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LAIS DORIA PASSOS MONTEIRO DE BARROS
PALCO DE EXPERIÊNCIAS
artes e desartes com o teatro
1996-2006
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes, Área de Concentração
Artes Cênicas, Linha de Pesquisa Teatro
Educação, da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do Título de Mestre em
Artes, sob a orientação da Profa. Dra. Ingrid
Dormien Koudela.
São Paulo
2008
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COMISSÃO JULGADORA
--------------------------------------------------
Prof.(a) Dr.(a)
-----------------------------------------------------
Prof.(a) Dr.(a)
-----------------------------------------------------
Prof.(a) Dr.(a)
4
para
Artur, grande amor,
Gisa e Carol, orgulho e amor,
Casa de Ensaio, sonho e paixão.
5
Obrigada:
À minha mestra, amiga, consultora, diretora, dramaturg e orientadora Ingrid Koudela, por
esse intenso período de companheirismo, visitas e estudos harmoniosos comuns, bem como
de angústias, afastamentos, medos, inseguranças e críticas fundamentada.
À minha mãe Elza, por me dar as mãos e ajudar a me entender como artista.
Ao meu pai Pedro, por me ensinar a ultrapassar a arrebentação sem medo.
A UCA, mestra da vida e contadora de histórias.
A Marcio, Marco e Diogo, parceiros nas artes.
A Martine Birnbaun e Ana Birnbaun Figueiredo, pouso, alimento e chão.
A Rosane Muniz, Vera Sobral, Maria Eugenia Millet, Estela Neves, Eliane Bessa,
Martha Barbosa e Edineide Dias, amigas e cúmplices desse processo.
A Matteo Bonfitto e Maria Adélia Menegazzo, pelos bons e determinantes conselhos.
A Fausto Viana, trabalho, amizade e conhecimento.
A Helena Prates, Carol Doria, Gisela Doria, Lucas Bomber, Jaqueline Mesquita e
Alcindo Rocha, revisão cuidadosa e carinhosa.
A Karin Mellone, pela sensibilidade em “desviar” sabiamente meu percurso acadêmico.
A Lúcia Barbosa, amiga nas descobertas sociais e na arte.
A Gabriela, Pedro e Baby Udo (a), meus deleites, admiradores do teatro e que me
apontam com esperança, um futuro melhor.
Aos meus amigos que entenderam meu silêncio e afastamento.
Ao nosso poeta maior, Manoel de Barros que me ensinou a brincar com as palavras e a
crescer como passarinho.
6
E a todos os meus alunos/atuantes, à trupe da Casa, estagiários, educadores, parceiros
de trabalho, pais dos alunos, artistas e profissionais envolvidos com a Casa de Ensaio,
que me permitem sonhar e voar juntos.
Muito obrigada:
Aos amigos da REBECA, Carlos Arakaky, Carlos Marques, Celeste Curado, César Chedid,
Edna Passos, Eva Siufi, Haroldo Xavier, Múcio Santos Pereira, Paulo Mujica, Humberto
Espíndola, Kemal Jeorge (Paxa), Keltrin Fernanda, Marlei Sigrist, Fernando (multiofício),
Thiago Jordão e Tânia Garib.
E ao “eu” amanhã na Casa: Gabi, Sara, Adriane, Edu, Drielly, Lauane, Larissa, Diogo,
Bruna, Marina, Michelly, Paulo, Geraldinho, Lucas e muitos outros que estão por vir.
7
R E SU M O
A presente pesquisa descreve o processo experimental desenvolvido pela Casa de Ensaio
(1996-2006) envolvendo crianças e adolescentes em desvantagem social, moradores de
bairros periféricos da cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave:
Pedagogia de Teatro; Jogos Teatrais; Teatro Infantil; Educação e Terceiro Setor.
8
A B S T R A C T
This research describes an experimental process developed by Casa de Ensaio (1996-2006)
which involved children and teenagers who come from a poor background, and live on the
outskirts of Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
9
10
SUMARIO PÁGINA
Tomar lugar à mesa 12
Primeiro capítulo
Palco de experiências, experiências de vida 19
Troca da roda 19
Além dessa estrela 23
Por uma identidade 27
Nova casa 36
A manhã do outro dia 54
Segundo capítulo
Palco de experiências, experiências de palco 65
Por uma arte engajada 65
Teatro social, um processo brincante 68
Teatro, casa dos sonhos 72
Anos seguintes 75
Regional, como processo teatral 82
Novos assuntos, novos conhecimentos 111
Caminho da busca 116
Terceiro capítulo
Cirandando com o Palco de experiências 118
Texto e processo cênico 119
Leitura de mesa 126
Programa da peça 136
Críticas 141
Cenário, Figurino, Adereços- um processo 143
Amigas em cena, música e o movimento 150
Trilha e dança 152
Prazer em começar 157
Temporada e último dia 162
Pão do povo, o espectador 164
Novos desafios 165
Olhar convexo 168
Bibliografia 184
11
No pomar tem uma ameixeira
tão pequena, que ninguém faz fé.
Em volta dela há uma cerca
Que é pra ninguém botar o pé.
A pequenina não pode crescer.
Pois crescer ela queria bem.
Mas aí nada se pode fazer
Tão pouco é o sol que ela tem.
Nessa ameixeira ninguém faz fé
Porque nunca deu uma ameixinha.
Mas que é uma ameixeira, isso é:
Pelas folhas a gente adivinha!
Bertolt Brecht
12
“Aprendera no Circo, há idos, que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo.para ser séria de
rir”
Manoel de Barros
Tomar lugar à mesa
Vivendo nesse mundo contemporâneo e fragmentado, muitas vezes me encontrava dispersa,
sem saber onde seguir, mas tive a sorte e o privilégio de mudar meu percurso de vida,
quando no papel de voluntária descobri que precisava “tomar meu lugar à mesa”, ou seja,
fazer do meu prazer e “ajuda” um novo espaço de trabalho, hoje meu alimento.
Mesmo em um País no qual os espaços artísticos públicos vão se deteriorando, entregue à
irracionalidade capitalista, artistas e pesquisadores, através de suas artes, ainda seguem se
dando as mãos, para que consigam com suas experiências revertê-los em espaços vivos e/ou
novos, ainda que para isso demore dez, cem, mil anos. Então foi na busca por um novo
espaço artístico vivo e educacional é que se definiu a narrativa dessa pesquisa.
Narro aqui como tudo começou, um trabalho de reflexão e invenções com teatro para
crianças e adolescentes, na possibilidade de uma “transformação” viva e orgânica. Um
percurso de emoções, sentimentos, sensações e lições, entre erros e acertos como
mecanismos de sobrevivência. Busco juntar essa experiência, recuperar sua trajetória,
fundamentar essa prática e criar espaços de conhecimento artístico teatral, educacional e
humano.
Contudo, esse relato não pretende ser mais um trabalho somente científico ou literário, mas
um registro de novas possibilidades expressivas, acompanhado de algumas reflexões que
possam dialogar com esse conhecimento artístico produzido durante o percurso de uma
década de trabalho.
Essa experiência teatral visa o desenvolvimento de uma ação transformadora com
características essencialmente humanas. De acordo com Freire:
13
(...) Somente os seres que podem refletir sobre sua própria limitação
são capazes de libertar-se, desde, porém, que sua reflexão não se
perca numa vaidade descomprometida, mas se no exercício da
ação transformadora da realidade condicionante. Dessa forma,
consciências de uma ação sobre a realidade são inseparáveis
constituintes do ato transformador pelo qual homens e mulheres se
fazem seres de relação. A prática consciente dos seres humanos,
envolvendo reflexão, intencionalidade, temporalidade e
transcendência, é diferente dos meros contatos dos animais com o
mundo. (Freire: 1974,161)
Sendo assim, refletindo sobre minhas próprias limitações, busco perceber elementos
significativos da experiência teatral. Um percurso entre 1996 e 2006, intenso de vivências
com crianças e adolescentes no palco. Buscarei resgatar em minha memória as experiências
práticas fáceis ou difíceis desse processo longo que continuo vivendo. Sonhos e emoções
que buscam revelar conquistas, injustiças e desigualdades, mas que mesmo assim geram
cores e borboletas que ganham o mundo para voar.
Apresentarei algumas das ações e decisões vivenciadas por mim dentro de uma organização
da sociedade civil denominada Casa de Ensaio, com cem crianças e jovens no palco. Essas
ações dialogam ora com alguns mestres, ora permeiam intuitivamente vivências artísticas.
De qualquer forma, elas não têm como objetivo ensinar técnicas teatrais para crianças e
adolescentes, mas sinalizar caminhos a se percorrer através do exercício teatral.
Tal exercício, que vazão ao desenvolvimento das artes e desartes da Casa de Ensaio,
será narrado ao longo dessa dissertação.
Orientada pela professora doutora Ingrid Koudela, fui ao encontro do pensamento do
pedagogo russo Anton Makarenko. Através dele iniciei os primeiros passos para o relato
dessa pesquisa. Assim fui bebendo em fontes que não secam e que vem satisfazendo a
minha sede.
Com essa experiência pude eleger outros mestres que constarão durante todo esse percurso
e que colaboraram pela construção de uma estética teatral a qual não pode ser desvinculada
de suas implicações pedagógicas.
14
A experiência da Casa de Ensaio revela o desenvolvimento de uma ação cultural permeada
não somente por técnicas específicas, mas por uma integração de procedimentos onde o
estético e o ético envolvem todos os elementos do espetáculo, mantendo como o principal
protagonista dessa história o coro. Segundo o dicionário de Pavis, a definição de coro é:
termo comum à música e ao teatro. Desde o teatro grego, coro
designa um grupo homogêneo de dançarinos, cantores e narradores,
que toma a palavra coletivamente para comentar a ação, à qual são
diversamente integrados. (Pavis, 2003,73)
Assim, exercitando a integração de um grupo de narradores que comentam uma ação
dramática no palco, o aluno/atuante pode estabelecer uma busca de sua identidade
individual. A partir da constituição de diversidades, a identidade coletiva emerge, dando
vida a uma ação sócio-cultural. Cultura é desenvolvimento, liberdade, troca e o teatro
materializa tudo isso. Então me a sua mão que eu te dou a minha e juntos faremos
teatro
1
.
Encenar e sobreviver dessa arte não é uma missão fácil, mas foi na busca da simplicidade
dessas ações e desse desejo intrínseco de transformar que, como encenadora, desenvolvi
essa arte que permite exercitar, fazer, criar, trocar, vivenciar e transformar.
Como disse Boal em “O teatro é a arte do futuro
2
:
no futuro, no teatro gente vai encontrar gente. Fora disso haverá
sempre uma tela entre um homem e outro homem - telas de cinema,
telas de computador, de TV.
Será então essa uma esperança de vida e sobrevivência para nós, os “fazedores de teatro”?
1
autor desconhecido
2
Augusto Boal, Caderno2/Cultura D7, jornal O Estado de SP, 27/02/2005
15
Portanto, nesse percurso tentarei apresentar um trabalho no qual a alegria da descoberta está
intimamente ligada ao prazer pelo resultado artístico teatral e humano, que sobrevive aos
conflitos morais e não pode ser dissociado das atitudes e das questões pragmáticas da
conduta de vida (questões de ordem material, como problemas financeiros, patrocinadores,
ou questão de cunho afetivo, como atitudes para com a casa, a família, a relações com as
pessoas etc.).
Procuro investigar mais a fundo essa prática tomando como referências uma experiência
artística comprometida com as interrogações que perpassam o fenômeno teatral de hoje: a
reflexão do papel do teatro em relação ao social. Um teatro social que privilegia a pesquisa
permanente com crianças e adolescentes.
Assim, para apresentar o papel desse fazer teatral, a presente dissertação será organizada
em três capítulos e a conclusão.
16
Primeiro capítulo: apresenta e discute minha trajetória como encenadora e enquanto artista-
pesquisadora dessa ação, e a contextualização histórica do nascimento da Casa de Ensaio, o
espaço da investigação, com alguns conceitos os quais servem como ponto de partida dessa
experiência.
Segundo capítulo: narra experiências de palco, dentro de um dos programas-âncora da Casa
de Ensaio: “Palco de Experiências”. Este capítulo apresenta desafios e conquistas no
sentido de se investigar, através da criação de espetáculos, um trabalho de encenação onde
o estético e o aspecto formativo são indissociáveis, mostrando como essas características
artísticas e educacionais estabelecem parcerias fundamentais entre palco e a vida. Indo
buscar através de uma proposta de arte-transformação” a importância em manter no palco
a unidade entre todos os elementos que compõem um processo teatral
3
, vivenciados por no
mínimo cem crianças e adolescentes, alunos/atuantes a cada novo espetáculo proposto.
Terceiro capitulo: narra a experiência do último espetáculo apresentado, o décimo primeiro
em dez anos consecutivos da Casa, intitulado “Cirandando”. Sua intertextualidade é
composta por vários recortes de poemas de diversos autores contemporâneos brasileiros,
propondo assim uma reflexão social e política do tempo em que vivemos. Um espetáculo
que através de brincadeiras de infância e jogos teatrais traz na sua contemporaneidade
significativas práticas cênicas e educacionais. A análise desse espetáculo busca sintetizar
aspectos mencionados anteriormente, tais como o coro, a unidade entre ética e estética,
estética e pedagogia, entre individual e coletivo.
E o “olhar convexo” como conclusão dessa ação.
3
os elementos são: interpretação, dança, música, poesia, iluminação, canto, percussão.
17
O que vem a seguir então, inspirada em Makarenko, é a apresentação de uma colherada de
mel num barril de piche. Uma pesquisa com relatos, problematizações, contextualizações,
intertextualizações e comentários de um teatro voltado a uma ação sócio-cultural, dentro do
terceiro setor, essencialmente prática.
Portanto, essa dissertação não será uma apresentação minuciosa e muito menos teórica ou
crítica desse processo teatral, preenchido de palco e de vida, mas uma experiência a ser
“degustada” por pessoas que executam o teatro social com crianças e adolescentes ou
interessados nesse assunto.
18
As imagens e as fotos que aqui serão apresentadas foram obtidas através desse percurso
como arquivo pessoal. Muitas, tiradas por mim, outras por amigos, alunos e ou
profissionais contratados
4
.
Espero que este trabalho estimule a invenção de novos espaços e experimentos artísticos e
pedagógicos no palco com muitas crianças e adolescentes.
4
As imagens o dos períodos 1996/2007 e os fotógrafos profissionais são: Milla Petrillo, Haroldo Xavier, Lisa Ria, Thiago Jordão,
Marcio Doria , Fausto Viana, Stefan Hofmann, Alexandre Basso, Dênis Feliz , Robinson Patrício e Júlio Feliz. Aluno: Edu
Ribeiro.Banner: Qualitas Brasil (agência)
19
“Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada. Falava em língua de ave e de criança”.
Manuel de Barros
Primeiro capítulo
Palco de experiências, experiências de vida - Casa de Ensaio.
Troca da roda
Aos dez anos (1960) ganhei de meus avós uma casinha de alvenaria, construída dentro do
quintal da casa deles na fazenda onde viviam no Mato Grosso do Sul, próximo à fronteira
com o Paraguai. Ela tinha apenas uma peça com uma mesa de madeira comprida e dois
bancos largos, uma estante com prateleiras também de madeira pintadinhas de branco no
fundo e na lateral direita um fogãozinho a lenha (nunca o usei) que servia como gaveta. Do
lado de fora, uma pequena placa dizia: Escolinha da Lais”. Foi nessa época que comecei a
fazer e simultaneamente “ensinar’’ teatro-educação. Aquele presente inusitado me
provocou uma grande emoção, e me possibilitou a descoberta de uma ‘escola de
brincadeira’”.
Naquele pequeno–grande espaço de aproximadamente 8 m
2
(oito metros quadrados), eu
passava horas, dias, meses e anos brincando durante grande parte das minhas férias em
Mato Grosso do Sul (o equivalente a três meses por ano). Nele, vivi minhas primeiras
experiências teatrais desenvolvendo atividades artísticas com as crianças locais, meus
amigos da fazenda. Eram crianças de várias idades, ríamos e brincávamos muito. Talvez
tenha sido esse ambiente o que despertou minha consciência social e meus primeiros
treinamentos pedagógicos e artísticos.
Meu contato com a encenação teve início em 1960 na mesma fazenda, porém em outro
local, o qual era chamado de “bailante”
5
. Esse trabalho foi realizado a partir de uma peça
5
Espaço para eventos sociais e bailes que aconteciam na fazenda, local de forma redonda como um teatro de arena, com bancos.
20
composta de frases curtas que ligavam cenas de movimentos corporais, cujos “atores” eram
crianças, minhas amigas e meus “alunos”. Essa peça não tinha título, mas poderia
perfeitamente se chamar Chegou o Circo na Fazenda. A partir dessa estréia posso dizer que
em meu caminho duas áreas uniram-se profundamente, o teatro e a educação. Minha futura
profissão emergiria dessa combinação.
No Rio de Janeiro, adolescente, entrei em contato com o teatro profissional. Tive, então,
na minha primeira experiência como atriz, o privilégio de ser dirigida pela dramaturga e
encenadora Sylvia Orthof, em sua peça Vagão da Roda Fina e sua Mãe Leopoldina
(1984). Nosso espaço de ensaios era situado em Laranjeiras e chamava-se Casa de Ensaio,
nome este que seria resgatado somente em 1999, em Campo Grande, a fim de ‘batizar’
nosso local de trabalho.
Além de me apropriar desse nome, em função de seu aspecto lúdico e acolhedor, através de
tal escolha prestei uma homenagem a uma mestra do Teatro Infantil, que tanto me instigou
e ensinou. Sylvia Orthof, além de encenadora, era escritora de livros (peças
6
) infantis,
cheios de humor, irreverência e poesia.
Após algum tempo, como educadora e atriz, fui morar no Jardim Botânico (RJ), ao lado
do Teatro-Escola Tablado de Maria Clara Machado, onde cursei oficinas e assisti suas
obras teatrais, as quais mesclavam exercício crítico e qualidade artística de maneira
impecável. Machado, à época, iniciou uma colaboração com a entidade Pequena Cruzada
7
,
o que representaria mais tarde uma fonte de inspiração em meu trabalho. Como as crianças
da Pequena Cruzada não tinham acesso à cultura e nunca haviam ido ao teatro, eram
convidadas a assistir peças teatrais infantis gratuitamente, no Tablado.
Até 1980, ainda vivendo no Rio de Janeiro, minha participação como produtora e atriz em
espetáculos teatrais, televisão e filmes, me fizeram perceber a complexidade do sistema de
interpretação do ator e suas múltiplas possibilidades.
6
Dentre seus trabalhos, destaco a peça Viagem do Barquinho, premiada em 1976.
7
Pequena Cruzada é uma entidade sem fins lucrativos voltada ao atendimento de crianças em desvantagem social no Rio de Janeiro.
21
Em 1996, morando em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, iniciei minha prática com a
troca da roda: passei assim do trabalho com o teatro artístico-comercial para o teatro como
arte social. Um novo percurso como encenadora, na produção de peças com crianças e
adolescentes em situação de desvantagem social. Nasceriam, dessa forma, experimentações
cênicas onde o ético e o estético estavam profundamente interligados. Uma ação teatral pela
cidadania cultural.
Foi devido a esse processo que pude romper barreiras e a rigidez do fazer teatral comercial.
Através do encontro com a diversidade social re-descobri a força do teatro. A potência do
teatro parece emergir não de crenças e valores cristalizados, mas do olhar do Outro.
Assim eram dados os primeiros passos para a criação de uma escola que pudesse funcionar
como um Centro de Artes, onde o educacional, o social e o meio ambiente seriam seus
substratos criativos. Uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público),
classificada como terceiro setor: Casa de Ensaio.
Como não pretendia montar uma escola formal com fins didáticos, procurei desenvolver
um planejamento pedagógico que envolvia atividades artísticas. Porém, nesse caso, tais
atividades não seriam pensadas ou impostas à priori, mas deveriam emergir da diversidade
cultural e social que compõem o material humano da Casa de Ensaio.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que reconheço a especificidade e a importância do
trabalho desenvolvido pela Casa de Ensaio, não o vejo como uma iniciativa isolada. Além
de me manter informada sobre encenações teatrais e estilos de atuação, estive atenta a
outros projetos que utilizavam o artístico como meio de ação social, tais como o CRIA,
AXÈ, CIPÓ e Bagunçaço, em Salvador; a Cia. Étnica de Dança, Afroreggae, Nós do morro,
e o Spetaculum, no Rio de Janeiro; o cleo de Estudos e Danças Sebastian e os Doutores
22
da Alegria em São Paulo; Oficina de Imagens e Giramundo em Belo Horizonte; EDISCA,
em Fortaleza; o Malasartes, em Curitiba; Teatro Activo, em Assunção (Paraguai).
8
8
Ver todos no blog: www.artetransformador.blogspot.com, no qual a Casa de Ensaio também está inserida e tantos outros
que fazem parte dessa Rede Latino-Americana de “arte-transformação”. A Rede Latino-Americana de Arte para a
Transformação Social, criada em 2005, é formada por 25 organizações de Brasil, Argentina, Chile, Peru e Bolívia, que
realizam práticas artísticas de qualidade sobre a geração da transformação social para a eqüidade, o exercício da cidadania
efetiva, a integração social, a promoção dos direitos humanos, da inter-culturalidade e da sustentabilidade social global.
Todos líderes AVINA.
23
Além dessa estrela
Descrever os caminhos que me levaram a desenvolver o planejamento pedagógico da Casa
de Ensaio representa um esforço de documentação de um processo que envolve o resgate
não somente de uma memória pessoal, mas também de uma memória coletiva, de um
patrimônio de iniciativas que visam a construção do tecido social através do artístico.
Um dos objetivos dessa pesquisa é provocar certo estranhamento. Em outras palavras, ao
mesmo tempo em que busco aqui refletir sobre a complexa articulação entre o artístico, o
social, o pedagógico, o antropológico, o político etc., essa pesquisa deve ser vista como um
processo de auto questionamento, de auto-reflexão, e não como a descrição de um projeto
acabado, idealizado. O trabalho teatral desenvolvido com crianças e adolescentes
moradores de bairros populares deve passar, portanto, por um crivo crítico. Aqui, processos
humanos são vistos como uma abertura para o ‘não-saber’. Nesse sentido, a construção de
formas espetaculares a partir do trabalho com crianças e adolescentes é o resultado de um
processo que parte, a cada vez, do desconhecido.
De fato, minhas práticas cênicas transformaram-se nesse processo. Em um dos programas-
âncora da Casa de Ensaio o “Palco de Experiências”, por exemplo -, as regras na arte de
encenar foram tomando seu rumo em função da construção em parceria com as crianças.
Um processo de encenação como ação cultural desenvolvido durante dez anos de trabalhos
consecutivos.
Na ação cultural do “Palco de Experiências” procurei organizar e levantar quais seriam as
questões necessárias ao processo de criação denominado “arte-transformação”. Busco uma
ação transformadora na qual as crianças e os adolescentes tenham condições de percorrer
seus caminhos com mais consciência e sensibilidade, para que possam ser um dia os
sujeitos de suas ações.
Foi este o percurso que escolhi: desenvolver uma pedagogia do teatro com jovens, através
do fazer teatral e da reflexão sobre ele, buscando a construção da consciência individual e
coletiva.
24
Mas, a escolha não foi casual. Como sabemos, o fazer teatral é um campo fértil e
aglutinador de sonhos. Através de pesquisas e vivências práticas percebi quanto o jogo
cênico pode ajudar a promover a consciência do eu e do coletivo. A pedagogia da Casa de
Ensaio foi desenvolvendo seu repertório de ações e valores em torno dessas metas.
Como proporcionar ao aluno/atuante uma transformação individual através da criação
teatral de uma forma estética espetacular coletiva? Essa é a pergunta em função de suas
implicações pedagógicas. Tratamos de despertar em cada aluno/atuante o seu talento
individual e seu sonho, muitas vezes adormecido. Incentivamos o aluno a se expressar sem
medo, sem preconceito, resgatando sua auto-estima, ampliando seu horizonte de opções
culturais com novas informações e conceitos, fazendo a ligação com o mundo
contemporâneo e desenvolvendo neles uma atitude crítica e reflexiva com relação ao
trabalho, que tornem possíveis as descobertas artísticas de cada um.
Temos ainda como objetivos específicos promover na Casa de Ensaio um espaço
democrático de trocas de informações e experiências entre alunos/atuantes e profissionais
de áreas afins sobre questões culturais, sociais, políticas e ambientais de sua região e do
mundo. Isso além de apresentar à comunidade local, a cada ano, o nosso trabalho artístico,
formar na cidade uma platéia de teatro, oferecendo sempre bons espetáculos gratuitos, com
profissionais qualificados que compõem a equipe técnica. Outro objetivo é promover na
Casa de Ensaio um espaço propício ao desenvolvimento de pesquisas nas áreas de políticas
culturais, ciências humanas, artes cênicas (entre outras artes) e de meio ambiente. Fomentar
e desenvolver na diversidade cultural uma rede de conhecimentos através de encontros com
pesquisadores e artistas educadores brasileiros e estrangeiros, que possam trocar
pensamentos, experiências individuais de artes, de questões culturais, sociais e ambientais,
tendo em mente um mundo melhor.
Nos primeiros anos dessa experiência teatral (1996/1999), os passos eram lentos e o
público-alvo da Casa constituído apenas de crianças e adolescentes com experiência nas
ruas.
Trabalhar, conhecer e conviver com esses meninos através da arte era um caminho
novo e instigante. A questão de como fazer arte com quem não tem comida sempre me
25
inquietou. Se esses meninos não eram atendidos nem nas necessidades básicas, como eu
poderia oferecer um alimento como a arte (também básico e vital, mas para a alma) e
mostrar que esta não era supérflua? Como trabalhar a existência humana desses jovens, que
além de não serem atendidos nas suas necessidades primordiais estavam vulneráveis às
situações como a não-efetivação de seus direitos de cidadania?
Começo definindo as bases para a construção de um processo de criação dialético através
de uma prática pedagógica com objetivo mais específico: a organização do coletivo. De
acordo com Makarenko (1989, 35): (...) a prática pedagógica é a organização do coletivo,
para a educação da personalidade no coletivo e somente através do coletivo.
Acreditando nessa força para a educação da personalidade e tomando como base a ação
cultural, de acordo com Makarenko.
“(...) Estou convicto de que a finalidade da nossa educação
reside não somente em educar um homem de espírito criador,
um homem cidadão capacitado para participar com xima
eficiência na edificação do Estado. Nós devemos educar,
também, uma pessoa que seja obrigatoriamente feliz”.
