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A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO
Por
Ana Leticia Pereira Marques Ferreira
Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro como
requisito para obtenção do título de Mestre em
Literatura Portuguesa.
Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares
Maleval
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Instituto de Letras
2005
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EXAME DE DISSERTAÇÃO
FERREIRA, Ana Leticia Pereira Marques. A Relíquia
romance neopicaresco vitoriano. Dissertação de Mestrado
em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1º.
Semestre de 2005. 71 p.
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________
Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (Orientadora - UERJ)
______________________________________________________
Profa. Dra. Suely Reis Pinheiro (UFF)
______________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Barcellos (UERJ)
______________________________________________________
Prof. Dr. Sergio Nazar David (UERJ) (suplente)
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Este trabalho é dedicado à Durvalina e ao
Rodrigo, que vivem comigo a real importância de
tudo isso.
Aos meus pais.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora Maria do Amparo Tavares Maleval por ter me apresentado à
Idade Média ainda na Graduação e pelos ensinamentos posteriores, tão importantes e eternos
para mim. Agradeço ainda ao apoio e à solicitude com que sempre me atendeu durante o
curso.
Aos professores que lecionam literatura do século XIX, sem o auxílio dos quais jamais
concluiria minha pesquisa. Agradeço especialmente ao professor Sergio Nazar David, que, em
suas brilhante aulas, faz com que nós, seus alunos, sejamos eternos amantes da literatura e da
cultura vitorianas.
À professora Suely Reis Pinheiro, que, apesar de não me conhecer pessoalmente, não
hesitou em dar a sua preciosa ajuda, através do empréstimo de sua tese Carlitos: a paródia do
herói.
Aos funcionários da Secretária de Pós-Graduação da UERJ sempre prontos a auxiliar,
desde o processo de seleção.
Às amigas Renata e Evânia, ainda da Graduação, que nunca me deixaram desistir...
Aos meus amigos e familiares “do lado de fora” da Universidade, que souberam
compreender as minhas leituras e minhas ausências para que eu pudesse concretizar esse
trabalho.
SINOPSE
A literatura picaresca como um gênero derivado da Idade
Média. A neopicaresca como releitura do gênero original. A
neopicaresca no culo XIX. A divisão d’ A Relíquia em três
aspectos da neopicaresca: religião, trabalho e amor.
SUMÁRIO
Introdução
1. O romance picaresco e suas origens
1.1 A personificação da astúcia
1.1.1 O Lazarilho de Tormes — o pícaro original
1.2 A representação do herói
1.2.1 Sobre o amor
1.3 O cavaleiro medieval e o pícaro
2. A Relíquia — romance neopicaresco no século XIX
2.1 O objetivo do Realismo: a “bengalada do homem de bem”
2.2 A Relíquia e a recepção da crítica
2.2.1 A classificação d’ A Relíquia como Neopicaresca
2.2.2 Neopicaresca: nova paródia do cavaleiro medieval
3. Aspectos fundamentais da Neopicaresca
3.1 A religião e o trabalho: a moral no século XIX
3.1.1 A Relíquia: dinheiro e religião
3.2 A traição do ideal erótico burguês
3.2.1 Imagens queirosianas da perdição
4. Conclusão
5. Referências Bibliográficas
FERREIRA, Ana Leticia Pereira Marques. A Relíquia
romance neopicaresco vitoriano. Dissertação de Mestrado
em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1º.
Semestre de 2005. 71 p.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é uma leitura da obra A Relíquia, de
Eça de Queirós, sob a ótica da picaresca. Sabemos que a
picaresca foi um gênero surgido na Espanha do século XVI, mas
consideramos uma hipótese de possível recriação do gênero no
século XIX.
Observaremos as origens do romance picaresco e sua relação
com a literatura medieval. Posteriormente, veremos as condições
socio-econômico-culturais para a concretização do gênero no
século XIX. A Relíquia será analisada como um romance
neopicaresco vitoriano em três aspectos básicos para o gênero
picaresco e a sociedade da época: a religião, o trabalho e o amor.
Palavras-chave: Eça de Queirós
A Relíquia
Romance Picaresco
Século XIX
FERREIRA, Ana Leticia Pereira Marques. A Relíquia
romance neopicaresco vitoriano. Dissertação de Mestrado em
Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1º. Semestre de
2005. 71 p.
ABSTRACT
The objective of this project is a lecture of the book A Relíquia,
by Eça de Queirós, from the perspective of picaresque. We
know that the picaresque was a existing genre in Spain’s 16
th
century, but we consider a possible new creation of the genre in
the 19
th
century.
We will notice the picaresque origin and its relation to medieval
literature. At a later stage, we will see the social, economic and
cultural conditions to the genre takes place in the 19
th
century. A
Relíquia will be analyzed like a Victorian new picaresque novel
in tree basic aspects for the picaresque genre and for the
Victorian era’society: religion, work and love.
Key-words: Eça de Queirós
A Relíquia
Picaresque novel
Nineteen century
“não olhes ao que possam dizer, mas ao que te
importa, ou seja ao teu proveito.”
Fala do arcipreste em Lazarilho de Tormes
“Quem deseja ler na arte um mundo melhor confessa,
implicitamente, a negatividade do real; quem, na arte,
insiste na negatividade, espera dela consolo e
superação.”
Flávio R. Kothe
INTRODUÇÃO
Os romances de Eça de Queirós
1
, expoente do Realismo português no século XIX, têm
sido estudados pela crítica com avidez proporcional à importância de sua obra. Entretanto,
alguns de seus trabalhos que se abeiram do realismo fantástico não são desmerecidos, mas
recebem sempre uma menor atenção em detrimento de outras obras consideradas uma análise
minuciosa da sociedade lisboeta.
Algumas dessas obras, como O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, Os Maias,
são facilmente lidas como de acordo com os objetivos realistas e o contexto social da época.
O que dizer de uma obra como A Relíquia, que sempre foi desprestigiada pela crítica luso-
brasileira apesar do sucesso alcançado no exterior?
Desde a sua publicação, essa obra enfrenta problemas com a crítica, que a rejeitou ainda
no concurso da Academia das Ciências de Lisboa. A maior dificuldade de compreensão por
parte dos estudiosos está presente na complexa classificação imposta ao romance, uma vez
que A Relíquia não se enquadra facilmente em nenhum padrão preestabelecido. Literatura
realista, fantástica, sátira, paródia, pastiche, farsa, picaresca? Como identificar apenas um
gênero em uma obra tão distinta das demais publicadas no período e mesmo das publicadas
pelo próprio Eça? De que forma seria possível relacionar A Relíquia com a picaresca?
A literatura picaresca surgiu com o Lazarilho de Tormes, romance anônimo, de 1554,
na Espanha do Século de Ouro. Analisando os estudos já realizados sobre o gênero,
observamos que estava restrito a um dado contexto socio-econômico-cultural, visto que o
pícaro, personagem principal, segue um determinado conjunto de características para
participar de uma jornada própria em busca da ascensão social.
Tendo em vista a semelhança de comportamento entre o pícaro original, Lázaro, de
Lazarilho de Tormes, e Teodorico Raposo, de A Relíquia, vários críticos, como Manuel da
Costa Fontes (1976: 30) e Alberto Machado da Rosa (1963: 206), não hesitaram em
classificar a obra como picaresca. Contudo, Carlos Reis, um dos maiores pesquisadores da
1
Eça de Queirós nasceu em 15 de novembro de 1845, em Póvoa do Varzim, Portugal, filho natural de Jode
Almeida Teixeira de Queirós e Carolina Augusta Pereira de Eça. Aprendeu a ler e a escrever com um padre e
freqüentou, posteriormente o Colégio de Nossa Senhora da Lapa. Forma-se em Direito pela Universidade de
Coimbra em 1866, mas no mesmo ano começa a escrever para o jornal Distrito de Évora; logo consolidaria
sua carreira literária. Morreu em 16 de Agosto de 1900, em Paris.
Para maiores informações, consultar bibliografias queirosianas: SIMÕES, João Gaspar. Vida e Obra de Eça de
Queirós. Lisboa: Bertrand, 1980., MAGALHÃES, José Calvet. Eça de Queirós: a vida privada. Lisboa:
Bizâncio, 2000.
obra de Eça de Queirós, no que diz respeito a A Relíquia, refuta essa classificação,
indicando a restrição encontrada no contexto do século XIX, que em nada se pareceria com o
contexto original do gênero, no século XVI.
Para resolver esse impasse e por acreditar que em épocas distintas ao Século de Ouro
espanhol houve personagens como o caro Lazarilho (de origem baixa, astuciosos, ociosos,
beirando a marginalidade e interessados em vencer em uma sociedade que apenas privilegia
os ricos e bem nascidos, mas que oferece caminhos escusos para os “mais espertos”),
compartilhamos da opinião do crítico Mario González. De acordo com esse pesquisador da
USP, podemos considerar uma categoria de romances publicados nos séculos XIX e XX, que
não se apresenta exatamente como o original Lazarilho de Tormes, mas que oferece
características semelhantes de seu personagem principal e “pode ser lida à luz do modelo
clássico espanhol”. (GONZÁLEZ, 1988: 41). A essa categoria o autor o nome de
neopicaresca e será essa a terminologia que utilizaremos nesse trabalho.
Iniciaremos pela demonstração da relação parodística existente entre o romance
picaresco e os modelos clássicos de narrativa, como a novela de cavalaria. Para este primeiro
momento, utilizaremos como objetos de análise a primeira obra picaresca, Lazarilho de
Tormes e das suas Fortunas e Adversidades, e narrativas medievais, tendo como fim
evidenciar a relação primeira que há entre o pícaro e o cavaleiro medieval, seu inspirador.
O nosso principal objetivo é apresentar a neopicaresca como um gênero plenamente
integrado ao contexto socio-econômico-cultural do século XIX, provando assim que A
Relíquia não é de forma alguma uma obra desvinculada do que se considera o Realismo
português e o estilo queirosiano.
Para tanto, analisaremos não só o modo como os realistas se viam em Portugal
enquanto movimento literário, mas também a recepção da crítica na época do lançamento do
livro e as visões posteriores que relacionaram a obra à picaresca. De acordo com as
conclusões observadas acerca da picaresca, podemos dividir o romance neopicaresco
vitoriano em três aspectos fundamentais que serão abordados na parte final desse trabalho: a
religião, o trabalho e o amor.
Esses três temas são caríssimos tanto ao Romantismo quanto ao Realismo, estilos
preponderantes no século XIX, e, da mesma forma, são pontos fundamentais para que o
pícaro se apresente como um indivíduo capaz de galgar a escada social. Assim, pretendemos
estabelecer um caminho único entre uma criação próxima à picaresca original e um
romance da época vitoriana.
Tomaremos como base a edição do Lazarilho de Tormes publicada em Alcalá, na
tradução de Arsénio Mota. A versão de Alcalá foi escolhida por ser a única não alterada pela
Inquisição, que ficou incomodada com as referências aos maus hábitos de alguns
eclesiásticos. No que diz respeito à A Relíquia, consideraremos a segunda edição, uma vez
que ainda durante a sua publicação em folhetins na Gazeta de Notícias, em 1887, o livro foi
lançado sem a autorização do autor. A segunda edição, entretanto, foi publicada em 1891 com
a autorização de Eça e é considerada ne varietur.
1. O ROMANCE PICARESCO E SUAS ORIGENS
Durante séculos, a novela de cavalaria foi uma das poucas, senão a única boa
representação literária da Idade Média. Considerado por muitos historiadores como uma
época “negra”, de decadência, o período medieval possuía como contraponto as idealizadas
virtudes dos santos e, o que nos interessa mais de perto, dos cavaleiros belos, corajosos,
determinados, leais e, acima de tudo, defensores das donzelas, dos injustiçados e desvalidos.
É certo que essa literatura, carro-chefe das manifestações artísticas de uma era,
influencia até hoje obras da literatura mundial. Entretanto, o que poderíamos dizer sobre sua
influência no romance picaresco, gênero surgido em 1554 período em que, independente
das manifestações culturais e do pensamento filosófico renascentistas, a organização socio-
econômica já começava a negar o sistema feudal?
A primeira idéia é acreditar que, sendo o romance picaresco uma obra moderna em
relação à produção anterior, esse gênero seria nada mais que uma ruptura, uma negação direta
dos valores medievos. Essa conclusão inicial é lógica, uma vez que o pícaro, personagem
representante da desonra e da ascensão social através de trapaças, mostra-se o inverso dos
ideais cavalheirescos. Todavia, é possível observar nessa oposição características picas da
literatura medieval. Não cabe aqui analisar as origens desse paradoxo ou questionar o fato de
o romance picaresco ser ou não uma releitura da novela de cavalaria. O objetivo é sim,
distinguir o que de tão especial na Idade Média e no herói medieval continuou influindo na
literatura após esse período.
Para isso, será analisada A vida de Lazarilho de Tormes e das suas Fortunas e
Adversidades, não apenas por ser a primeira novela picaresca, mas também porque foi a única
obra do período picaresco espanhol clássico (1552-1646) que não foi influenciada pela
censura da Inquisição. A partir, então, das características observadas no pícaro, será feita uma
comparação com as características do herói medieval para que possamos constatar os aspectos
da tradição medieva que integram as narrativas ditas picarescas.
1.1 A personificação da astúcia — o romance picaresco e seu herói
Para entendermos o romance picaresco, precisamos conhecer seu herói — o pícaro. Esta
palavra, usada inicialmente para designar os ajudantes de cozinha, passou a significar
“desocupado ou subempregado que, sobrevivendo pela astúcia, atingia facilmente a
delinqüência” (GONZÁLEZ, 1992:17). Considerado um anti-herói, o caro é alguém com
origem social baixa, que vive astuciosamente para ascender na sociedade. Para isso, faz o
mínimo de trabalho e o máximo de trapaça possível, sempre se envolvendo em aventuras e
sem, de forma alguma, ter crises de consciência em relação ao “vencido”.
O pícaro é um herói único porque, por meio de suas atitudes, rebaixa a si mesmo, por
desprezo à classe social à qual pertence, mas também rebaixa as classes privilegiadas, por
inveja.
Como seu grande objetivo é ascender socialmente, comporta-se como os ricos — não
trabalha e ostenta uma falsa imagem por conta do vestuário. Vive de aparências porque
este é o caminho mais simples para ser um “homem de bem”, sua meta final. Evidencia
assim não só a sua ilicitude, como também a daqueles que detêm o poder. Esse anti-herói
nada mais é que uma paródia da promoção social burguesa, em uma sociedade que
despreza os valores dessa classe.
É certo que toda obra literária, mesmo que não intencionalmente, reflete a sociedade
em que está inserida, algumas vezes relacionando-se à função de compensação, outras de
crítica etc. Isso fica ainda mais claro quando tomamos por base o que é o pícaro. Torna-se
evidente, através da sua trajetória de vida, a crítica, ou melhor, a sátira a uma estrutura
social específica. Então, é possível concluir que o romance picaresco não pode ser visto
desvinculado do período histórico ao qual pertence.
Para entender esse gênero, é preciso desvendar o sistema social que necessita de um
herói tão astucioso. Para isso, é necessário lembrar que o período que envolve a segunda
metade do século XVI e a primeira do século XVII na Espanha, época do surgimento do
romance picaresco, é considerado o Século de Ouro
2
espanhol, pois é durante esse tempo
que as artes e a literatura, em particular, apresentam grande desenvolvimento. No entanto,
também é caracterizado pela disparidade na distribuição de renda e poder. Conviviam no
mesmo país a riqueza de poucos e a miséria absoluta de muitos, cuja vida se resumia em
um verdadeiro estado de mendicância.
Também é importante ressaltar que o Absolutismo excluía todos aqueles que não
pertencessem à nobreza e a “unificação ideológica dos cidadãos peninsulares” (GONZÁLEZ,
1994: 21) afastava ou bania todos os que não fossem católicos.
Dessa forma, estavam impossibilitados de ascensão social pela organização político-
ideológica os nobres com pouco poder, a burguesia (cuja parcela significativa era formada por
judeus) e, os naturalmente excluídos, escravos e pobres em estado de mendicância, como o
pícaro Lázaro de Tormes.
Os burgueses que conseguiam enriquecer (às vezes por meios escusos) tentavam se
aproximar dos nobres, sendo repelidos. Os nobres sem poder só alcançavam um extrato
superior se fossem grandes conquistadores. Independente dos dois aspectos, o pícaro unirá em
sua trajetória os dois caminhos — a “trapaça” burguesa e a aventura cavaleiresca.
Através da sociedade em que vive,
vemos no pícaro não apenas uma conduta “desviada”, mas uma realização
paralela à da banida ideologia burguesa, a maña que Lázaro de Tormes
enuncia junto com a fuerza, que, em nosso entender, seria a paródia da
conquista cavaleiresca. (GONZÁLEZ, 1994: 33)
2
O Século de Ouro espanhol dura, na verdade, mais de um século e corresponde ao período entre o reinado de
Carlos V (1516) e Filipe IV (1659). Com a extração de ouro e prata da América, a Espanha realizou várias
operações comerciais favoráveis e expandiu seu território, alcançando grande poder econômico e político.
Também nessa época surgiram grandes nomes da cultura como Cervantes, Lope de Vega, Quevedo, Gongora e
Velázquez, entre outros.
Deduz-se que o pícaro não existiria se não houvesse o contexto social no qual está
inserido. É preciso frisar que esse anti-herói não é conseqüência da sociedade, mas sim uma
reprodução de tipos existentes. Constitui, primordialmente, uma sátira em detrimento da
crítica simples e objetiva. O desenvolvimento do pícaro, enquanto personagem, é dependente
das condições econômicas da Espanha dos séculos XVI-XVII e da estrutura imóvel dessa
sociedade, que impedia por meios simples e lícitos a ascensão social.
