes
avaliam, contraditoriamente, e, diria eu, ironicamente, que quem se “abaixa” ou se “curva” para
realizar a solda em baixo da carroceria é o homem e não o robô; quem transporta as portas da
carroceria, por meio de um dispositivo, até certo ponto, é o robô. Mas, num determinado
momento, contraditoriamente, quem carrega a porta que pesa 26 quilos, por 3 metros, com as
próprias mãos, é o próprio operador.
A análise dos aprendizes tende a descrever o trabalho dos operadores no mesmo ritmo das
máquinas e dos robôs. Os corpos dos trabalhadores, inclusive, são considerados uma ferramenta.
Marx, no século XIX, avaliava que o trabalhador, em função da introdução das máquinas
nas manufaturas e, depois, nas indústrias, passava a ser um “apêndice” da máquina. De acordo
com a análise dos dados, verifiquei que a forma como esse trabalhador é tratado discursivamente,
aponta, também, para essa visão.
No entanto, arrisco-me, já não se trata mais de um processo de “desumanização”: o
homem não é mais um “apêndice” da máquina; ele é, agora, a própria máquina/ ferramenta/
equipamento/ robô.
Pude concluir que as legendas são, também, em certa medida, um modo subjetivo de focar
a “realidade”.
As escolas profissionais, em resposta às necessidades do mercado de trabalho, buscam
formar, no processo ensino-aprendizagem, profissionais com habilidades comportamentais que
atendam às necessidades desse mercado que exige, por sua vez, um profissional capaz de se
autogerir e, desse modo, resolver problemas que o trabalho e seu processo impõem.
Nesse contexto, os aprendizes são levados a resolverem, conciliarem (até mesmo o
inconciliável) aspectos conflituosos e, por vezes, contraditórios que envolvem o trabalho. Assim,
ao realizarem a pesquisa “Ergonomia nos postos de trabalho” os aprendizes apresentam algumas
soluções.
Em função da forma como a Ergonomia é tratada discursivamente nos relatórios de
pesquisa, a análise dos aprendizes com relação ao trabalho dos operadores, os termos e
expressões aplicados no decorrer das análises, levam a um modo específico de enxergar o sujeito
e seu trabalho: fragmentação.
Os aprendizes compreendem que essa ciência deve adaptar o trabalho ao homem,
intervindo e aplicando melhorias em projetos de máquinas, equipamentos e sistemas de
manufatura, de modo a melhorar segurança, saúde, conforto, eficiência e bem-estar do
trabalhador, durante e após o trabalho.
A tecnologia e qualidade presentes no sistema produtivo são enaltecidas e consideradas
pelos aprendizes uma evolução.
Os aprendizes assumem, inclusive, esses discursos, ao incorporá-los aos enunciados.
Mas, consciente ou inconscientemente, esses discursos, que se cruzam e entrecruzam a todo o
momento, polemizam, revelando, em alguns momentos, questionamentos e indignação.
Essa polêmica não se dá de forma declarada: é por meio de algumas formas e elementos,
alguns recursos léxicos-semânticos-sintáticos e pela articulação entre alguns enunciados que se
chega à forma do discurso polêmico velado e, conseqüentemente, às várias vozes que ai se
instauram.
Uma das formas encontradas foi o discurso linear, incorporado na folha inscrição. Por
meio de citações, considerando o corpus como um enunciado concreto, os aprendizes,
discursivamente (repito: consciente ou inconscientemente), revelam questionamentos,
indignações, contradições.
No discurso linear, encontram-se vozes dissonantes. A citação na folha inscrição “...Esse
aqui os cara corre pra num pegar... Operador da armação se referindo a um posto de
trabalho”, incorporada pelos aprendizes, poderia ser, a principio, se não “escutada” atentamente,
apenas uma concordância dos aprendizes com a voz do operador.
No entanto, é preciso observar o tom aplicado ao enunciado (o recurso negrito e itálico)
que marca acentuadamente um posicionamento valorativo. É preciso considerar o relatório como
um enunciado concreto para compreender a que discursos esse enunciado responde, com quais
vozes ele polemiza.