(Makarenko: 1989,49)
Apesar de Makarenko ter na sua época uma posição socialista dentro de um regime político
comunista, gostaria de ressaltar o mesmo princípio, qual seja, educar para que uma pessoa
possa ser feliz. Ao fazer uma comparação entre os jovens atendidos por Makarenko com os
jovens que estavam sendo atendidas por mim, muitos caminhos se abriram para minha
busca.
26
Nessa mesma época, em 1996, a maioria dos alunos era formada por “crianças de rua”. A
ONU (Organização das Nações Unidas)
9
define uma criança de rua como:
(...) Qualquer menino ou menina... para qual a rua (no
sentido mais amplo da palavra, incluindo residências e terras
não-ocupadas) tenha se tornado para ele ou ela sua
residência fixa habitual e/ou sua fonte de subsistência; e
quem está inadequadamente protegido, supervisionado ou
orientado/dirigida por adultos responsáveis. (ONU)
Analisando o meu público-alvo, pude perceber que esses primeiros alunos possuíam
algumas características semelhantes aos alunos da Colônia Gorki de Makarenko, eram
também anarquistas urbanos”, como ele os chamava. Para ele, “anarquistas urbanos”
eram
aqueles sem referenciais éticos, inimigos do sistema, com histórias de violência,
roubo, abandono, drogas e doenças contagiosas. Observei também que alguns de meus
alunos, apesar da pouca idade, já possuíam inúmeras e profundas cicatrizes em seus corpos.
Eu me lembro que um dia encontrei um aluno com a boca toda ferida em conseqüência da
inalação excessiva de cola.
Assim, iniciei o diálogo com esse pedagogo, compreendendo melhor um novo percurso
pedagógico que seguia através de identificação com suas ações. Buscava com essa
experiência encontrar uma pedagogia capaz de resgatar as histórias de vida de cada aluno.
Com esses alunos “inadequadamente protegidos” formei o meu
primeiro grupo de teatro
social denominado JAMP (Jovens Atores AMPARE
10
). Sabia que não tinha o direito de ser
otimista em conquistar nossos objetivos e propor mudanças individuais com aqueles
pequenos cidadãos. Até hoje, mesmo conhecendo os sacrifícios que ainda vislumbro no dia-
a-dia, em se tratando de trabalhar com teatro, com poucos recursos e muitos preconceitos, o
processo de transformação é individual e gradativo. “Ser feliz” é cada vez mais complexo e
relativo.
9
Site http://dreamscanbe.org/br/who.html Fontes: CIESP e IBGE junho 2004
10
AMPARE é o nome da Instituição que estava trabalhando como voluntária na época.
27
Por uma identidade
Entre essas ações que vimos acima, outra inquietação, era tentar entender melhor a
realidade cultural onde estava esse jovem, marcado por uma identidade regional, locus
desta pesquisa: Centro-Oeste, Mato Grosso do Sul, Campo Grande.
A questão da identidade vem sendo amplamente discutida principalmente na teoria social e
tomarei como fontes para esse diálogo alguns teóricos contemporâneos, entre eles Hall,
Ortiz e Menegazzo.
O Centro-Oeste do Brasil é ainda uma região mais reconhecida por suas riquezas naturais
(Pantanal
11
) que por seu patrimônio artístico-cultural. O pouco acesso a bens culturais,
como em muitas outras regiões brasileiras, dificulta uma aproximação da população com
esse patrimônio. As desigualdades sociais são profundas e, assim também como nas
grandes metrópoles, a pobreza está concentrada na periferia ou nas regiões fronteiriças do
11
Região caracterizada como uma das maiores planícies interiores inundáveis do mundo. Martins, 2002,15.
28
Estado. Mas é bom ressaltar que conforme dados de pesquisas recentes da ONU
12
, a
violência não está ligada à pobreza, mas à desigualdade social. Vivemos em uma sociedade
capitalista, onde o jovem está inserido se consumir. Então o que se passaria
na cabeça de
um jovem pobre que é discriminado por não ter acesso aos bens de consumo? Questões
como esta são amplas, complexas e ambíguas.
Mato Grosso do Sul é um Estado relativamente jovem. A idéia da separação de Mato
Grosso, no entanto, vem de longa data, desde a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai
(1864-1870). Contudo, o Estado nasceu durante o governo do presidente Ernesto Geisel,
em 1979, com a ruptura definitiva. Mas é:
nos limites de um espaço geográfico que se manifestam, segundo o
senso comum, as culturas regionais. Sabe-se que a produção cultural
regionalista, em todas as suas linguagens, passa por um processo de
não-reconhecimento e, na grande maioria dos casos, de submissão e
retração”. (Menegazzo
13
; 2004,29)
Percebe-se assim que a produção cultural do Estado ainda passa por esse processo de não-
reconhecimento, de submissão e retração entres essas novas rupturas. Ela começou a
acontecer e a ser contada bem pouco tempo e os registros dessa produção ainda são
precários. O percurso de reconhecimento e a legitimação ainda estão por vir. A divisão
territorial ainda hoje confunde a sociedade que muitas vezes não distingue Mato Grosso do
Sul de Mato Grosso. Nesse processo de rupturas é importante perceber como essas velhas
correntes de pensamentos foram rompidas e como os elementos novos estão sendo
agrupados.
Um conflito grande e de difícil resolução é a questão indigenista, bastante polêmica e que já
foi tema de um dos espetáculos da Casa de Ensaio (“Noite de Lua Cheia”, em 2005). Os
problemas de identidade cultural e demarcação de terras já se arrastam por séculos.
12
ONU, 2007. Site:http://www.onu-brasil.org.br/
13
Maria Adélia Menegazzo, professora da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) desde 1981;
coordenadora e professora do programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da UFMS – Campus de
Campo Grande.
29
Por exemplo, em algumas estimativas (2002),
14
Mato Grosso do Sul abriga mais de
cinqüenta mil índios, sendo a segunda maior concentração de população indígena do Brasil.
Segundo Martins
15
.
No inicio do século XVI, por ocasião do
“descobrimento” do Brasil, o território do atual
Estado de Mato Grosso do Sul era densamente
povoado por índios Guarani, Guató, Ofayé, Kaiapó
Meridional e outras sociedades indígenas que ainda
não foram identificadas pela arqueologia e pela etno-
história.( Martins, 2002,39)
Hoje as terras indígenas encontradas em Mato Grosso do Sul
16
sãos as comunidades e terras
indígenas guarani, reserva kadiwéu, comunidades e terras indígenas terena, terra indígena
guató, terra indígena ofa e comunidade indígena atikum. E garantir que esses atuais
povos indígenas sobrevivam de acordo com o seu modo de ser, como diz Martins, é poder
restaurar o eixo civilizatório”.
Segundo a tradição religiosa Gurani/Kaiowa do sul
do estado, os índios Kaiowa não podem acabar, pois
se eles acabarem quem i rezar para não acabar o
mundo? (Martins, 2002,89)
Percebe-se então que essas sociedades indígenas influenciam cada vez mais a produção
artística e a identidade cultural do povo. E estudiosos denunciam também os desequilíbrios
ambientais, que vem ocorrendo nessas sociedades de modelos econômicos ocidentais e que
causam grandes prejuízos tanto econômicos e financeiros quanto ambientais.
Apesar dos grandes conflitos de conservação demográficos e culturais que eles ainda
atravessam, as academias e a mídia vêm atraindo cada vez mais estudiosos nacionais e
internacionais em sua defesa.
14
Martins, 2002,12
15
Gilson Rodolfo Martins, possui graduação pela USP (Universidade de São Paulo) (1976) e doutorado em
Arqueologia pela mesma universidade (1996). Atualmente é professor titular da UFMS.
16
Fonte: Instituto Sócio-ambiental /2000 e Funai (Fundação Nacional do Índio)
30
Como exemplo, manifestações populares indigenistas e folclóricas vêm sendo pesquisadas
pelo Grupo Camalote de danças folclóricas da UFMS (Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul), coordenado pela pesquisadora da rede Folkcom da Cátedra Unesco
Metodista de Comunicação no Brasil, professora Marlei Sigrist. O objetivo é estabelecer
um canal de comunicação com a população visando incentivar disseminar e valorizar a
cultura popular, principalmente a regional, nos meios de comunicação, arte e educação.
As artes no Estado começam a ser estudadas e pesquisadas nas academias locais e
nacionais. Em 1980, na UFMS, foi criado o curso de graduação em Artes Visuais e várias
publicações de pesquisas vêm sendo apresentadas, como resultado dos cursos de pós-
graduação ou elaboradas por estudiosos da área. Por exemplo, recentemente foi lançado o
livro sobre “Artes Plásticas em Mato Grosso do Sul”,
com o objetivo de questionar e tornar
a arte local conhecida. Ele apresenta uma visão panorâmica dos artistas plásticos que
fizeram e fazem a história de Mato Grosso do Sul
.
Com os estudos das artes no Estado as mudanças também vêm ocorrendo. Em 2004, foi
aberto o curso de graduação em Música na UFMS e hoje se encontram algumas
contribuições de registros acadêmicos nessa área. Mas a dança e as artes cênicas ainda não
são estudadas nas academias de Mato Grosso do Sul. Sabemos que:
“tais mudanças de perspectivas refletem não só os
resultados do próprio trabalho intelectual, mas
também a maneira como os desenvolvimentos e as
verdadeiras transformações históricas são
apropriados no pensamento e fornecem ao
pensamento, não sua garantia de” correção, “mas
suas orientações fundamentais, suas condições de
existência”. (Hall
17
, 2006:123)
17
Stuart Hall, jamaicano radicado na Inglaterra desde 1951. É uma das figuras mais importantes da área de
estudos sociais. Professor do Open University, Inglaterra. Foi diretor e fundador do Centre for Contemporary
Cultural Studies, da Universidade de Birmingham. Sua preocupação é repensar a cultura em meio à
globalização complexa e contraditória dos tempos pós-modernos.
31
Portanto, tomando como base algumas ações e com orientações de registros acadêmicos, a
cultura e a sociedade começam a ser reconstruídas e a andar juntas em função dessa ruptura
com o antigo Estado de Mato Grosso.
O estilo de pensamento ainda vem muitas vezes mais do empirismo e do particularismo. Os
registros históricos começam a aparecer timidamente na sua diversidade. Como Estado
novo, Mato Grosso do Sul também faz parte dessa cultura contemporânea, fragmentada.
Ele é híbrido e tolerante, pois já nasceu com históricos de conflitos antigos como a
resistência indígena a ocupação colonial de seu território
18
e também com os países
fronteiriços, Paraguai e a Bolívia, nas questões do narcotráfico e o contrabando.
Esses conflitos são muito comuns quando se fala também de uma cultura fronteiriça.
Principalmente em países marcados pelo subdesenvolvimento e classificados como de
Terceiro Mundo, como é o caso do Brasil, Paraguai e da Bolívia. Por exemplo, em
momentos de crise, quando se intensifica a fiscalização das fronteiras, os conflitos com os
contrabandistas aumentam e o espaço de tensão passa a ser permanente como em cada
mudança política no Estado.
Mas como entender essas diferenças culturais e sociais? Como identificá-las, já que o
espaço de tensão passa a ser permanente? Como então chegar a uma identidade cultural,
sabendo–se que as diferenças entre as manifestações artísticas muitas vezes residem nas
diversas formas pelas quais elas são imaginadas. Mas
“Chegar a uma identidade significa encontrar
diferenças, que nada mais são do que uma identidade
enraizada em solo próprio, separada de outras
identidades. Ao mesmo tempo em que a diferença
isola, o receio de ficar é superado pelo
delineamento identitário. Frente ao outro, os limites
se definem e se superam”. (Menegazzo
19
, 2001,113)
18
Martins, 2002, 12.
19
Menegazzo, 2001, 113.
32
Por outro lado, percebe-se que este “delineamento identitário” vem sendo definido dentro
desse espaço de tensão que se toma como entendimento da cultura fronteiriça. É mais um
indicador para a construção do desenvolvimento cultural e social do Estado.
Mato Grosso do Sul vem beber diferentemente dessas fronteiras que fazem parte do
Mercosul (Mercado Comum do Sul). Por exemplo, o Estado adotou culturas paraguaias
como a chipa (tipo de pão de queijo), a sopa paraguaia (tipo de polenta), o tereré (mate
gelado), a polca (música e dança de ritmo rasqueado), o truco (jogo de cartas), entre outros.
Assim, o Estado constrói a sua identidade criando novos mecanismos de comunicação e
intercâmbios. São os Fóruns Culturais e Sociais, Festivais Latinos, Bienais, Salões,
Conselhos, Congressos, Encontros, Livros, Revistas, Obras de Arte, Peças Teatrais,
Músicas, Poesias etc. Toda identidade é uma construção simbólica, também influenciada
por elementos que a transformam em identidade plural, construída de modo particular por
diferentes grupos sociais e com relação estreita com o momento histórico vivenciado.”
(Ortiz
20
, 1986:9)
Mas a relação do Mato Grosso do Sul com esses países fronteiriços, embora tenham
características semelhantes, guarda diferentes e aspectos próprios, uma vez que cada um
desses grupos se relaciona com o Brasil distintamente. Percebe-se aqui uma identidade
cultural que está em processo de criação com conflitos e mudanças permanentes.
Outra fonte específica que alimenta a cultura do Estado é o Pantanal, região com rica fauna
e flora. Um santuário ecológico e também conflituoso com histórias de devastações e
desapropriações. O Pantanal é considerado a maior planície alagável do mundo e está
dentro da bacia do rio Paraguai.
20
Renato Ortiz é de Ribeirão Preto. Estudou na Escola Politécnica da USP. Sociólogo e antropólogo formado
pela Universidade de Paris VIII e doutor em Sociologia e Antropologia pela École des hautes études en
sciences sociales. Atualmente leciona no Departamento de Sociologia da Unicamp. Publicou vários artigos
sobre cultura popular e cultura brasileira. Autor do livro Cultura Brasileira & Identidade Nacional e outros.
33
Mas as artes e os artistas que se nutrem dessas fontes, no seu dia-a-dia, permitem reinventar
outros modos de viver e se expressar constantemente. Muitos são os artistas que contribuem
para a identidade do novo Estado. Mas toma-se como exemplo dessa cultura de identidade
com expressão internacional nas artes o pintor Humberto Espíndola
21
, com sua arte
denominada bovinocultura. Em um de seus depoimentos diz:
“Não foi difícil para um artista que resolveu pintar o
boi perceber o quanto à figura desse animal carecia
de dignidade ou status, sob o ponto de vista da
maioria dos consumidores da pintura. Principalmente
aqui, na Campo Grande da década de 1960, onde
pintura era apenas sinônimo de quadro, objeto de
decoração. O público não tinha aprendido ainda a se
preocupar com a qualidade e as sutilezas que a
mesma implica. Hoje, já existe consciência de que arte
é coisa séria e pode ser investimento, e a preocupação
com a qualidade começa a ser despertada no grande
público. Mas esse preconceito a que me referia sobre
a imagem do boi não implica só mercado não. Implica
também opções intelectuais responsáveis pela fatura
cultural. a coisa fica mais séria, porque pode virar
uma espécie de feedback retrogradante”.
(www.humbertoespindola.com.br
)
Percebe-se em suas palavras que ainda hoje o preconceito com a cultura e a arte local é
vigente. Outros artistas também com expressão internacional como a escultora Conceição
dos Bugres
22
e o poeta Manoel de Barros utilizam a natureza como alimento de suas
criações poéticas e tanto contribuem para a identidade cultural do Estado. Como o poeta
mesmo diz, gosta de reinventar e brincar com as palavras. Se auto-apresenta em um de seus
poemas:
21
Humberto Espíndola, artista plástico de Mato Grosso do Sul. Autor da Bovinocultura, entre 1968 e 1972 é
premiado nos mais importantes salões e participa de bienais internacionais. www.humbertoespindola.com.br.
22
Conceição Freitas da Silva (1914-1984), artista plástica, escultora de toscos bonecos de madeira e cera, que
correm até o hoje o mundo. Gaúcha, com seis anos foi morar em Ponta Porã, cidade fronteiriça, e em 1957
(com 27 anos) veio para Campo Grande. Mas seus bugres permanecem, sendo atualmente produzidos por um
de seus filhos, Ilton. Revista MS Cultura, nº 9, 1996, 39..
34
Auto-Retrato Falado
Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas
entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde
nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do
chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me
sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que
fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de
gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
23
É nessa procura das “inutilidades da arte” que a diversidade cultural desse Estado flutua, na
modernidade com o hibridismo que vai da música à dança, passando pela arte culinária,
poesia e costumes em geral. Esse processo de identificação é lento e busca, a cada
momento, ganhar ou perder por uma nova política de identidade.
23
Manoel de Barros nasceu em 1916 no Mato Grosso. Vive atualmente em Campo Grande (2007), mas teve
no Rio de janeiro a sua segunda casa. publicou mais de 22 obras em diversas línguas. É reconhecido como
um de nossos maiores e melhores poetas. Esse poema foi escrito em 1993 e está no "O Livro das Ignorãças",
editado pela Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993, 107.
www.releituras.com/manoeldebarros_bio.asp
35
“Uma vez que a identidade muda de acordo com a
forma como o sujeito é interpelado ou representado, a
identificação não é automática, mas pode ser ganhada
ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é
às vezes descrito como constituindo uma mudança de
uma política de identidade (de classe) para uma
política de diferença”. (Hall, 2005:21)
Dentro desse processo de ganhos ou perdas de apropriações de identidades é que essas
experiências servem também para entender melhor quem são os alunos/atuantes da Casa de
Ensaio.
Percebe-se que a identidade desse Estado ainda deseja se firmar e contribuir com o País,
libertando-se dos rótulos provincianos. Apesar de suas ricas experiências históricas e
culturais, também luta para conquistar espaços nacionais e internacionais, para que possa
manifestar sua postura ética, sua arte e assim emitir sua particular opinião estética.
Mato Grosso do Sul é também mais um Estado brasileiro vitima da pobreza e da violência
no País.
Portanto, procurei manter um experimento que me levasse a um caminho ativo que
reivindicasse a realidade cultural desse Estado, no plano político, no contexto social do
século XXI. Pesquisar e interferir na organização social desse trabalho, tendo como foco
uma ação coletiva. Estimular e gerar ações que transformem e possam discutir essa
realidade. Provocar, indignar, apontar e agir contra algumas ações devastadoras do homem.
Desenvolver uma experiência que possibilite a transformação e a diversidade cultural,
através do teatro e das artes, para um desenvolvimento humano com jovens. Enfim,
estimulá-los à reflexão.
36
Nova casa
Tudo começou a partir de um sonho, no qual pessoas estão acordadas e experimentam
utopias. Eram sonhos antigos, carregados de muitas inquietações e angústias. Um dia, num
verão mágico de céu azul, daqueles que só quem foi ao Centro-Oeste desse país pode
vislumbrar, a história começou.
Logo no início dos trabalhos com esses jovens, percebi que precisava tornar-me uma pessoa
confiável. O processo de conquista de confiança entre nós foi conquistado lentamente. No
início da Casa, em 1996, eles ainda me olhavam com ar de desconfiança: para eles quem eu
era? O que eu pretendia? Onde estavam nossas diferenças e semelhanças? Enfrentei, antes
de qualquer coisa, um árduo e longo caminho para ganhar a credibilidade desses
adolescentes.
37
Durante muito tempo, muitas vezes, fui tratada com indiferença e alguns saíam de sala
quando eu entrava, já que ficou estabelecido desde as primeiras oficinas que só ficariam em
sala os alunos que estivessem interessados em fazer teatro.
Então percebi que precisaria de muita calma e tempo. A indiferença era um comportamento
normal entre aqueles adolescentes, principalmente entre os que vinham de histórias de
abandono e marginalização social. A confiança não se conquista de uma hora para outra,
ela é construída sem prazo estabelecido.
Por exemplo, na primeira semana de oficina, a liberdade proposta era confundida com
bagunça e logo fui roubada em sala de aula. Percebi que era necessário aprender a entender
melhor quem eram os meus alunos. Sendo assim, iniciava então um novo e longo caminho
de pesquisa pedagógica teatral a ser trilhado, atendendo suas especificidades. Percebi ainda
que esses jovens não se tornaram agressivos gratuitamente, mas apenas por terem sido
criados soltos e sem limites.
A experiência que é desenvolvida na Casa de Ensaio até hoje é orgânica, tendo em conta
que cada um é cada um. Por exemplo, no início das aulas, pedia que tirassem seus tênis e
deixassem num canto da sala, mas com o tempo fui percebendo que o odor corpóreo
(provocados pela transpiração, a disodia ou, popularmente conhecidos como chulé e cecê)
era muito forte e aos poucos fui introduzindo também conceitos de educação e higiene.
Decidimos então que os tênis passam a ficar do lado de fora da sala (hoje existe uma sala-
vestiário).
Adolescente normalmente não gosta de tomar banho, mesmo tendo seus pais em cima,
imagina os desamparados socialmente. Alguns não tinham nem casa, banheiro, sabonete,
toalha de banho e muito menos pais presentes para educá-los. Mas a necessidade do banho
foi surgindo. Como alguns exercícios necessitavam de contatos físicos, muitos abraços, eles
começavam a sentir o mau-cheiro entre eles, que não existia o hábito de se tocar, se
abraçar. Por isso, o banho também fez parte do aprendizado. Abraçar os cheirosos, um
prazer! Todos queriam abraçar, serem abraçados e precisavam então estar cheirosos, para
38
juntos fazer teatro.
Nessas primeiras oficinas as aulas aconteciam diariamente, de segunda à sexta-feira em
meu horário de almoço. O horário não era o melhor, mas o único de que dispunha. Quando
chegava, eles estavam acabando de almoçar e, muitas vezes, uns até dormiam, enquanto
ríamos, jogávamos, cantávamos, brincávamos e ensaiávamos. Nos olhares dos meus alunos
sentia a total ausência de socialização, cada um por si, uma espontaneidade vegetativa e
primitiva, não conhecendo outras vidas e tendo seus horizontes marcados por violência.
Muitos até dormiam nas ruas e dormir na sala, entre risos e conversas, trazia também um
sabor especial de acalento. Eu os deixava dormir como queriam, por perto e com segurança,
sem a exposição ao perigo das ruas. Ali se sentiam acolhidos, protegidos, em casa.
39
O meu público-alvo é um diamante bruto e para trabalhar com ele não basta apenas gostar
de diamantes, mas precisei aprender a arte de reconhecer esse diamante que aparentemente
parece uma pedra comum e, aos olhos de muitos, inútil. Uma arte cada vez mais complexa
e utópica. Pois é por essa arte de dilapidar pedras, no melhor sentido da palavra, que me
interesso e a que venho me dedicando há mais de dez anos.
De acordo com minhas memórias, após seis meses de oficinas em sala de aula fomos
finalmente para o teatro, um de verdade. Optei como ponto de partida das nossas
encenações um mergulho no lúdico, no belo e na poesia infanto-juvenil. O objetivo era
encenar peças infantis com meus alunos, buscando linguagens lúdicas, alegres e de fácil
entendimento. Um fazer teatral simples, para que essa criança ou jovem pudesse entender
melhor a arte de representar.
40
Assim, para nosso espetáculo de estréia elegi um texto da dramaturga carioca Maria Clara
Machado, iniciando o nosso primeiro ciclo de encenações da Casa de Ensaio: o Ciclo
Maria Clara. A peça era Tem boi e burro na estrada, inspirada no auto de natal O boi e o
burro no caminho de Belém.
Desde esse primeiro espetáculo havia um grande número de atores: quase cem crianças
no palco. Uma característica foi se definindo naturalmente ano após ano, como parte da
ação pedagógica proposta em um dos programas da Casa de Ensaio, Palco de
Experiências”. Assim, desde o início o exercício do coletivo no palco começava a fazer
parte dessa ão que estava sendo desenvolvida. O espetáculo encenado com um grupo
grande de crianças e adolescentes no palco é um princípio que até hoje acontece e sempre
com o cuidado em manter um produto espetacular com qualidade cênica e estética. Para
tanto, fazem parte da equipe técnica profissionais de renome. participaram das
montagens na Casa de Ensaio Jorginho de Carvalho (Unirio), Fausto Viana (ECA/USP),
Ingrid Koudela (ECA/USP), Babaya (BH), Manoel Rasslan (UFMS), Júlio Feliz (UFMS),
Edineide Dias (UFMS), Marco Aurélio Monteiro (RJ) e tantos outros.
Esse processo de encenação teatral com cem alunos/atuantes no palco consiste em manter a
unidade entre todos os elementos de um espetáculo: figurino, luz, trilha sonora, coreografia,
texto e interpretação. Todos esses elementos precisam estar conversando entre si no mesmo
tom, com o mesmo peso cênico. Nesse sentido, ele passa a servir como mecanismo
fundamental para essa construção cênica e que também leva ao alcance do desenvolvimento
humano cultural com muitos no palco.
41
Lembro que tudo era festa e ao entrarmos no Teatro Glauce Rocha
24
pela primeira vez,
meus alunos-atores ganharam de um empresário parceiro um Kit Cecê(escova de dente,
pasta, sabonete e desodorante). Os camarins do Teatro Glauce Rocha são grandes, têm
muitos chuveiros, e eles fizeram a festa. Tomaram tantos banhos que chegou a inundar o
banheiro. Novo aprendizado e novas regras para a utilização do teatro foram surgindo.
Estreamos com o teatro lotado, nas duas sessões do mesmo dia. Conseguimos mídia
gratuita na TV Morena (regional da TV Globo), o que nos ajudou muito, pois apesar da
entrada franca, não éramos ainda conhecidos.
Nessa estréia, um dos alunos ficou tão nervoso para entrar em cena que na coxia começou a
brigar e sem querer quebrou o braço do outro ator-colega. Ali, nos bastidores, outra cena
acontecia paralelamente. Repetia-se a mesma cena que muitas vezes assisti em sala de aula:
a briga. Naquele momento, na coxia do teatro, para mim parecia o caos. Nada que depois
24
O Teatro Glauce Rocha es situado no Campus da UFMS, na cidade de Campo Grande, e possui 870
lugares.
42
não servisse como novo aprendizado.
Não podia esquecer que a vontade e o desejo dessas crianças muitas vezes haviam sido
esmagados pela violência do mundo adulto. Em suas casas não existia diálogo, pois desde o
início sempre foi difícil apresentar novas culturas e propor mudanças de hábitos e
comportamentos. Conversar e até discordar sem brigar, sem bater, foi um longo processo de
conquista. Porque em quase todas as oficinas de sala de aula, quando acontecia alguma
coisa ou alguém falava algo que os desagradava, eles brigavam. Bater e comer eram as
expressões de emoção que mais conheciam e praticavam. Mas, após a estréia no teatro, o
“medinho” de entrar em cena, os aplausos do final e a continuidade das oficinas nos anos
seguintes eles vivenciaram novas emoções.