Seria fácil, portanto, inferir que o romance picaresco ficou restrito àquele contexto
espanhol. Contudo, é possível observar características da picaresca em obras muito
posteriores ao período citado. É certo que o contexto socio-econômico-cultural jamais se
repetiu, mas o que torna as obras posteriores ao Lazarilho de Tormes pertencentes à picaresca
é a “resposta semelhante” do caro às diversas situações (GONZÁLEZ, 1994: 282). Isso
significa que o ambiente não é o mesmo, mas as atitudes o semelhantes. Essas reproduções
do primeiro pícaro podem ser chamadas de Neopicaresca.
Podemos afirmar então, que o romance picaresco (independente de estar relacionado à
primeira obra do gênero) é o contexto socio-econômico-cultural do pícaro, enunciado através
de uma narração crítica, ficcional e autobiográfica das suas trapaças para ascender
socialmente.
1.1.1 O Lazarilho de Tormes — o pícaro original
O Lazarilho de Tormes e das suas Fortunas e Adversidades é o primeiro romance
picaresco de que se tem notícia. Narrativa de autor anônimo e de tradição oral, vem para
transformar o panorama de sucesso absoluto das novelas de cavalaria, uma vez que teve um
bom êxito entre o público e obteve três edições no ano de sua publicação (1554), fato
marcante para a época. Das três edições, Burgos, Antuérpia e Alcalá, apenas a última
encontra-se em sua versão original, aqui analisada. Isso se deve ao fato de, visto o interesse
demonstrado pelo público, a obra ter sido censurada pela Inquisição, uma vez que um dos
principais alvos de sua crítica é o clero.
Esse livro, considerado o primeiro romance picaresco, nada mais é que uma antítese das
novelas de cavalaria — seu protagonista é um anti-herói, verdadeiro representante da desonra,
e possui como principal objetivo a ascensão social, independente dos meios que utiliza.
Seu sucesso pode ser explicado pela situação de imobilidade social vivida pela burguesia
espanhola, que, apesar de ser criticada e satirizada no livro, será seu principal consumidor.
O texto, ao contrário da tradição medieval, é narrado em primeira pessoa, o que nos dá a
visão de mundo do personagem. Lazarilho nasce à beira do rio Tormes, filho de um pai ladrão
e de uma mãe que logo o entrega a um cego para ser seu guia. O responsável por Lázaro o faz
passar fome, o que resulta no desenvolvimento das astúcias do protagonista para enganá-lo e
conseguir comer. Do amo cego, Lázaro passa a um clérigo, ainda mais avaro, que descobre
seus pequenos furtos e o despede. Então, se torna criado de um escudeiro, que vive de
aparências e acaba sendo sustentado pelo próprio Lázaro. Após a fuga de seu amo, o herói (ou
melhor, anti-herói) passa a ser criado de um frade pouco confiável e, logo depois, de um
buleiro trapaceiro. Por fim, Lázaro passa a vender água para um capelão e já se considera um
“homem de bem”, por vestir-se melhor. Procurando ascensão social, consegue ser pregoeiro,
ofício no qual conhece um arcipestre. Este religioso casa Lázaro com uma criada sua para
encobrir a relação clandestina que com ela mantinha e parecer bem perante os fiéis e a
sociedade.
Dessa forma, o protagonista, caracterizado por sua total falta de honra, serve ao
propósito da obra, de desvendar a desonra de uma sociedade de aparências. A crítica
efetivada se destina à hipocrisia dos homens, em especial dos eclesiásticos e do próprio
escudeiro, que não admite ser pobre e ostenta uma aparência falsa. Todavia, o principal
aspecto crítico de Lazarilho está no fato de o protagonista não se reconhecer como uma
reprodução do sistema, visto que durante sua vida trapaceia tanto quanto seus amos. Mente,
finge, comporta-se sempre de maneira imoral em benefício próprio, buscando em todas as
situações tirar proveito particular. Não se pode dizer que seja inteiramente mau, mas também
não é apenas vítima de uma sociedade que o fez miserável. É, sim, limitado moralmente como
a sociedade criticada pela obra, uma vez que almeja, a todo custo, uma situação de remediado
conforto e sempre tenta driblar as suspeitas da sociedade local sobre seu casamento, tão
hipócrita como toda a sua trajetória.
O que faz o Lazarilho ser tão interessante é o fato de vencer escudado na hipocrisia
alheia, já que, se tenta acabar com as desconfianças sobre seu casamento, também se beneficia
da situação, vingando-se na certeza de que é o único realmente favorecido, comodamente
amparado pelos olhares complacentes da sociedade.
Tendo em vista a vida do pícaro Lázaro, cuja imoralidade e desonra o tornam tão
diverso do cavaleiro medieval, é de grande importância compará-los para que possam ser
observadas as oposições entre ambos.
1.2 A representação do herói
Como é sabido, a imagem de herói existente na Idade Média cabe ao cavaleiro. Até o
final do século IX, a Cavalaria era um “grupo social bastante próximo da aristocracia rural
originária da nobreza carolíngia” (COSTA, sd: 1), trabalhando para esta aristocracia.
Entretanto, nos séculos subseqüentes, os cavaleiros ascenderam e tornaram-se detentores de
terra, apesar de em alguns lugares, como em Portugal, continuarem a ser vistos como uma
“camada mais baixa da nobreza” (COSTA, sd: 1). De qualquer forma, continuaram a existir
cavaleiros que mantinham relações de vassalagem com seu senhor, justificadas através do
serviço militar oferecido pela Cavalaria. Essa estrutura feudal era a causa da violência
promovida pelo grupo, que pilhava e agredia para destruir o poder dos inimigos de seu senhor.
Com o fim de proteger todos aqueles que sofriam as agressões dos cavaleiros
(camponeses, principalmente), surgiram várias assembléias para criar uma campanha
denominada Paz de Deus, que visava à cristianização da Cavalaria, numa tentativa de torná-la
mais “civilizada”. Forma-se, então, um ideal cavaleiresco para que as pessoas não-armadas
não fossem agredidas, mas sim protegidas pelos cavaleiros. Uma das representações desse
ideal cavaleiresco é o Livro da Ordem de Cavalaria, de Ramon Llull, cujo objetivo era
iluminar com valores morais e éticos os novos pretendentes à cavalaria, registrando por
escrito os códigos cavaleirescos, a sacralização do rito de passagem (adoubament), a
simbologia das armas do cavaleiro e principalmente as virtudes que o cavaleiro deveria
conhecer e os vícios que deveria evitar para honrar a ordem de cavalaria e se tornar um
cavaleiro de “bons costumes e bons ensinamentos” (COSTA, sd: 01).
Como defensor do Cristianismo “ofício de cavaleiro é manter e defender a santa
católica pela qual Deus, o Pai, enviou seu Filho para encarnar na virgem gloriosa Nossa
Senhora Santa Maria, e para a ser honrada e multiplicada” (LLULL, 2000: 23) , o
cavaleiro deveria ser amado e temido por todos para que a ordem pudesse voltar a vigorar:
Amor e temor convêm entre si contra desamor e menosprezo; e por isso, convém que o
cavaleiro, por nobreza de coragem e de bons costumes, e pela honra tão alta e tão grande
que lhe foi feita por eleição, e pelo cavalo e pelas armas, seja amado e temido pelas
gentes, e que pelo amor retornassem a caridade e ensinamento, e pelo temor retornassem
a verdade e a justiça (LLULL, 2000:15).
Fica clara a intenção de controlar os impulsos por vezes sanguinários dos cavaleiros,
visto que até mesmo do temor nascem duas virtudes (verdade e justiça) e para ser temido, não
necessariamente é preciso ser violento.
São narrados ainda o exame pelo qual passava o escudeiro para sagrar-se cavaleiro, a
forma como deveria entrar na Cavalaria e o significado de suas armas. No entanto, a parte
mais importante do Livro é o penúltimo capítulo, que explicita “os costumes que pertencem a
cavaleiro” (LLULL, 2000: 89). Aqui, Llull opõe as virtudes dos cavaleiros aos vícios
humanos.
Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que são raiz e princípio de todos os bons
costumes e o vias e carreiras da celestial glória perdurável. Das quais sete virtudes são
as três teologais e as quatro cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais
são justiça, prudência, fortaleza e temperança. (LLULL, 2000: 89)
Com as virtudes teologais, o cavaleiro teria sempre em mente que serve a Deus e não
faltaria coragem para vencer os inimigos e ter piedade para com eles e com os desprotegidos.
as virtudes cardeais serviriam para que o cavaleiro fosse temperante, justo e prudente em
sua vida e em suas batalhas, sempre forte para combater os sete pecados capitais. Segundo
Ricardo da Costa, “de todas as virtudes, a fortaleza seria a mais necessária ao cavaleiro, pois
ela combateria a luxúria, a avareza, a preguiça, a soberba e a inveja, pecados mortais que
provavelmente assolavam a cavalaria da época” (sd: 10).
Apesar de utópica, essa é uma obra não-ficcional, que realmente visava à doutrinação
dos cavaleiros. De acordo com a crítica (COSTA, 2000: XXV), o livro de Llull foi
provavelmente escrito entre os anos de 1279 e 1283, o que explica a influência literária
exercida em seu Prólogo. Para justificar os objetivos do manual, o autor narra a história de um
eremita, ex-cavaleiro, que encontra um escudeiro desejoso de tornar-se cavaleiro. Ao saber
que o rapaz não conhecia as regras da Cavalaria, o eremita lhe entrega o livro, que ensina a
honra e a ordem necessárias. Depois de sagrado cavaleiro, o aprendiz do eremita o livro de
presente ao rei, para que todos fossem melhor doutrinados a partir daquele momento. Fica
clara a relação entre o Prólogo d’ O Livro da Ordem de Cavalaria e as novelas do
chamado Ciclo do Graal, iniciado no século XII. As histórias do Ciclo contam a busca do
Graal pelos cavaleiros do rei Artur, para que a prosperidade retornasse a Camelot. A presença
do bosque, do ermitão doutrinador do escudeiro que quer ser cavaleiro, do discurso alegórico,
já foram citadas pela literatura especializada (COSTA, 2000: XXVI) como uma relação óbvia
entre realidade e ficção.
As obras ficcionais também pregavam um bom comportamento do cavaleiro. Talvez a
mais significativa entre as novelas do Ciclo, A Demanda do Santo Graal possuía em comum
como O Livro da Ordem de Cavalaria não apenas o prólogo, mas também o público-alvo e o
contexto histórico.
A versão portuguesa d’ A Demanda do Santo Graal (NUNES,1995) pertencente à
Biblioteca Nacional de Viena, foi traduzida no século XV, provavelmente de um original
francês do século XIII. Essa expoente novela de cavalaria narra a saga de Galaaz, que, apesar
de ser filho bastardo de Lancelote, é o cavaleiro “puro dos puros”, que irá, ao lado de Boorz e
Persival, iniciar a demanda para encontrar o vaso que contém as últimas gotas do sangue de
Cristo, recolhidas por José de Arimatéia. Apenas Galaaz é o eleito, justamente por ser o único
que não comete pecados. Sem questionar sua imensa qualidade literária, é possível afirmar
que a Demanda é um livro extremamente didático, inclusive citado por António José Saraiva
como um condicionador da “educação severa dos filhos de D. João I” (Apud MONGELLI,
1992: 61).
Dentre as razões existentes para a criação de uma obra moralizante na Idade Média estão a voga do
neoceltismo, que poderia significar um perigo frente à fé cristã, a divulgação das Cruzadas e a ascensão da
Cavalaria, que se aproximava cada vez mais de um modelo de confraria religiosa.
Impregnada da atmosfera mística da Baixa Idade Média e às vezes “colada” à realidade
histórica, a Demanda pode ser interpretada como admirável alegoria de uma peregrinatio
nos moldes cristãos das Cruzadas, a ponto de se confundirem os limites entre verdade e
fantasia (MONGELLI, 1992:76).
Logo, em uma obra mesclada de realidade e ficção, não é passível de estranhamento o
fato de a Demanda opor a castidade de Galaaz aos pecados mortais concretizados por seus
companheiros. Assim, o perjúrio, a prevaricação, o adultério e a traição são as causas de os
demais cavaleiros perderem para Galaaz a chance “divina” de encontrar o Graal. A honra de
Galaaz é a razão para ter sido, antes de mais nada, sagrado cavaleiro. Ao saber que Lancelote
fará Galaaz cavaleiro, o ermitão que o acompanha afirma que o pecado do nascimento
não atingiu Galaaz, muito pelo contrário, através do poder divino, ele será o escolhido para
triunfar:
Ca Deus, que te fez nascer em tal pecado como tu sabes, por mostrar seu gram poder, essa
gram virtude te outorgou por piedade e pola bõa vida que tu começaste de tua menenice
até aqui que te dará poder e força e bondade de armas e de ardimento sobre todolos
cavaleiros que nunca trouxerom armas no regno de Logres, assi que tu darás cima a
todalas outras maravilhas e aventuras u todolos outros falecerom e falecerám. E por em
quero todos teus feitos saber que acabarás, que foste feito em tal pecado, u os outros nom
poderom hi aviir, que forom feitos em leal casamento (NUNES, sd: 22).
em busca do Graal, Boorz e Galaaz hospedam-se no castelo do rei Brutos. Lá, a filha
do rei se apaixona por Galaaz e deseja se relacionar com ele, que jamais vê nisso uma
tentação para sua pureza. Apesar da surpresa inicial diante da recusa do herói, ela reconhece
logo no cavaleiro uma figura diferente do imaginário (ou da realidade?) popular:
Nom é ele cavaleiro dos cavaleiros andantes, que dizem que sam namorados, mas é
daqueles que a sua vida e a sua lidice é sempre em penitência, pola qual lhes vem gram
bem pera o outro mundo e perdoa Deus aaqueles que erro houverem feito contra ele. E
per niũa tem, disse ela, nom posso eu acabar com ele o que querria. E, como quer que este
cavaleiro seja ledo pera parecer, grande é o marteiro da sua carne; mas mostra bem que o
seu coraçom pensa em al. Tal a minha carne mizquinha cativa hei quanto pensava. E este
é dos verdadeiros cavaleiros da demanda do Santo Graal e em mal ponto foi atam
fremoso por mim (NUNES, sd: 93).
Lancelote, pai de Galaaz e talvez o único que pudesse ser comparado a ele por ser o
mais famoso e valente cavaleiro do rei Artur, concentra em si mesmo uma ambigüidade que a
Demanda não pode permitir. Não espaço para os vícios, pois pecar contra Deus significa
perder todas as outras virtudes. Em uma visão, Lancelote é “avisado” do triste fim que poderia
ter após trair a amizade de Artur ao se envolver com sua mulher, Ginevra:
E Lançarot, que estas vozes tam dooridas ouvia, foi tam espantado que cuidava a morrer
de medo e rogava aqueles que o levavam que o leixassem ir, mas eles nom querriam, ante
o levavam a ũa cova muito escura e mui negra e chea de fogo que cheirava tam mal que
maravilha era. E el catava na cova e viia ũa gram cadeira de fogo assim acesa como se i
ardesse todo o fogo do mundo. E em meo daquele fogo ũa cadeira em que siia a rainha
Genevra toda nua e suas mãos ante seu peito; e siia escabelada e havia a língua tirada fora
da boca e ardia-lhe tam claramente como se fosse ũagossa candea; e havia na cabeça ua
coroa de espinhas que ardia a gram maravilha e ela meesma ardia de todas partes ali u
siia.
(...)
Ai, Lançarot! Tam mau foi o dia em que vos eu conhoci! Taes sam os galardões do
vosso amor! Vós me havedes metuda em esta grande coita em que veedes; e eu vos
meterei em tam grande ou em maior, e pesa-me muito, ca pero eu som perduda e metuda
em gram coita do Inferno, nom querria que aveesse assi a vós, ante querria que aveesse a
mim, se Deus aprouvesse (NUNES, sd: 159-160).
Em nenhum momento, Lancelote pensa em trair a Cavalaria e seu amor por Ginevra é
puro e verdadeiro, no entanto, não abre mão desse amor e vive em pecado até a morte da
rainha. Além disso, não podemos esquecer que Lancelote é o pai que causa a origem ilícita de
Galaaz, gerado fora do casamento. Assim, observa-se a moral que permeia toda a obra, a
castidade é o único meio de lutar contra os vícios e não perder as virtudes, que levam a Deus e
garantem a salvação.
É portanto lógico que o único verdadeiramente casto, Galaaz, seja o escolhido para
encontrar o Graal. Ainda poderíamos questionar se essa é realmente imagem que se deseja ter
de um cavaleiro medieval. Em outra novela de grande sucesso, publicada em língua espanhola
em 1508 por Garcí Rodríguez de Montalvo, o Amadis de Gaula, cria-se um cavaleiro
totalmente distinto de Galaaz. Apesar de ser honrado e justo, e de defender o reino e a
religião, como o herói da Demanda, Amadis fará também a defesa da mulher amada. A meta
de Amadis é distinta da de Galaaz, pois tem a mulher amada, que é o seu Graal.
Não podemos nunca esquecer que, apesar de Galaaz e Amadis serem exemplos de
moral, isso, contudo, não diminuía o caráter humano presente nas obras de ficção, como nos
mostra o Amadis de Gaula. A idealização não passava perto das situações de batalha, durante
as quais a proteção do reino e da honra da donzela eram justificadas a qualquer preço.
O cavaleiro mostrava-se distinto da pureza de sentimentos e amorosidade que
demonstrava no trato com a mulher amada. A força e a crueldade eram suficientes para
“decapitar a rir o inimigo”, como, por exemplo, no caso de Amadis (MALEVAL, 1992:151).
Essas atitudes diante de um combate não se pareciam com os demais valores dos cavaleiros
ficcionais, entretanto estavam justificadas tendo em conta seu objetivo final.