O corpus, de modo geral, traz marcadamente o discurso da tecnologia e qualidade, mais
especificamente no relatório que traz o enunciado “...Esse aqui os cara corre pra num pegar...
Operador da armação se referindo a um posto de trabalho”. O discurso da “alta” tecnologia
encontrado no relatório da área da Armação entra em conflito com o da Ergonomia que, nesse
sentido, não melhora a segurança, saúde, conforto, eficiência e bem-estar do trabalhador,
durante e após o trabalho.
Os aprendizes incorporam e reproduzem, em concordância, o discurso da tecnologia e
qualidade e da Ergonomia. Mas, deixam como que “escapar” um posicionamento valorativo, que
responde ativamente aos discursos que circulam nesse contexto: na área, considerada pelos
aprendizes, de maior tecnologia, o que ergonomicamente deveria ser um aspecto adequado ao
trabalho e ao trabalhador, de acordo com a compreensão dos aprendizes, o operador “corre pra
não pegar” um posto de trabalho.
As relações de produção e a estrutura sociopolítica determinam as condições, as formas e
os tipos de comunicação possíveis em um dado contexto. No contexto de produção dos relatórios,
o discurso polêmico velado, que por vezes aparece no corpus, é, portanto, um recurso, uma forma
composicional característica dos relatórios de pesquisa realizados pelos aprendizes, que dado a
esfera de produção, circulação e recepção, encontrou um meio de dizer aquilo que não pode ou
não deve ser dito.
O tom empregado em alguns enunciados é uma forma indicativa de como “escapa” um
posicionamento valorativo que entra em oposição, em contradição, em polêmica com algumas
das vozes sociais que compõem o texto. Essa polêmica, no entanto, em alguns momentos, não se
dá de forma declarada.
Novamente, recorro a esse exemplo: na área considerada pelos aprendizes de maior
tecnologia, onde robôs atuam no processo produtivo, quem carrega uma porta que pesa 26 quilos,
por 3 metros, com as próprias mãos, é o homem e não o robô.
Se não avaliarmos adequadamente a expressão com as próprias mãos, a ênfase dada ao
modo como o operador carrega a porta, o “colorido” dado à cena descrita, poder-se-ia acreditar
que os aprendizes estão descrevendo um processo que exemplifica a atuação e a interação da
tecnologia e do homem no processo produtivo, apenas.
Mas, ao contrário, se “escutarmos” esse tom aplicado ao enunciado, considerando-o como
um enunciado concreto, poderemos avaliá-lo como um tom de indignação. Nesse enunciado,
verificam-se as vozes dos aprendizes travando polêmica com as da tecnologia e qualidade e da
Ergonomia. Nesse contexto, esse tom é uma resposta ativa às vozes que permeiam o corpus.
Outro exemplo de tom pode ser o seguinte: “a Ergonomia deve adaptar o trabalho ao
homem, intervindo e aplicando melhorias em projetos de máquinas, equipamentos e sistemas de
manufatura, de modo a melhorar segurança, saúde, conforto, eficiência e bem-estar do
trabalhador, durante e após o trabalho.
No decorrer da análise dos aprendizes, verifiquei como eles vão apontando alguns
aspectos do trabalho considerados incompatíveis com a Ergonomia. O recurso negrito aplicado
aos termos adaptar, durante e após, esse “colorido” dado ao enunciado, esse modo de o sujeito
marcar sua voz, seu lugar singular, remete a um tom de questionamento, até mesmo de dúvida
com relação aos preceitos da Ergonomia, compreendidos pelos aprendizes.
É por meio das relações dialógicas, das articulações estabelecidas entre os enunciados,
que se chega ao discurso polêmico velado. Se não considerarmos o enunciado como uma resposta
ao que veio antes e uma antecipação ao que virá adiante, se não considerarmos a esfera de
produção, circulação e recepção em que ele é realizado, não será possível compreendê-lo em sua
plenitude.