O primeiro ciclo de encenações, o Maria Clara, durou três anos entre 1996 e 1998. Mais
três espetáculos foram apresentados em diversos teatros na cidade: “A Volta do Camaleão
Alface” (1997), “O Gato de Botas” (1998) e “A Verdadeira História da Gata Borralheira”
(1998)
25
.
25
Este espetáculo foi encenado por um elenco composto de jovens de diversas classes sociais e faixas etárias.
43
Em 1999, com as oficinas para os ensaios e as encenações no palco, por ocasião do
aniversário de cem anos da cidade de Campo Grande, resolvi romper novas barreiras. Era o
início da criação de uma dramaturgia própria, para homenagear meu aluno-ator e contar a
história da sua cidade e do seu mundo. Era também uma oportunidade de testar implicações
pedagógicas que exercitassem, ainda que timidamente, o coletivo no palco.
Nesse sentido, a identificação com o espectador que estava formando também poderia ser
ainda maior, encenar, pela primeira vez, a história da cidade deles. O objetivo era envolvê-
los com sua própria história. Encenamos, em curta temporada, a peça “Cem Anos de
Segredo e Prosa” e mais uma vez com o teatro lotado. O roteiro foi criado por uma
jornalista da terra
26
e adaptado para o teatro por mim e Artur de Barros, até então produtor
dos espetáculos.
26
Gessy Militão, que escreveu pela primeira vez um roteiro para ser adaptado para o teatro.
44
Logo após esse espetáculo iniciamos um outro processo de oficinas em sala de aula, ensaios
e também no palco. Nascia um outro ciclo de encenação: os Clássicos Europeus, que durou
entre os anos 2000 e 2003. Um novo caminho de pedagogia teatral começava a se definir,
pois além de apresentarmos aos alunos novas oficinas de artes na Casa de Ensaio (jogos
teatrais, corpo, dança, pintura, voz, música) também comecei a iniciar novas formas de
encenação tendo sempre como característica o grande elenco e começando a perceber a
força do coletivo em cena.
No ano de 2000 demos um grande passo na Casa de Ensaio. Nosso novo caminho seria
criar uma dramaturgia que servisse como base ao trabalho nas oficinas e ao que seria
encenado. Buscamos como fio condutor de nossas pesquisas, a cada novo espetáculo,
pensadores clássicos. Assim, convidei Artur de Barros
27
, que trabalhava na gestão e
produção da Casa de Ensaio, a colaborar com a dramaturgia para essas pesquisas artísticas.
27
Artur de Barros é ator e escritor de peças. Fez escola de teatro no Rio de Janeiro, encenou várias peças,
cursou Administração na UFF (Universidade Federal Fluminense) e mestrando em Artes Cênicas na
ECA/USP (2007).
45
Buscamos nos clássicos a nossa fonte de referência e base para nossos estudos. Pois como
diz Magaldi
28
, quando você apresenta um clássico recebe um atestado de seriedade artística.
A cada ano montamos novos espetáculos, procurando nas histórias de vida desses alunos,
nas notícias de jornais e de TV, semelhanças que fornecessem uma ligação com essa nova
dramaturgia e com as oficinas propostas pela Casa de Ensaio. Artur de Barros sugeriu
como primeiro trabalho a ser criado estudar William Shakespeare, tendo como fonte de
inspiração a tragédia Romeu e Julieta. A peça era Moreninha Um, Moreninha Dois
29
,
encenada em 2000.
Em 2001, foi a vez de Dom Quixote de Miguel de Cervantes ser referência de nosso estudo.
Nesse caso, Artur de Barros criou a peça com o título “João Além e sua Comitiva, um Dom
28
Sábato Magaldi, 2003,108.
29
A cidade de Campo Grande é chamada de Cidade Morena e possui na periferia uma região de bairros com
esse mesmo nome: Moreninha Um, Moreninha Dois e Moreninha Três. Nesses bairros, o índice de violência é
elevado
46
Quixote do Pantanal”.
30
Durante o processo de pré-produção da peça, Barros, quando esteve na fazenda “Baía dos
Patos”, no Pantanal, fazendo pesquisas de campo para sua dramaturgia, conheceu um peão
de nome João Além, que lhe contou histórias de vida. Algumas até foram encenadas. Daí
surgiu o nome da peça: “João Além e Sua Comitiva”. Quando o João Além em pessoa
compareceu à estréia do espetáculo e entrou pela primeira vez no teatro, emocionou-se
muito com a peça. Como agradecimento às suas contribuições, foi convidado a subir ao
palco do Teatro Glauce Rocha, ao final do espetáculo, para receber nossa homenagem.
30
Essa montagem ganhou um artigo da articulista e professora Maria da Glória Rosa, no jornal Correio do
Estado, de Mato Grosso do Sul (21/07/2001). “(...) Ao escolher Dom Quixote como tema da próxima
encenação, não estariam inconscientemente os dois loucos sadios’, identificando-se com a figura do
cavaleiro andante, que depois de ler livros de cavalaria, num atestado de como a leitura modifica idéias e
comportamentos, abdicou da própria vida para salvar os mais fracos. (...) neste ano apaixonaram-se pela
figura de Dom Quixote, e o localizaram no Pantanal sul-mato-grossense. (...) quem faz arte, sabe, vive e
sente o sentido dessa afirmação. Sonhar é viver”. Trecho do artigo.
47
Com esse espetáculo atingimos um recorde de público de oito mil pessoas nas dez sessões
apresentadas. Talvez um dos maiores sucessos de público da Casa de Ensaio.
Elegemos como próximo foco de estudos Molière, com O Avarento do Centro-Oeste, em
2003. Com esse título intencionalmente provocativo não conseguimos patrocinador. Apesar
de Artur de Barros ter criado uma fábula na qual a história acontecia no centro-oeste da
França no século XVII, apresentamos questões atuais políticas e sociais que estavam
acontecendo no Centro-Oeste brasileiro, com total liberdade de criação. Qualquer
semelhança era mera coincidência.
48
Para encerrar o ciclo de grandes mestres, chegamos a Bertolt Brecht a partir de seus
poemas. Encenei Coragem, porque um é nenhum. E, como disse certa vez a diretora e atriz
Myrian Muniz durante o processo de ensaios de uma peça de Brecht (na qual atuei como
atriz): quando você faz Brecht no palco, nunca mais permanece a mesma pessoa.
31
Brecht, um divisor de águas tanto para minha ação pedagógica quanto para minhas novas
encenações. Ao todo, o ciclo de estudos da Casa de Ensaio sobre os grandes mestres durou
quatro anos com a encenação de quatro espetáculos.
31
Myrian Muniz , atriz e diretora. Dirigiu a peça Cabaret de Brecht!, encenada em Campo Grande, em 2000,
e na qual eu e Artur participamos como atores.
49
Uma vez, um dos alunos foi entrevistado no teatro por um jornalista de TV, após o
espetáculo Coragem e disse: com o teatro eu aprendi que eu não sabia que eu sabia
pensar. Era isso que eu pretendia, que eles fossem se reconhecendo como pessoas. A cada
encerramento de processo de aprendizagem, peço que escrevam depoimentos para que
sirvam de registro sobre suas descobertas e experiências com o palco. Esses depoimentos
me ajudam a entender melhor o universo do aluno porque ele pode escrever livremente
sobre todos os seus sentimentos, desejos e conhecimentos alcançados durante o ano. Eles
também servem como indicadores de mudanças individuais e coletivas. Percebe-se que
fazer teatro, subir no palco, traz uma alegria que ficará registrada em sua memória
. Segue
abaixo um depoimento espontâneo de um ex-aluno/atuante que esteve na Casa por quatro
anos, publicado no Orkut (rede social de relacionamento na internet).
50
“ola te add ok, viu to com saudades, de vc do
Artur,d+.vc naum imagina o quanto. e asssim naum
vou negar. eu to sintindo muita fauta das aulas.do
momento de concentração.da hora do desestres,das
senas emprovisadas,nusssa,qaunta coisa.eu possso
dizer que ai so tem coisa boa.vou te falar uma coisa. si
naum fosse o teatro eu naum seria o que sou
hoje,,"uma pessoa especial.sempre enxergando
longe,procurando sempre ser naum o mehor mas
sim o único se é que vc me entend".emfim dentre
muitas coisas;sinto muita sua fauta,,do Artur...e claro
que sim,na Casa de Ensaio como 1 todo,portanto.so
tenho que agrdesse laizxx.^^hoje tiro quase 10 no
boletim de ingles because for you.i liked and like and
way gostarei for you.naum sei se esta certo mas!!
,hehe,entaum lais,depois dessa declarassão .espero
que vc nunca esuqessa de mim,pois o que vc queria
passar pra mim,pod ter certeza"vc consigou" ´emfim
dentre elogios .historias .momentos aprendisagen .eu
so tenho que agradesser pra vc bjo Fabio 23/07/2006
51
Entre 2004 e 2006 iniciamos o Ciclo dos Clássicos Brasileiros, em que estudamos Artur
Azevedo com a peça: “Vamos Mambembar?
52
No ano seguinte, 2005, buscamos em Mário de Andrade subsídios teóricos para montar o
espetáculo “Noite de Lua Cheia”, Uma Lenda Indígena.
53
E em 2006, fomos em busca das poesias e selecionamos alguns poetas contemporâneos
brasileiros para estudar, como Carlos Drummond, João Cabral, Ferreira Gullar, Cecília
Meirelles, Cora Coralina, Manoel de Barros, Manoel Bandeira, Vinícius de Morais, Ana
Cristina Cesar, Chacal, Adélia Prado e Mário Quintana.
54
A manhã do outro dia
Percebemos que quanto mais velho o aluno fosse, quando de sua entrada na Casa, menos
tempo ele ficaria no programa: na sua maioria, depois dos dezesseis anos, precisavam
trabalhar para ajudar a família. Estabelecemos os seguintes critérios como processo de
seleção para entrar na Casa de Ensaio: o aluno precisa ter entre dez e doze anos; estudar
em escola pública; damos preferência aos jovens cuja renda familiar é de até três salários
mínimos, ou que sejam moradores de abrigo ou filhos de catadores de lixo.
Mas por que adotamos esses critérios? Quando o meu público-alvo eram todos meninos de
rua, pude perceber ao longo do tempo que um menino que abandona a escola e sai para a
rua cedo, aos quinze anos atinge a liberdade total. Expostos ao perigo, tudo é permitido
para se manterem vivos e o caminho do tráfico é o primeiro e “mais fácil” a ser atingido
como medida de sobrevivência. Dificilmente esses jovens aceitam novas normas e regras.
Eu me lembro muitas vezes de ter ido à rua buscar pessoalmente um ou outro que desistia
55
das oficinas por brigas com o padre, que era o coordenador da instituição na época. A cada
dia minha insatisfação crescia e isso precisava mudar.
O público-alvo da Casa de Ensaio mudou, então, desde 2000. Quando se que o aluno
adquiriu seus princípios básicos de cidadania na Casa, novas portas para o mundo se
abrem. A cada avaliação, sentados em roda no chão, no final das aulas, percebe-se que o
processo de transformação é rico. Não existe errado e nem certo. Todos podem falar. O
importante, para mim, é apenas entender os gestos e as atitudes manifestados nos exercícios
de improvisações apresentados em sala de aula e no palco. O processo de descoberta e
transformação é individual e o prazo, relativo.
Estabelecemos, portanto, um outro caminho que permite chegar a um resultado mais efetivo
de transformação tanto de forma qualitativa quanto quantitativa. Optamos por trabalhar
com a criança de dez/doze anos que esteja estudando em escola pública, e desse modo
poder diminuir o estado de pobreza e a desigualdade social e - por que não? - até evitar que
essas crianças fossem para as ruas tão cedo.
56
Quanto mais tempo ele passar na Casa, maiores são suas transformações individuais.
Algumas crianças, quando pequenas, ainda têm medo de sair de seus lares sozinhas,
principalmente aquelas que não têm irmãos mais velhos. Sair do seu bairro, pegar um
ônibus e ir para o Centro da cidade é por si só uma grande aventura. Os menores chegam à
Casa nos primeiros meses trazidos por um adulto, ou irmão mais velho, e depois de um
tempo, ganham autonomia e vêm sozinhos ou com seus amigos do bairro. Quando eles
chegam ao teatro, nessa escola de verdade, só que cheia de brincadeiras, a cultura de massa,
que está agregada em cada um, e a vontade de retornar para a rua diminui porque os alunos
conhecem outros olhares, outras culturas e um novo mundo se abre
.
Na Casa, o aluno tem a liberdade de cursar quantos anos quiser e quem define o período de
estada é ele mesmo. Alguns saem por diversos motivos, como mudança de cidade, horário
da escola, falta de vale-transporte, castigo dos pais, restrição de ordem religiosa, para
trabalharem ou até por não gostarem mesmo da metodologia desenvolvida na Casa.
57
O próximo passo foi criar um caráter jurídico e fazer da Casa de Ensaio um Centro de Arte,
Cultura, Educação Social e Meio Ambiente, uma Oscip (organização da sociedade civil de
interesse público), sem fins lucrativos e que passa a ser denominada genericamente de
terceiro setor.
Passa a ser prioritário obter uma sustentabilidade financeira digna dessas ações, pois a Casa
de Ensaio possui uma gestão executiva com profissionais assalariados, estagiários e
voluntários, voltados ao atendimento dos alunos. A Casa tem três núcleos: comunicação,
produção e da biblioteca. Para atendê-los precisamos de investimentos e parcerias com
empresas, órgãos públicos e instituições comprometidas com ações sociais e que estejam
dispostas a trabalhar lado a lado com a sociedade civil organizada.
Sendo uma Oscip, as empresas convidadas como parceiras da Casa de Ensaio podem obter
alguns benefícios, como ter abatimento no imposto de renda (pessoa jurídica) através de
doações, além dos benefícios que os recursos das leis de incentivo à cultura – sejam
federais, estaduais ou municipais - propiciam.
Certa vez, a Casa foi definida por Bibi (minha neta, à época com nove anos): A Casa de
Ensaio é uma escola de verdade, só que de brincadeira”. Penso ser a mais adequada
definição. A criança precisa brincar e rir muito.
58
Quando fundamos a Casa de Ensaio, pensamos em uma “escola alternativa”, onde
realmente os alunos pudessem brincar, ter prazer e aprender. Ninguém deveria ser testado,
etiquetado, excluído, comparado ou julgado. O aprendizado seria no tempo pessoal de cada
aluno e as diversidades seriam bem-vindas, provocando reflexões e trazendo novas idéias.
Ela desenvolve hoje vários programas, alguns em parceria com projetos de outras ONGs
(organização não-governamental), como Instituto Sonia (Itália), Instituto C&A (Brasil),
Fundação AVINA (Suíça), sempre com o objetivo de “arte-transformação!
Em cada programa implantado, a atuação da Casa se com ajuda de parceiros
financeiros, quase todos do segundo e terceiro setor. Para uma maior transparência de
nossas ões, criamos e disponibilizamos um site na internet (www.casadeensaio.org.br
),
que serve também como meio de divulgação de notícias e relatos de nossos passos.
A Casa de Ensaio vem se tornando um centro dedicado a pesquisas e experimentos
artísticos. A Casa também cria oportunidades através do teatro para que esses jovens
59
possam desenvolver plenamente seu potencial criativo enquanto cidadãos. Nesses dez anos,
já temos ex-alunos que se tornaram educadores ou estagiários na própria Casa de Ensaio ou
no mercado de trabalho local. Apesar de não formar atores, todos os artistas, educadores,
estagiários selecionados para trabalhar na Casa o acadêmicos com experiência de palco e
já vivenciaram o processo de mais de cinco anos no estabelecimento.
Foi somente no final de 2005 que ocorreu a grande virada da Casa ao assumirmos nosso
espaço físico. E em 2006, transferimos os programas para os dias de semana, deixando
livres os fins de semana para encontros artísticos, workshops, ensaios, festas, lançamentos,
exposições, fóruns, cineclubes etc. O final de semana passou a propiciar também lazer e
entretenimento cultural e artístico.
A Casa possui hoje dois programas-âncora: Nessa Rua tem Talento (oficinas de artes) e
“Palco de Experiências” (processo de pesquisa, ensaios e espetáculo). Eles se
complementam e já contam hoje cinco anos de estudos consecutivos, divididos em quatro
60
níveis de dificuldades crescentes. Estão assim constituídos:
Primeiro - nível básico, com dois anos de duração (denominados de
primeiro e segundo ato);
Segundo - nível intermediário, com dois anos de duração (terceiro e
quarto ato);
Terceiro - nível avançado, com um ano ou mais de duração (quinto
ato), e
Trupe - nível máximo, com duração indefinida.
Cada ato possui oficinas distintas com exercícios de dificuldades crescentes. As sextas-
feiras são livres para assistir filmes, para reuniões pedagógicas, cursos de capacitação ou
reciclagem para os profissionais e utilização da biblioteca. Aos sábados e domingos
acontecem os ensaios com a trupe, que é formada de mais ou menos trinta alunos/atuantes e
alguns estagiários educadores (ex-alunos) com idade de quatorze a vinte dois anos, que
tenham mais de quatro anos de experiência de palco na Casa e que possua voz projetada.
Ela serve para apresentar pequenas performances em abertura de eventos e ou realiza
viagens com peças.
61
Terminados os três níveis, os alunos que não estão na trupe podem buscar um curso
profissionalizante de seu interesse ou optar pelo vestibular para tentar uma graduação.
passaram pela Casa de Ensaio mais de 800 (oitocentos) alunos e hoje nela estudam cerca
de cem alunos, todos matriculados em escola pública. A Casa possui, como voluntários,
uma diretoria composta por um presidente, um vice-presidente e três conselhos: consultivo,
administrativo e fiscal; com três membros em cada, mais um suplente com uma gestão de
três anos, com direito à reeleição.
Na decoração do espaço físico da Casa, fomos guiados pelas cores, pintando alguns
detalhes de tonalidades diferentes e fortes. Pintar a Casa era, sobretudo, uma satisfação das
minhas necessidades em relação às cores. Estas, para mim, definem o belo, o estado de
espírito e também me fazem recordar a infância
32
.
32
Quando era pequena, em nosso quarto havia uma parede toda pintada com um desenho infantil (um
velhinho carregando bolas coloridas e conversando com duas crianças no parque), como se fosse um cenário
de teatro. Adorava ficar olhando, e a fruição dessa obra de arte instigou mais ainda minha percepção e a
capacidade de inventar histórias e criar cenas.
62
A Casa de Ensaio possui, além dos espaços administrativos, recepção, sala-galeria, sala
para desenhos e pinturas, sala de música (com piano e diversos outros instrumentos
musicais
33
), uma pequena biblioteca
34
/videoteca com quatro computadores e uma sala
guarda-roupa. E também um espaço para nossas oficinas de teatro e dança
35
,bem como
nossas pequenas apresentações.
33
A maioria dos instrumentos musicais é feita com material de sucata pelos alunos.Em oficina com Prof Julio
Feliz,uma parceria com Projeto Gramany da ONG Girasolidario.
34
A biblioteca nasceu em 2006 com patrocínio do Instituto C&A e já possui um acervo com mais de dois mil
exemplares. Ela obteve consultoria de três acadêmicos da USP, 2006 (Dani, Beth e Rômulo).
35
Esse espaço está nos fundos da Casa. Começa a nascer uma sala de teatro e dança com arquibancadas, com
patrocínio da Plaenge, Fundação Barbosa Rodrigues , Café Mostarda e muitos amigos.
63
64
Para melhor conhecer o processo de trabalho de encenação desenvolvido dentro do
programa “Palco de Experiências”, durante o período de dez anos consecutivos (1996/
2006), optou-se em narrar algumas características dos processos dos onze espetáculos
encenados.
Para tanto, tomou-se como levantamento dessas informações dados encontrados na análise
dos programas das peças apresentadas, nos vídeos das apresentações, nos depoimentos de
alunos/atuantes e/ou educadores estagiários, nas fotografias dos processos de ensaios e dos
espetáculos, nas releituras das matérias publicadas nos jornais e revistas, nas entrevistas em
televisão, jornal e revista, nas pesquisas científicas feitas na Casa, na leitura do livro
“Cadernos de ensaios, um”, no site da Casa e nas minhas memórias.
E com o propósito também de gerar novos conhecimentos práticos e teóricos relativos à
inserção do saber-fazer teatral como mecanismos de auxílio na formação de muitos jovens
no palco. Portanto, os exemplos de experiências vividas nesses espetáculos, durante os
ensaios e as apresentações teatrais no palco, serão os próximos passos dessa narrativa. Uma
arte engajada no palco.
65
“Isso é língua de raiz”, continuou. “É língua de faz-de-conta. É língua de brincar!”
Manoel de Barros
Segundo capítulo
Palco de Experiências, experiências de palco
Por uma arte engajada
A presente pesquisa narra a ação cultural que se desenvolve através de experiências de
teatro em um dos programas-âncora da Casa de Ensaio, “Palco de Experiência”. Apresenta
na dificuldade do dia-a-dia a transformação de uma investigação teatral com jovens
crianças e adolescentes. E também busca uma abordagem que privilegia o jogo, a criação e
a experimentação sócio-cultural, no palco e na vida deles. É no decorrer dessa ação que
sobem ao palco uma média de cem alunos/atuantes a cada novo espetáculo, tornando-se os
protagonistas desta história.
O desenvolvimento do processo dramatúrgico nesse programa é identificar e apresentar no
palco também os fatores sociais que permeiam e instigam, tomando como textos-base
clássicos do teatro ou da literatura. Pois eles propiciam a liberdade de criar e encenar a cada
ano um novo espetáculo. A cada novo mestre definido, os dados que caracterizam sua obra
também auxiliam para falar das raízes culturais e dos novos pensamentos.
Como foi visto, nesses dez anos, o “Palco de Experiências” possui um repertório de onze
peças, sendo que todas serviram como base de construção a cada novo espetáculo montado
e é justamente o processo delas que será apresentado no presente capítulo.
Desde então, vem-se trabalhando a cada ano com uma proposta experimental de reconstruir
as circunstâncias históricas, bem como sobre as injustiças e as opressões presentes do
mundo atual, sempre bebendo nos clássicos e dando ênfase ao regional. O objetivo deste
66
processo é a arte teatral como exercício de identidade, cidadania e desenvolvimento
cultural. “A cultura como direito dos cidadãos e como trabalho de criação coletiva”.
Essa criação artística persiste no exercício grupal, em que cada participante deixa de ser um
ser isolado. Busca-se fazer um teatro social, mas que traga também pensamentos
românticos, lúdicos e livres, mesmo contestadores e contraditórios para muitos. Pois a cada
nova peça a tentativa é de resgatar através do romantismo, do humor, da imaginação, do
lúdico a alegria no corpo e na alma de quem faz e de quem assiste.
A criação também brinca com a forma e a estética, reinventando a linguagem teatral
clássica em achados lúdicos e poéticos. Por exemplo, denuncia em cena a ganância dos
“poderosos”, apontando a interlocução dos desfavorecidos socialmente e as suas
interferências estrangeiras numa nação que busca encontrar sua própria brasilidade.
É através da magia dessa atividade artística que a criança de bairros populares e o
aluno/atuante com pouco ou nenhum acesso artístico consegue vivenciar no palco sua
67
emoção na contramão de suas vidas. Percebe-se a sua disponibilidade para criar alegria,
vontade de viver e partilhar felicidade coletiva, mesmo em condições miseráveis, muitas
vezes precárias, como nos casos de muitos.
Ai está a magia do teatro, pois não se trata de romantizar a condição de miséria, mas há que
fazer justiça a essa habilidade espantosa que a arte tem em converter o negativo em
positivo. Mesmo que essa magia se torne um instante no palco, o coletivo, o mágico e a
emoção transcendem o medo, a injustiça, o declínio social e político - sentimentos comuns
neste século.
Contudo, esse programa “Palco de experiências” tenta também fugir do estigma de “teatro
amador escolar”, conhecido por aquele educador que muitas vezes não conhece ou não
possui interesse na qualidade artística do espetáculo. São os casos do “teatro de escola”,
que cumprem apenas o papel de veículo de apresentação nas festividades religiosas, cívicas
exigidos pela direção da escola. No entanto,
“muitos de nós já assistimos a espetáculos de crianças
ou adultos amadores onde, além de um vislumbre
esporádico de graça natural ou no momento fugaz de
espontaneidade, pouco ou mesmo nada havia que
redimisse a apresentação. Os atores podiam estar até
se “expressando a si mesmos”, mas eles o faziam às
custas da platéia e da realidade teatral. Esta sessão
caracteriza alguns das assim chamadas qualidades
‘amadorísticas’ de atores jovens e inexperientes.”
(Spolin, 2007,269)
Para tanto, essa linguagem teatral chamada de “qualidades amadorísticas” precisa ser
entendida como mais uma prática cultural cujo conteúdo pedagógico é fundamentado não
apenas em suas qualidades artísticas enquanto aluno/atuante, mas na sua transformação
social e na busca do valor de cidadania. E não seguir apenas por uma arte que serve para
murais decorativos, muitas vezes “inútil e fácil”, como se vê por ai.
68
Todos os espetáculos da Casa possuem grande elenco e tem o coro um papel de
significância. O coro tinha significância na história do teatro, mas foi se reduzindo e se
perdendo. Muitos dos espetáculos teatrais de hoje também foram perdendo seu significado
artístico e educativo. Assim, das grandes festas dionisíacas envolvidas ao Teatro Grego, o
teatro de hoje, em sua maioria, está envolto de si mesmo e das suas coisas, somente em seu
próprio umbigo.
Teatro social, um processo brincante
As ações que permeiam o cotidiano desse jovem aluno/atuante da Casa de Ensaio passam a
ser apresentadas através de textos poéticos e do belo artístico. Um fazer teatral que pode
envolver e provocar tanto a quem o faz quanto a quem o assiste.
69
Percebe-se que esses jovens quando são aplaudidos, a cada término de uma sessão
36
,
naquele momento estão sendo autorizados a descobrir em si tudo o que os diferencia como
indivíduos potentes e exclusivos. Ali, o teatro os transforma e passa a ser o seu único
mestre.
36
Normalmente uma temporada possui dez sessões consecutivas, com duas apresentações por dia, retomando
as matinês. Durante as matinês, as escolas públicas lotam o espaço com suas crianças.
70
Naquele momento, em cada aluno/atuante um novo processo de construção interna se inicia
em favor da necessidade do seu constante aperfeiçoamento para a transformação como
cidadão em sua comunidade.
Como foi dito, nosso elenco é formado por todos os cem alunos/atuantes, mas às vezes
também convidamos alguns atores profissionais ou adultos amadores para se somar ao
elenco. Quanto à equipe técnica de montagem, sempre são convidados profissionais de
renome.