O que realmente diferencia Amadis de Galaaz é a escolha do seu amor. Ao passo que n’
A Demanda do Santo Graal o amor é espiritual, voltado para a salvação do reino e dos
homens, no Amadis de Gaula, o amor é totalmente material e visa, antes de mais nada, a
realização da carne.
Tendo em vista os objetivos reais de transformação da Cavalaria e sua conseqüente
cristianização, é possível concluir que o ideal de cavaleiro, modelo a ser seguido, era Galaaz
que coloca seu reino e sua religião acima de qualquer outro amor que pudesse haver. Ou
melhor, nem sequer cogita a possibilidade de existir um outro amor que não seja pela Fé e
pelo seu senhor.
1.2.1
Sobre o amor
Ainda que tenhamos em mente o ideal de cavaleiro como Galaaz, que apenas a
religião e a pátria, não é possível deixar de observar que um cavaleiro como Lancelote ou
Amadis via no amor carnal um outro tipo de realização. Assim como o Livro da Ordem de
Cavalaria regia o comportamento moral do cavaleiro em relação ao seu senhor , às batalhas e
ao inimigo, também havia como reger o comportamento amoroso do homem.
Acreditamos não caber novamente o questionamento acerca do que se insere ou não na
esfera do ficcional
3
. Ao tratarmos de Idade Média, é certo que manuais de conduta serão, se
vistos sob os olhos hodiernos, utópicos. Talvez também o fossem naquela época, mas se
existiam é porque havia grande necessidade de delimitar o que poderia ser aceito ou não em
dada sociedade.
Assim, existiam manuais de conduta para o amor (cortês), amor que certamente não se
encontrava no espaço do casamento. Este, via de regra, entre os nobres consistia em um mero
contrato, visando o acréscimo patrimonial das famílias dos nubentes, necessitando de uma
válvula de escape para a sua manutenção. Daí o costume dos solteiros se dedicarem à corte de
uma dama casada de forma respeitosa.
Talvez o mais famoso dentre os tratados seja De Amore, de Andreas Capellanus, escrito
por volta do século XII, com primeira edição datada do século XV. Na tradução de Maria do
Amparo Tavares Maleval, André Capelão afirma que “o amor é uma paixão inata que tem sua
origem na percepção da beleza do outro sexo e a obsessão por essa beleza pelo que se deseja,
sobre todas as coisas, possuir os abraços do outro e, nestes abraços, cumprir, de comum
acordo, todos os mandamentos do amor” (Apud MALEVAL, 1999: 65). É evidente a tentativa
de regulamentar o amor e o sexo como se regulamentava a estada do cavaleiro na Cavalaria.
3
Sobre o caráter ficcional do amor cortês, é interessante ler DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens.
Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
Isso, entretanto, não diminui o caráter idealizado e literalmente cortês do Tratado que
prega, entre outras regras:
I. Deves conservar-te casto para tua amada.
(...)
VII. Busca pertencer sempre à cavalaria do amor obedecendo aos mandados de suas
damas.
VIII. Ao dar e receber os prazeres do amor, deve-se respeitar sempre o pudor.
(...)
XI. Mostra-te educado e cortês a todo momento (Apud MALEVAL, 1999: 65).
As regras estabelecem, dentre outros aspectos, as qualidades da mulher que mereça ser
cortejada e o combate à avareza e a outros procedimentos que pudessem ser considerados
descorteses, como a maledicência e a mentira. O que o Tratado de André Capelão deixa claro
é o amor como um servir, devendo a dama ser superior, respeitada e atendida sempre.
De acordo com Maleval, é claro o caráter fictício do amor cortês, visto que
o amor se colocava, então, literariamente, como um serviço, sendo o trovar um depurada
forma de se prestar vassalagem à ‘senhor’, ora objetivando o alcance de recompensa, ora
de forma abnegada, esta muito comum ente os trovadores galego-portugueses, que
tematizavam preferentemente a coyta em seus cantares (MALEVAL, 1995: 38).
Então, considerando a tendência como mais um aspecto literário da construção da
figura do cavaleiro, temos este que se coloca na figura de vassalo para louvar a mulher, que se
apresenta como suserana. A mulher e o amor são invariavelmente idealizados. No entanto,
nem sempre são necessariamente consumados da forma pudica apresentada no Tratado. De
outro lado da tradição medieval, temos as cantigas de amigo nas quais a mulher nem está
sempre distante do homem, mas pode apresentar um comportamento mais “masculinizado”,
no sentido de buscar a conquista amorosa em vez de esperar ser louvada. A própria novela de
cavalaria mostra regras do amor cortês citadas, principalmente as relativas à castidade em
relação a outras mulheres e à devoção à mulher sendo cumpridas, porém mostra a mulher
como parcela participativa no jogo amoroso. Em Amadis de Gaula, tanto Elisena quanto
Oriana não pensam duas vezes antes de se entregarem a Perion e Amadis, respectivamente,
ainda que fora do casamento.
É importante retomarmos o amor como aspecto do imaginário medieval porque ele será,
assim como as características morais, revisitado por obras literárias posteriores. Os tratados,
assim como as narrativas das novelas de cavalaria eram obviamente doutrinadoras e
serão, justamente por conta disso, desconstruídos nos gêneros que recriam a Idade Média
através de um olhar satírico.
1.3 O cavaleiro medieval e o pícaro — coragem e artimanhas
Como já observamos, as novelas de cavalaria apresentavam o cavaleiro como um
modelo de virtude. Com beleza, coragem e lealdade inigualáveis, o herói era determinado na
defesa do seu reino, da sua religião e da mulher amada, cuja beleza e virtude também eram
ímpares.
O Livro da Ordem de Cavalaria, como um grande manual de conduta que pretendia ser,
apresenta a defesa de valores caros à época, com um fervor (obviamente necessário, tendo em
vista a situação social vivida) que beira o ficcional. É lógico, portanto, que mantenha grandes
semelhanças com obras ficcionais como é o caso da Demanda do Santo Graal. Mas apesar de
ser um manual nem sempre cumprido por todos, estava próximo também do cavaleiro
retratado nas narrativas de linhagens que traçavam a genealogia dos nobres justamente
por essas serem histórias reais (ou com leves toques de ficção para a valorização da
linhagem).
Real ou ficcional, o que há de comum a respeito da vida dos cavaleiros é a coragem e as
artimanhas empregadas para a concretização de um objetivo, ainda que para isso a violência
fosse justificada a qualquer preço.
Para falar do cavaleiro medieval e retomar as características medievas em Lazarilho de
Tormes, foi escolhida a narrativa dos livros de linhagem Miragaia, ou A Lenda de Gaia
(MATTOSO, 1983: 49). Trata-se da história de D. Ramiro, um rei com poucas virtudes (ou
nenhuma) e com um caráter semelhante ao do anti-herói Lazarilho. Esta narrativa possui duas
versões a primeira é do Livro Velho de Linhagens (1260-1270) e a segunda, do Livro de
Linhagens ao Conde D. Pedro (1340)
4
. A edição do Conde D. Pedro será aqui analisada
4
As duas versões diferenm no que diz respeito ao caráter do rei cristão (Ramiro) e do rei muçulmano (Alboazer).
Na primeira narrativa, a esposa de Ramiro é raptada por Alboazer, que quebra um acordo de paz. D. Ramiro
então procura pela esposa nos domínios de Alboazer, mas é denunciado pela própria esposa. No entanto, salva-
se e ainda consegue vingar-se de Alboazer. À esposa que negou-lhe a fidelidade, D. Ramiro a morte e a
criada que o ajuda em sua aventura, o lugar de esposa.
porque, além de ser uma versão mais extensa que a do Livro Velho, traduz de forma mais
explícita o caráter dúbio do rei Ramiro. Este, apesar de depreciado moralmente, tem como
ponto positivo a “honradez” firmada ao vingar o adultério da esposa. É digno de nota que,
ainda que o rei Ramiro não seja um exemplo de virtude aos olhos contemporâneos, na época
em que a narrativa foi escrita, os Maias, descendentes do rei, reclamavam a valorização de seu
nome.
Em Miragaia, D. Ramiro se apaixona pela irmã de um rei mouro e, apesar de ser
casado, faz amizade com esse homem a fim de lhe pedir a moça em casamento. Ao ver seu
pedido negado, D. Ramiro, com a ajuda de um astrólogo que fazia parte de sua comitiva, rapta
a mulher. O rei mouro, Alboazer Alboçadam, para se vingar, rouba também a legítima esposa
de D. Ramiro.
E el levou a moura a Minhor, depois a Leom, e bautizou-a e pos-lhe nome Artiga, que
queria tanto dizer naquel tempo, como castigada e ensinada e compridda de todolos bees.
Alboazer Alboçadam teve-se por mal viltado desto e pensou em como poderia vingar tal
desonra. E ouvio falar em como a rainha dona Aldora, molher de rei Ramiro, estava em
Minhor, postou sas naos e outras velas e foi aaquele logar de Minhor e entrou a vila, e
filhou a rainha dona Aldora, e meteo-a nas naos com donas e donzelas que i achou
(MATTOSO, 1983: 51).
Enlouquecido com a resposta do mouro, D. Ramiro invade seu reino em naus
camufladas de árvores, avisa a seus vassalos que o ajudem quando tocar seu berrante e sai
vestido de mendigo. Através de uma criada, consegue entrar no castelo e encontrar-se com
sua rainha raptada. O rei mouro, advertido pela mulher de Ramiro, resolve matá-lo.
Entretanto, D. Ramiro, para se livrar da morte, mostra-se arrependido e pede um fim
vergonhoso. Engana Alboazer, pedindo para morrer comendo um frango assado, bebendo
um copo de vinho e tocando o berrante na frente de muitas pessoas do reino inimigo. Atrai
assim seus companheiros, mata o mouro e leva consigo sua mulher. Quando sua esposa
reclama da morte de Alboazer, mostrando que este tinha maiores virtudes. O filho de
Alboazer incita então o pai a matar a mãe:
“Esto é demo. Que querees dele, que pode seer que vos fugira?” e el rei mandou-a entom
amarrar a ũa moo e lança-la no mar. E des aqule tempo lhe chamarom Foz d’Ancora. E
Nessa versão D. Ramiro é vítima do mouro, já na segunda, pertencente ao Livro ao Conde D. Pedro, o caráter
dos reis será invertido, apesar de vitória de D. Ramiro, como analisaremos adiante.
por este pecado que disse o ifante dom Ordonho contra a madre, disserom despois as gentes que
por esso fora deserdado dos poboos de Castela (MATTOSO, 1983: 66-67).
Após a morte da rainha, passado algum tempo, Ramiro casa-se com a irmã do rei
mouro.
Apesar de as narrativas de linhagem conterem histórias que se pretendem reais, e por
isso não terem necessidade de apresentar heróis com características ficcionais, como seria o
excesso de virtude presente nas novelas de cavalaria, é preciso lembrar que na Idade Média,
principalmente após o século XI, a nobreza estava intimamente ligada à Cavalaria. Logo, ao
apresentar os valores dos nobres, as narrativas medievais estavam, de certa forma, mostrando
os valores que também deveriam fazer parte da Cavalaria. Ainda que se argumente que nem
sempre Cavalaria e nobreza estiveram associadas, pode-se sempre ressaltar que as narrativas
de linhagem, como Miragaia, deveriam enaltecer suas origens, trazendo aspectos heróicos e
virtuosos de sua história, o que fica evidente através do “caráter romanesco” várias vezes
identificável nos nobiliários
5
, que “revestem-se de interesse literário, com intercalarem
episódios históricos ou lendários no rol das genealogias, evidentemente com intenção
justificadora das mesmas, ou disciplinadoras” (MALEVAL, 1999: 51).
Ora, não é essa virtude que se vê em D. Ramiro, cuja vida pode ser aceita como
heróica se considerarmos a máxima maquiavélica “os fins justificam os meios”. Além de ser
infiel e hipócrita, D. Ramiro denuncia uma tendência anti-cristã ao aliar-se a um astrólogo.
Vejamos, então, o que de comum entre Lazarilho e D. Ramiro, legítimos anti-heróis da
literatura européia, pois é possível delimitar uma série de antíteses entre as narrativas de
cavalaria e o romance picaresco, entre eles:
Narrador onisciente x Narrador-protagonista
Herói x Anti-herói
Honra x Desonra
Moralidade x Imoralidade
Genealogia x Anti-genealogia
Nobreza x Pobreza
5
Vale lembrar que, além do enaltecimento da família, os nobiliários tinham como objetivo dar fim a questões de
ascendência para o cumprimento de transações como a avoenga, o padroado e o casamento. Também tinham
como função transmitir lições de moral, com o intuito disciplinador.
Sobre o tema é interessante ler MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Miragaia. In: Rastros de Eva no
imaginário medieval. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 1995. pp 49-63.
A principal diferença entre os dois gêneros está presente na escolha do narrador — no caso
do romance picaresco, o próprio protagonista, fato justificável pela ausência de moral do
personagem. Uma história de um trapaceiro não seria digna de ser contada por outra pessoa, a
não ser que houvesse um objetivo moralizante, o que, definitivamente, não é o caso do
Lazarilho de Tormes.
Também se deve destacar a imoralidade do pícaro frente ao cavaleiro e o interesse próprio
com que conduz suas aventuras.
A genealogia do cavaleiro e a anti-genealogia do pícaro traduzem sua conseqüente
condição social, fato que diferencia profundamente o objetivo final da luta e das aventuras de
ambos. Se o alvo das narrações são distintos, o que as torna tão próximas?
A coragem para empreender as peripécias é a mesma. Percebe-se em Lazarilho e em D.
Ramiro a mesma força e a ausência de medo — esses protagonistas não cogitam a hipótese de
algo não funcionar, o que nos leva a uma outra característica, a presença de um objetivo. Para
Lazarilho, um propósito maior, a ascensão social. Já em D. Ramiro é possível perceber
como alvo não apenas resgatar a mulher, mas vingar-se do rei mouro.
Observemos agora os seguintes trechos extraídos do Lazarilho de Tormes e de Miragaia.
resolvi fazer na base da vasilha uma fontezinha ou orifício subtil, por onde o vinho
corresse; tapava-o delicadamente com uma bolinha de cera muito delgada, e na ocasião
de comer, fingindo ter frio, refugiava-me entre as pernas do triste cego a aquecer-me ao
nosso escasso lume, e logo que a pouca cera se derretia com o calor, começava a
fontezinha a destilar vinho para a minha boca (Lazarilho de Tormes, 1977: 26).
Aquele logar, de ũa parte e da outra, era a ribeira cuberta d’arvores, e as galees encostou-
as sô os ramos delas, e, porque eram cubertas de pano verde, nom pareciam. El deceo de
noite a terra com todolos seus, e falou com o infante que se deitasse a-sô as arvores o
mais encubertamente que o fazer podesse e per nem ua guisa nom se abalassem ataa que
ouvissem a voz do seu corno, e ouvindo-o, que lhe acorressem a gram pressa
(MATTOSO, 1983: 52).
Apesar da disparidade existente entre os dois casos Lázaro se aproveita do cego,
enquanto D. Ramiro se prepara para ludibriar o rei mouro nota-se a ambição dos
protagonistas em tornar os objetivos realidade, ainda que isso custe enganar os outros. A
“vitória intelectual” sobre os inimigos aos nossos “heróis” um ar de galhofa único e os
torna vencedores maquiavélicos, que em nenhum momento têm crise de consciência em
relação ao vencido. A ausência de virtude é, portanto, a característica mais marcante da
personalidade de Lázaro e D. Ramiro.
Da mesma forma que iludem os inimigos, metem-se em confusões. É justamente esse
espírito de aventura o maior elo entre a narrativa medieval e o romance picaresco. Assim
como o cavaleiro, o pícaro também passa por uma série de façanhas para alcançar seu
objetivo.
Considerando o objetivo e a coragem como probidades, também se pode citar a
esperança presente na resistência à fome e à sede, característica marcante para o herói
medieval. O Lazarilho, cuja história é considerada por muitos uma verdadeira epopéia da
fome”
(MOTA, 1977: 11), tem boa parte de suas aventuras baseada nessa virtude, uma vez
que Lázaro começa a enganar quando seu corpo não pode suportar a fome e a sede.
Igualmente, pode ser observada em Miragaia a resistência, neste caso ardilosa, de D. Ramiro à
fome e à sede quando chega ao castelo, para que mais tarde possa ludibriar o mouro pedindo
para morrer comendo e bebendo. Em ambos os personagens, a resistência terá como
conseqüência a astúcia, levando ao golpe para o roubo de comida na narrativa picaresca, e ao
golpe da falsa morte na narrativa medieval.
De grande importância para os cavaleiros, uma vez que é a sua primeira identificação e
a representação de seus princípios, a roupa também aparece como presença do medieval no
romance picaresco. Lázaro se acha realmente digno da ascensão social e do respeito alheio
quando consegue comprar uma roupa de “homem de bem”.
Tão bem me correu o ofício que ao fim de quatro anos, tendo posto os meus lucros a bom
recato, aforrei o suficiente para me vestir muito dignamente com roupa usada. (...) Logo
que me vi com trajes de homem de bem, disse ao meu amo que tomasse conta do burro,
que eu não queria continuar mais naquele ofício (Lazarilho de Tormes, 1977: 95-96).
É através dessa indumentária que dá o salto para assumir o tão almejado papel de
remediado. Para o Lazarilho, a roupa é o passaporte para a conquista do lugar social reservado
para ele. D. Ramiro também tem um relacionamento importante com a roupa, pois é com seu
traje de mendigo que inicia sua investida contra Alboazer Alboçadam e sua posterior vitória.
