V
PIPOCA......
“...comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de
sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer
sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca é um milho mirrado, sub-desenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e
se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria
bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho,
os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso
aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e
colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e
pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura.
O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos
começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o
extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se
transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O
estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma
festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É
muito divertido ver o estouro das pipocas!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não
passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a
gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não
passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e
dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor
jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa
situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder
um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico,
medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso
aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade
da grande transformação.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os
paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era
gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do
Aurélio para confirmar. Com certeza tem uma explicação científica para os piruás. Mas,
no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas ‘piruá’
é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Mas acho que o poder
metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o
fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais
maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: ‘Quem preservar a sua
vida perde-la-á.’ A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não
estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar
na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da
pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o
lixo. Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que
sabem que a vida é uma grande brincadeira”. (Rubem Alves, O amor que acende a lua).