Envolver atores profissionais com alunos amadores é tema de muita polêmica, e percebe-se
em vivências, e lendo Wekwerth (1997), discípulo de Brecht, que envolver ator amador
com ator profissional é uma questão difícil e delicada. Wekwerth diz que o ator profissional
precisa zerar seu conhecimento a cada novo trabalho e recomeçar do nada muitas vezes.
71
Mas não são todos os profissionais que obtém essa humildade e competência em zerar
conhecimentos.
Certa vez, fez-se uma leitura pública no ginásio de uma escola e no elenco havia alguns
atores profissionais. Um deles lia “brancamente”, sem emoção, enquanto os alunos “davam
seu sangue”. Nos ensaios, acontecia o mesmo, ou seja, ensaiavam sem emoção. Ali se
percebeu a sutileza da questão, o quanto o ator precisa exercitar sua humildade no palco
como forma de crescimento e conhecimento. Aprender fazendo a cada novo personagem
proposto.
Não é fácil atingir o ponto zero para compor seu novo personagem. Estar em cena, como
dizem alguns diretores, é resgatar a sua naturalidade e espontaneidade. Um trabalho de
limpeza do seu próprio eu, formado de energia e sensibilidade. É saber atingi-lo a cada
novo personagem e assim contribuir com novos aprendizados.
72
Teatro, casa dos sonhos
É necessário relembrar que a Casa de Ensaio a cada ano elege um pensador, um sentimento
e um tema atual para sua dramaturgia. Os temas geralmente são escolhidos pela
necessidade em se problematizar uma situação atual política ou social, que vem
incomodando e que indiretamente queremos contestá-la, provocá-la, em suma, propor
mudanças.
Assim, busca-se uma maior identificação e compreensão não somente entre os alunos, mas
também com a platéia. Ao se decidir pelo tema, Artur de Barros busca encontrar poetas,
artistas ou dramaturgos que tenham construído ações parecidas com as experiências
desses jovens em seus trabalhos. Por que voltar aos clássicos?
Estudar os clássicos não só amplia os horizontes culturais como também ajuda a
contextualizar as ações reais vivenciadas por alguns desses alunos/atuantes no palco. Bem
como oportunizam reflexões sob os problemas atuais.
Foram montadas nesse período onze peças que homenageiam alguns dos clássicos do teatro
e da nossa literatura. São eles, vale relembrar: Maria Clara Machado, William Shakespeare,
Molière, Miguel de Cervantes, Bertolt Brecht, Artur Azevedo, Mário de Andrade, Manoel
de Barros, Mário Quintana, Ferreira Gullar, Carlos Drummond, Cora Coralina, Cecília
Meirelles, Chacal, João Cabral, entre outros.
Durante as três primeiras encenações chamadas de “Ciclo Maria Clara” já começava a fluir
na dramaturgia da Casa os temas regionais que passaram a ser o mote dos últimos
espetáculos.
73
Em 1996, no primeiro espetáculo apresentado, a inclusão de influências culturais regionais
na encenação já iniciava seus primeiros passos. Um exemplo foi quando se montou o
primeiro espetáculo do programa “Palco de Experiências”, inspirado na obra de Maria
Clara Machado, “Tem boi e burro na estrada”. Algumas licenças poéticas foram permitidas,
integrando as influências culturais do Natal com a do carnaval. Entrando na trilha sonora
desde Ave-Maria a música de Carlinhos Brown.
E desde o início o elenco era formado por muitos, portanto, criou-se em uma determinada
cena um grupo de uns quarenta alunos/atuantes, cujo personagem era “passageiro da
estrada”. Até hoje quando um ex-aluno desse elenco nos encontra na rua diz: lembra de
mim, eu era o passageiro da estrada!”
Cabe aqui um comentário à parte. Nessa época, muitos dos jovens com quais se trabalhava
eram meninos de rua. O trabalho era desenvolvido em espaço da Missão Salesiana. A
instituição católica tinha um teatro que foi solicitado para ser o palco do primeiro
74
experimento. Entretanto, o coordenador da entidade na ocasião não nos cedeu, e ainda
disse: “(...) não adianta, pobre não vai ao teatro, pobre só gosta de futebol!”
Em função desse feito, no dia seguinte conseguiu-se, gratuitamente, o teatro da UFMS, o
Glauce Rocha. Passando a ser o teatro da Casa, a partir de então vem sendo o palco de
todos os espetáculos encenados.
O teatro para eles é um espaço mágico e seus camarins são confortáveis, com ar
condicionado, telefone, chuveiros e geladeira. Durante a temporada eles chegam bem cedo
para usufruir ao máximo dessa magia e conforto. Uma vez quase foi suspensa a temporada
porque três alunos/atuantes se esconderam e resolveram dormir nos camarins e quando o
vigia foi abrir o teatro levou o maior susto.
75
Portanto, com as duas sessões lotadas, pode-se mostrar que todos, “pobre ou rico”,
apreciam e precisam assistir a uma boa arte. Foram convidados para formar a primeira
equipe da Casa “amigos artistas” com trabalho voluntário para atuação de suas realizações
cênicas. Entre ele, as artistas plásticas Ana Carla Zahran (cenário), Lúcia Barbosa
(adereços), Gisela Doria (coreógrafa que vem desde então assinando todas as coreografias),
Valéria Caldas (produção executiva), Martha Barbosa (atuação e trilha), Vera Neto, Maria
Dourado e Artur de Barros (na ocasião fazia a produção financeira e mais tarde passou
para a dramaturgia tambem).
Anos seguintes
Em 2007, no espetáculo “A Volta do Camaleão Alface” foi inserida uma dança indígena e
muitos personagens “índios” entraram em cena. Em seguida, com O Gato de Botas”,
questionou-se a nobreza, o proletariado e muitos personagens entram na história como
76
garçons e coelhinhas. Todos esses espetáculos homenagearam Maria Clara Machado. As
encenações eram simples e com poucas elucubrações artísticas.
Em 1999, com a mudança para outro espaço físico, deixando o da entidade de cunho
religioso, iniciou-se um novo processo de encenação, ainda tímido, mas de rupturas
pedagógicas teatrais mais acentuadas e abertas a todas as etnias e crenças.
Como naquele ano Campo Grande estava fazendo cem anos, resolveu-se montar um
espetáculo musical contando a história da cidade e assim nascia “Cem anos de Segredo e
Prosa”, roteirizada pela primeira vez pela jornalista Maria Gessy Militão. Mas, como ela
nunca havia escrito uma peça teatral contou com a ajuda de Artur de Barros para adaptação
cênica do texto. Esse espetáculo teve o patrocínio da Copagaz (empresa do setor de gás de
cozinha) através da lei estadual de incentivo à cultura.
37
37
A lei está suspensa desde então. (2007).
77
O título foi criado pelo fato de Campo Grande ter dois rios que passavam por dentro dela,
chamados Segredo e Prosa. Desse modo, através de segredos e muita prosa a história era
contada, através de “causos populares” e de sua música. A trilha foi composta por músicas
de sucesso popular criada por alguns compositores da terra com expressão nacional, como
Almir Sater, músicos integrantes da família Espíndola, Geraldo Roca, Paulinho Simões,
Guilherme Rondon, entre outros. As coreografias se misturavam entre alunos convidados
da escola de Ballet Gisela Doria e alunos/atuantes.
Convidou-se também um mestre da luz, amigo da Casa, Jorginho de Carvalho (professor da
Unirio) que, desde então, vem iluminando com simplicidade e emoção as encenações da
Casa. Seu papel é dar o acabamento final ao espetáculo.
No primeiro ensaio, quando vamos ao teatro e apresentamos a peça para criar seu desenho
de luz, em função da sua bagagem teatral (mais de quarenta anos de teatro), Jorginho
também pode contribuir com sugestões ao espetáculo. E suas críticas são sempre
78
fundamentadas, pois ao assisti-lo pela primeira vez consegue obter um distanciamento antes
de se envolver propriamente com o espetáculo.
Como afirma Craig, a mise-em-scène não está limitada a meios de expressão e técnicas;
também significa o crescimento de uma resposta emocional e intelectual da platéia
38
. Todos
crescem, tudo flui. Uns apreciam, outros não. E diz Craig
39
:
“um diretor pode ser um dramaturgo, um compositor,
um arquiteto, mas ele tem que ter sido ator, ainda ser
designer e um camarada com visão teatral. Mas
quando tiver uma dificuldade, não hesite, escute a
opinião de um homem de teatro, nem que seja um
38
Viana, Fausto, 2004, 46.
39
Viana, fausto, 2004, 106.
79
alfaiate ao invés de dar atenção ao que diga um
amador.
40
Portanto, trazer alguém do teatro para analisar o trabalho cênico antes da estréia contribui
muito e Jorginho e outros têm contribuído com esse papel. Nesse espetáculo, também
fizeram parte da equipe técnica profissionais como Manoel Rasslan na direção musical e
seu assistente Órion Cruz, entre tantos outros que vieram para somar.
Esse espetáculo rendeu muitos comentários pela cidade, lotando todos os dias. Rendeu até
artigo no jornal local da professora Glorinha Sá Rosa (com notório saber em cultura).
Abaixo trecho do artigo:
“...situar a narrativa no esquema leve de uma revista
musical, correspondia a organizar um quebra-cabeças
justapondo figuras humanas, objetos, cores, luzes num
grande caleidoscópio, repleto de som e movimento.
Cem anos de Segredo e Prosa foi uma das mais lindas
mensagens enviadas a Campo Grande nesse vôo de
reconhecimento de sua riqueza cultural que reforçou
nossa felicidade de viver aqui
41
.”
Portanto, foi a partir desse espetáculo que se iniciou um novo conceito para se desenvolver
a dramaturgia da Casa, trazendo o regional para nossas vivências artísticas. Um novo
caminho, agora sem volta, de um processo de encenação e a cada ano novos vôos artísticos
rompeu definitivamente com os paradigmas de que teatro escolar ou amador é “pobre”, no
sentido de não ter qualidade artística, recursos estéticos e financeiros.
40
idem, p. 111.
41
O artigo “Um vôo pelos Cem anos de Segredo e Prosa” foi publicado no jornal diário Correio do Estado em
3/09/1999.
80
Descobriu-se também que o público gostou da imitação do real e que existem outros
recursos não somente financeiros para se produzir um espetáculo com qualidade. O
escambo, por exemplo, uma simples troca de mercadoria por mercadoria sem equivalência
de valor, era utilizado como moeda antiga, mas até hoje funciona para a montagem de
espetáculos, como nos casos em que uma agência de turismo fornece as passagens áreas,
uma loja os tecidos para o figurino, uma agência de propaganda desenvolve a programação
visual, uma gráfica faz o material de publicidade, uma locadora disponibiliza veículos para
a produção, um hotel as diárias para os profissionais de fora, um restaurante a alimentação,
a Universidade com a produção/gravação do vídeo da peça e assim por diante. A prática
também é conhecida como permuta. Nesse caso, somente os cachês não prescindem de
recursos financeiros, mas nem sempre eles surgem ou são como deveriam ser. Alguns
desses apoios também são possíveis porque todas as apresentações são gratuitas e a Casa é
uma organização sem fins lucrativos.
81
Entretanto, a cada novo espetáculo a equipe técnica vai se modificando, se especializando e
aos poucos se integrando artistas profissionais em suas áreas de formação e atuação, seja
cenógrafo, iluminador, coreógrafo, figurinista, produtor, maquiador etc.
Os espetáculos da Casa a partir de então não deixaram nada a desejar para os
“profissionais”. A seguir, alguns comentários da platéia:
“Nossa, nem parece que é feito aqui... Melhor que muito teatro de fora... Nem parece que é
teatro com pobres... A produção é rica mais o elenco.”
Entre todos os comentários um marcou bastante o trabalho da Casa, quando um espectador
comentou ao outro ao sair do teatro:
-
Gostou?
- Não (disse-lhe o outro). Isso não é teatro, não é TV, não é cinema,
não é show, não é nada.
Percebeu-se então que a Casa de Ensaio propunha algo novo e que muitos não conheciam,
fazia-se então outro tipo de teatro na cidade.
82
Regional, como processo teatral
Com o “processo teatral” a vapor a partir de 2000, com Artur de Barros, iniciavam-se novas
pesquisas e novos estudos por uma dramaturgia na qual as questões regionais estivessem
presentes. E como primeira encenação de sua dramaturgia o espetáculo “Moreninha Um,
Moreninha Dois”. Como fonte de pesquisa e de referência Shakespeare, com o clássico
Romeu e Julieta. O sentimento a ser trabalhado com eles era de amor e de preconceito.
Parte do processo foi retratado e publicado no número 1 de Cadernos de Ensaios
42
, cujo
objetivo é o de registrar os processos teatrais da Casa e contribuir para o teatro-educação
no País.
Arianne Mnouchkine
43
nas peças de Shakespeare um caminho para descobrir como
relatar histórias políticas, e assim foi feito. Inseriu -se um tema atual político e social, o uso
do poder e a questão da descriminação racial.
42
Cadernos de Ensaios, numero 1, 2006. É uma publicação anual da Casa de Ensaio, com o objetivo de
registrar o processo de trabalho de teatro, bem como também orientar e estimular outros artistas educadores,
estudantes e profissionais de áreas afins, locais e nacionais, a desenvolverem seus trabalhos artísticos
multiplicando experiências na área de arte e cultura. exemplares nas bibliotecas da UFMS, ECA/USP e na
Casa de Ensaio.
43
in Fausto Viana, 2004, 485.
83
A história se passava na região mais populosa de Campo Grande, as Moreninhas. O Romeu
era negro e “pobre” e a Julieta, “emergente”, filha de dono de uma rede de supermercado da
periferia, em ascensão e com poder.
Em Campo Grande existem poucos negros e o preconceito é velado. Falou-se dos
emergentes oriundos da política, do comércio e do campo, e sobre como enriqueciam, de
modo ilícito. Para a pesquisa foram convidados especialistas em Shakespeare, especialistas
em questões raciais e até políticos. Vários filmes foram exibidos como preparação do
elenco, tais como a versão para o cinema Shakespeare Apaixonado. Foram consultados
diversos livros sobre o tema, até mesmo de literatura infantil.
84
Em 2001, a Casa obteve um novo recorde de público com o espetáculo: “João Além e sua
Comitiva, um Dom Quixote do Pantanal”. Para melhorar a qualidade da produção, veio do
Rio de Janeiro um produtor profissional, Marco Aurélio Monteiro
44
, que assim como
Jorginho, vem assinando as produções da Casa. O público foi de mais de oito mil pessoas.
O sentimento trabalhado foi o sonho. Assim, Miguel de Cervantes foi apresentado e
estudado pelos alunos através de livros, filme e com uma palestra de Glorinha Sá Rosa,
especialista no assunto.
Para o processo de pesquisa de dramaturgia, o autor foi para o Pantanal; e no laboratório de
ator alguns alunos/atuantes também foram para uma fazenda conversar com peões e
entender de perto o mundo rural. Foram exibidos ainda documentários sobre o Pantanal e
foram convidados Manoel Rasslan e Júlio Feliz (ambos são músicos e professores da
UFMS) para criar a direção musical e trilha sonora, toda regional.
44
Marco Aurélio é carioca, comunicólogo, produtor teatral de grandes espetáculos no eixo Rio-São Paulo
desde 1990.
85
A história se passava em três tempos, passado presente e futuro, utilizando as
características de uma dramaturgia grega: inferno, purgatório e céu. Com planos baixo, alto
e médio. Assim a fase da infância, idade adulta e velhice eram protagonizadas por atores
diferentes, que dividiam o mesmo personagem. Como o elenco era sempre grande (cem
pessoas) não havia problemas com o número elevado de personagens. Além de oportunizar
o maior número de alunos oferecendo diversos ou os mesmos personagens em distintas
épocas.
Nesse caso, como o elenco é sempre com crianças e adolescentes, o trabalho de
caracterização de um velho era ainda muito difícil, pois não havia na cidade profissional em
maquiagem teatral. Portanto, foi necessário o convite a alguns atores adultos da terra para
somar ao espetáculo, tais como César Chedid, Márcio Doria, Martha Barbosa, Expedito
Monte Branco, Gisela Doria, Tom Figueiredo, Luis Fernando Nasser, Maria Dourado, José
Francisco, Sidney Corrêa, Silvia e Marisa Coutinho.
Em 2002, mais uma provocação: “O Avarento do Centro-Oeste”, obra para a qual foi
estudado Molière, e cujo sentimento trabalhado seria a avareza. Como o objetivo era
denunciar as diversas formas de avareza (social, cultural e espiritual) no País, em especial
no Centro-Oeste, previam-se alguns percalços para tão grande provocação. O que de fato
86
ocorreu, pois não houve captação de recursos financeiros, já que ninguém quis patrocinar, e
tudo foi feito à base da permuta. Quem seria o avarento do Centro-Oeste? Existiria avareza
no Centro-Oeste? Então, para dirimir e velar essas questões, a peça vira uma metáfora da
realidade, transportando para a França do século XVII, com Luís XIV, e transferindo assim
todas as “avarezas” para o Centro-Oeste da França nesse século, bem distante do Centro-
Oeste brasileiro. “Qualquer semelhança seria mera coincidência”.
Pretendeu-se com o texto fazer uma reflexão política e social da cidade e do País, onde a
avareza cultural era latente, sempre deixada de lado e negligenciada. A Secretaria Estadual
de Cultura foi fechada e a lei estadual de incentivo à Cultura estava suspensa, como
continua até hoje.
Para não confrontar com a realidade do “poder” e da elite social, criou-se uma lenda, na
qual a história se passava no século XVII, mais precisamente no Centro-Oeste da França.
Então, Luís XIV passa a ser o retrato do poder, o avarento do Centro-Oeste.
Mas esse processo de confronto com a realidade que é apresentada como lenda no
espetáculo não era nada novo. Por exemplo, em Paris foi realizado, em 1999, com a
diretora do Théâtre du Soleil, Arianne Mnouchkine, uma “lenda” em “Tambores do
Dique”. O espetáculo tratava de um relato sobre as imensas inundações que ocorreram em
uma determinada época na China e que foi administrada erroneamente pelo governo chinês.
Toma-se como base o relato da diretora, Arianne Mnouchkine:
“para salvar da inundação uma cidade muito grande,
o que é totalmente admissível, decidiram inundar o
campo. Eles abrem a parte mais alta das comportas,
brechas mesmo que são previstas, e a água é solta
sobre o campo “mas tendo antes prevenido os
camponeses. Mas eles não avisaram e muita gente
morreu e centenas de pessoas ficaram sem abrigo.
Então como a história era cruel e verdadeira, ela
pediu para a autora do Soleil (Helen Cixous) escrever
como se fosse uma lenda que passava em um lugar
entre a Coréia, o Japão e o Vietnã. Então ela escreveu
como se fosse uma fábula que tratava de um reino que
havia mais de mil anos em um país oriental, mas que
87
não era o Japão (Arianne Mnouchkine, in Viana:
2005, 507).
Assim, ela pôde retratar no palco essa verdadeira catástrofe humana apresentando fatos da
vida real como uma lenda. Outro desafio também foi proposto nesse espetáculo durante o
processo de ensaios. Como o seu objetivo era desenvolver o coletivo, formaram-se dois
elencos. Assim, para cada personagem, dois alunos/atuantes se dividiam e cada hora um
ensaiava a cena enquanto o outro assistia.
Durante a apresentação, em cada sessão do espetáculo
45
, um aluno/atuante representava o
personagem e o outro atuava com o coro. Portanto, todos puderam participar do espetáculo
em todas as sessões, ora como protagonista, ora como coro. O trabalho era de porte e
começava a satisfazer.
Certa vez ocorreu uma experiência inusitada e que mais tarde serviu de indicador para
mudanças e descobertas para outras formas de construção, em prol do coletivo. Um
aluno/atuante que vinha sendo protagonista quatro anos teve que dividir pela primeira
vez seu personagem com outro. Durante o processo de ensaio percebeu-se que estava sendo
difícil para ele se ver no outro, dividir com outro o seu personagem. Não entendeu ou não
aceitou o processo proposto. Então quando o seu duo contracenava, ele nunca assistia.
Durante a temporada do teatro, não entrava em cena para atuar quando interpretava o papel
de coro, apenas quando era o protagonista da cena. Algumas vezes nem comparecia para o
espetáculo ou ficava sentado escondido na platéia assistindo à peça. Ele não conseguia
perceber a importância de se ver através do outro, bem como de sua atuação enquanto coro.
Com essa experiência, o elenco aprendeu que o teatro é a arte do coletivo e da generosidade
por excelência. Hoje, vo pode ser o rei, amanhã, o plebeu e todos os personagens no
palco têm suas importâncias e valores.
45
Na temporada do teatro eles apresentam duas sessões por dia, uma matinê e outra à noite.
88
Esse se tornou mais um desafio, um exercício de multiplicidade, criatividade e vivacidade
para o palco e também para a vida. Entretanto, o novo processo apresentado de encenação
ainda não estava claro para eles e nem todos entendiam essa proposta. Então, novos
desafios precisavam ser encontrados para fortalecer o coletivo enquanto coro.
Com o objetivo de tentar compreender como fortalecer o coro, em 2003, o tema de estudo
foi o lixo e o coletivo com suas questões sociais e humanas. A encenação era de porte,
que o tema era social, político e denso. Como fio condutor desse processo dramatúrgico e
de encenação, escolheu-se o grande mestre do social, Bertolt Brecht, encenando-se assim o
espetáculo “Coragem, porque um é nenhum”.
89
Levantaram-se questões como: Qual é a importância do coletivo? Por que um é nenhum?
De quem é o lixo da cidade? Quem são os responsáveis? Como denunciá-los? Pobreza é a
miséria humana?
Uma das dificuldades encontradas na montagem da dramaturgia e na encenação desse
espetáculo foi deparar com a realidade dos personagens da história - os catadores de lixo,
garis e habitantes do lixão -, fonte de todas as pesquisas. A cada nova história de vida
apresentada através dos verdadeiros catadores de lixos que eram entrevistados ou
“recicradores”, como muito gostavam de ser chamados, mais sofrimento vivenciavam.
Muitas histórias verdadeiras contadas por eles foram incluídas no texto e percebia-se pela
reação de risos na platéia, em determinadas cenas, quando nela presente estava um catador
de lixo, pois eles achavam graça e riam muito. A identificação com a cena era total. Eles
riam e se emocionavam de suas próprias histórias.
90
Colocou-se um carrinho de catador de verdade em cena, emprestado por um deles. Alguns
catadores puderam ter acesso aos ensaios, entrando no teatro pela primeira vez. Ficavam
horas assistindo aos ensaios e só saíam quando as portas do teatro se cerravam, saindo junto
com todo elenco.
Como estudo de processo para criação dos personagens, as pesquisas consistiram em
assistir filmes como Ópera do Malandro, ouvir músicas de Kurt Weil (compositor parceiro
de Brecht) em alemão e algumas versões em português, ler poemas e até peças em forma de
diálogos, de Brecht. Inspirados no autor - muitos de seus poemas e peças são baseados na
Segunda Guerra Mundial -, aproveitou-se então como método de estudo falar sobre ela e
fazer um paralelo com a guerra daquele momento, a do Golfo Pérsico. Para falar sobre
esses temas, foi convidada a professora de História Dolores
Ribeiro (UCDB – Universidade
Católica Dom Bosco) para uma conversa com os alunos/atuantes.
E como exercício de laboratório, para sentir-se na pele o papel de catadores de lixo, nesse
caso o dos garis, todos os alunos passaram uma tarde num dos maiores parques da cidade,
Parque das Nações Indígenas, catando resíduos no parque. Cada um carregava seu saquinho
e assim limparam todo o parque. Cada lixo encontrado era uma festa. Eles competiam para
ver quem achava mais.
91
O filme “Ilha das flores”, de Furtado, também foi exibido aos alunos e comentado por um
especialista. Para melhor retratar cenicamente o espaço físico, foi convidado, além de uma
equipe técnica, que vinha se formando, um artista plástico e arquiteto, Renato Arakaky
46
.
Como não existia cenógrafo profissional na cidade e também os recursos eram escassos
para importar um, as cenografias até então eram feitas por artistas plásticos ou arquitetos
habilidosos. A proposta era de desenvolver um cenário com dois planos.
Outra novidade foi a trilha sonora; as músicas eram tocadas e cantadas ao vivo por
acadêmicos da UFMS, dando o tom do espetáculo. Um baterista, um tecladista e três
cantores.
Encerrava na Casa, carregado de emoções e muitos questionamentos, mais um Ciclo, o
Ciclo dos Clássicos Europeus.
46
Renato Arakaky é arquiteto e artística plástico de Mato Grosso do Sul.
92
2004 inicia com o Ciclo dos “Clássicos Brasileiros”, buscando a alegria como sentimento a
ser estudado, que haviam tratado anteriormente um tema tão triste. Bebeu-se na fonte de
Artur Azevedo e apresentou-se como pesquisa um material sobre o saudoso teatro de
revista. Para tanto, a Casa convidou em agosto o professor Fausto Viana, que apresentou
uma oficina sobre o tema, culminando com um grande carnaval.
93
Durante essa oficina ele também começou a sua pesquisa de figurinos com os próprios
alunos, sabendo que voltaria em outubro para fazer o cenário e entregar o figurino
completo e os adereços. Um dos desenhos como sugestão, desenvolvido na sua oficina por
alunos, virou imagem da programação visual da peça, finalizada pela agência parceira, a
Qualitas.
Assim nascia mais um espetáculo, “Vamos mambembar?”, em ritmo de festas e de
modinhas antigas de carnaval. A idéia inicial era relembrar e apresentar a história do teatro
de revista e a importância das trupes de teatro, pois desde aquela época já se pretendia criar
a trupe da Casa.
Os resgates das marchinhas de carnaval, muitas esquecidas em nossas memórias, deram
o tom da peça. Outro foco era trazer as diversidades culturais e integrar a cultura carioca
com o sul-mato-grossense. A peça começava no Rio de Janeiro, dentro de um teatro de
revista, e durante a apresentação de um show um diretor de uma trupe que era espectador
94
demonstrava preocupação, pois precisava encontrar uma nova estrela para a companhia
teatral. Um dos atores da trupe sugeriu viajar para Mato Grosso do Sul, onde havia uma
amiga atriz. Assim eles pegaram um trem, seguiram para Campo Grande em busca da sua
estrela.
Para a trilha sonora, foi desenvolvido um novo ritmo que serviu de cena final do
espetáculo, sugerido pelo autor, Artur de Barro. O ritmo sugerido pelo carioca foi o
“Samba-Polca”, executado pelo cantor e compositor da terra, Celito Espíndola, e também
professor na Uniderp (Universidade para o Desenvolvimento da Região e do Estado do
Pantanal). A polca é um ritmo da região, tão conhecido como o samba no Rio de Janeiro.