Ainda como tradição do medieval, encontramos em ambas as obras uma analogia ao
“simulacro de combate” (COSTA, 2000:33) pelo qual o cavaleiro passava ao entrar na Ordem
de Cavalaria. Se na vida real o cavaleiro levava um soco na nuca ou no rosto para marcar sua
entrada na nova vida, também na ficção um ponto de partida excepcional para a
concretização das peripécias. Para D. Ramiro, o golpe é a inesperada vingança do rei
mouro, visto que o protagonista engana-o com falsa amizade mas em nenhum momento teme
que a recíproca seja verdadeira. Lázaro tem como golpe a real pancada que lhe o cego
com um jarro, quando sente falta do vinho bebido pelo menino. É exatamente que se inicia
a vingança de Lázaro contra o cego e contra a sociedade em geral. Se zaro e D. Ramiro
continham em si o germe da astúcia e a presença de espírito para concretizá-la, é no suposto
“simulacro de combate” que passam a se mostrar como os verdadeiros anti-heróis que
marcarão as narrativas de aventura da literatura européia.
É certo que muito do que de religioso na literatura medieval se deve ao crescente
apelo da Igreja Católica para difundir o Cristianismo. A Cavalaria, tão proclamada
protagonista das narrativas, era, como já foi dito, na verdade um grupo social representante da
pilhagem e de atos violentos. A versão romanceada dos cavaleiros estava a serviço de um
contexto notadamente pedagógico, que deveria ser difundido não como literatura, mas
também como estilo de vida. Por conseguinte, não é justo desvalorizar Miragaia enquanto
narrativa medieval por ter um anti-herói como protagonista. Se D. Ramiro não se porta como
os cavaleiros das novelas, nem como os idealizados pelo Tratado da Ordem de Cavalaria,
podemos supor que se aproxime muito das atitudes de um autêntico cavaleiro da vida real.
A Vida de Lazarilho de Tormes aparece para dividir o público leitor das novelas de
cavalaria, visto que a própria Cavalaria era uma instituição em decadência na época da
publicação da primeira picaresca. Suas principais características, para se opor ao gênero
consagrado, eram o anti-herói, a vitória pela imoralidade e a infidelidade amorosa, que em
nada lembra o amor cortês dos tratados e das novelas. Entretanto, como pudemos observar
através da análise, retoma, ainda que de forma satírica, aspectos essenciais para a construção
de uma narrativa medieval, como a aventura, a coragem, o objetivo, a indumentária etc.
Ainda que tenhamos observado as semelhanças existentes entre um cavaleiro real, D.
Ramiro e o pícaro, é possível afirmar que o romance picaresco, representado aqui por
Lazarilho de Tormes, seja uma paródia não do modelo mais humanizado, mas do herói
virtuoso das novelas de cavalaria, pois censura o contexto socio-econômico-político espanhol
através de uma imitação das novelas, ridicularizando traços como a aventura e a roupa para
ressaltar os aspectos negativos do pícaro, contrários à moral do cavaleiro. É justamente por
ser paródia das novelas de cavalaria que o gênero picaresco apresenta sempre um tom cômico
e galhofeiro, inclusive no que diz respeito ao amor, que deixa de ser uma manifestação de
amor cortês como era para o cavaleiro medieval e passa a uma simples relação de
interesses. Tendo em vista a análise feita de Miragaia, também pode ser dito, sim, que o
pícaro, se não descende diretamente desse nero, tem alguns traços das narrativas de
linhagem. Boa parte das características do romance picaresco existe, portanto, graças às
narrações da Idade Média e, como toda obra realmente moderna, carrega um grande traço de
tradição.
2. A RELÍQUIA ROMANCE NEOPICARESCO NO SÉCULO XIX
2.1 O objetivo do Realismo: a “bengalada do homem de bem”
Sabendo que o gênero picaresco, como já foi falado, estava restrito ao contexto histórico
espanhol do Século de Ouro, é preciso pensar sobre obras posteriores que apresentam traços
da picaresca original. Se o pícaro é uma forma de reproduzir tipos sociais existentes, o que
podemos dizer de um anti-herói realista que também se mostra como uma ficção que se
pretende realidade?
Este é o caso de Teodorico Raposo, personagem de A Relíquia, de Eça de Queirós,
romance muito contíguo ao Lazarilho de Tormes. Vamos então refletir sobre os objetivos da
literatura realista, para compreendermos o que a torna, em certos pontos, semelhante à
picaresca.
Em junho de 1871, ao criticar a “literatura de boulevard” na conferência O Realismo como
nova expressão da arte, Eça de Queirós nega a produção romântica, que seria desvinculada de
ideais sociais. Para o autor, a nova literatura, o Realismo, deveria objetivar a anatomia do
carácter”, cujo objetivo maior é “corrigir e ensinar”.
Eça encerra a discussão sobre a obscenidade das obras realistas — vistas por muitos
críticos como uma desculpa para a divulgação da pornografia e como péssima influência para
a formação moral dos leitores quando liga a literatura à justiça e à ciência. Ele acredita
que, ditando a moral em suas obras (ainda que esta apareça como conclusão final, após uma
série de cenas consideradas impróprias na época), ajudará a propagar a idéia de justiça;
criticando os costumes, auxiliará a ciência e a consciência (mais uma vez o alvo da pregação
da moral), e assim formará uma obra “bela, justa e verdadeira”.
Justamente por isso, Eça passou a ser considerado um discípulo de Zola. Cerca de sete
anos após a Conferência, Machado de Assis iria aproximar a obra do autor português do que
acreditava ser um realismo vulgar. Falando sobre O Primo Basílio, explicita sua opinião sobre
o “realismo sem condescendência” de Eça de Queirós:
Os que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas,
para ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que
isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa
eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores,
exigências e perversões físicas.
(...)
Com tais preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue no extremo de correr
o reposteiro conjugal (ASSIS, 1943).
É certo que a obra de Eça não se limita a cenas eróticas como base de pensamentos
morais. Tampouco a de Machado revela o romantismo ingênuo de O Guarani, aclamado pelo
brasileiro na mesma crítica. Devemos, é claro, ser condescendentes com o autor das
Memórias Póstumas, visto que o brasileiro ainda não havia escrito sua obra da chamada fase
madura, e ainda via com excessivo rigor o movimento realista, no qual, posteriormente,
também buscou inspiração.
Interessante, no entanto, é atentar para a contradição entre o que seriam os romances
românticos e os realistas. Ao se imbuir do dever de difundir a moral, mostrando os vícios e as
degenerações da sociedade portuguesa para contribuir com a formação ética do leitor, Eça
volta aos princípios do romance romântico. Estabelece, assim como no estilo anterior, uma
“tese”: “serão castigados todos aqueles que infringem determinadas regras da moral”; e
apresenta punições severas para esses personagens.
Talvez seja possível afirmar que não muitas modificações, no que diz respeito aos
propósitos da literatura, nas produções do século XIX. Até porque, apesar de absolutamente
diferente do século anterior, a sociedade vitoriana
6
era por demais específica (e de lentas
transformações internas) para que mudanças no contexto social chegassem a alterar
totalmente a temática literária. Portanto, intenção moralizante no Romantismo, intenção
idêntica no Realismo, apenas com abordagens distintas.
A respeito disso, podemos lembrar a carta de Eça de Queirós a Teófilo Braga, em
1878. Comentando sobre O Primo Basílio, afirma:
A sociedade que cerca esses personagens — o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de
temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturarinha acéfala (Ernestinho), o
6
Utilizaremos a partir de agora o termo vitoriano, assim como seus derivados, de acordo com duas das três
concepções encontradas no dicionário Novo Aurélio Século XXI: vitoriano
1
. Adj. 1. Pertencente ou relativo à
rainha Vitória da Inglaterra, ou ao período do seu reinado (1837-1901). 2. Que demonstra a respeitabilidade, o
puritanismo, a intolerância, etc. atribuídos geralmente à classe média da Inglaterra vitoriana (FERREIRA,
Aurélio Buarque de Holanda, 1999: 2081).
descontentamento azedo e o tédio da profissão (Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom
rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações,
destes elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma sociedade
sobre estas falsas bases não está na verdade: atacai-as é um dever.
(...)
merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem. (QUEIRÓS, 1946:
43).
Eça explicita a homogeneidade da formação da sociedade lisboeta, destacando a
raridade que é encontrar alguém ético como o Sebastião do segundo romance do autor. E, tal
qual em um espelho, segundo suas próprias afirmações, deseja reproduzir essa sociedade para
criticá-la. Mais uma vez, pode-se constatar que o intuito é realista, mas o resultado,
romântico. Eça de Queirós, verdadeiro “homem de bem”, considera-se, enquanto autor, figura
primordial para a reconstrução da moral e da ética na sociedade, pois será ele quem dará a
“bengalada do homem de bem”, apesar de não ser romântico, visto que preza o moralismo,
mas também deixa aparecer o que o moralismo não pretende mostrar.
É dessa forma que se irá construir a obra de a, através das teses segundo as quais a
sociedade é formada, extraímos as lições de moral, sempre após a constatação de que o
mundo (e o autor) já desferiu sua bengalada.
Essa lição de moral está, é claro, presente nA Relíquia, obra que trata de hipocrisia
relacionada ao trabalho e à religião, temas tão caros ao século XIX.
2.2 A Relíquia e a recepção da crítica
Essa obra foi, por muitos anos, desmerecida pela crítica. Apesar disso, e do descrédito
da crítica luso-brasileira, em outros países o romance foi exaltado pela mistura de “sátira
aristofanesca, poesia bíblica e romance” (DA CAL, 1970: 7), tanto assim que esse é o livro de
Eça com maior número de edições e traduções.
Queirós, em carta a Ramalho Ortigão, diz que inscreverá o livro no concurso da
Academia das Ciências de Lisboa “não porque haja sequer a sombra fugitiva d’uma
probabilidade mais magra do que eu, de que me seja dado o conto” mas porque deseja “gozar
a atitude da Academia diante de D. Raposo!” (QUEIRÓS, 1946: 136). Possuindo uma cadeira
na Academia, o autor sente-se moral e socialmente impelido a participar com uma obra sua,
concorrendo ao prêmio de um conto então oferecido. Eça, entretanto, sabia que a
Academia o estava preparada para o recebimento de uma nova proposta de narrativa como
é a d’ A Relíquia.
O autor estava certo. Pinheiro Chagas refutou a obra baseado em uma pretensa
“inverossimilhança do sonho de Raposão”. No verbete sobre A Relíquia, do Dicionário de
Eça de Queirós, Campos Matos reproduz a crítica do próprio Pinheiro Chagas,
Quer dizer: “Um pateta moderno, um devasso reles, vicioso e beato, mantido por uma tia no
culto piegas de Nossa Senhora da Conceição e no sagrado horror de saias e fazendo às
furtadelas as suas incursões pelo campo do amor barato” não podia alçar-se às alturas do
sonho da crucificação de Cristo tal como Eça o descreve, devia era dar “um Evangelho
burlesco”, isso é que seria verossímil. (MATOS, 1988: 553).
Pinheiro Chagas, assim como o restante da Academia, acreditava que um personagem
baixo, sem grandes nuances psicológicas, não seria digno da grande Revelação da religião que
ocorre durante o sonho. Segundo sua visão, autor e personagem fundem-se no romance, como
se isso fosse obra apenas de um descuido de Eça. de acordo com o autor d’ A Relíquia, a
obra nunca poderia ser verdadeiramente analisada naquele ambiente.
A RELÍQUIA é certamente um livro malfeito. Às suas proporções falta harmonia,
elegância e solidez; certos personagens, apenas recortados e não modelados, oferecem
uma notação uniforme e esfumada; a forma não tem suficiente fluidez e ductilidade, antes
por vezes encaroça e empasta, e por querer ser grave parece hirta como sucede aos
grandes homens da província, etc., etc.,... Mas estes defeitos, que podem ser sentidos
por um gosto muito afinado na perene convivência das coisas de Arte, nunca poderiam
provocar a condenação dum livro numa Academia que não está povoada de artistas
(QUEIRÓS, sd: v.2, 1456).
O lançamento do livro torna-se uma verdadeira contenda entre o autor e os críticos.
Mariano Pina escreve, em 20 de julho de 1887, uma crítica para a revista A Ilustração sobre o
novo romance, “incoerente mas sempre superior” (PINA, 1887: 210). Assim como Pinheiro
Chagas, afirma que o problema do livro, passível de ser corrigido em uma segunda edição,
É a questão do eu, o ser o livro a conversa na primeira pessoa dum personagem bastante
medíocre e bastante ignorante, recebendo durante sua viagem de Lisboa a Jerusalém
impressões e sensações como só as recebe um espírito superior, e vendo aspectos e
indivíduos através dum prisma como pode possuir e manobrar um artista
maravilhosamente dotado, como o Sr. Eça de Queiroz (PINA, 1887: 210).
Como ressalva, Pina afirma que o terceiro capítulo é uma “obra-prima da arte
escrita” e que a obra “não deixa (...) de ser o precioso invólucro que encerra dentro de si todas
as notáveis e variadas qualidades do talento dum grande artista... E por isso ela é digna do
nosso respeito e da nossa admiração” (PINA, 1887: 211).
Como resposta ao artigo de Mariano Pina, Eça envia-lhe uma carta, publicada
posteriormente em Notas Contemporâneas sob o título A Academia e a Literatura. Afirma
que as razões de Pinheiro Chagas para não aceitar o livro são “comezinhas e miudinhas,
rasteiras e grosseiras, como se, em lugar de falar numa Academia, se achasse conversando
num botequim diante de homens incultos, incapazes de compreender tudo o que é elevado ou
profundo!” (QUEIRÓS, sd: v.2, 1459). Eça de Queirós não concorda com a escolha do
vencedor entre obras extremamente heterogêneas e com o desejo da Academia de receber um
Jesus mais burlesco e um Teodorico mais sério, mas regozija-se, ainda que ironicamente,
por ter sido recusado, já que toda recusa, para ele representa a inovação que a tradição
representada pela Academia precisa para evoluir (QUEIRÓS, sd: v.2, 1458).
Ao ler a carta a Mariano Pina, Pinheiro Chagas levanta-se contra Eça em um artigo que
é replicado em outra carta, que receberia mais tarde o nome Ainda sobre a Academia. Nela,
Eça resume-se a mais uma vez explicar os argumentos da carta a Mariano Pina, uma vez que
Pinheiro Chagas não os havia contestado, mas apenas concluído que a tese de Eça de Queirós
estava cheia de despeito, pois “Tudo isso é ferro por não teres apanhado o conto!”
(QUEIRÓS, sd: v.3, 921).
Logo após o lançamento do livro, em carta a Luís de Magalhães (QUEIRÓS, 1946:
139), a de Queirós também havia afirmado não gostar de seu resultado final, por faltar-lhe
“um sopro naturalista d’ironia forte que daria unidade a todo o livro” e diz que seu único valor
é o “realismo fantástico da Farsa”. Porém, a crítica não conseguiu perceber durante muito
tempo o significado das cartas em que, ao concordar com o julgamento do concurso, Eça
estava ironizando o valor dado a uma instituição incapaz de reconhecer um novo estilo
narrativo. Eça era a inovação que a tradição não conseguia enxergar. Segundo Pedro Luzes,
no verbete (A) Relíquia: do realismo/naturalismo a uma “estética da imperfeição”, do
Suplemento ao Dicionário de Eça de Queirós,
o constante vaivém entre autor e personagem, assim como as variações de tom e estilo, não
resultam da falta de atenção de um autor caquético, mas sim de uma deliberada subversão de
uma forma narrativa precisa, a Realista/Naturalista, que imitava e controlava o conteúdo e a
maneira do que poderia ser escrito. Por outras palavras, Eça libertava-se dos constrangimentos
de uma estética literária prévia que definia, como é apanágio de todos os programas, o que devia
ser escrito e como. (LUZES, 2000: 565)
Essa subversão justifica a difícil classificação da obra, que transita admiravelmente pela
farsa, sátira, literatura fantástica e picaresca. De acordo com ROSA (1963: 337), Eça era
conhecedor da picaresca clássica, leitor dO Lazarilho de Tormes e do Gil Blas, picaresca
francesa. Ainda que nada tenha dito no imbróglio do concurso, reconhecia-se como o primeiro
autor de picaresca portuguesa. Se isto procede, a narrativa medieval portuguesa analisada
anteriormente seria uma sua precursora.
Outros críticos também acreditam que “Eça compreendeu a estrutura picaresca espanhola
muito antes da crítica” da época (FONTES, 1976:40). Todavia, apesar de ser clara a
influência da picaresca na obra, talvez não seja possível afirmar tão categoricamente que Eça
estivesse pensando em seguir essa linha quando escreveu o romance. Se assim fosse, em
alguns de seus escritos encontraríamos menções à picaresca ou à classificação dA Relíquia.
Ainda seguindo essa linha de raciocínio, e considerando como séria a carta a Luís de
Magalhães, Eça não hesitaria em acentuar os traços naturalistas, uma vez que estes são
inerentes ao pícaro, cuja trajetória aventuresca é muito mais interessante que sua origem ou
sua relação com o meio. Até mesmo o episódio do sonho, causador de tantas controvérsias na
crítica, seria melhor explicado pelo autor se fosse apresentado como picaresco, uma vez que é
através dele que a aventura máxima de Raposão a camisa de Miss Mary se realiza e
também porque, para o pícaro, personagem baixo, é comum que acontecimentos inexplicáveis
para seu próprio proveito (como é o caso da Revelação) ocorram.
Contra a classificação da obra como narrativa picaresca, há a crítica de Carlos Reis, que, em
Estatuto e Perspectivas do narrador na Ficção de Eça de Queirós, afirma que “só
abusivamente esta obra pode ser identificada com um tipo de narrativa que se gerou motivada
por condicionalismos socioculturais bem específicos." (1986: 203). Também falando sobre a
relação entre A Relíquia e a narrativa picaresca, Maria João Simões (1996:542) cita a
pesquisadora Alison Weber, que acredita não ser a picaresca um conceito classificatório, uma
vez que obedece a “un sistema de posibilidades, una constelación de estructuras”. É óbvio que o
contexto em que a picaresca original estava inserido não se reproduzirá igualmente em outras
épocas e situações para que haja um perfeito “encaixe” de uma obra nesse gênero. É por isso
que a crítica portuguesa Maria João Simões opta por classificar A Relíquia como uma paródia
da picaresca, porque apresenta apenas uma parte das características do paradigma original
e transforma outras.