Os relatórios são realizados para a avaliação da escola como forma de medir o quanto o
aprendiz assimilou de conhecimento, competências e habilidades exigidas pela instituição para
sua formação e, conseqüentemente, pela empresa que o contrata como aprendiz e, futuramente, o
contratará como profissional.
Pude concluir, portanto, que os aprendizes deixam “escapar”, em alguns momentos,
consciente ou inconscientemente, a discordância com o discurso da Ergonomia e da tecnologia e
qualidade, considerados, por vezes, elementos inconciliáveis com alguns aspectos do trabalho.
Acredito, após esta pesquisa, que não seja possível (um desejo quase ingênuo) a
conciliação de alguns conflitos que surgem em função do confronto entre esses dois campos da
comunicação, ou seja, a escola e a empresa, dado a alguns aspectos que, como já discutido, são
elementos histórico-sociais constitutivos desses campos da comunicação: a tensão e a separação
entre eles.
A tensão, especificamente, é elemento intrínseco à prática da alternância de lugares dos
sujeitos e que, por vezes, aponta contradições. A tensão é “constitutiva da criação humana,
porque é ela o que atesta a presença do outro, daquele que não se identifica comigo” (Amorim,
2003:111) e que me altera.
Os aprendizes, ao saírem da escola e irem para linha de produção, ao se colocarem num
outro lugar e, posteriormente, retornarem a seu próprio, imprimem um olhar particular,
ativamente responsivo, de onde derivam valores, por vezes conflituosos, contraditórios. Essa
responsividade é que marca, instaura os sujeitos no mundo, num lugar único.
Ao colocar-se no lugar do outro, ao observar operadores em situação de trabalho, os
aprendizes adotam o horizonte vital concreto desses sujeitos tal como eles o vivenciam. Ao
retornarem para o seu próprio lugar, ou seja, ao relacionarem ao outro o vivenciado, os
aprendizes dão um acabamento ético e estético que conclui a imagem que têm do trabalho e dos
trabalhadores.
A fotografia, nesse sentido, implica esses dois lugares, essa alternância de sujeitos que
traz no olhar de um e de outro uma relação de tensão, pois a imagem que o aprendiz registra,
portanto, a compreensão que ele tem daquela “realidade”, não coincide com a mesma que o
operador tem de si e da sua “realidade”.
Há, entre as fotografias e os enunciados verbais, uma relação que aqui não foi
devidamente investigada e que remete a outras questões: as imagens, resultado de uma visão
excedente, relacionam-se com enunciados verbais que tratam do tempo dos movimentos dos
operadores, do tempo para realização das tarefas, do tempo de descanso, do tempo da realização
das operações pelas máquinas.
Trata-se da categoria espaço-tempo, ou, conforme a teoria central adotada nesta pesquisa -
a “análise/ teoria dialógica do discurso” - (1) exotopia e (2) cronotopo:
(1) O espaço é a dimensão que permite fixar, inscrever o movimento ou,
dito de outra forma, a dimensão em que o movimento pode se escrever e
deixar suas marcas. A fixação é o resultado de todo trabalho de
objetivação, seja científico ou artístico (...).
(2) A concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e,
assim, a cada nova temporalidade, corresponde um novo homem. Parte,
portanto, do tempo para identificar o ponto em que este se articula com o
espaço e forma com ele uma unidade. O tempo (...) é a dimensão do
movimento, da transformação (...) (Amorim, 2006:101,103).
Na verdade, essa é mais uma das possibilidades de investigação que se mostram
profícuas. O corpus é extremamente rico, nem poderia deixar de sê-lo, afinal, onde há o homem,
e, por isso, linguagem, sempre haverá interesse em compreendê-lo nas suas relações.
Essa investigação, no entanto, ficará para outro momento.
Despeço-me deste trabalho, longe de tentar resolver ou superar qualquer tensão. Ao
contrário, saio dele sabendo que não terei “nenhuma garantia dialógica de que um melhor
entendimento das idéias dos outros [me] deixará à vontade com elas” (Emerson, 1997:331). O
que quero mesmo é essa tensão, esse conflito que de alguma forma me altera, me transforma, e
que só é possível nesse encontro, tenso, com o outro, com as outras vozes.
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