95
Nessa encenação, imbuídos no crescimento da qualidade artística e cênica, e com o apoio
de um patrocinador, foi possível buscar novos mestres, não havendo especialistas na área
para figurino, como já foi dito. A Casa convidou então Fausto Viana (ECA/USP), Ingrid
Koudela (ECA/USP) como dramaturga, bem como as cantoras e educadoras Edineide Dias
(UFMS) e Babaya (BH) como preparadoras vocal, Celito Espíndola na direção musical e
trilha e a atriz Carol Doria
47
(CAL/RJ) na produção artística e assistente de direção. Esses
nomes se somaram aos profissionais de renome que desde então já vinham fazendo parte da
equipe: Marco Aurélio Monteiro (RJ), Jorginho de Carvalho e Gisela Doria. Com eles
iniciávamos uma nova equipe de artistas profissionais especializados, buscando
experimentos teatrais mais fundamentados em exercícios práticos teóricos, dentro de uma
encenação contemporânea, humanitária, política e social, sem perder o sentido de coletivo,
do belo e da estética.
47
Carol Doria é minha outra filha, atriz profissional. Mora no Rio e já participou de várias peças na Casa.
96
Com a chegada do cenógrafo e figurinista profissional descobriu-se que trazendo um
profissional qualificado ele poderia apresentar propostas cênicas com o mínimo de recursos
financeiros, como é a situação da Casa. E com ele, os custos não aumentaram, pelo
contrário, os figurinos antigos passaram a ser reaproveitados.
97
Foi com essa montagem (“Vamos mambembar?”) que se teve a coragem de rever o
processo de encenação passando a utilizar o livro O Jogo Teatral, do diretor Spolin (2001),
como um referencial teórico e prático para algumas marcações cênicas.
Marcar e costurar as cenas, tendo Spolin como referencial, trouxe mais segurança e prazer,
tornando o ensaio bem mais orgânico. Desde então, todos os ensaios da Casa vêm sendo
feitos com mais naturalidade e espontaneidade. Passou-se a brincar mais, rir e jogar durante
as criações. Ou seja, fazer arte como ela deve ser feita para criança - prazerosa, dica,
divertida.
Ocorreram também alguns aspectos negativos (problemas de saúde), mas normais e
oportunos dentro de um processo de criação teatral coletiva e orgânica, e, vale lembra, com
muitos jovens. Por exemplo, dor de garganta, gripes, desmaios, torções, fraturas, atrasos,
brigas, choros, ressentimentos, ciúmes.
98
Em 2005, com o décimo espetáculo, voltou-se ao ponto zero. Na verdade, Jorginho de
Carvalho e Myrian Muniz, “gurus de teatro”, dizem que uma trupe começa a andar após
dez anos consecutivos de encenação. Nascia, portanto, os primeiros passos para a criação
da “trupe da Casacom o espetáculo: “Noite de Lua Cheia, uma lenda indígena”. Como
fonte de estudos, o poeta e escritor brasileiro Mário de Andrade, o primeiro a fazer o
inventário das formas musicais do País e o responsável pelo resgate da cultura popular em
suas diferentes manifestações folclóricas e indígenas. O sentimento era o da espiritualidade
e da brasilidade, o “ser brasileiro!” Ser brasileiro, de acordo com Ortiz
48
, significa viver em
um país geograficamente diferente da Europa, povoado por uma população distinta da
européia. Povo constituído da miscigenação de três raças: branca, negra e indígena.
Como era o décimo espetáculo da Casa, os alunos queriam resgatar a sua história, voltando
às suas raízes, os primeiros habitantes: os índios, mitos e suas histórias. Fez-se necessário
48
Ortiz, 2006,17
99
levantar essa bandeira como estudo de nossas identidades, pois segundo Ortiz
49
, o estudo da
identidade nos remete a uma distinção entre as manifestações culturais e movimentos
sociais.
49
Ortiz , 2006,141
100
Além de que as questões indígenas na mídia gritavam: mortes de crianças indígenas,
suicídios, alcoolismo, estupros, corrupções políticas, conflitos de terras e outros. Também
se percebeu que a problemática étnica ainda perpetua muitos preconceitos em relação aos
índios e negros. Portanto, o assunto, um tanto polêmico, precisava ser tratado com muita
delicadeza, já que a previsão era de que mexeria num “enxame de abelhas” na cidade.
Decidiu-se que não se diria o que vinha sendo dito incansavelmente pela mídia, então
foram levantadas outras questões. Optou-se em falar do xamã e suas energias, sua cultura,
suas histórias, suas danças, lendas, mitos e magias. As provocações seriam mais uma vez
sutis, delicadas, nas entrelinhas; através das intenções artísticas, muito poderia ser dito.
Como processo de pesquisa e levantamento de dados, reuniu-se antropólogos, ecologistas,
índios, psicólogos, assistentes sociais, artistas e especialistas nas questões culturais
populares e indígenas para muitas conversas com os alunos/atuantes. Como estudo de
laboratório de ator, a programação incluía levar os jovens para visitaram a comunidade
indígena Cachoeirinha, a 220 quilômetros de Campo Grande, de índios terena, para
conhecer in loco suas realidades.
Mas como as comunidades indígenas estavam em crise na época e devido à falta de
recursos financeiros, somente três profissionais envolvidos no processo foram visitá-la: o
encenador, o figurinista e o diretor musical. foi possível visitar essa comunidade porque
a diretora musical, Edineide Dias, coincidentemente era índia e ainda possuía família por
e, após contato prévio, rapidamente abriram-se as portas para a visita de pesquisa. A equipe
foi a escolas, armazéns e casas de famílias.
101
A encenação dessa peça acentuou a força do coro, aliás, todos eram do coro. Assim eles
sabiam todo o texto e quando não falavam, dublavam. Além de estarem envolvidos com a
história, as atenções nos ensaios eram totais. O percurso de encenação de coro e
protagonismo coletivo dentro de um processo de construção de personagem somente
puderam ser desenvolvidos depois de um longo processo de aprendizado de exercícios
teatrais consecutivos. E como o objeto deste estudo é também a transformação da forma
estética espetacular em função de suas implicações pedagógicas, seus objetivos começavam
a ser atingidos. Na fala, o mais forte ajudava o mais fraco e assim todos se expunham e
ouviam suas vozes.
Para melhor falar desse processo, incluiremos a seguir o trecho da encenadora que estava
no programa da peça:
“Esse ano, a Casa de Ensaio faz dez anos de
espetáculo, e aproveitamos para parar, refletir e
recomeçarmos do ponto zero. Ou seja, resgatar nossas
raízes, nossa identidade, nossa história, nossa cultura,
nosso Brasil. Sendo assim, elegemos como foco de
estudos homenagear um ser brasileiro, ícone de nossa
cultura: o escritor, poeta, músico, historiador e um
dos grandes líderes do movimento modernista e da
102
“arte ação”, Mário de Andrade. E entre as
manifestações que ele resgatou, elegemos estudar a
cultura indígena, sua história, nossas raízes. Estudar
essa cultura é resgatar nossas origens e entender
melhor quem somos e de onde viemos.
Hoje, num
mundo contemporâneo, fragmentado e massificado,
precisamos entender cada vez mais a importância
pedagógica, sócio-cultural e política que o teatro pode
trazer. Sobreviver tem sido um exercício de paixão,
mas o que me torna feliz é poder olhar para traz,
nesses anos todos, e rever tudo o que foi construído e
conquistado. É poder dividir, no dia-a-dia, a arte e o
sonho com crianças, jovens e artistas. É ver olho no
olho, olho brilhar, o coração bater a cada novo
conhecimento, nova atitude, novo gesto e novo
trabalho, passo a passo, por nos construído. E como
hoje é festa, aproveito para agradecer a minha equipe,
amigos, família, alunos, público e parceiros que
estiveram e estão presentes na construção desse árduo
mas maravilhoso processo de desenvolvimento
humano que o teatro nos permite. Agradeço também
em ter o privilégio em participar da formação de um
Centro Cultural e de Pesquisas no Centro-Oeste do
Brasil. Obrigada e divirtam-se”. Láis Doria
No mesmo programa, a dramaturga Ingrid Koudela escreveu o seguinte comentário:
“O caminho aberto pelo nosso poeta maior, Mário de
Andrade, permitiu à Lais, ao Artur, às crianças e aos
jovens da Casa de Ensaio realizar um trabalho de
teatro que é merecedor dos maiores elogios. Tocar a
questão da cultura indígena significa mexer com
raízes que participam da construção de nossa
identidade brasileira. Nossa história é cruel e
desculpar as atrocidades de ontem e de hoje
impossível. Ainda assim, se faz necessário abrir o baú
da memória buscando a riqueza escondida das
lendas, dos mitos, das cantigas e brincadeiras. O
teatro tem a capacidade de torná-los novamente vivos
e acessíveis aos que nasceram depois de nós a
criança e o jovem de hoje. Compartilhar a trajetória
da Casa de Ensaio através da orientação para o
Mestrado na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo tem sido para mim um
processo de aprendizagem que fez com que eu
conhecesse mais um pedacinho bem grande desse
103
nosso Brasil. O céu azul do Centro-Oeste, o
pantaneiro, a natureza e seus personagens se fazem
presente, assumindo a concretude do sensível nas
pesquisas realizadas por Lais e Artur para o teatro
realizado com crianças e jovens, que nesse percurso
de dez anos da Casa de Ensaio adquiriram o que lhes
pertence de direito a cidadania e o acesso à cultura.
Acredito ser esse o caminho tão bem sinalizado por
Mário de Andrade!” Ingrid Koudela.
E o autor da peça diz:
“Em uma conversa sobre a dramaturgia da Casa de
Ensaio, com Koudela, minha orientadora do mestrado
e dramaturga dessa peça, falávamos da importância
da oralidade”. O quanto é importante resgatar as
histórias contadas por gerações e mantê-las vivas.
Mesmo tendo escolhido minha base de trabalho para
esse ano, parti mesmo da criança e suas brincadeiras
com jogos tradicionais. Ver a corda imaginária nas
brincadeiras de sala de aula trouxe de volta o som da
velha corda que cortava a rua em que morava, de uma
ponta a outra da calçada. Deu a dimensão de como
era bom brincar na rua, hoje um espaço perdido de
aprendizado. Então com a pressa das crianças me pus
a brincar, uma brincadeira atrás da outra. Corda,
pique-esconde e após muita agitação, sentados em
roda, o “Era uma vez”. A oralidade através das
lendas, neste ano, uma lenda indígena. Fausto Viana,
meu mestre querido, me perguntou onde estava Mário
de Andrade. Eu respondi: nisso tudo. Aproveitem.
Brinquem à vontade. Dizem que ficar amargo é
esquecer de como se brinca”. Artur de Barros
No entanto, o texto do autor fica pronto quando vai para o palco, enquanto isso é
costurado e recortando cena por cena, mas sempre em clima de uma grande brincadeira. E
quando surgem dúvidas sobre o entendimento do texto para a cena, o privilégio de
perguntar diretamente ao autor, o que facilita muito o trabalho do encenador para a
concepção cênica sem sair da idéia da obra proposta. Isso não quer dizer que as licenças
poéticas possam acontecer, pelo contrário, elas sempre acontecem e muitas vezes começam
a fazer parte do texto. E de acordo com o mestre do teatro, Grotowski:
104
“Meu encontro com o texto lembra o meu encontro
com o ator, e o dele comigo. Para o ator e diretor, o
texto do autor é uma espécie de bisturi que nos
possibilita uma abertura, uma auto transcendência, ou
seja, encontrar o que está escondido dentro de nós e
realizar o ato de encontrar os outros: em outras
palavras, transcender nossa solidão”. (Grotowsk;
1971,41)
E uma das maneiras de descobrir o que está escondido entre esses alunos/atuantes, em sua
maioria criança e adolescente, é utilizar também os jogos teatrais nos ensaios. Porque atuar
requer presença e ela chega através do intuitivo. E segundo Spolin:
“jogar instiga e faz emergir uma força de vida muito
importante, quase esquecida, pouco compreendida ou
utilizada, e muito depreciada - a paixão.” (Spolin;
2001,16)
Portanto, para emergir essa paixão dentro de cada um, colocaram-se alguns jogos teatrais
como cena de abertura do espetáculo com os alunos/atuantes. Eles apareciam pulando corda
imaginária, pique-esconde e terminavam cantando em roda um pot-pourri com cantigas da
infância, sinalizando o tom lúdico do espetáculo.
105
Muitos ensaios foram gastos brincando e cantando. E para criar essa cena de abertura
durante alguns ensaios eles pulavam ora com a corda imaginária, ora com a verdadeira.
Assim, cada vez mais o exercício do coletivo, do coro, se fortalecia na Casa.
E um dos exercícios para o fortalecimento do coro é o jogo teatral, pois através de suas
características é possível acentuar o lúdico e o movimento. E a solução do problema
também passa a ser um comentário sobre a ação dramática. O mestre desse processo
pedagógico nada mais é que o teatro. Veja, por exemplo, o fragmento a seguir, de uma das
brincadeiras de roda cantada apresentada:
“eu fui no Itororó beber água e não achei, achei bela
morena que no Itororó deixei, por isso dona Rosa
entre dentro dessa roda, diga um verso bem bonito,
diga adeus e vai-se embora”
106
Uma aluna/atuante foi escolhida para entrar no centro da roda, “uma bela morena” de
verdade, mas na época ela era ainda muito tímida, quase não falava com ninguém. No
decorrer dos ensaios com ela, era chamada de “bela morena” a cada vez que precisava
entrar no centro da roda para fazer sua cena. Um dia, quando estavam sendo encerradas as
avaliações com diálogos, em roda, mas sentados no chão, com todo elenco, ela pela
primeira vez se colocou e socializou.
Portanto, sabemos que o progresso da socialização também acontece através do processo
evolutivo do exercício constante com o jogo teatral. Eles começam a apresentar esse
progresso e demonstram na transparência da construção de seus gestos e atitudes. Além do
que, promovem também o aprendizado estético e a linguagem artística do teatro. Segundo
Koudela:
“o processo evolutivo do jogo infantil mostra que o
símbolo na criança se desenvolve através de fases que
conduzem a uma aproximação crescente do real. A
evolução do símbolo no jogo acompanha o processo
de socialização e é por ele determinado. Inicialmente,
quando as crianças jogam juntas, não se registram
transformações internas na própria estrutura dos
símbolos (...) A ordenação de cenas de jogo e a
seqüência de idéias no decurso do diálogo evidenciam
o progresso da socialização”. (Koudela; 1991,214).
Como também a intenção através do processo evolutivo do jogo é poder evidenciar essa
socialização, a Casa queria com este espetáculo mostrar mais uma vez as diferenças sociais
e culturais existentes e o respeito pelo humano através dos diálogos. Desse modo, o
conhecimento da cultura indígena foi mote de muitas conversas, indagações, indignações e
paixões.
107
Abaixo, um depoimento feito por um dos alunos nessa peça e que demonstra sua emoção
enquanto aluno/atuante.
“‘Noite de Lua Cheia’ uma peça inesquecível... Bom...
Agosto de 2005 foi um s de muita ansiedade, acho
que não da minha parte, mas também dos outros
integrantes da Casa. Fiquei superansioso porque já
sabia que era nesse mês que ‘Noite de Lua Cheia’
seria entregue em minhas mãos. Nossa, eu lembro que
todos os sábados eu procurava saber se a peça já
havia ficado pronta. Quando recebi o texto, a primeira
coisa que fiz foi ler bem atento como que se iniciava a
história. A princípio não entendi nada, era diferente
dos outros textos que tinha lido nos anos anteriores.
Fiquei aflito e revoltado, queria entender, mas não
conseguia, era estranho porque quase não existiam
personagens principais, eram vários... Após ler e reler
várias vezes o texto comecei a entender o contexto da
108
história, me apaixonei pela peça. Claro que quando
você o texto sempre algum personagem lhe chama
mais atenção, no meu caso, me encantei pelo ‘Aroni’,
ele tinha algumas características minhas: medroso,
preocupado, indeciso. que, no entanto, achei que
nunca pegaria o papel, achava que não estava
preparado ainda para ter uma grande
responsabilidade dessas. Quando Lais me pediu para
ler o personagem, parece que eu não estava mais ali,
eu senti uma sensação muito louca, parecia que
quando eu falava as falas dele eu era realmente ele.
Fiquei superfeliz quando recebi o ‘Aroni’. Esse
personagem me ensinou a lidar com muitas coisas
novas que eu não tinha aprendido ainda, me dediquei
ao máximo para que ficasse tudo muito verdadeiro
sem que nenhuma cena ficasse com um tom de
falsidade. Muitas experiências boas e emoções
inesquecíveis eu adquiri com o ‘Aroni’. Foi muito
cansativo, mas também muito prazeroso o processo de
montagem do espetáculo. Cansativo é lógico pelo fato
de repetirmos várias vezes a mesma cena porque
sempre alguém dava um jeito de errar, pelas
coreografias ensaiadas várias vezes também, pelas
puladas de corda da primeira cena... E prazeroso
pelas amizades maravilhosas que conquistei esse ano,
pelas experiências novas, pelo meu primeiro selinho
em cena, pelo contato com pessoas ali do grupo que
nunca tinha me relacionado antes, pela alegria de ver
os menores estreiando com fala junto dos maiores,
pela descoberta da cultura indígena, pelo resgate da
minha infância, pelos elogios que recebi a cada final
de sessão, pela garra de todos quererem levar o
espetáculo para o palco, pela experiência inesquecível
de subir no palco para interpretar um personagem de
destaque com uma luz, com um cenário e figurino
maravilhosos, pela alegria que senti ao ver que a cada
sessão que passava mais pessoas foram se alimentar
de cultura, pela estréia linda que tivemos, pelas
lágrimas derramadas após muita emoção, pelas
músicas novas, pelos conhecimentos que adquiri nas
oficinas, nas conversas e na convivência com gente de
vários tipos de cultura ali na Casa, pela festa
inesquecível que meus amigos fizeram quando foram
me assistir, pelo acontecimento de reunir toda a
minha família em um só lugar encantado e mágico que
é o teatro... Não sei... Mas de todas essas lembranças
acho que a mais forte que eu vou lembrar para sempre
109
é de que sonhar é o começo de tudo. Quem me ensinou
e mostrou isso foi uma mulher superbatalhadora, que
eu admiro muito, chamada Lais Doria. Ela chegou
com um sonho na Casa de Ensaio e esse sonho se
tornou o sonho de todos os integrantes de lá. ‘Noite de
Lua Cheia’ estreou lindíssima sem nenhum pingo de
dinheiro mostrando a todos que assistiram que basta
apenas sonhar que o sonho se torna REALIDADE!
Obrigado por tudo.
.
Edu Ribeiro: 4 Ato, 15 anos, 2005.
O processo “cansativo, mas super prazeroso” ao qual ele se refere diz respeito ao método de
ter exigido que todos lessem o texto e cada vez um falava e quando um errava iniciavam
tudo de novo. Precisava de muita concentração o tempo todo.
A criação do cenário foi outra história à parte. O cenário foi feito mais uma vez pelo
profissional de teatro Fausto Viana. Originalmente foi desenhado e enviado para a empresa
parceira que construiria o cenário, que não havia cenógrafo. Como mais uma vez não
havia patrocínio, ele era a único elemento cênico certo da peça. Mas não foi entregue em
tempo hábil. Houve troca de data e erro na informação do prazo, em vez de pedir para
entregar no teatro no dia 31 de outubro, pediu-se 31 de novembro. Mas, foi um azar com
sorte. Sorte porque quando o cenógrafo chegou à cidade e sabia da notícia de que não
teríamos o cenário, ele rapidamente pensou no ‘plano b’ e na manhã do dia seguinte foi
para o teatro com alguns alunos e professores ajudantes, criaram um novo cenário todo de
TNT, material esse que havia trazido de reserva em sua bagagem. O cenário ficou pronto
para o ensaio.
E como não havia nenhum recurso financeiro para a confecção do figurino, Fausto Viana
desenhou um modelo básico para todos: bermuda e top preto de malha elástica para as
meninas. Assim o figurino e o cenário foram desenvolvidos sem problemas.
110
111
Novos assuntos, novos conhecimentos
Sempre é bom o exercício de trazer novos assuntos para se estudar e também trazer à tona
os sentimentos espontâneos que acontecem durante o processo de ensaios com os novos
conhecimentos, sentimentos esses que muitas vezes se perdem no meio do caminho, de
acordo com Brecht:
“Os novos assuntos constituem o primeiro estágio; a
seqüência, entretanto, vai mais adiante, ou seja,
devagar novos conhecimentos eles vão assimilando e
o que é melhor espontaneamente e naturalmente. O
processo de conhecimento é na construção dos vários
estágios. A prática exige que um passo deve surgir o
outro; a teoria tem de abraçar toda a seqüência
deles”(Brecht;1967,46).
Assim, fomos passo a passo aprendendo no palco com o coração e não com as teorias,
como disse Tarsila do Amaral. Sabemos que a teoria auxilia, chão, aponta caminhos,
mas o fazer teatral constrói-se com o coração, com a paixão. Ouvimos da platéia de nossas
peças comentários sobre os “brilhos dos olhos” dos alunos/atuantes em cena, e como eles
pareciam felizes naquele momento gico. É essa felicidade, esse momento mágico
durante sua atuação no palco que pode ser levado para suas vidas, a lembrança e a memória
de cada espetáculo realizado.
112
Outro ponto importante para a construção da encenação de cada novo espetáculo foi tornar
possível e sensível a nossa realidade. Nossos alunos/atuantes são convidados a trabalhar
questões humanitárias, políticas e sociais formando sempre um trabalho coletivo e
reflexivo. No entanto, encenar um espetáculo hoje, como já foi dito, não é tarefa fácil.
Jorginho de Carvalho comenta no programa da mesma peça:
“Minha história de vida Rio de Janeiro/ Campo
Grande se deu de forma tão abençoada que
ouso esperar alcançar a terceira benção. A primeira
benção se deu ao reencontrar o casal Lais/Artur 20
anos depois. A segunda se deu ao ser convidado a
desenhar a luz de seus trabalhos. A terceira que ouso
esperar acontecer é a de receber a notícia que uma
grande empresa, sensibilizada com o trabalho
desenvolvido na Casa de Ensaio, se responsabilizará
por um tempo, não inferior a cinco anos, por todas as
despesas referentes à continuidade deste trabalho".
113
Mas sempre nos questionamos: por que então para se fazer teatro no Brasil, com raríssimas
exceções, ainda tem que ser sofrido e com ínfimos recursos na maioria das vezes?
No entanto, quando o pano abre o espectador que lota o teatro Glauce Rocha, em Campo
Grande, ávido pelas raras oportunidades de fruição cultural que acontecem na cidade, se
depara com um espetáculo e com artistas que firmam dignidades - a sua e a da sociedade - a
dor acaba, com os aplausos. Quando o pano fecha, são pessoas potentes, plenas de
identificação e com certeza algo novo aconteceu naquele momento mágico. As mudanças
ocorrem tanto para quem está no palco como para quem está na platéia. Fez-se arte.
Mesmo sabendo também que a maioria desses alunos/atuantes experimenta o absurdo e a
brutalidade da vida muito cedo, oferecer a arte é a possibilidade de permitir encorajá-los na
busca por novas cores, novos olhares, novos horizontes. Exercitar e apresentar o direito de
experimentar, escolher ou optar por novos caminhos artísticos é necessário. Compreender
através das artes outros valores e outras culturas. Perceber que podem também realizar
desejos e vontades para assim encontrar seus próprios caminhos. Exercitar a sensibilidade é
poder criar sentido e imaginação na vida.
114
Nesse espetáculo, “Noite de Lua Cheia”, o processo de criação coreográfico foi diferente, a
construção das coreografias vinha dos seus próprios movimentos. Gisela Doria dava
forma ou apresentava estímulos, para conduzi-los às ações corporais. Assim, tudo ficou
mais orgânico. A cena em que eles iam para o rio é um exemplo disso. Ora eles eram
índios, ora era barco, ora água.
E a coreógrafa também expõe seus sentimentos nesse processo de dez espetáculos
consecutivos no programa da peça:
“Para falar sobre a Casa de Ensaio, queria poder
escrever algo bem bonito, algo simbólico, que
expressasse a importância desses 10 anos na minha
vida e na vida das pessoas que foram tocadas por esse
percurso. Fui buscar na minha memória, na minha
‘memória emotiva’, e os caminhos que encontrei
eram tantos que ficou ainda mais difícil de saber qual
seria o meu texto. Na minha memória eram
tantas pessoas queridas, momentos mágicos,
autores, cenários, figurinos. Encontrei Shakespeare,
encontrei Molière, Brecht, Manoel de Barros, Maria
Clara Machado e Cervantes. Encontrei amigos,
saudades, lágrimas e sorrisos, encontrei estranhos e
encontrei família. A Casa, pra mim, é sala, quarto,
cozinha, é quintal, é pomar, é dispensa, é lavanderia;
a Casa é coberta, é protegida e admirada, a Casa é
acima de tudo as pessoas que vivem, habitam, visitam
e passam por ela”.
Gisela Doria, coreógrafa.
Falar dos dez anos de espetáculos encenados consecutivamente na Casa de Ensaio é, como
diz Gisela, buscar na memória e permitir sonhar por um mundo melhor. Poder ver crianças
e jovens traçarem seus caminhos, saindo da ação de resignação, apatia, violência e se
permitir sonhar. Apropriando as palavras de Schiller
50
: “Diga-lhe que pelos sonhos de sua
juventude, ele deve ter consideração, quando for homem... Como terão considerações
quando homens se a eles não foi permitido nem sonhar”.
50
Schiller, 1963: 25.
115
Em palestra para educadores na UFMS, em novembro de 2005, a amiga e musicista baiana
Lydia Hortélio
51
diz que “você mede a dignidade de uma pessoa pelos seus sonhos”.
Sonhar é preciso, a Casa segue então construindo sonhos e demonstrando sentimentos.
51
Lydia Hortélio é pianista e trabalha pelo resgate e a pesquisa das músicas tradicionais da infância,
desenvolvendo oficinas e palestras pelo Brasil. Tem dois discos gravados: Abre a roda tindo lê lê e a Bela
Alice.
116
Caminho da busca
Sabe-se que a leitura das artes não se faz mesmo para os iniciados de uma maneira
automática e espontânea. Se não estimularmos nosso espírito, nossas sensibilidades, nossos
sonhos na infância, como vamos mantê-los na vida adulta, repleta de experiências inúteis,
torvas e de grandes perdas?