No entanto, preferimos aqui a definição do pesquisador brasileiro Mario González:
“propomos o termo neopicaresca utilizado por outros críticos para a literatura
produzida nos séculos XIX e XX e que pode ser lida à luz do modelo clássico espanhol, mesmo
sem guardar uma relação direta com o mesmo” (GONZÁLEZ, 1988: 41).
Compartilhamos de sua visão, ao alegar que sempre que uma “resposta semelhante” do
pícaro a determinadas situações (também semelhantes às originais) e que, por isso, a
denominação neopicaresca abarca o conceito de paródia do herói clássico, cavaleiro, e não
paródia do próprio gênero.
Consciente ou não do gênero que representava, Eça escreveu, de toda forma, o primeiro
romance “picaresco” português, representação digna da sociedade que elegia d. Patrocínio
como um padrão de moral.
2.2.1 A classificação d’ A Relíquia como neopicaresca
É difícil, à primeira vista, falar sobre o gênero picaresco cerca de trezentos anos após
seu aparecimento. No entanto, a mesma exclusão dos não-católicos e a jornada da ascensão
social para os burgueses que caracterizaram a sua época, continua no século XIX. Segundo
Peter Gay,
muitos burgueses nutriam grandes expectativas de riqueza, prestígio, fama ou ascensão social.
Não eram totalmente irrealistas, pois no século vitoriano existia certo grau de mobilidade
social ascendente para os extraordinariamente talentosos, extraordinariamente afortunados ou
extraordinariamente inescrupulosos (GAY, 2002: 29).
Torna-se impossível discutir a ascensão dos inescrupulosos, em uma sociedade que
valorizava a religião, e não lembrar do pícaro. A rede de trapaças e aventuras que garantiam o
final feliz do rapaz sem escrúpulos é talvez muito mais fácil de ser encontrada na vida real do
século XIX, do que na do século XVI. Assim, é natural que a picaresca seja considerada
literatura realista, que dialoga abertamente com o contexto social da época. Cumpre
lembrar que, ainda no século XVIII, o gênero fez grande sucesso na Inglaterra com os textos
de Tobias Smollett, apesar da rejeição francesa. No século seguinte, a picaresca eleva-se
no México, com o primeiro romance hispano-americano, El Periquillo Sarniento.
Teodorico Raposo, protagonista d’ A Relíquia, de Eça de Queirós é a prova de como um
rapaz de origem baixa, criado em meio à burguesia e à religião, poderia ascender por meios
escusos.
Como foi dito, são tomadas como base para a análise da neopicaresca as
características da primeira novela, Lazarilho de Tormes. muito em comum entre o livro
espanhol e A Relíquia, podendo ser aceitas, portanto, como características da neopicaresca o
caráter autobiográfico, a origem baixa e confusa do protagonista e sua infância sem amor,
longe dos pais. Também vale citar a necessidade de ser aceito pelo protetor (a Titi) como
meio de sobrevivência, os ardis que emprega para isso, a ausência de culpa ou
arrependimento, caracterizando total falta de moral. São ainda traços da neopicaresca o
caráter de aventura, o erotismo do protagonista e seu envolvimento com mulheres de
reputação duvidosa e o tom muito mais satírico do que crítico da história.
2.2.2 Neopicaresca: nova paródia do cavaleiro medieval
É certo que o mundo medieval influencia até hoje as obras literárias. Isso porque, além
de a literatura medieva ter sido um dos germes do romance, as virtudes dos cavaleiros e os
princípios defendidos por eles são importantes em qualquer época nas sociedades ocidentais.
Em períodos como o Realismo, em que há uma necessidade maior de mostrar vícios e
imoralidades, os valores medievais são constantes, apesar de serem vistos sob o signo da
paródia. Na neopicaresca, a retomada do medieval é um auxílio parodístico ao tom
moralizante, que permeia a reflexão acerca da realidade.
A Relíquia (1887) irá recuperar características medievais. É importante, portanto,
ressaltar o que de comum entre o pícaro e o cavaleiro medievo, representado novamente
pela narrativa de linhagem Miragaia.
O romance narra a história de Teodorico Raposo, órfão que, ainda menino, fica sob os
cuidados da Tia Patrocínio. A Titi, extremamente religiosa, cria Teodorico com mãos-de-
ferro, o que não impede o desenvolvimento da astúcia do menino. Logo, ele aprende a
manipular o interesse da tia pela religião para conseguir dinheiro e liberdade. Fingindo
devoção, Teodorico, adulto, percorre Jerusalém em nome da tia, em uma missão religiosa.
Traz para d. Patrocínio o que ela considera uma relíquia (falsa, é claro), mas rapidamente se
descobre que, na realidade, a relíquia é uma camisa de prostituta. Sem o apoio da tia,
Teodorico passa ao comércio de falsas relíquias, enganando outras beatas. Casa-se com a irmã
do amigo Crispim, por interesse no dote, e recupera seu prestígio social.
Pela síntese da história de Raposão, podemos antever nele características que em muito
se aproximam das do cavaleiro medieval.
Como nos mostra MALEVAL (2001: 151-154), Raposão, apesar de órfão, tem origem
algo nobre, e “serve” a uma “senhora”, a Titi. Também representa um autêntico cavaleiro ao
ser presenteado pela tia com um cavalo, o que lhe garante maior auto-confiança e uma
pequena mesada, que remete ao soldo do cavaleiro. A especialista também demonstra como
Raposão parodia um peregrino ao fazer sua viagem para a Terra Santa. É certo que esse é um
“universo cavaleiresco-religioso ao inverso”, entretanto, o caráter de inversão não é tão
grande quando a comparação se em relação ao cavaleiro das narrativas de linhagens, D.
Ramiro.
Como um cavaleiro que ia ser admitido na Ordem de Cavalaria, é com um beijo que
Raposão inicia sua trajetória de sobrevivência. Se até então era um menino ingênuo e
amedrontado, após o beijo enojado da tia aprenderá a ser dissimulado:
(...) ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, duma frialdade
de pedra: e logo a titi recuou, enojada.
Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ele e murmurei:
Sim, titi. (QUEIS,1997: 852)
Se inicialmente mostra-se assustado, Teodorico logo irá compreender que aquele é o
início de sua jornada para cair no gosto da tia e, assim, melhorar suas condições de vida. A
ambição, outra característica de d. Ramiro, também será brevemente absorvida por Raposão:
Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do comendador G. Godinho. (...) E tudo
pertencia à titi. Que rica era a titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!...
(QUEIRÓS, 1997: 863)
É lógico que a astúcia está presente em toda a obra. Não é preciso lembrar que
Raposão é um perfeito anti-herói e faz de tudo para conseguir seus objetivos. É exatamente
essa característica que mais o aproxima de personagens como D. Ramiro. A forma como
Raposão engana a tia fingindo ser religioso mostra uma perspicácia poucas vezes vista.
Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas e conheci logo, sem
moderação, todas as independências, e as fortes delícias da vida. (...) Todos os quinze
dias, porém, escrevia à titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe
contava a severidade dos meus estudos, o recato dos meus hábitos, as copiosas rezas e os
rígidos jejuns, os sermões de que me nutria, os doces desagravos ao Coração de Jesus à
tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a minha alma em Santa Cruz no remanso
dos dias feriados... (QUEIRÓS, 1997: 857)
É possível afirmar que a vida inteira de Raposão constitui uma aventura, uma vez que
vive de forma astuciosa e sempre diante da possibilidade de ser desmascarado pela tia ou por
alguns dos religiosos que freqüentam a casa. Sua maior investida é, com certeza, a ida a
Jerusalém. Destaca-se nesse momento da narrativa a maneira teatral pela qual convence a tia
de que precisa fazer a viagem. Assim como o cavaleiro das narrativas de linhagens, reúne em
si artimanha, coragem e ambição:
Fui ao oratório; desmanchei o cabelo, como se por entre ele tivesse passado um sopro
celeste; e corri ao quarto da titi, esgazeado, com os braços a tremer no ar.
Ó titi! Pois não quer saber? Estava agora no oratório, a rezar de satisfação, e vai de
repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de cima da cruz, a dizer-me baixinho,
sem se mexer: “Fazes bem, Teodorico, fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulcro... e
estou muito contente com a tua tia... Tua tia é das minhas!... (QUEIRÓS, 1997: 885)
É importante ressaltar esse fato porque esta é a grande batalha de Raposão. Na Terra
Santa, precisa lutar contra as tentações, representadas pela prostituta Miss Mary. Não há
dúvida de que Raposão gostou muito de cair nessa tentação, mas foi exatamente através dela
que perdeu sua batalha. Não se pode esquecer que, como um anti-herói vitorioso, termina a
história recuperando o prestígio e o dinheiro. Entretanto, sua queda (e o ponto alto da
narrativa) dá-se com a perda dessa batalha.
Também é no episódio da camisa de Miss Mary que Raposão demonstra a sua total falta
de virtude. Após ter sua “relíquia” descoberta e ser expulso, Teodorico se arrepende de não ter
conseguido por em prática um último subterfúgio:
Sim! quando em vez duma Coroa de Martírio aparecera, sobre o altar da titi, uma camisa
de pecado — eu deveria ter gritado, com segurança: “Eis aí a Relíquia! Quis fazer a
surpresa... Não é a Coroa de Espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!...
Deu-ma ela no Deserto!...” (QUEIRÓS,1997: 1032)
Ainda quando alguma vez a Voz da Consciência tente convencê-lo de que seus atos são
imorais, Raposão não se deixa levar pelo arrependimento. Aliás, como acontece na narrativa
de D. Ramiro e no Lazarilho de Tormes, não espaço para remorso, porque o êxito (mesmo
que pequeno e interno, como é o de Teodorico) ao anti-herói uma vitória irônica única e
inalienável. Não como arrepender-se, visto que para esses personagens todos os ardis são
justificáveis como caminhos para o objetivo final, a ascensão social, ou, no caso de D.
Ramiro, a recuperação de um “bem” (a esposa).
Independente da paródia feita aos cavaleiros, que torna o pícaro uma caricatura dos
heróis medievais, o romance picaresco traz em si a base medieval. Não se trata apenas de
temática ou estrutura, mas de um contexto semelhante. Se as condições econômicas e políticas
são distintas, o sistema social é o mesmo. Não importa se estamos falando de Portugal do
século XIV, da Espanha do século XVI ou novamente de Portugal do século XIX. O que
realmente interessa é a reprodução, através dos tempos, de um sistema social que necessita de
herói astucioso.
Se trocássemos os personagens nas obras analisadas, verificaríamos que D. Ramiro,
Lazarilho e Raposão sairiam vitoriosos em qualquer época, porque as sociedades que
promovem a ascensão através da astúcia são muito semelhantes.
É importante retomarmos o medieval para demonstrar que determinadas características
suas continuaram e continuarão presentes em grandes obras da literatura, como
representativas de um caráter humano nada maniqueísta.
3 . ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA NEOPICARESCA
3.1 A religião e o trabalho: a moral no século XIX
O Realismo, apesar de interpretado de forma generalizante como um movimento
literário revolucionário e vanguardista, apresenta, em grande parte de suas obras, um tom
moralizante e até mesmo reacionário.
Representação máxima da burguesia, o Realismo português mostra, sim, a
degeneração presente naquela sociedade, promovendo a valorização da moral e da família.
Para isso, não receia em momento algum tornar-se uma “auxiliar pedagógica” para a
formação dos leitores (e principalmente das leitoras) portugueses.
Entretanto, a literatura realista não se resumiu a manuais de moral. O mais interessante
para uma análise sincrônica é examinar a presença (ou a ausência) da moral, da culpa e de
seus efeitos sobre a consciência, isso em uma época em que literatura e psicanálise ainda não
andavam juntas.
As intensas modificações ocorridas no século XIX, sobretudo nas áreas social e
científica, provocaram uma sensação de mal-estar generalizada. É possível afirmar que a
sociedade vitoriana em geral sentia dificuldades para enquadrar-se na nova ordem social
burguesa.
Com um claro caráter de salvação, as pessoas buscavam uma corrente capaz de analisar
e solucionar as questões éticas e morais da época. Ainda na esteira iluminista, correntes
positivistas conviviam com a criação de novas religiões de cunho místico e, o que é mais
interessante, com o ressurgimento da na Igreja Católica e seu embate filosófico com o
protestantismo. O que havia, na realidade, era uma necessidade de acreditar em algo.
Citando Freud, David explica essa necessidade de religião que o homem sente:
Ela preenche três funções: a de satisfazer a sede de conhecimento do homem; a de garantir
conforto na desventura; a de estabelecer preceitos, proibições e restrições. A religião estaria
entre as medidas adotadas pelo homem para abolir o mal estar “na” cultura. (DAVID, 2003:
39).
A católica era representada em sua maioria pela burguesia, essencialmente pelas
mulheres. Apontada por muitos historiadores como passatempo de senhoras, a religião cristã
do século XIX está marcada pela extrema valorização da filantropia e de rituais como missas
e procissões verdadeiramente muito mais eventos sociais do que práticas religiosas, tanto
para burgueses quanto para trabalhadores.
Parece contraditório que esse revival da religião esteja muito próximo da
secularização, mas na realidade, isso tanto evidencia a necessidade da sociedade daquele
século de agarrar-se (mesmo que ingenuamente) a algo que a conforte, quanto reflete a falta
de senso moral daquele mundo vitoriano, que misturava religião com festas e bebidas.
Falando sobre os encantos que os eventos religiosos provocavam, não podemos deixar
de citar, na obra de Eça, Luísa, de O Primo Basílio e Amélia, de O Crime do Padre Amaro.
Embora diferentemente das “mocinhas românticas”, d. Patrocínio também entrava em transe e
mostrava-se extasiada, perdida em sua fé burguesa quando se tratava dos rituais católicos.
Religião e trabalho sempre andaram juntos. Destacadamente no século XIX — no qual
a ascensão da burguesia comprovava os méritos do trabalho —, o labor era considerado um
meio eficiente de manter a mente ocupada, uma vez que a ociosidade seria o caminho para a
propagação do pecado.
Em O culo de Schnitzler, Peter Gay conclui que a religião sempre foi considerada
uma “polícia interna”. No século vitoriano,
O assunto adquiriu urgência renovada. Os críticos do capitalismo vitoriano insistiram em
dizer que a inoculação das ordens inferiores contra a descrença era essencialmente uma
conspiração capitalista. Afinal, um trabalhador que acredita em Deus te menos
probabilidade de fazer greve e sabotar a maquinaria
(...)
Essa é a teoria do controle social, uma visão hostil das motivações burguesas,
inicialmente aventada pelos próprios burgueses (GAY, 2002: 205).
A divulgação do trabalho como aliado à religião não fazia parte apenas do cotidiano
burguês, mas sobretudo do dia-a-dia da classe trabalhadora. A burguesia valorizava o
trabalho, ainda que não física e ostensivamente como “apoiava” o dos trabalhadores. Essa era
a forma mais óbvia de garantir que, não desejando mais do que Deus poderia dar-lhes, a
classe trabalhadora manter-se-ia para sempre conformada com sua posição social.
Em contraposição a essa difusão do ideal burguês do labor estava a própria
família burguesa, cujos filhos nascidos na prosperidade ganharam ares de aristocracia,
desprezando o trabalho e legitimando o ócio como garantia de “status” social. Nessa categoria
encaixa-se perfeitamente Teodorico Raposo, que não é rico, mas vive, ainda que
aventureiramente, sob a égide da prosperidade da Titi.
Talvez seja possível afirmar que nem sempre os vitorianos estavam interessados em
cumprir as idéias que difundiam. No entanto, é certo podermos dizer que a moral do século
XIX era constituída por crença e trabalho, ainda que fossem exercidos de maneira hipócrita.
Apesar de nem sempre de forma proposital, as características de uma sociedade estão
refletidas em obras literárias. Nada como a farisaica sociedade portuguesa vitoriana para
propiciar um (re)surgimento do romance picaresco.
3.1.1 A Relíquia: dinheiro e religião
Como foi observado, A Relíquia é uma obra neopicaresca, pois possui todas as
características da picaresca clássica. Com isso, torna-se interessante material de estudo para
tratar da moral e da culpa, ou melhor, da sua ausência, visto que todas as peripécias de seu
personagem principal giram em torno desse assunto.
O romance também é lido para analisar o tema porque contém as “bengaladas” de
Eça de Queirós para uma sociedade hipócrita em relação à religião e aos seus próprios atos.
Pertencente ao grupo de obras publicadas na década de 70, A Relíquia traz em si a
“culpabilização do mundo e da consciência” tão presentes nos romances do autor .
Ao tratar da manipulação que Teodoro faz da religião da Titi, Eça parece estar criando
uma tese — anterior à criação das religiões, a Consciência deve nortear o homem para que ele
não se perca no vício e nas mentiras, como fez Teodorico. Apenas a Consciência é capaz de
moralizar, que, apesar de ter sido criado sob bases religiosas, foi exatamente isso o que,
aparentemente, causou o desvirtuamento do protagonista.
Antes de observarmos o desenvolvimento da obra, é importante a reflexão sobre o
destinatário dessa tese queirosiana. Os recentes estudos sobre o masculino apontam o século
XIX como um período de efervescência da demonstração do “ser homem”
7
. É certo que a
maioria das obras do século vitoriano estava destinada às mulheres, apesar da variedade de
temas e da abrangência que possuíam na sociedade burguesa. No entanto, é possível observar
um claro diálogo entre o escritor e seu público-alvo n’ A Relíquia, de Eça de Queirós. Vários
críticos apontaram o caráter epistolográfico da obra (REIS & LOPES, 1987: 35). Fica
evidente ainda no prólogo que se trata de romance com destinatários certos, uma vez que o
objetivo parece ser dar uma “lição lúcida e forte” (QUEIRÓS, 1997: 845).