Os estímulos enriquecem nosso espírito, alimentam nossos corações. O encenador percebe
que a troca emocional com os seres existentes ao seu redor, em cada processo cênico,
sempre fortalece e os agrada de forma nova, instigante e constante. É papel de um
encenador confiar na intuição para seguir um texto e poder ultrapassá-lo, abrindo novos
espaços convergentes com pensamentos e expressões artísticas.
“O encenador não é um elemento exterior à obra
dramática: Ele ultrapassa o estabelecimento de um
quadro ou a ilustração de um texto. Torna-se o
elemento fundamental da representação teatral: a
mediação necessária entre um texto e um espetáculo.
[...] Texto e espetáculo se condicionam mutuamente;
um expressa o outro”.
(Pavis: 2003,125)
No entanto, a Casa de Ensaio vem sobrevivendo de patrocínios e apoios, muitos dos quais
parceiros como: AVINA, SÔNIA, Instituto C&A, Plaenge, Infinitybio, Brasil Telecom,
Prefeitura de Campo Grande, Fundação Estadual de Cultura, Café Mostarda, Lalai, Pão &
Tal, Escola de Ballet Gisela Doria, Compettence, Qualitas, amigos da casa ,entre outros.
Temos conseguido nos expressar livremente e criar a cada ano uma nova montagem
oriunda de nossos desejos, sonhos e estudos.
117
A busca é de, a todo o momento, retomar, acentuar e apresentar a importância da arte em
nossas vidas, a importância da função social do teatro. E na tentativa de se engajar em mais
uma tarefa revolucionária, ver o Brasil como ele está e querer propor mudanças é que se
montou, em 2006, “Cirandando”, o espetáculo que fecha o ciclo de dez anos da Casa
(1996/2006). Esse foi o décimo primeiro da Casa, cuja narrativa completa será o tema do
próximo capítulo. Portanto, vamos juntos cirandar!
118
“Sentia mais prazer de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Dispensava pensar”.
Manoel de Barros
Terceiro capítulo
Cirandando com o “Palco de Experiências”
“Ciranda cirandinha ciranda cirandá com a força da
música a poesia vou achar”.
52
52
Trilha criada para a peça Cirandando, letra de Artur de Barros e música de Edineide Dias.
119
Texto e Processo Cênico
O espetáculo “Cirandando”
53
passa a ser o último dessa narrativa, encerrando assim o ciclo
de dez anos consecutivos na Casa e no palco, com onze espetáculos encenados. Por isso, os
convido a partir de agora, a cirandarem juntos nas artes e desartes com o teatro.
Em “Cirandando”, de 2006, a dramaturgia da peça foi um trabalho de intertextualidade, ou
seja, criada entre falas e recortes de alguns poemas dos quatorze poetas contemporâneos
selecionados, entre eles Manoel de Barros, e com o qual tivemos o privilégio de visitá-lo
em sua casa.
Quanto a Manoel de Barros, vale uma nota à parte, que o poeta vive em Campo Grande.
Era mês de agosto quando fomos à sua casa; o céu parecia um lenço de seda azul intenso,
brilhante e sem nuvens. Qual foi nossa surpresa ao apertarmos a campainha da porta e ela
foi aberta pelo próprio escritor com um sorriso acolhedor. Nossos objetivos desse encontro
eram muitos, desde conhecê-lo pessoalmente, contarmos sobre o trabalho de teatro que é
desenvolvido na Casa de Ensaio a também apresentarmos os poetas que seriam
selecionados como objeto de nossos estudos e que fariam parte do texto do próximo
espetáculo, “Cirandando”.
Sentamos na sala onde um quadro de sua filha Martha (nossa amiga) coloria toda a parede
branca. E assim iniciamos uma conversa com o poeta! Quando começamos a falar sobre o
texto da peça, ao mencionar o nome dos poetas selecionados, ele esboçava um leve sorriso,
como se legitimasse nossas escolhas. Contamos por fim que ele dialogaria com Cora
Coralina - outro sorriso esboçado. A conversa durou algumas horas, que não vimos passar.
Só nos demos conta de que já era tarde quando ele pediu um copo d’água para sua
companheira Estela, pois estava com a boca seca de tanto falar, e ao olhar para a janela,
notamos que o azul do céu havia mudado, era então seda escura, anunciando a chegada da
noite.
53
Esse espetáculo foi selecionado para o IV Festival América do Sul, em agosto de 2007, em Corumbá (MS)
e na Bolívia.
120
Entre muitas histórias contadas, percebemos o quanto ele gosta de brincar com as palavras,
mas sempre de um jeito discreto de ser. Toda sua fala é preenchida de lirismo e poesia, um
poeta maior. Assim fomos embora, alimentados de belas palavras e na promessa de voltar,
enquanto ele “se internou na própria casca ao jeito que jabuti se interna”
54
.
A poesia abaixo é sua, uma das selecionadas para o texto da peça.
Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da
goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.
Essa poesia é recortada em forma de diálogo entre dois poemas, um de Manoel de Barros e
o outro de Cora Coralina, como se os dois estivessem dialogando. E os alunos/atuantes
interpretavam esses poemas, pulando amarelinha (brincadeira de infância). Exemplo do
diálogo abaixo no texto:
Menina de coro: Quero agora então rever Cora Coralina
e tomar tereré com Manuel de Barros.
Menino do coro: Havia um muro alto entre nossas casas.
Menina do Coro: Não te deixes destruir,
ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Menino do coro: Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
Menina do Coro: Recria tua vida, sempre, sempre.
Menina do coro: Remove pedras e planta roseiras e
54
Poeminha em Língua de brincar, Manoel de barros, Record (RJ), 2007.
121
faz doces. Recomeça.
Menino do coro: O pai era uma onça.
Menina do Coro: Não te deixes destruir.
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Menino do coro: A gente amarrava o bilhete
numa pedra presa por um cordão.
Menina do Coro: Faz de tua vida mesquinha, um poema.
Menino do Coro: E pinchava a pedra no quintal da
casa dela.
Menina do Coro: Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Menino do livro: Se a namorada respondesse pela
mesma pedra
Menina do Coro: Era uma glória!
Menina do Coro: Mas por vezes o bilhete enganchava
nos galhos da goiabeira,e então era agonia.
Menina do Coro: No tempo do onça era assim.
122
Mas outras pessoas também nos ajudaram para a seleção dos poemas como a filha do autor
e nossa amiga Martha Barros (artista plástica e ilustradora de seus livros), além do também
amigo e mestre, Fausto Viana. Aliás, a idéia primeira em se usar poemas partiu de Viana.
No processo de pesquisa criativa para essa dramaturgia, Barros pôde perceber que é mais
fácil escrever uma peça quando se tem em mente o aluno/atuante. Perto deles, cria-se algo
vivo e novo. Assim, o autor costurou todo o texto, carregado de muitas idéias e sugestões.
Transcreve-se agora o argumento da peça:
Ela se passa no mesmo dia, durante algumas horinhas, mais precisamente naquele momento
após o almoço até antes de escurecer. Na história, as crianças brincam na rua livremente
quando uma mãe interrompe a brincadeira e chama para o jantar, inspirado na época
quando as crianças ainda podiam brincar felizes na rua, infância essa vivenciada por muitos
dos profissionais envolvidos no processo. Portanto, a brincadeira entre eles naquele dia era
descobrir se no Brasil de hoje, com tantas notícias ruins, ainda existiria poesia.
Um dos adolescentes com um livro de poemas na mão propõe ao grupo uma viagem
imaginária através da música e da poesia pelas cinco regiões do Brasil: Vamos minha
gente, estou com vontade de cirandar”.
Eles viajam por esse espaço imaginário de brincadeiras, através de suas fantasias,
dançando, cantado e brincando. O ponto de partida e de chegada era a região do Centro-
Oeste. Ao sair da região, eles vão para o Norte; no Nordeste, onde encontram poemas de
João Cabral de Melo Neto e de Ferreira Gullar; no Sul de Mário Quintana; no Sudeste de
Drummond, Adélia Prado, Manoel Bandeira, Chacal, Ana Cristina César e Vinícius de
Moraes. E finalmente voltam e encerram no Centro-Oeste com poemas de Manoel de
Barros e de Cora Coralina, como foi narrado acima.
123
O processo de encenação, talvez, entre todos os outros espetáculos, tenha sido o mais
experimental de todos, por isso a escolha da narrativa como último capítulo desta pesquisa.
Além de utilizar os jogos teatrais e as brincadeiras nos ensaios, eles também foram
incluídos praticamente em todas as cenas. Os jogos e as brincadeiras de infância foram tão
fortes que transcenderam os ensaios e passaram a ser marcações cênicas. A cada cena, nova
brincadeira era proposta.
A seleção dessas brincadeiras de infância e dos jogos teatrais utilizados durante os ensaios e
no espetáculo foi fruto de estudos e experiências anteriores. Optou-se pelos jogos que as
crianças mais gostam ou que retratassem uma brincadeira de infância que ora se perdia no
tempo, mas não nas memórias. Por exemplo: batatinha frita, queimada, bolinha de gude,
pipa, bafo-bafo, fazer morro de areia, balanço, bambolê, amarelinha, história da serpente,
124
corre-cotia, três mocinhas que vieram da Europa, dança da vassoura e tantos outras. Os
jogos e algumas dessas brincadeiras são encontrados no Fichário de Viola Spolin e no
livro Jogos Teatrais na sala de aula, ambos da mesma autora. (Spolin, 2001: A36).
Esse processo de encenação em aplicar nas cenas do espetáculo as brincadeiras da infância
e os jogos teatrais foi surgindo intuitivamente em cada novo espetáculo encenado pela Casa
de Ensaio. Mas, outra fonte de inspiração também contribui para a idéia cênica fluir no
palco, foi quando se assistiu a um dos espetáculos de dança-teatro de Pina Bausch
55
,
apresentado em São Paulo (2006). Para as crianças de ontem, hoje e amanhã” (Für die
Kinder von gestern, heute und morgen). Nesse espetáculo, como o próprio nome define
seu objetivo, os bailarinos utilizam muitas brincadeiras de infância para dançar e encenar.
Com toda essa bagagem de informações e inspirações, durante o processo de criação da
encenação algumas licenças poéticas também acorreram no palco, entre elas o desfile de
Miss Brasil. A idéia foi tão forte que até passou a ser incluída ao texto original da peça.
Para criar essa cena, convidamos uma amiga, ex-miss de verdade, que foi assistir aos
nossos ensaios e à nossa estréia, Rosane Muniz
56
. Ela pôde trabalhar com as alunas a
questão do andar e da atitude, além de contribuir com outras experiências de concursos.
55
Pina Bausch é uma coreógrafa aleprecursora da dança-teatro. Bausch incorpora e altera balé em sua
forma e conteúdo, usando movimentos técnicos e cotidianos. Seu trabalho utiliza também experiências de
vida, mas distingue-se por não recusar a técnica clássica, usando-a de forma crítica. Os dançarinos de Bausch
são todos bailarinos muito bem treinados, porém, com trinta ou quarenta anos de idade mais maduros e
experientes na vida e na dança que dançarinos mais jovens. .http: //www .unirio .br/
opercevejoonline/7/artigos/4/artigo4.htm
56
Rosane Munis, atriz, figurinista e jornalista, mestranda da ECA/USP. Publicou o livro “Vestindo os Nus”.
125
Foi assim o processo de encenação do espetáculo “Cirandando”, com novidades de
combinações entre muitas brincadeiras de infância, jogos, músicas, poesias e conversas que
serviram como novidades no resultado cênico. Por isso, talvez tenha sido a peça mais
rápida de se encenar, porque a cada jogo proposto os alunos evoluíam e saíam a brincar de
verdade. No palco, as brincadeiras também eram feitas de verdade, não existiam marcas
definidas, acontecia espontaneamente. Assim, o texto com os poemas e as músicas
começava a fazer parte do universo deles com naturalidade. O maior cuidado era manter o
“time do espetáculo” sem se perder com as brincadeiras.
Uma criança da platéia no final do espetáculo disse: aquela cena da batatinha frita, foi
muito bem encenada”. Os gestos em cena foram então preenchidos, porque eles brincavam
de verdade.
126
Leitura de mesa
Quando o texto é apresentado em roda, todos são convidados a ler em voz alta, aquele que
não quer, na sua vez, pede para não fazê-lo. Ler em voz alta é também uma atitude, um
aprendizado, principalmente para os pequenos que estão participando pela primeira vez.
Sempre são feitas várias leituras em voz alta, tirando todas as dúvidas das palavras
desconhecidas.
Os ensaios fluíram naturalmente, principalmente quando se tornou claro o sentido e o
conhecimento das regras do Jogo Teatral, de Spolin, com a sua estrutura dramática (Onde,
Quem, O Que)
57
. O Onde indica o lugar onde se passa a cena, que nesta história foi a rua. O
Quem seriam as personagens, ou seja, as crianças. E o Que, as ações das personagens, o
57
Spolin, 2001, 12.
127
que elas fariam na rua, nesse caso: viajar na imaginação, declamando poemas, cantando e
brincando.
A preocupação era instigar o aluno/atuante nos ensaios, estimulá-los a construir suas
próprias marcas e seus gestos. Mas esse processo de “construção interna” é mais
desenvolvido entre os alunos da trupe, que possuem mais experiência, pois passaram por
pelo menos três processos de montagem teatral e alguns workshops com gente de teatro.
Eles possuem um maior grau de sensibilidade trabalhada e certa experiência de palco, o
que facilita para a composição orgânica de sua personagem. Busca-se em cada personagem
uma emoção que vem de dentro para fora, tornando uma “ação física preenchida”. Tudo
precisa ser verdadeiro, entendido e vivenciado.
As leituras do texto da peça foram utilizadas como parte do processo para esse espetáculo e
durou praticamente um mês. A espontaneidade dos alunos/atuantes ajudou na condução
com as ações físicas para cada cena. Assim, para o encenador, ligar as cenas foi
acontecendo passo a passo e naturalmente. O importante era o cuidado em se manter o
128
espírito lúdico, a espontaneidade e sempre tornar o processo de criação um ato prazeroso e
livre. Viola acredita que para se adquirir a espontaneidade durante o processo de criação é
preciso quebrar velhos modelos de encenação. Pois somente quando se consegue despertar
o gênio que está adormecido em todos nós, a inspiração flui em forma de energia.
Portanto manter o elenco de jovens atentos, com toda energia focada nos ensaios, e
despertar o gênio em cada um não foi tarefa difícil, porque a cada novo jogo ou brincadeira
proposto, a alegria, as fantasias e o prazer se faziam presentes. O adolescente também gosta
de brincar, mas geralmente fica preocupado em não fazer “coisas de crianças”. Mas naquele
momento ocorria justamente o contrário. Tudo lhes era permitido, até mesmo “brincar de
ser criança”; ali eles poderiam dramatizar a sua ‘criança’ sem correr o risco de serem
zombados.
Antes do processo de criação cênica deste espetáculo, para a compreensão do sentido de
cada cena e como o texto trazia vários poetas (em sua grande maioria desconhecida para
eles), houve a busca na biblioteca da Casa dos respectivos poemas. Na internet foram
pesquisadas a vida e a obra de cada um. Ouviram-se sicas e poemas de Vinícius de
Moraes; foram lidos poemas de Manoel de Barros, de Drummond, de Manoel Bandeira,
entre outros. Os jovens assistiram também a um documentário sobre Ferreira Gullar.
129
A criação para a trilha da peça era mais um processo de construção coletiva, pois foi
solicitado que sugerissem alguns músicos ou algumas bandas de cada região de suas
preferências. Com isso, fez parte do repertório Adriana Calcanhoto, Legião Urbana, Skank,
Gerado Espíndola, entre outros indicados pelo autor ou pelo diretor musical, como Gilberto
Gil, Vital Farias, Roda Pião etc.
E para manter uma linguagem multidisciplinar com as outras manifestações artísticas da
Casa, por exemplo, as artes visuais, foram pesquisados alguns dos pintores expoentes de
cada região, como Siron Franco, Volpi. Eles serviram de fonte de inspiração para os
desenhos de seus balões, cuja exposição seria feita no “foyer do teatro”.
130
Com essas informações, o encenador pôde definir quais seriam então as cores do
espetáculo: um Brasil de todas as cores da natureza desde a cor da terra até a do azul do
céu. Definido o colorido, o local onde as cenas aconteceriam (uma rua da periferia de
Campo Grande) e a época da história do espetáculo (2006), as intenções das cenas
começavam a fluir espontaneamente.
Outro objetivo do espetáculo era o de levar ao espectador a reflexão sobre a importância do
papel da cultura e da arte brasileira nos tempos atuais, ou seja, instigar tanto quem o faz
quanto quem o assiste. Mas sempre se desafiando para fluir naquele momento o melhor dos
sentimentos humanos. A cultura era tratada como valor agregado, um processo de
transformação de vida abrindo um leque de novas escolhas individuais. Segundo Janine
58
:
58
Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo.
Fragmento de artigo na internet http://www.democratizacaocultural.com.br/Paginas/Home.aspx, em 12/07/07.
131
O acesso à cultura, assim, não consiste apenas em mais pessoas
visitarem museus ou assistirem a peças ou filmes. Ele significa mais
pessoas terem uma experiência intensa de ampliação de perspectivas
pelo contato com o que é diferente. Dançar, para um de pau; ver
um quadro, para quem nunca apreciou o jogo das cores; ler, para
quem jamais desfrutou um livro, podem ser revolucionários. A
questão não é quantitativa, meramente numérica. É de um valor que
se agrega, sim, mas que consiste em qualidade. E essa qualidade se
resume numa palavra: maior liberdade. A cultura liberta; traz mais
opções a quem a vivencia... Por isso a cultura tem um papel-chave
na vida democrática”.
E com essa intenção de agregar novos valores e propiciar liberdade, a condução das
pulsações cênicas partiu de um processo de criação coletiva, facilitando as tensões do
trabalho que normalmente os alunos/atuantes encontram no percurso das suas descobertas
para a composição das personagens. Porque naquele momento todos eram um, não existia
um protagonista, que neste caso era o coro. No entanto, segundo Benjamin:
“As tensões do trabalho coletivo são os verdadeiros educadores. Na
busca do coletivo a criança encontra suas compensações morais. (...)
Sendo a encenação
59
o contraponto do treinamento pedagógico como
libertação radical do jogo, processo que o adulto pode tão-somente
observar.” (Benjamin;202;85)
Não será então a encenação a grande pausa criativa no trabalho de educação?
Passo a passo, no prazer de cada dia durante o período dos ensaios buscou-se atingir o
melhor dos sentimentos de cada um, para que a fruição das mais diversas emoções
individuais espontâneas pudesse ter sido transparente no palco. Se não tivesse havido a
busca do prazer nada teria feito sentido no palco. E ali, naquele momento, era preciso
estabelecer a alegria e o prazer em se fazer algo, no caso, o espetáculo “Cirandando”.
Segundo Berlau:
59
idem, 88.
132
“Se não se busca o prazer, se não se pretende conquistar o melhor
entre aquilo que existe, se não se quer ocupar o melhor lugar, para
que lutar. Lutamos para o nosso melhor, o prazer de fazer. Lutar por
algo que realmente vale a pena e não pelo prazer de lutar. A luta é
constante e vital para que se possa sobrevir da Arte”. (Berlau; 1967,
33)
Foi nesse prazer de luta pela criação e construção de novas emoções, algo que realmente
vale a pena, que surgiram novos aprendizados. Lutar para atingir o melhor em cada um,
para poder fazer e querer fazer bem feito, trazendo alegria e prazer, no sentido de ser o
melhor de si mesmo e com os outros também.
E através de músicas escolhidas por eles e algumas brincadeiras propostas surgiram
também conteúdos com temas sociais e políticos do Brasil contemporâneo. Por exemplo, a
letra da música da banda Legião Urbana, cantada por eles.
133
Quando o Sol bater na janela do teu quarto.
Lembra e vê que o caminho é um só.
Porque esperar se podemos começar tudo de novo.
Agora mesmo. A humanidade é desumana. Mas ainda temos
chance.
O Sol nasce prá todos. Só não sabe quem não quer.
Quando o Sol bater na janela do teu quarto.
Lembra e vê que o caminho é um só.
Até bem pouco tempo atrás.
Poderíamos mudar o mundo.
Quem roubou nossa coragem?
Tudo é dor.
E toda dor vem do desejo.
De não sentirmos dor.
Quando o Sol bater na janela do teu quarto.
Lembra e vê que o caminho é um só.
Assim ouve-se que o sol nasce para todos e não sabe quem não quer. E quem não sabia
ficou sabendo que o caminho do sol é um só, mas cheio de “entrecaminhos”. Mas quem não
vê o sol? E quando sua vida é franzina, como de muitos da Casa?
134
E para responder à pergunta, fragmento do poema Morte e Vida e Severina, de João Cabral,
foi incluído no texto:
...E não melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la
desafiar seu fio, que também se chama vida, teimosamente, se
fabrica, vê-la brotar como pouco em nova vida explodida:
mesmo quando é assim pequena a explosão como a de pouco,
franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina”.
Muitas vidas se explodiam no palco.
135
Outro procedimento cênico e metodológico deste espetáculo, e que vem sendo utilizado
na Casa, é que os novos alunos/atuantes, ou seja, do primeiro ato, com idades entre dez e
doze anos, ficam sentados na primeira fila da platéia, assistindo, mais que atuando. Esse
procedimento libera as coxias para os outros, pois nessa fase eles precisam observar mais
para conhecer melhor o processo teatral, já que muitos estão integrando o teatro pela
primeira vez. Eles querem e precisam assistir ao espetáculo inteiro. Então suas
participações cênicas ainda são pequenas, mas permanecem presentes e atentos durante
todo o espetáculo. Experiências mostram que muitos alunos/atuantes que por um minuto
saem para beber água, por exemplo, perdem a sua hora de entrar em cena.
Mas, apesar do prazer dos ensaios e das apresentações, a produção desta peça não foi fácil,
pois os recursos financeiros mais uma vez não foram satisfatórios. Todos os profissionais
envolvidos trabalharam nesse espetáculo sem cachê, criando um desgaste físico e
136
emocional muito maior, por sobrecarregar a equipe. O trabalho que originalmente deveria
ser feito por quatro profissionais, sem recursos, passou a ser executado por um. Fazer teatro
exige trabalho de equipe e um exercício constante de persistência e paixão.
Programa da peça
“O objetivo último do trabalho de teatro na ação cultural é a
construção da forma estética compartilhada com as crianças”.
Ingrid Koudela
60
A programação visual da peça foi toda desenvolvida pela agência parceira Qualitas, porém,
como não havia patrocínio, não pôde ser aplicada, por exemplo, nas camisetas do
espetáculo e nos convites. Mas os panfletos foram feitos assim mesmo, com uma tiragem
mínima e através de permuta da agência com uma gráfica.
60
Expressão inserida no programa da peça.
137
Abaixo, as palavras do autor, encenador, diretor musical e de dois alunos/atuantes, todas
incluídas no programa da peça.
Do autor:
Com sugestão de Fausto Viana, meu querido mestre, fui em busca da
poesia, para amenizar esses tempos de turbulência. Em uma tarde
agradável num shopping paulistano, eu, Lais e Fausto compramos
livros de poesias e começamos a pesquisar. Sentados em uma mesa,
tomando sorvete, lembramos, rimos e nos emocionamos com os
poetas. Rimos muito da poesia “A bunda”, de Carlos Drummond de
Andrade. Achamos que dava uma boa cena. Passamos por vários dos
singelos aos poetas profanos. Pela poesia, brincamos e identificamos
seus autores. Descobrimos a procedência dos mais queridos,
encontramos as mais conhecidas e reconhecemos finalmente os
grandes. Voltei de Sampa com a alma cheia. Ao reler o livro de
poesia comecei a me lembrar de um tempo único na minha vida. Na
mesma hora me veio um período do dia da minha infância que eu
gostava muito. No final da tarde, o tempo entre “o chegar da escola”
e “a mãe chamar para o janta”. Naquele horário, naquele
“horarinho”, aconteciam grandes aventuras. Falávamos de sonhos,
ouvíamos notícias do dia, íamos longe com as conversas. Éramos um
grupo enorme. Esse tempo sempre terminava com a mãe de uma das
meninas, que com seu sotaque nordestino acentuado, nos sinalizava
que o dia terminara. Regina, sete horas!!!” Pronto. Era hora de
voltar para casa. Artur de Barros
Da encenadora:
Esse ano foi marcado por uma série de acontecimentos. Não sou
alegre e nem sou triste. Encenar um novo espetáculo é sempre um
sabor especial. Descobri que quando você poesias sua alma
agradece feliz. E assim foi; a cada dia que íamos lendo as poesias
mais felizes ficávamos. Rimos e nos emocionamos muito. Utilizei as
minhas brincadeiras de infância e os jogos teatrais para compor
cada cena. Naquele momento, eu fui criança novamente, minha
infância aparecia em flashback todinha. Os ensaios fluíram
tranqüilamente e cada pessoa nova que chegava somava.
Instigados por Fausto, fomos procurar poesias em uma livraria em
São Paulo. Achá-las foi um acalanto. Conversar pessoalmente com
138
Manoel de Barros e Estela [sua esposa] foi mais que acalanto, é
voar e ver sereias no u. Ter o privilégio de encerrar a nossa peça
com o nosso mestre da música Geraldo Espíndola é ter esperanças.
Ter ao meu lado artistas como Didi, Gisa, Mareu, Jorginho, Fausto e
tantos outros é reger uma orquestra de harmônicos, poesia pura! E
também poder trabalhar com Artur ao meu lado é ter coragem de
seguir em frente. O nosso trabalho está aí, pronto para vocês verem
e então a vocês eu tenho que agradecer e dizer obrigada,
obrigada por sermos brasileiros. Esse é o Brasil que amo e que
acredito, um país que tem poesia, teatro, música, pintura, dança,
cinema e [que] não à violência. Fazer teatro social nesse país é
ato de coragem e nesse Estado [Mato Grosso do Sul] é ato de
resistência. Só quem ama o teatro entende e resiste. Mas até quando?
Se não puder mudar, ‘Vou-me embora para Pasárgada’ com o meu
amor e viver no tempo da onça para dançar até o sapato pedir para
parar, aí eu paro, tiro o sapato e faço teatro o resto da vida!
Lais Doria
Da diretora musical:
Falar da Casa de Ensaio é sempre um momento de profunda emoção
e também de reflexão. Refleti em como, apesar de todos os percalços
da Casa, ainda conseguimos ouvir de dentro dela Vozes tão suaves,
Vozes tão caprichosas, Vozes tão conscientes e expressivas, Vozes
tão corajosas, que querem ser OUVIDAS PELOS que podem nos
auxiliar, dando estabilidade à Casa. A trilha musical do espetáculo
foi feita com a participação de TODOS, professores e alunos, e
espelha a alegria e a energia da CASA. Beijos,
Edineide Dias
61
De um aluno/atuante:
- Processo “Cirandando”
Quem é meu personagem?