Acreditando ter atingido a maturidade plena, Raposão explica porque escreve suas
memórias e as apresenta como um meio de aplicar uma lição de moral. É sabido que boa parte
da obra de Eça constitui-se sobre a base de “culpabilização do mundo e da consciência”,
todavia, é importante ressaltar qual é a relação entre o autor e o destinatário dessas
“bengaladas”. Tratando-se A Relíquia da história de um legítimo trapaceiro que faz de tudo
para ascender socialmente, inclusive ludibriar uma tia fanaticamente religiosa, fica óbvio que
o romance não estava destinado a senhoras leitoras do século XIX.
Salientando a filosofia da sobrevivência do pícaro Raposão, chegamos à conclusão de
que sua falta de moral e sua ausência de arrependimento diante dos fatos é conseqüência
incontestável de sua personalidade desviada (em relação ao que a sociedade esperava de um
homem médio burguês do século XIX); desvio este plenamente justificável pela mesma lógica
maquiavélica de sobrevivência. Enquanto o esperado de um burguês é que ele seja um homem
provedor, forte e persuasivo diante da mulher, Raposão é dependente do dinheiro de d.
Patrocínio (aquela que literalmente “patrocina”), fraco e dominado por mulheres.
Torna-se claro, portanto, que Eça, ao criticar a sociedade que legitima o surgimento e
o crescimento de um Raposão, buscava atingir em primeira instância um tipo de homem
burguês que visse as ações e as relações do protagonista com algo astucioso, sim, mas
perfeitamente condizente com a postura de um ambicioso qualquer nascido no século
vitoriano.
Para falarmos das ações da Consciência na vida de Teodoro, é preciso pensar o
protagonista d’ A Relíquia em dois momentos distintos. O Teodorico da infância traz, é certo,
7
A respeito dos estudos sobre a masculinidade no século XIX é interessante ler BARCELLOS, José Carlos.
Homossociabilidade masculina e homoerotismo na ficção de Eça de Queirós. In: SCARPELLI, Marli Fantini &
OLIVEIRA, Paulo Motta (org.). Os Centenários: Eça, Freyre e Nobre. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2001. e
BARCELLOS, José Carlos. Masculinidade como silêncio: revisitando Herculano e a. Revista da ABRAPLIP,
2001.
dentro de si o germe da imoralidade, porém ainda não é o Raposão adulto, que busca o
gozo pleno através de inúmeros ardis.
Logo no Prólogo, o narrador explica o porquê de suas memórias:
Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos
condes de Lindoso), as memórias da minha Vida que neste século, tão consumindo
pelas incertezas da Inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra,
penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte (QUEIRÓS, 1997: 845).
Independente das ações que vai protagonizar na história que começa a contar,
Teodoro acredita-se uma lição de moral “lúcida e forte”. Ainda assim, prefere ser chamado
de profanador de túmulos a adorador de antepassados, e tudo isso para agradar à Burguesia
Liberal. Será a diluição entre as figuras do autor e do personagem? Será que Teodorico
realmente se moralizou? Antes de refletirmos sobre isso, vale lembrar o final do Prólogo,
onde a reafirmação do objetivo realista de moralização: “...nestas páginas de repouso e
de férias, onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas
roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a carapaça vistosa da Farsa”
(QUEIRÓS, 1997: 847).
Teodoro, o menino que cresce sem o amor da mãe e logo perde o pai, chega à casa da
Titi esperando encontrar um amor substituto de mãe. Todavia, descobre na figura da tia
Patrocínio que o mundo não é tão bom quanto lhe parecia, na clássica cena em que recebe da
tia “um beijo vago, duma frialdade de pedra” (QUEIRÓS, 1997: 852).
Quando a tia manda que passe pelo oratório e faça o sinal da cruz, Teodoro tem o
primeiro contato com os objetos de culto religioso. Os santos, a luz das velas e o Cristo feito
em ouro deixam Teodorico deslumbrado. Sua ambição aparece quando pensa que no Céu
católico tudo será como a perfeição digna de um Céu merece: anjos e santos recobertos de
ouro e talvez de pedras preciosas.
Ainda sem conhecer o poder do dinheiro, Teodoro conclui facilmente: “Que rica era a
titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!” (QUEIRÓS, 1997: 863). vai,
entretanto, começar a desfrutar os prazeres que o dinheiro da tia pode oferecer quando, após
anos de internato, passa a morar na hospedagem das Pimentas, onde conhece
sem moderação, todas as independências, e as fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a
delambida oração a S. Luís Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta
que usasse auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez,
esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carme com saborosos amores
no Terreiro da Erva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha,
basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão (QUEIRÓS, 1997: 857).
A maturidade e a virilidade chegam para começar a transformação de Teodoro em
Raposão. MEDINA (1988:556), citando Larbaud, atenta para a proximidade semântica de
“Raposão” e “raposa”, nome que está ligado à idéia de astúcia, ardil. As maiores astúcias
começam quando, apesar da relativa liberdade da qual goza longe de casa, Teodoro escreve à
tia contando sobre os falsos estudos, jejuns e novenas e sofre quando a rotina das práticas
religiosas torna-se realidade nas férias de verão, ao lado da tia. Mesmo tendo percebido que
seu caminho e sua salvação não estão na religião, Teodoro começa a entender que apenas por
meio dela conseguirá agradar a tia, que está presa a uma beatice cega.
Ainda aqui não é insensível. Teodoro conhece Xavier, um parente afastado, e fica
emocionado com a pobreza em que vivem este e a família, composta por uma espanhola, com
quem é amigado, e seus três filhos. Chega a pensar em pedir ajuda à tia, mas quando d.
Patrocínio critica Xavier por suas “relaxações”, vê-se, apesar de tudo, obrigado a concordar,
já que precisa garantir a sua própria sobrevivência.
A conduta hipócrita de Teodoro agrada cada vez mais à Titi, que acredita no seu
puritanismo. Esconde dela seu interesse pelas mulheres, enquanto encontra-se escondido com
Adélia. E faz mais, chega a simular uma carta em que se mostra chateado com um colega que
o convida para “relaxações”. Em diversas situações, finge teatralmente o encontro com as
maravilhas da religião no oratório. Toda essa encenação do protagonista deslumbra a tia que,
como uma boa burguesa, deixa-se levar por adornos de santos e arroubos de transe religioso:
em festas com órgão, e um Santíssimo armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e
boas vozes, e respeito, e imagens de dar gosto, ninguém bate os nossos portugueses!...
(QUEIRÓS, 1997: 882).
A idéia que se tem é que Teodoro não tem problemas com a Consciência. A Culpa é
do mundo, que o deixou sem amor de mãe, órfão, pobre, dependente de parentes. A Culpa é
da Titi, que não soube dar-lhe afeto de mãe, que ama apenas o Cristo de ouro no oratório.
Entretanto, as coisas começam a se modificar ao descobrir que a Titi pretende
deixar a herança para a Igreja e que seu rival é Jesus Cristo em pessoa. Ambiciosamente,
Teodoro deduz que é preciso aumentar sua “fé”:
Estugando o passo pela Rua Nova-da-Palma, eu sentia agora bem claramente, bem
amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção
complicada, com que eu procurara agradar à titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas
nunca fora fervente. (...) Aai a Titi podia dizer com aprovação: exemplar". Era-me
preciso, para herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: "E santo!"
Sim! Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de
tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente desse conjunto
rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era
para ela a Religião e o Céu; (...) Então, evidentemente, ela testaria em meu favor — certa
que testava em favor de Cristo e da sua doce Madre Igreja! (QUEIRÓS, 1997: 872).
É a partir desse momento que os efeitos da Consciência de Teodoro decaem até a
extinção completa, pois passa a agir em nome da ambição. Não visa mais somente à
sobrevivência. Agora quer todo o ouro da titi, ouro que aprendeu a admirar desde a infância.
Uma vez que o Mundo o diminuiu, com sua origem baixa e sua infância triste, resolve gozar
com o que, supõe, sempre lhe faltou. Cada vez que engana a tia não é só para garantir a casa
e a comida que ela lhe dá, mas para ter o gozo antevisto e suposto sem limite.
A Culpa por seus atos não deixa de ser sempre do outro, que não abandona a
posição de vítima quando passa a agir em benefício do gozo próprio. Nunca se pode esquecer
que Teodoro tem uma profissão, cultura e poderia iniciar sua própria vida, sem depender da
Titi. Mas é claro que Raposão sucumbe à tentação. Por que ele não “tocaria a campainha”?
Por que, como ele mesmo diz, não “fartaria o bandulho”? sob a ótica de Eça, a sociedade
não presta, precisa levar uma bengalada; ninguém melhor do que Raposão para recebê-la.
Teodoro então lições de humildade e devoção, pensando em ludibriar a tia até a sua
morte, quando herdaria tudo por ter sido admiravelmente exemplar. Isso ocorre até o
momento em que surge a oportunidade de ir para Jerusalém, representar a tia Patrocínio na
Terra Santa. surge realmente a grande chance do pícaro Raposão trazer a relíquia tão
ardentemente desejada e pedida pela titi.
Assim que chega a Alexandria, tem um caso com Miss Mary, uma luveira inglesa de
reputação contestável, que lhe deixa de lembrança uma camisa de dormir, chamada por
Teodorico de “relíquia de amor”. Um leitor mais desatento pode não se dar conta, mas desde
Eça inicia o paralelismo entre as duas relíquias, ambas profanas e desejadas por Raposão,
ambas causadoras de sua ruína. A relíquia de Mary traz a seguinte dedicatória: "Ao meu
Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" (QUEIRÓS,
1997: 897). Além da importância óbvia que têm as palavras e os objetos na vida do pícaro,
não é possível deixar de relacionar o gozo antevisto de Teodoro com a relíquia da tia e o gozo
com Mary, que irá destruir futuramente o gozo supostamente sem limite sonhado desde a
infância.
Na chegada a Jerusalém inicia-se a desconstrução do ideal religioso burguês vitoriano.
A idéia de santuário sublime, Terra Santa e morada eterna do Cristo adorado pela titi é
demolida pela imagem de uma Jerusalém humana e cheia de “Teodoros” vendendo ridículas
relíquias.
Recusado por uma prostituta, Raposão sente saudades de Portugal,
onde não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota severa e bestial! nenhum
corpo bárbaro fugiria, com lágrimas, à carícia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da Titi,
o meu amor não seria jamais ultrajado, nem a minha concupiscência jamais repelida. Ah!
meu Deus! Assim eu lograsse, pela minha santidade, cativar a Titi!... (QUEIRÓS, 1997:
917)
Ligando sempre o amor ou o sexo (ambos só obtidos através de prostitutas) ao dinheiro
da tia, resolve escrever para ela, dizendo que está à procura da “grande relíquia”, aumentando
ainda mais seu repertório de falsidades ao relatar visões de santos e conversas com imagens,
nas quais d. Patrocínio é sempre louvada.
Ainda não estamos na passagem do sonho, mas Teodoro mostra-se dúbio, como é
comum a todo pícaro:
Obedecendo à recomendação da Titi, despi-me, e banhei-me nas águas do Batista. Ao
princípio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete
de um altar-mor: e de braços cruzados, nu, com a corrente lenta a bater-me os joelhos,
pensei em S. Joãozinho, sussurrei um Padre-Nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica
banheira entre árvores; Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas
sagradas, trauteando o fado da Adélia.
(...)
Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas dessas águas, desses montes, sentia-me
forte — e igual aos homens fortes do Êxodo. Pareceu-me ser um deles, familiar de Jeová,
e tendo chegado do negro Egito com as minhas sandálias na mão
(...)
Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaã este urro piedoso:
Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva toda a Corte do Céu! (QUEIRÓS, 1997: 920)
Em momentos como esse, não é possível saber se Raposão está envolvido no
ambiente religioso que Jerusalém lhe proporciona e deixa-se levar pelos arroubos religiosos
que são comuns a sua tia ou se seus vivas a Cristo são apenas em função do gozo antevisto da
felicidade da tia com a falsa relíquia.
Teodoro, “com um brilho de visitação celeste”, encontra os galhos espinhosos que se
tornarão a futura relíquia. Teme que a falsa coroa de espinhos de Jesus Cristo tenha alguma
virtude verdadeira e d. Patrocínio fique boa dos seus inúmeros males. Segundo Raposão, ele
só “começaria a viver — quando ela começasse a morrer”. Instaura-se o conflito interno
(religioso ou filosófico?) de Teodorico — seriam verdadeiros todos os “ensinamentos” da
Titi? Imagens, relíquias, visões teriam algum significado e poder de decisão sobre o seu
destino? Eça coloca a Religião ao lado da Ciência. É por meio de Tópsius que Teodoro tem a
coragem necessária para forjar a relíquia, uma vez que é o sábio quem lhe garante, com sua
ciência, ser capaz de
afiançar à senhora sua tia, da parte de um homem que a Alemanha escuta em questões de
crítica arqueológica, que o galho que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi...
— Foi? — berrei ansioso.
Foi o mesmo que ensangüentou a fronte do Rabi Jeschoua Natzarieh, a quem os
latinos chamam Jesus de Nazaré, e outros também chamam o Cristo!... (QUEIRÓS, 1997:
925)
Inicia-se então o período do sonho, narrativa que abarca um terço do livro e vai
mostrar a Revelação tão refutada pela crítica. Jerusalém, a cidade da Revelação católica, será
também o templo da Revelação da Verdade, do cristianismo humano e da moral anterior a
qualquer religião.
Teodoro acompanha com Tópsius a prisão de Cristo, a desconfiança da população em
relação aos seus objetivos e à sua castidade. Na casa de Gamaliel, doutor da Lei, aprende que
as virtudes teologais são anteriores a Cristo, fazem parte de rias religiões e constituem o
saber necessário para o bom desenvolvimento da Consciência.
Teodorico, que literalmente desconhece o Cristo católico, irá encontrá-lo “no seu corpo
humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam
os caminhos humanos!...” (QUEIRÓS, 1997:115). Entrará no mesmo transe religioso que
toma conta dos beatos fanáticos como d. Patrocínio:
Estava eu bastante purificado, com jejuns e terços, para afrontar a face fulgurante do meu
Deus? Não! Oh mesquinha e amarga deficiência da minha devoção! Eu não beijara
jamais, com suficiente amor, o seu pé dorido e roxo na sua igreja da Graça! Ai de mim!
(QUEIRÓS, 1997: 946)
Questiona a sua como somente um católico vitoriano faria, relacionando a crença à
imagem encontrada na Igreja, dando importância única a esse aspecto do culto. A mesma
relação entre imagem e pessoa dar-se-á quando Teodoro assistir à crucificação de Cristo.
Então, ansioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta, cravada com cunhas
numa fenda de rocha. O Rabi agonizava. E aquele corpo que não era de marfim nem de
prata, e que arquejava, vivo, quente, atado e pregado a um madeiro, com um pano velho
na cinta, um travessão passado entre as pernas encheu-me de terror e de espanto...
(QUEIRÓS, 1997: 975)
Este é o início da Revelação Teodoro descobre que Cristo não é apenas a imagem
do oratório da Titi. Daquele Cristo, o da imagem, ele não tinha medo, pois durante toda a sua
vida não conteve nenhum significado. o Cristo “verdadeiro”, do sonho, o assusta frente à
desumanidade do mundo, o faz acreditar não no Cristo da religião católica, mas nas virtudes
que ele representa.
Mesmo após o sonho, a mescla de religião (ainda que falsa) e ambição continuam
fazendo parte de Teodoro. Ao entregar as falsas relíquias à Titi, Teodorico diz
Atirei a alma para as alturas, gritei desesperadamente, em toda ânsia do meu desejo:
Oh Santa Virgem Maria, faze que ela rebente depressa! (QUEIRÓS, 1997: 1009)
Após a descoberta feita pela Titi de que a coroa de espinhos era na verdade a camisa
da prostituta, Raposão vai embora de casa, fugido. Passa a vender as falsas relíquias para
sobreviver, e com isso mostra que não tem nenhum arrependimento do que fez. Seu único
desespero é ver-se sem o dinheiro da tia e as mordomias das quais gozava em sua casa.
Questionando-se sobre como os embrulhos teriam sido trocados, Teodoro pensa em
algo de sobrenatural e avista um Cristo crucificado dentro de uma caixa. Inicia um diálogo
no qual acusa a imagem, afirmando que é a desgraça que recebe em troca depois de ter se
compadecido de sua morte no episódio do sonho. O Cristo sai então do caixilho e aponta os
erros de Teodoro suas mentiras e a falsa beatice para a d. Patrocínio, enquanto dormia
com a prostituta Mary em segredo.
Ora, justiceiramente aconteceu que o embrulho que ofertaste à titi e que a titi abriu — foi
aquele que lhe revelava a tua perversidade! E isto prova-te, Teodorico, a inutilidade da
hipocrisia! (QUEIRÓS, 1997: 201)
Chegou o momento da tão esperada bengalada de Eça de Queirós. Teodoro apavora-se
com a Voz, que o persegue e o faz sofrer. É finalmente a hora em que a Culpa o atormenta e
em que a Consciência inicia o seu papel:
Perguntavas-me, há pouco, se eu me não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se
não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro Deus criado pelos
homens... Sou anterior aos deuses transitórios: eles dentro em mim nascem; dentro em
mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem; e eternamente
permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo
esforço de realizar fora de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a
Consciência; sou neste instante a tua própria Consciência refletida fora de ti, no ar e na
luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual, tu, mal-educado e pouco
filosófico, estás habituado a compreender-me... (QUEIRÓS, 1997: 1028)
Essa é a Revelação a Verdade não está nas religiões, mas sim na Consciência, que
deve dirigir o Homem, não simplesmente para que este não infrinja as regras de moral
católicas, mas as da moral necessária para o bom desenvolvimento de uma sociedade. A
Consciência, da qual descendem todas as religiões, é o triunfo do romance de Eça. Talvez seja
mesmo o seu personagem principal, que só aparece no último capítulo.
Teodoro ainda tenta agir como antes. Chega a iniciar uma oração, clamando pelo
“Senhor Jesus, Deus e filho de Deus”, mas a Consciência teve sua ação e seu caminho
agora é tornar-se um homem de bem”, casado, pai, respeitável e até mesmo dono de
mosteiro.
Mas Eça não poderia deixar de mostrar que as crenças cegas estão (ou podem estar)
acima da Verdade. E é justamente disso que se valem os pícaros, como Raposão, para
prosperarem. Teodoro lembra-se que o bilhete de Miss Mary continha as iniciais M.M. e que
ele poderia ter afirmado tratar-se da camisa de Maria Madalena. Estaria assim ainda mais
realizado e por que não o fez? Por que perdeu a sua oportunidade de prosperar?
Porque houve um momento em que me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo
na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu — cria, através da
universal ilusão, Ciências e Religiões. (QUEIRÓS, 1997: 1033)
A Relíquia é farsa, sátira, picaresca; é crítica ao catolicismo da culpa e do castigo, do
fanatismo e da secularização. Reproduz tudo o que a sociedade européia do século XIX queria
esconder sobre a religião, a moral e sua relação com o trabalho e os meios lícitos de ascensão.
Combalida pela crítica, A Relíquia não é certamente a obra-prima de Eça de Queirós,
mas pode ser considerada um marco em sua obra, pois ali assume um estilo narrativo
incomparável a qualquer outra produção portuguesa do século XIX.
É também única a fuga do maniqueísmo, que uma obra satírica é capaz de proporcionar.
Reduzir o romance à validade das bengaladas de Eça ou criticá-lo pelo aspecto burlesco do
protagonista, é desmerecer uma obra que não pára na crítica simples, mas se estende à
reprodução dos efeitos da Consciência no ser humano, anunciando o objeto de estudo tão bem
desenvolvido posteriormente pela psicanálise.
3.2 A traição do ideal erótico burguês
É sabido que a mola propulsora dos atos picarescos é a sociedade sem amor. É por conta
dela que o anti-herói possui uma família instável financeiramente e, após ficar órfão, precisa
trapacear, usurpando as características dos verdadeiros ricos para sobressair nessa sociedade
que não o acolhe. Dessa forma constrói sua relação com dois dos três traços estruturais de sua
vida o dinheiro (necessário para a ascensão) e a religião (meio encontrado para as
trapaças).
É também a sociedade sem amor que vai guiar outro principal traço do pícaro, as
relações amorosas. Sua família de origem escusa, que logo desaparece, é sua única ligação
com o amor durante a infância. A ausência da mãe ou de qualquer outra figura materna faz
com que o pícaro crie certa fixação em relação à sua genitora, pois de alguma forma crê que,
se ela estivesse viva (ou se recebesse de outra um carinho maternal), não precisaria vingar-se
de um mundo que o agride e o desampara. o podemos esquecer que no século XIX a mãe
representava o papel de guardiã da moral, educadora religiosa, aquela que faz feliz o
marido e seu lar. Pensando vitorianamente, a falta da mãe é um estímulo para a perdição,
como acontece com o pícaro.
A patrulha da moralidade existente na sociedade e seu amor incondicional pela mãe são
fundamentais para entendermos que seus objetos amorosos são sempre prostitutas ou
mulheres do povo.
O amor que encontra realização no erotismo constitui mais um traço da trajetória
baixa picaresca e revela a dificuldade de confluência das duas correntes de amor freudianas
que, no pícaro, leva ao gozo do corpo, mas nunca à realização de seus desejos. Vale sempre
lembrar que o objetivo maior desse anti-herói é a ascensão social, mas por trás disso, está
sempre presente a aspiração inalcançável, a família que ele nunca teve.
Para entendermos melhor como o binômio família-sociedade pode levar a uma
insatisfação amorosa, abriremos um parêntese em que estabeleceremos uma reflexão sobre as
correntes amorosas e sua existência na vida dos homens do século XIX, a partir da concepção
freudiana.
Em suas Contribuições à Psicologia do Amor, Freud considera haver duas correntes
para um “comportamento amoroso completamente normal” (1997: 78), a afetiva e a sensual.
A primeira é formada ainda na infância e possui como objeto amoroso os pais, cuja afeição
aparece em seus cuidados paternais e revela certo erotismo; a segunda corrente inicia-se na
puberdade e une os afetos infantis ao erotismo, sempre limitada, claro, pela “barreira do
incesto”.
O ideal é que, na idade adulta, a duas correntes se unam. Entretanto, o ser humano
depara-se com a frustração diante da escolha de objetos amorosos diferentes dos infantis e
com a persistência da atração pelos objetos infantis. Quando esses dois obstáculos são
tenazes, a corrente sensual se restringe e tende apenas a objetos que não lembrem o incesto,
para que possa ter sexo com alguém que não precise ser amado, afastando-se, portanto, da
imagem da mãe. Logo, ama-se a prostituta porque ama-se cada vez mais a própria mãe.
Dessa forma, as duas correntes não se unem, e amor e desejo nunca estão representados
em um único objeto escolhido. É exatamente por isso que esse homem só se sente plenamente
realizado sexualmente quando deprecia a mulher, pois não pode desejar aquela a quem ama.
Isso gera uma atração por um tipo de mulher “eticamente inferior” (FREUD, 1997: 84),
representada por uma prostituta, mulher de fama ou simplesmente alguém de classe social
inferior. Assim, escondido por trás dessa mulher menos respeitosa que ele, o homem
pode realizar-se sem que o restante da sociedade possa julgá-lo.
Como aponta Freud, o julgamento da sociedade é muito importante para esse “homem
civilizado”, típico representante do século XIX. uma forte luta pela privacidade, pela
respeitabilidade e pelo controle de sentimentos, sejam eles nobres ou não. Para que esses
limites sejam respeitados, surge uma grande repressão dos impulsos.
Citando Freud em “Kulturelle” Sexualmoral, Peter Gay afirma que a civilização
atravessa três estágios de conduta sexual aceitável: na primeira, toda atividade sexual é
livre, esteja ou não voltada para a reprodução; na segunda, só se permite a atividade
sexual que atenda às finalidades reprodutivas; na terceira, essa restrição torna-se ainda
mais aguda, admitindo oficialmente apenas a reprodução legítima (GAY, 2000: 303).
Todavia, no século XIX, eram aceitas a segunda e a terceira condutas, especialmente
a última. Logo, a satisfação era permitida dentro do casamento, o que exigia abstinência
pré-nupcial e fidelidade. Essa repressão da sociedade dita civilizada levava ao nervosismo,
demonstrado através da somatização dos conflitos sexuais, uma vez que o sexo quase nunca
era livre.
Outra conseqüência dos limites impostos pela moral, talvez a mais visível, era a
prostituição, meio mais simples de tornar possível a realização sexual fora das condutas de
finalidade reprodutiva apontadas por Freud.
Ora, é essa coerção social das condutas sexuais que leva o homem a não conseguir
equilibrar as correntes afetiva e sensual, buscando a realização sexual não no casamento, ou
com a mulher amada, mas marginalmente, isto é, por meio da prostituição. Esse também é o
seu caminho inconsciente de buscar uma parceira que seja depreciada por ele para o sexo.
Logo, é possível concluir que a repressão da sociedade burguesa do século XIX e suas
conseqüentes saídas para a concretização do sexo estavam intimamente ligadas à impotência
psíquica do homem vitoriano.
É preciso lembrar também que, quando falamos do contato dos burgueses com a
prostituição, não estamos apenas lidando com pessoas supostamente distintas em relação à
ética; na verdade, trata-se antes de mais nada de uma diferença socio-econômica que não deve
ser relevada. Existe no imaginário popular uma tendência a acreditar que os padrões sexuais
diferem de acordo com a classe social a qual a pessoa pertença. Peter Gay (2000: 344),
citando os estudos de Freud nas Conferências de Introdução à Psicanálise, confirma a
diferença existente entre a normal vida sexual do pobre e a vida sexual do burguês,
abalada pelas repressões.
É portanto gico que os burgueses se interessassem sexualmente pelas moças de classe
inferior ou pelas prostitutas, se eram as moças pobres que exerciam a prostituição. Valendo-se
de relações de dependência econômica, o homem burguês usava não só a cortesã, mas seduzia
empregadas, operárias etc., pois o ideal de vida sexual selvagem atraía tanto quanto o de
objeto depreciado.
É por isso que a prostituição vem a ser a “válvula de segurança e respeitabilidade”
(GAY, 2000: 313) tão bem representada em estudos científicos da época sobre seus
defensores e combatentes, pois não infringe as normas morais de respeito e impede a sedução
de moças de família e criadas honestas.
Por ser uma traição óbvia e inerente às exigências do ideal erótico burguês de fidelidade
conjugal, a prostituição foi inúmeras vezes representada em obras ficcionais de qualidade
não como esquecer A Dama das Camélias e Lucíola, para citar apenas dois romances da
era vitoriana. Independente de serem relatos fiéis à realidade (já que na vida real as prostitutas
não se restringiam às cortesãs caras e luxuosas), eram uma forma de, através da prostituta de
bom coração com morte trágica, aplicar uma lição de moral à sociedade, que deveria ter
sempre em mente que o sexo livre é perigoso para o corpo e para o amor.
Para observarmos como a relação entre o burguês e as mulheres do povo estavam
implicitamente presentes nos romances do século XIX, vamos analisar Teodorico Raposo, que
assim como o Lazarillo, pícaro original, consegue amar e encontrar realização com
mulheres do povo, em relacionamentos escusos. Vejamos, então, Teodorico, o neopícaro
queirosiano plenamente apaixonado por duas cortesãs, Adélia e Miss Mary.
3.2.1. Imagens queirosianas da perdição
Como foi dito anteriormente, Eça de Queirós estava realmente empenhado em
escrever “romances de combate”, sempre imbuído do discurso de verdade presente na estética
realista. A tentativa de reprodução do mundo real era sempre o pano de fundo para suas
“bengaladas” em nome da moral burguesa. Não é de se estranhar, portanto, que, ao falar das
relações sensuais de seus personagens, também queira desvendar a verdade do sexo. É
claro que, como conseqüência disso encontraremos uma visão moralista a respeito do sexo
desvinculado do amor conjugal.
Ao comentar a postura de Eça em suas Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres,
Ana Luísa Vilela afirma:
A persistente tendência misógina; esta terminante condenação do amor não procriativo; as
referências algo galhofeiras às criadas chantagistas londrinas e ao escândalo da
prostituição (...) duas alusões jocosas (uma das quais bastante desenvolvida) ao
lesbianismo; o contido regozijo (e porventura a narrativa levemente mistificadora) de
“Uma partida feita ao Times compõem, nestes textos jornalísticos, uma atitude de
distância simultaneamente folgazã e moralista em relação ao prazer e à irregularidade
erótica, inconsequentes mas sintomáticas anedotas de um quotidiano pré-catastrófico
(VILELA, 200: 276).
Todos esses tópicos abordados por Eça nos textos jornalísticos da década de 1870
acabaram por ser brilhantemente desenvolvidos nos romances do autor. As más
conseqüências do amor “não procriativo” estão presentes em quase toda a sua obra. Não
como esquecer a criada chantagista d’ O Primo Basílio e as punições recebidas por todos os
protagonistas que ousaram amar fora dos padrões morais da época. Para perpetuar
ficcionalmente a prostituição, nada como as cortesãs d’ A Relíquia, que exemplificam a idéia
central do eros queirosiano a figura feminina é, antes de mais nada, a imagem da perdição
e da desordem quando desassociada a um casamento modelo de fidelidade.
Para relacionarmos o amor de Teodorico Raposo pelas prostitutas é interessante
rememoramos seus objetos amorosos infantis. Sua mãe morre logo após o parto, e
aparentemente a única figura feminina que ele conhece é Gervásia, a criada. no caminho
para a casa de d. Patrocínio, Teodorico, então com sete anos, estabelece sua primeira relação
entre o sensualismo e a figura materna a “inglesa do barão” é comparada à Virgem Maria,
“cheia de graça”:
No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando Ave-
Marias. Nunca roçara corpo tão belo, dum perfume tão penetrante: ela era cheia de graça,
o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas
claras... (QUEIRÓS, 1997: 851)
A antipatia sentida pela Titi desde sua chegada é compensada pelo carinho da criada
Vicência, que sempre aludia em suas conversas com o menino à necessidade de agradar a tia,
tendo em vista sua riqueza. A relação de Teodorico com sua “conselheira” é um misto de
afeição e erotismo, como ocorre na corrente afetiva.
À porta do colégio a Vicência dizia “Adeus, amorzinho”, e dava-me um grande beijo.
Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu pensava na Vicência, e nos braços que
lhe vira arregaçados, gordos e brancos como leite. E assim foi nascendo no meu coração,
pudicamente, uma paixão pela Vicência. (QUEIRÓS, 1997: 856)
É interessante observar que, com a chegada da puberdade, a primeira briga, o fumo dos
cigarros, a ausência da amizade homoerótica com o colega Crispim, o amor de Teodorico pela
criada “desapareceu um dia, insensivelmente, como uma flor que se perde na rua”
(QUEIRÓS, 1997: 856).
na idade adulta, o autor nos faz saber da única aventura de Teodoro até então. Ainda
que mal desenvolvido, seu relacionamento com Tereza dos Quinze, no Terreiro das Ervas em
Coimbra, revela o início da atração do anti-herói por um tipo de mulher que “me chamava de
‘único afeto da sua alma’ e me pedia dezoito tostões” (QUEIRÓS, 1997: 860).
Durante as férias em Lisboa, Teodorico encontra um amigo, que possui o sugestivo
apelido de Rinchão, e que o leva para conhecer Adélia. Aquele encontro com a prostituta de
“casa de classe média”, que inspira ao longe um ar mais respeitável que o de um prostíbulo,
deixa Raposão “comovido” e já inclinado para o amor, sem nem ao menos conhecê-la:
E a Adélia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos caídos no
tapete, fumava um cigarro lânguido. Eu sentei-me ao lado dela, comovido e mono, com o
meu guarda-chuva entre os joelhos. quando o Silvério e a Ernestina correram dentro à
cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar à Adélia, corando:
— Então a menina donde é?
Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, pude gaguejar que era tristonho aquele
tempo de chuva. Ela pediu-me outro cigarro, cortesmente, dizendo-me o cavalheiro.
Apreciei estes modos. As mangas largas do seu roupão, escorregando, descobriam braços
tão brancos e macios, que entre eles a Morte mesma deveria ser deleitosa.
(...)
Tinha um sobrinho que também chamava Teodorico; e isto foi como um fio sutil e forte
que veio, do seu coração, enrodilhar-se no meu (QUEIRÓS, 1997: 861).
A timidez diante do “mulherão” confunde atração sexual e afeto em Teodorico. Ao
mesmo tempo em que tem consciência da condição social de Adélia, Raposão encanta-se com
a forma pudica da prostituta ao tratá-lo por cavalheiro. Tudo isso unido ao discurso
romântico do protagonista-narrador, que ousa enxergar um “fio sutil e forteunindo sua vida
à da mulher, leva-nos a antever o amor que sentirá por Adélia. A analogia amor de
mãe/amor de prostituta pode parecer estranha à primeira vista, mas é inteiramente justificada
pelas reminiscências infantis da ternura da figura materna e a diferença quase nula existente
no imaginário infantil entre o sexo da e (ou da figura materna) com o pai e o sexo
oferecido aos homens pelas meretrizes. Teodorico deixa-se, convenientemente, levar pelo
jogo de Adélia, que mescla respeito e sedução, o que seria uma forma mais delicada e discreta
de trair o ideal erótico burguês de castidade e fidelidade.
Teodoro Raposo não se conta disso, mas encaixa-se perfeitamente no modelo de
homem que precisa amar mulheres de fama, usando seus objetos amorosos como
substitutos da figura materna. Está plenamente de acordo com as precondições para o amor
(FREUD, 1997: 66), pois se interessa pela prostituta, cuja figura é desconfiável e induz a
haver sempre uma terceira pessoa prejudicada, que nunca pertencerá a um só homem. Essa
atração também provoca uma valorização compulsiva da mulher e um grande desejo de salvá-
la, que ela é eticamente inferior e pode perder o “controle moral”. Ora, é justamente esse
amor inexorável que Raposão sentirá por Adélia e que se satirizado por Eça através do
discurso ridiculamente romântico do protagonista “Então a Adélia, revirando-se
languidamente, puxou-me a face e os meus lábios encontraram os seus no beijo mais sério,
mais sentido, mais profundo que até aí abalara o meu ser” (QUEIRÓS, 1997: 862).
Teodorico volta à universidade para terminar seus estudos, sem com isso esquecer a
prostituta “Em Coimbra procurara mesmo fazer-lhe versos; e esse amor dentro do meu
peito foi, no último ano de Universidade, no ano de direito eclesiástico, como um maravilhoso
lírio que ninguém via e que perfumava a minha vida...” (QUEIRÓS, 1997: 865) . Quando
retorna a Lisboa e passa a receber da tia uma mesada, resolve procurar novamente Adélia na
quase óbvia rua da Madalena, agora não mais independente em sua casa burguesa, mas
“patrocinada por Eleutério Serra, da firma Serra Brito & Cia.” (QUEIRÓS, 1997: 865). Na
nova postura de mulher teúda e manteúda, interessa ainda mais a Raposão, que (assim
como a maioria dos homens vitorianos) nesse tipo de mulher uma espécie de esposa
substituta, concubina com a qual pode ao mesmo tempo ser respeitável e realizar seus desejos
sexuais.