Vou contar. O meu nome é Iran, tenho 15 anos e sou o ‘cara’ mais
feliz do mundo! Sou de uma turma de amigos muito diferente, cada
um mais louco que o outro. Tenho a namorada mais linda e perfeita
do mundo, uma menina carinhosa, atenciosa, divertida. Ela se chama
Fernanda, somos o casal mais lindo da turma. Será que preciso de
mais alguma coisa para ser mais feliz do que já sou?! Acho que não.
61
Esse texto não pôde ser inserido no programa da peça, pois quando chegou já haviam encaminhado para a
gráfica, mas ele serve como registro do processo.
139
Sou um garoto que ama escutar música, aprender coisas novas,
brincar, mas a minha maior paixão é a poesia, quando pego um livro
de poesias para ler, viajo, conheço mundos e regiões diferentes,
personagens e emoções inesquecíveis na minha memória. A poesia
nos permite isso mesmo, para viajar na imaginação junto com o
poeta é a coisa mais fácil que existe, basta apenas querer e sonhar.
Conquistei meu amor assim, foi lendo poesias para ela. Será que sou
romântico?! A minha personalidade é muito curiosa, hora sou o
palhaço mais solto e extrovertido da turma, hora sou o menino mais
tímido, até pareço com aqueles nerds de filme americano. Cada
personalidade doida você encontra na turma, tem gente que se acha
modelo, artista, esperto, cantores... Mas ainda bem que eles são
assim! São os melhores amigos do mundo, e se um dia eu precisar
viajar na imaginação com eles, tenho certeza que vão comigo,
porque “quando sonhamos sozinhos, é apenas um sonho. Quando
sonhamos juntos, é o começo da realidade”. (D. Quixote). Vamos
nessa meus amigos, tô com vontade de cirandar!
Edu Ribeiro. 5º ato! 07/10/06 e alunos/atuantes
140
É interessante porque neste processo se vê claramente como a personagem se mistura com a
personalidade do aluno/atuante. Pois ele, nesse caso, até assina o seu próprio nome. Abaixo
mais um dos alunos/atuantes apresenta a sua personagem, que também é muito parecida
com a sua personalidade, no entanto, assina como personagem.
Vida de Carlos...
Olá, sou Carlos, tenho de doze para treze anos, sou aquele menino
que é meio crianção, fala o que não deve sempre na hora errada,
atrapalhando a todos. Sou meio estressado e meio calmo, tudo ao
mesmo tempo, e vejo o mundo com outros olhos... Muito alegre, mas
misterioso, tenho pinta de mal, mas sou o maior palhação, feliz que
só. Pra mim não adianta explicar, sou sempre do contra; viajo muito
com minha imaginação, vou a lugares que nunca chegaria sozinho,
adoro "Cirandar". Amo muito minha tria e penso que nosso País
precisa de um rumo novo, uma luz que o leve para um futuro melhor.
Tenho vários amigos inseparáveis que não se desgrudam. Eeepa...
Quase me esqueci de contar, sabe aquele horário depois que a gente
chega da escola, almoça e vai brincar, esse horário mãe odeia, e
quando a brincadeira está ficando boa a mãe chama, é um Deus
nos acuda. Afinal, sou um menino comum como qualquer outro...
ASS: Carlos Cirandando da Silva - 3 ato
141
Críticas
O espetáculo ensejou um artigo
62
do Prof Viana, que o retratou esse processo com
transparência. Falou das dificuldades financeiras, pois nos últimos dois anos não havíamos
conseguido patrocinadores e só pôde acontecer graças aos apoiadores locais.
Esse artigo foi enviado para um dos jornais locais, mas não se sabe por que nunca foi
publicado. Ou será que sabemos?
Talvez por falar abertamente do desinteresse da “elite campo-grandense” com as questões
sócio-culturais.
62
Cirandando e a população de Campo Grande
Curioso fenômeno aconteceu na Cidade de Campo Grande entre os dias 01 e 05 de novembro de 2006. Para sete
apresentações do espetáculo Cirandando, acorreram ao Teatro Glauce Rocha, da UFMS, mais de cinco mil pessoas. No
palco, estavam mais de cem crianças do programa Casa de Ensaio, coordenado por Lais Doria e Artur Monteiro de Barros.
Quanta gente para um espetáculo de final de ano. Que grande emoção ver serem abertas as portas do teatro e ver
crianças, jovens e senhores procurando ajeitar-se para aproveitar uma hora de poesia e beleza. A fórmula tinha, realmente,
tudo para dar certo como espetáculo crianças lindas, roupas pensadas, um cenário feito por estas mesmas mãos em
atividades de artes plásticas na Casa de Ensaio. Balões que sobrevoavam o palco, trazendo tantas esperanças e ilusões.
As poesias escolhidas a dedo, as canções e coreografias que complementaram as cirandas e puseram uma verdadeira
Roda da Fortuna para girar.Só que o que interessa aqui é a platéia. Conheci, entre seus membros, a fina flor (perdão pela
antiguidade do termo) da elite campo-grandense. Fazendeiros, políticos, empresários e artistas - gente culta, preparada e
acima de tudo, muito educada. Todos foram unânimes em reconhecer o grande transporte emocional a que foram
submetidos. Os jornalistas da TV e das mídias impressa e eletrônica estavam presentes, dando ampla cobertura ao evento.
Ora, o que então caracteriza o fenômeno? Se estava tudo perfeito, do que é que se fala neste artigo? É do que falta. A P O
I O. Suporte.
A comunidade se apraz de ver a encenação, mas não em acompanhar seu desenvolvimento, que é o que verdadeiramente
importa, já que o espetáculo é apenas uma apresentação pública de resultados. Todos os programas de patrocínio estavam
abertos, incluindo a Lei Rouanet, e a captação se fez a ferro e fogo.Nada. Poucas empresas ajudaram e fizeram a diferença
- e brilham no programa e no agradecimento, com merecido destaque.Durante um seqüestro-relâmpago sofrido aqui em
São Paulo, preso durante quatro horas por nove seqüestradores, ouvi a seguinte afirmação:
“Olha, doutor, eu antes não tinha nada. Agora eu tenho tudo.” Não disse, porque ainda tenho medo de revólver na cabeça,
mas meditei – mas por quanto tempo? Acima de tudo, pensei: Caramba, como fez falta uma Lais Doria na vida deste cara.
A Casa de Ensaio é uma escola de verdade, só que de brincadeira. Na atividade lúdica, as crianças esquecem este nome
bonito que cunharam os educadores contemporâneos - crianças em desajuste ou desvantagem social. Passam a ser
crianças de novo, esquecendo as violações corporais, emocionais e psicológicas a que foram submetidas. O leitor tinha
esquecido que muitas daquelas lindezas no palco tem este background?
A Casa de Ensaio não. Este é o papel dela.
A revista Veja, em uma edição já bastante antiga, estampava na capa uma manchete assustadora: “O grito dos excluídos já
pode ser ouvido da sua janela”. Isto nunca foi tão verdadeiro. É hora de arregaçar as mangas “incluídos socialmente” de
Campo Grande. Elite. Fina flor. Dominantes. Intelectuais. Como quiserem ser chamados. Depois de oferecer, cobrem Lais
Doria e Artur Monteiro de Barros. Cobrem todos os professores da Casa de Ensaio. Me desafiem, já que eu mesmo sou um
colaborador da Casa. Antes que seja - puxa, me desculpem - já é tarde.
Fausto Viana, novembro de 2006.
Professor livre-docente do departamento de Artes Cênicas da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
142
Tivemos também uma crítica num jornal
63
local. Quando a jornalista diz que:
“O espetáculo ‘Cirandando’ encheu os olhos do espectador. A
apresentação é multifacetada, poderia estar em qualquer teatro do
Brasil”.
Como em qualquer lugar do Brasil e principalmente em cidades pequenas ou de médio
porte, caso de Campo Grande, diz o dito popular: Santo de casa não faz milagres”. Ou
seja, o trabalho de teatro é valorizado quando vem de fora. Essa crítica mostra que o
espetáculo mesmo sendo criado em Campo Grande foi valorizado. Artigos e críticas como
essas nos fazem acreditar que estamos no caminho certo, mesmo com todas as dificuldades
financeiras que o espetáculo enfrentou e que já foram mencionadas.
63
Crítica da jornalista Michelle Rossi, do jornal Correio do Estado, Campo Grande (MS). 10/10/2006.
143
Cenário, figurino, adereços - um processo
Após a apresentação do texto, o cenário e figurino são outras surpresas para os jovens.
Apesar de ter sido mostrado em desenho ou em uma maquete, essa etapa finaliza de
verdade no palco, pois muitos imprevistos surgem durante o processo (desde a criação até a
montagem). Nesse caso, tanto o cenário quanto o figurino tiveram que ser mudados e tudo
foi criado em cima da hora. Por isso a importância em se convidar um especialista, porque
sempre tem um plano B ou C na manga.
O cenário dessa peça foi outra história. No primeiro momento, como não havia recursos
financeiros, o cenógrafo e figurinista Viana propôs o uso da estrutura do cenário criado
144
para a peça anterior e que acabou não sendo utilizado novamente. Seriam três módulos de
madeira com três alturas distintas. No entanto, não foi possível montá-lo novamente. Mais
uma vez e de última hora, Viana conseguiu criar um cenário lúdico com o material que
possuía na Casa.
E como todos os alunos/atuantes estavam pesquisando o “Cirandando” nas oficinas de
artes, a educadora, na época Érica Rabelo, construiu com eles, dentro do Viajar”, sessenta
balões, todos muito coloridos, inspirados em artistas expoentes, os quais deveriam ser
expostos no “foyer do teatro”. Mas Viana resolveu utilizá-los como cenário. Sem querer,
parte do cenário passou a ser montada e confeccionada por eles.
Alguns alunos, criadores de seus balões, ajudaram a pendurá-los. E no fundo, junto ao
ciclorama, foram desenvolvidos três grandes painéis reaproveitando o material cênico que
havia no acervo da Casa, mas adaptado para a peça.
145
Como o elenco é sempre grande e muitas danças, o cenário não pôde “encher o palco”.
Viana, consciente desse processo, fez com que os balões e os painéis fossem pendurados
nas varas de luz que não estavam sendo utilizadas.
Normalmente, quando as crianças chegavam ao teatro o cenário estava praticamente
montado, mas nesse dia ele foi montado com todos, deixando para Viana os acabamentos
finais. Naquele momento tudo virou motivo de festa. E mais uma vez eles ajudaram
tornando a montagem parte do processo. A cada ano, uma nova equipe é convidada para
sua montagem.
três anos Viana assina o figurino da Casa e nesse espetáculo ele teve que apresentar
duas propostas, pois até à última hora ainda havia esperanças de obter patrocinador. Mas
como não acorreu, ou seja, não houve recurso financeiro, através das permutas, o plano
B precisou ser executado. Aproveitaram-se mais uma vez os figurinos do guarda-roupa da
Casa. Foram utilizadas algumas sobras dos tecidos existentes para as saias e calças. Essas
saias foram costuradas gratuitamente por uma costureira da equipe de Viana em São Paulo
146
e pela mãe de um aluno/atuante. Ele propôs também o uso como parte de cima do figurino
da camiseta-uniforme da Casa que todos tinham.
Alguns adereços foram desenvolvidos de última hora com as sobras de tecido existente,
ocorreram até mesmo trocas de figurinos. Os figurinos da Casa muitas vezes “andam” de
um espetáculo para o outro, mas sempre com novos recortes e um novo tingimento. Tudo
por lá passa a ser reaproveitável. O guarda-roupa da Casa existe desde 1996, com algumas
peças dos onze espetáculos, além de outras doadas por pessoas ou companhias de teatro.
Desse modo, muito material útil é encontrado e reaproveitado, são roupas usadas que
trazem uma história.
O figurino também é muito importante para o espetáculo e segundo Arianne Mnouchkine
recomenda:
147
Trabalhe com seus figurinos. Eles podem ser seus amigos. Eles são
seus inimigos se são mal feitos, se não ficam bem juntos. A pele pura
é difícil de usar máscara. As mãos, os pés - fazem com que tudo fique
muito realista. Não se tornem criaturas bizarras ou feias. É um
pecado não acreditar que em cada criatura beleza. (in Viana,
2004, 519)
Portanto, trabalhar o figurino é necessário, ajuda a encontrar a personagem. E quando se
trata de um espetáculo com crianças, convidar um figurinista contribui também para o
entendimento cênico no palco. A escolha das cores, os tecidos e os adereços devem
“conversar” entre si, para que tudo possa ser realizado harmoniosamente.
O papel do encenador neste contexto é também o de descobrir o tom certo do espetáculo
para que cada elemento visual proposto (luz, cenário, adereços, figurino e maquiagem)
tenha o mesmo peso. É um processo de conjunto harmonioso, onde um elemento da cena
não pode ser melhor ou maior que o outro. Com tudo organizado e muita conversa com a
equipe, mergulhamos no trabalho e todos se tornaram cúmplices desse processo.
A seleção dos tecidos sempre é a mais simples, mais econômica e a mais leve. Nesse caso,
por exemplo, foi o algodão cru. Ele é um tecido natural, fácil de ser encontrado e que
também pode ser tingido com facilidade.
Esse tecido vinha sendo utilizado vários espetáculos, mas ainda havia uma sobra
grande dele no guarda-roupa da Casa. Então ele voltou para o palco, e para dar cor às
barras das saias. Além de não ter havido tempo hábil durante os ensaios no teatro, ao tecido
colou-se, com cola quente, pedaços coloridos de TNT, trazidos por Viana, formando a idéia
de retalhos de tecidos. Aos poucos todas as peças ficaram com esses detalhes de
acabamento. Bem verdade que nesse caso elas não poderiam ser lavadas. Mas o efeito dos
retalhos no palco era o mesmo quando se jogavam as luzes. O espetáculo teve vida longa,
pois continuou sendo apresentado em 2007, e a sujeira no tecido não comprometeu o uso,
pelo contrário, fez parte da cena como um processo de envelhecimento natural. Outro
detalhe importante na seleção dos tecidos é como eles refletem no palco com a luz.
148
Mas com o direcionamento do processo de trabalho cênico cada vez mais profissional e
exigente, a criação dos figurinos conduzida por Viana valeu grandes saltos quanto à
qualidade cênica do espetáculo, para não falar do assim chamado “alívio”, pois criar e
conduzir figurino com pouquíssimos recursos para cem pessoas (às vezes trezentas peças
com as trocas) não é uma função das mais fáceis e simples. Assim, quando Viana
recebeu o texto e foram definidas as cores do espetáculo, o resto ele se encarregou de fazer.
E o que é melhor: as crianças gostaram!
Graças à internet, as distâncias geográficas não são mais empecilhos. O encenador em
Campo Grande e figurinista em São Paulo conversam pelo Skype
64
. Viana desenha,
escaneia ou fotografa suas criações artísticas e as apresenta uma por uma. Quando chega
ao teatro para o ensaio geral faltam afinamentos e refinamentos nos figurinos. E nos
camarins masculino e feminino, cada um é responsável pelo seu figurino, quando
necessário, passam a ferro e até mesmo costuram as roupas de palco caso seja necessário.
64
Software gratuito de conversa com áudio e vídeo.
149
Somente quem participou desse processo teve algo feliz para recordar, ver tudo nascer e ser
criado. Para o encenador dessa experiência, tão importante quanto a própria obra, é o
processo transformador que ocorre e que muitas vezes não é concluído e formalizado na
figura de um produto ou de uma obra final.
Nesse sentido, a idéia também se torna importante, pois é a partir dela que surgem as ações,
as sensações, as emoções, a intensidade e a qualidade artística. Tudo nasce gradativamente.
Descrevê-las é uma forma de poder entrar em contato com essa experiência cultural, mas
mesmo assim, nada se aproxima ao fato e à sensação de quem presenciou e vivenciou o
processo de encenação.
150
Amigas em cena, música e movimento
Tanto a luz quanto a música também costuram o espetáculo, unificando o texto e trazendo
sempre uma carga emocional forte. A trilha utilizada para esse espetáculo foi desenvolvida
com total liberdade. Foram selecionados os mais diversos estilos, desde as cantigas
populares de infância a MPB e outros gêneros de música brasileira. O desafio era realizar
um espetáculo com uma linguagem jovem, com alunos/atuantes em cena.
A voz falada para esse teatro de quase mil lugares precisa ser ainda mais projetada e bem
articulada para que todos possam entendê-los. Sendo assim, foram necessários muitos
ensaios de voz. É através dela que se busca uma liberação pessoal para se comunicar com a
platéia e para servir de integração no espaço cênico. Por ser o teatro Glauce Rocha grande e
151
o elenco formado de alunos/atuantes, optou-se pela utilização de dez microfones
distribuídos nas varas de acordo com as marcações das cenas.
E a voz cantada surge como em coro. No entanto, a voz no coro precisa ser trabalhada,
visando uma unidade dentro de suas diversidades. Para o espetáculo, alguns cantores
amadores e profissionais da terra também foram convidados para cantar com eles, como
Karina Marques, Elaine Abreu, Lucas Perdigger, Paxa e Geraldo Espíndola, que subiam ao
palco em todas as nove sessões apresentadas.
152
Trilha e Dança
Essa trilha quando chegou ao teatro estava praticamente pronta, com todas as músicas
gravadas em estúdio, só faltando os ajustes necessários de tempo. Quanto à luz, ao
contrário, começa a ser desenhada no primeiro dia no teatro após o primeiro
“corridão”
65
, com os figurinos. As músicas cantadas por eles foram todas gravadas em
estúdio profissional. Para a gravação, em função do espaço em estúdio, foi preciso
selecionar alguns alunos. Mas, nada os impedia de cantar ao vivo, a gravação servia mais
de voz guia.
A dança, assim como a trilha, precisa ser readaptada dentro do palco quando se chega ao
teatro. Elas servem não para emocionar como para amarrar e/ou comentar uma ação em
algumas cenas.
Por exemplo, em uma das cenas “dança do vermelho”, ela exerceu a função de comentário
da ação da narrativa, complementado com a música. Nessa cena, todos dançaram juntos,
uns no palco, outros na platéia. Era a festa do vermelho no teatro. A música se chama
Vermelho e foi uma homenagem à Festa do Boi, de Parintins (AM), preenchendo o teatro
de sonhos e magia.
65
Corridão é um termo teatral e significa um ensaio direto, sem paradas. Geralmente com ele você define o
tempo do espetáculo.
153
Outras cenas de dança-teatro com todos do elenco ocorreram, como a do jogo teatral do
fichário da Spolin, Caça Gavião (ficha A18). Eles fazem uma fila indiana, pondo as mãos
na cintura do outro como se fosse uma serpente e saem pela platéia cantando e dançando,
sob a música infantil essa é a história da serpente que desceu do morro para procurar o
pedaço do seu rabo”. Simultaneamente, outro grupo faz o mesmo no palco, além de jogar o
jogo.
Vale lembrar também da sica do nosso cancioneiro popular, O pião entrou na roda”.
Desenvolvida fisicamente pela bailarina Mareu Machado
66
, que aproveitou os movimentos
de pião feitos por eles, mas por ela sugeridos e amarrados. O resultado cênico ficou bem
orgânico e naquele momento todos brincavam e rodavam como se fossem piões de verdade.
66
Mareu Machado é bailarina e coreógrafa com especialização em Londres no método Laban de dança. Ela já
foi aluna da Gisela Doria e hoje trabalha e vive no Rio de Janeiro.
154
Os alunos sentados na frente da platéia também levantaram, subiram no palco e dançaram
todos cantando.
Portanto, as coreografias foram criadas simultaneamente ao processo de composição da
personagem. Nesse caso, foi fácil, pois todas as personagens eram crianças, e ser criança é
saber e poder brincar.
Tanto dançar quanto cantar ajuda a buscar uma comunicação mais direta, traz o belo sem
mascarar a realidade. Assim, criou-se mais uma vez uma arte teatral “útil”, que serviu como
plataforma para lançar novas mensagens. E sem esconder a verdade, elas eram apresentadas
155
nas entrelinhas através dos poemas e das músicas. Naquele momento, no palco, a missão
que os alunos/atuantes precisavam passar para o espectador era só uma: emocionar.
Isso representou levar ao espectador o resultado de um estudo e de pesquisas, sabendo que
ele é parte de uma sociedade em permanente ebulição e transformação, que se indigna tanto
quanto se emociona. Por outro lado, essa missão exige total dedicação, esforço,
conhecimento e um trabalho sem limitações, superando problemas financeiros sérios,
fatores comuns a todo processo de montagem teatral profissional. E preocupados em formar
uma equipe coesa, cada vez mais procuramos convidar profissionais especializados, que
trazem equilíbrio e vêm somar qualitativamente força coletiva.
O espetáculo soava como uma grande orquestra de diversos instrumentos, onde todos
pudessem tocar harmoniosamente, neste caso, a luz, música, texto, movimento, cenário,
figurino e atores. No teatro todas as energias precisam ser aproveitadas e somadas. Nada
que um incenso e uma “reza forte antes do espetáculo não seja capaz de realizar, que
acalme esses Dionísios que perambulam por aí. É por essa razão que para se fazer teatro
precisa haver embocadura, senão não emociona”, como diz o ator e amigo Diogo
Vilela
67
.
A língua trabalhada entre os alunos/atuantes era de denúncia da situação atual, como forma
de protesto e de constatação da estagnação do sentimento comum do povo brasileiro. Mas
também de denúncia das questões regionais latentes, sem aceitar o limite provinciano,
criando uma visão universal como uma linguagem de vanguarda, sem perder o caráter
experimental. Uma linguagem que unificasse as particularidades de interesse do espectador,
universalizando-as na medida em que pudessem satisfazer todas as classes sociais, até as
camadas mais incultas e vastas da população.
Veio à memória uma entrevista concedida por um pai no ato da matrícula daquele ano: eu
antes via na TV e achava que o teatro era chato, mas hoje eu gosto de ir ao teatro e
assisto a todas as peças do meu filho”. A lição parece muito nítida: é preciso fazer teatro
para o povo, o que todos sabem, mas são poucos os que conseguem ou querem fazer.
67
Diogo Vilela é ator e encenador .
156
O fato de se apresentar espetáculos gratuitos também não garante platéia, o que garante
mesmo é “o boca a boca”, o bom espetáculo. E isso é mágico. A cada novo espetáculo
nunca é possível prever se o espectador vai gostar, por isso precisa sempre ser bem
trabalhado. Não podemos subestimar a platéia, o espectador tem suas exigências e não é
possível saber também sob quais circunstâncias ele estará assistindo. O fazer teatral requer
uma pesquisa permanente, e pesquisar, nesse sentido, é também buscar uma historicidade
que permita saber do que, como e para quem se fala. O termo ‘historicidade’ é usado por
Brecht e, segundo Pavis
68
, ele coloca em jogo duas historicidades: a da obra no seu
contexto e a do espectador nas circunstâncias em que assiste ao espetáculo. A preocupação
com o fazer teatral é com os dois: a obra e o espectador.
68
Pavis; 1999, 197.
157
Prazer em começar
Quando a temporada começa, geralmente de uma semana, todos vão ao teatro, e o clima
muda. Vive-se entre as nuvens e as horas passam correndo com os ensaios, montagens,
afinamento de luzes, colocação de gelatinas, prova de figurinos, colocações de adereços nas
coxias, afinamentos e aquecimentos de voz, massagens no palco, entrevistas, gravações no
estúdio, fotos e um “amarfanhado” de novas emoções. Durante a temporada, novas regras
de atitudes passam a ser respeitadas, regras que foram estabelecidas e criadas por eles no
período dos ensaios, em função das últimas experiências da peça - “boas ou ruins” -
apresentada no ano anterior. Não são tão gidas com as do TAM
69
, mas com a mesma
veracidade e intensidade nas suas ações. Foram as seguintes:
69
TAM (teatro amador de Moscou), dirigido por Stanislaviski.
158
Normas para o teatro Casa de Ensaio 2006” (NTCE)
- Pontualidade nos ensaios e apresentações (duas horas antes)
- Respeito ao próximo
- Respeitar os coordenadores dos camarins
- Respeitar as coisas alheias
- Respeitar os adereços no palco
- Guardar e cuidar seu figurino
- Hierarquia, os mais novos devem respeitar os mais velhos
- Não comer e não beber no teatro
- Não mexer na geladeira dos camarins no que não for seu
- Se quiser, pode levar material de higiene pessoal, como sabonete,
desodorante ou limão, escova, pasta de dente e toalha de banho (às
vezes eles ganham esse material)
- Manter o camarim e banheiro arrumados e limpos
- Proibido balas e chicletes no palco e no teatro
- Evitar conversas nas coxias e não permanecer se não for sua hora de
entrar no palco
- Cuidados para não apagar a luz de serviço da coxia
- Evitar corridas no teatro
- Evitar bagunça no ônibus de volta para casa
- Proibido chupar mangas no teatro (quando é época, sempre existem
uns pés cheios de mangas maduras ao redor do teatro)
- Cuidar das suas maquiagens
- Sexo oposto não pode entrar no camarim sem autorização.
- Proibido ficar depois do espetáculo e dormir no teatro de um dia
para o outro
159
- Não permitir entrada de pessoas estranhas nos bastidores antes e
durante o espetáculo
- Não levar objetos de valor (relógio, bijuterias etc.)
- “Merda” pra todos, respeitar as normas e ser feliz!
E para que tudo pudesse ser cumprido, foram eleitos dois monitores para ajudar nos
camarins masculinos e femininos.
Os cabelos e maquiagens foram feitos pelos próprios alunos. Os produtos de maquiagens
são sempre doados por uma empresa
70
, distribuídos nos dois camarins de acordo com suas
necessidades e números de alunos, sob a supervisão dos monitores. Tanto os meninos
quanto as meninas gostam muito de se maquiar, passar brilho nos lábios, e lápis nos
olhos. Mas muitas brigas ainda acontecem porque sempre some um baton, um lápis, e,
portanto, mais regras surgiram, depois de muitas reclamações junto aos alunos monitores.
Essas conversas sempre acontecem entre um espetáculo e outro ou quando chegam ao
teatro, antes da primeira sessão. Na última, eles saem direto para o ônibus que fica na porta
do teatro, para que não cheguem muito tarde em suas casas.
70
A Pierre Alexander tem sido nossa parceira desde o inicio, com os produtos de maquiagem e de higine
pessoal para todos durante nossa temporada de uma semana no teatro.
160
Mas no dia do ensaio geral, o clima é sempre um pouco tenso e tudo fica mais difícil e
cansativo, é preciso haver muita disciplina e paciência. Fora que a adrenalina de todos está
em cima. O ensaio geral no teatro costuma ser um “desastre”, parece que nada ficará no
lugar. Mas, passadas essas etapas e em seu tempo as cores, as formas, os sons, os
movimentos e o texto vão interagindo com o elenco. Desse modo, vai-se formando ao final
dos últimos dias de ensaio, e com a permissão dos “Deuses do teatro”, uma obra de arte
pronta para ser apresentada ao espectador.
Esse espetáculo ficou acabado mesmo no último dia da temporada, que a cada nova
apresentação novos detalhes eram inseridos à obra.
161
Atingir uma verdade cênica com crianças não é uma tarefa das mais difíceis, desde que se
consiga manter certa espontaneidade e que essa emoção venha de dentro para fora. Mas
eles precisam entender também o que é verdade cênica, pois nada do que fazem no palco é
verdadeiro, afinal de contas, eles estão fazendo teatro. Um bom exemplo de verdade cênica
é comentado por Ortega. Ele diz:
“que os atores podem mover-se e dizer nas formas mais variadas; as
trágicas, cômicas ou naturalistas, mas sempre com a condição
imprescindível, permanente e essencial de que nada do que fazem e
dizem seja “a sério” isso que fazem e dizem portanto, que seu fazer e
dizer é irreal e em conseqüência é ficção, é brincadeira, é farsa.
Conta Kierkegaard que em um circo se produziu um incêndio. O
palhaço foi encarregado de avisar o fato ao público, mas este
acreditou que se tratava de uma palhaçada e morreu
queimado”.(Ortega;1978,35)
Por isso, houve o cuidado de nas horas das brincadeiras “reais” não se perderem em cena,
não se machucar e também em não deixar cair o ritmo do espetáculo.
Estavam assim todos mais uma vez prontos para estrear com corações palpitando e
emoções fluindo. A noite de estréia foi para convidados, uma sensação de nó na garganta,
grande dia, teatro lotado, amigos, familiares, patrocinadores e autoridades. Abre-se a
cortina, tudo é magia e ao fechar o pano, aplausos preenchiam o teatro misturando as mais
diversas emoções.
No dia seguinte à estréia, antes de iniciar a sessão vespertina, sentado na platéia, todo o
elenco com os profissionais envolvidos e coordenados pelo encenador, foram feitos alguns
comentários críticos sobre o espetáculo, quando foram feitos elogios e propostas mudanças
necessárias.
A cada novo dia durante a temporada o espetáculo foi sendo “costurando”. A costura durou
sete dias e o tempo foi exíguo para a montagem de cenário, acerto de figurinos, ajustes de
som, trilha, criação, montagem e afinação de luz. Vale lembrar também que quando a luz
ficou pronta, ela foi apresentada aos alunos/atuantes para que entendessem e tomassem
conhecimento das marcas para não ficar fora da luz ou fora do foco.
162
Era o início de mais uma obra com os alunos, cheia de cores, sonhos e fantasias. Naquele
momento, eles formavam uma grande e única família, o teatro passava a ser a casa dos
alunos. Todos queriam “cirandar” juntos.
Temporada e último dia
Essa temporada foi de nove sessões consecutivas, sendo duas por dia, sempre retomando as
matinês que aconteciam nos teatros dos anos sessenta/setenta, e todas com entrada franca.
A matinê geralmente é apresentada para as escolas, que se organizam com antecedência, e
de preferência da rede pública de ensino da cidade e também para os idosos.
163
Durante a temporada, o elenco era como uma bateria de celular, quando termina cada
sessão, eles cansados pegam o ônibus que os levam para suas casas e no outro dia voltam
“novinhos em folha” e recarregados de novas emoções.
Mas quando chega o último dia, em todos os anos a mesma cena se repete: a energia parece
ser maior e os novos alunos/atuantes e os que vão sair da Casa no ano do espetáculo
choram muito. Uns por emoção do novo e outros por uma despedida verdadeira. E na
platéia, alguns ex-alunos também choram emocionados, relembram suas experiências
felizes sentidas naquele momento mágico que a arte proporciona e que nunca se repete. No
final, última sessão, última apresentação do ano. O que fica? A esperança de que ano que
vem terá tudo de novo.
164
Pão do povo, o espectador
Perceber e conhecer o espectador, como foi dito, representa um papel para essa prática
social de relevante importância, o fazer teatral, um teatro que se propõe ser lúdico,
provocador e questionador. Embora, cada espectador que assistiu ao espetáculo apresente
linhas pessoais de entendimento de acordo com sua ideologia (mas também em termos
ético, moral, religioso e político), algo naquele instante pode ficar.
Gostando ou não, este fazer teatral quer proporcionar um outro olhar, um outro universo,
para cada espectador que o assiste. Este novo horizonte muitas vezes pode ser bem distante
da realidade da platéia, mas é algo que pôde tocá-la e, talvez, transformá-la.
Nesse sentido, percebe-se que o espectador é aquele que tem o olhar não apenas como uma
ação física, mas como algo que ele constrói ao se deparar com a situação e ação
apresentada, neste caso, a dramatização teatral.
Portanto, o espetáculo tem a função de um provocador para novos pensamentos e se
possível para novas ações. E com esse intuito, de ouvir cada vez mais este espectador
71
,
vem sendo feita uma pesquisa espontânea e natural na internet, mais precisamente no Orkut
(rede de relações sociais). Um dos alunos criou a comunidade Casa de Ensaio, e no fórum
postou as seguintes perguntas: Qual foi o espetáculo que você mais gostou? O que você
achou do “Cirandando”?
Percebeu-se que entre os alunos e ex-alunos que responderam à pesquisa, em sua grande
maioria, o que eles mais gostaram foi do primeiro espetáculo em que participaram (a estréia
no teatro, assim como o primeiro beijo, é uma experiência da qual nunca mais se esquece),
mas também daquele na qual sua atuação e do grupo foram mais expressivas.
A Casa alcança hoje uma platéia heterogênea, de todas as condições sociais e intelectuais, e
sem esquecer, claro, daqueles que nunca puderam antes ir ao teatro, em sua maioria aluno
novo ou seus familiares.
71
Já passaram pela Casa mais de 45 mil espectadores durante esses dez anos.
165
Novos desafios
A cada ano se assume publicamente que a construção cênica da Casa de Ensaio vem
bebendo em modelos de práticas ou teorias do fazer teatral observados no trabalho de
mestres como Stanislavski, Brecht, Pina Bausch, Arianne Mnouchkine, Celso, Myrian
Muniz, Spolin, Koudela, Artur Azevedo, Manoel de Barros, Osman Lins, e tantos outros
encenadores, educadores, diretores de cinema, pintores, músicos, bailarinos, poetas,
fotógrafos, intelectuais, artistas. Todos cidadãos sensíveis, que alimentam e dão de beber a
essa fonte inesgotável e instigante que é a Arte Teatral.
Os experimentos durante esses dez anos foram conseqüências de uma evolução
determinada por mudanças na forma de encarar o fazer teatral como espetáculo popular, um
teatro com o povo e para o povo.
166
Tendo como parceiras empresas preocupadas e responsáveis com questões sociais, e tendo
em vista as leis de incentivo à cultura e os prêmios, um novo panorama vem se abrindo ao
teatro no terceiro setor, o que é proposto pela Casa de Ensaio. Embora se constate algumas
vezes certo corporativismo nas esferas políticas, como aspecto negativo.
Nesse sentido, o fazer teatral passa a ser também outra forma de lutar contra a exclusão e a
desigualdade social, principalmente no que se refere aos jovens. Cada um o que pode,
uns dão sangue, outros idéias, outros capital, outros trabalho, outros afagos e muitos ainda
não dão nada. A Casa de Ensaio a utopia, a vontade de mudar o hoje, o agora e utiliza
como ferramenta o fazer teatral.
167
Um trabalho realizado de dez anos consecutivos, mas ainda muito se poderá realizar, pois
ele continua vivo. Histórias contadas para serem construídas, com uma única certeza, o
trabalho não está só, um complexo cultural e social de ONG (organização não-
governamental) caminham juntos. Por outro lado, dez anos, tempo curto para se falar de
experiências pedagógicas teatrais, mas suficiente para imprimir marcas profundas e
mudanças significativas de vida em seus alunos/atuantes e em todos os envolvidos por esse
processo.
Apesar da bibliografia existente a respeito do teatro-educação e sobre as produções
artísticas, ainda há alguns obstáculos para encontrar material sobre a historiografia do teatro
como “arte-transformação” com crianças e adolescentes. Muitos projetos, muitos
experimentos no terceiro setor existem, mas ainda pouquíssimos registros. Desse modo,
espera-se trazer à luz mais um registro que possa contribuir para novos estudos e
experimentos através do teatro espetacular de muitos jovens no palco.
168
Olhar Convexo
Concluir essa pesquisa me faz obter um olhar convexo sobre toda essa experiência teatral
que foi desenvolvida por mim durante esses dez anos e que ainda continuo desenvolvendo
até mesmo nessa narrativa através de suas imagens (2007
72
), que podem contribuir com o
prazer e a importância do coro no palco com muitos jovens. E transformações individuais
ou coletivas que o teatro lhes proporciona através de um exercício de arte contemporânea
viva, atual.
72
Em 2007, o espetáculo encenado foi “ Os amores de Lisbela”. Apesar de não fazer parte dessa narrativa,
algumas fotos foram inseridas para melhor identificar o processo da busca pelo coletivo.
169
A narrativa dessa trajetória com o teatro sócio-cultural que venho desenvolvendo dentro da
Casa de Ensaio, desde o seu início com o Ciclo Maria Clara
73
, em seu primeiro espetáculo,
“Um boi e burro na estrada”, o coro se fazia presente no palco, com os personagens
“passageiros da estrada” e as “floristas”. Mas foi com o decorrer dos anos, a cada novo
espetáculo encenado, é que pude perceber em sua constância o seu verdadeiro papel no
palco. Então, fui em busca de novos conhecimentos para que o coro pudesse adquirir força
e forma no palco. Mas naquela época não sabia como proceder, a única certeza era” falar
em língua de ave e de criança”, como diz o poeta Manoel de Barros.
Portanto, fui seguindo novos passos e a cada peça encenada a minha preocupação em
adequá-los ao palco de forma a satisfazê-los era necessária e urgente. Eu precisava falar em
língua de ave e criança e tentar manter o brilho nos olhos dos meus alunos/atuantes,
precisava mostrar o prazer de se fazer teatro, tanto nos ensaios quanto no palco. O
protagonista não podia ser um, mas todos porque um é nenhum, como já dizia Bertolt
Brecht.
Apresentei aqui alguns passos dessa pesquisa que foram significantes para o entendimento
desse processo intenso de descobertas em prol do coletivo dentro da minha experiência
teatral com cem jovens em cena.
Apontar os artistas que me influenciaram e me ajudaram a entender melhor esse percurso
foi necessário, por exemplo, quando encontro nas obras de Makarenko, e me identifico
quando ele diz que começou a ampliar sua proposta sobre uma educação nova quando
partiu do coletivo para poder dar forma a uma personalidade humana mais livre
74
. Um
professor que ensinou literatura, teatro, poesia, sica e especialmente o valor do trabalho
coletivo a jovens que viviam do crime sem esperar nada da vida
75
. Era isso que eu também
queria fazer naquela época, dar forma a esse coletivo para conseguir obter entre meus
alunos/atuantes personalidades mais livres e mais reflexivas. Segundo Makarenko, para
haver um trabalho coletivo, todos precisam estar envolvidos em tudo o que acontecia em
73
Entre 1996-1998 foram apresentados quatro espetáculo do Ciclo Maria Clara.
74
Makarenko in Capriles, 1989, 76.
75
Idem, 1989, 82.
170
sua colônia, desde lavar suas roupas, cozinhar, guardar os utensílios do refeitório, o
material do dormitório, encenar e estudar.
E no meu caso, dentro do processo do programa “Palco de Experiências”, todos os
alunos/atuantes precisavam estar envolvidos desde as pesquisas para conhecer o autor a ser
estudado até ler e entender o texto da peça, ensaiar, distribuir nas escolas e nos bairros:
filipetas, cartazes, e convites, varrer o palco todos os dias, passar incenso no teatro, cuidar
dos figurinos, dos camarins, dos banheiros, das maquiagens, maquiar os outros, ajudar a
montar o cenário, fazer os lanches, cuidar dos seus adereços nas coxias, ajudar alunos
atuantes em suas trocas de figurinos, construir juntos as normas do teatro, receber o
espectador, atuar e ajudar na ‘desproduçao’
76
. E assim venho fazendo, um teatro onde tudo
é por e para todos.
76
Desprodução é desmontar o cenário, tirar todos os figurinos dos camarins, ajudar a tirar as gelatinas dos
refletores, os banners etc. Ou seja, limpar o teatro para outro grupo poder entrar no dia seguinte. A nossa
desprodução acontece no último dia de cada espetáculo e alguns amigos nos ajudam emprestando seus carros
para carregar todo o material, que é sempre grande. Em 2007, somente as peças de figurino eram
quatrocentas.
171
Outro ponto que contribuiu para a realização desse processo de exercício do coletivo foi
manter a unidade com qualidade entre todos os elementos de um espetáculo. Manter um
espaço cênico em que tudo precisava estar em equilíbrio: luz, figurino, cenário, trilha,
coreografia, vídeo, personagens e texto.
Mas em se tratando de crianças e adolescentes, preciso ainda hoje ultrapassar algumas
barreiras. Por exemplo, como encenar com cem jovens juntos, deixando-os envolvidos e
comprometidos com todo o processo nas mais diversas idades, de dez até dezessete anos.
Mostrar que um simples gesto como abrir e fechar a cortina na hora certa é tão importante
quanto cantar junto ou dançar ou falar junto em cena. Como mostrar que estar na coxia em
silêncio é também estar em cena, é ajudar o outro para que juntos possam fazer teatro.
Mostrar a importância dos ensaios para que não faltem e estar atento às suas falas ou
marcas cênicas. Como assistir um ensaio ou um espetáculo sem conversar com o colega do
lado. Como perceber que sua voz precisa ser projetada para atingir uma platéia de cem ou
de mil lugares.
172
Barreiras como essas e tantas outras ainda são difíceis de ultrapassar, assim como se fazer
entender, em se tratando de muitos jovens no palco. Eles precisam perceber o tempo todo
que o caminho que os leva vai além do prazer de estar no palco para muitas pessoas, mas
também é o do comprometimento com as coisas e com eles mesmos. Mas nessa idade, o
início da adolescência, para quebrar essas barreiras é preciso proceder passo a passo, ano a
ano. Um exercício de cidadania que até os pais não compreendem, quando no meio do
processo os tiram da Casa de Ensaio, colocando-os de castigo porque não vão bem nos
estudos ou por falta até mesmo de recursos financeiros para o transporte ou ainda para os
inserirem em programas de primeiro emprego no mercado de trabalho.
Ainda encontro muitas dificuldades para atingir um resultado coeso sobre a importância do
fazer coletivo, um exercício de ser cidadão. Mas percebi que para exercer uma educação
participativa e democrática é necessário que eles cumpram o curso que a Casa oferece por
pelo menos cinco anos consecutivos. Uma questão que ainda é polêmica e pode gerar outra
pesquisa é saber por que se deve dar a importância devida às artes se nem à educação no
Brasil é dada a importância que merece.
173
Mas no intuito de minimizar algumas barreiras como a da evasão escolar na Casa de
Ensaio, adquirimos como um dos nossos critérios de seleção para os novos alunos estar
com a idade entre dez e doze anos. Critérios esses que também são sempre contestados e,
dependendo do caso, sofrem concessões. Assim, eles podem ficar mais tempo na Casa e se
possível concluir todo o curso.
Mas esse problema da evasão, apesar de atualmente ser menor, ainda acontece,
principalmente com os meninos de quinze/dezesseis anos, que depois de três a quatro anos
de palco na Casa. Depois desse prazo estão desinibidos e seus pais os acham “aptos a
trabalhar” e saem para o mercado de trabalho informal em plena adolescência. Outro
desdobramento para se pesquisar seria: qual é a melhor idade para o jovem iniciar o seu
primeiro emprego.
174
Privilegiar o uso dos jogos teatrais nos processos cênicos contribuiu muito para o processo
de “artetransfomação” que venho desenvolvendo na Casa com eles, pois além de
exercerem a criação coletiva eles se transformam, tornado-se indivíduos mais livres e mais
participativos. E quando as pulsações cênicas partem de um processo de criação coletiva,
como já foi dito, não facilitam as tensões de trabalho como o resultado cênico e
pedagógico passa a ser mais transparente, satisfatório e prazeroso.
Com os jogos teatrais pude mostrar a eles a importância de se brincar para levar a vida, vida
nada cil de muitos desses alunos, mesmo sendo crianças. Pois jogando, a sua
problemática pôde até ser resolvida, além de se tornar uma pessoa mais sensível para lidar
com as questões que enfrentam em seu dia-a-dia. Para mim, executar os jogos teatrais de
Spolin no palco e nos ensaios trouxe mais segurança para o fortalecimento da forma do
coro nas cenas e até mesmo nas suas próprias vidas.
Brincar com os jogos tradicionais e com as cantigas de infância, além de contribuir para o
fortalecimento do coro no palco, recupera uma ação da minha infância que muito me
ajudou no exercício do coletivo. Quando criança, podia brincar com meus amigos
livremente nas ruas. Assim, a Casa de Ensaio passa a ser uma escola de verdade que de
brincadeiras, um lugar onde todos podem brincar e ser o que eles são, ou seja, criança, mas
sem medo.
Outro procedimento que também me ajudou foi trazer os novos alunos/atuantes, aqueles
recém-ingressados na Casa, para assistirem ao espetáculo, sentados nas primeiras cadeiras
do teatro, porque observar em silêncio a magia do teatro também fez parte do aprendizado
coletivo. Pois em sua grande maioria é a primeira vez que vão e fazem teatro.
Misturar idades e conhecimentos em um mesmo espaço cênico tornou-se outro
procedimento adotado como exercício, com muitos e todos juntos. Pois todos os
alunos/atuantes sobem ao palco juntos, o maior aprende com o menor e o menor com
175
maior, assim aprendem assistindo e atuando. Essa metodologia foi aplicada por Vygotsky
em seus métodos de educação com foco no social.
O início de uma dramaturgia específica, a partir de 1999, para as peças teatrais encenadas
no programa “Palco de Experiências” (que ainda desenvolvo), também contribuiu em prol
de um fazer coletivo. Elas trazem muitas vezes linguagens construídas e vivenciadas por
eles em cada novo espetáculo encenado. Pois é através dessa dramaturgia e das minhas
criações artísticas nessas ações cênicas que os pensamentos lúdicos, poéticos, humorísticos
e românticos começam a se desenvolver dentro deles e do grupo.
Essa dramaturgia também auxilia na percepção da importância do seu papel enquanto
cidadão, inserido no contexto
contemporâneo cada vez mais individual e massificado. E
assim também os conduz para o seu desenvolvimento humano, porque as questões
176
políticas, sociais, regionais e/ou universais atuais sempre passam como mote de todos os
espetáculos da Casa. Por exemplo, em “Cirandando” (2006), os autores escolhidos para o
estudo eram alguns poetas brasileiros e os sentimentos, o sonho e a indignação. A questão
levantada era se com tanta corrupção e violência que vem ocorrendo no Brasil, ainda havia
coisas boas para se ver. E então os personagens viajam pelo Brasil em busca das coisas
boas, e as encontram nas músicas e nos poemas. Mostram então que no Brasil ainda existe
algo bom como a arte.
177
Mas com essas experiências e muitas outras inquietações vou analisando, repensando,
estudando e a cada ano sigo criando novos experimentos artísticos para o palco de muitos.
Algumas são resolvidas quando posso juntar as influências que obtive com artistas como
Koudela e seus jogos teatrais, Brecht com seus poemas sociais e o seu método em se
mostrar no palco que estamos fazendo teatro, Viana com o reaproveitamento e a
composição dos muitos figurinos para a construção dos personagens, Mnouchkine com a
força do sagrado, a criação coletiva e a importância em se dizer a influência que obtemos
com os mestres do teatro dos quais nos identificamos, Bausch com seu teatro-dança,
Hortélio com sua cultura de infância, Freire com seu método educacional participativo e
democrático, Barros com o poder de brincar com as palavras e tantos outros artistas que
vou pesquisando. Com o ato de cada um em aprender fazendo vão me ajudando a entender
melhor esse processo de dar forma ao coro, tendo uma experiência teatral sempre com
muitos jovens no palco.
Assim, o “falar em língua de criança” foi fluindo, crescendo, experimentando, até fazer o
coro chegar a ser o protagonista de suas histórias como aconteceu a partir do espetáculo
“Coragem” (2003) e assim sucessivamente: “Vamos Mambembar?(2004), “Noite de Lua
Cheia” (2005) e “Cirandando” (2006) e continuo com Os Amores de Lisbela” (2007). E
ele passa a ganhar forma e força. Portanto, a cada novo ano, novos experimentos são
acrescentados, partindo do ponto zero para a concepção cênica, mas sempre tomando como
base as experiências anteriores vivenciadas.
Portanto, os meus novos aprendizados, enquanto encenadora, vieram também do prazer ao
se criar a cada ano sempre um novo espetáculo, foram 12 em dez anos. Bem como também
da minha alegria em se criar as pulsações cênicas e poder compartilhar com todos os
envolvidos nesse processo artístico e pedagógico alunos/atuantes, artistas e técnicos.
E por fim, envolvê-los nessa experiência teatral poderá contribuir para o estudo do diálogo
do teatro com a educação, tomando como base o percurso do encontro da força e da forma
do coletivo, sempre com muitos jovens em cena, cujos olhos brilham e refletem no palco.
178
Sendo assim, a experiência da Casa segue como a vida, um fluxo sempre inesperado. Em
alguns momentos, ela segue a favor, em outros contra o vento, mas, busca no dia-a-dia
novos alimentos e novas fontes de beber que a levem a continuar desenvolvendo essa arte
teatral com muitos jovens no palco.
Uma preocupação constante foi em entender a força do coletivo, respeitando todas as
diferenças culturais, sexuais, sociais, étnicas e físicas. E dar preferência às crianças e
adolescentes simples de bairros periféricos da cidade de Campo Grande.
179
Ofereci aqui informações gerais que constituem a narração de algumas experiências
significativas, relatando um fazer teatral e discernindo as minhas influências com alguns
mestres. Nesse sentido, tentei mostrar a importância do trabalho coletivo que o “Palco de
Experiências” vem desenvolvendo. E o reconhecimento da importância do papel que o
teatro, o nosso maior mestre, possui na vida desses jovens, alunos/atuantes que me ajudam
a dar vida a esse fazer teatral verdadeiro e coletivo.
Cabe ressaltar também que os momentos aqui narrados representam dez anos da Casa de
Ensaio, com foco em um dos seus programas, o “Palco de Experiências”. O objetivo do
programa é permitir e disseminar o uso das Artes Cênicas no palco, como uma atitude
proposta pelas diversidades artísticas para que o aluno/atuante, nesse caso a
criança/adolescente, descubra através do teatro o caminho da sensibilidade e possa levantar
os seus gigantes adormecidos, cobertos de sonhos e desejos pessoais. Um fazer teatral com
a intenção de mostrar a importância do coletivo, sempre com muitos alunos/atuantes no
palco.
180
Percebi nesse estudo, como o teatro potencializa a consciência humana ampliando o
horizonte de quem o faz e até de quem o assiste. A magia, nesse sentido, é necessária,
porque o ser humano é o próprio “fazedor dessa magia” nesse mundo globalizado e
contemporâneo. De acordo com Fischer (Fischer, 1980: 20), precisamos dessa magia para
transformar uma realidade, que muitas vezes é cruel e desumana. Ele acredita que a poesia
tira o homem de sua realidade e o devolve mais sensível para ela, enriquecido em seus
sentimentos e em suas ações individuais e coletivas.
De acordo com Freire:
“é a partir das relações do homem com a realidade,
resultantes de estar com ela, e de estar nela, pelos
atos de criação, recriação e decisão, que ele/ela vai
dinamizando o seu mundo, vai humanizando a
realidade acrescentado a ela algo que ele mesmo é, o
fazedor”. (Freie; 198, 43)
São esses muitos alunos/atuantes que no palco se transformam em “fazedores de magia”,
aparentemente frágeis, que dinamizam esse mundo e fazem nascer uma nova qualidade de
relação. Cabe a eles buscar suas referências e se apropriar de suas escolhas. O meu
encontro de artes e desartes com o teatro, através do coletivo, busca o exercício de tocar,
reconhecer, experimentar, criar, fazer, expressar, sentir, sonhar, pensar, errar, refletir,
absorver, decidir, emocionar, agir, refazer e recomeçar do zero a cada novo ano.
181
Formalizar essa experiência, um fazer teatral com muitos, me permite também re-significar
esse grande espetáculo que é o teatro da vida. E sem reconhecer a sua conclusão, essa
minha experiência na Casa de Ensaio prossegue, ora em guerra, ora em paz, envolvendo
um questionamento constante sobre as influências e transformações individuais e coletivas
que ocorrem através do teatro.
O palco tem sido o espaço desses meus experimentos, e como diz Manoel de Barros: se o
nada desaparecer, a poesia acaba”. Assim sigo na Casa, por momentos da vida sonhando,
percebendo as flores, as cores, os sentimentos e subindo até às nuvens a cada novo
espetáculo encenado. Fazendo poesia, ou seja, fazendo o nada com todos. Voar é preciso,
sonhar é possível.
Sendo assim, a descrição que fiz nessa pesquisa durante os anos de 1996-2006 deve ser
vista como um recorte e o encerramento provisório de um primeiro ciclo, de uma primeira
182
década composta por diversas histórias vivas. Bem como perceber os desdobramentos que
possam instigar o leitor ir atrás com novas pesquisas.
Após conceituar historicamente esse percurso, o presente aqui se torna passado. E como
conhecimento não se transfere, diz Freire, mas se constrói, continuarei construindo.
Através da reflexão e análise desse processo por mim desenvolvido, penso que essa
encenação com cem pode servir como mais um processo de aprendizagem e afirmação
desses alunos/atuantes e poderá contribuir para novas investigações nessa área, onde o coro
nos mostra um único mestre, o teatro.
183
Não há, por fim, uma conclusão que se possa registrar de maneira cristalizada, mas um
caminhar que deve continuar, assim como as perguntas que o gerou. Desse modo, encerro
aqui o relato de uma experiência teatral que teve como base não a construção de estrelas
esvaziadas de sentido, mas a criação de um coletivo, cheio de emoções e contradições
vivas, materializadas por aqueles que normalmente não são vistos, que estão, não por
opção, à margem.
E como diz Barros: “eu penso renovar os homens, usando borboletas”.
184
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“Falar a partir de ninguém faz comunhão com as arvores”
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Livros Grátis
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