A suposta “respeitabilidade” de ambos continua, aliás, a ser extremamente excitante
para Teodorico (“Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto: ‘Minha
senhora.’ Ela respondeu, com dignidade: — ‘o cavalheiro pode vir aqui ao meio-dia’ ”
QUEIRÓS, 1997: 865). Adélia primeiro certifica-se de que Raposão não é do comércio,
o que poderia atrapalhar sua vida com Eleutério, e, logo depois, insinua-se para o novo
amante, que mostra-se entregue após um longo período de amor idealizado na distância de
Coimbra “Ajoelhei sobre a esteira, trêmulo, esmagando o peito contra os seus joelhos,
ofertando-me como uma rês; ela abriu o seu xale; aceitou-me misericordiosamente”
(QUEIRÓS, 1997: 866).
Enquanto o esperado de um burguês é que ele seja um homem provedor, forte e
persuasivo diante da mulher, Raposão é dependente do dinheiro de d. Patrocínio, fraco e
dominado por Adélia. A imagem construída pelo protagonista é bem diversa do que a
sociedade da época precisava demonstrar. Raposão não é o forte, o conquistador, é o amante
maternal, que oferta-se e aceita passivamente da amante ter ela um patrocinador, o Eleutério,
sob a justificativa de ser ele, Teodorico, “o eleito do seu seio(QUEIRÓS, 1997: 866). A
própria visão de um homem que se apaixona pela prostituta e se deixa dominar por ela revela
um certo afeminamento, que aqui mostra-se excessivamente caricatural, uma vez que constitui
uma sátira aos arroubos românticos de amor.
Sabendo que a titi deseja deixar todos os seus bens para a Igreja, Raposão empenha-se
mais na sua falsa devoção para tornar-se o único herdeiro. Pendura na parede de seu quarto
imagens de santos, ensina à tia a devoção de santos menos conhecidos e passa assistir a várias
missas e novenas diariamente. À noite, após tamanha peregrinação, encontra-se sempre
cansado, o que passa a irritar Adélia. Do apelido de morcão logo chega a carraça e a
amante cada vez mais distante, inclusive “deixou de me fazer a carícia melhor, que eu mais
apetecia — a penetrante e regaladora beijoca na orelha” (QUEIRÓS, 1997: 874).
Sem receber fortuna alguma de Teodorico e ainda sem a presença da figura masculina
que ele deveria representar, Adélia se desinteressa até ao ponto de ser vista com o sr. Adelino,
a que apresenta como sobrinho.Com medo de ser descoberta, “Nessa noite a Adélia,
resplandecente, tornou a chamar-me morcão, restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa
semana foi deliciosa como a de um noivado” (QUEIRÓS, 1997: 875).
É interessante observar que o idílio de Raposão é solitário e a imagem da mulher que é
concubina de outro lhe a sensação de relacionamento sólido e sério, uma vez que chega a
compará-lo a um “noivado”. Apesar da condição de prostituta de Adélia, Raposão tem por ela
amor de esposa e de amante, ainda que para alcançar esse estado de confluência precise da
mulher eticamente inferior. Tanto é necessário para Teodorico legitimar seu amor sabido
incompatível com o objeto amoroso, que tem como desejo, se herdar os bens da tia,
tornar Adélia sua concubina; também utiliza termos como “noivado” e sentir-se “viúvo, sem
ocupação e sem lar” (QUEIRÓS, 1997: 878), posteriormente, quando perceber que a perdeu.
Logo a verdade aparece. A figura da criada tão comentada por Eça de Queirós aparece
para revelar o segredo. Sabendo que Adelino também é amante da prostituta e que seu
dinheiro foi usado para comprar roupa para o outro, Raposão ainda pensa se “Não seria mais
sensato e mais proveitoso acreditar nela, tolerar-lhe um fugitivo transporte pelo sr. Adelino, e
continuar a receber egoistamente o meu beijinho na orelha? (QUEIRÓS, 1997:878).
Entretanto, configura-se clara para Teodorico a diferença entre a prostituição e o desejo.
Eleutério, o amante oficial sempre foi aceito por Teodorico como o pagador da prostituição,
enquanto ele próprio representava o amor real, a escolha de Adélia; neste caso, Eleutério era o
traído, a terceira pessoa prejudicada precondição para a realização do amor. Diante de
Adelino, ele, o Raposão de poucos, mas presentes tostões, passa a ser o enganado, traído,
verdadeiramente humilhado por aquele que é o objeto eleito da amante. Ainda que
apaixonado, é preciso agora diminuí-la, torná-la inferior, de forma que ele não pareça o
burguês enganado e mesmo assim enamorado, por isso chama-lhe “bêbeda” (QUEIRÓS,
1997: 878). Levando a prostituta à lama, consegue fazer com que ela, seu objeto de desejo,
não seja mais digna do seu amor.
Tenta ainda assim fazer novenas para resgatar o amor de Adélia, visto que pedir à Nossa
Senhora é o mesmo que pedir à figura da mãe, que por sua vez confunde-se com a figura da
prostituta. É tarde. Ao procurá-la pela última vez, ouve como resposta a seus chamados o
que gostaria de dizer-lhe a sociedade a quem engana em sua fuga burguesa e seu caminho de
vícios: “— Atira-lhe para cima dos lombos o balde de água suja!” (QUEIRÓS, 1997: 880).
Do desejo de ir a Paris esquecer Adélia surge a oportunidade de representar a Titi em
Jerusalém, mostrar-se santo e assim assegurar a herança sem, contudo, deixar de “fartar o
bandulho”. É no ambiente de religião e sonho dessa viagem que iconhecer seu outro
grande amor, mais uma vez uma prostituta, Miss Mary:
Eu, acendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e confiei-lhe que desejava, sem
tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era por intenção da tia Patrocínio, que me recomendara
uma jaculatória a S. José, apenas pisasse esse solo do Egito, tomado, desde a fuga da
Santa Família em cima do seu burrinho, chão devoto como o duma Sé. Amar era por
necessidade do meu coração, ansioso e ardido. (...) Depois o triste Alpedrinha indicou-
me, a uma esquina, onde uma velha vendia canas-de-açúcar, a tranqüila rua das Duas
Irmãs. (murmurou ele) eu veria, pendurada sobre a porta duma lojinha discreta, uma
pesada mão de pau, tosca e roxa e por cima, em tabuleta negra, estes dizeres convidativos a
ouro: MISS MARY, LUVAS E FLORES DE CERA. Era esse o refúgio que ele aconselhava ao
meu coração. Ao fundo da rua, junto duma fonte chorando entre árvores, havia uma
capela nova onde a minha alma acharia consolação e frescura.
E diga o cavalheiro a Miss Mary que vai de mandado do Hotel das Pirâmides.
(QUEIRÓS, 1997: 892)
Diferentemente de Adélia, Miss Mary é uma prostituta que atua em uma loja com
fachada ilícita, como era muito comum no século XIX, numa tentativa de tornar a prostituição
ainda mais clandestina, em lojas de luvas ou de tabaco. Com ela, demonstra ser mais amante
que maternal, ao contrário do que aconteceu com Adélia. No entanto, não deixa nunca o tom
romântico das narrações e comportamento excessivamente comovido e impressionável com
atitudes de carinho:
Ela era silenciosa: mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu modo gentil
de dobrar o Times, saturava o meu coração de luminosa alegria. Nem precisava chamar-
me "seu portuguesinho valente, seu bibichinho". Bastava que o seu peito arfasse:
para ver aquela doce onda lânguida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus
beijos, eu teria vindo de tão longe a Alexandria, iria mais longe, a pé, sem repouso, até
onde as águas do Nilo são brancas! (QUEIRÓS, 1997: 893)
O nosso “portuguesinho valente” passeia idilicamente com sua nova amante e a leva em
jantares no Hotel das Pirâmides como se ela fosse sua esposa. Repete, portanto, o padrão de
comportamento que teve com Adélia, chegando mais uma vez a sonhar com a oficialização do
relacionamento que seria condenado aos olhos de todos. Pensa novamente que, herdando a
fortuna da tia,
poderia comprar esse doce retiro, forrá-lo de lindas sedas, e viver ao lado da minha
luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas as inquietações da civilização. (...)
E passaria os dias numa fofa preguiça oriental, fumando o puro Latakié, tocando viola
francesa, e recebendo perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita que a Mary me
dava com deixar arfar o seio e chamar-me "seu portuguesinho valente" (QUEIRÓS,
1997: 895).
Raposão nunca duvida de ser correspondido por Miss Mary. Ao seguir viagem, sofre
com a separação, mas recebe como consolo a famosa camisa de dormir que, como já sabemos,
é a causa da descoberta de suas trapaças. Como prova inconsciente para a fidelidade de Mary
e para elevá-la em relação à Adélia, Teodorico sonha que está com ambas subindo uma colina
quando encontram o Diabo. Não indica a reação de Miss Mary, mas afirma que “A insaciável
Adélia atirava olhadelas oblíquas à potência dos seus músculos. Eu dizia-lhe, indignado:
"Porca, até te serve o diabo?” (QUEIRÓS, 1997:899). Para Raposão pouco importa que Miss
Mary seja tão prostituta quanto Adélia, o que realmente conta é a promiscuidade de uma em
vista da fidelidade amorosa da outra. Apesar de escolher como objeto amoroso uma prostituta
por conta principalmente, da desconfiança exercida pela sua figura que gera,
inexoravelmente, uma agradável sensação ao ego masculino, de rivalidade com os demais
homens —, o que o protagonista mais gosta é justamente do fato de a prostituta lhe ser fiel,
pois assim reproduz seu ideal de relacionamento: ama a mãe, que é fiel ao pai. Procura na
prostitua a figura da mãe e finalmente a encontra.
Porém, pouco tempo depois descobrirá que a fidelidade idealizada não existe. Ao
encontrar Alpedrinha no Hotel de Josafá, pede notícias de Mary e descobre que ela agora está
em Tebas, para onde foi acompanhada de um italiano fotógrafo.
Que descarada! gritei eu, varado. Então com um italiano? E gostando dele? Ou
só negócio?... Hein, gostando?
— Babadinha — balbuciou Alpedrinha.
E, com um suspiro, atroou o Hotel de Josafá. Perante este ai, repassado de tormento e de
paixão, relampejou-me na alma uma suspeita abominável.
— Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui há perfídia, Alpedrinha!
Ele baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que
ele o levantasse já eu lhe empolgara com sanha o braço mole.
— Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Também petiscaste?
(...)
— Também petisquei!
Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Também aquela com aquele!
Oh, a Terra! a Terra! que é ela senão um montão de coisas podres, rolando pelos céus
com bazófias de astro?
(...)
Ia rebolar-me no divan, rasgá-lo com as unhas, rir sempre, num desesperado desprezo de
tudo... Mas Topsius e o risonho Potte apareceram alvoroçados. (QUEIRÓS, 1997: 1000).
Fica sabendo que o tão propalado amor da luveira estava apenas na imaginação dele.
Mary não passa de uma prostituta, que vende seu amor tanto afetivo quanto carnal a quem
aparecer primeiro. Precisa, então, degradá-la, tornar inferior seu objeto de desejo, como já
havia feito com Adélia, por isso agora Miss Mary é a “descarada”. Sente-se traído também
pelo envolvimento de Alpedrinha com a luveira, que possuía um padrão óbvio de
comportamento, e deu a seu outro amante português um “chambrezinho” (QUEIRÓS, 1997:
1000) de presente e até mesmo um apelido próprio: “mourozinho catita” (QUEIRÓS, 1997:
1000). Mais uma vez é necessário marcar o desnível moral que há entre ele (!) e a prostituta,
por isso utiliza o verbo “petiscar”, denotando algo como “aproveitar-se rapidamente”, ou
“comer coisa sem importância”.
Desespera-se, mas deve manter sua postura perante Topsius e Potte, que um homem
de sua condição social poderia envolver-se com uma prostituta, no entanto, nunca amá-la e
deixar-se levar pelo ciúme. Raposão dá-se conta do alto preço que tem a pagar por amar uma
cortesã a mulher trai naturalmente e a sociedade joga-lhe na cara a condição pecaminosa
de homem que não escolhe uma mulher honesta para casamento, mas vive em concubinato
para manter a aparência diante de todos, principalmente da Titi, a quem deseja agradar para
herdar. A escolha de seu objeto amoroso é como uma resposta do mundo, que lhe repete
incessantemente: ame ou deseje, pois nunca conseguirá concretizar os dois simultaneamente.
Como não consegue herdar, amar ou desejar, a única saída possível para Teodorico é
arrumar um casamento de conveniências. Sem o dinheiro da tia Patrocínio, reencontra seu
colega de infância Crispim, representante da firma Crispim e Cia, que lhe oferece um
emprego. Logo aproxima-se da irmã de Crispim, d. Jesuína. Sem atrativos, mas dona de um
bom dote, é ela quem vai se tornar a escolhida de Raposão:
Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a comenda de Cristo. E
o dr. Margaride, que janta comigo todos os domingos de casaca, afirma que o Estado,
pela minha ilustração, as minhas consideráveis viagens e o meu patriotismo — me deve o
título de Barão do Mosteiro. Porque eu comprei o Mosteiro. (QUEIRÓS, 1997: 1031)
Raposão renunciou ao desejo que encontrava com suas prostitutas. É certo que amava
antes mesmo de acreditar ser amado. Mas sua crença o levava a um estado de confluência
entre amor e desejo, que apesar de não correspondido, era suficientemente satisfatório para
alcançar a figura maternal que lhe faltou durante a infância. Se a falta da mãe leva às
prostitutas e se elas representam a perdição do século XIX, Raposão estava mesmo sem saída,
ou melhor, com uma única saída renunciar para adequar-se à sociedade pela qual ele tanto
deseja ser acolhido. O meio para isso é o casamento honesto, o bom dote, o baronato, tudo
leva à consideração dos outros, consideração de um daqueles que Teodorico sempre sonhou
ser. Abre mão do desejo amoroso porque seu desejo absoluto é ter amor e dinheiro ao mesmo
tempo, e isso ele nunca conseguiria alcançar, ainda que herdasse toda a fortuna da Titi.
Esse viés romântico de Raposão, que entrega-se à paixão pelas prostitutas, em um meio
realista, que as usa para manter a ordem e a moral vigentes, revela um final que não deixa de
ser extremamente romântico (ou será extremamente vitoriano?) a renúncia é a mais
conveniente (talvez a única) saída para o burguês.
4. CONCLUSÃO
É sempre um trabalho complexo analisar obras de um autor canônico. O que dizer então
de pesquisar sobre sua obra mais combatida? Ao dissertarmos sobre A Relíquia, estamos
tentando valorizar aspectos da tradição e da inovação em uma obra de sucesso pouco
elogiada. Qual seria portanto o valor desse estudo para o mundo acadêmico?
É raro encontrarmos um estudo sobre picaresca na literatura de língua portuguesa.
Apesar de haver no Brasil um grande pesquisador do tema, Mario Gonzalez (1994), e de
alguns pesquisadores, como Suely Reis Pinheiro, apostarem nesse tema, esse assunto ainda é
considerado por muitos como um tópico menos interessante no que diz respeito ao estudo da
literatura. Por isso achamos importante olhar A Relíquia sob uma nova perspectiva,
relacionando sua semelhança com a picaresca original, sem contudo, nos esquecermos de sua
condição de obra literária do século XIX e da filiação de seu autor ao Realismo.
Foi possível observar que a literatura picaresca é uma paródia às narrativas medievais,
tão caras aos escritores vitorianos. Repete, de forma irônica e distanciada as aventuras dos
cavaleiros medievais, transformando virtude em ambição, bom caráter em desonestidade e
assim por diante.
Comparando a postura crítica do pícaro original diante da vida e os valores mais
importantes para a sociedade do século XIX, chegamos à conclusão de que tanto o pícaro
como Lazarilho de Tormes quanto um indivíduo comum vitoriano pautariam sua vida
baseados em três faces da moral: a religião, o trabalho e o amor.
Ainda que o século XIX não apresente códigos de conduta sistematizados como na
Idade Média, quando ficava claro o que se esperava do homem em sua sociedade. No entanto,
torna-se evidente um desejo latente de fixar como deveria ser o comportamento de um
vitoriano, mesmo que não através de manuais de comportamento, mas por meio do
rebaixamento daquele que se apresenta como desviante do modelo esperado pela sociedade
vitoriana. O ideal da literatura é também demonstrar como um homem deveria (ou não)
comportar-se no século XIX face às cobranças da sociedade em relação ao trabalho, à religião
e ao comportamento amoroso.
O neopícaro vitoriano reconstrói o traço fundamental do pícaro original a
individualidade. A compaixão por Xavier, o fato de conseguir dirigir o olhar a uma terceira
pessoa e, principalmente, o amor (sentimento inalcançável para o primeiro pícaro,
claramente misógino) são marcas evidentes de que o neopícaro é um personagem que não
vive a mercê do individual. A vontade de reconstruir a família que nunca teve e de alcançar o
status que acredita merecer o levará a agir em nome do seu desejo, mas em comunhão com
outras pessoas.
Ser um neopícaro no século XIX é viver os conflitos característicos desse século a
ascensão social a qualquer preço, a dificuldade em entender uma possível confluência entre o
amor e o desejo sexual, as dúvidas em relação às verdades religiosas −, mas também
contrapor-se a esses conflitos com o “surgimento” da consciência e dos bons sentimentos em
relação ao outro.
O que deve ser ressaltada é a continuação no século XIX não apenas da importância do
dinheiro, do “parecer” ser um homem de bem, da delinqüência evidente na sociedade, mas,
principalmente, uma continuação de um “modelo” de narrativa autobiográfica da qual
podemos extrair duas leituras uma simples, que enxerga apenas uma incoerência entre
narrador e personagem; outra, adotada por nós, mais privilegiada, abarcando uma série de
aventuras próprias de um personagem único em uma época e uma forma subversiva de narrar
no Realismo.
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